Introdução à filosofia africana: Passado e presente
 9789896733377

  • 0 0 0
  • Like this paper and download? You can publish your own PDF file online for free in a few minutes! Sign Up
File loading please wait...
Citation preview

Maurice M. Makumba

,_.

UMA INTRODUÇAO À FILOSOFIA AFRICANA Passado e presente

4.

Agradecimentos Título original: An Introduction to African Philosophy © 2007, St. Paul Communications/Daughters of St. Paul Nairobi - Quénia Tradução: Mário de Almeida Capa: Departamento Gráfico Paulinas (Portugal) Pré-impressão: Paulinas Editora - Prior Velho , Impressão e acabamentos: Artipol - Artes Tipográficas, Lda. - Agueda Depósito legal n.º 369 524/14 ISBN 978-989-673-337-7 (edição original 9966-08-296-4) ©Fevereiro 2014, Inst. Miss. Filhas de São Paulo Rua Francisco Salgado Zenha, 11 - 2685-332 Prior Velho Te!. (351) 219 405 640- Fax (351) 219 405 649 e-mail: [email protected] www.paulinas.pt

© 2014, Inst. Miss. Pia Soe. Filhas de São Paulo -ANGOLA

Centro de Difusão: PAULINAS Centro Multimédia de Evangelização e Cultura Rua Rey Katyavala, 162 - C.P. 10.050 Luanda (An gola) Te!./Fax 222 44 68 82 - 222 44 66 75 e-mail: [email protected]

© 2014, Inst. Miss. Filhas de São Paulo-MOÇAMBIQUE N.º de registo: 7744/RLINLD/2013

Centro de Difusão: PAULINAS Livraria e Audiovisuais Avenida Eduardo Mondlane, 1536 Te!. 21 32 46 71 - Fax 21 30 42 57 e-mail: [email protected] www.paulinas.co.mz

Tal como o fiz nas minhas obras anteriores, gostaria, antes de mais, de agradecer muito sinceramente a todos os m eus alunos dos três semin ários em que ensinei, nomeadamente o Seminário Maior de Santo Agostinho - Mabanga, o Seminário de São Matias Mulumba - Tindinyo, e agora o de São Tomás de Aquino - Langata. Eles contribuíram imensamente p ara a escrita deste livro, tanto durante, como após as aulas, particularmente porque este volume se desenvolveu a partir de uma série de aulas que lhes lecionei numa disciplina d e Filosofia Africana. Agradeço também aos meus colegas dos seminários mencionados pelo seu apoio e encorajamento . Sinto-me especialmente grato ao padre Dr. Augustine N g' ang' a Kiarie, que aceitou ler o manuscrito completo desta obra, e emitiu algumas críticas e observações muito incisivas. Agradeço a todos os meus queridos amigos que fizeram muitos sacrifícios para que este livro visse a luz do dia. Na minh a Introduction to Philosophy [Introdução à Filosofia], há um capítulo acerca da Filosofia Africana, que, de facto, corresponde a uma miniatura deste livro. No entanto, mesmo as secções d essa obra que foram aqui incluídas acabaram por ser, no seu conjunto, muito revistas e alargadas. A esse propósito, endereço os meus especiais agradecimentos à Paulinas Publicações África pela sua colaboração excecional e pelo interesse permanente que tem demonstrado pela minh a investigação.

As Filhas de São Paulo (irmãs Paulinas) são mulheres consagradas a Deus numa congregação religiosa, e dedicam as suas vidas ao serviço do Evangelho e do povo, como apóstolas no mundo da comunicação social, certas de que este é o caminho para anunciar jesus Cristo, hoje.

5

Prefácio

Num mundo em rápida mutação, a pessoa africana tem necessidade de encontré}r e garantir um fundament o para aquilo que ela é e para quem é, aquilo em que acredita, e os valores que abraça e para os quais vive. Isto é de toda a relevância se ela se quiser orientar num mundo que cada vez se torna mais global. Esta necessidade mostra-se mais premente tendo em conta a cada vez mais acentuada circulação tanto de pessoas como de ideias, bem como a facilidade d e acesso à informação, com a consequente multiplicidade e pluralidade de valores. Este inquérito histórico do esforço africano para filosofar manifesta, por conseguinte, este facto. As numerosas referências a obras filosóficas nascidas em contexto africano são um testemunho e um reconhecimento destes esforços. O facto de existirem indícios evidentes, para cada época histórica, por parte de quem pode ser referido como filósofo africano, é uma clara indicação da existência e do carácter infindável da demanda africana da sabedoria. Esta obra do padre Maurice apresenta-nos, neste sentido, uma exposição detalhada dos diversos esforços e progresso registados na elaboração de uma filosofia africana. Ela sublinha o p reconceito com que se tem deparado a pretensão a uma filosofia africana. Ilu stra-se aqui claramente como esse preconceito carece de fundamento, e é mesmo absurdo. A filosofia é, afinal, uma atividade racional, e a racionalidade pertence a todos os seres humanos, sem exceção. As pessoas, enquanto seres racionais, interrogam-se a si próprias, colocando 7

questões fundamentais quanto ao porquê das coisas, onde quer que se encontrem no Planeta. A obra constitui, portanto, uma reconstrução detalhada e cuidadosamente investigada desses esforços, e aponta muito sinceramente para o caminho a percorrer por aquilo que pode ser adequadamente mencionado como filosofia africana. Enquanto tal, o autor refere com honestidade que a tarefa ainda por cumprir é imensa. Ele levanta também as questões pertinentes a que a busca de uma autêntica filosofia africana deve responder, para poder justificar plenamente o seu lugar como corpo credível de conhecimento filosófico. Embora tenham vindo a lume muitas obras em nome da filosofia africana, a novidade deste trabalho consiste no seu exame detalhado dos esforços até agora·desenvolvidos, e a admissão honesta do que está ainda por fazer. Para quem estiver interessado em aprofundar o seu conhecimento da filosofia africana, este livro oferece um valioso relato daquilo que está disponível, e assinala o ponto a partir do qual é possível contribuir para esta busca em aberto. As inúmeras referências respondem adequadamente a este propósito. Faço votos para que este esforço valoroso do padre Maurice por descrever o genuíno empenho africano em filosofar, posto em prática até agora, venha a reanimar um interesse vivo por esta área. Afinal de contas, o Africano não pode permanecer numa atitude de incerteza e de indecisão, no horizonte das certezas parciais proporcionadas pelo seu contacto com outras culturas mais científicas, num mundo em rápida transformação. Num tal ambiente, os povos africanos têm de sondar em profundidade as suas experiências existenciais, e procurar retirar daí as verdades quanto ao seu próprio lugar no mundo. P. DR. AUGUSTINE NG' ANG' A KlARIE Departamento de Filosofia Seminário de São Tomás de Aquino

8

Prólogo

É necessário que apreciemos a contribuição da antiguidade cristã africana, especialmente no Norte, e dos valores tradicionais africanos, particularmente no Sul, para a formação da cultura em África, no presente. Um tal desiderato ganha ainda mais premência quando nos damos conta de que a sociedade africana contemporânea experimentou, e continua a experimentar, uma tremenda transformação, devido à influência do contacto com outros povos e culturas. Os valores da África cristã antiga encontram-se também refletidos, na sua maior parte, nas estruturas e instituições das sociedades tradicionais de África. Os valores tradicionais africanos eram profundamente religiosos e pessoais, e correspondiam a urna perspetiva comunitária. Eles dispunham-se a modelar o indivíduo para a sua participação integral na sociedade, tendo em vista a realização plena, tanto individual como da comunidade. Não é necessário que se reconheça a possível contribuição positiva destes valores para a sociedade africana da atualidade. Certamente que aqueles aspetos das culturas tradicionais africanas que não oferecem urna contribuição positiva para a realização da nobre vocação da pessoa humana devem ser deixados de lado; ou seja, os aspetos que atentam contra a dignidade humana e o proveitoso progresso do indivíduo para a sua realização em Deus. Requer-se aqui um exame crítico e uma avaliação destas sociedades e das suas culturas, e, ao mesmo tempo, uma mente aberta em relação à influência externa que seja valiosa. 9

Dito isto, nota-se com um particular interesse o dilema cultural enfrentado pela sociedade africana contemporânea, e a necessidade de liderança para a formação de ideias culturais fundadas na verdade imutável e suprema; essa verdade que é a própria origem e meta da vocação humana. A pessoa africana está hoje particularmente vulnerável a esta encruzilhada cultural. É por esta razão que a África antiga e as sociedades tradicionais, juntamente com os seus sólidos valores, devem ser revisitadas. Torna-se necessária uma recuperação cultural, mas que seja sensível à natureza dinâmica da sociedade humana. Estes valores antigos e tradicionais precisam de ser adaptados às esperanças e aspirações dos homens e mulheres da África de hoje, e não de uma África do. passado. Entre os valores que devem assinalar-se, encontra-se a experiência religiosa africana. Não se pode hoje negar que muitos africanos deixaram as suas tradicionais afiliações religiosas e abraçaram outras religiões, particularmente o Cristianismo. Contudo, mesmo com esta conversão ao Cristianismo, permanece o elemento espiritual e religioso profundamente africano, que continua a definir o seu modo de vida. Um tal valor não pode ser rejeitado. A religiosidade de que se fez experiência nas sociedades tradicionais precisa de ser interpretada à luz da verdade religiosa maior que foi experimentada no Cristianismo. Desta forma, os valores tradicionais africanos são, ao mesmo tempo, afumados ·e transcendidos pelo abraçar daquela verdade que é, de facto, a sua aspiração natural mais íntima: a verdade da Realidade Suprema. Olhada deste modo, seria impossível que um discurso filosófico africano contemporâneo evitasse a questão religiosa, em geral, e a fé cristã, em particular. Este livro deve ser acolhido como uma contribuição positiva para esse fim. O autor pretende cumprir esse objetivo fazendo depender o seu discurso filosófico africano de um desenvolvimento histórico que vai até à Antiguidade, e mostra

estar consciente da contribuição da África tradicional para o desenvolvimento do pensamento e da prática africana do presente. A interação entre o pensamento filosófico e a experiência religiosa é particularmente sublinhada no decurso desse desenvolvimento. Não é por acidente que o livro se inicia colocando questões relativas à definição da filosofia africana, e termina com um diálogo entre esta e a verdade religiosa cristã. Como para afirmar que a filosofia africana encontra, em última análise, a sua autêntica definição no Cristianismo. A verdade da filosofia e a verdade do Cristianismo não são diversas, nem se encontram em oposição uma à outra. É a mesma verdade, embora procurada por vias diversas, e a níveis diferentes; uma somente pela razão, e a outra pela fé. Uma filosofia que intencionalmente evitasse a verdad e religiosa seria uma filosofia que procuraria escapar ao seu anseio mais profundo e à sua responsabilidade, pela via da coroação das suas próprias limitações como sendo a finalidade da busca da verdade. A procura da verdade deveria conduzir a razão à contemplação da Verdade Transcendente, pela qu al a fé é aceite como um parceiro/instrumento necessário na prossecução desse grandioso propósito humano. A filosofia africana não pode escapar a esta realidade, e essa é, porventura, uma das contribuições significativas deste livro. Ele apon ta à filosofia a sua conclusão natural, ou seja, a experiên cia da Verdade Suprema no Cristianismo. Esta obra abre também outras avenidas para uma ulterior investigação na ár ea da filosofia africana e quan to ao modo como ela poderá oferecer uma contribuição válida par a as vidas dos povos africanos do tempo presente. Há muita sabedoria tradicional africana que precisa de ser p osta p or escrito, para que se possa entender melhor a vida da pessoa africana. Este é o desafio colocado aos filósofos africanos, pois eles têm de se apresentar e examinar mais profundamente alguns dos 11

l

10

temas que neste livro apenas foram superficialmente mencionados, mas que têm um enorme papel a desempenhar na definição do futuro de África. Recomendo este livro a quem procurar uma introdução mais abrangente à filosofia africana.

Introdução geral

D. PHILIP SULUMETI Bispo de Kakamega, Quénia

A filosofia africana tornou-se urna caraterística necessária do discurso filosófico contemporâneo, e é hoje um instrumento indispensável n à' formação da cultura. A intenção deste livro é a de oferecer ao leitor urna introdução geral aos principais ternas da filosofia africana, tal corno eles se desenvolveram desde a Antiguidade até à eclosão das discussões contemporâneas. O principal objetivo é, por conseguinte, o de guiar o leitor pelo caminho tortuoso, mas excitante, do discurso filosófico africano, isto é, da filosofia africana gerada tanto no solo africano, como na diáspora africana. Neste sentido, a obra é relevante tanto para os estudantes de filosofia, como para outros leitores cuja dedicação à filosofia possa não ser urna prioridade, mas que estejam, contudo, interessados nos assuntos africanos e no rumo que a sociedade africana está a tornar no nosso tempo. É hoje necessário que se discuta a filosofia africana a partir de diversos pontos de vista: temático, histórico e comparativo. A essência da filosofia africana deve ser considerada de modo abrangente, tendo em conta o seu desenvolvimento histórico. Mais ainda, tal desenvolvimento histórico deve conduzir à consciência de não ser este o único movimento em busca da verdade, mas que deve servir como seu núcleo. A filosofia africana faz parte de uma civilização, a civilização africana; mas mesmo esta civilização africana faz ainda parte do progresso para a realização do ser humano. A filosofia africana, por isso, tem de reconhecer a sua contribuição essencial, mas parcial, para se atingir a meta humana da pró12

13

pria satisfação. Contribuição essencial, porque a pessoa africana é parte integral da família humana. Parcial, porque a filosofia africana não pode pretender conter toda a verdade acerca do ser humano. Isto aplica-se a qualquer outra filosofia, onde quer e sempre que ela desponte. Torna-se imediatamente evidente que o debate filosófico africano alia-se, necessariamente, ao progresso do pensamento filosófico noutras partes do mundo; mas esse é, particularmente, o caso com a Europa, e, até certo ponto, com a América, por óbvias razões históricas. Tem sido desde há muito reconhecido que a presença africana em ambos os continentes não pode ser ignorada. O discurso filosófico africano não pode evitar esta realidade, e fazê-lo seria tentar reescrever a história, e, portanto, tentar reescrever o desenvolvimento do pensamento humano. O desenvolvimento histórico esboçado neste livro mostra com ainda maior clareza que, em alguns casos, a África, já desde a Antiguidade, quase sempre desenvolveu a sua reflexão filosófica em parceria com o ambiente circundante. Nesses casos, quase nunca se pode falar de uma África puramente indígena, empenhada numa reflexão sobre a realidade em completo isolamento. Houve sempr e uma influência do mundo circundante, com os consequentes intercâmbios culturais nos dois sentidos. A África da Antiguidade estava em contacto com os mundos judaic~, greco-romano e, até certo ponto, do Próximo Oriente. A Africa medieval relacionou-se face a face com a Europa cristã medieval e com a influência islâmica do Médio Oriente. A África moderna, ou pelo menos parte dela, contactou com a Europa moderna. A única exceção foi, talvez, o que acabou por ser referido como pensamento tradicional africano, até então ainda não influenciado por forças externas. 1?-ponta-se aqui, de modo particular, para certas parcelas da Africa tradicional, na parte mais a sul do continente. Mas, 14

u

mesmo aí, tratou-se apenas de uma questão de tempo até que chegassem as angústias da mudança. Isto porque, desde os finais do séc. XIX, a escolha que a África teve de fazer já não era entre a influência e a não influência, mas sim entre uma influência passiva ou ativa. A África encontrou-se no centro de uma confluência de culturas vindas do norte, do sul, do oriente e do ocidente. A conclusão a tirar é: permanecer alheio à transformação por falta de influência ext,erna, nem sequer pode ser considerado como enriquecedor para o espírito humano. Consequentemente, a mútua influência entre a África e a Europa, por exemplo, não teve início com o fenómeno da colonização dos tempos modernos. Mais ainda, mesmo sem a colonização, h á todas as razões para supor que a África h averia, de algum modo, de se encontrar com o mundo exterior. O pensamento africano contemporâneo não deve atribuir uma ênfase indevida ao desenvolvimento de uma filosofia africana puramente indígena, uma vez que tal nunca ocorreu no passado; aliás, não se trata de algo de que alguém se deva orgulhar, por não ser um objetivo cientificamente sólido. A história de África fala de uma interação contínua entre África e outras culturas, e a filosofia africana não deve hoje querer reverter essa interação. A consciência história percorre toda esta obra. O progresso do pensamento africano n a diáspora, e particularmente da filosofia africana, que é o caso em estudo, tem estado presente desde a Antiguidade, e con tinua até ao momento presente. Esta obra apresenta-se como um itinerário que conduz ao debate atual acerca da filosofia africana, desenvolvido por diversos especialistas; mas ela também reconhece que tal discurso não é uma prerrogativa da África contemporânea. Os inícios do desenvolvimento histórico da filosofia africana são alargados até aos tempos antigos e até às sociedades tradicionais. É dada devida atenção à consideração da contri15

buição do pensamento tradicional e antigo de África para a reflexão contemporânea sobre a filosofia africana. Há hoje quem pense, e com alguma razão, que o desenvolvimento da filosofia africana deve ser dividido de acordo com a demarcação tradicional da filosofia nos períodos antigo, medieval, moderno e contemporâneo. Segundo este entendimento, tanto a fase antiga, como a medieval desta história localizam-se predominantemente na região Norte de África. A história antiga encontra-se sobretudo no Egito e noutras partes do Norte de África, enquanto a história medieval se localiza principalmente no Norte de África cristão e em algumas áreas da Etiópia. Em seguida, autores etíopes e escrit~res como Wilhelm Anton Amo, do Gana, que desenvolveram a sua atividade entre os séculos XVI e XVill, juntamente com outros nas diásporas europeia e americana, constituem a maior parte do que é considerada a história moderna da filosofia africana. O período contemporâneo inicia-se, assim, nos finais do século XIX, e prolonga-se até ao presente, com a maioria das contribuições a terem lugar ao longo do século XX. Já foram postas em prática várias tentativas para que se cumpra uma tal aspiração, e já existem propostas em favor desta ou de semelhantes periodizações da história da filosofia africana. A forma como a história da filosofia africana foi esboçada neste livro pretendeu corresponder à sua intenção, que é a de conduzir o leitor aos principais temas de uma tal filosofia, e ao rumo que ela tem estado a tomar no período con temporâneo. Esta n ão é especificamente uma obra sobre a história da filosofia africana, mas apenas uma introdução à filosofia africana que se propõe considerar como é que a sua história poderá ser pensada no contexto da investigação africana contemporânea. Ela também reconhece a necessidade da filosofia africana redescobrir a sua consciência histórica, para que se 16

possa produzir hoje uma reflexão mais significativa. Os problemas a que já foram dadas respostas no passado não devem ser apresentados como se fossem novos, e os erros que foram cometidos não devem ser repetidos no presente. Um tal empreendimento histórico deveria ajudar a que os leitores, «conhecendo os princípios basilares dos diversos sistemas, retenham o que neles há de verdade, e saibam d escobrir as raízes dos seus erros e refutá-los» 1• Esta modesta tentativa, é realizada com a convicção de que um entendimento abrangente da filosofia africana é aquele que mostra estar consciente de que todos os estádios deste desenvolvimento são parte integrante da história da filosofia africana, isto é, antiga, tradicional, medieval, moderna e contemporânea. Mas esta não é uma classificação rígida porque, muito frequentemente, determinados elementos do pensamento tradicional, por exemplo, continuarão a exercer a sua influência no período contemporâneo, pois foi aí que alguns deles receberam a sua avaliação crítica, bem como a sua roupagem e formulação literária. Sem ambições pretensiosas, esta é a estrutura seguida, de um modo geral, neste estudo, tendo em conta o nosso desejo de apresentar, de modo tão claro quan to possível, aquilo em que a filosofia africana está empenhada no momento presente. Por esta razão, note-se que há algumas áreas que serão tratadas fora do enquadramento histórico por nós estabelecido, pois são mais adequadamente abordadas do ponto de vista temático do que do cronológico. É este o caso, por exemplo, da filosofia política africana, das religiões tradicionais africanas e da filosofia cristã africana. Há diversas outras áreas da filosofia afric.?ana que não serão

1

CONCÍLIO

V ATJCANO 11, Optatam totius, n . 15.

