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Portuguese Pages 185 [94] Year 1993
Nós. somos parcialmente responsáveis em relação ao passado, . entretanto só agora começamos a compreender nos seus slgJt1itica~ dos complexos. Mas somos ainda mais responsáveis em relação fututo. Se nos parece alrerrant~ renunciar ao presente pelo passado ou remeter o presente para o futuro, pelo preço da nossa única vida possível, é também errado não avaliar suficientemetlte ou destruir os vestígios do passado, como aqueles inexistentes noifuturo antesmesmo que se pudessem produzir. Então de que instnlmentos se serve o mósofopara pensar o futuro; a profecia, a utopià ou a futurologii?
Severino Elias. Ngoenha, bacharel em teologia e doutor em fi~ losofia pelas Universidades Orbanian~,~Gregoriana de Rdc ma respectivamente, nasceu erp Maputo noano 1962, é autor Duas Interpretações J:iil()SóJtícas'} da História do Século XVII e Por Uma Dimensão Moçambicana da Consciência Histórica.
EDIÇÕES PAULISTAS - ÁFRICA
LIV. E AUDIOVISUAIS AV. EOUARDO MONOLANE N."1536
PAULlNAS -
TElEFONE. 424671
M A PUTO
SEVERINO ELIAS NGOENHA
Doutor em Filosofia
FILOSOFIA AFRICANA
DAS INDEPENDÊNCIAS ÀS LIBERDADES
EDIÇÕES PAULISTAS - ÁFRICA
Dedico este livro aos meus amigos Moira e Heidi Laffranchini, Ana Vera e família e a Américo e Teresa.
Capa: Delfina Repetto Foto: Detalhe da estátua da Virgem Maria no Mosteiro Cisterciense de Kokubu
Fotocomposição: Sotecla - Artes Gráficas, Lda. Póvoa de Sto. Adrião
Impressão e acabamento: Rolo & Filhos - Artes Gráficas, Lda. Mafra N. () de Registo: O1028/FBM/93 © 1993, Edições Paulistas - África Av. Agostinho Neto, 1065 - Maputo - Moçambique
INTRODVÇAO Em
cada momento histórico e em cada clima cultural, o filósofo é chamado a fazer emerger a questão do sentido total e dinâmico da situação específica em que se encontra a viver. Hoje, um tal problema não se deprende no interior de um sistema pan-Iógico, m~s de uma análise ampla e aprofundada dos resultados da fendmenologia social, da psicologia, da política, da cultura, que informam a mentalidade hodierna. Cada época, cada civilização e cada geração define um objectivo que a seus olhos constitui a sua própria contribuição para a história dos homens. Ànossa geração, incumbe a árdua tarefa de participar na elaboração de um futuro diferente, do presente que nos é dado viver e observar. Desde há trinta anos, vivemos o escândalo da fome, da ignorância, da mortalidade infantil, da má nutrição, de um nível de vida que não pára de degradar-se, do número de pobres que não cessa de aumentar. Todos os homens que até aqui consagraram as suas vidas a um devir melhor vêem os seus esforços reduzidos a nada. Depois da independência, certos países optaram pelas economias planificadas, outros por modelos de desenvolvimento auto-centrados, outros fizeram programas de promoção para as próprias exportações, outros privilegiaram o desenvolvimento de um sector do Estado, outros aderiram aos programas de ajustamento estrutural, etc. Mas sempre com o mesmo resultado: insucesso.
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Qual é a razão deste insucesso? Estes trinta anos de independências constituem um período de ocasiões perdidas, da nossa condenação, ou foram uma preparação para o que deve ainda vir? Porque seforam anos de oportunidades perdidas e da nossa condenação, urge que mudemos de direcção; que procuremos caminhos alternativos. Mas se foram um período de implosão, condição necessária para que uma explosão se realize, devemos conti~uar a aumentar a energia, ao mesmo tempo que nos reparamos para estar à altura da explosão ... De qualquer maneira, a nossa missão é o futuro. É óbvio que para que esse futuro melhor se realize, cada um deve dar o melhor de si, no lugar onde se encontra. A realização da «missão futuro», passará necessariamente pela maneira como cada um de nós souber ocupar o próprio lugar. Isto pressupõe que cada um saiba qual seja o seu lugar, e qual seja a melhor maneira de ocupá-lo. É relativamente fácil dizer que o lugar do médico é o hospital, e que ele ocupa devidamente o próprio lugar se se ocupa com cuidado e dedicação dos doentes a ele confiados; se ele se mantém constantemente informado dos progressos da ciência médica e tenta fazer benefeciar todo o pessoal hospitalar dos seus conhecimentos, em prol de um tratamento sempre mais adequado e moderno dos doentes. Este tipo de ilustração poderia aplicar-se também a um professor, um engenheiro, um veterinário, um operário, um camponês, etc. Porém, o problema é muito mais complicado quando se pretende saber qual é o lugar e qual é a melhor maneira de ocupá-lo «no momento presente e na conjuntura histórica actual», quando se trata de um historiador, de um artista, de um sociólogo, de um jornalista e sobretudo de um filósofo. É portanto legítimo que nos interroguemos sobre o lugar da filosofia na problemática da construção do futuro. O problema do futuro é complexo, e não comporta simplesmente a construção de novos edifícios ou o cultivo dos campos. De facto, se o futuro se resumisse à construção pura e simples de fábricas, de hospitais e escolas, dificilmente o filósofo teria sobre isso uma palavra a dizer. Mas se a escola não é simplesmente
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o edifício, as salas de aulas, as carteiras mas é sobretudo os alunos, que são os cidadãos de amanhã, implica que a escola vai ser antes de mais um sistema de valores - educação à liberdade, à democracia, à solidariedade, à tolerância, ao diálogo, à iniciativa, ao trabalho, à abnegação que a sociedade quererá transmitir aos seus futuros cidadãos, isto é, o tipo de homens que queremos que sejam os moçambicanos amanhã; e este é um problema filosófico. Hoje todos nos preparamos para ir votar pela primeira vez. Se o problema fosse simplesmente punir a Frelimo pelo que nos fez sofrer, ou a Renamo pelo mesmo motivo, o problema seria assaz fácil. Ou ainda, se tivéssemos simplesmente que afirmar as nossas origens étnicas pela eleição de um homem ou de um partido da nossa região, o problema seria também simples. Mas o problema de facto é muito mais complexo; trata-se de através do nosso voto, afirmar o tipo de sociedade que queremos ter amanhã. Assim devemos julgar os partidos politicos em função dos projectos de sociedade que apresentam. Por conseguinte, por detrás das eleições, esconde-se um projecto de sociedade. Assim a democracia é antes de mais uma questão filosófica. O problema da democracia não é redutível a uma simples questão de eleições de partidos ou de presidentes, mas implica antes de mais, e sobretudo, o lugar que o povo tem que ocupar nas decisões dos problemas fundamentais que lhe dizem respeito, e nos mecanismos jurídicos, para que tenha um controlo real sobre a realidade política, económica, social e educativa. Se não tivermos domínio sobre a nossa realidade cultural, não nos será possível ser fautores do nosso futuro; arriscamos ser uma vez mais vítimas da nossa própria história e do nosso próprio destino. Por detrás do jogo das eleições esconde-se, para nós, um problema de carácter existêncial. O que- está em jogo não é seguir a escolha de um simples modelo político, jurídico ou constitucional, mas o lugar que nos será reservado na escolha daquilo que deveria ser o nosso futuro. Não é a primeira vez que o futuro está no centro do debate. Mas é certamente a primeira vez que ele é suceptível de ser enca9
