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Portuguese Pages 166 [164] Year 1993
FREINET E A PEDAGOGIA
COLEÇÃO PSICOLOGIA E PEDAGOGIA — Nova Série Obras publicadas:
Bowlby, J. — Apego e Perda, Vol. I — Apego Bowlby, J. — Apego e Perda, Vol. II — Separação Bowlby, J. — Apego e Perda, Vol. III — Perda Bowlby, J. — Cuidados Maternos e Saúde Mental Bowlby, J. — Formação e Rompimento dos Laços Afetivos Mannoni, M. — A Criança Retardada e a Mãe Dolto, F. — Sexualidade Feminina Blos, P. — Adolescência Freinet, C. — Pedagogia do Bom Senso Redl, F. e Wineman, D. — A Criança Agressiva Redl, F. e Wineman, D. — O Tratamento da Criança Agressiva Bohoslavsky, R. — Orientação Vocacional Benjamin, A. — Entrevista de Ajuda Gesell, A. — A Criança dos 0 aos 5 Anos Piaget, J. — A Linguagem e o Pensamento da Criança Pichon-Rivière, E. — Teoria do Vínculo Pichon-Rivière, E. — O Processo Grupai Braier, E. — Psicoterapia Breve de Orientação Psicanalítica Rogers, C. — Grupos de Encontro Rogers, C. — Psicoterapia e Consulta Psicológica Rogers, C. — Sobre o Poder Pessoal Rogers, C. — Tornar-se Pessoa Winnicott, D. W. — Privação e Delinqüência Bettelheim, B. — A Fortaleza Vazia Bleger, J. — Temas de Psicologia Spitz, R. A. — O Primeiro Ano de Vida Ocampo, M. L. S. de e col. — O Processo Psicodiagnóstico e as Técnicas Projetivas Goldstein, J., Freud, A. e Solnit, A. J. — No Interesse da Criança? Gesell, A. — A Criança dos 5 aos 10 Anos Gusdorf, G. — Professores Para Quê? Vygotsky, L. S. — Pensamento e Linguagem Vygotsky, L. S. — A Formação Social da Mente Fonseca, V. da — Psicomotricidade Winnicott, D. W. — Os Bebês e Suas Mães Ortigues, E. e Ortigues, M.-C. — Como se Decide uma Psicoterapia de Criança Winnicott, D. W. — Tudo Começa em Casa Richter, H. E. — A Família como Paciente Brazelton, T. B. — Ouvindo uma Criança Winnicott, D. W. — O Gesto Espontâneo Pichon-Rivière, E. — Psiquiatria, uma nova Problemática Winnicott, D. W. — Holding e Interpretação Brazelton, T. B. — Cuidando da Família em Crise Cohen, R., e Gilabert, H. — Aprendizagem da Linguagem Escrita antes dos 6 Anos Rogers, C. — Terapia Centrada no Cliente Brazelton, T. B. — O que todo Bebê Sabe Stallibrass, A. — A Criança Autoconfiante Brazelton, T. B. e Cramer, B. G. — As Primeiras Relações Cramer, B. G. — Profissão Bebê Gilliéron, E. — Introdução às Psicoterapias Breves Cottle, T. J. — Os Segredos na Infância Winnicott, D. W. — A Família e o Desenvolvimento Individual Winnicott, D. W. — Conversando com os Pais Maury, L. — Freinet e a Pedagogia Próxima publicação:
Sylva, K. e Lunt, I. — Iniciação ao Desenvolvimento da Criança
FREINET E A PEDAGOGIA Liliane Maury
TRADUÇÃO Yara Maria Laranjeira Mário Laranjeira
Martins Fontes São Paulo - 1994
Título original: FREINET ET LA PÉDAGOGIE Copyright © Presses Universitaires de France, 1988 Copyright © Livraria Martins Fontes Editora Ltda., São Paulo, 1993, para a presente edição
edição brasileira: abril de 1994 Tradução: Yara Maria Laranjeira e Mário Laranjeira Revisão tipográfica: Márcio Delia Rosa
Produção gráfica: Geraldo Alves Composição: Antonio Cruz Antonio Quintino Capa — Projeto: Alexandre Martins Fontes Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Maury, Liliane Freinet e a pedagogia / Liliane Maury ; [tradução Yara Maria Laranjeira e Mário Laranjeira]. — São Paulo : Martins Fontes, 1993. — (Psicologia e Pedagogia. Nova série)
ISBN 85-336-0233-2
1. Freinet, Célestin, 1896-1966 2. Pedagogia 3. Psicologia educacional I. Título. II. Série. CDD-370.15
93-2923
índices para catálogo sistemático:
1. Freinet : Psicopedagogia 370.15 2. Psicologia educacional 370.15 3. Psicopedagogia 370.15
Todos os direitos para a língua portuguesa reservados à LIVRARIA MARTINS FONTES EDITORA LTDA. Rua Conselheiro Ramalho, 330/340 — Tel.: 239-3677 01325-000 — São Paulo — SP — Brasil
ÍNDICE
Introdução ................................................................... VII
Capítulo I. A imprensa na escola ......................... 1 1. Freinet: Rumo à escola do proletariado . 3 2. A Sra. Montessori e a “pedagogia científica” 15 3. Decroly e “o método dos centros de inte resse” .......................................................... 20 4. Ferrière e “a escola ativa”......................... 22 5. Freinet e “a imprensa na escola” ............. 25 Capítulo II. O interesse da criança ....................... 31 1. Freinet: Uma nova técnica de trabalho es colar ............................................................. 33 2. O interesse e o esforço ................................ 41 3. A necessidade e o interesse........................ 47
Capítulo III. A criançadesarraigada .................... 51 1. Freinet: A educação do trabalho — A crian ça desarraigada.......................................... 53 2. “A criança” e a educação ......................... 63
Capítulo IV. O trabalho-jogo.................................. 71 1. Freinet: A educação do trabalho — O tra balho-jogo .................................................. 73 2. “A psicologia da escola ativa” ................. 79 3. A atitude laboriosa ...................................... 81 Capítulo V. “A escola do trabalho” ................... 89 1. Freinet: A escola do trabalho ................... 91 2. O trabalho na “escola ativa” ................... 105 3. O trabalho na “coletividade infantil” ... 115 Capítulo VI. Freinet e a escola .............................
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Notas.............................................................................. 135 Alguns marcos cronológicos .................................... 143
INTRODUÇÃO
Desde que existe a escola, ela é discutida. Mas a dis cussão muda conforme a época — e o lugar — e não é a mesma escola que se questiona. Além disso, se a críti ca for levantada do interior da escola ou se lhe for diri gida do exterior, as coisas — e as palavras — mudam. De fato, a seu respeito, fala-se às vezes de instru ção, mas também de educação ou de pedagogia (utilizamse igualmente termos mais técnicos como ensino ou mais pomposos como didática). Tais termos não se abrangem, mesmo se às vezes utilizamos um pelo outro. Eles impli cam sempre imagens da escola que não são equivalen tes. Assim, Alain, por exemplo, em seus Propossur l’éducation, fala de instrução. Teria ele em vista essencialmente o secundário? E quando se fala do saber, termo freqüentemente empregado em nossos dias, estamos pensando na universidade? Em qualquer situação, cada uma dessas palavras pressupõe uma idéia da finalidade da escola — seja ela
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primária, secundária ou universitária — que ninguém quer encarar de frente nos dias de hoje. Realmente, a finalidade da escola a transcende ne cessariamente, revelando ao mesmo tempo o caráter pro fundamente político de todo questionamento que lhe diz respeito; quer ele recaia sobre o tipo de ensino, suas prá ticas, isto é, a pedagogia, ou ainda, de maneira mais ge ral, sobre a educação daí resultante. Todas essas pala vras, vê-se, não têm o mesmo sentido. O problema do vocabulário empregado tem sua im portância. É por isso que ele não pode ser estabelecido a priori e como tal. Ao contrário, será parte integrante de nossa análise. Com efeito, nós nos situamos no começo do século XX, numa época em que nasce a psicologia, disciplina em que a terminologia está constantemente em jogo. As dificuldades verbais próprias à psicologia vão natural mente repercutir na maneira como ela encara a questão da escola. O que inflecte também — reciprocamente — a natureza de tais questões. Além da escolha das palavras — e de modo não in dependente — a psicologia produz, no começo deste sé culo um tipo de questionamento muito específico sobre a escola: um questionamento experimental. É pelo método que a psicologia se interessa em seu próprio campo, e é aí que irá centrar-se naqueles que lhe são próximos. De modo que não podemos negligenciar a questão da validade da experimentação em pedagogia. Se, nas ciências exatas, principalmente em física, o valor de uma prova pela experiência é relativamente bem definido — e isto se dá em parte pela reprodutibilidade
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da experiência — não é o caso das ciências humanas. A fortiori no terreno da pedagogia em que a experiência acontece em campo. Seu estatuto é impreciso e sua reprodutibilidade bastante contestável. Além disso, a experiência pedagógica é descrita em linguagem cotidiana. Os pedagogos que realizaram esse tipo de experiência descreveram-nas em livros, acessíveis a um público leigo, e alguns com muito sucesso: no co meço do século e, por razões que não analisaremos, por volta de 1970 novamente. Desde então, uma nova questão se levanta: qual o estatuto desses escritos? Algumas obras são quase romances autobiográficos, outras se situam mais perto do tratado. Não é por acaso que Rousseau inaugura uma mistura dos dois gêneros em Emile ou De 1’éducation. Com a obra pedagógica, reen contramos o problema da escolha das palavras, mas de for ma mais viva: trata-se agora de estilo. Dentre numerosas obras pedagógicas que apareceram no começo do século, e que hoje desaparecem das livra rias, escolhemos a obra de Freinet, e particularmente “A educação do trabalho”. Esse livro é publicado em 1946. Por que Freinet? Ele é conhecido como um mestre-escola revolucio nário. Ele próprio se apresenta como o inventor da “im prensa na escola”. Freinet reivindica sua condição de prá tico e insurge-se contra qualquer incursão científica no terreno da escola. Estaria ele, dessa forma, a salvo da linguagem “científica” da psicologia? Não podemos res ponder sem estudarmos seus escritos. Eis por que cada uma das partes deste livro se inicia pela leitura de um
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texto de Freinet. A análise que propomos na seqüência de cada texto consiste em confrontá-lo com outros rela tos pedagógicos da época, conhecidos ou não por Frei net, que ele aprova ou refuta. De tal confrontação se destacará a especificidade da obra de Freinet, e a resposta a uma pergunta que não podemos deixar de formular: O que quer dizer “a edu cação do trabalho”?
CAPÍTULO I
A imprensa na escola
1 — Freinet: Rumo à Escola do Proletariado
Contra um ensino livresco. A imprensa na escola.
Para responder as perguntas de muitos de nossos lei tores, pedimos ao nosso camarada Freinet para nos con tar como ele próprio aplica em sua classe seu novo mé todo de imprensa na escola. Assinalamos especialmente a nossos colegas do ensino primário essa interessante ino vação e pedimos-lhes que nos participem, a esse respei to, suas críticas ou suas sugestões. Basear todo nosso ensino nas necessidades e interesse da criança — e não em nossas crenças ou desejos de adul tos — é certamente o sonho dos melhores pedagogos con temporâneos1. Mas as necessidades de um ensino popular, em clas ses numerosas nos permitiríam isso? Um bom mestre pode organizar a sucessão das li ções e das tarefas de modo a apoiar-se constantemente no interesse dominante e nas necessidades espontâneas de sua classe. Mas com que textos impressos realizará o aprendizado da leitura, que requer no entanto um esfor ço incessante? Como escolherá os livros?
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Ele pegará um desses manuais recentes em que as diversas lições são cuidadosamente repartidas de acordo com um engenhoso sistema de centros de interesse2. E essa classificação, ao menos quando consideramos ape nas os interesses dominantes que o Dr. Decroly definiu de maneira excelente, é nitidamente um progresso. Mas então, quem catalogará, quem terá a preten são de imobilizar num livro uma vida tão móvel e tão diversa, segundo as regiões, quanto a de nossos aluninhos? Hoje, instalamos um aquecedor na classe; e o dia todo os alunos têm diante dos olhos este novo móvel que se acrescenta às coisas familiares. Eles se interessam pe lo fogo, pela chama, pela fumaça, eles querem se apro ximar, sentir o calor. É absolutamente necessário falar sobre o aquecedor e a calefação. Mas seu sistema de centros de interesse não previu essa lição para esse dia! Estaria deixando passar uma oportunidade única de ensinar alguma coisa que se gra ve na mente da criança, porque esperada e desejada. Um morcego caiu no pátio. Não se deve hesitar: é preciso falar a respeito, primeiro por ser uma excelente oportunidade, mas também porque crianças fascinadas seriam dificilmente conduzidas a um outro trabalho — que, aliás, seria feito sem motivação e sem prazer. Caiu uma forte tempestade esta noite. As crianças ouviram soar os trovões; esconderam-se sob os lençóis para tentar não ver os relâmpagos. Estão muito excita dos ao chegar à sala de aula. Canalizemos, exploremos essa emoção; e eis uma lição que termina com uma leitu ra do maior interesse.
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Se for um livro ou uma programação impecável que dão o tom à aula, que indicam pela manhã qual será o interesse do dia, perdemos o benefício do verdadeiro in teresse. Com raras exceções, seremos levados a suscitar na escola um interesse especificamente escolar, numa re lação artificial com a vida. A vida da escola mais uma vez se justaporá à vida do aluno. Mas a escola não será, como gostaríamos, uma manifestação mais rica e mais intensa da vida.
A Vida Ponhamos de lado, então, o manual e deixemos que vivam os nossos alunos. Estão chegando, nesta manhã de segunda-feira, com os olhos e o espírito ainda repletos da tempestade que, ontem, branqueou o campo com pedrinhas de granizo. Vamos falar da vida das plantas como havíamos previs to? Deixemos falar, peçamos um pormenor aqui, demos outro ali, tratemos de levar mais longe a observação in fantil necessariamente superficial e façamos uma redação: “O granizo. — As chuvas de março começaram. On tem, às três horas, caiu muito granizo. As pedrinhas, do tamanho de bolinhas de gude, caíam firmes e batucavam nas telhas e nas vidraças. Em poucos instantes, o campo estava todo branco. Estávamos contentes e fazíamos bolas degelo mas nossos pais diziam: pobres dos nossos campos! " Lê-se com entusiasmo — e um entusiasmo que ja mais vi esmorecer — esse texto vivo. Três ou quatro alu nos o compõem; é trabalho para quinze ou vinte minu tos. E até os que só lêem silabando compõem bem de pressa. Durante o trabalho, em que o mestre não inter
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vém de maneira alguma, os demais alunos continuam sua tarefa: leitura individual, cópia ou exercício em relação com o assunto de estudo, deveres de cálculo, segundo mé todos mais individualizados e tendendo à auto-educação. Terminada a redação, imprime-se. Com uma pren sa manual, ainda que seja rudimentar, 100 impressos saem em cinco ou dez minutos: um exemplar que cada um irá colar em seu livro de vida; alguns exemplares su plementares para os ausentes. E às vezes, à noite, um garoto dedicado leva as lições do dia a seu colega doen te que assim é colocado a par da vida da classe. Trinta e cinco impressos são destinados a nossos colegas da es cola de J...; quarenta aos da escola de F... E logo um aluno maior enviará a seus endereços esses fragmentos de vida. É bem verdade que, às dez horas também, o cartei ro aparecerá trazendo duas entregas das escolas de J... e de F... E você pode avaliar o prazer com que nossos alunos vão devorar esses outros fragmentos de colegas que moram bem longe, em regiões que nem imaginam onde ficam, mas de que, dessa forma, aprendem a prin cipal vida que lhes interessa: a das outras crianças. Que riqueza de leituras! não acha? E não mais lei turas de interesse artificial, transposto. É a própria vida que ensina nossos pequenos alunos3.
Mas, primeira objeção Dessa maneira, os alunos não perdem um tempo muito precioso? É uma objeção de peso.
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E admitamos até que os cinco ou seis alunos que, alternadamente, compõem o texto, perdem assim de quin ze a vinte minutos. Pode-se, por isso, condenar impie dosamente uma técnica que torna uma classe viva a esse ponto? Se vissem, todos vocês que conhecem o tédio, o invencível tédio da criança que abre seu livro “na pági na seguinte”, se vissem vinte e cinco alunos excitados diante do papel que vai sair impresso: A tinta está ho mogênea? Não há nenhum erro? E os menos adiantados obstinam-se sobre o impresso para se assegurarem de que todas as letras estão no lugar certo. Depois, todos lêem avidamente, pois trata-se mesmo de ler, da mesma for ma que se deseja falar. Todas as tarefas que têm esse texto como base são acolhidas com a mesma alegria porque estamos diante de um centro de interesse verdadeiro. E esse interesse, essa vida, os alunos estariam pa gando demasiado caro sacrificando de quinze a vinte mi nutos a cada dois ou três dias! Ah! se todos os minutos perdidos fossem tão fecundos! Não é somente a vida egoísta de uma escola que res suscita dessa forma. Pois a imprensa permite que duas, três classes afastadas se correspondam a baixo custo, interpretem-se, unam suas vidas a fim de alargar e apro fundar o círculo restrito de cada um. E é aí, a meu ver, que reside uma força educativa de grande futuro. Mas sustento, além disso, que a criança que com põe no prelo está longe de perder tempo. Enquanto são necessários prodígios de restrições e diplomacia para con seguir que um aluno se fixe num texto por alguns instan tes, eis que nossos impressores mantêm seus olhos gru
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dados no modelo durante quinze a vinte minutos. E que atenção! Pois não é um exercício vulgar de cópia de que se corrigem facilmente os erros mesmo que numerosos. A cópia precisa ser perfeita. Até os acentos, a pontua ção, que importância não vão assumir? É impossível, também, que esse trabalho mecânico de colocar os ca racteres uns ao lado dos outros, separando as palavras por espaços, não ajude no aprendizado da leitura e da ortografia. Assim: atenção longamente fixada num texto; ne cessidade de um trabalho perfeitamente acabado; apren dizado mecânico da ortografia, estas são, na minha opi nião, as vantagens diretas para a criança impressora, do emprego da imprensa. Faltou-me tempo, até agora, para tentar medir esse aproveitamento. Mas o que sei com certeza é que, du rante seis meses em que o interesse não enfraqueceu um só instante, a leitura, a ortografia e a composição fize ram progressos significativos. E principalmente — pro va para mim de que esse trabalho de imprensa não é so mente um jogo — nenhum aluno jamais pediu para não imprimir, apesar das dificuldades relativas desta prática.
Segunda objeção Tal procedimento não é demasiado caro? É, ao contrário, particularmente econômico. Com 100 ou 150 francos, um construtor dedicado poderia con seguir para nós uma pequena tipografia, permitindo uma tiragem de textos de doze a quinze linhas, o que é uma boa média. As prefeituras poderiam comprar essas tipo
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grafias como nos fornecem — às vezes!... — mapas, li vros ou outro material de ensino. Ou então as coopera tivas escolares conseguiríam bem depressa fazer essa des pesa inicial. Uma vez comprado o material, algumas dezenas de francos por ano seriam suficientes para garantir a fun dição dos caracteres gastos, renovar ou melhorar uma parte do material, comprar tinta azul, preta, vermelha, decorar com belas vinhetas. Pois, não sendo profissio nal, qualquer mestre-escola, e as próprias crianças, con seguiríam obter bem depressa de sua tipografia combi nações novas e inesperadas. Apenas a despesa inicial é um pouco elevada; mas depois ela permite uma real economia já que com cinco francos de papel e três de tinta nós faremos milhares de impressos. E poderemos então comprar os livros cuja ne cessidade já reconhecemos. Terceira objeção Método possível apenas nas escolas pouco numero sas, dirão ainda. Tal como acabamos de apresentar, o método é par ticularmente flexível, podendo se adaptar tanto às clas ses sobrecarregadas da cidade como às de várias divisões de nossas cidadezinhas. Mas, certamente, ele pede uma vida nova da classe, totalmente baseada na cooperação entre os alunos por um lado, e também entre mestres e alunos. É a condena ção da rotina que dará lugar a um incessante interesse. Esta técnica renovada ainda está inexplorada. Mas será
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o triunfo da escola ativa e sob medida cuja realização nas classes primárias tanto tempo pareceu utópica. Mas esta vida, poderão objetar ainda, seria capaz de dar à criança os conhecimentos que se espera da esco la? E se a vida — a vida total, entende-se, e não a vida limitada e fechada da escola atual — se a vida não puder dar educação e instrução, por que procedimentos sofis ticados poderiamos obtê-los de modo razoável? Marcou-me um fato, aliás. Quando percorrí a série dos títulos das 200 páginas do nosso Livro de vida (dois primeiros trimestres), constatei que a repartição dos as suntos é mais ou menos a que preconizam os adeptos dos centros de interesse. E eis o outono com as frutas, os co gumelos, o vento — e também as matrículas. Depois, o inverno com o estudo dos diversos meios de se garantir contra o frio. A primavera, tão rica em impressões com as fortes chuvas, o granizo, os desabamentos — mas tam bém as primeiras flores, as batalhas de flores — os cir cos tão ricamente decorados; também com a onda de gri pes que, periodicamente, quase esvaziam nossas salas. E constato com satisfação e humildade que tais re partições a partir do interesse dominante das crianças, repartições que precisaram de nada mais nada menos que o gênio do Dr. Decroly, essa repartição aconteceu natu ralmente em minha classe viva, onde não impus assunto algum, limitando-me a ouvir, dirigir a conversa, sinteti zar e colocar em ordem, e em francês, as idéias dos meus alunos. Não teria a pretensão de dizer que, com a técnica da imprensa eu tenha feito algo como fez o Dr. Decroly. Foi ele que, por um longo desvio, trouxe a ciência peda
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gógica a seu ponto de partida: o bom senso e a vida. Mas esses sistemas que vamos, como por prazer, buscar tão longe, estão aí, nos olhos vivos e nas cabecinhas de nos sas crianças. Mas somente a tipografia tornou possível a realiza ção dessa vida. E eu gostaria muito que aqueles que le rem estas linhas consigam, um dia, viver intensamente, como eu vivo, há seis meses, em minha classe renovada. C. Freinet.
N.B. — Teria o máximo prazer em responder mais lon gamente e em dar todas as informações úteis àqueles que desejarem me solicitar. Este texto foi reproduzido graças à amável autori zação de Mme M. Bens.
O artigo que acabamos de ler foi publicado em Clarté, no final do ano de 1925. Clarté ou Le Bulletin français de 1 Internationale de la Pensée é uma revista dirigida por Henri Barbusse, que foi publicada entre 1921 e 1928. Ela divulga ao mesmo tempo artigos de atualidade e artigos literários. Encontramos também nomes de escritores fa mosos, como o de Anatole France ou Paul Eluard ou que se tornarão famosos, como o de Michel Leiris, e nomes totalmente desconhecidos na época, como o de Freinet. É o primeiro texto que Freinet dedica a sua inven ção, mas não, longe disso, o último. Em 1927, cria sua própria revista que intitula A tipografia na escola. Em 1931, o título se torna O educador proletário.
