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FILOSOFIA AFRICANA
DAS INDEPEDÊNCIAS ÀS LIBERDADES INTRODUÇÃO Em cada momento histórico e em cada clima cultural, o filósofo é chamado a fazer emerger a questão do sentido total e dinâmico da situação específica em que se encontra a viver. Hoje, um tal problema não se desprende no interior de um sitema pan-lógico, mas de uma análise ampla e aprofundada dos resultados da fenomenologia social, da psicologia, da política, da cultura, que informam a mentalidade hodierna. Cada época, cada civilização e cada geração define um objectivo que a seus olhos constitui a sua própria contribuição para a história dos homens. À nossa geração, incumbe a árdua tarefa de participar na elaboração de um futuro diferente, do presente que nos é dado viver e observar. Desde há trinta anos, que vivemos o escândalo da fome, da ignorância, da mortalidade infantil, da má nutrição, de um nível de vida que não pára de degradar-se, do número de pobres que não cessa de aumentar. Todos os homens que até aqui consagraram as suas vidas a um devir melhor vêe os seus esforços reduzidos a nada. Depois da independência, certos países optaram pelas economias planificadas, outros por modelos de desenvolvimento auto-centrados, outros fizeram programas de promoção para as próprias exportações, outros privilegiaram o desenvolvimento de um sector do Estado, outros aderiram aos programas de ajustamento estrutural, etc. Mas sempre com o mesmo resultado: insucesso. Qual é a razão deste insucesso? Estes trinta anos de independências constituem um período de ocasiões perdidas, da nossa condenação, ou foram uma preparação para o que deve ainda vir? Porque se foram anos de oportunidades perdidas e da nossa condenação, urge que midemos de direcção; que procuremos caminhos alternativos. Mas se foram um período de implosão, condição necessária para que uma explosão se realize, devemos continuar a aumentar a energia, ao mesmo tempo que nos reparamos para estar à altura da explosão... De qualquer maneira, a nossa missão é o futuro. É óbvio que para que esse futuro melhor se realize, cada um deve dar o melhor de si, no lugar onde se encontra. A realização da «missão futuro», passará necessariamente pela maneira como cada um de nós souber ocupar o própio lugar. Isto pressupõe que cada um saiba qual seja o lugar. Isto pressupõe que cada um saiba qual o seu lugar. Isto pressupõe que cada um saiba qual seja o seu lugar, e qual seja a melhor maneira de ocupá-lo. É relativamente fácil dizer que o lugar do médico é o hospital, e que ele ocupa devidamente o próprio lugar se se se ocupa com cudado e dedicação dos doentes a ele confiados; se ele se mantém constatemente informado dos prgressos da ciência médica e tenta fazer beneficiar todo o pessoal hospitalar dos seus conhecimentos, em prol de um tratamento sempre mais adequado e moderno dos doentes. Este tipo de ilustração poderia aplicar-se também a um professor, um engenheiro, um veterinário, um operário, um camponês, etc. Porém, o problema é muito mais complicado quando se pretende saber qual é o lugar e qual é a melhor maneira de ocupá-lo «no momento presente e na conjuntura histórica actual», quando se trata de um historiador, de um artista, de um sociólogo, de um jornalita e sobretudo de um filósofo. É portanto legítimo que nos interroguemos sobre o lugar da filosofia na problemática da construção do futuro. O problema do futuro é complexo, e não comporta simplesmente a construção de novos edifícios
ou o cultivo dos campos. De facto, se o futuro se resumisse à construção pura e simples de fábricas, de hospitais e escolas, dificilmente o filósofo teria sobre isso uma palvra dizer. Mas se a escola não é simplesmente o edifício, as salas de aulas, as carteiras mas é sobretudo os alunos, que são os cidadãos de amanhã, implica que a escola vai ser antes de mais um sistema de valores – educação à liberdade, à democracia, à solidariedade, à tolerância, ao diálogo, à iniciativa, ao trabalho, à abnegação que a sociedade quererá transmitir aos seus futuros cidadãos, isto é, o tipo de homens que queremos que sejam os moçambicanos; e este é um problema filosófico. Hoje todos nos preparamos para ir votar pela primeira vez. Se o problema fosse simplesmente punir a Frelimo pelo que nos fez sofrer, ou a Renamo pelo mesmo motivo, o problema seria assaz fácil. Ou ainda, se tivéssemos simplesmente que afirmar as nossas origens étnicas pela eleição de um homem ou de um partido da nossa região, o problema seria também simples. Mas o problema de facto é muito mais complexo; trata-se de através do nossovoto, afirmar o tipo de sociedade que queremos ter amanhã. Assim devemos julgar os partidos políticos em função dos projectos de sociedade que apresentam. Por conseguinte, por detrás das eleições, esconde-se um projecto de sociedade. Assim a democracia é antes de mais uma questão filosófica. O problema da democracia não é redutível a uma simples questão de eleições de patidos ou de presidentes, mas implica antes de mais, e sobretudo, o lugar que o povo tem que ocupar nas decisões dos problemas fundamentais que lhe dizem respeito, ee nos mecanismos jurídicos, para que tenha um controlo real sobre a realidade política, económica, social e educativa. Se não tivermos domínio sobre a nossa realidade cultural, não nos será possível ser fautores do nosso futuro; arriscamos ser uma vez mais vítimas da nossa própria história e do nossso próprio destino. Por detrás do jogo das eleições esconde-se, para nós, um problema de carácter existêncial. O que está em jogo não é seguir a escolha de um simples modelo político, jurídico ou constitucional, mas o lugar que nos será reservado na escolha daquilo que deveria ser o nosso futuro. Não é a primeira vez que o futuro está no centro do debate. Mas é certamente a primeira vez que ele é susceptível de ser encarado de uma maneira filosófica, pois é a primeira vez que somos chamados a escolher o tipo de futuro que queremos que seja o nosso e por consequência, dos nosssos filhos, sem condicionamentos ideológicos. Em 1924 com o «Estado Novo» em Portugal, falou-se muito de futuro em relação a Moçambique. O Estado Novo português administrações, criou novas relações com portugueses a vir para Moçambique, etc. Para a realização destes projectos, o governo português contava com a nossa colaboração; ou melhor com a nossa doçura. Não nos foi preguntado como víamos o nosso futuro, quais eram as nossas aspirações, os nossos sonhos. Eramos simplesmente chamados a executar futuros inventados por outros e em benefício dele. A realização destes projectos implicava um incremento de mão de obra nas minas da África do Sul, a transferência de populações dos seus locais de habitação e naturalidade para as zonas de produção normalmente ligados aos portos de Maputo e da Beira.participámos na realização do futuro programado em Portugal: fomos nós que tornámos possível a construção dos palácios, das ruas, dos caminhos de ferro, dos portos, fez grandes projectos, reestruturou as a África do Sul, encorajou cidadãos etc. Porém a nossa participação era passiva. Estávamos lá para realizar a vontade dos outros, éramos instrumentos nas mãos dos que tinham o direito de programar, querer e escolher o seu próprio futuro; o nosso futuro definia-se em função do futuro deles. Se nos programas que eles tivessem para o próprio futuro fosse necessária a deslocação de dez mil pessoas de Gaza para Maputo, outras duas vezes mais para a África do Sul, os militares estavam lá para executar as ordens.
Em 1974 todos saboreámos o doce sabor de ser livres, independentes, protagonistas e fautores da nossa história, do nosso futuro. Ninguém ficou indiferente a esses eventos. Todos nos deixámos mobilizar pelos grupos dinamizadores, pelos comícios presidenciais, pelos planos de desenvolvimento. Quantas vezes ouvimos repetir que o futuro dependia de nós? Quantas vezes repetimos «viva», aos continuadores da revolução? A Frelimo convidava-nos para participar, e de uma maneira que se queria activa na construção do futuro. Só que esse futuro tinha cores bem precisas, tinha traços bem determinados. Uma vez mais não nos foi perguntado qual o tipo de futuro que sonhávamos para nós e para os nossos filhos; uma vez se pretendia que fôssemos rápidos a responder com as nossas energias, planos e projectos, na construção de um futuro na elaboração do qual não tinhamos participado. E uma vez mais os militares estavam lá para nos obrigar a traduzir em actos, os planos futuristicos daqueles que tinham o privilégio divino de saber o que era bom para todos. Nós fizemos a história, mas uma vez mais, como instrumentos da vontade alheia. Que significado vão ter as eleições de amanhã? Que doravante legitimamos com os nossos votos a acção daqueles que continuarão a ser os senhores do nosso destino, ou pelo contrário, com a democracia entendemos asenhoramo-nos de uma vez por todas da nossa vida e futuro, e que portanto as eleições vão obedecer a critérios jurídicos com a finalidade de favorecer a participação do maior número, na projecção e na tomada de posição real sobre os problemas que nos dizem respeito? Não obstante a nossa situação política e económica, que para muitos perítos internacionais parece deseperada, continuamos a acreditar num futuro diferente, melhor. De facto não nos seria possível viver sem uma imagem do futuro, sem aquela fantasia política que permite inventar o amanhã e viver o hoje. Sem dúvida, o futuro como o desenham as nossas esperanças, os nossos desejos, os nossos sonhos, a coragem que anima os nossos projectos, é uma das causas mais importantes de hoje. Ser capazes de fantasiar – escreveu Ray Bradbury – significa ser capazes de sobreviver. Os nossos sonhos antecipam, estimulam e favorecem a afirmação e o progresso da sociedade. Na existência tudo se faz em função do futuro. O passado é campo de recordações e nostalgias, de factos e de necessidades, porque em cada mudança de tempo a vastidão de horizontes fechouse, quando uma estrada, e simplesmente uma, foi aberta, escolhida ou imposta. O futuro é o conjunto de projectos, de possíveis, de esperanças, de liberdades, porque temos de escolher entre os diferentes possíveis ou criar outros. Se não formos capazes disto, o nosso futuro não será diferente do nosso passado. É importante analisar e discutir a nossa história para que se abra um novo futuro que não seja, portanto, um simples prolongamento da história, para que possamos ser senhores do nosso destino e da nossa história. Contra a ilusão de óptica de olhares retrospectivos, que nos revelam um passado simplesmente unidimensional, os factos históricos são imersos numa multiplicidade de possíveis e de projectos, dos quais simplesmente um foi consagrado vencedor. Na história, os factos são o que foi feito por homens. Tomar consciência disto, é assumir plenamente a responsabilidade da nossa história e do nosso futuro. Porque para desmistificar a história. Não estamos no limite de uma trajectória rígida que devemos simplesmente prolongar. A filosofia torna possível a vida do homem, enquanto ela lhe permite imaginar, projectar o futuro e enfrentá-lo. Se as aporias da vida que nos estrangulam com a fome, a miséria, a nudez, a guerra, o analfabetismo, etc, nos sufocassem de tal maneira a não permitir-nos nenhuma interpretação do mundo, e não nos fosse possível pensar um amanhã, seria terrível. O pensamento, a filosofia tornam possível o amanhã. Mas ao mesmo tempo, interroga-se sobre o
tipo de amanhã. Mas de que meios se serve a filosofia para questionar o tipo de amanhã? Por outras palavras, qual é a maneira mais filosófica de pensar o futuro, a profecia, a utopia ou a futurologia? Antes de nos embrenharmos neste terreno assaz tormentoso, devemos olhar em redor de nós, para vermos como a filosofia se tem posicionado em relação ao futuro, e qual tem sido a maneira especificamente filosófica de encarar o futuro. Por óbvias razões, dirigiremos o nosso olhar para a filosofia africana. Paradoxalmente, ao mesmos tempo que as sociedades africanas têm no futuro, o ponto central das suas preocupações e dos seus projectos, os debates que animam a filosofia africana parecem imbuidos de preocupações contrárias. Com efeito, as disputas que ocupam os espíritos dos filósofos têm a que ver com o passado. As nossas dissertações chamam-se filosofia Bantu, a Filosofia Bantu Ruandês do ser, a Filosofia Serere, a Filosofia dogon, a autenticidade zairense. E quando são críticas, é sempre em função do que Marcien Towa e Paulin Hountondji chamaram etno-filosofia. Que relação existe entre o passado (a etnologia é uma actividade do espírito voltada de uma maneira geral para o passado) que constitui o objecto das nossas querelas, e o futuro que constitui a pedra angular do nosso dever-ser filosófico? A crescente literatura filosófica africana tem demonstrado o nosso esforço de reflexão filosófica, é prisioneiro do apriori etnológico. Todos parecemos padecer deste condicionamento; não são simplesmente Tempels, Kagame as únicas vítimas do apriorismo etnológico, mas mesmo os críticos mais radicais da etno-filosofia como Towa, Hountondji e Eboussi não são completamente livres deste apriorismo. De facto a etno -filosofia que alguns defendem com toda a energia que têm e que outros atacam com toda a veemência que lhes é possível, tornou-se pedra angular da filosofia africana, em volta da qual gravita todo seu processo de reflexão. Qual a razão desta associação? Porque, a nossa reflexão que se quer filosófica, isto é universal e voltada em direcção ao futuro, deve embater necessáriamente no discurso etnológico(¹), que é particular e voltado para o passado?
HISTORICIDADE E ETNICIDADE Para pensar o universal, cada homem parte da sua situação específica, particular. Quem pensa o universal é sempre um homem singular, pertencente a um grupo particular, situado no espaço e no tempo. Isto tanto é válido para quem pensa a partir da Grécia, como quem pensa a partir de Moçambique, do Chile ou da Indonésia. Porque é o que o nosso discurso filosófico é etnológico? A tomada de consciência do condicionamento particular-histórico na investigação filosóficouniversal, ou a reflexão como filósofo e como histórico, como diz Voltaire, levou à criação pelo mesmo filósofo francês, da filosofia da história, que Hegel se encarregou de difundir pelo mundo fora. À situação do filósofo ocidental que faz emergir a questão do sentido total (filosófico), na dinâmica da sua situação específica (histórica), corresponde uma reflexão africana igualmente filosófica, mas sobre uma situação particular, que é objecto não da história, mas da etnologia. Com Kant inicia-se a filosofia contemporânea, e não só pela grande influência que sua obra exerceu nos filósofos posteriores, mas porque em particular, como escreve Windelband, uma das características da filosofia derivada de Kant, é que entre as suas partes necessárias e constituitivas, existe uma filosofia da história, que se interessa pelo fim ético do prcesso histórico. A filosofia africana começa com aquilo a que Hountondji chamou, um trabalho de etnologia com pretensão filosófica. É portanto legítimo que nos interroguemos sobre o estatuto epistemológico e moral da etnologia. Para uma crítica exaustiva do uso etnológico da filosofia, é necessário recuar no tempo. Porém, não simplesmente a Tempels, nem sequer ao uso do termo etno-filosofia no mundo anglosaxónico, mas ir à raíz e génese do discurso etnológico, através de um exame analítico da relação entre a história e a não-história. História e etnologia constituiram-se como disciplinas afins e contraditórias, alimentando entre elas relações que derivam de duas categorias principais, tempo e espaço. Ambas são instrumentos de descrição do universo humano; mas a história faz o inventário do tempo e da etnologia do espaço. Assim, nas classificações da Europa baconiana, o relato de viagens longíquas faz parte dos livros de história; elas formam uma categoria consagrada à descrição dos países estrangeiros e nomeadamente exóticos. Aliás , trazendo até aos leitores os costumes das populações longíquas, o viajante procura não só vulgarizar o pitoresco e a diferença, mas traz também ao espaço contemporâneo uma imagem do passado. O selvagem, é a infância do civilizado. Assim encontraram-se unificadas duas leituras de uma mesma imagem do homem. Tudo começa no século XVI com a secularização do tempo em relação à velha cronologia apocalíptica. O vetero-testamentário cede à pressão humanista protestante e enfim ao EstadoNação. Assim entre o século XVI e a época das luzes, a história, é antes de mais, história das nações, isto é dos Estados e dos povos europeus. Mesmo voltaire, que tentou ultrapassar o quadro desta visão, tem como referência implícita da sua história universal, o Estado Luiscatorziano, auge do florescimento da sociedade.
História e etnologia separaram-se em meados do século XIX quando o evolucionismo triunfante, antes de Darwin, separou o estudo das sociedades, evoluídas, das sociedades ditas primitivas. Até então, a história tinha englobado todas as sociedades, mas quando se constitui a consciência do progresso, a história foi reduzida ao que se acreditava ser a única humanidade susceptível de se transformar rápidamente; o resto ficou para os géneros menores do domínio científico ou literário – os «mirabilia» onde os homens primitivos viviam lado a lado com os monstros, as viagens em que os autóctones são uma variedade da fauna, os meios geográficos onde os homens eram um elemento da paisagem - ou condenados ao esquecimento. Para a Europa «civilizada» o chamado novo mundo é um outro mundo: costumes selvagens, sem religião, espírito degradado. Os povos não têm escrita , não têm arquivos, não têm Estado. Eles não pertencem, portanto, ao mundo histórico em todas as suas formas, moral, civil e política. Os povos com escrita revelam com toda a nobreza, o território da história, os selvagens serão objectos dos etnólogos. As sociedades estudadas pela etnologia são definidas portanto pela negativa, por aquilo que não têm. Elas não possuem nem história, nem verdade e nem Estado. O que é característico das sociedades estudadas pela etnologia é a sua imperfeição. A história não diz respeito a todas as nações, mas simplesmente a algumas; as que produzem, que trocam, em resumo, as nações que contam. O resto da humildade é abandonada ao não ser histórico. A etnologia desenvolve-se como um saber residual, definido negativamente em relação à história da Europa e da América do Norte. Porque é que a história recusou aceitar nas suas margens os povos ditos «selvagens», e que tipo de discurso histórico se transformou em etnologia? Ou por outra, qual é o estatuto epistemológico da etnologia? Foi uma suma de razões ideológicas, mais do que científicas, que empurrou as nações não ocidentais para fora da história. As razões que estão na base do nascimento da etnologia, não são científicas. Ninguém pode justificar que, a descrição da fauna e da vegetação, que faziam então parte da história, fossem históricamente mais dignas que os povos não acidentais. O que estava em causa, era o estatuto do outro, a relação entre a unidade e a diversidade humana. A esta problemática primordial, o etno-centrismo ocidental respondeu criando a história dos sem história, a história dos bárbaros: a etnologia. Assim se consumava a separação entre o Claude Lévi-Strauss chama sociedades historiografáveis e sociedades etnografáveis. O que é interessante relevar, é que a etnologia nasceu no século que proclamou os direitos do homem. Que viu sobretudo surgir um novo conceito: Homem! Este conceito retoma o conceito de Humanitas, de Cicerone e responde à magnífica proclamação de Térence: «Homo sum, nihil a me alienum puto». O homem surge concebido como agente, sujeito dos eventos temporais, como origem do direito, como produto da educação. Não obstante, a etnologia foi criada como rejeição do outro. Entre a história e a antropologia, existia uma fronteira muito nítida. Uma tal separação era resultado da rejeição, fora da tradição ocidental e portanto do tempo e do discurso da história da Europa, dos povos e das civilizações ditas selvagens e bárbaras. Para melhor afastar estas sociedades da história, e melhor fundamentar a legitimidade da sua subordinação às sociedades históricas, foi lhes consagrada uma disciplina específica: a antropologia. Doravante reservou-se às sociedades «quentes» um movimento universal de mudança e de progresso, enquanto às sociedades «frias» restava a estagnação material e intelectual. Tudo contribuia para separar a história da etnologia. Antes de mais, os seus objectos específicos.
A primeira interessava-se pelo passado histórico europeu, e a segunda pelas sociedades exóticas reputadas sem história. Em seguida os seus domínios de reflexão: a história tentava centrar-se no desenvolvimento cronológico. Dos eventos e reconstruir as etapas da evolução no seio da grande tradição histórica, enquanto a antropologia tentava compreender a estrutura e a função das instituições sociais nas sociedades marcadas essencialmente pela permanência e pela repetição. O discurso antropológico constitui-se no interior de uma filosofia da história que divide os homens em dois mundos diferentes, irreconciliáveis no tempo e no espaço, onde a Europa ocupa um lugar preponderante. Em verdade, a etnologia é o resultado da expansão de dois imperialismos: o imperialismo mercantil, que se apropria das terras, dos recursos naturais e até mesmo dos homens. Depois, do imperialismo histórico, que se apropria de um novo espaço conceptual: o homem não histórico. Uma aproximação histórica do problema permite-nos captar o contexto cultural no qual o pensamento sobre o «Outro» em geral e, mais tarde, o pensamento etnológico propriamente dito se desenvolveram. Dito de outra maneira, uma aproximação histórica permitir-nos-á compreender as interações entre, de um lado, a história das ideias, os costumes, as estruturas sociais, económicas e políticas da Europa e por outro, a história da reflexão antropológica. Tratase mais precisamente, de ver quais foram os sistemas de valores e os interesses económicos e políticos, que influenciaram uma tal reflexão; e por outro lado, ver qual foi a importância da presença da alteridade, para a história das ideias e para a evolução social e cultural; qual foi a sua contribuição no progresso das ciências humanas. O que procede, faz-nos tomar consciência de que a história da antropologia e a antropologia em geral, dizem simplesmente respeito a uma parte da humanidade. Com efeito, a história da antropologia dá conta das etapas do conhecimento do homem exótico pelo homem ocidental. Para ser completa, tal história deveria também interessar-se pelo que as outras civilizações produziram sobre a alteridade que eles encontraram, mesmo sobre alteridade ocidental. Por outro lado, deve ter-se em conta o facto que a antropologia, que se pretende ciência do homem, nasceu de uma visão particular, que uma cultura específica(cultura ocidental) lançou sobre as outras culturas. Deve tomar-se consciência, não para negar a possibilidade de que uma cultura particular possa ter uma visão relativamente objectiva sobre as outras culturas, que essa visão possa produzir efeitos de conhecimento, mas sim para relativizar essa visão e conferir-lhe uma historicidade que explicite os seus fundamentos teóricos e ideológicos. Neste sentido, fazer a história do pensamento antropológico é de certa maneira retornar à sociedade que a concebeu, e interrogar-se sobre os valores sociais e culturais que estão na origem da visão do outro. A história da antropologia, enquanto história intelectual de uma tradição, faz portanto, parte de uma antropologia cultural do ocidente, uma antropologia que permite compreender a estrutura e o significado desta cultura, à qual pertencem os antropólogos. Fazer a história da antropologia é contribuir de maneira significativa para a compreensão da natureza da cultura ocidental. A maneira através da qual a antropologia compreendeu e interpretou as culturas extra-europeias, dá-nos as indicações sobre a maneira como a sociedade ocidental se apreende e se analisa a si mesma. Proceder desta maneira, é contribuir para alargar o objecto da antropologia e integrar na
sua reflexão as culturas ocidentais como objecto de conhecimento. Sob este ponto de vista, há muitas interrogações a formular. Por exemplo, porquê e como, as sociedades europeias produziram antropólogos? As respostas a estas questões são diversas. Dizse que foi uma maneira do Ocidente confrontar a sua própria imagem com sociedades diferentes, para encontrar aí, os seus limites e os seus defeitos (o outro é pretexto para criticar-se a si mesmo: é em geral a figura do bom selvagem), ou descobrir os limites e os defeitos do outro e confortar a sua própria imagem (é em geral a figura de mau selvagem). Justifica-se também o aparecimento da antropologia a partir de uma necessidade de conservar. Quanto mais a sociedade industrial conquistava e destruía as outras culturas e a sua própria, mais se desenvolvia a necessidade de conservar e expôr os sinais destas culturas. Na realidade, o desenvolvimento de um conhecimento antropológico sobre o outro traduz uma relação de poder. Nascido de uma relação de dominação, a visão antropológica inscreve-se inevitavelmente em estratégias de tipo político e económico que determinam em parte os objectos de estudo e as finalidades analíticas. As imagens que o ocidente fabrica da alteridade, por um efeito de retorno, reenviam-no às imagens que o ocidente faz dele mesmo em relação as outras culturas. Se nós aparecemos como seres «irracionais», «primitivos» ou «atrasados», é sempre em relação à «racionalidade», à «civilização» e à modernidade do ocidente. Esta confrontação de imagens permite-nos relativizar os diferentes juízos, que são feitos sobre uma cultura ou outra. Contextualizando e analisando a produção das representações sobre o outro no interior das relações que o fizeram nascer, podemos atingir um grau de conhecimento de relações inter-culturais mais equilibradas e mais rigorosas, do que se ficarmos a nível de um só discurso, ou de uma só visão. Na antropologia existe uma tradição bem estabelecida que reivindica o início desta disciplina na época grega. Sabemos que a antropologia como a conhecemos hoje nasceu na segunda metade do século passado e como resultado de rupturas importantes no pensamento e na cultura ocidental. Deve contudo acrescentar-se, que o movimento de legitimação através da antiguidade clássica era habitual no século passado e mesmo durante muito tempo no século em curso. Os séculos que precederam o século XIX, foram importantes para o nascimento da antropologia moderna, mas o aparecimento de uma ideia clara da problemática da diversidade, foi longo, lento e destituído de uniformidades. Durante esses séculos verificou-se um maior ou menor confronto com as outras culturas, mas sem que essa relaçãocom o outro acedesse ao estatuto de um saber com pretenções objectivas, como começa a aparecer no fim do século passado nos discursos científicos. É no quadro desta interrogação sobre a dificuldade epistemológica pluri-secular de pensar o outro que se deve situar a história do pensamento antropológico, enquanto discurso sobre a alteridade e a diferença. Na área cultural de Atenas e Roma, a concepção global da história provém de obras complementares de historiadores, filósofos e poetas. Os historiadores do século V antes de Cristo (Heródoto e Tucidide) compreenderam progressivamente que a história, enquanto investigação das realizações humanas, não é lenda, mas investigação minuciosa que vai da crónica descritiva da escola iónica (cf. Ecateo e Heródoto) até à reflexão éticofilosófica sobre as leis da experiência humana configurada em sentido político e social.
Heródoto é considerado o pai da historiografia grega, por ter sido o primeiro a considerar a história como âmbito da investigação dos eventos humanos e não das teogonias. Ele investiga sobre os eventos humanos para chegar a uma lei imutável da natureza humana. Não se contenta em narrar, junta provas e testemunhos para justificar a sua exposição, através da técnica do interrogatório, que lhe foi sugerida pelos tribunais e projectada para a análise das fontes. Da análise da historigrafia de Heródoto, emergem duas características da investigação e da narração dos factos do passado (e do presente): humanismo e substancialismo. Isto é, interesse pelas realizações temporais do homem e destino fatal guiado pelos deuses, ao qual o homem acaba por socumbir e aceitar sem poder activamente dominá-lo. De facto ele diz, «de todas as tristezas que afligem a humanidade a mais amarga é esta, que se tenha de ter consciência de mutas coisas e domínio sobre nenhuma». Heródoto tal como o pai da história, é também o pai da etnografia. O seu segundo livro das histórias é dedicado ao Egipto. Após as suas viagens ao Egipto, Pérsia e outros países, faz um impressionante número de descrições e relatos de contos e de mitos. Possuía uma grande curiosidade pelas outras culturas que fazem dele um autêntico espírito investigador. Nas suas peregrinações, regista as particularidades que encontra, interroga sobre as paricularidades que constata e associa os factos aparentemente afastados. Mas sobretudo privilegia o testemunho visual sobre o auditivo, e fundamenta a sua investigação sobre a testemunha que viu, e que, por isso, sabe (¹). Este aspecto é de importância tendo em conta que a antropologia moderna fez exactamente da observação visual a regra central do seu método (a presença física no terreno). Contudo, Heródoto, como aliás outros pensadores da antiguidade, dava muito mais importância aos factos que saíam do ordinário, que aos hábitos e aos factos normais que compunham o tecido da vida quotidiana dos povos. Ainda por cima, ele descrevia os povos estrangeiros ou «bárbaros» em função e em posição aos costumes gregos. Portanto, o mesmo Heródoto afirma – o que devia ter apaziguado a sua superioridade irrascível em relação aos que ele chamava bárbaros – que os «egípcios chegaram ao Peloponeso e apoderaram-se daqula parte da Grécia, como narravam as crónicas de outros autores»(²). Os gregos, a quem Heródoto dirigia os seus escritos, sabiam que a Grécia sido colonizada pelo Egipto, ou podiam facilmente verificar. Mas o que era importante para este homem, a quem Plutarco catalogou como «pai da mentira», não eram tanto as colónias, quanto a introdução da cultura egípcia e fenícia na Grécia. Não obstante a aversão explíctita sobre as colonizações, o grande orador grego, Isócrates, confirma: «nos tempos antigos, todo o bárbaro que caísse em desgraça, presumia poder governar as cidades gregas, Danão (por exemplo) refugiado do Egipto, ocupou Argo; Cadmo, chegado a Sidone tornou-se rei de Tebe...» (³). Crantore, primeiro comentador de Platão, que escreveu algumas gerações depois deste, dizia que os contemporâneos de Platão trocavam dele dizendo que ele tinha copiado a sua República das instituições egípcias. Aristóteles não foi simplesmente discípulo de Platão, mas estudou tambémna acdemia com
Eudosso de Cnido, grande matemático e astrónomo, que tinha passado seis meses a estudar com os sacerdotes egípcios. Quanto ao Egipto, Aristóteles sofreu uma grande influência de Heródoto, e foi fascinado por aquele país e cultura. E que dizer de Alexandre Magno que se considerava filho de Ammon? Na obra intitulada «Le miroir d’Hérodote. Essai sur la représentation de láutre» (1980), F. Hartog mostra muito bem como, afinal de contas, para Hérodoto, os «bárbaros» são simplesmente um meio indirecto para falar e definir os gregos. O que lhe interessa são principalmente os gregos, e os bárbaros que lhe permitem afirmar e valorizar implicitamente a superioridade dos valores gregos(4). Em Tácito (55 a.C. – 17 d.C.), através de uma dramática descrição dos eventos humanos, consubstanciados na avidez do poder, nas lutas entre aristocráticos e no puro azar, emerge o itnerário de uma história como um poderoso teatro de paixões, numa amálgama de vitórias e derrrotas, numa espécie de eterno retorno do idêntico. Como em Heródoto, também em Tácito já se percebe um espírito etnográfico. Numa perspectiva rousseniana, a corrupção da civilização romana, opõe a saúde dos «bons selvagens» que são os bretões ou os germânicos... Com o cristianismo, nasce e consolida-se uma nova mentalidade sobre a maneira de nos relacionarmos com a natureza e com o tempo, muito diferente, até mesmo oposta à mentalidade greco-romana. Por isso, a relação entre a filosofia e a teologia, pode ser analisada como confrontação entre duas civilizações históricas. Com os conceitos bíblicos de criação, pecado, redenção e providência, a teodiceia e a visão da realidade mudam profundamente em relação à filosofia grega. O fulcro da natureza histórica transfere-se da natureza de Deus, apresentando-se assim com todo o seu valor de mistério e de fé. Neste sentido, o homem é chamado a colaborar com a iniciativa transcendental e a empenhar-se ética e religiosamente no tempo. A doutrina platónica dos arquétipos eternos cede lugar à «creatio ex nihilo»; a dimensão cíclica e fatal do tempo (Kpovos) é substituída pela liberdade humana de aproveitar do tempo redimido (kaipos). Criação contingente e Deus, tempo e eternidade, sobre um substracto de sentido ontológico e de significado religioso e moral, proporcionam uma hermenêutica histórica que se actualiza sobre um terreno ambíguo de bem e de mal, de virtude e de vício. Diante de Deus todas as actuações históricas têm um simples valor transitório. Como revelou P. Ricoeur, para o cristianismo o acontecimento dramático da história é dado pela «culpabilidade» existencial e não pelo elemento político. E como sublinhou Collingwood, a historiografia cristã conota-se como «universal» providencialista, apocaliptica, periódica. A vocação universal própria do cristianismo, oferecia à etnologia uma estrutura de acolhimento. Toda a história era uma história universal, todos os povos tinham vocação para entrar na história. De uma maneira geral, esta compreensão cristã da história deveria ter guiado o homem da idade média na apreensão e na interpretação das outras civilizações. E no entanto, o que se constata é que só os cristãos têm direito à história. Os pagãos, propriamente ditos, e os infiéis são excluídos do domínio histórico. O Bispo galicano Bossuet, em pleno século XVIII, exclui deliberadamente
da sua história universal os povos do dito novo mundo, porque segundo ele não constavam nas profecias. Como notou Augustin Renaudet, Dante repete com orgulho a profecia de « Anchise»: «Tu regere imperio populos, Romane, memento». Virgílio e Sybila anunciam Cristo numa perspectiva teleológica que deixa os outros, os que não são herdeiros de Roma, fora da marcha em direcção da salvação... Se pensarmos na sociedade árabo-muçulmana, vizinha do ocidente, com a qual a sociedade medieval ocidental tinha relações múltiplas e que em muitos aspectos era mais avançada, constatamos que essa era apreendida sobretudo através de uma figura de exclusão: o monstro ou o Sarraceno. Por outro lado, as cruzadas não podiam representarr ocasião de intercâmbios culturais entre a sociedade medieval ocidental e arábe. Considera-se em geral o humanismo renascentista como o nascimento da consciência histórica, devido a uma nova teorização que se baseia nos eventos humanos e constitui a espinha dorsal da historiografia de Maquiavel, Guicciardini, Bruno, Poggio Bracciolini, etc. Doravante o homem – dominus mundi – auto-compreende-se nas suas acções operativas, políticas e sociais. A dignidade depende da acção, em ruptura progressiva com a mentalidade metafísicocomtemplativa da idade medieval. É óbvio que um fenómeno cultural e espiritual, como o humanismo, é complexo e diversificado, e suscita interpretações diferentes e contrastantes, até mesmo da parte dos especialistas. O que interessa sublinhar é a passagem gradual mas acentuada, da consideração teológica a uma consideraçãoracional e crítica sobre a história, evidênciando o valor que a ideia de utopia adquire até ao iluminismo do século XVII. Segundo Huizinga, está transferência do espaço de referência e a perda da hierarquia unitária até então existente, foi devida principalmente às expansões geográficas. O esforço da compreensão humana já não vem de uma confrontaçãocom a transcendência metafísica, mas manifesta-se nas modulações do horizontalismo temporal. O modelo de perfeição é procurado no passado clássico, criticamente interpretado, enquanto a transcendência divina é vista como compreensão e mortificação do homem, por homens como L. Valla, «De libero arbitrio» (1436), P. Pomponazzi, «De fato, libero arbitrio et praedestinatione»(1520), G. Bruno, «Spaccio de la bestia trionfante» (1585). O substrato da civilização renascentista consiste na exaltação do individualismo (L. Bruni, C. Salutati), da vida civil e política; primazia da vida activa sobre a contemplativa(P. Bracciolini), celebração da fecundidade do trabalho (L. B. Alberti), concepção heróica e aristocrática da história, relativismo dos valores (basta pensar a interpretação que G. Bruno deu à frase de Gellio: «veritas filia temporis» e a historiografia de Maquiavel e Guicciardini. Repudiando Deus como referncial, a consciência política declara-se autosuficiente na resolução dos problemas que dizem respeito aos intintos e às necessidades humanas – regnum hominis. O pensamento político de T. Hobbes é sintomático de tal reflexão. Uma vez que a metafísica já não é suficiente para dar um sentido à história, assiste-se a um «disiecta membra», enquanto os valores e as ideias vão ser reivindicadas pelas utopias de Campanella, Bacone, Moro, Erasmo, etc. Os estudiosos e artistas italianos do renascimento identificavam-se com os gregos, mas os seus
interesses não se centravam sobre a Grécia de Homero, de Péricles ou sobre os Deuses do Olimpo. O que lhes interessava, era retomar onde a antiguidade pagã tinha parado. Como escreveu, com sensibilidade do século XVII o filósofo e historiador David Hume, «o saber, no momento do seu renascimento, foi vestido com os mesmos indumentos que usava na época da sua decadência entre os gregos e os romanos(5). Centrado nesta decadência surgiu o respeito pelo Egipto e pelo Oriente. E foi exactamente da tradição neo-platónica e hermética que o renascimento retirou a sua concepção mais característica,das infinitas potencialidades do homem, e da crença que ele é a medida de todas as coisas. Os homens do renascimento estavam fundamentalmente interessados pelo passado, procuravam as fontes. E por isso olhavam para trás, para além do cristianismo, de Roma e da Grécia. Mas para trás da Grécia estava o Egipto, como disse Giordano Bruno no século seguinte, que por sua vez foi aclamado pelos historiadores e cientistas dos séculos XVIII e XIX, como pioneiro e mártir da ciência e da liberdade de investigação. Por volta dos anos 1640, um manuscrito grego foi levado da Macedónia para Florença. Ele continha uma cópia do Corpus Hermeticum. Não obstante os manuscritos platónicos estivessem já todos reunidos, Cosmos ordenou a Marsílio Ficino que traduzisse imediatamente da obra de Hermete Trismegisto, antes de traduzir os filosófos gregos. O Egipto vinha antes da Grécia, Hermete antes de Platão...(6). Qual foi a importância destas rupturas revolucionárias – a descoberta da importância das influências das culturas africanas e asiáticas na formação técnica e cultural do ocidente, as extensões dos horizontes geográficos e mentais dos séculos XV e XVI - , na percepção e interpretação do outro? E através do outro de si mesmo? Temos que constatar que a «descoberta» de novas humanidades, e da base afro-asiática da cultura europeia não foram colhidas como ocasião para uma tomada de consciência positiva da diversidade humana, nem para a constituição de um saber objectivo da variedade do homem no mundo. Pelo contrário, o período que vai da «descoberta» da América até ao fim do século XVI, as culturas não europeias foram submetidas a um sistema de interpretação proveniente das fontes da tradição bíblica. Para responder ao problema do povoamento regional da América, a explicação mais corrente era ligar os ameríndios às tribos perdidas de Israel de que fala a Bíblia. Da mesma maneira, as diferenças constatadas entre os grupos humanos nos diversos continentes, eram referidas a uma única árvore geneológica, como figura na Génese, e representada pela descendência de Noé. Os europeus seriam descendentes de Japhet, os asiáticos de Sem e os africanos da linhagem maldita de Cham. Este mito funcionou até ao século XIX. Como demonstrou T. Todorov(7), a conquista da América pelos espanhóis e a confrontação cultural que se seguiu, é exemplar no que põe em evidência: a incapacidade ou a dificuldade de uma civilização conquistadora em aperceber-se do outro como ser diferente e às vezes até mesmo de percebê-lo simplesmente como homem. Assim, por exemplo, Francisco de Vitória, uma das maiores autoridades do humanismo espanhol do século XVI, justificou a guerra contra os ameríndios, com o pretexto de que eles eram loucos, animais selvagens. Um outro autor, Oviedo, homemde ciência da mesma época, chegou mesmo a considerar os ameríndios objectos inanimados. Esta percepção negativa do outro, que partia de um sentimento de superioridade, culminava muitas vezes com a sua destruição física (genocídio), ou na vontade de lhe impor os
próprios valores(etnocídio). Durante o século XVI e XVII, a Europa atravessa uma profunda crise ideológica. Os esquemas de referência antigos, tinham-se tornado insuficientes para compreender e resolver os novos problemas. Contudo, esta crise não seria condição suficiente para que a Europa se questionasse seriamente sobre os problemas da alteridade. Na crise das ideias da época, trata-se essencialmente do homem europeu, das suas instituições, das suas crenças e dos seus costumes. As informações que acomula sobre o «selvagem» e que acompanham as suas reflexões tem uma simples função apologética sobre a tomada de posição de diferentes pensadores. Isto é, os discursos sobre o outro são pretextos para falar da própria sociedade, para defender as próprias ideias. Para tal, não se hesitava em inventar sobre o outro. Assim nasceram muitos mitos, sobretudo no século XVI, em voltada figura do selvagem, que ainda hoje estão presentes no imaginário ocidental. O mito mais célebre é o do «bon sauvage». Através dele, muitas gerações de penssadores, de Montaigne no século XVI, a Lévi-Strauss hoje, passando por Rosseau no século XVIII, questionaram a civilização ocidental. Contudo, a imagem do «bon sauvage» que era ao mesmo tempo valorativa e mítica, juntou-se a partir do século XVIII e XIX, a imagem mítica do «mauvais sauvage» que vai cristalizar-se essencialmente na figura do negro. Para a «denegrição» do negro afirmava-se, ou que os negros não constavam na Bíblia, ou então que eram da descencência de Cham e portanto malditos por Deus; argumentos que constituiam, aliás, uma legitimação fácil e cómoda da escravatura então em voga. O «Code Noir» ilustra perfeitamente, a maneira como o branco via o negro. Promulgados em 1685 por Luis XIV, os sessenta artigos que codificam a desumanidade do negro, estarão em vigor até 1848. regulamentando detalhadamente, as prerrogativas absolutas do senhor sobre o escravo, o «Code Noir» proclama o «direito ao não direito», e organiza juridicamente a destruição física no negro, sem lhe dar possibilidade de recurso... Contráriamente ao pensamento teológico espanhol do século XVI, que depois de um debate forte e animado (que acabou negros)reconheceu a identidade antropológica estatuto de homem livre e igual, os filosófos franceses dos séculos XVII e XVIII não se mostraram minimamente interessados pela condição infra-humana a que o negro estava reduzido. Os discursos sobre a escravatura, e a sua condenação feitos pelos homens das luzes foram abstractos e teóricos, e não diziam respeito à condição «de coisas», a que tinham sido reduzidos os negros. No século passado, a inferioridade do negro estava escrita na natureza física. Produzindo uma hierarquia em termos de raças, a ciência do século XIX colocou o negro, perto dos antepassados de todos os homens, os primatas, identificando assim o negro com grau zero da evolução humana, na qual o homem branco representa o apogeu. Sob o ponto de vista filosófico-histórico, a contemplação metafísica cede lugar a razão (raison) iluminista que por sua vez é alimentada pela fé no progresso, guiada pela filosofia de Bacon e Descartes. Voltaire prospecta a história como civilzação humana e não providencialista como queria Bossuet; Turgot acredita no progresso social e económico, mas incentivado não só pela razão