rado de uma maneira filosófica, pois é a primeira vez que somos chamados a escolher o tipo de futuro que queremos que seja o nosso e por consequência, dos nossos filhos, sem condicionamentos ideológicos. Em 1924 com o «Estado Novo» em Portugal, falou-se muito de futuro em relação a Moçambique. O Estado Novo português fez grandes projectos, reestruturou as administrações, criou novas relações com a África do Sul, encorajou cidadãos portugueses a vir para Moçambique, etc. Para a realização destes projectos, o governo português contava com a nossa colaboração; ou melhor, com a nossa doçura. Não nos foi perguntado como víamos o nosso futuro, quais eram as nossas aspirações, os nossos sonhos. Eramos simplesmente chamados a executar futuros inventados por outros e em benefício deles. A realização destes projectos implicava um incremento de mão de obra nas minas da África do Sul, a transferência de populações dos seus locais de habitação e naturalidade para as zonas de produção normalmente ligados aos portos de Maputo e da Beira. Participámos na realização do futuro programado em Portugal: fomos nós que tornámos possível a construção dos palácios, das ruas, dos caminhos de ferro, dos portos, etc. Porém a nossa participação era passiva. Estávamos lá para realizar a vontade dos outros, éramos instrumentos nas mãos dos que tinham o direito de programar, querer e escolher o seu próprio futuro; o nosso futuro definia-se em função do futuro deles. Se nos programas que eles tivessem feito para o próprio futuro fosse necessária a deslocação de dez mil pessoas de Gaza para Maputo, outras duas vezes mais para a África do Sul, os militares estavam lá para executar as ordens. Em 1974 todos saboreámos o doce sabor de ser livres, independentes, protagonistas e fautores da nossa história, do nosso futuro. Ninguém ficou indiferente a esses eventos. Todos nós nos deixámos mobilizar pelos grupos dinamizadores, pelos comícios presidencias, pelos planos de desenvolvimento. Quantas vezes ouvimos repetir que o futuro dependia de nós? Quantas vezes repetimos «viva», aos continuadores da revolução? 10
A Frelimo convidava-nos para participar, e de uma maneira que se queria activa na construção do futuro. Só que esse futuro tinha cores bem precisas, tinha traços bem determinados. Uma vez mais não nos foi perguntado qual o tipo de futuro que sonhávamos para nós e para os nossos filhos; uma vez mais se pretendia que fôssemos rápidos a responder com as nossas energias, planos e projectos, na construção de um futuro na elaboração do qual não tinhamos participado. E uma vez mais os militares estavam lá para nos obrigar a traduzir em actos, os planos futuristicos daqueles que tinham o privilégio divino de saber o que era bom para todos. Nós fizemos a história, mas uma vez mais, como instrumentos da vontade alheia. Que significado vão ter as eleições de amanhã? Que doravante legitimamos com os nossos votos a acção daqueles que continuarão a ser os senhores do nosso destino, ou pelo contrário, com a democracia entendemos asenhorearmo-nos de uma vez por todas da nossa vida e futuro, e que portanto as eleições vão obedecer a critérios jurídicos com a finalidade de favorecer a participação do maior número, na projecção e na tomada de posição real sobre os problemas que nos dizem respeito? Não obstante a nossa situação política e económica, que para muitos perítos internacionais parece desesperada, continuamos a acreditar num futuro diferente, melhor. De facto não nos seria possível viver sem uma imagem do futuro, sem aquela fantasia política que permite inventar o amanhã e viver o hoje. Sem dúvida, o futuro como o desenham as nossas esperanças, os nossos deseJOS, os nossos sonnos, a coragem que anima os nossos \-Ii ojectos, é uma das causas mais importantes de hoje. Ser capazes de fantasiar - escreveu Ray Bradbury - significa ser capazes de sobreviver. Os nossos sonhos antecipam, estimulam e favorecem a afirmação e o progresso da sociedade. Na existência tudo se faz em função do futuro. O passado é campo de recordações e nostalgias, de factos e de necessidades, porque em cada mudança de tempo a vastidão de horizontes fechou-se, quando uma estrada, e simplesmente uma, foi aberta, escolhida ou imposta.
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o futuro é o conjunto de projectos, de possíveis, de esperanças, de liberdades, porque temos de escolher entre os diferentes possíveis ou criar outros. Se não formos capazes disto, o nosso futuro não será diferente do nosso passado. Éimportante analisar e discutir a nossa história para que se abra um novo futuro, que não seja, portanto, um simples prolongamento da história, para que possamos ser senhores do nosso destino e da nossa história. Contra a ilusão de óptica de olhares retrospectivos, que nos revelam um passado simplesmente unidimensional, os factos históricos são imersos numa multiplicidade de possiveis e de projectos, dos quais simplesmente um foi consagrado vencedor. Na história, os factos são o que foi feito por homens. Tomar consciência disto, é assumir plenamente a responsabilidade da nossa história e do nosso futuro. Porque para desmistificar o futuro é necessário desmistificar a história. Não estamos no limite de uma trajectória rígida que devemos simplesmente prolongar. A filosofia torna possível a vida do homem, enquanto ela lhe permite imaginar, projectar o futuro e enfrentá-lo. Se as aporias da vida que nos estrangulam com a fome, a miséria, a nudez, a guerra, o analfabetismo, etc, nos sufocassem de tal maneira a não permetir-nos nenhuma interpretação do mundo, e não nos fosse possível pensar um amanhã, seria terrível. O pensamento, a filosofia tornam possível o amanhã. Mas ao mesmo tempo, interroga-se sobre o tipo de amanhã. Mas de que meios se serve a filosofia para questionar o tipo de amanhã? Por outras palavras, qual é a maneira mais filosófica de pensar o futuro, a profecia, a utopia ou a futurologia? Antes de nos embrenharmos neste terreno assaz tormentoso, devemos olhar em redàr de nós, para vermos como a filosofia se tem posicionado em relação ao futuro, e qual tem sido a maneira especificamente filosófica de encarar o futuro. Por óbvias razões, dirigiremos o nosso olhar para a filosofia africana. Paradoxalmente, ao mesmo tempo que as sociedades africanas têm no futuro, o ponto central das suas preocupações e dos seus projectos, os debates que animam a filosofia africana parecem imbuidos de preocupações contrárias. Com efeito, as dispu-
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tas que ocupam os espíritos dos filósofos têm a que ver com o passado. As nossas dissertações chamam-se filosofia Bantu, a filosofia Bantu Ruandês do ser, a Filosofia Serere, a Filosofia 00gon, a autenticidade zairense. Equando são críticas, é sempre em função do que Marcien Towa e Paulin Hountondji chamaram etno-filosofia. Que relação existe entre o passado (a etnologia é uma actividade do espírito voltada de uma maneira geral para o passado) que constitui o objecto das nossas querelas, e o futuro que constitui a pedra angular do nosso dever-ser filosófico? A crescente literatura filosófica africana tem demonstrado o nosso esforço de reflexão filosófica, é prisioneiro do apriori etnológico. Todos parecemos padecer deste condicionamento; não são simplesmente Tempels, Kagame as únicas vítimas do apriorismo etnológico, mas mesmo os críticos mais radicais da ,etno-filosofia como Towa, Hountondji e Ebàussi não são completamente livres deste apriorismo.~Pe facto, a etno-filosofia que alguns defendem com toda a energia que têm e que outros atacam com toda a veemência que lhes é possível, tornou-se pedra angular da filosofia africana, em volta da qual gravita todo o seu processo de reflexão. Qual a razão desta associação? Porque, a nossa reflexão que se quer filosófica, isto é universal e voltada em direcção ao futuro, deve embater necessáriamente no discurso etnológico (1), que é particular e voltado para o passado?
