O itinerário de Célestin Freinet - a livre expressão na Pedagogia Freinet


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Portuguese Pages [170] Year 1979

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Table of contents :
Sumário
Introdução ......................................................................................... 9
1. Empirismo Inicial...................................................................... 15
2. Do Empirismo Pedagógico à Pedagogia Experimental 21
Nascimento do texto livre . ............................................... 23
Um instrumento de primeira ordem: a impressora.
Na origem de uma reconsideração da pedagogia .................... 28
Abaixo os manuais escolares ................................................... 33
Semelhante técnica é aplicável ao curso médio e superior? ............................................... 65
3. Existe uma Pedagogia de Classe no Regime Capitalista
....................................................................................... 77
Desigualdade na formação de professores .............................. 82
Sensibilidade e intelectualismo .............................................. 87
4.
A Escola Freinet. Laboratório ao Ar Livre, esboço da Escola do Trabalho ..................... 93
Centros de interesse e complexos de interesse.................... 97
Abaixo as aulas...................................................................... 100
O controle ............................................................................. 104
O jornal mural ....................................................................... 109
Rumo à escola do trabalho.................................................... 111
Trabalho-jogo ou jogo-trabalho............................................. 113
5. Da Prática à Teoria................................................................ 117
Em busca de uma psicologia materialista.............................. 119
O automatismo, lei da vida: as conquistas e a inteligência .............................................. 123
Rumo a uma psicologia natural e coletiva............................. 127
6. O Método Natural das Aprendizagens.................................. 131
Do instinto à inteligência ...................................................... 133
Educação e domesticação ..................................................... 135
A aprendizagem através da pesquisa experimental 138
Breve esboço da pedagogia americana do comportamento ................................................. 143
7. A Caminho do Conhecimento Científico........................... 149
As técnicas de Freinet, fermento da pedagogia contemporânea ........................ 159
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O itinerário de Célestin Freinet - a livre expressão na Pedagogia Freinet

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O ITINERÁRIO DE CÉLESTIN FREINET “Na ignorância da natureza humana em que nos encontramos, a educação aparentemente cientí­ fica e objetiva do exterior não passa ainda de um logro. É no in­ divíduo que iremos buscar os fun­ damentos e as linhas de ação." Essa reflexão de Célestin Frei­ net justifica, por si só, a livre ex­ pressão, tema fundamental deste livro que agora apresentamos a professores, pedagogos e a todos que se preocupam por uma edu­ cação melhor e mais sadia. Afastando-se da psicologia abs­ trata e mitológica, Freinet vai oferecer à criança toda a liberda­ de de expressão, e torná-la a ar­ tesã de sua própria personalidade. Esse objetivo exige uma orga­ nização atenta e meticulosa por parte da escola, de seu material, de técnicas libertatórias: todas soluções que levam a uma mudan­ ça de atitude e de método por parte do professor, Do professor que vai instaurar essa educação do trabalho — ponto de partida de uma cultura autêntica, ope­ rando-se dessa forma uma lenta elevação dos indivíduos, indo da ocupação material à majestade crescente do pensamento inteli­ gente e lógico.

O ITINERÁRIO DE CÉLESTIN FREINET

A livre expressão na pedagogia de Freinet

ÉLISE FREINET

O ITINERÁRIO DE CÉLESTIN FREINET

A livre expressão na pedagogia de Freinet Tradução de

Priscila de Siqueira

Livraria Francisco Alves Editora S. A.

Copyright © Payot, Paris 1977 Título original: L’itineraire de Célestin Freinet

Capa: Luis Carlos Moreira Rocha

Impresso no Brasil Printed in Brazil

1979

Todos os direitos desta tradução reservados à LIVRARIA FRANCISCO ALVES EDITORA S. A. Rua Sete de Setembro, 177 — Centro 20.050 — Rio de Janeiro — RJ

Não é permitida a venda em Portugal e outros países de língua portuguesa.

Sumário

Introdução ......................................................................................... 9 1.

Empirismo Inicial...................................................................... 15

2.

Do Empirismo Pedagógico à Pedagogia Experimental 21 Nascimento do texto livre . ............................................... 23 Um instrumento de primeira ordem: a impressora. Na origem de uma reconsideração da pedagogia .................... 28 Abaixo os manuais escolares ................................................... 33 Semelhante técnica é aplicável ao curso médio e superior? .................................................................................. 65

3.

Existe uma Pedagogia de Classe no Regime Capi­ talista ....................................................................................... 77 Desigualdade na formaçãode professores .............................. 82 Sensibilidade e intelectualismo .............................................. 87

4.

A Escola Freinet. Laboratório ao Ar Livre, esboço da Escola do Trabalho ............................................................ 93 Centros de interesse e complexos de interesse....................

97

Abaixo as aulas...................................................................... 100 O controle ............................................................................. 104 O jornal mural ....................................................................... 109 Rumo à escola do trabalho.................................................... 111 Trabalho-jogo ou jogo-trabalho............................................. 113 5.

Da Prática à Teoria................................................................ 117 Em busca de uma psicologia materialista.............................. 119 O automatismo, lei da vida: as conquistas e a inte­ ligência .................................................................................. 123 Rumo a uma psicologia natural e coletiva............................. 127

6.

O Método Natural das Aprendizagens.................................. 131 Do instinto à inteligência ...................................................... 133 Educação e domesticação ..................................................... 135 A aprendizagem através da pesquisa experimental 138 Breve esboço da pedagogia americana do comporta­ mento .................................................................................... 143

7.

A Caminho do Conhecimento Científico........................... 149 As técnicas de Freinet, fermento da pedagogia con­ temporânea . .................................................................... 159

Introdução

A obra de Célestin Freinet — por mais demonstrativa que seja da atualidade e da eficácia de sua prática pedagógica — há muito continua a suscitar reservas, dúvidas quando não descrédito. A razão de uma tal atitude de prudência ou de descon­ fiança, segundo o caso, certamente se deve ao fato de que Freinet não seguiu o curso universitário clássico. Deve-se tam­ bém ao fato de que sua pedagogia foi, desde o início, uma pedagogia coletiva e militante, obra de precursores, tendo como único mérito a paixão pela educação a tenacidade e a coragem. Estes são bens que a Universidade não oferece, pois está habilitada somente a consagrar como Mestres aqueles que recebem os seus ensinamentos. Haveria assim, ao que parece, esta única maneira de servir à inteligência e de “honrar o es­ pírito”. O espantoso foi que, sem pistolões, sem diplomas nem cer­ tificados — e, ainda por cima, contrariando a maioria estabe­ lecida — estes professores da primeira hora conseguiram cons­ truir, pedra por pedra, uma obra sólida e erigir o centro espi­ ritual de uma ação irradiante. 9

Ninguém melhor que Freinet, seu iniciador e líder, teve consciência deste ato de audácia cujo sucesso, ao longo de meio século, é testemunha, ainda hoje, de sua grande eficácia po­ pular, sem, entretanto, desarmar as críticas evasivas e a des­ confiança dos conformistas da cultura burguesa. Não que Freinet tenha algum dia temido a crítica leal e sadia: não se pode progredir se só se vê um lado das coisas. Mas toda crítica, para ser justificada, deve ser de algum modo orgânica, brotar do centro dos antagonismos de um sistema dinâmico em sua essência fundamental. Por suscitar tal crítica é que Freinet, tomando a si todo o leque de uma obra que integra indissoluvelmente prática e teoria, tentou tantas vezes permitir observações a “portas abertas”, a serem feitas por personalidades estrangeiras, sobre a formação e comportamento dos alunos do primário. Em 1959, após trinta e cinco anos de prática pedagógica coletiva generalizada, Freinet ofereceu uma tribuna à crítica dos universitários, ao criar a revista Techniques de Vie.1 Ex­ punha assim à indagação e ao julgamento de especialistas da educação a obra complexa de uma psicopedagogia que even­ tualmente pudesse apresentar contradições internas. Com humor e simplicidade apresentava o seu problema: Oferecemos hoje aos professores que praticam as Técnicas Freinet, aos educadores e aos pais que se interessam pela mo­ dernização indispensável de nosso ensino, esta nova revista, atendendo aos pedidos e solicitações de nossos próprios adeptos. Como bons operários, conscientes das exigências históricas de nossa função, escavamos as fundações de nosso novo edifí­ cio, ajustamo-lhe os elementos, levantamos as paredes, dispu­ semos o teto para que se possa promover a delicada operação que consiste em transformar nossas crianças em homens capa­ zes de enfrentar com eficiência e dignidade os novos imperativos de um grande destino. Mas, e eis uma grave imperfeição, este edifício não foi levantado segundo as normas habitualmente admitidas: conhe­ cidos teóricos, especialistas na matéria, contestam a legitimi­ dade e a solidez de nossas fundações; criticam a técnica mo­ derna segundo a qual dispusemos as paredes e adaptamos a iluminação. O telhado não tem nem as dimensões nem a inclinação exigidas; lança-se em direção ao céu, audacioso como um campanário de catedral, o que é inadmissível para uma humilde construção escolar. Não nos acusam até de transformar nossas crianças em cobaias para perigosas expe­ riências? 10

No entanto, palavra de honra, estamos orgulhosos com nossa construção; nela nos sentimos à vontade e fazemos, em paz, um trabalho cujas virtudes aparecem com evidência. Mas, para dizer a verdade, os temores e as oposições de nossos crí­ ticos não deixam de nos afetar e de nos perturbar. Não es­ tamos em condições de julgar suas palavras; a linguagem erudita que usam nos impressiona a tal ponto que por vezes nos perguntamos se estamos no caminho certo. Para aqueles que nos consideram, não sem alguma ironia, como simples aventureiros, a condenação de que somos objeto freqüentemente se apresenta como uma barreira que não ousam transpor os que são dominados e subjugados pela autoridade constituída. Então, perguntamo-nos seriamente: teremos realmente razão? Essas perspectivas entusiasmantes que se abrem em torno de nossa escola, como pistas lançadas em direção ao céu azul, não seriam miragens? Não estaria nossa intuição irremediavelmente condenada por todo o complexo aparato de estudos e de medida com que o ensino tradicional parece se garantir? Uma longa ação coletiva nos dá a certeza experimental do valor incontestável de nossa pedagogia. Mas seria bom, mesmo assim, para nós, para aqueles que um dia se juntarão a nós, e para os que usam nossos métodos, se também pudés­ semos apresentar nossas provas, colocá-las em paralelo com as da educação tradicional, se verificássemos e encontrássemos nossas fontes — que estimamos serem materiais — se justifi­ cássemos nossos impulsos e nossas esperanças, se corrigís­ semos talvez certos erros e insuficiências. Não somos nós que podemos fazer esta prospecção, e sim aqueles que, por seus estudos e suas funções, estarão mais capacitados do que nós para organizar, em relação a nossas técnicas, esse curriculum vitae, que hoje nos é indispensável. Por isso, nesta revista, fazemos apelo aos professores — de todo os níveis — aos inspetores, aos diretores de escola nor­ mal, aos psicólogos, aos psiquiatras que quiserem, sem precon­ ceito, cientificamente, considerar conosco o fenômeno Escola Moderna tal como lhes apresentamos. Nós mesmos lhes apre­ sentaremos nossas descobertas, nossas ousadias, as possibilida­ des que pressentimos, nossas dúvidas e temores, mas também e sobretudo um vasto terreno de experiência. Pois, em última análise, não será a teoria o nosso triunfo — e sim sua verifi­ cação prática. Eis aí um processo exclusivamente científico de que todos os pesquisadores interessados acatarão as decisões. Não há dúvida de que, com as descobertas científicas alucinantes destes últimos anos, com a industrialização que está em vias de se generalizar, com a entrada no circuito cul­ tural de elementos explosivos como são o rádio, o cinema e a televisão, uma mutação está em vias de se produzir no meio 11

em que vivemos. Esta mutação tem como verdadeiro corolário uma mutação similar no espírito e no comportamento da in­ fância e da juventude. Os processos de conhecimento, de pen­ samento, de ação e de reação são profundamente afetados por esses fenômenos. Não que mudem imediatamente a natureza do homem — isso será talvez para mais tarde — mas suas relações com o meio ficam necessariamente alteradas. A esta transformação, a esta mutação, deve responder uma renovação, uma mutação nos processos de ensino, muta­ ção que, como todas as mutações, altera completamente os dados até então clássicos da psicologia e da pedagogia. É nesse complexo que hoje situamos nosso trabalho. Para esta tarefa imensa, e nunca terminada, toda boa vontade é pouca.² O debate, hoje, permanece sempre aberto. Este livro tem como única finalidade contribuir para o esclarecimento do problema. Acrescentamos ao dossiê um elemento fundamental que é o centro de toda a obra de Freinet: a livre expressão da criança. A livre expressão não é invenção de um cérebro particular­ mente privilegiado: é a própria manifestação da vida! É preciso remontar a Lamarck — este Mestre a quem Freinet não cessava de render homenagem — para desvincular a livre expressão de seu significado parcial e escolar, para de­ volver-lhe a amplitude de uma vida ascendente, multiforme e complexa, exigindo funções de órgãos e dos instrumentos de relação, estabelecendo um elo permanente entre os impulsos internos e a crescente multiplicidade dos estímulos externos. É nesse jogo incessante que a criatura se impõe como ator de seu próprio equilíbrio e da duração de sua ação de viver. Para esse enorme desafio há um único processo universal: pesquisar*; a pesquisa válida no decorrer de toda a ascensão universal da vida, do unicelular aos seres superiores da mais complexa fisiologia, às mais altas funções da consciência e da vontade. O problema assim colocado desliga-se por si mesmo de toda especulação metafísica. Resta-nos preservá-lo de toda apropriação do ensino tradicional. A obra de Freinet é uma tentativa de impedir o naufrágio. * Tâtonnement (N. do T.) 12

É justo dizer que a livre expressão foi para Freinet uma aventura. Examinemo-la desde seu início.

Notas

1. 2.

Techniques de Vie, n.° 1, outubro de 1959. Tecniques de Vie, n.° 1, outubro de 1959.

13

Capítulo 1

Empirismo Inicial

As melhores ações, os gestos mais generosos ar­ riscam-se a reforçar o erro e o mal se não se reencontra a luz que ilumina os caminhos da vida. L’Education du travail

Freinet estréia no magistério com o empirismo que é o do homem que se joga n’água sem saber nadar. Sua prática escolar, toda ela orientada pela pesquisa do puro acaso, abre-lhe entretanto o caminho da livre expressão da criança. Mas “nada é tão delicado e fugidio, por na­ tureza, quanto um começo” (Teilhard de Char­ din). Uma coisa é certa, apesar de tudo: a livre expressão é a ascensão da vida.

“Nesta busca tecnológica em que me sinto em meu ver­ dadeiro terreno” — escreve Freinet — “parti do zero.” Tal é efetivamente o caso desse jovem professor, ferido na «guerra de 14-18, nomeado em Bar-sur-Loup (Alpes Maríti­ mos) para uma escola primária de meninos. Nesse ofício de professor, escolhido no limiar da adolescência e ao qual per­ manece fiel contra a opinião dos médicos, Freinet rapidamente toma consciência de suas insuficiências, tanto físicas como pro­ fissionais: sua capacidade respiratória, reduzida pelas seqüelas de um grave ferimento pulmonar, e o enfraquecimento da saúde que daí resulta, tornam-no inapto para garantir o esfor«ço físico e emocional de uma presença eficaz junto a crianças turbulentas e essencialmente discordantes. Além disso, dá-se conta de sua ignorância em relação à função de ensinar, que é a de um estreante nos anos difíceis do após-guerra. Estava só, dominado pelo drama de uma juventude ferida mo limiar da vida. A companhia barulhenta e calorosa da in­ fância pesou neste destino: por uma obstinação sem tréguas no esforço físico e moral, o jovem professor começou seu longo e paciente aprendizado do ofício de educador. 17

Isso só poderia se fazer através de um compromisso que por um lado poupasse sua saúde e por outro desse às crianças um papel mais ativo no plano escolar. Seus alunos suportavam, visivelmente, tão mal quanto ele o clima pesado da classe. Abriram-se as janelas até então fechadas. Via-se o grande castanheiro florir, ao longo dos dias, seus botões rosados; os canários-da-terra construíam seus ni­ nhos nas árvores; vozes conhecidas e familiares ressoavam por um momento, depois perdiam-se numa conversa, que a contra­ gosto sentia-se distanciar-se... “Você notou a grande importância que têm as cores, os sons e os sonhos na linguagem das crianças? Tudo nela é luminoso, etéreo, livre e fresco como a água que corre.”¹ O apelo do mundo precedeu a pedagogia: a soleira da porta foi transposta... Lá fora está a aldeia, cenário familiar onde os constrangi­ mentos se desfazem, movimento de simpatia em relação aos seres, aos animais e às coisas, que tecem uma atmosfera de impregnação sensível. Mais além estão os campos, onde traba­ lham os camponeses, a ondulação das árvores, os prados verdejantes, as pequenas veredas que personalizam as terras. E,. banhando essas paisagens tocantes, o ar sonoro onde se elevam as vozes das crianças, que por um momento saíram da prisão. Por ter sido também uma criança de aldeia, é que Freinet é sensível, tanto quanto seus alunos, à solicitação destes sutis alimentos do corpo e do espírito, numa natureza que é, per­ manentemente, explosão de vida. Mas mesmo assim era pre­ ciso voltar ao prédio escolar, à classe poeirenta, ao alinha­ mento das carteiras, ao quadro negro e a tantas obrigações tradicionais que condicionam o comportamento de imobilismo e nervosismo dos alunos e de seu professor. Os dias, semanas e meses intermináveis acabavam por esvair-se no quadrante do tempo e das desesperantes incertezas. Fazendo o balanço de suas resistências físicas e morais, Freinet, ao ver-se tão tragicamente acuado ao impasse, buscou solução para seu problema. Encontrou-a na preparação do exame para inspetor. Era aparentemente um emprego mais livre, mais arejado pelas saídas rumo às escolas da aldeia, mais. 18

variado em suas atividades, e que não o separava do mundo da infância ao qual se tinha afeiçoado. A preparação para o exame impôs-lhe uma leitura assídua dos autores inscritos no programa e, através disso, sobrevoou o vasto mundo das confrarias intelectuais que refletiam as di­ versas tendências da psicologia, da filosofia e da pedagogia no presente e no passado recente. A leitura fora a companheira de seus longos meses de con­ valescença de ferido de guerra, e única tábua de salvação contra a desesperante solidão. Para dizer a verdade, aqui, nesta compilação de autores, especialistas em ciências humanas trans­ cendentes, divertir-se não era fácil. O leitor entrava de ma­ neira abrupta no terreno da ambigüidade intelectual, da abs­ tração irrevogável, de um formalismo que se distanciava da vida na medida em que tendia para a verdade científica. Toda essa encenação de experiências e de pesquisas que davam fama aos mestres parecia pertencer a um universo situado acima da vida cotidiana, na qual era, entretanto, preciso inserir-se, por força das coisas. Devia, em todo caso, render-se à evidência: uma tal psicopedagogia não lhe foi de nenhum auxílio para esclarecer seus problemas de educador, para ajudá-lo a com­ preender personalidades infantis e a orientar a sua classe. A criança abstrata que os educadores famosos estudavam, com tantos detalhes sutis, as faculdades da alma em termos herméticos, em um jargão de especialistas visando sempre os mesmos temas, a criança psicológica desses especialistas não fazia parte de seu mundo de professor do povo. Seus alunos estavam diante dele, cheios de uma vida transbordante, e era essa vida que era preciso captar em seus impulsos mais dinâ­ micos. Ele o sabia, no mais profundo de si mesmo: A Vida se prepara pela Vida.

Notas

1. Les Dits de Mathieu. 19

Capítulo 2

Do Empirismo Pedagógico à Pedagogia Experimental

Será preciso ter confiança renovada na natureza e, em seu seio, reencontrar os caminhos de vida fora dos quais ninguém poderá construir de forma útil. L’Éducation du travail

Nascimento do Texto Livre

A livre expressão faz eclodir na classe um clima privilegiado de liberdade e confiança. Na­ turalmente, o texto livre alcança um lugar pre­ ponderante, secundado pelo instrumento primor­ dial do material impresso. O texto impresso faz aparecer o Jornal escolar e consegue sua difusão através da correspondência interescolar. A experiência generalizada entra resoluta­ mente na prática pedagógica experimental e co­ letiva, no complexo do Movimento internacional do Material impresso na Escola. A ruptura com a escola tradicional afirmase com o slogan: Abaixo os manuais escolares! Multiplicando-se, diversificando-se as experi­ ências, uma nova etapa de conhecimentos impõe a diferenciação das técnicas e dos métodos. Por antítese a uma pedagogia da abstração e do imobi­ lismo, Freinet vai dar ainda mais livre curso à espontaneidade da criança real, da criança da aldeia e do sítio distante, a dos trailers e também aquela que é a criança pequeno-burguesa rural que se socializa nos rudes contados com a comunidade escolar. Após os dias sombrios e frios, em uma classe sem aqueci­ mento onde, por necessidade, tudo é confinado no ar viciado, onde o comportamento de crianças irritadas é difícil de su­ portar, eis que retorna a primavera. As saídas ao ar livre readquirem seus direitos, se fazem cada vez mais numerosas e se transformam, pouco a pouco, em 23

aulas-passeios. Saía-se alegremente e aparentemente sem pro­ blemas, mas agora já havia a preocupação de fazer um relato de todos os acontecimentos que, ao longo dos caminhos, atraiam o olhar daqueles que estavam habituados a ver as coisas mais de perto, dentro das perspectivas de uma atenção mais con­ centrada: uma busca permanente dos olhos, ouvidos, de todos os sentidos abertos à magia do mundo, fazia surgir de todas essas paisagens, agora vistas como novas, uma incessante des­ coberta, imediatamente comunicada e que se tornava coletiva.. E, captada em pleno vôo por um professor atento, era a libe­ ração das almas infantis, uma coesão lentamente construída e: mais íntima da comunidade escolar. E podíamos estar certos de que não era tempo perdido, pois todas as disciplinas escolares tiravam proveito disso. Era como um filme que se desenrolasse em seqüências rápidas, onde a geografia, a história, a aritmética, as pequenas e gran­ des ciências e, por vezes, a grande paixão humana, captadas em intuições espontâneas, significavam a aurora de um do­ mínio do mundo. Tudo isso sem esforço, num viver suave, na originalidadede expressões orais que caíam, abundantes e calorosas, como chuva benfazeja na primavera. Lá estava, em toda a sua verdade — seríamos tentados a dizer em toda sua glória — a livre expressão da criança. “A infância não é um saco que enchemos; é uma pilha generosamente carregada, cujos fios complexos mais cuidado­ samente montados não correm o risco de deixar perder a corrente, rede delicada e poderosa, profusamente distribuída, que penetra até os mais secretos recônditos do organismo para dar-lhe vitalidade e harmonia.”¹ Trata-se de prolongar esses instantes de verdadeiro elã obtidos sob o signo da liberdade e da amizade, para preservar as delicadas conexões do organismo novo que vive sem cessar no espanto e na alegria das coisas reencontradas, para entrar no domínio do conhecimento. É assim que, ao retornar à sala de aula para prolongar essa irrupção benfazeja na natureza livre, o professor escrevia no quadro-negro o ponto mais marcante das descobertas feitas, ao acaso, ao longo dos imprevistos do caminho. 24

“O Loup é nosso rio. Eis corre, lá embaixo, para o mar. Nossos pais vão pescar no Loup. Eles pescam salmonetes, trutas e às vezes enguias. As laranjeiras perfumam todo o vale. Daqui a pouco a gente vai colher a flor perfumada. A gente leva à destilaria para fazer água de flor de laranjeira. Nós vimos o tecelão tecer o pano. Com os pés, movimentava os pedais. Com as mãos, jogava a lançadeira e tecia os fios. A lançadeira fazia um barulho de cigarra quando deslizava. Vimos lá do alto as muralhas grandes e altas da praça do Castelo. O Hotel Cauvin antigamente era o Castelo. As muralhas protegiam a aldeia. No passeio nós paramos um momento. Ajudamos a Senhora Piaulst a catar suas azeitonas. Com as azeitonas se faz o azeite.” Assim, com toda naturalidade, o Texto livre ia adqui­ rindo seu lugar, sob os próprios impulsos da vida. Olhos fixos no quadro-negro, liam-se em conjunto os dados reais que falavam ao coração da criança. E, não é preciso dizer, prolongava-se o instante de vida com todas as suas ressonân­ cias em busca do saber, rumo à vasta experiência humana de que a criança já era participante, pela segurança imediata de suas informações. O mérito dessas narrativas, recitadas e por vezes imitadas espontaneamente, controladas por uma exigente verdade, era o de suscitar a essencial presença da sensibilidade, fundamento da verdadeira experiência psicológica da criança: uma nova via a explorar e que era omitida pelos psicólogos universitários entusiastas de uma psicologia, ciência positiva, estranha por sua própria natureza à experiência cotidiana e, antes de tudo, ciosa de preocupações racionais, de processos mentais hierarquizados. “Só existe ciência do geral”, diziam os austeros Mestres, queimando as pestanas na solidão da noite. Entre seu mundo e aquele das horas livres da classe havia um hiato intranspo­ 25

nível, que relegava o professor iniciante a um empirismo que tinha ao menos o mérito de comunicar-se à vida ruidosa das crianças: “Comecem então! Despertem e exaltem a vida; acelerem até o ponto desejado para evitar a perda de velocidade; saibam até sair a todo vapor pelos caminhos sem perigo. Uma pala­ vra, um gesto apenas esboçado terão mais importância do que cem discursos sobre o sentido e o destino de uma con­ quista comum. Horizontes novos abrir-se-ão simplesmente por causa de seu vivo dinamismo; surgirão pensamentos que vocês teriam procurado em vão nas aulas e nos livros.”2 O empirismo pedagógico dinâmico e alegre seguia seu caminho. Esses textos livres transcritos no quadro-negro, lidos senão sempre com os olhos já esclarecidos pela prática da leitura, ao menos adivinhados com a fidelidade da memória, gravados na superfície sensível de uma afetividade vigilante, esses textos, densos de vida, tornavam-se modelos de redação. Eram copiados no caderno assim que voltavam, com uma ca­ ligrafia tão hesitante quanto a leitura que lhes dava sentido. Mas, como em toda classe, os bons alunos escrevendo sem hesitação e sem erros, salvavam as aparências... Entretanto, o texto livre copiado por mãos desajeitadas perdia algo de sua verdade, de sua densidade humana. Encer­ rado nas páginas de maus cadernos, teria sido severamente cri­ ticado pelo Inspetor, quando este irrompesse na sala. Como conservar nessas páginas de vida um aspecto que não traísse o elã que oralmente as havia suscitado? Foi preciso apenas um pouco de sorte para que uma pequena impressora de provas saísse do ateliê de um modesto artesão para se tornar instrumento pedagógico de primeira ordem na classe de Bar-sur-Loup. Nesse momento, o texto livre ganha a majestade do texto impresso, apesar dos contratempos suscitados pelos alunos e seu professor ao fazerem, o melhor possível, seu aprendizado de revisores. Uma nova técnica vai se afirmando; pouco a pouco, ela vai mudar o clima e o tra­ balho da classe, instaurar a vida onde a tradição mantinha seus direitos, operar uma inversão decisiva de toda prática escolar, abrir novos caminhos para o comportamento da criança real e sensível. 26

Esses textos saídos da impressora — e que, cheios de con­ fiança, os alunos achavam magníficos — passavam de mão em mão, eram relidos, examinados palavra por palavra, suscitavam uma fixação da atenção psíquica, tornavam-se realmente pro­ priedade pessoal de seu autor ou da classe. Folhas após folhas, os textos eram colados sobre uma capa cartonada e assim foi produzido um livro bem modesto, cha­ mado com razão de livro de Vida. Por uma audaciosa inicia­ tiva, a encadernação substituiu, mais tarde, as colagens feitas sumariamente e, naturalmente, o livro de Vida foi rebatizado pelas crianças como o livro de parafusos*, o que em nada diminuía seus méritos... Pouco a pouco, os alunos mais bem dotados puseram-se a escrever espontaneamente pequenos textos sobre incidentes da própria vida pessoal e familiar, sobre os acontecimentos da aldeia. E foi uma explosão de livre expressão, suscitando ati­ vidade e saúde moral em toda a classe. De tal modo o jovem professor deixou-se conquistar, por sua vez, por essa gênese de expressão criadora que, para esta­ belecer contato entre as personalidades infantis e a do educa­ dor, escreveu poemas sobre textos de crianças, de grande resso­ nância humana. As crianças acolhiam essas criações sóbrias e sensíveis com grande alegria e até muitas vezes as aprendiam e recitavam quando tinham vontade. Consciente do profundo interesse de seus alunos, Freinet compôs vários textos dentre os quais alguns seriam publicados, particularmente Tony l’Assisté, ilustrado com tato e sensibili­ dade por Pierre Rossi.3 Foi nesse período de intensa intercomunicação entre o adulto e as crianças que Freinet habituou-se a anotar em ca­ dernos os acontecimentos marcantes da vida, do comporta­ mento, do modo de falar dos alunos mais originais. Joseph, l’ami des bêtes nos foi legado como um comovente testemunho da solicitude de um educador para com uma infância desco­ nhecida e secreta. “Meu único mérito como pedagogo é talvez o de haver conservado uma influência tão marcante de meus primeiros anos, que sinto e compreendo, como criança, as crianças que * Jogo de palavras, sem sentido em português, entre Vie (vida) e vis (parafuso) — (N. do T.) 27

educo. Os problemas que elas se colocam e que são tão grave enigma para os adultos, eu os coloco ainda para mim mesmo, com as claras lembranças de meus oito anos, e é como adultocriança que detecto, através dos sistemas e métodos com que tanto sofri, os erros de uma ciência que esqueceu e desconhe­ ceu suas origens.”4

UM INSTRUMENTO DE PRIMEIRA ORDEM: A IMPRESSORA

Na origem de uma reconsideração da pedagogia Esta experiência que, pela introdução de um novo ins­ trumento de grande rendimento humano e escolar, mudou o comportamento de alunos e professores, não pode ser vivida isoladamente. Traz com ela um tal dinamismo, que deve ser comunicada a todos aqueles que se dedicam à educação. Freinet vai então tentar obter audiência no mundo do ensino para aquilo que já considera como uma prática peda­ gógica e, mais além, no público de vanguarda, preocupado com mudanças no plano social, político e cultural. É assim que relatos da experiência de Bar-sur-Loup surgem na École Éman­ cipée, nova revista pedagógica de orientação marxista, editada pela Federação do Ensino (1925). Henri Barbusse, a quem Freinet pedira uma entrevista, abriu-lhe as páginas de Clarté, revista criada sob o signo da Revolução de outubro de 1917 e que chamava a si os membros da jovem “geração do fogo”, vítimas da guerra de 14-18. Esses procedimentos foram coroados de sucesso: valeram efetivamente ao jovem inovador a aquiescência e logo a cola­ boração de professores não-conformistas. Assim, a pequena es­ cola de Bar-sur-Loup pôs em andamento, de maneira viva e decisiva, a correspondência escolar. Aos poucos eminentes pedagogos se interessaram pela ex­ periência. Foi assim que Adolphe Ferrière, o mestre da Escola Nova, inscreveu “A Casa dos Pequeninos”, do Instituto JeanJacques Rousseau, em Genebra, numa equipe de correspondên­ cia interescolar. Dois colégios de aplicação de Escolas Normais 28

aderiram por sua vez. ao Movimento, que toma o nome de Material Impresso na Escola: o de Nancy, dirigido pelo Sr. Duthil, e o de Charleville com o Sr. Husson, que permanecerá ao longo de toda a vida de Freinet um fiel e precioso colaborador. A experiência crescia como uma bola de neve, de tal modo que cogitou-se um congresso. Este teve lugar em Tours (1927). Umas cinqüenta escolas que tinham aderido ao Movimento estavam aí representadas, inclusive escolas estrangeiras, com a participação de professores do segundo grau. O congresso de Tours tinha para Freinet uma importância histórica: era a consagração do Movimento Internacional de Material Impres­ so na Escola, a afirmação comprovada de uma pedagogia nova: a pedagogia Freinet. Freinet trazia a esse congresso as provas irrefutáveis das bases já sólidas daquilo que um dia seria sua obra. Deu notí­ cia da eficácia pedagógica e cultural de sua pedagogia em seu primeiro livro: l’imprimerie à l’École, que os congressistas disputavam entre si porque, impresso à última hora, os exem­ plares disponíveis eram poucos. Nesta obra essencialmente prá­ tica, Freinet justificava, naturalmente, o novo espírito de uma pedagogia que rompia com a pedagogia tradicional, mas so­ bretudo detinha-se em discriminar os detalhes técnicos, o manejamento do material, os erros a serem evitados no emprego de um instrumento que requeria consciência, precisão e ha­ bilidade. Eram vantagens que se justificavam pela renovação da prática escolar e pelos benefícios intelectuais e morais que daí resultavam. Esses diversos aspectos de uma pedagogia que se fazia coletiva haviam sido, além disso, assunto de circula­ res, resenhas e relatórios ao longo do ano de 1926-27. O con­ gresso tirava daí os ensinamentos e críticas para um novo passo adiante. Estavam também presentes nesse congresso as primeiras criações de literatura infantil: la Gerbe, revista mensal para crianças, coletânea de textos livres das escolas que haviam ade­ rido e o primeiro número de uma coleção, Enfantines, que ini­ ciava com a história de um pequeno pastor dos Hautes-Alpes: François le petit berger (Escola de Sainte-Marguerite). Desenhos e pinturas de crianças enfrentavam pela primei­ ra vez a crítica dos visitantes, estes mais ou menos reticentes, diga-se de passagem. 29

Sem dúvida alguma o congresso de Tours, onde educado­ res apaixonados por seu ofício levavam seus trabalhos e seu entusiasmo, demonstrava que a livre expressão da criança en­ contrava-se na origem de uma inversão do conceito de educa­ ção, fenômeno generalizado, que superava a mera prática es­ colar dos programas e da aquisição de saber. O problema essencial continuava sendo aquele que Freinet coloca em seu resumo da experiência de Bar-sur-Loup, de acor­ do com as escolas que a ele aderiram, problema que é o nú­ cleo de sua obra l’imprimerie à l’École. “Essas vantagens do material impresso na Escola, técnica central da prática escolar, esta unificação do ensino, não são adquiridas à custa de sacrifícios demasiado grandes de es­ forços e de tempo? Em outras palavras, as vantagens incon­ testáveis da impressão na Escola serão elas suficientemente importantes para que esta técnica possa ser recomendada nas escolas públicas?” Já se têm tantas ocasiões de perder tempo na escola que seria perigoso, realmente, introduzir uma prática pedagógica que agravasse os desperdícios. Mas trabalhar com material impresso, instrumento de pri­ meira ordem, que reforça a liberdade de expressão e de ati­ vidade da criança, não é perder tempo, ao contrário, é ganhar, pois as atividades que daí decorrem são um enriquecimento do comportamento da criança. Quais são as vantagens certas da nova técnica? • Agilidade manual e coordenação harmoniosa dos gestos. • Concluído o trabalho: educação da atenção; cada le­ tra tem seu valor, pois é preciso que o texto impresso seja o mais perfeito possível. • Exercício progressivo da memória visual. • Aprendizagem natural, sem esforço, da leitura e da escrita das palavras. • Sentido permanente da construção de frases corretas. • Aprendizagem da ortografia pela globalização e aná­ lise de palavras e frases ao mesmo tempo. 30

• Sentido de responsabilidade pessoal e coletiva. • Novo clima de uma comunidade fraternal e dinâmica. A correspondência escolar alarga o universo infantil, mo­ tiva as atividades humanas, responde à afetividade expansiva das crianças, traz unidade de trabalho e de comportamento em classe. O texto livre libera o pensamento da criança, facilita sua expressão, está na origem de uma literatura infantil autêntica, da qual La Gerbe e Enfantines (estórias de crianças reais ou imaginárias) são uma demonstração já positiva. A livre expressão facilita a criatividade da criança no de­ senho, na música, no teatro, extensões naturais da atividade infantil, progressivamente responsável por seus comportamen­ tos afetivos, intelectuais e culturais. Eis aí um começo seguro para a conquista de uma vida adulta. Lançados nesta propensão favorável, os aprendizes da im­ pressão vão acelerar o trabalho, estreitar os laços entre a uni­ dade prática e intelectual de seu Movimento e, inevitavelmen­ te, irá se agravando a oposição entre uma escola renovada e ativa, e a escola opressiva e dominada pelo tradicionalismo ancestral. Intervindo de modo mais abrupto, Freinet, alguns meses mais tarde, vai lançar um slogan de ataque frontal: Abaixo os manuais escolares. Editado em 1928, esse é o título de sua segunda obra de pedagogia prática, sobre a qual falaremos mais adiante. Podemos nos perguntar como, num lapso tão curto de tempo — cinco anos no máximo — o empirismo pedagógico dos primórdios de Bar-sur-Loup tornou-se uma prática pedagógica generalizada, com várias centenas de experiências similares; e também como afirmou-se progressivamente a coerência de uma pedagogia cuja segurança técnica drena e orienta eficazmente a ideologia da livre expressão da criança. Somente a prática ensina e educa. Isto é verdadeiro, e é a própria linha da tradição. Mas é preciso ainda que a prática seja orientada por diretrizes eficientes, que são as de uma teoria saída da prática precedente. Freinet teve a sorte de iluminar seu caminho incerto, onde os erros por vezes anulavam as conquistas, pelos princípios da 81

Educação Nova que, nesta época, surgiam na atualidade pe­ dagógica. Foi em setembro de 1922 que Freinet leu os dois volumes de L’École Active, de Adolphe Ferrière. Para ele foi como um sopro de ar puro, no momento em que se debatia entre os danos sofridos pelo ensino tradicional mantido em sua classe e a preparação para o bacharelato com as obras dos mestres, visando ao exame. Como vimos, ele já havia aberto um pouco de sua classe para o mundo e se aventurado nas primeiras saídas — passeios, severamente censuradas por seu diretor e alguns pais. Assim, ao 1er a École Active, encontrava a cada página a justificativa de suas prudentes inovações de distensão e liber­ dade. Os instantes de livre expressão das crianças podiam se justificar, além do mais, pelo espírito e pelos atos de uma linhagem de pedagogos autênticos. Uma linhagem que vinha de longe, de Comenius, de Lutero, Rabelais, Montaigne, Rousseau, Pestalozzi e, na atualidade imediata, dos mestres que se exercitaram em escolas que evidenciavam o valor rea­ lista da nova teoria: G. Kerschenteiner (Arbeitschule), Paul Robin (Escola de Cempuis), Claparède (Casa dos Pequeni­ nos, em Genebra), Decroly (Escola do Eremitério, em Bru­ xelas) , Montessori (le Case dei Bambini), Dewey (Escolaslaboratórios). “A atividade espontânea, pessoal e produtiva”, escrevia A. Ferrière, “eis o ideal da Escola Ativa... Partir da atividade espontânea das crianças; partir de suas atividades manuais e construtivas, partir de suas atividades mentais, de suas afei­ ções, de seus interesses, de seus gostos predominantes; partir de suas manifestações morais ou sociais tais como se apresen­ tam na vida livre e natural de todos os dias, segundo as cir­ cunstâncias, os acontecimentos previstos ou imprevistos que sobrevêm, eis o ponto inicial da educação.” É um testemunho autorizado que tranqüiliza, que vai à origem dos comportamentos das criaturas e que põe por terra a ilusão das palavras herméticas e a pretensão dos sistemas dos sábios. É somente por essa via que se pode chegar a conhecer a criança para orientá-la para as nobres aprendizagens da vida. 32

“Minha longa experiência dos homens simples, das crian­ ças e dos animais persuadiu-me de que as leis da vida são gerais, naturais e válidas para todos os seres. Foi o ensino tradicional que complicou perigosamente o conhecimento dessas leis, fazendo-nos crer que o comporta­ mento dos indivíduos obedece apenas a dados misteriosos de que uma ciência pretensiosa se atribui a paternidade, numa espécie de reserva de caça a que as pessoas do povo, inclusive os professores, não têm nenhum acesso. ... Mas os senhores têm certeza de que a maior parte dessas idéias que os intelectuais crêem ter descoberto não cir­ culou jamais no meio do povo, e de que não foi o erro do ensino tradicional que lhe minimizou e deformou a essência, para monopolizá-la e dominá-la?”»