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Podem-se ler numerosos trechos desses artigos no livro de Elise Freinet, Naissance d’une pédagogie populaire4, e confrontá-los entre si. Inegavelmente, ao longo do tempo e das circunstân cias, Freinet começa a falar de outra forma de sua in venção. Se em 1925 ele suscita perguntas por parte dos leitores de Clarté, em 1932 pede uma adesão total à “ti pografia na escola”. De onde vem essa mudança de tom? Segundo Elise Freinet — que se torna mulher de Frei net em 1926 e participa, a partir dessa data, de toda sua experiência, integrando-se a ela — a imprensa seria, em sua origem, uma descoberta que se deveu a uma série de acasos felizes. Seria bem isso? Lendo Freinet, tem-se mais a impressão do resultado de uma reflexão crítica sobre a escola e suas práticas. De uma forma ou de outra, uma questão se levan ta: será que a imprensa é por si uma invenção original, ou seria a utilização que dela faz Freinet que é original e, veremos, incômoda para a escola? Tendemos a essa segunda hipótese, mais conforme os escritos de Freinet. Com efeito, desde o começo, Freinet especifica que “a imprensa na escola” não é simplesmente um méto do, mas uma “técnica pedagógica”. O que significam es sas duas palavras — elas figuram no texto de Clarté — e que diferença Freinet vê entre elas? Para entender, devemos situar os escritos de Frei net em relação a outros escritos pedagógicos da época. Veremos então o que recobre essa querela de palavras e, por aí, o que distingue Freinet de um movimento pe
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dagógico, que o ultrapassa inegavelmente, mas que por sua vez — e talvez diferentemente do que possa crer — ele também ultrapassa. Vejamos primeiro o que escreve Freinet, antes e en quanto ele propõe “a imprensa na escola”. Em Clarté, em 1924, publica vários artigos: uma “pesquisa agrícola” sobre as condições de vida dos cam poneses do sul da França, e textos militantes e polêmi cos sobre a escola. Será através do estudo de um deles, “A Escola do trabalho”, que terminaremos nossa análise. Ao lado disso, Freinet escreve também em revistas especializadas em pedagogia. São relativamente nume rosas na época, e continuarão a sê-lo até por volta de 1960. Assim, em L’Ecole émancipée de 1925, Freinet pu blica, entre outros artigos e relatórios, “Notas sobre a adaptação de nosso ensino”. Trata-se de uma reflexão crítica sobre o ensino primário na França e de uma con frontação entre dois métodos pedagógicos: “O método Montessori” e “O movimento Decroly”. Freinet não escolhe as palavras para falar da Sra. Montessori: “A Sra. Montessori se vangloria, de manei ras às vezes pouco modesta, de ter descoberto este ‘apa relho científico’ necessário e suficiente a uma boa edu cação. Pensamos que isso é um exagero. Seu material é um progresso enorme, principalmente o que ela destina às escolas maternais. Erraríamos, entretanto, se o con siderássemos definitivo. Pois”, continua Freinet, “na da há de mais perigoso do que um método que se fixe, que se imobilize em sua forma — e que um autor consi dere seu sistema ‘brevetado’ intangível.”
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Com relação a Decroly, a atitude de Freinet é ao mes mo tempo mais positiva e mais ambígua. É o que, aliás, denotam as últimas linhas do artigo de Ciarté: “Foi ele que, por um longo desvio, trouxe a ciência pedagógica a seu ponto de partida: o bom senso e a vida.” O que distingue “a imprensa na escola” de Freinet dessas duas pedagogias científicas? Antes de responder a essa pergunta, devemos apre sentá-las. Começaremos pela Pedagogia científica5 da Sra. Montessori e depois daremos o essencial com rela ção aos “centros de interesse” de Decroly e sua concep ção da Escola renovada6. Mas também é preciso mencionar um terceiro pe dagogo: Ferrière, autor de L’Ecole active1. Freinet cita-o no artigo de Clarté e fará constantemente referência a ele.
2 — A Sra. Montessori e a “pedagogia científica”
A Sra. Montessori é italiana, mas sua reputação ul trapassa rapidamente — e até nossos dias — as frontei ras do seu país. Suas obras são traduzidas e difundidas em numerosos países, e sua escola, “la casa dei bambini”, é reproduzida ou adaptada. Principalmente seu “ma terial didático” lhe traz, pode-se facilmente imaginar, um grande sucesso. O que é o método Montessori? Ou mais exatamen te, retomemos os seus termos e perguntemos quais são os seus “antecedentes”? Médica a princípio, a Sra. Montessori estuda por gosto — ou por fé na ciência — a psicologia experimen tal alemã8. É sobre esse alicerce que ela edifica uma pe dagogia experimental e, portanto, científica. Como ela própria gosta de contar, seu método tem suas raízes na obra de Itard, o médico francês que reco lhe e educa “o Selvagem de Aveyron”9, no começo do século XIX. Mas trata-se de uma referência indireta ape nas, já que sua inspiração tem origem em Seguin, um alu
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no de Itard. Seguin “aplica o método de Itard, modificando-o e completando-o, para crianças deficientes”. No início, trata-se de um método para “a educação dos idio tas”, mas depois torna-se pura e simplesmente “fisioló gica”. O que seduz a Sra. Montessori é uma passagem possível entre o que é “anormal” e o que é “normal”. “Eu pensava que se um dia essa educação especial, que tão espantosamente havia desenvolvido os idiotas, pu desse ser aplicada ao desenvolvimento de crianças nor mais, o milagre se espalharia pelo mundo, e que o abis mo entre a mentalidade dos idiotas e a normal seria preen chido para sempre.”10 Pois, para a Sra. Montessori, as crianças anormais “haviam sido ajudadas em seu desenvolvimento, enquan to as normais haviam sido sufocadas e deprimidas”. Tal termo, desenvolvimento, que analisaremos mais tarde, é próprio da psicologia. Ele permite uma imagem quantitativa da criança e um paralelo cômodo entre o que é normal e o que não é, sem levar em conta de outro mo do, o tipo de anomalia. Assim, “entre deficientes e nor mais”, escreve a Sra. Montessori, “a comparação é pos sível quando se põe à parte as diferentes idades: quer di zer, quando se faz a discriminação entre as crianças que não tiveram força para se desenvolver (os deficientes), e as que ainda não tiveram tempo (as criancinhas). Com efeito, julgam-se as crianças retardadas como crianças cuja mentalidade acusa características mais ou menos nor mais de crianças alguns anos mais novas”11. Ora, o método Montessori consiste precisamente em “ajudar o desenvolvimento natural”. De modo que Mon-
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tessori, invertendo o procedimento de Seguin, irá “apli car em” crianças normais o método fisiológico. Seu método pode, aliás, ser considerado duplamen te científico: partindo da psicologia experimental, ele con duz à da criança. Pois a “pedagogia científica” é tam bém a possibilidade de observar “a criança” em seu am biente natural. Observação que se situa na origem da psi cologia da criança. É em virtude da natureza da criança que Montesso ri se insurge contra a barbárie do banco de escola e que denuncia a imobilidade forçada das crianças. Colocan do em prática suas idéias, ela cria sua própria escola: “A idéia genial”, escreve, “foi a de recolher os filhos dos locatários de um grande prédio, de três a sete anos, e de reuni-los numa sala sob a direção de uma professora, ela própria moradora desse prédio. A primeira escola deve ria ser fundada em janeiro de 1907 num prédio popular do bairro de San Lorenzo (Roma)... Essa escola domicí lio foi gentilmente batizada como ‘Casa das Crianças’ e colocada sob minha responsabilidade.”12 É aí que a Sra. Montessori aperfeiçoará de certa ma neira, com a prática, o seu método pedagógico. Em que consiste tal método? Primeiramente — “nature oblige” — Montessori es tabelece em sua escola uma atmosfera de higiene física e moral. Conhecemos sua famosa “lição de silêncio”: “É preciso ensinar o silêncio às crianças: para isso, é preciso fazer executar diferentes exercícios que contri buam à surpreendente capacidade de disciplina de nos sas crianças.”13 A esses exercícios de silêncio, podem-se acrescentar
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muitos outros, cujo objetivo seria desenvolver a motricidade e os sentidos: para a visão “exercícios para a dis tinção das dimensões e das cores”, para a audição “exer cícios para a distinção dos ruídos e dos sons”. Exercita mos também o paladar, o olfato — aqui fica clara a he rança de Itard —, naturalmente, o tato. É desta maneira que Montessori vai acertando pouco a pouco seu “ma terial didático” que, mesmo que inspirado no de Frõebel14, não é menos original. Antes de fazer qualquer co mentário, detenhamo-nos um instante sobre o papel que Montessori atribui à professora. Ela a compara a um pro fessor de ginástica e, “esse professor de ginástica não é um orador, mas um indicador...”. Com efeito, “sua li ção, embora ativa, pode-se aprender clara e facilmente. Ela deve saber escolher o objeto e apresentá-lo de modo a suscitar o interesse da criança”15. Deixemos de lado “o interesse da criança”, volta remos ao assunto, e vejamos o que são, na verdade, es ses objetos que a professora deve apresentar; eles fazem parte do método. São blocos, de formas e tamanhos di ferentes, que podem se encaixar uns dentro dos outros. Esse tipo de material foi banalizado hoje em dia. Ele co nheceu um enorme sucesso enquanto a matemática mo derna estava em voga na escola maternal. Não era bem o caso na época da Sra. Montessori. De qualquer modo, nós o tomaremos em sua forma aperfeiçoada, isto é, quando se torna “o alfabeto móvel”. De fato, — e aí reside a originalidade do método Montessori — passa mos sem choque e à custa de um mesmo material da exe cução de um gesto à escrita e, em seguida, à leitura. Sem choque? Não exatamente.
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Em primeiro lugar, uma questão de ordem teórica de que Montessori não pode escapar: “Nossa concepção pedagógica, que consiste em ‘auxiliar o desenvolvimen to natural’ da criança, deverá deter-se diante das aquisi ções advindas da civilização? Nós queremos falar do en sino da escrita e da leitura. Trata-se aqui ‘de ensinar’ cla ramente o que não mais depende da natureza do homem propriamente dita.”16 Essa questão é resolvida pela Sra. Montessori, no início verbalmente, falando de “linguagem gráfica”. O que recobre tal expressão? A Sra. Montessori separa a aprendizagem da escri ta da aprendizagem da leitura. Ela privilegia a primeira sobre a segunda. A escrita, estando fundamentada no ges to, pode, segundo Montessori, salientar “a natureza do homem” e não exclusivamente a “civilização”, como a leitura. De modo que Montessori elabora “um método para a escrita” e “é evidente” que este “prepara a leitu ra de modo a tornar as dificuldades quase insensíveis”. Desde então uma só expressão basta para os dois: “A linguagem gráfica”. Vejamos este “método para a escrita”, Montessori nos expõe a sua gênese. Tendo ensinado “uma idiota de onze anos” a costurar, sem costurar realmente, mas fa zendo com que entrelaçasse tiras de papel, a Sra. Mon tessori conclui: “O movimento necessário à costura ha via sido preparado sem costurar; era, portanto, preciso encontrar a maneira de ensinar os movimentos antes de executá-los... De fato, após ter feito com que as crian ças tocassem os contornos geométricos dos encaixes pla nos, restava apenas fazer com que tocassem corn os de dos, da mesma forma, as letras do alfabeto.”11
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Com a invenção do “alfabeto móvel”, das letras de cartão com lixa, o método Montessori ganha peso já que pode sair da escola maternal. Eis por que Freinet o cita em “A Escola emancipada”. Ele denuncia, lembramos bem, o perigo em que incorre esse método de tornar-se definitivo, e prossegue: “Esse perigo torna-se visível quando julgamos os esforços que fez a Sra. Montessori para estender seu método de educação nas escolas ele mentares. Procuraríamos em vão o sentido prático... E é somente essa prática que buscamos.”18
3 — Decroly e “o método dos centros de interesse” Decroly é um médico belga. Especializa-se em psi cologia e em pedagogia e, para pôr em prática suas idéias, abre sua escola. A “escola Decroly” conhece numero sos adeptos ainda hoje. A reputação de Decroly, embora menos internacio nal que a de Montessori, é muito grande. Entretanto, há uma diferença notável entre os dois pedagogos. Montes sori exalta a criança, Decroly preocupa-se mais com a escola. Seu método concerne, aliás, à escola primária ex clusivamente e seu ponto de vista é o do “rendimento” do ensino e do aluno. O livro que publica em 1921, Vers l’école rénovée19, e que Freinet menciona no artigo publicado em Clarté, apresenta-se como uma obra de atualidade: “Entre os problemas do pós-guerra”, escreve Decroly na introdu ção, “um deles parece ganhar novo interesse, o da edu cação da juventude.” E imediatamente Decroly propõe “medidas” a fim
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de “tornar o período obrigatório da escola mais frutífe ro a um maior número de estudantes”. Essas medidas são de ordem essencialmente práti ca. Assim, trata-se de “submeter as crianças a uma sele ção prévia'' e a partir daí “homogeneizar os agrupamen tos existentes”. Decroly preconiza a criação de “seções paralelas para crianças fracamente dotadas ou atrasa das”, “classes especiais para crianças anormais” e, su premo refinamento, “classes de anormais de verdade”. Para essas últimas, recomenda que se limite o número de alunos a 12. Mas, é evidente, Decroly se preocupa tam bém com os “mais bem dotados”. As medidas que pre cedem devem permitir que “caminhem para frente”. Dessa maneira, o método pedagógico que Decroly elabora é um meio de favorecer as “medidas” que ele preconiza e o rendimento escolar. Partindo de uma crí tica do programa de ensino, Decroly propõe sua substi tuição por “um programa de idéias associadas”, que se mostrou eficaz “em escolas para alunos atrasados e nor mais”. Esse programa consiste, como o nome indica, em interligar as matérias de ensino umas às outras. É pelo “método dos centros de interesse” que se opera essa re lação. De que se trata? Decroly luta contra a dispersão da atenção. Assim, ele vai centrar “o interesse da criança” em um único te ma, e durante um período relativamente longo: nove me ses. Isso permite esgotar todas as facetas desse tema. Com efeito, o tema deve corresponder a uma “ne cessidade vital” pois “a escola deve responder à sua fi nalidade de educação geral preparando a criança para a vida social atual”. E um tal tema pode ser subdividido
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em numerosos interesses. Dessa forma, um tema como “a necessidade de se alimentar” contém o “da luta con tra as intempéries” ou ainda o da “defesa contra os pe rigos e inimigos diversos” já que todos concernem tanto à alimentação dos animais e das plantas quanto aos meios de aquecimento ou às recomendações vestimentares. Esse método, notamos claramente, nada tem de re volucionário. Será isso que lhe garante o sucesso esco lar? Em todo caso, é esta a crítica que lhe dirige Freinet em seu artigo L’Ecole émancipée: “com raras exceções, seremos levados a suscitar um interesse especificamente escolar, em relações artificiais com a vida. A vida da es cola se justaporá uma vez mais à vida do aluno”20. 4 — Ferrière e “a escola ativa”21
Analisaremos mais tarde “a escola ativa” de Fer rière. Assim, limitemos, por enquanto, esta apresenta ção às idéias teóricas desse pedagogo que Freinet muito admira. Ferrière é suíço e sociólogo. Contrariamente aos dois pedagogos precedentes, não inventa seu método nem abre sua própria escola. Suas ambições são maiores. Impul siona um movimento de transformação da escola que, ultrapassando as fronteiras de seu país de origem, atin ge a América Latina. É preciso admitir que a idéia é tentadora: antes de optar pela “escola ativa”, Ferrière anuncia uma escola “serena”, evitando assim, por pouco, o título nada sé rio de escola “atraente”. Seu interesse pela psicologia é, de algum modo, in
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direto. Desejando impulsionar “um mundo de justiça e de paz” volta-se contra a escola, onde se encontram con centrados a juventude e o futuro da humanidade. A trans formação da escola deve passar pela educação que, para ele, apóia-se na psicologia. De onde o segundo capítulo de seu livro: “Os fundamentos psicológicos da Escola ativa”. A bem da verdade, o sucesso de Ferrière advém da idéia grandiosa do progresso que ele defende. Progresso natural. Ele obedece à “lei biogenética do progresso”, e esta governa tanto a criança como a humanidade. A criança evolui, e isto é ponto pacífico. E essa evo lução só pode ser um progresso, dada a situação de par tida: “Sob vários aspectos, a criança é primitiva, não evo luída, um equivalente do selvagem, possuindo, a mais, todo um mundo de vírtualidades escondidas no fundo de seu organismo psíquico e físico, e que, chegado o mo mento, virão à tona.”22 E esse momento chega inevitavelmente. Para que nos convençamos disso, Ferrière invoca tanto “o impulso vi tal” de Bergson quanto os nomes de Nietzsche ou de Schopenhauer. Mas isso não é o essencial. O verdadeiro interesse, sob o ponto de vista de Fer rière, é que ele permite “esboçar as principais manifes tações da lei biogenética no duplo enfoque individual e social”. Certamente, ele é levado a admitir que “o paralelis mo entre a vida individual e a evolução da espécie é ne gado por muitos biólogos. Mas, prossegue, é evidente, que, em psicologia, é preciso ser vítima de um ‘parti pris’ para poder negá-lo”.
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Não é o caso de Ferrière. E é exatamente o que o leva a concluir o segundo capítulo de seu livro por “um afresco panorâmico para a evolução da humanidade e da infância”. Neste, os períodos da infância são relacionados com as etapas da humanidade — das origens aos nossos dias — e com diferentes “tipos psicológicos”23. Por exem plo, à infância “vegetativa”, de zero a dois anos, cor responde o período dos “caçadores primitivos isolados” e o “tipo sensorial vegetativo e tátil”, isto é, “os selva gens”. No topo desse afresco: “a razão pura”. Ela é atin gida entre vinte e vinte e dois anos e corresponde, como não poderia deixar de ser, ao “tipo racional”, que ca racteriza “os sábios”. É também o período do “solidarismo” e da “liberdade refletida”. É exatamente disso que se trata para Ferrière: “É essa liberdade que eu que ro para a criança. Ela deve aprendê-la.” Daí uma fór mula que será retomada por Freinet: “desenvolver o senso crítico da criança”. Ferrière não detém o monopólio dessa visão parale la entre a evolução da criança e a de uma humanidade mítica. Nós a encontramos não somente em numerosos escritos pedagógicos, como também em outros, conside rados científicos. Além disso, implícita ou explicitamente, ela funda a noção de “desenvolvimento da criança”, que discutiremos. Portanto faz, inegavelmente, parte da psi cologia. Quais são as relações entre Freinet e Ferrière? Para Freinet, Ferrière, com sua “escola ativa”, abriu a escola para a vida. É também sua ambição. Tanto é que lhe presta homenagem do princípio ao fim de sua
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experiência. Mas isso não impede que ele perceba, em 1924 pelo menos, as divergências entre suas duas posi ções, como prova esta conclusão de um artigo intitulado “A última etapa da escola capitalista”24: “A decadên cia e a morte da Escola são o resultado do formidável desenvolvimento do capitalismo; foi para desembocar nesse impasse que a escola ‘gratuita e obrigatória’ ins truiu trabalhadores durante meio século. Diante dessa fa lência, compreende-se, enfim, o perigo de uma instru ção que vá de encontro ao progresso humano; vê-se que não basta desenvolver, melhorar, ‘reformar’ o ensino. É preciso ‘transformá-lo ’ — segundo as palavras de Ferrière — que não é comunista, é preciso revo/uczo/íd-Zo.”
Os três pedagogos que acabamos de apresentar são diferentes uns dos outros. Entretanto, há um ponto que os une: os três procedem do exterior da escola e referem-se à ciência psicológica. Não é o caso de Freinet. Ele é inte rior à escola e recusa a referência científica, tanto peda gógica quanto psicológica. É chegado o momento de apresentá-lo. 5 — Freinet e “a imprensa na escola”
A história de Freinet foi cuidadosamente registrada por sua mulher, Elise Freinet, em duas obras, escritas e publicadas bem depois de sua experiência: Nascimento de uma pedagogia popular e A Escola de Freinet, reserva de crianças15. Nós nos referimos, especialmente, à primeira dessas duas obras, para os pormenores de ordem biográ fica, indispensáveis à compreensão de nossa análise.
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Freinet foi nomeado mestre-escola, em 1920, num vilarejo da Provença, Bar-sur-Loup. A guerra interrompeu seus estudos como normalis ta e abalou-lhe a saúde. Com efeito, os médicos o con denam a uma aposentadoria muito precoce. Mas Frei net não se deixa abater. Reassume seu cargo e reage, tanto em relação a seu próprio destino quanto ao da escola. Com efeito, Freinet imediatamente impressiona-se com a miséria dos locais escolares e com a reclusão for çada dos estudantes. Se ele próprio sofre as conseqüências dessa reclusão, o que dizer das crianças! Além dis so, devemos admitir que a paisagem exterior também tor na os hábitos escolares ainda mais empoeirados. Inicia, portanto — como outros antes e depois dele — por transformar esses hábitos, e sai da escola com seus alunos. Logo, Freinet insurge-se contra a cotidiana lição de moral, artificial e abstrata. Ele a elimina. Enfim, ele critica “a cartilha”, que considera “escolástica” e “dog mática”. Da crítica à cartilha, ele passa à dos manuais escolares em seu conjunto e, destes últimos, a “toda cul tura livresca”. “A imprensa na escola”, que inventa em 1925, é precisamente, como indica o título do artigo, uma reação “contra o ensino livresco”. Veremos adiante as conseqüências dessa posição. A imprensa, entre outras coisas, lhe permite supri mir o estrado, gesto ao qual está associado um grande valor “simbólico”. Freinet pode, dessa forma, tornarse o “mestre-camarada” que deseja ser. Em 1928, Freinet é nomeado para Saint-Paul-deVence, cidade maior. E é aí que as coisas se degradam. O fato é que “a imprensa na escola” já ganhou cer
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to alcance. Freinet a utiliza para estabelecer uma corres pondência entre escolas de diversas províncias. Uma re de de trocas se estabelece e a imprensa ganha adeptos. Por outro lado, Freinet ajusta outros procedimentos pe dagógicos como, por exemplo, “o fichário auto-corretivo” ou “a biblioteca de trabalho”. Enfim, ele autofinancia essas invenções, graças a uma cooperativa. Em suma, a experiência alcança o sucesso, e a irônica indul gência das autoridades transforma-se em malevolência. De fato, Freinet, como preconiza Ferrière, afirma ter aberto a escola para a vida. Sem dúvida, abriu-a tam bém aos pais de Saint-Paul-de-Vence que, a exemplo do farmacêutico da cidade, preocupam-se e estigmatizam “o ensino deplorável desse mau educador da juventude”. A partir daí as autoridades nada mais podiam fazer senão acatar os desejos desses pais. Em 1932, após sondagens e discussões, Freinet é afastado compulsoriamente. Decide, então, abrir uma es cola “livre” e aí prosseguir sua experiência. Esta será o objeto do segundo livro de sua mulher. Se, por um lado, Freinet se beneficia do apoio de muitos, durante esse período de aborrecimentos — con segue até obter a adesão de personalidades científicas e políticas — por outro, não é seguido em seu projeto de escola “livre”. De modo que se vê praticamente só, e em família. Essa escola, entretanto, vem finalmente à luz em 1935. Em 1936, é reconhecida pelo “Front populaire”; a Segunda Guerra Mundial a dissolve. Não se trata aqui de fazer a análise dessa segunda etapa da experiência de Freinet. Já a esboçamos noutro
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trabalho26. Indaguemo-nos, de preferência, sobre o pa pel específico da imprensa dentro do que Elise Freinet denomina “O caso Freinet”. Para tanto, voltemos àque las palavras já destacadas por nós, e às quais Freinet atri bui grande importância: o “método” e a “técnica” pe dagógicos. Para ele, o método encerra algo de “estático”, e a técnica, ao contrário, é viva e permite transformar a es cola em suas bases: “A técnica pedagógica — e aí está sua superioridade sobre os métodos — engloba obriga toriamente todas as pesquisas, todas as realizações que concorrem para tornar possível e eficaz o trabalho do edu cador popular. Dissemos inúmeras vezes: o poder capi talista não seria capaz de admitir que os educadores — seus funcionários — fossem procurar na própria orga nização social as causas da falência da escola e, assim, faz o impossível para perpetuar o divórcio entre a escola e a vida, bem como o isolamento pedagógico dos pro fessores... A técnica pedagógica não é somente essa pre paração semana por semana que enche o espaço das re vistas pedagógicas e que reprovamos totalmente; não se trata tampouco do estudo de truques ou procedimentos diversos capazes de surpreender por instantes o interesse e a atividade dos alunos. Seu campo de ação é mais am plo... O método é essencialmente dinâmico, e não teme atropelar nessa jornada os ídolos ultrapassados, esfor çando-se, se necessário, por construir e por criar, por tra balhar com precisão e entusiasmo, sem falsas esperan ças, mas dotados de uma consciência clara dos objetivos a serem alcançados e também dos obstáculos a serem evi tados ou superados.”