mas também pelas paixões (mesmo as mais violentas, e por isso irracionais). Causas físicas e morais são para ele factores de crescimento dos povos e da sociedade; os enciclopedistas francesesfalam da «razão feliz», à medida que ela domina a natureza com o trabalho e o comércio, e promove a unidade entre os homens, a circulação das ideias, a invenção de sinais e símbolos científicos, o critério de destinção entre justo e injusto, uma moral social que contempla os deveres dos homens, dos legisladores e dos estados entre eles, dos estados para com os cidadãos; Condercet no seu «Esquisse d’un Tableau des encorajando o tráfico de escravos dos ameríndios, reconcendo-lhe um progrès de l’Espirit humain» (1792) trça o caminho da civilização, como actuação histórica e como esperança do futuro. A antropologia das luzes era fundada sobre os seguintes pressupostos: 1. A humanidade é una, e a natureza humana é imutável; é a sociedade que muda, e não o homem. Salvo qualquer excepção, os pensadores do século XVIII inscrevem-se na tradição mogenista herdada do humanismo cristão e do renascimento. 2. O curso da história humana é orientado de forma unilinear irrevercível e contínua. Um dos corolários essenciais deste postulado, é que os selvagens são, no sentido próprio do termo, os primitivos, eles representam portanto, um estádio ultrapassado da história. O que é radicalmente novo, em relação às antropologias precedentes, é a universalização de uma história que engloba no seu movimento o conjunto das sociedades humanas, a partir das origens, e que excluem concomitamentemente a possibilidade de histórias diferenciais: unificação dos regimes de historicidade. 3. exactamente funcionamento do mundo físico, como fez Newton, aplicada à história humana produzirá os mesmos efeitos. 4. Esta perspectiva baseia-se num método cujos pilares são, por um lado, a comparação e por outro, a introspecção analógica que provém da crença na unidade da natureza humana e da universalidade da razão. Nós podemos pensar como os primitivos e nada, em princípio, impede os selvagens de pensar como nós, na condição de que eles progridam no entendimento. 5. No século XVIII (e XIX) as ciências do homem são militantes e utopistas. Trata-se para elas, de encontrar e coadunar o ideal entre o homem e a organização social. O critério de avaliação não são os sistemas sócio-políticos, mas o indivíduo. Esta ideia de individualismo «possessivo» encontra-se intimamente ligada à ideia de propriedade sumamente expressa notratado do governo civil de Locke de 1698. Entre as propriedades a possuir, existia o escravo negro, o que portava consigo uma descriminação racial, cultural e mesmo ontológica. Tais valorizações vão concordar perfeitamente com o início do romantismo, que sublinhava a importância das características geográficas e nacionais e as diferenças categóricas entre os povos. De facto, a partir de 1650 começa a desenvolver-se um racismocom contornos mais nítidos e intensificou-se com a progressão da colonização da América do Norte, que comportava as duas políticas associadas, a do extermínio dos nativos americanos e a da escravatura dos africanos. Políticas essas que suscitavam problemas morais nas sociedades cristãs, nas quais a igualidade de todos os homens diante de Deus e a liberdade pessoal eram valores centrais, sendo que só um forte racismo podia alentar as primeiras. Geralmente, justificava-se a escravatura citando Aristóteles, que tinha largamente teorizado a seu favor: «Os povos que vivem nas regiões frias e europeias, são muito corajosos e apaixonados, mas não têm habilidade prática e intelecto; por esta razão, mesmo se são geralmente independentes, não têm coesão política e não podem governar os outros. Por outro lado, os povos
asiáticos têm intelecto e habilidade prática mas não têm coragem e força de vontade; por isso permaneceram submetidos e escravos. O povo helé nico, que ocupa uma posição geográfica intermediária, é dotado de todas estas A história humana é sustentada por leis acessíveis à razão humana, como o mundo físico. Se a razão pode entender as leis divinas do qualidades e por isso continuou a ser livre, a ter as melhores instituições políticas e a ser capaz de governar por meio de uma única constituição(8). Assim Aristóteles liga a superioridade racial ao direito de escravizar os outros povos, especialmente aqueles «com disposição para escravatura». Posições racistas semelhantes, que acabaram por influenciar as respectivas filosofias, encontramse nos filósofos ingleses John Locke – proprietário de escravos nas colónias americanas – e David Hume. Na sua visão política, Hume denegria sistematicamente os Nativos da América; tinham-se necessidades das terras habitadas pelas populações indígenas para dar terras não cultivadas aos colonos ingleses. Tal colonização era necessária, como provado argumento, segundo o qual, a todos os homens era dada a possibilidade de se associarem em contrato social, com todas as desigualidades que isso comportava. As agressões da Europa cristã contra os «idólatras» africanos e americanos, eram consideradas guerras justas, porque estes últimos não defendiam as suas propriedades mas simplesmente terras não cultivadas. Para Hume o direito à propriedade da terra, derivada ao seu cultivo. A captura de escravos africanos pelos europeus era também justificada; além disso, a própria existência de escravos africanos em grande número, induzia a crer que eles fossem escravos naturais no sentido aristotélico. E Hume não hesitou em fazer-se pioneiro da ideia segundo a qual não, existia uma criação única, mas muitas e diferentes criações. Nos anos 1680 era difundida a opinião, segundo a qual os negros eram simplesmente em pequeno grau superiores aos grandes macacos – eles também de origem africana – na grande hierarquia dos seres. Este modo de pensar foi facilitado pelo nominalismo de Locke, que negava a validade objectiva das espécies aceitando-as simplesmente como conceitos objectivos. Ele era particularmente céptico quanto à categoria de «homem». «Eu penso que nenhuma das definições que hoje temos da palavra homem, nem as descrições desta espécie de animal, seja assim perfeita e exacta para satisfazer uma pessoa com uma mentalidade analítica rigorosa, para não dizer de senso comum... (9). Esta posição está em contraste evidente com a proclamaá em contraste evidente com a proclamação bíblica: E Deus fez o homem à sua imagem e semelhança. E até mesmo com Descartes, que insiste sobre a distinção categórica entre animais não pensantes e homem pensante. Pode portanto concluir-se, que o empirismo acaba por destruir a pequena barreira, que ainda subsistia contra o racismo. No século XVIII, a referência, até mesmo a reflexão sobre os costumes exóticos dos outros povos, foram um dos meios utilizados pela crítica social e pela filosofia política, sobretudo quando se tratava de denunciar a injustiça ou o absurdo de certas instituições, como monarquia absoluta. O século das luzes apropriou-se, portanto, do «selvagem» para compreender-se e criticar-se. Assim existia o selvagem do missionário, que era diferente do selvagem do militar, e ainda mais diferente do selvagem do filósofo. O exemplo é dado por Montesquieu, que nas cartas persas, revitalizando o modelo de Jean Bodin (século XVI) se serviu dos persas para criticar a Europa, e por outro lado, exaltava a Europa como continente científico e progressista. Este primado era explicado comoconsequência do seu benéfico clima temperado. No espírito da lei de 1748, o eurocentrismo do Barão de Montesquieu mostra toda sua relevância, onde aliàs, ele deliberadamente se esquece de fazer qualquer tipo de referência à condição, à qual o negro tinha
sido reduzido pelo «Code Noir». Esta maneira de aprender o outro, não corresponde a uma abertura em direcção ao outro, nem sequer a uma experiência especial da alteridade europeia no século XVIII. Pelo contrário, a imagem do bom selvagem, como do mau selvagem, anulam toda a distância entre si e os outros, não se analisa o outro em função de si mesmo, mas pretende analisar-se as diferenças específicas que caracterizamcada uma das partes, ao mesmo tempo que se releva as suas identidades. Esta posição corresponde, aliás, ao projecto da antropologia como se apresenta nos nossos dias. À medida que a ideologia do progresso se afirma como a visão legítima do mundo, a imagem do mau selvagem, que vive num «habitat» hostil, e numa natureza não domesticada, torna-se a representação dominante do outro. A possibilidade de ir à descoberta do outro, livre de preocupações exclusivamente internas à sua própria sociedade, supõe antes de mais uma tomada de conciência crítica de si e uma descentralização do próprio universo de referência. Ora, o problema principal dos filósofos das luzes, é a passagem do estado de natureza ao estado de civilização, ou por outra, explicitar a separação dicotómica entre «eles» e «nós». O progresso optimístico será visto de maneira menos ingénua e mais crítica, pelos filósofos alemães, como Kant, Lessing, Herder e outros; prelúdio do Sturm und Drang dos românticos. É exactamente o romantismo alemão que vai entender o progresso como desnvolvimento intríseco da razão humana, como educação do género humano, como missão dos povos, como religião da liberdade. O caminho da história é doravante muito mais complexo, porque o homem transforma-se com a mudança do seu agir e do seu pensar. Já não é uma razão abstracta que julga extrinsecamente os factos históricos, mas é o devir racionalizado que se configura como desenvolvimento da humanidade, em direcção ao futuro e em direcção à transcendência do espírito absoluto. Mais do que historicidade do homem, fala-se do historicismo da razão, ou seja da coincidência da filosofia e da história, se é verdade que a filosofia, como pretendia Hegel é o próprio tempo apreendido em conceitos. À parte extraordinária conquista das ciências naturais, conseguido durante o período romântico entre 1790 e 1890, houve um grande interesse pela história. Em ambos os campos o modelo principal foi a árvore. As árvores, que se encontram na evolução darwiniana, na linguística indoeuropeia, e na maioria das obras historiográficas do século XIX, constituem a imagem romântica ideal. As árvores têm um passado simples, um presente e um futuro ramificados e complexos. Nas últimas duas décadas do século XVIII, os estudos de história sofreram uma revolução, sobretudo na universidade de Gotingen. Um dos seus mais insignes professores, Gattere, iniciou o projecto de escrever não a história dos reis ou das guerras, mas a história como biografia de um povo. Um outro, Spittler, estudava as instituições como expressão de povos particulares, e ao mesmo tempo modelos, que se lhes plasmavam(10). De importância ainda maior, foi a obra do historiador e antropólogo Meiners, que introduziu e desenvolveu entre os anos 1770 e 1810 o conceito de «Zeitgeist»(¹¹), o espírito do tempo. Meiners, sustentava que em cada época e cada lugar tem uma mentalidade particular determinada pela sua posição geográfica e pelas suas instituições. Depois das últimas décadas do século XVIII, tornou-se impossível a todos os historiadores sérios, julgar uma acção ou um enunciado, sem ter em conta o contexto social e histórico. Outra grande inovação de Meiners foi a «crítica das fontes». Essa, implicava que o histórico avaliasse as diferentes fontes históricas com base no autor e no contexto social, fundamentado a sua interpretação sobretudo ou unicamente em fontes atendíveis. Os procedimentos de Meiners que dominariam a historiografia dos séculos XIX e XX, são essenciais para o historiador enquanto o distinguem do cronista: é inevitável que se tenha que dar
importância diferente, a diferentes fontes. O perigo está exactamente, na falta de consciência crítica em relação si mesmo. Quando se tratava das colónias egípcias na Grécia, os historiadores da última parte do século XVIII, negaram pura e simplesmente o grande número de informações que provinham das diferentes fontes históricas. Meiners usou as novas técnicas críticas para escrever a história romântica progressista dos povos que ele dividia categoricamente entre brancos corajosos e livres, e negros, feios, etc. J. F. Blumenbach, professor de história natural em Gottigen, estabeleceu uma hierarquia racial mais cauta e sistemática. O seu «De Generis Humani Varietate Nativa», publicado em 1775, foi a primeira tentativa séria de estudar cientificamente as raças humanas, segundo o tipo que Linneo tinha feito algumas décadas antes. Bluemenbach não era progressista e não acreditavana poligénese. Ele acreditava numa criação única de um homem perfeito. Para lhe explicar o que lhe pareciam diferenças raciais fundamentais, seguia o modelo eurocêntrico do naturalista francês Buffon (¹²). Buffon tinha sustentado nas primeiras décadas do século, que os tipos normais da espécie encontram-se na Europa. Nos outros continentes tinham degenerado devido às condições climáticas desfavoráveis. Segundo Blumenbach, a raça branca ou caucasiana era a primeira, a mais bela, a mais rica em talentos, e dela tinham saído as raças chinesa e negra por degeneração (¹³). A partir do século XIX para os europeus tornou-se literalmente impossível aceitar, que os povos dos outros continentes pudessem ter um espírito científico. As únicas excepções eram o antigo Irão e a antiga Índia, que porém eram concebidos como membros da família indo-europeia. Assim, eles vinham ocupar o núcleo dos antepassados exóticos, que tinha sido ocupado precedentemente pelo Egipto e pela Caldeia. Para o barão Christian Bunsen a China era o estádio mais primitivo da história mundial; depois vinha o Egipto passando pelos turanianos. Depois do dilúvio começou a verdadeira história, que consiste na dialécticaentre os semistas e os indo-germânicos. Assim, com bases «científicas» provenientes da linguística histórica, os egípcios e os chineses foram expulsos da história, e atirados para um passado anterior ao dilúvio. Sob ponto de vista estritamente filosófico-histórico, o interesse pelos probremas históricos acentuou-se com a transferência do ângulo de interesse, da natureza para o homem, graças sobretudo à obra de W. Dilthey (1833-1911), especialmente em dois trabalhos: «Introdução às ciências do espírito» (1833) e «A construção do mundo histórico nas ciências do espírito» (1910). Dilthey dá-se conta que as ciências do espírito não podem ser tratados segundo os mesmos métodos das ciências naturais. Daqui uma série de considerações metodológicas e de precisões analíticas sobre disciplinas novas com a sociologia, a psicologia, a estatística, a pedagogia, a política, a antropologia, etc. O século XIX é, portanto, o grande século da história, da antropologia, mas também do colonialismo. Foi a influência do evolucionismo que decidiu realmente o nascimento da antropologia no século XIX, pela simples razão de que ela teria introduzido uma perspectiva coerente ou um princípio de ordem no caos que até então formava, o material recolhido pelos viajantes e pelos cronistas dos séculos precedentes. Nas a quem toca a paternidade da ideias evolucionistas? Devemos procurá-lo no âmbito das ciências sociais? No «Princípios de Sociologia» de H. Spencer, ou na «Origens das espécies» de C. Darwin? Mas sobretudo, o evolucionismo que esrá na base do impulso antropológico, revela-se do científico ou do ideológico? A constituição da antropologia como uma disciplina científica moderna não é resultado de pura
curiosidade intelectual. A mudança de paradigma, sobretudo acerca da ideia dae evolução, e a reflexão do tipo antropológico tornaram-se possíveis graças a um outro evento sócio-político de maior relevância: O imperialismo europeu. Os ingleses na Índia e em äfrica, os franceses na África e na Ásia, os portugueses e os espanhóis na África, os holandeses na Ásia, para governar necessitavam de conhecer as sociedades as quais pretendiam «levar o desenvolvimento e o progresso». O antropólogo ganhava assim, logicamente, o passo ao militar e ao missionário nos territórios a colonizar. É a época em que começam a conceber-se e a organizar-se sob o control ou relacionados com os governos coloniais, grandes expedições de investigação científica. Estas expedições respondiam essencialmente a necessidades de ordem estratégica (inventariar, registar, cartografar e denominar os territórios e as populações que neles residiam); de ordem económica (avaliar os recursos naturais e humanos a explorar); de ordem política (controlar as populações, reforçar a dominação); de ordem cultural (avaliar as culturas locais para melhor inculcar as próprias ideias). Estas preocupações deviam traduzir-se num conhecimento objectivo; para isso era necessário que os antropólogos fizessem uma investigação mais orientada sobre o terreno, contrariamente a uma visão filosófica das culturas exóticas como era corrente no século precedente. Com este propósito foram criadas a «Societé ethnologique de Paris» em 1834, e a «Ethnological Society» de Londres em 1843. Conhecer melhor, para dominar melhor, foi o cunho histórico sob o qual a antropologia nasceu e se desnvolveu como ciência do homem, que se quer objectiva e neutra. Este paradoxo é simplesmente aparente. Com efeito, Michel Foucault demonstrou que o poder que o «poder-saber, produção de poder produção de saber, constituem duas faces da mesma medalha. O saber revela-se do poder, não no sentido de que ele é simplesmente um reflexo, mas mais profundamente, no sentido de que o saber está no centro mesmo (no coração) do poder. São as relações sociais, económicas, ideológicas num dado momento da história de uma sociedade, que constituem o “saber” e determinam as formas e os domínios possíveis doe conhecimento». Na antropologia, ciência das sociedades primitiva ou tradicionais, não podemos encontrar, exactamente, a história das relações de dominaçãoentre o centro e a periferia, e as suas transformações sucessivas. A antropologia acaba dando caução científica aos discursos ideológicos, com vista a legitimar a «necessidade», até mesmo, a «racionalidade» da colonização. De facto, ela definiu sempre o que é diferente, a partir da sua experiência histórica, avaliou os outros à sua própria medida, e pensou a relação entre ela e o outro em termos dualísticos: de um lado o «simples», o primitivo e do outro o complexo, o evoluído. Deve antes de mais criticar-se este dualismo. Admitir uma difernça entre os dois modos de pensar não significa necessariamente que se as deva opor, fazendo de uma a forma completa da outra. Porém, uma vez que as duas lógicas não seguem os mesmos objectivos, não somente se opõem como também não se excluem. Esta constatação torna caduco todo o raciocínio em termos progressivos, que queria que o pensamento simbólico, preceda necessariamente o pensamento científico, e que o aparecimento deste último signifique por sua vez o desaparecimento do primeiro. Aliás trabalhos recentes, têm demonstrado que o pensamento simbólico propriamente dito, só é possível a partir de um tratamento minimamente racional. Por outro lado, não obstante o seu desenvolvimento industrial, a sociedade ocidental moderna não é livre do mito e da imaginação. Basta pensar na criatividade artística (a poesia, a pintura, o romannce, o cinema, etc.), no imaginário religioso e sagrado (misticismo, transcendência) ou na metsfísica (visão moral e filosófica do mundo e da sociedade). Como reacçãoàs teorias evolucionistas, nasceu a corrente «Culturalista americana» que se desenvolveu com F. Boas(1858-1942). Esta correnteinsistia sobre a necessidade de uma
descrição etnográfica sem teorias pré-concebidas nem projectos da explicaçãoglobal, e avançada a ideia de que cada cultura humana tinha a sua história específica irredutível às outras culturas. Ela chega assim a recusar toda a forma de análise comparada de instituições sociais e culturais e a contestar mesmo a ideia de que a uma cultura possa corresponder um significado global. Com Malinowski, a partir dos anos 20, muda-se o substrato mental cultural ou filosófico, sobre o qual assenta todo o edifício dda antropologia. Para o pai do funcionalismo, todos os homens são iguais mas diferentes, e todas as diferenças são iguais. Todavia, na origem desta mudança de atitude não está o selvagem mas ela inscreve-se na corrente intelectual e científica da época. Com efeito, Freud e a psicanálise tinham-se já levantado contra a ideia do indivíduo guiado simplesmente pela razão. A teoria psicanalítica evidenciou a espessura psíquica e histórica do homem, o que acabou por pôr em causa a visão etnocêntrica do homem ocidental, como ser mais racional que os outros. Por outro lado, Durkheim tinha posto a descoberto a import6ancia do «contexto sociológico» na expedição dos factos sociais. Assim, já não se podia explicar a sociedade unicamente a partir da história ou da influência das outras culturas, mas doravante tinha de se encontrar a explicação nas próprias sociedades, isto é, na coerência estrutural e funcional. Isto explica a dupla perspectiva na qual se inscreve o pensamento de Malinowski: por um lado, tentar uma explicação global do homem e da sua cultura através do conjunto das suas dimensões, e por outro, estar atento às singularidades e particularidades de cada cultura. Não obstante as aparências humanistas, os motivos pelos quais Malinowski se torna antropólogo, são analógos, por exemplo, ao conceito de bom selvagem utilizado por Rosseau para criticar a sociedade do seu tempo: «A antropologia para mim – confessa Malinowski – foi uma invasão romântica na nossa cultura demasiado estandardizada». Nas ilhas do Pacífico não obstante fosse ainda prosseguido pelos produtos da «Standard Oil Company», pelos seminários, pelos tecidos de algodão, pelos romances policiais baratos e pelos motores de combustão interna sobre as embarcações que se encontram em todo o lado, era ainda capaz de fazer reviver, e de reconstruir sem demasiado esforço, um tipo de vida humana modelada pelos intrumentos da idade da pedra, compenetrada de crenças grotescas, e circundada de uma vasta natureza, virgem e aberta. A partir dos anos sessenta assiste-se uma aproximação entre a história e a antropologia devido a uma renovação interna de ambas as disciplinas. A antropologia. A antropologia começou por abandonar a antiga distinção entre sociedades primitivas (frias e sem história) e sociedades complexas (quentes e históricas), e descobriu a dimensão histórica das sociedades que estuda no presente (mudança social) e no passado (etnologia histórica ou antropologia histórica). Num segundo momento, a renovação da antropologia consistiu na sua conversão ao estudo das sociedades europeias. Doravaante ela interessa-se pela alteridade interna as sociedades europeias: sociedades rurais, grupos marginais ou minorias, novas expressões modernas; e a alteridade histórica: o passado das sociedades históricas, história das tecnologias indústriais. Quanto à história, ela começou antes da segunda guerra mundial, uma mudança assaz importante. Sob o impulso da escola dos anais (Annales), do nome da revista que publicava os trabalhos desta corrente, cujos representantes mais eminentes foram Marc Bloch, Lucien Febvre e Fernand Braudel, a história redefiniu o seu campo de acção: reacção contra a história dos poderosos (o Estado, as classes dirigentes e as elites) e a história factual (sobretudo política: constituíção dos Estados, história das instituições e das batalhas militares), e alargou-se o território da história das realidades institucionais à realidade profunda das massas e dos fenómenossociais. Sob a influência da escola dos anais, o princípio da explicação da história tende a apreender o
outro na sua singularidade, cada sociedade tornou-se uma outra sociedade. Hoje, a história das mentalidades ou história antropológica, tornou-se a ciência das mudanças e da lógica social, história das estruturas e da mentalidade, estudo dos objectos tradicionais da antropologia como os mitos, a morte, a sexualidade, a família, as festas,etc. Depois de um divórcio de mais de dois séculos, os historiadores e etnólogos tendem a reaproximar-se. A nova história depois de se ter feito sociológica, tende a tornar-se etnológica. O que é que a perspectiva etnológica faz descobrir ao historiador no seu próprio domínio? Pretende-se que a etnologia modifique as perspectivas cronológicas da história. Que conduza a um esvaziamento radical do evento, realizando assim o ideal de uma história não factual; propõe uma história de eventos repetidos ou esperados, festas do calendário religioso, eventos e cerimónias ligadas à história biológica e familiar: nascimento, casamento, morte. Obriga a recorrer a uma diferenciação dos tempos históricos e a conceder uma tentação especial ao domínio da «longa duração», a esses tempos quase imóveis como os definiu Fernand Braudel. Um olhar etnológico sobre as sociedades, permite ao historiador compreender melhor o que existe de litúrgico, de iniciático numa sociedade histórica. A etnologia conduziria o historiador a pôr em relevo certas estruturas sociais mais ou menos obliteras em sociedades históricas e a complicar a sua visão da dinâmica social. Para além do esforço levado a cabo nos últimos anos para diminuir a divergência, a história e a antropologia, que na realidade simboliza a divisão da humanidade em duas partes irredutíveis, e a grande recusa do ocidente em aceitar a plena e total humanidade do outro. Para além de algumas tentativas simbólicas de homens como Balandier de aplicar o estudo da etnologia às sociedades ocidentais, que aliás se confrontam com a história e a sociologia à etnologia resta uma prerrogativa dos povos sem história. Quando se fala do mindo selvagem, é sempre a etnologia que tem a palavra. Da mesma maneira que a história continua de certa maneira colonizada por uma visão eurocêntrica. E quando os povos não europeus tentam desprender-se das garras da etnologia para participar como agentes históricos, fazem-no simplesmente em relação e em função da história ocidental. No momento em que a etnologia se recarga de historicidade, em que Georges Balandier sustenta que não existem sociedades sem história e que a ideia de sociedades imóveis é uma ilusão, é sinal de que o historiador vai doravante fazer uma história fora da temporalidade historicamente tradicional? Ou em termos lévi-straussianos; se não existem sociedades quentes e frias, mas evidentemente sociedades mais ou menos quentes e sociedades mais ou menos frias, é legítmo manter a divisão entre sociedades mais ou menos quentes ( o que quer dizer que são também mais ou menos frias) e sociedades mais ou menos frias (que são também mais ou menos quentes)? Se se considerassem os factos etnológicos com a mesma dimensão dos eventos históricos, a coerência quereria que se lhes atribuíssem o mesmo grau de irrepetibilidade e de imprevisibilidade; mas adoptando um tal rigor deveria necessáriamente declarar-se o fim da divisão existente entre a etnologia e a história. Por outras palavras, declarar-se-ia o fim da etnologia. Claude Levi-Strauss, que Dan Sperber considera o antropologo contemporâneo mais ambicioso, pergunta-se; como reconciliar o eu e o outro, a minha sociedade e as outras sociedades, como realizar o universal a partir do singular? O antropólogo francês critica veemente o relativismo cultural da escola antropológica britânica, que se acentuou em fazer dos inventários das diversidades, o objectivo da antropologia. Para ele as culturas humanas constroem-se uma em relação à outra, numa relação de alteridade, num fundo de identidade. Para Lévi-Strauss, deve
passar-se da etnografia, como descrição de uma sociedade concreta, produto de uma história particular, à antropologia, como esforço de explicação desta diversidade, num nível mais geral, mais fundamental, o da determinação universal. O método estrutural de Lévi-Strauss consiste em dissolver as especificidades de cada cultura no universal. Segundo M. Duchet, o projecto de Lévi-Strauss é «fundar sobre os textos “selvagens” um discurso coerente sobre as sociedades que as produziram, e produzir ao mesmo tempo o princípio da sua inteligibilidade»(14). Mas donde é que as sociedades selvagens tiram este privilégio? Se os selvagens incarnaram a ideia de uma natureza universal, é porque possuem ainda uma natureza aculturada mas não desfigurada. LéviStrauss coloca este princípio de autenticidade conferida às sociedades selvagens na linguagem. A linhuagem é comum a todos nas sociedades selvagens, enquanto a memória escrita das sociedades históricas é artificial e a sua tradição opaca. Donde a ideia, segundo Derrida, de um mito do mito, de um mito de uma palavra originariamente, boa. Lévi-Strauss realiza assim uma divisão entre as sociedades selvagens e as sociedades históricas. A primeira seria caracterizada pelo sentido, pela autenticidade, pela transparência, e a segunda pelo poder, pela inautenticidade e opacidade. Mais precisamente, ele introduz uma separação entre uma história «cumulativa» características das sociedades quentes e uma história estacionária característica das sociedades frias; uma separação entre a história que organiza os seus dados em relação às expressões conscientes e a etnologia que organiza os seus dados em relação às condições inconscientes da vida social. Uma tal perspectiva faz desaparecer a historicidade das sociedades selvagens... Mas imaginemos, ao contrário, que para reconciliar o eu e o outro, a minha sociedade e a sociedade dos outros, o estruturalismo propusesse a imolação da etnologia sobre o altar da unidade do género humano; bastaria este rito sacrificial para predestinar aunidade histórica do homem? Eliminar a etnologia como ciência comportaria a eliminação da exploração das terras, dos homens, dos recursos naturais e portanto da exploração económica que estão na sua origem? A eliminação da etnologia significaria automaticamente a nossa admissão no terreno da história? E se sim, em qual história? Huizinga não hesita em afirmar que o espírito e a civilização ocidental tornaram-se bons condutores da história, e que pensar historicamente é uma capacidade que lhes entrou no sangue. Mas para onde nos guia a historicidade ocidental? Muitos dos principais eventos da história contemporânea puseram e põem em causa a ideia do progresso. Nem a guerra do Golfo, nem o bloqueio económico contra a Líbia, nem os planos de estruturação do FMI e da B.M. que mataram literalmentemilhares de crianças, nem as guerras no terceiro mundo sustentadas pelo mundo rico, são fáceis de integrar numa marcha da humanidade em direcção ao evento da racionalidade ou da liberdade. Ao mesmo tempo que o mundo se desenvolve num ritmo inaudito, o poder do homem sobre a natureza multiplica problemas insolúveis, os impasses históricos e as manifestações de violência social e de injustiça planetária multiplicam-se: o progresso técnico e económico desemboca numa irracionalidade política e numa desordem planetária, pondo assim em causa a ideia de uma história global, em que todos os níveis evoluíriam ao mesmo ritmo, e sefundo uma única e mesma temporalidade. O espaço humano tornou-se homogéneo no exacto momento em que o tempo deixava de sê-lo. Nas últimas décadas o espaço humano foi explorado, incentivado, fechado. Mas sobretudo «as sociedades frias» ou se aponderaram ou lhes foi imposto o modelo político europeu, ao mesmo tempo que exaltam fervorosamente as próprias origens e lutam pela própria afirmação. Eis as sociedades etnografáveis – auto – promovidas como a Europa(sociedade historiografável) à dignidade de histórias nacionais. É que nós deixamos de pensar a nossa diferença em termos de
espaço, para valorizá-la em termos de história. O Ocidente quando procura resistir à difusão intelectual dos seus vestígios, que aliás preconizavam iluministicamente uma história e uma simplesmente como fronteira a história económica, maquiavelicamente de pretexto para continuar a propor-se como exemplo para a construção de um esquema linear, onde a sociedade pós-industrial constitui o horizonte da humanidade... O espaço é portanto historizado, mas isso tem como preço a desagregação do tempo, pois, à medida que a história integra a humanidade inteira e se torna menos eurocêntrica, ela enfrenta o desafio etnológico da pluralidade das sociedades e das culturas, que decompõe a ideia de um tempo homogéneo. Por um lado as sociedades com diferentes graus de evolução não seguem o mesmo ritmo, mas por outro, no interior de evolução unitárias, tem , que aliás serve-lhe uma mesma sociedade, os diferentes níveis de realidade que a constituem, não obedecem a uma única e mesma temporalidade global e homogénea. A mudança tornou-se um conceito mensurável em termos económicos, nos seus diferentes aspectos; mas ao mesmo tempo, ela descobre resistências à mudanças. A universalização do progresso material e o crescimento económico são pensados como o sentido fundamental da história contemporânea; mas ela embate sobre as heranças, as tradições, o conjunto de inércias sócioculturais. Deste modo, a história, estendendo-se ao mundo humano descobre-se ela também como não história. A história assertora de umprogresso global, guiado pelo desenvolvimento económico, encontra-se comprometida; em parte pela crise do mundo contemporâneo e em parte pela inserção destas hipóteses no espaço não europeu. Isto explica a razão pela qual ao mesmo tempo que a Europa procura salvar – ou recuperar – o seu imperialismo como portador da modernização, ela volta à etnologia como conciência dos seus falhanços. Na multiplicidade e na variedade de acepção das recentes antropologias culturais, passou-se de uma consciência tradicionalmente estática, cosmocêntrica, contemplativa, pré-científica, a uma consciência histórica, dinâmica, técnica e científica; obviamente ao longo de vários séculos. Existe o perigo de uma acentuação unilateral da civilização tecnológica. Como é também grande a tentação de preocupar-se pela alta sofisticação dos produtos comerciais, em detrimento de uma específica reflexão sempre mais necessária sobre os problemas do homem que deve formar-se e informar-se nos valores espirituais, sociais, culturais e religiosos no momento em que produz os meios de subsistência. De contrário as funestas consequências do egoísmo , que aliás experimentamos todos os dias pelo mundo fora, são inevitáveis.Droysen tem razão, quando afirma que a consideração histórica nasce da reflexão de ordem moral. Grupos de aventureiros , militares e comerciantes conquistam a äfrica e transformam os seus homens mais fortes e válidos em escrvaos, populações inteiras são exterminadas e outras submetidas à colonização. As culturas do Gana, do Mali, do Zimbabwee do Monomotapa morrem para jamais renascer. Estas civilizações eram inferiores? E porquê? Em todo o caso, elas viviam de uma outra alma. Ninguém tem direito de matar uma alma. O processo do espírito ou a positividade da história devem procurar-se na morte? Moral é o que promove a vida e uma vida mais humana. Nem o indivíduo , nem o Estado, nem a história podem subtrair-se a esta exigência comum e ao juízo que dela deriva. Não existem duas morais, uma para o indivíduo e outra para a política ou para o Estado; uma para o Ocidente e outra para o resto do mundo; uma a respeitar no Ocidente, outras nos países fracos. A moralidade da política, da razão do Estado, da economia não tem sentido. A história deve explicar. Mas como falar do tirano sem recordar as vítimas inocentes que pedem justiça? Justiça pelo menos na memória dos posteriores? Esta não é simples retórica, indigna da
história. Pois, mesmo que quieramos ficar no plano do que deveria ser a pureza histórica, não nos poderíamos subtrair a este critério: «podemos perdoar, mas esquecer não depende de nós». Herder escreve que a criança e o povo são as partes mais nobres da humanidade. Daqui Hegel, e os racistas alemães do nosso século concluem que a história tem o seu direito, isto é todos os direitos, mas avança não por obra dos fracos e sentimentalistas, mas dos fortes e dos que não temem a violência e a guerra. Se Hitler tivesse ganho deveria esquecer-se os seus delitos e os delitos do nazismo? Ou de uma maneira mais hegeliana, pois que a história lhe teria dado razão, justificar-se-iam todos os seus massacres e aberrações como historicamente necessários? Até aqui, a Europa ganha. Depois da escravatura, da venda de homens como mercadorias, do colonialismo, da devastação das civilizações e culturas, ela continuava a produzir armas, que matam na Etiópia, em Moçambique, em Angola; faz programas estruturais que mantem crianças analfabetas e diminui o budget da saúde em muitos países; continua a sustentar ditadores que diziam milhares de pessoas(...)! não existe uma moral de Hitler para com os povos europeus, e outra dos povos europeus para com os africanos e o resto do mundo. Como Hitler e com, Hitler, a Europa é culpada dos seus crimes de ontem e de hoje. Entendamo-nos bem, hoje deixámos de ser bárbaros, e tornámo-nos homens «iguais em direito» aos homens ocidentais. Só que atrasados no mesmo processo histórico. Para o ocidente nos guiar em direcção à riqueza e à democracia, que constituem o apogeu da história, é uma tarefa messiânica de grande calibre moral. Por isso temos necessidade dos coperantes e dos especialistas financeiros para nos desenvolvermos, pois ainda não realizamos a industrialização e a urbanização que são as marcas distintivas do nosso atraso. Políticamente ainda não construímos os quadros da democracia que são os Estados-Nações laicos e unificados. Continuamos a privilegiar as nossas lutas tribais em detrimento da unidade do Estado. Os mass-media habituaram-nos de tal maneira a este vocabulário, que já nem sequer nos apercebemos do desprezo que ele comperta. Esta linguagem não é substancialmente diferente da linguagem de um Morgan, um Lévy-Brhul ou um Voltaire. Continuamos a representar uma temporalidade ultrapassada na cronologia ocidental; somos ocidentais em potência, com séculos de atraso cuja historicidade consiste em percorrer o caminho que nos separa dos nossos mestres, que por sua vez, destruíram ou encorajaram o destruir de culturas tradicionais em nome de normas agrárias favorecem a concentração das populações em cidades gigantescas que, por falta de equipamento e de trabalho necessário, estão à mercê da miséria, da violência e da poluição. Mesmo se doloroso, esta é uma etapa necessária para atingir o centro da história... Não obstante os desastres de que é directamente responsável, o mundo ocidental autoproclamou-se juiz do mundo. Se o critério de juízo fosse político, deveria consistir em felicitar os dirigentes empenhados na construção de um estado democrático, eficaz e moderno. Porém, em função das suas próprias opções ideológicas, a corte felicita e apoia ditaduras e sistemas de terror. Ao mesmo tempo que exige dos regimes realmente empenhados na luta contra a fome e a miséria, a construção imediata de estados modernos no respeito das normas ocidentais. Depois de os ter violado sitemáticamente e continuar a violar, o ocidente faz dos direitos do homem um imperativo absoluto para todos. Não obstante as lições da sua própria história, o ocidente considera que a liberdade é um objectivo do qual a pressão não pode ser um meio. Sem contudo se interrogar sobre se o respeito dos direitos do homem no ocidente é mais um efeito da riqueza ou sua causa. O principal argumento com o qual o ocidente justifica a universalidade dos próprios valores, é a sua superioridade técnica e militar; o seu conteúdo ideológico desmpenha simplesmente um papel de justificação. E assim, quando se proclama uma lei internacional que se impõe a todos,
ao ocidente não é difícil respeitá-la, pois tende a eternizar a sua superioridade. Pretender manter eternamente as fronteiras oriundas da colonização que só favorecem os colonizadores de ontem, que são os mesmos de hoje. Assim se reduz a história a um argumento ideológico. Esforça-se por aprisionar povos e culturas em posições de atrasados, sem que eles possam modificar o status quo, por causa de leis internacionais decididas pelo centro. Quem se atrevesse a não respeitar a sua historicidade negativa e periférica, arriscaria sanções económicas e intervenções militares. Nós temos que tomar o ocidente como modelo tal como ele é hoje, e não lembramo-nos que a Inglaterra, os Estados Unidos da América, a França, a Espanha, Portugal nunca hesitaram, no passado e no presente, sob outras formas e pretextos, de evadir outros países. Devemos chegar ao mesmo resultado sem pensar pelo mesmo caminho. Como diz uma poesia do velho Nyerere: Nós estamos no mar alto, estamos livres e independentes, mas ainda não alcançámos o objectivo pelo qual o nosso povo lutou, o mar alto tem que ser ultrapassado, e à medida que cada passo for dado, surgirão dificuldades e dúvidas por parte daqueles que não querem que a África se desenvolva em liberdade. Tudo isto pode ser ultrapassado, mas só será ultrapassado se lutarmos contra elas, não haverá milagres. É suficiente proclamar a unidade histórica do mundo para se libertar do etnocentrismo? Uma mínima parte da população mundial vive aquilo, a que Peguy chamava um período histórico; isto é os políticos limitam-se a administrar um regime de desigualdades e um direito internacional baseado sobre a força e a injustiça. Nós vivemos uma longa e interminável época. Os fundamentos tradicionais das nossas nações e sociedades foram desagregados, e os nossos esforços de sobrevivência são vistos como ameaça para a liberdade daqueles que usurpam a nossa. O problema principal com que nos confrontamos hoje, é a tomada de consciência da nossa própria identidade e consequentemente a reivindicação do papel de sujeitos históricos que nos compete de direito. Se aceitarmos situar-nos no processo histórico universal em que a Europa está na vanguarda, condenamo-nos a desempenhar um papel de segundos. Isto significa, por exemplo, que o nosso desenvolvimento económico passará necessariamente por uma inserção numa divisão internacional do trabalho dominado pelo centro. Então continuará a sustentar-se que nós não podemos superar os problemas da fome e da miséria com que nos defrontamos, através de métodos originais, mas simplesmente utilizando os métodos do ocidente. Por isso, ao mesmo tempo que se afirma que todos devem ser iguais e que todos têm direito à vida e à liberdade, desagregam-se todas as nossas civilizações. Assim, quando se tende a ajudar-nos, confirma-se a nossa subalternidade nas modalidades coercivas da ajuda. Rebate-se subdesenvolvimento e submissão. Para nos fazermos reconhecer como sujeitos da história, devemos aceitar e valorizar a nossa diferença de posição em relação à história. A nossa não é a história deles, ela não se integra necessariamente num processo universal onde a Europa está no ápice. Uma tal descentralização põe em causa a própria noção de história (universal); sujeitos do nosso próprio destino, não podemos fazer no presente da história, como não fizemos no passado da etnologia, uma dimensão essencial da nossa existência; sem nos termos interrogado sobre o seu significado e sobretudo, sem nos termos situado em relação a ela. A história é uma concepção ocidental, ela levou o ocidente até onde se encontra hoje, e a nós empurrou-nos para uma posição de eternos subalternos, atrasados em relação aos outros e objectos do seu olhar. Heidegger e Gadamer e toda recente hermenêutica, ensinam que o homem se caracteriza, entre