ABAIXO OS MANUAIS ESCOLARES “Em todo ofício há uma técnica a ser dominada. Nós a dominamos, não através de truques e sorti­ légios mas segundo leis simples e de bom senso, pois nunca há contradição entre ciência e técnica de um lado, bom senso e simplicidade de outro. O cientista genial é sempre aquele que busca a simplicidade e a vida.” Les Dits de Mathieu “Os manuais são uma invenção especificamente escolar, cujo emprego não ultrapassou o quadro do ensino. (...) Foram editados, realmente, manuais de conversação para os estrangeiros em viagem, manuais de saber viver, manuais para os automobilistas, mas são apenas obras sucintas de documen­ tação elementar, que não pretendem de modo algum dispensar a aprendizagem ativa da língua, da conformidade social, da direção do automóvel. (...) Para as pesquisas intelectuais fora do quadro escolar, libertamo-nos dos manuais, por mais atraentes que sejam, para recorrer ao trabalho de biblioteca, de documentação crítica, de argumentação pessoal, que são a base da pesquisa desinteressada.’’6 A pesquisa desinteressada, respondendo às exigências do espírito, liberta da servidão tradicional, é experiência que 33

Freinet faz a cada dia, em sua pequena escola proletária. É verdade que as realidades negativas da pobreza são visíveis na classe de Bar-sur-Loup, com seu ambiente poeirento e mobi­ liário gasto. Mas estão aí presentes as realidades imediatas do trabalho, do clima humano, da organização das diversas disci­ plinas escolares: o material impresso, que centraliza a quase totalidade das atividades escolares, faz desse lugar de aparên­ cia pobre um laboratório de educação viva, que será a base de uma renovação profunda do ensino. Naturalmente, os projetos mais vastos de instalação fun­ cional, as riquezas documentais, os ateliês de aprendizagem ainda estão apenas em estado de planos, mas de planos que se tornariam rapidamente realidade, se um orçamento adequado fosse colocado à disposição do inovador. Em primeiro lugar, aprendamos a 1er e escrever correta­ mente. Sem cartilha, isso se faz naturalmente: "As cartilhas carregam consigo — mais ainda do que os manuais das séries seguintes — todas as taras da escola tra­ dicional. Qual é, aliás, o valor específico dessas cartilhas? Já se foi o tempo em que se punha, nas mãos das crian­ ças, a cartilha verdadeira e simples — a e i o u — ba be bi bo bu ... Seria, entretanto, um erro acreditar que as cartilhas atuais, são essencialmente diferentes de suas ancestrais, e que evo­ luíram de outro modo que não em sua forma ou apresentação, tipográfica. Em leitura, a maioria dos métodos é dominada pela preo­ cupação primeiro de dar a conhecer, o mais rápido possível, os elementos representados pelas letras ou pelos sons, de ma­ neira a permitir à criança reuni-los para chegar à leitura de todas as combinações possíveis. Nas melhores delas, apela-se para o interesse, escolhendose judiciosamente as palavras onde os sons se acham repre­ sentados e esforçando-se assim por atrair a atenção do aluno para o som que se quer isolar; é um procedimento dito analí­ tico sintético que é, naturalmente, um grande progresso em relação ao sistema alfabético puro de antigamente. Mas, em última análise, é certo que é dominado sobretudo pela preo­ cupação de seguir uma ordem determinada no estudo dos sons, indo dos sons representados por uma letra aos sons re­ presentados por duas ou mais letras, depois à leitura de vários sons associados em palavras, e finalmente à leitura das frases. Os exercícios de aplicação são baseados nesta preocupação; só se passa para um elemento novo quando os elementos prece34

dentes são conhecidos. A criança só pode 1er um texto dado se percorreu as etapas anteriores. Assim, o aluno que se ausenta por uma razão qualquer tem grande dificuldade (quando consegue) em colocar-se ao nível de seus condis­ cípulos.”7 Na opinião do próprio Decroly, “pode-se hoje afirmar que o procedimento habitual de ensino da leitura pela via foné­ tica auditiva, partindo do estudo das sílabas e dos sons para chegar a uma generalização, não é defensável do ponto de vista psicológico.”8 Leitura global

Os pedagogos contemporâneos substituíram esta concep­ ção obsoleta da aprendizagem por um método baseado naqui­ lo que chamam de “visão sincrética” da criança, isto é, a ten­ dência que ela tem de ver um conjunto, um todo, antes de estudar os detalhes. “A mãe’’, diz Decroly, “sem recorrer a nenhum método con­ sagrado, com ajuda do ambiente da criança, ensina-lhe todas as dificuldades da língua; sem pensar nem em analisar nem em seriar os exercícios, faz-se pouco a pouco compreender e imitar. Se o milagre da aquisição da linguagem através do procedi­ mento materno — que nada tem de formal nem de consciente­ mente lógico, mas que mesmo assim é lógico — se esse milagre fosse melhor conhecido pelos educadores, estes provavelmente enxergariam mais claro o problema que abordamos aqui. O procedimento da mãe é um procedimento global (sincrético ou esquemático, segundo os autores) .”9 Baseando-se nesse “poder sincrético” ou, falando menos cientificamente, no “poder de globalização”, Decroly concluiu pela necessidade de começar diretamente a aprendizagem da leitura pela frase, contanto que esta “exprima uma idéia co­ nhecida pela criança”. Não falaremos aqui dos fundamentos psicológicos de tal método, hoje universalmente apreciado. Propomo-nos apenas a estudar sua realização prática na escola primária, criticar-lhe algumas insuficiências e mostrar 35

como podemos, logicamente, levar esse método natural até seus limites extremos de simplicidade. A teoria da leitura global parece-nos excelente; mas sua prática esteve ainda muitas vezes escravizada às velhas rotinas. Decroly reconhece a importância primordial do interesse na aquisição da leitura. Mas admite com muita facilidade o divórcio entre a escola e a vida, pois acredita na necessidade de “despertar” o interesse, como se este não existisse fora da classe. Despertar interesse através de aulas de observação mais ou menos acadêmicas, que terminam com a transcrição de algumas frases sem vida, na maioria das vezes indiferentes ao espírito da criança, não poderia nos satisfazer, pois numerosos educadores, na pressa que caracteriza a escola atual, nem mes­ mo chegarão, ou ao menos nem sempre, até a verdadeira observação. Deter-se-ão na observação de imagens sob as quais ter-se-á colocado previamente a frase-modelo procedimento mais cômodo e que responde melhor aos hábitos de ordem e de preparação metódica, em uso em nossas escolas. Bem sei que Decroly condena esse emprego exagerado das imagens: “A imagem tampouco bastará”, diz ele; "e é impor­ tante repeti-lo: apesar da grande utilidade das imagens, elas são apenas apelações, uma ajuda, e exigem ser preparadas por realidades, por atividades vividas, sem o que, como as palavras, antecipam e prejudicam a formação de idéias nítidas e coor­ denadas; como as palavras, prejudicam sobretudo pelas oca­ siões em que excluem o agir, o experimentar, o realizar...” A necessidade de preparar com antecedência fichas e mo­ delos para a leitura global supõe que o objeto de observação ou a imagem foram previamente determinadas pelo educador, que as frases foram estabelecidas sem se levar exatamente em conta a necessidade de expressão das crianças na hora da aula. As frases a serem lidas podem ter então um certo interesse, mas também é certo que não podem ser a verdadeira expressão das crianças. A leitura global assim compreendida, mesmo sendo um progresso considerável em relação aos métodos anteriores, permanece entretanto, e sobretudo em conseqüência das ne­ cessidades materiais, escrava do trabalho preestabelecido pelo professor. Ela não poderia, portanto, realizar as condições de interesse exigidas por um ensino psicologicamente ideal. 36

As cartilhas baseadas na leitura global

As dificuldades de aplicação do método global nas clas­ ses maternais e sobretudo nas seções infantis das classes de vá­ rios cursos deviam, naturalmente, dar origem a cartilhas, con­ cebidas segundo o método global e pretendendo tornar prá­ tica em nossas classes a aplicação deste método. Apesar do cuidado demonstrado pelos autores em classisificar imagens e frases por centros de interesse, estamos ainda em presença de manuais, aos quais fazemos as seguintes crí­ ticas importantes: — são manuais; — não respondem à necessidade de expressão das crianças; — são baseados na explicação de imagens mais do que na atividade infantil — se justapõem à vida da criança em lugar de ampliá-la e elevá-la. Os autores das cartilhas nos objetam que há, entretanto, uma progressão a ser seguida; que assim não se facilita a aqui­ sição, e sim se acumulam simultaneamente, aos olhos das crianças, todas as dificuldades de nossa língua. E operando assim uma espécie de compromisso entre os métodos analíticos, sintéticos e globais, apresentam à criança palavras simples: o rato, o assado, o bacalhau.* com as quais formam frases... infantis: Totó rema, Maria riu, A mula se mexe, O tomate amadurecerá, O assado atrai o rato. Maria irá à rua, Riri matará o rato.10 Uma gravura explica que Totó rema. Quanto às outras frases, o professor tentará, com qualquer estorinha, ligá-las à vida infantil. Nem sempre conseguirá fazer entender perfeita* Em francês, palavras de construção mais simples: le rat, le rôti, la morve (N. do T.) 37

mente o sentido delas, e algum aluno não deixará de pergun­ tar: “Por que a mula mexe no tomate?...” É que o livro não chegou a tocar o fundo do ser. Sua simplicidade, apenas aparente, só é obtida à custa da com­ preensão da linguagem e do desenvolvimento do pensamento. Baseia-se numa progressão inteiramente formal, que de modo algum corresponde a uma verdadeira conquista. A criança não aprende mais do que algumas sílabas — à custa de uma estupidificação: pois consideramos que há estupidificação todas as vezes que se força a criança a 1er alguma coisa que ela não compreende e nem sente. Vamos então, sob pretexto de tornar o mais rápido pos­ sível a aquisição da leitura, contentar-nos em apresentar de uma nova forma os velhos erros? Sob o pretexto de dosar as dificuldades, de desenvolver a inteligência, manteremos ainda por muito tempo as crianças com o nariz enfiado em páginas sem vida, e não encontraremos nada melhor do que impor eternamente aos pequeninos a educação nitidamente autori­ tária e opressiva que condenamos para os mais velhos? Esforçamo-nos justamente, exclamarão os autores dos ma­ nuais, por tornar a leitura agradável. Delaunay, Lafosse e Raffin não chamam suas cartilhas de “A leitura alegre”. Que tristeza! Lembram um carcereiro que, trazendo flo­ res à cela de um condenado, então falasse, de modo liberal, em Alegre Prisão. O que o condenado deseja é o sol, a liberdade e a vida. Mesmo ilustrando a sua cartilha, você não conseguirá mu­ dar o método que é ruim, porque retardatário e opressivo. Não estamos dizendo que as flores — queremos dizer, as ilus­ trações — sejam inúteis. Desde que sejam flores bonitas, singe­ las e claras, naturalmente que alegram a alma dos condena­ dos, seja qual for o texto. O que a criança pede é o sol inte­ rior, o ar, a vida. E os métodos de vocês não lhes podem dar isso. Seríamos tentados a concluir como Sanderson: “Criar um método que vise tornar o estudo mais fácil é perda de tempo..." 38

Exprimir-se

A pedagogia contemporânea, tendo reconhecido o poder fundamental do interesse, engajou-se timidamente no novo ca­ minho. Tentou, do exterior, despertar a atenção da criança, mas como se esta não fosse capaz, por natureza, de entregar-se inteira a uma tarefa. Também não foi exigente quanto à qualidade desse inte­ resse. Fez a constatação superficial de que é preciso pouca coisa para cativar a criança: exercícios curtos, mudanças freqüentes de atividade bastam para manter a aplicação ao tra­ balho. Os partidários dos velhos métodos de soletrar nos dirão até que a criança às vezes se diverte com a nudez das letras ou sílabas, e que não lhe desagrada ouvir a própria voz, mis­ turada com outras, salmodiar molemente o texto da lição. Devemos fazer aqui uma distinção capital que nunca se deverá negligenciar quando falarmos de interesse pelo mate­ rial impresso na escola. O interesse, especificamente escolar, obtido por meio dos métodos de ensino hoje existentes — sejam eles baseados na leitura metódica dos manuais ou na manipulação de cartões preparados previamente — é sempre um interesse superficial, que não é inerente à personalidade infantil e que não tem suas raízes nas profundezas do indivíduo. “Quando é necessário criar interesse em torno de um obje­ to ou idéia,11 é justamente porque esta idéia ou objeto care­ cem de interesse para a criança. Além do mais, não foram realmente tornadas interessantes coisas que não o eram. Sim­ plesmente se apelou para o amor ao prazer. Excitou-se a criança numa certa direção com a esperança de que, de uma ma­ neira ou de outra, assimilaria, durante esse período de excita­ ção, matérias que nada têm de atraente para ela. Ora, existem dois tipos de prazer. Existe aquele que acompanha a atividade. É a energia que se manifesta tomando consciência de si mesma. Essa espécie de prazer é sempre absorvida pela própria ativi­ dade. Não possui uma existência independente na consciência. É o tipo de prazer que acompanha um interesse legítimo. É produzido por necessidades do organismo. A outra espécie de prazer provém de um contato. É o produto de nossa receptivi­ 39

dade. É suscitado do exterior. Digamos que nos interessamos e obtemos prazer. Esse tipo de prazer pode ser isolado de seus concomitantes. Existe por si mesmo na consciência como prazer, e não como prazer de agir. Quando os objetos são tornados interessantes pelo edu­ cador, é esse segundo tipo de prazer que entra em jogo. Aproveitou-se o fato de que a excitação de um certo órgão se acom­ panha de uma certa soma de prazer. Este último é usado para cobrir o fosso que separa o eu ativo de um certo objeto carentede interesse para ele. Aqui, novamente, o resultado obtido e uma divisão de energia do eu. . . . Mas quando se reconhece a existência, na crianca, de forças que só pedem para serem desenvolvidas, oferecendo-se a nós como pontos de apoio para que lhes asseguremos o fun­ cionamento normal e as disciplinemos, possuímos então uma base sólida para edificar nossa obra educativa. O esforço surge normalmente quando se tenta dar livre curso a esses poderes para assegurar-lhes o crescimento e desenvolvimento. E agindo desse modo, de uma maneira adequada a esses impulsos, obte­ mos essa seriedade, essa atenção, essa concentração do eu em uma finalidade definida, que produzem o hábito sólido e per­ manente de se colocar a personalidade inteira a serviço de objetivos elevados. Mas este efeito nunca degenera em traba­ lhos forçados, em uma tensão nervosa prejudicial e vã, porque o interesse a penetra, porque o eu se dá integralmente.” Esta é exatamente, na pesquisa de nosso novo método, nossa constante preocupação: explorar, para nossos fins educa­ tivos, a necessidade de curiosidade e de atividade que existe em todo ser vivo; trazer à luz os pensamentos íntimos de nos­ sos alunos, exprimi-los, classificá-los, para enfim fixá-los atra­ vés da impressão, antes de utilizá-los para o trabalho escolar. Estaremos certos então de que nosso ensino será marcante, pois todo indivíduo procurará esse objetivo: exprimir-se, 1er a ex­ pressão impressa e desenvolver-se. Os “bons” professores nos objetarão talvez que também sabem fazer falar a criança para buscar essa base fecunda de seu ensino. Mas terão eles chegado a cristalizar o pensamento, a linguagem infantil, numa leitura impressa de forma defini­ tiva? E não serão sempre levados a fazer 1er exclusivamente, em caracteres impressos, aquilo que os adultos pensaram, ex­ primiram e imprimiram? Essa prática é causa de uma disso40

ciação do eu, de um divórcio irredutível entre as diversas ati­ vidades escolares, vícios excessivamente prejudiciais à educação intelectual e moral do indivíduo e ao ritmo da educação. E vocês, mães, têm muita dificuldade em ensinar seu filho a falar? Não lhes parece, não é? . .. Um dia ele disse: pa. .. pai! e eis que agora fala quase correntemente. Não foi preciso para isso nem lição sistematizada, nem qualquer esforço aparente ou organizado. Ele se “educou” lentamente, porque experi­ mentava a necessidade de se expressar, e também porque a mãe não cometeu a imperícia de reprimir os balbucios da criança e substituí-los por uma aprendizagem “metódica” e “cientifica­ mente” gradativa. A criança falava; sua mãe apenas ajudou-a a falar corretamente. Por instinto, todas as mães procedem assim e são muito bem-sucedidas, porque todas as crianças aprendem a falar com uma rapidez inacreditável. Pensem, entretanto, no que repre­ senta de esforço a aquisição do mecanismo completo da lin­ guagem: pensem no número de palavras que a criança aprende, na leveza que rapidamente sua expressão adquire: atividade cerebral, atividade visual, atividade física, tudo é posto em movimento. Basta aliás ver falar uma crianca pequena para compreender até que ponto este esforço ocupa todo o seu ser. Inútil estimulá-la: em sua sede de aprender e de conhecer, ela parece invencível. Agora ela é um pequeno aluno de cinco anos. Sente que quase possui o mundo e a segurança que tem de suas conquistas é sempre comovente. Para ensinar-lhe a 1er, para ensinar-lhe uma técnica con­ sideravelmente menos complicada do que a da linguagem, o professor precisa de meses inteiros de esforços escolares. O que é ainda mais grave é que a criança, que até esse dia havia aprendido tudo vivendo, se vê forçada a uma atividade anor­ mal, cujo objetivo não vê com clareza e que, com muita fre­ quência, reprime nela toda necessidade de expressão ou de curiosidade. “Os pedagogos passaram por isto!” “diriam os pais malé­ volos,” e complicaram como que por gosto aquilo que, entre­ tanto, é simples e natural.” 41

É que a aprendizagem da leitura se ressente ainda dos tem­ pos mágicos em que a escrita e leitura eram o apanágio ex­ clusivo de alguns privilegiados. O prestígio do “sábio” pre­ cisava então de uma aprendizagem muito longa que apenas os “eleitos” podiam levar a bom termo. Os iniciados pareciam dizer a seus alunos: “Ah! Vocês querem aprender a 1er?... Mas isto é excessivamente demorado e difícil, sabiam?...” E, efetivamente, acumularam a tal ponto os obstáculos que as crianças que conseguiram sem esforço — brincando e vivendo — falar corretamente uma língua rica, são às vezes incapazes de aprender a 1er e a escrever algumas centenas de palavras. Testemunhas da aridez de seus esforços, os professores se per­ suadiram, assim, de que a aquisição da leitura era coisa par­ ticularmente difícil, e essa deformação profissional freqüentemente os impediu de se lançarem por vias mais naturais e acessíveis. Para a criança de cinco, seis anos, já desenvolvida e edu­ cada, a técnica da escrita e da leitura é evidentemente mais fácil de adquirir do que o foi da linguagem no decorrer dos primeiros anos. Não existe mais razão, portanto, para que esta aprendizagem não seja bem mais rápida, e isso sem recor­ rer às artimanhas inventadas pelos pedagogos, às imposições e às punições. Todos os métodos atuais de inspiração lúdica são igual­ mente inúteis, ou ao menos não são essenciais para a aprendi­ zagem da leitura. Que os pedagogos inventem jogos para dis­ trair a criança ao mesmo tempo que educam seus sentidos e seu raciocínio, ainda passa. Mas não se deveria mais permitir a crença de que todos esses caminhos indiretos são indispensá­ veis à aquisição da leitura. A criança aprendeu a falar, repeti­ mos, vivendo — e o jogo era apenas uma manifestação natural de sua vida intensamente rica. Da mesma forma deve apren­ der a 1er e escrever vivendo; portanto, sem esforço que dissocie sua personalidade, e simplesmente por sua vontade de edu­ car-se e enriquecer-se.

Imprimir-se Abandonemos deliberadamente o exemplo dos pedagogos e imitemos as mães. 42

Nossos alunos de cinco anos entram em sala. É preciso que, no limiar, desapareçam sua atividade e sua necessidade de expansão? Isso seria privar-nos do principal móvel educativo: o desejo de aprender e educar-se, a necessidade de viver. Não falemos de “aula”; misturemo-nos com nossos alunos: falemos todos juntos, no começo sem um objetivo preciso, para uma espécie de sondagem, pois trata-se de revelar a idéia que pode, atualmente, interessar a todos. Para isso não há ne­ nhuma necessidade de grandes talentos nem de inesgotáveis recursos de contador de estórias. Se é preciso ser quase genial para interessar profundamente, do exterior, às crianças pe­ quenas, por outro lado é bem fácil atingir-lhes a alma se sou­ bermos inspirar-lhes confiança e alimentar sua necessidade de expressão. Então escutamos; reprimimos a impetuosidade desse nar­ rador que gostaria de açambarcar nosso público; encorajamos um recém-chegado que fala enrubescendo no começo, depois ganha segurança e se anima... As estórias são abundantes: “Minha coelha teve coelhinhos”. “Encontrei uns besouros ao colher a flor de laranjeira”. “Ontem à noite brinquei de ca­ valinho e comi cerejas”. Um interesse um pouco mais geral se esboça, entretanto, a favor de uma delas: Luís, cujo pai é estanhador, foi excursionar no Loup por três dias. De noite dormia na carroça e seu irmão dormia na cocheira perto de Bela, a mula... Luís tinha um colchão de palha. — Ele dorme tão bem em sua carroça! E esse menino tímido, que nem mesmo teria ousado 1er em voz alta, não parava mais de falar. Levantou orgulhosa­ mente a cabeça, seus olhos brilharam... — Sim, sim! Vamos escrever “isso” de Luís! — dizem os coleguinhas. Eis agora o verdadeiro trabalho do professor. A mãe en­ sina a linguagem a seu filho. O professor deve ensinar seus alunos a falar o mais corretamente possível, depois a expres­ sar suas idéias através da escrita e finalmente a 1er, nos livros, o pensamento dos outros. Escolhamos todos juntos o conteúdo do texto. Trata-se de transcrever o pensamento de Luís o mais fielmente possível, e de modo correto, naturalmente. A arte do educador consiste 43

sobretudo em chegar a essa transcrição sem modificar o pen­ samento da criança. Esta é uma necessidade essencial: se, sob o pretexto de formação ou qualquer outra razão pessoal, mo­ dificamos esse pensamento, colocamos a criança nessa lamen­ tável alternativa: ou não mais se interessar, com todo o seu ser, pelo texto elaborado, ou então, negligenciando as modi­ ficações feitas, dar às palavras um significado inteiramente pes­ soal, às vezes diferente de seu valor etimológico. Agora está no quadro-negro o seguinte texto: “Eugênio e Luís foram ao Loup. Luís dormia na carroça, Eugênio dormia na cocheira perto da mula Bela”. Não nos preocupamos em saber se este texto contém pa­ lavras muito difíceis. Foram os alunos que as pronunciaram; se não sabem lê-las, nós os ajudaremos, nisso imitando as mães. E teremos então a leitura global ideal, aquela que consiste em impregnar-se do espírito das formas gráficas de pensamentos que nos são pessoais, que ao menos sentimos e vivemos inten­ samente. Primeiro então lemos globalmente: os alunos mais adian­ tados já identificam as sílabas e corrigem os erros de memória dos principiantes. Essa leitura não exige nenhum esforço, e aliás deve ser feita sem esforço. Trata-se apenas de fotografar a forma e a contextura das palavras e frases. O interesse na­ tural e normal que deu origem a nosso texto basta para que essa operação seja realizada em condições ótimas. Em seguida soletremos, façamos “adivinhar” algumas sí­ labas, reencontrar palavras, mas sem obstinação. Não tentemos utilizar um raciocínio acima de sua idade para dar à criança algumas idéias “lógicas” quanto à língua. Não nos impaciente­ mos porque tal som, a nosso entender, deveria ser conhecido por nossos alunos... Continuemos nossos exercícios vivos, ajudemos as crianças a se reconhecerem nesta tradução de pen­ samentos: amanhã lerão sem esforço ou hesitação aquilo que hoje teríamos penado em vão para inculcar-lhes. 44

A composição e a impressão deste texto serão o comple­ mento natural de nosso trabalho preparatório. Escolhemos cinco “compositores”, dentre os quais os dois principais interessados: Eugênio e Luís. Cada “compositor” lê globalmente, depois soletra sua frase, sem esquecer os “peque­ nos espaços” que separam as palavras. Dividida a tarefa, deixemos as crianças trabalharem em paz. Têm à sua disposição um jogo de tipos corpo 36, arruma­ dos em uma caixa especial; eles próprios dispõem os tipos no componedor, traduzindo assim mecanicamente, materialmente, o texto manuscrito em clichê de imprensa. Inútil vigiar: todos se auxiliam mutuamente o melhor que podem para organizarem uma linha perfeita, e não há exem­ plo de aluno que se tenha aborrecido diante das dificuldades ou do insucesso. Constatamos neste trabalho a mesma obsti­ nação paciente que caracteriza as crianças ocupadas com um jogo de armar; prova evidente de que esta técnica está bem à altura de nossos jovens alunos. É preciso ver sem dúvida, em seu profundo interesse pelo material, a razão essencial do cuidado empregado na classifi­ cação e conservação dos tipos. Esse material é como que sagra­ do: após dois anos de uso, não se perdeu um só tipo, apesar da presença em nossa classe de elementos anormais e até cleptomaníacos. Crianças de cinco a seis anos chegam rapidamente a com­ por sem um erro uma linha de quinze ou vinte tipos. E que satisfação quando se consegue esse trabalho perfeito! Nivelamento rápido, colocação sobre a prensa, exigem ape­ nas alguns segundos, e podem, aliás, ser efetuados por um aluno do curso elementar. Enfim, a tiragem! As próprias crianças exercem todas as funções: passar tinta nos rolos, apresentação da folha, im­ pressão, alinhamento dos impressos... Um novo trabalho ma­ nual limpo, ordenado, sério, com um objetivo determinado: a tiragem do texto previamente pensado, falado, escrito, lido, composto. . . Trabalho que sempre querem fazer como um imenso prêmio, mais almejado ainda que as brincadeiras do recreio, pois a equipe impressora, sem se preocupar com a hora da saída, acaba a tarefa com a mesma seriedade e a mesma aplicação. Enquanto os cinco aprendizes de compositor trabalham na mesa de impressão, os outros alunos do mesmo ano copiam no 45

caderno ou uma folha de papel o texto do quadro-negro. Esta cópia é considerada por nós como a base de nosso ensino da escrita. O novato que mal sabe segurar um lápis experimenta; nos primeiros dias só conseguirá garatujas disformes, que aliás completará muito bem com algum desenho sugestivo. Os exer­ cícios sistemáticos de escrita serão apenas um acessório, um treino tendo por objetivo a escrita legível do texto escolhido. Os resultados que obtivemos sem esforço com este mé­ todo nos mostram que ele vale bem mais do que os outros pela rapidez da apreensão, e que os supera consideravelmente pela naturalidade e lógica de sua evolução. O desenho livre é, nesse ponto, o complemento indispensá­ vel de nosso método de expressão de leitura e de escrita. Pelo desenho cada criança revive a narrativa elaborada em comum; e, coisa maravilhosa, ela a completa, a adapta a sua persona­ lidade, apropria-se dela intimamente. Não lhe bastará dese­ nhar “Luís dentro do carro”; atrelará seu jumento a ele no lugar da mula Bela; a casa vizinha será sua casa, seu cachorro guardará a porta da entrada. Talvez complique o episódio com algum drama particular que dará a seu desenho uma expressão completa de sua própria personalidade. Soubemos atingir a criança; encontramos o caminho que leva a sua alma; a partir daí basta-nos permitir, tornar possí­ vel o trabalho subseqüente. Os trabalhos de recorte e colagem adquirem assim uma razão de ser. Terminada a tiragem, os alunos ilustram, com recorte e colagem, a folha cartonada, que será a página coti­ diana de seu livro de vida. Hoje relembram a carroça e o ca­ valo ao lado da casa, sob o olhar benevolente de uma lua mo­ numental. Em seguida colarão nesta folha as linhas impressas, constituindo assim, dia a dia, o mais maravilhoso e o mais proveitoso dos livros de vida, realizando a leitura global ideal, expressão autêntica da vida da criança. Todos os educadores apreciarão a originalidade e o valor pedagógico desse livro e sua evidente superioridade sobre todas as cartilhas existentes. Podemos, aliás, através do material impresso, completar ainda a ilustração de nosso livro de vida. 46

Nossos alunos recortam uma cartolina bem fina, que colam num papelão. Com a ponta de um alfinete gravam-se os detalhes complementares. E eis um verdadeiro clichê, inteira­ mente obra das crianças, de que podemos tirar, com nossa impressora, 20, 30, 50 exemplares. Esses clichês podem ser tira­ dos em diversas cores e depois serem coloridos, furados, recor­ tados. Eis aí uma fonte de atividade motivada extraordinaria­ mente rica e fecunda. Não nos proibimos inclusive de completar nossas ilustra­ ções com o emprego da tinta para a gravura ou do linógrafo, que estão, entretanto, muito menos ao alcance das crianças do que o exercício de imprimir. Tentamos demonstrar que este método, experimentado em uma turma de quarenta e dois alunos de cinco a nove anos, pode ser empregado em qualquer turma, por mais numerosa que seja. Não requer de modo algum um suplemento de trabalho do professor, nem da escola um suplemento de despesa, pois a supressão das cartilhas libera um crédito importante que será em parte destinado ao material impresso.

Vantagens deste método

Sobretudo, que não se diga desdenhosamente: isto é no­ vidade. .. trabalho que satisfaz a necessidade de atividade das crianças!... Novidade? Após dois anos de trabalho com material im­ presso, nossos alunos estão tão familiarizados com ele quanto poderiam estar com uma cartilha. E mesmo assim realmente ocorre, a cada sessão, a mesma alegre aplicação. Satisfação da necessidade de atividade! Não é então uma incontestável qualidade deste material? Os pedagogos ressal­ taram há muito tempo o interesse pedagógico da classificação das letras de imprensa. Demos a essa ocupação um sentido profundo, essencialmente educativo, que é necessário demons­ trar aqui: Ao compor, a criança apenas reúne as letras como reu­ niría algarismos para formar um número qualquer. Ao compor, a criança cria um pouco de vida, e principalmente uma parte 47

de sua própria vida. Esse componedor que acaba de encher, e cujos erros agora corrige, contém uma parte viva desse texto que a interessou. E não é uma tarefa vã. Em seguida será im­ presso; a criança verá sair desse bloco mágico, com um espan­ to sempre renovado, algumas bonitas linhas que serão obra inteiramente sua e que lerá com avidez. Não me iludo: apesar das dificuldades da composição, apesar dos diversos contratempos que podem sobrevir (tipos malcolocados no componedor, linha que cai na hora de acabar, erro de linha, etc.), apesar da perfeição exigida — ou talvez por causa disso? — esse trabalho de composição tipográfica exerce uma incrível atração. Mas sobretudo não se impacientem e não venham so­ correr o compositor para terminar, em três tempos, este tra­ balho tão delicado para a criança; ela interpretaria sua gene­ rosa intenção como uma verdadeira ofensa. Ela quer fazer esse trabalho: coordena o melhor que pode seus conhecimentos e movimentos; talvez leve trinta minutos, mas também que pro­ veito e que alegria! É de ver o aluno triunfante trazer ele próprio o componedor sobre a prensa, segurando-o cuidado­ samente em suas mãozinhas apertadas!. . . Terminou. Volta a seu lugar exultante. Os progressos são naturalmente rápidos. Esta criança só conhece ainda poucos tipos, mas quis com­ por. Procura a letra S. Vai do quadro até a caixa, da caixa até o quadro compara, pergunta aos colegas mais adiantados, às vezes ao professor. E a letra S fica, então, conhecida para sem­ pre. Cada sessão de composição faz constatar assim progressos bastante sensíveis em soletração e leitura. Aliás nenhum pedagogo pôde, até hoje, afirmar que uma atividade escolar assim compreendida não fosse eminentemen­ te educativa. Apenas nos foi objetado: “Que assim vocês dêem às crian­ ças o desejo e o gosto pela leitura, está certo. Mas será que vocês não acrescentam, às dificuldades normais da leitura, o obstáculo de uma leitura ao contrário, como o é a dos tipos de impressão?” 48

É perigoso semear uma dificuldade no caminho das crian­ ças quando estas não podem superá-la. Mas venham visitar nossos alunos no trabalho e verão se dão a impressão de fazer um trabalho que exceda suas forças; verão se dormem, como diante dos manuais de vocês. Se existe dificuldade, tanto me­ lhor, diria eu, pois nossos alunos estão contentes em alcançar -o objetivo que se propuseram. Esta dificuldade é aliás rapidamente vencida, salvo para as letras muito semelhantes, b/d, p/q, è/é, em relação às quais se hesitará até uma idade bem avançada, apesar dos pro­ cessos corretivos que imaginamos. Mas a experiência nos mos­ trou que essa hesitação não tem nenhuma influência perigosa sobre o aprendizado da leitura. Todos os iniciantes, em qual­ quer método, não confundem por muito tempo, estas letras? Esta confusão é corrigida entre nós, e em grande medida, pelo treinamento através da visão global. Na prática, o aluno que hesita diante de b/d, p/q, lidos isoladamente, nunca comete semelhante erro na leitura de palavras e frases. Se, ao cabo de algumas semanas deste exercício, um pe­ dagogo cioso da “forma gradativa” de todo ensino, se um inspetor, confuso por um controle aparentemente mais difícil, viesse nos dizer: — Em que ponto estão seus iniciantes? Em que sílaba? Responderíamos que não sabemos informar. Pergunte à mãe: — O que seu filho sabe falar? Em que ponto está sua lin'guagem? — Na verdade, responderá, há palavras que pronuncia convenientemente e outras que tenta articular. Com a minha ajuda, balbucia algumas outras. Mas começa a se fazer enten­ der — pelo menos eu o compreendo e estou satisfeita. Veja como ele também está feliz em poder falar o dia inteiro! Não pararia nunca. . . De um mês para outro faz progressos in­ críveis . . . Logo falará correntemente... Diremos a vocês com a mesma segurança e a mesma confiante certeza: — Nossos alunos conhecem quase todas as letras do alfaibeto (que importa se ignoram algumas letras raramente em­ pregadas?) . E as sílabas difíceis? Começam a saber lê-las. Isso 49

depende da disposição delas nas palavras. Conhecem um gran­ de número delas, que lêem sem erro; e outras, que somos obri­ gados a 1er para eles, para que repitam... E isso ainda de­ pende da criança, pois cada uma tem o seu ritmo. Mas começam a compreender o que está escrito. Ajudan­ do-os aqui e ali, todos lêem nossos textos. Ficamos felizes em escrever, ditadas por eles, pequenas histórias interessantes, e em fazer com que as leiam, mas ficam ainda mais orgulhosos que nós, em 1er seus pensamentos. E depois, dia a dia, imperceptivelmente, sem que os forcemos nessa tarefa, lerão corren­ temente. Terão aprendido a 1er e a escrever como aprenderam a falar. Terão avançado lentamente, gradualmente, da lingua­ gem à leitura. Com outros métodos, inclusive os que se utilizam de coacão talvez tivessem chegado igualmente cedo a uma leitura correta, mas esta aquisição teria certamente sido feita à custa de sua inteligência e de seu bom senso, à custa de sua vida. Aliás, para um grande número de alunos inteligentes — daqueles que sempre pulam etapas — o aprendizado da leitura é assim consideravelmente mais rápido, e pode ser reduzido praticamente a algumas semanas. A concepção global, que é a base de nosso método, permite que em pouco tempo todos os outros alunos copiem e leiam textos preparados para os outros cursos, o que facilita o trabalho nas classes heterogêneas. Através desse estudo natural da leitura, cada aluno, seja qual for a data de sua chegada, ou seu atraso em caso de au­ sências ou doenças, é imediatamente levado ao trabalho co­ mum, pelo qual sente, na mesma hora, o maior interesse. Essa vantagem não é negligenciável em nossas turmas rurais, onde as ausências, por causas diversas, desorganizam tão profunda­ mente o trabalho escolar. Não excluímos sistematicamente de nosso ensino todos os elementos de interesse que os métodos atuais, antigos ou novos, possam nele introduzir. Possuímos belos livros de figuras que as crianças poderão 1er individualmente ou em grupos, ou com a ajuda de algum colega mais adiantado. E as cartilhas, quando sugestivas e de leitura agradável, também terão seu lugar nas prateleiras de nossa pequena biblioteca. Não menos­ prezamos as vantagens escolares dos diversos jogos imaginados pelos pedagogos contemporâneos. Louvamos ainda mais as ocupações naturais e muito educativas, como a jardinagem, a criação de animais, etc. 50

Mas a escola atual considerava essas ocupações indispen­ sáveis à aquisição da leitura. Fazia disso o essencial do tra­ balho escolar. Restabelecemos o equilíbrio natural, dando lu­ gar à vida das crianças e a sua tradução manuscrita, e depois impressa, graças ao material impresso na Escola. Estamos cer­ tos de infundir assim, a todo nosso ensino elementar, um novo vigor.