17

contempladas nestas páginas. Isso não implica que se esteja de algum modo a ajuizar quanto à sua importância ou relevância. Há que reconhecer que uma introdução está sujeita a conter omissões desse tipo, e as críticas nesse âmbito serão recebidas como o seu fruto necessário.

CAPÍTULO I

Filosofia africana: definição, natureza e desenvolvimento

INTRODUÇÃO

Questões atuais de filosofia africana É necessário afirmar, desde o início deste discurso, que as questões colocadas hoje acerca da filosofia africana registaram uma evolução significativa, e que são agora elaboradas de urna forma radicalmente diferente. Antes, ou seja, no período que precedeu as lutas pela independência e imediatamente a seguir, a atenção estava centrada na busca de uma justificação para a existência de uma tal filosofia e da sua identidade. Atualmente, pode dizer-se que o debate contemporâneo sofreu uma acentuada transformação, tanto em relação ao tipo de questões, corno à forma corno elas são articuladas. Esta mudança parece focar-se em questões mais orientadas para a essência e que sejam tematicamente formuladas, relativamente à metodologia, conteúdo, tipos, autoria, etc. Tal é, por exemplo, a preocupação de Hountondji ao escrever: «Não me pergunto se ela [a filosofia africana] existe, se ela é um mito ou uma realidade. Eu observo que ela existe, pelo mesmo direito e do mesmo modo que todas as filosofias do mundo; na forma de urna literatura» 2 • Na opinião de Hountondji, o verdadeiro ' PAULl!\I

J. Hou NTONDJI, Af,.ican Philosophy: M.yth and Reality, Londres, Hutchinson

University Library for Africa, 1983, p . 54.

19

18

desafio colocado ao filósofo africano contemporâneo é o de, na filosofia africana, apartar o mito da realidade, isto é, separar as cascas das sementes, a pseudofilosofia africana da autêntica filosofia africana. Bodunrin testemunha em sentido idêntico, ao afirmar: A filosofia em África tem sido dominada desde há mais de uma década pela discussão de uma dupla questão: será gue existe uma filosofia africana e, em caso afirmativo, em que consiste? A primeira parte da questão tem sido geralmente respondida, sem hesitações, de modo afirmativo. A discussão tem-se centrado primariamente na segunda parte da questão, uma vez que os diversos tipos de filosofia africana apresentados não têm sido considerados como aceitáveis 3 .

Tendo em conta que, nos princípios do século XX, se tinham inicialmente levantado dúvidas quanto à existência da filosofia africana, o centro da atenção mudou agora para o tipo de filosofia que merece o epíteto de africana, e para avaliar se aquilo que se denomina a si mesmo por filosofia africana pode passar por ser filosofia. Pode levantar-se a questão de saber qual é a filosofia que é autenticamente africana, e qual é a filosofia africana que é autenticamente filosofia, mas cada vez menos pensadores questionam hoje a existência da filosofia africana em geral. E isto deve-se, em parte, tal corno sublinha Mattei, ao facto de que «as avaliações acentuadamente simplistas da mente africana, feitas no passado, estão a ser substituídas por uma compreensão mais precisa da vida intelectual das sociedades pré-literárias» 4 • 3 PETER O. BüDUNRIN, «The Question of African Philosophy», in HENRY ÜDERA ÜRUKA (coord.), Sage Philosophy: lndigenous Thinkers and Modem Debate on African Philosophy, Nairobi, African Centre for Tecl:mology Studies Press, 1991, p. 163. 'LUCIANO MATTE!, Augustine: The Last African Christian Philosopher, Naiwbi, CUEA Publications, 1999, p . 2. As avaliações simplistas da mente africana, de que fala Mattei, dividiram-se, no passado, em dois modelos: o dos detratores e o dos fanáticos. Por detratores, refiro-me a quem, especialmente no âmbito da tradição ocidental, conside-

20

A geração inicial dos académicos africanos do século XX esforçou-se denodadarnente por responder de modo adequado às objeções levantadas anteriormente quanto à existência da filosofia africana e, consequentemente, do filósofo africano. A investigação atual parece demonstrá-lo de modo ainda mais nítido. As apologias da filosofia africana têm vindo a diminuir, em favor da investigação dirigida ao seu conteúdo e tipologias. Ao mesmo tempo, esta abordagem crítica assegura que a filosofia africana mantenha a sua relevância e a sintonia com o desenvolvimento geral do pensamento humano. Há também, no entanto, quem defenda que o debate contemporâneo sobre a filosofia africana deveria ter começado com um tom mais vivo, discutindo assuntos e temas. Mas esta crítica tem de prestar atenção ao contexto histórico em que estes estudiosos se encontraram. O debate poderia não se ter desenrolado naqueles termos, caso estes académicos pioneiros conhecessem aquilo que a investigação atual parece estar a trazer à luz e a confirmar, relativamente às antigas tradições filosóficas africanas literárias e orais. E, no entanto, a história já foi escrita! Alguns fatores que influenciam o debate acerca da filosofia africana no período contemporâneo

Há diversos fatores que motivaram, quanto ao seu empreendimento filosófico inicial, os primeiros pensadores ativos no âmbito do debate contemporâneo sobre a filosofia africana. Arthur nomeia alguns desses fatores no seu artigo rava a abordagem africana da realidade como sendo não mais do que pré-lógica e não merecedora de uma séria atenção. Por fanáticos, refiro,-me aos defensores ultrazelosos da africanidade, que perdem por vezes as estribeiras, no seu desejo de defenderem a própria causa, e, como consequência, chegam ocasionalmente a esquecer e, por conseguinte, a prejudicar, aquela mesma causa que pretendem d efender. Estas duas visões merecem ser criticadas em igual medida.

21

«African Philosophers and African Philosophy» [Filósofos Africanos e Filosofia Africana] (1976). Sem serem exaustivos, os fatores mencionados ilustram bem o ambiente geral dos começos da especulação filosófica africana, no começo do séc. XX, ou por essa época. Em primeiro lugar, alguns desses pensadores manifestavam o grande desejo de demonstrar a autêntica contribuição africana para a civilização humana e, por conseguinte, pretendiam «quer desvendar uma filosofia africana que precede qualquer contacto com o Ocidente ... quer elaborar uma filosofia que, sendo distintamente africana, pudesse revelar a contribuição filosófica de África para o conhecimento humano e para a civilização humana» 5 • Em segundo lugar, eles estavam motivados pelo zelo de mostrar que, contrariamente à crença da maioria dos etnógrafos e antropólogos sociais europeus, os africanos não tinham uma mentalidade pré-lógica ou não lógica, e que, por conseguinte, podiam elaborar uma filosofia propriamente dita. Em terceiro, outros desejaram ainda mostrar que existia uma conceção do universo singularmente africana, sobre a qual se fundava um determinado modo de existência 6• Há quem questione se este foi um digno começo do empreendimento africano contemporâneo na direção da especulação filosófica. Embora haja indícios de que algumas descobertas mais significativas da raça humana tenham ocorrido durante alguns dos momentos mais turbulentos da história humana, tais marcos miliários intelectuais são apenas esporádicos. A especulação intelectual floresce numa atmosfera de calma e de tranquilidade. Os inícios históricos do que pode ser considerado como especulação intelectual, na África con-

' J. K. M. ARTHUR, «Africa n Philosophers and African Philosophy», in CLAUDE SuMMER (coord.), African Philosophy, Adis Abeba, Addis Ababa University, 1980, p. 15. ' Cf. Ibidem, pp. 16-17. 22

temporânea, podem ser corretamente considerados como tudo, menos serenos. No entanto, é admissível que circunstâncias diversas podem dar lugar a diferenças na abordagem filosófica. Como resultado, as circunstâncias em que o debate contemporâneo sobre a filosofia africana teve início exigiram que este começasse da forma corno começou; passou-se algo semelhante no modo corno as circunstâncias diversas subjacentes aos inícios da filosofia grega lhe permitiram ter a sua abordagem específica. Houve certamente fatores extrafilosóficos que contribuíram enormemente para que o filósofo africano assumisse essa abordagem aparentemente defensiva e, portanto, o conduzissem a um ponto de partida bastante insípido. A tentativa inicial, protagonizada por alguns escritores europeus (tanto historiadores, corno etnógrafos), de distorcer a história e de destruir a autêntica contribuição africana para a civilização humana, não foi certamente o menor desses fatores. Muitas causas convergiram para contribuir para o modo como emergiu a consciência da identidade da filosofia africana. A consideração predominantemente defensiva assumida, no seu início, por certos setores da filosofia africana contemporânea, suscita dúvidas quanto a ter oferecido um remédio exaustivo para o problema que pretendia resolver. É também de duvidar que a posição desses pensadores possa ter sido a única adequada. Os seus esforços devem, contudo, ser apreciados, pois abriram a porta ao debate atual sobre a maioria dos ternas da filosofia africana. A filosofia africana e a controvérsia da autojustificação

Pode dizer-se, logo desde o início, que º 'Prinápio do debate contemporâneo sobre a filosofia africana está envolto na controvérsia da autojustificação. Compara-se o que então aconteceu com o que é tradicionalmente considerado corno os 23

começos da filosofia ocidental. Nesta última, encontramos os primeiros cosmólogos jônicos: Tales, Anaxímenes e Anaximandro, cujo labor filosófico se iniciou pela especulação quanto às origens e constituição do universo e, por extensão, do ser. Vieram depois os sofistas, que, apesar de serem acusados de terem como desejo primário ganhar a vida com a filosofia, agiam motivados pela sua própria confiança nos poderes naturais do intelecto humano: os poderes do conhecimento. Logo a seguir, veio Sócrates, que, como ficou registado, simplesmente exortou o ser humano a conhecer-se a si mesmo 7 • Aristóteles foi ainda mais direto, ao afirmar que «todos os homens têm, por natureza, desejo de conhecer» 8 • Há muitos outros exemplos, apontando todos par~ este carácter filosófico na ofensiva (e não defensivo), e para a confiança dos pensadores gregos primitivos. Do que ficou dito, poder-se-ia talvez ser forçado a colocar uma questão bastante óbvia: por que razão seria necessário, de todo, justificar este desejo natural de conhecer de um qualquer povo, num qualquer momento? Uma tal busca de justificação da filosofia africana teria sido desnecessária se a contribuição de África, talvez mesmo para a própria existência do pensamento grego, tivesse sido reconhecida. O processo rumo a um tal reconhecimento foi especialmente desencadeado cerca dos finais do séc. XX, na sequência da investigação levada a cabo por vários especialistas quanto à relação entre o pensamento antigo africano e outras heranças antigas, como a grega e a romana. O observador atento não terá deixado de notar que os próprios inícios da filosofia grega ficaram inscritos em ditos orais, que foram mais tarde postos por escrito pelos filósofos e intérpretes que se seguiram. O pensamento de Tales, Anaximan-

7

Cf. XENOFONTE, Memoráveis, IV, 2, 24-25. Metafisica, Livro I, 1.

dro, Anaxímenes e Sócrates, por exemplo, foi passado a escrito, muito mais tarde, por outros, e não pelos próprios. Este não é o momento para perguntar o que tinham os seus ditos orais de tão particular, que os fizeram mais filosóficos do que alguma especulação africana de igual valor, até agora _não escrita 9 ! Mas poder-se-iam ainda colocar algumas questoes. Será que uma tradição literária é pré-condição para se fazer filosofia? Será que a longevidade do tratamento sistemático contribuirá para a filosoficidade de um dado pensamento? As opiniões a este respeito dividem-se, mas, por agora, bastará assinalar que há quem pense que a resposta a ambas as questões é negativa. Parrinder faz uma observação importante acerca da religião africana, em comparação com as outras grandes religiões do mundo, ao afirmar: «Ü facto de não existirem textos escritos não significa que as religiões africanas não tenham tido uma longa história. A históri~ ~e outras fés não foi frequentemen te escrita até ao advento da erud1çao moderna ... foi por vezes assumido que as religiões africanas, por não terem uma história ou texto escrito, eram, por conseguinte, «primitivas». Isto é fazer um julgamento antecipado de uma muito difícil questão. Certamente que os africanos, tal como os outros povos, têm uma história m uito longa, embora não escrita» 10 •

A filosofia africana não deveria ser avaliada com base nisto. O mesmo veredicto poderia ser estendido ao espírito filosófico africano. Embora Parrinder esteja a referir-se especificamente à religião africana, o que ele diz aplica-se também à filosofia africana, dado que está intimamente ligada à religião africana. E esta é, na verdade, uma questão que dificilmente pode ser antecipadamente dirimida. Uma interpretação fiel

'Cf. HENRY ÜRUKA, o. e., 1991, p. 2. "GEOFFREY PARRINDER, African Traditional Religion, Londres, Sheldon Press, 1962, p. 18.

'ARISTÓTELES,

24

25

do pensamento humano realça o facto de que ele não pode ser encerrado na palavra escrita. Mais ainda, como afirma Omoregbe: «0 facto de as reflexões filosóficas dos pensadores africanos do passado não terem sido preservadas ou transmitidas por escrito, corresponde ao facto de estes filósofos nos permanecerem desconhecidos. Mas isso não significa que não tenham existido ...» 11 • Coloca-se agora, obviamente, o desafio de investigar este pensamento e de o passar à escrita. A filosofia africana não deve contentar-se em afirmar a sua tradição oral. Chegou o tempo de corroborar decididamente tais afirmações com uma literatura escrita. Isso, felizmente, está a acontecer. A filosofia africana e as exigências d~ produção literária Os comentários precedentes não implicam que se subestime a importância de outros critérios, como a científicidade e a produção literária, na elaboração da Filosofia, em especial da filosofia formal. E nem deveriam dar a impressão de que a filosofia africana se possa contentar em permanecer ao nível da tradição oral. É necessário avançar na especulação filosófica com a autenticidade do pensamento; urna autenticidade que aceda aos humildes inícios da Filosofia. Se urna tal abertura mental significar ter de lidar com a contribuição histórica da cultura africana para a civilização ocidental, e do pensamento africano para o desenvolvimento do que, mais tarde, se haveria de tornar no profundamente especulativo pensamento grego, então assim seja. Neste mesmo espírito, é necessário estar também precavido contra a arrogância filosófica, tal como aquela que tende

" JOSEPH I. ÜMOREGBE, «African Philosophy : Yester day and Today», in EMMANUEL C. EZE (coord.), African Philosophy: An Anthology, Massachusetts, Blackwell Publishers, 1998, p . 5.

a conferir a certas tradições filosóficas um legado literário, desde a sua criação e até sempre. Estas ciladas têm de ser evitadas por ambos os lados. O que tem vindo cada vez mais a ser realçado é que deve ter existido uma influência mútua entre os pensadores e, por conseguinte, entre tradições de pensamento, e que o tráfico não fluiu apenas num sentido. Houve, no passado, uma certa controvérsia a rodear figuras como Santo Agostinho, Tertuliano, Orígenes, Cirilo, etc., especialmente quanto à sva verdadeira identidade. Embora a sua contribuição para o pensamento filosófico ou teológico seja instantaneamente reconhecível, o mesmo não se pode exatamente dizer da sua origem 12• Os casos em que as contribuições para o pensamento humano têm sido colocadas em dúvida, ou simplesmente rejeitadas, por não estarem escritas, têm de ser reexaminados. Isto conduzir-nos-á, obviamente, de volta à questão colocada anteriormente referente à relação entre a filosofia e a sua forma escrita. Já muito foi escrito acerca deste último tema, e não precisamos de o repisar aqui. Para lá de mais indícios relacionados, muitos biógrafos assinalaram que, entre outros escritores, o respeitado historiador Heródoto não deixa dúvidas quanto à origem africana dos supramencionados ícones históricos. A civilização grega e a conexão africana Africanus Horton, um pioneiro do nacionalismo africano de meados do séc. XIX, esboçou cuidadosamente, entre outros, no ~eu livro West African Countries and Peoples [Países e povos da Africa Ocidental] (1868), tanto o papel de África na formação da história mundial, como as raízes indiscutivelmente africanas de algumas das mentes 111ais respeitad as da história humana. Ele afirma a dado ponto:

12

26

L

Cf. Ibidem, pp. 305-306.