outras coisas, como Exsistenz; psicológicas devem tomar em séria consideração a homem. O homem encontra-se sempre mergulhado num circulo hermenêutico. Tentar aproximar-se dele, significa, explorá-lo não através das abstrações iluministas, mas à luz das pré-compreensões que o guiam na abertura «vital» aos outros, para cá das modalidades categoriais ou lógicas e no respeito da zona de mistério presente em cada ser humano. O diálogo, a nível existêncial, transforma-se em compreender e este é um «suceder» que modifica profundamente o interrogador e o interrogado, enriquecendo-os a ambos de uma consciência ética e de teologia histórica. Até o mundo é incarado não como objecto, mas como «processo» ou habitat humano digno de interpretação; o mundo faz-se portanto história e a história avança como processo hermenêutico no qual se manifesta a verdade de modo humano, uma vez que se confia à linguagem, esta é infinita como o espírito, e, todavia, finito como todo o «suceder». Contrariamente ao historicismo idealístico que considerava as partes, partindo todo, a hermenêutica considera a história, a partir das partes para o todo: «Nunca se deve estender a totalidade como o sentido total da história». Esta feliz indicação liberta-nos do plan-logismo hegeliano e reencontrar o «homo viator» em caminho nas pistas da história, permite-nos interrogar de modo particular, em que medida, na nossa própria autocompreensão, modificamos ineluttavelmente a nossa compreensão da história, da nãohistória e da etnologia. Mas o problema principal é esclarecer quais são as experiências reais que fundamentam a abstração «história», quais são os sujeitos de direito da história, se indivíduos privilegiados, se colectividades, se instituições sociais particulares, se povos ou continentes eleitos, se raças privilegiadas etc. Esta nova auto-compreensão de nós mesmos, poderá permitir-nos recomeçar em termos novos a nossa reflexão sobre a história, mas simplesmente se procuramos não um acesso a novas formas da cronologia temporal e a sua pertença no processo da evolução humana para nos reposicionarmos em relação a elas com valor ou valorizados, mas pelo contrário, para procurarmos os elementos de uma confrontação entre tipos de devir (futuro). as propostas gnoseológicas e temporalidade constituitiva do
DA ETNOLOGIA À FILOSOFIA POLÍTICA (ideologias políticas) Oevolucionismo classificando as sociedades segundo o seu grau de desenvolvimento técnico, confirmou a visão etnocentrista da elite ocidental e facilitou o colonialismo. Os evolucionistas punham particularmente a tónica sobre a unidade do género humano. Eles consideravam as diferenças entre as sociedades e as culturas puramente conjecturais. As diferenças seriam chamadas a reabsorverem-se, no universal geralmente representado pelo estado social mais avançado. O evolucionismo de um Tylor ou de um Morgan, o etnocentrismo de um Lévy-Brhul não podiam admitir a ideia de que pudessem existir culturas que não fossem europeias; eles só podiam pensar a vida cultural das outras sociedades, como estados arcaicos de um único processo cultural, na qual a Europa representava o estádio mais completo. A visão uniformizante da história enunciada pelo evolucionismo, encontrou nos povos uma resistência sistemática, que parecia intensificar-se com o decorrer do tempo. Isto levou à tomada de consciência da diversidade das culturas e à necessidade de respeitá-las, a fim de realizar com mais subtilidade a missão colonial. Os grandes impérios coloniais, Grã-Bretanha e França formaram especialistas e a etnologia passou a fazer parte da bagagem intelectual dos administradores. Quer nos territórios franceses como britânicos, os funcionários trabalhavam como «etnólogos do governo». Formaramse assim institutos conhecimentos para «compromisso histórico» aparecia como um esforço iluminado para limitar os desgastos e respeitar as culturas autóctones. O nome de Malinowski está inseparavelmente ligado ao funcionalismo. Com efeito, ele tentou definir toda a realidade sócio cultural e todos os instrumentos antropológicos a partir da teoria desenvolvida com este nome. Alfred Radcliffe-Brown aparece sobre a cena antropológica ao mesmo tempo que Malinowski. Se bem que tenham trabalhado independentemente e em direcções diversas, são identificados com a etiqueta de funcionalistas. Não chega constatar que a colonização afectou todos os aspectos da vida social e cultural e todas as instituições, se nos contentamos em estudar separadamente as transformações que se produzem a um certo nível, num certo sector, numa certa instituição; tal procedimento não leva a nenhuma explicação. Esta é a crítica fundamental que Balandier e Gluckman fazem a Malinowski; Balandier sublinha que se perde assim a análise das ligações e das complexas interacções que se configuram no campo de um sistema de instituições sujeitas à mudança. A epistemologia actual revela uma certa conveniência entre o funcionalismo, que estuda cada etnia como um mundo fechado, coerente e intemporal, e a doutrina colonial do governo indirecto, que se apoiava sobre poderes indígenas. O funcionalismo, sugerindo a irredutibilidade das culturas a um denominador comum, abria as portas ao princípio do relativismo cultural evocado pela etnologia americana. que pretendiam não fazer política, mas simplesmente fornecer evitar uma colonização cega. Da parte dos etnólogos, este
A corrente relativista punha a tónica na diversidade cultural e social e considerava que a unidade do género humano se manifestava na sua capacidade na sua capacidade de se diferenciar em múltiplas culturas. Segundo este ponto de vista, o homem é antes mais um ser social, isto é, ele é formado e informado pelo seu ambiente, pela cultura na qual ele evolui. Esta é a razão pela qual na pluralidade cultural e primordial, o homem não pode ser concebido, separado da sua cultura de origem. Herskovits admite que toda a cultura é um conjunto dinâmico, sujeito a mudança, porém, ele acrescenta que toda a cultura adopta uma direcção particular. O dinamismo da cultura não põe portanto em causa o relativismo cultural. A posição relativista pretendia sobretudo lutar contra o imperialismo americano e defender as minorias colonizadas, os grupos oprimidos. Este movimento tinha sobretudo uma grande importância ética. O relativismo cultural impõe como normas, o respeito pelas diferenças, a tolerância, a crença na pluralidade de valores, a aceitação da diversidade. Isto foi deliberadamente anti-colonialista, o que não impediu muitos etnólogos americanos, de trabalhar para a colonização interna. Para além das críticas que esta teoria justamente suscita, deve reconhecer-se que ela favoreceu uma tomada de consciência sobre a necessidade de considerar as outras culturas de maneira mais séria e independente da cultura ocidental. Isto favoreceu o nascimento de uma nova escola de etnologia, que superando as teorias de Lévy-Brhul, de Gobineau, de Morgan, de Tylor, de Spengler, recusava considerar os povos da África negra como povos sem civilização. No livro «Les Nègres» (¹) Maurice Delafosse procedia a um estudo da história da África ocidental e descobria que a época medieval africana era sob muitos pontos de vista comparável à época medieval europeia. Ele concluia, que não só a pretensa inferioridade intelectual do negro que nunca tinha sido demonstrada, mas que se podiam encontrar, ao invés, muitas provas do contrário. No mesmo ano, Georges Hardy revelava as consequências desastrosas da influência europeia na África, e exaltava a profunda espiritualidade religiosa da alma negra (²). Leo Frobenius descobria, portanto, na África, tornada bárbara só com a chegada dos brancos, os restos de uma civilização antiga, que ele ligava ao Egipto, e escrevia: «Nós reconhecemos em todo o lado um espírito, um carácter, uma essência igual... Tudo é feito em função de uma finalidade bem determinada, árdua, severa. Eis o carácter do estilo africano» (³). Theodore Monod enunciava os princípios do relativismo cultural, expostos por Robert Delavignete no prefácio do romance do senegalês Ousmane Socé, «Mirages de Paris» (4). Neste esforço por dar África, vieram juntar-se grandes nomes como Michel Leiris, Marcel Griaule, Géorges Balandier, Lévi-Strauss e Mircea Eliade. A nova escola etnológica falava dos povos ditos primitivos com mais objectividade, valorizava o passado africano até então considerado sem interesse. À luz destas obras, se dissipavam as taras que os povos africanos suportavam desde há muitos séculos: povos sem história, mentalidade primitiva, idolatria, feiticismo, etc. Sob o impulso das novas descobertas etnológicas, até mesmo Lévi-Brhul se viu obrigado a rectificar as suas afirmações precedentes e a admitir, nos seus «Cahiers» de 1938 que não existiam diferenças qualitativas entre a mentalidade primitiva e a
mentalidade dos povos desenvolvidos (5). Descrevendo este movimento, Césaire pôde dizer que ele foi de tal maneira geral, que fala da grande traição da etnografia ocidental, a qual com uma deteriorização deplorável do sentido da sua responsabilidade, incita a pôr em dúvida a superioridade unilateral da civilização ocidental sobre as civilizações exóticas. A negritude, movimento de protesto contra a submissão do negro, surge a partir de uma viagem particular da história europeia, caracterizada entre outros, pelo princípio do relativismo cultural. Centrando-se sobre o sujeito, trabalhando de preferência sobre a tomada de consciência subjectiva, privilegiando o concreto em oposição à tradição abstracta, os grandes sistemas filosóficos em oposição à tradição abstracta, os grandes sistemas filosóficos em voga entre 1920 e 1945, na Europa, pareciam negar a ordem das verdades tradicionais e davam a impressão de pôr radicalmente em causa a pretensão à universalidade dos cânones absolutos da civilização ocidental. Esta atmosfera permitia novas perspectivas, como afirma Senghor no livro Pierre Teilhard de Chardin e a política africana, pôr a claro os valores e os sistemas de culturas, independentemente das suas origens. Senghor insiste fortemente sobre a contribuição da antropologia; mais exactamente, sobre o tipo de visão que os antropólogos exerciam. Atentos à vários Frobenius, Delafosses ofereciam aos jovens, aos quais a colonização tinha desaprendido o que significava realmente ser africano, razões para se afirmarem contra as ideologias circundantes. Nós tinhamos reencontrado o nosso orgulho – escreve Senghor. Apoiandonos sobre o trabalho dos antropólogos, dos préhistoriadores, dos etnólogos, proclamávamo-nos com o poeta Cesaire, os primogénitos da terra. Estes jovens frequentavam então ambientes surrealistas, onde se familiarizaram com as teorias freudianas, e a revelação de uma vida «arcana» que se desenvolvia debaixo da superfície da consciência clara, determinando-a. No esforço de atingir tal realidade, o surrealismo abolia todas as barreiras entre o pensamento lógico e o sonho, o consciente e o inconsciente, o indivíduo e o mundo que o circunda. Ele decretava uma evasão em direcção ao irracional, aos desejos, aos sentimentos, ao fideísmo, um salto em direcção à vida espontânea, fazendo ressuscitar o mito rousseiauiano do bom selvagem, do homem não civilizado como ser mais puro, mais autêntico, mais perto do misterioso inconsciente. Nesta procura da realidade primordial, a palavra reencontra o seu valor antigo de verbo criador, o que correspondia à concepção mágica da palavra, própria das sociedades ditas primitivas, e em particular das sociedades africanas. Em Césaire, a luta que o surrealismo empreendia, contra a razão, configurava-se com a luta contra a «razão do chicote» do colonialismo, e exaltação «loucura», a «loucura» que se recorda tenderá a revalorizar uma memória antiga, na qual reflorescem as imagens do passado, da horrível agonia dos escravos e da sabedoria tradicional africana: «Razão, eu sacrifico-te ao vento da noite. Tu chamaste a ti mesma a língua da ordem? Para mim és a coroa do chicote... os nossos tesouros são a “loucura ” que recorda, a loucura que grita, a loucura que se enfurece» (6). a loucura que grita, a loucura que se enfurece» (6). 31, a revista «Nouvel Age» consagrou muitos números à literatura negro-americana, e sobretudo
aos cantos dos trabalhadores negros. Muitos intelectuais negro americanos e das Caraíbas como Jacques Roumain, Jean-Francois Brière, Nicolas Guillén, Richard Wright tinham identificado a revolta racial e a luta de classes. E mesmo Césaire aderiu ao consumismo para depois se afastar mais tarde; tentação à qual Senghor, Damas ou Birago Diop nunca cederam. Nesta perspectiva, a luta pela afirmação de si, devia ser precedida pela conquista de uma base cultural sólida. À tentação marxista preferiu-se, portanto, a via do retorno às origens, à África. Mas a África que estes estudantes encontraram, em Paris, era a África dos etnólogos ou a África dos poetas negro-americanos. Em ambos os casos, uma África que já não existia. Senghor faz sobressair os precursores da negritude dos escritores negroamericanos, dos anos vinte, criadores dos movimentos pan-africano e New Negro: «Se nos anos 31-35, lançamos o movimento da negritude, é porque os negros anglófonos, precisamente os negro-americanos tinham lançado antes de nós, o movimento do NegroRenascimento». Em 1903, o primeiro promotor do movimento, W.E.B DuBois, proclamava «sou negro e tenho glória deste nome. Sou orgulhoso do sangue que me corre nas veias». Em 1926, quando, Césaire, Damas e eu próprio nos sentávamos ainda nos bancos do liceu, escreve Senghor, Lanston Hughes escrevia já na revista «The Nation» de Junho de 1926: «Nós, criadores da nova geração negra, queremos exprimir a nossa personalidade negra sem vergonha nem temor. Se isto agrada aos brancos, ainda bem. Se não lhes agrada, não importa. É para amanhã que construímos os nossos templos, templos sólidos como nós sabemos edificar, e mesmos». O problema americano; e esta luta deveria ser combatida, em primeiro lugar na alma do negro, que devia encontrar uma autêntica identidade própria. Ora para cancelar a imagem frustrante do negro, criada pelo branco; isto é de um homem tábua rasa, de um homem sem história, e portanto sem civilização, Dubois religava-se à África, ressuscitava os antigos impérios e reinos, falava da grandeza do passado, submergidos pela exploração europeia. Em «Almas Negras» (7), DuBois dá um testemunho apaixonado das condições da raça negra no mundo que teria influenciado o pensamento de George Padmore, Nnmdi Azikiwe, Kwame Nkurumah e Jomo Kenyatta, DuBois criava o mito da África ancestral, como uma civilização esplêndida e fechada nela mesma, um universo autosuficiente, criador primogénito de civilização. Uma África mítica, remota, um simples meio, no fundo, para devolver, orgulho e iniciativa ao negro humilhado esvaziado. DuBois insistia sobre o facto de que o homem negro tinha uma missão, algo para oferecer ao mundo. No primeiro capítulo de «Almas Negras», ele escreve que «nós que temos a pele negra já não vamos ao encontro de mãos vazias (...)», não existe música americana que não seja aquela melodia ao mesmo tempo, selvagem e doce do escravo negro; os contos, os folclores americanos são sobretudo índios e negros; e afinal de contas, nós, negros, parecemos ser o único oásis de fé e de respeito neste explosivo deserto de dólares e de astúcia. O pensamento de DuBois ficava circunscrito ao mundo das elites negras. Demasiado intelectual, ele não estava em condições de mobilizar as massas dos «ghetos». Este será o cômpito do seu grande antagonista, o jamaicano Marcus Garvey, que lançara, logo depois da primeira guerra mundial, um movimento popular, nos Estados Unidos da América. Enquanto Dubois lutava por uma igualdade completa das raças nos E.U.A., Garvey como Blyden, estava convencido de que o
negro nunca teria uma igualdade nos permanecemos erectos em cima da montanha, livres em nós principal de DuBois, era a integração do negro no contexto E.U.A., por isso preconizava o retorno de todos os negros a África, a «terra mãe». Todavia, a África de Garvey não era mais real do que a África de DuBois; era uma terra sonhada, uma terra de promessa. Entretanto, tinha-se formado em Harlem uma nova elite intelectual negra, que já não seguia os velhos grandes mestres, Paul Dunbar e James Weldon Johnson, os quais no fim do século tinham cantado, num estilo imperioso, a embriaguez da dor e a esperança, e se tinham apresentado como os porta vozes do povo negro, inspirando-se no folclore afro-americano dos espirituais. Fazem parte da nova elite que se desenvolve entre os anos 20-30, os escritores e poetas Langston Hughes, Claude McKay, Jean Toomer, Countee Cullen, Sterling Brown. Eles contestavam na civilização americana não só os prejuízos raciais, mas também a sua estrutura capitalista opressora, o seu espírito mercantilista que rebaixava o homem diante do dinheiro, o seu progresso técnico que empobrecia a diversidade humana e o despersonalizava. Para encontrar os valores puros, existia uma dupla via. Podia procurar-se a África na América, como afirma Roger Bastide, e alguns escritores fizeram-no: Claude McKay, cantando a nostalgia do longínquo sul das plantações, onde o negro, malgrado o sofrimento, permanecia ele mesmo. Mas a maioria dos escritores (Countee Cullen, Langston Hughes) evadiram-se, como DuBois e Garvey, em direcção de uma África imaginária, projecção da própria diferença, querida, encontrada e proclamada. Contudo, estes poetas eram bem conscientes que tal África era um sonho. À pergunta o que é a África para mim, Countee Cullen constatava tristemente a sua já não pertença àquele paraíso perdido. E Langston Hughes, apesar de não renegar a herança africana, era obrigado a enquadrála numa outra perspectiva: «Assim longínqua remota é a África» (8). «Graças a Paulette Nardal», escreve Senghor, «fundadora da revista do mundo negro, pude encontrar nos anos trinta Alain Cook e Mercier Cook, graças a Leon Damas, Langston Hughes e Countee Cullen. Encontrado e sobretudo lido. Assim, no sentido geral da palavra, o movimento da negritude – a descoberta dos valores negros e a tomada de consciência, por parte do negro, da sua situação – nasceu nos Estados Unidos da América». Destes contactos, e das visões dos antropólogos, transmitiu-se aos poetas da negritude uma imagem mítica da África. Enquanto um grupo reunido em volta da revista «Legítima Defesa» recorria a luta de classes, outro guiado por Damas, Cesaire e Senghor através do recurso à investigação etnológica, das raízes africanas, reunira-se em volta da revista «Estudante Negro». Leon Damas, numa entrevista à revista «Jeune Afrique» em Março de 1971, reafirma a íntima ligação, aliás, a filiação entre a negritude e o movimento do New Negro e do Harlem Renassaice, e defende a séria preparação «etnológica» dos fundadores da negritude. Nos três fundadores do movimento da negritude, deliniavam-se três diferentes tendências. Para Damas tratava-se de negar a assimilação e de defender a própria qualidade de negro. Para Cesaire era a constatação de um facto que se resolve no regresso e na assunção do destino da raça. Para Senghor a negritude deliniava-se como descoberta, defesa e ilustração do próprio
património racial e do espírito da própria civilização. No seu discurso sobre o espírito da civilização ou as leis da cultura negra africana, Senghor sustenta que a libertação cultural é a condição preliminar da libertação política, e faz uma brilhante análise da civilização africana tradicional, vista como um complexo unitário de concepções comuns a todo o continente. Este conceito de unidade cultural africana era reafirmado pelo senegalês Cheik Anta Diop que lhe tinha ligado, num livro intitulado «Nações negras e cultura», uma origem histórica comum: a civilização egípcia. Ja Frobenius tinha avançado esta tese, mas Cheik Anta Diop superava-o e, fundamentando-se por um lado nos estudos do nigeriano Olumide Lucas, e por outro nos antigos testemunhos, sobretudo de Heródoto, que sustentava a pertença dos egípcios à raça negra. Podia, sem remontar tão longe, encontrar-se um elemento de unidade num passado mais recente: a escravatura, a segregação racial, a dominação colonial, a «comunidade de sofrimento». Mas isto equivalia a admitir, que a unidade do presente era o simples futuro de uma situação semelhante perante o mundo dos brancos. Devia então admitir-se que é «o branco que cria o negro», como diria mais tarde Frantz Fanon (9), ou aliás, que o negro se defina simplesmente como negatividade, «como não branco». O escritor negro americano Richard Wright dizia sentir-se «unconfortable» numa cultura negra africana descrita por Senghor, e sustentava que a cultura não estava ligada a raça. Delineava-se assim, uma divergência entre os negros americanos, sobretudo dou E.U.A., e os africanos. Para os primeiros o regresso à África era um simples tema poético, válido como expressão de revolta contra a despersonalização operada pela cultura ocidental, e de recuperação de uma autenticidade mais profunda, mas não podia significar um regresso real a concepções e usos que eles consideravam remotos e incompreensíveis no mundo moderno, enquanto para os africanos se tratava de revitalizar tais concepções e usos. Senghor repete inúmeras vezes, que considera a política simplesmente um aspecto cultural. E a cultura é a «Constituição psíquica que cada povo, explica à sua civilização. Por outras palavras, uma maneira específica de cada povo, sentir, ou de pensar, de se exprimir e de agir. E esta maneira, este carácter, como se diz hoje, é a simbiose da influência da geografia e da história, da raça e da etnia» (10). A análise senghoriana da psicologia negra deriva em parte, das teorias de Gobineau (11); é verdade que se fundamenta sobre o estudo do ambiente natural que o condicionou, mas define-se sobretudo pela oposição à psicologia do homem branco, e resume-se no famoso paradóxo: «A emoção é negra como a razão é helénica (12). Para Senghor, o branco europeu «homem de vontade, guerreiro, puro olhar... distingue-se do objecto. Mantém-no à distância, imobiliza-o, fixa-o, munido de instrumentos de precisão, disseca-o numa análise impediosa. Animado por um desejo de poder, mata o outro e transforma-o num meio para atingir fins práticos». O negro é ao invés completamente diferente. Foi dito e repetido: «O negro é homem da natureza. Vive tradicionalmente da terra e com a terra, nos cosmos e através dele. É sensual, um ser com os sentidos despertos, sem intermediário entre sujeito e objecto. A razão do negro não é discursiva, é sintética. Não é antagonista, é simpática. A razão negra não empobrece as coisas, não as modela em esquemas rígidos, mas instala-se no coração vivo do real. A razão europeia é analítica para a utilização, a razão negra, intuitiva para a participação» (13).
Esta teoria sofreu modificações e rectificações importantes no desenvolvimento ulterior do pensamento de Senghor. Mesmo que o negro assimile ao objecto ou que assimile o objecto a ele, e contudo, caracterizado pela faculdade emotiva, que não é negação da razão, mas uma outra forma de conhecimento. O que comove o negro, não é a parte exterior do objecto, é a realidade enquanto tal, ou melhor, - uma vez que o realismo se tornou sinónimo de sensualismo – a sua surrealidade. Através da emoção o conhecedor e o conhecido põem-se ao mesmo ritmo, sintonizam-se naquilo que Senghor definiu «como uma dança de amor». Segundo o sistema filosófico de Senghor, inspirado nas obras de Placide Tempels, de Marcel Griaule, Germaine Dieterlen e Alexis Kagame, o universo é composto de energia, ou melhor de forças vitais, isto é de ondas, de ritmos. No centro do sistema está a existência, isto é a vida. O negro identifica o ser com a vida; mais exactamente com a forçavital. A sua metafísica é uma ontologia existêncial. Como escreve P. Tempels, «O ser é que possui a força», aliás, «O ser é a força». Existe no mundo uma outra força vital, semelhante a do homem, que anima todos os objectos dotados de um carácter sensível; desde Deus até ao grão de areia. O negro estabeleceu uma hierarquia rigorosa de forças. «No cimo Deus, único, não criado e criador» aquela que dá força e potência por ele mesmo. Ele dá existência, substância e acréscimo às outras forças. Depois deles vêm os antepassados, e em primeiro lugar, os fundadores dos clãs. Mais abaixo encontram-se os vivos, que por sua vez são ordenados segundo os costumes, mas sobretudo segundo a ordem de progenitura. No fim encontram-se os animais, as plantas e os minerais» (14). O homem ocupa neste sistema uma posição insigne, enquanto pessoa, existente activo, capaz de aumentar o próprio ser. Toda a criação está concentrada no homem, que é o centro do universo. Todas as outras forças vitais estão orientadas para a realização pessoal do existente, para reforçar a sua força vital. Mas por outro lado, o existente nunca é visto como indivíduo, mas como pessoa, parte solidária da força do clã. A ética, na África negra, consiste portanto, no reconhecimento da unidade do mundo e do agir para manter o equilíbrio das forças, a ordem e a estabilidade. Desta concepção deriva a ideia do sagrado, fulcro de toda a vida africana, onde cada ser, cada coisa, tem uma força vital, portanto de energia divina; onde o homem está ligado à planta, ao animal, aos seus semelhantes, vivos e mortos, e ao cosmos através do ritmo vital, e a Deus através do sacrifício ritual. Para Senghor a religião africana está centrada no sacrifício, que determina a comunhão dos vivos e dos mortos, porque a força vital do animal sacrificado flui, através do sacrificador (geralmente o chefe da família), em direcção do antepassado e deste, de novo, em direcção à comunidade que ele incarna. Os antepassados, e os mortos, são os intermediários entre o homem e Deus. A família é o conjunto de pessoas que descendem de um antepassado comum. O antepassado é o sinal de uma realidade profunda, o sangue, isto é, chama da vida. A finalidade da família é a procriação, ou seja, a transmissão de energia vital, através do sacrifício, a manutenção da vida essencial do antepassado. A família aparece como um microcosmo, a célula primária da sociedade, da qual as outras estruturas, povoação, tribo, reino, império, derivam. A família é para Senghor, uma comunidade democrática, cujo chefe, que é também sacerdote e juiz, actua como delegado do conselho de família. Na povoação, na tribo, no império, Senghor reconhece sempre
os caracteres de uma teocracia democrática. Daqui deriva a estética negro-africana, que se funda sobre o conceito de um universo composto de forças, de energias, de ondas, de ritmos. A arte negra é explicação e não descrição. Aliás, a arte é um instrumento de conhecimento. Senghor põem na boca do negro: «sinto o outro, danço o outro e portanto sou» (15). A arte torna-se uma ciência, uma técnica de participação sensível à realidade. A grande questão é saber se a negritude é uma escola, uma capela literária, ou uma ideologia que possa permitir aos negros construir uma sociedade moderna original e dar uma contribuição específica para a civilização pan-humana. Na «Problemátique de la Négritude», Senghor sustenta, ter sido como Cesaire e Damas, não o fundador mas o primeiro defensor da negritude, que segundo a definição de Cesaire, retomada aqui por Senghor: é um «simples reconhecimento do facto de ser negro, a aceitação deste facto, do nosso destino de negros, da nossa história e da nossa cultura». O cômpio do militante da negritude consistiria, portanto, na assunção dos valores do mundo negro, na sua totalidade (negritude objectiva), para actualizá-los, fecundando-os com contribuições estrangeiras, para vivê-los em si mesmo e fazê-los viver pelos outros, a fim de levar a contribuição negro à civilização universal (negritude subjectiva). A negritude é portanto anterior à chegada dos brancos, pois ela constitui o espírito da civilização negro africana. Tal espírito, isto é própria negritude individual e colectiva, os negros só tomaram dele uma consciência mais aguda, depois do impacto com a civilização ocidental. Eles não a tinham criado ou inventado como pretendia Sartre. Segundo Senghor, a negritude engloba todos os movimentos culturais iniciados por uma personalidade negra ou por um grupo de negros, como o movimento de Niagara ou a NegroRenaissance, nos Estados Unidos; o movimento da escola Haitiana, nas Antilhas; o movimento African Personality na África anglofona e finalmente o movimento da negritude na África de língua francesa e nas Antilhas. Senghor põe entre aspas a palavra «negritude», que designaria o ponto de chegada de todos os movimentos precedentes, e para distingui-la daquela negritude definida por Césaire, que está na base, como matriz originária, de todos os movimentos acima mencionados.
PERSONALIDADE AFRICANA O conceito de «African Personality», que se opõe normalmente ao conceito de negritude, está estritamente ligado a Kwame Nkurumah, que por sua vez, depende de toda uma tradição de pensamento que remonta a Blyden. Edward Wilmont Blyden personagem de grande importância para a cultura negra do século XIX, pode ser considerado o pai do pensamento político africano. O ponto de partida de Blyden, como para os escritores da negritude, será a procura de um passado sobre o qual fundar a própria dignidade humana. Com as suas obras queria provar que a raça negra tinha uma história e uma cultura das quais podia orgulhar-se. Em «Voice from Bleeding Africa» (Monrovia 1856) ele fazia uma lista dos negros ilustres, como o teólogo e linguísta, J.E.J. Captein, o libertador de Haiti, Toussaint Louverture, e o líder abolicionista americano, Fredferick Douglass. Em «A Vindication of the Negro Race» (1857), ele refuta as teorias acerca da inferioridade racial do negro, e em «The Negro in Ancient History» (New York, «The Methodist Quartely», 1869), sustentava que os negros tinham desempenhado um papel importante na edificação da civilização egípcia. Mas o papel da raça negra na história da civilização não se devia procurar unicamente no passado, pois grande parte da grandeza da Europa e da América derivam da exploração da raça negra (Africa’s Service to the world, 1880). Em «Race and Study» (Freetown, 1895) Blyden, influenciado pelas teorias do francês Gobineau, assevera que as raças são diferentes entre elas, mesmo que depois negue a existência de uma hierarquia entre elas. Como mais tarde para Senghor, para Blyden o negro tinha atributos essenciais e únicos, que formavam a personalidade africana (expressão que será mais tarde retomada por Sylvester Williams em 1900, quando convocou em Londres o primeiro congresso pan-africano, e difundida por Kwame Nkurumah), destinada a exprimir-se através do cumprimento de uma missão especial. «Para cada um de vós» escrevia Blyden (¹) «Para cada um de nós» existe um dever especial a cumprir, um trabalho terrivelmente necessário e importante, um trabalho para a raça à qual pertencemos. A nossa personalidade e a nossa raça pressupõem a existência de uma responsabilidade. O dever de cada um, e de cada raça é lutar pela própria individualidade, para mantê-la e desenvolvê-la. Portanto orai e amai a vossa raça. Se não fordes vós mesmos, se abdicardes da vossa personalidade, não havereis deixado nada no mundo. Não tereis satisfação, utilidade, nada que atraia ou fascine os homens, porque com a supressão da vossa individualidade havereis perdido o vosso carácter distintivo. Vereis, então que ter abdicado da vossa personalidade, significará ter abdicado da missão e da glória particular a qual sois chamados. Seria de facto renunciar à vossa divina individualidade, o que seria o pior dos suicídios. Blyden via a personalidade africana segundo a mesma perspectiva dos criadores da negritude:
como antítese da civilização europeia. Se esta era dura, individualista, competitiva, materialista e fundada sobre o culto da ciência e da técnica, aquela é doce e humana. Em «African Life and Customs» (1908), a África será objecto do esforço importante de um estudo sociológico, sublinhando o seu sistema socializante, cooperativo e equitativo. Blyden mostrava como os costumes e as instituições da África negra são conformes com as necessidades dos africanos. Ao contrário dos que o precederam, Blyden não tomava a Europa como ponto de referência para explicar a África, mas pensava-a como uma entidade autónoma, como referência imediata ao negro. Ele acreditava numa civilização africana milenária e viva, animada por valores morais e espirituais elevados. A contribuição africana para a civilização mundial, devia, portanto ser de ordem espiritual; ele via na África a «depositária espiritual do mundo». É importante sublinhar que este papel, no pensamento de Blyden, devia ser partilhado com a raça hebraica. Estas duas raças, que tinham em comum um destino de sofrimento, tinham podido desenvolver, através da dor, o lado espiritual da própria natureza, o que as tinha preparado para se tornarem os chefes espirituais do mundo («The Jewish Question», Liverpool, 1889). Esta ideia foi mais tarde retomada por Senghor. Blyden encarava os problemas africanos em termos continentais, os seus esforços tendiam praticamente para criar na África Ocidental, uma larga unidade política de nações federais, e convencer os ingleses a transformarem-na num protectorado, com vista a uma independência futura. Ele profetizou de facto, que o imperialismo europeu duraria pouco e cederia o lugar a nações independentes. Por isso encorajou uma cooperação entre o Islão e o Cristianismo. Porém, quando o advogado da Trindade, Sylvester Williams reúne Londres, em 1900, o primeiro congresso Pan-africano, Blyden não dará o seu apoio. Não obstante o seu pan-africanismo, ele não podia admitir, que tal movimento aderissem mulatos como W.E.B. DuBois. Queria que no movimento participassem simplesmente os «negros puros», atingindo assim posições racistas de matiz ocidental. Discípulo de Blyden, o advogado ganiano Josef Casely-Hayford, foi o primeiro teórico da unidade africana, no sentido de uma associação política de territórios africanos. A sua obra «Ethiopia Unbound» está animada de um nacionalismo, pela paixão racial, que começa, como para Blyden, com a ideia de uma regeneração espiritual da humanidade, graças à África. Todavia, este elemento messiânico é para ele menos importante que a realidade actual da África: o que lhe interessava, não era tanto a especificidade imanente de todos os negros, quanto as suas condições efectivas e as suas instituições. O africanismo dos intelectuais anglófonos, sobretudo daqueles que evoluíam no Gana entre as duas guerras, era caracterizado por um certo empirísmo de tipo inglês, que os levava a fugir de generalizações, e a estudar as singulares instituições africanas, a tradição oral e o passado histórico dos próprios povos ou tribos. Foi nesta direcção que se orientaram grandes escritores e «leaders», como Namdi Azijiwe, Jomo Kenyatta, etc. exactamente no momento em que a negritude nascia em Paris. Quanto a Kwame Nkurumah, a sua posição em relação à negritude foi-se evoluindo. Recordemos, aliás, que, antes de ser um nacionalista africano, ele foi militante pan-negro. Quando em 1947, se encontrou Senghor, a sua acção política fundamentava-se num nacionalismo cultural muito semelhante ao nacionalismo dos fundadores da negritude. A separação conceptual entre as duas ideologias acentuar-se-à depois de 1957, isto é, depois da
independência do Gana, quando Nkurumah é levado a dar prioridade à questão da unidade continental africana em relação aos movimentos pan-negros. A África deixava de ser o coração de todo o mundo negro, perdia o seu aspecto racial, para se tornar uma identidade geo-política. As preocupações de Nkurumah não eram tanto culturais quanto políticas. Se Nkurumah se opunha à negritude, fazia-o de maneira limitada. Aquela especificidade que para Senghor era negra, ele aplicava-a ao mundo africano. Considerava-a uma coisa óbvia: um dado que não necessitava de nenhuma análise. Ele passava imediatamente à conceitualização das novas relações de tal personalidade com o mundo. O «consciencismo» tinha para Nkurumah o objectivo de conter ao mesmo tempo a experiência africana da presença muçulmana e eurocristã, e a da sociedade tradicional. A fusão destes factores, no «conciencismo», tinha a finalidade de promover um desenvolvimento harmonioso da sociedade africana. O que não era discordante da negritude, que previa, de facto, uma síntese das diferentes forças culturais que agiram e agem em África. Também no campo social, o pensamento de Nkurumah partia das mesmas premissas que Senghor,; fundava-se sobre a necessidade de se inspirar nas instituições autóctones, cujo traço característico era, para ele, o espírito comunitário. «O vulto tradicional da África», escreve Nkurumah, «implica uma atitude em relação ao homem que, nas suas manifestações sociais, não pode deixar de ser classificada de socialista. Isto, porque na África, o homem é considerado antes de mais um ser espiritual, dotado desde o início de uma certa dignidade, integridade e valor intrínseco». Tal como para Nyerere e Senghor, para Nkurumah o socialismo africano resultava da integração de valores deste humanismo na vida moderna. O consciencismo é antes de mais, uma festa do materialismo dialéctico; contra os africanos, incluindo os membros do seu circulo, que objectavam que o ateísmo marxista tornava o marxismo inaceitável em África, Nkurumah quer demonstrar que o ateísmo não é uma condição sine qua non da adesão ao marxismo, ou pelo menos do materialismo. Por outro lado, pretende mostrar que o conteúdo essencial do socialismo, a afirmação do igualitarismo, longe de se opor às tradições socioculturais africanas, e pelo contrário o seu desenvolvimento e aplicação no mundo moderno. Nkurumah declara que a «filosofia do consciencismo pretende assegurar o desenvolvimento de cada indivíduo» (²). K. Nnkurumah, é sobretudo o grande teórico da unidade africana, à qual dedicou um livro: «a África deve unir-se». A unidade que ele reclama é bem a unificação política que faria da África uma só nação com um único governo central. Inspirando-se na constituição americana, Nkurumah considera continental, os diversos estados existentes conservariam a sua soberania, embora deixando ao governo continental o poder de decisão nos sectores chaves: Defesa, Negócios Estrangeiros, Economia. Na visão de Nkurumah, o essencial é efectivamente o governo central, que, só ele, permite estabelecer uma linha política única para o novo Estado. Os Estados africanos, individualmente considerados, são demasiados fracos perante as grandes potências da Europa e da América. Esta fraqueza leva-os a procurar a sua segurança em acordos com as ex-potências coloniais ou com as potências neocoloniais, permitindo, eventualmente, que sejam utilizados uns contra os outros, a favor de alianças ou rivalidades dessas mesmas potências imperialistas. Seja como for, o carácter arbitrário das fronteiras herdadas da partilha colonial da
África repartiu as populações étnicamente idênticas por diversos estados; trata-se de um estado de coisas que, sob a direcção desse governo se manteriam iguais em direitos e que pode, a todo o momento, dar origem a conflitos interafricanos que serão utilizados, ou mesmo segundo a expressão de, «teleguiados» por essas mesmas forças imperialistas. A resposta é que é evidente que a unificação da África faria desaparecer toda e qualquer possibilidade de divisões desse tipo. Sair do seu subdesenvolvimento, no quadro dos Estados, a maior parte dos quais não dispõe de uma população suficiente – tanto do ponto de vista do mercado, como dos recursos em mão-deobra -, nem de capitais necessários, nem mesmo de possibilidades de acumular num prazo relativamente curto, eis o que parece ao autor um empreendimento extremamente difícil e mesmo impossível. A solução para ele reside numa política de planificação de toda a África; e esta direcção única da reconstrução económica do continente implica a unidade e, portanto, o governo continental. J.P. Sarte afirmou no «Orphée Noir», que a negritude era um momento negativo de uma progressão dialéctica, e portanto um momento histórico, destinado a resolver-se e destruir-se, numa síntese mais vasta. O martiniquês, Franz Fanon confessara ter lido tal definição com desdém e dor: «Quando li aquelas páginas, senti que me privavam da minha última possibilidade... J.P. Sartre, neste estudo, destruiu o entusiasmo negro». Era um testemunho importante sobre o valor da negritude, como ideologia capaz de criar uma base de luta comum para toda a raça negra. Ela surgia, aliás, a Fanon como a única coisa que podia alimentar o entusiasmo de um povo destruído. Este testemunho é tanto mais importante, quanto vinha de um homem que viria a tornar-se mais tarde num crítico áspero de tal movimento, que definiria, por fim, como museu de sarcófagos. F. Fanon tinha começado a sua reflexão por posições idênticas às da negritude. Aliás, a poesia da negritude tinha-o exaltado, a ponto de o transformar no seu defensor mais convicto, quando Sartre ousou por em dúvida a sua durabilidade. «Peau Noire, Masques Blancs» continha um testemunho claro da sua adesão aos dogmas da negritude: «Tinha atribuído uma racionalidade ao mundo à minha volta, mas este tinha-me recusado por causa dos seus preconceitos irracionais. Uma vez que sobre o plano da racionalidade não era possível entendermo-nos, voltei-me para a irracionalidade. Torneime irracional até aos miolos. O tam-tam batia ao ritmo da minha mensagem cósmica. Abri as veias do mundo e deixei-me fecundar por elas. Se não encontrei a minha proveniência, encontrei pelos menos o meu princípio» (³). A estas linhas que podiam ser assinadas por Césaire, seguiam-se outras do estilo senghoriano: «Com fervor dediquei-me ao reino do passado negro. O que encontrei? Schoelcher, Frobenius, Westermann, Delafosse. Todos cientistas brancos, que tinham já vasculhado, examinado e revisto todas as coisas daquele reino» (4). E a conclusão era a seguinte: «Eu nunca fui um princípio, ainda menos um meio homem. Eu pertencia a uma raça, que, já há dois mil anos, tinha conhecido a arte do trabalho do ouro e da prata».
