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Portugueze Pages 254 Year 2011
Severino E. Ngoenha José P. Castiano
PENSAMENTO ENGAJADO Ensaios sobre Filosofia Africana, Educação e Cultura Política
Editora EDUCAR Centro de Estudos Moçambicanos e Etnociências (CEMEC) Universidade Pedagógica MAPUTO, JANEIRO 2011
Ficha técnica Título: PENSAMENTO ENGAJADO S ENSAIOS SOBRE FILOSOFIA AFRICANA, EDUCAÇÃO E CULTURA POLÍTICA Autores: Severino E. Ngoenha & José P. Castiano Revisão: Eduardo F. Buanaissa Foto da Capa: José P. Castiano Capa: José P. Castiano & Sérgio Zimba Maquetização: Berta Maria Preciosa Samuel Impressão: DINAME Tiragem: 1000 exemplares Nº de Registo:6674/RLINLD/2010 Editora: Editora EDUCAR, Universidade Pedagógica Publicação: CEMEC, Centro de Estudos Moçambicanos e Etnociências, Universidade Pedagógica Maputo, Janeiro 2011
Índice Nota Introdutória ............................................................................................. Introdução ........................................................................................................ José P. Castiano e Severino E. Ngoenha
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Por um Pensamento Engajado......................................................................... Severino Ngoenha ............................................................................................ O “Espírito” da Democracia ........................................................................... José P. Castiano ................................................................................................ Ubuntu: Novo Modelo de Justiça Glocal? ...................................................... José P. Castiano
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Filosofia como Engajamento contra os Mitos ................................................ 85 Severino Ngoenha ............................................................................................ Engajamento por uma Educação Glocal ......................................................... 97 José P. Castiano ................................................................................................ A Actualidade de Junod ................................................................................... 110 Severino Ngoenha ............................................................................................ Educação e Pobreza ......................................................................................... 126 José P. Castiano ................................................................................................ Filosofia, Ensino e Intersubjectivacção ........................................................... 138 José P. Castiano Mudança Paradigmática na Educação............................................................. José P. Castiano Vigilância Epistemológica através da Educação ............................................. José P. Castiano ................................................................................................ Concepções Africanas do Ser Humano ........................................................... Severino Ngoenha ............................................................................................ Ensino da Filosofia e Povos Africanos ............................................................ Severino Ngoenha ............................................................................................ O Diálogo entre as Culturas através da Educação .......................................... José P. Castiano
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Introdução
Comecemos pela imagem na capa deste livro: trata-se de uma árvore com cerca de 250 anos de idade, 42 metros de altura, cujo nome local é Mbaua e o científico é khya myasica. A árvore encontra-se a aproximadamente 80 Km de Quelimane, na localidade de Umbauane, Província da Zambézia em Moçambique. Por um mero acaso ela ainda está «viva» e frondosa: esteve prestes a ser abatida em troca de apenas 100 dólares americanos com os quais um «empreendedor» estrangeiro queria comprá-la de um camponês que tinha a sua casa por baixo dela. Esta árvore serve de sombra e «sala de jantar e de estar» ao camponês. O empreendedor pretendia abater a árvore por causa da madeira. A sua intenção era de a revender na sua pátria longínqua, algures na Ásia. A vida desta árvore foi salva por um cidadão moçambicano engajado que ofereceu ao camponês o equivalente aos 100 dólares... como seu salário mensal, desde que este não a vendesse e cuidasse dela, como um «bom selvagem!». Só assim é que podemos hoje ainda ver esta árvore frondosa a olhar-nos através dos séculos comparando-se à figura literária Azaro, o rapaz espírito, na novela do escritor nigeriano Ben Okri, The Famished Road. Azaro, um menino que atravessa séculos da História da Nigéria «conversando» tanto com os vivos quanto com os espíritos dos parentes e outros já mortos, sem crescer e, por isso, a colocar as mesmas perguntas ingénuas e infantis em todas as épocas; ele indaga sobre o sentido dos episódios históricos que vai assistindo duma forma que embaraça os adultos vivos e mortos. Esta é uma imagem similar ao Menino da Trompeta do prémio Nobel da literatura, o alemão Günter Grass. Pelo que a acção deste cidadão, que salvou a árvore, representa, decidimos dedicar o que este acto simboliza de patriotismo e africanismo, o Pensamento Engajado.
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Os artigos contidos neste livro foram escritos em circunstâncias diferentes. A primeira: a maior parte deles foi escrita, por cada um de nós separadamente, em momentos diferentes para responder a diversas solicitações também do momento, algumas imediatas e outras que exigiram um pouco mais de reflexão; isto explica uma aparente dispersão dos temas que são abordados nestes artigos. A segunda circunstância é talvez a mais importante: no momento em que escrevemos os diferentes artigos, encontravamo-nos a viver em países totalmente opostos em termos de desenvolvimento, de consequência, as nossas preocupações eram diferentes, pois estavam ligadas aos contextos científicos e culturais em que nos encontrávamos. Uma boa parte de artigos foi escrita na Suíça e a outra em Moçambique. Naturalmente que somente este facto pode ter concorrido para o desenvolvimento temático diferenciado. E, o que ainda poderia parecer pior, não houve troca de pontos de vistas e nem conhecimento sobre a actividade intelectual que íamos desenvolvendo. Entretanto, estas diferenças acabaram sendo insignificantes quando decidimos «juntar» os artigos nesta obra. À medida que cada um de nós foi lendo os textos aqui contidos, fomos notando, para nossa surpresa, da existência de temas concêntricos. Em primeiro lugar resultou que os temas «Moçambique» e «África» estiveram sempre no centro das nossas lucubrações, umas estritamente numa perspectiva filosófica, outras de carácter mais socio-antropológico: é difícil estabelecer fronteiras disciplinares quando o pensamento está engajado por preocupações patrióticas, porque é disso que se trata. Aliás, um dos títulos que veio à ribalta ainda na gestação deste livro era mesmo «filomoçambicando» porque se tratava de olhar primeiro para o nosso país, depois para a África, aplicando uma perspectiva filosófica. A perspectiva particular que a filosofia teima em cultivar é, a nosso ver, a do engajamento numa reflexão sobre a condição humana, neste caso concreto, sobre a condição humana dos moçambicanos e dos africanos na história. Moçambique e África são, portanto, o objecto comum das reflexões e o portador de uma história heróica na luta pela sua liberdade. Tornava-se urgente e imperioso compreender a fundamentação, o substrato, a génese do que podemos considerar o «fazer história» do conjunto de homens e mulheres que habitaram, habitam e vão habitar Moçambique e África.