Supressão dos manuais

Nossa luta contra os manuais escolares a partir do curso preparatório parecerá a alguns bastante temerária, de tal mo­ do os autores e editores atuais se dedicaram a tornar atrativa a leitura de suas obras. Adaptação do texto ao interesse da criança e às necessidades escolares, ilustração rica e sugestiva, impressão tipográfica que se adapta a todos os caprichos dos autores... Realmente parece que o manual está em vias de atingir o grau máximo de riqueza e perfeição. Diante deste esforço certamente apreciável, não devemos nos cansar de repetir que não criticamos aqui os livros em si, mas apenas seu emprego como manuais pelos educadores. Experiências recentes realizadas nos Estados Unidos, na Áustria e na Rússia, e acompanhadas com simpatia interessada pelo mundo pedagógico, ajudar-nos-ão a justificar, nesse pon­ to, a supressão de todos os manuais escolares. “Na Áustria,” nos diz R. Dottrens, “o livro de leitura tal como o conhecemos foi abandonado. Foi substituído por obras muito curtas, de conteúdo variado, e que são utilizadas um mês, dois meses ou três no máximo”. Método falho, que só poderia ser um tapa-buraco. Conscientes dos perigos da de­ pendência e monotonia no emprego dos manuais, os pedago­ gos austríacos de certo modo douraram a pílula. Apenas me­ lhoraram a forma e as modalidades no emprego dos manuais; não combateram o mal pela raiz, como fazemos hoje. “Nos países anglo-saxões”, escreve E. Rion12 “os jovens leitores recebem, após as cartilhas, pequenos livros ilustrados contendo contos populares...” 51

Mas realmente foi apenas em Winnetka (E.U.A.) que o grande educador Carleton Washburne fez uma experiência em larga escala mostrando ao mesmo tempo a vantagem da supres­ são dos manuais escolares e da individualização do ensino. “Em Winnetka a técnica de uma aula de leitura é total­ mente diferente da que grassa entre nós. Se vocês entrarem numa classe das escolas públicas de Winnetka durante a aula de leitura, encontrarão cada criança lendo um livro diferente. Todos lêem como na vida, silenciosamente, exceto um deles que, junto ao professor, lê em voz alta. Este aluno poderá assim receber do professor a ajuda de que precisa pessoal­ mente, sem obrigar a todos a ouvir seus erros e, sobretudo, sem fazer o resto da turma perder um tempo precioso. Cada aluno pode, desta maneira, 1er um livro perfeitamente adap­ tado a seu próprio estágio de desenvolvimento e a seus gostos pessoais. As exigências do programa de leitura requerem, para cada série, a leitura inteligente de quinze livretos por ano e um resultado igual à “norma” estabelecida pelos testes de Monroe. . . Em lugar de entregar aos trinta alunos um exemplar do mesmo livro, organiza-se então uma pequena biblioteca de uns trinta livros diferentes, entre os quais uns vinte livros da série correspondente e alguns volumes muito simples, que versam sobre geografia, história e ciências naturais.”13 E o “Dalton Plan”, por outro lado, também não é uma técnica de trabalho sem manuais escolares? Na Rússia, onde um esforço muito grande foi feito para ligar a escola com a vida, sentiu-se a necessidade de sair o má­ ximo possível dessa técnica estreita de emprego de manuais. “O livro deve ser leve, interessante, acessível a fim de inspi­ rar nas crianças o desejo da leitura pessoal. Para isso é necessá­ rio ter, em cada classe, vários livros de leitura diferentes.”14 Somente as dificuldades de um ensino forçosamente indi­ vidualizado em nossas escolas públicas e a necessidade de en­ sinar o mais cedo possível a técnica da leitura tornaram indis­ pensável, até nossos dias, o emprego dos manuais. Se hoje damos uma solução definitiva e prática a esse pro­ blema dos manuais escolares, quisemos mostrar, entretanto, que nosso método é a conclusão natural da evolução das idéias modernas sobre a organização do trabalho escolar. O caminho 52

não é nem novo nem original; mas o instrumento, de que re­ velamos as imensas vantagens escolares contribuirá certamente para a evolução da pedagogia proletária.

Bases do método

“Na medida em que uma idéia é uma projeção de tendên­ cias instintivas é que ela é, para o espírito, um fenômeno im­ portante, dinâmico, interessante.”15 Até o presente atribuímos uma importância excessiva ao valor próprio dos modelos propostos às crianças. A percepção do pensamento e da forma literária ou científica são meramen­ te secundárias em educação. O indispensável é atingir e com­ preender o pensamento infantil, dar-lhe um motivo para de­ senvolver-se e educar-se. “Conduzimos a criança, quando é ela quem deve condu­ zir-nos”, diz Decroly. Isso deveria ser uma banalidade, e no en­ tanto semelhante concepção em educação deve revolucionar os métodos atuais. A adaptação do ensino à natureza da criança não é entre­ tanto uma das grandes preocupações da escola atual? Mas tra­ ta-se aí de uma adaptação superficial e apenas escolar. Consi­ deramos em nossas classes o ensino adaptado quando a criança consegue, por bem ou por mal, engolir aquilo que lhe apresen­ tamos, tendo-se encontrado aparentemente o caminho lógico que une o pensamento infantil ao pensamento adulto. Con­ cepção estática, autoritária, morta, de uma obra de vida. Adaptar nosso ensino já não nos satisfaz: precisamos estimular tendências instintivas de que fala Dewey, conservar e desen­ volver na criança todas as energias vitais, fazer do trabalho escolar um verdadeiro enriquecimento intelectual e moral. Como conseguiremos isso? Não partiremos sistematicamente da ciência ou das reali­ zações adultas para descer à criança; tomaremos o caminho in­ verso: considerando a criança tal como é, com seus interesses e necessidades particulares, com seu raciocínio e sua lógica es­ pecial, nós a ajudaremos a desenvolver-se: organizaremos e pre53

pararemos o meio e os meios que lhe permitirão educar-se, com nossa ajuda, até a ciência adulta. A primeira condição, evidentemente, é encontrar este ca­ minho que leva à alma infantil, descobrir a técnica que nos permitirá estabelecer a ligação necessária. Pode-se chegar a isso pelo emprego sistemático de manuais preparados por adultos? Em literatura principalmente, podem as melhores escolhas de leitura pretender emocionar profun­ damente a criança? É claro que não! As histórias aparente­ mente melhor adaptadas só conseguem produzir um interesse superficial, que é mais um divertimento, uma distração, do que uma “projeção de atividade”. Só serão exceção as páginas onde os adultos souberem, com “ingenuidade”, contar sua vida ou a das crianças que nos cercam. Mas que necessidade temos de ir buscar tão longe elemen­ tos que estão no fundo de nós mesmos? Peçamos então aos alu­ nos que contem suas vidas de modo simples e natural. Leiamos esses documentos que são realmente a expressão do eu pessoal, dinâmico, em constante evolução. Façamos mais: estabeleça­ mos relações contínuas entre alunos de classes muito separadas umas das outras. Em suma, organizemos, em função do livro e do jornal, uma sociedade de crianças que produzirá sua pró­ pria literatura, que se aperfeiçoará, não pela imitação de mo­ delos impositivos, mas pelo trabalho e pela vida. Logo ouvimos protestos. Esses pedagogos não têm nenhu­ ma confiança na criança. Passam a vida a domesticá-la como se se tratasse de um animal, do qual não se compreendesse de modo algum o sentido dos berros. Essas histórias “pueris” são um jogo simples demais, onde os viajantes são pedras, narra­ tiva comovida de uma alegria de criança, um pequeno pastor olhando espantado seus carneiros que acabam de ser tosados; pode-se lhes dar a honra de considerá-las na escola? Portanto, fora com elas! Façamos nossos alunos lerem histórias sérias, onde evoluem grandes personagens que falam por vezes uma linguagem ininteligível... Somente isso é digno da austera pedagogia! Ouçamos, no entanto, o que pensa das produções infan­ tis um dos maiores animadores da educação italiana atual, G. Lombardo Radice: “Encorajem as crianças a escreverem livre­ mente sobre o que lhes interessa, sem outra preocupação senão a de lhes oferecer ocasião de exprimir alguma coisa que vivem, 54

que sentem, que pensam; obterão não apenas documentos ex­ traordinariamente preciosos para a alma infantil, como tam­ bém obras de verdadeira arte, às quais as composições prepa­ radas segundo as antigas receitas só podem servir de contras­ te.”16 E as redações? E as cartas? objetarão outros professores. Quando as impomos a nossos alunos de treze anos, eles só sabem nos fornecer textos de uma indigência ridícula. Pode-se basear um método num tal trabalho? A experiência nos prova, a cada dia, que as crianças, a partir dos 6 anos, ao sentirem o objetivo de suas redações, es­ crevem cartas e histórias imensamente saborosas. Pelo menos — e para nós isso não é uma vantagem menor — essas histórias e cartas são perfeitamente compreendidas e sentidas pelas crian­ ças que as recebem. Esta compreensão total é certamente uma das grandes alegrias e das grandes vantagens da base infantil de nossa educação. Se, como diz Tolstoi, “o interesse da criança por uma forma de instrução é o sinal infalível de que esta for­ ma lhe convém e responde a uma de suas necessidades secretas”, estamos, com toda certeza, no caminho certo. Vendo-nos atribuir à expressão infantil uma importân­ cia de primeiro plano em educação, acreditou-se, por vezes, que acalentávamos o sonho quimérico de subtrair nossos alu­ nos à influência de todas as manifestações intelectuais, artís­ ticas ou científicas da civilização atual. Esta nunca foi a nossa idéia. Assim como a criança necessita, para sua educação, da ajuda e dos conselhos do professor, é preciso que se enriqueça fartamente dos textos de toda espécie, que são os monumen­ tos da experiência humana. Esquecendo que a formação do indivíduo só pode vir de um esforço pessoal, ativo e livre, e conforme as necessidades de sua natureza, fez-se, do estudo de textos adultos, o ele­ mento essencial da educação. E aí está o erro. O interesse, a necessidade de criação e de expressão cons­ tituem o verdadeiro arcabouço de nossa pedagogia. Os livros lhes são apenas auxiliares. Nesse caminho da educação natural, tudo é vida e alegria. Inútil então forçar a criança, ou obrigála a realizar áridas tarefas escolares. Sua necessidade de ati­ vidade, seu desejo de conhecer, seu apetite de trabalho bastam, contanto que se lhe dê a possibilidade de satisfazê-los util­ mente. 55

O dia em que a criança, material, intelectual e moralmente liberada dos entraves escolares, puder assim desenvolver-se, então realmente a educação revolucionará o mundo.

A leitura

Em nossa opinião, o erro essencial não está tanto no fato de fazer 1er um texto em voz alta — sobretudo nos níveis pre­ paratório e elementar — quanto em exigir que todos os alunos de uma turma “acompanhem” durante a aula de leitura. Noentanto, esta última prática é ainda generalizada na França, onde a leitura em comum, sob a rigorosa vigilância do profes­ sor, parece ser o único método possível. Exige-se dos alunos quese “esforcem” sem se preocupar se, efetivamente, seu esforçoé consagrado à leitura do livro ou antes a recalcar um desejolouco que têm de virar a página para ver algo novo, ou de olhar pela janela, o apelo dos pássaros sobre as árovres. Nãose compreendeu ainda a profunda advertência de J. Deweyr “Se a tarefa só lhe surge como pesada obrigação, é certo entãoque, psicologicamente, a criança está em vias de adquirir ohábito de dividir sua atenção; aprende a orientar seu olhar e seu ouvido, seus lábios e sua boca para os materiais que lhe são apresentados, de modo a gravá-los na memória, enquanto-, ao mesmo tempo, suas imagens mentais se liberam deste traba­ lho mecânico para se concentrarem naquilo que tem um vivo interesse para seu organismo em crescimento.”11 Aceitaremos ainda esta dissociação da personalidade? Não se trata de invocar aqui o possível interesse por um texto. Po­ de-se experimentar prazer em recomeçar duas vezes, até cinco vezes uma leitura interessante. Mas quando esta repetição leva uma meia hora e é preciso marcar passo para não ir adiantedo colega que ainda soletra, ou fazer acrobacias visuais paraseguir um outro que lê correntemente, quando o receio do pro­ fessor e a obsessão do fatídico “Continue, um outro aí!” domi­ nam toda a aula, a criança não é obrigada a se organizar psico­ logicamente para sua defesa? Os educadores que infligem com tanta facilidade essa dis­ ciplina antinatural a seus alunos, deveríam se perguntar, às 56

vezes, se a aceitariam para si mesmos, sem tentar escapar por todo tipo de artimanhas... infantis. Que os coloquemos em cadeiras incômodas, que lhes ponhamos debaixo do nariz um livro aberto numa página que lhes é proibido virar, que os façamos 1er um de cada vez com a obrigação de seguir vinte vezes essa repetição narcotizante! Talvez então sejam mais in­ dulgentes para com seus pobres alunos. Obrigação entretanto indispensável, objetariam. Iremos justamente mostrar o novo caminho, também rápido e seguro, mas de acordo com as necessidades e desejos das crianças, e ple­ namente educativo. Suprimimos a aula de leitura habitual. Quando o impres­ so sai fresquinho da prensa, nós o lemos, como o editor per­ corre um novo texto. Durante alguns minutos cada aluno lê e relê o impresso silenciosamente. Depois o trabalho escolar con­ tinua: gramática, vocabulário, procura de palavras ou traba­ lho livre. Procedemos então à leitura individual em voz alta, que será a verdadeira aula de leitura. Ninguém é obrigado a “seguir” a leitura. Suprimimos en­ tão, radicalmente, todos os inconvenientes que decorrem da aula coletiva de leitura. Nada de obrigação nem de opressão. E sim, a alegria e o desejo de 1er. Logo, nada de hipocrisia da parte do aluno, nada de artimanha consciente ou subcons­ ciente, e sim a honestidade e a sinceridade do esforço. Também o educador não tem mais que se armar, que se manter sempre em guarda como um carcereiro rabugento, para vigiar a fim de que os olhos não abandonem o texto. Supri­ mimos toda ocasião de desobediência e de cólera; poderemos trabalhar com calma e confiança. Atitude demasiado liberal!, não deixarão de dizer; é pre­ ciso que as crianças fiquem muito tempo com os olhos no texto para que este imprima-se neles! Responderemos, em primeiro lugar, que nossos alunos, que “criaram” sua leitura, que a compuseram letra por letra e a fizeram sair magicamente de seu modesto material, apro­ priaram-se inteiramente dela, e bem melhor que através de trinta leituras mecânicas! Atribuímos, além disso, uma grande importância à atenção subconsciente da criança: digamos que uma delas termina um desenho ou copia um dever que não 57

domina todas as suas faculdades. Sem querer, sem se dar conta disso, segue a leitura feita em voz alta por seus colegas; e às vezes nos surpreendemos ao ver que, sem haver prestado uma atenção formal, essa criança sabe de cor seu texto. De tempos em tempos, entretanto, organizamos uma lei­ tura coletiva sob a forma de texto, de “corrida”, como a cha­ mamos comumente. Cada aluno lê individualmente e pára quando cometeu um determinado número de erros. O seguinte continua. Aquele que lê por mais tempo é por isso recompen­ sado; os menos hábeis ficam logo fora do jogo; mas, pelo me­ nos, todos seguem a leitura com atenção. Esta prática, evidentemente, só poderia ser ocasional. Não será a essas sessões coletivas que exigiremos as virtudes neces­ sárias ao rápido aprendizado da leitura. Esses exercícios de leitura seriam realmente insuficientes, pois cada aluno efetivamente só lê alguns minutos de cada vez. Com a antiga leitura em comum, as aparências ao menos eram salvaguardadas. Você deu uma aula de leitura de 30 minutos; que importa se o esforço de cada um continua insignificante! As exigências do programa foram satisfeitas. De modo algum nos acomodamos a práticas hipócritas, e buscamos, sinceramente técnicas pedagógicas ideais. Hoje é-nos possível caminhar com desenvoltura, pois realizamos as duas condições essenciais: — Nossos métodos de trabalho com o material impresso, complementados por trocas interescolares, deram a nossos alu­ nos o gosto e o desejo da leitura; fizeram-lhes compreender seu sentido profundo. Ser-nos-á suficiente prever uma organização escolar que permita a satisfação dessa necessidade. — Por outro lado temos, com os jornais bimensais que re­ cebemos, com os exemplares de La Gerbe e nossas edições de­ rivadas dessas produções infantis, uma primeira reserva de li­ vros, periodicamente enriquecida e que, sabemo-lo por expe­ riência, é muito apreciada pelas crianças. Bastará pôr esses li­ vros a sua disposição para que todos, sem nenhuma obrigação, façam o máximo de leitura de que são capazes. Nossos alunos lêem seus livros em casa. Mas previmos, além disso, no emprego de nosso tempo, entre 14 e 15 horas, 30 a 40 minutos de trabalho livre fora da sala de aula. O sonho seria, naturalmente, que fossem anexados a nossa escola pe­ quenos ateliês de trabalho e que estivéssemos munidos de um 58

material elementar para o trabalho ao ar livre durante o ve­ rão. Na falta de instalações, nossos alunos vão ao recreio co­ berto no inverno, ficam sob os olmos da região no verão e, sen­ tados onde bem entendem, trabalham de todo jeito. Partem dois a dois ou três a três, levando seu livro favorito e lêem em voz alta, um após o outro ou todos juntos. Os maiores já pra­ ticam a leitura silenciosa, à qual os pedagogos contemporâneos dão tanta importância. O pátio torna-se, então, uma verdadeira colmeia de tra­ balho. Não dizemos que nunca haja nenhuma desavença; uma careta feita para um colega suscetível às vezes provoca uma queixa — ou então um pequeno leitor de seis anos descansa um pouco dando cambalhotas. Aliás, a sanção é fácil de minis­ trar, se preciso: esses minutos de trabalho livre são sempre considerados uma recompensa; basta-nos chamar a atenção dos alunos que, ocasionalmente, incomodarem seus colegas. Após um ano de experiência, não vemos nenhum inconveniente nes­ ta prática. Pelo contrário, os alunos do curso preparatório e os do curso elementar partem alternados, o que nos permite con­ sagrar-nos sucessivamente a uns e a outros, para as aulas ou conselhos necessários. As sessões de trabalho livre se nos apre­ sentam, pela séria atividade que aí se desenvolve, como um dos momentos mais proveitosos do dia. Por que perder horas a fio com cópias insípidas? Em nossas classes só copiamos nossos textos e os de intercâmbio regular; reduzimos ao mínimo os outros “deveres” e, em conformidade com as Instruções Ministeriais de 1923 (exigimos que no curso preparatório a criança consagre à leitura um terço de seu tem­ po — dez horas por semana, e sete horas no curso elementar), pusemos a leitura no lugar de honra. Os resultados obtidos — sem esforços suplementares da parte do professor — são ampla­ mente satisfatórios. A quantidade de páginas lidas é sempre considerável, em relação à matéria oferecida aos alunos nas antigas classes. Os progressos são também mais rápidos e, so­ bretudo, obtidos na alegria do trabalho, humanamente, sem coação ou irritação. Não é de admirar, portanto, que esta atividade contribua, em larga escala, para a educação e eleva­ ção dos indivíduos, que continuam a ser nosso objetivo último. 59

Gramática

“Mesmo devendo ser simples, o ensino da gramática deve ser concreto. O professor deve partir de textos colocados sob os olhos das crianças para fazê-las compreender a função habitual do substantivo, do artigo, do adjetivo, do pronome e do verbo. Não se trata de formular definições abstratas, cujo caráter arti­ ficial logo aparecerá, num conhecimento mais aprofundado da língua. Trata-se de levar as crianças, pela prática da linguagem falada ou escrita, a classificar com suficiente precisão as for­ mas verbais, sob as rubricas que os gramáticos imaginaram para pôr um pouco de ordem no caos da realidade lingüística. De­ pois, uma vez que os alunos tenham adquirido esses conheci­ mentos, pediremos a eles que os apliquem e concordem entre si os artigos, adjetivos e substantivos, os verbos e os sujeitos.”18 É a condenação formal do processo gramatical, que con­ sistia em “aprender as palavras, depois os princípios gramati­ cais sob a forma de regras e terminar pela sintaxe, para chegar a falar e escrever”. “O método gramatical é, na verdade, o método clássico preferido por muitos professores. No entanto o que parece ter sido estabelecido pela prática é que este é um meio pouco se­ guro para fazer adquirir o manejo da língua usual e que, quando se consegue, não se pode afirmar que outros fatores não tenham contribuído, em maior ou menor escala. O que é evidente é que poucos cérebros se adaptam a isso com facili­ dade e que muitos, por causa desse método se desinteressam pelo estudo...”19 Assim como a criança pode aprender a falar corretamente ignorando totalmente as regras da sintaxe, achamos que ela pode aprender a escrever corretamente sem conhecer as regras da gramática. Reconhecemos a necessidade dessas regras, sobre­ tudo quando queremos escrever de modo ortograficamente con­ veniente. Alguns exercícios sistemáticos ligados a nosso traba­ lho diário determinarão as regras essenciais da concordância. Quanto à sintaxe, é pela vida que a ensinamos. Nossas me­ lhores aulas de gramática não são, como dissemos, as redações dos alunos? Aí vivemos a sintaxe francesa; mesmo nossas hesi­ tações contribuem para mostrar a via gramatical. 60

Os programas não prescrevem, aliás, nenhum conheci­ mento inacessível neste nível: algumas observações, alguns exercícios ou alguns jogos sobre o singular e o plural, os pro­ nomes e verbos. Quando esses exercícios têm seu fundamento no texto com­ posto, são feitos com prazer pelos alunos. Aliás, nós os redu­ zimos ao mínimo, pois não são nem urgentes nem essenciais: o essencial continua sendo a redação, a leitura e a escrita vivas.

Vocabulário

Existe a mesma mudança de orientação no que concerne ao vocabulário. Até então, a escola tinha a pretensão de ensinar palavras às crianças, sem se preocupar com a necessidade que estas po­ diam ter daquelas, nem com o uso que delas fariam. Pensamos que é no mínimo inútil ensinar mecanicamente teorias de palavras novas, e banimos completamente de nossa aula esse tipo de exercício de vocabulário. Apenas são necessárias à crian­ ça, tornando-se para ela um enriquecimento, as palavras cujo emprego conhece ou ao menos deseja, porque essas palavras logo se integram em sua vida e se incorporam a sua persona­ lidade. Isso significa que nos abstemos sistematicamente de ensi­ nar todas as palavras novas? Vemos em dois planos nossa tarefa de aprendizagem do vocabulário. A criança que chega a nós já conhece um número considerável de palavras. Que conheçam em dialeto, em italiano ou em francês, pouco importa. Nosso dever não é partir dessa aquisição para traduzir, em bom fran­ cês, os elementos familiares? Será justamente este o objeto de nossos trabalhos de redação individual e coletiva. A primeira conseqüência desta nova orientação de nosso trabalho escolar, baseada na expressão infantil, é que nossos impressos estão sempre perfeitamente na medida de nossas tur­ mas. São ao mesmo tempo compreensíveis também para todas as crianças de mesmo nível que os receberem. Somente algumas palavras técnicas ou de emprego regional necessitam, por vezes, 61

de explicação. Fora disso, quase nunca temos o que acrescentar aos impressos a serem trocados; toda leitura explicativa tornase supérflua. Habituar a criança a utilizar corretamente as nu­ merosas palavras que possui, não é o verdadeiro fundamento do vocabulário? Procuramos, entretanto, aumentar essa reserva primitiva. A própria vida se encarrega desse enriquecimento. A criança não marca passo gramaticalmente. Quando seu raio de ação social aumenta, sente a necessidade de novas palavras. Porém, nunca se aperta, e sabe, conforme a ocasião, improvisar-se como gramático. Nossa tarefa é exatamente de ajudá-la nesse mo­ mento, para que não desvie e não atribua às palavras um sig­ nificado errôneo, que em seguida seria difícil de corrigir. Enfim, as leituras livres nos livros de nossa biblioteca au­ mentam a cada dia o vocabulário de nossos alunos, dispensan­ do-nos de todos os exercícios metódicos. Fazemos, entretanto — quase cotidianamente — exercícios de vocabulário que intitulamos de “caça às palavras”. Mas de modo algum têm a intenção de ensinar novas palavras; quere­ mos, de preferência, organizar os conhecimentos atuais, criar grupos segundo certas características, de modo a determinar a estrutura e o emprego das palavras conhecidas: terminações, raízes, consoantes duplas, formação do plural, etc. Abstemo-nos sempre, neste trabalho, de pronunciar nós mesmos as palavras novas. Simplesmente classificamos os conhecimentos que a vida escolar ou social ensinou. Preocupação pouco ambiciosa naturalmente, mas que pelo menos está na medida de nossos alunos e da qual não se po­ dería contestar o grande valor pedagógico. Harmoniza-se sem reservas com a idéia que orienta nossos esforços; partir da criança, ajudá-la a enriquecer sua personalidade e não mais despender, do alto de nossa auto-suficiência adulta, riquezas verbais que jamais chegam à alma de nossas crianças.

Organização do trabalho livre

Naturalmente muito se valorizou as belas aulas magistrais, que derramavam “como em um funil” a matéria escolar. A nova concepção é, sob todos os pontos de vista, mais racional: 62

só são realmente proveitosos a atividade pessoal criadora, o esforço requerido para satisfazer o desejo de curiosidade, a sede de conhecimentos e de pesquisas. O papel do educador será menos pedantemente preten­ sioso. O essencial será primeiro despertar — ou antes, conser­ var — na criança suas forças vivas, que condicionam a verda­ deira educação; depois colocar os alunos em condições de sa­ tisfazerem suas necessidades, fornecendo-lhes todos os elemen­ tos que contribuirão para sua instrução e educação. “A escola”, dizia Tolstoi, “não será mais, talvez, tal como hoje a entende­ mos, com assoalhos, carteiras, palanques: será, provavelmente, um teatro, uma biblioteca, um museu, uma conversa”. Não podemos pretender ainda esse grau de evolução; mas desde já nos é possível modificar nossas condições de trabalho. Em nossa velha escola, é o professor quem mais se des­ gasta. O que quero dizer com isso? Freqüentemente ele é o único em sua classe a manifestar alguma atividade, como se esta pudesse bastar para preparar os jovens alunos para a vida. O evidente insucesso da escola atual certamente é devido, em grande parte, a este erro dos educadores, que acreditaram por muito tempo na onipotência de sua palavra e de suas aulas ministradas a alunos “de braços cruzados”. Não é mais pre­ ciso fazer a crítica desta concepção. Mas é necessário ao menos encontrar novas práticas que nos tirarão da rotina. “Em última análise, a educação consiste na organização dos recursos do ser humano”.20 Organizemos então a atividade escolar! Criemos a escola trabalhadora! Nossos alunos necessitam de atividade, mesmo que suas ocupações sejam desdenhosamente qualificadas por nós de brincadeiras. Deixemo-los trabalhar! Contentemo-nos em fazer como o engenheiro na fábrica: preparar as linhasmestras de nosso esforço coletivo; organizar o trabalho, sua revitalização e seus esboços; contribuir para colocar cada um no lugar que lhe for mais proveitoso, para si e para a cole­ tividade; assegurar, nas melhores condições possíveis, um ren­ dimento máximo de trabalho. A revitalização e os meios são todos encontrados em nos­ sas turmas: correspondentes que nos enviam seus trabalhos e recebem os nossos, intercâmbio de documentos diversos, com­ pra de livros de biblioteca adaptados a nosso trabalho, etc. 63

Organização do trabalho: apenas alguns exercícios, como a leitura e a cópia do texto impresso, devem ser executados si­ multaneamente por todos os alunos. Mas, para não favorecer a preguiça e a dispersão, para estimular sem cessar o hábito do trabalho, dedicamo-nos a permitir a atividade livre, fora das tarefas imediatamente exigidas. Para isso preparamos em fichas diversos exercícios, numerados, com suas respostas para a autocorreção, e que estão sempre à disposição dos alunos. Todas as fichas de Perguntas são classificadas em uma cai­ xa com a etiqueta: Gramática: Perguntas. As fichas de Res­ postas são classificadas na caixa: Gramática: Respostas. A mesma preparação se faz para a matemática. Organiza­ mos em fichas um programa gradativo de trabalho, que cada aluno deve cumprir, seguindo obrigatoriamente a ordem in­ dicada. Naturalmente, esse trabalho nem sempre é, para as crian­ ças, de um interesse apaixonante. Mas elas compreenderam que, para escrever corretamente — e vêem a necessidade disso — é preciso conhecer as regras da gramática; todos querem sasaber fazer as operações e compreendem a importância dos exercícios. Por outro lado, são de tal modo arrebatados pelo trabalho alegre, a que se entregam de corpo e alma, que esses exercícios, mesmo sendo bastante áridos, são feitos com prazer. Nunca avaliamos este trabalho. A própria criança se con­ trola. Excluímos de nossas relações toda hipocrisia escolar; de­ mos à criança, além disso — e mais particularmente através do material impresso — o hábito da aplicação conscienciosa. A experiência nos mostrou que, nessas condições, teríamos a maior vantagem em depositar na criança uma grande confiança que faz por conta própria, e quando quer, um trabalho cuja neces­ sidade compreende, aplica-se naturalmente, sobretudo se a ati­ vidade que lhe é oferecida encerra, como nossas fichas, uma certa dose de imprevisto e de brincadeira educativa. A preparação das fichas não esgota, aliás, toda nossa orga­ nização do trabalho livre. Achamos que, em cálculo princi­ palmente, como no sistema métrico, a experimentação pessoal está na base da aquisição do conhecimento. As diversas medi64

das não estão mais encerradas num compêndio imponente, de “onde só são tiradas no dia da aula específica; estão aí, ao alcance dos alunos que, individualmente ou em grupos, delas podem servir-se à vontade. Papel, cartolina, compensado, estão igualmente à disposição dos jovens artesãos que, acabada a tarefa comum, traduzi­ rão sua inspiração numa bela ilustração do texto diário ou em saborosos clichês que imprimiremos à noite”.

SEMELHANTE TÉCNICA É APLICÁVEL AO CURSO MÉDIO E SUPERIOR?