27

Homens eminentes como Sólon, Platão e Pitágoras fizeram peregrinações a África em busca de conhecimento; e diversos delesescutaram as instruções do africano Euclides, que chefiava a mais célebre escola matemática do mundo, que floresceu 300 anos antes do nascimento de Cristo ... Orígenes, Tertuliano, Agostinho, Clemente de Alexandria e Cirilo, que foram padres e escritores da Igreja primitiva, eram escuros bispos africanos de apostólica nomeada 13 •

Há outros indícios de autores antigos que parecem corroborar estas peregrinações a África feitas pelos Gregos, tal como se mostrará em seguida. A investigação de alguns como Henry Olela em From Ancient Africa to Ancient Greece [Da África Antiga à Grécia Antiga] (1985), Martin Bernal em Black Athena [A Atena negra] (1987), e George James em Stolen legacy [Legado roubado] (1988), oferece muita leitura interessante e reveladora nesta área, e parece apontar para esta influência africana sobre a civilização e a filosofia ocidentais. Há, contudo, quem pense que este elo entre a África e a Grécia, no desenvolvimento da Filosofia, é forçado e mítico. Uma autora representante desta posição é Lefkowitz, como fica patente, por exemplo, na sua obra Not out of Africa [Não veio de ÁfricaJ. Lefkowitz desvaloriza a pretensão das origens africanas da filosofia grega, reduzindo-a a um mito inspirado pelo afrocentrismo 14 • No artigo «Egyptian philosophy: ln-

•> JAMES AFRJCANUS HORTON, West Afriam Countries and Peoples, Edimburgo, Edinburgh University Press, 1868, p. 59. Esta citação provém da edição de 1969. Certamente que nem todas as personalidades mencionadas fo ram bispos, mas Africanus estava mais preocupado em sublinhar a sua origem do que o seu estatuto eclesiástico. "É digno de nota que Hountondji se refira a alguns aspetos do que foi apelidado de filosofia africana como sendo um mito. No seu caso, contudo, há uma preocupação maior relativamente àquilo q ue ele denomina de pseudofil osofia africana, o sistema de pensamento espontâneo coletivo, com um a todos os africanos ou, pelo menos, a todos os membros de .m odo individual; uma filosofia motivada pela busca apaixonada da identidade que foi negada pelo colonizador. Trata-se da busca da filo sofia no inconsciente coletivo dos povos africanos. Esta conceção de filosofia, que se manifesta na etnofilosofia e na negritude, é, para Hountondji, um mito, porque atribui diferentes padrões à filosofia africana, quando comparada, por exemplo, com a fi-

28

fluence on ancient greek thought» [Filosofia egípcia: influência sobre o pensamento grego antigo], ela sustenta a originalidade da filosofia grega, afirmando que «embora os Gregos tivessem grande respeito pela sabedoria e piedade egípcias, aquilo que foi sempre conhecido como filosofia grega resulta da ação original dos Gregos ... ainda que os filósofos gregos que viveram na Jónia recebessem a influência de muitas ideias do exterior. Estas chegaram até eles por intermédio das religiões monoteístas de ou~ros povos que viviam no Próximo Oriente» 15 • Lefkowitz sustenta ainda não encontrar indícios de que os Gregos tivessem pedido emprestada a sua filosofia ao Egito, mas reconhece ter havido alguma influência egípcia na medicina, ciência e matemática gregas. Lefkowitz admite esta influência egípcia em várias áreas do conhecimento grego. Mas, ao afirmar que «a influência não pode ser considerada como um roubo ou empréstimo, e é habitualmente um processo nos dois sentidos» 16, ela está parcialmente certa, já que ninguém p ode necessariamente acusar outr em de roubo só por ter influenciado esse outro; a influência não há de ser considerada como roubo. Ela erra, contudo, ao excluir o «empréstimo» do processo da «influência mútua», a que corretamente chama processo nos dois sentidos. O fluxo de ideias de uma cultura para outra é um processo complexo, e não se podem identificar algumas ideias como não filosóficas e, portanto, considerar que elas terão influenciado os Gregos apenas noutras áreas de conhecimento e não losofia europeia ou americana. Para ele, urna filosofia não pode ser denominada como visão espontânea, implícita e coletiva do mundo, enquanto outra é chamada atividade analítica individual, deliberada e exp lícita. A filosofia africana tem de despertar para as exigências científicas da filosofia, se quiscr'rnanter a pretensão a ser filosofia. (Cf. HOUNTONDJI, o. e., PP· 55-63.) '' MARY R. L EFKOW!TZ, «Egyptian Philosophy: l nfluence on Ancient Greek Thought», in Routledge Enci;clopaedia of Philosophy, vol. 3, p. 251. 1 ' Ibidem, p. 253.

29

na Filosofia. Além disso, o fluxo de certas ideias de uma cultura para outra, e em sentido contrário, pode facilmente passar despercebido. E, contudo, como afirma a autora, os Gregos tinham enorme respeito pela sabedoria e piedade egípcias! O mínimo que se poderia daqui deduzir seria que a influência egípcia na área da Filosofia foi diminuta em comparação com outras áreas do conhecimento humano, caso uma tal dicotomia devesse ser admitida. Acontece que Lefkowitz acaba por ser vítima da sua própria crítica. Ela responde ao que é talvez um extremo, defendendo o outro extremo. Embora possa não ser correta a acusação de que os Gregos roubaram de África, na área da Filosofia, e visto que não existe mais do que uma escassa evidência quanto ao exato papel desempenhado pelo Egito na formação do pensamento filosófico grego, tal como ela afirma, não se pode, por essa razão, concluir não ter existido nenhuma influência sobre a filosofia grega, e, ao mesmo tempo, admitir que houve uma influência mútua nos campos da medicina, da ciência e das matemáticas. Ainda que se conceda que a Filosofia não é a Medicina ou a Matemática ou a Ciência, uma tal departamentalização que peneire o conhecimento filosófico em relação ao outro conhecimento humano, e o reserve para os Gregos, e, depois, talvez para os povos do Próximo Oriente, foge à questão. É hoje aceite que a abertura às outras ciências, antes de empobrecer a Filosofia, na verdade abre e enriquece o seu horizonte. A Psicologia, a Sociologia, a Física, a Astronomia, a Biologia, a Medicina, e até mesmo a Religião, constituem exemplos de disciplinas que tiveram uma grande influência no desenvolvimento do pensamento filosófico, especialmente desde o advento dos tempos modernos. À luz desta asserção, não haveria, de facto, nada de estranho na tese dos Padres da Igreja de que a Filosofia foi muito devedora das Escrituras hebraicas, ou também que os tratados filosóficos egípcio-gregos tinham um carácter teológico. A

própria diferença no estilo de expressão não exclui, em si mesma, a influência num sentido ou noutro.

A FILOSOFIA COMO UM EMPREENDIMENTO UNIVERSAL O amor natural pela sabedoria e pela filosofia formal, em África Quando se dirige um olhar de perto para as definições geralmente aceites de Filosofia, até mesmo para a estritamente etimológica de amor da sabedoria, é inegavelmente claro que são absolutamente inclusivas, ou seja, não dependem de uma cultura ou de um tempo histórico; estas definições dirigem-se e apontam para a pessoa humana como racional. Pela sua própria natureza, a filosofia é urna experiência universal, que não precisa, num sentido absoluto, de justificação para a sua existência, seja entre os Brancos, os Amarelos, os Negros ou os Vermelhos, para usar a ordem proposta por Kant, tão rudimentar quanto ela possa ser. O que pode ser questionado é o nível de pensamento sistematizado; certamente que este não é igual em todo o lado. A atividade filosófica está aberta a toda a espécie humana, e é na base desta premissa que a Filosofia se estrutura enquanto disciplina sistemática. É a esta luz que deve ser entendida a afirmação de Tempels relativamente ao pensamento dos povos «primitivos». Ele assevera que «quem pretender que os povos primitivos não possuem um sistema de pensamento, excluiu-os, como consequência, da categoria dos seres humanos» 17 • Essa exclusão está implícita no facto da filosofia ser um empreendimento realizado com as capacidades da racionalidade, corno condição necessária. Parrinder concorda com Tempels,,ao afirmar: «Dizer 11

P LACIDE TEMPELS,

Bantu Philosophy, Paris, Présence Africaine, 1969, p. 21.

31 30

L

que os povos africanos não têm sistemas de pensamento, explícitos ou assumidos, seria negar a sua humanidade» 18 • Uma antropologia filosófica consistente e unitária não pode minimizar a importância do papel da racionalidade na definição da pessoa humana. Enquanto não se pretende que todos sejam filósofos, em virtude de serem racionais, já não é aceitável que se negue o pensamento especulativo (leia-se mentalidade lógica) a uma raça particular, ou que se defenda que o pensamento filosófico apenas se desenvolve entre outras. Houve quem asseverasse sem mais que os Africanos (entenda-se, os Negros) eram incapazes de um pensamento lógico rigoroso. O processo de desenvolvirpento do pensamento especulativo, não importa quão lento ou desordenado possa ocorrer, não pode ser equiparado à ausência de racionalidade, sob pena de se incorrer em contradição. É claro que, ao falar-se de Filosofia, é necessário distinguir entre a potencialidade natural para pensar ou filosofar, e a filosofia formal ou cientificamente entendida. A defesa da filosofia africana não se pode dar ao luxo de confundir as duas. É necessário distinguir entre o nível de primeira ordem e o nível de segunda ordem da Filosofia. Isto não significa que os antagonistas da filosofia africana tenham feito com mais clareza esta distinção. A investigação realizada por alguns filósofos africanos, como Oruka, tem, contudo, evidenciado com ainda maior nitidez que, no pensamento tradicional africano, não existia apenas o nível de primeira ordem da Filosofia, mas também o nível de segunda ordem, através do qual se refletia criticamente sobre os elementos oferecidos pelo nível de primeira ordem. Ao distinguir, por exemplo, o sábio popular do sábio filosófico, Oruka quer sublinhar a orientação crítica do " G. P ARRJNDER, Africa's Three Religions, Londres, Sheldon Press, 1969, p. 25.

32

último em oposição à orientação conformista do primeiro. Na sua investigação, Oruka afirma: Um dos principais objetivos foi o de ajudar a substanciar ou a contrariar a tese muito difundida de que o «autêntico pensamento filosófico» não teve lugar na África tradicional. Está aqui implícito dizer-se que qualquer existência de Filosofia na África moderna se deve exclusivamente à introdução do pensamento e da cultura ocidentais em África. Se, no entanto, se encontravam sábios do tipo de segunda ordem, na África tradicional, ou que estavam pelo menos profundamente enraizadqs na África tradicional, então este facto deveria corresponder a uma prova da nulidade da tese em questão 19 •

Uma tal prova não deixa dúvidas quanto à existência de pensamento filosófico sistemático nalgumas comunidades africanas, ainda que o mesmo possa não ter sido passado à escrita. A Filosofia tem de ser consistente, e uma filosofia consistente não pode esquivar-se à universalidade da especulação filosófica. Como Tempels acrescenta: «Declarar a priori que os povos primitivos não têm ideias acerca da natureza dos seres, que eles não possuem uma ontologia e que estão totalmente privados de lógica, é simplesmente virar as costas à realidade» w. E, contudo, virar as costas à realidade é exatamente o que significa ser não filosófico. Mas, ao mesmo tempo, a universalidade não pode fugir do sentido crítico, e, neste ponto, a filosofia africana, em especial nalgumas das suas formas tradicionais, tem de progredir e tornar-se mais sistemática; será assim mais fácil que possa ser criticada e mais valorizada. Não há dúvida de que existe uma contribuição cultural de cada povo para os temas universais da Filosofia. Cada cultura tira do seu seio determinados elementos que oferece ao espírito universal, para o manter relevante em relação à realidade

•• H. ÜRUKA, o. e., p. 34. ., P. TEMPELS, o. e., p. 22.

33

da vida. Ou seja, «O modo como cada cultura esboça a unidade destes temas, os sintetiza ou organiza numa totalidade, baseia-se no conceito de vida de cada cultura, nomeadamente na relação entre objetos e pessoas, e entre pessoas e as próprias pessoas» 21 • Até certo ponto, esta contribuição cultural para o filosofar é aquela que particulariza a Filosofia enquanto europeia, africana, indiana, chinesa, etc., não obstante o quanto estas particularizações possam soar repugnantes. O pensamento africano e a influência da filosofia ocidental Não se pode negar que um africano que foi exposto à filosofia ociden tal clássica, como base da sua formação filosófica, estará sempre influenciado pelas categorias e padrões de pensamento dessa forma de pensar, de modo consciente ou não; este é precisamente o caso da maioria dos estudiosos africanos de hoje. Foram formados e nutridos por uma forma ou outra de filosofia ocidental. Mesmo com a criação de centros e departamentos de Filosofia nas universidades africanas, a influência continuará a fazer-se sentir. E, no entanto, tal não deve ser visto como um problema, uma vez que há certos aspetos da Filosofia que permeiam cada cultura e época. Eles desafiam todas as formas de culturalismo (isto é, a tentativa de os restringir a uma dada cultura) ou periodismo (a tentativa de os limitar a um período particular). Noutros círculos, isto veio a ser referido como philosophia perennis (filosofia perene). A philosophia perennis realça as questões eternas que intrigaram a raça humana no seu conjunto, e que receberam respostas que atravessaram todas as épocas e sistemas. Faz todo o sentido perceber que se incluem aqui aqueles aspetos da Filosofia que mencionámos, que permeiam todas as cultu21

ÜNYEW ENYI,

ras, e que, por conseguinte, são constitutivos dessas culturas. Isto está inteiramente de acordo com o que dissemos sobre a universalidade do empreendimento filosófico. A tentativa de se ver livre de qualquer dependência filosófica em relação ao Ocidente, para se elaborar uma filosofia africana, é uma tentativa para se começar do zero, algo que não é particularmente emiquecedor; e isso nem sequer promove a causa da filosofia africana. Trata-se de urna atitude com algumas semelhanças em relação à tentativa cartesiana de refundar a filosofia no início do período moderno, e certamente não muito diversa da atitude de epoché de alguns fenomenólogos do séc. XX. Serve-nos aqui, de novo, o conselho de Parrinder, aplicável à religião, como à Filosofia: «A infusão de novas ideias do exterior beneficiou todas as religiões, e u m fator que indubitavelmente retardou a religião africana no passado foi o isolamento da África tropical do resto do mundo. Se o nacionalismo conduzir a um encerramento das fronteiras, isso resultará no seu próprio empobrecimento» 22 • A influência das novas ideias é inexorável, e a tentativa de isolar a África do resto do mundo, por meio de um abraçar da africanidade, é urna tentativa de atrasar o desenvolvimento do pensamento. O resultado será apenas o empobrecimento intelectual. Nem o nacionalismo nem o pan-africanismo se podem orgulhar da promoção de uma filosofia isolacionista. Esta conceção, latente em alguns intelectuais africanos, é tanto enganadora corno cega aos factos históricos. Corno Hountondji não se cansa de insistir: Não chegaremos nunca a criar uma autêntica filosofia africana, uma filosofia genuína, genuinamente africana (é isso que q uero dizer com o termo «autêntica»), se evitarmos a tradição filosófica existente. Não é evitando, e ainda menos ignor~ndo, a herança filo-

«Is there an African Philosophy?», in African Philasophy, p. 308.

"G. PARRI ND ER, O. e., p. 19.

34 35

sófica internacional, que realmente filosofaremos, mas absorvendo-a para a transcender 23•

A filosofia africana não pode ser feita isoladamente; muito mais agora, que a família humana se esforça por construir um globo mais unido. Uma tal perspetiva isolacionista não é filosoficamente edificante, e nem sequer oferece um terreno sólido sobre o qual prosseguir a construção da filosofia africana. Isto é ainda mais verdadeiro para uma filosofia chamada a ajudar na formação da cultura, num continente frequentemente dividido segundo linhas étnicas, mesmo quando se trata de questões tão importantes como a escolha dos dirigentes nacionais e a formulação de políticas para assuntos nacionais pertinentes, entre outros temàs sensíveis. Uma filosofia para um tal projeto de des-etnização não se pode permitir ficar encerrada no isolacionismo. Ela tem de permanecer aberta e realmente absorver a herança universal do pensamento humano, levando-a à prática a nível local no continente. Além disto, há ainda o que foi apelidado de interesse existencial de África pela filosofia ocidental. Como Wiredu se exprime: Por via dos factos históricos paralelos da colonização ocidental e da evangelização cristã, as culturas africanas foram profundamente impregnadas por ideias éticas, metafísicas e epistemológicas de proveniência ocidental. Estas ideias reclamam um exame crítico, tanto em África, como nos seus lugares de origem z.i .

Hoje, em pleno séc. XXI, urna África pura, liberta da influência de todas as forças externas, é urna miragem! O protecionismo, em qualquer lugar, sob qualquer forma, e a qualquer nível, nunca proporcionou uma proteção duradoura. Ao "P. HOUNTONDJI, o. e., p. 72. Z4 KWASI WIREDU, «Anglophone African Philosophy», in EDWARD CRAIG (coçird.), I~outledge Encyclopaedia of Philosophy, vai. 1, Londres, Routledge, 1998, p. 105.