Como Fanon, o crítico alemão Janheinz Jahn, recusa-se a considerar o fenómeno da negritude em função de um certo momento histórico, e via-o pelo contrário como o retorno consciente à tradição ancestral que durante séculos, nunca tinha sido interrompida. Ele reconhecia os sinais, nas obras e nos comportamentos passados e presentes de todo o mundo negro. Todavia, ele não definia os elementos distintivos como imanentes de uma pressuposta «essência negra» de tipo racial, e negava explicitamente que a civilização estivesse ligada aos cromossomas. Ela dependia, pelo contrário, de múltiplos e remotos dados histórico-geográficos, e não de uma específica situação actual. A mesma ideia era retomada por Lilyan Kesteloot, na sua obra: «Les Ecrivains Noirs de langue francaise. Naissance d’une litterature», na qual sustentava que a constante desta específica maneira de «estar-no-mundo», do negro, não estava ligada à raça, mas a um clima cultural que o negro vivia desde há muitos séculos. Não se deviam, portanto, confundir tais características com uma imaginária «essência negra», porquanto o negro não era por essência diferente do branco. L. Kesteloot via-a, pelo cotrário, como uma concepção de vida, dominada por dois tipos de fenómenos: 1) Fenómenos de civilização, que apresentavam características constantes e uma psicologia particular; 2) Fenómenos históricos, isto é a escravatura e o coloialismo, que determinaram aquelas «perturbações» psíquicas, analisados por Fanon numa obra posterior. Com efeito, a experiência argelina transformou Fanon de apóstolo e assertor da negritude, num dos seus maiores críticos e acusadores. Em «os Danados da Terra» (5), Fanon analisa as razões, ou melhor os impulsos emotivos que tinham levado os intelectuais negros, e em particular os do grupo da negritude, a empreender aquele regresso às origens; ele considerava este esforço da parte de uma elite de desenraízados para retomar contacto com as massas africanas, desesperado e raivoso. Por outro lado, uma vez que a condenação do negro, por parte dos ocidentais, era à escala continental, a reabilitação que estes intelectuais tentavam, devia ser da África na sua totalidade, ou ainda melhor a do negro a do negro como raça. Fanon acusa a negritude de ignorar a África actual e os seus problemas: «todas as eventuais provas acerca de uma prodigiosa civilização Songhai, não muda em nada que os songhais de hoje são sub-alimentados, analfabetos» (6). Mas esta situação, o africano ocidentalizado não conseguia aceitar – basta pensar na poesia «Eu não amo a África» de Paul Niger - , porque o diminuía. Em nome da realidade da África actual, Fanon contesta o postulado da negritude, de antepor o cultural ao político. «O intelectual colonizado» escreve ele (7), «que retorna ao próprio povo através de obras culturais, comporta-se como um estrangeiro. Às vezes não hesitará em usar as línguas africanas, para manifestar a vontade de estar mais próximo do próprio povo, mas as ideias que exprimem as preocupações que estão nele, não se adequam de nenhuma maneira à situação que conhecem os homens e as mulheres do seu país». Porque, «não chega procurar libertar-se acumulando proclamações e denúncias. Não basta atingir o povo naquele passado que já não existe e onde ele já não se encontra, mas naquele modo de mudança que ele acaba de iniciar, e a partir do qual tudo será posto em causa» (8). Eis que se delineia um diferente conceito de cultura, que para Fanon deve ser mais nacional, actual, expressão dos «esforços feitos pelo povo no plano do pensamento para descrever, justificar e cantar a acção através da qual o povo se constituiu e se manteve». Isto leva à condenação de uma cultura negra unitária e do retorno à tradição. «Os africanos de cultura, que se batem em nome da cultura negro-africana, que multiplicam congressos em nome da unidade desta cultura devem dar-se conta que as suas actividades se reduzem à confrontação de partes e a
comparar sarcófagos» (9). Fanon que tinha gritado escandalizado, alguns anos antes, Sartre considerou o movimento da negritude como contigente e transitório, acabava por alinhar nas posições sartrianas. Uma outra crítica vem do prémio Nobel da literatura, Wole Soyinka, grande dramaturgo, romancista e poeta. Soyinka pertencia a uma geração que tinha já ultrapassado as simples atitudes anti-colonialistas, e portanto, não se definia a partir de uma confrontação com o mundo de brancos. A sua revolta não é racial, é moral, não é contra a civilização de brancos que se deve lutar, mas contra a estupidez humana, seja branca ou negra. Ele nunca se destacou da realidade africana, as suas raízes nunca foram arrancadas, e portanto não tem necessidade de viagens místicas no país dos antepassados. Os antepassados ele trá-los consigo, nele mesmo, como cada homem traz consigo o próprio passado e o dos outros. Césaire tinha dito que o intelectual africano devia ser o construtor de almas. Contudo, formar uma alma não significa, para Soyinka, alimentá-la com mitos, mas pô-la diante da própria verdade, por mais ignóbil que ela possa ser. Assim, enquanto os poetas da negritude edificavam so grandes destinos nacionais e africanos, ao som de grandes ritmos de «tam tam», entre um cenário exótico, com almas e pirâmides, e exaltam o passado tradicional, como o fulcro puro donde devia nascer o «diamante negro», Soyinca mostrava a ilusória vaidade do passado. No drama «The dance of the Forest» (10), publicada em Londres em 1963, escolhido para representar o teatro nigeriano, por ocasião dos festejos da independência do seu país, ele fazia reviver aos próprios protagonistas, em transe, a vida de alguns antepassados mortos, e esta experiência leváva-os a descobrir nos antepassados as suas próprias misérias humanas, e a compreender que nos iludimos sempre numa falsa imagem do passado. No romance «The Interpreters» (¹¹), Soyinka apresenta um grupo de jovens intelectuais e artistas negro-africanos à procura do sentido da vida. Entre eles está um pintor, que desenha, num grande quadro, o panteão Yoruba. Os seus amigos posam para ele, e vêm reinterpretados nos termos das divindades antigas. Esta espécie de identificação com as personagens míticas da região antiga, leva-os a descobrir os impulsos secretos dos seus desejos e das suas acções. O passado justifica-se, portanto, como espelho do presente, é um meio para uma tomada de consciência. Isto não consente nenhuma idealização dos costumes tradicionais africanos, e ainda menos um esforço para restabelecê-los. Não há nenhuma necessidade de restaurar o passado, porque ele vive no presente. Este esforço que Soyinka atribui ao grupo da negritude, parece-lhe suspeito. Soyinka insurge-se contra a negritude, que «que se contentou em voltar o olhar para trás, em busca de tesouros esquecidos que teriam ofuscado o mundo actual. Mas nunca olha sinceramente para si mesmo, nunca olha para o presente». E continua: «o escritor africano deve ser rapidamente libertado das garras do passado. É claro que o passado existe, a realidade da consciência africana atesta isso: o passado existe agora, neste momento preciso, coexiste com e na consciência actual, clarifica o presente e explica o futuro, mas não é um luxo que autoriza evasões edonistas, porque o passado é inerente à sensibilidade de quem o evoca. O mito de uma nobreza absurda, de uma essência racial que deveria salvar o homem branco da depravação, já teve o seu tempo». Soyinka não vê, então, outra alternativa para o pensador africano, se não agir no meio da própria sociedade como consciência, como testemunha lúcida da realidade e do tempo. Mas não se pode continuar a invocar as preocupações universalistas como distracções a aplicar, como bálsamo, sobre feridas abstractas, em vez de as aplicar sobre as pregas abertas pela imaturidade negra. A cultura reforça a sociedade, mas tal cultura não deve ser mitológica. «A negritude era um luxo intelectual que tinha importância e utilidade só para um pequeníssimo
número de pessoas, a elite». Ele não nega a importância histórica da negritude, mas ela tinha de atrofiar-se fatalmente, porque ao contrário do movimento negro-americano – o qual ele punha sem reticências no mesmo plano - , a negritude não correspondia às aspirações profundas do povo. Nunca teve nada a ver com o seu modo de vida. Aliás, a negritude fazia parte do jogo europeu, porque aceitava a dominação francesa. Era um simples prolongamento do intelectualismo francês (¹²). Não obstante esta literatura não seja elaborada de maneira filosoficamente sistemática e explícita, historiadores da filosofia como Elungu P.E.A. não hesitaram em considerá-la «literatura filosófica de conotação ideológica». Aliás a primeira manifestação explícita de uma reflexão filosófica, especificamente africana. Assim olhada no contexto social que está na sua origem, a ideia da filosofia africana surge e desenvolve-se como afirmação de uma «ipseidade» e pela reivindicação da liberdade negadas pela cultura ocidental. A razão foi sempre considerada como o que separa o homem dos outros seres. Instituindo o «logos» como juiz de todo o discurso, de todo o pensamento e de toda a conduta, Platão considera a razão como valor supremo, sinal metafísico da presença do divino no homem. Contudo, a razão foi completamente extirpada da África. O mundo tradicional africano foi considerado mau, primitivo e pré-racional: ele é o reino da indigência sob todas as formas. Equivale à ignorância e ao desconhecimento da verdade. Lévy-Brhul sustentava, de facto, que as sociedades inferiores eram guiadas por uma mentalidade pré-lógica e mística, qualitativamente diferente da lógica do homem europeu civilizado. Os primitivos não atingiram o nível do conceito, portanto de razão. As sociedades africanas são citadas como sociedades inferiores. Hegel, por sua vez, faz da filosofia um monopólio exclusivo do Ocidente. A liberdade, expressão mais elevada do pensamento, supõe que o homem se libertou da finidade e da naturalidade e apreendeu o infinitoe a totalidade. Isto exprime-se numa organização política e social, orientada e guiada pelo princípio de liberdade. Hegel escreve: «É no povo grego que nós encontramos pela primeira vez esta noção de liberdade e por esta razão, é lá que começa a filosofia». A África está fora do movimento da história universal, porque nela e dela não emergiram nem a razão, nem a liberdade. A África, diz Hegel, «é o país da infância» e o negro «representa a natureza no seu estado mais selvagem. Para entendê-lo, tem que se abstrair de toda a moralidade, de todo o sentimentalismo. Hegel precisa, «no seu carácter não podemos encontrar nada que nos recorde o homem». Colonizar, assim, era para o Ocidente, arrancar os povos africanos à sua perdição, libertá-los das suas trevas, trazê-los à luz natural da razão, que ainda não possuiam;em resumo, humanizá-los. Assim era negado o espaço e o tempo vividos pelo africano, a sua historicidade era substituída por outras formas de existência. Existe a imagem que o branco faz dele (do negro) - escreve Senghor -, que é a de um semihomem, de um homem criança, inconsciente e tarado, cujas faculdades intelectuais e morais não foram ainda desenvolvidas. É um sentimento estranho, afirmava já DuBois, a impressão de olhar para si próprio, sempre através dos olhos dos outros, de medir a sua alma à escala do mundo, que olha para nós com gozo, desprezo e piedade. Os intelectuais africanos não querem continuar a aceitar a ideia de que a Europa é o centro último da cultura e do pensamento na sua forma mais completa. Voltando-se para si próprios, procuram mostrar que África não ignora o pensamento, a cultura e a civilização; simplesmente que a razão e a cultura se manifestam de maneira diferente. O objectivo é acabar com os preconceitos, a fim de fazer reconhecer o mundo africano por aquilo que é. Esta necessidade de reconhecimento é legítima, pois a consciência de si começa a existir simplesmente a partir do
momento em que é reconhecida. Só assim é que ela pode tomar o caminho da liberdade e tornarse fautor da própria história. Mostrando que o africano é um ser de «razão», através da manifestação de uma filosofia «autenticamente africana», destruímos o argumento principal da ideologia colonial. Um dos fundamentos históricos deste momento da «filosofia africana» foi a reivindicação da soberania política do continente.
DA ETNOLOGIA À ETNO-FILOSOFIA Para o professor da Universidade Nacional do Zaire, Ngoma Binda (¹), o aparecimento em 1945, no Zaire, da tradução da obra do padre belga, placide Tempels (2), em 1945; intitulado «Filosofia Bantu», marcou o início da produção filosófica escrita. Partindo de dados etnográficos, e servindo-se da filosofia escolástica como modelo, o missionário belga tenta elaborar uma filosofia sistemática do homem negro. A sua tese principal é que o comportamento do Bantu deve ser compreendido como um comportamento racional, que se apoia sobre um sistema de pensamento coerente. Isto levou-o a afirmar que o negro é plenamente homem, e que o grande pecado do colonizador foi tê-lo reduzido à dimensão de criança ou de um semi-homem, de pensar que ele era inferior, e de tratá-lo como tal. Tempels convida a administração colonial a uma séria auto-crítica, justamente por ter ignorado os valores e as práticas culturais do povo Bantu. A questão principal para Tempels era a humanidade do negro e mais genericamente do primitivo. O reconhecimento desta humanidade, portanto, de uma filosofia Bantu, é a primeira condição necessária e quase suficiente para a normalização das relações entre as raças e para a resolução da crise política nas colónias. A filosofia Bantu de Tempels pretende também ser uma crítica à teoria do «prélogismo» de Lévy-Brhul. Ao contrário de Bruhl, Tempels descobre nos povos negros um sistema de princípios, que é um conjunto de ideias, um sistema lógico, uma filosofia completa do universo, do homem e das coisas que o circundam, da existência, da vida, da morte e da sobrevivência. Em suma, «uma ontologia logicamente coerente». Neste sentido, a filosofia de Tempels apresentava-se como a realização etnológica por excelência; isto é, uma ciência que permite compreender verdadeiramente os primitivos, com tudo o que tal compreensão pressupõe de penetração filosófica. E uma vez conquistada esta penetração, ela oferecerá a chave de todos os enigmas, de todos os aspectos do comportamento do homem primitivo. O sistema ontológico negro foi elaborado através dos tempos. Ele escapa ao pensamento conceptual, pessoal, consciente dos bantus actuais. A ordem ontológica do bantu é portanto directa, colectiva e imediata. As estruturas ontológicas bantus não podem ser apreendidas pelo próprio bantu, cabe ao europeu fazê-lo através do estudo das disciplinas que têm o bantu como objecto de estudo: o conhecimento profundo da língua, um estudo avançado e sério da etnologia, etc. Em todo o caso, o acesso à visão bantu do mundo, pressupõe uma grande familiaridade com as matérias que têm o Bantu como objecto de estudo. «Não pretendemos dizer que o Bantu seja capaz de apresentar um tratado de filosofia, exposto através de um vocabulário adequado, diz Tempels; só a nossa formação intelectual nos pode permitir um desenvolvimento sistemático. Nós é que podemos dizerlhe de uma exacta, qual é o conteúdo das suas concepções de ser, de tal maneira que se reconheça nas nossas palavras e possa concordar dizendo: tu compreendeste-me completamente, tu ‘sabes’ da mesma maneira
que nós sabemos». O valor supremo do bantu é a força vital, que por sua vez está inseparavelmente ligado ao ser. Portanto, o ser é quem possui a força, o ser e a força, que a nível da psicologia, mais tarde Tempels transforma numa força pessoal, e a nível moral, se o mal existe, é enquanto etapa em direcção à restauração vital. O conhecimento e o reconhecimento desta filosofia não muda em nada a missão fundamental que Tempels e a civilização ocidental tinham a incumbência de realizar : civilizar o negro. Pois se é verdade que existe uma filosofia do negro, ela é diferente na forma e no conteúdo da filosofia europeia. A filosofia Bantu não é como queria LévyBrhul, pré-lógica, ela é lógica, mas de uma logicidade menor. Por outro lado, o Bantu não exprime um pensamento lógico pessoal e coerente. A sua ordem ontológica é directa, colectiva e imediata. O civilizado deve antes de mais reflectir e apreender as estruturas ontológicas bantus, que o próprio bantu não consegue apreender, para depois elevá-lo à dimensão da civilização acerca das realidades imediatas, condição necessária para um discernimento filosófico. A civilização levará o negro a uma redescoberta reflectida (filosófica) da sua sabedoria. Sobre a senda de Tempels, Alexis Kagame (³) vai escrever dez anos mais tarde uma obra intitulada: «A filosofia Bantu Ruandês do Ser». Como Tempels, Kagame crê na existência de um sistema filosófico Bantu. Ele introduz-se na estrada traçada por Tempels, para como Tempels, desvendar o sistema ontológico Bantu, escolhendo como inspirador e instrumento de trabalho a filosofia aristotélica. Contudo Kagame vai realizar a sua empresa através de uma análise gramatical rigorosa das estruturas linguísticas. A sua reflexão vai desenvolver-se a partir de uma língua particular, o Kiryarwanda. A língua é a chave de leitura escolhida, através da qual, Kagame se propõe apreender a maneira bantu de conceber o universo. Ele tentou traçar um quadro de categorias ontológicas bantus, com a intenção manifesta de realizar o que Aristóteles tinha feito com a língua grega. Por outras palavras, ele pensou que questionando a gramática e as categorias gramaticais das línguas Bantus, se podiam descobrir as articulações do real. Ele comparou assim as categorias «bantu» com as categorias aristotélicas. Assim, chegou a quatro categorias metafísicas bantus que correspondem às dez categorias de Aristóteles. A primeira categoria é «umuntu» que designa o homem, isto é o ser dotado de inteligência. A segunda categoria é o «ikintu»; são as coisas, os seres privados de inteligência. Estas duas categorias correspondem à categoria de substância. A terceira categoria é o «hantu», que conota, ao mesmo tempo, as categorias do lugar e do tempo. A quarta categoria é o «ukuntu» que designa a modalidade, a qual engloba todas as outras categorias inumeradas por Aristóteles. Contrariamente a Tempels, que pensava que o sistema ontológico derivava do inconsciente e não tinha uma formulação em termos filosóficos adequados e exactos, Kagame afirma que «se existe uma filosofia no nosso substracto cultural, ela foi inevitavelmente formulada». De todos os documentos institucionalizados, a língua é sem margem de dúvida, a melhor formulação desta filosofia. Ela é o veículo da lógica formal, que Kagame afirma ser a mesma em todas as culturas. Assim, a lógica formal exprime-se na língua ruandesa retomando a divisão clássica entre a ideia, o juízo e o raciocínio. Sem estas relações não é possível falar de uma lógica formal própria aos bantus, pois os três problemas são idênticos em todas as línguas. Contudo, em todas as línguas
existe uma formação lógica de carácter humano, e por isso mesmo necessariamente universal, e uma formulação cultural que traduz os aspectos mutáveis e particulares dos povos. Os problemas tratados na lógica formal têm uma conotação humana, universal. A tarefa de Kagame é a de destrinçar a ligação existente entre a expressão da lógica universal, e a língua ruandesa. Nesta confrontação, a língua ruandesa elaboração cultural, como um documento institucionalizado. O método de Kagame consiste em procurar na estrutura da língua ruandesa o que Aristóteles tinha definido do pensamento, como forma e como conteúdo. Sob o ponto de vista formal, a descoberta de elementos filosóficos na estrutura do ruandês, equivale à afirmação da existência de um pensamento formal no seio do povo ruandês, cuja característica principal é abstrair, definir, em resumo, elaborar conceitos. Através dum esforço de análise e de comparação, Aristóteles tinha chegado a elaboração de dez conceitos irredutíveis uns aos outros. São as dez categorias. Na língua ruandesa, Kayame reconhece simplesmente quatro categorias. Na lógica formal ruandesa não existe nenhum conceito com o conteúdo de «substância», que é a primeira das dez categorias de Aristóteles. Entretanto, duas categorias ruandesas parecem corresponder o conceito aristotélico de substância: Umuntu e Ikintu: ser de inteligência ou homem, e ser sem inteligência ou coisa. Uma vez que o termo ruandês para exprimir lugar e tempo é o mesmo, Kagame engloba-os numa categoria única. E por fim, os ruandeses não conceberam os termos abstractos de quantidade e qualidade. Por conseguinte, mesmo se a estrutura linguística ruandesa nos revela neste povo a existência do pensamento como poder de abstração, de análise e de definição, formalmente idêntica ao pensamento de Aristóteles, o pensamento deste último parece mais abstracto, mais analítico, mais lógico. O pensamento que Kagame reconhece aos ruandeses, parece mais concreto, mais englobante, mais intuitivo. Com efeito, ele fala muitas vezes dos Banturuandeses como filósofos intuitivos, metafísicos intuitivos. A língua do Ruanda exprime um pensamento, uma certa capacidade de apreender o ser. Contudo, ela aparece como uma língua não desenvolvida, um pensamento não desenvolvido, um pensamento ainda num estádio mais primitivo, do que a língua mais lógica e mais metafísica de Aristóteles. Segundo Kagame, é a lógica que eleva o pensamento, ao ponto de permitir-lhe pôr o problema do ser enquanto tal. Ora ele considera que os bantus com a sua filosofia, ainda não atingiram formalmente este grau de abstracção. Eles não tiveram, propriamente, uma verdadeira filosofia. Existiram filósofos intuitivos sem filosofia, metafísicos de génio e intuitivos sem metafísica. A filosofia Bantu-Ruandesa do ser não é uma filosofia como podia ser a filosofia de Aristóteles, pois sendo um pensamento intuitivo, discurso directo sobre as coisas discurso directo sobre as coisas, é pobre em «categorias lógicas». E sobretudo falta-lhe um projecto. A língua grega não teria chegado a justificar a filosofia se não tivesse existido um projecto-Aristóteles capaz de justificar a ordem das coisas. E foi neste esforço aristotélico de justificação que se desenvolveu a lógica. Tempels e Kagame foram acusados de terem iniciado uma corrente de pensamento, a etnofilosofia, que se limitaria a prolongar os esforços dos etnólogos no esforço de compreender especificamente o homem africano. Com efeito, sobre as sendas de Tempels e Kagame proliferou uma reflexão filosófica africana que se materializa é considerada como uma através de um enriquecimento constante e progressivo de uma bibliografia correspondente. O zairense Ntite Mukendi ao mesmo tempo que proclama tomada a sua admiração por Kagame, avança algumas reservas sobre os seus trabalhos linguísticos. Lamenta que Kagame não se tenha
interessado em saber, se as palavras escolhidas como palavras chaves, são realmente «endógenas» em relação às línguas que ele utiliza. O método utilizado por Kagame não é fecundo; é uma simples análise tradicional de líguas africanas, susceptível de ser confirmada ou desmentida por dados resultantes dos costumes, fábulas e outros mitos. Kagame, no seu esforço de elaborar uma filosofia «Bantu», fala do estudo das línguas africanas, mas o seu estudo é superficial. Pois, não desce ao nível dos mecanismos que constituem a essência das línguas. Este defeito transformou o trabalho de Kagame numa segunda aproximação na senda de Tempels (4). Segundo Ngoma Binda, kagame contribui para viciar a filosofia Bantu, substituindo o «ntu» pelo conceito templessiano de «força». De facto, o «ntu» não deriva de nenhum verbo ser Bantu, não pode ser o ponto de partida de nenhuma ontologia no sentido aristotélico, isto é, no sentido em que Kagame compreende a ontologia que ele quer demonstrar nos povos bantu: o estudo do ser enquanto ser (5). Alexis Kagame é o pai da etno-filosofia africana como sustenta Hountondji.
DA ETNO-FILOSOFIA À FILOSOFIA CRÍTICA O que os pensadores, ditos críticos como Franz Chahay, E. Boulaga, M. Towa, Hountondji e outros reprovaram aos «etno-filosóficos», não é tanto o uso da etnologia, quanto o uso filosófico da etnologia. Os pensadores «críticos» consideram o esforço dos «etno-filósofos» regressivo, pois fazem uma filosofia que se ignora a si mesma. O filósofo de tal filosofia transforma-se num simples observador, ou quando muito, sintetiza um pensamento que nunca será seu, um pensamento já constituído, estático e inconsciente. Este tipo de filosofia não teria, segundo os filósofos-críticos, um carácter pessoal que toda a investigação filosófica deve comportar. Para a corrente crítica, existe filosofia simplesmente onde existem filósofos individuais e ser filósofo significa, lançarse pela via da procura livre e permanente da verdade, verdade que deve ser expressa e não completada. A dedicação livre e responsável ao discurso racional, exige uma ruptura com os mitos, com as ideias simplesmente recebidas, com as ideias já feitas. Este tipo de sistema filosófico leva simplesmente a procurar justificações das ideias, das opiniões, morais ou políticas que são todas aceites como valores autênticos e indiscutíveis. Por fim os críticos acusam os etno-filósofos de terem reduzido a filosofia, subordinando-a incondicionalmente, à religião e à política. Aimé Césaire tinha denunciado o carácter colonialista da obra de Tempels. Porém, para P.J. Hountondji vai o mérito ter sido o primeiro a fazer uma crítica sistemática da obra do missionário belga. Com Towa e Eboussi, Hountondji teve o mérito de revelar a relação entre a etno-filosofia e a negritude. Hountondji começa por constatar, que desde há trinta anos, existe um incremento constante e contínuo de uma literatura filosófica africana. Ora para ele, o problema de fundo da filosofia africana reside essencialmente na análise laboriosa destes textos, que temos à disposição, e não são mitos, no pensamento implícito ou no círculo misterioso das nossas almas. Por conseguinte, a filosofia como vê Hountondji, não é etnológica (sistema de pensamento implícito), mas literária (conjunto de textos) (¹). Existe aqui uma mudança teórica fundamental. A filosofia deixa de ser uma visão colectiva do mundo, espontânea, irreflectida e implícita como afirmam os etno-filósofos. A filosofia africana deixa de ser um sistema de crenças à qual aderem consciente ou inconscientemente todos os africanos em geral, ou mais especificamente os membros de uma etnia particular ou sociedade africana. É neste sentido que todas aquelas formas de filosofia, como a filosofia dogon, a filosofia diola, a filosofia yoruba, a filosofia serere, etc. são consideradas pura e simplesmente mitos. Não existe portanto, uma filosofia espontânea, assim como não existe nenhuma filosofia ocidental espontânea que reúna a unanimidade silenciosa de todos os ocidentais. A filosofia africana existe como todas as outras filosofias sob forma de literatura (²). A filosofia africana e literatura filosófica africana. Resta saber se esta literatura deve ser entendida no sentido rigoroso da palavra ou se nela se deve incluir, para além do número de textos escritos, também a palavra não escrita: o que normalmente chamamos tradição oral. Não obstante a aparência, este problema é complexo.
De facto, se fosse fácil, o texto escrito não seria outra coisa que uma simples descrição de um enunciado precedentemente oral, uma transcrição que não modificaria em nada o conteúdo e o impacto deste mesmo enunciado. Trata-se, portanto, de saber em que sentido conceber a «literatura filosófica africana»; se reduzí-la a literatura escrita (no sentido habitual e empírico do termo) ou se incluir nela também a literatura oral. Qual é, portanto, o papel e o estatuto da literatura oral e escrita? Segundo Hountondji, a tradição oral tem tendência a favorecer a consolidação do saber num sistema dogmático intangível; enquanto o registo através do arquivo tem a vantagem de possibilitar a transmissão de um indivíduo ao outro, de uma geração a outra, a crítica do saber. O que caracteriza e predomina numa tradição oral é o medo de esquecer. O homem é naturalmente levado a conservar todas as suas lembranças, a querer invocá-las, a repeti-las continuamente, a acumulá-las e a projectá-las num saber global pronto a ser aplicado em todas as circunstâncias e portanto eternalmente disponível, exactamente como fizeram os etno-filósofos. O espírito está de tal maneira preocupado em preservar, que é incapaz de uma atitude crítica. Ao contrário, na tradição escrita, graças ao recurso do suporte material, pode-se libertar a memória, à qual finalmente pode permitir-se esquecer, excluir provisoriamente, pôr em causa, interrogar, estando certa de poder encontrar, caso necessite, as suas aquisições anteriores. Garante de uma memória sempre possível, o arquivo torna supérflua a memória actual e liberta portanto o espírito. A ideia de uma literatura escrita capaz de gerar um arquivo, permite a Hountondji e a quase todos os membros da mesma corrente filosófica, conceber a filosofia como essencialmente crítica, uma história e não um sistema, um movimento do espírito fundamentado sobre uma contínua crítica e contra-crítica. Servir-se da escrita como meio de transmissão e de difusão, significa ter um meio através do qual interrogar e se necessário pôr em questão o saber acumulado. A literatura oral, não exclui pura e simplesmente toda a possibilidade de crítica como poderia parecer à primeira vista. Contudo, é um facto que a literatura simplesmente oral fecha a crítica num espaço limitado, favorecendo assim o aparecimento de uma cultura tradicionalista, conservadora e ciosa dos seus tesouros acumulados, e pensa neste sentido em multiplicar sem tempo nem espaço, para questioná-la; ela simplesmente cumulativa. Sendo uma reflexão crítica, a filosofia escrevendo as próprias memórias; conservando o seu jornal. Isto não significa que a filosofia enquanto actividade intelectual não seja possível numa sociedade de tradição oral. Só que a filosofia não pode ser reduzida a um puro resultado, a uma simples conclusão. A filosofia africana concebida como um conjunto de textos explícitos, produzidos por filósofos africanos, é uma hipótese e permanece como tal. Hipótese que o próprio Hountondji considera uma «definição minimal», que não obstante permaneça vaga e necessite de explicações ulteriores, serve para prevenir-nos, todas as vezes que nos servimos da nossa tradição oral como ponto de referência para a nossa especulação transforma-se assim numa cultura só pode desenvolver-se plenamente teórica e filosófica. Trata-se de demonstrar que os nossos
contos morais, as nossas lendas didácticas, os nossos aforismos, os nossos provérbios, etc.,aos quais normalmente se faz referência, não exprimem uma investigação, não são o resultado de uma investigação, não são uma filosofia, mas sim uma sabedoria. Transcrevendo-as, podemos conferir-lhes o valor de documentos filosóficos, isto é, podem servir de suposto para uma reflexão crítica e livre, e marcar com isso, o início de uma revolução no interior do problema da filosofia africana: uma nova estrutura teórica para a história da nossa filosofia. A definição da filosofia africana como literatura filosófica africana serve para libertar o projecto de uma história da filosofia africana, um projecto que seria impossível na linha de orientação da etno-filosofia. O projecto de uma história servirá também para pôr fim ao mito das sociedades sem história, caro a Hegel e à etnologia, às quais a etnofilosofia não soube resistir (³).muitas são as observações que emergiram desta definição, que aliás não pretende sequer ser definição. A primeira e mais frequente é querer saber se um pensamento tem de ser escrito sobre um papel para ser considerado filosófico. A ausência de transcrição não tira nada ao valor intrínseco de um discurso filosófico. Contudo, essa ausência impede-o de se integrar numa tradição teórica colectiva, de tomar lugar na história, como referência para nutrir discussões futuras. As peripécias de Sócrates não teriam chegado a dar origem à filosofia grega. Sócrates entrou numa história teórica da Grécia graças aos seus discípulos e concidadãos que escreveram, discutiram, criticaram e até deformaram o seu pensamento. A existência de uma filosofia africana depende da existência de filósofos africanos. E estes, se não escreverem as suas obras, não poderão fundar uma verdadeira filosofia. É importante recuperar as «migalhas filosóficas» dispersas na nossa tradição oral, conscientes que a verdadeira filosofia iniciará no preciso momento desta transcrição no momento exacto em que a memória fixando-se ao papiro, se submeterá a uma possibilidade crítica, a única capaz de fundar uma verdadeira filosofia. Nasce assim a necessidade de libertar o discurso, que consiste em mudar a perspectiva da investigação; ter os olhos voltados não em direcção ao passado, mas admitir que a filosofia africana é mais um projecto do futuro que alguma coisa segura e já encontrada. A filosofia africana não será, portanto, uma visão colectiva do mundo, uma «Weltanschauung», mas existirá como filosofia, na condição de confrontação do pensamento individual, de discussão, de debate. A filosofia africana deve, portanto, ser uma história e consequentemente um processo essencialmente aberto e descontínuo. Isto significa que tudo deve constituir uma investigação contínua, pois a filosofia é uma investigação perene, que se faz através de textos, os quais nos permitem e servem de elementos de confrontação e de discussão quer entre nós africanos, como com o resto do mundo. O objectivo não é comparar-se à Europa num terreno que ela estabeleceu historicamente. Tratase de caminhar com o homem e com todo homem. Por isso, é de importância fundamental a releitura de autores como Kagame, N’Kurumah e Senghor. Importante será também ler com prudência e método as nossas culturas, para descobrir nelas as fecundas contradições que indicam as grandes alternativas, as opções históricas que de uma maneira ou de outra nos levaram a estarmos onde estamos hoje. Devemos também ler a história das outras culturas, sem o
mínimo complexo. Para Marcien Towa (4), o acesso à soberania política marca o limite de toda a ideologia política baseada sobre a reivindicação do direito à iniciativa, à personalidade, a um destino separado – à qual a etno-filosofia, como a negritude se tinham votado -; pois o acto jurídico da independência constitui o reconhecimento solene desses direitos. Adquirido juridicamente o direito de dispormos de nós mesmos, o problema com que nos confrontamos hoje, já não é o reconhecimento de um direito, mas o seu exercício. Continuando a exprimir uma situação histórica ultrapassada, a etno-filosofia transformou-se pura e simplesmente numa ideologia, e a sua acção já não se inscreve num processo em devir e de emancipação africana. O método dos etno-filósofos consiste em dilatar a concepção de filosofia, de maneira a poder incluir nela as formas de pensamento especificamente africano. Assim, o conceito de filosofia dilata-se até ganhar a mesma extensão do conceito de cultura, no sentido sociológico do termo, obtido em oposição ao comportamento animal. Diferencia-se de um tal comportamento, mas fica indiscernível de toda a forma cultural, quer ela seja mítica, religiosa, poética, artística, científica, etc. A etno-filosofia consiste portanto em interpretar as instituições, os costumes, as crenças, as lendas, os contos e os mitos, e em procurar identificar a ligação que assegura a sua coesão, a sua estrutura de conjunto. Esta ligação geral não seria outra coisa que a filosofia negro-africana na sua especificidade. O facto de os nossos antepassados terem na sua época pensado os seus problemas, não nos dispensa de pensarmos a nossa situação histórica, nem de sermos senhores do nosso destino. Segundo Towa o resultado mais óbvio a que chegou a etno-filosofia é de ordem terminológica. A oposição estabelecida desde há muito tempo, entre o pensamento tradicional africano e a filosofia permanece intacta, depois do esforço de demonstrar a existência de uma filosofia negroafricana original. Pretende-se simplesmente que as obras tomem doravante o nome de filosofia. Esta inclusão nutre os dois termos de oposição, mas simplesmente, uma modificação terminológica: alargou-se o sentido do conceito de filosofia. Antes e depois desta modificação puramente verbal, os modos de pensamento africano permanecem idênticos e opõem-se radicalmente aos europeus. Um segundo resultado resguarda a atitude a certas produções do pensamento africano como nos apresentarem diante deles numa atitude de destaque científico, os autores que vivem à procura de uma filosofia autênticamente africana, conferem-lhes m valor normativo em relação à verdade e à acção, de forma que a sua maneira de proceder não é, nem puramente filosófica, nem puramente etnológica, mas sim eno-filosófica. Com efeito, a etno-filosofia expõe objectivamente as crenças, os mitos, os ritos; depois bruscamente, esta exposição objectiva e sublimada numa profissão de fé metafísica, sem se preocupar em confutar a filosofia ocidental, nem em fundamentar a razão da sua adesão ao pensamento africano. Por conseguinte, a etno-filosofia acaba traindo ao mesmo tempo a filosofia e a etnologia, pois o etnólgo descreve, expõe, explica, ma não se compromete quanto ao fundamento do que expõe e explica. Ele trai também a filosofia porque a pedra angular que lhe permite fazer uma esolha entre as diferentes opiniões é antes de mais a pertença ou não à tradição
africana, enquanto que uma exposição filosófica é sempre uma argumentação, uma demonstração e uma confutuação. A etno-filosofia é uma via de facilidade, que faz economia ao mesmo tempo das técnicas e dos métodos de investigação etnológicas e da discussão filosófica das ideias e dos valores avançados, e tudo em nome da africanicidade. Ainda por cima através dos muitos impasses a que chegou, demonstrou a sua grande esterilidade. Substraindo-se às exigências científicas do inquérito e da investigação, esquivando-se ao debate filosófico sobre as ideias e os valores, a etno-filosofia é obrigada a recorrer ao dogmatismo, no qual a negritude entendida como retorno às fontes culturais no orgulho reencontrado, perverteu-se de tal maneira a tornar-se num simples «magister dixit». Devido ao seu dogmatismo, as ideias avançadas pela etno-filosofia, são estáticas e não são susceptíveis de qualquer desenvolvimento. Até aqui o debate sobre a filosofia africana desenrolou-se em volta da sua própria existência e possibilidade, das aptidões das culturas africanas para o modo de pensar filosófico. A questão de saber se nós temos ou não uma filosofia deve estar subordinada ao exame imparcial e ao juízo objectivo do valor intrínseco da filosofia no sentido europeu do termo e do papel que ela é susceptível de desempenhar em relação ao nosso destino fundamental. Agarrando-se ao valor intrínseco da filosofia, isto é à sua universalidade enquanto manifestação livre e racional do pensamento crítico, Towa quer assim demonstrar que não só o reino da filosofia, do pensamento sob a sua forma mais alta, não é interdito aos africanos, mas também que a própria filosofia tem um papel essencial a desempenhar na realização dos nossos projectos históricos. Eboussi B. (5) questiona-se sobre o significado que se esconde por detrás do entusiasmo repentino do africano, em reivindicar uma filosofia especificamente africana, que começa nos tempos da negritude. Trata-se por um lado, da necessidade de atestar uma humanidade contestada e submetida ao perigo, e por outro, do desejo de ser ele próprio, de se auto-realizar através da articulação do ter e do fazer; esta é a exigência apologética à qual a etno-filosofia queria responder. Analisando de uma maneira brilhante a obra de Tempels, na sua lógica, no seu método e no seu objecto, na sua ontologia e no seu significado histórico, Eboussi conclui que a etno-filosofia se dirige à bondade e à magnanimidade do patrão. Isto é, ao homem da ciência ocidental, e em particular aos etnólogos e aos antropólogos, a fim de ser reconhecida por eles. O seu método consiste em trabalhar sobre material tradicionalmente etnológico sob forma de filosofia, usando categorias filosóficas, ou mesmo procurando simplesmente encontrar estas categorias nas línguas, nos mitos, nos provérbios, nas cosmogonias, etc., onde eles são considerados escondidos, à espera de ser desvelados. A etno-filosofia é um autêntico concordismo em busca da semelhança. A sua preferência vai para o que os seus olhos parece ser o sentido comum, a transparência do que ainda hoje aparece como original e mutável no mundo do Muntu. A etno-filosofia quer ser um mediador na oposição e conflito que opõem o patrão e o servo. Assim a etnofilosofia aventura-se no passado em busca de um paraíso já perdido no mundo do servo, deixando ao patrão uma possessão cada vez mais acentuada da história através do fazer. Recorre-se ao material etnológico, como se ele fosse autêntico e autorizado. Então de todos os
lugares, revelam-se e desvelam-se metafísicas, teodiceias, morais e cosmogonias esquecidas por todos, mas escondidas nos mitos das etnias. Neste sentido, substituem-se os termos moral, religião, concepção de vida e do mundo, representação da estrutura humana, como o termo mais autêntico de filosofia. Assim a filosofia transforma-se num revelador no sentido químico do termo; ela desvela, torna, visível o que estava escondido, e denomina com um nome novo o que sempre existiu. O sujeito desta filosofia, aquele que faz esta filosofia é a etnia anónima e eternizada. Da pequena etnia passa-se por um movimento de simples dilatação, a grande etnia negroafricana. Esta é muito mais abstracta uma vez que representa o conjunto de tratos simplesmente intuídos apresentados como comuns a todas as etnias negro-africanas. Deixa-se de tratar das etnias singulares, para se tratar de uma nova tipologia: o negroafricano. É no negro-africano que se encontra a unidade de princípio, do qual vão depois derivar todos os outros elementos. O filósofo é aquele que é simplesmente capaz de demonstrar esta esfera de unidade. Porém, a filosofia está fora do filósofo, pois ela é antes de mais a filosofia da pequena etnia e seguida da grande etnia negro-africana. É uma filosofia sem filósofos. Desta maneira não se pode filosofar. Se quiséssemos, poderíamos mesmo fazê-lo simplesmente como «medium», submetido ao movimento do espírito da etnia. De facto, os que se interessaram pelo desvendar da filosofia africana, não o fizeram para ser eles mesmos filósofos, mas para demonstrar que o negro-africano é também filósofo, que a Áfricanegra teve sempre a sua filosofia. Esta foi a intenção que levou Tempels a escrever a sua filosofia. Simplesmente não se dava conta do perigo e da ingenuidade do método seguido, que transformava deste modo o Bantu no senhor «Jourdain» da filosofia; aquele que sempre filosofou sem nunca se aperceber de que filosofava. A etno-filosofia ficou no nível empírico, que não pertence ao domínio da filosofia, mas da etnologia e da sociologia. A etno-filosofia é uma negação da linguagem humana, e portanto da historicidade dos «Muntu». De facto, a hipótese da etno-filosofia acabar por reduzir a temporalidade do «Muntu» num passado, que não tem nenhuma relação com o presente, e portanto sem futuro. Exactamente porque acaba refutando a historicidade do Muntu, a etnofilosofia não pode reivindicar uma filosofia autónoma e viva. Temos de pensar de forma diferente o nosso projecto de futuro. Mas para tal, temos que proclamar o fim da etnologia, e começar pelo próprio Muntu, pela sua situação concreta e dirigirse em direcção do seu possível «devir livre». Esta fórmula marca o início da possibilidade da fundação de um projecto de uma história para o Muntu. Mas este projecto deve ser necessariamente filosófico? O desejo de filosofia é um dos últimos esforços para aceder à humanidade do patrão. O negroafricano sente a necessidade angustiante de se situar em relação à Europa, e ilude-se acreditando numa iluminação exterior, que salvará o homem africano e o libertará das suas trevas. O erro maior é acreditar que uma das luzes salvadoras é a filosofia, e de transformar assim a filosofia num «medium» para adquirir a sabedoria do patrão, para ocupar o lugar que ele sempre ocupou no meio do nosso povo. Através da filosofia procurar assemelhar-se ao patrão, que é considerado o único homem verdadeiro.