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Cedo constatamos que a condição humana, com que os Moçambicanos e os africanos entram na história dita universal, é a de escravos, colonizados e, hoje, globalizados; enfim, como objectos e não sujeitos e fautores da sua história. O «nosso» pensar filosófico engajado por Moçambique e pela África empurrava-nos para a emergência (nos seus dois sentidos: de «emergir» e de «urgência») de duvidar desta história e procurar os fundamentos não de uma história e condição humana objectivada pelos comerciantes de escravos, pelos colonizadores e, hoje, pelo globalizador, mas sim pelo sujeito epistémico moçambicano e africano. E isto significa, sobretudo, pormo-nos a nós mesmos as seguintes questões: Existe algum substrato que possa justificar o conjunto de acções dos moçambicanos e dos africanos? Esse conjunto de homens ou mulheres, intelectuais ou camponeses, pedreiros ou arquitectos, macondes, tutsis, chonas, malinkés ou qualquer que seja a dita «etnia» que, no passado, se levantaram para resistir às tentativas de subjugação, de subalternização, de escravatura, de colonização, de opressão perpetradas pelos colonialismos, teriam eles um sonho comum que justificasse serem fautores da sua história colectiva? E os que decidiram abandonar os seus estudos, a comodidade das suas famílias, o emprego que custara a ter, o sonho de constituir uma família na normalidade, para se entregarem a uma luta com armas ou simplesmente com base em protestos, nas ruas, nas igrejas, nas machambas, nas fábricas, nas minas e em todo o lugar para libertarem a «terra e os homens» moçambicanos e africanos? Teriam eles um sonho comum que estivesse por trás desta «união na diferença»? Aliás, somente um sonho muito mais profundo poderia justificar tal empreendimento, as Independências. Conquistadas as Independências, o que justifica os anos de escuridão em que, como africanos, não nos entendemos mesmo usando o mesmo idioma e linguagem? Porquê uma parte de nós ainda pegou em armas e foi «às matas» largando o doce sabor das Independências, fazendo alianças estranhas? Como justificavam estes africanos as suas acções? E hoje? Com a paz poderíamos dizer que já não há razões para continuar a luta, para o combate: o que nos move, ainda como países e continente, para as campanhas eleitorais esgotantes e onerosas insistindo em candidatar-nos ou em formar filas para escolher os «nossos representantes»? O que nos leva a lutar todos os dias para apanhar chapas e
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combes, todos os anos a lutar por um lugar na escola, o que motiva os «5 de Outubros» nas ruas do continente, o que leva a alguns de nós mobilizaremse, alguns cidadãos das diferentes Beiras a «resistir» formando cordões de vigilância em volta da «coisa pública»? Como explicar os insultos mútuos e os intermináveis debates nos Parlamentos em torno das diferentes leis? O que motiva as pessoas a irem à rua protestar contra mortes macabras de jornalistas – Carlos Cardoso – economistas – Siba-Siba? Haverá um sonho comum, por trás dos vários sonhos particulares, que teima em atravessar épocas inteiras da nossa história, que teima em abrir brechas nas fronteiras étnicas e geográficas, profissionais, de idade, etc. num sinal de unidade na diversidade? De facto, só pode haver um sonho dos sonhos, um motivo dos motivos, um fim dos fins que sempre que este sonho, este motivo ou fim, alguém ou alguns ousem pô-los em perigo, levantamo-nos todos e protestamos pegando naquilo que está ao nosso alcance, e o que as circunstâncias históricas particulares podem muito bem justificar, como arma de protesto: uma azagaia, uma AKM, um papel e lápis, um martelo, um pneu, uma proposta parlamentar. Este fim é a LIBERDADE. Mas trata-se, neste caso, de uma forma de Liberdade muito específica: A Liberdade de continuar a sonhar com mais liberdades, a Liberdade de continuarmos a lutar por este sonho. A consciência deste sonho, da sua importância, levou a que um dos autores escrevesse no livro Os Tempos da Filosofia: «Se existe um substrato filosófico que está na origem axiológica de Moçambique – e da África – é sem dúvida a busca da Liberdade». Por isso, o fim de todo o pensamento «filomoçambicano» (parafraseando o título inicial deste livro que ficou pelo caminho) e africano é a Liberdade. Isto quer dizer que, em nosso entender, o pensamento deve ter uma causa, deve engajar-se por uma causa; o que justifica uma busca filosófica sobre Moçambique e sobre a África é a Liberdade; o que justifica uma acção como sendo justa, é a medida em que esta mesma acção concorrer para aproximar-nos cada vez mais deste fim, é o seu engajamento pela Liberdade. Assim, a filosofia africana como uma das formas de pensamento, deve continuar a buscar respostas novas e contextualizadas à velha questão platónica do «melhor governo», em fundamentar e lutar por uma melhor sociedade no futuro. Este – a busca da Liberdade – é um tema
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concêntrico numa boa parte dos artigos contidos neste livro. É um dos eixos que escolhemos para o nosso pensamento e engajamento. Um outro eixo temático subjacente aos artigos apresentados neste livro é a busca de novas formas de INTERSUBJECTIVACÇÃO. Isto é, um projecto de «deconstrução» e de «construção» epistémicas da ideia de África. Enquanto uma deconstrução epistémica, o projecto de intersubjectivacção comporta duas partes: trata-se de deconstruir, por um lado, as consequências que a implantação duma modernidade não negociada em África comporta como riscos para todo o continente: Continuaremos a olhar para o Ocidente como a fonte eterna do nosso modelo de desenvolvimento donde pretendemos copiar as suas instituições, a sua moda, os seus valores, os seus modelos democráticos, etc.? Substituímos Deus pelo Ocidente, quais camelos nitzscheanos que se rendem perante os valores decadentes de um Ocidente moribundo e desorientado? Aceitaremos simplesmente ser eternos escravos/ colonizados/globalizados de forma moderna? Por outro lado, a deconstrução pretende revoltar-se contra um discurso que procura nas tradições milenares moçambicanas/africanas uma panaceia, uma caixinha mágica, donde podemos retirar soluções para os problemas que África moderna enfrenta; queremos deconstruir um discurso que busca o nosso futuro, como nação, deliberadamente no passado e, sobretudo, chamar a atenção para o facto de que o passado e as tradições milenares, interessam ao pensamento filosófico engajado, somente na medida que este passado oferece soluções válidas para afastarmos os obstáculos à nossa Liberdade de continuar a sonhar com a própria Liberdade e a de agir livremente em função deste sonho milenar. A intersubjectivacção é, ao mesmo tempo e como dissemos, um projecto de construção epistémica no contexto africano; a construção integra duas partes fundamentais; a primeira: procura dizer adeus ao paradigma da dicotomia na análise dos fenómenos sociais, políticos, culturais e económicos de África/Moçambique; ou seja, hoje, não faz muito sentido olhar para a África como este continente dual onde, por um lado temos a tradição que nos puxa para trás e, num outro canto, a modernidade esperando pacientemente que a tradição se decida a avançar, ambos numa luta conflituosa eterna, de vida ou morte. Pretendemos dizer que esta forma (dicotómica) de olhar para o Ser
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africano e as suas manifestações já não nos satisfaz. É preciso inventarmos novos conceitos que resumam o tempo filosófico da África de hoje. É uma África que não pode se deter nesta luta interminável entre o moderno e a tradição e gastar as suas energias nesta luta. A «crise do muntu» (EboussiBoulaga) deve ser ultrapassada para podermos projectar este mesmo muntu de uma forma mais libertária porque amarrado pelo deus-moderno e pelo demiurgo-tradição num debate interminável; muitas tradições já se modernizaram e feições trazidas pela modernidade emigraram para o lado da tradição. Todavia, um segundo momento da construção da intersubjectivacção é a necessidade de fundamentar o diálogo necessário entre os pensadores/ filósofos profissionais e os pensadores/filósofos não-profissionais, ditos «sábios» (Odera Oruka). A academia deve reencontrar-se com as culturas num exercício em que não são as colectividades unanimizadas, mas sim sujeitos críticos e reflexivos das diversas culturas – entendidas não somente no seu sentido antropológico (veja o artigo O «Espírito» da Democracia inserido neste livro) - que entram em debate. Até poderíamos dizer que é um diálogo de «sujeitos hermeneutas e críticos» do interior de cada grupo cultural de que os mosaicos africanos são compostos. Desta feita, temos a veleidade de entender por diálogo intercultural, não somente como um diálogo limitado à interpretação comum na literatura filosófica moderna (no sentido vertical de Norte e Sul), como as chamadas «epistemologias do sul» parece pretenderem significar, mas, para nós, tornase inadiável cultivar o sentido horizontal do dito diálogo intercultural, isto é, entre as culturas africanas. Convém chamar atenção que, para nós, o termo «cultura», embora faça referência à dimensão antropológica do seu uso, porém não se esgota aí; cultura para nós é empregue na sua acepção filosófica de «segunda natureza» humana. Neste sentido do termo, a cultura, embora contendo elementos de cultura material e valores tradicionais, tem a pretensão de ultrapassar estes elementos do «passado» ao incluir as concepções e projecções societais da Africa moderna. Assim, o elemento-chave, o átomo, o centro para este diálogo, já não seriam as ditas culturas no sentido antropológico, mas sim os sujeitos epistémicos destas «culturas». São os sujeitos e não as culturas que podem dialogar. É esta a razão de termos optado pelo termo «intersubjectivacção» no nosso projecto filosófico. Se nos é permitido inventar um termo, podemos chamar