36

nível do pensamento, e ainda mais quando se trata da Filosofia, uma tal posição não pode ser abraçada. Cabe a Wiredu avisar: «... exortações acríticas feitas aos africanos para que preservem a sua cultura indígena não são particularmente úteis _na verdade, podem ser contraproducentes» 25• A filosofia africana não pode, por conseguinte, ser uma mónada sem janelas, impermeável às influências externas 26 . Não há dúvida da necessidade de reconhecer que cada época é confrontada com a tarefa de colocar de novo as questões eternas, e de voltar a dar-lhes uma resposta. O que fica dito não rejeita, no entanto, o facto de que «Um confronto honesto, e, ao mesmo tempo, realmente crítico, com a herança filosófica da humanidade, é a via mais segura, e mesmo a única, de atingir a verdade suprema» 27 • A filosofia africana não pode fugir a este facto, pois ela descobre-se como fazendo parte da herança humana. A sede de uma visão africana do cosmo e da realidade deve permanecer ao ritmo, e em continuidade, com a procura humana universal de correspondência do pensamento humano com a realidade e, em última análise, deve estar em consonância com a genuína aspiração humana pela verdade, a verdade absoluta. Deveria ser esta a aspiração de qualquer filosofia merecedora de consideração.

A

DEFINIÇÃO E A NATUREZA DA FILOSOFIA AFRICANA

É necessário hoje, mais do que nunca, distinguir entre as tradições orais e literárias no desenvolvimento do pensamen-

25 IDEM, Philosophy and an African Culture, Cambridge, Cambridge University Press, 1980, p. 41. , 26 Cf. KYAME GvEKYE, «Ahican Philosophy», in ROBERT Aurn (coord.), The Cambridge Dictionary of Philosophy, Cambridge, Cambridge Urúversity Press, 1995, p . 12. ,, Jü HANNES B . Lorz, «Ph ilosophy», in WA LTER BRUCCER (coord .), Philosophical Dictionary, Washington, Gonzaga University Press, 1972, p. 308.

37

..... to africano. Embora seja verdade que a maior parte da literatura escrita acerca da filosofia africana é relativamente recente, há indícios, nas culturas africanas, de opiniões acerca de algumas das principais questões debatidas na filosofia ocidental. No entanto, como sublinha Appiah, estas tradições orais não são tão antigas quanto as restantes tradições literárias africanas. Ou seja, existem muito antigas tradições escritas sobre a filosofia em África, nomeadamente as egípcias e etíopes 28 • Parece haver considerável evidência de que os primitivos pensamentos grego e islâmico foram influenciados por estas tradições. Pode discutir-se a extensão da influência que estas culturas exerceram sobre o pensamento inicial ocidental e do Médio Oriente, mas a investigação iniciª'da especialmente no último século, e que promete não dar tréguas, não deixa lugar a nenhuma dúvida quanto à sua existência. Para lá destas duas mencionadas tradições (oral e literária), estamos hoje a lidar com urna diferente fornada de filósofos africanos. São intelectuais africanos, a maioria dos quais passou pelos sistemas de educação do Ocidente, que assumiram uma abordagem mais profissional da Filosofia. Quando falamos de filosofia africana, no sentido mais lato, incluem-se todos os três estádios de desenvolvimento do pensamento africano, nomeadamente o antigo pensamento literário, o pensamento tradicional ?ral, e o que veio a ser apelidado de filosofia profissional na Africa contemporânea. «Africanidade» entendida como vindo de África Estritamente falando, para se poder definir a filosofia africana, as questões da identidade africana e da cultura africana são inevitáveis. Não se pode negar que a conceção que se

28

KWAME ANTHONY APPIAH, «African Philosophy», in Routledge Encyclopaedia of

possui de quem está habilitado a ser chamado de africano, e do que convém que pertença à cultura africana, irá det erminar o entendimento do que é a filosofia africana. O Oxford Advanced Learner's Dictionary define africano como «Uma pessoa de África, especialmente uma pessoa negra». H á outras definições, como «Um nativo de África» ou «Um Negro de raça africana», etc., que parecem sublinhar a raça como elemento essencial na definição do africano. Por razões práticas, talvez a primeira definiç~o corresponda melhor ao que propomos como significado pàra africano, por incluir tanto aqueles que podem ser considerados «de cepa africana», como aqueles que, por fatores históricos, têm todo o direito a clamar pela Africanidade 29, ou, pelo menos, pelo continente africano. Não deve existir nenhuma des-continentalização na tentativa de definir o africano, isto é, ninguém que pertença à bar ca africana deve ser deixado de fora. Além disso, embora seja verdade que cada definição pode ser útil para identificar quem o africano é, tem de se tomar em consideração o facto de que alguém possa ser um filósofo africano sem estar encerrado na mencionada definição de «africano». , Voltando à definição de «Uma pessoa de África» vir de Africa pode ser en!endido de três formas: em primeiro lugar, quem provém de Afric~ e vive, de facto, em África; em segun~o, quem provém de Africa e não está, de facto, a viver em Africa, porque, por uma razão ou por outra, se encontra na diáspora; em terceiro, quem não provém de África mas está de facto, a viver em África, e, por conseguinte, está envolvid~ na vida africana, e J?Ode autenticamente contribuir para o de~envolvimento de Africa, até mesmo para o seu pensamento. E, talvez, por esta razão, que o significado de «africano» foi

_ " Dada a dificuldade de transpor para a língua portuguesa a subtileza d a distinçao, a que o aut?r faz menção, entre Africanness e Africanity, optámos por traduziI sempre por «Africarndade» [Nota do tradutor].

Philosophy, vol. 1, p. 96. 39

38

p

_Pº!'

inflacionado por alguns, para inclui~ quem é afric~no digamos, «... associação, lei, empreendimento e relevancia» . Como resultado, estabelece-se, por vezes, a distinção entre filósofos africanos indígenas e expatriados. Isto também se adequa às definições muito abrangentes de pens~dor~s como Nyerere. Para este, a «palavra "africanos" pode mclmr todos aqueles que fizeram do continente o seu lar, negros, castanhos ou brancos ... o que significa esquecer a cor, ou raça, e I ' recordar a humanidade» 31 • Se isto for assim, em que consiste então a africanidade, ou a filosofia africana? A consideração anterior previne-nos da necessid ade de sermos cautelosos quanto ao caminho escorregadio de definir a filosofia africana e o filósofo africano. Entre outros, Ruch delineou três características que definem ·a filosofia africana, a saber: em primeiro lugar, é aquilo que é escrito, proposto ou criado por uma pessoa de origem africana. E~ segund~, uma filosofia escrita, proposta ou criada no contmente africano. Em terceiro, uma que lida com problemas africanos ou com a cultura africana. Claro que uma das características pode não ser suficiente por si mesma, e pode ser necessário complementá-la com, pelo menos, uma das outras duas. Podemos talvez, por exemplo, afirmar que não é suficie~te ser fe~ta p~r um africano para que uma filosofia seja africana. Ha hoJe muitos africanos formados como filósofos, mas eles não se tornam filósofos africanos apenas por essa razão. Para que o sejam, será necessário, para lá de serem africanos, que trate~ de um tema conotado com a cultura africana. Esta caracterização da filosofia africana é também partilhada por autor~s como Osuagwu, que estendem a espacialidade _e temporal~­ dade africanas para incluir não apenas quem vive no conh"' INNOCENT MADUAKOLAM ÜSUACWU, A

nente africano, mas também os africanos empenhados no labor filosófico, onde quer que se encontrem. Incluídos ainda na sua definição de filósofo africano estão aqueles que são africanos por lei; seja a lei civil, eclesiástica ou académica 32• Depreende-se daqui que a geografia não é suficiente para a definição de um africano, em geral, e da filosofia africana, em particular. Juntamente com ela, temos ainda fatores culturais, históricos e sociológicos. A «africanidade» e a «filosoficidade» da filosofia africana Como assinalámos anteriormente, a filosofia africana não pode preocupar-se a tal ponto com a defesa da sua identidade africana que acabe por menosprezar o espírito universal constitutivo da Filosofia. Uma qualquer filosofia tem de manter o seu espírito científico, ao mesmo tempo que deve estar pronta a deixar a academia e as prateleiras das bibliotecas para entrar na vida das pessoas e responder às suas preocupações concretas. A Filosofia é vida e, embora essa vida possa ser vivida num contexto africano, um tal contexto não pode ser concebido em total isolamento. Tal corno Parrinder afirma em relação à religião africana: «Tanto é um erro olhar para a religião como se n ada tivesse acontecido, corno o é tratá-la como se tivesse desaparecido sem deixar vestígios. Nem a atitude isolacionista, nem a arqueológica, são adequadas para os tempos modernos» 33 • No nosso contexto, estas palavras aplicam-se também à filosofia africana, e é sempre necessário exercitar a prudência, tanto quanto à particularidade da filosofia africana, como em relação à universalidade do espírito filosófico. Por conseguinte, ao definir-se a filosofia africana, quando já tudo tiver sido dito e feito acerca do que, é a filosofia afri-

Contemporary History of African Philosophy,

Owerri, Amamihe Publications, 1999, p. 46. .. >1 Juuus NYERERE, Freedom and Unity: A Selection fram Wntmgs and Speeches 1952-1965, Nairobi, Oxford Univcrsity Press, 1965, p. 117.

"Cf. l.

ÜSUAGWU, o. e., p . 30.

"G. PARRINDER, West African Religion, Londres, Epworth Pr ess, 1969, p . 187.

40

41

cana, ela deve, no entanto, ser Filosofia. Ela deve ser uma filosofia que não se isole a si mesma, encerrando-se insensivelmente nalgum casulo africano. Como sublinha Osuagwu, se a filosofia africana quiser ser genuína, então terá de manter tanto a sua africanidade, como também a filosoficidade, como as suas caracterizações essenciais, pois nelas recebe a sua particularidade, e ainda a sua universalidade 34 • Quando se trata de definir a filosofia africana, não se deve insistir na africanidade do pensamento em detrimento da sua filosoficidade, nem também afilosoficidade do pensamento deve ser sublinhada de tal modo que se negligencie, de modo radical, a sua particularidade africana. A peculiaridade da filosofia africana deve ser procurada, mas certamente não às custas dQ espírito universal da Filosofia. Na mesma linha, uma tal definição não deve ser ingenuamente baseada apenas na localização geográfica e/ou na herança cultural. Na caracterização de um filósofo africano ou de uma filosofia africana, têm também de ser considerados outros fatores, como a legalidade, a produtividade e a espaciotemporalidade. Esta forma de entender a filosofia africana tomar-se-á ainda mais patente através do modo como concebemos o seu desenvolvimento histórico. Antes, porém, vamos dedicar alguns parágrafos à relação entre a filosofia africana e o pensamento europeu.

CAPÍTULO II

Pensamento europeu e filosofia africana

IMMANUEL KANT E O LEGADO DO RACISMO

' Há indícios evidentes da fundamentação erudita que alguns filósofos europeus deram à atitude geral ocidental de preconceito em relação a África. Os inegáveis preconceitos dos antropólogos e historiadores ocidentais tinham relegado a pessoa africana para o nível do irracional. Esta atitude foi retomada por alguns reputados filósofos ocidentais, que defenderam não poder existir filosofia em África porque, nas suas palavras, o africano não possui o sistema de pensamento necessário para o empreendimento filosófico. Um dos primeiros filósofos a conferir expressão académica ao preconceito cultural do Ocidente relativamente a África foi Immanuel Kant (1724-1804). Na sua obra Von Den Verschiedenen Rassen Der Menschen [Das diferentes raças humanas], de 1775, sustentou que o ser humano consistia apenas numa única raça, e que a espécie humana original era branca, com aparência castanha escura. A raça negra resultou de condições climáticas húmidas que afetaram a espécie branca original. Kant defendeu ainda que os indígenas americanos e os negros são espiritualmente inferiores dentro da espécie humana. Ele distingue quatro raças - branca, amarela, negra e americana (vermelha) - , com habilidade mental e geral decrescente, por esta ordem. As afirmações depreciativas de Kant acerca das pessoas negras deixam muito a desejar para um homem da sua craveira. E, contudo, Kant deseja que se

" Cf. I. OsuAcwu, o. e., p. 28.

43 42

acredite que a sua posição é racionalmente justificável. Ele sustenta que a raça está bem determinada na razão de qualquer cientista natural. Quando Kant argumenta que a inferioridade do negro tem uma qualidade biológica, está a construir o seu argumento racista sobre uma teoria racialista. Visto que a raça é algo que se herda, o negro, tal como os outros na sua classificação, está preso à hierarquia de raça, que tem uma qualidade imutável. Oruka assinala: «Se a pressuposição [de Kant] é racista, nenhuma contradição lógica inerente se pode seguir deste suposto axioma de uma hierarquia racista» 35 • Kant, tal como Hegel, seu sucessor, baseia a sua teoria numa falsidade. A razão pela qual Kant diz as coisas que diz acerca dos Africanos só pode ser dupla: ignorância sobre a pessoa africana e preconceito. Mas a ignorância "de Kant deve ter sido de tipo arrogante; como afirma ainda Oruka, ele certamente deve ter tido conhecimento de intelectuais negros, como Agostinho, A. Pushkin, Anthony William Amo 36, J. Thomas e G. W. Williams, cujas capacidades devem ter sido tão familiares a Kant, que podemos perguntar como foi possível ele insistir na sua teoria. A sua posição é insustentável, até mesmo em termos kantianos: Assim sendo, o kantiano não pode continuar a aceitar a afirmação de Kant sobre o negro, e, além disso, não pode sequer continuar a contar com o apoio do seu mestre. O moderno kantiano conhece os factos empíricos, pelo que é forçado a aceitá-los, se quiser continuar a ser kantiano ".

Contudo, a questão permanece: por que é que Kant (logo ele, defensor do declarado proceder pela evidência e da vira-

" H. ÜRUKA, o. e., p. 253. " Cf. W ILLIAM E. ABRA! IAM, Tlze Mind of Africa, Londres, Weidenfeld and Nicolson, 1962, p. 129. "'H. ÜRUKA, o. e., p. 253.

44

gem antimetafísica) se agarrou teimosamente a uma ideia que não podia ser confirmada pela evidência empírica? Se aresposta não puder ser encontrada no preconceito (leia-se racismo), encontrar-nos-emos então numa situação muito absurda. É por isso que Hegel é corretamente considerado um sucessor de Kant, porque também ele escolheu tomar a estrada escorregadia da ignorância e do preconceito para poder sustentar a sua teoria antinegro.

GEORG

W. F. HEGEL E O

PROCESSO HISTÓRICO

Hegel e o movimento da história universal Nas suas Lições sobre a Filosofia da História, uma das obras em que se permite manifestar o seu espírito não filosófico, Hegel (1770-1831) exclui a África do que ele considera ser o movimento da história para a sua realização. Uma tal posição exclui efetivamente a África da esfera da racionalidade, uma vez que a história, tal corno Hegel a entende, não é senão a manifestação do Espírito (Razão). Hegel afirma: «Ü único Pensamento, que a Filosofia traz consigo para a contemplação da História, é a simples conexão da Razão; Razão que é a Soberana do Mundo; pelo que a história universal nos confronta, por conseguinte, com um processo racional» 38 • O · modo como Hegel entende a história é crucial para decifrar a razão pela qual relega a pessoa negra para a esfera do irracional. O filósofo alemão entendia o espírito como sendo essencialmente histórico e realizando-se a si próprio no processo dialético, rumo a uma liberdade progressivamente maior. A realidade é, por conseguinte, o espírito que se manifesta na "'GEORG W. F. HEGEL, The Philosophy of History, Nova Iorque, Dover Publications, Inc., 1956, p. 9.

45

F natureza, na história humana e nas ações humanas; a história é o desenvolvimento do espírito através das épocas sucessivas, o qual atinge a consciência plena pela liberdade racional. A finalidade da história é a liberdade do espírito, o seu ser-em-e-para-si. O progresso da história avança de nível para nível, por meio do movimento dialético, da tese para a antítese e para a síntese. A história da humanidade como manifestação do único espírito universal (Weltgeist) « .. .viaja do Oriente para o Ocidente, pois a Europa é, de modo absoluto, o fim da História, sendo a Ásia o seu início ... aqui se eleva consentaneamente, o Sol da consciência de si, que difunde um brilho mais nobre» 39• O mundo greco-romano é a antítese do mundo oriental, os quais se unem na tríade dialética para formar uma síntese no mundo cristão-germânico moderno. A razão pela qual a África é eliminada do processo histórico é a de «não ter movimento ou desenvolvimento para exibir. .. [e, portanto] é o Espírito Não-histórico, Não-desenvolvido, ainda envolvido nas condições da mera natureza... » 40• Uma vez que é pela razão que o ser humano ordena e governa o mundo, é apenas por essa via que a mudança cultural e o desenvolvimento podem ser alcançados na direção da civilização. Mas dado que o africano não possui razão, também não tem, propriamente falando, um mundo histórico, o que significa que está privado de cultura e civilização. O juízo errado de Hegel e o lugar de África na sua história universal A África não pertence ao processo racional histórico porque, segundo a convicção de Hegel, «O elemento característico na vida do Negro é que a consciência ainda não atingiu a reali-

" Ibidem, '" Ibidem,

46

p. 103. p. 99.

zação de nenhuma existência objetiva substancial... » 41 • Se há, de todo, algum movimento histórico em África, ele ocorre na sua extremidade norte; esta é, muito convenientemente divi' dida por Hegel, e anexada à Europa e à Ásia, apenas para justificar a sua tese! Sucede assim que a África a que Hegel fará r,eferência, e que para, ele é a «África propriamente dita», é a Africa a Sul do Saara. E curioso verificar como Hegel continua a construir o seu argumento acerca desta parte de África, apesar de ele próprio rec~nhecer que essa região é quase inteiramente desconhecida e encerrada. A sua fonte de conhecímento acerca dessa parte de África, como ele próprio admite sem reservas, consiste nos relatos abundantes e pormenorizados dos missionários. Para lá dessa evidência episódica, de pessoas que eram elas próprias fontes suspeitas, a julgar pela inform~ção que lhe foi disponibilizada, Hegel nada mais sabia sobre Africa. Apesar disso, atreveu-se a formular uma teoria «digna de crédito» acerca desse continente. É ainda mais curioso notar que a opinião de Hegel iria, durante muito tempo, definir a visão europeia esclarecida de África. Como Hountondji afirma, a filosofia da história de Hegel «proporcionou uma base filosófica de peso às vozes que denegriam as raças não-brancas, e que acompanharam e encorajaram a aventura colonial branca europeia, durante todo o séc. XIX e 42 be~ dentro do séc. XX» • E, para esse efeito, sem dúvid a que a Africa foi a mais atingida. Ainda que, por algum mero acaso, o argumento de Hegel se revelasse correto, teria mesmo assim de ser rejeitado cientificamente, por se basear numa conceção errada de África. Algumas das coisas afirmadas sobre África, e que têm pertinência para a sua teoria, são rotundamente falsas. Hegel, para dar um exemplo, conclui que os Negros têm, uma cultura infe" Ibidem, p . 93. O itálico foi acrescentado. "P. HüUNTONDJI, o. e., pp. 11-12.