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Utilizaremos indiferentemente o termo etnologia e antropologia, em referência para que em língua portuguesa se chama antropologia cultural. Uma destinção entre os dois domí· nios será introduzida mais adiante, quando se abordar o pensamento de Lévi·Strauss.
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HISTORICIDADE. E ETNOCIDAD E . Para pensar o universal, cada homem parte da sua situação específica, particular. Quem pensa o universal é sempre um homem singular, pertencente a um grupo particular, situado no espaço e no tempo. Isto tanto é válido para quem pensa a partir.da Grécia, como quem pensa a partir de Moçambique, do Chile ou da Indonésia. Porque é que o nosso discurso filosófico é etnológico? A tomada de consciência do condicionamento particular-histórico na investigação filosófico-universal, ou a reflexão como filósofo e como histórico, como diz Voltaire, levou á criação pelo mesmo filósofo francês, da filosofia da história, que Hegel se encarregou de difundir pelo mundo fora. À situação do filósofo ocidental, que faz emergir a questão do sentido total (filosófico), na . dinâmica da sua situção específica (histórica), corresponde uma reflexão africana igualmente filosófica, mas sobre uma situação particular, que é objecto não da história, mas da etnologia. Com Kant inicia-se a filosofia contemporânea, e não só pela grande influência que a sua obra exerceu nos filósofos posteriores, mas porque em particular, como escreve Windelband, uma das características da filosofia derivada de Kant, é que entre as suas partes necessárias e constitutivas, existe uma filosofia da história, que se interessa pejo fim étic.o do processo histórico. A filosofia africana começa com aquilo a que Hountondji chamou, um trabalho de etnologia com pretensão filosófica. É portanto legítimo que nos interroguemos sobre o estatuto epistemológico e moral da etnologia. 15
Para uma crítica exaustiva do uso etnológico da filosofia, é necessário recuar no tempo. Porém, não simplesmente aTempeis, nem sequer ao uso do termo etno-filosofia no mundo anglo-saxónico, mas ir à raiz e génese do discurso etnológico, através de um exame analítico da relação entre a história e a não-história. '!JJj$tQriél e etnologia constituiram-se como disciplinas afins e contraditórias, alimentando entre elas relações que derivam de duas categorias principais, tempo e espaço. Ambas sãO instrumentos de descrição do universo humano; mas a história faz o inventário do tempo e a etnologia do espaço. Assim, nas classificações da Europa baconiana, o relato de viagens longínquas faz parte dos livros de história; elas formam uma categoria consagrada à descrição dos países estrangeiros e nomeadamente exóticos. Aliás, trazendo até aos leitores os costumes das populações longínquas, o viajante procura não só vulgarizar o pitoresco e a diferença, mas traz também ao espaço contemporâneo uma imagem do passado. O selvagem, é a infância do civilizado. Assim encontram-se unificadas duas leituras de uma mesma imagem do homem. Tudo começa no século XVI com a secularização do tempo em relação à velha cronologia apocalíptica. O vetero-testamentário cede à pressão humanista protestante e enfim ao Estado-Nação. Assim entre o século XVI e a época das luzes, a história, é antes de mais, história das nações, isto é dos Estados e dos povos europeus. Mesmo Voltaire, que tentou ultrapassar o quadro desta vis'ao, "tem como referência implícita da sua história universal, o Estado Luis-catorziano, auge do florescimento da sociedade. História.e etnologia separaram-se em meados do seculo XIX quando o evolucionismo triunfante, antes de Darwin, separou o estudo das sociedades evoluídas, das sociedades ditas primitivas. Até então, a história tinha englobado todas as sociedades, mas quando se constitui a consciência do progresso, a história foi reduzida ao que se acreditava ser a. unica humanidade susceptível de se transformar rápidamente; o resto ficou para os géneros me: nores do domínio científico ou literário - os «mirabilia» onde os homens primitivos viviam lado a lado com os monstros, as viagens em que os autóctones são uma variedade da fauna, os meios geo16
gráficos onde os homens eram um elemento da paisagem - ou condenados ao esquecimento. Para a Europa «civilizada» o chamado novo mundo é um outro mundo: costumes selvagens, sem religião, espírito degradado. Os povos não têm escrita, não têm arquivos, não têm Estado. Eles não pertencem, portanto, ao mundo histórico em todas as suas formas, moral, civil e política. Os povos com escrita revelam com toda a nobreza, o território da história, os selvagens serão objectos dos etnólogos. As sociedades estudadas pela etnologia são definidas portanto pela negativa, por aquilo que não têm. EJél.? não possuem nem histqria, nem verdade e nem Estado. O que é característico das sociedades estudadas pela etnologia é a sua imperfeição. . A história não diz respeito a todas as nações, mas simplesmente a algumas; as que produzem, que trocam, em rE?sumo, as nações que contam. O resto da humanidade é abandonada ao não ser histórico. A etnologia desenvolve-se como um saber residual, definido negativamente em relação à história da Europa e da América do Norte. Porque é que a história recusou aceitar nas suas margens os povos ditos «selvagens», e que tipo de discurso histórico se transformou em etnologia? Ou por outra, qual é o estatuto epistemoló- >< gico da etnologia? Foi uma suma de razões ideológicas, mais do que científicas, que empurrou as nações não ocidentais para fora da história. As razões que estão na base do nascimento da etnologia, não são científicas. Ninguém pode justificar, que a descrição da fauna e da vegetação, que faziam então parte da história, fossem históricamente mais dignas que os povos não ocidentais. Ü.queJ3stªy.ª~_\ i
e~ . . çª~L$ª.,_. eJa.JLª§.tªtu1QJiº.-º\:!trº)m"ª"n?lªs;"ªº""ªntffLª..uoJ.daOO..8
él,.d.i'lelS1dade . bwmªua .. A esta problemática primordial, o etno- -centrismo ocidental respondeu criando a história dos sem história, a história dos bárbaros: a etnologia. Assim se Consumava a separação entre o que Claude Lévi-Strauss chama sociedades historiografáveis e sociedades etnografáveis. O,QueÉl interessante relevar, é que a etnologia nasceu no século que proclamou os direitos
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. i.