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de «inter-sujeito» ao sujeito moçambicano e africano que está engajado em construir espaços da intersubjectivacção. Repare-se que decidimos pelo termo «intersubjectivacção» e não, como seria de esperar, «intersubjectividade». Assim procedemos porque entendemos que, já agora, os inter-sujeitos estão em «acção», que para o tipo de praxis filosófica com a qual estamos comprometidos, a acção é fulcral. E a acção do filósofo deverá buscar e fundamentar novos espaços que podem ser criados para o exercício das liberdades individuais e colectivas. Embora procurando encontrar outros espaços onde o diálogo entre os inter-sujeitos possa ser possível, não é, no entanto, por acaso que o espaço de intersubjectivacção privilegiado e por excelência, na maior parte dos artigos que este livro contém, seja a educação. A educação é o espaço, quanto a nós, onde a coexistência, já agora, entre o discurso moderno e o discurso tradicional, poderão entrar num debate argumentativo, sem contrições à liberdade de expor os sonhos particulares, e sobre problemas que ambas, porque contemporâneas, enfrentam. Enfim, digamos que vemos a filosofia da intersubectivacção não somente como um complemento necessário à filosofia que tem a Liberdade como paradigma (paradigma libertário), mas sim e sobretudo como condição fundamental para a realização e o exercício das liberdades. No fundo, a teleologia da reflexão filosófica que coloca a Liberdade como paradigma axiológico das nossas acções e, por trás do projecto da intersubjectivacção, está o engajamento pela emancipação da própria filosofia africana. Quer o paradigma libertário quer a intersubjectivação, são, no fundo, partes intrinsecamente ligadas no projecto da emancipação da filosofia africana de limitar-se em ser unicamente «africana», e poder constituir-se em uma parte importante da filosofia universal. José P. Castiano e Severino E. Ngoenha
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POR UM PENSAMENTO ENGAJADO Severino Elias Ngoenha
As análises sobre as votações moçambicanas de 1995 foram unânimes em afirmar que nós fomos votar pelo fim da guerra. A adesão massiva das populações às eleições da primeira legislatura da segunda República foram interpretadas em uníssono como sendo uma acção popular orientada para sancionar e legitimar o fim do conflito bélico. Se aceitarmos este facto como postulado de base da nossa análise, temos que admitir, a priori, que a primeira legislatura cumpriu com o mandato que lhe foi confiado. Durante os cinco anos que se seguiram às eleições, os deputados da Frelimo e da Renamo respeitaram o mandato que lhes tinha sido confiado pelos eleitores. O Governo governou e a oposição tentou fazer oposição no respeito pelos papéis democráticos que lhes tinham sido confiados, sem nunca exceder nas suas prerrogativas, mas, sobretudo, respeitando a necessidade de prosseguir o conflito que os opunha em termos políticos e no respeito de um certo número de regras ditadas pelos acordos de paz e pela nova constituição. Nesse mesmo período, o processo democrático e de reconciliação foi acrescido e alimentado pelas primeiras tentativas de criação do que comummente se tem chamado de Sociedade Civil: nasceram novas formações políticas, mas sobretudo organizações cívicas e sociais; as igrejas começaram a participar em actividades de carácter cívico, educativo, sanitário; nasceram organizações de jovens e de mulheres; surgiram universidades privadas, imprensa independente e liberdade de opinião. A isto se deve juntar o crescimento económico (PNB), o restabelecimento da rede económica e comercial, o lançamento do processo de desminagem, a reconstrução da rede de comunicações, a luta contra o que se chamou de pobreza absoluta. Uma vez mais, se fizermos fé naquilo que segundo os analistas políticos era o mandato do povo, a primeira legislatura da segunda República cumpriu quase integralmente com o mandato que lhe foi confiado. Contudo, dois
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problemas cruciais surgiram durante a legislatura e merecem uma atenção especial da nossa parte: um económico e outro político (a organização dos poderes públicos). No decorrer da legislatura nasceram nas diferentes comunidades moçambicanas novas exigências e problemas, ligados ao processo da transformação em curso. Isto não anula em nada o a priori positivo da primeira legislatura, mas os actores políticos e a qualidade de uma legislatura não se podem limitar ao cumprimento linear e lato do mandato popular, por mais importante e substancial que a paz possa ser. A legislatura e os actores políticos devem também ser julgados pela sua capacidade de interpretarem as necessidades «movediças» das populações que, por sua vez, dependem de mutações sócioeconómicas e mesmo epocais e históricas que bruscamente invadiram a vida das populações. Neste contexto de aceleração histórico-temporal, aquilo que no meio dos anos noventa era o único objectivo das populações - a paz ou pelo menos em nome da qual se mobilizaram para votar - sofreu uma metamorfose enorme, ligada à dramática mudança da estrutura económica do país. No decorrer da primeira legislatura, o elemento paz, sem nunca perder a sua importância e primordialidade, foi rapidamente igualado e mesmo ultrapassado pelos imperativos económicos ligados às mudanças radicais que se operaram na gestão do país e na sua organização social. O período da primeira legislatura foi marcado pela inversão da tendência económica de natureza distributiva e planificada e de toda a dimensão social que a acompanhava, para uma orientação individualista, concorrencial e toda a dimensão de violência social e de competitividade que a caracteriza. Isso trouxe consigo uma mudança radical, não só na organização económica, mas também na estrutura social e relacional entre os cidadãos. O período da primeira legislatura coincide com o incremento dos investimentos estrangeiros, sob a forma de empréstimos, com as consequentes imposições de políticas por parte dos organismos internacionais e países estrangeiros. O país acumulou dívidas colossais e foi obrigado a proceder à privatização de infra-estruturas que, até então, tinham simbolizado parte da identidade nacional (basta pensar na indústria do caju). Não faço um juízo de valor. Constato simplesmente que o povo não só não era consultado na
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transformação radical da sociedade e na privatização dos espaços de importância vital e simbólica. O que sob o ponto de vista político me parece problemático é que o povo não tinha nenhum mecanismo de participação, nem sob a forma de referendo, nem pressionando os seus eleitos a defenderem os seus interesses e a sua visão da sociedade. A este défice jurídico e constitucional deve-se acrescentar as dificuldades nacionais em termos de comunicação (televisão, rádio, jornais), o nível de analfabetismo elevado e, ainda mais importante, a discrepância entre as concepções político-culturais das populações e o tipo de democracia estabelecido. A questão filosófica que se põe é a seguinte: como fazer com que a democracia não se transforme num jogo de elites, que a maioria da população possa, de facto, participar com conhecimento de causa, não só através de um boletim de voto de cinco em cinco anos, como uma assinatura de cheque em branco para as elites políticas que se sentem legitimadas a fazer privatizações que vão em detrimento do povo que nelas depositou confiança? Se quisermos ser mais explicativos podemos dizer que três níveis de problemas manifestaram-se no desenrolar-se mesmo da primeira legislatura: o papel do novo estado moçambicano na nova sociedade moçambicana, a questão da representatividade e a soberania nacional face à comunidade internacional.
O Papel do Novo Estado Moçambicano na Nova Sociedade Moçambicana É de uma evidência a la palisse que a natureza do Estado moçambicano da segunda República é radicalmente diferente da natureza do Estado da primeira República. Na primeira República, os fautores e os executores da política estatal conheciam exactamente o lugar de cada um e o que tinham que fazer. Podemos dizer que o Estado moçambicano, pela sua natureza libertária e socialista era, não direi providencialista, mas distributiva. O papel de cada funcionário do aparelho do Estado, desde o ministro até ao servente de uma escola primária, era estar ao serviço do que se acreditava ser o interesse dos moçambicanos. O Estado moçambicano era implacável contra tudo que, de longe ou de perto, se parecia com a corrupção, desvio de bens públicos, tentativa de enriquecimento pessoal, acumulação individual, etc.
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Os valores moçambicanos eram contar com as próprias forças, o amor pelo trabalho, o direito à escola, à educação, à saúde; era o facto de que éramos socialmente responsáveis uns pelos outros; era a luta contra todas formas de discriminação, quer fossem na base da raça, da etnia, da tribo, da região origem, etc. Estar ao serviço do nosso povo era um valor, participar na construção de Moçambique através do trabalho e dedicação era um valor. Estes valores constituíam o essencial daquilo que era ou devia ser o Estado. Esta era a maneira através da qual o Estado estava (ou pretendia estar) ao serviço das populações. Mas apesar das intenções excelentes, esse Estado era habitado por contradições intrínsecas que acabaram anulando a grandeza dos objectivos precedentemente anunciados. A dinâmica participativa estava subordinada a uma ideologia unilateral de uma única família política, que se arrogava deter a única visão justa para a construção do país. Essa ideologia política é compreensível no quadro da divisão do mundo que então se vivia, apesar de a Frelimo se ter visto forçada a aderir a um dos lados sem estar necessariamente convencida do bem fundado da sua «opção» ideológica. Aliás, esta tese encontra uma confirmação na adesão sem reservas da maioria da classe política de esquerda às teses e às posições ultra-liberais que repentinamente irromperam na vida social moçambicana durante o início da segunda República. De um dia para o outro as coisas mudaram. Era como se, de repente e sem aviso prévio, nos encontrássemos diante de uma passagem de nível sem guarda. Nesta mudança que corresponde à mudança das relações de força na política mundial, a sociedade moçambicana viu-se, de um dia para o outro, radicalmente mudada: de uma economia planificada para uma economia selvagem. Não digo liberal, digo selvagem, porque o liberalismo tem regras. Por exemplo, se o pressuposto é a livre iniciativa dos indivíduos e a possibilidade de concorrerem uns com os outros (Bentham), a situação moçambicana não se prestava a isso, quer porque as populações não tinham formação e informação, quer porque não tinham os meios financeiros necessários para entrarem neste tipo de economia. Abandonar as populações de um momento para o outro ao volante de um porsche que vai a duzentos quilómetros à hora sem lhes terem previamente ensinado a conduzir, significava condená-los inevitavelmente ao desastre.