Quando lança seu slogan Abaixo os manuais escolares, Freinet não tem experiência direta com as turmas do curso médio e superior. A aula tradicional de seu diretor, que faz frente à sua, é um exemplo permanente do que é pedagógica­ mente condenável. Já em sua classe os alunos superdotados são do nível do curso médio para as técnicas básicas, o que exige o emprego de práticas de outro nível. Mas é na estreita colaboração com os professores do que se poderia chamar de “suas escolas filiais” que Freinet documenta-se incansavelmen­ te. A documentação que recebe das turmas que estão traba­ lhando (escolas mistas ou de um só curso nas aldeias, escolas de cidade com turmas de um só curso, cursos complementares) dá lugar a uma investigação pedagógica que constitui o essen-cial do conteúdo da revista l'Imprimerie à l’École. Nomeado para Saint-Paul em 1928, para um grupo que abrangia curso elementar, curso médio e curso superior, e em seguida traba­ lhando em sua escola mista em Vence — onde as crianças se escalonam dos três aos quinze anos — Freinet terá tempo e ra­ zão de aprofundar o problema da prática pedagógica nas turmas de todos os níveis escolares. Na mesma época, Freinet vai determinar as idéias diretri­ zes que devem orientar o problema educacional da escola popular. 65

A disciplina e o trabalho

“O que será essa classe em que os alunos não farão todos ao mesmo tempo o mesmo dever, onde não cruzarão os braços esperando negligentemente para recitar a lição do dia, trapaceando o quanto puderem? Como organizar todo o tra­ balho escolar? E o horário? Nas classes mortas, em que o trabalho escolar — merecidamente chamado de “dever” — quase nunca seria executada sem a ajuda do professor, onde os maiores esforços das crian­ ças são por vezes consagrados à busca de meio de escapar à influência aviltante da escola, nessas classes o educador édominado pelas necessidades da disciplina e da instrução. Tudo muda se a criança conservou integralmente sua sede de conhecimento. Uma parte da atividade do professor, a queera consagrada a coagir seus alunos ao trabalho, é então libe­ rada. Quase que só resta ao educador as tarefas nobres e apaixonantes: dirige o trabalho comunitário, supervisiona, ar­ bitra, sugere, por vezes repreende. A educação adquire a calma e a intimidade que lhe são tão indispensáveis. Ah! não garantimos o completo silêncio; aliás não que­ remos uma imobilidade antinatural. Talvez seja um pouca penoso no início; sem dúvida é mais cansativo para o edu­ cador do que a direção de um grupo de alunos sonolentos. Mas é a vida! e é, no sentido mais belo da palavra, a edu­ cação ativa e alegre.” Mas a disciplina continua sendo a primeira preocupação do professor, que teme tornar-se “um professor dominado pe­ las crianças”, que receia as sanções de um inspetor que exige a turma silenciosa, “onde se ouça voar uma mosca”. Por várias vezes Freinet voltará a esse assunto de grande importância, porque dele depende todo o trabalho escolar. “Ser humano, ter confiança na criança, evitar ao máximo a opressão, a coação, está muito bem, dizem nossos colegas. O que mais nos interessa é saber como na prática, podemos realizar em nossas turmas esses objetivos desejáveis em toda boa educação. O problema realmente não é simples, sobretudo em nossas escolas populares. Não temos a pretensão de trazer soluções definitivas, mas apenas mostrar um caminho que acreditamos sólido e salutar. 66

Achamos que primeiro é preciso dar à palavra disciplina um novo sentido. Ou antes, essa palavra em sua acepção cor­ rente deveria desaparecer de nosso vocabulário pedagógico. Realmente, a criança a quem oferecemos atividades que respondem a suas necessidades físicas e psíquicas é sempre disciplinada, isto é, não necessita de regras ou obrigações ex­ teriores para trabalhar ou para submeter-se à lei do esforço coletivo. Podemos afirmar que, se estivéssemos em condições de dar a nossos alunos a possibilidade de trabalhar segundo suas necessidades e gostos, poderiamos ter de intervir para organizar o trabalho e a atividade de nossa comunidade, mas todos os problemas comuns da disciplina escolar não teriam mais razão de ser. A introdução do material impresso em nossas aulas per­ mite-nos adivinhar tudo o que poderia ser realizado neste sentido. A disciplina tradicional precisava do controle estrito dos “deveres”. E eis que soubemos motivar nosso ensino a tal ponto que, espontaneamente, nossos alunos escrevem, com uma incrível aplicação, mais redações do que os programas pre­ vêem. .. Os manuais indicam detalhadamente como obter a atenção das crianças durante a leitura, e nossos alunos lêem com seriedade e curiosidade os livros de seus corresponden­ tes... Mais uma vez a obrigação, para ensinar-lhes as formas áridas de uma gramática sem vida, quando tudo se esclarece à luz da necessidade escolar e social. Se não existe na classe uma atividade livre na própria base de toda organização, então uma disciplina especial é ne­ cessária, tanto para obrigar a criança às tarefas não deseja­ das, quanto para recalcar seu potencial de atividades não em­ pregadas, que buscam a todo custo realizar-se. E é falso acre­ ditar que essa disciplina possa ser liberal ou consentida. Mesmo que, por sugestão dos adultos, seja estabelecida pelos próprios alunos, nem por isso é uma disciplina menos opressiva em sua essência, o que deixa intato o problema tão delicado da ação recíproca de educadores e educandos. O problema da disciplina parece-nos colocar-se do seguin­ te modo: a criança que participa de uma atividade que a apaixona disciplina-se a si mesma, a menos que o trabalho não a discipline automaticamente. Nossa verdadeira tarefa consiste em permitir a nossos alunos todas as atividades edu­ cativas que satisfaçam sua personalidade, em estudar atenta­ mente a técnica dessas atividades, que supõe uma disciplina motivada pelo objetivo a atingir. O único critério, então, não será saber se essas crianças são boazinhas, obedientes e tranqüilas, e sim se trabalham com entusiasmo e ardor. Essa atividade livre, porém, só é possível em certas con­ dições favoráveis de instalação e organização. Turmas muito numerosas em locais demasiado exíguos não podem, de modo algum, implementar novas técnicas de trabalho. As escolas populares são, infelizmente, por sua concepção e constituição, 67

escolas estabelecidas, onde cada aluno tem seu lugar sentado, mas onde os grupos não podem nunca reunir-se nem circular sem ruído que ameace prejudicar o conjunto da classe. Por isso colocamos o materialismo escolar na base das reivindica­ ções da escola popular. Uma outra situação de fato, que quase sempre necessita do estabelecimento de uma disciplina severa, é a obrigação que temos em nossas classes de ensinar aos alunos elementos que não se relacionam, de modo algum, com o espírito da criança; penso particularmente no cálculo mercantil e na história oficial. Enquanto os exames não forem transformados em sua própria natureza, a escola sofrerá por ter que ensinar palavras, em lugar de formar e desenvolver os espíritos. Apesar dessas dificuldades, o que pudemos realizar em nossa classe, para enveredar pelo caminho que acabamos de definir? Que compromisso assumimos para estimular, em nosso regime tão pouco preocupado com a educação do povo, reali­ zações que não poderiam generalizar-se sem um grande es­ forço pecuniário para as nossas escolas? Em que medida nos­ sos colegas podem seguir-nos? Trataremos de responder a essas questões nos próximos números."21

Métodos e técnicas

À medida que se enriquece o instrumental educativo, que se afirmam e se aperfeiçoam as técnicas decorrentes deste ins­ trumental freqüentemente polivalente, certos perigos podem comprometer a coerência interna de uma pedagogia essencial­ mente unitária. Freinet teme, efetivamente, que se improvisem especialistas em pedagogia dos detalhes, na qual alguns de seus colegas se tornaram mestres; que assim se perca a linha geral de pensamento e ação das técnicas introduzidas pelo texto livre e pelos diversos aspectos da livre expressão, tomada em seu sentido mais amplo de expressão através da vida. Além do mais, faz questão de refutar as críticas de seus difamadores, que visam a reduzi-lo a um pragmatismo empí­ rico pelo emprego exclusivo da tipografia na escola. Preocupase, portanto, desde o início (estamos em 1928, quando publica Plus de Manuels scolaires) em estabelecer uma diferença fun­ damental entre o Método e as Técnicas: este tema será, aliás, 68

retomado, em diversas circunstâncias, ao longo de toda sua vida, quando os tradicionalistas tentarão mantê-lo no domínio exclusivo do prático, válido apenas no estágio primário. “Esta importante palavra, método, foi de tal modo deson­ rada pelos autores de manuais de toda espécie, que hoje nos é difícil devolver-lhe o sentido preciso e completo que dese­ jaríamos em educação. Quem diz método diz sistema de educação, baseado em elementos determinados, cientificamente provados e coordena­ dos de modo absolutamente lógico. Ora, a ciência pedagógica ainda está engatinhando, e nenhum método existente hoje pode dizer que resulta dela. Somente a Igreja, que desdenha a ciência e apóia-se inquebrantavelmente — acredita ela — na revelação e na crença, tem seu método de educação, testado durante séculos de uso. com seus processos e técnicas quase imutáveis, apesar das novas descobertas; método que, no entanto, não busca a li­ beração do indivíduo, mas apenas sua resignação à ordem estabelecida, sua sujeição cada vez maior a seus senhores. Fora esta tentativa relativamente lógica, não houve ainda, para a pedagogia popular, um verdadeiro método de educação. Desde seus primórdios nossa escola nacional leiga idola­ trou a Instrução; pensou que ensinar os primeiros elementos da leitura, da escrita, das ciências, deveria contribuir para a máxima educação dos cidadãos. Não falava Condorcet a res­ peito de quadros sinóticos, através dos quais os alunos pode­ ríam percorrer uma verdadeira enciclopédia e estar à altura de falar a torto e a direito, e de fazer um artigo de jornal ou um discurso no Parlamento sobre temas que conhecem mal? “Em nossos dias, como no tempo de Fontenelle, a socie­ dade dominante exige que se lhe dê posse de uma ciência completa do mundo, que lhe permita ter uma opinião sobre todas as coisas sem precisar passar por uma instrução espe­ cial... Sabemos o que significa inspirar-se na filosofia do sécuio XVIII, formar espíritos esclarecidos: é vulgarizar os conhecimentos de modo a pôr os jovens republicanos em ccndições de obter um lugar de honra numa sociedade constituída segundo as concepções do antigo regime; é querer que a de­ mocracia se molde de acordo com a nobreza desaparecida; é colocar os novos senhores no lugar mundano que ocupavam seus predecessores.”22 Mas, acrescenta G. Sorel, “uma grande mudança se produzirá no mundo no dia em que o proletariado tiver adquirido, como o adquiriu a burguesia após a Revolu­ ção, o sentimento de que é capaz de pensar a partir de suas próprias condições de vida”. A vulgarização científica ainda é a base de nosso sistema educacional. A educação é relegada a segundo plano e daí não se libertará sem dificuldade. 69

De acordo com essa concepção do papel da escola, alguns se aplicaram em criar métodos de instrução: métodos para a aprendizagem da língua, para a composição, para o cálculo, para a escrita, para a história, etc. Cada ramo tinha seu método. Mas a própria palavra método não fora deturpada? Ter-se-ia o direito de chamar de métodos, processos que não se apoiavam em nenhum elemento certo, e que outros pro­ cessos vinham, além do mais, a cada ano, destronar e por vezes ridicularizar? Não que acreditemos impossível a criação de um método científico para a aprendizagem da leitura, por exemplo. Mas isso não pode ser possível senão para futuro bem longínquo, quando a pedologia tiver revelado todos os segredos do dinamismo infantil. Até esse dia, todas as tenta­ tivas, mesmo as mais audaciosas, serão caducas. Além disso, podem ser nocivas se, como acontece freqüentemente hoje em dia, processos baseados numa falsa ciência estupidificam a criança, em vez de contribuir para sua verdadeira educação. Isso nos mostra a necessidade de se ter um piano diretor, um método de educação que mostrará, para os diversos pro­ cessos de instrução e de educação, que usavamos a palavra método erradamente, e que chamaremos de técnicas o caminho a seguir se não quisermos esbanjar nossos esforços. A instrução do povo não é, portanto, nossa única preo­ cupação. Ela mostrou, com muito alarde, que freqüentemente é apenas a ruína da alma. Não tomou o homem melhor e muitas vezes nos privou dos tesouros do bom senso e da ori­ ginalidade, que povos ignorantes nos revelavam. O bom senso de Rabelais, Montaigne, Rousseau, Pestalozzi, está em vias de retomar seus direitos. Para educar-se, já não basta que a criança engula todas as matérias que lhes apre­ sentamos de uma maneira mais ou menos tentadora; é pre­ ciso que aja por si mesma, que crie. É preciso, sobretudo, que viva realmente num meio normal, e não que adormeça em nossas modernas “jaulas de juventude cativa”. Viver, viver o mais intensamente possível: não é este, em última análise, o objetivo de nossos esforços? E desenvolver ao máximo as possibilidades de atingi-lo não deveria ser a tarefa essencial da escola? A noção de Escola Ativa, da qual Ferrière foi o ardoroso iniciador, não nos satisfaz totalmente. Sei que o próprio Fer­ rière dá a essa palavra sua acepção total de educação nova. Mas, para a clareza das posições, necessitamos precisar os termos. A noção de atividade pode condicionar nossas técnicas. Mesmo compreendida em seu sentido mais amplo, não implica a mudança de orientação da escola que preconizamos. A pa­ lavra educação parece-nos suficiente. Na antiga escola, com efeito, o professor instrui, e às vezes até pretende educar seus alunos. Achamos que é a própria criança quem deve se educar, se aprimorar, com o auxílio dos adultos. Deslocamos o eixo educativo: o centro da es70

cola não é mais o professor, mas a criança. Não devemos consi­ derar as comodidades do professor, nem suas preferências: a vida da criança, suas necessidades e possibilidades são a base de nosso método de educação popular. E isso é um método? Isso não passa de uma diretriz ideológica ! Não pretendemos poder estabelecer desde agora aquilo que mais tarde será o método. Mas, apoiando-nos nos ensina­ mentos de nossos melhores pedagogos, podemos ao menos dizer: eis os fundamentos certos para uma educação libertadora da classe trabalhadora. Como faremos para seguir essa linha metódica com o má­ ximo de proveito? Eis aí todo o problema realista, que nos propomos estudar em toda a sua complexidade: organização material e social da escola, ritmo do trabalho escolar, modalidades de desenvolvimento das crianças, etc. Não falaremos, de modo algum, de métodos para isso; apenas de técnicas educativas. Queremos mostrar, através dessa nova denominação, em primeiro lugar que as diversas soluções que traremos para esses problemas nada são, em si mesmas, sem o espírito do método a que devem servir; e também que esses processos, por mais novos e bem estudados que sejam, foram criados à nossa imagem, ou seja, incompletos, sujeitos a mudanças freqüentes, a incessantes aperfeiçoamentos para um caminhar seguro rumo a nosso ideal educativo. Se nos detemos em fazer essa distinção capital entre o método de educação e as técnicas de trabalho, é a fim de que não se continue a confundir a obra de educação e de liber­ tação com os instrumentos que permitirão edificá-la, e que não se isolem nossas pesquisas práticas do grande problema social, político, econômico e filosófico que é a procura de um método de educação popular.” O próprio Decroly esclarece seu pensamento sobre essa importante questão das técnicas e métodos, ou melhor, do método: “Concordo inteiramente com seu ponto de vista. Como já repeti nas conferências de Elseneur, nenhum método pode pretender atualmente dar a última palavra na solução de todos os problemas da educação e do ensino. A pedagogia ainda está para ser construída em muitas de suas partes. Isso a que se chamou de “Método Decroly” não tem, para dizer a verdade, a característica dos métodos de que habitual­ mente se fala. Não se limita a um lado do problema educativo ou de instrução; tampouco tem um caráter aboluto ou 71

exclusivo, opondo-se aos outros de maneira irredutível; não pretende impor um código de dogmas imutáveis e definitivos. Busca antes abraçar todas as forças da educação e do ensino; não pretende ser cristalizado nem perfeito, mas sim e sobretudo flexível e pronto a qualquer evolução para me­ lhor. Aproveita de outros métodos os objetivos e meios que considera úteis; inspira-se em regras que dominam todos os ramos das ciências, sem por isso impedir-se de recorrer a hipóteses de trabalho...” Uma opinião tão autorizada só poderia alegrar Freinet. É aliás nas obras de Decroly que Freinet encontrará pontos de apoio para continuar sua experiência, até então sujeita a mui­ tas incertezas. Pois Decroly foi certamente o professor que mais profundamente influenciou o Movimento de Educação Nova porque tentou, mais do que qualquer outro pedagogo, ligarsempre a teoria à prática. A Escola do Eremitério oue fundou em plena natureza, nos arredores de Bruxelas, esforçou-se por aplicar suas concepções sintéticas de educação. Para Decroly, a escola deve desenvolver-se ao mesmo tem­ po nos domínios concretos da vida da criança e no terreno es­ peculativo. Essas duas tendências estão irremediavelmente li­ gadas pela unidade orgânica e psíquica da criança, unidade realizada pela conjunção do meio exterior e do meio interior do indivíduo. Partindo dessa concepção unitária, Decroly vai afirmar pontos de vista em oposição à psicologia clássica abstra­ ta e analítica: pensamos funcionalmente e não abstratamente. Não existe uma função do pensamento exercendo-se acima e além da experiência concreta. Existe uma atividade global do ser que, por todas as suas possibilidades de ação e de expressão, adapta-se a todas as circunstâncias: “Os novos pontos de vista da psicologia funcional (os de Dewey e Claparède principalmente), diz Decroly, chamaram a atenção para a totalidade do problema psicológico, para as interações psíquicas e interferências mentais, que fazem da. mentalidade um todo orgânico indissolúvel.” São conceitos que encontram em Freinet um eco favorável.. Já em sua classe de Bar-sur-Loup, onde instaurou o método natural global, estava permanentemente no âmago das ma72

nifestações unitárias do comportamento das crianças pela glo­ balização. Quando démenti diz: “Senhor, as cerejas mamam pelo rabo”, temos ai muito mais do que uma imagem original, uma intuição global dos processos de vida universal. Quando Lulu constata: “as estrelas não caem nunca, mes­ mo quando o céu está cheio delas”, situa-se, instintivamente, no coração das leis do universo. A globalização é o processo da vida: é ela que permite ao carneirinho recém-nascido reconhe­ cer sua mãe no rebanho, ao pintinho de fixar-se no primeiro objeto a que se apega ao sair do ovo, ao cachorrinho novo de agarrar-se ao dono que lhe dá sua primeira papa. Temos aí um empirismo decisivo cujas potencialidades é urgente sondar. Voltando-se à fonte original de energia cósmica potencial Freinet descobrirá a chave que libera os poderes unitários das criaturas: a pesquisa. Voltaremos a isso.

Alargando sempre o horizonte pedagógico e cultural

A propaganda entusiasta e a justificativa otimista das técnicas Freinet feitas por Freinet e seus discípulos podem dar a impressão de militantes mais ou menos sectários, encerrados em um gueto, fora do qual não existe salvação. Na verdade, o que aconteceu foi realmente diferente; pou­ cos inovadores, dentre os que já atingiram notoriedade, terão sido tão abertos à experiência educativa dos outros quanto o foi Freinet e, a seu exemplo, os educadores do Movimento Internacional do Material impresso na Escola. “Eis agora nossa experiência coletiva. Devemos todos, juntos pôr de pé a nova técnica de trabalho. Alguns colegas, que trabalham de acordo com o método Decroly dos Centros de interesse, dirão após experiência se a. nova atividade de nossas classes é compatível com a regula­ mentação freqüentemente bem arbitrária do trabalho escolar segundo este método. Saberemos igualmente, após a experiência, o que podemos, esperar da prática do trabalho livre por grupos (Método Cou73.

sinet) e que adaptação dessa prática poderiamos fazer em nossas classes. Temos muito o que aprender com nossos colegas russos, pois a impressão, a correspondência, os intercâmbios interescolares obrigam-nos a dirigir-nos, como eles, à vida social, para daí extrair os elementos essenciais de nosso trabalho escolar. Tampouco hesitaremos em seguir a escola dos pedagogos americanos para taylorizar,* em larga escala, o material de trabalho que condiciona nossas novas atividades: impressão, intercâmbios interescolares, fichário, biblioteca de trabalho. Repetimos mais uma vez que não buscamos necessaria­ mente a novidade, nem a originalidade, embora não a tema­ mos de modo algum. Tomamos o que há de bom, onde houver: adaptamos o melhor possível as técnicas existentes em nosso trabalho. Nosso desejo é apenas o de valorizar, ao mesmo tempo, o material que responda a nossas necessidades e as técnicas de trabalho que permitirão a melhor exploração educativa das possibilida­ des criadoras das crianças.”23 Basta folhear as revistas desses anos de entusiásticas pes­ quisas experimentais para se constatar a existência de uma curiosidade apaixonada por toda experiência não-conformista, para notar a abertura e a objetividade que dominam as pes­ quisas dos pioneiros da Escola do Povo. A correspondência in­ ternacional é uma rubrica permanente que liga o movimento Freinet (aliás, internacional desde suas origens) a todos os pedagogos do mundo e a suas experiências generalizadas. As novas criações realizadas na U.R.S.S., nos E.U.A., na Alema­ nha, na Bélgica, na Itália e na Inglaterra, são relatadas e ana­ lisadas com o auxílio de adeptos que se encontram no local, e isso com uma preocupação de compreensão e de enriqueci­ mento permanente. A crônica das revistas e livros sobre l’Imprimerie à l’École é de grande riqueza documental e a atualidade dos aconteci­ mentos pedagógicos é permanentemente apresentada. O Movi­ mento Freinet adere, ademais, em sua totalidade à Liga Inter­ * Aplicar o taylorismo, i. é., o sistema de exploração industrial basea­ do nos princípios da psicotécnica e de organização racional do tra­ balho, visando o máximo de rendimento com o mínimo de tempo e atividade (N. do T.). 74

nacional de Educação Nova, presidida pela alta personalidade de Adolphe Ferrière. Todos os congressos e manifestações di­ versas da Liga são regularmente seguidas pelos impressores ou pelo próprio Freinet. Viagens de informação ao estrangeiro são organizadas gra­ ças ao auxílio de adeptos de diversos países. Freinet impõe-se como dever visitar as novas escolas que, na Europa, são a van­ guarda da pedagogia mundial: escolas alemãs de Petersen em Iéna, de Alatona, de Hamburgo (1923-1924), escolas soviéti­ cas vanguardistas e politécnicas (1925) e, mais assiduamente, dentro de nossas fronteiras, escolas Decroly, escolas Montessori e a “Casa dos Pequeninos”, criada por Claparède em Genebra. Na França, este é um período difícil para os inovadores pedagógicos; inúmeros colegas impressores são destituídos de seus cargos, o que provoca uma parada no trabalho que desen­ volviam nas escolas, num campo social que lhes era favorá­ vel: a luta administrativa contra o material impresso na Es­ cola começou. Freinet aceita o combate no plano pedagógico, tão difícil de defender: “O material impresso na Escola se desenvolve e se impõe implacavelmente. Não nos cabe mais — e menos ainda às for­ ças da reação — limitar-lhe a evolução e influência. A Impressão na Escola não precisa de nenhuma propa­ ganda ou apadrinhamento especial. Nossos adpetos, antigos e novos, têm apenas que mostrar seus trabalhos e dizer as van­ tagens incontestáveis dessa técnica para que outros colegas juntem-se a nós. Nunca tive que intervir para organizar as exposições nas quais nosso material e nossos trabalhos foram examinados com tanto interesse. Pois nosso grupo em nada se compara a essas organizações penosamente constituídas de adeptos passivos, que um escritório fortemente centralizado ad­ ministra e dirige. Basta-nos coordenar e ajudar as iniciativas individuais ou locais, fornecer os documentos complementares, tarefa ainda imensa mas profundamente estimulante e frutífera. É também porque somos incessantemente impelidos por nossos companheiros, que nos afogam em pedidos, sugestões, projetos, realizações esboçadas, que nosso trabalho cooperativo essencial não sofreu os golpes tão cruamente repetidos que a administração desferiu, há um ano atrás, em todos os cole­ gas de nosso Conselho Administrativo. Neste fim de ano estamos mais do que nunca dispostos a continuar nossa ação cooperativa em pleno acordo com os grupos que lutam pela libertação escolar através da libertação proletária.’”24 75

Notas

1. Les Dits de Mathieu. 2. Les Dits de Mathieu. 3. Tony l’Assisté. Éditions de la Jeunesse. 4. Les Dits de Mathieu. 5. Les Dits de Mathieu. 6. Plus de Manuels scolaires (1928). 7. Dr. Decroly: “La founction de globalisation et l'enseig­ nement” (Revue de l’Enseignement, n.° de 29 de janei­ ro de 1928). 8. G. Boon: Essai d’application de la méthode Decroly dans l’Enseignement Primaire. (Office de Publicité, Bruxelas, 1924). 9. Dr. Decroly: “La fonction de globalisation et l’enseigne­ ment” (Revue de l’Enseignement, n.° de 29 de janeiro de 1928). 10. Delaunay, Fontaine e Raffin: La lecture joyeuse (Éditions de l’Enseignement, Marselha). 11. J. Dewey: L’École et l’Enfant, op. cit. 12. E. Rion: L’Éducation Enfantine (Libr. Nathan, Paris). 13. R. Buysse: “L’individualisation du traitement pédago­ gique” (Revue Belge de Pédagogie, 1-12-25 e 1-1-26). 14. Narodni Outchitel (U.R.S.S.), set. 1927, artigo de O. Plavinskaïa. 15. Dewey: L’École et l’Enfant, op. cit. 16. G. Lombardo Radice: Athéna Fanciulla. 17. J. Dewey: L’École et l’Enfant, op. cit. 18. Instruções Ministeriais de 1923. 19. Dr. Decroly: “l’Application de la fonction globale dans l’Enseignement” (n.° de 25 de março da Revue de l’Enseignement) 20. W. James: Causeries pédagogiques (Payot, edit.). 21. L’Imprimerie à l’École, fevereiro de 1930. 22. G. Sorel: Les Illusions du Progrès, 3.a edição, Marcel Ri­ vière, Paris. 23. L’Imprimerie à l’École, 1-10-1930. 24. L’Imprimerie à l’École, julho de 1930.

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Capítulo 3

Existe uma Pedagogia de Classe no Regime Capitalista

As práticas pedagógicas de educação nova tornam ainda mais evidentes as alienações da escola do povo no regime capitalista. Deterioração, obsolescência dos locais, falta de instrumental educativo e de créditos, hostili­ dade dos poderes públicos a toda iniciativa dos professores. Estado de privação e de subalimentação da infância proletária. Falta de formação dos professores primários, relegados ao empirismo pedagógico, diante dos professores universitários altamente especializados, possuidores de todos os meios que favoreçam suas obras pedagógicas. Oposição permanente entre uns, de cultura intelectualista, e outros de cultura popular de sensi­ bilidade e bom senso.

Existe uma escola de Classe

Esses contatos com as produções pedagógicas de eminentes pedagogos estrangeiros, tendo à altura de seu talento todas as possibilidades de adaptação e enriquecimento de obras tipi­ camente pessoais em um clima de paz e distensão, constituem uma ocasião de aprofundar o fosso que separa as experiências da classe favorecida das experiências populares francesas: a nova pedagogia não tem os mesmos processos nem as mesmas resso­ nâncias. É verdade que as escolas Decroly e Montessori, geografica­ mente muito próximas, testemunham uma inegável renovação do ensino, uma condenação da escola tradicional; mas restritas 79

à prática exclusiva das teorias de seus criadores, funcionam isoladamente. Além disso, se distinguem exclusivamente por sua implantação social em um meio burguês. Não correm risco algum por parte dos governos que as caucionam. Os professores de tipografia na Escola, trabalhando em condições de deficiência material e pedagógica, não poderiam tomar como modelo criações tipicamente burguesas. Consta­ ta-se isto no plano puramente objetivo, sem premeditação po­ lítica, mas essa constatação justifica uma tomada de posição irreversível. A pobreza, com suas mil facetas, das escolas pro­ letárias, sofrendo permanentemente a realidade paralisante das privações, quando não da miséria, é um desafio à renovação do ensino. Estamos nos anos da crise econômica de 1929 a 1935; no plano familiar e social, as crianças do povo são vítimas de um estado de pauperização que influi gravemente em sua saúde, em seu comportamento e em sua inaptidão escolar. A prática da expressão livre baseada na liberdade e na confiança prova que há uma educação de classe. É no entanto arriscado constatar isso nos textos livres. Foi esta a experiên­ cia dramática vivida por Freinet em sua escola de Saint-Paulde-Vence, em que as narrativas de seus alunos, as enquetes, resultavam na verdade pura e simples, nua e crua, de que havia pobres desprovidos de tudo e ricos cumulados de todos os bens. “Eu como arroz todos os dias. Minha mãe não pode com­ prar carne. Ela não tem dinheiro.” “Minha mãe diz que se isso durar muito tempo vai acon­ tecer muita coisa ruim. É preciso que isso se ajeite pois os pais não querem mais ver seus filhos sofrerem.” “Não, moça, não estou com dor de estômago, estou com fome.” Ah! naturalmente isso muda um pouco os textos exageradamente depurados dos manuais escolares, nos quais operários e camponeses só aparecem embelezados e idealizados. Mas demos a palavra às crianças. O que nos dizem, o que escrevem, o que sentem, não exprimem em trechos literários em que as palavras vêem a verdade rude, mas através de fatos, de gritos, de realidades. Através delas chegam-nos então as mais graves revelações sobre a situação social, sobre a vida, sobre os sofrimentos de uma das classes mais miseráveis da humanidade; penetramos nos segredos da dura vida familiar, na promiscuidade dos pardieiros, na exploração da miséria e — no campo — nas peri­ pécias da luta ancestral que o camponês trava com a terra 80

para escapar, sem consegui-lo, da incerteza do amanhã, do peso irredutível que sobre ele exerce a organização rural, o individualismo pertinaz e a exploração. Não que esses fatos sejam assim claramente relatados por nossos alunos. A criança tem deles apenas uma consciência difusa, pois geralmente lhe faltam termos de comparação que possam fazê-la maldizer sua situação. É através de seus tra­ balhos — que em nossas classes têm uma importância tão pri­ mordial — de suas brincadeiras, de seus sonhos, que nós, adul­ tos, sentimos a bárbara injustiça que pesa sobre elas e que nos revolta. Deveremos proibir a expressão ingênua da vida de nossos pequenos proletários? Deveremos ocultar a realidade de suas revelações, deformar-lhes a dimensão para evitar que intervenham julgamentos desfavoráveis ao regime social atual? Mas em nome de que grandes princípios intervir, em que base, com que objetivo? Sentimos que o problema é extremamente grave. Quisemos humildemente, honestamente, uma pedagogia ba­ seada na própria vida das crianças, uma escola sob medida, na medida do filhos de operários e camponeses de nossas turmas. Humana, psicológica e pedagogicamente falando, isso é infinitamente desejável, ninguém pode contradizer-nos. Mas ocorre que os fatos econômicos e sociais são tais que seu simples relato arrisca-se a ser considerado atentatório à ordem estabelecida. Por um lado, os programas oficiais reco­ mendam-nos ensinar as crianças a olharem em torno e julgar, avaliar — e por outro lado, nossos dirigentes objetariam que certas verdades sociais incontestáveis, que aliás todos os adul­ tos divulgam, não devem ser expressas por crianças. Estas não deverão mais gritar: Estou com fome! Não deverão mais dizer que dormem seis num mesmo quarto, que a colheita não é vendida, que não têm mais sapatos. Se revelássemos demais essas verdades, a sociedade seria obrigada a fazer alguma coisa. Imponham portanto a seus alunos trechos de literatura nos quais as crianças vivem honestamente, sem jamais se queixarem. É todo o problema da escola de classe que é assim brutal­ mente colocado. Dissemos que achamos que uma escola psicologicamente organizada deve ter como base a natureza, as necessidades e a vida de seus alunos e que, nesse sentido, nossas escolas freqüentadas por crianças proletárias deveríam oferecer um ensino proletário. Isso é normal, irrefutável. Ensino de classe? Pode ser, na medida em que este proletariado é uma classe, e somente nestas condições. Queremos deixar claro que não atribuímos às palavras classe ou proletariado nenhum conteúdo político. Encaramos os fatos objetivamente, tecnicamente. Evitamos sobretudo Ins­ tigar à luta de classe, no sentido de que não insuflamos à 81

inveja nem ao ódio. Mas se os fatos são tais que as próprias crianças chegam a fazer constatações prejudiciais ao regime, nada podemos fazer. Não somos nós então que estamos erra­ dos, e sim os fatos ou o regime que os autoriza; e cabe a esses regimes fazer desaparecer as contradições sociais, cujo espetáculo possa prejudicar a ideologia de nossas crianças. Quão mais perigosa nos parece a tarefa que desejariam impor-nos! Servir à verdade, ao direito, à justiça, não se usa mais em uma sociedade que pisoteia essas noções. Temos que servir a um regime: pobres entre pobres e educando filhos de pobres, deveriamos colocar nossa ascendência moral, nosso devotamento, nosso saber a serviço dos ricos exploradores; mutilados, odiando a guerra que fizemos, teríamos que justificar nova­ mente a extorsão capitalista; teríamos que mentir sem parar a nossos alunos, inculcar-lhes uma moral essencialmente con­ testável, que não tem relação alguma com a verdadeira moral que praticamos e ensinamos. O que se gostaria, nós o sabemos e vemos muito bem, seria que continuássemos a utilizar o sistema imoral e antipedagógico que prepara, não homens, mas servidores dóceis de um regime; gostariam de obrigarnos, a nós, educadores proletários, a servir sem reservas à escola da classe burguesa. A isso dizemos não. Somos educadores. Nosso primeiro dever é respeitar as crianças que nos são confiadas, educá-las, prepará-las. Para isso, opomo-nos a todo dogmatismo que se justifica por consi­ derações extrapedagógicas. Não estamos a serviço de governos que passam, nem de regimes que mudam; estamos a serviço das crianças, a serviço da sociedade para a qual queremos prepará-las, segundo as técnicas da verdade e da liberdade, fe­ lizes e orgulhosos de apoiar-nos, para isso, em todas as forças que buscam o mesmo objetivo de libertação e de renovação.”1

DESIGUALDADE NA FORMAÇÃO DOS PROFESSORES

Constantemente se verificam diferenças de comportamen­ to e de cultura entre professores famosos, seguros de sua capa­ cidade e notoriedade, e professores que se dedicam ao empirismo pedagógico e à luta contra o conformismo escolar. Os professores do povo — e especialmente Freinet, que sem­ pre luta pela cultura em sua função educativa, em suas leitu­ ras, em seus escritos — têm uma consciência muito nítida das 82

insuficiências de sua formação primária. Os Mestres que hon­ ram a Educação Nova com seus escritos com sua ação são uni­ versitários: Binet, Decroly, Claparède, Montessori, Dewey, orientaram-se para a biologia ou para a medicina. Estão de acordo em dar à função e aos problemas da educação uma am­ plitude científica que — ao menos na aparência — justifica e apóia suas inovações pedagógicas e consolida sua fama: medi­ cina, biologia, pedagogia são disciplinas complementares que abrem um largo campo de experiências. Cabe constatar que esses professores adquiriram, através da prática médica ou da biologia, uma idéia muito nítida da unidade orgânica e psíquica da criança. Mais do que todos os outros pedagogos, suas experiências clínicas os incitam a rom­ per com a ciência fragmentária de uma psicologia das entida­ des consideradas in aparte umas das outras: todas as faculda­ des são integradas numa personalidade, como os órgãos em um organismo. A unidade do ser não é estática, mas genética, funcional e dinâmica. E isso em função do meio com o qual compõe um todo e reage de modo espontâneo. Não se pode­ ria justificar melhor as razões da livre expressão. Para Freinet, prático politécnico, essas idéias são muito simples, até banais; nascem naturalmente da vida em ação. Estão, em cada um de nós, no informulado, como sombras de pensamento que aguardam a hora de eclodir, conseqüência inelutável da vida que se organiza. No entanto, a especialização não se arrisca a vir ao encon­ tro dessas naturais e evidentes constatações? Binet, Decroly, Montessori especializaram-se na medicina dos anormais e aleijados. Enquanto especialistas, criaram téc­ nicas, um instrumental, jogos, testes, adaptando-se às crian­ ças débeis, lentas na compreensão. Esses casos excepcionais exigem a presença constante e conscienciosa do educador-médico, para fazer com que a criança retardada recupere etapas mais ou menos seguidas, para sua adaptação ao meió. O pa­ ciente deve educar-se, construir dentro dos limites do instru­ mental educativo. No caso de crianças anormais não existem, ao que parece, outras soluções, e ós resultados são certamente positivos e marcaram a pedagogia institucional. “Mas devemos louvar sem reservas esta origem e esta tendência de uma facção importante da educação nova con-. temporânea? 83

Dela lucramos, é verdade, o ensino sob medida, a neces­ sidade do interesse funcional, sem o qual não vibra nenhuma fibra do ser amorfo, a individualização do ensino, que permite a cada aluno caminhar melhor em seu próprio ritmo, a mate­ rialização e a experimentação que corrigem pouco a pouco o intelectualismo exacerbado no qual estávamos morrendo — conquistas estas de cuja importância nunca seria demasiado falar no processo de modernização pedagógica. Mas não haveria também graves perigos em filiar-nos assim, sem reservas, à educação dos anormais, e não seria hora de reagir para a promoção de uma pedagogia mais na­ tural e mais humana? 1.°) A pedagogia dos anormais nos ensina a escalar pru­ dentemente, passo a passo, no caminho da compreensão, da aquisição do saber e da ação. Ela esquece que existem indiví­ duos que são capazes de subir a escada de quatro em quatro, ou que até de um só impulso chegam ao topo, e para os quais é sumamente enervante e um tanto debilitante marcar passo no mesmo lugar. 2.°) A pedagogia dos anormais valorizou o ensino con­ creto e a experimentação, mas também o material didático e os jogos. Constatamos, nesse terreno, uma verdadeira regressão que, sob a capa do progresso, limita os vôos e as audácias. 3.°) Decroly valorizou a necessidade da observação minuciosa, peça por peça, fio por fio. Teve ótimo resultado entre os anormais. Mas negligencia totalmente uma outra observa­ ção, que age segundo outros processos sintéticos, pelos senti­ dos e com possibilidades por vezes ainda misteriosas; a obser­ vação que se faz como um raio, que vê num piscar de olhos aquilo que horas de observação dirigida não conseguiríam fazer descobrir.”²

Decroly e Montessori recorreram a controles adaptados de seus alunos, à progressão gradual, à passagem para situa­ ções de dificuldades hierarquizadas, inteiramente criadas pelo adulto. Daí o papel abusivo e, em certos casos, opressivo do professor, que se torna indispensável à conduta do aluno. Tais perigos são agravados pelo fato de que as classes Decroly, Montessori, Binet, Dewey funcionam com pessoas avessas a tudo o que diz respeito à prática pedagógica: assim, o professor-educador ignora as vantagens de tomar, cada dia, o banho de mundo infantil que revela a pulsação da comunidade esco­ lar, que o faz participar dessas trocas espontâneas onde não se pára de dar e receber, porque são tecidas nos próprios circui­ tos de uma vida sem fronteiras. 84