O filósofo considera-se liberto da solidariedade com as massas danadas, já não pertence ao mundo dos vencidos. Ele torna-se um elemento intermédio entre, auxiliar da civilização, intérprete da vontade do patrão e da obediência do dominado. A filosofia é feita em função de um reconhecimento possível. A filosofia é uma reivindicação. Com este tipo de projecto, a etno-filosofia não fez se não revelar que a filosofia africana não é outra coisa que a «crise do Muntu». Os seus filósofos não fazem se não usar uma linguagem abstracta, sem um real conteúdo histórico e sem um lugar de referência preciso. Portanto, é necessário superar este tipo de filosofia. Se o projecto nasce da dicotomia e da violência que separa o mundo em dois grupos, dominadores e dominados, como resulta desta análise, que afirma um e nega o outro, superação deste tipo de filosofia deve partir deste dualismo, re-inventando-o a partir da prática quotidiana. Este é o projecto que deve sustentar toda a reflexão teórica africana. Não basta que o Muntu reivindique uma filosofia, deve estar consciente de que não lhe será possível participar activamente na tradição filosófica, sem que se interrogue sobre o significado da sua entrada na própria tradição filosófica, e tornar este início da sua aventura filosófica num momento da sua filosofia. Isto não é realizável com filosofias vividas, explícitas, etc. Mas é necessário interrogar-se sobre o estatuto da filosofia. Por conseguinte, o primeiro passo a dar é voltarmo-nos sobre nós mesmos, sobre Muntu e a sua condição real. O primeiro caminho que a filosofia africana deve percorrer, é um itinerário crítico, metódico e dialético em direcção a conquista de nós mesmos. Esta decisão exige a reintrodução no projecto filosófico de tudo o que nos projectos precedentes foi reduzido ao silêncio. Tudo isto exige uma tomada de consciência acerca de como usufruir da nossa tradição, sem que se caia numa nova forma de etnologismo, mas que se projecte em forma criativa. Isto significa que devemos servirnos da nossa tradição como forma de utopia crítica e mobilizadora do presente com vista à realização de uma história real de Muntu. A tradição representa o momento de autonomia em relação aos outros homens, a tradição significa ser si mesmos, e ser mesmos não pode ser abandonado; é sempre actual, e deve sê-lo sempre, se não se quer cair na incoerência e no não sentido. Concretamente a tradição é o momento no qual a África é ela mesma, é origem de criação e de cultura, de religião e de técnica, quando directamente dialoga com a natureza, elabora instituições e símbolos. É somente neste sentido que a tradição pode representar o momento da autenticidade africana. Falar da tradição como utopia crítica significa, portanto, o bom uso da tradição. Isto é possível através duma memória vigilante, que não ataca cegamente a tradição. Falar da tradição como utopia crítica significa combater uma tradição que leva à morte e à alienação do «Muntu». A tradição não é um corpo fechado, mas aberto. Neste sentido não é inimiga da modernidade, não se opõe à modernidade; ela pode ser transportada no projecto da modernidade e portanto da autenticidade africana. Neste projecto torna-se modelo de cultura, de unidade, no esforço de construção de um modelo comum do «Muntu». Ela não está simplesmente na origem, mas está também a fim de oferecer modelos utópicos para o agir actual. A tradição deve ser considerada como a resposta para a liberdade que encontra e que se constituí
como finalidade. O homem diante da tradição deve considerar-se um risco, quer em direcção ao passado, quer em direcção ao futuro. É neste sentido que a tradição está ligada à esperança. O seu discurso é portanto um discurso de esperança, fundamento de todo o projecto de futuro e consequentemente da historicidade do «Muntu». Esta é a linha orientadora na qual se deve retomar o discurso filosófico. A filosofia é vital, pois filosofa-se em função da emancipação. O problema será saber como servir-se da filosofia e transformá-la num instrumento, para fugirmos da nossa situação actual.
CRÍTICA DA CRÍTICA Para Olabiyi Babalola Yai (¹) é necessário fazer uma discussão radical com Hountondji, que pela sua definição eurocêntrica da filosofia africana. A interrogação de Houtondji é a negação afirmada da filosofia africana. Se pusermos a filosofia a filosofia europeia como dado primeiro e a elevarmos à dignidade de filosofia pura e simplesmente – independentemente das diferentes definições mesmo contraditórias que dela se dêem -, e intimarmos a hipotética filosofia africana a conformar-se pura e simplesmente a ser, a resposta sobre a existência da filosofia conhece-se antecipadamente. Por isso, a questão não pode ser inocente nem a resposta objectiva. A questão de fundo é saber se o caminho que a filosofia tem percorrido desde a Grécia platónica deve erigir-se como caminho universal. E se quisermos ir ao fundo da questão, podemos utilizando entre outros, os trabalhos do Cheikh Anta Diop sobretudo «Nações Negras e Cultura», mostrar as influências das culturas africanas e asiáticas na formação da civilização grega que deu origem à filosofia. Para Towa os textos disponíveis sobre o antigo Egipto permitem afirmar a existência de uma autêntica filosofia que floresceu nas margens do Nilo, milénios antes de Teles, o primeiro présocrático. Neste domínio, como em muitos outros, foi o Egipto quem abriu o caminho. Com efeito, o ponto de partida para um debate sério e fecundo sobre os problemas e fecundo sobre os problemas filosóficos na África Negra, deve ser pôr em causa não simplesmente a etnofilosofia, mas o etnocentrismo filosófico ocidental que está na sua origem, sem a qual a nossa reflexão estará condenada a europeizar-se, condição para ser filosófica. Este defeito é mais nítido em Towa, que não hesita em convidar os seus compatriotas a europeizarem-se e a deixarem-se assimilar pelo ocidente. Como recorda Assane Sylla, «imitar um modelo, não é filosofar». Para Hountondji a filosofia é um conjunto de textos e de discursos explícitos, literatura de intenção filosófica. Esta é a definição contestável, pois a intenção não faz filosofia. O filósofo do Benin afirma que do que a África tem necessidade é antes de mais de ciência; a filosofia é útil simplesmente se puder contribuir para libertar o continente, uma verdadeira tradição teórica, uma tradição científica, aberta, senhora dos seus problemas, e dos seus temas. A filosofia vem assim reduzida à epistemologia; é por isso que Towa pode dizer que Hountondji faz discursos sobre discursos. A crítica de Hountondji e Towa fazem da etno-filosofia é salutar no quadro da luta contra a negritude, porém não é radical. A definição que eles dão de filosofia é parte integrante de uma orientação eurocêntrica da filosofia que é considerada a única possível. Amady Aly Dieng (²) interroga-se por fim, sobre o significado do termo etnofilosofia e acrescenta que o uso do termo etnofilosofia por Towa Houtondji, é a consequência lógica da sua
falta de atitude crítica para com a orientação eurocêntrica da filosofia universitária. Segundo N. Binda (³), uma leitura não polémica de Tempels teria falado não de etno–filosofia, mas de filosofia etnológica, como se fala de filosofia económica ou de filosofia política. Ele retoma a argumentação de Tschiamalenga Ntumba (4) e pergunta-se quando estudamos os poemas parnasianos ou os mitos pré socráticos, fazemos etnofilosofia? Quando Paul Ricoeur, estuda o símbolo do mal atestado pela tradição judaicacristã, faz dele etno-filósofo? Se sim, toda a filosofia de restituição hermenêutica é etnológica, e a palavra etnologia torna-se inocente. Por outro lado, a interpretação da filosofia de um autor, não impede que esta permaneça a filosofia desse autor. Denunciar sistematicamente toda a filosofia colectiva como faz Hountondji não tem nenhum fundamento objectivo rigoroso. Não existe unanimidade em nenhuma sociedade; esta é uma verdade banal. A filosofia envolve a responsabilidade pessoal de um autor. Numa sociedade sem escrita, a memória não encontra sempre o pai fundador de uma ideologia partilhada por uma determinada comunidade intelectual. E Binda acrescenta: Por consequência nós acreditamos que, mesmo se se deve reprovar Tempels por ter considerado o pensamento Luba-Shanbakadi como pensamento de todos Bantus, é doveroso reconhecer a existência de um conjunto de traços e de comportamentos que são manifestamente comuns a todos os homens da área cultural Bantu, traços que os singularizam de uma maneira particular em relação a todos os outros grupos culturais. Segundo Niemekey Koffi, Towa e Hountondji fizeram a hagiografia da filosofia elitista ocidental. Não obstante refutem justamente a negritude e o africanismo, «eles adoptam as ideologias elitistas da ‘inteligentsia’negra».
HERMENÊUTICA A corrente hermenêutica quer-se mais actual. Ela tenta elaborar um pensamento que possa responder às exigências e às preocupações da África actual. Para ela a sabedoria africana deve construir a pedra angular e o lugar do filósofo deve ser interpretar a tradição à luz do presente. Toda a teoria que não tivesse em conta a tradição, seria segundo esta corrente, inconsciente, uma vez que refutaria a única coisa que a África tem de particular. Eles vão contra a corrente crítica, acusando-a de não ter tomado minimamente em conta o património da sabedoria africana – que são os símbolos, os provérbios, as instituições, etc. - , nas suas lugubrações filosóficas. Como a corrente crítica, a corrente hermenêutica é também contrária à ideia da filosofia africana elaborada pela etno-filosofia. Também para eles não se pode falar de uma filosofia africana já elaborada, que é necessário simplesmente relevar. A filosofia africana é um projecto do futuro. Para realizar este projecto, eles recorreram à hermenêutica, onde o sujeito deve implicar-se. Trata-se de uma releitura pessoal da tradição, não para reconstruir o pensamento antigo como tal, mas para reactualizá-lo dentro do contexto dos novos sistemas de maneira a torná-lo presente de uma maneira eficaz. Não obstante partam dos mesmos dados dos etno-filósofos, não procuram uma filosofia colectiva e hipotética. Eles partem destes elementos para procurar um sentido, para se reapropiarem da tradição africana, de maneira a torna-lá operante na vida actual. Assim nascem nos nossos dias as formas mais variadas filosofia da linguagem, dos símbolos e das obras de cultura tradicional africana. Não se lhes pode criticar uma falta de espírito crítico em relação à tradição, falta de método, de originalidade e de actualidade dos seus argumentos. Contudo, a filosofia desta corrente funciona um «corpus» de «persi» já constituído por um pensamento e por preceitos, como «um já dito» que é necessário retomar e redizer. A criatividade e a razão descritivas estão subordinados e tudo que é considerado que é criado como já criado. Assim perdem-se nos mesmos limites da etnofilosofia. Sobre a senda de Heidegger, Lalêye(¹) sustenta que a filosofia é um fenómeno tipicamente grego, é uma aplicação analógica. Para a África a filosofia seria portanto uma forma de sujeição intelectual que serviria para apagar todas as formas específicas do pensamento africano. Assim, Lalêye interroga-se sobre a existência, a necessidade e a legitimidade da filosofia em África. Para responder à primeira questão Lalêye analisa – o que ele considera -, a chave do pensamento africano. Iniciando com uma análise da obra de Tempels, Lalêye reconhece que é difícil não reconhecer uma actividade filosófica no conjunto da vida psíquica de qualquer homem. O vivido de todo o homem vem concebido num primeiro momento como algo de verdadeiramente filosófico. Mas sem constituir de per si um pensamento filosófico. Para Lalêye, a forma de pensamento que caracteriza o homem africano pode dizer-se religiosa.
Assim, só através do estudo religioso e de tudo o que caracteriza, esta forma de pensamento nos pode dar o significado do nosso eu autêntico. A religião tradicional africana é um verdadeiro culto da vida, e portanto, o religioso tem aqui um sentido de verdadeiro culto à vida. É portanto, a partir das nossas religiões, que se deve começar a investigação, para captar o pensamento africano. Mas para tal, é necessário reler a filosofia bantu de Tempels. Não obstante a necessidade desta releitura, ela não é uma «conditio sine qua non» para a fundação do discurso da filosofia africana. Mesmo Tempels estava consciente disso. O facto de ele ter intitulado a sua obra de filosofia, tinha como objectivo demonstrar a existência de um pensamento estritamente rigoroso no seio do povo Bantu. Não se tratava por conseguinte de fundar uma filosofia africana enquanto tal. É nesta óptica que é necessário reler Tempels. A falta de uma literatura escrita não autoriza a afirmação da existência da filosofia no pensamento tradicional africano. Só analogicamente podemos justificar como filosófico o que a Europa ocidental oferece hoje como filosofia. Assim, a questão da falta de escrita não é em si um problema, se tivermos em conta a etimologia da palavra filosofia. A segunda observação diz respeito à questão do mito. Lalêye não parece convencido que seja exactamente através da renúncia ao mito que se torna possível a adesão ao conceito e à filosofia. Seria relevante observar o papel que o mito desempenhou sobretudo nos diálogos de Platão. Aliás o pensamento europeu actual, mesmo parecendo uma reflexão radicalmente crítica, apresenta ainda uma gama enorme de mitos. O mito está, portanto, sempre presente em toda reflexão, até mesmo de tipo estritamente filosófica e por isso não é possível a sua eliminação total. Aliás o mito faz parte da actividade filosófica real. É claro que se focaliza toda a atenção sobre os mitos, como fazem os etnofilósofos, carrega-se o mito de um significado exagerado, fazendo-o de consequência prevalecer ou ir para além da simples experiência vivida que toda a filosofia comporta e perder-se-ia num mar imenso de mitologismos iguais aos dos etnofilósofos. Mas pelo contrário, o mito tem um lugar de capital importância na especulação filosófica. Uma terceira consideração concerne o problema da língua. Diz-se muitas vezes que é necessário criar uma língua de cultura válida para toda a África, se quisermos prosseguir na investigação de um pensamento sólido, que possa ser considerado válido para toda a África. Para Lalêye é um puro mito. A língua não resolve nenhum problema, para além daqueles que põem os homens que a falam. O facto de os africanos continuarem a escrever em línguas que lhes são estranhas: francês, inglês, português, isso não prova que o farão eternamente. Aliás, o que condiciona o acesso à filosofia não é a língua mas o pensamento. Foi através da língua árabe que os europeus redescobriram Aristóteles. Descartes escreveu o discurso sobre o método em francês e as meditações filosóficas em latim, dirigidos para o mesmo público. É verdade que a língua ocupa um lugar importante na vida de qualquer povo, pois ela manifesta o ser do povo e portanto a comunidade linguística; para além do facto de ela constituir de certa maneira o próprio ser de uma determinada comunidade e portanto a possibilidade de um agir comunicativo. Porém, a língua não deve constituir essa dificuldade que lhe foi atribuída por pensadores como Tshiamalenga Ntumba e toda a corrente hermenêutica.
Estabelecida a existência de uma filosofia no pensamento tradicional africano, trata-se agora de olhar para a própria filosofia de uma forma crítica, de maneira a permitir-lhe que ela nos diga algo sobre si mesma. Trata-se de interrogar-se sobre o estatuto da filosofia. Impõe-se-nos mudar de perspectiva, e deixar de olhar unilateralmente para o Ocidente. Não se trata de nos aproximarmos da filosofia como o fizeram os ocidentais, excluindo os outros homens, mas devemos apreciá-la como uma simples actividade humana. Na nossa aventura filosófica, devemos pensar a filosofia como uma actividade possível a qualquer homem. Não se trata de afirmar que todo o homem é filósofo, trata-se de uma atitude que tende a tornar pertinente a nossa interrogação sobre a existência e a necessidade da filosofia africana. Esta atitude permitir-nos-á por um lado uma investigação mais intensa, e por outro, uma nova apropriação das verdades já conhecidas e presentes, seja para permitir ao pensamento africano actual afrontar os problemas actuais, descobrir verdades apropriadas não só para nós africanos, mas também para todo o homem de hoje. Uma nova filosofia africana elaborada com estes princípios não se oporia à filosofia já existente, nem se sentiria numa relação de dependência em relação a ela, mas numa relação de continuidade e de filiação. O que conta finalmente é a simples procura da verdade, válida para todo o homem. Não se trata de fazer como os outros, mas de filosofar com plena consciência de tornar mais segura a própria existência humana, que constitui a fonte onde a filosofia deve encontrar a sua origem e o seu fundamento de investigação. Os pensadores devem procurar esta nova filosofia, filosofando em equipa; entre africanos, mas também com os filósofos de outras raças e continentes. A arte de filosofar é uma arte prevalentemente de logos, e enquanto tal, ela consiste predominantemente na procura da verdade, que deve ser discutida em colaboração, antes de mais, entre nós africanos. A investigação filosófica comporta um espírito de abertura ao universal, por isso não pode ser fechada num círculo étnico determinado. Não obstante seja uma constante procura de nós, é também capaz de verdade universal, entendida como verdade para o homem. Por outras palavras, a filosofia não deve consistir na procura do que nos singulariza e portanto nos diferencia dos outros homens, mas deve estar centrada sobre a procura da verdade para o homem. Portanto, o que conta é o filósofo e a verdade que ele procura oferecer para melhorar a natureza humana. A filosofia não deve ser procurada como instrumento de divisão entre os homens em classes, nações, continentes ou raças. O problema da África consiste na tomada de consciência da sua situação material e espiritual e portanto do seu futuro. Porém, o que caracteriza a época actual, não consiste simplesmente na tomada de consciência do nosso devir e da necessidade de uma dialética que nos leve em direcção ao real, mais juntamente com tudo isto, existe uma comunidade de destino de todos os homens habitantes nesta terra. São portanto as crenças, o saber, o fazer e o agir da humanidade inteira que tem necessidade de ser reajustados e redefinidos em síntese original. Nesta perspectiva, se bem que a África renuncie a ser sistema, pode indicar um método de salvação para a situação com que se defronta a humanidade hodierna. É verdade que a África tem necessidade de criar património cultural, mas ao mesmo tempo contribuir para a criação de um património mundial. Não é simplesmente através da arte, como queria Senghor, que a África deve tornar-se presente ao mundo, uma vez que não nos é possível recuperar o nosso passado remoto, temos que nos interrogar a propósito da nossa possibilidade
criativa. É necessário passar da simples afirmação da existência de uma filosofia estritamente africana, que é uma filosofia implícita, à procura de uma filosofia explícita. O que importa doravante, não é procurar uma filosofia africana, mas uma reflexão sobre a possibilidade de pensar filosoficamente a nossa realidade africana. A questão de saber se África tem uma filosofia, deve ceder o lugar à questão de saber se a África tem necessidade de possuir a sua própria filosofia. É formulando esta questão que o pensador africano fica no seu pleno direito de pensador, mas não necessariamente enquanto africano. A obra de Tempels tem hoje os seus defensores e os seus simpatizantes que dedicam tesouros de inteligência e de habilidade para salvá-lo do naufrágio intelectual ao qual o tinham condenado as críticas de Hountondji, Eboussi e Towa. Para N. Binda, Tempels não fez se não retomar a ideia dos próprios negros, que é patente num Senghor, e ainda de uma maneira mais surpreendente num Towa.
LIBERDADE FULCRO DA HISTORICIDADE O percurso que começa no fim do século passado, quer ele se chame Pan-africanismo, Negritude, socialismo africano, etno-filosofia, filosofia crítica ou filosofia hermenêutica; são movimentos que vivem do espírito e tendem para a mesma finalidade: a liberdade do homem negro, condição da sua historicidade. Na origem da reflexão filosófica africana, está portanto a necessidade de afirmar uma humanidade negada. Todas as correntes e linhas de pensamento que preparam o nascimento de uma consciência africana, que se quer especificamente filosófica, têm isto em comum: todos eles se dedicaram a reabilitar o homem negro e a sua história. O objectivo era, por assim dizer, libertar o negro do papel de objecto da história. A filosofia africana está, portanto, na linha da liberdade, da liberdade que já conquistámos, mas sobretudo da liberdade que devemos ainda conquistar e preservar, da liberdade da África, mas sobretudo da liberdade do africano. A África foi e resta o continente da escravatura. Desta, passamos à submissão do colonizado pelo colonizador, e depois da eliminação oficial do facto colonial, passamos à submissão do pobre pelo rico. O facto colonial desapareceu oficialmente; mas ele permanece efectivamente entre nós, através de uma cultura que se opõe e se impõe às culturas autóctones, oposição e imposição que está na base da aspiração à liberdade. Se é verdade que a África rejeitou o colonizador, não é menos verdade que ela retomou por sua conta as diferentes iniciativas coloniais, sobre o plano político, económico, cultural, religiosa. A África conserva os estados coloniais nas suas fronteiras, nas suas divisões administrativas, nas suas populações. E mesmo se lhe é atribuída a tarefa de edificar a nação, a sua finalidade colonial de produção e distribuição de serviços não mudou. A independência não nos reconciliou com as culturas tradicionais. A nossa aspiração à liberdade deve assim realizar-se num conflito permanente de culturas, onde, em todos os planos, a modernidade parece opor-se à tradição. Dizemos em todos os planos, porque o que dissemos do Estado sobre o plano político, podemos afirmá-lo para as empresas e firmas no campo económico da produção e da distribuição de bens, no campo mais vasto da organização da existência. De facto, depois das independências políticas, nós afirmamos e continuamos a afirmar a vontade de fazer nossa a ambição económica do colonizador, de nos apropriarmos do seu projecto e dos seus meios para realizá-la. Assim, tendo retomado por nossa conta as diferentes iniciativas do Ocidente em África, dividimo-nos entre nós, em os menos ocidentalizados e os mais ocidentalizados; entre os tradicionalistas e os modernos. Afinal de contas, é o próprio homem africano que se encontrava dividido. Esta divisão da alma africana constitui o essencial da crise da consciência africana moderna. Esta crise revela a nossa grande fraqueza actual, e revela o perigo de submissão sempre presente e sempre actual. Este perigo, evidente, convida a filosofia africana a conceber novas formas a dar, à inevitável luta de libertação. O problema que aborda a filosofia africana é de carácter existencial. Por conseguinte, nenhum
progresso no debate filosófico africano será legítimo se não se tiver antes dado solução a este problema, cuja primazia advém não simplesmente da cronologia, mas sobretudo da ontologia. A filosofia, dirá Eboussi, está em função da nossa emancipação, sema qual não podemos nunca ser sujeitos da nossa própria história. O problema de hoje é saber em que medida é intrinsecamente histórica a compreensão que o homem africano tem de si mesmo, e vice-versa, em que medida, na compreensão de si mesmo, tem modificado a sua compreensão de si mesmo, tem modificado a sua compreensão da história. Por agora interessa sublinhar a desconfiança sempre mais acentuada para com as considerações especulativas sobre as nossas particularidades étnicas, que tentaram aprisionar o ser profundo de todo o homem negro em esquemas unilaterais e dogmáticos de um tradicionalismo acrítico. A desconfiança contra os esquemas senghorianos, templianos de reflexão filosófica sobre a nossa situação particular, transformaram-se hoje numa nítida confutação das mistificações ideológicas e de uma visão totalitária da vida e da política, que sobre o plano prático, provocaram e continuam a provocar resultados trágicos. Mas se as críticas actuais são justas e fundadas, resta-nos a exigência e a necessidade de fazer uma síntese significativa e global da história que vamos difícil e dolorosamente prosseguindo e construindo no tempo e no espaço. Trata-se então de tomar em devida consideração, o que a crítica recente avançou como reserva ou condenação em relação às especulações etno-filosóficas e ocidentalistas cegas, para prosseguir o imprescindível cômpito especulativo, para dar uma união orgânicas eventos temporais; partindo, não de pressupostos apriorísticos, mas acompanhando criticamente e sem pretensões exaustivas, durante o difícil caminho da história, o tecido das nossas realizações temporais, como emergem à luz de uma consciência em acto que se afina e se aperfeiçoa na aplicação dos princípios aos factos. Não se trata obviamente de uma nova reivindicação de uma negritude ou uma etnofilosofia, nem sequer da renúncia da nossa alteridade, mas de examinar fenomenológica e criticamente, o significado da nossa presença e actuação durante o caminho da civilização, e valorizar todos os meios culturais. Com a superação da etno-filosofia, a reflexão filosófica africana perdeu o seu timbre apologético-concorrencial, e configura-se como exame valorativo sobre as nossas possibilidades reais, o que distingue de uma maneira nítida dois âmbitos ontológicos diferentes: o passado morto e nostálgico, e o futuro como historicidade positiva. Os problemas cruciais de uma reflexão filosófica sobre a situação africana, são irredutíveis a fuga para traz, como fazia a etnofilosofia, ou para frente como queria Towa; não idóneas a esclarecer o sentido dos eventos que vivemos, que estão historicamente situados e se conotam como únicos, decisivos e cruciais. A filosofia africana liberta do espírito de sistema, ganha credibilidade como interrogação, análise, reserva, esperança, progresso no interior de um âmbito temporal, como possibilidade crítica do sujeito vivente e pensante. Não há dúvida que o interesse da filosofia africana se transferiu de uma valorização mítica do passado, como faziam os poetas americanos do negrorenaissance, os etnólogos, a negritude e a etno-filosofia, para um interesse sobre os problemas reais da África de hoje.
No período que vai das independências até aos nossos dias, assistiu-se uma sucessão de ideologias que se substituíram reciprocamente, houve séria explosões de forças irracionais sob várias formas, o homem concreto e integral dissolveu-se nas retóricas dos partidos, do colectivo ou da massa, ou perdeu-se num jogo inútil de estruturas multiplicadas, mais através de fantásticos artifícios, do que revistas através do critério de uma reflexão intensiva e compreensiva da realidade. Talvez seja necessário estar também atentos e desconfiar dos outros sonhos que estão à espreita e atentam contra a identidade completa do nosso ser, livre e responsável, em nome de um naturalismo mecanicista, biológico, social, económico, ecológico que é coercivo em relação às iniciativas humanas. A estranha ironia do nosso tempo quer que todos os progressos da ciência e da civilização, e até a consciência moral (protecção de animais, do ambiente, o problema da natalidade) se transformem em meios de coerção para nos transformar em objectos e consumadores da vontade alheia. Não obstante os esforços titânicos que fazemos para nos assenhorearmos do nosso destino, somos quase sempre obrigados a sofrer o que hoje parece a lei da história. Graças à ciência, o homem ocidental aprendeu a controlar a natureza, mas acabou sendo vítima das catástrofes da história. Assim o seu sonho de tornar-se livree, de plasmar o próprio futuro segundo os dinamites da razão, é frustrado pela história. Este falhanço suscitou um etnocentrismo renvado. Assim, os povos africanos para além de terem que suportar o peso da expansão do outro homem, sofrem também os seus insucessos. Para além de exportarmos os nossos homens fortes para fazerem o que os ocidentais não querem fazer e exportarmos as nossas matérias primeiras, encontramo-nos na situação de ter e aceitar descargas nucleares, conservar florestas para garantir oxigénio eliminado pelas indústrias ocidentais, limitar nascimentos em países que são muitas vezes maiores que os ocidentais que no entanto tem dez vezes mais de população. Isto deve convencer-nos a não pôr em sintonia, ciência, tecnologia, finanças e até mesmo democracia com consciência, para compreender o homem que nós somos, como subjectividade livre à procura de fins, enquanto procura aperfeiçoar e ampliar os meios. A adesão à realidade histórica sugere também uma reflexão sobre a ética da situação, que não significa impor a situação como ditame normativo da qual depende a consciência que ocorre referir-se imprescindivelmente a situação concreta, como norma de um modo concreto e realístico de filosofar. Os filósofos africanos têm a grande responsabilidade de formar as gerações presentes e futuras em ordem a uma consciência civil. Está em jogo o futuro da nossa liberdade, da nossa historicidade, se por acaso abandonarmos os valores fundamentais em nome da razão do Estado, do desenvolvimento. Os filósofos devem indicar a direcção do desenvolvimento histórico no momento presente (direcção normativa) e consentir em avaliar as várias fases anteriores de tal desnvolvimento. São o presente e o futuro a operar no presente, a criar o passado e a fazer a história. São eles que criam o passado de uma maneira nova. A história não é simplesmente memória, mas sobretudo projecção para a frente, sentido de futuro, como atestado da liberdade; uma liberdade que rompe com esquemas fixos do progresso e regresso sublinhados por Tempels, Senghor, Towa, Hountondji e outros.
Se tivermos presente o motivo marxiano da descoberta do planeta história, e aceitarmos o convite nietzchiano para olharmos para a história com uma atitude crítica e não monumental, ficamos surpreendidos diante do peso enorme do passado «significativo» que interpela a memória, a discrição e a avaliação com a força dos seus documentos e monumentos de todo o tipo... É importante interroga-se sobre o significado da modernidade, antes de nos servirmos dela como instrumento conceptual para estabelecer discriminações discutíveis entre seres e sociedades. Em particular, como componente essencial do universo de referência própria do desenvolvimento, ela opõe-se necessariamente à tradição, categoria que é percebida à priori de maneira negativa. Falar da tradição, equivale normalmente estabelecer uma verdadeira amálgama de costumes, de práticas, de ideias, de crenças, todas desvalorizadas e muitas vezes rejeitadas fora dos limites da razão, isto é, para obscurantismo. Com este termo particularmente pejorativo, decreta-se que toda a distância com as lições recebidas dos filósofos das luzes, constitui um atentado à verdade absoluta da razão e do progresso. Hoje, todas as ideias e práticas que vão contra os valores ocidentais, são obscurantismo. Para decretar esta não racionalidade de ideias e práticas africanas, não ocorre sequer a mínima reflexão. Estamos a nível de preconceitos racionalistas. Isto porque a modernidade constitui o verdadeiro critério para dissociar radicalmente, no domínio individual, social e cultural, o verdadeiro do falso, até mesmo o bem do mal. Em que se baseia este critério de apreciação? A modernidade, instituída no século XVIII, equivale, como muitos pensadores já o mensionaram, à secularização, isto é, à perda daquilo que podemos chamar garantias metasociais, que tinham como função legitimar a sociedade. Assim a sociedade liberta das suas acções seculares – quer sejam Deus, os antepassados ou mesmo a tradição -, é submetida às exigências da razão, que se manifesta numa dupla via, a racionalidade instrumental e a racionalidade humanista. A história reduzida à esfera do progresso, que seria determinada por sua vez, pelo sucesso económico, só pode ser realizada por indivíduos cuja mentalidade calculadora lhes impõe ver no outro, nas relações sociais e na natureza, fontes naturais para se afirmar através das coisas. Tem de se deduzir, que este desejo nunca saciado do homem, de possuir bens e serviços, constitui o seu valor supremo, sempre e em todo o lugar? Quem se põe a reflectir sobre a natureza da história (ou aquilo que para nós se chama tradição), sobre o objecto formal e sobre a verdade da história, dá-se conta com a relativa facilidade, que a compreensão das coisas ou dos eventos históricos é uma espécie de hermenêutica da liberdade humana. Por maior que possa ser influência do filósofo sobre os homens, ele não pode fazer com que algo – democracia, tecnologia, ciência, tolerância – assuma uma importância decisiva para os homens de um país e de uma época, contra as condições económicas e sociais. A grandeza do filósofo consiste sobretudo no facto que ele se torna porta voz da sua comunidade (humanidade) e exprime o homem como ele é realmente, com os seus problemas reais, as suas précompreensões, as suas possibilidades reais de resolvê-los.