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Ora, a mudança política e económica comportou uma mudança nos métodos de governação e nas prestações dos poderes públicos. O Estado da primeira República pecava pela sua pan-presença. Ele decidia pela educação, pela saúde, pela moral pública e individual, pela justiça, pelos valores individuais e colectivos. E para isso combatia os alicerces individuais e culturais dos indivíduos e dos grupos. A segunda República tomou uma postura inversa. Ela peca pela sua ausência. As populações não sentem no Estado – desde as instâncias mais elevadas até ao servente de uma escola ou dum hospital – «uma pessoa jurídica» que está presente e ao seu serviço. O Estado ficou «dólar-crático». Tudo se faz em função do rendimento, do ganho, das mordomias. O funcionário do Estado transformou-se de servidor público em servidor de si próprio, instrumentalizando o privilégio que o seu lugar lhe concede. O funcionário não serve: serve-se. Esta situação está em discrepância com a ideia que as populações fazem de um funcionário. A ideia que as pessoas têm de um professor é de um homem que é uma referência para as populações, não só pelo seu saber, mas também pela sua conduta moral. Ver um professor a vender notas e provas de exame é simplesmente escandaloso. Ver o hospital transformado num comércio ia contra a ideia que as populações tinham da deontologia médica, mesmo sem conhecerem o juramento de Hipócrates. Apesar do famoso crescimento económico e dos índices do PNB, a situação das populações piora, a qualidade do ensino piora. Aos jovens dáse a consumir uma cultura feita de telenovelas e de slogans tipo «2M nossa tradição nossa cultura», ou então «a nossa cerveja, a nossa maneira de ser e de estar». O tratamento nos hospitais depende de dólares, a boa escola custa caro, todas as coisas a que as populações de baixo não se podem permitir. Isto põe um problema enorme de justiça, a nível distributivo e a nível de sanção jurídica. Um dos primeiros sinais da ausência do Estado foi dado quando as populações começaram a fazer justiça com as próprias mãos. Muitas vezes queimava-se um miúdo que roubara para comer, quando funcionários do Estado e outros desviavam coisas muito mais consistentes - esvaziaram literalmente os cofres do Banco Austral, venderam bens essenciais do Estado a estrangeiros ou que têm 500 mil dólares para comprar apartamentos - e
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eram indemnes a qualquer sanção. Esta violência social, porque é disso que se trata, tem que ser analisada em todos os seus parâmetros. As populações começaram a ser violentas. Podemos dizer que os miúdos da rua são violentos, há assassinatos na cidade, assaltos à mão armada que culminaram em violência-espectáculo, com a morte de Carlos Cardoso e de Siba-Siba Macuácua. Todavia, toda esta violência pode ser conduzida à «dólar-cracia»: a instauração do dólar em valor supremo da nossa sociedade. O fim, «dólar», justifica todos os meios. Então, ao mesmo tempo que o número e a qualidade de carros e casas de luxo aumenta na cidade, as viagens para compras na RSA, na Suazilândia e mesmo Portugal aumentam, que se multiplicam as viagens para Dubai, para bronzear-se no Estoril ou para o Carnaval no Rio, o número de pobres, de miseráveis não cessa de aumentar. O número de doentes que morrem de malária devido à falta de saneamento de meio aumenta. Assim, a segunda República muito depressa oscilou da democracia à «dólar-cracia». Com a passagem da primeira à segunda República, deitou-se fora a água suja e o bebé. Valores verdadeiros para qualquer sociedade foram negligenciados, deliberadamente omitidos ou mesmo invertidos. Durante o período da primeira República nós cantámos que a linha de ordem do nosso povo era a unidade, o trabalho e a vigilância. Podemos perguntar se estes valores não têm todo o seu lugar no Moçambique de hoje. Em que é que a unidade pode ser identificada com um regime político? A unidade do nosso povo, contra o tribalismo que está em voga, o regionalismo e o racismo não constitui um valor essencial para o Moçambique de hoje? O trabalho, o facto de contar com as próprias forças, num mundo de assistidos e objecto das ajudas e caridade internacional não é um valor a cultivar? A vigilância contra as divisões, com o perigo de recair no colonialismo, na dominação não é um valor a cultivar e a defender? De facto, a falta desta vigilância condena a maior parte da população, os mais fracos, a processos que recordam muito o que era a época colonial, mas sobretudo distância entre o Estado da sociedade. Vale a pena recordar o debate português1 em volta da Sociedade de Geografia no fim do século XIX, 1
BIGNASCA, A., La Singolarità terribile del Colonialismo Portoghese: il Dibattito della Società di Geografia. Roma: Armando, 1971, pp.71-82.
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depois do ultimato que a Inglaterra impôs a Portugal. Homens como Eça de Queirós pensavam que Portugal deveria desinteressar-se dos «selvagens» que viviam nas colónias. Aliás, Portugal tinha-se mostrado mau colonizador e isso só lhe tinha valido frustrações e humilhações, desde a perda do Congo a favor dos belgas até ao ultimato britânico. Contra estas teses, jovens como António Ennes defendiam que era necessário ter colónias rentáveis como moeda de troca para melhor integrar a Europa. Para isso, Portugal teria primeiro que pacificar as suas terras, controlá-las com militares e com a administração, e assim poderia dizer aos parceiros: tenho terra para cultivar, militares para defendê-la e, sobretudo, pretos para trabalhá-la. Era o início do trabalho forçado que acabou substituindo a recém extinta escravatura pelo chibalo que faz da colonização portuguesa uma das mais cruéis e os povos de Moçambique dos mais sofredores. Quando vejo certas práticas a que se prestam certas elites moçambicanas, como acordos de parceria com empresas ou indivíduos sem escrúpulos, acordos que não têm em conta os interesses das populações, pergunto-me se o discurso é diferente do discurso de António Ennes. Mas, sobretudo, o risco maior é condenar as populações mais fracas do nosso povo ao novo chibalo, evidentemente com a nossa cumplicidade. Aliás, não é a primeira vez: todo o sistema de dominação do nosso povo contou sempre com a cumplicidade de grupos entre nós. A escravatura foi facilitada por certas práticas internas pela cobiça e sobretudo pela falta do sentido histórico, pois quando o momento chegou, vendedores e vendidos tornaram-se todos escravos e colonizados. A falta de sentido histórico seria pensar que nós, pequenos grupos, constituiríamos as excepções de um processo neocolonial no qual somos ou podemos ser cúmplices. Se a questão é dinheiro, então somos mais baratos que os nosso predecessores. Temos que lembrar que uma espingarda no século passado era mais difícil de construir que um mercedes hoje. Se temos que nos vender para obter um carro, temos que pensar não só na traição histórica para com os nossos e a causa negra de uma maneira geral, mas também no preço dessa mesma traição. Podemos considerar que a Frelimo traiu a sua causa? Aquela mesma Frelimo que era constituída por rapazes e raparigas que estavam dispostos