47

rior devido à sua compreensão da religião. Falta-lhes o elemento que representa a base das conceções religiosas, ou seja, a «consciência de um Poder Superior». Corno resultado, prossegue Hegel, o homem é exibido como o poder supremo, à luz do qual os feiticeiros ocupam uma posição de poder sobre a Natureza. Hegel conclui daqui que o Negro não é dotado de «uma adoração espiritual de Deus, nem de um império do Direito» 43 • É óbvio que a compreensão inadequada que Hegel tem do modo de vida africano considera a ideia da feitiçaria ou magia como incompatível com a de um ente superior ou divino. Mas isto deve-se ao facto de ele ter reduzido toda a existência africana a alguma espécie de existência de feitiçaria, como se cada africano individual subscr_evesse a feitiçaria ou, ainda pior, fosse um feiticeiro. Nada poderia estar mais longe da verdade quanto a este ponto. Mbiti, por exemplo, no seu livro An Introduction to African Religion [Urna introdução à religião africana], de 1975, mostrou claramente que, mesmo nas próp rias sociedades africanas, os feiticeiros são considerados corno inimigos da sociedade. Ele afirma a dado passo: «Talvez o elemento mais perturbador da vida africana seja o medo da magia má, da feitiçaria e bruxaria. Estes são alguns dos maiores inimigos da sociedade. Todos os povos africanos partilham desse medo ... As bruxas e os feiticeiros são as pessoas mais odiadas na sua comunidade» 44 • Por muito que Hegel tenha d esenvolvido uma fobia pela magia e feitiçaria, ele deveria ter sabido que essas atividades eram igualmente receadas e indesejadas pela maioria dos africanos, e que não implicavam necessariamente a ausência da crença num ser supremo por parte de toda a comunidade. Apesar do papel desempenhado pela magia em muitas religiões tradicionais africanas, especialmente a boa magia (e

"' G. H EGEL, o. e., p. 94. " JOHN S. Msm, lntroduction to African Religion, Nairobi, Heinemann, 1975, p. 164.

48

isto não entra em contradição com as suas crenças), «a religião não é magia, e a magia não pode explicar a religião. A religião é maior do que a magia, e apenas um forasteiro ignorante pode imaginar que as religiões africanas se reduzem à magia» 45 • Hegel, por conseguinte, considera que a ideia de um Ser Supremo está ausente, porque reduz toda a religião africana à magia. O sentido do divino não é estranho aos Africanos. A maioria dos autores na área das religiões tradicionais africanas dá disso testemunho; tanto Mbiti, corno Parrinder, entre outros, corroboram este facto. Em African Traditional Religion [Religião Tradicional Africana], de 1962, Parrinder mostra que, apesar de existirem diversas teorias quanto à origem da religião em África, «O facto é que a maioria dos povos africanos tem crenças evidentes num Ser Supremo, e que outros, embora com menor intensidade, pelo menos apresentam algumas crenças espirituais» 46 • Enquanto isso, Mbiti afirma: «Todos os povos africanos acreditam em Deus. Eles não questionam esta crença ... mas como é que, exatamente, esta crença em Deus teve origem, isso não sabemos» 47• É claro que, embora a origem da crença em Deus possa ser discutida em África, não se pode colocar em dúvida o facto de ali se acreditar num Ser Supremo, embora esta crença possa não ser necessariamente partilhada por todos. Certamente que este divino pode não corresponder à definição do divino prevista por um sistema como o de Hegel, mas trata-se de uma vil presunção concluir daí que os Africanos não possuem a consciência de um Ser superior ao homem. A partir desta falácia de generalização, que se baseia em si mesma num erro, e da consequente conclusão errónea, ~

" IDEM, Africnn Religions and Philosophy, Nairobi, H einemann, 1969, pp. 9-10. .. G. PARRINDER, o. e., p. 32. " J. MBm, Introduction toAfrican Religion, p. 40.

49

F Hegel procura depois, por meio de um discurso longo e elaborado, demonstrar que os Negros não possuem moralidade e são incapazes de uma organização política 48 • Bastará citar, a Hegel e aos seus seguidores diretos, o veredicto de Parrinder: Já passou o dia em que alguém poderia escrever, como o fez um viajante do séc. XVII, na África do Sul, que «ninguém, por mais cuidadosamente que tivesse inquirido, jamais pôde encontrar entre os Cafres, ou Hotentotes, ou Exploradores da areia (Beach-rangers), qualquer traço de religião, ou qualquer mosb:a de honra a Deus ou ao Diabo»".

A exasperação de Hegel em relação à historicidade de África · Há muitos outros passos da sua obra em que Hegel tira conclusões acerca de África com base numa compreensão errónea. Os casos da magia e da feitiçaria são citados apenas como exemplos para mostrar em que medida as suas concomitantes alegações acerca desse continente devem ser objeto de muitas reservas. Quando Hegel chega ao ponto de anunciar que é chegado o momento de deixar «África de lado, para não a voltar a mencionar» 50 , será porque, como afirma, a África que ele está a considerar não faz parte da história, ou será porque ele está perturbado e dominado pela exasperação de saber tão pouco acerca de África, e por se dar conta da sua impotência quanto a debater sobre esta parte do mundo? Poder-se-ia perdoar por pensar que há algo mais do que ignorância por detrás do esforço concertado de Hegel em demonstrar a «não historicidade» de África, apesar de toda a evidência em contrário. Qual pode ter sido a sua agenda escondida?

Cf. G. H EGEL, o. e., PP· 95-99. G. PARRINDER, o. e., p. 32. ;o G. HEGEL, o. e., p. 99.

Será que Hegel considera insuportável a possibilidade de uma raça alemã pura ter tido uma origem africana? Não se deve dar demasiada rédea solta à especulação quanto a este ponto. Deixando de lado a possibilidade de sucesso do grandioso projeto filosófico de Hegel, e não obstante as su~s fontes serem dignas de suspeição, os seus dados acerca de Africa são vergonhosamente inadequados. É difícil compreender a razão que levou H egel a fazer generalizações bárbaras acerca de uma raça inteira com base em informação insuficiente, mas pode bem ter sido por causa da sua conceção do desenvolvimento do pensamento humano - no âmbito de um sistema. Tudo o que não encaixa ou corresponde à lógica de um tal sistema é deixado de lado, a priori. Horton Africanus, ao criticar alguns antropólogos europeus, em virtude das suas falsas teorias sobre África, con clui: «Algumas das suas afirmações são tão descaradamente falsas, tão imensa a subversão da verdade científica, que elas apenas servem para identificar os seus autores como perfeitamente ignorantes dos assuntos que tratam» 51 • E, contudo, a ignorância é a inimiga declarada da Filosofia, pois os «homens», por natureza, têm o desejo de conhecer. Isso pode ser aplicado com propriedade a Hegel, ou, pelo menos, até ao ponto em que a subversão da verdade científica estiver implicada. Não nos podemos deixar de interrogar por que é que alguém com uma mente tão voltada para a ciência como Hegel se pode ter enganado de modo tão cego nas suas conclusões sobre toda urna raça. Talvez se pudesse desculpar, de algum modo, o filósofo alemão, dizendo que as suas conclu sões se baseavam naqu ela parte de África que lhe era conhecida. Mas isso só faria sentido se Hegel tivesse deixado algum espaço livre para uma avaliação mais aprofundada, após ter reunido informação mais detalhada. Porém, uma tal suposição não se

povo, ou onde o «seu» povo pode vir a beneficiar mais. Em algumas circunstâncias, chega mesmo a acontecer só se darem subsídios ou donativos, quando são assinados ou apresentados por «um dos seus», apesar de existirem razões para que sejam concedidos. A lógica é a mesma, embora desta vez seja revestida de terminologia mais técnica e enganosamente universalista. Assim entendida, a mentalidade do «shienyu ni shienyu» mostra ser um problema universal. Esta forma de pensar e agir pode ser motivada por um falso sentido de segurança e solidariedade, e pela sua procura. Trata-se da busca de uma segurança enganosa num pequeno grupo, excluindo outros, e, no sentido absoluto, implicando até a exclusão do Outro último, Deus. Contudo, se o «shienyu ni shienyu» quiser manter o amor da sabedoria, deve buscar essa segurança não num grupo exclusivo, mas na verdade. Algumas sociedades conseguiram, felizmente, minimizar os seus efeitos perigosos e controlar a sua negatividad e, enquanto ou tras estão ainda a operar sob a sua sombra. Esta problemática é ainda muito séria em n umerosas regiões de África, e a filosofia africana tem de assumir um papel de liderança para corrigir esta situação. A filosofia política africana num ambiente de shienyu ni shienyu

O shienyu ni shienyu na criação de um fundamento para a nacionalidade Será que o panorama político africano contemporâneo pod erá sobreviver à investida de uma mentalidade de carác223

• ter profundamente étnico do tipo «Shienyu ni shienyu»? O impacto do «shienyu ni shienyu» no pensamento político em África não pode ser ignorado. A sua filosofia, se assim a pudermos chamar, pode ser uma maldição ou uma bênção. Maldição, quando perde a sua filosoficidade, e bênção, quando mantém a sua ligação pura com a verdade. É necessário enfatizar os progressos do pensamento político africano, especialmente após a independência da maioria dos Estados africanos. As propostas de um humanismo africano, o conceito de socialismo africano baseado num forte sentido de família, uma profunda consciência da identidade africana, o impulso em favor da unidade africana, a diversos níveis da existência africana, constituem esforços que merecem ser louvados. De facto, eram necessários, no período após as ihdependências, para a construção das novas nações, e para edificar uma sólida base social, política e económica. As pessoas tinham de ter orgulho naquilo que eram, e precisavam de desenvolver um forte sentido de respeito por si mesmas e de autoestima. Criar, um fundamento para um tal ímpeto revelou-se importante e necessário. Até certo ponto, exigiu um regresso a si próprio e àqueles do próprio grupo. Era necessário identificar-se com «OS seus», para encetar juntos um caminho rumo ao futuro, com confiança. Será desnecessário dizer que, após a sua independência, a maior parte dos povos africanos tornou uma atitude de distância em relação àqueles que tinham sido os seus senhores e os tinham dominado na sua própria terra. Alguns até pretenderam mesmo mais do que apenas a independência; defenderam a expulsão dos senhores que tinham sido destronados. Tais sentimentos têm de ser entendidos e situados no seu próprio contexto. Tendo tudo isto em consideração, concluímos que era crucial edificar um sólido fundamento, capaz de suportar o espírito de construção da nação, que era muito necessário, agora 224

que a liderança dependia das suas próprias mãos. Para esse efeito, era também necessário induzir na população um sentido firme de nacionalidade, pois ela tinha-se tornado o principal agente do desenvolvimento dessas nações, após a independência. Os sentimentos de «shienyu ni shienyu» acabaram por encontrar o seu lugar próprio num tal ambiente, não tanto por isolarem o outro, mas por levarem as pessoas a sentirem e a tomarem responsabilidade pela tarefa que se abria diante delas. O «shienyu ni shienyu» e a adaptação dos sistemas políticos em África Tendo isto sido dito, é também importante assinalar que o lançamento de um fundamento não pode continuar ad ínfinitum, já que um fundamento não é um fim em si mesmo. Um mergulhador não pode ficar para sempre especado na rampa de lançamento; chega o momento em que tem de correr o risco de se atirar à água. Tanto o socialismo africano como o conscíencísmo africano, o sentido de família africano e a unidade africana têm de tomar consciência que a sua exposição na arena internacional já não é uma situação de um ou outro. A «escolha não é entre mudar ou não mudar; a escolha que se coloca à África é entre mudar ou ser m udado - mudar as nossas vidas de acordo com o nosso próprio rumo, ou ser mudado pelo impacto de forças fora do nosso controlo» 419• A sociedade contemporânea pode ser implacável e castigadora em relação a pensamentos e desejos introspetivos. A afirmação do eu não pode ser feita à custa da exclusão do outro. A sociedade africana de outrora pode ter-nos ajudado a afirmar a nossa identidade em momentos cruciais da nossa

1 ' '

J. NYERERE, o. e., p. 22. 225

4 história. Mas isso ficou lá atrás, no passado, e uma tal sociedade não pode ser transferida numa baixela de prata «em estado puro», assim como pode querer permanecer pararesponder aos desafios da África contempor~nea. ~esses te:npos, era talvez necessário insistir na men~alidade mtrospetiva do «shienyu ni shienyu», para nos consolidarmos como povo que se preparava para se relançar num novo _mundo. Isso aconteceu então. Hoje em dia, a nossa verdadeira segurança consiste em nos abrirmos ao mundo e à sua multiplicidade de culturas; mas a multiplicidade de culturas, temos de insistir, não implica uma multiplicidade de verdades." , A paisagem política african~ dos nossos dias e ~do menos inteiramente tradicionalista. E certo que determinados elementos da sociedade tradicional foram mantidos e há valores que ainda persistem. Mas i~to é apenas part: da históri,a, por mais essencial que seja. A Africa contemporanea tambem recebeu muito emprestado, ao procurar modelar-se para o encontro com a modernidade. Não há democracias puras, como não há monarquias puras, nem oligarquias puras. Aquilo que apelidamos de democracias africanas, e~bora r:l.ativ~mente jovens, são combinações complexas de dois ou vanos sistemas políticos. . O que é claro, e foi particularmente enfatizado por 1'.1hºYª' entre outros nacionalistas africanos, é que nenhum sistema político único, proveniente do exterior, pode ser transferido na sua totalidade e transplantado num contexto africano. Tal aplica-se também numa outra direção. Nenhum siste~a tradicional africano serve, na sua totalidade, para uma soaedade africana contemporânea. Exige-se, talvez, não tanto uma mudança completa de paradigma, mas uma certa dose de d~r e receber. Há, portanto, determinadas ilusõe_s que ?s teónc~s políticos africanos, bem co~o aque~e~ que mtervem na pr~­ tica, não podem alimentar. E necessana uma mud~~a de atitude, para que se crie um sistema ou sistemas pohticos que 226

respondam às necessidades da sociedade africana dos dias de hoje, e às suas aspirações para o futuro. Tal como aponta Abraham: «Ü futuro de África reside no presente, e o presente é resultado do passado. Pelo presente, desejamos indicar o resultado da ação de forças da África tradicional e das forças que o contacto com a Europa desencadeou no continente» 420• Urna sociedade não se constrói com base em ressacas culturais, e, em boa verdade, a correta formulação dos problemas atuais de África facilitará um diagnóstico acertado. O papel do shienyu ni shienyu na África contemporânea Qual pode ser então o lugar da mentalidade do «shienyu ni shienyu» numa tal realidade contemporânea? Esta maneira de pensar só poderá reclamar um lugar nessa sociedade se abandonar a via do isolamento e embarcar num amplo processo de construção de pontes. Urna qualquer comunidade encontrará a sua segurança não tanto na insistência míope no seu próprio bem - insistência que a conduzirá ao confronto com as comunidades vizinhas -, mas na tomada de consciência de que assegurar o seu bem consiste eni assegurar o bem da comunidade ou comunidades vizinhas. Tal como afirma Nyerere: O autêntico socialista africano não considera uma classe de homens como seus irmãos e outra como seus inimigos naturais. Ele não forma alianças com os seus «irmãos» para a exterminação dos seus «não irmãos». Pelo contrário, ele olha para todos os homens como seus irmãos - como membros da sua família que está sempre a crescer 421•

O «shienyu ni shienyu» deve abrir-se à realidade de uma família que está sempre a crescer, porque isso está em linha com

"° W. ABRAHAM, o. e., p. 161. 421

J. NYERERE, o. e., p. 170. A ênfase foi acrescentada. 227

o autêntico espírito da família africana. Neste sentido, situa-se a decisiva e importantíssima passagem de um simples «shienyu ni shienyu» para um mais abrangente «Shienyu ni shiabo» (deles), ou seja, «O nosso é deles», ou «O teu próprio é próprio deles», em que o «deles» sublinha o movimento em direção ao outro que não é imediatamente «um dos meus», mas antes a família humana alargada aos seus últimos limites. É isso, julgo eu, o sentido autêntico do que pretendiam dizer autores como Senghor ou Mbiti, ao afirmarem: «Eu sou, porque nós somos, e, porque nós somos, então eu sou.» Como consequência, supera-se a insistência em «O teu próprio é o teu próprio» e desperta-se para a realidade de «O teu próprio é próprio deles», ou ainda «O nosso próprio é próprio deles». . O meu bem consiste em assegurar o bem do outro. A única via para o meu eu mais íntimo encontra-se no abandono de mim mesmo no outro. A alienação de si mesmo não deveria significar autodestruição1 mas deveria, de facto 1 conduzir à realização de si mesmo. Esta passagem é exigente, mas corres-' ponde a um fundamento mais prometedor para a edificação de uma sólida filosofia ou filosofias políticas africanas1 porque responde não só aos requisitos da Filosofia, na sua concretude e universalidade, mas também à vocação da pessoa africana no mundo contemporâneo. No âmbito internacional, cada país sentir-se-á seguro não só pela via da afirmação da sua própria soberania1 mas, ainda mais, dando-se conta das necessidades do vizinho1 para poder cumprir as suas próprias metas. Entendida desta forma, a lealdade tribal recebe uma interpretação inteiramente nova. Não é necessário abandonar a sua tribo para que alguém se torne num nacionalista; pelo contrário, a tribo torna-se o veículo necessário para a formação de uma nação forte. Já em 1963, no seu Freedom and After [A liberdade e o depois], Mboya admitia isto mesmo, ao dizer, acerca da estrutura africana de interdependência: «Este é um 228

aspeto do sistema tribal africano que, caso viesse a desaparecer, me desagradaria muito. Oferece a disciplina, autoconfiança e estabilidade necessárias às novas nações» 422 • Dado que as tribos continuam a exercer uma forte influência nas vidas de muitas pessoas, e o particularismo tribal sobrevive nas áreas rurais, onde a maioria da população se encontra, a tentativa individual de se destribalizar, antes de se tornar num nacionalista, continuará a ser um esforço tão irrealista quanto ilusório. O mesmo dir-se-ia da tentativa de deixar de lado 0 seu próprio país para se tornar num pan-africanista. Mas também da tentativa contrária de alguém se entrincheirar, por medo de outras tribos ou naçãos, motivado por um sentimento particular de segurança. Tal corno «O nacionalismo africano é desprovido de sentido, é anacrónico, e é perigoso se não for simultaneamente 423 . . pan-a fricamsmo» , o mesmo se passa com a tribo, se não tiver uma orientação para a nação. As raízes do nacionalismo encontram-se na tribo, entendida de modo positivo, bem como as raízes do pan-africanismo se encontram num sólido nacionalismo; este ponto foi muito sublinhado pela maioria dos pioneiros pan-africanistas moderados. Qualquer árvore precisa de raízes para sobreviver, e não há dúvida de que há valores nas tribos africanas que podem alimentar a árvore africana no seu florescimento contemporâneo. Até mesmo o impulso em favor das alianças internacionais não se destina a apagar as fronteiras nacionais, e quem se envolve em tais projetos fará bem em permanecer muito consciente disso. Tal não significa a ausência de obstáculos ou perigos no ca-

422

T. MBOYA, Freedom and After, Londres, Andre Deutsch, 1963, pp. 68-70. Citado a GERTZEL, MAURE GOLDSCHMIDT e DON ROTHCHILD, Government and Politic, in Ke11ya: A Nation Building Text, Nairobi, East African Publishing House, 1972, p. 52. 423 J. NYERERE, o. e., p. 194. partir de C. J.