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Esse trecho foi extraído de um texto de 1930, e cita do por E. Freinet. Por diversas vezes, Freinet retoma o mesmo debate, empregando os mesmos termos. Seria, então, uma simples querela de palavras? Entretanto, Freinet põe a escola em dúvida, como acabamos de ver, e ele é o único a fazer isso. Por quê? Não seria porque, contrariamente aos demais peda gogos que apresentamos — e a outros que apresentare mos adiante — ele impulsiona sua renovação de dentro da escola? A imprensa não é uma novidade, e Rousseau já a menciona: “Faz-se um grande trabalho procurando os melhores métodos para ensinar a ler; inventam-se escri vaninhas, mapas; fazemos do quarto da criança uma ofi cina de imprensa.”27 Mas “a imprensa na escola” perturba a escola, sem sombra de dúvida. Em que seria intolerável para a insti tuição? O próprio Freinet constata que seus alunos realizam, com o mesmo sucesso que o das outras escolas, o exame final. Na época, trata-se do “certificat d’études”. Por tanto, para que servem todas essas práticas escolares que, indubitavelmente, pulverizou? Com certeza, não seria pa ra passar no exame final. Com efeito, Freinet descreve um caminho inverso àquele de Decroly. Este constata e deplora o mau “ren dimento” escolar. É para remediar tal situação que in sufla “do alto” — são os termos de Freinet — um novo método. Este, uma vez que entre na escola, estará ime diatamente “escolarizado”. E com razão. Não estaria previsto para tanto?
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Freinet, ao contrário, denuncia a inépcia dos pro cedimentos escolares, ele os modifica e constata, subseqüentemente, que o “rendimento” — expressão que não utiliza — é equivalente. Em outras palavras, a imprensa se instala na esco la, e seus efeitos explodem fora dela. É nesse sentido que, efetivamente, Freinet ultrapassa Decroly, e não, como ele próprio acredita, porque colocou à frente “o interes se da criança’ ’. Uma expressão de que Freinet usa e abu sa — e ele não é o único — e que, agora, vamos analisar.
CAPÍTULO II
O interesse da criança
1 — Freinet: Uma nova técnica de trabalho escolar
A imprensa na escola, é certamente, um grande pro gresso, dizem-nos ainda, mas não podemos considerá-la como uma panacéia universal. Os educadores que formulam essa crítica inconsis tente têm, sem dúvida, a desculpa de não terem estudado a fundo nossos trabalhos: eles teriam percebido que, com muita frequência, insistimos na necessidade de não con siderar a imprensa na escola como um método, mas de nela ver apenas uma técnica de trabalho livre e criador, a serviço de uma verdadeira educação proletária. Essa inovação traz, entretanto, novas possibilidades específicas através das quais marcará, sem dúvida, a pe dagogia. Os melhores educadores contemporâneos nos pregavam a atividade infantil livre e a expressão íntima da personalidade; as relações de experiências em que se havia depositado na criança uma maior confiança não dei xavam de entusiasmar. Lamentavelmente, por inúmeras razões, materiais, individuais e sociais, nossas classes po pulares, pobres, sobrecarregadas, paralisadas pela ob
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sessão por programas e exames, não podiam absolutamen te engajar-se nesse novo caminho. A imprensa na escola trouxe para o campo da prática diária a expressão livre e a prática criadora de nossos alunos. Pela experiência, mais eficaz que os raciocínios pretensamente científicos, abriu novos horizontes para uma pedagogia baseada nos interesses verdadeiros, geradores de vida e de trabalho. Ela restabeleceu de uma só vez, como assinalamos em nos so último artigo, a unidade do pensamento, da atividade e da vida infantis; integrou a escola ao processo normal de evolução individual e social dos alunos. Tais considerações são, para nós, essenciais e fun damentais. A criança que sente um objetivo em seu trabalho, e que pode dedicar-se por inteiro a uma atividade não mais escolar, mas social e humana, esta criança sente que nela se libera uma poderosa necessidade de agir, de buscar, de criar. Nós constatamos, maravilhados, que os alunos as sim tonificados e renovados forneciam livremente um tra balho muito superior, qualitativa e quantitativamente, ao que exigiam os velhos métodos opressivos. E todas as clas ses que introduziram a imprensa na escola apreciaram o persistente entusiasmo dos alunos, não apenas no caso das disciplinas diretamente ligadas à imprensa, mas também com relação a toda atividade escolar em geral. Objetava-se com frequência, aos iniciadores que ofe reciam como exemplo experiênciais conclusivas, que tal apetite escolar só poderia surgir de uma luz particular do educador. Ora, os resultados que assinalamos foram obtidos em todas as escolas que trabalharam com a im prensa, fossem quais fossem as aptidões particulares do
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mestre. Bastou que esse educador tivesse uma certa hu mildade e humanidade para “descer de sua cátedra, aban donar o esnobismo do estilo aristocrático e erudito...” e colocar-se inteiramente a serviço das crianças. Se, como provamos, o aluno que pode enfim traba lhar na direção de sua personalidade não mais precisa ser punido ou estimulado para apresentar um trabalho consciencioso, desmorona, então, toda a velha concep ção escolar. A criança parecia ser, por natureza, preguiçosa, tra paceira, mentirosa, hostil a qualquer tipo de esforço. Era necessário, para que se chegasse aos objetivos educacio nais determinados pelos regulamentos, sucessivamente, obrigar, recompensar, punir, atrair pelo jogo, pela no vidade, por imagens enganosas — todos, procedimen tos que abundantemente mostraram sua ineficácia para resolver definitivamente problemas de interesse escolar tão complexos. Eis a renovação: a criança tem sede de vida e ativi dade. Utilizamos essa aspiração colocando à disposição “instrumentos” de instrução e educação que julgamos úteis à sua evolução e, também, trabalhando para a rea lização de condições sociais e materiais que pudessem tor nar o trabalho possível. Com toda certeza, trata-se de uma concepção origi nal do meio educativo, como técnica de trabalho total mente diferente dos procedimentos atualmente em uso, técnica que não poderia se acomodar com os velhos ins trumentos e, principalmente, com os manuais escolares, símbolo da pedagogia opressiva. Retomaremos noutra oportunidade o estudo da con
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cepção material e social do novo meio escolar. Hoje, da remos apenas um resumo de nossa técnica de trabalho na escola sem livro escolar. Não iremos mais buscar nos livros nem nos progra mas a base essencial para o nosso esforço educativo. Qualquer pedagogia será falseada se não se apoiar, pri meiro, no educando, em suas necessidades, seus senti mentos e suas aspirações mais íntimas. Perscrutaremos, pois, a alma da criança e temos, para tanto, uma técnica que se revelou bastante operante: a redação livre, a im prensa na escola e a correspondência interescolar. Essa expressão espontânea será, ao mesmo tempo, um desa brochar das personalidades e uma oportunidade escolar para adquirir, ampliar e definir as diversas aquisições: língua, gramática, vocabulário, ciências, história, geo grafia, educação moral, enxertando, de maneira lógica, no interesse infantil assim exteriorizado, disciplinas pre vistas no programa. Aqui se manifesta cruamente a nova orientação de nossa pedagogia: com o livro escolar, é o livro que cria, sempre artificialmente, o interesse. Dizemos que aí resi de um grave erro: o livro deve servir à escola somente para satisfazer e aprofundar o interesse da criança. Permitimos que esse interesse se manifestasse ple namente; como explorá-lo para nossos objetivos edu cativos? É necessário que os diversos estudos respondam e se adaptem à atividade infantil em lugar de obrigar que esta se curve à ordem escolar. Ora, nada existe atualmente que propicie tais possibilidades, ou seja, saber encontrar espontaneamente, no material escolar, as leituras espe
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ciais, os guias para atividades intelectual e manual que permitirão que a criança se desenvolva, ao longo do dia, em direção às suas necessidades. Reunimos em nossa bi blioteca os livros de trabalho que pudemos obter. Lamen tavelmente, os manuais escolares são, por enquanto, os únicos à nossa disposição mas, ao menos, perderam o caráter específico de manual e têm, para nós, um defei to: faltam-lhes flexibilidade técnica e não respondem to talmente às novas necessidades.
Esse texto data de 1929. É extraído de um artigo re produzido — quase integralmente — por E. Freinet, em sua primeira obra1. Nessa época, Freinet se encontra em Saint-Paul-deVence. Ele escreve numerosos artigos desse tipo. O ob jetivo é de tornar conhecida sua “técnica pedagógica” e fazer com que outros educadores a adotem. Na mesma ocasião, Freinet deseja dar o impulso necessário ao mo vimento de “renovação” escolar de que é iniciador. Esse texto nos servirá de base para a análise de uma expressão de que, certamente, Freinet não tem monopó lio: “o interesse da criança”. Antes de mais nada é preciso resolver uma questão: como Freinet passa — ou pensa ter passado — do “mé todo dos centros de interesse” de Decroly ao “interesse da criança”? De fato, Freinet leva seus alunos a imprimirem ‘ ‘textos livres” na própria escola. Em que consiste um “texto livre”? Freinet nos dá um exemplo no artigo de Clarté. No início, um relato infantil, e que trata com freqüência de
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algum fato recente, mais ou menos marcante, do dia-adia. Eis por que, com o texto livre, Freinet afirma ter aberto “a escola para a vida” e, principalmente, para a da criança. O relato, antes de poder ser impresso, deve ser depurado de suas imperfeições orais, gramaticais e até de qualquer vestígio de dialética — não nos esqueça mos que Freinet leciona para crianças camponesas — de onde, sem dúvida alguma, sua insipidez. É com base nes ses “textos livres” que se estabelece a correspondência entre as diversas províncias. Mas o verdadeiro alcance do texto livre reside na eco nomia do manual escolar que ele torna possível e, de modo mais geral, como já assinalamos, de todo e qualquer livro. Desde o princípio, Freinet se rebela “contra o ensi no livresco”, mas é com “a guerra contra os manuais escolares” que essa postura se torna concreta. Vejamos o que escreveu a esse respeito em 1926: “Os manuais são um veículo de embrutecimento. Estão a serviço, por ve zes de modo vil, dos programas oficiais. Alguns profes sores ainda os agravam por uma louca e exagerada von tade de dar um volume maior de matéria. Mas, raramente os manuais são feitos para a criança.” Assim, Freinet propõe que sejam suprimidos: “mesmo que os manuais fossem bons, seria conveniente que seu uso fosse reduzi do a um mínimo. Pois o manual, sobretudo se utilizado desde a infância, contribui para a idolatria da letra im pressa. O livro torna-se logo um mundo à parte, algo um tanto divino, cujas asserções sempre hesitamos em con testar”. E Freinet prossegue, adiante, no mesmo artigo: “Os manuais matam qualquer senso crítico, e é a eles
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que, provavelmente, devemos essas gerações de semiiletrados que crêem, palavra por palavra, no que está no jornal. E, sendo assim, a guerra contra os manuais é ver dadeiramente necessária.” Compreende-se, a partir daí, que é o texto livre — e não a imprensa propriamente dita — que, ocupando o lugar do livro, permite colocar adiante, na escola, o “interesse da criança”. Mas isso seria suficiente? No texto de 1929, Freinet faz a seguinte pergunta: “Nós permitimos que esse inte resse se manifestasse plenamente; como explorá-lo para nossos fins educativos?” É que o interesse da criança é, de fato, algo impre ciso, e há motivo para isso. Assim, ele depende essen cialmente da exploração que dele se faça, sendo a recí proca igualmente verdadeira. Para compreender tudo isso, vamos recorrer à psi cologia que usa e abusa dessa noção e que, com isso, lhe confere um vigor “científico”. Argüiremos dois autores, Dewey e Claparède, visto que seus pontos de vista sobre a questão se completam e se esclarecem mutuamente. Dewey coloca o “interesse” diante do “esforço”. Consegue assim conciliar os dois termos. Claparède as socia e assimila “o interesse” e “a necessidade”. Freinet cita esses pedagogos. Não poderia fazer de outra forma pois representam, na época, a pedagogia “científica” que Freinet recusa. Ele os teria lido? Na verdade, pouco importa: os ca minhos da psicologia, como vamos ver, são insondáveis.
2 — O interesse e o esforço2
Fazem-se necessárias algumas linhas para apresen tar Dewey. Todos os pedagogos se referem a ele, e de maneira muito elogiosa. É que todos reconhecem em seus escritos — numerosos — a quintessência de suas idéias! Dewey é americano, uma condição necessária e quiçá suficiente, para assumir o papel de conciliador univer sal. Tem uma formação filosófica à americana. Isso lhe permite passar pelo filtro da prática todos os sistemas filosóficos: de Aristóteles a Hegel, sem esquecer Kant, é lógico. Com efeito, Dewey é discípulo de William Ja mes, o fundador da “psicologia pragmática”, a quem, aliás, inúmeros autores atribuem a paternidade da no ção de interesse. Dewey se especializa, portanto, em psicologia e pe dagogia. A questão da educação ainda faz parte, na épo ca, da psicologia. Nesse campo Dewey adota as posições do filósofo inglês Spencer. Para este, da biologia à edu cação — passando naturalmente pela psicologia — um só critério é determinante: a utilidade.
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Enfim, Dewey foi aluno de Stanley-Hall, o psicólo go que inventa o questionário para as crianças e divulga o seu uso nas escolas americanas. Em 1896, Dewey abre uma escola-laboratório, liga da à Universidade de Chicago, onde leciona. Ele pode, assim, submeter suas idéias à prática da experiência, de modo a verificar sua utilidade. Esta ultrapassa em mui to o contexto da escola propriamente dita. Dewey é tam bém um pensador político, como indicam os títulos de algumas de suas obras, por exemplo: Escola e sociedade ou Educação e democracia3. A obra a que nos referimos aqui tem um alcance mais modesto. Intitula-se A escola e a criança4 e é publicada em francês em 1913, com prefácio de Claparède. O primeiro capítulo do livro é dedicado ao proble ma do “interesse e o esforço, em suas relações com a edu cação da vontade”. Deve-se abrir uns parênteses com re lação a esta última palavra. O debate psicológico gira freqüentemente — talvez sempre — em torno do vocabulá rio. É que a disciplina utiliza palavras do vocabulário da linguagem corrente, e tenta em seguida — com certa di ficuldade — lhes atribuir um estatuto científico. Acon tece que o debate se esgota e o termo sobre o qual estava centrado desaparece. É o caso da palavra “vontade” que não mais encontramos nos escritos psicológicos com sen tido específico. Mas, por vezes, o termo subsiste ainda que o deba te esteja esquecido. É o caso de “interesse”. Dewey inicia opondo os dois termos que deseja dis cutir: “interesse e esforço”. Este diz respeito à “educa ção tradicional”, em que o adulto impõe à criança obje
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tivos que não são os seus; de onde o apelo ao esforço e à vontade. A concepção contrária — fundada no inte resse tal como é habitualmente entendido — consiste em não solicitar nenhum esforço. Não é o que preconiza Dewey. Ele propõe uma “no va pedagogia”, em que os dois termos, em vez de esta rem “em contradição profunda”, dão no mesmo. É o que lhe permitirá escrever: “Aos olhos do educador, o esforço e o interesse normais aparecem como dois pro cessos idênticos de expressão pessoal. Nossa análise psi cológica justifica plenamente esse postulado prático da educação.” Antes de abordar esta “análise psicológica”, veja mos por que Dewey começa por colocar a oposição en tre o interesse e o esforço. Para Dewey, trata-se de mostrar que uma educa ção que não obrigue a criança — aquela através da qual tentamos interessá-la, no sentido banal do termo — é mais útil que a outra. Ora, é muito difícil, todos sabe mos, que o que interessa à criança corresponda ao que queremos lhe ensinar. Dewey, ao contrário, mostrará que tal situação, longe de ser excepcional, é absolutamente “normal”, desde que saibamos “utilizar o interesse da criança”. Antes de mais nada, ele afirma: “A criança possui naturalmente interesses devidos, em parte, ao grau de desenvolvimento que ela atingiu, em parte aos hábitos adquiridos e ao meio em que vive. Esses interesses são relativamente incultos, instáveis, transitórios.” Mas is so nada subtrai ao seu valor: “Pois a significação do interesse reside toda naquilo para que tende, nas novas
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experiências que ele torna possíveis, nos novos poderes que cria.” De modo que Dewey pode prosseguir: “O verdadeiro pedagogo é precisamente aquele que, graças à sua ciên cia e à sua experiência, seja capaz de ver nesses interes ses não somente pontos de partida para a educação, mas funções que encerram possibilidades que levam a um ob jetivo ideal.” E para que compreendamos melhor, Dewey dá al guns exemplos: a criança rabisca porque tem necessida de de rabiscar e, pouco a pouco, põe-se a desenhar casas e cães. “O que busca esse interesse?”, pergunta-se De wey. E eis a resposta: “O interesse pelo rabisco deve ser utilizado imediatamente, e é preciso extrair dele o máxi mo, sem demora... É necessário empregar esse interesse de modo a abrir-lhe novos caminhos e a tirá-lo de seu estado rudimentar. Pode-se dizer que o dever fundamen tal do educador é o de utilizar esse interesse e esses hábi tos de modo a fazer deles algo de mais pleno, mais abran gente, mais disciplinado, mais ordenado. E”, conclui De wey, “aquele que souber utilizar sempre o interesse, sem pre será dono dele.” Tudo isso não significa colocar no “interesse da criança” o do adulto que o utiliza, visto que o interesse nada é se não for utilizado e, além disso, essa utilização deve ser feita “sem demora”? Dewey repete habitualmen te que, em matéria de educação, é preciso malhar o fer ro enquanto está quente. Em todo caso, a oposição de que partimos — entre o interesse e o esforço — encontra-se um pouco mais fle xível. O que não impede absolutamente que Dewey se en
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tregue a uma verdadeira ginástica verbal — “um longo desvio”, reconhece — isto é, “a análise psicológica” anunciada acima. Aqui, como anteriormente, compreenderemos me lhor as coisas se nos colocarmos sob o ponto de vista de sua utilidade. Dewey se propõe a nos mostrar que “o in teresse” é, ao mesmo tempo, subjetivo — pertence ao sujeito e, no caso, à criança — e objetivo — é interesse por um objeto. É dessa forma que considera no “eu” — o da psicologia, isto é, “o sujeito” por oposição ao objeto, que é exterior a ele — um processo que conduz o interesse em direção a um objetivo. Desse modo o in teresse é sempre finalizado. Essa finalidade obrigada per mite, por sua vez, confundir o interesse — pelo objeto — com o meio prático que permite obter o dito objeto. O processo que acabamos de descrever é “o desejo”. Aliás, Dewey especifica que “o desejo difere do apetite animal por ser sempre mais ou menos consciente de seu objetivo”. Ao “desejo” sucede o “prazer” na “análise psico lógica” de Dewey, e este desempenha um papel mode rador: “A utilidade psicológica desse prazer é a de dar ao objetivo uma tal influência sobre o eu, que ele seja capaz de desejar e efetuar sua realização. O prazer prá tico é, portanto, um instrumento, mas pode ser desvia do de sua verdadeira utilidade e servir somente para al cançar um estado de consciência agradável. O deixar-se levar moral não tem outra causa senão essa má utiliza ção do prazer.” Manifestadamente “o desejo” como “o prazer” comportam ainda alguns riscos de extrapolamento; as
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sim Dewey irá introduzir dois outros termos em sua “aná lise psicológica”: o ideal e o motivo. Estes lhe permitem reencontrar o interesse, que havíamos perdido de vista, e, enfim ligá-lo ao esforço: o motivo é “o interesse asso ciado aos impulsos e aos hábitos penetrados por um ideal” e “o esforço normal é exatamente essa tendência do ideal a se realizar — sua luta para tornar-se motivo”. Após esse longo desvio, vejamos a conclusão que De wey nos propõe: “Concluamos dizendo que de nada serve considerar os interesses como ponto de partida. O que se diz da felicidade é verdadeiro para eles. Somente os atingimos se não os procuramos. Trata-se, por conseguin te, de encontrar os instrumentos e os materiais que per mitem que se exerçam as funções. Se soubermos desco brir os impulsos e os hábitos ativos da criança, se sou bermos fazê-los trabalhar com método e com proveito, não precisaremos nos atormentar com relação aos inte resses; eles se encarregarão de si próprios.” Devemos considerar a questão do “interesse da criança” como definitivamente resolvida? Evidentemente que não. A expressão, mesmo que vazia de sentido — e talvez por isso mesmo — tem difi culdade para se implantar. Dewey, aliás, o reconhece. Desse modo, nos dá “a etimologia: inter-esse (o que) nos leva, explica, a essa idéia de que o interesse aniquila a distância que separa uma consciência dos objetos e dos resultados de sua atividade”. Mas, ao mesmo tempo, ad mite também — em uma nota — que, por ter “diversos sentidos”, essa palavra suscita “controvérsia”. Esta “ad vêm do fato que alguns a utilizam no sentido lato enquan to outros vêem nela um equivalente do egoísmo”.
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Compreendemos que Dewey assimila o sentido “la to” do termo: o “interesse”, para ele, não é somente “normal”, mas também moral. Mas o que acontece quando não se admite essa situação? A discussão sobre a palavra ressurge, pois ela implica outra coisa. É o caso de Claparède, que, sob o “interesse”, vê a necessidade.
3 — A necessidade e o interesse Situemos Claparède. Ele próprio, no prefácio do li vro de Dewey, confessa afinidades com o autor. Com freqüência, Freinet associa os dois nomes para, logicamen te, a eles se opor. Ora, veremos que entre Dewey e Cla parède existem diferenças, e é, justamente, o que torna possível que seus pontos de vista se completem. Claparède é suíço, mais exatamente, genebrino. Tem de início, uma formação de biólogo e se especializa em psicologia: “uma ciência biológica”, não duvida Cla parède. Abre, em Genebra, um instituto de psicologia que dedica a J.-J. Rousseau, de quem exalta a obra. Como Dewey, incorpora ao instituto, em 1914, uma escola ex perimental, “laMaison des Petits”. Piaget, alguns anos mais tarde, fará aí suas primeiras observações de crianças. Nessa escola, Claparède põe em prática a educação que preconiza e que intitula: “a educação funcional”. Este é também o título da obra a que nos referimos aqui, que consiste numa coletânea de artigos já publicados em revistas em diversas ocasiões. A educação funcional5 é uma aplicação direta da psicologia que leva o mesmo nome. É a concepção, de
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fendida por Claparède, das relações entre a educação e a psicologia. Teremos a oportunidade de constatá-lo. Logo nas primeiras linhas de seu livro, Claparède nos dá uma definição da “educação funcional’’: “É a que usa a necessidade da criança, seu interesse em atin gir um objetivo, como alavanca da atividade que nele se deseja despertar.” “A necessidade da criança” identifica-se com seu “interesse em atingir um objetivo”? Não exatamente, uma vez que Claparède se dá ao trabalho de mostrar co mo a necessidade se “transfigura” em interesse. Aqui, é preciso levar em consideração “as grandes leis do comportamento”. Claparède enumera dez, mas, na verdade, apenas duas nos interessam. A primeira, a da necessidade; e a quinta, a do interesse: “Toda neces sidade tende a provocar as reações próprias a satisfazêla. ” Seu corolário: “a atividade é sempre suscitada por uma necessidade”. “Toda conduta é ditada por um in teresse.” O que significa que “toda ação consiste em atin gir o fim que nos importa no momento considerado.” As duas leis são muito parecidas. Entretanto, antes de enunciar a do interesse, Claparède faz a seguinte ob servação: “De fato, mesmo que a necessidade seja efeti vamente a força motriz, o indivíduo persegue sempre o mesmo objeto, visa um fim objetivo, e não o desapare cimento de uma necessidade. Se isso não ocorre sempre no caso das necessidades orgânicas, é o caso geral quan do se trata dessas necessidades psicológicas que mobili zam a todo instante a atividade mental. Essas necessida des se projetam, de certo modo, no mundo exterior e aí se transfiguram. Aparecem como objetos a serem atin
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gidos... Em outras palavras”, segue Claparède, “nossa conduta tem um alcance positivo e não negativo. Ela é una, psicologicamente falando, não uma necessidade mas um interesse.” Assim, “o interesse da criança” nada mais é que sua necessidade, mas uma necessidade positiva. Vejamos agora como é feita a passagem do negati vo para o positivo. Aqui intervém uma outra lei, a se gunda, intitulada “da extensão da vida mental”. “A vi da mental”, explica-nos Claparède, “tem por função su prir a insuficiência de adaptação natural do organismo.” Um exemplo para que possamos compreender melhor: “Assim, não necessitamos de atividade mental para res pirar porque o ar nos envolve e o temos sempre à dispo sição. Ao contrário, a respiração suscita uma atividade mental quando a necessidade de ar não pode ser satisfei ta automaticamente: dessa forma a atividade mental se porá a funcionar e a inventar um balão de oxigênio quan do for necessário trabalhar dentro d’água, onde não há ar respirável para o homem; ou então ela imaginará más caras contra gases asfixiantes, etc.” Em outras palavras, para Claparède, “a transfigu ração” da necessidade em interesse, que é também uma conversão de negativo em positivo, corresponde a uma passagem do biológico ao psíquico. É exatamente o que Dewey havia tentado evitar e, para tanto, lançara mão de verdadeiras acrobacias ver bais. Claparède, por sua vez, se extravia ao editar duas outras leis — a da “tomada de consciência” e a da “an tecipação” — nas quais reencontramos o vocabulário de Dewey.