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a morrer todos os dias durante dez anos em nome da liberdade do nosso povo? O que é que aconteceu? Não foi, em primeiro lugar, a Frelimo que mudou. Há um facto que ninguém quer reconhecer, mas que é fundamental para entender o Moçambique de hoje e as circunstâncias das nossas vidas e acções. Se raciocinarmos em termos libertários podemos afirmar de uma maneira apodíctica que face à intransigência e ao anacronismo histórico do fascismo português, nós, colonizados e em busca da liberdade-independência, fizemos uma guerra justa e ganhámos. A guerra não foi ganha militarmente, mas o terreno de batalha não era esse. O terreno de batalha era político e foi um acidente histórico de responsabilidade portuguesa que obrigou Moçambique e as outras colónias portuguesas - fossem a excepção no contexto africano - a pegar em armas. Mas com o 25 de Abril essa anomalia histórica foi corrigida e abriram-se as portas para as independências políticas das então colónias portuguesas. Na Dimensão Moçambicana da Consciência Histórica defendi que a Frelimo não escolheu o comunismo: foi-lhe imposto por um processo histórico-político. Agora, tristemente, tenho que defender que o liberalismo selvagem em curso não é também resultado de uma escolha, mas da derrota na segunda guerra. De facto, os objectivos libertários da primeira guerra foram derrotados na segunda guerra. O período que vai de 1945 até 1989, como já se escreveu enormemente, foi dominado pelo conflito ideológico que opôs o bloco chamado de esquerda ao bloco de direita. Nós entramos neste conflito pela janela da nossa vontade de nos libertarmos do colonialismo. A prova da nossa participação periférica está no facto de termos parado com a guerra no momento mesmo em que os generais R. Reagan e M. Gorbatchov assinaram o armistício do fim das hostilidades. A guerra terminou com a vitória do bloco da direita. Dado que nós estávamos no bloco da esquerda, perdemos. Temos que ter a coragem de dizer que se ganhamos a guerra de libertação (nessa luta nós estávamos no sentido da história, contra o anacronismo histórico do colonialismo português), perdemos a segunda guerra. O fim de todas as guerras é concluído com «actos cívicos» nas quais as partes se encontram, com aparente cortesia e mesmo cordialidade, bem vestidas e engravatadas para o processo de diálogo. Na realidade, trata-se de
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um encontro humanamente duro e humilhante para os vencidos, durante o qual os vencedores ditam as suas condições. No panorama geral do conflito da guerra fria, a principal discussão do armistício fez-se em Helsínquia e teve como protagonistas Reagan e Gorbatchov. Assinado o documento principal, deixou-se que a resolução de detalhes ficasse a cargo dos burocratas ou dos oficiais subalternos, mas sempre no espírito da carta fundamental. Isto explica que os acordos de paz moçambicanos tenham sido assinados numa insignificante comunidade de Roma sem tradição nem prévia experiência política. Os vencedores da guerra decidiram que em Moçambique, a Frelimo renovada – nome que nunca tomou, mas devia ter emprestado da Unita renovada – fosse a melhor força política para governar Moçambique. Com efeito, a natureza do capitalismo é não ter tempo. Dado que a estrutura administrativa de Moçambique tinha sido escangalhada e recomposta por esta força política, para o funcionamento eficaz e imediato de um liberalismo que em termos de eficiência e cumprimento de prazos e datas é mais rigoroso que os sistemas de esquerda, o melhor governo seria o da Frelimo. Dava-se a Frelimo o mandato de governar com ordens precisas: utilizar as próprias estruturas para escangalhar o munus socialista e colectivista que ela mesmo tinha criado, introduzir o capitalismo contra o qual tinha lutado – sistema que tinha sido historicamente responsável pela submissão dos moçambicanos. Aceitaria a Frelimo destruir o que ela mesma tinha construído? Aceitaria dizer às pessoas que tinha educado que o homem novo agora era o capitalista, que a palavra de ordem era acumulação individual, era a exploração do mais fraco? Aceitaria a Frelimo dizer que, afinal de contas, o roubo e a desonestidade eram valores? Aceitaria a Frelimo transformar as funções estatais de serviços para o maior número em lugares de apropriação e de acumulação? Aceitaria a Frelimo destruir a sua lealdade com os camponeses, com os combatentes da Independência? A bola parecia estar no campo da Frelimo: ou ela queria permanecer coerente consigo própria e, então, reconhecia a sua derrota e retirava-se, ou então ela se metamorfoseava e tornava-se uma «Frelimo renovada», atacando o poder a todo o custo. Existe, teoricamente, a possibilidade de a Frelimo ter aceitado a sua nova condição como forma de resistir, na medida do possível,
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aos ditames dos vencedores a fim de continuar a defender os seus valores originais. Então a Renamo estava condenada a ser oposição? A nova missão do pequeno batalhão era ser uma pistola apontada à têmpera da nova Frelimo, governante. Se a Frelimo se comportasse bem, a Renamo continuaria na oposição quer ela quisesse ou não. Se a Frelimo se comportasse mal, a oposição premiria o gatilho e a Frelimo saltaria. Só que a Frelimo mostrou-se mais liberal do que era previsível. Isto leva-me a pensar que muitos socialistas da primeira República não o eram por convicção, mas por imposição ou por oportunismo político. A partir do momento em que a Frelimo jogava bem o jogo liberal, a Renamo transformava-se num espantalho que só serve para afugentar pássaros. Mas as duas questões de fundo são: primeiro, a Frelimo ultraliberalizou-se estrategicamente como forma de manter o poder (e servir os interesses dos moçambicanos) ou como estratégia de enriquecimento de um certo número de indivíduos? Se foi uma estratégia para conservar o poder, que fim tem o novo poder e Governo da Frelimo? Segundo: a comunidade internacional, virando as costas à Renamo e seguindo a estratégia da Frelimo, levanta o problema do futuro da democracia e da sua legitimação em Moçambique.
A Questão da Legitimação A participação nas eleições de 1994, mais do que legitimar as novas forças políticas em presença e a nova governação nacional, era um assentimento que ia mais em direcção da necessidade de terminar com a guerra e todas as consequências que ele comportou em termos de acentuação da pobreza, da fome, da imigração das populações do campo para a cidade, etc. Mas, de nenhuma maneira, uma legitimação política. Com efeito, ninguém pode legitimar o que não conhece, e nenhuma legitimidade é possível (legítima) se ela não parte e não se alimenta do substrato mental, cultural e filosófico do povo que deve supostamente governar e representar. Ora, as estatísticas mostram que mais de noventa por cento dos cidadãos moçambicanos não possuem os apetrechos intelectuais necessários para participarem, e por conseguinte, legitimarem uma democracia, cujos
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paradigmas respondem a pressupostos culturais e históricos ocidentais. Por outro lado, todos os trabalhos de história e de antropologia levados a cabo sobre as diferentes culturas moçambicanas2 mostram que a participação popular na coisa pública e os diferentes sistemas de governação das culturas nacionais, diferem em toda a medida do sistema constitutivo e da organização dos poderes públicos actuais. Todavia, e não obstante as afirmações precedentes, as eleições políticas de 1994 marcaram o início de uma nova legitimidade política, não fundada sobre a tradição ou sobre a força das armas, mas pelo princípio da soberania popular. A nossa questão será justamente de nos interrogarmos quanto ao estatuto político desta nova legitimação. Em Moçambique, o nascimento do projecto nacional está indissociavelmente ligado aos nomes de Eduardo Mondlane3 e da Frelimo. As lutas dos povos africanos pelas próprias liberdades, na qual se situa o projecto de Eduardo Mondlane e da Frelimo, inscreveram-se em dois movimentos históricos opostos. O primeiro inscrevia-se e fundamentava-se no substrato cultural dos diferentes povos autóctones, o segundo tem o seu fundamento na história do movimento Pan-africano que nasceu com os negros da diáspora: República das Palmeiras no século XVII no Brasil, Haiti de Toussant Louverture no século XVIII, os marrões da Jamaica no século XIX, mas, sobretudo, as metamorfoses históricas e culturais dos negros nos EUA: Os primeiros movimentos eram culturalmente homogéneos, tinham as suas delimitações geográficas e políticas bem definidas. As fronteiras traçadas ou reconhecidas por Berlim eram para os diferentes povos, entidades geo-políticas demasiado extensivas, mas sobretudo não correspondiam às dinâmicas políticas próprias dos diferentes grupos nacionais. As entidades políticas forjadas pelos povos africanos (Estados, Impérios) não paravam sempre nas fronteiras étnico-tribais, bastando pensar no império de Gaza ou no Império do Monomotapa. Contudo, a extensão de uma identidade política a grupos culturalmente heterogéneos era acompanhada por uma série de medidas de inserção jurídica, económica, política e cultural que se inscreviam nas dinâmicas culturais autóctones. Todavia, nenhuma destas 2
Cfr. Documentos de Antropologia Moçambicana. Lisboa, 1996.