do homem. Que viu sobretudo surgir um novo conceito: Homem! ' Éste conceito retoma o conceito de Humanitas, de Cicerone e responde à magnífica proclamação de Térence: «Homo sum, nihil a me alienum putO», O homem surge concebido como agente, sujeito dos eventos temporais, como origem do di,reito, como ~r?d~ to da educação. Não obstante, a etnologia foi cnada cºrno rejelçao, do outro. Entre a história e a antropologia, existia uma fronteira muito nítida. Uma tal separação era resultado da rejeição, fora da tradição ocidental e portanto do tempo e do discurso da his~ória da Europa, dos povos e das civilizações.ditas selvagens e barbaras. Para melhor afastar estas sociedades da história, e melhor fundamentar alegitimidade da sua subordinação às sociedades hist~ri cas, foi lhes consagrada uma disciplina específica: a antropologia. Doravante reservou-se às sociedades «quentes» um movimento universal de mudança e de progresso, enquanto às sociedades «frias» restava a estagnação material e intelectu~l. Tudo contribuia para separar a históriá'da etnologia. Antes de mais, os seus objectos específicos._6primeirélinter~ssava-se p~l? passado histórico europeu, e a segunda pelas sociedades exotlcas reputadqs sem história. Em seguida os seus domínios de reflexão: a histó'ria tentava centrar-se no desenvolvimento cronológico dos eventos e reconstnjir as etapas da evolução no seio da grande tradição histórica, enquanto a antropologia tentava compreender a estrutura e a função das instituições sociais nas sociedades marcadas essencialmente pela permanência e pela repetição. O discurso antropológico constitui-se no interior de uma filosofia da história que divide os homens em dois mundos diferentes, irreconciliáveis no tempo e no espaço, onde a Europa ocupa um lugar preponderante. Em verdade, a etnologia é o resultado da expansão de dOIS imperialismos: o imperialismo mercantil, que se apropria d~s terras, dos recursos naturais e até mesmo dos homens. DepOIS, do imperialismo histórico, que se apropria de um novo espaço conceptual: o homem não histórico. Uma aproximação histórica do problema permite-nos captar i'i
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o contexto cultural no qual o pensamento sobre o «Outro» em gerai e, mais tarde, o pensamento etnológico propriamente dito se desenvolveram. Dito de outra maneira, uma aproximação histórica permitir-nos-á compreender as interacções entre, de um lado, a história das ideias, os costumes, as estruturas sociais, ecomómicas e políticas da Europa e, por outro, a história da reflexão antropológica. Trata-se mais precisamente, de ver quais foram os sistemas de valores e os interesses económicos e políticos, que influenciaram uma tal reflexão; e por outro lado, ver qual foi a importância da presença da alteridade, para a história das ideias e para a evolução social e cultural; qual foi a sua contribuição no progresso das ciências humanas. O que precede, faz-nos tomar consciência de que a história da antropologia e a antropologia em geral, dizem simplesmente respeito a uma parte da humanidade. Com efeito, a história da antropologia dá conta das etapas do conhecimento do homem exótico pelo homem ocidental. Para ser completa, tal história deveria também interessar-se pelo que as outras civilizações produziram sobre a alteridade que eles encontraram, e mesmo sobre a alteridade ocidental. Por outro lado, deve ter-se em conta o facto que a antropologia, que se pretende ciência do homem, nasceu de uma visão particular, que uma cultura específica (cultura ocidental) lançou sobre as outras culturas. Deve tomar-se consciência, não para negar a possibilidade de que uma cultura particular possa ter uma visão relativamente objectiva sobre as outras culturas, que essa visão possa produzir efeitos de conhecimento, mas sim para relativizar essa visão e conferir-lhe uma historicidade que explicite os seus fundamentos teóricos e sobretudo ideológicos. Neste sentido, fazer a história do pensamento antropológico é de certa maneira retornar à sociedade que a concebeu, e interrogar-se sobre os valores sociais e culturais que estão na origem da visão do outro. A história da antropologia, enquanto história intelectual de uma tradição, faz portanto, parte de uma antropologia cultural do ocidente, uma antropologia que perrT1ite compreender a estrutura e o significado desta cultura, à qual per19
tencem os antropólogos. Fazer a história da antropologia é contribuir de maneira significativa para a compreensão da natureza da cultura ocidental. A maneira através da qual a antropologia compreendeu e interpretou as culturas extra-europeias, dá-nos as indicações sobre a maneira como a sociedade ocidental se apreende e se analisa a si mesma. Proceder desta maneira, é contribuir para alargar o objecto da antropologia e integrar na sua reflexão as culturas ocidentais como objecto de conhecimento. Sob este ponto de vista, há muitas interrogações a formular. Por exemplo, porquê e como, as sociedades europeias produziram antropólogos? As respostas a estas questões são diversas. Diz-se que foi uma maneira do Ocidente confrontar a sua própria imagem com sociedades diferentes, para encontrar aí, os seus limites e os seus defeitos (o outro é pretexto para criticar-se a si mesmo: é em geral a figura do bom selvagem), ou descobrir os limites e os defeitos do outro e confortar a sua própria imagem (é em gerai a figura de mau selvagem). Justifica-se também o aparecimento da antropologia a partir de uma necessidade de conservar. Quanto mais a sociedade industrial conquistava e destruia as outras culturas e a sua própria, mais se desenvolvia a necessidade de conservar e expôr os sinais destas culturas. Na realidade, o desenvolvimento de um conhecimento antropológico sobre o outro traduz uma relação de poder.'Nascido de uma relação de dominação, a visão antropológica inscreve-se inevitavelmente em estratégias de tipo político e económico que determinam em parte os objectos de estudo e as finalidades analíticas. As imagens que o ocidente fabrica da alteridade, por um efeito de retorno, reenviam-nos às imagens que o ocidente faz dele mesmo em relação as outras culturas. Sf:LnÓS aparecemos como seres «irracionais», «primitivos» ou «atrasados», é sempre em relação à «racionalidade», à «civilização» e à modernidade do ociden: te. Esta confrontação de imagens permite-nos relativizar os diferentes juízos, que são feitos sobre uma cultura ou outra. Contextualizando e analisando a produção das representações sobre o outro no interior das relações que o fizeram nascer, podemos