229

minha. Há medos genuínos que não devem ser ignorados. Eles têm de ser enfrentados, para que se alcancem resultados duradouros. Um dos perigos é o das lealdades tribais resvalarem para 0 tribalismo, em vez de se t_ornaren:1 veículos pa~a construir uma nação robusta. Este perigo contmua a emergir, com frequência, em África, especialmente quando as ~da­ des étnicas são organizadas em partidos ou forças políh~as. Quer estas forças sejam partidos individuais, ou_ uma, coligação deles, sempre que a lógica prevalente se ~estrmge a proteção dos «nossos», então é prejudicial ao continente. . Em 1962, Abraham já tinha expressado o seu rece10 de que, «em alguns países africanos, os fil?es t~iba~s corresp~ndam aos filões políticos nas esferas de mfluencia,, e tambem aos 424 filões territoriais dentro de uma estrutura federal» • Nessa altura, ele tinha identificado países como o Quénia, o Uganda e 0 ex-Zaire como algUns dos maiores culpados quanto a este ponto. Há razões para, lamentavelmen~e, acreditar que esse fantasma ainda não foi totalmente exorcizado nesses Estados. Estes obstáculos e perigos não deveriam, contu,do, fazer diminuir 0 impulso para uma sociedade coesa. E verdade_ ~ue devem existir objetivos africanos autenticados por trad1çoes africanas, mas tradições que sejam benéficas para uma tal causa. O terreiro político africano contemporâneo tem de enfrentar a sua situação na história. A história é dinâmica, pois o ser humano é dinâmico, e não há forma de a vida política africana fugir a esse dinamismo. Que tipo de filosofia política será apta para essa_t~re~a? Para que uma tal filosofia seja consistente c~m as exigen~ia~ da verdade tem de assumir uma atitude realista em relaçao a comunidade a que se destina. Tem de ser cont:xtu~l, ~eco­ nhecendo que a sociedade africana a que se destina nao e um conglomerado de relíquias do passado. Mas, ao mesmo tempo, ..,. W.

ABRAHAM, The Mind of Africa,

não se trata de um povo sem raízes. A nossa proveniência não pode ser sacrificada no altar da modernidade, assim como a modernidade não pode ser mantida para sempre em cativeiro pelo tradicionalismo. A Filosofia política africana contemporânea deve ser simultaneamente africana e filosófica. A África tem um papel a desempenhar nos assuntos internacionais contemporâneos e na política global. A Filosofia deve esforçar-se por colocar o africano em sintonia com a sua vocação, que, em última análise, não é apenas a vocação do africano, mas a de todo o género humano. Uma vocação africana que alienasse o africano do chamamento humano seria uma contradição, e uma filosofia que apoiasse um tal projeto perderia a sua pretensão ao amor da verdade. Uma filosofia política africana dos nossos dias não pode fechar os olhos aos outros instrumentos que também orientam o ser humano na demanda da sua meta, mesmo que esse outro instrumento seja a religião, com as suas pretensões à verdade de cariz religioso. A força da Filosofia consiste em aceitar que não possui toda a verdade. A Filosofia deve aceitar os seus limites, ainda que isso signifique tomar emprestado de outras fontes para atingir o seu objetivo: a busca da verdade. Caso essa outra fonte seja a religião, muito bem. A filosofia política africana atual tem muito a aprender da relação tradicional entre o pensamento especulativo e a religião na sociedade africana tradicional. A edificação de uma base política sólida para os povos africanos não tem, por conseguinte, de rejeitar a religião. Pelo contrário, a avaliar pela coesão registada em muitas sociedades tradicionais africanas, o papel da religião para promover, hoje em dia, a estabilidade política, tem de ser reafirmado. Este ponto tornar-se-á ainda mais claro no próximo capítulo, ao discutirmos a relação entre a Filosofia e a religião, nas sociedades tradicionais africanas .

p. 183.

231 230

-41f

CAPÍTULO V

A Filosofia e as religiões tradicionais africanas

'i

1

V ale a pena dedicar alguns parágrafos à relação estabelecida entre a Filosofia e a religião, nas sociedades tradicionais africanas. É necessário averiguar que lugar ocupava a Filosofia nas sociedades em que a religião tinha uma tão forte influência. Será que a religião apontava a direção ao pensamento filosófico, ou era a Filosofia que guiava esta relação? Ou será artificial uma tal dicotomia na influência mútua, entre a religião e a Filosofia, nestas comunidades? Estas são algumas das questões que contamos abordar nesta breve investigação. John S. Mbiti e Geoffrey Parrinder evidenciam-se como estudiosos da relação entre o pensamento africano e as religiões africanas. Neles revela-se também um aspeto que se tornou uma característica comum da filosofia africana, desde a antiguidade até ao momento presente. Trata-se da combinação entre o conhecimento de África vindo de fora e o autóctone, para a criação do pensamento africano, na diversidade das suas manifestações. Se Mbiti e Parrinder procuram testemunhar a existência de um modo de vida e de um pensamento distintamente africanos, em tempos antigos, Robin Horton é a antítese daqueles autores. Horton con trasta o pensamento africano, tal como ele se expressa na sua religião, com o pensamento europeu, expresso pela sua ciência, apresentando o primeiro como inferior ao segundo.

: 1

' 1

1 1

1

233

1

1 1 1

1

Tanto Mbiti como Parrinder exemplificam o princípio, tantas vezes sublinhado, de que «as religiões africanas impregnam toda a vida da comunidade. Elas são o início e o fim de tudo. Reduzidas ao essencial, a sua Weltanschaung, a sua visão do mundo, é um fator unificador, porque não supõe nenhuma diferença acentuada entre o profano e o sagrad o, entre a matéria e o espírito» 425 •

JOHN

S. MBITI: A FILOSOFIA AFRICANA

NAS RELIGIÕES TRADICIONAIS AFRICANAS

A religião: porta de entrada para o pensamento tradicional africano O papel da religião nos discursos filosóficos africanos não pode ser suficien temente sublinhado. Kaunda refere uma característica marcante ao afirmar: «A africanidade, que tem as su as raízes no solo do n osso continente, e não nas salas de aula das universidades europeias, é basicamente um fenómeno religioso; nós somos quem nós somos devido à nossa atitude para com a profundidade misteriosa da vida, simbolizada pelo nascimento e p ela morte, pela colheita e pela fome, pelos antepassados e pelos ainda não nascidos» 126•

Poder-se-ia dizer que a experiência religiosa é a porta de en trada para o coração e para a mente africanos. «Ao proporcionar às pessoas um modo de interpretarem o mundo, um modo de compreenderem a sua própria existência, a religião africana equipou-as, a nível emocional, intelectual e cultural,

os NÃO-CR ISTÃOS, Meeting lhe African Religions, p. 23. "' K KAUN OA, o. e., p. 17. ili

234

SECRETARIADO PARA

para atravessarem a vida e enfrentarem as suas múltiplas 427 experiênciaS» • Se for este o caso, é admissível que os principais temas filosófic,os assumam também uma forma religiosa, especialmente na Africa pré-colonial. Como resultado, a religião e a Filosofia estavam tão interligadas, que a religião africana foi considerada como a porta de entrada para a filosofia africana, razão pela qual as respostas à maioria das questões filosóficas tomaram ou têm colorações religiosas. No prefáci? ao seu livro Concepts of God in Africa [Conceitos de Deus em Africa] (1970), Mbiti torna claro este elo íntimo entre a Filosofia e a religião, ao afirmar que o volume apresenta uma parcela da sabedoria tradicional religiosa e filosófica do povo. Essa é também a sua posição em African Religions and Philosophy [Religiões africanas e Filosofia] (1969), seguindo essa metodologia em toda a obra. Na introdução a este livro, 0 autor começa por referir que os africanos são «notoriamente religiosos», e que a religião tem uma tal proeminência em toda a sua vida, que nem sempre é fácil isolá-la. Entender o povo africano requer, consequentemente, conhecimento da sua religião. Isto aplica-se até ao seu pensamento, pois, corno mantém Mbiti: A filosofia de um ou outro tipo está por detrás do pensamento e da ação de cada povo, e o estudo das religiões tradicionais conduz-nos àquelas áreas da vida africana em que, pela palavra e pela ação, poderemos discernir a filosofia subjacente 428•

Em Introduction to African Religion [Introdução à Religião Africana] (1975), Mbiti insiste que a religião «tem dominado o pensamento dos povos africanos a um tal ponto, que tem configurado as suas culturas, vida social, organizações políticas e atividades económicas... a religião está intimamente unida ao "' ]. Msm, Introduction to African Religion, p. 198. "" To., African Religions and Philosophy, p. 1.

235

modo tradicional da vida africana, enquanto, ao mesmo tempo, este modo de vida tem também configurado a religião» 429 • De acordo com esta posição, a religião ocupa, portanto, um lugar especial na ontologia africana, pois define o mundo do homem e da mulher africanos. «As pessoas aplicam a sua religião à sua vida social, emocional, económica, intelectual e espiritual. Elas acreditam que a religião é relevante em todas estas áreas da sua vida» 430 • É por esta razão que se considera que a religião oferece aos povos africanos uma certa compreensão do mundo em que vivem, e é responsável pela formação da pessoa inteira. E, sob a influência da religião, foram enunciadas as grandes ideias acerca da vida moral, das realizações culturais, da organização social e das instituições, dos sistemas políticõs e da edificação das civilizações do passado. Este pensamento e estas ideias expressam-se por meio dos provérbios, charadas e ditos do povo, muitos deles de teor religioso, e em que está consagrada a sabedoria popular. O papel da comunidade no pensamento africano Para se poder perceber a posição de Mbiti, é importante aprofundar as suas pressuposições básicas, uma das quais aponta para a relação entre o indivíduo e a comunidade. Neste ponto, ele partilha elementos comuns com o socialismo africano dos filósofos-reis de África, talvez melhor exemplificado em Nyerere, que afirmou: «Na nossa sociedade tradicional africana, nós éramos indivíduos dentro de uma comunidade. Nós cuidávamos da comunidade, e a comunidade cuidava de nós» 431 •

,,. To., lntroduction to African .,. Ibidem, p. 198. "' J. NYERF.RE, o. e., p. 166. 236

l~eligion,

p. 9.

A religião reconhecia este valor do indivíduo na comunidade, uma vez que são os primeiros que formam a segunda. Através das várias fases da vida, com os seus ritos e cerimónias, a religião dizia ao indivíduo que ele existia por causa da comunidade. O indivíduo era visto como pertencendo necessariamente à comunidade, porque essa é a única forma de se ser humano. Ao defender estas ideias, Mbiti expressa a filosofia de vida da maioria das comunidades africanas. E é também talvez esta a razão que lhe permite sustentar que não existia nenhum povo não-religioso na sociedade tradicional; em primeiro lugar, porque a religião pertence à comunidade, e todo o africano deve pertencer a uma comunidade, e, em segundo, porque as religiões africanas estão presentes em todos os aspetos da vida comunitária. A conclusão bastante óbvia que se pode tirar daqui seria a de que o modo de interpretar a filosofia africana, segundo esta posição, seguirá também uma perspetiva comunitária. Este seria, para sempre, na opinião dos seus críticos, o calcanhar de Aquiles da etnofilosofia, modo como veio a ser conhecida a corrente filosófica de Mbiti. A principal acusação que tem sido levantada consiste na sua pretensão universalista, isto é, a de incutir um ponto de vista holístico na análise filosófica em África, sem tomar na devida conta o pensamento individualizado. Seja como for, não se pode desmentir que Mbiti deu um contributo positivo ao desenvolvimento da filosofia africana, ainda que apenas possa ser considerado como uma rampa de lançamento para a investigação filosófica posterior. Até aqueles que se referem a Mbiti e a outros autores, simplesmente como evangelistas africanos, apesar dos seus ataques contundentes, não podem negar este facto. Tal como assinala Oruka, o seu pensamento, bem como o de outros etnofilósofos (se nos é permitido apelidá-los desta forma), serviu, de modo não negligenciável, como urna provocação 237

dirigida aos outros filósofos para o desenvolvimento da filosofia africana 432 • Geoffrey Parrinder é um autor que reflet e de modo semelhante sobre a religião africana e o pensamento do seu povo.

GEOFFREY P ARRINDER: O PENSAMENTO AFRICANO NA RELIGIÃO

A religião e a homogeneidade do pensamento africano A excursão literária de Parrinder na área da religião abrange vários continentes. A sua extensa investigação atribuiu, no entanto, uma ênfase específica à religião african a. Embora tenha feito da África Ocidental a sua base e rampa de lançamento, a sua investigação não negligenciou outras partes do continente. As suas obras revelam que «existe um parentesco muito mais próximo entre os vários povos de África do que_ poderia parecer à primeira vista ... [e] as semelhanças são muito mais importantes do que as diferenças» 433 • E acrescenta: «Muitos grupos desconhecidos, e até aldeias, podem atribuir alguma ênfase especial a determinada prática; mas têm certa. inh os» 434 . mente muito em comum com os seus v1z A abordagem comparativa da religião dos povos africanos, levada a cabo por Parrinder, tem a vantagem de proporcionar ao leitor uma rápida visão geral do m undo da pessoa africana, tal como ele se manifesta nas suas crenças e no seu pensamento. Rapidamente se nota que há estruturas e aspirações similares no cerne de todas as religiões tradicionais africanas, 0 que lhes dá alguma homogeneidade e unidade. Este ponto

"' Cf. ÜRUKA, Sage Philosophy..., p. 52. "' G. PARRINDER, African Traditional Religion, p. 11. "' Io., West African Religion, p. 2.

238

torna-se ainda mais claro com as comparações entre os diversos povos africanos que Parrinder estabelece na sua investigação 435 • Considerou-se noutros lugares que esta homogeneidade de pensamento era uma expressão da mens africana. Há, por conseguinte, uma tal íntima conexão entre a crença e o pensamento, que só se pode intuir o pensamento africano na medida em que se tiver intuído a religião africana, ou vice-versa 436• Parrinder considera a religião tradicional africana como uma das três religiões de África, juntamente com o Cristianismo e o Islão. No prefácio à terceira edição de African Traditional Religíon [Religião tradicional africana], afirma em relação ao papel da religião em África: «Ü estudo da religião africana continua a ser essencial para quem quiser entender o horizonte e as forças motrizes da vida africana» 437 • Isto mais ainda se aplica a um povo que tem sido descrito como «incuravelmente religioso». Da mesm a forma, para Parrinder, uma análise informada do modo africano de pen sar não pode ignorar o fator religioso. A filosofia africana tem de ser entendida no contexto de uma comunidade que deseja viver a vida em plenitude; para essa comunidade, o pensamento não se expressa apenas em noções sistemáticas rígidas, mas encontra um misto de expressões. Acima de tudo, o modo africano de pensar é frequentemente expresso nas crenças do povo.

m lo., African Traditional Religion, p. 11.

os NÃO-CRISTÃOS, Meeting the African Religions, pp. 29-30. Este documento parece insistir no facto de o pensamento africano ser a via para a religião africana . A visão comum é normalmente a de a religião africana ser a estrada para o pensamento africano. De qualquer das formas, ambas as posições sublinham a íntima conexão entre a adoração, ou religião, e a expressão especulativa, que não pod em ser tratadas de modo isolado. Tanto Mbiti como Parrinder olham para a religião como sendo indispensável para se chegar à mente da pessoa africana. '""Cf. G. PARRINDER, African Traditional Religion, p. vii. ""Cf. SECRETARIADO PARA

239

Agentes do pensamento africano autóctone

As crenças e o pensamento africanos foram muitas vezes expressos por meio das formas artísticas, a que Parrinder apelida de linguagem autóctone da crença e do pensamento de África 438• Isto porque a forma de arte é sempre a expressão das ideias que a inspiraram. Mas também, em parte, devido à falta de uma literatura escrita, situação em que as pessoas desenvolvem uma memória retentiva, por meio da qual as tradições das gerações passadas são repetidas e se exprimem nas práticas modernas, particularmente nos ritos e cultos religiosos 439• É assim que se desenvolvem outros modos de preservação do pensamento e agentes da sua comunicação. Por esta razão, Parrinder mostra a sabedoria africana a expressar-se numa variedade de outras formas. Consequentemente: ... Há muita sabedoria tradicional na linguagem pictórica, e tornam-se evidentes determinados pressupostos que revelam muito acerca das atitudes para com o mundo e a vida. Todos os povos possuem mitos e hlstórias que procuram explicar as origens do mundo e da humanidade, os mistérios da vida e da morte, e as atividades dos seres celestes e mundanos "º.