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dinâmicas correspondia nem geográfica, nem politicamente àquilo que os portugueses chamaram Moçambique. Se a entidade Moçambique era (como, aliás, todas as colónias africanas pós-Berlim) demasiado grande sob o ponto de vista geográfico e culturalmente heterogénea em relação às dinâmicas políticas autóctones a Moçambique e a África, ela era, ao contrário, demasiado reduzida em relação aos objectivos primeiros do pan-africanismo que prospectava uma unidade política de todos os negros do mundo no solo africano (Delany, Marcus Garvey). Os objectivos do movimento Pan-africano foram-se reformulando sem nunca, contudo, renunciarem ao objectivo de unir politicamente a África, como testemunha a obra política e literária de K. Nkrumah Africa Must Unit, ou mesmo os esforços da criação de uma África federal de Dubois ou, ainda, de Patrice Lumumba. Eduardo Mondlane, como K. Nkrumah ou Azikiwe, pertence por formação e convicção ao movimento Pan-africano cujas ideias tiveram um impacto considerável nos anos em que ele viveu e estudou nos EUA. Contudo, a acção política de Eduardo Mondlane e da Frelimo foi precedida e condicionada por dois factos políticos e históricos importantes: a partir do congresso Panafricano de Manchester de 1945 fala-se abertamente e, pela primeira vez, da questão de autodeterminação dos povos africanos. Mas ao mesmo tempo, o congresso observou que «as divisões arbitrárias e as fronteiras territoriais delimitadas pelas potências coloniais constituem outras tantas medidas deliberadamente tomadas para impedir a unidade política da África». Se a questão da independência estava posta sem equívocos, restava delimitar o quadro geopolítico no qual estas independências se deviam inscrever: etnias, antigos Estados africanos, zonas economicamente viáveis, ou espaços coloniais delimitados em Berlim? O co-presidente do congresso de 1945, Dubois (com Carter G. Woodson, fundador da Association for the Study of Negro Life and History em 1915) foi também um dos promotores da redescoberta da História, das tradições e da cultura da África pré-colonial. Contudo, ele pensava – como, 3
Cfr. NGOENHA, S.E., Para uma Reconciliação entre a Política e a(s) Cultura(s). Programa de Reforma dos Órgãos Locais (PROL), Texto de Discussão N° 3, Ministério da Administração Estatal (MAE), Editado por J. E. M. GUAMBE e B. WEIMER, Maputo, Agosto de 1997, p.14.
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aliás, todos os líderes políticos da época – que a África fragmentada não podia, por si só, na sua própria terra, tomar claramente consciência da sua unidade a não ser sob a forma de uma muito vaga comunidade de origens e de tradições, consideradas num sentido muito geral. De facto, a noção de Pan-africanismo era afectada por um alto grau de abstracção em relação à realidade. Tratava-se mais de uma doutrina cultural (ou do reconhecimento de uma unidade espiritual entre negros, como dissera Langston Hughes) do que de uma verdadeira ideologia política. Foi o que fez Azikiwe com o seu Renascent Africa de 1937, Césaire no Cahier d’un retour au pays natal, a revista Presence Africaine, ou ainda Cheikh Anta Diop com as Nações Negras e Cultura. Por falta de uma ideia clara de unidade e mesmo de condições práticas para que essa unidade fosse possível, começou-se a falar de unidades regionais. Mas uma vez mais tinha que se definir os contornos políticos e jurídicos de tal unidade. E, sobretudo, definir-se se tal unidade devia preceder ou vir depois das independências das delimitações individuais daquilo que eram os Estados coloniais. Este assunto esteve no centro do debate político entre os anos 1957 e 1959. Em 1961, um ano antes da fundação da Frelimo, a África independente divide-se claramente em dois grupos: o grupo de Monróvia e o grupo de Casa Blanca. Contudo, a ideia que prevalece é que a unidade que é preciso realizar neste momento não é a integração política dos Estados Africanos soberanos, mas a unidade das aspirações e da acção, do ponto de vista da solidariedade social africana e da identidade política. O pan-africanista e funcionário das Nações Unidas, Eduardo Mondlane sabe, ao fundar a Frelimo, que o quadro geopolítico das liberdades (independências) africanas por vontade da ONU, guiada pelas mesmas potências que em Berlim tinham, cinquenta anos antes, dividido o continente sem se preocuparem nem com as culturas nem com os homens negros que nós somos, com a conivência dos novos dirigentes africanos, deve ser o espaço da colonização europeia, portanto portuguesa, para Moçambique. Isto quer dizer: do Rovuma ao Maputo. Ora, neste espaço geopolítico tinham precedentemente surgido formas de nacionalismo que, sem serem o resultado de uma evolução política
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interna às culturas locais, inscrevia a sua dinâmica nos substratos culturais locais. Não há dúvida que sob ponto de vista da evolução da política mundial, Mondlane teve razão em criar a Frelimo, como meio de dar força e legitimidade internacionais – no sentido da ONU e, a partir de 1963, da OUA – às reivindicações dos povos que viviam no espaço geográfico que se estendia do Rovuma ao Maputo. Contudo, havia aqui uma transferência de legitimidade. A Udenamo, Unamo e Manu, reivindicavam a sua legitimidade nos povos respectivos. A Frelimo que, justamente, não queria nem podia ser um simples somatório dos três movimentos nacionalistas que o precederam, nem sequer era o somatório dos grupos etno-tribais de Moçambique, não podia imediatamente receber a sua legitimação do interior e, portanto, das dinâmicas político-culturais interiores aos povos de Moçambique. Quanto ao exterior, a Frelimo podia receber uma caução, mas não legitimação do Pan-africanismo que, entretanto, tinha sido redimensionado e mesmo isolado com a elevação do espaço colonial a quadro geopolítico para a proclamação das independências. A divisão de 1961 e a criação da OUA eram, de facto, uma vitória das antigas potências coloniais. E, paradoxalmente, eram a ONU e a OUA a legitimarem a Frelimo como movimento de libertação de Moçambique, e mais tarde, como representante do povo moçambicano. Se as independências se devem inscrever no quadro geopolítico colonial, elas não se podem inspirar culturalmente nem nas lutas autóctones dos diferentes povos de Moçambique e das suas evoluções e debates políticos, nem sequer se podem inspirar na dinâmica histórica do Pan-africanismo. A acção de Eduardo Mondlane e da Frelimo deve geopolítica e juridicamente inspirar-se e, de qualquer modo, dar continuidade ao trabalho de centralização levado a cabo pelas autoridades coloniais portuguesas e, por outro lado, a partir do Partido transformado em Estado depois da independência, criar uma Nação à imagem e semelhança da Europa. Aqui surgem duas dificuldades: a) Os portugueses para centralizarem a governação dos povos de Moçambique, não só não legitimavam o seu poder a partir dos povos de Moçambique, mas violavam sistematicamente os seus direitos mais elementares. Se a Frelimo-Estado de Moçambique seguia esta governabilidade tinha ou que dialogar e fazer dialogar os diferentes
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povos e culturas nacionais, o que era tecnicamente impossível, tendo em conta sobretudo o factor tempo e os imperativos regionais; ou então, com uma legitimação proveniente do exterior, impor aos povos de Moçambique culturas políticas estrangeiras. Mas, se assim fosse, em que medida a imposição da Frelimo seria na prática diferente da imposição dos portugueses? Em que medida a governação da Frelimo seria menos colonialista em relação às práticas culturais dos diferentes povos e culturas locais? b) A história social e política da Europa, que doravante servia de modelo, tinha visto nascer o Estado a partir das Nações. Ora, em que medida o Estado de Moçambique estaria à altura de criar a Nação, tarefa primordial que lhe foi confiada pelo Partido? A missão histórica que foi da Frelimo – criar uma nação moçambicana – partiu de movimentos políticos, culturalmente circunscritos (Udenamo, Unamo e Mani), mas teve que se forjar logo depois uma ideologia unitarista. Depois da independência, o postulado de unidade nacional, que em si mesmo não é nem pode ser discutível, implicou também uma governação a partir de cima. O primeiro paradoxo era que o governo legitimava o seu poder no povo, mas governava contra os pressupostos jurídicos das culturas nacionais. O segundo paradoxo era que a legitimação teórica e histórica dos pressupostos políticos de governação respondia a pressupostos europeus: recordemo-nos que o marxismo é filho de um debate histórico próprio da cultura ocidental. Estes paradoxos e mesmo a desconsideração das culturas nacionais no processo político e de governação foram, historicamente, o preço que tiveram de pagar as culturas nacionais pela edificação do Proto-Estado moçambicano. A Nação democrática que se auto-proclamou em 1994 novo actor histórico da vida política e social moçambicana quer, como afirma a constituição de 1990 e os acordos de 1992: Todos se reconhecem actores e sujeitos da história, ou seja, um partido único não pode ser o dirigente da sociedade e do Estado4 . Por democracia se entende, portanto, um sistema de partidos. Ora, este sistema tipicamente ocidental desde há dois séculos tem vindo a provar a sua
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funcionalidade. Contudo, no contexto histórico actual, caracterizado pelo fim do bipolarismo, muitos sociólogos e politólogos se interrogam quanto à pertinência da divisão clássica da política em partidos e a capacidade deste sistema de representar verdadeiras alternativas políticas e, sobretudo, de representar os diferentes estratos da sociedade. Mas a questão mais interessante para nós é que em nenhum país africano o sistema de partidos como o proposto pela constituição e pelos acordos de Roma parece estar à altura de mobilizar o imaginário colectivo das populações. Das duas, uma: ou o africano (e, portanto, também o moçambicano) é geneticamente anti-democrático como sustentam alguns eugenistas (Medeved Arison), ou então o sistema de partidos é, talvez neste momento, um mal necessário, mas não corresponde ao substracto cultural dos nossos povos. Não se trata de uma inadequação dos africanos à democracia, mas do modelo Europeu falsamente universal, que não se coaduna com as nossas culturas. Não são as culturas que se têm de adaptar a todo o custo a modelos, que responderam ao génio próprio de certos povos num determinado momento da sua história, mas os modelos que se têm de forjar a partir das culturas. Isto significa que nós temos de inventar um modelo de sociedade que nos seja próprio, um modelo que corresponda às nossas culturas, às nossas sensibilidades, um modelo capaz de mobilizar o conjunto de moçambicanos a participarem não só nas eleições, mas na vida integral da sociedade moçambicana. Depois de uma entrevista que dei ao jornal Savana em Setembro de 1996, um deputado disse-me que ele tentava levar os seus eleitores a interessarem-se e mesmo a controlarem a sua actividade de deputado, mas em vão: os «eleitores não conhecem as suas prerrogativas jurídicas e políticas como eleitores». Os deputados são, teoricamente, representantes dos interesses dos eleitores. Que tipo de mandato, eleitores que ignoram as suas prerrogativas políticas e jurídicas, podem confiar a um deputado? E se os deputados não têm um mandato claro dos seus eleitores o que é que eles representam? O que é que os autoriza a falarem em nome dos seus eleitores? 4
Cfr. NGOENHA, S.E. Para uma Reconciliação entre a Política e a(s) Cultura(s). Programa de Reforma dos Órgãos Locais (PROL), Texto de Discussão N° 3, Ministério da Administração Estatal (MAE), Editado por J. E. M. GUAMBE e B. WEIMER, Maputo, Agosto de 1997, p.21.