Uma reflexão filosófica sobre a tradição, deve estar aberta a todos os elementos que questiona e examina. Do exame dos factos particulares ela deve reconduzir a uma fronteira mais geral da experiência humana. Mesmo o filósofo mais genial não é um profeta; os profetas existem simplesmente na revelação. O filósofo é um homem que procura explicar-se a si mesmo e à sua época, o sentido da vida , o destino do homem, e as suas possibilidades de realizá-lo; ele tenta formular os sonhos e as esperanças mais altas da sua comunidade e da comunidade humana em geral e levar esta última a tomar consciência; ele tenta abrir ao homem a via em direcção dele mesmo, isto é, em direcção da comunidade e da individualidade. O esforço analítico e crítico deve levar todo o pensador a carregar sobre si os problemas reais dos homens e da sociedade, consciente de ser porta voz da comunidade (humanidade). Os problemas reais do homem e da sociedade, se não são transportados para abstracções intemporais, constituem um estímulo realístico no qual se baseia a reflexão histórica e geográfica do filósofo, pelo menos como reconhecimento fenomenológico do contexto sócio-político e cultural do mundo em que vive. Como tal, a investigação problemática pode e deve ressentir-se das contingências provenientes do objecto da investigação e que o tornam discutível. Mas o que mais conta, é o esforço de solução ao qual o problema é submetido, que tornasse universal, implicando, portanto, também as gerações futuras, se realmente engloba problemas essenciais que concernem o homem. Por um lado a filosofia africana deve formular uma síntese cultural em referência à situação da qual emerge; por outro, tal síntese deve tornar possível a determinação, ou, pelo menos, a indicação de um quadro da história universal. Assim a nossa reflexão filosófica sobre as nossas condições históricas específicas, surge como investigação e tomada de consciência histórica através de um acto de generalização, tendente a estabelecer o significado correlativo das várias épocas históricas; mas através desta generalização, vai para além do âmbito histórico-geográfico e assume uma função prescritiva em função de uma orientação normativa das nossas escolhas e acções. Com isto não pretendemos identificar o filósofo com o historiador – ainda menos com o etnólogo -; pois eles divergem nas intenções, nas funções e nos procedimentos. O histórico está predominantemente atento ao particular, o filósofo tem exigências lógicas de carácter universal, mesmo quando se detém a meditar sobre os casos concretos e particulares da história. O que o filósofo investiga na história é a inteligibilidade e o valor dos actos humanos; em última análise, a abertura do homem enquanto actividade espiritual, ética, religiosa e civil. O filósofo afronta o problema da história de maneira indirecta, ou seja situando-a numa perspectiva gnoseológica geral, para compreender a qual tipo de «verdade» podem aceder os historiadores em sintonia com as suas visões globais da realidade e com os instrumentos e métodos que usam nas suas investigações. A simples epistemologia historiográfica não é filosoficamente satisfatória, pois ela não nos dá a compreensão exaustiva do evento histórico, que é resultado de múltiplos factores; primeiro é mais importante a liberdade do homem e a finalidade dos seus actos que chegam a ser reivindicações de causas metafísicas e postulam necessariamente um juízo de valor no discurso histórico.
Ao abordar o problema da história, não podemos negligenciar o espaço científico da investigação e descrição dos factos. Porém, este deve ser precedido por um momento crítico, que não rejeita o esforço científico, mas que determina o seu valor e os seus limites próprios. Historicamente a reflexão crítica apresenta-se sob duas formas: as reflexões inactuais de Nietzsche e a aplicação da filosofia kantiana ao conhecimento histórico, por obra de Dilthey, Rickert, Simmel, Max Weber. Através de sua permanente acção transformadora da realidade objectiva, os homens, simultaneamente criam a história e se fazem seres históricos sociais. Assim se pode explicar a distinção entre o âmbito humano e o âmbito não humano, entendendo por humano o reino da consciência, da responsabilidade, da fantasia criadora e da liberdade; e o não humano como a esfera da manipulação. Esta distinção é mais precisa na relação entre natureza e cultura, onde se nota que a irrepetibilidade é directamente ligada à liberdade e a decisão qualifica-se como evento. O conceito de tempo, porquanto seja enigmático, actua no interior do devir histórico. As coisas submetidas à lei do tempo mudam e revelam, por isso, a sua caducidade, ou seja a sua não absolutidade. O próprio homem, sujeito à lei do tempo, tem experiência consciente de mudança. Se pensarmos nas nossas instituições, nos Estados, grandes símbolos daquela liberdade que já atingimos mas ainda nos falta conquistar; as nossas culturas tradicionais, que nos ajudaram a suportar pesos indizíveis e serviram de suporte cultural ao esforço de luta pela liberdade. E portanto, para que esta longa marcha em direcção à liberdade continue, temos que sofrer as leis da mudança temporal de uma maneira consciente. Se possível antecipar os tempos e obrigar os eventos a se submeter à lei da vossa vontade. Porque se não tivermos coragem de antecipar os tempos e pormonos ao lado da cultura, sofreremos a lei da natureza, dos outros homens, ou ainda pior da natureza, dos outros homens e dos seus falhanços. O falhanço do marxismo-leninismo era evidente para todos, a necessidade da democracia era óbvia; mas foi assistirmos à caída do muro de Berlim para nos darmos conta que ultrapassados no tempo. Existe um «passado morto» susceptível de ser admirado com uma atitude de «antiquário», e um «passado vivo» que influencia e condiciona o presente de uma maneira mais ou menos explicita, de tal maneira que sob a urgência de uma tal impelente continuidade temporal, podemos assumir uma atitude crítica ou monumental em relação ao presente e ao futuro. Isto leva-nos a tomar em consideração a precisa distinção presente na língua alemã, entre «Histoire» e Geschicte.o primeiro termo indica o complexo de factos sociais, quase material, bruto, que se oferece à consideração humana, para ser decifrado, organizado de maneira a ser útil a uma reflexão antropológica; o segundo comporta um esforço hermenêutico e epistemológico da mente humana; torna-se por outras palavras num modo tipicamente humano de responder às solicitações do passado, no seu interrogar-se sobre o sentido da existência e no seu «ela» operativo para frente. A projecção em frente será tanto mais fecunda, quanto mais quanto mais for capaz de assumir as experiências seculares dos que antecederam. Trata-se, em resumo, de integrar o passado no presente com vista a um contínuo crescimento. De facto, o homem insere-se na sociedade e faz história com toda a bagagem das suas possibilidades racionais e operativas. Estes elementos contribuem para determinar o sentido ético das suas acções. A vontade do homem, actua em direcção a um futuro temporal não completamente previsível, e, portanto, digno de ser genialmente «inventado» e responsavelmente
actuado como cômpito ético do sujeito histórico, e dá o cunho e a medida de uma história verdadeiramente humana. A mensagem dos existencialistas evidenciou a originalidade do homem no acto de abrir-se aos outros através da palavra. Já Platão tinha feito a distinção entre a palavra falada e a palavra escrita, defendendo a superioridade da primeira em relação à segunda. Os existencialistas carregaram a palavra com uma rara força de testemunho e de necessário estávamos compromisso, exactamente porque nela se reflecte «a entrega» do ser (Heidegger), «a centelha da transcendência» (Jaspers), um acto de amor e de fidelidade (G. Marcel), uma carga de compromisso ética de político (Sartre), etc. Enquanto tal, a comunicação de carácter existencial, que tem o fulcro sobre a palavra mas não desenha outras formas expressivas, leva directamente ao mundo vital dos interlocutores, enquanto a actividade dos historiógrafos e pelo contrário empenho directo de reivindicação do passado, acolhido com o critério de simpatia e oferecida aos contemporâneos como estímulo crítico para novas possibilidades inventivas (cf. H.I. Marrou). A história é elaboração de sentido no tempo. Dilthey, através do exame da razão histórica, ligou estreitamente cada geração ao próprio tempo, o que implica fazer emergir sincronicamente todos os elementos que evidenciam as características de uma determinada civilização, diferenciando-a das outras. Enquanto âmbito significativo de valores, a história é susceptível de uma reflexão filosófica. A história é iluminada pela metafísica, como clarificação analógica dos modos de ser, reflexa numa linguagem ostensiva, transcendental e intencional, que lhe é própria. Dentro de um quadro de uma específica e atenta reflexão filosófica as relevâncias históricas tornam-se luminosas, radicais e clarificadoras do sentido dos factos e das dinâmicas antropológicas, na salvaguarda da pessoa contra as ideologias idealistas e historicistas. De facto, um dos problemas mais complicados e de difícil solução é exactamente salvaguardar um espaço crítico entre a história e as ideologias que pretendem exaurir a realidade num ponto de vista particular e unilateral. O facto de saber se é possível realizar um esquema historiográfico neutro, que não sucumba a pressões ideológicas, mas esteja simplesmente ancorado nas pré-compreensões do sujeito, que analisa as estruturas da consciência temporal, em circularidade hermenêutica com o mundo das suas próprias realizações, é um problema de grande actualidade filosófica. A filosofia moderna da história ou a filosofia crítica da história, inspirada pela crítica da razão pura de Kant, começa exactamente pela confutação do hegelismo. Mas, permitam-me uma questão: em que medida esta crítica muda a própria concepção epistomológica do conceito de história? Em que medida esta crítica se liberta do próprio conceito de história que divide o mundo em dois? Em que medida o etnocentrismo ocidental fica diminuído? A intenção de homens como Rickert, Simmel e Dilthey é indiscutível. Mas para nossa empresa , chega passar de Hegel a Kant, sem pôr em causa, não simplesmente as condições de possibilidade da universalidade da ciência histórica, mas também o próprio conceito de história sobre o qual tais condições vão repousar? Se ao elaborar a história da grande sublevação Maconde de 1917, eu me baseasse simplesmente em Plessier ou Rita, eu descreveria a história condicionada pelas filosofias históricas que
professam esses dois historiadores, ignorando completamente o testemunho directo dos protagonistas intervenientes ainda vivos. Por outro lado, a narração que eu posso recolher do homem maconde que participou nessa sublevação não é simplesmente o seu testemunho enquanto historiador (protagonista) desses eventos, mas ela inclui também a sua compreensão global do evento que corresponde à filosofia da história professada por aqueles que são afinal os nossos antepassados directos. É evidente que nesta filosofia não se encontrará uma compreensão da história que seja em função dos Estados, como é o caso da história europeia a partir do Renascimento. Não se encontrará sequer uma história evolucionista, feita em função do progresso material, não se encontrará tão pouco uma história de grandes personagens que dominam e comandam os outros. Encontraremos a compreensão que as «nações» tinham do desenrolar dos eventos temporais, a «filosofia da história» que eles professavam. Esta história não será em nada, menos história do que aquela que nos é narrada a partir de compreensões filosóficas diferentes. Mas qual é a base filosófica das historiografias negro-africanas? Qual é o substrato mental, cultural ou filosófico do trabalho de DuBois, de Kizerbo, para citar dois nomes? Césaire dez que de tal maneira nos habituamos ao Gongo, que não podemos passar sem ele. A nossa compreensão histórica parece resultado de hábitos contrários. De tal maneira nos habituamos à Grécia, a Roma, a Florença e a Napoleão, que não podemos evitar de evocar Monomotapa, Tombotou, Zimbabwe ou Chaka. São estas as nossas experiências? São estes os nossos valores? Ou são valores e experiências em função das experiências e valores que não se realizaram? O nosso tipo de história não é aquele que se escreve nos manuais de escola. O conhecimento do passado no Ocidente é ordenado em funções de ideias de Estado. Colocar as nossas histórias em função e a partir das histórias do Ocidente só pode fazerse ressuscitando reinos, tribos, estados que talvez não constituam a nossa experiência principal enquanto «histores»; mas sobretudo correm o risco de suscitar atritos que não correspondem ao tipo de sociedade que queremos construir e à qual a história é chamada a servir de suporte. Escrever a nossa história em função do Ocidente, é sobretudo pormonos em posição de seguidores, de imitadores. A história que escrevemos não corresponde à nossa cultura histórica, é uma história que não corresponde à nossa forma de participar na história. Experimentemos tentar descobrir as experiências verdadeiras que fazem de nós testemunhas, e experimentemos orientar as nossas experiências em função das nossas ideias, das nossas opções e das nossas escolhas. O etnocentrismo ocidental obriga-nos a renunciar às nossas identidades primárias, como concidadão para a nossa historização. Pelo contrário o nosso primeiro momento crítico deve ser a reivindicação do nosso eu primário. Com efeito, existe uma precedência necessária do conhecimento de nós mesmos sobre o conhecimento dos outros. Nós somos para nós os seres mais próximos e mais misteriosos, os seres que mais amamos e mais tememos. Como diz Raymond Aron, para lá do que a psicologia ensina sobre o conhecimento de si, nós somos os maiores historiadores do nosso passado. Os outros podem ter visto o que eu fui. Mas eles nunca tiveram a mínima ideia de como víamos o nosso devir; e é exactamente isto, o futuro, que está na base no nosso interesse pela história.
A história tem antes de mais a ver com valores. E os valores que nós preconizamos são aqueles que nos podem permitir um futuro diferente do presente, que nos é dado viver. Não são portanto os factos «Wie es eigentlich gewesen ist» como queria Ranke que nos interessam, mas os valores. Hegel dizia que nós éramos uma sociedade sem história; e para ele ter história significa ter consciência de si. Não há dúvida do que as nossas sociedades de então eram históricas, pois não obstante a desumanização que sofriam de então eram históricas, pois não obstante a desumanização que sofriam, continuavam a lutar para preservar uma própria auto-consciência. Exactamente por isto, nós atacamos, justamente, a filosofia da história hegeliana. Porém, se em nome de valores ditos universais, que são simplesmente a extensão dos valores etnocêntricos ocidentais, renunciamos a nós mesmos, corremos o risco de dar razão ao filósofo alemão. Na história não se pode encontrar a razão última das coisas. Ela não nos pode fornecer uma regra de vida que se imponha a todas as sociedades, assim como a todos os indivíduos. Antes de mais porque a vida do indivíduo não pode por si mesma ter força para ensinar se não for conhecida no seu conjunto, e se a visão do conjunto não coloca cada elemento particular no seu devido lugar. Da vida do homem ignoramos necessariamente o seu futuro e conhecemos mal o passado. Ninguém assistiu ao aparecimento do primeiro homem, ninguém assistirá ao fim do último homem. Por outro lado, as dificuldades metodológicas são imensas. Que conclusão certa e normativa podemos tirar de uma visão incompleta e parcial como é a nossa? Mas imaginemos que o nosso espírito, por uma magia qualquer, era capaz de contemplar o curso completo dos eventos humanos , desde o seu início até ao seu fim, como poderíamos tirar desta uma razão de ser? A história nunca respondeu a Kounta Kinté, porque o jovem homem que ele era, cheio de vida, de esperança, de projectos foi transformado em escravo; mas a história nem sequer respondeu a Alex Haley, ou, a nós, hoje. A única coisa que sabemos, é como e através de que metamorfoses o jovem Kounta Kinté foi privado da sua humanidade. A história nunca nos dirá porque homens, a quem demos o melhor que tínhamos transformaram-nos em escravos, a história não chegou a responder ao jovem Samba Diallo, porque eles podiam ganhar sem razão... Interpretar os factos, dar-lhes um lugar na representação do mundo, atribuir-lhes uma importância e um valor no bem e no mal, isto só pode ser feito com ajuda de princípios fundamentais. Não é portanto a história mas à filosofia que acabe o dever de apreender, anunciar e apresentar estes princípios. Cabe à filosofia ordenar e construir a história, dando-lhe a caução que ela pode ter. Sem filosofia nenhuma história é possível. Qual é a filosofia das nossas compilações históricas? Quando o homem se vê obrigado a aceitar uma necessidade externa, mediata, encontra-se numa posição equívoca, bivalente, pois isso equivale a um convite para fazer própria uma necessidade que não é sua, convidamo-lo a um fingimento, uma falsidade. Mesmo que ponha toda a sua boa vontade para fazê-la sua, não é certo que consiga. Assim, o que foi, e é, para muitos homens de outras sociedades, uma necessidade de tal maneira autêntica e viva, que alguns dedicaram a vida inteira a realizá-la, torna-se uma falsa necessidade e um falso actuar. O homem é propriamente, só que é
autenticamente, por íntima e inexorável necessidade. Ser homem não é ser no sentido de fazer alguma coisa, mas ser o que se é irremediavelmente. Existem muitas maneiras de ser homem e todas autênticas. A cultura e o saber não tem outra realidade se não responder de uma maneira ou de outra à necessidade efectivamente sentida. A introdução de modelos que não corresponde a esta necessidade, ficaram suspensos no ar, sem raízes sinceras nas pessoa concreta, que é obrigada a comê-los, engoli-los sem nunca os assimilar; introduz-se na pessoa um corpo estranho, um repertório de ideias e técnicas não assimiláveis, isto é a morte. Esta cultura não radicada no homem, que não nasce espontaneamente dele, carece de autonomia, é algo de imposto, de extrínseco, de estrangeiro, de não inteligível, em suma de irreal. Por debaixo desta cultura recebida, mas não assimilada, o homem ficará intacto, inculto. Um saber orgânico é mais sentido e portanto susceptível de ser assimilado, recriado e revitalizado. Assim se explica o colossal consumadores de história que vivemos. Não podemos resolver este problema fechando-nos em nós sustentando uma nova espécie de relativismo cultural. Olhar para as produções técnicas, científicas, jurídicas e constitucionais dos outros homens e civilizações é para nós uma necessidade inexorável. Temos que assimilar o saber acumulado, de contrário arriscamonos a sucumbir individualmente e colectivamente. É portanto necessário conhecer e assimilar os empreendimentos culturais técnicocientíficos do Ocidente. Para tal, é necessário que sintamos autenticamente a necessidade, que nos preocupem verdadeiramente as suas questões; só assim podemos entender as soluções que deram ou procuram dar aquelas questões. Nunca se pode entender uma resposta se não se compreendeu a respectiva pergunta. A questão com que nos defrontamos, não é a necessidade de ensinar procedimentos técnico-científicos, mas antes de mais e fundamentalmente ensinar a necessidade da ciência. É óbvio que isto supõe um conhecimento prévio de nós mecanismos científicos por desenvolvimento técnico do Ocidente, mas da nossa estrutura cultural, dos nossos problemas. Se continuarmos a assolar as populações com técnicas que correspondem às necessidades simplesmente mercantis do Ocidente, arriscamo-nos a alienar as pessoas com métodos que nunca serão assimilados. Mas se introduzirmos métodos e técnicas, que tenham como interesse primeiro, contribuir para solucionar os problemas que as próprias populações sentem como problema, elas abordarão esses meios técnicos, como meios susceptíveis de contribuírem na solução dos problemas. Não somos nós que nos devemos adequar à técnica, mas é a técnica que deve responder às nossas escolhas, às nossas opções, à nossa vontade. Nada de quanto podemos fazer parte da nossa vida se não nos dermos conta e não o assumirmos. Viver significa viver-se, sentir-se, saber-se existente; donde saber não implica necessariamente um conhecimento intelectual nem alguma sabedoria especial, mas é aquela surpreendente presença que a vida tem para cada um. Na raiz da vida está um atributo temporal que nos projecta, não no passado, mas naquilo que seremos, portanto no futuro. A nossa vida é sobretudo embater-se no futuro, é uma actividade que nos projecta em frente. O presente e o passado descobrem-se em relação ao futuro. A história deve ser entendida como a sequência de eventos que nos têm como autores, como sujeitos livres que compõem actos morais, a partir das suas escolhas e das suas exigências. Segundo H. Gadamer, o aparecimento de uma tomada de consciência histórica é verosimilmente a mais importante das revoluções depois do advento da época moderna. A sua dimensão
espiritual ultrapassa provavelmente a dimensão das ciências naturais, realizações que transformaram a superfície do nosso planeta. A consciência histórica, que caracteriza o homem contemporâneo é um privilégio e talvez mesmo um peso assaz duro... A historicidade está profundamente marcada pelo sigilo do tempo. Asserir o conhecimento não significa simplesmente dizer que o conhecimento varia objectivamente, segundo o período histórico ao qual pertence o sujeito que conhece. Historicidade relativamente ao modo de conhecer significa também, e sobretudo, que o poder cognoscitivo do homem se transforma profundamente com o tempo e com a variação da cultura. Segundo os assertores da historicidade gnosiológica, o passado paradoxo de mesmos, ou mesmos dos nossos problemas por um lado, e dos outro. A assimilação da ciência não depende do sedimenta-se no sujeito conhecedor, modela as suas faculdades cognoscitivas e influencia portanto o nosso conhecimento. Como tal, a mente humana nunca é uma tábua rasa «in qua nihil scriptum est», como pensava Aristóteles, mas é sim um estrato que tem já a sua forma preliminar, na qual não estão inscritas nem a ideia do ser, nem as categorias do ser, nem as ideias inatas de Descartes ou as ideias eternas de Agostinho, mas simplesmente a herança do passado. A tomada de consciência da dimensão histórica do conhecimento comporta uma revisão profunda para a teoria do conhecimento. Esta não pode ser concebida nem como uma manifestação directa da realidade, como queriam os realistas antigos e modernos (inclusive os positivistas e neopositivistas); nem tem que ser entendida como interpretação originária do eu (como queriam os idealistas); mas tem que ser entendida como interpretação da situação: um ser histórico como o homem compreende-se a si mesmo e aos outros, simplesmente interpretando: o conhecimento é essencialmente um evento interpretativo, hermenêutico. O homem faz necessariamente parte de um círculo hermenêutico: o passado oferece-lhe, tradições que recebe interpretando, e de novo comunica aos outros, os quais por sua vez se apropriam delas interpretando-as. O homem pode captar a realidade histórica simplesmente interpretando-a, primeiro porque a história é essencialmente movimento e no movimento algo permanece e algo passa; por isso para compreender o significado primeiro, originário das tradições, é necessário passar pelas várias fases de desenvolvimento. Segundo porque o passado nunca é estranho, e mesmo não nos dando conta, faz parte da nossa vida actual. Porém, faz parte da nossa espessura subjectiva através da interpretação. Somos herdeiros das tradições que não são simples elementos de registo, mas fazem parte da nossa vida, determinam a nossa prospectiva e as nossas projecções, a nossa maneira de ver e de agir. A hermenêutica concebida por Heidegger e pelos outros filósofos existencialistas não se orientam a partir do passado, mas do futuro, porque o homem é substancialmente um ser-fora-desi, um ex-sistente, completamente projectado em direcção ao futuro; por isso é necessário interpretar a realidade humana à luz do futuro. Hans Gadamer formulou uma teoria de interpretação que se apoia em três princípios: 1) o nosso conhecimento é sempre um esforço para responder a determinadas interrogações ou instâncias;
2) todos os documentos históricos registam as respostas que foram dadas a essas interrogações; 3) nenhum conhecimento existe sem preconceitos. Os preconceitos variam segundo as épocas e as culturas. A natureza da história e consequentemente da historicidade não pode ser diferente da natureza do tempo. Ora o tempo, como mostrou Bergson, é essencialmente «duração» «durée». Por isso a história mais do que sucessão de eventos de natureza diferente é tradição de factos, de acções e, portanto, ela tem como conotação essencial, a permanência de um elemento de fundo comum, não obstante as possíveis mudanças. Ao condenar as ideologias totalizantes e com pretensões exaustivas, avançamos uma filosofia que faz corpo com o devir histórico e incentiva a esperança, à avaliação dos nossos empenhos éticos e existenciais. É exactamente a filosofia na sua perspectiva crítica, que diz que o homem e a história, em muitos aspectos não coincidem. O homem torna-se na história, sem no entanto perder a sua identidade. O campo da história é para o homem, terreno de luta, de realização e de crescimento. Não só da racionalidade, mas também dos sentimentos e da fantasia. Mas se viver significa lutar e avançar, isto implica que a história não pode ser simplesmente horizonte de descrição, das possibilidades de juízo de valor, de contrário os esforços humanos caíriam na arbitrariedade de toda a manifestação subjectiva e a cultura tornar-se-ia inútil. Como raiz última do filosofar está o ser ou o querer, uma vez que cada filosofia depende no fundo, como revelou Fichte, de um acto de escolha. Nós optamos pela liberdade. E quando confundimos a liberdade com a imitação do outro, reduzimo-nos a simples consumadores de cultura e pomos em perigo essa mesma liberdade. Quando confundimos a liberdade com ideologias totalitárias, acabamos sacrificando o indivíduo concreto em nome do qual compreendemos as nossas lutas. A nova tentação consiste em exaltar de uma maneira desproporcionada e com risco de unilateralização, a liberdade criadora, inovadora, transformadora, sensível na qual se situa a ciência, como actividade simbólica e produtiva. Esta orientação é parcial, pois dissolve a liberdade (espiritual e cultural) em dados naturais, onde só certas pessoas beneficiam dos bens. Eis porque é necessário integrar as posições com o fundamento metafísico da cultura e com uma perspectiva de circularidade, de constatações descritivas e avaliações, que envolvem ciência e filosofia, história e ética ao serviço do crescimento humano. Não é lícito desacreditar o homem em nome de tabelas económicas, de produção e produtividade; quando falta um critério axiológico e o juízo vem formulado em função do desenvolvimento e progresso, acabam por se perderem as razões éticas e a manipulação «mesmo política» torna-se legítima. Todos os meios de subsistência que a nossa terra tem, produz e possui devem ser utilizados para confirmar a nossa liberdade e tornar mais livre o sujeito da história. O problema principal está por esclarecer: quais são as experiências reais que fundamentam a abstracção «história», quais são os sujeitos de direitos da história, se indivíduos privilegiados, se colectividades ou instituições fundamentais da sociedade social, quais são as incidências das ideologias no desenvolvimento da civilização. O mais importante é ter consciência de que reflectir sobre a história, e posicionarse fora dela é
por consequência, abandonar a obra puramente histórica. No livro VII da República onde descreve o mito da caverna , Platão diz que o homem deve sair em busca de um ser mais forte, de um ser que seja mais ser, e tal é a investigação filosófica. Seria lícito pensar que não possa existir um facto mais desumano que procurar traçar uma história humana, quer seja história do espírito ou história económico-social ou história de um progresso ou processo civilizador. De facto, um tal critério deixa supor que todos os protagonistas tenham beneficiado de um desígnio geral, para além de terem sido participes. Pelo contrário, os homens viveram simplesmente fragmentos de eventos e, nestes fragmentos, quase sempre mínimos, não puderam dar sentido à própria existência. Não existe uma história comum a todos os homens, mas existe simplesmente histórias de homens e crónicas de eventos. E isto não tanto porque os vários grupos de homens viveram longe uns dos outros e sem comunicação entre eles, mas porque tiveram uma escassa memória do passado, dos outros e deles mesmos. Os homens reais (e não o homem generalizado pelas filosofias e pelas sociologias) sempre tocaram somente a periferia dos eventos humanos, de «per si» já complexos. Parece que o tempo foi vivido, na sua grande parte, como presente excluía o futuro, que era encarado com medo, como morte. Se em grande parte, a história passada, numa concepção deste tipo, se traduziu em mitos de origem de eventos humanos, estes mitos foram projectados à posteriori, como justificações anteriores ao próprio presente. Estas historiogonias universais tentaram demonstrar como o espírito universal da humanidade tinha tido uma série dialéctica de incarnações, até concluir-se num ciclo perfeito na sociedade existente. Elas tentaram mesmo dar razão às guerras e aos conflitos entre os homens, ordenandoas numa sequência, ao mesmo tempo dialéctica e progressiva. Com isto, o devir foi sempre sacrificado ao presente e ao passado, por assim dizer, anterior ao seu actuar efectivo. É verdade que o futuro é, em parte, antecipável no presente, mas na condição de dar prospectiva ao passado – diverso e não finalizado no presente – e de dar espaço ao futuro, como novidade no presente, como construção responsável e não determinista do presente. O problema seria aceitar não ter estado presentes e não poder estar presentes para além da própria existência. O presente, então, poderia aparecer não como resultante da história, mas como um momento de transição no qual o destino, que é presente, é aberto, a construir, a inventar ou então a abortar ou a divagar. Quase todas as teorias avançadas, supuseram sempre o fim da história, geralmente no próprio presente. Mesmo as teorias mais dramáticas, interpretaram os eventos humanos como uma história atormentada que se teria finalmente resolvido, dando lugar, no futuro, a um processo racional e linear. Não resulta daqui, que alguém tenha postulado o próprio presente como um segmento transitório, com consciência dos segmentos precedentes, depois dos quais teriam seguido outros tantos importantes ou ainda mais importantes do que os outros do passado. Os homens da descoberta da história ainda não se diversificaram dos seus antepassados, os quais sempre se atribuíram o cômpito de «predecessores» em relação a finalidades ulteriores, que seriam vividas pelos posteriores, e nunca conceberam que eles fossem simplesmente homens, que viveram, ou
perderam, a sua irrepetível e autónoma existência. A «pietas histórica» nasce aqui: na compreensão que para os homens passados, os destinos irremediavelmente realizados com sucesso ou com as derrotas mais atrozes, independentemente do que tenha acontecido depois, e do que tenha sido traduzido ou não traduzido em finalidades pelos posteriores. «Pietas histórica» é também, começar a fazer o cálculo não do grande progresso, não obstante algumas perdas, mas das grandes perdas não obstante o modesto e discutível progresso; em suma, a contabilidade do preço pago para os enormes passivos da história. Deste ponto de vista, a história aparece contraditória, com contínuos «feed-back» positivos e negativos, e nunca resolvível através de saltos dialécticos conclusivos. A solução de algumas contradições pode ser encontrada simplesmente através de projectos, que provocariam outros «feed-back» em parte positivos e em parte negativos, alguns previsíveis e a encarar em formas inéditas. A história apresenta-se, assim, como um projecto aberto, sem facilidades e sem garantias objectivas de sucesso, se não aquelas que derivam da capacidade da praxis de actuar o próprio projecto, tendo consciência prévia, que será necessário superar os «feedback» negativos, cada vez que se apresentarem, implacáveis geradores de novas contradições. A história é, por assim dizer, uma estrada a altíssimo risco, que devemos calcular o mais possível, sob pena do nosso próprio desastre. Por conseguinte, a descoberta do passado deveria obrigar-nos a descobrir o futuro. Se o século XIX foi o século da descoberta do «planeta história» - definido por Gadamar, o evento mais importante depois do início da modernidade -, o século XX é, provavelmente, o século das primeiras descobertas do futuro. Mas esta ideia, como todas as preocupações humanas, tende a carregar-se de ansiedades e projecções do consciente e do inconsciente. O último é levado a bloquear o discurso do início. O primeiro procura ligar-nos ao operar actual, justificando este facto como o melhor modo de resolver a responsabilidade e a preocupação em relação ao futuro. Existem três aspectos do futuro: o primeiro, é já a sua antecipação no presente; o segundo, é um futuro que será em parte nosso e em parte dos outros; terceiro, (um futuro do futuro) que será dos que ainda não nasceram, um futuro que não podemos e nem sequer devemos predeterminar na sua originalidade, mas que condicionamos de uma certa maneira; e desta forma somos responsáveis. A relação com o futuro não é uma relação com o inexistente. Miguel Ângelo pintou na Capela Sistina um quadro famoso, onde se vê a mão de Deus alongarse até tocar a mão do homem. No século passado, com a descoberta da história, o homem alongou a sua mão em direcção do passado, e tocou povos longínquos no tempo e no espaço como os romanos, os gregos, os egípcios, os babilónios, os assírios, os etruscos, etc. Para esta aventura extraordinária, teve necessidade de toda uma gama de meios e métodos científicos, a quem a história chama seus auxiliares; assim nasceram investigações, essências de biologia, de paleontologia, da paleografia, da arqueologia, da historiografia, de numismática, de sociologia, etc., que nos desvendaram mistérios iniludíveis da aventura humana, ao mesmo tempo que
abriam horizontes até então insondáveis para a vida do homem. Contudo, quando este interesse pelo passado voltou para a relação com o o outro, ela inventou a antropologia – indissociável da colonização da qual foi instrumento -, na qual a áfrica foi retratada. E portanto o interesse pelo passado e a história, tinham nascido de numa situação calma, tranquila e de grande curiosidade intelectual... Pelo contrário, o nosso século descobriu o futuro de uma maneira dramática: sob a forma de crise económica, guerra, escassez de fontes de energia, poluição do ambiente, buraco de ozono, explosão demográfica, etc. É possivel penetrar no futuro como penetramos no passado? A filosofia pode dar caução a estas formas de sber? Quais são os meios a utilizar para esta aventura ainda mais importantedo que a do século passado? A descoberta tranquil do passado e portanto da história, levaram ao colonialismo com muita conivência da antropologia, ciência que nos foi detinada. Hoje não podemos, nem devemos assistir passivamente à descberta do futuro, se não, arriscamo-nos a ter que sofrer uma nova espécie de «antropologia futurista», sob forma de ecologismo, exigindo que vivamos na selva, ao lado de animais selvagens como novos «bons selvagens». Assiste-se no Ocidente ao nascimento de um fundamentalismo dos «verdes» e «ecologistas»; um fenómeno de moda que consiste numa fuga em massa da realidade em direcção a tempos passados e muitos longínquos no tempo. Regressa-se à ideia de um paraíso ‘perdido’, ao modelo já realizado e desaparecido num passado remoto. As épocas míticas caracterizam um passado sereno e feliz. Foi sob este prisma intelectual que se difundiu a ideia do «bom selvagem», do homem primitivo de vida simples e não corrompida. Como o homem ocidental não pode hoje voltar atrás, como os próprios ecologistas não podem renunciar aos automóveis, e o Ocidente não pode para o próprio movimento de desenvolvimento que está na origem da poluição do ambiente, a solução está em mostrar ao «bom selvagem», a quem se disse que a felicidade estava na modernidade ocidental, que ele não será feliz se não na condição de permanecer selvagem, ou mesmo a voltar a ser selvagem. Como em relação ao passado, é possível alongar a nossa mão e tocar os homens do amanhã. Se penetrarmos no futuro, se assim se pode dizer, encontramos homens prováveis, diferentes mas não incomunicáveis, em parte condicionados por nós, por aquilo que fizemos, fazemos, podemos fazer ( se não criarmos condições hoje, com as nossas acções para que os africanos de amanhã tenham uma vida normal, menos trágica que a nossa, arriscamo-nos a que eles tenham uma vida pior), tendo sempre em conta a necessidade de respeitar as suas liberdades. Se calcularmos o esbanjamento de forças e de energias, causado pela ignorância predecessores, que é ainda hoje esbanjamento que produzimos muitas vezes irremediavelmente, para o futuro, com as nossas guerras estúpidas, conflitos, individualismos, etc. O esbanjamento teve consequências desastrosas, o que conduziu a África ao estádio em que hoje se encontra. Nós somos parcialmente responsáveis em relação ao passado, que entretanto só agora começamos a compreender nos seus significados complexos. Mas somos ainda mais responsáveis em relação ao futuro. De facto, o futuro dos outros é já em parte nosso, e encontrar
uma ruptura nos três momentos é provavelmente impossível, seria errado. Aliás, no futuro existe também uma parte que é nossa relação «nos futuros», porquanto viveremos ainda. Em Hegel a alma era um espírito atemporal, isto é uma alma sintética da história na qual contam, porém, só as grandes almas. O resto é disperso na pólvora das batalhas e das sepulturas anónimas. Vice-versa, para nós, o tempo e a história são concretos, objectivos irreversíveis. Têm êxitos consumados positivamente e dores não resgatáveis com o passado, e potencialidades em carne e osso para o futuro. Todavia, o passado pode tornar-se, para nós, o reconhecimento de todas as vidas desaparecidas que podem reaparecer culturalmente em nós, e o futuro pode tornarse invenção para nós e contribuição para os outros, para encontrar no devir uma existência concreta mais válida. O tempo é uma continuidade e uma corresponsabilidade histórica e material e também um discurso crítico para com as experiências concluídas e para com as experiências possíveis do devir. E se nos parece aberrante renunciar ao presente pelo passado ou remeter o presente para o futuro, preço da nossa única vida possível, é também errado não avaliar suficientemente ou destruir os vestígios do passado, como aqueles inexistentes no futuro antes mesmo que se pudessem produzir. Repetimos a questão inicial, qual é a melhor maneira de pensar o futuro? Quais são os instrumentos de que se serve o filósofo para pensar o futuro, a profecia, a utopia ou a futurologia? O filósofo alemão Martin Buber (1878-1965) definiu a antítese entre a utopia e a revelação. Ambas resultam da mesma necessidade, «a impaciência da justiça», isto é, a visão do que deveria ser. Trata-se de uma necessidade que pela sua própria natureza não pode ser satisfeita no indivíduo, mas simplesmente na sociedade. Ambas tendem para a do passado e do futuro, por parte dos nossos muito pesado para nós, podemos imaginar o perfeição: mas enquanto para a revelação e a escatologia, o acto decisivo da perfeição cósmica deriva do alto, para a utopia a sociedade perfeita a que ela aspira é induzida por uma acção humana deliberada. Por fim, não obstante ambas tenham um carácter realístico, tal realismo é «profético» no caso da utopia.