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atingir um grau de conhecimento de relações inter-culturais mais equilibradas e mais rigorosas, do que se ficarmos a nível de um só discurso, ou de uma só visão. Na antropologia existe uma tradição bem estabelecida que reivindica o início desta disciplina na época grega. Sabemos que a antropologia como a conhecemos hoje, nasceu na segunda meta.de do século passado e como resultado de rupturas importantes no pensamento e na cultura ocidental. Deve contudo. acrescentar-se, que o movimento de legitimação através da anti: guidade clássica, era habitual no século passado e mesmo durante muito tempo no século em curso. Os séculos que precederam o século XIX, foram importantes para o nascimento da antropologia moderna, mas o aparecimento de uma ideia clara da problemática da diversidade, foi longo, lento e destituido de uniformidades. Durante esses séculos verificou-se um maior ou menor confronto com as outras culturas, mas sem que essa relação com o outro acedesse ao estatuto de um saber com pretenções objectivas, como começa a aparecer no fim do século passado nos discursos científicos. É no quadro desta interrogação sobre a dificuldade epistemológica pluri-secular de pensar o outro que se deve situar a história do pensamento antropológico, enquanto discurso sobre a alteridade e a diferença. Na área cultural de Atenas e Roma, a concepção global da história provém de obras complementares de historiadores, filósofos e poetas. Os historiadores do século V antes de Cristo (Heródoto e Tucidide) compreenderam progressivamente que a história, enquanto investigação das realizações humanas, não é lenda, mas investigação minuciosa que vai da 'crónica descritiva da escola iónica (cf. Ecateo e Heródoto) até à reflexão ético-filosófica sobre as leis da experiência humana configurada em sentido político e social. Heródoto é considerado o pai da historiografia grega, por ter sido o primeiro a considerar a história como âmbito da investigação dos eventos humanos e não das teogonias. Ele investiga sobre os eventos humanos para chegar a uma lei imutável da natureza humana. Não se contenta em narrar, junta provas e tes""
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temunhos para justificar a sua exposição, através da técnica do contra-interrogatório, que lhe foi sugerida pelos tribunais e projectada para a análise das fontes. Da análise da historiografia de Heródoto, emergem duas características da investigação e da narração dos factos do passado (e do presente): humanismo e substancialismo. Isto é, interesse pelas realizações temporais do homem e destino fatal guiado pelos deuses, ao qual o homem acaba por socumbir e aceitar sem poder activamente dominá-lo. De facto ele diz, «de todas as tristezas que afligem a humanidade a mais amarga é esta, que se tenha de ter consciência de muitas coisas e domínio sobre nenhuma». Heródoto tal como é pai da história, é também o pai da etnografia. O seu segundo livro das histórias é dedicado ao Egipto. Após as suas viagens ao Egípto, Pérsia e outros países, faz um impressionante número de descrições e relatos de contos e de mitos. Possuía uma grande curiosidade pelas outras culturas que fazem dele um autêntico espírito investigador. Nas suas peregrinações, regista as particularidades que encontra, interroga sobre as particularidades que constata e associa os factos aparentemente afastados. Mas sobretudo privilegia o testemunho visual sobre o auditivo, e fundamenta a sua investigação sobre a testemunha que viu, e que, por isso, sabe (1). Este aspecto é de importância tendo em conta que a antropologia moderna fez exactamente da observação visual a regra centrai do seu método (a presença física no terreno). Contudo, Heródoto, como aliás outros pensadores da antiguidade, dava muito mais importância aos factos que saíam do ordinário, que aos hábitos e aos factos normais que compunham o tecido da vida quotidiana dos povos. Ainda por cima, ele descrevia os povos estrangeiros ou «bárbaros» em função e em oposição aos costumes gregos. Portanto, o mesmo Heródoto afirma - o que devia ter apaziguado a sua superioridade irrascível em relação aos que ele chamava bárbaros - que os «egípcios chegaram ao Peloponeso e C) Heródoto, LX, 16.
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apoderaram-se daquela parte da Grécia, como narravam as crónicas de outros autores» (2) Os gregos, a quem Heródoto dirigia os seus escritos, sabiam que a Grécia tinha sido colonizada pelo Egípto, ou podiam facilmente verificar. Mas o que era importante para este homem, a quem Plutarco catalogou como «pai da mentira», não eram tanto as colónias, quanto a introdução da cultura egípcia e fenícia na Grécia. Não obstante a aversão explícita sobre as colonizações, o grande orador grego, Isócrates, confirma: «nos tempos antigos, todo o bárbaro que caísse em desgraça, presumia poder governar as cidades gregas, Danão (por exemplo) refugiado do Egípto, ocupou Argo; Cadmo, chegado a Sidone tornou-se rei de Tebe ... » (3). Crantore, prim"eiro comentador de Platão, que escreveu algumas gerações depois deste, dizia que os contemporâneos de Platão troçavam dele dizendo que ele tinha copiado a sua República das instituições egípcias. . Aristóteles não foi simplesmente discípulo de Platão, mas estudou também na academia, com Eudosso de Cnido, grande matemático e astrónomo, que tinha passado seis meses a estudar com os sacerdotes egípcios. Quanto ao Egípto, Aristóteles sofreu uma grande influência de Heródoto, e foi fascinado por aquele país e cultura. Eque dizer de Alexandre Magno que se considerava filho de Ammon? Na obra intitulada «Le miroir d'Hérodote. Essai sur la représentation de I'autre» (1980), F. Hartog mostra muito bem como, afinal de contas, para Heródoto, os «bárbaros» são simplesmente um meio indirecto para falar e definir os gregos. O que lhe interessa são principalmente os gregos, e os bárbaros que lhe permitem afirmar e valorizar implicitamente a superioridade dos valores gregos (4). (2) CL Heródoto, Histórias, VI. 55 (3) Isócrates, Contos, xx, 32 (4) CL Hartog, "Le Miroir d'Hérodote. Essai sur la représentation de I'autre», Paris, Gallí· mard,1980.