Freinet, com seus alunos, é constantemente como o pastor em meio ao rebanho, inteiramente devotado a sua vocação edu­ cativa. Julga-se apenas um homem de grande atividade polivalente, de grande bom senso e natural generosidade. Estes são, a seu ver, valores positivos, úteis a seu ofício. Tampouco tem complexo de inferioridade por sua formação primária. Não é um universitário, mas teve uma experiência real, pro­ funda, elementar, a do pastor-trabalhador, inscrita nele como tinta indelével sobre um pergaminho. Aquilo que pode fazer sorrir os especialistas e suscitar comiseração, é isto que lhe dá razão para confiar em si e para introduzir-se, sem apreensão, no meio do rebanho de crianças de que se encarrega. Há milêlênios, nas longínquas fronteiras da humanidade, e ainda hoje, no presente, a função de pastor fez e faz escola. Sem degra­ dar-se, sem que se percam as virtudes de uma ciência empírica imensamente rica, vai buscar bem longe, nas origens da vida, as próprias leis da energia cósmica. Ninguém, como o pastoreducador, será dominado por esta submissão necessária às leis da natureza, que são fatalidades implacáveis; ninguém será tão atento ao ritmo espontâneo do organismo íntimo da criatura; ninguém sentirá em seu ser, no mais longínquo do instinto reencontrado, as regras de ouro do modo de conduzir o reba­ nho, ao mesmo tempo suave submissão e perpétua autoridade. Escritores de grande experiência pastoral e de grande talento escreveram inúmeras e densas obras sobre esse avanço de um conhecimento intuitivo que entra, na plenitude da natureza, em contato com a criatura. Les hautes terres,3 de Elian J. Finbert — o mais lúcido e o mais genial dos pensadores-condutores de rebanhos — seria, se fosse preciso, a defesa mais comovente e mais autorizada de um novo humanismo: para atingi-lo, como já dissemos, é preciso tomar um outro caminho. Foi o escolhido por Konrad Lorenz, abandonando os laboratórios para uma pesquisa instintiva na colônia dos gansos selvagens. É por esse caminho, pelo simples faro de um ofício voltado para as potências elementares da vida, que Freinet entrará no coração do fenômeno universal da educação. E, nos momentos de interrogação e dúvida, quando o pensamento intelectual permanece em suspenso, acima dos problemas a sondar e re­ solver, é para os livres espaços das pastagens que se voltará, para apreender os processos de uma prática que põe o homem em pleno fogo das coisas vividas e ganhas. Domar um cão pastor é 85

uma obra educativa de grande sutileza, que só se orienta pelas necessidades, impulsos e sensibilidade do bicho impaciente por atingir as verdades de sua raça e de seu destino. Educar crian­ ças exige os mesmos processos, pautados pelo ritmo e pela es­ pontaneidade de seu organismo fisiológico e psíquico íntimo. É assim que, ao longo de toda a sua vida, a experiência pastoral será para Freinet o leitmotiv de sua experiência educativa. E face às dificuldades reencontradas no magistério, fará sempre um paralelo entre sua vocação pastoral e sua vocação pedagó­ gica, baseando uma e outra no prodigioso conteúdo da vida. “Você está errado, repreendia o velho pastor, em guardar tanto tempo no estábulo seus dois cabritos, deixando que se habituassem a só dormir no calor do curral, a comer na man­ jedoura e a seguir a mãe ou a balir ao se sentirem perdidos numa moita... Você verá, quando juntá-los ao rebanho: não serão nem mesmo capazes de “seguir”; deixar-se-ão morder pelos cães, quebrarão a pata nos deslizamentos ou se perderão nas falésias... A vida se prepara pela vida. Se você teme que seu filho faça um galo na testa, rasgue o avental, suje as unhas e as mãos, corra o risco de cair ou de se afogar, tranque-o em sua confortável sala de jantar, ou prenda-o na coleira quando você sair, com medo de que ele logo vá se juntar ao bando de crianças que, na rua, nos jar­ dins, entre pomares e bosques, realizam, intrépidas, suas primeiras experiências. Coloque em torno da atividade particular dele uma série de barreiras que, como o cercado do estábulo, impedirão seu filhinho de fazer trabalhar os músculos e os sentidos. Escolha atentamente os textos que lhe destina e os livros que lhe darão a imagem sempre falsa, pois é somente a imagem, desta vida que o chama imperiosamente. E continue insensível aos olhares de inveja que ele lança às atividades proibidas, como esses cabritos que, com a cabeça entre as cercas, dirigem seus olhares e seus sentidos para a natureza que os atrai... Escolha para ele uma escola bem conformista, onde não manuseará martelos, nem provetas, onde não comporá na im­ pressora, onde não será maculado pelo rolo de tinta, onde não se ferirá com a goiva que desliza perigosamente sobre o linotipo que se grava, onde não sujará os sapatos com a lama dos caminhos ou com a terra do jardim. Aulas e deveres... Deveres e aulas... É o espírito que chafurdará no lodo... 86

Você ficará espantado, depois, notando que seu filho é de­ sajeitado com as mãos, hesitante em suas brincadeiras ou tra­ balhos, inquieto e tímido diante das exigências do esforço, de­ sequilibrado em um mundo onde não basta saber 1er e escre­ ver, mas onde é preciso aprender por meio do corpo, com decisão e heroísmo. A vida se prepara pela vida.”4

SENSIBILIDADE E INTELECTUALISMO

Considero a sensibilidade como uma das propriedades fundamen­ tais de toda célula viva, o grande fenômeno inicial do qual derivam todos os outros, tanto de ordem fisiológica, quanto de ordem inte­ lectual. Claude Bernard

Essa ampliação da função educativa até as fontes do ins­ tinto e as influências do meio, essa interpretação da habili­ dade pastoral e pedagógica explicam, para Freinet, uma atitu­ de de desconfiança em relação a certos “especialistas do espí­ rito”. Aqueles a quem chama de: “Os escoliastas, verdadeiros ou falsos sábios, pensadores improvisados que não param dé exaltar as virtudes formativas da instrução, até fazer crer que esta é a única e decisiva de­ terminante do progresso e que é unicamente em virtude dela que se constroem escolas, que se educa o povo e se transforma o mundo.”5 É o intelectualismo que, por explicações abusivas, encadeamento de idéias lógicas, formais, dissocia a cultura e o pensamento dos dados realistas da vida: “A cultura moderna produziu uma defasagem perigosa entre a vida e o pensamento, um hiato entre o processo de evolução do organismo individual e social.”6 87

Através da leitura analisada e comentada das obras dos filósofos e psicólogos, Freinet teve uma idéia do conteúdo e da forma de certas “ciências do espírito”, e especialmente da psicologia científica. Se abandonou essa nobre confraria de mestres do pensamento, foi não apenas porque essas celebri­ dades em nada esclareciam seu caminho, mas principalmente porque arriscavam-se a confundir suas próprias pistas de pes­ quisa. O intelectualismo é um apanágio da cultura burguesa, contra o qual se deve lutar. Os mestres da Educação Nova, embora ciosos de prática pedagógica, não são, tampouco, estranhos a uma espécie de metafísica da ação, domínio reservado do intelectual. Assim são o professor Wallon e o professor Piéron, que Freinet encon­ tra nas reuniões do Grupo Francês de Educação Nova. Freinet irá censurar-lhes o fato de “se extraviarem” em uma psicologia de dados nocionais mais ou menos evasivos, que não esclare­ cem o fundamental para uma pedagogia prática e humana. Constata, de fato — principalmente entre os teóricos da Escola Nova — que uma teoria aparentemente perfeita no plano das idéias, na realidade é isolada da prática, deixada ao acaso do improviso, quando é na prática que se pode encontrar solução para os problemas da vida cotidiana. Isto é particularmente verdadeiro para a teoria peda­ gógica e filosófica de Dewey, o mais fértil teórico da Escola Ativa, que semeia pelo mundo tantas e tantas verdades essen­ ciais para o conhecimento da criança. Lamentamos que Dewey não tenha feito delas nenhuma prática escolar a ser promovida: a organização técnica da escola que propõe depende de dou­ trinas filosóficas, que ele justificará em sua concepção de uma escola-laboratório ideal, que nunca se realizará. Será simples­ mente pela crítica autorizada que ele entrará na prática peda­ gógica, pela análise de escolas novas americanas, criadas a sua revelia. A concepção de Dewey, baseada no princípio da continui­ dade (continuidade da criança na escola, da escola na socieda­ de, do homem na natureza), é mitológica, estranha à experiên­ cia vivida, e subestima o meio social construtor ou destruidor da personalidade da criança, segundo a classe social a que pertença. 88

“Temos grandes restrições a fazer às idéias de J. Dewey,” escreve Freinet em 1930, “notadamente sobre sua concepção da revolução cultural, sobre educação e sobre democracia. São páginas que os eventos dos dez últimos anos envelheceram, e cujas deficiências a recente crise que necessariamente atinge a escola americana vem sublinhar. Dewey fala da democracia de modo demasiado idealista; parece-nos ignorar certas reali­ dades proletárias de que depende a escola do povo, entre as quais devemos destacar sem cessar a alienação no regime ca­ pitalista, em todos os países do mundo.’”7

Nunca se encontra, nos escritos dos mais ilustres peda­ gogos desse tempo, a preocupação com a alegria de viver, essa noção universal de sensibilidade, experiência de prazer e de sofrimento tão importante na vida da criança. A busca do co­ nhecimento intelectual é sempre o fator determinante de todos os métodos dos pedagogos, preocupados, certamente, em asso­ ciar interesse e prazer a esses métodos, mas ainda mais preo­ cupados em acumular saber, donde uma certa confusão entre instrução e educação. Nada existe de semelhante em Pestalozzi, em Ligthart, em Makarenko, em Bakulé, sempre abertos à compreensão do drama de viver, apaixonados pela ação humanitária, estranhos, forçosamente, a toda atitude especulativa sistemática. É pre­ ciso ter sido companheiro das vítimas da miséria e da dor para sentir no mais profundo de si mesmo que toda educação deve principiar pela aproximação da alegria. A literatura infantil que, ao longo dos anos, ganha im­ pulso e densidade, fornece aos educadores Freinet documen­ tos de primeira grandeza sobre a personalidade psíquica da criança. Em inúmeros textos livres, em la Gerbe, nos Enfan­ tines, aflora a psicologia das crianças do povo, uma psicologia feita de sensibilidade, de espontaneidade, de sede de viver, apesar dos obstáculos e das provas inerentes à existência da infância proletária. São essas qualidades que se deveríam salva­ guardar e que deveriam servir de base a uma ciência global da psicopedagogia. Desde 1928, quando já havia alcançado coerência e eficácia em sua obra educativa, Freinet projetava novas perspectivas sobre a dimensão psicológica da livre ex­ pressão. 89

“A escola atual peca sobretudo pela fraqueza de suas bases psicológicas. Estudos recentes, como os de Piaget ou de Van de Zande, trazem esclarecimentos insuspeitados sobre o pensa­ mento infantil e as modalidades de aquisição do saber. ... O material impresso na Escola e o texto livre oferecem à psicologia e à pedagogia possibilidades de progresso que apenas podemos entrever. As melhorias pedagógicas estão condicionadas, em larga escala, às descobertas psicológicas e, sobretudo, pedagógicas. Ora, a ciência da educação ainda tateia, e a contribuição dos estudiosos mais geniais não pode bastar para resolver o problema de modo definitivo. Para conhecer, avaliar, ordenar e medir algo tão cambiante e fugidio como a alma da criança, precisamos de amplas en­ quêtes, baseadas em documentos precisos e realizadas em di­ versos meios e para diferentes idades. Os resultados obtidos por J. Piaget após o exame de al­ gumas centenas de crianças permitem-nos prever com clareza nossas possibilidades futuras. Pois nossos Livros de Vida e nossos jornais, onde se ex­ primem livremente nossos alunos, constituem, a partir de então, milhares de depoimentos sobre a vida e o desenvolvi­ mento infantis. Somos capazes, agora, de estudar a vida das crianças em todos os meios e em todas as idades: seus pensamentos mais íntimos, seus sonhos, suas brincadeiras, sua concepção do mundo, etc. Podemos definir de modo seguro os interesses e necessidades sobre os quais se pode apoiar a pedagogia do futuro. Essa enquete não será realizada por qualquer profissional mais ou menos fechado em suas teorias; a massa de profes­ sores primários, que vivem a vida das crianças e sabem tra­ duzir-lhes fielmente as manifestações, é. que será seu primei­ ro artesão. Não prejulgamos nossas forças e nossas possibilidades, e esperamos que psicólogos e pedagogos interessados em nosso trabalho se empenhem em nos ajudar em nossas pesquisas e realizações. ”8 Mas essas são perspectivas a longo prazo. Nesse ponto de realização de uma pedagogia que, pela livre expressão, prova que a criança é o artesão de sua própria cultura, os homens da prática esbarram em problemas psicológicos que a experiência não permite resolver no momento. Para eles não se trata de uma simples questão de cultura, mas de uma falta de maturidade experimental: ainda existe contradição entre a prática e a teoria. 90

Notas

1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8.

L’Éducateur Prolétarien, janeiro de 1933. Les Dits de Mathieu. Albin Michel. Les Dits de Mathieu. L’Éducation du Travail. Ibidem. L’Imprimerie à l’École, l.° de janeiro de 1930. L’Imprimerie à l’École, abril de 1928.

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Capítulo 4

A Escola Freinet Laboratório ao ar livre, esboço da escola do trabalho

“Entregue a si mesma, a criança, como o ani­ mal, como aliás a massa humana, permanece confinada nos gestos e processos instintivos. De­ vemos respeitar e utilizar este instinto, que é como a figura original da raça, mas tratar tam­ bém aí de inscrever lenta, minuciosa e obstina­ damente a marca, que desejaríamos generosa, de nossa geração.” L’Éducation du travail

Em 1935, Freinet, banido do ensino público, cria em Vence, a primeira escola proletária par­ ticular. É concebida como uma reserva de crian­ ças em uma natureza privilegiada, cuja alma será a escola. A experiência será ecológica, em toda a acep­ ção do termo: integrada na natureza, no meio, na comunidade de crianças e de adultos. No plano pedagógico, com toda liberdade, Freinet vai aprofundar suas técnicas, criar novas, amadurecer suas concepções sobre a educação pelo trabalho, descobrir as bases materialistas de seu Essai de Psychologie Sensible.

É preciso considerar como um acontecimento importante, na obra prática e teórica de Freinet, a criação de sua escola livre em Vence (Alpes-Marítimos). Prodigiosa experiência essa, da construção, arranjo, instalação, equipamento e funciona­ mento de uma escola nas desencorajantes dificuldades da pobreza. A isso se acrescentam, inevitavelmente, o peso da quantidade de crianças, em sua maioria subalimentadas e atra­ sadas na escola, as intrigas administrativas e, como conseqüência dessas desagradáveis realidades, a sobrecarga do responsável, dividido entre sua presença na escola e suas responsabilidades no Movimento internacional que orienta. Os encargos de uma militância social e política são o suplemento do fardo... Já contei em outra passagem os dados e peripécias dramáticos desta ação audaciosa e de grande tenacidade que, malgrado tantos contratempos, foi positiva.1 Na charneca provençal onde foi implantada a escola, Freinet vai reencontrar sua vocação camponesa numa obriga­ ção de necessidade vital de ligação com o meio. Por outro lado, 95

vai sentir a pressão constante da comunidade sobre as tendên­ cias egocêntricas do indivíduo. De repente, se encontra no seio de uma ecologia na qual o meio e a comunidade darão uma amplitude decisiva à educação que se torna, por força das circunstâncias, acontecimento cotidiano a ser vivido e resol­ vido. E, para si mesmo, também perspectiva intelectual de uma teoria orgânica, que se situa acima da simples teoria pedagó­ gica vivida até então. É do verdadeiro trabalho construtor que vai depender a existência atual e o futuro da pequena sociedade de crianças e adultos que uniram sua sorte para uma surpreendente aven­ tura. Como Makarenko, que trabalhou em circunstâncias eco­ nômicas, sociais e humanas semelhantes, Freinet fará, conti­ nuamente, a constatação de que o valor do indivíduo depende de sua capacidade de trabalho; um trabalho favorável ao mesmo tempo à comunidade e ao indivíduo, que se torna ele próprio ator eficaz e responsável. “Segura e sólida em seus fundamentos, móvel e flexível em sua adaptação às necessidades individuais e sociais, a edu­ cação encontrará no trabalho seu móvel essencial.” Trabalho pedagógico antes de tudo, para cuja realização a educação esbarra em inúmeras dificuldades, numa escola que é na verdade uma escola de alunos atrasados, tendo apenas uma dezena de crianças normais ou superdotadas. Trata-se, por­ tanto, de um efetivo que suscita uma experiência mais vasta mais homogêneas quanto à idade e ao nível mental dos alunos, mais homogêneas quanto a idade e ao nível mental dos alunos. Na alternância de fracassos e sucessos, Freinet vai então repensar sua experiência pedagógica. Suas concepções, definitivamente adquiridas, de uma es­ cola que respondia à realidade de uma educação ecológica, co­ locam em primeiro plano de seu ensino um estudo do meio local. “Para este estudo do meio local iremos buscar na verda­ deira vida da criança, na origem de suas sensações, de suas experiências e de suas descobertas, os elementos essenciais, os elementos básicos — os únicos sólidos e definitivos — de sua formação, de sua instrução e de sua educação. 96

Os manuais escolares, redigidos e editados em Paris, pre­ tendiam indicar a nós, professores primários de diversas re­ giões da França, e em todas as horas do dia, os pontos do pro­ grama para os quais deveriamos atrair a atenção de nossos alunos, ou mesmo os centros de interesse que iríamos oferecer à sua curiosidade. Reagindo contra eles, mostramos que nosso ensino deveria normalmente ter suas raízes no meio em que vivemos, através do trabalho efetivo que respondesse a nossas necessidades funcionais; que nossas crianças devem conhecer a geografia de seu país antes de estudar no mapa as linhas azuis que lhes dizemos serem rios e as massas amarelo-esverdeadas das montanhas; que a história da França não começa com os gauleses, nem com Luís XIV, mas com o estudo efe­ tivo dos traços que o passado próximo ou longínquo deixou a nossa volta; que antes de mergulharmos arduamente nas ciên­ cias abstratas de nossos livros, precisamos ser capazes de ex­ perimentar as possibilidades e exigências de nosso meio; que antes de resolvermos os problemas típicos de nossos manuais, é preciso ter pesquisado, computado, calculado tudo aquilo que, à nossa volta, necessita de medidas e contas; que o pró­ prio francês não se aprende por melo de exercícios friamente metódicos, mas inicialmente pela redação e pela leitura que motive nossa vida em comum, de todo dia. Eis o que é para nós o estudo do meio local: não um perigoso retraimento tradicionalista em relação às coisas que nos são familiares, à custa de todo desconhecido que a criança quer e deve, para crescer e educar-se, apreender com audácia. Poderiamos dizer que, pela atividade funcional e pela livre expressão, colocamos Incessantemente os pés na sólida realidade do meio, escavamos prudentemente as fundações que sustentarão para sempre as construções ulteriores. Mas através de nossa documentação, do cinema e do rádio, poderosamente motivados por nossas trocas interescolares, nossos olhos e nosso espírito transcendem constantemente esse meio restrito e elevam-se ousadamente em direção a conquistas que enri­ quecem de modo permanente os ensinamentos elementares do meio.”2

CENTROS DE INTERESSE E COMPLEXOS DE INTERESSE

Trata-se aí, dirão, dos centros de interesse decrolyanos. Sim e não, pois a introdução de novas técnicas (o texto livre, a correspondência interescolar, as conferências) vai dar à crian­ ça um comportamento de ator que personifica uma documen97

tação que, nos centros de interesse de Decroly, visa sobretudo a uma aquisição intelectual. Naturalmente em teoria, para De­ croly, os conhecimentos devem nascer das necessidades pri­ mordiais da criança, sendo que cada centro de interesse res­ ponde a uma necessidade fundamental, e daí seu prolonga­ mento que irá se enriquecendo ao longo de toda a escolarização, dos seis aos quatorze anos. No plano didático, deve-se temer que a compilação substitua o interesse inicial e que o aluno, progressivamente esmagado pela massa de documentos, seja esmagado por um ensino enciclopédico sem alma. Decroly reconhece centros de interesse “ocasionais” que se impõem à criança, que são tipicamente personalizados e que não poderíam servir de pretexto para a exploração pedagógico-didática. Mas certos adeptos de Decroly apegar-se-ão ao plano limitativo estabelecido pelo mestre e reduzirão a uma estreita sis­ temática os dados referentes ao dinamismo da vida da criança. Desde logo, nos primeiros contatos com a obra de Decroly, Freinet denunciará esse perigoso desvio do pensamento decrolyano. E permanecendo sempre ao nível dos interesses sen­ síveis da criança, da mobilidade e da curta duração de seus interesses, fará dos centros de interesse uma técnica mais ou menos passageira, ligada ao conteúdo da livre expressão, seja no texto livre, seja na expressão oral, seja nos acontecimentos vividos, individual ou socialmente. É assim que falará de Complexo de interesse; “Na falta de meios técnicos suficientes para responder à complexidade original dos interesses infantis, assentamo-nos numa concentração mais ou menos arbitrária em torno de certas tendências dominantes. Como essas revistas que li­ mitam sua atividade a um número reduzido de artigos, por não terem espaço suficiente, nem colunas especiais para res­ ponder às necessidades exageradamente fantasistas de sua clientela. Mas o comprador pelo menos tem a liberdade de sair e ir procurar em outro lugar o objeto que sente a neces­ sidade de possuir. Ao passo que a criança, na escola, está re­ duzida a se contentar com o artigo aproximado que lhe é oferecido. “É melhor do que nada", dir-lhe-ão, à guisa de consolo. Mas a criança se acomoda mal a essas meias-medidas, que às vezes traem mais a vida do que a servem. Mais que de centros de interesses, falaremos de comple­ xos de interesses. Nossa escola de trabalho está no centro da 98

vida e condicionada por múltiplos e diversos móveis desta vida. Cabe às crianças escolher em nossas prateleiras os ar­ tigos que mais lhes convenham. Que este complexo de interesses seja superior aos centros mais ou menos lógicos, ninguém duvidará. O que não per­ mitiu até hoje passar do formalismo de um à realidade viva do outro, foi apenas uma questão de técnica, como para o comerciante. Se resolvermos esta questão — e, por nossas técnicas pedagógicas e organização do meio escolar, acredita­ mos ter aí chegado — teremos dado pedagogicamente um passo importante no caminho da educação funcional. Pela prática da impressão podemos observar os vários interesses dominantes. Evitaremos, entretanto, dar ao inte­ resse único pelo texto livre diário uma espécie de investidura tradicionalista que logo reduziría, muitas vezes arbitrariamen­ te, o complexo. No decorrer das pesquisas que acompanharão esse texto, permitiremos que se exteriorizem e se exprimam outras necessidades relacionadas ao interesse inicial. Detectaremos, por assim dizer, a direção complexa segun­ do a qual se orienta a verdadeira vida das crianças. Nossa tarefa pedagógica consistirá em ajudá-los ao máximo para a realização manual, artística e psíquica de suas potencialidades dominantes. ”3 Portanto, os centros de interesses são assim adaptados à vida da criança, em sua existência cotidiana e histórica, e é a livre expressão que, com toda naturalidade, decide isso. Na Bélgica, em Paudure, um grupo Freinet vai se afir­ mando sob a ação militante de eminentes realizadores: Lu­ cienne Balesse e Jean Mawet são infatigáveis responsáveis por esta ação. Esta atividade é difícil de ser realizada no país de Decroly, onde numerosos adeptos do mestre ensinam uma pe­ dagogia de centros de interesse muitas vezes abusivos, mas de inspiração leal: os partidários das Técnicas de Freinet organi­ zaram-se na Cooperativa da Escola Belga, que se tornou a Edu­ cação Popular, e que reúne sempre adeptos preocupados com uma educação integral. Mas na época, se Paudure permanecia um núcleo vivo da pedagogia Freinet, alguns adeptos arriscavam-se a extrapolar um pouco o espírito e a prática instaura­ dos por Freinet. De tal modo que uma oposição tendia a se afirmar entre os partidários de Decroly e os partidários de Freinet. Em l'Éducateur de 5 de junho de 1938, Freinet escreve: 99

“Os belgas erram ao comparar, e mais ainda ao opor Freinet e Decroly. Não gostaríamos que nos colocassem na mesma condição dos criadores dos sistemas pedagógicos. Não tenho a pretensão de estar acima: apenas não estou no mesmo plano. (...) Não existe um Método Freinet. Sim, fui o iniciador do material impresso na Escola. Mas seria um perigo se nosso método se limitasse a essa técnica, se valorizasse uma ativi­ dade particular em detrimento das outras, se nos fizesse ne­ gligenciar os inúmeros recursos da vida, das descobertas e das experiências daqueles que nos precederam neste perigoso caminho. (...) O material impresso na Escola deve desempenhar seu papel, mas apenas seu papel. Não faremos dele um novo tirano, uma nova mania pedagógica. Ele esclarece, anima, impele à ação verdadeira, e isso já é muito. (...) Nunca dissemos que éramos contra Decroly. Ao con­ trário. Mas, atualmente, existem experiências chamadas decrolyanas que não resistirão à prática de uma pedagogia or­ ganizada fora de todo preconceito tradicionalista. Existem su­ ficientes princípios gerais vivos no decrolysmo para que pos­ samos deixar de lado e até combater os erros de técnica, e destacar somente a contribuição dinâmica do Mestre.” Mas voltemos à Escola Freinet: O comportamento escolar dos inadaptados oferece a opor­ tunidade de pôr continuamente em evidência a condenação de todo o método tradicional de que essas crianças foram vítimas. Elas são refratárias a qualquer esforço de atenção. Aqui, Freinet deu carta branca à atividade natural da criança: esta só recorre ao professor em casos difíceis e, mais do que nunca, Freinet está persuadido da inutilidade das ex­ plicações e pregações. Daí um novo slogan:

ABAIXO AS AULAS4

A aula é a fórmula por excelência do ensino tradicional entre quatro paredes. É prezada em todos os países do mundo, inclusive nas escolas novas, onde professores e alunos colabo­ ram para seu sucesso. É preciso destronar a aula, que serve ao 100

prestígio do professor, muitas vezes em detrimento da inicia­ tiva e do interesse das crianças, que se tornam passivas, contra a sua natureza: "O grande erro do ensino tradicional foi, em minha opi­ nião, a aula e os deveres que daí decorrem. É toda a técnica da escola tradicional que tentamos pôr abaixo, sabemos disso; é todo um passado de ilusões, às vezes generosas, que não tememos denunciar.” Freinet lança suas críticas especialmente contra a aula que valoriza o professor e que é a ponta-de-lança de uma pedagogia concreta: a aula de observação. Por várias vezes, ao longo dos anos, voltará a esse assunto: "Demoramos demais, a nosso ver, para estudar particular­ mente esta questão, que corre o risco de se tomar um cavalo de batalha para uma última investida do ensino tradicional contra a vida.” A observação não se impõe: ela é natural se a atenção é natural, se é suscitada pelo interesse; “não se faz beber o ca­ valo que não tem sede”. Para explicar seu pensamento, Freinet recorreu à analogia que lhe é habitual, pondo assim a realidade sensível na base do raciocínio: “O exemplo da foto deveria nos auxiliar. Você pode partir à cata de imagens com sua máquina precária, de lente de­ feituosa, e empenhar-se em captar, em hora morta e sem luz, os múltiplos aspectos de um fenômeno do qual gostaria de fixar a seqüência e, em oito dias, um ano, procurará nessa série de fotos turvas e sem clareza, uma única lembrança precisa daquilo que teria desejado registrar para sempre. É preferível esperar que o sol ilumine o espetáculo; você escolherá o meio mais favorável para obter o máximo de detalhes. Um vigésimo de segundo basta. Terá então uma foto que fala, reveladora, sensível, que traduzirá um momento de vida, e a transcrição, nesse momento de vida, de um es­ tado de alma e de um sentimento. 101

É o que tenta fazer o cinema, ao concentrar todos os ho­ lofotes, sobre o objeto ou espetáculo a observar, carregando-o de suspense, de mistério e afetividade. E o cineasta, que é obrigado a medir as reações do público, o sabe, muito bem: para que uma paisagem, uma ação, um objeto prendam o espectador, ele evita apresentá-lo exaustivamente sob todos os aspectos, nas diversas horas do dia, com enervantes expli­ cações... Sabe que o espectador quer mudança e que não quer “saber”, mas sentir e vibrar. Então o cineasta prende a atenção e conduz por cami­ nhos de mistério até essa passagem onde, emocionado e per­ turbado, você vê de repente, de estalo, com o máximo de acuidade e eficácia, aquilo que a observação mais atenta de nenhum modo teria revelado. Os pedagogos dizem também: para observar, é preciso suscitar e reter a atenção. Mas — notamos isso tantas vezes — suas aulas só põem em ação essa atenção de segundo plano de que fala Dewey. A atenção poderosa, aquela que mobiliza o ser por inteiro, projetando-o sem reservas em direção às linhas de vida reveladas, necessita essa concentração de ho­ lofotes, essa intensidade de iluminação sem as quais só se terá o impreciso e o morto. De modo algum fazemos essa crítica pelo pérfido prazer de tornar ridículos os professores apegados a suas aulas de observação. Estamos em busca de uma técnica de trabalho. Trata-se de escolher a melhor. E nessa busca não esquece­ remos que a aula expositiva não tem apenas defeitos. Certa­ mente que foi, no seu tempo, um progresso sobre o dogma­ tismo das aulas exclusivamente verbais e decoradas. Mas devemos e podemos fazer melhor. Não damos ênfase à observação sistemática, mesmo quando é aparentemente metódica, mas ao esclarecimento através da vida. Lembramo-nos que interessar a criança, pelo exterior, por um objeto, por um acontecimento que não é iluminado por nenhum lampejo afetivo, produz resultados precários. Apenas podem consegui-lo os educadores de elite que sabem, misteriosamente, colorir de poesia e sentimento os fatos mais neutros. Por outro lado, quando soubemos mobilizar, através da vida, a atenção funcional dos indivíduos, realizamos com isso, automaticamente, a conjunção das luzes que dará à atenção seu máximo de intensidade. Buscamos, portanto, esta vida; introduzimo-la na escola segundo as mesmas normas que os indivíduos usam, diaria­ mente, nas mais importantes atividades construtivas; ilumi­ namos fortemente, e esperamos o momento propício para ligar o botão que marcará para sempre a superfície sensível. Esta­ remos certos, então, de ter feito um trabalho bom e definitivo. O que por vezes inquieta os pedagogos é esse lado de imprevisto e de acidental que sempre atribuímos à explora102

ção de nossos interesses funcionais. O pedagogo dedica-se a dar suas aulas na hora certa, seja qual for o interesse; o emprego do tempo e os programas as prevêem e impõem. Tomemos outra vez o exemplo do cineasta que espera pa­ cientemente que o céu seja favorável à sua tomada de cena, que utilizará os raios brilhantes da manhã e não a luz gasta da tarde, e que por vezes se aproveitará de um momento de claridade para realizar, em alguns minutos, aquilo que não poderia ter sido obtido em dias inteiros de luz filtrada. Dirão: sim, mas existem os estúdios, com suas maquetes e suas luzes artificiais. É certo. Mas seria preciso saber o que representam de desperdício de energia, se a deformação que infligem à vida não é, por si mesma, um grave perigo e se, em última análise, não vale mais, como se viu em alguns filmes recentes de sucesso, retornando à vida e esperar, se preciso for, que o sol resplandeça. Tudo o que acabamos de lembrar não significa, de modo algum, que sejamos contra a observação e que lhe neguemos as vantagens e as necessidades. É a técnica desta observação que discutimos. Teremos, aliás, ocasião de voltar a isso, pois essas notas um tanto desordenadas não pretendem de maneira alguma esgotar tecnicamente o assunto. Enquanto esperamos, eis o conselho que damos: Desconfiem da escola tradicional, das aulas, dos exercícios. São processos aparentemente cômodos, consagrados pelo cos­ tume e cujos resultados metódicos podem ser cuidadosamente anotados em cadernos que são, efetivamente, modelos, ou em quadros que são muito bem-feitos e aprimorados para nos co­ mover. Interessem profundamente as crianças pela vida, por sua própria vida e pela vida que as cerca, liguem essa vida com a vida de crianças distantes, através da correspondência interescolar; motivem pesquisas e trabalhos através de textos livres, material impresso, jornal escolar, conferências, cinema e fotografias. Vocês verão então a criança agachada no quin­ tal, como Fabre diante de seus escaravelhos, em ação; terão o comovente espetáculo de uma equipe, ou talvez de toda a classe, cem por cento concentrada na observação de uma planta, de um animal ou de um pacote que chega de seus correspondentes e que revela uma flora ou uma fauna que lhes era desconhecida; vocês partirão para os campos, não para explicar, a cada momento, à maneira tradicional, a pedra em que você tropeça ou a árvore que roça, mas para pesqui­ sar, procurar, sondar, medir, como o cineasta que, no silêncio de seu escritório, preparou seu cenário e que, aproveitando o sol e o ar fresco, parte em busca de imagens. E as horas passarão; e não haverá mais recreio porque vocês terão feito a melhor das observações, aquela que abrange todo o ser por­ que corresponde ao ser.”5 103

Mas por que substituir as aulas? Pois afinal, na escola pública, os programas são a exigência do ensino. Quer se quei­ ra, quer não, as diversas disciplinas escolares (história, geo­ grafia, ciências, matemática) devem ser ensinadas. São, para a escola tradicional, a base da instrução da criança. Não é preciso dizer que nas escolas que empregam as téc­ nicas Freinet os programas são respeitados. Em sua escola, o próprio Freinet respeita igualmente esses programas, que po­ dem ser “vividos” pelo estudo do meio, pelas enquetes, pelas investigações, todos eles métodos de um conhecimento direto que vai servir de suporte a um conhecimento mais amplo, o qual exige uma documentação que se vai enriquecendo de ano para ano, classificada no fichário escolar cooperativo. Esta obra coletiva, assídua, conscienciosa, produz os do­ cumentos mais seguros, que serão classificados segundo os prin­ cípios de classificação decimal internacional. É Roger Lalle­ mand, fiel colaborador de Freinet, quem assume este longo trabalho de beneditino. Os documentos reunidos, fichados, examinados de perto na hora da avaliação, favorecem a intervenção do professor a posteriori, para um complemento de informação tão neces­ sário. De modo que se abrem diante das crianças as novas pers­ pectivas de um saber de continuidade dinâmica. Assim, é toda a personalidade infantil que, partindo de uma documentação básica, cresce em direção a noções gerais, dando unidade a aqui­ sições que progressivamente serão sínteses. Onde os programas secos, áridos, compartimentados impunham um esmagamento do ensino, aproximam-se e se interpenetram as disciplinas com­ plementares dos programas escolares.