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Mas se a passagem do biológico para o psíquico apre senta algumas dificuldades, isso não ocorre para o ca minho inverso. É aí que o mental se torna o que jamais deixou de ser, algo de biológico. Claparède concorda: “O princípio funcional, que nos lembra que a ação tem sem pre por função a de responder a uma necessidade (orgâ nica ou intelectual), revela-nos ao mesmo tempo que é a significação biológica do saber, dos conhecimentos que adquirimos.” É desse mesmo princípio funcional que se origina a educação do mesmo nome, e “dentro dessa nova con cepção de educação, a função do mestre encontra-se com pletamente transformada... Ele deve ser um estimulador de interesses, de necessidades intelectuais e morais”. Claparède — e ele está bem longe de ser o único a fazê-lo preconiza a auto-educação. Veremos adiante que esta concepção da educação origina-se diretamente da imagem oferecida pela psicologia da “criança”. Antes disso, uma última palavra sobre “o interesse da criança”: para Dewey, está ligado ao do mestre que dele se utiliza; para Claparède, indentifica-se com a ne cessidade da criança. Não poderiamos afirmar, a partir daí, que a necessidade da criança não passa do interesse do mestre? Em todo caso, sua moralidade torna-se as sim mais clara.
CAPÍTULO III
criança desarraigada
1 — Freinet: A educação do trabalho — A criança desarraigada
A cultura moderna produziu um desnivelamento pe rigoso entre a vida e o pensamento, um hiato no proces so de evolução do organismo individual e social.
Sentado na soleira da porta, como um sábio no li miar do seu domínio, Mateus repousava da dura jornada. Era uma dessas tardes de luz calma, que já não têm a aspereza picante dos fins dos dias de inverno, nem o peso obsedante dos crepúsculos de verão. A tília na pra ça exalava um odor tímido, núncio do próximo desabro char. Um menino voltava para casa trazendo um ramo todo florido de pessegueiro, seguido por uma cabra e seu cabritinho. Os melros regressavam para o alto do seu pe nedo e ouviam-se os seus trinados subirem em cascata de patamar em patamar nas moitas e nas azinheiras. Estaria Mateus refletindo sobre a sequência dos pen samentos do dia? Não se sabería dizer; ele mesmo não sabería dizer. Geralmente, ele deixa correr o tempo, contentando-se em reagir como convém aos acontecimen
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tos, mas sem fixar particularmente a atenção em elemen tos de discussão que tenderíam então a destacar-se do con junto harmonioso da sua vida. Não pensa por capítulos, como tantos antigos alunos em quem a classificação ar bitrária matou toda ordem verdadeira. Ele pensa com to do o seu ser, e o seu ser inteiro participa do caminhar do seu espírito que com isso se nutre e se fortifica. É ape nas quando exterioriza as suas reflexões que é obrigado a empregar as palavras que isolam o pensamento, que lhe dão contorno assumindo às vezes, por isso, valor de absoluto e de definitivo que já corre o risco de ser um princípio de erro. E ninguém desconfia mais das palavras do que ele. Para o Senhor e a Senhora Long, o pensamento é que parecia impor-se continuamente como suporte de suas vidas, que os obsediava e subjugava. Em geral, esses pen samentos se agitavam no âmbito familiar com uma filo sofia que aparentemente os satisfazia. Mas eis que Ma teus, com suas invectivas repetidas, havia abalado o edi fício mental levantado pela escola e sua cultura. O Se nhor e a Senhora Long já começavam, por sua vez, a du vidar de certas palavras, a reconsiderar noções essenciais, a discutir o progresso... Mas, por enquanto, ainda eram as razões A FAVOR que levavam a melhor, até o momento em que Mateus enfiava de novo, no seu princípio de dú vida, a cunha do seu agressivo bom senso. — Ao ver o senhor assim, Seu Mateus, tão calmo na tarde de um dia abençoado, imagino que era assim que certamente o seu pai já se sentava quando voltava de amassar e de assar o pão... — O que prOva que, na nossa aldeia pelo menos, o progresso anda estranhamente marcando passo, já que
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nada, de fato, parece ter mudado em cem anos de exis tência! Nem falemos da cidade, porque então eu pode ria me perguntar, diante do espetáculo de carnificina e de miséria atual, se não houve recuo... Ah, sim! em cem anos, construíram para nós uma escola. É bastante, concordo, e épouco, porque uma es cola perdida assim num conjunto de elementos que se fi xam em sua forma em vez de evoluir adaptando-se às no vas idéias não pode ter uma influência muito profunda na vida e no comportamento das gerações que passam. — Nunca se sabe. O progresso não é necessariamente material. Há também a evolução do pensamento, no ca minhar do organismo social, no desenvolvimento do sen tido moral. — Eu sei... É como a água que desce clara da nossa fonte de Rocheroux... Pode ser riacho cantarolante en tre os vimes e os morangos da montanha; ou riacho cascateante que canais rústicos levam para regar damascos e árvores frutíferas, pastos e legumes; mas também, cer tos dias, tromba selvagem que despenca das alturas, ar rastando rochedos, troncos e terra, arrancando tudo em sua passagem e sepultando no vale campos inteiros que ficam como envenenados. Mas desde quando a monta nha, abandonada a si mesma, voltou a cobrir-se de bos que, as iras da nossa torrente passaram a ser menos freqüentes e menos terríveis. Oxalá possamos um dia en contrar um comportamento assim ajuizado para o nos so Progresso! Tenho raiva, entretanto, daqueles que, de autoridade própria, declararam-se montanha para parir a torrente e orientá-la, para dominar o vale; daqueles que acredi
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tam ter descoberto os picos, mas se esquecem de que es ses picos não existiríam sem o flanco dos vales que os içam para as nuvens, e sem as várzeas férteis que valori zam a aridez e a austeridade das encostas; que às vezes se admiram por não estar o mundo a seus pés, obediente aos movimentos factícios que ordenaram. — As verdadeiras montanhas são muito mais humil des, Seu Mateus. Eu poderia lhe mostrar aqui os escri tos sugestivos de tal cientista famoso e o senhor veria até que ponto ele está isento de qualquer soberba e fatuidade. — Exato... Alguém disse — e eu estou persuadido — que pouca ciência afasta do bom senso e da verdade, mas que uma grande ciência reconduz a ambos. Sim, exis tem verdadeiros cientistas que são consciências superio res, cuja especialidade não apagou esse sentimento da complexidade ainda misteriosa do mundo que nos cer ca, que souberam, por isso, medir os limites do seu po der, e que adquiriram essa consciência exata da sua fun ção, a humildade diante da vida que domina a mente dos sábios. Mas, ao lado dessas raras personalidades, quantos falsos cientistas a gente vê, para quem a vida está limita da ao horizonte das suas provetas, que não sabem se despegar de seus livros, que generalizam afoitamente as suas descobertas, pequenas ou grandes, e que se sagram mu tuamente contendores ou pilares de um pensamento, de uma ciência, de uma filosofia. Acreditam ter revelado uma parcela de verdade sobre a qual edificam apressa damente os sistemas mais ou menos coerentes a que es tamos submetidos. E ficam a tal ponto envaidecidos com a sua superioridade que desdenham os seus contempo
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râneos não iniciados, e o longo passado a cujos ensina mentos permanecem obstinadamente fechados. As conquistas da ciência no campo mecânico e bu rocrático, essa ilusão de progresso que ilumina com fal sa luz toda a nossa época, lisonjeiam o amor-próprio até mesmo dos ignorantes, que se regozijam simploriamente de ter nascido no século das Luzes. E sempre se en contram muitos políticos oportunistas para sentir as pos sibilidades de exploração que essas novas crenças trazem em seu bojo. A sua escola, Seu Long, é um dos instrumentos dessa ilusão. Para abolir um passado de servidão e de opres são — o senhor vê, eu falo como os convencionais que, eles pelo menos, tinham alguma desculpa — era neces sário colorir o presente e iluminar o futuro com clarões de promessas. Pediu-se à escola que se encarregasse da tarefa, e filósofos, escritores, cientistas participaram da edificação de uma nova concepção da vida, que só tem o defeito de ser imposta do alto, sem levar em conta o que já existia, e que nem sempre era mau, com os seus alicerces profundos e seguros; de ter aplicado, em cima de uma civilização de tramas ancestrais, uma concepção do mundo estreita e factícia, com os seus ritmos anor mais, seus interesses e seus ideais. Então, produziu-se um desnível perigoso entre a vi da familiar, os hábitos inextirpáveis de alimentação, de trabalho, de jogo, entre todo esse complexo profundo, psíquico também, muitas vezes subconsciente, que prende a gente, queiramos ou não, a um solo, a uma casa — ainda que seja uma tapera —, a um vale, a uma sombra, a uma atmosfera, a uma trilha e, para além desse solo
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e dessa trilha, a um passado e a uma raça; produziu-se, pois, um desnível perigoso entre todos esses elementos essenciais que se pensou poder eliminar, e as tentativas aventurosas de uma ciência, de uma cultura, nas quais nem tudo está errado, mas que constituem como uma rup tura de equilíbrio, como uma tentativa de movimento au tônomo, como um desses foguetes que alguns cientistas projetam enviar à lua e que tivesse partido com uma força inicial espantosa, que se ia perdendo à medida que se afas tasse da terra, e que estivesse lá, agora, exaurido, pres tes a cair de volta sobre a terra para aniquilar a própria idéia por um instante realizada com uma audácia digna de melhor fim. Acreditaram, os seus cientistas, os seus filósofos, os seus pedagogos, que era possível pegar os seres huma nos como se pega matéria bruta, amalgamá-los em seus laboratórios, combiná-los para formar outras vidas, co mo criam ligas. A indústria, símbolo da nova economia, prosseguia a operação no plano material; eles estavam encarregados da tarefa intelectual e moral. Eles pensa ram — e persuadiram os senhores — que era possível ar rancar, pelo raciocínio, por assim dizer, pela demonstra ção lógica, usando principalmente a alavanca da inteli gência, que era possível arrancar os homens à cultura, mesmo empírica, que os impregnara, ao solo que os ali mentara com sua seiva, a todo esse decisivo e permanen te passado que é para a vida social o que é a memória para a vida individual, tenaz como essas raízes que ce dem por um instante quando se abate a árvore, mas que logo se agarram de novo à terra nutriz para enviar ao tronco ameaçado um pouco de vida ainda.
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Esse erro nos traz agora um perigo igualmente mor tal: a reação feroz dos timoratos, dos enfezados e dos políticos a quem espanta o verdadeiro progresso e que gostariam de nos fazer crer que a idade de ouro, que não soubemos descobrir à frente, está atrás de nós, que o pro gresso e a ciência faliram e que é preciso voltar-se para o passado para construir segundo outras normas que só poderiam produzir um novo desnível. O homem, assim esperemos, saberá agir diferente mente desses animais acuados que se lançam cegamente de um lado e se precipitam para a frente, mas que, che gados logo à beira de um precipício, recuam assustados para se lançar com a mesma cegueira para o lado opos to, onde se chocarão talvez com um precipício mais te mível ainda. Não se trata de rejeitar em bloco nem a tra dição nem o progresso, mas de adaptar inteligentemente o nosso comportamento às necessidades da nossa épo ca. Temos de encontrar para o futuro próximo soluções que se apoiem no presente real, descendente e herdeiro do passado recente e da longínqua contribuição das ge rações que fertilizaram o nosso solo, construíram as nos sas casas, idealizaram a nossa língua e o nosso espírito. O progresso deve fazer-se, por assim dizer, em função do passado, evitando esse desnível de que mensuramos os perigos, esse corte que nos isolou da sua ciência, privando-a da nossa seiva e do nosso esforço. A Escola terá muito poder para isso. Mas precisará primeiro conhecer e julgar em sua justa medida esse pre sente e esse passado, descobrir o que carregam em si de dinâmico e de construtivo, e fazer surgir também gran des linhas de vida, as essenciais forças subterrâneas que
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serão as alavancas indispensáveis para as criações que se impõem. Duas tarefas igualmente urgentes a levar avan te com método, mas também com a noção exata de nos sa humildade, de nossas fraquezas e de nossas grandezas.
“A criança desarraigada” é o título do capítulo 13 de A Educação do trabalho', que contém cinqüenta. O livro é publicado em 1946. Desfruta um sucesso suficiente para ser reeditado, ainda em nossos dias. É uma reflexão teórica, levada a efeito após a bata lha e, conseqüentemente, retrospectiva. Será isso que ex plica o tom nostálgico de Freinet? Por certo as circuns tâncias exteriores bastariam também para explicá-lo. En tretanto, como veremos, isso não é suficiente. Já na introdução, Freinet apresenta-nos o seu pro jeto: “Eu quis caminhar nas pegadas do camponês nos seus campos, reencontrar as trilhas do pastor na monta nha; quis sentar-me com eles à sombra das árvores, com a ‘sacolinha’ do jantar entre os joelhos. Reaprendí a escrutar a natureza tão cambiante e diversa e bebi à saciedade nas fontes claras que deliciosamente reencontrei.” Aí está o tema principal do livro: Freinet quer reen contrar as “suas fontes”. É por isso que cede a palavra, na maior parte do tempo, a uma personagem mítica, “o pai Mateus” (“le père Mathieu”), que ele pinta, nessa introdução, da seguinte maneira: “Mateus, cuja mente conservou misteriosamente, como uma reivindicação de origem, o direito de não acreditar sem discutir, de pas sar tudo pela crítica das realidades, sem deixar que se lhe imponha o ouropel da aparência que ele tem o dom de
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perfurar com um desenvolto piparote. Encastrado no edi fício de uma serena filosofia de que retira calma e força, ele vai indo, atrás de seus bichos, no ritmo calmo de cam ponês, distinguindo o erro, a anomalia, descobrindo as vias simples, possuído por não sei que divina aptidão para fazer descer o ideal ao nível da vida, alçando a ação co tidiana ao nível do ideal para pôr ao seu alcance as eter nas verdades que restam, através dos cataclismas, como marcos indicadores torcidos pelas explosões mas que se obstinam a mostrar o caminho.” Mateus representa, pois, a sabedoria ancestral, o pas sado e, de modo mais geral, “a natureza” ou ainda “a vida”. É por aquilo que personifica que ele coloca em acusação “a cultura moderna” ou “o progresso” ou ain da “a ciência” ou “o pensamento”. Todos esses termos se equivalem, simplesmente marcam uma oposição níti da entre dois pontos de vista. Essa oposição atravessa todo o livro, e Freinet a lembra no capítulo 13, como sub título: “A cultura moderna produziu um desnivelamento perigoso entre a vida e o pensamento, um hiato no processo de evolução do organismo individual e social.” Desta oposição primeira, Freinet deduz outra, que lhe é análoga e que ele aplica à escola. Então, “a cultu ra moderna” — ou qualquer dos termos que a repre sentem — é a escola. De fato, Mateus, no mais das ve zes, dirige-se, em seus diálogos um tanto encenados, a um casal de professores primários, O Senhor e a Senhora Long: “A sua escola, Seu Long, é um dos instrumentos dessa ilusão.” Na outra extremidade da oposição, figurando “as fontes” ou “as raízes”, encontra-se a criança. E o desni-
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velamento denunciado como subtítulo dá: “A criança desarraigada”. Mas, nesse caso, a criança, assim como Mateus an teriormente, representa o passado, visto que ela figura “a natureza” oposta à “cultura”. Além disso, e por de finição, a criança é o futuro e o “progresso”. Não exis te aí uma contradição? Ela está na origem de muitas outras que a obra de Freinet reproduz. Provém da imagem que a psicologia dá à criança, seu objeto de estudo: ao mesmo tempo ori gem da humanidade e do indivíduo. A partir do momento em que Freinet fala da “criança”, adota necessariamen te a linguagem da psicologia, já o verificamos com rela ção ao “interesse” e, portanto, às suas contradições. Ora, estas últimas, saindo da psicologia, só podem acentuar-se, pois encontram então aquilo que questiona a psicologia, a educação e a escola. É o que precisamos ver agora.
2 — ‘‘A criança” e a educação
Como já se viu com Ferrière, a criança da psicolo gia é freqüentemente assimilada ao “primitivo”. O que não impede, e é o caso de Victor, “o selvagem do Aveyron”, que serve de modelo à Sra. Montessori, de ser tam bém considerado como “idiota”. As duas imagens não são incompatíveis visto que esse primitivo é também uma pura abstração. De fato, ela permite identificar a evolu ção de um indivíduo, do nascimento à idade adulta — com certa dificuldade para situar a última — à da hu manidade. Aqui, pelo contrário, o limite é definido pela nossa própria época. Viu-se igualmente, com Ferrière, a que generaliza ções descabeladas a representação desse paralelismo po de conduzir. Tanto assim que a maioria dos psicólogos evita perder-se nela, o que lhes permite admitir mais fa cilmente a idéia, explícita ou implicitamente. De modo que a criança é considerada como a origem do homem, ou da “natureza humana”, expressão prenhe de pressu postos.
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Essa concepção da criança é com freqüência atribuí da a Rousseau. É o que faz Claparède. Propõe, na mesma ocasião, uma leitura do Emílio toda pessoal. Ele vê nessa obra, exposta, pela primeira vez — e por antecipação — “uma concepção funcional da criança”: “[J.-J. Rousseau] foi certamente o primeiro a quem preocupou a questão do porquê da infância, e chegou a dar uma resposta tão satisfatória que aquelas que hoje se propõem não fazem mais do que desenvolver, precisar, graças às novas luzes da ciência contemporânea, o esboço que, uma extraordi nária intuição de gênio, ele traçara com mão tão firme”2. De fato, para Claparède, “as principais afirmações a que conduz a ciência da criança em sua forma mais recente encontram-se todas claramente expressas no Emílio”. Por que então não se apoiar na autoridade de Rous seau para confirmar — retroativamente — “a ciência da criança”? Claparède se envereda francamente por esse cami nho, e edita — o que nele é um hábito — cinco “leis fun cionais”, “admitidas, implícita ou explicitamente, por Rousseau”. Apenas a primeira nos interessa, “a lei da sucessão genética”, que assim se enuncia: “A criança se desen volve naturalmente passando por certo número de eta pas que se sucedem numa ordem constante.” Tal é a lei geral, escreve Claparède, e prossegue: “Ela tem um co rolário: essas etapas são as mesmas que o espírito da hu manidade percorreu. E daí se deduz uma aplicação prá tica: a educação deve conformar-se com a marcha da evo lução mental.”
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Deixemos de lado a questão perniciosa que consis tiría em indagar se Rousseau teria ou não admitido — “implícita ou explicitamente” — essa lei e os seus pro longamentos, e vejamos de mais perto as palavras usa das por Claparède: o desenvolvimento e a evolução. Inútil dizer que, se tais palavras aparecem nos es critos de Rousseau, não podem ter, no século XVIII, a mesma significação que no século XX. Particularmente a segunda — evolução — assumiu um sentido científico preciso — que não podia ter antes — desde a difusão da teoria de Darwin. (A origem das espécies, por exemplo, data de 1859.) Isso, evidentemente, inflete o sentido que se dá à se gunda palavra, o desenvolvimento. Esta é mais utiliza da, em psicologia, a propósito da criança — e fala-se mui to mais facilmente em evolução da humanidade, como é o caso aqui — mas as duas palavras podem ser tam bém identificadas, como são os objetos designados. Mas isso não é o principal. A obra de Rousseau a que Claparède se refere tem um título duplo: Emílio ou Da educação. Rousseau escreve um tratado de educação e é unicamente disso que se trata, de ponta a ponta, no livro. Por conseguinte, se “Emílio” representa ao mesmo tempo a criança enquanto se torna adulto — e, para Rousseau, cidadão — e a infância da humanidade, é pe la educação que uma e outra saem desse estado original. Além disso, embora diga-nos respeito menos diretamente, o estado de natureza original é explicitamente colocado por Rousseau, como pura construção teórica. É por isso que Emílio é um aluno imaginário.