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Em Tácito (55 a,C, 17 d,C,), através de uma dramática descrição dos eventos humanos, consubstanciados na avidez do poder, nas lutas entre aristocráticos e no puro azar, emerge o itinerário de uma história como um poderoso teatro de paixões, numa amálgama de vitórias e derrotas, numa espécie de eterno retorno do idêntico, Como em Heródoto, também em Tácito já se percebe um espírito etnográfico, Numa perspectiva rousseniana, a corrupção da civilização romana, opõe a saúde dos «bons selvagens» que são os bretões ou os germânicos", Com o cristianismo, nasce e consolida-se uma nova mentalidade sobre a maneira de nos relacionararmos com a natureza e com o tempo, muito diferente, até mesmo oposta à mentalidade greco-romana, Por isso, a relação entre a filosofia e a teologia, pode ser analisada como confrontação entre duas civilizações históricas, ,Com os conceitos bíblicos de criação, pecado, redenção e providência, a teodiceia e a visão da realidade mudam profundamente em relação à filosofia grega. O fulcro da natureza histórica transfere-se da natureza para Deus, apresentando-se assim com todo o seu valor de mistério e de fé, Neste sentido, o homem é chamado a colaborar com a iniciativa transcendental e a empenhar-se ética e religiosamente no tempo, A doutrina platónica dos arquétipos eternos cede lugar à «creatio ex nihilo»; a dimensão cíclica e fatal do tempo (Kpovos) é substituida pela liberdade humana de aproveitar do tempo redimido (kaipos), Criação contigente e Deus, tempo e eternidade, sobre um substracto de sentido ontológico e de significado religioso e moral, proporcionam uma hermenêutica histórica que se actualiza sobre um terreno ambíguo de bem e de mal, de virtude e de vício, Diante de Deus todas as actuações históricas têm um simples valor transitório, Como revelou p, Ricoeur, para o cristianismo o acontecimento dramático da história é dado pela «culpabilidade» existencial e não pelo elemento político, E como sublinhou Collingwood, a historio-
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grafia cristã conota-se como «universal», providencialista, apocaliptica, periódica, A vocação universal própria do cristianismo, oferecia à etnologia uma estrutura de acolhimento, Toda a história era uma história universal, todos os povos tinham vocação para entrar na história, De uma maneira geral, esta compreensão cristã da história deveria ter guiado o homem da idade média na apreensão e na interpretação das outras civilizações, E no entanto, o que se constata é que só os cristãos têm direito à história, Os pagãos, propriamente ditos, e os infiéis são excluidos do domínio histórico, O Bispo galicano Bossuet, em pleno século XVIII, exclui deliberadamente da sua história universal os povos do dito novo mundo, porque segundo ele não constavam nas profecias, Como notou Augustin Renaudet, Dante repete com orgulho a profecia de «Anchise»: «Tu regere imperio populos, Romane, memento», Virgílio e Sybila anunciam Cristo numa perspectiva teleológica que deixa os outros, os que não são herdeiros de Roma, fora da marcha em direcção da salvação .. , Se pensarmos na sociedade árabo-muçulmana, vizinha do ocidente, com a qual a sociedade medieval ocidental tinha relações múltiplas e que em muitos aspectos era mais avançada, constatamos que essa era apreendida sobretudo através de uma figura de exclusão: o monstro ou o Sarraceno. Por outro lado, as Cruzadas não podiam representar ocasião de intercâmbios culturais entre a sociedade medieval ocidental e árabe, Considera-se em geral o humanismo renascentista como o nascimento da consciência histórica, devido a uma nova teorização que se baseia nos eventos humanos e constitui a espinha dorsal da historiografia de Maquiavel, Guicciardini, Bruno, Poggio Bracciolini, etc, Doravante o homem - dominus mundi - auto-compreende-se nas suas acções operativas, políticas e sociais, A dignidade depende da acção, em ruptura progressiva com a mentalidade metafísico-contemplativa da idade medieval. É óbvio que um fenómeno cultural e espiritual, como o humanismo, é complexo e diversificado, e suscita interpretações diferentes e contrastantes, até mesmo da parte dos especialistas, O que interessa 25
sublinhar, é a passagem gradual mas acentuada, da consideração teológica a uma consideração racional e crítica sobre a história, evidênciando o valor que a ideia de utopia adquire até ao iluminismo do século XVII. Segundo Huizinga, esta transferência do espaço de referência e a perda da hierarquia unitária até então existente, foi devida principalmente às expansões geográficas. O esforço da compreensão humana já não vem de uma confrontação com a transcendência metafísica, mas manifesta-se nas modulações do horizontalismo temporal. O modelo de perfeição é procurado no passado clássico, criticamente interpretado, enquanto a transcendência divina é vista como compreensão e mortificação do homem, por homens como L. Valia, «De libero arbitrio» (1436), P. Pomponazzi, «De fato, libero arbitrio et praedestinatione» (1520), G. Bruno, «Spaccio de la bestia trionfante» (1585). O substrato da civilização renascentista consiste na exaltação do individualismo (L. Bruni, C. Salutati), da vida civil e política; primazia da vida activa sobre a contemplativa (P. Bracciolini), celebração da fecundidade do trabalho (L.B. Alberti), concepção heróica e aristocrática da história, relativismo dos valores (basta pensar a interpretação que G. Bruno deu à frase de Gellio: «veritas filia temporis» e a historiografia de Maquiavel e Guicciardini. Repudiando Deus como referencial, a consciência política declara-se auto-suficiente na resolução dos problemas que dizem respeito aos instintos e às necessidades humanas - regnum hominis. O pensamento político de T. Hobbes é sintomático de tal reflexão. Uma vez que a metafísica já não é suficiente para dar um sentido à história, assiste-se a um «disiecta membra», enquanto os valores e as ideias vão ser reivindicadas pelas utopias de Campanella, Bacone, Moro, Erasmo, etc. Os estudiosos e artistas italianos do renascimento identificavam-se com os gregos, mas os seus interesses não se centravam sobre a Grécia de Homero, de Péricles ou sobre os Deuses do Olimpo. O que lhes interessava, era retomar onde a antiquidade pagã tinha parado. Como escreveu, com sensibilidade do século XVII o filósofo e historiador David Hume, «o saber, no momento do seu renascimento, foi vestido com os mesmos indumentos que 26
usava na época da sua decadência entre os gregos e os romanos (5) . .' Centrado nesta decadência surgiu o respeito pelo Egípto e pelo Oriente. E foi exactamente da tradição neo-platónica e hermética que o renascimento retirou a sua concepção mais característica, das infinitas potêncialidades do homem, e da crença que ele é a medida de todas as coisas. Os homens do renascimento estavam fundamentalmente interessados pelo passado, procuravam as fontes. E por isso olhavam para trás, para além do cristianismo, de Roma e da Grécia. Mas para trás da Grécia estava o Egípto, como disse Giordano Bruno no século seguinte, que por sua vez foi aclamado pelos historiadores e cientistas dos séculos XVIII e XIX, como pioneiro e mártir da ciência e da liberdade de investigação. Por volta dos anos 1460, um manuscrito grego foi levado da Macedónia para Florença. Ele continha uma cópia do Corpus Hermeticum. Não obstante os manuscritos platónicos estivessem já todos reunidos, Cosimo ordenou a Marsílio Ficino que traduzisse imediatamente da obra de Hermete Trismegisto, antes de traduzir os filosófos gregos. O Egípto vinha antes da Grécia, Hermete antes de Platão ... (6). Qual foi a importância destas rupturas revolucionárias - a descoberta da importância das influências das culturas africanas e asiáticas na formação técnica e cultural do ocidente, as extensões dos horizontes geográficos e mentais dos séculos XV e XVI -, na percepção e interpretação do outro? E através do outro de si mesmo? Temos que constatar que a «descoberta» de novas humanidades, e da base afro-asiática da cultura europeia não foram colhidas como ocasião para uma tomada de consciência positiva da diversidade humana, nem para a constituição de um saber objectivo da variedade do homem no mundo. (5) Cf. Wind, E. Misteri pagani nel Rinascimento. Milano, 1985. p. 13 (6) Yates, «F. Giordano Bruno e la tradidlzione ermetica», Bari, 1969; o texto de Platão
mais conhecido durante o Renascimento e o tardo medieval, era o «Timeo», que contrariamente aos outros dois (Simpósio e República), continha referimentos explícitos à sabedoria egípcia.