Em resumo, se se quiser conhecer o pensamento de um povo sobre a criação, a sua antropologia, filosofia da natureza e cosmologia, e o que pensa acerca da realidade em geral, ou mesmo no que diz respeito a Deus, então é necessário ir às suas histórias, mitos e semelhantes modos de comunicação. Parrinder reconhece que não se obterá, deste modo, uma filosofia sistemática, tal como ela é hoje entendida, mas uma ideia geral da forma de pensar desse povo. É importante notar que no pensamento africano não havia

.,. Cf. l o., Africa's Three Religions, p. 18. "' Cf. ID., African Traditional Religion, p. 17.

"° lo., Africa's TI1ree Religions, p. 29.

240

separação entre o sagrado e o profano. No que ao seu modo de ex~ress~o ~respeito, «a arte é uma forma de expressar uma filosofia bas1ca da vida e do poder, e de todos os poderes que operam em conjunto para o bem, numa harmonia que deve ser mantida» 441 • Devido a es_ta unidade próxima entre o sagrado e 0 profano, e ao dese10 de manter harmonia na vida, as ideias eram e~pressas, nas sociedades tradicionais, além da arte, nos 'mitos, provérbios, cânticos e ritos. O pensamento africano e as s~as conceções acerca do mundo e da sua origem, do ser, da vida, da origem da humanidade e da morte, e do comporta~en~o humano, eram articulados nas histórias, lendas, proverb1os e crenças, ou ainda sob a forma de tabus. Todas estas conceç~es convergem, no entanto, na interpretação religiosa da realidade, com Deus no seu centro. A existência humana era percebida como estando em harmonia consigo própria quando estava em harmonia com a natureza e com a esfera do divino. «Um ser humano autêntico, que está unificado e em harmonia com Deus e com os espíritos, vive de acordo com os princípios desta filosofia, reconhecendo o valor do humano e não explorando os outros, dando continuidade às tradiçõ~s do passado e acrescentando-lhes um novo vigor» 442• Este era o local próp~io da ação humana, numa comunidade religiosa com urna ongem comum; quer fosse o pensamento, a moralidade ou a adoração, todos estes elementos encontravam um sentido n esta harmonia. Desta forma, o pensamento, enqu~to aspeto necessário da existência humana, aplica-se aos afncanos do mesmo modo que se aplica a qualquer outro povo do mundo.

'" Ibidem, p. 24. "'Ibidem, p. 28.

241

ROBIN HORTON: AS RELIGIÕES TRADIOONAIS AFRICANAS E A CIÊNCIA OCIDENTAL

As religiões tradicionais e 0 pensamento científico ocidental Existe, contudo, outra razão pela qual as religiões tr~dici~­ nais africanas são importantes para o estudo da filosofia africana. Há uma corrente de pensamento que apresenta o pensamento tradicional africano, tal como ele se express~ na,s religiões tradicionais, em confronto com o pensamen:o cientifico ocidental. Appiah coloca em evidência as reflexoes sobre as religiões tradicionais que tenderam a contrastar ou a comparar os seus temas com os que estão presentes no pensamento ocidental. Um bom exemplo é o de Robin Horton, que contrasta o pensamento religioso tradicional africano com o pensamento _ científico ocidental, procurando, assim, colocá-los a par~ do outro. Esta posição é defendida no ensaio African. ~raditwn~l Thought and Western Science 443 [O pensamento tradicrnnal africano e a ciência ocidental] (1967). O mesmo se aplica a Martin Hollis em Models of Man [Modelos de Home~] (1?77), e também a Martin Hollis e Steven Lukes em Ratwnality and Relativism [Racionalidade e relativismo] (1982) . De acordo. com~ posição destes últimos, o processo de pensamento afn~an~ e basicamente místico, enquanto o pensamento europeu e principalmente científico. Nas religiões tradicionais african~s, os deuses e espíritos são os agentes centrais, e não os ob1eto.s como átomos e moléculas, como é o caso no pensamento ocidental. Como resultado, e tal como Masolo assinala, esta con-

ceção sustenta que «O pensamento tradicional africano baseia as suas explicações da realidade em elementos espirituais e pessoais, por contraste com os elementos não pessoais, objetivos e experimentais da ciência ocidental» 444 • A consequência que se pretende tirar de todo este debate é de que as aptidões cognitivas ocidentais são superiores às aptidões tradicionais do pensamento (africano ou outro); um explica a realidade a partir da ciência, enquanto o outro recorre aos espíritos e à esfera espiritual para explicar os acontecimentos. As pessoas tradicionais acreditam que o poder das palavras é capaz de realizar os acontecimentos e os estados que elas representam. O cientista, pelo contrário, não acredita no poder mágico das palavras, porque chegou à conclusão de que o comportamento mágico não produz os resultados que pretende atingir 445 • A abordagem pré-lógica africana e a abordagem lógica europeia Horton, tal como Lévy-Bruhl, distingue entre sociedades pré-científicas e científicas. Embora procure fazer uma comparação que evidencie as semelhanças entre as explicações científicas do Ocidente e as explicações tradicionais religiosas de África, tal acaba apenas por contribuir para fundamentar o seu objetivo de demonstrar que o pensamento tradicional africano é basicamente não reflexivo, e, por conseguinte, não científico ou pré-lógico, enquanto o pensamento ocidental é reflexivo e, portanto, científico e lógico. Mesmo quando Horton procura estabelecer uma semelhança entre as perspetivas africana e europeia do mundo, as

"' D. MAsoLO, African Philosophy in Search of ldentity, p. 94. .., Este ensaio foi publicado em duas partes: «Part I. From Tradition to Science» e «Part II. The "Closed" and "Open" Predicaments» [Nota do tradutor].

"' Cf. ibidem, p. 133.

243 242

correspondências apontadas servem apenas para sublinhar a disparidade entre essas perspetivas, e para revelar que a expe446 riência cognitiva africana é desprovida de reflexão • Horton assume, desta forma, uma posição em tudo semelhante a Lévy-Bruhl, que distinguiu entre a mentalidade lógica e a pré-lógica; a primeira, característica do europeu, e a segunda, do africano 447 • Horton atribui esta diferença ao facto do pensamento ocidental ter por base uma Weltanschaung [visão do mundo] científica, enquanto o pensamento africano, se baseia 448 numa Weltanschaung que é meramente religiosa • E por esta razão que ele estabelece um paralelo entre o acesso ocid~ntal ao mundo por meio dos átomos, moléculas e ondas (leia-se ciência), por um lado, e o acesso africano ao ~undo por meio dos antepassados, espíritos e deuses (leia-se religião), por outro 449 • Em ambos os casos, estes são, para Horton, os elementos não observáveis que se encontram para lá as ocorrências observáveis. De acordo com este ponto de vista desenvolvido por Hor-ton, como Masolo observa: «Ü pensamento tradicional africano

.... Alguns autores têm contestado a visão de Horton de que o pensamento africano é não reflexivo. Barry Hallen, por exemplo, tem procurado mostrar que o pe~­ samento tradicional africano é criticamente reflexivo (Cf. BARRY HALLEN, «Analytic Philosophy and Traditional Thought: A Critique of Robin Horton», in P ARKER EN?Ll~H e KALUMBA KlllUJJO (coords.), African Philosophy: A C/assical Approach, Nova Jers1a, Prentice Hall, 1996, pp. 219 e ss.). Uma crítica semelhante foi também feita por Oruka na sua análise da sagacidade filosófica. . .., Cf. ROBIN HORTON, «African Traditional Thought and Western Saence - Part II. The "Closed" and "Open" Predicaments», in Africa: fournal of the International ., . . ·African Institute, vol. 37, n. 2 (1967), pp. 155-187. ... Horton procura estabelecer uma cisão entre c1enaa e religia~, ~orno _se elas fossem incompatíveis. Mas esse conflito é completamente desnecessar10, assim que se percebe que se trata apenas de duas diversas abordagens à realidade. Elas pode~ coexistir pacificamente e, na realidade, enriquecer-se uma à outra para um cresamento mútuo. "''Poder-se-ia julgar que Horton seguia neste ponto o mesmo roteiro de Sengho~. Contudo, quando se consideram as suas respetivas conclusões, verifica-se que os dois defendem posições muito afastadas.

244

baseia ~ sua explicação da realidade em elementos espirituais e pessoais, em contraste com a ciência ocidental, que assenta em elementos impessoais, objetivos e experimentais» 450. Horton estava convicto de que os africanos personalizam as forças causais da natureza, por contraste com as forças impessoais por detrás das explicações científicas do Ocidente. Horton sustenta que, segundo a perspetiva africana, as palavras «adquirem um certo controlo sobre as situações a que se · referem» 451, ou seja, produzem as coisas a que se referem. Há aqui um nítido contraste com a visão ocidental do mundo, segundo a qual o poder das palavras reside apenas nas suas funções explicativa e de previsão em relação à realidade. Esta posição de Horton foi criticada por Masolo, tendo em conta que o conceito de causalidade, que é atribuído ao poder da palavra, não é interpretado de modo uniforme em África: «Reduzir as pretensões causais acerca das palavras, que são apenas acidentais, inteiramente ao domínio das explicações causais, equivaleria, por conseguinte, a não distinguir as diferentes formas pelas quais os africanos usam o conceito "causa" em contextos distintos» 452 • Deste modo, Horton segue de novo as pisadas de Hegel, ao atribuir a toda a África o que se aplicava, talvez, a um determinado povo, e, mesmo assim, apenas em certas circunstâncias e contextos. A impossibilidade da Filosofia a partir de uma conceção mágica da realidade O pensamento tradicional africano foi, com base nesta avaliação, representado como sendo uma negação da racionali-

"" D. MAsow, African Philosophy in Seard1 of Jdentitt;, p. 94. "" R. HORTON, «African Trad itional Thought and Western Science - Part II. The "Clo:ed" and "Open" Predicaments», in o. e., vol. 37, n. 2 (1967), pp. 157. '""D. MAsow, African Philosophy in Search of Identity, p. 131.

245

dade, 0 que levou Horton a concluir que os africanos são incapazes de filosofar; isto porque a Fi~o:ofi~ se~i~ uma ciência universal que coincide com a v1sao cientifica do mundo, tal como esta se apresenta no Ocidente, realidade que não se encontra em África 453 • Fica assim patente a razão pela qual Horton se escusa a conceder algum crédito à etnofilosofia. É sua convicção de que não se pode elaborar nenhuma filosofia a partir de uma conceção mágica da realidade, porque tal sistema não distingue entre atividades mentais e elementos materiais. Da mesma forma, a etnofilosofia, devido à sua «não cientificidade», não critica suficientemente as crenças, hábitos e inclinações mágicas tradicionais africanas. O mundo africano, ao contrário do mundo ocidental da objetividade, que opera independentemente da vontade humana, é um mundo mágico, que depende não de leis naturais, mas do capricho humano. Para Horton, esta dependência do mundo africano em relação a crenças mágicas para ex- _ plicar a realidade condena-o, portanto, a ser uma sociedade «fechada», resistente à mudança, ao contrário do mundo ocidental; este, devido à fluidez das suas ideias científicas, favorece uma sociedade «aberta». Tem sido sublinhado que Horton foi forçado a mudar o seu vocabulário, de sociedade «fechada» para sociedade «acomodatícia», depois de se dar conta de como os africanos eram capazes de absorver novos instrumentos científicos no seu padrão de pensamento, sem 454 abandonarem as suas crenças tradicionais •

"' Cf. R. H oRTON, «African Traditional Thought and Western Science - Part I. From Tradition to Science», in o. e., vol. 37, n. 1 (1967), PP· 50-71. "'Citado de D. M ASOLO, African Philosophy in Search of Identity, p. 130; ver também KwAME A. APrIAH, «Old Gods, New Worlds: Some Recent Work in the Philosophy of African Traditional Religion», in Contemporan; Philosophy, 5 (1987), p. 223.

246

UMA CRÍTICA DA POSIÇÃO DE HORTON

O reducionisrno de Horton e a imutabilidade das comunidades africanas pré-coloniais Horton tem sido criticado pela sua comparação indiscriminada do pensamento tradicional africano com o pensamento . científico do Ocidente, que pertence apenas a uma pequena comunidade de cientistas. Não se pode buscar teorias sistemáticas estritas nas crenças tradicionais, porque o pensamento tradicional não se formula de acordo com linhas especulativas, nem se funda em enquadramentos especulativos aceites, como é o caso do dito mundo científico ocidental. Ainda pior é a conclusão tirada por Horton de que a ausência de um padrão de pensamento científico torna os africanos incapazes de formular uma filosofia. Talvez a falha mais grave em que Horton incorre, como foi demonstrado por Masolo, seja o seu reducionismo, que se percebe melhor quando se recorda o facto de ele ser um fervoroso positivista. Ele torna-se vítima da sua própria crítica ao reducionismo dos antropólogos, se atendermos à sua própria versão de reducionismo. Horton desacredita «tudo o que não se coaduna com o [seu] quadro concetual e esquema explicativo [explicação científica], tal como o idealismo e a religião tradicional africana ...» 455 • Masolo tem, por isso, razão, ao considerar que o absolutismo de Horton o impede de admitir a possibilidade da coexistência de diversas visões do mundo, que não têm necessariamente de estar sujeitas a uma hierarquização. Esta posição de Horton tem sido também criticada por pressupor a imutabilidade das sociedades africanas pré-coloniais. É difícil de imaginar como se pode sustentar uma tal "' D. MAsoLO, o. e., p. 133.

247

estabilidade diante de uma história tão conturbada como, por exemplo, a da África Ocidental, no séc. XVIII, ou a do conjunto do continente, no séc. XX. Todas as sociedades humanas são dinâmicas. Elas podem agarrar-se com firmeza a uma determinada visão do mundo; porém, a sua resistência à mudança não será devida a estarem encerradas sobre si mesmas, mas antes à sua capacidade de adaptação à novidade e ao dinamismo do desenvolvimento humano. Muitas comunidades africanas têm feito esta experiência. Por outro lado, poder-se-ia esperar que a comparação natural a estabelecer com as religiões tradicionais africanas seria a crença religiosa tradicional do Ocidente; contudo, a comparação é feita com o pensamento científico ocidental. Como refere \Viredu: Se se admitir que qualquer nação possui um pensamento tradicional de fundo ..., então a comparação interessante a fazer, e iluminadora do ponto de vista antropológico, seria a de verificar de que diferentes formas a crença nos espíritos é empregue por diversos povos na tentativa de obter uma visão coerente do mundo456•

O pensamento básico não científico tradicional não é específico de África As características básicas não científicas do pensamento tradicional africano são, em geral, comuns a todos os pensamentos tradicionais, incluindo o ocidental, e não só ao africano. O que deveria ser sublinhado são «as peculiaridades autênticas do pensamento tradicional africano, em contraste, por exemplo, com o pensamento tradicional ocidental» 457, e não com o pensamento científico ocidental. Appiah elaborou a sua crítica na obra ln My Father's House: Africa in the Philosophy of Culture [Na casa de meu pai: a África na filosofia da

c~lt~aJ_ (1982). Ele sustenta que o paralelo entre a religião e a c1enc1a e enganador, porque a religião tem mudado muito no Oci~ente mo~erno. Tal mudança tem sido patente na vida dos mtelec~ais, que s~ tem progressivamente voltado para a contemplaçao, concebida corno relação espiritual com Deus· como resultado, há uma diferença substancial entre a vid' religiosa dos intelectuais no mundo industrializado e a da cu1~ 458 ~ura tradici~nal • P.ara lá deste aspeto, dado que as relações · mterpessoais no Ocidente se têm tornado menos cerimoniosas, o mesn:o tem vind.o a ~uced~r com os atos religiosos privados. Por fim, a orgaruzaçao social da investigação é, nas culturas modernas, radicalmente diversa do que foi nos tempos antigos 459• Uma outra crítica tem sido apontada à dicotomia entre siste.mas ~~pensamento abertos e fechados, com o primeiro caso a identificar-se com o pensamento científico, e 0 segundo com o pensamento religioso tradicional. A investigação de autores com? _Barry Hallen (Robin Horton on Critical Philosophy and Traditwnal Thought [A posição de Robin Horton acerca da filos?fia crítica e do pensamento tradicional] -1977) tem evidenciado que algumas religiões tradicionais africanas tinham conhecimento de outras tradições; prova-se, portanto, que eran:i capazes de uma apreciação crítica da sua tradição. A partu desta posição, Horton passou mais tarde a falar da natureza acomodatícia da crença tradicional, em vez da sua natureza fechada. Assim sendo, considera que a diferença entre a religião tradicional e a ciência não é relativa às estratégias cognitivas individuais, mas às sociais 46º.

'" Cf. K

A. APPIAH,

ln My Father's House: Africa in the Plzilosophy of Culture

Londres, Methuen, 1992, p. 186.

"' K. WIREDU, Philosophy and an African Culture, p. 39. "'Ibidem. 248

'

""Io., «African Traditional Religion», in Routledge EnciJclopaedia of Philosophy, vol. 1, p. 119.

""" Cf. ibidem.