FUTURO E PROFECIA Num dos primeiros editoriais do «The Negro World» (1919), Marcus Garvey declarava: «A África deve ser libertada, e todos devemos consagrar as nossas vidas, as nossas energias e o nosso sangue a esta causa sagrada». E no decurso da convenção internacional por ele organizada em 1920, afirma: «Nós somos descendentes de um povo que sofreu; somos descendentes de um povo decidido a não voltar a sofrer (...). Vamos mobilizar os quatro milhões de negros do planeta e plantar sobre o solo de África o mastro da liberdade (...). Se a Europa é dos Europeus, então África deve ser de todos os negros do mundo». Entre os meios propostos a fim de atingir este objectivo, Garvey sustenta a possibilidade de cada grupo étnico visualizar Deus à própria imagem: «embora Deus não tenha cor, é todavia humano ver todas as coisa através das próprias lentes brancas, nós começamos somente agora a ver Deus através das nossas próprias lentes». A luta de libertação dos povos negros contra o racismo e a opressão, serve-se também da teologia, que revela da revelação. Assim, em 1970, James Cone publica «A Black Theology of Liberation» que constitui a primeira obra sistemática da teologia da libertação. Ela precede a teologia da libertação(1971) de Gustavo Gutiérrez, que é a primeira elaboração sistemática da teologia da libertação, latino-americana (mesmo tendo Gutiérrez precedentemente escrito um ensaio «Por uma teologia da libertação», 1968-1969, que no entanto não atinge ainda um carácter sistemático). À pergunta, se a teologia negra não é unilateral, e se Deus tem um preilecção pela raça negra, Cone responde, justificando a teologia negra com três motivos: a) numa situação revolucionária ocorre unilateralidade, e uma unilateralidade que milita do lado dos oprimidos; b)numa sociedae racista branca ocorre unilateralidade branca em favor dos negros oprimidos, e é exactamete a mesma unilateralidade de Deus. Dizer que Deus não faz distinção de cores, é como dizer que Deus não faz distinção entrejustiça e injustiça, entre razão e culpa, entre bem e mal; c) a «nereza» não é simplesmente um dado fisiológico da pele, mas ela assume um símbolo ontológico de todos os oprimidos e de todos os opressores: «Este é o elemento universal da teologia negra. Ela acredita que todos os homens foram criados para a liberdade, e que Deus esta sempre do lado dos oprimidos contra os opressores, a teologia negra é uma teologia de sobrevivência». Se se adopta o método de correlação proposto por Tillich deverá dizer-se que as fontes da teologia negra são, por um lado, a experiência negra, a cultura negra, interpretadas e iluminadas pelo testemunho bíblico. Mas a norma, ou o princípio hermenêutico que realiza a correlação entre as duas fontes, é para a teologia negra «o Cristo negro que dá à comunidade negra a alma necessária para a libertação negra», e não como conotação física. A revelação é um evento, mas não se pode simplesmente circunscrevê-lo ao passado do êxodo e da ressureição; Deus fala e actua no presente, e precisamente na história da libertação e da opressão. E portanto: «A revelação é um evento negro, isto é o que os negros fazem pela própria libertação. Se para Barth, a revelação é autodesvelamento de Deus ao homem, para a teologia da libertação é o auto-desvelamento do homem em situação de libertação». Deus fez da condição
dos oprimidos a própria condição. Deus é negro, porque está do lado dos oprimidos. O Jesus histórico era «oprimido» e estava do lado dos oprimidos. Hoje é a comunidade negra a ser oprimida pela cor da sua pele. O Jesus histórico não foi neutro, não estava com os riscos e com os pobres, com os oprimidos e opressores, mas tomou posição em favor dos pobres e dos oprimidos. Deus nunca deixou os oprimidos sozinhos na luta. Ele esteve com eles no Egipto dos Faraós, com eles na América Latina, Ele virá no fim dos tempos para julgar a história e concluir as lutas de libertação. Segundo o filósofo negro americano, William Jones, a primeira questão de uma teologia negra, deve ser o «porquê» do sofrimento negro. A pergunta deve ser de tal maneira radical, até ao ponto de parecer blasfema. Deus é um racista branco? Pelo contrário, os ensaios de teologia negra são muito carentes sobre esta questão fundamental, pois eles partem do tácito pressuposto que Deus está do lado dos negros, e que é solidário com os sofrimentos e as suas lutas; então fica inexplicável a longa história do sofrimento negro. William Jones imputa ao homem a plena e total casualidade e responsabilidade da história. Por conseguinte, racistas são homens e não Deus. Cabe, portanto, ao povo negro libertar-se da opressão dos brancos. Para Cone, o filósofo Jones deve dar-se conta que a comunidade cristã negra, atinge da sua fé, a força de resistência e de libertação. A teologia negra propõem-se como instrumento de reflexão para acompanhar o negro no seu caminho de libertação. Na senda de Moltmann, Major Jones (¹) publica «Uma Teologia Negra da Esperança», onde ele pretende reportar a teologia da esperança à experiência negra, considerada na sua longa história da opressão, mas e sobretudo no particular momento histórico que está vivendo a comunidade negra. «Uma tal teologia não se adequa à linguagem da corrente da esperança que exprime os pensamentos de homens como Jurgen Moltmann, Wolfhart Panensberg, Ernest Bloch e outros. Existe demasiada abstracção nos seus pensamentos que ficam alheados do que inerente ao conteúdo conceptual da experiência que o homem negro tem do futuro. Pelo contrário, uma teologia negra que parta da escatologia, deve correlacionar os conteúdos da esperança escatológica, com as condições da experiência negra e com uma inteligível compreensão da mesma». Então, Jones percorre de uma maneira dramática a história dos povos negros até ao tempo presente. Trat-se de uma leitura da história dos negros americanos numa perspectiva de esperança. No encerramento da conferência de Atlanta em Agosto de 1977 sobre a teologia negra, James Cone, fez um discurso subordinado ao tema, «Teologia negra e igreja negra: e agora para onde vamos?». Ele indicava a necessidade de conjugar o signo de libertação com realismo da análise das estruturas opressivas e com as necessárias ligações à escala mundial de quantos lutam contra a opressão. A teologia negra da libertação é focalizada desde o início sobre a crítica ao racismo, elaborando um projecto teológico em termos de «libertação» (Cone), de «esperança» (Jones), e de «teologia política» (Roberts), mas prestou pouca atenção (contrariamente à teologia da libertação latinoamericana) à necessidade de assumir, nas sendas do marxismo, a análise social como
instrumento interpretativo da opressão dos negros (Cornel West começou esta aproximação com a obra «Teologia Negra e Pensamento Marxista» de 1979). A teologia negra sul-africana fez o seu primeiro aparecimento numa série de conferências organizadas em vários centros universitários em 1971 pelo movimento cristão universitário, recolhidas e editadas com o título «Ensaio de Teologia Negra» em 1972. tendo sido interdito a pretexto de ser subversivo, foi reeditado em Londres eem 1973, com o título «A Teologia Negra: a voz sul-africana». O programa das diversas contribuições é expresso nesta tomada de posição: «A teologia negra é uma revolta contra a escravatura espiritual do povo negro e contra a perda da sua dignidade e do seu valor humano. É uma teologia à procura de novos símbolos através dos quais possa afirmar a humanidade negra. É uma teologia de oprimidos, feita pelos oprimidos, para a libertação dos oprimidos». O volume contém um artigo do teólogo negro americano, James Cone e isto indica a conexão da teologia negra africana com a teologia negra norteamericana. O Bispo anglicano Desmond Tutu numa série de conferências feita na Europa, e depois publicadas em 1982 com o título «Também tenho direito a existir», explica o cômpito da teologia negra: «é uma teologia que pretende antes de mais afirmar os valores da humanidade negra, que a cultura europeia desqualificou por ser não-europeia e não ocidental: o termo ‘negro’ é a afirmação da pessoa da raça negra, do facto de ter consciência da própria existência, da sua humanidade, da sua dignidade e do seu valor». Esta afirmação da humanidade negra leva à recusa da humanidade branca ocidental, como instrumento de medição universal: «A ordem do dia das nossas vidas foi demasiadas vezes fixada pelo homem branco». E uma teologia que se impica na questão da existência negra, é uma teologia evoluída, especifica e existêncial. É portanto uma teologia do oprimido, uma teologia da libertação. Certos téologos africanos, sob a influência da teologia latino-americana de libertação, estão atentos ao aspecto social e ao carácter de libertação que deve assumir a teologia africana. Assim, para o teólogo camarones Jean-Marc Ela, «No debate da África com o Evangelho, o que está em causa não é simplesmente o cristianismo ocidental que foi imposto pela missão de ontem; é o cristianismo de uma sociedade que se estrutura na pobreza e na opressão». Trata-se de passar de uma teologia de adaptação, a uma teologia de incarnação, mas interrogando-se profundamente sobre a incarnação do cristianismo na perspectiva dos «danados da terra». Nesta perspectiva, a teologia que se procura, é aquela que se empenha em responder ao «grito do homem africano». «No momento em que os africanos, como os outros povos, enfrentam o choque da modernidade, na forma que é indissoluvelmente tecnológica e cultural, a libertação dos oprimidos não é a condição principal de toda a inculturação autêntica da mensagem cristã?»; «Na África negra, os cômpitos do Evangelho inscrevem-se numa região do mundo em que as potências do dinheiro decidiram fazer deste território da humanidade, uma reserva de escravos e de mão de obra a bom preço. Para as Igrejas, a questão levantada por esta situação é clara: cada dia em nome do Evangelho, escrever a história de libertação efectiva dos oprimidos». Para o jesuíta camaronês Engelbert Mveng, «A pobreza na África não é simplesmente um fenómeno sócio económico. É a condição humana, na sua raiz, que foi atacada, traumatizada, empobrecida. A pobreza africana é antropológica. Primeiro com o tráfico de escravos e depois com a colonização, os negros da África foram privados da própria identidade, da sua
«ipseidade», de tudo o que constitui o fundamento do seu serno-mundo, da história, cultura e língua. A pauperização antropológica precede e é mais profunda, que a pauperização sócioeconómica e apela a libertação com uma urgência ainda mais dramática». A declaração final do congresso teológico realizado em Accra em 1977 sobre a teologia africana exprimiu duas convicções: a) teologia africana deve ser uma teologia contextual, que corresponda ao contexto de vida e de cultura no qual vive o povo (...). a contextualização significa que a teologia deverá tratar da libertação do nosso povo, do cativeiro cultural; b) Assim como a opressão não se encontra simplesmente na cultura, mas também nas estruturas políticas e económicas e nos mass media dominantes, a teologia africana deve ser também uma teologia de libertação. O teólogo zairense Oscar Bimwenyi Kweshi, publicou recentemente uma obra monumental intitulada, «Discurso teológico negro-africano, problema dos fundamentos», com a intenção manifesta de se assegurar dos fundamentos teológicos negro-africanos a partir das exigências das tradições africanas e da mensagem cristã. Ele consagra a metade do livro – 270 páginas – à história da teologia africana desde o início da evangelização até ao ano 1977. Bimwenyi considera – o que ele chama – a a africanidade que não foi devorada pela modernidade, o pólo constitutivo da revelação entendida como processo de comunicação. O homem africano a quem se propõem o Evangelho não esquece a sua própria trajectória histórica e cultural. Deve-se ter sempre presente a tradição que permite de compreender-se a si mesmo, e de compreender os outros. Apoiando-se na teoria da dinâmica diferencial da mudança social de Georges Balandier, Bimwenyi distingue nas sociedades africanas actuais três instâncias ou níveis de mudança: o nível morfológico, o nível das instituições e o nível de significações fundamentais. O primeiro nível superficial, é o mais afectado pelas mudanças. Fazem parte deste nível: a indumentária, as habitações, as ruas, os aviões, a rádio, a escola, a cidade, os novos meios de produção, a economia monetária, os novos tipos de lazer, etc. Para o autor tudo isto, não obstante as aparências não toca a identidade africana. O segundo nível é o das instituições. A velocidade de mudanças aqui é muito mais moderada. As instituições tradicionais coexistem com a modernidade. É o caso da grande família africana, dos tribunais, do direito, dos costumes, da farmacopeia africana, do culto dos antepassados... E por fim existe o nível das significações fundamentais ou maiores. E a esfera da «cultura profunda» de um povo, do seu «carácter de base». Este é o nível mais resistente às mudanças. É aqui que se situa a africanicidade do homem africano, o ‘bosco iniciático’ onde o africano pode encontrar Jesus Cristo. O autor cita autores como B. Holas, e L.V. Thomas que consideram a mentalidade africana como imutável. Mais adiante ele tenta distanciar-se desses autores, mas no essêncial ele crê na imutabilidade da cultura africana. Os fundamentos do discurso teológico africano são, portanto, procurados exclusivamente nos valores «inactos» da civilização da África tradicional inscritos nos costumes, nas cosmogonias,
nos contos, nas fábulas, nos provérbios, nas alegorias, etc. Estes valores são considerados como acquesitos de uma vez por todas, protectas das vicissitudes da história. Na procura dos nomes e dos títulos negro-africanos do nome de Deus, Bimwenyi menciona a importância da situação concreta daquele que reza e invoca Deus. Mas depressa, o estudo tornase uma exposição sistemática sobre a etimologia dos nomes de Deus. A luta que Deus trava ao lado dos homens e contra os espíritos dos mortos, contra os feiticeiros. Quanto ao mal e o sofrimento causado hoje pelos regimes políticos, pelos sistemas económicos e potências militares, nem uma palvra. A cultura africana permaneceu como os etnólogos e os exploradores a encontraram. Como sonharam os negro-americanos do negro-renaissance, como a viram os defensores da negritude, como a proclamaram os etno-filósofos. Se esta teologia permanece nas sendas de etno-filosofia, se faz da etno-filosofia sua «ancilla», não será ela mesma uma etno-teologia? Bimwenyi está ainda demasiado preocupado em provar ao mundo ocidental que a África pode produzir discursos teológicos próprios. Contudo, a sua obra não é a única elaboração «etnoteológica» que existe; ela é a sistematização mais recente e mais brilhante do género, foi por isso que nos servimos dela para ilustrar esta forma de fazer teologia que aliás é hoje muito comum em África. Basta pensar nos trabalhos de François Marie Lufuluabo, de Vicent Mulago, Meinrad Hebga, a produção teologia actual de Kinshasa, as publicações de Anselme Sanon e em certas publicações do instituto católico da África de Oeste (Abidjan) como a de Jacob Agossou, etc. Nesta teologia, tudo se passa como se as religiões africanas tivessem no cristianismo o seu ponto natural de chegada. Ora, um estudo objectivo das religiões africanas tradicionaisnão autoriza uma tal tomada de posição. A maior parte dos trabalhos de teologia efectuados pelos africanos tem como objectivo mostrar que as categorias da revelação bíblica ou da teologia cristã existiam já nas religiões africanas. A cultura não é estática e desencarnada, ela depende das condições concretas de existência. O homem africano tem um projecto, na configuração actual do mundo, criar uma comunidade livre e próspera, contra a violência e a arbitrariedade. É através da iniciativa criadora que ele sairá do conflito dos tradicionalismos e da anatomia do tradicional e do racional onde procuram aprisioná-lo, para tornar-se autor responsável da sua própria história. A concepção do homem africano foi e está ligado à doutrina da negritude como afirmação, diante do desprezo do colonizador, dos valores culturais do mundo negro. Trata-se de estabelecer que a África não é continente no estado da natureza e de fazer admitir que o negro é também um homem. Na segunda parte deste trabalho, já mostramos as ligações desta doutrina com a etnologia ocidental, da qual aliás ela é resultante. Os etnólogos ocidentais elaboraram e deram aos africanos uma etno-filosofia, isto é um pretenso pensamento africano constituído de dados etnológicos, não sujeitos a nenhuma dialética; através da negritude, esta doutrina suscitou a criação de uma etnologia. O pensamento da negritude parece conduzir inevitavelmente a uma teologia africana de tipo «cultural» e «apolítica». A teologia cultural procura os fundamentos do discurso teológico africano exclusivamente nos valores da civilização da África tradicional contidas nos costumes,
nas cosmogónias, nos contos, nos adivinhos, nas lendas nos provérbios, etc. Ela considera estes valores como aquisição permanente protegida das vicissitudes da história. A identidade de um homem nunca é determinada uma vez por todas, fora do espaço e do tempo; ela não é da ordem das coisas substanciais e dos substractos. O africano não é dado uma vez por todas pelas suas crenças, pelos seus costumes, pela sua maneira de comer e de se vestir. A identidade africana é e sempre será da ordem do acontecimento, será resultado de uma assunção e de uma transformação incessante dos condicionamentos físicos, biológicos, históricos e culturais do homem africano. O Evangelho também não se deixa impressionar em textos sagrados, em símbolos e em ritos privilegiados. Palavras de vida, palavra de Deus que vem, Ele é modelo de restruturação de si na história através da história. Nenhuma figura histórica do cristianismo é absoluta, e não existe vida cristã em si, num céu de essências eternas, que chega a transplantar por hibridação a palavra de Deus cria a partir do nada e renova a face da terra. O africano cristão será africano e cristão sobre a maneira do acontecimento (evento). O cristianismo africano será diferente segundo as épocas, as problemáticas e as preocupações do momento. A etno-teologia tem um discurso sem impacto no debate essencial sobre o devir de África. Sobre o plano prático, as igrejas do Zimbabwe, de Moçambique, de Angola, do Benin, da Namíbia, da África do Sul, desempenharam e desempenham um papel importante na reconciliação dos respectivos países. O filósofo não é um profeta. A profecia existe simplesmente nas religiões reveladas, nas quais Deus faz conhecer a sua vontade por meio de um homem por Ele escolhido. Mas a filosofia africana não pode permitir-se ignorar a dimensão profética, sobretudo quando esta pretende trazer a sua contribuição à causa das massas africanas, razão pela qual a filosofia africana nasceu. É pena que não tenhamos um profeta que nos indique o caminho. Se tivéssemos, teríamos evitado cometer erros que nos têm custado caro em termos de vidas humanas, de destruições materiais, de atraso em relação ao ritmo actual da humanidade. É pena que não tenhamos um profeta sobretudo hoje, capaz de nos indicar entre as diferentes hipóteses, qual é a melhor ou a mais justa para atingir as finalidades que nos propomos: uma paz duradoira, uma produção alimentar suficiente, uma educação adequada, etc. Na impossibilidade de nos fazer valer da profecia para atingir estes meios, somos obrigados a recorrer a outros meios. Contudo mesmo sabendo que a profecia não pode resolver o problema da alimentação, do desenvolvimento e mesmo da guerra, o filósofo não pode ignorar a mensagem profética sobre o futuro, ainda menos «as actividades proféticas». Assim, o papel profético das igrejas de Moçambique e da África Austral em geral, em favor da paz e da reconcilição entre gupos políticos, étnicos e tribais tem sido de uma importância crucial. Com efeito, o futuro a construir, o futuro diferente terá de ser alcançado através de muita reconciliação, de muito perdão, de uma enorme capacidade de sacrificar o passado e os mortos, em nome do futuro e dos vivos. O papel dos «profetas», dos reconciliadores dos espíritos vai ser primordial. O papel que as igrejas podem e devem desempenhar na edificação de um futuro diferente não pode ser substituído por ninguém, nem por nenhuma outra instituição de dimensão humana. A Igreja não pode limitar-se simplesmente à tarefa, embora árdua, de reconciliar so homens as etnias, as tribos; mas deve participar na educação no sentido da tolerância, da
indulgência, da solidariedade que são prerrogativas indispensáveis para a edificação da democracia e dum futuro diferente. Os partidos políticos na febre de conquistar votos para os seus fins particulares acabam mobilizando populações inteiras com fins particulares, às vezes contrários aso interesses comuns. A edificação de uma comunidade de destino, condição necessária para que cada um ocupe plenamente o seu lugar, é na situação presente uma tarefa quase sobrenatural, na qual a dimensão profética deve ocupar o seu lugar.
FUTURO E UTOPIA Outra maneira de pensar o futuro é a utopia. Ela é de facto um dos géneros literários mais antigos e responde a duas tendências profundas, radicadas no espírito humano: a curiosidade do futuro e a necessidade de esperar. Entre os primeiros utopistas citam-se em geral Falea de Calcedónia, Aristofanes e Teopompo de Chio, mas sobretudo Platã. É de facto com ele que a utopia grega chega a elaborar muitos dos carácteres típicos do género. Platão nasceu em 427 em plena guerra de Peloponeso, a longa e desastrosa guerra que Atenas combateu contra Esparta e que se conclui simplesmente em 404 com a vitória dos espartanos. Naqueles anos de crise profunda, de desorientação e de incerteza, Platão escreveu a República, onde teorizava a reconstrução de uma sociedade perfeita. Ele distingue, no seu Estado ideal, três classes: a classe dos filósofos, que dirigem o Estado, dos guerreiros que o defendem, e dos camponeses que provêm ao sustentamento da comunidade. O Estado ideal, segundo Platão, não deveria ser, quanto ao território excessivamente extenso, nem demasiado populoso, não devia ter mais de 5040 cidadão, o número máximo de pessoas às quais podia dirigir-se eficazmente um orador. O problema de um bom ordenamento do estado, é o problema da boa e eficaz educação. Para garantir a escolha e a formação adequada dos governantes, ele prescreverá que se ensinassem a música, a dança, a matemática e a filosofia, mas não a poesia. Os poetas, os dramaturgos e os pintores serão banidos e suas obras censuradas. A única forma de poesia tolerada são hinos aos deuses e aos heróis. Platão escreve Mumford – inaugurou um género literário, mas estabeleceu um mau precedente para todos os utopistas que se seguiram. Ele foi o primeiro a orientar as instâncias morais em direcção a construção de uma sociedade mais justa, através do estabelecimento de instituições estáticas e auto-limitativas. O Estado platónico descrito na República é um Estado petrificado (derversteinerte Staat). Platão acreditava que todas as coisas criadas e regeneradas eram destinadas à decadência e que, portanto, toda a mudança social leva à degeneração. Então, ele prefixou-se o trabalho de construir um Estado que não decisse, que não pudesse sofrer mudanças políticas. A estaticidade das instituições sociais por ele projectadas, devia ser conseguida através de uma rígida divisão entre as classes, introduzindo a censura, utilizando a educação como instrumento de condicionamento político, evitando ou reprimindo as inovações na legislação e na raligião. O programa político de Platão é sem dúvida totalitário. Platão teorizou uma sociedade fechada, criticou a democracia ateniense, mas a sua não foi uma crítica democrática, porquanto era dirigida a instaurar um regime totalitário. Por isso, como escreve Poper, «o que nós devemos aprender com Platão é exactamente o contrário da sua doutrina. E esta é uma lição que não deve ser esquecida. Por quanto excelente possa ser o diagnóstico sociológico de Platão, o seu desenvolvimento mostra que a terapia que ele recomenda é pior do que o mal que ele procurava combater».
Como Platão, também T. More nos apresenta uma cidade ideal, uma sociedade onde o controlo social é particularmente intensivo. Na Utopia não existem dissidentes e opositores. Classes, profissões, instituições, tudo é regulado e regular. Até a urbanística das 54 cidades da Utopia, todas iguais entre elas, é o que pode ter de mais regular e simétrico: as cassas são todas de três andares, todas perfeitamente alinhadas, todas da mesma forma. Na sociedade perfeita teorizada por More para visitar um amigo, que viva na mesma cidade ou diferente, deve-se submeter a uma série de normas restritivas ou então arriscase a cair na escravatura, (isto recorda-me o que se passava durante alguns tempos em Moçambique com as guias de marcha). Todavia, juntamente com estes elementos carregados de um totalitarismo desconcertante, encontram-se também reflexões com valor extremamente positivo. More critica a ordem social existente, opõe-se com grande determinação moral à iniquidade moral, política e económica do seu tempo. A história das utopias – como nota justamente Daherendorf – é a história de um sector profundamente moral e polémico do pensamento humano; se bem que de um ponto de vista realístico e político, podem ter escolhido meios discutíveis para formular as suas convicções, eles conseguiram pôr nas próprias épocas as preocupações pelos defeitos e pelas injustiças das situações e dos valores existentes. Nos escritores utópicos lê-se um diferendo, às vezes acentuado e contraditório, entre a ordem factual-histórica e a ordem ideal-utópica, onde se evidencia o esforço de transformar a primeira, para adequá-la à segunda. Neste sentido, a utopia é sem dúvida uma força fecunda da história, se for orientada e potenciada por uma verdadeira consciência do homem. Isto não pode, contudo, justificar uma visão do «homo utopicus» como um profeta do futuro, e do utopismo como a uma corrente de pensamento que se usa a esperança de uma maneira atenta e libertadora, como se fez durante muito tempo. Com efeito, Oscar Wilde pôde escrever, que «Um mapa mundo que não inclua a utopia não merece sequer um olhar, pois deixa de fora o único país onde a humanidade teve sempre como meta, e quando a humanidade a alcança, olha em frente e, descobre um país melhor e então continua o trajecto». Durante muito tempo e ainda hoje, com o termo utopia defini-se o irreal e o impossível; evocamse imagens e fantasias totalmente estranhas à realidade; indicam-se todos os projectos promovidos com uma certa boa intenção, mas que não podem realizarse. Falou-se assim da utopia como um pensamento vão, sem fundamento, como de uma flor de ilusão. Todavia, juntamente com este significado conceptual, o termo utopia tem uma outra acepção semântica. Ele é de facto usado também para significar a capacidade de antecipar conteúdos concretos que se realizarão certamente no futuro mais ou menos longíquo. Por outras palavras, define-se a utopia como uma fé racional numa realidade não existente, mas potencial, que representa – numa perspectiva não imediata – um bem para quem a sustenta; esta não deve ser contrária ao que conhecemos da natureza humana em particular, pode mesmo fazer-se referências àqueles que podem ser os futuros previsíveis desenvolvimentos da tecnologia actual, e deve mesmo prescindir-se da ordem social existente. Um número sempre crescente de especialistas vê na esperança utópica um grave obstáculo a uma tomada de consciência do futuro, que é a única que nos pode permitir um certo controlo sobre o destino humano. E os argumentos que tornam possível tal tese, encontram um background nas investigações de ordem psicanalítica, sociológica, epistemológica e psicológica, que nos últimos anos foram feitas sob total tradição utópica. A utopia não é como normalmente se crê a celebração mais alta desta actividade fantástica, mas pelo contrário esta sentencia a sua morte. No estado único prospectado por My da Zamiatinn, a
fantasia e o sonho são considerados doenças psíquicas e, no seu trabalho utópico, Swift nota como os habitantes de Laputa não conheçam nem imaginação, nem fantasia, nem invenção. De facto a cidade utópica, perfeita eterna, pode simplesmente acolher a fantasia política de um único utopista, uma vez que sóele teve olhos para colher a verdadeira forma de Estado, somente ele encontrou a solução. A cidade utópica é portanto o sonho de um só homem. Os seus habitantes carecem de uma dimensão histórica, não possuem do bem e do mal qualquer dimensão, mas são simplesmente bonecos idiotas. Eis porque a história da utopia é uma história sem nomes. Se nós tivéssemos, por exemplo, simplesmente de imitar os homens ocidentais, o nosso futuro seria incolor, sem história e sem dimensão. Nesta atmosfera artificial seríamos cópias dos homens ocidentais, com os mesmos desejos e reacções, sem emoções e paixões diferentes dos nossos mestres, uma vez que estes seriam os sinais da nossa individualidade. A utopia é o reino da luz, da ortodoxia. Não se pode lutar nem esperar numa utopia melhor. Pensemos nos fundadores dos partidos africanos das independências, aos vários Samoras Macheis, Kaundas, Nhereres, Cabrais, Netos, Segou Toures, etc. Foram homens que tiveram sonhos ilustres, e sobretudo tiveram a coragem de lutar para transformar os próprios sonhos em realidade. Simplesmente obtidas as independências, no frenesim de realizar os seus sonhos, transformaram muitas vezes os próprios povos em instrumentos de realização das suas utopias. E como na cidade utópica não se admite um segundo sonho, todos aqueles que ousaram sonhar diferentemente, pôr em dúvida a utopia dos dirigentes, foram vítimas da ortodoxia utópica dos primeiros; assim as revoluções tornaram-se opressões; e os libertadores em ditadores. Isto não deve fazer esquecer o facto de que os nos processos, ainda contraditórios (e muitas vezes incontroláveis) que chamamos revoluções, efectuaram-se os saltos mais relevantes da nossa história. Ainda menos se deve seguir a estrada da simples contabilidade das revoluções, computando os preços, os gastos, as dimensões por elas provocadas em relação aos resultados imediatamente obtidos. Os poderes coloniais criaram, em conjuntura de paz, situações de esbanjamento e de abusos muito maiores, e isto durante séculos, e sacrificaram homens com a escravatura e as repressões, em quantidade muito maiores de quanto fizeram as revoluções. O verdadeiro esbanjamento das revoluções não consiste no seu aparecimento e realização, mas na sua «involução». Nem as teorias supra-estruturais (como o marxismo), nem as transformações estruturais (caída de um regime ou a abolição de sistemas económicos precedentes), as tensões, as esperanças, foram até aqui suficientes, para realizarem transformações económicas e sociais globais. Provavelmente a razão fundamental das «involuções» das revoluções reside na incompatibilidade entre os três níveis tomados em consideração, mas indo mais ao fundo, pode pôr-se a hipótese de que se tenha incluído um defeito nos três níveis. A nível estrutural supôs-se que quanto mais simples fosse uma teoria, tanto mais pareceria científica. Os conceitos simples como progresso, razão, desenvolvimento, luta de classes, fim da história, devem os seus sucessos à insuficiência. A realidade era mais articulada do que estas armadilhas interpretativas. A nível estrutural, pensou-se que um projecto económico, teria sido necessário e suficiente para pôr ordem numa África destruída. As nossas revoluções reduziram-se essencialmente ao esforço de emancipação não dos homens, mas das forças produtivas. Neste sentido, os homens, as culturas, as tradições são libertadas, mas não ficam livres, obrigados a suportar novos poderes, depois de term conseguido fazer desaparecer a opressão precedente. A raiz do mal esta no poder. Os revolucionários ficaram presos às ideologias que os guiavam quando não tinham nenhum poder, quando não eram reconhecidos e eram obrigados a uma clandestinidade continuamente
ameaçada por perseguições terríveis. O poder era externo e devia ser abatido. O poder está armado e ocorriam armas para derrubá-lo. Por isso parecia lícito ter uma organização interna de ferro, onde o «centralismo democrático» comportava a delegação absoluta, do campo aos chefes, exactamente como nos exércitos pela sua natureza autocrática. Mas os revolucionários conseguiram tomar o poder. Todavia, a organização militar ficou inacta não obstante a tomada parcial ou completa do poder. Se esta organização permanecesse inacta, na defesa dos interesses nacionais contra intervenções estrangeiras, seria compreensível; só que se tornou no braço armado dos chefes e das suas ideologias utópicas, contar as reivindicações democráticas das próprias populações. Isto acabou quase por legitimar as rebeliões armadas, e por dar cobertura às intervenções exteriores. Assim contribui-se para usurpar a liberdade dos povos; e esta consiste na construção de um sistema substancialmente democrático, baseado sobre a efectiva participação de todos, nas escolhas e nas actuações políticas. Como demonstrou o sociológo Alexis de Tocqueville, as revoluções são de tal maneira rápidas, que não conseguem criar instituições verdadeiramente originais, acabando, acabando assim normalmente por adoptar as instituições precedentes. Chegados ao poder, os dirigentes têm um único caminho a percorrer:ou negar o poder para todos e, portanto, também para si mesmos, ou estabelecer uma nova ordem, com eles no topo. O mal, o defeito, a deficiência está na origem. O Estado nascente estava demasiado ligado ao Estado moribundo. Nascimento e morte coincidem, e a deformação do poder, acaba por matar o não-poder, a não ser que imediatamente depois da tomada do poder, ele fosse transferido para os povos para construir uma democracia substancial. Não sob a forma de simples circulação de elites, mas dando aos simples cidadãos a possibilidade de se confrontar e resolver quotidianamente os próprios problemas, sem a intervenção dos «deuses do olimpo». Mas não, é evidente que as intenções não chegam. Apenas o processo iniciado, os propósitos de liberdade, justiça, igualdade pelos quais se lutou, perdem-se pelo caminho, e os revolucionários tornaram-se os novos usurpadores do direito, da liberdade, da participação dos próprios povos. Ocorre, portanto, que a filosofia africana neste momento de mudança, se institua porta-voz de um novo projecto: pacífico, construtivo e colaborativo. Comecemos por esta premissa ao mesmo tempo epistemológica e antropológica. Os homens que procuram uma ideia guia para a sua vida em sociedade, a base inspiradorapara o seu pacto de união, são e devem permanecer homens livres e iguais, no sentido que já possuem lockianamente o direito a uma liberdade igual. Aliás, só homens livres e iguais podem procurar um acordo entre eles sobre qualquer princípio de vida associada; de contrário, em vez de um pacto de união, eles fariam um pacto de subordinação, no sentido de Hobbes, de transmissão da própria vontade social a um soberano que se ergueria por cima deles, obtendo deles simplesmente obediência. A liberdadde e a igualdade são também o pressuposto da forma democrática de organização social: como estrutura social, a democracia é uma associação e, como é óbvio, toda a associação pressupõe liberdade igual de todos e de cada um. O ponto central das teorias democráticas é normalmente a análise dos sistemas políticos como competições finalizadas à conquista do poder. Mas de «per si», a realidade democrática é directamente proporcional ao espaço reservado às liberdades e às iniciativas dos cidadão e sos grupos. A qualidade da política depende antes de mais dos direitos políticos; isto é, do direito de cada individuo e de cada grupo a participar ao processo decisional colectivo. Juntamente aos direitos políticos, a qualidade da política depende dos direitos civis, direitos económicos e direitos sociais. De facto, estes direitos podem ser considerados direitos
democráticos simplesmente enquanto se entrelaçam em sistemas de relações dotados de autonomia moral e portanto também do direito dos direitos; isto é autodeterminação de cada indivíduo e de cada grupo a planificar a própria vida. Deste modo, as liberdades dos indivíduos e dos grupos são o único e exclusivo «medium» entre o sistema político, o sistema social e o sitema institucional. Em resumo, simplesmenteuma gestão programada dos direitos pode permitir aos indivíduos e aos grupos uma participação activa na política, na sociedade e no Estado. As liberdades individuais não são simplesmente a reafirmação kantiana da pessoafim e da sua dignidade e autonomia, mas é o princípio activo da política e dos estados, o metro da sua organização e do seu funcionamento. As liberdades individuais realizam-se nas instituições democráticas que são proclamadas e realizadas attravés de princípios ideais, de instituições jurídicas e de relações factuais que lhe desenham o vulto e lhe afinam continuamente a fisionomia. A relação entre as liberdades individuais e as colectividades políticas leva imediatamente o indivíduo a transferir-se ao colectivo, pois que, como é óbvio, a dignidade abstracta e a autonomia da pessoa-fim vive concretamente no sistema de acção social que acolhe o agir individual, como agir em vista do outro e que progressivamente se estrutura em conjuntos colectivos e, portanto, em ordenamentos sociais. O «medium» desta construção já não é o indivíduo mas a acção colectiva. O ponto de maior expressão teórico e prático é como tornar inofensiva a lei férrea da oligarquia nas formações sociais. Para alargar o princípio democrático é necessário fazer este passo fundamental; que a arte de associar-se como veículo de uma arte geral de cooperação social não constitua simplesmente o meio privilegiado de agregação dos interesses e de sequela de valores comuns, mas assuma em si um valor moral e quase pedagógico em direcção a agregações mais vastas e acções participativas mais largas. Todavia, tudo isto exige o abandono de uma antropologia do homem egoísta e egocêntrico que conhece simplesmente o seu interesse individual e o cálculo instintivo da própria utilidade; e a assunção de uma antropologia do indivíduo que aceita os limites que a acção social porta consigo, sobre o plano da comunicação e do interesse comum que ocorre atingir gradualmente. Aqui entra em causa o próprio princípio regulativo de cooperação social; que se permanece o da utilidade utilitarista, condena-nos a atingir a realização social passando pela pura satisfação das necessidades individuais; enquanto o princípio da justiça, por exemplo, permitir-nos-ia invocar processos de libertação do egoísmo social em direcção à progressiva construção de um bem partilhado e partilhável na realidade das relações humanas. A justiça como princípio regulador, é a ponte ideal entre a pessoa-fim e a sociedade no seu conjunto. A democracia deveria assegurar a subordinação do «governo» ao conjunto de direitos populares, exercidos periodicamente através dos votos. Com estas, a socidede civil tentaria subordinar e controlar o processo decisional público para torná-lo mais aderente às necessidades da sociedade. Porém, todo o vasto mundo da implementação administrativa, das políticas públicas ficam sem controle e sem discussão pública. As liberdades individuais e mesmo a acção colectiva, parecem mudas e impotentes diante da articulação concreta da vida do Estado. Mas é exactamente aqui, na articulação da vida do estado, que as liberdades individuais e dos grupos, e portanto, a democracia, tem um dos seus principais pontos de verificação. Isto exige que a democracia vá para além do processo eleitoral e que se designem formas de participação e de controle social através dos quais os direitos individuais e de grupos encontrem o seu terreno de realização. Isto vale, não simplesmente para o sistema administrativo, mas para todos os outros sistemas sociais, do económico, ao científico, até ao sombólico-cultural. Uma tal
concepção de direitos individuais e de grupos, tem consequências objectivas quer sobre a estrutura formal do ordenamento jurídico, como sobre a organização institucional. Existe em Moçambique e em todos os países da África, uma grande distância entre a realidade social e a realidade política. A reconstituíção do fundamento moral da política passa necessariamente através da reconstrução da comunicação entre os participantes da associação política. O problema principal das sociedades africanas de hoje, não é a escolha entre um partido de esquerda ou um partido de direita; nào é o capitalismo ou o socialismo, não é a tradição ou o progresso, não é a justiça ou a liberdade. O problema real consiste em dar ao povo a possibilidade real de escolher os próprio ideais, os próprios fins, não por intermédio de um partido, de um presidente, mas directamente. Do que os povos têm necessidade, é antes de mais, de apropriar-se do próprio destino, e de assumir e guiar a própria história. O objectivo é a construção de uma sociedade que não tenha os seus princípios num «fiat» doutrinal, nos decretos de uma ciência, nem nos programas de um partido novo ou velho que seja; o objectivo é a construção de uma sociedade onde as fórmulas não sejam ditadas do alto, nem desçam da capital, mas se inventem, se improvisem ao nível das escolhas quotidianas, e se ordenem segundo as leis da liberdade. O federalismo é o sistema jurídico que se baseia no respeito dos valores da liberdade, da diferença e da igualdade política e da participação de todos. A existência do direito, pressuposto para a democracia, supõe uma adesão implícita dos homens, que se raliza quando um conjunto de homens considera que o direito exprime correctamente as suas intenções e as suas esperanças, as suas crenças e os seus valores, a sua dignidade e as suas aspirações. Isto impede os homens de recorrer à violência para solucionar os seus conflitos, e obriga-os a recorrer a meios jurídicos, que não sejam levados a violá-los por motivos normalmente legítimos, portanto a revelar-se contra a ordem legal. A primeira condição da democracia, não é poder votar por um partido ou por um outro, nem sequer de poder escolher o presidente que queremos que nos governe. Democracia significa que quem comanda não é nem um presidente nem um partido, mas nós. A democracia consiste na inserção de cada indivíduo no seio da comunidade, e na participação integral da sua vida. Cada indivíduo deve poder cooperar, ouvir e fazer sentir a sua opinião, ajudar e fazer-se ajudar, amar e ser amado. Se reflectirmos sobre a política dos Estados africanos independentes, constatamos facilmente um número importante de erros e abusos cometidos pela única autoridade legal do país. Estes erros custaram muitas vidas humanas, divisões entre povos e famílias, esbanjaram energias, provocaram inércias, favoreceram o neo-colonialismo político, económico e social, provocaram guerras entre irmãos, etc. Os erros não são prerrogativas de um partido, duma corrente de pensamento, duma geração ou de uma tendência política; são inerentes à pessoa humana. Onde há homens há erros, onde há poder há tendência para o abuso. A única maneira de atenuar a invasão da vontade do poder humano, na gestão das coisas públicas, é preveni-la. Isto supõe que se deve limitar e dividir o poder. Uma sociedade não pode ser governada eficazmente sem tomar corpo num conjunto de instituições duráveis. Sem um núcleo de instituições bem fundadas, toda a acção política fica sem futuro. Porém a comunidade social lança as suas raízes a partir das condições próprias do homem, das suas necessidades fundamentais e dos seus fins mais pessoais. Ocorre, portanto, criar um modelo de pequenas colectividades que não deveriam ser maiores que a capacidade de compreensão de um espírito humano, onde cada indivíduo estaria em condições
de controlar o conjunto da vida colectiva. A função de coordenação não implicaria nenhuma potência, porque o contínuo controlo de cada um tornaria impossível todo o tipo de decesões arbitrárias. O falhanço das economias de todos os Estados centralizados, serve de prova contra o binário Estado-desenvolvimento. A necessidade de um poder forte, como condição para a construção de um Estado de desnvolvimento, serviu aqui e ali para provocar guerras, mas nunca para melhorar as condições de vida dos cidadãos. A política consiste exactamente na livre escolha que os indivíduos fazem dos seus fins, e na invenção de meios para os atingir. Cabe-nos definir os fins comuns a atingir e os meios apartir dos quais vamos atingir os fins que nos propusermos. Temos que partir das raízes, das famílias, das aldeias, das povoações, dos distritos. Temos de criar antes de mais, as pequenas unidades compreensíveis por meio de pequenas acções multiplicadas. Só aqui é que a democracia e o sufrágio universal podem ser verdadeiramente eficazes. É aqui que os cidadãos podem de facto encontrar-se, discutir, cooperar, solidarizar-se. Este é o lugar de participação por excelência, e onde a palavra ganha o seu sentido. As pequenas comunidades devem ser escolas de autonomia. Mas para tal devem começar por ser autónomas. Devem poder escolher a assembleia da própria comunidade, não a partir de um partido político, mas a partir dos objectivos políticos, dos projetos socio-económicos propostos. Por outro lado, as exigências jurídicas da vida democrática deveriam começar a ser praticadas a este nível. Assim, por exemplo, os poderes estatais compreenderiam uma camada juvenil, representante de um certo saber experimental necessário às estruturas da vida moderna; ao mesmo tempo que compreenderiam o saber dos nossos «velhos», autênticos depositários da cultura tradicional, saber equilibrador na marcha em direcção ao futuro. As pequenas comunidades seriam o espaço de fecundidade de dons, capacidades, ritmos e exigências singulares. Elas seriam o espaço de participação, de solidariedade e de amor. Se a responsabilidade de gerir as regiões estiver nas mãos dos distritos, é certo que nenhum país africano aceitará, por nenhum preço do mundo, descargas nucleares, que são autênticas bombas ao retardador; nenhuma comunidade aceitará a implantação de uma fábrica no seu território, sem ter avaliado as consequências para a saúde pública, e as vantagens económicas que isso pode trazer; nenhum distrito aceitará privar-se dos lugares ou bens essenciais para a vida da própria comunidade, como praias, campos florestas e outros; nenhuma comunidade aceitará transformarse num centro de produção para uma companhia proveniente de não importa que país; nenhuma comunidade aceitará dirigir a sua produção local para fins exclusivos de exportação, ou para uma economia orientada do exterior. Antes pelo contrário, todas as comunidades criarão meios para ter um bom hospital e funcional, para ter escolas para a educação dos próprios filhos, ter ruas, meios de transporte, uma produção e uma economia equilibradas e suficientes, defender os próprios interesses, preservar os próprios bens históricos e ambientais, etc. Só as pequenas comunidades podem permitir que a democracia seja real. Só elas podem permitir um certo nível de protecção, num mundo sempre mais invasor, só elas podem trazer um elemento de humanidade no liberalismo económico para o qual avançamos, de uma maneira brusca e inccontrolada. Os meios da autonomia – saber, técnica, poder financeiro – excedemos os recursos locais. Assim é necessário apelar à comunidade provincial, que aparece como uma assembleia das comunidades distritais. Ninguém deveria apresentar-se à província como candidato a uma função pública, sem ter dado provas, no distrito, da sua dedicação ao serviço público, ao bem comum, à
moralidade e à ética axiológica do grupo. Como ninguém ninguém deveria poder apresentar-se às eleições nacionais sem ter passado antes pelas instâncias precedentes. A província torna-se assim a palavra chave para o nosso futuro, se o queremos democrático, enquanto lugar de cooperação, graças ao qual os distritos vão encontrar os meios que lhes falltam para se ocuparem das necessidades públicas. Por outras palavras, se os distritos nos garan tirem a possibilidade de uma comunidade geral, é a província que garante a eficácia. Os distritos associados em províncias, são a expressão da vontade de uma autogestão do homem na luta contra a alienaçãopelo Estado, civil ou militar, fascista ou comunista, ditatorial ou democrático. A auto-gestão traduz uma opção fundamental em favor da liberdade. Não às comunidades provinciais, sem as comunidades distritais. Mas se as provinciais são federações de distritos, a nação será uma confederação de comunidades provinciais. Tudo o que eu proponho é a assunção de estruturas políticas, e administrativas já consolidadas, e transformálas em bases jurídicas que garantam ao mesmo tempo a liberdade, a democracia e a paz; condições para dar ao povo um papel dinâmico na história, que lhe é negado desde há muitos séculos. As províncias deveriam beneficiar de uma autonomia de organização constitucional, subordinado a constituição nacional. As províncias deveriam participar na organização federal por intermédio de um conselho de provínvias, que deveria fazer parte da assembleia nacional, que por sua vez, deveria compreender duas câmaras: um conselho de províncias, compreendendo um número de representantes por província, e um conselho nacional compreendendo representações proporcionais ao número de habitantes da província. A autonomia das províncias constituiria a base nacional. As províncias não seriam fracções delegadas da autoridade central, mas seriam elas a delegar uma parte do seu poder à autoridade nacional, como precedentemente o distrito teria delegado uma parte do seu poder às províncias. O poder seria sempre piramidal, com a diferença de que não seriam os presidentes e os ministros a delegar poderes à base, mas seria a base a delegar poderes e portanto a controlar o topo. Este sistema de delegação permitiria uma colaboração entre regiões económicas africanas através da delegação de poderes, e poderia ser o substrato mental, cultural-filósofo, para a construção do Pan-africanismo. Na carta lida pela sua mulher à primeira conferência dos Estados africanos independentes em Accra, DuBois escreve: «Se a África se unir, isso será porque cada parte, cada nação, cada tribo renunciará a uma parte da sua herança para o bem de todos. É isto que significa a unidade; é isto que significa o pan-africanismo». Se a unidade africana não se realizou, não foi porque os povos recusassem renunciar a uma parte das suas prerrogativas para o bem comum, mas foi justamente porque os dirigentes usurparam esse poder aos povos, e com o medo de perdê-lo, privaram a África de um instrumento de libertação e de unidade. O federalismo permitiria reunir os diferentes membros numa incessante participação da obra comum, instituindo uma corrente dupla que ligasse as partes ao todo, ao mesmo tempo que as afirmasse como partes. A participação acrescenta-se à autonomia, sob forma de descentralização das ordens jurídicas. Assim, as unidades podiam conservar, em certa medida e em certas matérias, o poder de regulamentar a elas mesmas, conforme as suas fisiologias específicas. Isto favoreceria o respeito pelas diferenças, e permitiria tirar melhor partido das características diferentes das suas componentes. O problema não é uniformizar, mas valorizar as nossas diferenças, mas dirgi-las para um objectivo comum. Sob o ponto de vista jurídico, permitir-nosia a construção de uma organização jurídica unida e diversificada ao mesmo tempo. O processo
de decisão seria dialéctico, pois resultaria de um diálogo entre as províncias que seriam a união real dos distritos -, e a autoridade nacional – que seria de facto supra-provincial. Se dermos crédito a Kant, o federalismo serve para estabelecer a paz. Com efeito, se o poder estivesse nas mãos dos povos reunidos em comunidade, nunca teriam submetido as suas vidas, as suas opções, os seus valores, aos dogmas dos partidos. Pelo contrário, eles teriam entendido que são eles mesmos, com as próprias vidas que pagam as obstinaçõesideológicas dos partidos. Mas sobretudo, se o poder estivesse nas mãos dos povos, nunca teriam lutado entre nós, nunca teriam sacrificado o que têm de mais sagrado, as nossas vidas e das vidas dos nossos filhos, em nome do comunismo e do anticomunismo. A instauração de um sistema federal permitiria, de uma certa maneira, às regiões económicas uma auto-gestão das próprias estruturas produtivas e de escapar às imposições de outras regiões económicas, privilegiadas, pela sua situação geo-política; assim como permitiria uma participação mais real e fecunda na «República», até mesmo uma maior responsabilização das populações. Mas sobretudo, evitaria uma democracia, dominada por partidos anónimos e demagógicos, distantes das populações, e das suas necessidades mais prementes. A auto-gestão seria a arte de incitar as pessoas a auto-responsabilizarem-se pela vida pública e política. A auto-gestão é antes de mais, a gestão pelas «comunidades», das tarefas estatais que lhe são próprias, a seu nível. Mas seria também o exercício permanente, do poder de decisão política e do controlo dos que a executam. O federalismo faria com que os candidatos saíssem dos distritos, que os planos e os projectos das suas plíticas, fossem à escala comunitária, e portanto susceptíveis de ser compreendidos e avaliados pelas populações, e sobretudo que as populações fossem de facto soberanas, isto é, que pudessem controlar a políticar e os políticos. Só o federalismo pode permitir que a democracia não seja um jogo de minorias privilegiadas. O essencial não é definir formas de vida regulamentadas e integradas num sistema fechado, mas a descoberta de possibilidades comunitárias e a sua integração numa sociedade mais ampla, potencialmente aberta, primeiro para o conjunto dos países da mesma região e em seguida a «toda a África». Isto não se fará com proibições jurídicas ou constitucionais, mas com a descoberta e relevância de uma certa memória comum e sobretudo com a edificação de um vontade de construir um futuro comum. Neste sentido, o Estado terá a função de arbitrar entre os interesses, os projectos, a assunção e, oxalá, a descoberta de novas técnicas; também de adaptá-las, emendá-las ou mesmo excluí-las em função da sua conveniência e objectivos comuns, sempre olhado e considerado como instrumento para o desenvolvimento das pessoas. Então, governar não será a arte de obrigar, mas de prever e orientar em consequência. O filósofo dos Camarões, M. Towa, que se quer progressista e revolucionário, propõe que deixemos para trás o passado africano, e sobre as sendas da Europa nós tomemos a estrada da modernidade. Por outras palvras Towa propõe que interrompamos a história, que saiamos fora dela. Como afirma a personagem de uma utopia famosa, a história parou. Nós temos simplesmente que limpar a tela, fazer da nossa sociedade uma tábua rasa, recomeçar do início e traçar um sistema social completamente novo. O que será o nosso futuro, se nos desfizemos do tempo vivido? No momento das independências, os novos estados africanos, ignorando que a política e o direito são factos de cultura, omitiram sistematicamente as instituições depositárias das culturas africanas, no projecto da construção das novas entidades políticas. Desprovidas como estavam de
suporte cultural, os novos Estados, deram um salto em frente, e futuristicamente serviram-se das instituições típicas dos Estados marxistas-leninistas, anglo-saxões, das quarta ou quinta República francesas, etc., sem poder, no entanto, assumir completamente o espírito que dá corpo e significado a estas instituições. Um dos objectivos maiores que se tinham fixado nos Estados africanos, era a criação de nações. Não podendo servir-se da história dos povos africanos – por medo de conflitos etniocotribais -, ignorou-se a história, e impuseram-se aos povos africanos valores ditos universais. Para os povos africanos a exigência da liberdade era permanente, para os espíritos imbuídos de futurismos, essa liberdade devia traduzir-se em independências, por sua vez guiada por valores estranhos aos povos. O problema era saber em que medida a independência podia traduzir-se em liberdades concretas e objectivas; ou por outra em que medida a assunção de uma ideologia estranha aos povos africanos, não seria ela mesma colonizadora dos valores reais dos povos; e portanto susceptíveis de provocar uma tribalização de reacção cultural. A trinta anos de distância, vemos o renascimento de reivindicações do direito à diferença, directamente ligado ao estado de desestruturação cultural e ao sentimento de pertencer a um grupo dominado pelo estado. A destruição arbitrária do passado a que estas «visões utópicas» se propõem, não pode suscitar nenhuma nova sociedade melhor. A carta geográfica da nossa e de todas as sociedades, não é uma carta branca na qual cada um preenche segundo a sua vontade e o seu capricho, e não é possível apagar todos os traços que foram já escritos. Entre o feiticismo da tradição e a sua total destruição existe um modo de se aproximar do passado, sem se deixar condicionar, e conceber a história não como uma prisão da qual fugir ou um vestígio arqueológico a conservar, mas como uma dimensão da realidade que dilata e ilumina o presente. Porquanto os sentimentos que animam a utopia possam e sejam louváveis e podem até ser condivididos, todavia resta o facto de que a sua atitude em relação à tradição, deve ser denunciada como errada, pois resulta, entre outras coisas, operativamente estéril. A fraqueza destas formas de pensamento, é que elas parecem mais ricas de presente que de futuro. E os filósofos da «pura imitação», exactamente como os «etnofilósofos», mostram-se menos livres nas suas imaginações do futuro, que a maior parte dos historiadores nas suas descrições do passado. Na realidade, não obstante a sua falsa aparência de pensamento progressista e revolucionário, represent um futurismo reacionário. A acção que eles propõem é uma paragem artificial, uma fuga em frente, insensível aos desafios sempre renovados da realidade, fora da corrente da história. Depois das peripécias das últimas décadas, o homem africano sente a necessidade de ter certezas, não de novos mitos. Mas estas certezas só se podem ter, saindo do utopismo, e mergulhando na profundidade de uma sociedade, menos perfeita mas muito mais livre. Então descobriremos os nossos limites, as nossas fraquezas, numa palavra a nossa humanidade, e a necessidade de nos constituirmos num corpo social, para combater juntos as aporias da vida.