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Finalmente, para Rousseau, há uma oposição entre esse estado de natureza — teórico — e a sociedade de seu tempo. De maneira que a educação que ele preconi za é toda “negativa”. Adiante voltaremos a isso. Ora, nada do que acabamos de mencionar aparece em Claparède. É verdade que ele mantém a identificação da criança com a origem do homem, mas retira-lhe o caráter teó rico: se o primitivo da psicologia conserva algo de teóri co, isso não acontece com a criança. Esta é sempre real. E mais, não se trata de educação, mas de desenvolvimen to. E este, como se sabe, ao invés de ser negativo, é posi tivo. Conseqüentemente, a oposição entre a natureza — ou o indivíduo — e a sociedade, marcada por Rousseau, fica aqui completamente apagada. Completamente? Não. Ela vai reaparecer, como se verá, com a educação, uma simples aplicação do desen volvimento natural, e que, por conseguinte, nada tem de negativo. Para entender melhor isso, voltemos à Sra. Montes sori. Ela propõe, como estamos lembrados, um método pedagógico — e portanto uma educação — que tem por objetivo “ajudar o desenvolvimento natural”. Tudo vai bem até o aprendizado da leitura. Aí, a Sra. Montessori encontra-se num impasse: como ajudar a natureza na quilo que não procede dela? Com efeito, para ela, a lei tura procede da civilização. Ela contorna a dificuldade falando de “linguagem gráfica”, e põe em prática exer cícios gestuais e sensoriais que têm por objetivo o apren dizado da escrita. São exatamente tais exercícios que Claparède critica, não de maneira técnica, como Freinet, mas enquanto tais: “A preocupação que parece dominar o
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sistema Montessori é o de exercitar (os sentidos, o movi mento). Seja. Mas a falha desses exercícios está em serem executados em função deles próprios, sem estarem liga dos a nenhum problema de vida. Em que pese o seu dese jo de ‘estimular a vida’, a eminente psicóloga italiana não compreendeu suficientemente que é apenas fazendo a criança viver a sua vida que se desenvolvem as suas facul dades mentais. Esse desenvolvimento é um processo es pontâneo. Segue um caminho traçado pela natureza, e o que o educador deve fazer, principalmente, é velar para não contrariá-lo com exercícios intempestivos.”3 Assim, o desenvolvimento da criança é natural por que “segue o caminho traçado pela natureza”. Disso já sabíamos. Mas Claparède vai mais longe, e coloca que toda intervenção do educador pode contrariá-lo. Não é isso que permite afirmar também que “esse desenvolvi mento é um processo espontâneo”? A melhor prova que a psicologia pode oferecer da espontaneidade do desen volvimento da criança consiste na negação da educação. Claparède no-la fornece, num livrinho intitulado: L’écolesur mesure (A escola sob medida), uma fórmula sedutora. Nessa escola, “ao invés de ser educada, a criança será colocada em condições tais que se eduque o mais possível por si mesma”4. Já se tratou do papel — ou mais exatamente, da “função” — que Claparède reserva ao mestre, “estimulador de interesses, provocador de necessidades intelectuais e morais”; encontra também para ele um lugar de escol: “Em vez de ficar no centro do palco (onde freqüentemente pontifica sem outros resultados tangíveis que não
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seja a satisfação de suas tendências autoritárias) ele de ve doravante permanecer nos bastidores.” É que, na “escola sob medida”, como vamos ver agora, o palco está reservado para a psicologia, e mais exatamente para a psicologia “funcional”. Excusado di zer que a educação que aí se preconiza tem o mesmo nome. Mas “a escola sob medida” é também uma fórmu la. Claparède convida-nos a não nos enganar quanto ao seu sentido: não se trata, em hipótese alguma, de medir a criança. Claparède fala, entretanto, como ilustra Binet, por exemplo, de “aptidões”, palavra que evoca o teste e a medida da inteligência. Para Claparède, a aptidão não é quantitativa, mas qualitativa e global. Reduz-se simplesmente a diferenciar os indivíduos uns dos outros, e não visa a “hierarquizálos”. É convincente esse argumento? Isso não impede que Claparède, como Binet e Decroly, se preocupe com o “rendimento” da escola, que ele compara aliás a uma fábrica. Pode-se, assim, pensar que, se Claparède não preconiza a medida da inteligência, é porque a sua esco la se encarrega disso. Mas não é esse o nosso propósito. Essa escola, como vimos, está instalada no Institu to de Psicologia. É a “Maison des Petits” (Casa dos Pe quenos), nome que evita a palavra escola, “ligada a mui tas lembranças dolorosas”. Essa disposição é combina da. Claparède fez dela um laboratório de psicologia e, na mesma ocasião, prevê uma só formação para os mes tres, a de psicólogo. Conseqüentemente, uma questão se levanta: é a psi cologia que fornece à pedagogia “uma base científica”,
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ou é a pedagogia que, colocando-se a serviço da psicolo gia, a fundamenta e alimenta? É fato que Claparède distingue duas pedagogias: uma que qualifica de “científica”; a outra é “dogmáti ca”. Só a primeira lhe diz respeito pessoalmente. E com preendemos imediatamente a razão disso: “A Ciência, sendo cega para os fins a que nos propomos, como um daltônico é cego para a cor vermelha, não pode indicarnos o que devemos fazer com uma criança, rumo a que destinos embarcá-la.” Se, ao contrário, nos preocupamos “com os fins da educação”, temos de nos dirigir “a outra parte da peda gogia, à pedagogia dogmática (ou teológica), que irá bus car na moral, na filosofia, na estética, na religião, na so ciologia, na política, o ideal mais ou menos afastado, mais ou menos próximo, rumo ao qual se deve orientar a ação educativa”5. Assim Claparède pode, com toda tranqüilidade e sem se preocupar — uma vez pelo menos — com a finalida de, preconizar a auto-educação, e mesmo, voltaremos a isso, o jogo na escola. Há que se admitir, as circunstâncias prestam-se a is so: “Situada no meio de um jardim, nas proximidades de um pomar”, a casa “dos Pequenos” não tem muito a ver com a “das crianças” — outra “casa”, entretanto — que a Sra. Montessori instala num bairro pobre de Roma. Será de se estranhar que “as crianças (aí) vão, vêm, entram como querem, e conforme as necessidades de sua ocupação do momento”6? Ainda mais: “Nesse regime novo”, escreve Claparè-
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de, “o papel da escola é notavelmente transformado: em vez de destruir... a sua função é doravante prolongar a infância.”7 Estamos longe da “criança desarraigada”. Mas a “Maison des Petits” — alguns deles têm doze anos — terá ainda muita coisa a ver com uma escola? Se o psicó logo pode estudar essa questão, o mesmo não acontece com o professor primário que é Freinet.
CAPÍTULO IV
O trabalho-jogo
1 — Freinet: A educação do trabalho — O trabalho-jogo
Existem certas atividades que são específicas do homenzinho como correr atrás dos ratos é específico do ga tinho. Elas são a satisfação de nossas necessidades natu rais mais poderosas: inteligência, união profunda com a natureza, adaptação às possibilidades físicas ou men tais, sentimento de poder, de criação e de dominação, eficácia técnica imediatamente sensível, utilidade fami liar e social manifesta, grande amplidão de sensações, pena, inclusive fadigas e sofrimentos. Não se trata aqui de uma alegria vulgar, de um prazer superficial, mas de um processo funcional: a satisfação dessas necessidades proporciona por si mesma o mais salutar dos gozos, um bem-estar, um sentimento de plenitude, ao mesmo títu lo que a satisfação normal de nossas outras necessida des funcionais. E esta satisfação não basta a si mesma. É por serem tais atividades ao mesmo tempo jogos, de que elas têm as características gerais, que destronam e substituem o jogo. Se então conseguíssemos — o que seria o ideal —
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realizar assim, permanentemente, a satisfação normal des sas necessidades funcionais... — ... A criança não brincaria mais... o que seria sim plesmente uma monstruosidade! — Não tergiversemos sobre palavras e denomina ções, mas antes apliquemo-nos em analisar o conteúdo. Estamos tocando na origem dessa separação arbitrária, e tendenciosa, entre trabalho ejogo... Eu sei, admite-se geralmente que trabalho — quer dizer, restrição, pena e sofrimento — supõe relaxamento de sua antítese, o jo go, como sofrimento supõe o clarão obstinado de um bem-estar cuja volta se espera, como a fadiga supõe o período de repouso que seguirá. Mas se há sofrimentos que nos são mais preciosos do que a alegria, fadigas que buscamos mais do que o repouso; eseo trabalho nos bas ta porque traz em si os elementos do jogo, onde estará a monstruosidade? Se quisermos reunificar poderosamente a natureza humana, temos de, nesta altura, buscar realizar uma ati vidade ideal a que chamamos TRABALHO-JOGO para mostrar bem que ela é os dois ao mesmo tempo, aten dendo às múltiplas exigências que ordinariamente nos fa zem suportar um e procurar o outro. A coisa não é por certo impossível pois que se realiza espontaneamente em certos meios, em certas circunstâncias. A nós cabe gene ralizar e estender-lhe os benefícios ao nosso esforço escolar.
O texto foi extraído do capítulo 27 de L 'éducation du travail, intitulado “Le travail-jeu”.
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Com esse debate, para o qual forja uma palavra composta, Freinet está no terreno da psicologia. Essa dis ciplina estuda “a atividade espontânea da criança”, e é por isso que lhe importa conhecer a sua “natureza”. É jogo? É trabalho? A questão não tem sentido se levantada por si mes ma. Entretanto, a sua significação se aclara logo que a confrontamos com a escola. De fato, o debate trabalhojogo questiona então a contradição, que acabamos de fri sar, entre a psicologia e a pedagogia. É certamente por isso que Freinet lhe consagra, na verdade, praticamente todo o seu livro. A análise que faremos deve também permitir-nos compreender o título do livro: “a educação do trabalho”, expressão inegavelmente ambígua, confor me já verificamos. De início, retomemos rapidamente algo que já foi dito. Apresentamos Freinet como um prático e é como tal que ele se opõe à psicologia. Essa situação lhe permi te, como vimos, questionar a escola. Mas o estudo de seus escritos revela-nos também um Freinet psicólogo. Teria ele se tornado psicólogo a contragosto? É fato que, ao mesmo tempo que escreve L ’éducation du travail, Freinet faz suas primeiras tentativas em psicologia. Também em 1946, publica um Essai de psychologie sensible1, em dois volumes. Perfeitamente consciente de estar ultrapassando os limites do seu território, Freinet, num prefácio a esse li vro, justifica um projeto que amadurecera ao longo “de trinta anos de militância pedagógica”: “Foi na estagna ção imposta pela guerra que repensei este livro. Na cela das prisões, nas barracas dos campos de concentração,
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no chalé alpestre onde estava refugiado, face ao esplen dor da neve e posteriormente no próprio ‘maquis’, pude adensar o meu pensamento, vivificá-lo com uma expe riência que ultrapassa as paredes da escola para alcan çar o grande canteiro de obras das forças orgânicas da vida. Não se admire o leitor de não encontrar nesta obra as citações nem a bibliografia que são de praxe nos tra tados clássicos de psicologia. Não que eu pretenda nada dever aos pesquisadores de renome e aos obreiros obs curos cuja obra continuamos. Mas escrevi estas páginas sem o recurso direto dos livros, só tendo a meu alcance a pena e os cadernos que foram os fiéis companheiros de meu pensamento profundo. Por outro lado”, conti nua Freinet, “operando sob o signo da autodidaxia, nun ca trabalhei como aluno ou como discípulo.” Uma vez posto isso, Freinet admite que “é difícil, para um primário formado no embate dos fatos, irrom per no mundo fechado de uma cultura especializada”. Mas anuncia também que isso permite evitar “a lingua gem hermética dos especialistas”, ele próprio emprega “a linguagem do povo”, a quem, aliás, destina a sua obra. Daí ter esta uma ambição bastante limitada: “Ser legível já não é uma originalidade apreciável para um li vro de psicologia que, desta vez ao menos, integra-se com uma pedagogia que naturalmente dela decorre?” Um livro “legível” de psicologia é por certo uma originalidade. Mas não está aí o problema. Freinet fala-nos também de “uma pedagogia que na turalmente dela decorre”. Em que consiste ela? Eis a questão que nos preocupa e que dará sentido ao debate “trabalho-jogo”.
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Com esse debate, já dissemos antes, a psicologia en frenta a escola. De fato, fala-se com freqüência de tra balho escolar, um sentido bem específico da palavra tra balho, e que Freinet nunca utiliza. Voltaremos a isso. Mas se a atividade espontânea da criança, descrita pela psi cologia, já é em si trabalho, que deve fazer a escola? As sim também, se ela é jogo. Esta última posição é a que defende Claparède. Para ele, a criança joga, e não faz outra coisa, na escola como em qualquer outro lugar. Ora, “esse papel primordial do jogo como fundamento psicológico da escola ativa passou despercebido, infeliz mente, a M. Ferrière”. Acompanhemos a crítica dirigida por Claparède a seu “excelente amigo Ferrière” com relação à “psicolo gia da escola ativa”2.
2 — “A psicologia da escola ativa”
Ferrière, como já se viu, baseia a sua “escola ati va” na psicologia. Ele podia esperar uma polêmica3. A defesa de um território sempre fez parte da ciência. Mas Claparède faz melhor: joga com as palavras. Tomando ao pé da letra a expressão “escola ativa”, atri bui a si a sua paternidade — ou pelo menos o controle — já que se trata da escola da atividade da criança, e esta, como já se disse, é objeto da psicologia. Então Cla parède pode, ainda que esteja ocupando o terreno de Fer rière, argüi-lo de incompetência. Depois das habituais fór mulas de cortesia, Claparède recrimina Ferrière por não conhecer “as poucas verdades elementares” da psicolo gia da escola ativa. Entretanto, observa, “nada é mais fácil”. Mas com a condição, evidentemente, de perma necer no campo da psicologia, da ciência, dos fatos, e de não sair voando pelas nuvens da metafísica para bus car aí esses “fundamentos”. Foi isso, inegavelmente, que Ferrière tentou fazer, deslocando assim “para o terreno filosófico” um pro
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blema “de natureza puramente psicológica”. Daí uma última injunção do psicólogo: “Não, fiquemos, por fa vor, no domínio do Cognoscível.” Essa não é uma palavra vã para Claparède, que vai poder repetir-nos o que já sabemos — ou conhecemos. Ele liga a escola ativa à necessidade e a injeta, por isso mesmo, na sua psicologia funcional. Com efeito, para ele “a escola ativa... fundamenta-se no princípio da ne cessidade... e não há outro fundamento para a escola ativa”. Uma vez admitido isso — e como não fazê-lo? — uma questão se levanta: “Como suscitar a necessidade na escola ativa?” “A solução”, confessa Claparède, “mostra-se de sesperada.” Menos para o psicólogo pois “este saberá que a criança é um ser que tem como uma das principais necessidade o jogo. É justamente por ter essa necessida de que é criança, podendo-se então considerar a tendên cia para o jogo como essencial à sua natureza”. Para que a escola ativa se ajuste ao seu princípio — a necessidade — basta, portanto, introduzir nela o jogo, e, fazendo isso, Claparède resgata òutra fórmula pedagógica: “A necessidade de brincar: é precisamente isso que vai permitir a reconciliação da escola com a vi da... É o ponto que vai ligar a escola e a vida, a ponte levadiça que permitirá à vida penetrar na fortaleza es colar cujas muralhas e torreões pareciam dever separálas para sempre.” Vamos ao âmago da argumentação. A escola ativa é a escola da atividade, e a atividade, como se sabe, é impulsionada pela necessidade. Com preocupação de
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exaustividade, Claparède distingue dois tipos de atividade. Só é levada em conta, entretanto, aquela que está rela cionada com a necessidade e, para que compreendamos melhor, ele dá um exemplo percuciente: “Acaso se acre dita que Montesquieu não era muito ‘ativo’ quando es crevia as Cartas persas, embora Rica e Ibben fossem per sonagens imaginários? Um aluno poderá igualmente com por, envolvendo-se inteiramente nela, uma carta a ser en viada por Guignol a Polichinelo, para dizer-lhe que as suas duas corcovas não lhe metem medo e que zomba perfeitamente dele.” Por que não? Com uma condição, entretanto, e ela não é de se desprezar: não levar em conta o resultado da atividade. Mas aí está um hábito de pensamento de Claparède que, como estamos lembrados, ignora também “os ob jetivos da educação”. Não é essa negação sistemática do resultado da atividade que lhe permite afirmar que falar de trabalho, a propósito da escola, resvala na estupidez? A essa concepção vamos opor aquela, deliberada mente utilitarista, do americano Dewey. Poderemos en tão perceber que o ponto de vista de Claparède não é tão “desinteressado” como pode parecer. As posições dos dois psicólogos na verdade convergem. Dewey tem, no entanto, a vantagem de dizer as coisas claramente e en contrar as expressões eficazes. Particularmente, para ele, nem jogo nem trabalho; só importa a “atitude la boriosa”.
3 — A atitude laboriosa
Dewey não se engaja no debate trabalho-jogo. É ape
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nas de passagem, e a propósito de uma reflexão sobre Como pensamos4, que ele o menciona simplesmente. Is to lhe permite também esquivar-se de uma escolha difí cil entre os dois termos. Em educação, escreve, “uma dis tinção nítida entre os dois termos não se impõe’’. O que não impede Dewey de reconhecer a dificuldade verbal: “O dicionário não permite dar a atividades dessa espé cie o predicativo trabalho. Entretanto”, nota ele, “re presentam uma verdadeira transição do jogo para o tra balho.” Daí a feliz expressão que ele mesmo propõe: “a atitude laboriosa”. O que abrange essa terminologia? A atitude laboriosa, o nome indica; não tem muito a ver com o jogo. Contrariamente ao trabalho, no en tanto, ela não é imposta do exterior. Portanto, está liga da ao “sujeito”, ao seu “interesse” que, como já foi vis to, participa do “esforço” e fundamenta a escola preco nizada por Dewey. Estamos de novo num terreno conhe cido, aproveitemos para completar o que sabemos do “in teresse da criança”. É com relação a essa noção que Dewey se entrega a uma crítica da “teoria da lei moral de Kant”: “É desne cessário insistir na ineficácia de uma teoria que exclui qual quer finalidade concreta como motivo da vida moral. Vêse bem que tal teoria é inadequada. Tem como resultado prático a deificação das boas intenções como tais, por um lado, e, de outro, a promulgação de leis imutáveis.”5 Por que essa severidade? É que “o único interesse que Kant nos permite buscar — ‘o respeito pela lei mo ral’ — é totalmente incapaz de satisfazer as necessidades do educador”.
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Quais são essas necessidades ou, mais exatamente, qual é, segundo Dewey, “a tarefa do educador”? A res posta está pronta: “Ele busca utilizar os interesses atuais da criança e seus objetivos particulares, de modo que, mais tarde, possa nascer um sentimento da lei e das suas exigências que mantenha e fortifique o caráter nos mo mentos críticos em que a tentação surgirá.” É claro que a crítica não nos diz respeito enquanto tal. Não é apenas a “teoria filosófica” que Dewey sub mete a exame no seu livro. Ela nos permite simplesmen te verificar que, para Dewey, a educação é apenas moral e, como se verá, é na escola que ela assume a sua rea lidade. Além disso, “a tarefa do educador” bem o indica, essa educação moral procede em dois tempos. Num pri meiro tempo, que é o da escola, trata-se de utilizar o in teresse da criança. Essa utilização só virá a dar frutos “mais tarde” e então é que pode nascer “o sentimento da lei”. Vejamos esse primeiro tempo. A escola e a criança termina com um capítulo cujo título é claro: “Moral e educação”. Dewey nele explica o que entende por educação moral na escola. Como numerosos pedagogos, Dewey aí denuncia a “disciplina repressiva” e o “caráter artificial dos hábi tos morais que são cultivados em sala de aula”. Qual é a causa dessa moral formal e exterior? “Deplorou-se com freqüência”, escreve Dewey, “a se paração que existe entre a educação moral e a educação intelectual na escola, entre a aquisição dos conhecimen tos e a formação do caráter. Essa lacuna provém do fa
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to de não ser a escola um meio social suficientemente real.” E dá-nos um exemplo de meio social “real”: a família. “Se compararmos”, propõe Dewey, “o que se pas sa na sala de aula com a vida de uma criança, colocada numa casa bem mantida, verificamos que, nesta última situação, ela se encontra em meio a deveres reais e res ponsabilidades especiais, que brotam da própria nature za da vida social de que participa a família da qual ela é tributária. A criança deveria ter na escola exatamente os mesmos motivos para agir bem e ser julgada exata mente pelo mesmo critério que o adulto na vida social, mais vasta, onde se move.” Dewey vai propor a transformação da escola em fa mília? Os “deveres escolares”, então, teriam aspecto prá tico e finalidade imediata, como as tarefas caseiras, e a vida entraria na escola. Mas não é o que preconiza De wey. Faz melhor. Ataca os “programas escolares”, cujo aspecto formal e artificial evidentemente critica. Não são as matérias ensinadas, em si mesmas, que ele questiona: “Os diversos ramos de estudos tais como a aritmética, a geografia, as línguas, a botânica, etc., são, cada um deles, experiências — as da raça. Encarnam os es forços acumulados, as lutas e os sucessos da humanidade.” Esse ponto de vista permite-lhe distinguir, para ca da matéria ensinada, “dois aspectos: um para o cientis ta enquanto cientista, outro para o pedagogo enquanto pedagogo”. De modo que “o educador não tem (pois) de lidar com as matérias de ensino em si, mas com essas maté rias em suas relações com um processo de crescimento
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integral. Enxergar isso”, acrescenta Dewey, “é entender o papel da psicologia na educação”. Assim, como pedagogo que se respeita, Dewey não menciona o conteúdo do ensino, mas apenas o método. Isso lhe permite afirmar: “É (pois) para o professor que o programa é útil, e não para o aluno.” Como o interes se, de que já tratamos. Entretanto, dentre as disciplinas ensinadas, uma pa rece chamar-lhe a atenção — “em si mesma” —, a his tória. Dewey interroga longamente — dedica a isso todo um capítulo do seu livro — qual é “o objetivo da histó ria na educação primária”? E dá uma resposta clara: “O presente e o futuro exer cem sobre nós um apelo por demais insistente para que ousemos permitir-nos imergir no oceano dos fatos desa parecidos para sempre.” E, em virtude desta concepção atual da história, De wey propõe considerá-la “como uma explicação das for ças e das formas que se apresentam na vida social. Essa vida social é a atmosfera que respiramos, o presente e o passado aí se encaixam indissoluvelmente. A história — prossegue — introduz-nos no domínio da vida”. Será pela história — ensinada da maneira como aca bamos de ver — que a vida — “a vida social” — entra na escola? Pode-se pensar que sim. Mas, como vamos ver, Dewey não precisa disso; a vida já está na escola, e é graças à educação moral. Esta última poupa a De wey a questão — verdadeiro leitmotiv da pedagogia — da ligação entre a escola e a vida. Desde os primeiros capítulos que consagra à educa ção moral, Dewey afirma: “É evidente que não pode ha
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ver duas séries de princípios morais, duas teorias morais, uma válida para a vida escolar, outra para a vida extraescolar... Os princípios da vida social e os da vida esco lar são os mesmos.” É em virtude dessa unidade da vida moral, dentro e fora da escola, que Dewey está em condição de dizer francamente que “a escola só tem como finalidade ser vir à vida social”. De onde lhe vem tal franqueza? Não será da satis fação nele suscitada pela contemplação da “vida social” americana, “a atmosfera que respira”? A escola tem o dever de manter, para o futuro, tal estado de coisas. Na da disso vale para Freinet. Antes de tratarmos disso, tiremos proveito da fran queza de Dewey e teçamos algumas considerações sobre o papel da psicologia na educação. Ao longo de todo o seu livro, Dewey insiste no pa pel da psicologia. É como psicólogo que ele faz as suas propostas pedagógicas e, principalmente, que preconiza a utilização do “interesse da criança”. Este, como se viu, fundamenta a educação moral e a escola. Logo uma questão se levanta: Não teria Dewey es crito o primeiro capítulo do livro — “O interesse e o es forço” — em previsão do último? A sua concepção fi nalista das coisas permite supô-lo. De maneira que a finalidade do “interesse da criança” não seria outra senão a educação moral e, conseqüentemente, a mesma finali dade seria a da psicologia. Entende-se melhor agora o pudor de Claparède. Não são “os objetivos da educação” que tenta ignorar, mas os da psicologia.
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Voltemos a Freinet e indaguemos se a sua posição tem algo a ver com a de Dewey. É certo, já o dissemos, que em 1946, Freinet está fora da escola. E mais, logo depois da dispensa forçada, abre, em 1935, uma “escola particular”. Esta, segundo as próprias palavras de Elise Freinet, é uma “grande fa mília” de que Freinet é “o Pai”. Sob este ponto de vista, inegavelmente, Freinet pa rece ter mudado de função e a sua escola também. Esta já não tem muito a ver com aquela que ele criticava em 1920. Para explicar essa mudança, pode-se invocar as cir cunstâncias exteriores. Elas são suficientemente dramá ticas para inflectir a experiência pedagógica. Mas podese também pensar que fazem parte dela e, neste caso, não podem ser consideradas como simples causas. Na verdade Freinet é um militante político. Reivin dica tal papel e o estilo propagandístico dos seus escritos dão testemunho disto. O artigo do Clarté, sobre “a im prensa na escola” é antes de tudo intitulado: “Rumo à escola do proletariado”. Nunca tal palavra, dá para se supor, apareceu sob a pena de Dewey. Então a questão levantada se reduz a esta: como, partindo de uma posição diametralmente oposta à de De wey, Freinet chega a uma concepção da educação — e da escola — que pode parecer análoga? Reduzamos a questão a Freinet. Em 1946, ele escre ve A educação do trabalho, mas, em 1924, falava de “Es cola do trabalho”. É este o título de um artigo publica do em Clarté, e cuja discussão acima anunciamos. Nos dois títulos, encontra-se a mesma palavra “tra
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balho”. Ainda não o levamos em conta. Está na hora de fazê-lo, e isso vai permitir-nos situar Freinet e a sua experiência de modo mais preciso.