O CONTROLE

Mas essas condições favoráveis de aquisição de saber nãopoderíam passar sem um controle que supervisionasse, ao mesmo tempo, as matérias ensinadas e o aproveitamento da criança nessas práticas escolares aparentemente anárquicas. 104

“A nova técnica, novo controle, através dos Planos de Tra­ balho e dos Certificados. Talvez não seja inútil lembrar que somos por um máximo de ordem e disciplina, mas ordens e disciplinas não formais e sim profundas, ordem e disciplina do trabalho. A prática da expressão livre e de sua máxima exploração pedagógica muitas vezes nos valeu a acusação de anarquismo. É certo que se um professor experiente, dinâmico, flexível, hábil, culto pode explorar um complexo de interesses com o máximo de proveito pedagógico e humano, e dentro de uma ordem e disciplina exemplares, um professor maltreinado, que não sabe seguir ousadamente as pistas, que hesita em conceder a cada um um pouco de realização que o entusiasmará, pode resultar num impasse característico da desordem e da ineficiência. Essa exploração pedagógica permanece ideal, como perma­ nece ideal uma sociedade na qual cada um trabalharia segundo seus gostos ou necessidades. Na prática, manteremos nossa organização escolar através dos Planos de Trabalho. Esses planos de trabalho, assim como o fichário, o jornal ou as conferências, não são uma invenção da escola tradicio­ nal. É uma técnica adulta adaptada à escola, mas exatamente com as mesmas motivações e finalidades. O que podemos dizer a priori é que o plano de trabalho, como o fichário autocorretivo, é uma técnica que apaixona as crianças. Por quê? Porque, como na vida, e levando em conta um certo número de imperativos externos, as próprias crianças decidem o que vão fazer, e porque podem trabalhar nisso segundo seu ritmo e nas horas que lhes convêm. Não devemos fazer crer que nossa pedagogia será cen­ trada apenas na fantasia ou no interesse imediato das crianças. Talvez seja assim no jardim de infância ou no maternal. Mas a partir do curso elementar, os interesses profundos são mais duráveis e permanentes. Como para os adultos, aliás: vêm-nos idéias, nascem projetos que nos entusiasmam. Apenas temos tempo de anotá-los em nossa agenda, pois a vida tem suas exigências. Somente na próxima semana increveremos esse projeto em nosso plano de trabalho, para o qual o professor poderá, no devido tempo, prever os elementos. Na Escola Freinet só muito ocasionalmente, muito imedia­ tamente, exploramos um complexo de interesse. O plano de trabalho é que é realmente centro de nossa organização, e suscita uma boa vontade, uma aplicação e uma tenacidade excepcionais, considerando-se que nenhuma recompensa vem sancionar o trabalho, a não ser a inscrição no gráfico. Fazemos um plano semanal. Certos colegas acharam o prazo um tanto curto e preferem um plano quinzenal. Com 105

crianças de treze a dezesseis anos, esse prazo pode ser prefe­ rível. Mas com nossos alunos, um prazo demasiado longo poria a perder o benefício do estímulo. Preferimos adiar para o plano seguinte trabalhos muito importantes que não puderam ser terminados.” Ver, na página 108, o gráfico que ratifica o trabalho da criança durante uma semana e no qual o comportamento esco­ lar de aquisição de saber e o comportamento social na co­ munidade estabelecem o perfil de sua personalidade. Um outro meio de controle das capacidades da criança são os Certificados:6 “A fórmula, a prática e a importância dos exames são, no complexo de nossa educação nacional, os elementos determi­ nantes da organização escolar e da prática pedagógica. Sabemos que, teoricamente, a escola não é feita para os exames, mas para a preparação adequada das crianças para a vida. Apenas os exames são a porta obrigatória pela qual se tem acesso às funções da vida, e é por onde se penetra com maior sucesso. (...) O que é grave nos exames atuais é que medem mal, ou antes, que não medem tudo o que deveria ser medido. Procedem um pouco como o alfaiate que escolhesse o tecido de um terno, determinasse a qualidade e a colocação do forro, das casas e botões, e deixasse de determinar o comprimento das mangas e a largura da cintura. Não podemos garantir que os alunos que receberam o cer­ tificado de conclusão dos estudos são os mais bem-formados. Talvez sejam os melhores em matemática, em ditado e reda­ ção, mas nem sempre são os mais aptos diante da vida. Os fracassos nos exames são desastrosos ao mesmo tempo para os alunos e para o professor. Para evitá-los, os educa­ dores são condenados à preparação das provas a toque de caixa, que é o maior perigo de nossa pedagogia. ... Buscamos, durante muito tempo, a solução para uma nova forma de provas, pela melhoria das práticas existentes ou pelo recurso aos testes. Nem uma nem outra teriam alte­ rado os inconvenientes dos exames. Foi fora da escola que fomos buscar modelos possíveis de fórmulas a considerar, e principalmente entre os escoteiros, dos quais adaptamos o complexo sistema dos certificados. De que se trata? 106

Partimos de alguns princípios diferentes dos de Baden Pawell. — Nossa pedagogia deve se orientar cada vez mais em di­ reção a uma pedagogia do trabalho. Terão, então, cada vez menos importância a verborragia teórica e as considerações abstratas. Munidos de instrumentos e de técnicas de trabalho, devemos estar em condições de mostrar a eficácia de nossa prática. — A escola atual não pode mais se contentar em controlar as aquisições técnicas das diversas disciplinas escolares. Outros elementos culturais, não estritamente intelectuais, intervém de modo decisivo no comportamento social dos indivíduos e em seu modo de vida. Lendo a lista de certificados que previmos, medir-se-á melhor a diversidade das tendências e das aptidões que a escola deve, a partir de agora, levar em consideração; Certificados obrigatórios: escritor, leitor, boa linguagem, historiador, geógrafo, engenheiro de águas, engenheiro do ar, engenheiro de plantas, colecionador de insetos, engenheiro de minerais, mestre do fogo. Certificados acessórios: coletor de frutas, legumes, plan­ tas medicinais, caçador, alpinista explorador, apicultor, criador de animais, cozinheiro, construtor, eletricista, químico, salvavidas, artista, impressor, gravador, ator, músico, cantor, oleiro, marceneiro, etc. A partir de outubro, na volta das férias, os certificados são postos à escolha. Uma semana por mês lhes é consagrada. No fim do ano escolar, durante uma sessão solene, é or­ ganizada uma exposição geral de todos os trabalhos. Na pre­ sença dos pais, os certificados são distribuídos. A prática dos certificados é preciosa para a orientação das crianças. Ao sair da escola, uma criança de quatorze anos podería se apresentar a um estabelecimento, a uma organiza­ ção, a um empregador, com uma espécie de pedigree garan­ tido. ”7

A Caderneta escolar não faz menção, como se pode adi­ vinhar, nem de notas nem de classificação. É para a criança um documento pessoal com valor de nível de instrução, de com­ portamento escolar, moral e social, com a fotografia da criança, que, de certo modo, lhe dá um significado humano. São pre­ vistas páginas em branco, nas quais são colados os gráficos dos planos de trabalho e mencionados os certificados sucessivos, obtidos durante o ano. 107

O JORNAL MURAL

A cada dia o jornal mural funciona, por assim dizer, como o termômetro da comunidade escolar na qual se insere a crian­ ça. Para isso, figuram aí as seguintes rubricas: Eu critico, Eu felicito, Eu gostaria, Eu realizei. Se a coluna das críticas aumenta, enquanto encolhe a dos elogios, se os projetos são raros e as realizações perdem em vitalidade, é necessário uma reparação. Se os mesmos nomes se inscrevem nas críticas às infrações à regra, é preciso ajudar os infratores a encontrar o bom caminho. O jornal mural, lido na sessão da cooperativa, no fim de semana, determina sempre uma tomada de consciência em favor da comunidade. Essas inovações (planos de trabalho e certificados, espe­ cialmente) marcam uma nova etapa de uma pedagogia baseada em instrumentos e técnicas que, por sua utilização, ampliam a ação pessoal da criança, em um meio que cada vez mais ajuda, oferecendo sempre os recursos da vida social. “Através do instrumento, o ser humano acelera a constru­ ção de seu próprio ser, transpõe em marcha acelerada as etapas de seu crescimento, cria a si próprio, constrói, elevase qual um deus que não vê limites para sua ascensão. (...) Temos, no instrumento e no trabalho, o elemento essencial da educação.” Resumimos aqui os instrumentos e técnicas de trabalho que são postos à disposição das crianças das escolas Freinet e cuja aquisição e emprego exigem a cooperação, em um novo clima de grande alcance educativo. Freinet provará que, em úl­ tima análise, o equipamento de uma tal escola não é mais one­ roso para cada aluno do que o da escola tradicional. • O texto livre, através da impressora e do linógrafo. • A correspondência e os intercâmbios interescolares. • A literatura infantil (Poèmes, Gerbes, Enfantines) . • A cooperativa escolar. • O estudo do meio local (pesquisas). 109

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O fichário escolar cooperativo. Os fichários escolares autocorretivos (matemática, geo­ metria, gramática). O desenho e a expressão artística (modelagem, cerâ­ mica, gravura, etc.) A música e o teatro livres. O plano de trabalho semanal (controle). Os certificados (controle). O jornal mural. O cinema. Vitrolas e discos. Máquinas fotográjicas. Gravador (desde 1947). Contato da escola com os pais.

Todas essas técnicas exigem uma instalação e uma orga­ nização adequadas em ateliês de trabalho: •



4 ateliês para o trabalho manual básico: 1. Trabalho no campo, criação de animais. 2. Ferraria e carpintaria. 3. Fiação, tecelagem, costura, cozinha, serviço do­ méstico. 4. Construção, mecânica, comércio. 4 ateliês de atividade evoluída, socializada e inteleclizada: 5. Prospecção, conhecimento, documentação. 6. Experimentação. 7. Criação, expressão e comunicação gráficas. 8. Criação, expressão e comunicação artísticas.

Eis algo que exige uma preocupação permanente de orga­ nização e funcionamento da classe e dos ateliês, e que expõe a coletividade a uma nova concepção da disciplina. Mas a prática que serve aos interesses profundos da criança dá, como vimos, um novo sentido à disciplina. “A preocupação com a disciplina está na razão inversa da perfeição na organização do trabalho, do interesse dinâmico e ativo dos alunos. "8 110

RUMO À ESCOLA DO TRABALHO

“É certo que não nos detivemos por muito tempo na jus­ tificação teórica de nossas técnicas. Isso é deliberado. O raciocínio aparentemente mais sutil e mais lógico é, a nosso ver, sem valor, se entra em contradição com os fatos e observações que os educadores são levados a fazer, cotidia­ namente, simplesmente com seu bom senso. Deixamos a outros as grandes especulações filosóficas, mesmo se devemos taxar de exageradamente primária esta atitude totalmente experi­ mental, que momentaneamente se recusa à explicação e à justificativa dialética.”9 No entanto, ao longo desses anos, vão-se firmando e am­ pliando os dados positivos de uma obra que se irradia. Desta quantidade é preciso fazer brotar a qualidade, depreender as linhas de força que orientam e iluminam nosso caminho; pre­ cisamos ir em direção a uma lógica dos fatos, que é a do sim­ ples bom senso popular. Ela mostrou seu valor bem antes de Descartes. Precisamos personalizar esta lógica, fazê-la nossa: ca­ be-nos elaborá-la. Precisamos achar as razões de nossos suces­ sos para mostrar-lhes a permanência, para hierarquizá-los, re­ gistrá-los no plano de uma generalidade que tenha valor de lei. Temos, para começar, os pontos sólidos de uma teoria pe­ dagógica: são os grandes princípios que orientam a Educação Nova, que serviram de base à obra dos grandes mestres teóricos e orientaram a nossa. O que não significa que devíamos nos contentar em seguir passivamente a linha que nos traçaram. Nossa experiência é diferente da deles pelos dados do meio econômico e social, pela formação individual e profissional. São essas diferenças que explicam que os princípios da Educação Nova têm, para nós, um conteúdo e ressonâncias freqüentemente muito distanciadas das concepções pedagógicas e filosóficas das Escolas Novas burguesas e que as palavras não têm, entre os teóricos intelectuais e práticos autodidatas, o mesmo sentido e a mesma importância. "... Existe uma palavra cujo emprego pode desviar os recém-chegados a nossas técnicas, e com a qual devemos ter todas as reservas: Liberdade. 111

Não, não somos pela liberdade total da criança, nem teó­ rica nem praticamente. Acreditamos que a noção de liberda­ de é um desses “guindastes metafísicos” que sempre se mano­ bra contra o povo e contra a própria liberdade. Não existe, nem na escola nem na sociedade, liberdade pura e simples­ mente. Tem-se a liberdade de trabalhar, a liberdade de se deslo­ car, de falar ou de escrever; mas então, naturalmente, essa liberdade — que é uma noção essencialmente prática — é su­ bordinada ao meio e à liberdade semelhante dos indivíduos com os quais vivemos. A realização de um máximo de liber­ dade de trabalho, de movimento, de expressão, supõe por isso um máximo de organização técnica, sem a qual a noção de liberdade será sempre apenas um engodo. Por isso é que, em nosso esforço de modernização peda­ gógica, damos sempre ênfase a essa organização técnica, que tornará mais favorável à educação as condições de vida e de trabalho das crianças. O interesse, como a liberdade, não é uma flor que desa­ brocha espontaneamente quando certas condições do meio são realizadas. Como a liberdade, ele é antes o resultado de uma multiplicidade de elementos que o suscitam, animam e sus­ tentam. Como a liberdade, é o espírito no qual se banha nosso comportamento comum. Mas não é o interesse a base essencial de nossa pedagogia. Não se tem interesse abstratamente, tem-se interesse por uma pesquisa, por um trabalho, por uma realização, e cabería aqui estudar metodicamente quais são as condições de trabalho que tornam possível um grande interesse: referência ao real e aos elementos de vida, liberdade no quadro de uma organização cooperativa, iniciativa e criação, clima de colaboração, e não de oposição e luta na classe. Se essas condições são realizadas, o interesse surgirá na clas­ se, não mais acidental porém permanentemente, não superfi­ cial mas integrado na vida profunda dos indivíduos e da classe. São esses elementos fundamentais de nossas técnicas que precisamos enfatizar. Experimentem usar o texto livre, motivado pelo jornal escolar e pelo intercâmbio: as crianças se interessa­ rão naturalmente pelos acontecimentos da vida interna ou ex­ terna, que lhes era indiferente. Levem seus alunos a experimen­ tar, em todos os domínios; a criar poemas, músicas, pinturas ou cerâmica, pesquisas científicas e técnicas: dizer que se “in­ teressarão” por isso é dizer pouco. A palavra exprime muito mal uma realidade que vai até à exaltação do ser, muitas vezes, aliás, em silêncio e na comunhão. Não tentem proceder ao inverso e suscitar — artificialmente ou não — interesses com os quais esperam mover uma máquina, que só pode funcionar a partir da fonte de energia. Mas que faremos com esse interesse que assim desencadea­ mos e suscitamos? Esta fonte mais ou menos poderosa que descobrimos, iremos monopolizá-la imediatamente ou deixá-la112

emos, canalizada, ir-se rumo aos campos que fertilizará? Este centro de interesse, nascido do texto livre, contentar-nos-emos em vivê-lo enquanto texto, ou saberemos explorá-lo ao máximo até fazer dele o motor de nossa classe? Esta exploração deve ser imediata ou pode estender-se por muitos dias? Será ela realmente indispensável ao bom rendimento de nossas técnicas? Sabemos que inúmeros são os colegas que se colocam essas questões e que hesitam em engajar-se em nossas técnicas por não se sentirem em condições de fazer jorrar essa fonte, e me­ nos ainda de utilizá-la e explorá-la”.10 “O eixo central de nossas realizações é, efetivamente, esta grande questão do interesse e do trabalho... O grande problema pedagógico permanece incontestavelmente este: através de que organização do trabalho, de que técnicas, a escola pode mobi­ lizar ao máximo as crianças, a fim de obter o máximo de efi­ ciência?” “... Por reação à triste e aborrecida escola, a escola nova pregou primeiro uma escola atraente. A essa criança, tão intei­ ramente vazia de reações profundas através das práticas tra­ dicionais, ofereceu-se primeiro o grande interesse do jogo. Somos contra tal educação, que está totalmente na linha burguesa da facilidade. Reprovamos essas técnicas, que foram uma etapa que consistiu em “atrair” a atenção da criança para nrocessos, que multas vezes assemelham-se ao charlatanismo. Mas sentimo-nos à vontade nesta reprovação, porque podemos afirmar que o jogo de modo algum é o instinto mais poderoso e mais profundamente dinâmico na criança: ao menos o jogo tal como é compreendido comumente, tão especificamente defor­ mado e desviado de seus objetivos”. TRABALHO-JOGO OU JOGO-TRABALHO O jogo e o trabalho, longe de se oporem um ao outro, são ambos as grandes funções, digamos, sincrônicas, na aprendiza­ gem; são, de essência instintiva, unidas geneticamente. Entre­ tanto, o trabalho tem uma prioridade orgânica: todo recém-nas­ cido na espécie animal executa, em sua vinda ao mundo, um trabalho motor instintivo, alimentar, sensorial, sem o qual não poderia garantir sua nova vida no meio que será o seu. O jogo é uma pré-aprendizagem de segundo estágio: “Não existe na criança necessidade natural de jogo. Existe apenas a necessidade do trabalho, ou seja, a necessidade orgâ­ nica de usar o potencial de vida numa atividade ao mesmo tem­ po individual e social, que tenha uma finalidade perfeitamente compreendida, na medida das possibilidades infantis, e que 113

apresente uma grande amplitude de reações: cansaço-repouso; agitação-calma; emoção-tranqüilidade; medo-segurança; riscovitória. É preciso, além disso, que esse trabalho salvaguarde uma das tendências psíquicas mais importantes, principalmente nessa idade: o sentimento de poder, o desejo permanente de superarse, de superar os outros, de alcançar vitórias, pequenas ou gran­ des, de dominar alguém ou alguma coisa... Segundo se consi­ dere um desses dois elementos, trabalho ou jogo, haverá um comportamento diferente para com os filhos, assim como na escolha dos livros de classe, do material de ensino, dos métodos de educação. ... Esse jogo, que é essencial ao animal pequeno como à criança, é, em última análise, trabalho, mas trabalho de crian­ ça, cujo objetivo nem sempre captamos, trabalho que de modo algum reconhecemos por que é menos terra a terra, menos indig­ namente utilitário do que comumente o imaginamos. ... Existe um jogo, por assim dizer “funcional”, que se exerce no sentido das necessidades individuais e sociais da crian­ ça e do homem, um jogo que tem suas raízes no mais profun­ do devir ancestral e que, indiretamente talvez, permanece como uma preparação inicial para a vida, uma educação que se pro­ cessa misteriosamente, instintivamente, não no modo analítico, racional, dogmático da educação tradicional, mas num espírito, por uma lógica e segundo um processo que parecem ser especí­ ficos à natureza da criança. Para a criança, esse trabalho-jogo é uma espécie de explo­ são e de liberação como ainda o sente, em nossos dias, o homem que consegue emprestar uma tarefa profunda que o anima e diviniza”.

Na falta de trabalhos-jogos, os jogos-trabalhos,

“que respondem às grandes necessidades orgânicas, funcio­ nais, sociais e vitais das crianças (...) por sua forma, por sua profundidade por sua subconsciente inspiração; os jogos-traba­ lhos são efetivamente apenas reminiscências mais ou menos atrasadas de um trabalho de que têm todas as características. ... Essa nova concepção do verdadeiro trabalho no centro de nossa educação e de nossa vida é essencialmente moral, como nos parece moral o natural funcionamento das peças tão bem ajustadas de nosso corpo. A harmonia e o equilíbrio individuais, a serviço da harmonia e do equilíbrio social, não são a própria finalidade da concepção mais elevada do bem moral? ... O trabalho assim compreendido, regenerado em sua ori­ gem desde a escola, podería tornar-se, efetivamente, algo como o elemento ativo de um novo humanismo, que seria suscetível de atingir e animar não apenas a elite mas todo o corpo social, ao qual traria, ainda, razões de lutar, de viver e de acreditar.”11 1 14

Notas 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11.

L’École Freinet, Réserve d’enfants. Ed. Maspero. C.Freinet: “Le milieu local”. L’Éducateur, 15-12-48. Pour l’École du Peuple. Maspero. Reedição, (L’École Moderne Française. Ed. 1944). C. Freinet, B.E.N.P. Plus de leçons. Novembro de 1937. L’Éducateur, janeiro de 1947. Les Brevets. B.E.N.P. 1947. L’Éducateur, novembro de 1955. L’Éducation du Travail. L’Éducateur Prolétarien. “Encore un effort de com­ préhension” fevereiro de 1938. L’Éducateur, novembro de 1961. L’Éducation du Travail.

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Capítulo 5

Da Prática à Teoria

“Quando a teoria se confunde com a prática, a ciência pedagógica está em seu auge.” Makarenko

Em sua reserva de crianças, laboratório aber­ to para a natureza e a comunidade humana, Frei­ net dá ao fenômeno da educação toda a amplitude da vida; uma vida potencial que se recria sem ces­ sar pelo automatismo de um feed-back vital, pro­ cesso universal de aprendizagem: a pesquisa ex­ perimental.

Uma nova via se abre dele rumo a uma psico­ logia materialista, que rompe definitivamente com uma psicologia mitológica das entidades.

EM BUSCA DE UMA PSICOLOGIA MATERIALISTA

Após uns vinte anos de uma prática pedagógica exercida nos mais diversos aspectos do magistério no primeiro grau (es­ colas públicas com alunos de cinco a quatorze anos — Escola Freinet mista com internato — obra cooperativa de adultos e crianças em escala mundial), Freinet provou a importância primordial da prática eficiente e generalizada. Na prova dos acontecimentos, passou do empirismo instin­ tivo individual ao empirismo experimental coletivo, que per­ mite o êxito progressivo através de conquistas parciais sempre reajustadas. É um método de trabalho de procedimentos cien­ tíficos: permite atingir uma habilidade com a qual o traba­ lhador domina sua obra, na qual pressente a lei que esclarece o fato singular, ligando-o à generalidade por todas as manifesta­ ções semelhantes da vida. O que efetivamente conta é que uma 119

obra participe da generalidade convincente, que é a mais ele­ mentar e a mais justificada das teorias. É a essa busca teórica de segundo estágio que Freinet vai se dedicar quando a guerra o arranca de sua terra, quando des­ faz seus laços humanos com o mundo da infância e de seus co­ legas de trabalho e de combate. Um período de pensamento especulativo vai se abrir diante dele. Isso significa que sua atividade prática está terminada? Nas condições degradantes dos campos de concentração encon­ trará ocasião de se dedicar ainda e sempre a sua vocação educa­ tiva. Nesse ajuntamento de homens os mais diversos, arranca­ dos da vida pessoal e social, será o artesão ativo de uma comu­ nidade de adultos, vivida na experiência a mais dramática. A livre expressão atingirá aí um valor humano e cultural de pri­ meiro plano. Nela Freinet reencontrará, a cada instante, as linhas básicas que, já com as crianças, lhe haviam permitido construir uma psicopedagogia pré-científica. Amarrado desde sempre — desde sua infância — a um pragmatismo de necessi­ dade e de eficácia, tem a convicção de que sua experiência profusa e generalizada deve apresentar todas as garantias de uma obra científica: só lhe faltam pontos de invariância. Fora de seu domínio pedagógico, Freinet já tem uma am­ pla cultura humana e uma filosofia de orientação decorrente do materialismo dialético. O pensamento marxista esclareceu para ele a revolta de 1917, vivida nas trincheiras e ligada à Revolução da URSS. "É preciso", como escrevia Henry Barbusse, “ir até o fim da verdade.” Era na prática um engajamento que justificava sua adesão ao Partido Comunista e sua militância na Internacio­ nal do Ensino. E era, para seu pensamento, entrar sem cessar no centro das contradições de qualquer sistema, inclusive o prodigioso sistema da Vida. Essa livre expressão, sobre a qual construiu toda sua obra, será por ele investigada até suas ori­ gens no fenômeno energético inicial da vida potencial. Nesta nova via, recorrerá a um mestre: Politzer. Em 1928, quando Freinet já havia garantido sua prática pedagógica pelos instrumentos e técnicas que são seu motor, quando já dirigia seus ataques à escola tradicional capitalista, é que leu este pan­ fleto, espantoso em sua lucidez iconoclasta: La crise de la psychologie contemporaine. Criticando, com verve de polemis­ ta, o formalismo de uma psicologia que só obtém seus títulos de nobreza na abstração, Politzer se perguntava: 120

“Como se pode hoje conceber uma psicologia geral que seja verdadeira e rigorosamente tirada da experiência?” Diante das concepções de uma psicologia mitológica pela suposta realidade das faculdades da alma — e portanto idea­ lista — Politzer buscava uma psicologia materialista, resultante do drama de viver e pura e simplesmente da vida cotidiana: “A psicologia científica só poderá ser aquela que se volte à verdadeira experiência psicológica, que é o drama. ... Uma ciência positiva deve ocupar-se de fatos reais. Deve haver oposição entre a psicologia que só tem por objeto um mito e aquela que tem por objeto fatos reais... Trata-se nada menos que da invenção de uma nova psicologia.” Quando, no campo de prisioneiros, Freinet escreveu seu Essai de psychologie sensible, não tinha a seu alcance os escri­ tos de Politzer, e foi bom não ter. Freinet não tinha uma men­ talidade de discípulo: era um desbravador, um construtor cujo dinamismo é feito de impregnação total de uma experiência de trabalho e de uma experiência cultural, indissoluvelmente ligadas entre si. Toda a amplitude filosófica do materialismo dialético o ligava a Politzer: a unidade na contradição. Por ou­ tro lado, sentia-se diferente dele por causa de suas origens pro­ letárias e da formação de sua personalidade. Politzer era um intelectual que manejava pensamentos e idéias, mas estranho a toda experiência prática, determinante para Freinet. É a ex­ periência real, produtora e criadora, que permite passar do conhecimento sensível ao conhecimento lógico e estabelecer, construir, a unidade orgânica da prática e da teoria. “Acredito”, escreve Freinet, “que existe uma lenta ascensão dos indivíduos de ocupação material à crescente majestade do pensamento inteligente e lógico. É o trabalho que destila o pen­ samento, o qual, por reação, age sobre as condições de tra­ balho.”1 É sempre sob a forma mais simples que Freinet apresenta as idéias complexas que são o alicerce de uma concepção nova da vasta experiência humana. E a idéia marxista da passagem 121

do conhecimento sensível ao conhecimento lógico era fértil em significação e importância. Testemunhava um processo único de unidade, de totalidade do ser, e abria caminho para uma psicologia materialista. Esta noção de unidade orgânica e intelectual havia sido vivida por Freinet sob a autoridade da globalização decrolyana e nos inúmeros processos da livre expressão. Ela será a estrutura dessas duas realidades sobre as quais se apóia a construção psicopedagógica de Freinet: o pensamento sensível e o trabalho. “... Seria curioso estudar o progresso humano em função justamente dessa interdependência desconhecida. Esse estudo nos revelaria até que ponto as puras especulações intelectuais e morais, se por vezes satisfizeram certos espíritos anormalmen­ te torturados pelo pensamento, também perpetraram erros que o simples bom senso dos trabalhadores em parte felizmente en­ frentou ou corrigiu. ... Retomamos paciente e obstinadamente o caminho na­ tural que leva indispensáveis funções básicas até a diferencia­ ção cerebral e social, através de um trabalho lento, freqüentemente oculto, de que não se distinguem de saída os efeitos ime­ diatos nem a grande importância, mas que não deixa de des­ tilar a essência ideal de que a cultura formal dá apenas ersatz. Por terem desconhecido a infalibilidade dessa trajetória vital, os “intelectuais” acreditaram na necessidade de impor de cima aquilo que não mais podia crescer a partir da base. Se­ gundo eles, o indivíduo estaria condenado a girar em torno de si no círculo maldito de suas atividades físicas se não fosse chamado por uma força superior — graça, fé, inteligência ou razão — para elevar-se acima da condição humana. Mas essa força nós a carregamos, indefectível e poderosa: é aquela que transforma o alimento grosseiro em influxo nervoso e em ele­ mento de vida, aquela que anima o esforço físico, motiva-o e o idealiza para elevá-lo à dignidade de instrumento da espiri­ tualidade. Basta não impedir essa ascese natural e, pelo con­ trário, facilitar o funcionamento normal de um mecanismo ao qual devemos restituir tudo o que traz em si de surpreendentes potencialidades. É uma revolução a ser operada, um curso a restabelecer em um leito há muito abandonado e entulhado pelos aluviões e troncos vivos que já retomam raízes. Não me iludo quanto às dificuldades da tarefa.”2 É assim que por argumentos de uma realidade sensível, biológica, Freinet abre novo caminho de uma psicopedagogia 122

materialista: o drama de viver se desenrola por efeito da sen­ sibilidade, propriedade fundamental da vida, mobilizada ao máximo em um trabalho de finalidade. Entre os dois, um pro­ cesso universal, a pesquisa, processo instintivo em busca de um crescimento da potência vital: tateia-se, pesquisa-se em direção a um objetivo que serve à vida.

O AUTOMATISMO, LEI DA VIDA: AS CONQUISTAS E A INTELIGÊNCIA

É através de conquistas que o ser — animal ou homem — atinge o objetivo que o recarrega da energia potencial indis­ pensável à continuidade de sua vida. “Uma experiência vitoriosa enquanto se pesquisa cria como que um apelo de poder, e tende a se reproduzir mecanicamente para transformar-se em regra de vida (7ª lei do comportamento mecanizado). ... Trata-se de reações automáticas, que não supõem nem observação, nem comparação, nem reflexão inteligente. O homem — e particularmente a criança — adquirem com a mesma facilidade que os animais o automatismo de certos re­ flexos: o barulho do balde de ração reúne as galinhas, os passos do fazendeiro acordam o porco, que se põe a grunhir; d recém-nascido sente fome quando aparece a mamadeira. ...Trata-se aí de uma regra de vida automática, indepen­ dente da vontade que adquire a precisão e a exigência de toda nossa vida vegetativa. É o estágio indispensável que se ancora e se fixa na vida subconsciente, e sobre o qual poderão edificarse outros estágios necessários à construção do indivíduo, tanto mais fáceis de erigir e tanto mais seguros quanto mais o pri­ meiro tiver sido definitiva e inabalavelmente fixado. ... Longe, portanto, de considerar esse mecanismo dos re­ flexos como uma aptidão inferior pelo fato de ser comum aos animais, devemos ver aí a própria condição do desenvolvimento ulterior. Devemos exaltá-lo e facilitá-lo.” Certos seres, animais ou homens, têm a faculdade de ra­ pidamente transformar uma conquista em automatismo, e assim liberar, de imediato, uma energia que se orienta para novas pesquisas, já com novos objetivos. 123

“Intervém aqui uma nova propriedade: a permeabilidade à experiência, que é o primeiro estágio da inteligência. A pesqui­ sa, de mecânica, que era, torna-se inteligente. É mesmo pela rapidez e segurança com as quais o indivíduo aproveita, intui­ tiva ou experimentalmente, as lições de sua pesquisa, que me­ diremos seu grau de inteligência. (8ª lei da pesquisa inteligente). A conquista realizada por outros engendra a mesma repe­ tição automática ao inscrever-se no processo funcional do in­ divíduo. Essa imitação de gestos que testemunhamos tem todas as características de nossas conquistas... são mais alguns elos que se juntam à cadeia de nossa própria experiência. (9ª lei do comportamento: a imitação e o exemplo).” Podemos, agora, representar de maneira esquemática o com­ portamento elementar e normal das criaturas pelo processo au­ tomático da experiência e da impregnação do exemplo. A maquinária vital opera por feed-back. Examinemo-la mais de perto:

Energia vital

pesquisa conquista

recarregamento de energia permeabilidade regra à experiência de vida

Que constatações simplistas! dirão os especialistas de uma psicologia transcendente. E, entretanto, já penetramos, ao mes­ mo tempo, nos fundamentos da cibernética e nos reflexos de Pavlov. Já estamos de posse dos primeiros dados da obra de Freinet. Isso significa que nesse esquema podem assentar-se os se­ guintes dados fundamentais: — Ligação orgânica do indivíduo com o meio, no qual encontra seus recursos energéticos. — Unidade devida à organização do sistema vivo — ou artificialmente vivo — tendo poder de recriar energia e de res­ tabelecer automaticamente seu equilíbrio (feed-back). 124

— Valorização da importância fundamental do automatis­ mo, liberador da nova energia. — Simplicidade inicial dos comportamentos, pela econo­ mia de meios e de esforços. — Sincronização das funções somáticas e psíquicas pela permeabilidade à experiência. E aqui chegamos ao centro das aprendizagens. Natural­ mente, os esquemas têm o inconveniente de serem um atalho ou uma condensação abusivos do pensamento: pedem desen­ volvimentos mais aprofundados numa dialética permanente da ação e do pensamento. E isso é o que contém o Essai de Psy­ chologie Sensible, no qual teoria e pedagogia se interpenetram numa coerência que não deixa lacuna, apoiadas que estão em pontos de invariância que têm valor de lei (24 leis ao todo, nas quais se baseia a demonstração). Freinet, continuando seu movimento materialista, tinha o projeto de abordar um terceiro nível de sua obra, centrado na pesquisa experimental, apoiando-se nos princípios fundamen­ tais da teoria de Pavlov e da cibernética. Sobre isso informava seus colegas desde 1952, determinando as linhas mestras dos de­ senvolvimentos ulteriores de sua obra teórica, numa interven­ ção em Congresso que, por mais lacônica que tenha sido, suben­ tendia futuros desenvolvimentos. “Referimo-nos com certo agrado às teorias de Pavlov. Minha experiência com a pesquisa, baseada no traço que deixa no indivíduo a conquista que se torna automática, é o re­ flexo condicionado que se inscreve no comportamento material e automático do indivíduo. ... Todo o processo, no segundo e no terceiro graus, da ex­ periência paulatina da pesquisa que se vai diversificando para atingir as zonas mais evoluídas do organismo, é a teoria dos re­ flexos que, partindo das zonas inferiores (fisiológicas), levam sua ação até a zona cortical, onde influenciam o pensamento, que assim se torna como que uma emanação dessa pesquisa com­ plexa. .. .Minha psicologia sensível está igualmente de pleno acor­ do com Pavlov quando este restabelece nas concepções fisioló­ gicas, médicas e psicológicas certos processos normais automá­ ticos, de base materialista, que se elevam aos mais altos destinos do ser pensante e afetivo. Em minha psicologia sensível — e estou feliz em encontrar para ela uma explicação científica em Pavlov — não há uma inteligência-entidade, que seria concedida em dose mais ou me­ 125

nos generosa por forças ou destinos exteriores ao indivíduo. A inteligência se cria, se edifica, é apenas o resultado da Pesquisa Experimental da série mais complexa dos reflexos condicionados que se tornam, pela experiência e no correr do tempo, reflexos incondicionados, de uma permanência e segurança inigualadas.”3 Por outro lado, em uma entrevista ao professor Évelyne Nguyen-Thi a respeito da aproximação da psicologia sensível de Freinet e da psicologia materialista de Pavlov, Freinet es­ clarecia: "... Tenho intenção de retomar a teoria dos reflexos con­ dicionados e não condicionados de Pavlov, para mostrar sua se­ melhança com a concepção da Pesquisa Experimental. Certa­ mente, não tenho nem a competência, nem os meios técnicos, nem os laboratórios, nem os recursos financeiros para levar a cabo tal projeto. Mas creio que neste ponto de uma experiência coletiva eficiente, podemos tentar explicar e, em carta medida, demonstrar, quais as forças sensíveis que registram a experiên­ cia e das quais o automatismo é a base. ... Se o pensamento é o resultado complexo da experiência de pesquisa, em todas as atividades humanas, de toda uma série de conquistas que se inscreveram no organismo, como o robô os grava em sua memória, seria insensato pensar que o que está no final da cadeia já não tem poder algum sobre os elos que o produziram. É um erro acreditar que a experiência pela pesquisa só existe no início, ao nível da criança que acerta seus primeiros passos ou constrói experimentalmente sua lin­ guagem. A pesquisa experimental prossegue, cada vez mais com­ plexa, e a pesquisa científica se faz através da Pesquisa Expe­ rimental.”4 “Estamos no caminho certo — dizia Freinet a seus colegas — pois é o seguido pelos inventores de instrumentos autogovernados, que se dedicam a criar máquinas sutis que imitam o com­ portamento dos seres vivos. Assim são as tartarugas de Grey Walter ou o homeostato de Ashby. Esses homens de ciência, que tentam reconstruir um pensamento de base materialista, tive­ ram que buscar-lhe as verdadeiras bases experimentais e os pro­ cessos mais simples e mais seguros, nos automatismos resultantes da pesquisa. E, assim fazendo, entram inevitavelmente no do­ mínio dos reflexos condicionados. ... As tartarugas eletrônicas de Grey Walter agem por pes­ quisas sucessivas: esbarram em obstáculos e tentam dominá-los. Não conseguindo, elas os contornam e vão numa direção dife­ rente, rumo àquilo que é, para elas, uma conquista: a carga elétrica que recarrega suas baterias. Certos servorganismos têm até uma “memória” do fracasso. Mas o que lhes falta é a per­ 126

meabilidade à experiência, as potencialidades dos instintos, as previsões construtivas do futuro. Para dar uma idéia da fecundidade desse caminho de pesquisa, diremos apenas que o homeostato de Ashby encerra cerca de quatrocentas mil soluções para reencontrar seu equilíbrio. ... Podemos nos perguntar por que, com seus bilhões de células nervosas e de conexões, o cérebro humano nos deixou no impasse em que a humanidade corre o risco de perecer.”5 Se Freinet aborda com serenidade a contribuição da ci­ bernética, em suas tentativas de assimilar os sistemas autogovernados mecânicos aos sistemas autogovernados vivos, não é para seguir os tecnocratas num caminho científico que colo­ ca a humanidade no perigo do progresso. É antes de tudo para achar uma base analógica que faça compreender a grande sim­ plicidade do fenômeno da vida. Por que as leis da vida não seriam de uma grande simplicidade universal generalizada, se as relações do ser organizado — planta, organismo unicelular, pluricelular, homem-pensante — casualmente são idênticas? Já que essas relações são baseadas nos mesmos automatismos, já que esses automatismos têm uma finalidade que é a busca da estabilidade pelo feed-back, que lhe assegura a eficácia? Pode ocorrer que o princípio retroativo seja ainda aprimorado, tor­ nando-se necessariamente mais complexo, mas de toda manei­ ra oferece uma base materialista ao comportamento e, a partir daí, abre novo caminho ao conhecimento das ciências humanas.