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Mas supondo que os eleitores decidam controlar, acompanhar, influenciar a execução do mandato de um deputado ou, mais profundamente, que eles queiram fazer presente a um deputado que representa no Parlamento as suas preocupações, que não são sempre iguais, mas variam com o tempo e com as circunstâncias: de que mecanismos jurídicos e constitucionais dispõem? Que mecanismos estão previstos pela lei que permitam que os eleitores interpelem os seus representantes? Se os parlamentares representam simplesmente as posições dos próprios partidos, em discrepância total com os interesses e a compreensão das pessoas, estamos num sistema de partidocracia. Será que o sistema de representação parlamentar é conforme o génio político e cultural moçambicano? Será que os mecanismos de representação tipicamente moçambicanos são os partidos? Os indivíduos, os grupos, as culturas e a sociedade exprimem as próprias opiniões, preocupações, posições através dos partidos, ou existem outros mecanismos, outras vias, outros veículos de opinião e de tomada de posição que são mais congénitos aos povos de Moçambique? A democracia moçambicana e o seu sistema de representação vão ter que colocar o problema dos pressupostos. Temos que centrar os nossos esforços sobre a condição da democracia: a dimensão sócio-cultural. A democracia vai exigir, como condição preliminar, uma acção concebida a partir das realidades autênticas das nossas comunidades autóctones, apreendidas a partir do interior. Contudo, as eleições políticas de 1994 e a nova constituição, fundando doravante a legitimidade política sobre a soberania e a vontade dos moçambicanos, consagram simbolicamente uma ruptura fundamental. Para além do princípio de legitimidade política, é o fundamento mesmo da relação social que é posto em causa. Na era da nação democrática, a política substitui o princípio religioso ou dinâmico para unir os homens: ela reivindica o direito de instaurar o social. Doravante, todos os homens no interior do espaço nacional são iguais em dignidade. Esta cidadania não é simplesmente um atributo jurídico e político, no sentido estrito do termo. É também um meio para adquirir um estatuto social: a condição necessária - mesmo se concretamente não suficiente - para que um indivíduo possa ser plenamente reconhecido como actor de vida colectiva. Existem, no
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entanto, dois problemas fundamentais. Primeiro – o nascimento da nação democrática foi precedido, e talvez mesmo condicionado, pela presença de uma outra nação que vive no seu seio: a nação produtivista. Não é por acaso que a democracia foi precedida por uma adesão às instituições económicas internacionais como o FMI e BM, composta por indivíduos mais preocupados em satisfazer os próprios interesses que a satisfação dos seus deveres cívicos – que segundo Rousseau constitui o principal problema moral para aquilo a que ele chama o homem social. A lógica produtivista intimamente ligada à eficácia da produção, tende a preceder os valores propriamente políticos. A participação na vida económica é a fonte essencial do estatuto social. Assim, a dimensão económica e social da vida colectiva impõe-se em detrimento do projecto político. Este facto enfraquece ulteriormente o nosso «Proto-Estado Democrático» que se vê obrigado a renunciar às suas prerrogativas estatais (que lhe foram confiadas pelos eleitores) para satisfazer as imposições antidemocráticas do FMI e do Banco Mundial5 que se arrogam a prerrogativa de legitimar o poder. Como se isto não bastasse, os eleitores não têm mecanismos jurídicos legais previstos pela constituição que lhes permitam fazer-se ouvir ou simplesmente participar no debate público. Existe, por conseguinte, um outro problema jurídico, desta feita ligado à democracia representativa.
A Democracia Representativa A democracia representativa, em princípio, é uma democracia parlamentar. Todavia, para que o parlamento seja democrático, deve respeitar três princípios fundamentais: a tolerância, a separação dos poderes, a justiça. Isto significa que uma democracia digna desse nome não se pode contentar em ser uma democracia formal, cega às desigualdades materiais entre os membros da sociedade, mas ela deve visar um objectivo concreto: a justiça social. Podemo-nos perguntar: em que condições reina a justiça social? Isto é uma questão difícil. Em contrapartida, o que é claro é que a sua realização 5
Cfr. NGOENHA, S. E., Para uma reconciliação entre a Política e a(s) Cultura(s). Programa de Reforma dos Órgãos Locais (PROL), Texto de Discussão N° 3, Ministério da Administração estatal (MAE), Editado por J. E. M. GUAMBE e B. WEIMER, Maputo, Agosto de 1997, p.33.
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supõe, pelo menos, a criação de mecanismos susceptíveis de impedir o desenvolvimento de desigualdades demasiado grandes no seio da comunidade. A nossa constituição, inspirando-se na história das democracias representativas, separa claramente o poder executivo do legislativo e este do judicial. Que mecanismos temos para garantir a separação de poderes e gerir eventuais conflitos entre eles? Dois tipos de conflitos têm perturbado de maneira recorrente a vida das democracias contemporâneas: primeiro, o conflito entre o executivo e o legislativo, quer quando a constituição dá mais importância a um ou ao outro, quer quando os representantes do executivo usam todos os subterfúgios para fugirem ao controlo dos representantes do povo. O membro da Renamo ou do MDM quando se pronunciam no parlamento, fazem-no como representantes do povo. O executivo não deve ridiculizá-los ou fugir às questões, muitas vezes judiciosas e pertinentes levantam. Segundo, o conflito entre o executivo e o judiciário. Nomeados pelos primeiros, os agentes do segundo, isto é, os magistrados, têm muita dificuldade em fazer compreender aos responsáveis do executivo, que ninguém pode estar acima da lei. Este é um problema que os pais da democracia representativa não resolveram. Trata-se de uma questão que tem minado a vida política, mesmo nas democracias mais experimentadas. Em Moçambique podemos falar do paradigma Anibalzinho-Nyimpini. Que o presidente Chissano tenha feito ou não pressão ao pé das autoridades judiciárias, os juízes não podem ser completamente livres de uma certa pressão psicológica no acto mesmo de instaurar um processo e de judiciar Nyimpini. Mas a verdadeira questão não é nem a atitude do presidente, nem Anibalzinho, nem Nyimpini. A questão é como fazer com que entre o poder executivo e o judicial não haja interferência, numa democracia que quer estes poderes iguais, mas subordina a nomeação do judicial à decisão do executivo? Que o presidente faça pressão ou não, que diga algo ou não, que o seu pessoal governativo intervenha ou não, o seu estatuto vai necessariamente condicionar o desenrolar do processo. Este não é um problema só moçambicano e, talvez ainda mais por isso, deve mobilizar as nossas inteligências com vista a encontrarmos uma saída…
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A estes pontos tem que se acrescentar um que é a maneira particular como um certo Ocidente se arroga sempre mais, e de maneira antidemocrática, prerrogativas de legitimação anti-coloniais das emergentes democracias africanas, e mete sob tutela as nossas economias e, em consequência, a nossa soberania.