FUTURO E FUTUROLOGIA No fim da segunda guerra mundial, iniciou-se um esforço de abordar o futuro de uma maneira científica. Futurologia para Ossip flechtein (1943), Prospective para Gaston Berger nos anos cinquenta, Futuribles para B. De Juvenal (1960), Future Studeis para Jonh Mc Hale. Previsões demográficas e militares, tecnológicas e sociais, cenários, projecções simuladas nos computadores invadem o mundo do saber, criam, por um lado, uma moda, e, por outro, um esforço científico sobre o único domínio temporal que o homem pode influenciar ou mesmo mudar: o futuro. Num primeiro período, os estudos de previsão eram fundamentalmente extrapolativos, quer dizer moviam-se do conhecimento do passado e do presente para indicar o futuro. Utilizando os conhecimentos que se tem do passado e do presente, a previsão procurava decifrar o que podia acontecer em função dos dados que procurava decifrar o que podia acontecer em função dos dados e das informações. Até meados dos anos sessenta, os estudos de previsões sociais deixaram-se conduzir por pontos de vista positivistas. H. Khan, O. Helmer (percursor do método Delphi) e Josep Daddario (pai da technology). Como outrora Augusto Comte, afirmavam que o progresso tecnológico resolveria os problemas do mundo actual, como a alimentação, a habitação, a saúde, formulou previsões nesse sentido. As projecções optimistas, devidas a delírios de omnipotências tecnológicas, que viam um óptimo almoço para seis biliões e meio de habitantes no ano 2000 e até mesmo um óptimo jantar para onze biliões de habitantes no ano 2050, estão hoje completamente ultarpassadas e desmentidas. A perspectiva que procede por projecção sem surpresas, como aquela que faz Herman Kahn, é conservadora, enquanto a histórica, pois isenta de surpresa. O homem é imprevisível, e toda a previsão que se baseie simplesmente em leis do passado é aleatória. Deve projectar-se o futuro, deixando todavia espaço à liberdade do futuro, ou se se preferir ao futuro da liberdade. A previsão e a projecção perfeitas, seriam também a anulação da previsão e da projecção. A teoria conservadora nega este espaço. Funcionaria simplesmente se todas as variantes do futuro pudessem ser imersas no presente. Existem sectores da vida individual e social que podem ser projectadas e programadas (alguns sectores da estrutura económica), outros que podem ser deixados livres (diversos sectores da vida económica e diversos sectores mais complexos da vida individual e associativa). É falso que o sistema conservador esteja à altura de prever e controlar uma situação, melhor de quanto possa fazer um projecto transformativo e progressivo. Quanto mais um sistema é conservador, menos está apto a absorver as modificações. Do ponto de viste teórico, só um modelo continuamente modificadoe é elástico, enquanto o modelo conservador é rígido e, portanto, exposto a rupturas críticas e bruscas. O insucesso das nossas políticas de desenvolvimento deve-se essencialmente ao não conhecimento ou ao desprezo dos nossos dados sociológicos, o que nos levou a conceber o
desenvolvimento como uma simples modernização impulsionada do exterior e aplicada a modelos alógenos, e por outro lado, na divisão do trabalho, num quadro de domínios sectoriais ( económico, saúde, educação, etc.), sem ter em conta que a divisão da realidade, ignora totalmente o carácter integrado das diferentes componentes da nossa sociedade. Os modelos culturais propõem ideias que são muitas vezes opostas às concepções tradicionais hierarquicas e completamente imbuídas de sagrado. Estes novos modelos são, portanto, incapazes de penetrar nos povos, eles ficam ao nível de minorias citadinas e escolarizadas. Deve-se conceber um modelo de desenvolvimento endógeno; istoé, deve haver uma interiorização de modelos técnicos pelas massas e a tomada de iniciativa no âmbito de grupos comunitários como os distritos. Muitos trabalhos – todos falidos – foram consagrados ao problema do desenvolvimento: o PEC «plano estatal central», o PPI «plano perspectiva indicativo», a nível nacional; projectos regionais, como SADCC; acordos continentais – os vários «Lomes»; estudos especializados de dimensões internacionais como o relatório Pearson, o relatório Jackson escrito por iniciativa das Nações Unidas, e mais recentemente os trabalhos do «Clube de Roma», etc. É significativo constatar que em nehum destes documentos se colocou o problema dos pressupostos, nenhum propôs concentrar os esforços sobre o que é a condição mesma do desenvolvimento: a dimensão sócio cultural; e esta é a razão principal dos seus insucessos. A técnica, no sentido moderno do termo, tornou-se uma noção cuja extensão semântica é de tal maneira vasta, que tende a servir de uma maneira mais ou menos confusa, a qualificar toda a acção humana, reduzindo-a uma simples prática do saber. Hoje a técnica parece constituir um universo autónomo e portanto guiado pelas suas próprias leis de desenvolvimento, verdadeiro sistema auto-referencial que condiciona, ou mais rigorosamente, que determina as outras esferas da sociedade. A introdução de novas técnicas induziria necessariamente a uma mudança de sociedade. Com a técnica, outra característica da nossa época é o mercado que vem também considerado como a única maneira de regular a sociedade. O falimento total da planificação como sistema de regulara sociedade na Europa central e do Este, é visto por muitos como vitória final do capitalismo liberal, que por sua vez é ilicitamente identificado com a democracia. Na África assistimos também à iliminação sitemática deste movimento ideológico geral. Os países africanos vêem-se forçados a integrarem-se sempre mais nas economias do mercado internacional. Muitas vezes e quase sempre, o impacto do mercado com o conjunto da vida social provoca situações dramáticas, ilustradas de uma maneira clara pela política de ajustamento estrutural. Mas aparentemente irresistível, o mercado parece a única via possível do desenvolvimento, não obstante as muitas dificuldades e mesmo os falimentos. Para muitos responsáveis, o mercado não deve ser considerado como uma instituição regulada por forças sociais externas, mas pelo contrário, como um regulador de toda a sociedade. O mercado torna-se assim um princípio para guiar a acção pessoal e colectiva. Com uma tal visão, o desenvolvimeto parece simplesmente possível para aqueles que n hesitam em desfazer-se das próprias tradições e a lançar-se à procura do proveito, em detrimento de muitas obrigações
morais e sociais. Muitas vezes, uma escolha radical exige o sacrifício da solidariedade colectiva. Este parece hoje o preço a pagar para enveredar na via do desenvolvimento. Prisioneiros como somos no interior de um sistema mercantil triunfante, pode parecer absurdo pôr a questão dos limites do mercado. Mais do que nunca, somos confrontados com uma alternativa um pouco comum: o mercado deve ser englobado na sociedade, ou, pelo contrário deve regular a sociedade? A maior parte dos discursos sobre o problema do desenvolvimento limita-se a considerações puramente materiais. Mesmo quando se consideram as questões sociais e culturais, insistem normalmente sobre as múltiplas barreiras resultantes de práticas sociais e de mentalidades irracionais. Quer dizer, se o desenvolvimento se traduz numa transferência de meios e de conhecimentos técnicos, parece óbvio que tal transformação material é acompanhada de transformações sociais e culturais correspondentes à imagem do produtor e exportador dos meios e conhecimentos técnicos. Se os «desenvolvimentalistas» não podem evitar, para poderem existir como tais, serem totalmente submersos pela ideologia individualista e economicista, tem de pensar se é inútil continuar a interrogar-se sobre o tema do desenvolvimento? Talvez se a destruição da alteridade cultural encontrasse de qualquer maneira, uma compensação numa satisfação material, capaz de eliminar a fome no mundo. Mas face à tragédia que continua a afligir a África do desenvolvimento se libertem da mentalidade funcionária do saber demasiado comum, para enveredarem numa via díficil de um pensamento reflexivo. Talvez entã eles consigam encarar a sociedade ocidental que lhes serve de referência à distância, com vista a pô-la em questão, para descobrir nela as razões profundas do impasse no qual o mundo inteiro se encontra. A catástrofe africana, não é precisamente a submissão cega a duas ideologias alienantes, profundamente idênticas não obstante as suas pretensões respectivas? O desprezo e o consequente declínio de uma cultura vivida, que dava significado à vida individual e colectiva, é uma das consequências de tal desenvolvimento. O impacto da técnica e do mercado devem ser subordinados às escolhas colectivas. As causas da mudança social n residem portanto nas coisas técnicas, pelo contrário, toda a transformação encontra a sua origem no mais profundo do imaginário social e dos componentes simbólicos da cultura. Vivemos num mundo que tende a libertar-nos aparentemente de toda a certeza, para nos permitir adaptar inovações de todo o género. É urgente reflectir sobre o que nós somos e, sobretudo, sobre o que devemos ser, colectiva e individualmente. Neste sentido, impõe-se-nos reflectir sobre a futurologia de uma maneira filosófica. As actividades humanas, inclusive a técnica e a actividade mercantil, não são boas ou más em si mesmas, ou em função da sua capacidade de produzir um bom objecto ou um bom resultado concreto, mas porque elas se cconformam com alguns modelos ideais. Dito de uma maneira diferente, as actividades humanas realizam de uma maneira prática as opções e os valores de uma determinada sociedade. É nesta sua características de realizadora de escolhas e valores de uma sociedade, que a técnica é
susceptível de ser avaliada moralmente. É importante realçar, que a técnica e o mercado não devem escolher o seus fins, mas pelo contrário eles aceitam-nos como dados, como pressupostos, e a sua função é unicamente determinar com conhecimento de causa quais são os meios masis adequados a atingir os objectivos socialmente definidos. A técnica e o mercado não emitem juízos de valor. O seu paradigma de perfeição reduz-se à eficácia, à capacidade pura e simples de realizar tarefas socialmente definidas. A escolha do que deve ser e do que não deve ser, não é função da técnica, mas das próprias sociedades, das quais os filósofos devem ser autênticos porta-vozes. À filosofia cabe portanto a tarefa de dizer o que uma dada sociedade quer verdadeiramente, para orientar a técnica na escolha de meios para realizar os fins escolhidos. Para que a futurologia enquanto ciência seja possível, ela ecessita do trabalho preliminar da filosofia. A situação actual que deixa à técnica e ao mercado o poder de guiar toda uma sociedade de maneira cega e quase fatalista, não pode melhorar, se não na condição de deixar espaço a uma filosofia que se ocupe das finalidades, dos valores, do dever ser no sentido radical. Esta dimensão deverá começar por ultrapassar a perspectiva de tipo positivista, que é simplesmente capaz de tomar em consideração os factos, as leis e os métodos, fazendo uma crítica radical à mentalidade cientista e reducionista que é a base de tal filosofia. Deve retomar-se o discurso sobre o homem, mas o homem que somos, e redescobrir a gama de valores que inspiram a sua acção, reconhecendo que a sua liberdade profunda consiste na possibilidade de satisfazer estes valores. Hoje, diversos organismos internacionais, utilizando métodos diferentes, ocupamse de estudos de previsões sociais: a Federação mundial para os estudos do futuro, o Clube de Roma, a ONU, a Unesco, etc. No nosso continente muitos países têm grupos de estudos de previsões sociais. Os estudos do futuro tendem a ser mais normativos, a estar mais orientados para finalidades, para escolhas e opções. O problema de valores é muito importante, pois é necessário distinguir o que é, do que deveria ser. É necessário analisar «os possíveis», e orientá-los em função das escolhas que respondam a esquemas de referências específicos e, portanto, a valores. É necessário k façamos uma previsão normativa, isto é, centrada sobre o que queremos que seja o nosso futuro. O nosso projecto de sociedade deve fundamentar-se sobre um conhecimento sério de nós mesmos, das nossas diferenças e das nossas especificidades. O nosso futuro vai necessariamente passar pela mediação da ciência e da técnica. Mas não podemos ligar o nosso futuro simplesmente a esses instrumentos; os nossos valores e a construção do nosso futuro deverão partir dos nossos ideais. A perspectiva deve mostrar-nos a necessidade de escolher, mas não pode fazer as escolhas por nós. Ela deve tender a educar o nosso sentido de responsabilidade civil, fazendo-nos descobrir todas as repercussões políticas e sociais dos nossos actos, de que muitas vezes os pensamos privados. A perspectiva não deve nem pode deixar-se manipular pelos diferentes poderes como um imperativo de desenvolvimento, das necessidades do progresso, das necessidades económicas, como se se tratasse de dados objectivos não susceptíveis de discussão, ou fenómenos que se produzirão de qualquer maneira sem a nossa contribuição, sem a nossa acção, para além da nossa capacidade de apreensão. Não há nada pior para a saúde pública, que o recurso constante à necessidade, contra a liberdade da escolha moral e de decisão política; este tipo de discurso leva à deserção cívica. A sociedade, a civilização, a sua crise e o sistema da sua crise, não passa à margem das vontades
humanas. Não se deve substituir o sentimento de implicita culpabilidade que acompanha necessariamente todo o acto livre e inovador, por uma espécie de terror determinista que desculpabiliza o indivíduo dos riscos da liberdade. A perspectiva não é um facto de computadores – que dependem dos programadores, dos seus prejuízos e dos seus interesses - , de leis económicas, ainda menos deve ser monopólio de grupos particulares. A perspectiva perderia a sua razão de ser se não acreditasse na liberdade do homem. Ela tem como função simplesmente orientar o homem nas suas escolhas e nas suas políticas. Mas não existiria nenhuma escolha nem política possível, num mundo submetido simplesmente aos imperativos da tecnologia e do proveito. A perspectiva útil e significativa tem que ser necessariamente libertadora, tem que nos permitir a construção de um futuro à imagem da nossa vontade. Por fim o modelo de futuro que se elabora deve ficar indeterminado. De contrário, exercerá uma espécie de tirania sobre a comunidade que deve realizá-lo, pois o objectivo é uma investigação criadora, que elabore meios de uma política, e não apresente os objectivos de um controlo, que teríamos simplesmente que aceitar. A perspectiva é a arte de preparar os caminhos em direcção a um fim, e não de submeter as nossas fatalidades ao que foi possível ou impossível até aqui. A perspectiva exige a participação de todos. É necessário que aqueles que viverão um futuro determinado, participem, na medida do possível, na sua escolha e na sua construção. É contudo necessário que nos interroguemos sobre o que queremos verdadeiramente, o que estamos radicalmente prontos a recusar; e em nome de que finalidades pessoais e comunitárias! Tudo depende de nós! Os nossos sonhos antecipam, estimulam e favorecem a formação e o progresso da sociedade. Mas isso só é possível se cada indivíduo, cada sociedade tiver a coragem de ousar pessoalmente e colectivamente; não existe nenhuma garantia. O futuro pode florescer simplesmente se ousarmos (independência). Podemos começar por constatar que alguma coisa muda. Isto implica simplesmente tomar consciência da mudança. Ninguém no continente deixou de se aperceber da mudança cultural radical que provocaram as independências; como a ninguém passam despercebidas as metamorfoses que a vida do nosso povo está actualmente a sofrer. Destas simples constelações, se pode passar à teorização de uma mudança possível. Se para a maior parte de nós a mudança foi algo que sofremos passivamente, temos que nos recordar, que ela foi querida, desejada, amada, procurada por outros homens, que por ela estiveram dispostos a dar tudo. Para esses homens a dinâmica do tempo não dependia de uma acção do acaso ou do querer de outros, mas era o resultado de uma escolha. Hoje todos nós tomamos consciência da necessidade da mudança. Não de uma mudança que consista pura e simplesmente em mudar de guarda nos palácios prsidenciais ou na demagogia dos partidos, ou na simples importação de instrumentos que servem simplesmente para aumentar a nossa dependência, mas numa mudança querida por nós e por nós realizada. Para isso é necessário ousar. É verdade que não existe um único futuro à nossa espera, como pode parecer a partir de uma leitura superficial do futuro. Existe uma multiplicidade variável de possibilidades. Mas a pluralidade de futuros não exclui que alguém ostente um faról utópico ao qual fazer referência, uma ou mais luzes que dêem indicações no escuro, não simplesmente algo de possível mas também desejável. A experiência passada e presente mostra-nos uma divergência, às vezes acentuada, entre os nossos desejos e a realidade (boas e justas intenções da frelimo e os resultados). Ora nós
queremos que no futuro a realidade corresponda aos nossos desejos, ou pelo menos que seja o menos diferente possível. Por isso a nossa atitude em relação ao futuro não é de simples curiosidade, mas uma verdadeira preocupação. Nós podemos escolher vias, mas entre diferentes vias é necessário escolher uma, que apresente os mínimos pressupostos para nos levar ao futuro que desejamos. Assim ser africano não pode ser percebido simplesmente como um «dado facto», mas também e sobretudo como um projecto; isto quer dizer que podemos e devemos procurar um modo de vida e de realização; e isto para transformar o dado numa nova realidade conveniente. Cada realidade do dado deve ser um torná-lo uma realidade de grau diferente, modificada, desenvolvida. O único domínio temporal que o homem pode influenciar ou mesmo mudar é o futuro. O presente é em si mesmo passado no momento em que se realiza; e o passado, ainda que ofereça dados para o futuro, não pode ser alterado. Por sua vez, partindo dos dados do passado e do presente, podemos influenciar o futuro, que constitui o único espaço susceptível de se sujeitar às nossas decisões. Se o futuro é o único espaço que podemos influenciar com as nossas decisões, os diversos futuros possíveis não podem reduzir-se a um único futuro determinado. Os futuros são mitos alternativos entre eles, ligados a decisões possíveis e aos eventos. O que queremos verdadeiramente? O que estamos radicalmente prontos a recusar? Em nome de que finalidades pessoais e comunitárias? O futuro tem aqui a sua importância, segundo as nossas decisões quanto aos objectivos das nossas vidas. Tudo depende de nós! A nossa decisão será histórica porque só poderá ser uma decisão no mundo da história. Não podemos mudar o passado, mas podemos escolher o tipo de futuro que queremos. Enquanto a história é uma espécie de ciência do impossível, isto é, do que o homem fez ou não fez, e nada nem ninguém pode impedir que isso tenha suceddido, o futuro é o espaço aberto ao possível, aos nossos desejos, aos nossos sonhos, à nossa liberdade porque cada um de nós é livre de conceber diferentes modos de ser, de viver e de existir, a condição de situá-lo no futuro. Os únicos projectos moralmente válidos, são aqueles projectos e aquelas opções que prevêem ser bem sucedidas não somente num sector particular, e para grupos particulares, mas que englobe todos os apectos da pessoa e contribua para a realização dos membros de toda a nossa comunidade nacional. Viver em comunidade, ser membro de uma comunidade nacional, significa ter um grupo que nos favorece, que nos protege, que nos promove; mas por outro lado, significa participar na realização total de todos os elementos que pertencem ao dito grupo. Por isso, os projectos e os ideais devem ter uma dupla dimensão: pessoal e comunitária. Estes são os valores morais que devem ser considerados como ponto de referência das nossas opções políticas, económicas e sociais. Os nossos projectos devem ser históricos e pessoais. Históricos, enquanto devem ter em conta dados conhecidos, das experiências feitas e reflectidas e das previsões racionalmente possíveis. O conhecimento dos dados, das experiências e das previsões pode mudar substancialmente; assim como os projectos, as normas e as soluções até aqui avançadas não excluem uma reformulação necessária. Pessoais, enquanto cada um de nós é responsável, não pode responsabilizar os factos, sobre a política ou sobre os outros pelo que acontece: cada um de nós é protagonista da sua própria vida, e da própria história.
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ÍNDICE Introdução…………………………………………………………………………...…2 Historicidade e etnocidade…………………………………………………………......6 Da etnologia à filosofia (ideologias) política(s)............................................................28 Personalidade africana...................................................................................................36 Da etnologia a etno-filosofia..........................................................................................44 Da etnofilosofia à filosofia crítica.................................................................................48 Crítica da crítica..............................................................................................................55 Hermenêutica..................................................................................................................57 Liberdade fulcro da historicidade....................................................................................61 Futuro e profecia..............................................................................................................77 Futuro e utopia.................................................................................................................84 Futuro e futurologia.........................................................................................................95 (Rodapés) (¹) pág.5: Utilizaremos indiferentemente o termo de etnologia e antropologia, em referência para que em língua portuguesa se chama antropologia cultural. Uma destinção entre os dois domínios será intoduzida mais adiante, quando se abordar o pensamento de Lévi-Strauss. (¹) pág. 10: Heródoto, LX, 16. (²) pág. 10: Cf. Heródoto, Histórias, VI. 55 (³) pág. 10: Isócrates, Contos, xx, 32 (4) pag 11: Cf. Hartog, «Le Miroir d’Herodote. Essai sur la représentation de l’autre», Paris, Gallimard, 1980. (5) pág. 12: Cf. Wind, E. Misteri pagani nel Rinascimento, Milano, 1985. p. 13 (6) pág. 13: Yates, «F. Giordano Bruno e la tradidizione ermetica», Bari, 1969; o texto de Platão mais conhecidodurante o Renascimento e o tardo medieval, era o «Timeo», que contrariamente aos outros dois (Simpósio e República) continha referimentos explícitos à sabedoria egípcia. (7) pág. 13: Todorov, T., «La conquête de l’Amérique. La question de l’autre», Paris, Seuil. (8) pág. 16: Aristóteles, Política, VIII. 7. (9) pág. 16: Locke (1688, livro III), cf. Jordan, W. D. White Over Black, Baltimore, 1968, pp. 235-236; Bracken Philosophy and racism, «Philosophy», 8:241-60, 1978, p. 246. (¹°) pág. 17: Hunger, K. «Die Bedeutung der Universitat Gottigen fur die Geschichtsforschung am Ausgang des achtzehnten Jahhundets», Berlim, 1933. (¹¹) pág. 17: Marino, «L. L maestri della Germania, Gottingen 1770-1829», Torino, 1975. (¹²) pág. 18: Baker, J. R., «Race», London 1974; Gerbi, «A. Dispute of the New World», Pittsburgh, 1973. (¹³) pág. 18: Ibidem; sobre Vivo e o populamento depois do dilúvio, cf. Ngoenha, S.E., «Duas interpretações filosóficas da história do século XVII», Porto, 1992. (14) pág. 22: M. Duchet, «Le partage des savoirs. Discours historique e discurs etnologique», Paris, 1984, p. 196. (¹) pág. 29: Maurice Delafosse, «Les Negres», Paris, Rieder, 1927. (²) pág. 29: Georges Hardy, «L’art Negre», Paris, Laurens, 1927. (³) pág. 29: Leo Frobenius, «Histoire de la Civilization Africaine», Paris, Gallimard, 1936. (4) pág. 29: Ousmane Socé, «Mirages de Paris», Paris, Nouvelles ed. Latines, 1935. (5) pág. 29:
Lévy-Brhul, «Carnets de Lucien Lávy-Brhul», Paris, PUF, 1941. (6) pág. 30: Aimé Césaire, «Cahier d’un retour au pays natal», Paris, Presence Africaine, 1956, p. 49 e ss. (7) pág. 31: W.E.B. DuBois, «Almas Negras», Chicago, 1903. (8) pág. 32: Langston Hughes, «The Negro speaks of Rivers» 1921 in «Selected Poems» de Alfred A. Kopf, New York, 1959. (9) pág. 33: Frantz Fanon, «Algerie An V», Paris, Paspero, 1960. (10) pág. 33: L. Senghor, «Les Fondements de lÁfricanité ou Negritude et Arabite», Paris, Presence Africaine, sem data. Conferência realizada no Cairo, em 16-2-1967, p. 47. (¹¹) pág. 33: Arthur Gobineau, «Essai sur L’inegalité des races humaines», 1853-55, Paris, Libraire de Paris, 1933. (¹²) pág. 33: L.S. Senghor, «Eléments constitutifs d’une civilisation L’inspiration négroafricaine», discurso feito ao II congresso dos Escritores e Artistas Negros, Roma, 1959; in «Présence Africaine», n. Especial XXIV-XV, T.I., Paris, 1959, p.235. (¹³) pág. 33: L.S. Senghor, «L’esthétique négro-africaine», in «Diogène», Paris, Outubro 1956, p. 202-203. (14) pág. 34: L. S. Senghor, «La civilization négro-africaine», op. Cit. (15) pág. 35: L.S. Senghor, «De la Negritude», Dakar, Grande Imprimerie Africaine, sem data. (¹) pág. 36: «Race and Study», citado por Holles R. Lynch, in «A 19th century progenitor of PanAfricanism and Negritude: Edward Wiltmont Blyden» in «The New African», vol. VII, N.I, London, 1968, p. 4-8. (²) pág. 38: K. Nkurumah, «Consciencism», London, 1964. Daqui foi elaborada a definição de «nkurumahismo», que segundo Kodwo Addison é uma ideologia da África nova, independente e completamente liberta do imperialismo, organizada à escala continental, baseando-se na, concepção de uma África una e unificada... (³) pág. 39: Frantz Fanon, «Peau Noire, Masques Blancs», Paris, le Seuil, 1952, p. 17-18. (4) pág. 39: Ibidem, p. 18. (5) pág. 40: F. Fanon, «Les Damnés de la terre», Paris, Maspero, 1961. (6) pág. 40: Ibidem, p. 157. (7) pág. 40: Ibidem, p. 167. (8) pág. 40: Ibidem, p. 160. (9) pág. 40: Ibidem, p. 175. (¹°) pág. 41: Wole Soyinka, «The dance of the Forest», London, Oxford Uni. Press., 1963. (¹¹) pág. 41: Wole Soyinka, «The Interpreters» London, Deutsch, 1969. (¹²) pág. 42: «Bachir Touré et Wole Soyinka: deux voies (et deux voix) por une (¹²) pág. 42: «Bachir Touré et Wole Soyinka: deux voies (et deux voix) por une 56. (¹) pág. 44: Ngoma Binda, «Comprendre Tempels», in Recherche, Pedagogie et Cultura, n. 56 Janvier-Fevrier, Paris, 1982. (²) pág. 44: Tempels, R.P., «La philosophie Bantu», Paris, 1961. (³) pág. 45: Kagame A., «La Philosophie Rwandaise de L’être», Bruxelles, 1956. (4) pág. 47: Ntite Mukendi, «Langues africaines et vision du Monde («La philosophie bantu comparée» dÁlexis Kagame) », Presence africaine, n. 103, 3º trimestre 1977, p. 102. (5) pág. 47: Ngoma Binda, «Compredre Tempels», in Recherche Pedagogie et Culture, n.56, Janvier-Fevrier 1982, Paris. (¹) pág. 48: Hountondji P.J., «Sur la Philosophie Africaine», ed. Cle, Yaounde, 1980, p. 11. (²) pág 48: Cf. Hountondji P.J., «Sur la Philosophie Africaine», op. cit., p.131. (³) pág 50: Cr. Hountondji P.J., «Histoire d’un Mythe», in «Presence Africaine» n. 91, 1974, p. 3; Daho Express, n. 1411 de 10-5-74.
(4) pág. 51: Marcien Towa, «L’idée d’une philosophie negro-africaine», éd. Clé, Yaounde, 1979, p. 32. (5) pág. 52: Eboussi Boulaga F., «La crise du Muntu. Authenticité Africaine et Philosophie, Presence Africaine», Paris, 1977. (¹) pág. 55: Olabiyi Babalola Yai, «Théorie et pratique en philosophie africaine: misère de la philosophie spéculative», Présence Africaine, n. 108, 4° trimestre 1978, p. 70. (²) pág. 55: Cf. Amady aly Dieng, «Contribution a L’Etude des problemes Pilosophiques en Afrique Noire», Paris, Nubia, 1983. (³) pág. 56: Ngoma Binda, «Comprendre Tempels», in Recherche, Pedagogie et Culture, n. 56, Janvier-Frevier 1982, Paris. (4) pág. 56: Tschiamalenga Ntumba, «Qu’est-ce qu’est la philosophie?» in, La PhilosophieAfricaine, ed. de la Faculté de Théologie Catholique, Citado por N. Binda, p. 46. (¹) pág. 57: Lalêye I.P., La Conception de la personne dans la pensée traditionnelle Yoruba, «Aproche phénomenologique», ed. Herbert Cie sa, Berne 1970. (¹) pág. 78: M. Jones, Black Awareness. A Theology of Hope, 1971.