CAPÍTULO V
"A escola do trabalho"
1 — Freinet: A escola do trabalho1
A escola atual, já dissemos, está num impasse de que as melhores reformas não conseguem retirá-la. É neces sário transformá-la, revolucioná-la, se quisermos que ela retome a caminhada para frente. É a própria orientação da escola que tem de mudar: queremos, como objetivo da educação, não a simples aquisição de conhecimentos, o desenvolvimento do saber — o que resumimos numa palavra: o capitalismo de cultura — mas a formação hu mana e social do trabalhadoF e o desenvolvimento do querer. Como chegaremos a isso? A nossa tarefa seria difí cil e presunçosa se quiséssemos construir, peça por peça, utopicamente, um sistema novo de educação. Felizmen te, numerosas realizações estão aí para mostrar-nos o ca minho: realizações nas escolas burguesas, públicas ou par ticulares, por um lado (escolas de Faria de Vasconcellos, na Bélgica, de P. Gheeb no Odenwald, do Dr. Lietz, de H. Tobler, de Hamburgo, etc.) e principalmente as manifestações da escola nova na Rússia soviética. Com
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exceção de algumas poucas modalidades, os resultados concorrem para mostrar que os grandes princípios da Es cola nova devem ser: 1 ? Um ambiente de atividade e de liberdade que, a nosso ver, encontra a sua expressão definitiva na livre comunidade escolar2; 2° Um ensino baseado na atividade do aluno. A criança não deve mais instruir-se passivamente, apenas registrando a palavra do mestre. Deve desenvolver-se por seu trabalho. Quanto a nós, tentaremos definir a Escola do trabalho proletária; 3? A ação da escola, finalmente, não pode estar ter minada aos treze anos, nem mesmo aos quinze. É preci so que acompanhe o aluno durante toda a adolescência de modo a assegurar-lhe a educação e prepará-lo direta mente para o trabalho social.
O que será a Escola do trabalho A Escola do trabalho não é apenas uma etiqueta cujo significado varia de acordo com o espírito de quem a emprega. Essa expressão designa inicialmente algumas práti cas educativas baseadas no trabalho manual, que Keichensteiner e Gauding, principalmente, haviam introdu zido nas escolas. O esforço era por certo louvável, já que davam à escola uma nova atividade e orientavam para o trabalho livre pós-revolucionário. E de escolas burgue sas assim reformadas e aperfeiçoadas é que puderam sair, com o incentivo da revolução, as Escolas novas de Ham burgo. Mas não era o espírito mesmo da escola que se
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mudava; essa “transformação” exige um período mais ou menos longo de crise, uma revolução verdadeira que refaça a ordem da escola, e que Max Tepp contou pormenorizadamente em sua brochura A Escola nova. A es cola do trabalho alemã permanece com a concepção pequeno-burguesa e reformista da Escola nova — e não são palavras de desprezo; apenas marcam uma etapa. A es cola alemã é a Illustrierschule, escola de ilustração, co mo a chama Blonsky, onde o trabalho não passa de um meio para facilitar a aquisição e a cultura capitalistas. Foi necessário o advento de um poder proletário na Rússia para se romper a barreira que o Estado burguês colocava como limite ao desenvolvimento das melhores escolas novas e dar ousadamente o trabalho como base de todo o sistema escolar. Mas eis que, imbuídos de seus preconceitos de cas ta, todos os intelectuais protestam. Como? Esperar do trabalho manual, produtivo logo que possível, um de senvolvimento suficiente do homem, no momento mes mo em que a civilização exige um esforço intelectual ca da vez mais intenso, que utopia, e que loucura! É essa utopia que nós defendemos. O trabalho manual não é tudo, por certo. Mas car rega em si, latente, o esforço físico e intelectual necessá rio a um desenvolvimento harmonioso do homem. E é justamente essa harmonia que a sociedade nova deve pôr no lugar do desequilíbrio atual. O trabalho satisfaz a necessidade de criação e de ação da criança. Fá-la, ao mesmo tempo, tomar consciência de seu papel social. Contrariamente ao ensino livresco e opressivo atual, adapta-se admiravelmente à natureza
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da criança. É necessário, sem dúvida, que o trabalho pros siga numa atmosfera de ajuda mútua e de liberdade que permita a criação espontânea, no seio da comunidade, da divisão do trabalho, utilizando da melhor maneira pos sível as aptidões individuais. Entendido assim, o trabalho impulsiona os alunos a estudar por si mesmos, nos livros ou com os adultos, e só quando sentem a necessidade imperiosa, as questões complicadas e abstratas que constituem hoje o desespe ro dos estudantes. Em resumo, o trabalho como base educativa prepa ra a harmonia social pela harmonia individual; é um es timulante para o estudo abstrato, é finalmente um fator inestimável de moralidade e de sociabilidade.
A prática da escola do trabalho
Tal prática ainda está longe de estar definida. A es cola russa, única que pode trazer resultados comprobatórios, só existe há alguns anos, e em condições econô micas muitas vezes difíceis. Ainda é muito cedo para se querer tirar dela um ensinamento definitivo. Mas é-nos permitido, entrementes, apontar o caminho provável que conduz à escola do futuro. Estamos tanto mais à vontade para fazer essas afir mações quanto a escola russa não faz mais do que conti nuar — adaptando à nova sociedade — as realizações di versas das escolas novas ocidentais. Assim como a co munidade escolar foi primeiro experimentada naquelas escolas para finalmente encontrar a sua expressão defi nitiva na escola revolucionária russa, a Escola do Tra
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balho parece-nos o ponto de chegada natural dos esfor ços dos pedagogos revolucionários do Ocidente. A Escola do Odenwald (diretor P. Gheeb), a de HofOberkirch (diretor H. Tobler), as Escolas novas de Ham burgo, numerosas escolas públicas alemãs, fazem do tra balho a principal atividade escolar. A escola que Faria de Vasconcellos havia fundado na Bélgica era uma ver dadeira escola do trabalho no sentido de que o trabalho aí constituía a base de toda a educação. Todos reconhecem pelo menos o valor intelectual e moral do trabalho. As modalidades da prática é que de mandam ainda uma experimentação séria e um lento aperfeiçoamento. Pois não se trata de colocar a criança, desde a tenra idade, diante da complexidade das máqui nas modernas. Tanto mais que, não sendo o trabalho o fim da educação, mas apenas o meio para se chegar ao fim desejado: desenvolver a potencialidade vital e social do indivíduo, ele deve adaptar-se perfeitamente à men talidade das crianças educandas. Para tanto, é de bom alvitre abandonar desde logo os trabalhos fragmentários — pertinentes mais ao jogo do que ao trabalho — mediante os quais “se entretinham” as crianças mais novas, para orientá-las rumo a um trabalho de verdade, de que percebam o objetivo. Ora, o meio ambiente predileto das crianças é a na tureza. Elas olham a vida ao seu redor, e ficam ainda mais felizes se você lhes permite contribuir para a sua criação. Interessam-se naturalmente pelas culturas sim ples, pela criação de coelhos ou de galinhas, pela cons trução de abrigos primitivos, cabanas ou grutas de sel vagens, com todos os seus ornamentos. Apaixonam-se
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também pelos primeiros esboços de indústrias, tais co mo a cultura do cânhamo e do linho, a fiação e a tecela gem, a fabricação de roupas elementares. Esses traba lhos, de que se ressaltará o mais possível a utilidade prá tica, têm, além do mais, a imensa vantagem de estar na medida desses primitivos. Eles são, aliás, uma criação permanente que desenvolve a inteligência e a razão, en quanto familiarizam com as primeiras práticas escolares: ler e escrever, contar, medir, pesar, etc. À medida que forem adquirindo o sentido da ajuda mútua e da sociabilidade, os alunos terão acesso a um novo estágio da educação, o da diferenciação lenta das profissões. Não se trata, evidentemente, de fazê-los rein ventar tudo aquilo que a civilização colocou a nosso al cance. Todos os dias eles têm modelos sob as vistas — o que faltava aos gênios que inventaram essas coisas. Mas é indispensável que eles próprios trabalhem para sentir a necessidade e também as dificuldades dessa evolução. Às culturas simples sucederão as culturas racionali zadas, com cálculos e comparações: de sementes, de adu bo, de produtividade, etc., assim como a prática dos ofí cios necessários à cultura e aos cultivadores: alfaiate, fer reiro, marceneiro, pedreiro, cozinheiro, etc. Esses tra balhos irão de par com os estudos hoje exclusivamente escolares: aritmética, geometria, história, geografia, geo logia. E a vantagem incontestável será que tais estudos, hoje abstratos e rebarbativos, se tornarão interessantes por passarem a ter uma finalidade, e que, em função dessa finalidade, serão desejados, por vezes intensamente. Ca bería citar aqui as belas páginas que Faria de Vasconcellos3 escreve contando a vida de sua Escola nova nos
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arredores de Bruxelas. Aí se veria quanta atividade inte lectual anima a criançada enquanto constrói uma casa ou cava um pequeno açude; e ficaríamos atônitos de ver uma empreitada, aparentemente tão material, desenvol ver um campo de estudos que nada tem de comparável às concepções, mesmo as mais amplas, das nossas classes. A última etapa da escola será a iniciação à divisão atual do trabalho, caracterizada pela mecanização. Mas esse ensino não deve ser prematuro; estará de acordo com a necessidade de alunos que, tendo ultrapassado os está gios precedentes, chegam deliberadamente ao estudo das máquinas complicadas. Tal estudo não deverá tampou co ser teórico. Os alunos deverão colaborar para a cons trução e a instalação das máquinas úteis para o trabalho da comunidade: máquina a vapor simples, bomba, dí namo elétrico, etc. É assim que se iniciarão à vida desses instrumentos aperfeiçoados que a prática profissional os fará manusear nas indústrias. Mas essa Escola do trabalho vai acantonar-se no es tudo da mecanização como parecem temer alguns? Essa é uma concepção, a nosso ver, bem materialista, digna somente de um regime de lucro capitalista. O estudo e a aprendizagem do trabalho não têm como fim único a melhor rentabilidade social desse trabalho — resultado necessário, entretanto, em regime de proletariado. O ob jetivo é sempre o desenvolvimento do indivíduo. Mas nós queremos o aprendizado do trabalho e da vida pelo tra balho e não pelos livros. A Escola do trabalho e os adolescentes
A escola atual abandona a criança quando, aos do
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ze ou treze anos, julga-se que já adquiriu uma quantida de suficiente de conhecimento, ou, pelo menos, sabe ler, escrever e contar. Pois é a essas três palavras que se re duz afinal toda a ação da escola. O que vão tornar-se, a partir de então, os alunos? Quem os prepara para uma vida na qual estão apenas começando? Quem desenvol verá as veleidades de educação da nossa modesta escola primária? Infelizmente, somos obrigados a constatar que depois dos doze ou treze anos, para a grande massa, na da tem sido feito, afora o escravizamento — por que não dizer, o embrutecimento — pelo clero, depois pela im prensa e pelos espetáculos4. Alguns filantropos nos falaram de cursos para adul tos; mas essas novas escolas de pobres só podiam dege nerar. E o Estado nada mais fez do que pôr fim a um equívoco ao suprimir, para os professores que dão esses cursos, qualquer retribuição especial (que consistia, ge ralmente, em duas semanas de férias suplementares). Está-se começando a organizar — noutro plano — o aprendizado. Mas, executadas algumas iniciativas muito interessantes, tudo está ainda por fazer. Para a grande massa apenas, dissemos. Pois, para os ricos, cujas famílias não esperam dos filhos uma pro dutividade precoce, a escola os retém até os vinte, vinte e cinco e mesmo trinta anos. Que mesmo a essa escola não faltem defeitos, é certo. Mas a vantagem incontes tável de tal organização é a idéia de casta que ela garan te aos beneficiários, por uma preparação direta para o seu papel social futuro: o seu governo de classe. As bolsas para os pobres: são dadas na quantidade mínima suficiente para permitir à classe exploradora as
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similar, para subjugar, os elementos mais inteligentes. É o sangue proletário, rico e vigoroso, injetado na bur guesia decadente. Porque raros são aqueles que, egres sos, arrancados do povo, sabem a ele voltar, “recusan do o sucesso fácil”. O que fará para a educação desses adolescentes um governo do proletariado? Para a maior parte dos medianamente dotados, a ação verdadeiramente escolar deverá estar terminada por volta dos catorze ou quinze anos. Será necessário, a par tir de então, cuidar muito especialmente da preparação profissional dos jovens operários: permanência em es colas especiais para uns, simples estágios em indústrias para outros. Mas o trabalho manual não deve consumir toda essa atividade jovem. É preciso que a mesma alian ça que quisemos produzir entre a Escola e o trabalho pros siga durante a adolescência, e que o trabalho manual se ja a oportunidade e o estímulo do desenvolvimento inte lectual e moral do homem. A fórmula dessa aliança ain da está por encontrar. Porque não basta um curso de edu cação sucedendo ao trabalho da oficina. É preciso que o desenvolvimento do indivíduo seja o efeito do próprio trabalho, e esteja intimamente ligado a ele. É sempre o mesmo problema de adaptação. E é essa a condição que a juventude se interesse pelo trabalho e pela educação, ao invés de ter horror a ambos, como em nossos dias acontece. Para o aprendizado da própria profissão, é bom lem brar o conselho de Lênin: cada proletário aprenda não apenas um, mas vários ofícios; será assim possível com
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bater a monotonia de certas profissões, e a economia pro letária ganhará em plasticidade. Mas os bem-dotados destinam-se a outra utilização social. Como identificá-los de início? Esse trabalho foi já rigorosamente preparado pelos pesquisadores burgue ses. Existem testes — os de Binet e Simon, e tantos ou tros que têm a mesma complexidade, embora nem sem pre o mesmo aperfeiçoamento — que permitirão deter minar, com um mínimo de erros, os alunos que podem ter acesso a um nível superior de ensino. (Texto reproduzido com a gentil autorização de Mme M. Bens.)
Esse texto nos leva vinte anos para trás. Foi publi cado em 1924, em Ciarté. Ao mesmo tempo, ou quase, que Freinet apresenta “a imprensa na escola”, ele pro põe também uma transformação radical na “escola atual”. Quer fazer dela “a escola do trabalho”. O que é que Freinet quer dizer com isso? Ele próprio reconhece a ambigüidade da expressão: “A escola do trabalho não passa de um rótulo cuja sig nificação varia com a mente daqueles que o empregam.” Para concretizar as coisas, cita exemplos de realiza ções de escolas desse tipo. Principalmente a escola do tra balho alemã, que ele condena como “pequeno-burguesa e reformista”. Por quê? Num artigo intitulado “A última etapa da escola ca pitalista”, escrito ao mesmo tempo e publicado na mes ma revista que o precedente, Freinet se explica a esse res peito. Depois de um breve histórico da instituição, da Ida
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de Média a nossos dias, Freinet fala dos “humildes arte sãos da escola do trabalho alemã”: “Se queriam uma plantação na escola, uma oficina — quase uma fábrica — uma tipografia, era menos para inculcar nas crianças, por esse viés, as propriedades das matérias e o seu uso, do que para iniciá-los à grandeza do trabalho — e do tra balho em todas as suas formas, manual e intelectual. Mas”, prossegue Freinet, “havia os programas, havia os exames, havia a sociedade toda a vigiar e a impor que se ocupassem mais particularmente com a aquisição, úni ca necessária na ordem capitalista. Tiveram então, os iniciadores da escola do trabalho verdadeira, de compor com as idéias de seus mestres. Foi preciso provar a estes que o trabalho manual nos campos, na oficina, facilita, em vez de entravar, a aquisição dos conhecimentos, que o aluno aprende mais realizando manualmente aquilo que até aqui se quis ensinar-lhe verbalmente: em suma, que o trabalho, tal como é introduzido nas escolas, é um coad juvante precioso, uma ‘ilustração’ necessária das belas lições.” A expressão “escola de ilustração” é retomada no artigo que acabamos de ler, mas Freinet a atribui desta vez a Blonsky5. Trata-se para ele, de fato, de recusar uma concep ção do trabalho na escola que leva pura e simplesmente ao mesmo resultado que a escola habitual, quer dizer, à “aquisição dos conhecimentos”. A respeito da escola do trabalho alemã, entretanto, pode-se perguntar de onde Freinet tira as suas infor mações. É certo que existe na Alemanha, e desde o século
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XIX, uma reflexão pedagógica em torno do problema da introdução do trabalho na escola. Na época de Frei net, essa corrente é representada por um pedagogo céle bre, Kerschensteiner, cujo nome é mencionado por Frei net ao lado do de Gauding. Os escritos alemães, entretanto, são pouco traduzi dos para o francês, e Freinet descobre-os, por certo, atra vés da leitura dos pedagogos suíços que, por razões de língua evidentes, conhecem-lhes as obras. Ferrière parti cularmente tem em grande conta as idéias de Kerschens teiner, a quem cita com freqüência. Por que então Frei net, que se refere tão facilmente a Ferrière, não o cita aqui por sua vez? Talvez pressinta a contradição em que se arrisca cair. Com efeito, a escola de Ferrière, é a “escola ativa”. Esta se fundamenta na atividade ou ainda no trabalho manual, e não é a esse trabalho que Freinet quer limitar a sua escola. Já nas primeiras linhas de seu artigo, especifica: “Quanto a nós, tentaremos definir a escola do trabalho proletária.” Pouco adiante, Freinet explica: “A última etapa da escola será a iniciação à divisão atual do traba lho, caracterizada pela mecanização.” Finalmente, con sidera que essa escola “deve ser um ramo da produção”. Aqui não mais se trata de trabalho no sentido esco lar do termo, mas de trabalho produtivo, o único que tem sentido fora da escola. Ora, Freinet propõe uma transição entre o trabalho, no sentido escolar do termo — “estimulante para a ati tude abstrata” — e o trabalho produtivo. O lugar dessa transição seria a escola. É o que deve fazer do trabalho
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“um fator de moralidade e de sociabilidade”. Mas é tam bém o que leva Freinet, em 1946, a falar da “educação do trabalho” e, por conseguinte, a sair da escola. Na mes ma ocasião, lembramos, ele tenta conciliar, em vão, o trabalho e o jogo. Na verdade, a dificuldade com que Freinet se defron ta não se limita à própria escola, mas põe em discussão a fronteira que separa a escola do exterior. É que, se gundo a palavra de ordem de Ferrière, Freinet propõe “a abertura da escola para a vida”. Cabe-nos examinar quais são as conseqüências de tal proposta no interior da escola. Para tanto, voltaremos à “escola ativa” de Ferriè re, e analisaremos, desta vez, o seu funcionamento. Completaremos essa análise com a de uma experiên cia diametralmente oposta, e que a reflete de maneira es pecular: a de Makarenko na URSS. A sua coletividade infantil, como veremos, está fundamentada no trabalho produtivo. Pode-se compará-la a uma escola? Esta última digressão pedagógica permitirá que si tuemos melhor a contradição que perpassa a obra de Frei net e, portanto, que definamos o seu alcance com maior precisão.
2 — O trabalho na “escola ativa”
Como já frisamos, Ferrière fundamenta a sua esco la na psicologia. São esses “fundamentos psicológicos da escola ativa” que Claparède critica, e a sua crítica vi sa, como se está lembrado, a introdução do trabalho na escola. Há pois manifestamente, na “escola ativa” de Fer rière, uma relação entre a psicologia e o trabalho. Mas, acabamos de verificar com Dewey, a psicolo gia, na escola, transforma-se em “educação moral”. De maneira que essa relação entre a psicologia e o trabalho se manifesta, no interior da escola ativa, entre a educa ção moral e o trabalho. Para compreender isso, entremos na escola ativa. Ela comporta três etapas, correspondentes às três ati vidades sucessivas da criança: a atividade manual, intelec tual e social. A passagem de uma para outra dessas ativi dades é natural, visto que é regida pela ‘ ‘lei do progresso’ ’. A cada uma dessas atividades, Ferrière associa uma for ma específica de trabalho: à primeira corresponde o tra balho manual, à segunda o trabalho intelectual, e no de
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correr da terceira etapa, a etapa social, aparece a “divi são do trabalho”. Que pode significar essa expressão no âmbito da es cola? Chegaremos a esse ponto; vejamos primeiro em que consistem as duas primeiras formas de trabalho. A primeira etapa da escola ativa decorre diretamen te de seus fundamentos psicológicos: “A criança”, escre ve Ferrière, “tem necessidade de mover os seus múscu los, de servir-se deles e, para isso, de torná-los mais for tes e mais flexíveis. Ora, prossegue, os trabalhos manuais satisfazem a essa necessidade, aumentam essa força e fa zem com que as energias musculares da criança sirvam à sua destinação natural.”6 Já de início, Ferrière observa que “as vantagens” des ses trabalhos manuais são numerosas. Enumera sete, e verifica que não se limitam ao corpo. Servem também “ao progresso moral e social”. De fato, “os trabalhos manuais desenvolvem a sin ceridade. No trabalho concreto não há mentira possível, nada para esconder”. Pouco adiante, Ferrière observa: “À estima da ferramenta... acrescente-se a estima do traba lhador” Finalmente, ele sugere “despertar o altruísmo, fazendo confeccionar pelos alunos maiores uma parte do material escolar útil aos menores, ainda incapazes de fazêlo”. Depois dessas fórmulas prudentes, Ferrière pode di zer as coisas mais claramente: “O trabalho manual per mite, mais do que qualquer outro, a colaboração, de que nasce o senso de solidariedade e o seu valor no mundo. Não há, por definição, divisão de trabalho sem trabalha dores. É necessário ter-se dado conta de visu, ou melhor ainda, pela ação pessoal, da diferença que existe entre es
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ses dois procedimentos: de um lado, uma série de ações diferentes visando à realização de um mesmo fim e exe cutadas por um só indivíduo e, do outro, uma série de ações diferentes executadas em concerto por vários tra balhadores. Quem nunca fez essa experiência nunca po derá adquirir plenamente o ‘sentido social’.” Teríamos passado, sub-repticiamente, à terceira eta pa? Não de todo, como veremos. Simplesmente instalamo-nos deliberadamente no campo da moral social, que é, de ponta a ponta, o da “escola ativa”. Entre a atividade manual, de que acabamos de dis tinguir as vantagens, e a atividade social, encontra-se a atividade intelectual. Antes de ver em que consiste o tra balho intelectual, que lhe é associado, mencionemos uma observação que Ferrière faz a respeito da sua concepção de trabalho manual. Evocando os nomes de Dewey e de Kerschensteiner, Ferrière analisa a diferença que existe entre esses dois pe dagogos. Dewey, como se está lembrado, opta por tare fas práticas e imediatamente finalizadas. É o que lhe per mite falar simplesmente de “atitude laboriosa”. O pe dagogo alemão, ao contrário, quer um trabalho de cará ter “técnico” bem definido e cuja finalidade profissio nal esteja claramente determinada. É a uma concepção “técnica” que está ligado Ferrière. Isso lhe permite, de passagem, citar Rousseau, que faz Emílio praticar mar cenaria. Essa concepção “técnica”, entretanto, merece um reparo: “No objetivo que persegue, a técnica não deve ter um objetivo profissional definido. A noção de ganhapão”, escreve Ferrière, “deve permanecer afastada da mente da criança, na escola primária, porque prejudica a universalidade da curiosidade.”