249

Masolo observa, por seu lado, que o pensar:nento trad!cion al na- 0 é formulado segundo linhas especulativas, nem e um . conhecimento especializado, mas corresponde às crenças srmples das pessoas comuns; por conseguint:, não podem s:r usadas premissas especulativas para o avaliar. Julgar :ste sistema na base do que Horton e os seus apoiantes acreditam ser 0 sistema superior, equivale, tal como tem sido apontado, a 461 um reducionism0 •

As RELIGIÕES TRADICIONAIS EM DIÁLOGO COM A CULTURA CONTEMPORÂNEA: RUMO A UMA FILOSOFIA CRISTÃ AFRICANA

Práticas religiosa~ em transformação e o seu impacto na vida intelectual Esta discussão permite evidenciar o lugar central ocupado pela religião na vida africana, tanto a partir da perspetiva de Mbiti e Parrinder, como da de Horton. No entanto, devemos também admitir que, se a religião desempenha um papel tão essencial na totalidade da vida e na estrutura social da maioria dos povos africanos, então uma mudança na orientaçã? religiosa dessa sociedade terá efeito_s express~vos na com~ru­ dade e nos indivíduos que a compoem, e ate mesmo a rnvel intelectual. Uma sociedade ou cultura fechadas estão condenadas a desaparecer. Há um certo dinamismo inerente ao desenvolvimento humano, que afeta a cultura e provoca mudanças, para o bem e para o mal. É inegável ~ue a,s cr.enças e práticas religiosas sofreram mudanças assmalave,1s. em África, especialmente depois da segunda metade do ultimo

"' O . D. MAsOLO, African Philosophy in Search of ldentity, p. 133.

250

século. Referindo-se às religiões da África Ocidental, Parrinder observava, em meados do séc. XX: Parece, contudo, improvável que as antigas religiões tradicionais da África Ocidental possam sobreviver, pelo menos nas suas formas atuais. Elas estão demasiado ligadas a um enraizamento local, e dificilmente conseguiriam desenvolver-se a ponto de se constituírem em religiões universais, ou até mesmo intertribais. E elas parecem estar cada vez mais deslocadas nas cidades modernas e na sociedade industrial "'2•

Além disso, a velocidade a que a sociedade moderna se tornou intercultural dificilmente poderia permitir que uma dada cultura pudesse manter a sua pureza «não adulterada», por assim dizer. Numa sociedade em que não existe uma nítida dicotomia entre o sagrado e o profano, há que admitir que muitas outras áreas serão afetadas, assim que a religião dessa comunidade enfrente desafios que impliquem mudanças radicais. Esta evolução suscitará necessariamente determinados receios, tais como o da departamentalização da sociedade e o da separação entre sagrado e profano. Far-se-á sentir o medo de que, como consequência resultante, a influência da religião na sociedade seja seriamente posta em causa. Estes receios podem ser justificados e devem ser abordados em ambas as frentes: da religião e da Filosofia. Mas é necessário que também se reconheça o potencial de crescimento inerente a tais mudanças. O dinamismo da cultura e o progresso da filosofia africana A filosofia que se desenvolve num tal ambiente merece particular atenção. Ocorrerá também fazer uma revisão de

"" G. PARRINDER, o. e., p. 194.

251

posições filosóficas, uma vez que o desenvolvimento da cultura não pode ignorar o desenvolvimento do pensamento que a move e modela. Qual será então o caminho a seguir? Como é que poderemos estar à altura da filosofia africana, de modo a que ela acompanhe, simultaneamente, o ritmo da sociedade contemporânea? Poderá a filosofia africana insistir em dialogar apenas com as religiões tradicionais africanas, ignorando totalmente a presença de outras religiões, como o Cristianismo e o Islão, com as quais entra em contacto? Uma tal orientação, como já o dissemos, é uma via que a filosofia africana não pode escolher trilhar, pois não corresponde aos interesses da Filosofia, nem às aspirações dos povos africanos. Tanto o Cristianismo como o Islão são elern~ntos essenciais da cultura africana contemporânea, e a filosofia africana, na variedade das suas manifestações, tem de entrar em diálogo com eles, se quiser manter a sua relevância. o pensamento filosófico africano e as religiões africanas têm uma relação tão íntima, que esta não pode ser abandonada no momento atual,apenas porque a religiosidade tradicional africana está em declínio. O dinamismo da cultura permite que a pessoa africana pratique a sua religiosidade de um modo cristão ou islâmico, tomando-os como exemplo da cultura contemporânea. Tal como o pensamento e a religião andaram de mãos dadas na sociedade tradicional, esse elemento positivo poderia ser mantido na sociedade contemporânea, para que os cristãos ou muçulmanos africanos possam ainda integrar o seu pensamento na sua religiosidade, e viver vidas autenticamente cristãs ou islâmicas africanas. É por isso que julgamos que uma filosofia cristã africana ou uma filosofia islâmica africana poderão constituir exemplos de respostas a esta aspiração. Iremos considerar agora a filosofia cristã africana; ou seja, a forma como a mensagem cristã tem entrado em diálogo com o pensamento dos povos locais do continente, na tentativa de apresentar a sua visão do mundo. 252

CAPÍTULO VI

Filosofia cristã africana

À primeira vista, urna filosofia cristã africana é uma estra-

1:11ª combinação. Vimos como a filosofia africana contempo-

~a~~a esteve envolta em controvérsia, pelo menos nos seus m1c1os. Por outro lado, a «filosofia cristã» já representa, em si mesma, um problema suficientemente grande. Procurar juntar as duas parece constituir, desde logo, uma dificuldade insup:r~vel. Com.o se isso não bastasse, há também o aspeto teol~g1~0; ou.s~3a, ? problema de determinar o que seja um auten_tico Cnstiamsmo africano, ou, mais precisamente, a questao da teologia cristã africana. Não há dúvida de que muito progresso se tem registado no campo da teologia cristã africana, talvez muito maior do que aquele que tem sido alcançado no da filosofia africana. É claro que ainda perduram questões relacionadas com a «africanidade» da teologia cristã africana, e sobre até que ponto ela pode ser inculturada. De facto, a nossa reflexão não pode abordar todos estes assuntos em detalhe, e teremos de admitir algumas pressuposições. Do que fica atrás dito, já foi afirmada a existência da filosofia africana, e também daremos como estabelecida a existênci~ da teologia africana. Na verdade, tem sido repetidamente afirmado que, hoje, o problema da teologia africana reside m~is n~s ~o~os como pode ser elaborada, do que na sua pró463 pna ex1stencia • Esta atitude é necessária se quisermos pro.., Cf. BÉNÉZET Buio e ) UVÉNAL l LUNCA M UYA (coords.), Teologia Africana no Século XXI - Algumas Figuras, vol. 2, Prior Velho, Paulinas, 2012, p. 178.

253

curar estabelecer um diálogo entre a filosofia africana e o Cristianismo em África. É claro que poderemos ainda considerar a situação (hip.otética) de colocar a filosofia africana em contacto ~om um cristianismo que não tem necessariamente de ser africano. Nesse caso a africanidade da filosofia cristã, que se espera obter, seri; 0 contributo que a filosofia africana aporta no diálogo com um tal cristianismo. A possibilidade de um tal cenário é extremamente improvável. Consideramos ser crucial o papel da teologia cristã africana para qualquer discurso frutuoso em vista de uma filosofia cristã africana. Tal como é citado por Bujo e Muya: «, .. A teologia africana deve ser compreendi?ª no contexto da vida e da cultura africanas, e dQ esforço criador dos povos de África, para constituir um novo futuro, dife464 rente do passado colonial e do presente neocolonial» • Esta é uma abordagem mais realista à teologia africana e que refletirá as aspirações concretas e genuínas do Cristianismo africano. É também aquela que promete um diálogo mais frutuoso com a Filosofia, porque pressagia resultados mais significativos para uma filosofia cristã africana. Um Cristianismo alheio da vida, cultura, lutas, problemas, necessidades, alegrias e sofrimentos do povo africano não faz sentido, e é inútil ao continente africano. Por conseguinte, tal como uma teologia cristã africana deve ser contextual, o mesmo se deve dizer de uma autêntica filosofia cristã africana, se quiser ter relevância; caso contrário, não terá nada a acrescentar à experiência humana africana na sua busca da verdade. O desenvolvimento da filosofia cristã africana contemporânea tem muito a aprender, neste ponto, das suas predecessoras no continente. Propomos refletir nest.e assunto, revisitando aquelas que consideramos serem as on-

gens legítimas da filosofia cristã em África, e evidenciando o seu desenvolvimento até ao presente.

0

DESENVOLVIMENTO DA FILOSOFIA CRISTÃ AFRICANA

O problema da filosofia cristã desenvolve-se em torno da relação entre a doutrina cristã e o pensamento filosófico, ou • entre a fé e a razão. Desde a antiguidade que a história da filosofia tem sido atormentada pela controvérsia relativa à possibilidade de uma filosofia cristã, seja quanto à sua origem e desenvolvimento, seja quanto ao seu conteúdo. Esta dificuldade manifesta-se na definição desta filosofia: tanto quanto a defini-la a partir da perspetiva da sua origem, ou seja, do seu encontro inicial com o Cristianismo, corno da perspetiva do seu telas, ou seja, o facto de que, com o Cristianismo, a Filosofia recebeu um novo ímpeto para orientar o projeto humano não apenas para a obtenção de urna mera eudaimonia (felicidade), mas da beatituda (felicidade eterna). De acordo com esta última finalidade, o Cristianismo deu à Filosofia um telas sobrenatural, distinto do que lhe fora dado, por exemplo, pela tradição grega. Qualquer discurso relativo à possibilidade de urna filosofia cristã africana tem de ter tudo isto em consideração. Será que se pode razoavelmente esperar que um tal empreendimento tenha sucesso, com urna filosofia africana enredada no labirinto da definição de si própria, a par d e uma filosofia cristã problemática? Que compreensão da filosofia cristã deve reter a filosofia africana? A que considera a sua origem ou a sua finalidade? E, o que é talvez mais importante, que entendimento da filosofia cristã africana haveria de promover a causa da filosofia africana e a das aspirações africanas para, ao mesmo tempo, permanecer fiel à conceção cristã da vida, em geral, e da vida humana, em particular? Contudo,

"" Ibidem, pp. 276-277.

255 254

-- -- ~

uma tal apreciação já considera como estabelecida a realidade da filosofia cristã africana. O problema e o desenvolvimento da filosofia cristã africana podem e devem ser alargados até aos tempos antigos. O nosso próprio relato do desenvolvimento da história da filosofia africana deu testemunho da existência de pensadores africanos que estiveram primeiro imersos no mundo, antes de se converterem ao Cristianismo. Após a sua conversão, orientaram totalmente a sua vida para o Cristianismo, mas, mesmo assim, trouxeram com eles alguns elementos da sua vida passada; a formação filosófica era uma parte importante dessa existência. Além disso, com a fé cristã, recentemente encontrada, tinham de responder aos problemas do contexto em que viviam, e que colocavam desafios à sua própria fé, e à fé dos outros fiéis cristãos. Ao fazê-lo, encontraram um instrumento já disponível na sua formação e relacionamentos filosóficos. Como é que a sua fé cristã haveria de se adaptar ao seu contexto africano? Contudo, esse contexto não incluía apenas elementos africanos, mas também romanos e gregos, e mesmo fenícios. Seria de esperar que a sua resposta filosófica africana fosse também romana, ou grega, ou fenícia. A filosofia cristã africana na Escola alexandrina Na sua History of the Christian Church [História da Igreja cristã], Schaff declara: «Em África, o Cristianismo adquiriu o seu primeiro ponto de apoio firme, no Egito, e provavelmente tão cedo quanto a era apostólica» 46.5. Para lá desta afirmação, deve ser também relembrado que o Egito está absorto em história sagrada desde os tempos mais antigos. O Judaísmo já se tinha encontrado face a face com as filo-

sofias grega e romana, muito antes de o Cristianismo o fazer. A cidade de Alexandria, núcleo de excelência académica, encontrava-se no centro desta convergência de culturas. E foi nesta cidade que prosperou uma escola teológica que haveria de exercer enorme influência na vida da Igreja e do mundo literário, durante muito tempo. Em geral, pode dizer-se que os primitivos escritores e pensadores cristãos tinham razões para se avizinharem com hesitação e cautela da filosofia grega. Porém, e tal como vimos antes, existiram casos particulares que promoveram uma relação saudável entre as duas. O meio religioso e intelectual alexandrino impulsionou, de um modo geral, a relação mais próxima entre a Teologia e a Filosofia. Clemente de Alexandria e Orígenes foram os principais proponentes desta escola. Eles podem ser considerados como defensores do pensamento cristão africano na Escola alexandrina. Estes pensadores não eram filósofos, em sentido estrito, mas colocavam a Filosofia à disposição da Teologia. Apressaram-se a ver na filosofia grega uma proclamação inaugural da Boa-Nova. A Filosofia foi, por isso, considerada cristã, no sentido em que não podia ser ela própria, caso se desligasse da fé 466 • A verdade da Filosofia consistia, para este modo de ver, na aceitação da verdade teológica - a verdade sobre Deus. Todos os temas filosóficos tinham de ser interpretados à luz do divino: as questões antropológicas, epistemológicas, psicológicas, cosmológicas, etc. Escusado será dizer que, no seu zelo de harmonizar a Filosofia com a fé, eles cometeram, com honestidade, alguns erros, mas os resultados alcançados superaram-nos em muito. O cristianismo alexandrino-egípcio foi cultivado num ambiente que era claramente filosófico; de facto, há indícios

Cf. MAURICE NÉNDOCELLE, Is there 11 Christian Philosophy, Londres, Burns & Oates, 1960, pp. 39-43. 466

'" PH. SCHAFF, o. e., p. 24.

256

257

... tam P ara uma variante do Cristianismo caracteri, , zada por uma ênfase no conhecimento, em v~z da fe, o que: uma indicação de que esta nem sempre dommou todas as si467 tuações de diálogo com a Filosofia • • Orígenes foi educado nas filosofi.as gr~co~romanas, e sena de esperar que mantivesse alguma influencia da parte delas. Está também patente, em alguns dos seus diálogos, que p~r vezes enfrentou os filósofos, quando julgou que as suas posi- s punham em causa a autenticidade da doutrina cristã; por çoe h ' b. ultu exemplo, no que dizia respeito aos seus tabus, a itos e c : ras inaceitáveis, tal como o fez com Celso. Lemos que «ele a~e gracejou acerca da sua própria cultura, a~ a~rmar c?mo sena contrário à filosofia que um filósofo eg1pc10 continuasse a tremer de medo ao escutar uma descarga de vento vinda do

~ ~~

11

corpo » 468. _ . Vemos que tanto Clemente como Orígenes n~o ~e eximem de mostrar interesse pela sua própria cultura egipcia. Embora ele próprio não fosse egípcio, Clemente ~dentif!cav~-se com? residente do Egito alexandrino, influenciado n~o so pela r~h­ gião egípcia, mas também pelo judaísmo helemsta e pela filosofia greco-romana. Mas deve ser sublinha.do que «Clemente de Alexandria e Orígenes desejavam ans10samente colocar em relevo 0 conteúdo metafísico do Evangelho e provar qu~ a fé cristã era a única filosofia verdadeira, muito acima dos sis, . 469 temas he1emsticos ...» . . Encontramos nos Padres cristãos greco-africanos um cnstianismo que não se podia justificar a si .mesn:io se.m ~ fil~sofia e 0 método filosófico 470 • Que tipo de filosofia cnsta afncana podemos deduzir daqui? Parece poder-se concluir que a filoli

"" Cf. N. HErsEY, o. e., p. 16. "' Ibidem, p. 26. Ver ainda ORfCENES, Contra Celso, 4, 38-39; 5, 35. ""' L. MATIEI, Sapientia Christiana ... , p. 165. "" Ibidem, p. 166.

sofia cristã, na versão que surgiu na Escola alexandrina, procura trazer harmonia a um ambiente multicultural - judeu, grego, egípcio. Este é o ambiente do qual brotou a filosofia egípcia cristã; era egípcia, em virtude do seu contexto egípcio. Alexandria era uma cidade onde confluíam diversas culturas, e foi isso que abriu o caminho para a formulação de uma filosofia egípcio-cristã; uma filosofia que respondia não apenas a um simples contexto egípcio, mas a um enquadramento egíp. cio em diálogo com outras culturas, particularmente a judaica, a grega e a romana. Este fenómeno da filosofia cristã egípcia torna-se ainda mais complexo quando se reconhece que «OS cristãos egípcios são os descendentes dos egípcios faraónicos, mas muito misturados com sangue negro e árabe» 471 • Era esta a área de atuação da filosofia egípcia, e era isto que definia a filosofia africana da época; quando ela entrou em contacto com o Cristianismo, transformou-se numa filosofia cristã egípcia. Acontece que esta filosofia egípcia, ou antes, a filosofia africana em questão, era também grega, romana e judaica. As lições a serem tiradas a partir daqui, pela África contemporânea, são imensas. A filosofia africana, mesmo n a época contemporânea, não tem de ser necessariamente definida apenas por meio de um «regresso às raízes», pois, com frequência, será também definida pelo seu encontro com outras culturas e correntes de pensamento. A filosofia cristã africana na Escola cartaginesa O Cristianismo na Igreja do Norte de África era intensamente latinizado. Aqui havia também um centro, talvez semelhante ao de Alexandria: Cartago. Tal como a primeira, esta

471

PH. SGtAFF, o. e.,

p. 25. 259

258

- - - - - - - - - - -- - - - - -- - -

-

--

-

-

--

era uma cidade metropolitana, um ponto de encontro de muitas culturas - africana, fenícia, romana, e mesmo grega. Os principais atores foram Tertuliano, Cipriano, Minúcia Félix e, finalmente, Santo Agostinho. Afirmámos anteriormente que, nos inícios, a relação entre o Cristianismo e a Filosofia foi de suspeição. Se esta atitude foi manifesta no Leste de África, representado por Alexandria, ela era ainda mais nítida no Ocidente, representado por Cartago. Antes de Santo Agostinho, o diálogo entre o Cristianismo e a Filosofia pode ser descrito como tudo, menos amistoso. Tertuliano não se eximiu de amaldiçoar Aristóteles, e tinha o Estoicismo ou o Platonismo em pouca conta 472• A influência do cristianismo africano latino sobre a Filosofia, e viçe-versa, deve ser entendido, deste modo, à luz de um Cristianismo