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Pelo contrário, o período que vai da «descoberta» da América até ao fim do século XVI, as culturas não europeias foram submetidas a um sistema de interpretação proveniente das fontes da tradição bíblica. Para responder ao problema do povoamento regional da América, a explicação mais corrente era ligar os ameríndios às tribos perdidas de Israel de que fala a Bíblia. Da mesma maneira, as diferenças constatadas entre os grupos humanos nos diversos continentes, eram referidas a uma única árvore geneológica, como figura na Génese, e representada pela descendência de Noé. Os europeus seriam descendentes de Japhet, os asiáticos de Sem e os africanos da linhagem maldita de Chamo Este mito funcionou até ao século XIX. Como demonstc~LtT:T qgorov (7), a conquista da América pelos espanhóis e a conlro'fltaçCão cultural que se seguiu, é exemplar no que põe em evidência: a incapacidade ou a dificuldade de uma civilização conquistadora em aperceber-se do outro como ser diferente e às vezes até mesmo de percebê-lo simplesmente como homem. Assim, por exemplo, Francisco de Vitória, uma das maiores autoridades do humanismo espanhol do século XVI, justificou a guerra contra os ameríndios, com o pretexto de que eles eram loucos, animais selvagens. Um outro autor, Oviedo, homem de ciência da mesma época, chegóu mesmo a considerar os ameríndios objectos inanimados. Esta percepção negativa do outro, que partia de um sentimento de superioridade, culminava muitas vezes com a sua destruição física (genocídio), ou na vontade de lhe impor os próprios valores (etnocídio). Durante o século XVI e XVII, a Europa atravessa uma profunda crise ideológica. Os esquemas de referência antigos, tinham-se tornado insuficientes para compreender e resolver os novos problemas. Contudo, esta crise não seria condição suficiente para que a Europa se questionasse seriamente sobre os problemas da alteridade. Na crise das ideias da época, trata-se essencialmente do homem europeu, das suas instituições, das suas crenças e dos seus costumes. As informações que acumula sobre o «selvagem» (7) Todorov, T., «La conquête de l'Amérique. La question de I'autre», Paris, Seuil.
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e que acompanham as suas reflexões tem uma simples função apologética sobre a tomada de posição de diferentes pensadores. Isto é, os discursos sobre o outro são pretextos para falar da própria sociedade, para defender as próprias ideias. Para tal, não se hesitava em inventar sobre o outro.' Assim nasceram muitos mitos, sobretudo no século XVI, em volta da figura do selvagem, que ainda hoje estão presentes no imaginário ocidental. . O mito mais célebre é o do «bon sauvage». Através dele, muitas gerações de pensadores, de Montaigne no século XVI, a Lévi-Strauss hoje, passando por Rousseau -no século XVIII, questionaram a civilização ocidental. Contudo, a imagem do «bon sauvage» que era ao mesmo tempo valorativa e mítica, juntou-se partir do século XVIII e XIX, a imagem mítica do «mauvais sauvage» que vai cristalizar-se essencialmente na figura do negro. Para a «denegrição» do negro afirmava-se, ou que os negros não constavam da Bíblia, ou então que eram da descendência de Cham e portanto malditos por Deus; argumentos que constituiam, aliás, uma legitimação fácil e cómoda da escravatura então em voga. O «Code Noir» ilustra perfeitamente, a maneira como o branco via o negro. Promulgados em 1685 por Luis XIV, os sessenta artigos que codificam a desumanidade do negro, estarão em vigor até 1848. Regulamentando detalhadamente, as prerrogativas absolutas do senhor sobre o escravo, o «Code Noir» proclama o «direito ao não direito», e organiza juridicamente a destruição física no negro, sem lhe dar possibilidade de recurso ... Contráriamente ao pensamento teológico espanhol do século XVI, que depois de um debate forte e animado (que acabou encorajando o tráfico de escravos negros) reconheceu a identidade antropológica dos ameríndios, reconcendo-Ihe um estatuto de homem livre e igual, os filósofos franceses dos séculos XVII e XVIII não se mostraram minimamente interessados pela condição infra-humana a que o negro estava reduzido. Os discursos sobre a escravatura, e a sua condenação feitos pelos homens das luzes foram abstractos e teóricos, e não diziam respeito à condição «de coisas», a que tinham sido reduzidos os negros. No século passado, a inferioridade do negro estava escrita na
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natureza física. Produzindo uma hierarquia humana em termos de raças, a ciência do século XIX colocou o negro, perto dos antepassados de todos os homens, os primatas, identificando assim qnegro com q grau zero da evolução humana, na qual o homem bré3. nco representa o apogeu, Sob ponto de vista filosófico-histórico, a contemplação metafísica cede lugar à razão (raison) iluminista que por sua vez é ali- . mentada pela fé no progresso, guiada pela filosofia de Bacon e Descartes. Voltaire prospecta a história como civilização humana e não providencialista como queria Bossuet; Turgot acredita no progresso social e económico, mas incentivado não só pela razão, mas também pelas paixões (mesmo as mais violentas, e por isso irracio.nais). Causas físicas e morais são para ele factores de crescimento dos povos e da sociedade; os enciclopedistas franceses falam da «razão feliz», à medida que ela domina a natureza com o trabalho e o comércio, e promove a unidade entre os homens, a circulação das ideias, a invenção de sinais e símbolos científicos, o critério de distinção entre justo e injusto, uma moral social que contempla os deveres dos homens, dos legisladores e dos estados entre eles, dos estados para com os cidadãos; Condercet no seu «Esquisse d'un Tableau des progrés de l'Esprit humain» (1792) traça o caminho da civilização, como actuação histórica e como esperança do futuro. A antropologia das luzes era fundada sobre os seguintes pressupostos: 1. A humanidade é una, e a natureza humana é imutável' é a socieda.de que muda, e não o homem. Salvo qualquer exc~p ção, os pensadores do século XVIII inscrevem-se na tradição mogenista herdada do humanismo cristão e do renascimento. 2. O curso da história humana é orientado de forma unilinear, irrevercível e contínua. Um dos corolários essenciais deste postulado, é que os selvagens são, no sentido próprio do termo, os primitivos, eles representam portanto, um estádio ultrapassado da história. O que é radicalmente novo, em relação às antropologias precedentes, é a universalização de uma história que engloba no