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É que o trabalho manual fundamenta, não nos es queçamos, o trabalho intelectual, que agora devemos con siderar. Aqui, Ferrière dá provas de audácia. Contrariamente a Dewey, ele não se perde numa crítica, certamente inú til, dos programas escolares. Suprime-os e, por isso mes mo, “abre a escola para a vida”. Não se trata de algo evidente pois “os dois termos hoje são antinômicos”. Mas Ferrière não recua: “E se a vida não pode vir à escola, não seja isso em baraço: é necessário que, pelo método que põe em práti ca, a escola vá até a vida e leve os alunos até ela apresen tando-lhes o que está ao seu alcance.” Que método é esse? Ferrière sugere levar os alunos a “reunir documen tos”, e depois a “classificá-los” e “elaborá-los”. Daí re sulta “o caderno da vida”. Por esse método, “a observação, a associação de idéias, a invenção, a reflexão, a expressão oral e escrita, mesmo, de vez em quando, o cálculo, todas essas facul dades vão sendo exercitadas, todas vão servindo para al guma coisa de atraente e de útil”. Deve-se ter observado que Ferrière tem certa difi culdade para encaixar o cálculo, a gramática também, aliás. Mas “não seja por isso”, essas disciplinas são real mente úteis? No que tange a seu atrativo, nem cabe le vantar a questão. O método não pára aí. Ferrière, a respeito desse tra balho intelectual, fala de “trabalho produtivo”. É que ele se opõe definitivamente ao “trabalho escolar me cânico”.
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Neste caso, o trabalho não é imposto, mas escolhi do “livremente”, de maneira que vá ao encontro do “in teresse da criança”. E já estamos no território do conhecimento. Mas Ferrière utiliza num sentido um pouco particular a pala vra “interesse”, que emprega no plural e cuja evolução descreve. Assim, no início, por volta de quatro-seis anos, os interesses são “disseminados”, e é só ao termo de seis etapas, e pelos dezesseis-dezoito anos, que se tornam “abstratos complexos”. Ora, a propósito dessa evolução, Ferrière faz uma observação: “Lembremos”, escreve ele, “que a evolu ção aqui descrita está longe de ser universal. Nem todos os indivíduos chegam à etapa dos interesses abstratos mes mo empíricos. Há então uma seleção a ser feita. Ela já se faz. As escolas secundárias só contam com uma por centagem bastante baixa de crianças de mesma idade com que o país conta. Seleção muito pouco racional sempre, para dizer a verdade, em que exames pouco judiciosos e a fortuna dos pais pesam de maneira decisiva.” Assim, Ferrière propõe a substituição dessa “sele ção muito pouco racional” por uma “seleção natural”, e é por isso que, como acabamos de ver, ele suprime “os exames pouco judiciosos”. Achamos que aqui reaparece a psicologia: a seleção “natural” o mostra. Mas Ferrière já não precisa dela aqui. A seleção natural — como o nome indica — faz-se por si mesma. Repousa, como veremos, na “autonomia dos alunos” e conduz — naturalmente — à “divisão do trabalho”.
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Antes, apresentemos em duas palavras a última eta pa da escola ativa, a da “atividade social”: “Na verda de”, reconhece Ferrière, “já fiz alusão a isso. Já disse que, em certas escolas, os alunos maiores confecciona vam o material necessário para os menores... Essa mú tua ajuda material se desdobra, aqui e ali, numa ajuda moral recíproca.” Tanto assim que, pouco a pouco, ela se reduz à “aju da moral recíproca”. Já se podia adivinhá-lo, tudo esta va previsto. Vejamos agora em que consiste essa educação mo ral. De início, Ferrière lembra que “de acordo com o seu princípio invariável, a Escola que respeita a espontanei dade do aluno não impõe de fora para dentro uma mo ral feita de fórmulas que não passaria de uma cultura de superfície”. Será a vontade de não impor uma moral “de fora” — voltaremos a essa fórmula — que leva Ferrière a não impor, tampouco, um “trabalho escolar mecânico”, ou é o contrário? Pouco importa, aliás, pois só a moral con ta. Mas, observemo-lo, ela passa inegavelmente pelo tra balho: “Apoiada nessas considerações, a Escola ativa não ministra cursos de moral ex cathedra, mas esforça-se por criar um meio social próprio ao favorecimento de expe riências diretas dos alunos. Trabalhar em comum, não um ao lado do outro, mas em colaboração, cuidar em comum do bom andamento de um organismo social, nada é mais favorável ao desenvolvimento do sentido social, sem o qual toda moral não passa de fumaça.” Eis aí o essencial, pois “é principalmente para a au tonomia moral que tende a pedagogia nova no campo
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da educação social”. Ferrière dedica dois capítulos do seu livro a essa questão. Embora aponte “as vantagens da autonomia dos alunos”, que são, evidentemente, nu merosas, ele destaca também “os inconvenientes”. Pres temos homenagem à sua honestidade e consideremos uni camente as “vantagens”, sob dois diferentes pontos de vista: o do mestre e o do aluno. Um e outro são “livres”: “Libertar o mestre, eis a primeira vantagem da autonomia dos escolares. Existe uma segunda: liberta o aluno da tutela pessoal do adul to para colocá-lo sob a tutela da sua consciência moral.” Mas essa liberdade não tem as mesmas conseqüências, tanto assim que vamos considerá-las separadamen te. Vejamos primeiro a do mestre. Ferrière tem uma opinião desfavorável do educador, que ele mantém, como se está lembrado, no estado de adolescente “intuitivo”, em seu afresco panorâmico. Com a “autonomia moral”, consegue, de certo modo, neutralizá-lo, e ele se explica da seguinte maneira: “Eu queria repetir aqui o que já disse: o objetivo da educa ção pública é instituir métodos de ação bastante simples — bastante automáticos, poderiamos dizer — para que, mesmo nas mãos de educadores medíocres, façam para as crianças... digamos: o menor mal possível.” Ferrière é decididamente pessimista: “Deixemos de lado as grandes esperanças no que concerne o futuro. No dia em que o orçamento militar for inteiramente reverti do para a educação pública, no dia em que a posição so cial de cada educador o mantiver ao abrigo de toda preo cupação e lhe permitir viver em modesto conforto, ele,
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a mulher e os filhos, sem que tenha de se sobrecarregar, nesse dia nós vamos pensar.” Claparède propunha para o mestre uma formação em psicologia, Ferrière faz melhor: absolutamente nenhu ma formação. Voltemo-nos agora para o aluno: libertado da “tu tela do mestre”, ele fica sob a de “sua consciência mo ral”. A esse respeito, Ferrière usa constantemente uma fórmula que precisamos analisar: “A moral verdadeira”, escreve ele repetidas vezes, “não é um conjunto de pre ceitos infligidos de fora para dentro, mas um crescimen to que se manifesta de dentro para fora.” Que quer di zer Ferrière com isso? Encontramos vários sentidos que não são redutíveis a uma mesma coisa. O primeiro é banal e evidente: “A moral verdadei ra é conquista de si.” Mas há mais. Ferrière é um admirador de Baden-Powell, funda dor do escotismo. Assim, compara a sua moral escolar com a dos escoteiros: “Acabei de falar da ajuda mú tua na escola. Pode-se também considerar a ajuda mútua exercida pela escola fora da escola.” Que quer dizer “fora da escola”? Estamos lembrados, a escola de Ferrière deve pro piciar “um mundo de justiça e de paz”. Existe pois um segundo sentido dessa “moral de dentro para fora”. A “divisão do trabalho”, instaurada no interior da escola, e a “seleção natural” que lhe corresponde têm evidentemente prolongamentos exteriores. Ferrière di-lo claramente: “O regime de autonomia dos escolares re vela chefes naturais, líderes espontâneos.” A eclosão es pontânea do chefe também é, em outro nível, um pro
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cesso “de dentro para fora”: “Essa questão da escolha de um chefe”, escreve Ferrière, “e do caráter que uma criança deve ter para ser chefe de turma, é uma das mais interessantes que se apresentam ao psicólogo e ao edu cador... Porque é preciso dizer uma coisa: não é o gru po que escolhe o seu chefe... É muitas vezes o chefe que se impõe... Esse chefe”, continua Ferrière, “é simples mente aquele que possui as qualidades mais marcantes: decisão, rapidez de percepção, senso de organização e competência, pelo menos aos olhos dos companheiros.” Mas “fora da escola”, os efeitos dessa “seleção na tural” adquirem uma nova dimensão. É aliás o que per mite a Ferrière mencionar uma vantagem que não se po de negligenciar: “A orientação profissional ficaria assim facilitada e qual não seriam as garantias de estabilidade e de harmonia de um mundo onde se encontrasse, com mais freqüência do que hoje acontece, the right man in the right place.” Não é por mero acaso que Ferrière retoma aqui, em sua língua de origem, uma fórmula muito cara a Dewey. Também gosta de falar, assim como Dewey, de self government na escola. Para esses dois pedagogos, “a úni ca finalidade da escola é servir a vida social”. Mas Dewey, já o frisamos, não faz questão de mu dar essa vida social. A escola tem por tarefa mantê-la tal como está, e já é muito. Ferrière, pelo contrário, quer a mudança de uma so ciedade de que ele denuncia a degradação profunda: “O círculo familiar não conhece mais a coesão e a calma ne cessárias a uma obra paciente e continuada de educação. Separados durante três quartos do dia, os membros da
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família quase não se encontram, a não ser nas refeições. É necessário pois que a escola sirva de lugar entre o que subsiste da vida de família na criança e o que será ama nhã o campo de ação coletiva do jovem e da moça: a so ciedade.” Por outro lado, na escola as coisas vão mal: “Não sei”, escreve Ferrière, “se ainda é assim, mas, no meu tempo, os alunos formavam um bloco contra os profes sores. Era a luta de ‘classes’ por antecipação. Multipli quem agora”, prossegue ele, “esses defeitos por cem, por mil, por tantos milhões quantas crianças freqüentando a escola existem na Europa; convençam-se de que não é durante um dia, nem dez dias, nem dez meses que as crianças ficam submetidas a esse regime, mas durante seis anos, dez anos, quinze anos às vezes, e não ficarão ad mirados, não de que o mundo tenha caminhado para a ruína, de que os homens tenham agido contra os seus in teresses individuais e coletivos é claro, mas de que as coi sas não estejam piores do que estão.” Não está aí o real perigo? A escola está aberta para numerosas crianças, e Ferrière, que já viu nela, no seu tempo, “a luta de classes por antecipação”, quer a qual quer custo evitar que ela se torne real. Assim, ele propõe uma nova abertura à escola, pelo “trabalho” e para a vida: “Imagine-se uma sociedade de adultos formada de homens e de mulheres educados na escola tal como nós sonhamos: todos terão aprendido a trabalhar, isto é, a criar valores úteis para a humanidade.” Resta-nos fazer uma observação sobre a “autono mia moral”. Desta vez, curiosamente, ela procede “da periferia para o centro”. De fato, Ferrière nota: “Co-
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mo muitas vezes acontece, os progressos do regime da autonomia dos alunos aconteceram, por assim dizer, da periferia para o centro, quero dizer: partindo das crian ças anormais para chegar às normais.” E Ferrière pros segue: “Os meninos delinqüentes e os criminosos em po tencial foram os primeiros refratários ao regime da es cola e, por isso mesmo, aqueles que a sociedade tinha o maior interesse em ver postos fora de condição de pre judicar, ou mesmo, se possível, reintegrados no traba lho e na colaboração pacífica com os seus semelhantes.” A moral procede “de dentro para fora”, como tan tas vezes repete Ferrière, ou, como ele menciona aqui, “da periferia para o centro”? Para entender o que essas figuras escondem, é pre ciso interrogar outra pessoa. Como dissemos, esse outro pedagogo é Makarenko. Ele se viu efetivamente confron tado com “delinqüentes”, que reabilita pelo trabalho — desta vez produtivo — mas também nos conduz para fo ra da escola. Ferrière confundira seriamente os limites. 3 — O trabalho na “coletividade infantil”
A última digressão proposta conduz-nos à União So viética, logo após a revolução bolchevista. Nesta época, é fácil imaginar, a questão do trabalho — e da escola do trabalho — está na ordem do dia. E, no caso, trata-se de trabalho produtivo. Escolhemos analisar as conseqüências de sua instau ração, não numa escola, mas numa colônia de crianças, e de crianças ditas “delinqüentes”. Por que esta escolha? Antes de mais nada porque nos revela uma experiên
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cia pedagógica original e cuja originalidade, como vere mos, está ligada à própria pessoa do educador que a rea liza. No campo da educação, as coisas só acontecem uma vez. É sem dúvida por isso que Rousseau recomenda um educador jovem: “Desejar-se-ia que o preceptor já tivesse feito uma educação. É demais; um mesmo homem só po de fazer uma: se fossem necessárias duas para ter suces so, com que direito empreendería a primeira?”7 Apresentemos pois Makarenko e a sua obra. Nas ceu na Ucrânia, em 1888. Aí recebe formação de profes sor primário, profissão que desempenha durante dezes seis anos, particularmente durante os anos da revolução. Nada o preparara, confessa ele, para a tarefa que lhe foi confiada em 1920: reeducar crianças abandona das, órfãos de guerra e apanhados, na maioria das ve zes, em flagrante delito de “delinqüência”. Makarenko relata essa experiência no Poema peda gógico. Esse livro faz tanto sucesso que dele se tira um filme. É preciso reconhecer, ele se lê como um romance de aventuras. Makarenko abre, nos sinistros locais de uma antiga penitenciária, uma colônia de crianças, a “colônia Gorki”. Os primeiros tempos foram, como confessa o pró prio autor, absolutamente “inglórios”. E ele se explica da seguinte maneira: “Nunca li, durante toda a minha vida, tantas obras pedagógicas como nesse inverno de 1920.” E Makarenko conclui: “O principal benefício que tirei dessas leituras foi a convicção, que de repente pas sou a certeza, de que elas não me punham em mãos ne nhuma ciência e nenhuma teoria, e que esta tinha de ser
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retirada da soma de fenômenos que aconteciam diante dos meus olhos.”8 Assim como Freinet, Makarenko se diz um prático da educação. É em função disso que toma a palavra e fala so bre “os problemas da educação escolar soviética”9. Essa coletânea de conferências, feita aposteriori por Makarenko — quando se retirou para Moscou em 1937 —, serve-nos aqui como obra de referência. O tom é bem diferente daquele do romance. Mas Makarenko já o previra, pois que conclui o seu romance dizendo: “E talvez, muito em breve, se pare de compor ‘poemas pedagógi cos’ para se escrever um simples e prático ‘método de educação comunista’.” Se Makarenko reivindica o seu papel de prático, quer também que a sua prática o conduza à teoria. Em suas conferências, Makarenko fala de “teoremas” e mesmo de “axiomas” da educação. Pode-se falar de uma teoria da educação? E, de qual quer forma, será que esta se origina, como pensa Maka renko, diretamente da prática? Para responder a essas perguntas, é preciso ver as coisas de maneira concreta. Depois da colônia Gorki, em 1927, Makarenko di rige outra, a “comuna Dzerjinski”, que tira o nome de um pedagogo russo. Ele dedica a essa segunda experiên cia um outro romance, com título revelador: As bandei ras nas torres10. É aí que Makarenko encara realmente a questão do trabalho produtivo. Assim, nas suas conferências, os exemplos que dá são quase sempre tirados dessa segun da experiência que, pelas mesmas razões, nos diz mais respeito do que a anterior.
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Na comuna Dzerjinski, Makarenko instala oficinas onde os pupilos fabricam objetos que podem ser vendi dos fora. No início, são oficinas de marcenaria — mais tarde, fará produzir objetos delicados, como máquinas fotográficas — e de imediato surgem dificuldades: “O trabalho era muito malfeito, os clientes se queixavam, e estávamos habitualmente em déficit. As despesas com matéria-prima, eletricidade, pregos, cola, tudo isso mal era coberto pelos preços que fazíamos para os clientes, e o nosso trabalho não era remunerado.” Deixemos de lado a questão da remuneração, vol taremos a ela, e vejamos como Makarenko resolve a pri meira dificuldade, a do déficit. A solução não vem do próprio Makarenko, mas de “um homem sem nenhum princípio do ponto de vista pedagógico, mas dotado de uma energia extraordinária”. Em que consiste essa solução? “Solomon Borissovitch — é o antipedagogo em questão — dizia que enquanto os membros da comuna não soubessem fazer cadeiras, que fizessem paus de cadeira. E”, conclui Makarenko, “introduziu a divisão do trabalho.” A expressão, já se imagina, não tem aqui o mesmo sentido que em Ferrière. Aliás, Makarenko confessa: “Eu estava cheio de dúvidas.” Na realidade, ele reconhece que essa divisão do tra balho “quando olhada de perto, com os olhos arregala dos, dá uma impressão acabrunhadora; mas”, prossegue, “considerada no tempo, não se vê nela nada de terrrível”. Sigamos o conselho e olhemos primeiro “de perto”: “Um”, escreve Makarenko, “plainava, outro serrava, um terceiro limpava, um quarto polia, um quinto efetuava
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o controle, etc., mas não havia nenhum processo de ins trução, e os meus meninos da comuna acabaram por per ceber isso. Diziam: assim não vamos aprender nada.” Vejamos — ainda “de perto” — o resultado: “Co meçamos a produzir como se chovessem cadeiras. O pá tio ficou logo abarrotado de cadeiras de péssima quali dade, é verdade.” E agora tomemos distância, consideremos as coisas “no tempo”: “É verdade que cada menino ou menina só efetua, em dado momento, uma única operação que, parece, não lhe permite adquirir nenhuma qualificação; mas, no decorrer de alguns anos que passa na comuna, é chamado a efetuar, sucessivamente, um tão grande nú mero de operações diferentes, para passar finalmente às mais complexas, como a montagem, etc., que se torna efetivamente um trabalhador qualificado, daqueles que são indispensáveis à grande produção social, e não ao artesanato.” Uma vez resolvida a questão do déficit, resta a ou tra, mais delicada, da remuneração. Makarenko não quer ouvir falar de salário. Este “só podia estragar e deteriorar (o) quadro do bem-estar mo ral” que havia estabelecido em sua colônia. Assim, ele mesmo, desta vez, encontra a solução: transforma o sa lário em dinheiro para os gastos pessoais. E explica-se: “O homem que dá os primeiros passos na vida deve ter uma experiência do modo de manter o orçamento pes soal e deve saber como gastar o dinheiro.” Pensa-se, no caso, na “noção de ganha-pão” de Fer rière. Makarenko é mais realista e certamente mais efi ciente: “Esse dinheiro disponível”, especifica, “eu não o
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distribuía em função do trabalho efetuado em cada caso particular, mas conforme o pupilo tivesse, em geral, mé ritos maiores ou menores junto à comunidade.” Que resta do trabalho produtivo? Do ponto de vista do pupilo, nada de muito sensí vel. Já não fabrica um objeto completo no qual pudesse reconhecer-se, e não é pago em função do trabalho exe cutado. De modo que estamos diante de uma série de ges tos, ou ainda, como sugere Dewey, de uma “atitude la boriosa”. É um fato, e Makarenko o diz claramente, a sua co lônia é um lugar de educação moral, ou mesmo, voltare mos a isso, de reeducação: “Confiavam-me rapazes e ga rotas com particularidades de caráter demasiado explo sivas e perigosas, e o meu primeiro objetivo era refazer esse caráter.” Antes de ver em que consiste a educação moral na coletividade infantil, detenhamo-nos um pouco na ati tude de Makarenko com relação à psicologia. Como Freinet, e pelas mesmas razões, desconfia de la. De qualquer modo, não se trata aqui da psicologia espontaneísta, mas de uma concepção mais rude, inspi rada no condicionamento de Pavlov. Efetivamente Makarenko busca dotar os seus pupi los de novos hábitos, e quer que estes sejam permanen tes. Para tanto, faz deliberamente tábula rasa do passa do — muitas vezes pouco elogioso — de cada pupilo, e empreende a construção de um “homem novo”. Admite, no entanto, um papel para a psicologia: ela deve permitir a verificação dos resultados da educação. Não é uma palavra vã, para Makarenko, pois, entre os
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resultados da educação, está a “disciplina coletivista”. Esta decorre diretamente da “organização da coletivida de”, instrumento da educação moral de Makarenko. Ve jamos em que ela consiste.
A organização da “coletividade infantil”
Makarenko quer, a todo custo, evitar a “multidão” infantil, e é por isso que insiste na necessidade de se or ganizar a coletividade. Para isso, subdivide a sua colô nia — que comporta até quinhentas crianças — em pe quenas coletividades a que chama “primárias”: “Era só por intermédio de tal coletividade primária que lidávamos com o indivíduo, mas”, acrescenta Makarenko, “na realidade tínhamos sempre em vista o pupilo enquanto indivíduo.” À frente de cada coletividade primária — composta de dez a quinze crianças, de ambos os sexos e idades di ferentes — Makarenko coloca um chefe. Este é respon sável por seus subordinados junto à coletividade, à fren te da qual está Makarenko. “Ninguém prejudicava tan to a minha atividade, estragava tanto, atrapalhava tan to um trabalho preparado durante anos, como um mau educador.” Que é um mau educador? “É uma besta pedagógi ca que não se preocupa com nada que não seja buscar ‘o amor’ de seus alunos.” Makarenko é contra essa “busca de amor” e ele pró prio recusa praticá-la: “Pessoalmente nunca busquei atrair o amor das crianças... É possível que certos mem bros da comuna me amassem, mas eu colocava como
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princípio que devia fazer das quinhentas crianças que eu educava cidadãos, homens de verdade; por que acrescen tar ainda ao meu projeto essa espécie de histeria amorosa?” Certo, mas acaso não detém, Makarenko sozinho, um poder entre todos pernicioso: é o único a punir os membros da comuna. Vejamos agora como Makarenko representa para si o pupilo, esse indivíduo que ele visa através da comuni dade primária: “Para nós ele é objeto de educação, ao passo que ele se sente um homem vivo, e tentar convencêlo de que não é um homem, mas apenas um futuro ho mem, seria para mim desvantajoso.” Não se cogita aqui do “interesse da criança”, só con ta o interesse da coletividade. Mas o interesse da coleti vidade não se confunde com o de seu chefe? Também isso Makarenko está pronto para reconhe cer, mas na intimidade, ao escrever à sua mulher: “São onze horas. Expulsei a última pessoa que tentava tirar proveito dos meus talentos pedagógicos e eis-me aqui diante do mundo MEU, aquele que criei em sete anos de trabalho ferrenho. Não vá pensar que esse mundo é pe queno. O meu mundo é miríades de vezes mais comple xo do que o universo de Flammarion... Meu mundo são os outros.” Saiamos agora da coletividade e olhemo-la do lado de fora. É um fato, os pupilos discutem normas de tra balho stakhanovistas. Mas ela faz pensar mais é num exér cito. Aliás Makarenko admite-o de bom grado: “A mi nha coletividade era militarizada até certo grau.” O que é que ele busca nessa militarização? Uma questão de estética, e é por isso que ele reco
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menda o uso do uniforme e quer que este seja bonito. Mas não é tudo. Makarenko preconiza a saudação à bandeira e dá a isso grande importância: “À bandeira! Sentido!... E num lapso de dez anos, nenhuma reunião se abriu de ou tra maneira... Pois bem, essa tradição embeleza a coleti vidade, cria para a coletividade essa armadura exterior, em cujo interior pode-se viver na beleza e que seduz con sequentemente.” Na verdade, é a tradição que antes de tudo busca Makarenko e, “entre as tradições”, escreve, “prezo muito particularmente a tradição militar — enquanto jogo”. Recomenda, entretanto, também “que, a fim de se cria rem tradições, é preciso utilizar uma dosezinha de conservantismo instintivo, mas”, esclarece, “de conservantismo de boa liga”. Não estamos aqui procedendo em sentido inverso da quele que descreve Ferrière? A tradição, pela qual Ma karenko insufla os hábitos nos pupilos, procede forço samente “de fora para dentro”, ou do exterior para o interior da coletividade. E é esse exatamente o objetivo da educação de Ma karenko: insuflar, do exterior, onde ela acaba de se ins talar, a moral socialista, na sua coletividade. Esta, por sua vez, vai impregnar com essa moral cada um dos mem bros da comuna. Último ponto. Makarenko faz reeducação, pois que lida com delinqüentes. Mas preconiza o uso do mesmo método para as crianças “normais”, ou, para ser mais exato, ele acredita ter normalizado esses seus delinqüen tes: “Consegui em muito pouco tempo trazer de volta para a vida normal as crianças abandonadas e prosse
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guir o trabalho com elas como com crianças normais... As crianças dessa coletividade — crianças acima ditas abandonadas — não se distinguem efetivamente em na da das crianças normais. Senão talvez para melhor.” Makarenko passa da reeducação à educação — co mo ele afirma — ou simplesmente as confunde a ambas? É preciso reconhecer que não existe limite decisivo nessa matéria, assim como não existe um limite defini do entre o “normal” e o “anormal”. Pode-se dizer que, a rigor, a educação — que é sempre moral — tem o seu lugar na família. Então Makarenko só faz reeducação. Tentemos ir mais longe, e para isso consideremos uma última vez o Emílio de Rousseau. Emílio é órfão. É que Rousseau não quer que “outros estraguem a (sua) obra”. Ainda mais, ele é rico. É que “o pobre não pre cisa de educação”. Na verdade, tais subterfúgios literá rios não são gratuitos. Contribuem para nos fazer en tender que a educação — moral — só pode ser negativa. É um freio. Ora, isso Makarenko diz e admite. O que não o im pede, como todos os outros pedagogos que encontramos, de falar dela em termos positivos. Nesse sentido, Makarenko, apesar de todas as suas restrições, não escapa à psicologia. Pelo menos, não es capa totalmente. A obra de Makarenko — é por isso que para nós ela é reveladora — é dúplice: os romances e as conferên cias. É principalmente nestas últimas que ele adota a lin guagem positivista. Daí, sem dúvida, a mudança marca da de estilo. Mas não é aí que ele fala da sua teoria? Esta última pergunta leva-nos de volta a Freinet.