RUMO A UMA PSICOLOGIA NATURAL E COLETIVA

É nessa via da intuição experimental, resultado superior e sutil da pesquisa experimental, que Freinet tenta engajar seus colegas desde que retomou em mãos e reconstituiu seu movimento, disperso e atingido pela guerra e pelo fascismo. Muitos nomes foram apagados para sempre desse grupo cria­ dor e combativo, que se dispõe novamente a enfrentar dificul­ dades acrescidas pelas condições econômicas e culturais do após-guerra. 127

Freinet já redigira suas principais obras, que são Essai de Psychologie Sensible, L’Éducation du Travail, L’École Moder­ ne Française. Tendo as técnicas Freinet novamente se irradiado, sem problemas no piano de um entusiasmo coletivo reconquistado, Freinet vai dedicar-se a introduzir na prática escolar a obra teórica de que deverá resultar um novo marco de criação e de conhecimento. Após a guerra, a falta de papel atrasou, infe­ lizmente, em alguns anos a publicação do Essai. Mas a partir de 1948 Freinet já organizava as Comissões sobre o Conheci­ mento da criança, trabalhando com documentos reunidos em cursos, e que eram publicados regularmente na revista L’Édu­ cateur. Não havia razão alguma para que a obra coletiva, que havia garantido o sucesso de uma pedagogia da livre expressão, não fosse novamente eficaz na pesquisa psicológica, segundo aspecto de uma ciência unitária da educação. Os aconteci­ mentos conduziam Freinet a tentar ativar a psicologia coletiva sonhada por Politzer, em oposição a uma psicologia individua­ lista dos mestres, cada qual oferecendo “sua” verdade como ciência definitiva.6 Mas, agindo assim, Freinet destaca a necessidade de 1er as obras daqueles que abriram novos caminhos, e especialmente Freud e Pavlov: “Não nos contentaremos, nesses estudos, em lhes apresen­ tar resenhas de leituras. Nossa preocupação maior nem mes­ mo será de saber se o que delas dizemos está realmente de acor­ do com o ensino dos mestres. Dedicar-nos-emos a aprender, em suas obras de incontestável fertilidade, o essencial de tudo aquilo que pode nos ajudar a construir um método natural de psicolo­ gia. Ele não terá, talvez por muito tempo, a aquiescência oficial, mas constituirá para nós um grande progresso. Evitarei, aliás, oferecer teorias; é sobretudo experimental­ mente que ajustaremos nossas concepções às recentes desco­ bertas de uma ciência que ainda não está suficientemente se­ gura de si mesma para negligenciar os ensinamentos da expe­ riência e do bom senso.” Assim, a prática experimental vai revelar-se como psico­ logia experimental e colocar os praticantes nos primeiros passos de uma ciência das aprendizagens. Freinet domina seu tema, que será, ao longo de toda sua vida, a realização de uma psicopedagogia, na qual vale lem128

brar, teoria e prática se interpenetram em todos os níveis. Do­ mina seu tema como praticante e como teórico, orientado pelo materialismo dialético. O que equivale a dizer que sempre verá unidade na contradição, seja no plano social, seja no plano ex­ perimental, seja no plano teórico. É operando num caminho leal e natural, com sua Reserva de crianças de Vence, que aprofundou o sentido real e o alcan­ ce, das contradições na vida da criança: a vida é sempre uma corrida de obstáculos e é pesquisando que se aprende a domi­ ná-los, antes mesmo de saber o porquê do sucesso. Freinet vai considerar a criança em sua trajetória histórica herdeira de um passado e de um presente que a situa em constantes antago­ nismos, e um futuro que já se delineia em um comportamento individual e social. São essas considerações que justificam o Perfil Vital da criança, elemento de conhecimento desta e, por isso, base de sua educação. O desenvolvimento do indivíduo não se faz sob a influência de imperativos categóricos, sejam de inteligência, de afetividade ou de razão. ... Podemos afirmar que é sempre na base de obstáculos — mais ou menos difíceis — que se posicionam através da vida da criança, que se colocam, para o indivíduo, os problemas mais determinantes. ... Observando na criança as limitações fisiológicas ou as oposições mais ou menos superáveis do meio — físico, familiar ou social — teremos o esquema dos combates, vitoriosos ou não, que o indivíduo terá que travar para realizar seu destino e sa­ tisfazer sua necessidade vital de poder. Munidos desse perfil vital, poderemos então ajudar de modo eficaz as crianças a triunfarem sobre os obstáculos, para vive­ rem uma vida mais harmoniosa e mais útil. ... Na verdade, é realmente a nossa concepção do processo de civilização que deve ser reconsiderada, como deve ser recon­ siderada a falsa ciência que por muito tempo escorou um mundo que desmoronava.”7

Notas 1. L’Éducation du Travail. 2. L’Éducation du Travail. 3. L’Éducateur, 1952. 4 L’Éducateur culturel, fevereiro de 1954 129

5. 6.

7.

130

Congresso de Rochelle, 1952. “Será preciso habituar-se à idéia de que tudo o que se refere aos fundamentos da psicologia só pode ser definitivamente elaborado pelo trabalho coletivo, por­ que um sistema individual é sempre apenas uma cons­ trução arbitrária, e porque unicamente o trabalho co­ letivo pode resultar nesse “sistema” a que chamamos de uma ciência.” (G. Politzer, La crise de la psychogie contemporaine). Le Profil Vital. Ed. de l’École Moderne.

Capítulo 6 O Método Natural das Aprendizagens

O processo de vida é baseado na aquisição das aprendizagens. Essas aprendizagens, no começo da vida, de­ pendem exclusivamente dos automatismos do Ins­ tinto. É o indivíduo que deve construir as bases só­ lidas de suas aprendizagens, recorrendo aos adultos e ao meio como auxiliares que favorecem sua ascese: existe, então, educação. Se, do exterior, se impõe ao indivíduo um qua­ dro de condicionamento que não serve a suas ne­ cessidades naturais, existe domesticação. O Método Natural, baseado na livre expressão da criança e na pesquisa experimental, favorece as aprendizagens no sentido de um trabalho genético, que responde a todas as exigências do homem.

DO INSTINTO À INTELIGÊNCIA

Todo organismo deve adquirir as aprendizagens que ga­ rantem seu equilíbrio e a continuação de sua vida. Por si mesmo, por automatismos instintivos, o ser sabe conduzir suas aprendizagens no meio que lhe é específico. “Nesse primeiro estágio, no começo, é a vida vegetativa que importa especialmente. É ela que dará ao organismo sua força e seu movimento. Nosso corpo tem sobre a máquina essa supe­ rioridade maravilhosa que tende, não ao desgaste, ao cansaço e à morte, mas à exaltação permanente de seu potencial de força, ao recarregamento desse potencial, à regeneração e à compen­ 133

sação das deficiências; é um organismo perfeito que repara ele próprio o desgaste, cura suas feridas, corrige os próprios erros. Basta ajudá-lo”.1 Por conseguinte, é natural que toda aprendizagem se apóie nesses poderes de uma vida potencial que sabe o que faz. E é o que compreendem os alunos e as mães — repitamo-lo novamente — que confiam nesse motor inicial que é o instinto. “O instinto é o traço deixado em cada um de nós — trans­ mitido através das gerações — pelas infinitas pesquisas, cujo êxito serviu à permanência da espécie no meio que é o seu. (3ª lei do instinto à educação). ... A superioridade do instinto é a sua segurança, sua invariabllidade, o fato de ser inscrito no comportamento e de não ter que ser aprendido nem ensinado. É parte Integrante do ser, como a cor dos cabelos ou o tom da epiderme. O Instinto é.”¹ Mas, se muda o meio ao qual o indivíduo está organica­ mente ligado, a técnica de vida instintiva não mais enquadra a satisfação das necessidades nas novas condições. “As variações do meio obrigam o indivíduo a modificar a técnica instintiva através de novas experiências. A adaptação que daí resulta é a essência da educação. ... O grande drama da educação provém do desequilíbrio permanente entre o meio interno, por um lado, — que deve atin­ gir e precisa conservar, para viver, um mínimo de equilíbrio e harmonia — e um meio externo sempre em movimento, não possuindo, portanto, a estabilidade desejada. E esse meio hoje varia de uma geração a outra, a tal ponto que o instinto, que era outrora a técnica de vida soberana, quase sempre falha. Anti­ gamente, as gerações tinham tempo e lazer para se adaptar às modificações do meio. Hoje são os indivíduos que devem vencer este dilema: reencontrar o equilíbrio ou morrer”? Felizmente, o homem é inteligente! Há séculos, psicólogos e filósofos esbarram num proble­ ma segundo eles fundamental, estabelecendo um paralelo — ou antes, uma oposição — entre o instinto e a inteligência. 134

O animal é irrevogavelmente submetido ao instinto, sem a aurora de um pensamento. A inteligência é a marca da no­ breza do homem. Existe uma etapa do pensamento? Entre o macaco — tão próximo do homem anatomicamente — e o “homem-pensante” Existe um hiato. Como explicá-lo? A questão, de prática, se torna exclusiva­ mente especulativa. Voltar-se para o sentido da reflexão, como o afirma Teilhard de Chardin, não esclarece o problema das aprendizagens, cuja urgência se faz sentir cada vez mais em um meio que se lança, a passos largos, rumo à incoerência e à catástrofe. Os fisiologistas são mais objetivos do que os filósofos e psicólogos, e menos pessimistas quanto aos poderes do fenô­ meno Vida, que observam numa vastíssima extensão. Por que partir do macaco, como fazem insistentemente a maioria dos pesquisadores nesse domínio? Ampliemos o campo de obser­ vação até a mais ínfima condensação de vida organizada, até os protistas (animais ou vegetais), que já têm um comporta­ mento de seres vivos e que dão provas das “solidariedades fun­ damentais” de todas as formas de Vida. “Um paramécio* acaba por fugir da luz se durante um certo tempo, esta luz estiver associada a uma temperatura ele­ vada (42°) ”.³ Assim, exatamente como os cães de Pavlov, o unicelular é capaz de reflexos condicionados e mostra-se apto a adquirir comportamentos novos pela aprendizagem. Trata-se, aí, de efeitos do instinto ou da inteligência? Es­ peculação confusa de palavras, que não esclarece o problema. Uma coisa é certa: “a grande plasticidade da matéria viva e o poder de invenção das estruturas vivas”.4 EDUCAÇÃO E DOMESTICAÇÃO Para esse educador e pastor que, continuamente, liga co­ mércio com vida, nisso computando suas forças essas são coisas evidentes. * Grande protozoário (N. T.) 135

Freinet é ao mesmo tempo criador, pastor, educador e cam­ ponês. Sente a vida através da multiplicidade de todas as suas formas vegetais, animais, humanas. Recusa-se a traçar-lhe fron­ teiras. Concentra sua atenção acima de uma zoologia compaparada, visando as potencialidades de uma energia vital cós­ mica: tropismos e instintos têm para ele a mesma significação geral das forças potenciais dos seres organizados. São essas for­ ças que, em suas diversas funções, ele tem a obrigação de pre­ servar e, se possível, exaltar. Sendo profissional objetivo e eficiente, estabeleceu, como vimos, os fundamentos do comportamento básico de todo ser organizado:

Energia vital

pesquisa

conquista

retorno ao equilíbrio regra permeabilidade de vida à experiência

É o caminho novo e fundamental de uma reconsideração de todo o fenômeno cósmico da educação, considerado ao nível dos automatismes. É essa importante função dos automatismos que materia­ liza os animais sintéticos autogovernados dos cibernéticos, tais como as tartarugas de Grey Walter, cujo comportamento é dependente da conquista. “Nosso comportamento se organiza pela sucessiva sistematização de experiências bem-sucedidas que passam, então, a fazer parte de nossa natureza, de nosso ser, e que não podemos mo­ dificar sem prejudicar gravemente nosso equilíbrio imediato e a solidez definitiva do edifício. Não se trata de saber se devemos nos arriscar a aprisionar desde cedo o indivíduo em regras de vida que marcarão seu comportamento de maneira tão definitiva. As regras de vida são inelutáveis. Sua origem, natureza e orientação podem esca­ par-nos: não são menos indispensáveis ao crescimento orgânico da vida. Os primeiros elementos das fundações devem fixar-se antes que possa elevar-se o plano superior. É sobre esse dina­ mismo progressivo que devemos agir com a maior prudência, pois não basta apresentar aos indivíduos em formação fundações standards, que se sustentam e crescem em todos os terrenos, mas que não estão fixas na terra, que não estão ancoradas na obra e que se abalam à medida que se cresce, deixando o indi­ víduo inquieto, indeciso e impotente diante da difícil retomada de uma obra que foi defeituosa em sua origem”. 136

As fundações standards são aquelas que se usam em toda educação autoritária e tradicional. Neste caso, “as regras não são, de modo algum, concebidas em função

da criança, mas apenas em função do professor ou do grupo por

trás de cujo interesse ele mascara seu autoritarismo. «Agora não é mais a criança que planta os mourões sobre os quais cresceria sua construção. É o próprio adulto que coloca esses mourões onde bem entende, muitas vezes os reforça com estacas, e domestica a criança para que construa a partir dessa limitação. Estamos, então, no terreno da domesticação. Ora, domesticação não é educação. Na educação é a criança que cresce segundo linhas que respondem ao máximo a suas ne­ cessidades instintivas; é a criança que edifica sua construção com a ajuda do adulto. Na domesticação, o adulto decidiu pre­ viamente que a construção terá esta ou aquela forma, que tal parte do edifício será abandonada em beneficio de tal pavilhão, para onde será enviado todo o material destinado a elevá-lo o mais alto possível... É o que se faz com o cachorro policial, com as feras do circo ou com o cavalo de corrida... Pode-se igualmente domesticar uma criança como se domestica um ca­ chorro policial ou um cavalo de corrida, acreditando-se que isso é educação. Infelizmente, os meios dessa domesticação às vezes tomam um ar científico que ilude com grave prejuízo, e que desnorteia com caminhos falsos”.5 No comportamento inicial não há, entre animal e homem, nenhuma solução de continuidade. “As reações primárias do homem e da criança são, em todos os pontos, comparáveis às reações dos animais e de todos os seres animados em geral. A própria inteligência, que definimos como permeabilidade à experiência, é comum aos homens e aos animais. Existe apenas, segundo as espécies e os indivíduos, uma diferença de ritmo e de graus. E é esta diferença que nos per­ mite estabelecer uma escala elementar do comportamento inte­ ligente. O homem, entretanto, supera o animal, porque seu orga­ nismo, os meios onde viveu, os sucessos de suas experiências, suscitaram uma infinidade de pesquisas, cristalizadas em regras de vida, que marcaram as gerações. Assim, o homem parece como um eterno insatisfeito, sem­ pre em busca de uma nova solução para os problemas insondáveis do conhecimento e da ação. É na multiplicidade das pesquisas que visam satisfazer a multiplicidade das necessidades, que medimos nosso grau de humanidade. 137

No decorrer dessa infinidade de pesquisas criaram-se novas relações que o indivíduo utilizou para prolongar o poder e a ação de suas mãos. O homem inventou o instrumento, que é a base do progresso técnico contemporâneo. (Décima-quinta lei de um escalonamento da humanidade) A noção de instrumento e de seu uso tomou uma signifi­ cação cada vez mais ampla e sutil, à medida que foram sendo satisfeitas as necessidades fisiológicas e psicológicas, depois mo­ rais e intelectuais, conseqüências da vasta experiência humana. Existe, no instrumento, em seu uso, no trabalho que realiza, o elemento essencial das aprendizagens de que vai depender o valor da educação.

A APRENDIZAGEM ATRAVÉS DA PESQUISA EXPERIMENTAL

A literatura psicológica sobre as aprendizagens é profusa e diversa, e tende a englobar toda a pedagogia. Como se fazem as aprendizagens? Por repetição, por imitação, por associação, por estímuloresposta, por condicionamento operante, por reforço, por ensaio-e-erro, etc. . . Todas são soluções válidas no momento, mas que são con­ sideradas como um todo, quando são apenas um aspecto do problema, já que não estão ligadas por nenhuma teoria fun­ damental. É preciso, na aprendizagem, associar sempre “teoria expe­ rimental" e “prática experimental”, uma sempre levando à outra.1 “O mundo progride à medida que se aperfeiçoam as técni­ cas de aprendizagem. Esta é uma verdade essencial e de bom senso. Somente se as gerações que passam forem capazes de transmitir, às que as seguem, viva e ativa, a chama da vida, é que a corrida poderá continuar com o máximo de eficiência, rumo à continuidade da vida e ao progresso. 138

... Na medida em que não possuímos uma teoria válida da aprendizagem, só resta aos interessados a possibilidade de ae arranjarem sozinhos, segundo suas possibilidades pessoais ou ao acaso das habilidades aprendidas empiricamente. O começo de toda pedagogia sistemática deveria ser uma psicologia da aprendizagem; mas a psicologia da aprendizagem está ainda em seus primeiros passos. É o paradoxo para o qual nós mesmos tivemos que basear uma solução: os educadores são, efetivamente, entre os profis­ sionais, os únicos a operar sem método comprovado de apren­ dizagem. Pelo menos, os métodos empregados até hoje revela­ ram-se, na prática, ineficientes. Para sairmos dessa era do arte­ sanato tivemos que buscar experimentalmente uma técnica de aprendizagem que nos permitisse superar o impasse. É essa técnica baseada na pesquisa experimental que empregamos com sucesso nos Métodos Naturais de aprendizagem.8 ... Continuamos todos, nos acontecimentos da vida, a viver segundo os princípios naturais baseados na pesquisa experimen­ tal, e não nos processos científicos. A ciência de nada serve na maneira como aprendemos a mamar, a comer, a andar, a nos exprimir, a olhar a natureza a nossa volta, a ajustar os com­ portamentos, a trabalhar, a arar a terra, a cozinhar ou a pescar. No entanto, os educadores foram convencidos de que os conhecimentos escolares só poderíam ser adquiridos através de processos científicos, na realidade falsamente científicos. É pre­ ciso conhecer o 1 e o 5 antes da noção de 10, e não se deve identificar as palavras enquanto não se conhecem as letras, nem construir uma frase enquanto não se conhecem as palavras como se a construção natural da linguagem infantil não fosse a todo instante uma síntese baseada na vida, onde o elemento constitutivo desempenha inteiramente seu papel, nunca isola­ do do contexto de criação e de ação. ... Nossa psicologia da pesquisa experimental de modo al­ gum é uma invenção nossa ou uma novidade; é a norma da vida. Todas as nossas ações, mesmo científicas, têm por base uma pesquisa experimental. Será que apenas a escola seria aves­ sa a essa lei geral? ... É preciso que consideremos, primeiro, a própria natu­ reza da escola. Uma longa tradição nos fez acreditar, assim como aos pais, que a educação é uma atividade à parte, que não se organiza e nem funciona segundo as normas correntes. Existiriam segre­ dos a serem conhecidos, um comportamento especial a adquirir, reflexos a condicionar, sem os quais não se poderia ser admitido no reino do conhecimento; a escola seria — e é na realidade — como uma ilha intencionalmente cortada ao meio, onde só se entra na ponta dos pés, onde se fala uma linguagem particular, com palavras e uma entonação que têm maior valor na medida em que são diferentes da expressão ativa das crianças na rua e na família.

E o que é grave é que se construiu essa ilha materialmente. A escola, tal como é concebida, como templos onde tudo é rea­ lizado em função da divindade, não permite outra forma de funcionamento que não seja aquela de cujos erros nos ressen­ timos. Os poucos educadores conscientes que querem sair dessa ilha e reencontrar a vida são obrigados a derrubar paredes, arre­ bentar correntes, infringir leis e regulamentos — o que é sempre desagradável na carreira de um funcionário. As pró­ prias crianças, que não se sujeitam curvar-se à regra, são — como os seminaristas, julgados indignos do sacerdócio — rejei­ tadas para fora do santuário e obrigadas a buscarem por si mes­ mas, por outras vias, a cultura que a escola lhes recusou. Algu­ mas o conseguem, aliás com surpreendente sucesso. Não esperamos dessa escola que ela faça um “hara-kiri”. Mas somos obrigados a abalar as suas trincheiras até que seja a tal ponto desmoralizada, que desapareça, como todas as coisas inúteis, para sempre. Precisamos fazer uma ardente campanha em favor dos mé­ todos naturais, justificá-los pedagógica, psicológica e historica­ mente. Mas precisaremos, sobretudo, pôr em competição duas técnicas de trabalho; publicar os resultados obtidos pelos mé­ todos de livre expressão e denunciar os processos obsoletos da escola tradicional. Mas antes de tudo é preciso evitar ser sectário. ... Nunca editamos uma regra intransigente de pedagogia Freinet. Apresentamos todo um conjunto de experiências bemsucedidas. Nem mesmo dizemos que se devem empregá-las nas classes. Cabe apoiar-se nessas experiências bem-sucedidas para estabelecer os próprios pontos de apoio sobre os quais talvez se seja o único a poder passar, pois toda classe continua sendo única, como continua sendo única personalidade de educador”.9 Não faltam objeções a serem feitas a estas constatações de simples bom senso e a esses juízos de um experiente que do­ mina seus problemas, aparentemente primários. — Não será desejável evitar essas pesquisas à criança? — Pode-se confiar numa espontaneidade que se declara contra o processo científico? — O método natural não corre o risco de subestimar a cultura?10 Freinet responde longamente, e em todas as ocasiões, a se­ melhantes questões que revelam os preconceitos contra a pe­ dagogia Freinet. Pelo fato do Método Natural tocar as bases profundas e seguras da vida, porque dá uma unidade permanente a nossos comportamentos e aquisições de saber, é que é um meio incom­ 140

parável de aprendizagem, de técnica e de cultura. Os métodos naturais são os únicos que corrigem a fragmentação e a dis­ persão dos conhecimentos científicos: “Trabalho em migalhas”, diz um autor... Só há migalhas em nossa vida de educadores. Nem mesmo chegamos mais a juntá-las, o que, aliás seria em vão, migalhas amassadas e empelotadas que só dão pra fazer bolinhas, ótimas para servir de projéteis nos refeitórios. Migalhas de leitura, caídas de uma obra que ignoramos e que têm esse gosto de pão dormido, do pão que rolou muito por prateleiras e sacos. Migalhas de história, algumas mofadas, outras malcozidas, e cujo amálgama se apresenta como um problema insolúvel. Migalhas de matemática e migalhas de ciências, como pe­ ças de mecânica, signos e números que uma explosão teria dis­ persado cujo quebra-cabeças é um sacrifício resolver. Migalhas de moral, como gavetas que são deslocadas na complexidade de uma vida de infinitas combinações. Migalhas de arte... Migalhas de aula, migalhas de horas de trabalho, migalhas de curso... Migalhas de homens! Perigos de uma escola que alinha, compara, agrupa e rea­ grupa, ausculta e avalia essas migalhas. Urgência de uma educação que evite um desastre irrepará­ vel e que faça circular sangue novo na função viva e construtiva da pedagogia do trabalho”.11 Ao longo de meio século, inúmeras experiências pedagó­ gicas, realizadas em comunicação direta com a vida através da livre expressão em dezenas de milhares de escolas, com­ provaram as qualidades dinâmicas e eficazes dos métodos na­ turais. O aspecto mais marcante e mais demonstrativo da livre expressão é, sem dúvida, o desenvolvimento da cultura artís­ tica e literária da infância: desenhos e pinturas, poemas, des­ crições e peças de teatro, criações musicais, não são sucessos acidentais, e sim criações sem eclipse, que alimentam sem fim, exposições, revistas, encontros de crianças mergulhadas na cria­ tividade natural que as apaixona. Uma bibliografia imponente de obras infantis, tanto sobre arte, como sobre literatura e tea­ tro, é a prova mais comovente das potencialidades culturais da infância, até então esmagada pelo pensamento adulto. A criança traz em si poderes suficientes para prescindir da auto­ 141

ridade de professorezinhos, e para realizar ela mesma, os ele­ mentos de sua própria libertação cultural.12 O maior mérito de Freinet terá sido dar-nos, no início, o apoio de uma pedagogia de bom senso, no sentido nobre da palavra, porque serve à vida, apta a se tornar, na hora de uma compreensão mais profunda, uma espécie de água-mãe* de onde a criança pode renascer. Essas são suas chances de verda­ deira cultura. E, ainda e sempre, é preciso penetrar no senti­ do profundo da aprendizagem: É preciso mudar de técnica de aprendizagem “Se se dissesse de um criador de cães que 50% de seus ani­ mais são um fracasso e inaptos para caçar, se os proprietários de uma estrebaria vissem seus cavalos eliminados em todas as competições, concluir-se-ia, naturalmente, que a técnica de for­ mação e de aprendizagem é defeituosa, ou que aqueles que a aplicam são incapazes, ou ambas as coisas, pois um bom pro­ fissional não aceita práticas que depreciem sua competência e devotamento. As técnicas atuais de formação e de aprendizagem escola­ res fracassaram — e as estatísticas são ainda mais pessimistas — em 50 a 75% dos casos. O fracasso seria total se a vida, ainda não totalmente pervertida, não corrigisse os erros dos pedagogos. A conclusão natural disso seria que a técnica de aprendizazem deve ser mudada, e que os professores deveríam ser orien­ tados a trabalhar segundo métodos mais eficientes. Entretanto, educadores e pais de alunos são insensíveis a esta evidência. Registram o fracasso como se este não lhes dissesse respeito ou como se estivessem previamente convenci­ dos da inutilidade de seus esforços. É a criança que está errada. Antes acredito que julgam que as condições de domesticação de animais e de educação de crianças não são comparáveis, que as técnicas válidas para cavalos ou cachorrinhos não po­ dem, segundo eles, ser aplicadas aos homens. Para as crian­ ças, como outrora para os príncipes, é preciso idéias sutis, de­ fendidas e definidas por grandes mestres, palavras que muito impressionam porque não se compreendem; é preciso que se fale de inteligência, de memória, de vontade, de imaginação e de esforço, mesmo que a balbuciante ciência psicológica esteja longe de definir-se claramente sobre o conteúdo desses vo­ cábulos. * Resíduo de uma solução, após a cristalização da substância que fora dissolvido (N. do T.) 142

Não basta analisar, testar, pesar, experimentar um cavalo; é preciso sobretudo ensinar-lhe a saltar e a trotar; a avaliação virá depois. Para apreciar o valor dos métodos, olho os resulta­ dos. Infelizmente, em meus cinqüenta anos de ensino, constatei pouquíssimos progressos válidos nos métodos; o ensino atual é disso um testemunho oficial. E então? Então, é preciso mudar de técnica de aprendizagem, conce­ ber ou encontrar outra mais viva e decisiva, mesmo que para isso se faça necessário destruir o estoque dos livros eruditos que nos conduziram a esse impasse. Não se trata de saber se nossas teorias são demonstráveis ou se estão demonstradas. O progresso pedagógico de modo algum é um assunto pessoal. Precisamos, custe o que custar, para a sociedade de 1965, uma pedagogia de 1965. Tudo o que possa ajudar a alcançar este objetivo é dese­ jável”.18

BREVE ESBOÇO DA PEDAGOGIA AMERICANA DO COMPORTAMENTO

Não poderíamos terminar esta importante questão das aprendizagens, que expusemos muito apressada e sumariamen­ te, sem tentar estabelecer as diferenças de concepção entre o condicionamnto opérante dos pedagogos americanos e os Mé­ todos Naturais. As concepções americanas de aprendizagem são baseadas na teoria do estímulo-resposta operatório. O método natural é o método normal da Pesquisa Experimental. A preocupação dos educadores franceses em face do concondicionamento operante provém sobretudo do temor de um uso generalizado das máquinas de ensinar, que visam exclusi­ vamente à aquisição de conhecimentos. A programação, realizada por especialistas, é estabelecida segundo concepções de adultos diretamente influenciadas por uma automoção de laboratórios de experiências em animais. Ora, se o automatismo é uma lei da vida, a psicologia humana não autoriza forçosamente a generalização, em relação à espé­ cie humana, dos dados relativos ao comportamento condicio­ nado dos animais. A programação deve levar em conta a perso­ nalidade da criança e reservar-lhe um papel ativo. 143

Freinet introduziu as fitas gravadas e educativas14 em sua escola em Vence. Centenas de escolas públicas aprofundaram a experiência e concluíram que, prática e psicologicamente, era uma técnica eficaz. As fitas gravadas e educativas são feitas com a colaboração do professor e dos alunos. As próprias fitas são organizadas por crianças, que assim testam a eficiência da prática pessoal: elas mesmas põem em ordem as seqüências de aprendizagem, com minúcia e precisão, revelando aptidões que não constam dos habituais relatos de experiências. Trata-se aí de uma progra­ mação inteiramente natural e simples, e que freqüentemente esclarece trabalho idêntico dos adultos, ainda muito dominados pelo ensino tradicional, herdado do emprego dos manuais es­ colares. Freinet estudou com grande interesse essa nova técnica, que ter-lhe-ia permitido superar o condicionamento sistemá­ tico americano, “o qual, sob a capa de uma pavlovismo que se tornou abu­ sivamente automático, compromete as formas superiores da edu­ cação contemporânea”. Mas, qualquer que seja a objeção que se faça a ela, a técnica americana ameaça invadir o mundo todo, que se submete passi­ vamente aos tecnocratas. Quer o desejemos ou não, a máquina e a mecânica integramse cada dia mais em nossa existência. É normal que a escola se habitue, sem riscos excessivos, a viver no ritmo deste mundo, e que considere a entrada progressiva das máquinas no meio es­ colar. Não devemos tomar automaticamente uma atitude de oposição neste terreno — muito propagado é verdade — das téc­ nicas audiovisuais e das máquinas de ensinar, que no momento só estão previstas para a aquisição do saber escolar. Os americanos trouxeram para esse problema da programa­ ção um certo número de soluções, que não deixam de ser peri­ gosas. “A programação americana tem como pai espiritual o behaviorismo, teoria materialista do comportamento. O behaviorismo é incontestavelmente uma ruptura espetacular com todas as teorias intelectualistas do comportamento humano. ... A acusação feita pelo behaviorismo à psicologia e à pe­ dagogia tradicionais é perfeitamente justificada e motivada. Os educadores tradicionais acreditam, efetivamente, que têm que resolver exclusivamente problemas de inteligência e de com­ preensão, e não problemas de comportamento e de vida. 144

Se a criança não compreendeu, é preciso explicar-lhe o que não entra em seu entendimento. Só se pode explicar inte­ lectualmente, como se os mecanismos sensíveis dos indivíduos funcionassem todos em circuito fechado no cérebro soberano. Nunca ocorrería a um educador tradicional a idéia de que a criança, colocada em certas condições, depois de ter feito um certo número de observações e de experiências, possa, por si mesma, resolver certas dificuldades cujo segredo o professor acredita ser o único a conhecer: segundo eles, a ciência vem do alto e não de baixo para cima. O que restinge consideravelmente o campo das máquinas de ensinar e das práticas americanas de programação é que elas são um simples instrumento de transmissão de conhecimento. ... Temos a pretensão de colocar caixas acústicas e fitas gravadas educativas a serviço da cultura. O erro que os americanos cometem ao justificarem este condicionamento é a conseqüência de um erro psicológico no que diz respeito à teoria da aprendizagem. Para remediar as insuficiências do condicionamento, os psi­ cólogos invocam um "repertório de repetições” : “Não se trata, simplesmente, de esperar a ocasião propicia para suscitar todos os tipos de comportamento, e sim de esta­ belecer um repertório de respostas a estímulos de maneira a suscitar qualquer forma de resposta”.15

Os autores justificam essa opinião dando uma explicação, a nosso ver errada, dos processos de aprendizagem. E Skinner continua: “Ê, aliás, o que se faz quando se ensina uma criança a falar. Certamente, poder-se-ia esperar que ela emitisse algo aproxi­ mado a tal ou tal palavra, e reforçar esse comportamento verbal espontânneo, depois esperar uma aproximação mais aceitável e assim por diante. Mas esse processo de aprendizagem, teorica­ mente possível, seria extremamente lento. Em princípio, ensi­ na-se à criança um repertório de ecos: dizemos "dada”, “gato”, e ela repete as sílabas. Obtém-se rapidamente todas as formas de respostas em eco às formas de estímulo. Para ensinar à criança a designar os objetos, mostra-se a ela um livro de imagens, que dá um estímulo formal muito próximo de um estimulo de eco. Isso, diz o texto, é uma flor, o que induz a criança a dizer flor, ao olhar a imagem que a representa. Ela poderá, em seguida, dar a resposta inteiramente sob o controle da imagem. Terá aprendido a palavra FLOR”.

Eis uma teoria bem complicada para reencontrar o método tradicional de aprendizagem das palavras, que sempre criticamos. Em primeiro lugar, não é assim que a criança aprende a falar, seja em casa ou na rua. Na realidade da aprendizagem infantil, só acidentalmente se parte da palavra; parte-se sem­ pre da idéia, da coisa sensível, que primeiro se traduz por gestos e depois por sons, que lentamente tomam forma, segundo o processo da pesquisa experimental. 145

O estudo prévio das palavras, seu condicionamento pela re­ petição, não se coadunam com os verdadeiros processos de apren­ dizagem. Por isso, se não são radicalmente condenáveis, ao me­ nos só devem ser empregados com a mais extrema prudência. E como, evidentemente, os processos de aprendizagem de­ terminam a técnica das máquinas de ensinar, vê-se a importân­ cia de nossa condenação. Existirá mesmo uma teoria da aprendizagem realmente válida? "Precisaríamos”, escreve Goodman, Diretor da Seção de Cálculo e Cibernética do Colégio de Brighton,16 “de uma teoria da aprendizagem que imponha respeito, com a mesma autorida­ de que a teoria quântica, por exemplo. Ora, é precisamente isto que está faltando. Segundo Meredith, haveria vinte e nove teo­ rias diferentes do processo de aprendizagem, mas, de fato, podese enumerar cinqüenta e sete. É um erro flagrante pretender, como o afirma Enrich, que "os princípios psicológicos da apren­ dizagem são conhecidos há muito tempo”. Tudo que se pode dizer é que temos sobre isso um vago conjunto de noções adqui­ ridas empiricamente, pragmaticamente, o que não constitui uma base muito satisfatória para construir máquinas de ensinar! Entre outras conseqüências importantes dessa carência, fal­ ta-nos uma linguagem psicológica adequada para falar daquilo que tentamos realizar: na realidade, continuamos a repetir um amontoado disparatado de jargões retirados de diversas teorias da aprendizagem, do comportamento, dos psiquismos do homem e do animal, e até de filósofos como Loch, utilizando-os em acepções enganosas e, baseando-nos neles, construímos aquilo que enfeitamos com o nome de experiências e de avaliações”. Diante desse descalabro temos a pretensão de apresentar, através de nossa pesquisa experimental, uma teoria segura e científica, que naturalmente é fundamentada em um aspecto do condicionamento, mas corrigido e completado por esta “per­ meabilidade à experiência” que é, em suma, a definição da in­ teligência. Remetemos nossos leitores que desejem familiarizar-se com esta teoria a nosso livro Essai de psychologie sensible (op. cit.). Verão aí o quanto nos distanciamos dessa caricatura de Pavlov que nos dão os behavioristas. "Os reflexos condicionados”, diz Watson,17 "são as unidades nas quais todo hábito se decompõe, por mais complicado e inte­ grado que seja, e seja qual for a complexidade das relações espa­ ciais e temporais entre os movimentos que o constituem. Quan­ do um hábito complicado é analisado inteiramente, cada ele­ mento desse hábito é um reflexo condicionado. Um organismo é condicionado a um circulo ao qual responde virando-se para a direita, o que o coloca em presença de um quadrado, ao qual é condicionado a responder dando dois passos para a direita”. Esta teoria, muito sumária, talvez seja válida para uma operação mecânica simples, mas negligencia a realidade que os psicólogos ainda estão bem longe de saber analisar, no quadro de um comportamento vital do homem e da criança. 146

"O organismo humano, reagindo a seu meio, é aquilo que Stafford Beer chamou de um sistema probabilistico infinita­ mente complexo”. E o autor acha que as calculadoras eletrônicas só poderão dominar esta análise no dia em que forem inteli­ gentes, o que não ocorrerá tão cedo. Dessas diversas considerações resulta que as máquinas de ensinar do tipo americano, — não estão, de modo algum, baseadas numa teoria segu­ ra da aprendizagem; — apóiam-se numa concepção excessivamente primária do condicionamento, válida exclusivamente para as operações me­ cânicas; — ensejariam um grave erro se quiséssemos utilizá-las, no estágio em que se encontram para estudos inteligentes; — e que seria perigoso generalizar seu emprego nas escolas, pelo menos desta forma”.

Notas

1. 2. 8.

Essai de Psychologie sensible. Essai de Psychologie sensible. e 4. Max de Ceccaty, La vie de la cellule à l’homme, Seuil. 5. Essai de Psychologie sensible. 6. Essai de Psychologie sensible. 7. Grey Walter, Le Cerveau vivant. 8. Le Tâtonnement Expérimental (ed. de l’École Mo­ derne, col. “Documents”). 9. Techniques de Vie, n.° 3. 10. Ver La Méthode Naturelle, ed. Delachaux. 11. Les Dits de Mathieu. 12. Para complemento de informação 1er: I. La Méthode Naturelle d’apprentissege de la . langue. II. La Méthode Naturelle de dessin. III. La Méthode Naturelle d'écriture (edições Dela­ chaux e Niestlé). 13. L’Éducateur, outubro de 1965 (Dits de Mathieu). 147

14. 15. 16. 17.