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seu movimento o conjunto das sociedades humanas a partir das origens, e que excluem concomitantemente a possibilidade de histórias diferenciais: unificação dos regimes de historicidade. 3. A história humana é sustentada por leis acessíveis à razão humana, exactamente como o mundo físico. Se a razãao pode entender as leis divinas do funcionamento do mundo físico, como fez Newton, aplicada à história humana produzirá os mesmos efeitos .. 4. Esta perspectiva baseia-se num método cujos pilares são, por um lado, a comparação e por outro, a introspecção analógica que provém da crença na unidade da natureza humana e da universalidade da razão. Nós podemos pensar como os primitivos e nada, em princípio, impede os selvagens de pensar como nós, na condição de que eles progridam no entendimento. 5. No século XVIII (e XIX) as ciências do homem são militantes e utopistas. Trata-se para elas, de encontrar e coadunar o ideal entre o homem e a organização social. O critério de avaliação não são os sistemas sócio-políticos, mas o indíviduo. Esta ideia de individualismo «possessivo» encontra-se intimamente ligada à ideia . de propriedade sumamente expressa no tratado do governo civil de Locke de 1698. Entre as propriedades a possuir, existia o escravo negro, o que portava consigo, uma discriminação racial, cultural e mesmo ontológica. Tais valorizações vão concordar perfeitamente com o início do romantismo, que sublinhava a importância das características geográficas e nacionais e as diferenças categóricas entre os povos. De facto, a partir de 1650 começa a desenvolver-se um racismo com contornos mais nítidos e intensificou-se com a progressão da colonização da América do Norte, que comportava duas políticas associadas, a do extermínio dos nativos americanos e a da escravatura dos africanos. Políticas essas que suscitavam problemas morais nas sociedades cristãs, nas quais a igualdade de todos os homens diante de Deus e a liberdade pessoal eram valores centrais, sendo que só um forte racismo podia alentar as primeiras. 31
Geralmente, justificava-se a escravatura citando Aristóteles, que tinha largamente teorizado a seu favor: «Os povos que vivem nas regiões frias e europeias, são muito corajosos e apaixonados, mas não têm habilidade prática e intelecto; por esta razão, mesmo se são geralmente independentes, não têm coesão política e não podem governar os outros. Por outro lado, os povos asiáticos têm intelecto e habilidade prática mas não têm coragem e força de vontade; por isso permaneceram submetidos e escravos. O povo helénico, que ocupa uma posição geográfica intermediária, é dotado de todas estas qualidades e por i?so continuou a ser livre, a ter as melhores instituições políticas e a ser capaz de governar por meio de uma única constituição (8). Assim Aristóteles liga a superioridade racial ao direito de escravizar os outros povos, especilamente aqueles «com predisposição para a escravatura». Posições racistas semelhantes, que acabaram por influenciar as respectivas filosofias, encontram-se nos filósofos ingleses John Locke - proprietário de escravos nas colónias americanas - e David Hume. Na sua visão política, Hume denegria sistematicamente os Nativos da América; tinham-se necessidade das terras habitadas pelas populações indígenas para dar terras não cultivadas aos colonos ingleses. Tal colonização era necessária, como prova do argumento, segundo o qual, a todos os homens era dada a possibilidade de se associarem em contrato social, com todas as desigualdades que isso comportava. As agressões da Europa cristã contra os «idólatras» africanos e americanos, eram consideradas guerras justas, porque estes últimos não defendiam as suas propriedades mas simplesmente terras não cultivadas. Para Hume o direito à propriedade da terra, derivava do seu cultivo. A captura de escravos africanos pelos europeus era também justificada; além disso, a própria existência de escravos africanos em grande número, induzia a crer que eles fossem escravos naturais no sentido aristotélico. E Hume não hesitou em fazer-se pioneiro da ideia se(8) Aristóteles, Política, VIII. 7.
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gundo a qual não, existia uma criação única, mas muitas e diferentes criações. Nos anos 1680 era difundida a opinião, segundo a qual os negros eram simplesmente em pequeno grau superiores aos grandes macacos - eles também de origem africana - na grande hierarquia dos seres. Este modo de pensar foi facilitado pelo nominalismo de Locke, que negava a validade objectiva das espécies aceitando-as simplesmente como conceitos objectivos. Ele era particularmente céptico quanto à categoria de «homem». «Eu penso que nenhuma das definições que hoje temos da palavra homem, nem as descrições desta espécie de animal, seja assim perfeita e exacta para satisfazer uma pessoa com uma mentalidade analítica rigorosa, para não dizer de senso comum ... (9). Esta posição está em contraste evidente com a proclamação bíblica: E Deus fez o homem à sua imagem e semelhança. E até mesmo com Descartes, que insiste sobre a distinção categórica entre animais não pensantes e homem pensante. Pode portanto concluir-se, que o empirismo acaba por destruir a pequena barreira, que ainda subsistia contra o racismo. No século XVIII, a referência, até mesmo a reflexão sobre os costumes exóticos dos outros povos, foram um dos meios utilizados pela crítica social e pela filosofia política, sobretudo quando se tratava de denunciar a injustiça ou o absurdo de certas instituições, como a monarquia absoluta. O século das luzes apropriou-se, portanto, do «selvagem» para compreender-se e criticar-se. Assim existia o selvagem do missionário, que era diferente do selvagem do militar, e ainda mais diferente do selvagem do filósofo. O exemplo é dado por Montesquieu, que nas cartas persas, revitalizando o modelo de Jean Bodin (século XVI) se serviu dos persas para criticar a Europa, e por outro lado, exaltava a Europa como continente científico e progressista. Este primado era explicado como consequência do seu benéfico clima temperado. No espírito da lei de 1748, o eurocentrismo do Barão de Montesquieu mostra (9) Locke (1688, livro III). cf. Jordan, W, D, White Over Black, Baltimore, 1968, pp, 235-236; Bracken, Philosophy and racism, "Philosophy", 8:241-60, 1978, p, 246,
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toda a sua relevância, onde aliàs, ele deliberadamente se esquece de fazer qualquer tipo de referência à condição, à qual o negro tinha sido reduzido pelo