CAPÍTULO VI
Freinet e a escola
Vejamos agora a obra de Freinet em seu conjunto — experiência e escritos — em si mesma e no seu di namismo. Um dado que não escapa a ninguém: ela cobre um longo tempo. Os textos que escolhemos distribuem-se por mais de vinte anos. Depois da guerra, Freinet prossegue em sua obra e os seus escritos continuam ocupando o de bate escolar que, nessa época, muda forçosamente. A es cola primária de Freinet termina com a guerra e o deba te escolar gira, a partir de então, em torno do tema da “escola única”. Este será defendido especialmente pelo projeto Langevin-Wallon, que data de 1947. Como se sa be, esse projeto nunca será implantado, o que não impe de, muito pelo contrário, de ser objeto de discussões. Mas a obra de Freinet tem incontestavelmente grande vitalidade. Ainda hoje o seu nome é tomado como refe rência. Trata-se, é certo, de uma adaptação de suas idéias, mas fala-se ainda da “abertura da escola para a vida”,
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apoiando-se para tanto no nome de Freinet. Precisamos entender isso. Omitimos deliberamente até aqui falar da persona lidade mesma de Freinet. Esta tem evidentemente um grande peso. Uma obra pedagógica, vimos isso para Ma karenko, reflete forçosamente a personalidade do seu au tor, e é o caso de Freinet. Elise Freinet, por exemplo, in siste muito na doença e na energia que ele despende para superá-la: Freinet é realmente adepto do método Coué. Não vamos enveredar por esse caminho. Existe, entretanto, um traço pessoal de Freinet, que simplesmente mencionamos de passagem, e que tem conseqüências manifestas em sua obra pedagógica: o fato de pertencer ao Partido Comunista. É verdade que essa posição política deve ser ressituada em sua época. Entre as duas guerras — e particu larmente no período imediatamente após a Primeira Guerra Mundial — as esperanças progressistas estão vol tadas para a recente revolução russa. É assim que Frei net, em 1925, participa de uma viagem de estudos à União Soviética. Lá encontra especialmente a Sra. Krupskaia, companheira de Lênin e ministra da educação nacional. É também por pertencer a essa linha política que publi cará os seus primeiros artigos em Clarté. O estilo desses artigos revela tanto a personalidade de Freinet como o espírito do jornal e da época. Mas não é essa posição política enquanto tal que fo calizaremos, são as conseqüências que dela decorrem para a obra pedagógica de Freinet. De fato, como ele mesmo escreve, Freinet faz “militarismo pedagógico”. Que se entende por isso?
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Freinet combate a sociedade — entendida essa pa lavra em seu sentido mais vago — em que vive e a que pertence a escola onde ensina. É em nome dessa luta que empreende a renovação da escola. Eis por que fala de “militarismo pedagógico”. Sob esse ponto de vista, a situação de Freinet diverge totalmente da de outros pedagogos de que já falamos. Nem Ferrière nem Dewey cogitam em contestar a sociedade. Este último tem até a ambição firme e explícita de favorecer a sua manutenção. É certo que Makarenko milita também. Mas a sua obra educativa faz parte de uma ação mais am pla que o engloba, e principalmente que caminha no mes mo sentido. Makarenko aprova a moral socialista e é por isso que a inculca em seus delinqüentes. Não há dúvida de que os seus escritos podem permitir-nos, por nossa vez, refletir sobre essa moral. Mas em nenhum caso Makaren ko se contradiz. Freinet, pelo contrário — e está sozinho nessa posição — contradiz-se a si mesmo. Lembremos as manifestações essenciais dessa con tradição. Num primeiro tempo, Freinet insurge-se con tra a moral escolar. As aulas de moral cotidianas for mais, “escolásticas e dogmáticas”. Suprime-as sem ou tra forma de processo. Entretanto, em 1935, na sua es cola “livre”, a moral jorra aos borbotões. Já não é im posta “do alto”, mas, como sugere Ferrière, vem “de dentro”, da escola e de cada aluno. Ora, essa moral, co mo verificamos, não pode ser outra senão aquela que, anos antes, Freinet tentara extirpar. Assim também, Freinet critica a psicologia, mas re toma os seus termos e as suas idéias. Em 1947, chega até a escrever um ensaio de psicologia.
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Finalmente, em 1924, especifica que a sua “escola do trabalho” deve ser “proletária”. Esse adjetivo desa pareceu em 1947 e, na mesma ocasião, Freinet substitui a palavra “escola” pela palavra “educação”. De qual quer modo, há uma clara divergência entre aquilo que se entende habitualmente por “proletário” e o mito do retorno à natureza, representado pelo velho Mateus. Uma questão se levanta: Freinet evolui entre 1925 e 1947 ou já está, desde o ponto de partida, numa situa ção contraditória? Manifestamente, e todos os textos mostram isso, não há evolução explícita nas idéias de Freinet. Basta um exemplo para convencer-nos disso: desde 1925, quando propõe “a imprensa na escola”, Freinet já fala em “in teresse da criança”. Ele está indubitavelmente na psico logia, e não é ela que o conduz ao retorno à natureza. Este também se encontra presente desde o início. Se a contradição está presente no início, é necessá rio compreender-lhe os termos e ver também por que ela só vai explodir em plena luz bem mais tarde. Consideremos o texto sobre “a escola do trabalho”, o primeiro por ordem cronológica dentre os que esco lhemos. O procedimento de Freinet nele se encontra ex plícito; tentemos acompanhá-lo. Freinet, como dissemos, é contra a sociedade. É es sa oposição que ele transporta para a escola. Desde en tão a sua posição política traduz-se numa estranha fór mula: ele combate “o capitalismo de cultura”. Também se reduz a isso. Noutros termos, e não é novidade para nós, Freinet é contra a instrução. Ser contra a instrução e a favor da escola revela um desafio!
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Essa situação incômoda, entretanto, revela-se rela tivamente sustentável e mesmo produtiva enquanto Frei net está efetivamente na escola. De fato, enquanto Freinet está na instituição esco lar, a sua oposição inicial se mantém: ele luta contra as autoridades escolares. O caráter positivo de sua reivin dicação fica mascarado por essa luta, que lhe dá um ca ráter negativo. E mais, queira ou não, Freinet está então na instru ção, já que está na escola. De maneira que, como verifi camos acima, ele realmente questiona a instrução, na quilo que ela tem de especificamente escolar, nas suas práticas. Mas, a partir do momento em que Freinet sai da es cola, as coisas mudam. A sua reivindicação aparece sob a sua luz positiva: como todos os psicólogos, Freinet pre coniza a conciliação entre “a escola e a vida”, “a escola e a criança” e, finalmente, entre a criança e o trabalho. É com esta última conciliação que ele entra no impasse do “trabalho-jogo”. Voltemos a isso um instante. Pode-se considerar que o trabalho escolar é, de fato, um composto de trabalho e de jogo. Na escola, brinca-se de trabalhar. Mas, pelo fato mesmo, esse trabalho é uma renúncia ao jogo. Da renúncia à conciliação, há uma mar gem. Por outro lado, esse trabalho-jogo tem a sua verten te positiva. Ela conduz ao conhecimento. Esse lado posi tivo da instrução é o que habitualmente é mostrado; e ele mascara o outro, mais difícil de admitir, o seu lado mo ral. Ao renunciar ao jogo, a criança aprende a disciplina: fica-se calado durante a aula. Não há necessidade, então, da “aula de silêncio” da Sra. Montessori.
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Até aqui, as coisas parecem claras porque os termos escolhidos — o jogo e o trabalho — são manifestamente antinômicos. Mas acontece o mesmo, finalmente, cada vez que se busca introduzir na escola uma contradição com o exterior, isto é, com toda evidência, o trabalho. Com efeito, acabamos de ver, o trabalho já está ne la, e sob a sua forma negativa. Introduzi-lo sob a sua forma positiva só pode fazer explodir a contradição. Então, compreendemo-lo melhor agora, a contra dição em que se afoga Freinet não pertence à sua obra. Ela faz parte da escola. Freinet põe-na em ato e, por is so mesmo, a desvenda. Vejamos isso de mais perto voltando-nos, para ter minar, para a escola de Freinet. Ela tem para nós uma vantagem, os seus limites são bem definidos: de um lado a família, do outro o mundo do trabalho. É a escola pri mária do século passado. Qual é a proposta de Freinet? Em 1924, preconiza a “escola do trabalho”, quer dizer que ele sugere abri-la para a “divisão atual do tra balho, caracterizada pela mecanização”. O que é que ele realiza em 1935? Uma grande fa mília. Num primeiro tempo, a abertura proposta por Frei net parece resolver-se em fechamento. De fato, a escola “livre” de Freinet é tão fechada sobre si mesma quanto a coletividade de Makarenko. Esse fechamento, nos dois casos, é devido à supervalorização moral. É por isso que na escola “livre” de Freinet não há lugar para o traba lho escolar. Mas esse fechamento é apenas aparente. Na ver da-
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de, a escola de Freinet recebe pequenos camponeses, que têm nela a única via de acesso à cultura. Nesse sentido ela constitui de fato, como o nome indica, uma “reser va” de camponeses não instruídos. Pode-se imaginar uma abertura para a “divisão do trabalho” mais eficaz? Ao se contradizer, Freinet realiza finalmente o seu projeto. Daí o mal-estar suscitado pela leitura de L ’éducation du travail. É por isso também que Freinet nos mostra que a es cola não é nem aberta nem fechada ou, o que dá na mes ma, que ela é ao mesmo tempo aberta e fechada. Mas o fechamento é muito mais visível do que a abertura. Aquele se manifesta, por exemplo, em práticas escolares que não têm sentido noutro lugar. Realmente, como aca bamos de ver, o fechamento da escola mascara sempre a sua abertura. Uma crítica imediata da escola, apoiada nessa ima gem, consiste sempre em denunciar o seu fechamento. A solução então se impõe por si: pede-se a abertura da escola, a abertura da escola para “a vida”. Esta última palavra — será preciso dizê-lo? — tem uma extensibilidade suficiente para cobrir o que se queira. Isso faz com que a questão seja sempre de atualidade. Vista dessa forma, a obra de Freinet certamente não é reproduzível, só pode repetir-se idêntica a si mesma. O seu interesse está noutro ponto: ela é pura e simples mente instrutiva.
Notas
CAPÍTULO I 1. Veja-se particularmente: Ad. Ferrière, L 'Ecole active, T. I e II, e La pratique de l’école active (Ed. Forum); Decroly e Boon, Vers 1’école rénovée (F. Nathan). 2. O sistema de centros de interesse consiste em fazer gi rar todas as disciplinas da escola, durante um dia, uma sema na, um mês, em torno de um centro de interesse. O Dr. Decroly distingue particularmente: a) o conheci mento, pela criança, de sua própria personalidade; b) o co nhecimento das condições do meio em que vive. É a partir desses dois campos fundamentais de conheci mentos que ele estabeleceu um sistema de idéias associadas. 3. Para dar conta do imenso valor deste interesse, julga mos útil reproduzir esta apreciação do Dr. Decroly sobre uma das causas essenciais da falência da escola: “Atualmente, segundo as avaliações mais otimistas, 75% apenas das crianças tiram proveito do ensino primário. Dos 85% restantes, boa parte não só não tira qualquer vantagem restrita da passagem pela escola sob o ponto de vista das aqui sições indispensáveis, mas sofre até, sob certos aspectos, um prejuízo mais ou menos considerável representado principal
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mente por hábitos de distração, de desinteresse pela atividade intelectual, de repugnância pelo estudo, muitas vezes de pre guiça e, o que é ainda mais grave, de aversão pelo trabalho em geral... (Vers 1’école rénovée, por Decroly e Boon). 4. E. Freinet, Naissance d’unepédagogiepopulaire, Maspero, 1968. 5. M. Montessori, Pédagogie scientifique. La maison des enfants. Desclée de Brouwer, 1958 (7? ed.). 6. O. Decroly, L’Ecole rénovée, Nathan, 1921. 7. A. Ferrière, L’Ecole active, Delachaux & Niestlé, 1946 (5? ed.). 8. O primeiro laboratório de psicologia experimental abrese na Alemanha, sob a direção de Wundt, no fim do século XIX. 9. O relatório de Itard está reproduzido em Les enfants sauvages, de L. Maison, col. “10-18”. 10. M. Montessori, Pédagogie scientifique. 11. Idem 12. Pédagogie scientifique. 13. Idem 14. Frõebel inventa o jardim da infância. 15. Pédagogie scientifique. 16. Idem 17. Ibidem 18. L’Ecole émancipée, 1925. 19. O. Decroly eG. Boon, Vers 1’école rénovée, Nathan, 1921. 20. L’Ecole émancipée, 1925. 21. A. Ferrière, L’Ecole active. 22. Idem 23. Notemos que o “educador” do “tipo intuitivo” situase relativamente baixo nesta “pirâmide de valores espirituais”. Ele corresponde à “crise da puberdade” que, para Ferrière, intervém entre catorze e dezesseis anos! 24. C. Freinet, “La dernière étape de 1’école capitaliste”, Clarté, 1924.
NOTAS
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25. E. Freinet, Naissance d’unepédagogiepopulaire, Maspero, 1968; L’Ecole Freinet, réserve d’enfants, Maspero, 1974. 26. “Ouvrir l’école sur la vie?” em L’Ecole et la démocratie, Fondation Diderot, no prelo. 27. J.-J. Rousseau, Emile, Livre II.
CAPÍTULO II 1. E. Freinet, Naissance d’unepédagogiepopulaire, “Petite Collection Maspero”, p. 83. 2. L’Ecole et 1’enfant, Delachaux & Niestlé, 1913. 3. A. Colin, 1975 (Mac Millan, 1917). 4. V. n. 1, p. 43. 5. E. Claparède, L’Education fonctionnelle, Delachaux & Niestlé, 1931.
CAPÍTULO III 1. C. Freinet, L’Education du travail, Delachaux & Nies tlé, 1946. 2. Claparède, ‘‘J.-J. Rousseau et la conception fonction nelle de l’enfance” (1912), in LEducation fonctionnelle, op. cit. 3. E. Claparède, Lapsychologie fonctionnelle, Delachaux & Niestlé, 1915. 4. E. Claparède, L 'Ecole sur mesure, Delachaux & Nies tlé, 1920. 5. E. Claparède, Lapsychologie fonctionnelle, Delachaux & Niestlé, 1915. 6. Ibid. 7. E. Claparède, L’Ecolesur mesure, Delachaux & Nies tlé, 1920.
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CAPÍTULO IV 1. Essaidepsychologiesensible, Delachaux & Niestlé, 1946. 2. E. Claparède, “La psychologie de 1’école active”, in L 'Education fonctionnelle. 3. Ferrière revida por sua vez publicando, a suas próprias expensas, L 'Ecole sur mesure, à la mesure du maitre, uma ho menagem à invenção de Claparède. 4. J. Dewey, Comment nouspensons, Flammarion, 1925 (trad. francesa de Decroly). 5. J. Dewey, L’Ecole et l’enfant.
CAPÍTULO V 1. V. os precedentes estudos de nosso camarada Freinet em nossos n?s 47, 48 e 60. 2. Ver Clarté, n? 49. 3. Faria de Vasconcellos, Une école nouvelle en Belgique, Delachaux (ed.). 4. “Havia, antes da guerra, 3 milhões de jovens, rapazes e moças, que, depois de saírem da escola, não recebiam mais nenhuma instrução, profissional ou outra. E em face desse nú mero impressionante, eis o efetivo aproximado das escolas téc nicas: escolas de agricultura, 3.000 alunos; escolas técnicas de comércio e indústria, 23.000 alunos; cursos profissionais sub vencionados pelo Estado, 70.000 alunos; cursos abertos à ini ciativa privada, 52.000 alunos; ao todo, 150.000 crianças, no máximo.” (Relatório de M. Constant Verlot, deputado.) 5. Este pedagogo russo tornou-se célebre por sua concep ção da educação — e da escola — que reproduziría a evolu ção das técnicas humanas. 6. A. Ferrière, L’Ecole active, Delachaux & Niestlé. 7. J.-J. Rousseau, Emile ou De 1’éducation, Livro I.
NOTAS
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8. A. S. Makarenko, Poème pédagogique, Ed. de Mos cou, 1937. 9. A. S. Makarenko, Les problèmes de l’éducation scolaire soviétique, Ed. de Moscou. 10. A. S. Makarenko, Les drapeauxsur les tours, Ed. de Moscou.
Alguns marcos cronológicos na vida de Freinet (1896-1966)
1920 — Freinet é nomeado professor primário em Barsur-Loup, no sul da França. A guerra de 1914 a 1918 não lhe permitira terminar os estudos para professor e ele vol ta com a saúde muito comprometida. Contra a opinião dos médicos, ele decide assumir o seu posto. Freinet aplica, de imediato, o seu espírito de revol ta à crítica do ensino e da escola. Julga esta última “aris tocrática”, os seus métodos “dogmáticos” e “escolásticos”, a sua moral formal e imposta “de cima” e as suas instalações insalubres. Volta-se de início para os escritos dos autores clás sicos e depois para os dos pedagogos e psicólogos do seu tempo a quem critica igualmente (veja-se artigo publica do em 1925 em L’Ecole émancipée, sobre os métodos de Montessori e de Decroly). Só a Escola ativa de Ferrière lhe parece trazer uma solução real para a situação da es cola. É assim que Freinet decide “abrir a escola para a vida”. “A imprensa na escola”, que ele leva a termo em 1925, lhe permitirá completar essa obra.
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FREINET E A PEDAGOGIA
1925 — Freinet começa a escrever artigos mediante os quais difunde as suas idéias e torna conhecida a sua téc nica pedagógica, isto é, a imprensa. Em Clarté, revista engajada e dirigida por H. Barbusse, são publicados, en tre 1924 e 1925, vários artigos assinados por ele, dentre os quais “L’Ecole du travail” e “L’imprimerie à 1’école”. Cria também a sua própria revista, que primeiro tem o nome de sua invenção, e depois se intitula L’Educateur prolétarien (O Educador proletário). Complementa a sua invenção pedagógica com ou tras dela decorrentes: o “texto livre” e o fichário autocorretivo”, e a “Biblioteca do Trabalho” (que difunde também revistas). A partir de então, Freinet pode supri mir os manuais escolares e mesmo as aulas. Finalmente cria uma “cooperativa do ensino leigo” e ganha nume rosos adeptos para a sua pedagogia, em diversas provín cias francesas. A imprensa lhe dedica artigos de primei ra página, primeiro na França e depois no exterior. Frei net, que é membro do Partido Comunista, assiste aos con gressos do sindicato dos professores primários. Faz par te da delegação que, em dezembro de 1925, vai à URSS. 1928 — Freinet é nomeado para Saint-Paul-de-Vence. É uma promoção, visto tratar-se de uma cidade maior. Prossegue em sua experiência num ambiente aparen temente calmo, até 1932. É então que se desencadeiam as hostilidades.
1932-1933 — Na origem do “caso Freinet”, um simples texto livre: “Sonhei que toda a classe se tinha revoltado contra
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o prefeito de Saint-Paul por ele não nos querer fornecer o material gratuito... Eu avanço, os outros ficam com medo. O senhor prefeito tira a faca e me golpeia na co xa. De raiva, saco da minha faca e o mato. “O Sr. Freinet passou a ser o prefeito... Eu fui pa rar no hospital. Quando saí, deram-me mil francos.” Rapidamente as coisas assumem proporções sérias: primeiro os pais, levados pelo farmacêutico, depois a ad ministração — há muito tempo na defensiva — se vol tam contra “esse mau educador da juventude”. Durante um ano, Freinet organiza discussões com os pais de alunos, procura e encontra apoios de prestí gio, publica artigos explicativos. Nessa situação, “a im prensa na escola” passa a ser uma espécie de palavra de ordem política. Nada adianta. Freinet recebe a sua “transferência ex-officio". Recusa, preferindo continuar a sua obra, e simplesmente pede afastamento. De fato, Freinet se propõe fundar a sua própria es cola, por definição, “livre”*: “Não será uma escola aris tocrática, mas uma escola operária e camponesa.”
1935 — Freinet abre, perto de Saint-Paul-de-Vence, a sua escola “livre”. Se, no momento de suas dificuldades ad ministrativas, Freinet encontrou numerosos apoios, fica entretanto completamente sozinho diante do seu projeto de criar a escola. Assim, com o favor das circunstâncias políticas na Europa, ele cria uma “casa de crianças”: a * Na França, a escola que não é pública, a escola particular, é desig nada como “école libre”. (N. T.)
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sua mulher e ele próprio recolhem filhos de refugiados políticos, espanhóis e alemães. A escola de Freinet será reconhecida oficialmente em 1936, pelo “Front populaire”. Essa segunda fase da experiência de Freinet — Elise Freinet a descreve minuciosamente em seu segundo livro L’école de Freinet, réserve d’enfants (A Escola de Frei net, reserva de crianças) — termina na catástrofe da Se gunda Guerra Mundial. Freinet, evidentemente, dela par ticipa. É então que escreve as suas obras teóricas, parti cularmente L ’éducation du travail e o Essai de psychologie sensible, a que podemos acrescentar Les dits de Mathieu. Todas serão publicadas depois da guerra pelas Editions Delachaux & Niestlé. Terminada a guerra, Freinet retoma as suas ativi dades e anima um movimento pedagógico que traz o seu nome, e que existe ainda hoje. Continua a defender as suas idéias preconizando “a abertura da escola para a vida”. Nessa época, entretanto, as coisas mudam: já não é a administração escolar que Freinet combate, mas os defensores da “escola única”, membros do Partido Co munista. De fato, o projeto Langevin-Wallon surge em 1947 e determina o debate sobre a escola.
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Por que Freinet ? Ele é conhecido como um mestre-escola revolucionário. Ele próprio se apresenta como o inventor da "imprensa na escola". Freinet reivindica sua condição de prático e insurge-se contra qualquer incursão científica no terreno da escola. Estaria ele dessa forma a salvo da linguagem "científica" da psicologia ? Não podemos responder sem estudarmos seus escritos. Eis por que cada uma das partes deste livro se inicia pela leitura de um texto de Freinet. A análise que propomos na seqüência de cada texto consiste em confrontá-los com outros relatos pedagógicos da época, conhecidos ou não por Freinet, que ele aprova ou refuta. De tal confrontação se destacará a especificidade da obra de Freinet, e a resposta a uma pergunta que não podemos deixar de formular: Ò que quer dizer "a educação do trabalho"?
ISBN 85-336-0233-2
9 788533 602335