148

C. Freinet: Bandes enseignantes et programmation; Travail individualisé et programmation (ed. de l’École Moderne, Cannes). F. Skinner: La théorie de l’apprentissage et la recher­ che future. Revista Hommes et Techniques. R. Goodman, in Hommes et Techniques.

Capítulo 7

A Caminho do Conhecimento Científico

Quando o fato que constatamos está em oposição com uma teoria geralmente aceita, é preciso acei­ tar o fato e abandonar a teoria, mesmo que esta, sustentada por grandes nomes, seja adotada por todos. Claude Bernard

É a prática que transforma a rea­ lidade. É da prática que nascem os co­ nhecimentos autênticos que se cons­ tituem em teoria experimental. Prática experimental e teoria experimental devem interpenetrarse sem cessar, em um movimento ascensional, para atingirem novos estágios de eficácia e de conheci­ mento. Assim se passa da realidade sensível à lógica racional. Assim se construiu, ao longo da insondável aventura humana, a lógica do bom senso. Assim se edifica, diretamente na vida cotidiana, o conhecimento científico democrático e eficaz in­ cluso na cultura dos povos.

Freinet, por sua formação primária e artesanal, por suas descobertas de autodidata, não tem nenhuma pretensão cien­ tífica que responda às prerrogativas de uma ciência de especia­ lização intelectual. Reconhece em si simplesmente a vantagem de conhecer bem uma pequena faceta da educação. Pois para ele a educação é um fenômeno cósmico de aprendizagem, do qual deduziu os dados elementares de uma pedagogia prática da infância. O termo experiente*, que se junta a seu nome, é para ele um título de nobreza, pois sabe que uma prática sólida, bem orientada e comunicativa dá origem a grandes realizações. * praticien, no orignal. (N. do T.) 151

E logo surgem conhecimentos autênticos, resultantes da expe­ riência imediata: homem do povo, intui que é preciso saber fazer antes de saber dizer; e que a necessidade da teoria está na linha natural do saber fazer, sendo a teoria um resultado esclarecido do saber fazer: a partir daí pode-se fazer melhor ainda, e se atingirá uma nova etapa de eficácia e de conheci­ mento, apta a renovar a realidade. Todo homem do povo, profissional consciente de um ofício que ama, sabe disso: com toda a naturalidade, um ciclo de alternância de prática e de teoria eleva o conhecimento a um nível superior. Assim se orga­ niza o caminho da ação ao pensamento, assim se estabelece sem­ pre a lógica complexa do bom senso popular. Deu provas disso desde o alvorecer da humanidade, muito antes da lógica linear dos cientistas que separam a teoria da prática. É desse modo que se afirmam os dados fundamentais do materialismo dialético, do qual Freinet não faz nenhum uso explicativo, mas que, sem cessar, dar-lhe-á a visão cada vez mais vasta do fenômeno humano e do fenômeno da vida. O problema inicial de toda educação é sempre prático: como aprender a saber fazer? Na falta da clarividência que nos revelaria de pronto a maneira de proceder, só se pode recorrer à pesquisa que, de empírica, torna-se experimental, apta a fazer surgir a teoria que lhe vai garantir uma maior eficácia. . . E o que testemunha a pesquisa, senão que encontramonos sem cessar em uma realidade de contradições que é a lei da vida, e que Freinet faz intervir pela imagem simples de obstáculos a superar? E que maiores obstáculos se colocam dian­ te da criança do povo, senão a opressão da sociedade capita­ lista, contra a qual é preciso fazer suas conquistas? Freinet não precisa citar Marx para esclarecer os problemas da escola pro­ letária, pois esta se insere no âmago da alienação. Está na experiência sensível do alienado. O problema não é recitar o catecismo de Marx, mas fazer brotar da experiência sensível o conhecimento racional, que é ao mesmo tempo teoria intelec­ tual e social. Para essa passagem da realidade sensível à lógica racional, o bom senso será sempre a teoria mais esclarecedora para o povo de que aqui nos ocupamos. O bom senso tem suas exigências de níveis: é através dele que se acede à segurança, no exercício de uma função. Ele é a garantia do método científico, sobre o qual é inútil tergiver­ 152

sar, mas que é preciso saber utilizar e divulgar para o povo, tendo como norma a dúvida construtiva. É a isso que Freinet convida seus colegas, valendo-se da autoridade de Claude Bernard: “Os educadores que hoje aceitam tentar inovar o ensino, fariam bem em reler Claude Bernard e meditar sobre o método científico que ele recomenda. Pois talvez em nenhuma ativida­ de se esteja tão longe dele quanto no ensino. E em nenhuma outra, sem dúvida, se acredita estar tão perto! Este método científico deveria ser praticado pelo professor diretamente nos processos de ensino e nas técnicas, antigas ou novas, que ele passaria sem cessar pelo crivo da experiência. Mas da experiência leal, daquela que não teme ir até o fim do caminho, mesmo e sobretudo se este caminho contradiz to­ dos os hábitos tradicionais ou familiares. Infelizmente, bem sabemos que o conservadorismo anticientífico é um entrave fácil da natureza humana e que aqueles que o contestam são sempre malvistos, que a sociedade se defende contra essa atividade, até e inclusive pela violência. Mas os professores que são, por sua função, despertadores do espírito, não devem temer agitar as idéias, destruir hábitos, atacar a tradição, incomodar os adultos cuidadosamente instalados e lutar obstinadamente pelo que resta de vital numa infância sa­ crificada. Esse método científico está no âmago de todo o nosso tra­ balho; é o elemento essencial da revolução pedagógica que ope­ ramos; é nossa força e nossa estrela na luta permanente que temos que travar. O que ele nos impõe? Que nunca aceitemos como definitivas nem mesmo as opi­ niões mais sólidas, sobretudo aquelas que nos afirmam estarem consagradas por uma longa tradição, e que nunca temamos repassar pelo crivo de uma experiência incessante os conheci­ mentos ou métodos que se oferecem a nossa atividade. E ainda a melhor coisa para não se desnortear nesta ati­ vidade, para evitar a atitude negativa e destrutiva do cético, é não praticá-la isoladamente, é buscar a crítica e o controle dos que exercem a mesma função. E ainda que o controle e a expe­ riência pareçam ser concretos, deve-se tomar o resultado ape­ nas como relativo, sujeito a revisão, a modificações, a adapta­ ções segundo os meios e a época. Provaram a vocês, estabeleceram... cientificamente!... que a criança é preguiçosa, adepta do menor esforço e sensível apenas à atração do ganho ou do jogo, e que o comportamento pedagógico deve, portanto, ser adequado a essas circunstâncias. E se isso for totalmente falso? Se a realidade for justa­ mente o inverso? Se a criança, em condições normais, se dedi­ casse naturalmente e mais que tudo ao trabalho, com toda a gama benéfica das qualidades que isso supõe? 153

Sem tomar previamente posição, será que não deveremos esclarecer este ponto capital, do qual uma nova concepção pode­ rá, felizmente, revolucionar todo o nosso comportamento peda­ gógico? Ensinaram-nos a basear todo nosso esforço educacional em um processo falsamente intelectual, que fracassou. Será preciso perscrutar os caminhos possíveis para sair da rotina e cons­ truir, enfim, sobre o real e o tangível. Foi dito aos mestres que eles deveriam impor sua autori­ dade e não admitir nenhuma crítica ou discussão que pudesse comprometer uma hipotética ascendência. E a vida, hoje, minou irremediavelmente esta atitude. O novo professor deverá buscar alhures os elementos de sua disciplina e de seu prestígio. Quais seriam as soluções? perguntarão vocês. Falharíamos em nosso método científico se pretendêssemos trazer-lhes soluções definitivas. Oferecemos soluções possíveis, que experimentamos coletivamente, segundo o método científico, eliminando, na experiência e pela experiência, os processos e o material que se revelaram insuficientes. Descobrimos pistas que começam a ser seriamente esclarecidas e por onde se poderá enveredar, de agora em diante, com a certeza de uma percenta­ gem reconfortante de sucesso e de eficácia. Mas nunca considerem essas pistas e esses esclarecimentos como definitivos, não restabeleçamos os tabus, não deixem a rotina contaminar os novos caminhos. O que é escandaloso não é que os educadores critiquem e procurem melhorar os métodos de Montessori, de Ferrière, de Decroly, de Piaget, de Washburne, de Dottrens ou de Freinet. O escândalo educacional é que se encontrem novamente “fiéis” que pretendam erigir, no ponto em que esses educadores pararam zelosas capelas guardiães das novas tábuas da lei e de regras magistrais, e que não se com­ preenda que o pensamento de Ferrière, de Piaget, de Washburne, de Dottrens ou de Freinet é essencialmente dinâmico, que não é hoje o que era há dez anos, e que daqui a dez anos, novas adaptações terão surgido. E se Decroly e Montessori ressusci­ tassem (falamos da Montessori cientista nos seus anos de ativi­ dade, e não da educadora que se suicidou sob o regime de Mus­ solini) , poriam abaixo essas capelas, como abalaram em seu etmpo as capelas dos que a eles reagiam. É em nome desta prática científica para a aplicação de um método experimental permanente que fazemos de nossa Coope­ rativa uma gigantesca empresa de trabalho pedagógico, com inúmeras comisssões que examinam sob todos os seus aspectos os problemas pedagógicos, reconsideram sem cessar métodos e técnicas, procuram a adaptação do material, consolidam dados antigos que se revelaram preciosos, criam e constroem sempre que necessário. Sei qual será a principal objeção de tantos colegas habitua­ dos a métodos de trabalho há muito estableecidos e precisos, e que receiam — mais por eles do que por seus alunos — a dinâ­ mica das técnicas que recomendamos. 154

Vemos aqueles que perderam tudo sentarem-se à beira do caminho, quando não podem avançar mais. Construímos amu­ radas resistentes onde apoiar também as suas dúvidas. Poderão parar aí provisoriamente, pois tomarão a partir. Tornarão a partir entrando em contato com todos aqueles que, descobrindo nossos ensinamentos e à luz de nossas pesqui­ sas, reencontraram também eles novas razões de viver, de tra­ balhar, de lutar, de ir adiante. É falso acreditar, ao menos em pedagogia, que a relação estática seja a mais prática e a mais favorável. Tente-se marcar passo e manter o equilíbrio sobre uma tábua estreita que serve de ponte para atravessar a cor­ renteza! Não será mais cômodo atravessar de uma vez, sem parar bus­ cando equilíbrio, não numa imobilidade que provocaria a queda no abismo, mas na ação e na vida? Futuramente, o método científico e experimental animará todo o nosso ensino, e os educadores tomarão a viver e a criar. Para esta imensa tarefa não medirão esforços, e serão, também eles, regenerados”.¹ De resto, a ciência nem sempre é favorável ao tipo de progresso totalmente orientado em benefício do novo homem. “A ciência, que mediu precariamente seus esforços, adota paliativos perigosos para soluções definitivas, e não se dá conta que provoca a degenerescência da raça humana.. .”.² Sob certos aspectos a ciência, que alguns consideram como tabu, está sendo olhada com desconfiança, e ainda mais por­ que é um instrumento da tecnocracia reinante: “Na medida em que nos apresenta um estudo imparcial, so­ lidamente baseado na experiência segura, numa documentação completa, qualquer coisa evidente como dois e dois são quatro, e não apenas hoje e nesse lugar mas válido também no tempo e no espaço, uma espécie de verdade que carrega consigo a pe­ renidade do divino, também eu considero a ciência como uma grande conquista humana, a reverencio e dela me valho. Mas, infelizmente, trata-se ai de um ideal que perseguimos, mas cuja claridade é difícil de se captar... Seria preciso dizer sem­ pre: ciência humana, para marcar-lhe a falibilidade e a rela­ tiva impotência. ... Na escala do imediato, do dia-a-dia, os homens de ciên­ cia podem ter 100% de razão. Na escala da natureza e da huma­ 155

nidade, seus erros não deixam de ter influência direta sobre a degenerescência e decadência de que os acontecimentos atuais são a conseqüência”.3 Tais reflexões, de que Freinet é o precursor, lhe valeram a condenação irrevogável dos cientistas, que o relegaram ao esquecimento e ao isolamento. “O cientificismo é o primeiro denominador da nova ideo­ logia dos tecnocratas”.4 “... Eis aí o aspecto prático da moral social, pois prometenos que com o auxílio dessas mesmas técnicas já comprovadas nas ciências físicas, poderemos chegar a criar uma ciência exata do homem”. É correto dizer que os povos suportam os efeitos da ciên­ cia como suportam os benefícios e catástrofes das grandes forças da natureza e do cosmos. Tudo se prepara acima de suas cabeças, sem que nada lhes seja dado a conhecer, até o momen­ to em que vão sofrer com a aventura. Nesta trágica situação, um punhado de homens decide pela imensa multidão de cria­ turas, que são usadas como cobaias de experiências. A confissão de R. Oppenheimer esclarece o problema de uma ciência que opera à revelia da maioria dos homens. “A ciência já não representa, em nossos dias, um enrique­ cimento da cultura geral: torna-se propriedade de pequenas comunidades altamente especializadas, que gostariam de com­ partilhá-la, explicá-la, mas ela escapa à compreensão universal... ... A ciência hoje tem duas características essenciais: em grande parte é nova e não assimilada, e não faz parte do pa­ trimônio cultural comum. Continua sendo o apanágio de comu­ nidades especializadas que, em certas ocasiões, podem comuni­ car-se entre si ou auxiliar-se mutuamente, mas que em geral buscam com um afinco crescente seu próprio caminho, um ca­ minho que se afasta cada dia mais das bases sobre as quais é edificada a vida cotidiana”.5 A grande maioria dos homens deve, portanto contentar-se com uma concepção muito relativa de ciências práticas que, como a moda, dura pouco tempo. 156

“Somos cientistas?” pergunta-se Freinet, para colocar o pro­ blema da ciência ideal em suas justas proporções humanas: “Problema evidentemente da maior importância, porque as diversas concepções possíveis influenciam diretamente nossa edu­ cação. Não há dúvida de que assistimos, para certas disciplinas — a medicina, a pedagogia e a cultura, notadamente — a um re­ trocesso de certos aspectos da ciência. A tal ponto que podemos nos perguntar se não estará em perigo a noção elevada de ciência que marcou a ascensão vertiginosa desta primeira metade do século, e se não iremos assistir a uma espécie de decadência, como aquela que marcou certas grandes épocas da história dos povos. Nessa crise que atinge todo o mundo ocidental e cuja am­ plitude seria comparável à da que precedeu a queda do Império Romano e mais tarde do mundo feudal, seria necessário que os homens de ciência pronunciassem seu mea culpa, que denuncias­ sem eles próprios os erros graves que encobriram e encobrem, em nome da ciência, as práticas mais anticientíficas, que resta­ beleçam o lugar de honra da experimentação leal e incansá­ vel e a pesquisa desinteressada e constante. Que podemos efetivamente pensar de uma ciência que, tendo o apoio da autoridade constituída, condena previamente todas as pesquisas, todos os ensaios e todas as descobertas que se ar­ riscam a contrariar as situações estabelecidas? Em medicina e em farmácia, por um lado, em pedagogia por outro, tentou-se em vão acumular fatos comprobatórios, fornecer estatísticas, fazer enquetes... são “oposicionistas” e, como tal, previamente condenados. A conseqüência desse sectarismo criminoso é a exacerbação de formas de pensamento e de ação que acreditamos ultrapassa­ das, e que parecem ressurgir das profundezas do passado. Quan­ do se pensa que os fiéis do cristo de Montfavet vêem seu nú­ mero e sua ação crescerem a cada dia, quando se tem notícia de como se regozijam com todos os acontecimentos ou cataclismas que, segundo eles, prenunciam o fim do mundo já anunciado por Jesus, mede-se a profundidade e a amplitude do perigo. E nós estamos entre esses dois extremos. Somos cientistas partidários da pesquisa permanente e da incansável experimen­ tação. Partimos sem nenhum preconceito, a não ser o de tentar ver claro e agir racionalmente. E esbarramos na intransigência da falsa ciência, que nos empurrará, inapelavelmente, rumo a Um espiritualismo que denunciamos. Ora, as posições intermediárias são sempre as mais perigosas. O sectarismo é muito mais cômodo e mais espetacular! Precisamos apresentar de maneira decidida e brutal, diria eu, o problema da ciência em educação; recolher exemplos fla­ grantes de falsa ciência, trazer testemunhos de autores que en­ dossam nossas afirmações em um terreno em que a falsa ciên­ cia, por muito tempo, manteve a supremacia”.6 157

É preciso voltar a Oppenheimer para se compreender que se deve dar ao conhecimento científico seu aspecto mais de­ mocrático, aquele que tenta unir os homens na compreensão a mais objetiva possível. “Uso o termo ‘conhecimento científico’ no sentido mais erudito, incluindo nele a ciência da história dos homens ou a de seu comportamento, e parece que a primeira característica desse conhecimento científico é bastante elementar. Eu diria que se caracteriza pelo fato de que se pode falar dele de maneira objetiva, de modo que os homens do mundo inteiro compreen­ dam o que significam essas palavras, saibam perfeitamente o que o pesquisador realizou, possam fazer o mesmo e saber se isso corresponde ou não à verdade”.7 O problema, portanto, é saber se o conhecimento cientí­ fico acessível à comunidade humana, desejosa de dele fazer um saber coletivo, é um bem eficaz e generalizável. É este, em todo caso, o programa fundamental de Freinet, no que concerne à educação a que se dedicou. Tendo partido do empirismo sensível cm seus primeiros ensaios em Bar-sur-Loup, chegou rapidamente ao empirismo experimental, apenas respeitando as leis da vida. E este empi­ rismo da ação naturalmente suscitou a criação de instrumentos, tendo esses instrumentos determinado técnicas educativas e essas técnicas introduzido a prática experimental. Todo esse processo de pesquisa torna-se generalizável, pro­ duz uma grande quantidade de documentos de onde brota sem ser pressionada, uma teoria de qualidade, organicamente fun­ damentada, e que se vai elevando em direção às leis da invariância que Freinet cita em seu Essai de Psychologie sensible. É o caminho, simples e natural, do conhecimento científico que Freinet tenta por todos os meios preservar de uma confu­ são possível com os conhecimentos da instrução, acumulados no computador dos cientistas. “Instrução e conhecimento são apenas instrumentos, que aliás faríamos mal em negligenciar; mas seu emprego necessita de uma orientação sensata que supõe o cultivo profundo da personalidade”.» 158

Freinet tem a certeza de que o "conhecimento científico” pode ser colocado ao alcance do povo, pois este, sempre posto à prova, em sua ciência, pelas contradições pensa, por instinto e por experiência, dialeticamente. Portanto, é aos professores que dedica seu ensaio de psicopedagogia experimental, confor­ me deixa claro no prefácio do Essai. "... (Este livro) é especialmente destinado aos educadores do povo, àqueles que, como eu, são oriundos da classe trabalha­ dora, da qual não quiseram desertar, e que têm que resolver, bem ou mal, as contradições inerentes ao grande problema da educação, em seus aspectos intelectuais, sociais e humanos, num meio modificável. Gostaria também que este livro fosse com­ preendido pela grande massa de pais que têm o encargo de edu­ car crianças e, portanto, de contornar os obstáculos colocados por uma sociedade imperfeita à eclosão das jovens persona­ lidades. Essa preocupação de manter-se compreensível e claro para a maioria das pessoas de cultura média não tradicional impôsme certas obrigações. Quis, sobretudo, abordar com simplicidade e objetividade os múltiplos problemas que, no complexo indivi­ dual e social, conduzem-nos ao conhecimento da criança. Para isso, rejeitei de meu vocabulário a linguagem hermética dos especialistas, para só empregar a linguagem direta do povo. Decididamente, expulsei de minhas demonstrações as tradicio­ nais abstrações filosóficas, para recorrer sempre a desenvolvi­ mentos sensíveis e sintéticos através da imagem, nos quais o sujeito e o objeto de modo algum são entidades metafísicas disjuntas mas, ao contrário, elementos construtivos de uma ativi­ dade global de unidade, a ordenar e orientar. E, assim fazendo — e eis ai minha maior preocupação —, pretendo ter escrito uma obra de psicopedagogia que os professores, os professorandos e os pais poderão 1er e compreender, discutir e, espero, criticar, levando em consideração não palavras, mas fatos concretos e familiares. Ser legível não é uma considerável originalidade para um livro de psicologia?”

AS TÉCNICAS FREINET, FERMENTO DA PEDAGOGIA CONTEMPORÂNEA

DA

A obra militante de Freinet é toda ela orientada para uma pedagogia de massa, pois é toda a renovação do ensino e, mais ainda, da educação popular que ele visava. 159

O Movimento Internacional da Escola Moderna era e per­ manece sendo a prova irrefutável de que este objetivo de nobre regeneração está agora inscrito na história. “Se pretendemos uma pedagogia de massa, é preciso que pos­ samos mostrar pela experiência que nossa pedagogia é progressi­ vamente possível em todas as classes (do mundo), para todos os educadores”.9 Durante os últimos meses de sua vida, diante da desorien­ tação do ensino e do homem de sua época, Freinet fazia ques­ tão em tornar bem clara a contribuição benéfica de sua obra: “Após um longo amadurecimento, fruto de quarenta anos de experiências, nossas técnicas são hoje invocadas por toda parte onde se considera objetivamente a situação difícil da pe­ dagogia contemporânea, e a necessidade urgente de recuperar um atraso que se arrisca a comprometer para sempre a educa­ ção democrática. Apesar da obstinação com que os educadores que estão em atividade se agarram aos velhos métodos, nossas idéias ganham terreno com uma rapidez reconfortante: a livre expressão, cujas possibilidades ninguém previa tão amplas quando de nos­ sas primeiras experiências, há trinta ou quarenta anos, é agora um elemento novo da educação; os fichários documentais e autocorretivos pouco a pouco substituem a velha prática dos deveres e das lições; os jornais escolares e a correspondência logo se divulgarão pelo mundo das crianças; pelos planos de trabalho e conferências, os alunos a partir de então têm a palavra e se preparam prática e experimentalmente para sua função de ho­ mens. Nossa obstinação em defender o espírito liberador de nos­ sas técnicas e em condenar ao mesmo tempo a estupidificação do ensino tradicional, abriu hoje uma brecha. Está colocado o problema — oficiosamente fora da escola, e mesmo oficialmente nas diversas instâncias pedagógicas — da predominância dos elementos culturais sobre as aquisições técnicas. Tende-se a subs­ tituir o verbalismo secular pela experiência individual ou em equipe e pelo trabalho. Ora, essas idéias não nasceram — não podiam nascer — de especulações teóricas sobre dados estéreis de um passado conde­ nado. Tomaram corpo porque fomos os primeiros, na pedagogia mundial, a empregar os instrumentos e as técnicas que permi­ tem formas novas de trabalho melhor adaptadas a nosso meio: material impresso e jornal escolar, linógrafo, pinturas, fichários, bibliotecas de trabalho, gravador, fitas gravadas educativas, etc. 160

Enquanto esses instrumentos não existiam, os educadores eram forçados a se contentarem com explicações intelectuais e de­ monstrações de que alimentavam suas aulas eruditas. Um pro­ gresso técnico é hoje possível na grande maioria das escolas. Não foram apenas as teorias que enriqueceram e moderni­ zaram o equipamento industrial de nosso país. Foram necessá­ rias, naturalmente, pesquisas teóricas, que só se tornaram efi­ cientes na medida em que resultaram em realizações práticas subseqüentes. A organização econômica está em plena evolução, não por causa de explicações e discursos, mas graças à fabrica­ ção e venda, em larga escala, do material necessário. E os cam­ pos mais afastados equipam-se de ceifadeiras e tratores, en­ quanto a escola permanece, anacronicamente, nas práticas de 1900. Por intermédio dos instrumentos e técnicas de trabalho a serviço de uma pedagogia moderna, a renovação escolar come­ çou porque é uma necessidade imperiosa, podendo agora evoluír­ em ritmo surpreendente. Cabe a nós orientar essa evolução. Temos, infelizmente, muito pouco apoio para o desenvolvi­ mento de nossa ação. Por diversas razões, que não seria inútil analisar, nossa ex­ periência se desenvolve num período de um vazio pedagógico nacional e internacional surpreendente. Há apenas trinta anos nossa pedagogia, se houvesse então tomado forma, teria po­ dido confrontar-se com a de uns quinze grandes psicólogos e pedagogos que eram a honra e a esperança de uma época: De­ croly e os centros de interesse, Maria Montessori e as inovações para a primeira infância; Cousinet e o trabalho em grupos; Ferrière e a Escola Ativa; Pierre Bovet, Claparède e Dottrens, da Escola de Genebra; Miss Pankurst e Washburne nos E.U.A,. sem esquecer John Dewey, o teórico de uma nova concepção da escola, Wallon, Piaget, Dalcroze, Freud, Paul Gheeb, com o pres­ tigioso cortejo dos grandes pensadores que, na época, seguiam de perto todos os nossos trabalhos: Romain Rolland, Barbusse, Jean-Richard Blobh, Gandhi, Gorki, Tagore, Como e porque esse fogo devorador que nos encorajava e nutria subitamente se desfez, e a teoria psicológica e pedagógica esvaziou-se de seus afamados pesquisadores? Dever-se-á talvez ver aí o fato de que as novas gerações se deram conta de que era vão seguir as vias do passado, embora ninguém ainda esbo­ çasse os caminhos do futuro? E seria por ter atacado o proble­ ma por um novo ângulo, segundo dados ainda não vislumbrados, que somente a pedagogia Freinet, nas perspectivas atuais, traz as esperanças do renascimento? A renovação escolar supõe uma reconsideração em profun­ didade da pedagogia, uma mudança radical nas técnicas de tra­ balho e de vida, uma reciclagem, para empregar uma palavra da moda, sem a qual a reforma escolar continuará sendo uma velei­ dade e uma ilusão. Não poderia ser, efetivamente, apenas uma questão de sim­ ples reciclagem técnica. Se bastasse trocar de manual ou recon­ siderar a forma das aulas, a oposição dos professores poderia 161

ser apenas formal e passageira. Mas é toda a concepção da aprendizagem que precisamos mudar. Devemos deixar de lado tudo o que nos ensinaram quanto à maneira de abordar a classe e engajar-nos em uma nova fórmula de trabalho e de vida. Pensem na dificuldade que encontram os professores de for­ mação autoritária para reconsiderar em bases mais humanas e mais democráticas a natureza das relações professor-aluno. Que acontecerá quando aconselharmos aos educadores que partam da vida das crianças em seu meio, e que saibam ajudar e ca­ lar-se no meio de uma equipe fraternal de crianças? Para as justificativas que se impõem seria preciso que ti­ véssemos a nosso lado intelectuais, pesquisadores, picólogos, pro­ fessores de diversos graus, prontos a estudar, psicológica e pedagogicamente, os novos problemas que nossas técnicas suscita­ ram: o problema da expressão livre, o da criação em todos os domínios, o da invenção permanente e, portanto o da exaltação da imaginação, o dos processos de aprendizagem pelos quais apresentamos nossa teoria de pesquisa experimental; o do lu­ gar da criança e do adolescente na nova sociedade e, portanto, na escola; o do possível papel das técnicas audiovisuais no qua­ dro de uma pedagogia eficiente, o da influência dos filmes e da TV. Tudo deve ser revisto. Idéias muito antigas e solidamente assentadas na tradição e nos livros estão agora abaladas. O exemplo audacioso dos matemáticos modernos deve encorajarnos em nosso esforço iconoclasta. Mas precisa-se de trabalha­ dores de espírito livre e capazes de se empenhar naquilo que é para fazer nascer o que deve ser, e que será. Temos a vantagem de apresentar uma teoria psicológica e pedagógica coerente, baseada numa experiência hoje conclu­ dente. É preciso que os educadores mais clarividentes e os pais de alunos tomem consciência do impasse em que a escola amea­ ça perecer e da possibilidade de sair dele através de uma ação à altura de nossa época dinâmica. É preciso, custe o que custar, romper o silêncio total que os livros e revistas fazem em torno dos problemas de educação, que é tão vital. Que bem é mais pre­ cioso que o futuro da criança?”10 E isso era antes de 68: Uma última vez Freinet criticava os métodos de ensino neste fim de regime capitalista e apresentava argumentos fun­ damentais para uma reforma que não tinha mais o direito de contentar-se com palavras e de usar expedientes a curto prazo: “O movimento da Escola Moderna, nascido originalmente do Material Impresso na Escola e das Técnicas Freinet, agora base da Pedagogia Freinet, é superior às tentativas pedagógi­ cas contemporâneas, no sentido de ter previsto há muito tempo 162

o descalabro escolar atual e de ter preparado há muito tempo, experimentalmente, para fazer-lhe frente, as possíveis soluções favoráveis. Como se apresenta, então, este descalabro, cujas graves conseqüências hoje se reconhecem, mesmo oficialmente, e que afetam a educação e a cultura, por um lado, e, por outro lado, a formação, na criança, do homem de amanhã, adaptado técnica, psíquica e socialmente para o novo mundo que o espera?”

1. A defasagem entre a escola e o meio toma-se catastrófica

Todo o sistema educativo (administração, exames, concep­ ções psicológicas e pedagógicas) funciona ainda, em 1964, co­ mo funcionava antes de 1914. Atrasou-se, portanto, em pelo menos meio século, durante um período em que, segundo o Rei­ tor Capelle,11 "a humanidade mudou muito mais do que duran­ te todo o século XIX, ou mesmo durante todo o primeiro milê­ nio de nossa era”. DAÍ RESULTA E PODEMOS AFIRMÁ-LO A PRIORI — QUE QUASE TODAS AS PRATICAS ESCOLARES DO CO­ MEÇO DO SÉCULO DEVEM HOJE DAR LUGAR A TÉCNI­ CAS NOVAS, MAIS BEM ADAPTADAS A NOSSO SÉCULO. Isto não quer dizer que essas práticas sejam fundamental­ mente más em si: algumas delas foram excelente vanguarda no começo do século. Nem por isso devem deixar de ceder lugar a técnicas mais modernas, assim como o landô e a carruagem desapareceram definitivamente diante do automóvel e do avião. POR CONSEGUINTE, OS MANUAIS ESCOLARES, AS AULAS EX-CATHEDRA, OS DEVERES E OS EXERCÍCIOS, OS “DECOREBAS” E AS RECITAÇÕES, AS CÓPIAS, OS BRA­ ÇOS CRUZADOS, AS OBRIGAÇÕES E AS INTERDIÇÕES, A OBEDIÊNCIA ESTRITA E AUTORITÁRIA A LEI DO PRO­ FESSOR ESTÃO TAMBÉM, DEFINITIVAMENTE CONDE­ NADOS. Só desaparecerão definitivamente se pudermos substituílos. Se não houvese nem carros nem tratores em nossos campos, os carros de boi ou puxados a cavalo, as carruagens e os landôs sobreviveríam. É a evolução mecânica que os fez automati­ camente desaparecer. A modernização de nosso ensino é o imperativo de nossa época. Hoje uma coisa é certa: esse atraso, essa defasagem da escola são suficientemente reconhecidos; métodos do começo do século são oficialmente condenados. Pela primeira vez as Instruções Ministeriais acusam a inutilidade e o perigo dos ma­ nuais escolares. 163

Esses fatos, que ninguém deveria ignorar, e que denuncia­ mos desde o início de nossa experiência, dão hoje, implicitamen­ te, sinal verde à Escola Moderna. 2.

Condenam-se igualmente as tendências exclusivamente intelectuais do ensino atual

Por muito tempo lutamos para fazer admitir esta coisa simples, hoje oficial. Por suas origens de casta, a escola tradicionalmente só aborda sua função por mediação intelectual. Isso nos valeu e nos vale ainda manuais atulhados de explicações, demonstra­ ções e teorias, e as aulas ex-cathedra que as crianças são obri­ gadas a seguir e compreender. Admite-se agora aquilo que levamos trinta anos para provar: que esta forma de aprendizagem só é válida para uma ínfima minoria de crianças, excepcionalmente aptas à compreensão abstrata e às vezes até exageradamente distanciadas da vida. Para a grande maioria das crianças, este processo de apren­ dizagem é totalmente errado, e este erro é uma das causas prin­ cipais do fracasso atual da escola.

As aquisições de conhecimento, qualquer que seja sua na­ tureza, não caem nunca do céu, por efeito de um milagre inte­ lectual. Baseiam-se sempre em experiências e na vida, são ao mesmo tempo manuais, intelectuais e sociais. Precisamos restabelecer os processos normais e, para isso abandonando deliberadamente os métodos tradicionais, encon­ trar novas vias de aprendizagem e de aquisição de conhecimento. 3.

A adaptabilidade toma-se hoje um dos imperativos de nosso ensino

No passado, o mundo mudava ao ritmo dos séculos; o que se ensinava às crianças ainda era válido trinta anos depois. O que ensinamos hoje talvez não vigore dentro de dois anos, ou dentro de um ano. Quando nossas crianças de quatorze anos fo­ rem, aos dezoito anos, soldados ou operários, o que lhe tivermos ensinado estará caduco. Eis a nova realidade. Hoje é preciso que nos preocupemos menos em dar noções, princípios e conhecimentos às crianças, do que em prepará-las para que se adaptem com habilidade e inteligência ao mundo mutante no qual logo terão que integrar-se. Precisamos preparar os processos válidos para preparar essa adaptabilidade. 164

4. Democratização do ensino

E finalmente, os educadores deveríam persuadir-se de que

uma sociedade democrática supõe um ensino democrático.

É uma questão de bom senso e de justiça, que todos os edu­ cadores deveríam compreender e admitir. As conseqüências disso, inevitavelmente, serão uma nova concepção do trabalho, da vida e da disciplina na escola, ba­ seada na cooperação e no trabalho. Tais são alguns dos argumentos da reforma. A escola atual não pode durar mais. Está num impasse que generaliza sua im­ potência. É preciso, custe o que custar, encontrar soluções para sair deste impasse”.12

Mas o ensino é apenas um aspecto da educação, que não é “um costume inconsistente, ao sabor do capricho de hábeis comerciantes ou de perigosos políticos. Seria mortal para o ho­ mem e para a sociedade que se deixasse de construir boas pa­ redes espessas sobre sólidos alicerces, lenta e penosamente es­ cavados, e que só se levantassem paredes frágeis, pouco duráveis, como arquibancadas de parada. E que durarão tanto quanto nós, sob o pretexto de que o mundo muda tão rápido! Ai seria o perigo oposto, ainda mais temível que a imobilidade majestática do ensino tradicional”. “A educação deve ser móvel e flexível em sua forma; deve, necessariamente, adaptar suas técnicas às necessidades variá­ veis da atividade e da vida humanas. Mas não deve, por isso, desempenhar menos seu duplo papel: exaltar no indivíduo o que ele tem de especificamente humano, esta parcela de divino que ilumina uma razão de viver, mesmo nas piores desgraças; enriquecer e reforçar o fundo comum de conhecimentos e de ideal, que é como que nossa terra-mãe, o substrato essencial de nosso futuro. A educação deve, além disso, neste quadro de dignidade, preparar tecnicamente, poder-se-ia dizer, o indivíduo para suas tarefas imediatas. Um não existe sem o outro. Ali­ cerces sem construção por cima serão logo encobertos pelo tem­ po impiedoso, que destrói o inútil, nivela e recobre os cadáveres; construções sem conscienciosos alicerces se desfazem também às primeiras rugas do tempo. A árvore precisa de raízes, mas não se poderia conceber a planta sem caule vivo que a conti­ nue e traga uma razão de ser a suas funções obstinadas. E é por isso que insisto, neste ponto, sobre a necessidade que temos de primeiro reencontrar as grandes linhas de vida, que garantirão nossos fundamentos e nos permitirão construir em seguida, com audácia e dinamismo. É pelo fato de terem adivinhado, atingido e explorado esta trama de bom senso, esta 165

revelação de um lampejo de eternidade, que pensadores — e pedagogos — como Rabelais, Montaigne, Rousseau, permane­ cem atuais através dos séculos. Cabe a nós seguir-lhes o exem­ plo, reencontrar este lampejo e ampliá-lo, se possível, para que anime as obras e as vidas”.13

Notas

1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. 8. 9. 10. 11. 12. 13.

166

L’Éducateur, novembro de 1945. L’Éducation du Travail. Ibidem. William H. Whyte, L’homme de l’organisation. Ed. Plon. Robert Oppenheimer, L’arbre de la connaissance, Ed. Seghers. L’Éducateur, setembro de 1954. R. Oppenheimer, L’arbre de la connaisance, Ed. Seghers. L’Éducation du Travail. L’Éducateur, fevereiro de 1966. L’Éducateur, outubro de 1965. Prefácio do livro de Grandpierre: Une éducation pour notre temps, Berger-Levrault, éd. L’Éducateur, outubro de 1964. L’Éducation du Travail.

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