A Questão da Soberania A constituição de 1975 prescreve em vinte e cinco artigos os princípios gerais ou, se quisermos, as proposições de base que orientam o conjunto de normas jurídicas e a promulgação das leis. Trata-se de ideias ou de proposições que inspiram e orientam todos os enunciados e todos os actos do direito. O Moçambique de 1975 aparece, assim, no artigo I como «Um Estado soberano, independente e democrático sob a direcção da FRELIMO». O artigo II define a ideologia moçambicana como Democracia Popular. O artigo III indica a Frelimo como a entidade que «supervisa a acção dos órgãos estatais a fim de assegurar a conformidade da política do Estado com os interesses do povo». O partido e o Estado identificam-se. O artigo IV indica os objectivos fundamentais da República: «a eliminação das estruturas de opressão e exploração coloniais e tradicionais e da mentalidade que lhes está subjacente a extensão e reforço do poder popular democrático; a edificação de uma economia independente e a promoção do progresso cultural e social; a defesa e consolidação da Independência e da unidade nacional; o estabelecimento e desenvolvimento de relações de amizade e cooperação com outros povos e Estados; o prosseguimento da luta contra o colonialismo e o imperialismo». Estes artigos mostram a vocação libertária da constituição e a filosofia prática subjacente ao direito moçambicano na sua primeira constituição. A constituição da II República não renuncia ao substrato filosófico de base e aos seus corolários de lógica jurídica. Só que o exercício deste projecto libertário não se exercerá, doravante, através do partido Frelimo (apesar de se reconhecer o seu papel fundamental na construção de Moçambique), mas através de um sistema de competição entre partidos autónomos, com obrigação de respeitarem e defenderem a soberania nacional, entendida como
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espaço geopolítico (do Rovuma ao Maputo), e a unidade nacional através da luta contra o tribalismo. Os pressupostos filosóficos estipulados na primeira República e confirmados pela segunda aparecem em contradição com os seus corolários políticos. Para compreender o que está por detrás deste fenómeno, tem que se recorrer à história das lutas ideológicas que a subentendem. Lutar contra o colonialismo, libertar Moçambique e ser soberano são conceitos fundamentais e constituintes da nação moçambicana. A comunidade internacional só pode ser positiva e a favor de Moçambique na medida em que respeite este substrato filosófico de base. Isto é, respeito pela soberania, configurada num espaço geopolítico bem determinado e pela unidade nacional. Ora, o centro nevrálgico da constituição de 1975 era a liberdade/ independência. O centro da constituição de 1990/1992/1994 é liberdade/ democracia. Em 1975, a liberdade era entendida como contraposição ao colonialismo. Em 1992, à liberdade como anti-colonialismo se junta a democracia. Teoricamente, trata-se de um avanço considerável. Todavia, a opinião pública moçambicana parece acreditar que a nível da liberdade fundamental (independência e soberania), Moçambique tenha pura e simplesmente regredido (regresso de portugueses, economia sob tutela, ONG, cooperação, doadores, etc.). Pode-se progredir em democracia, recuando em soberania? A II República nasceu dos escombros da antiga União Soviética e do fim da guerra fria. Os valores que a ideologia vencedora apregoa são contrários ao espírito da Primeira República defendidos pela Frelimo. Mas serão compatíveis com o espírito que é, ou que devia ser, da Renamo enquanto partido nacional: a defesa e a promoção da unidade e integridade nacionais? A situação actual de Moçambique caracterizada por democratismo (que é diferente da democracia), super liberalismo que se traduz em privatizações sumárias, e tutela governativa, são a prova da nossa entrada no fim da história, no ponto final da evolução ideológica da humanidade. É neste contexto que deve ser vista a segunda República moçambicana. Mas resta uma questão de fundo: qual é a relação que existe entre o objectivo de fundo que persegue o africano, o moçambicano, isto é, a liberdade de dispor de si mesmo e esta forma de hegelenismo político-social? Qual é
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a relação que existe entre este sistema mundial dominante e a possibilidade real de ser soberanos, sem termos que obrigar os moçambicanos a terem que pegar em armas para uma segunda colonização, como escreve Heliodoro Baptista no artigo do Savana (nº 167, Março 1997)? Duas aporias parecem remar contra a nossa liberdade e libertação: uma está intrinsecamente ligada à mesma ideia de soberania e outra à nossa incapacidade como povo de assumi-la com tudo o que ela comporta em termos de responsabilidade. E outra é ligada ao Ocidente sempre mentalmente imperialista Eis porque é ridículo e contraditório ter uma constituição cujo pressuposto filosófico (soberania) tem que ser garantido por uma comunidade internacional, democrata no interior dos países de origem, mas selvagem nos seus princípios políticos, jurídicos e nas suas práticas económicas. Falar de soberania moçambicana é hoje um autêntico abuso de linguagem. De facto, toda a estrutura constitucional moçambicana, desde os seus fundamentos filosóficos, jurídicos para terminar na prática política, encontra-se esvaziada de conteúdo. Eis porque a política moçambicana, apesar da aparente democracia, tornou-se numa coisa ligeira, leviana onde cada um procura os seus fins individuais: o «cabritismo» que é, de facto, o laissez faire, laissez passer moçambicano. Todavia, esta situação é possível ou pelo menos é facilitada por um outro facto: «a nossa incapacidade de assumir o que a liberdade comporta como responsabilidade». O camaronês Mveng fala da pauperização antropológica do negro. Eis porque o maior comunista de ontem pode tornar-se no maior apóstolo do liberalismo selvagem; o revolucionário de ontem no reaccionário de hoje, os libertadores de ontem no instrumento de colonização de hoje. A Frelimo viu-se obrigada, por razões militares e pela pressão exterior, a instaurar um sistema democrático, sem estar realmente convencida de dever compartilhar o poder, cuja legitimidade auria da luta armada contra a colonização portuguesa. Hoje a Frelimo vê-se obrigada a harmonizar as exigências de duas autoridades: a Renamo e a Comunidade Internacional. Ora, se a força da Renamo no contexto nacional é muito fraca, o mesmo não se pode dizer da Comunidade Internacional, que impõe literalmente de uma maneira abusiva e anti-soberana a política, a economia e o tipo de governação.
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No contexto económico dominante, o governo precisa do dinheiro dos doadores e da comunidade internacional para melhorar a vida dos moçambicanos, o que, aliás, é a sua função política como partido no poder, mas está consciente da divergência de interesses entre os moçambicanos e de uma certa Comunidade Internacional (cf. entrevista com Mariano Matsinha, in: Savana 25.04.1997). A Renamo é vista como instrumento da Comunidade Internacional, cujos objectivos são o enfraquecimento do Estado, a divisão do país. Contudo, a Comunidade Internacional, apesar da sua força, só pode governar de maneira indirecta, pois dificilmente pode pegar em armas e ocupar militarmente Moçambique, ou mesmo nomear governadores e administradores em Moçambique. A Frelimo submete-se aos dictats da Comunidade Internacional fazendo o que esta exige, a fim de obter dinheiro e financiamentos, ao mesmo tempo que a nível político, tenta isolar a Renamo (Carta Aberta aos Moçambicanos de Afonso M. M. Dhlakama, Savana, 04.04.1997) e os outros partidos da oposição. Todavia, apesar das aparências, o verdadeiro adversário da Frelimo, não é a Renamo, como ontem não era a Renamo Samora Machel quis discutir directamente com os sul-africanos e não com a Renamo. Hoje a táctica é a seguinte: fazer a vontade dos doadores a fim de ter investimentos, mas isolar politicamente a Renamo e os outros partidos da oposição. Às estratégias de apropriação do poder e do seu abuso por parte de uma certa Comunidade Internacional, a Frelimo responde com uma dupla táctica: docilidade e submissão aparente face à Comunidade Internacional, e isolamento das oposições políticas nacionais. Este processo faz-se em detrimento de uma democracia real que, portanto, se tinha começado a engodar. Isto faz-se, por outro lado, em detrimento de um debate democrático cultural, que tenderia a deslocar realmente o centro de gravitação do poder em direcção às pessoas reais, aos grupos e às culturas. As consequências são: o isolamento dos partidos da oposição, a diminuição da possibilidade da democracia, o centralismo político, que impede a possibilidade de uma cultura política moçambicana. Isto é, a criação de um substracto político nacional a partir dos valores do homem de Moçambique, o reforço das tendências autoritárias e centralizadoras do partido no poder, que se vê obrigado a recorrer a armas nacionalistas para defender o país.
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A responsabilidade da Comunidade Internacional no que se passa em Moçambique é enorme. Existem diferentes Comunidades Internacionais, aquelas pretensamente neocoloniais e tuteladoras, e outras cujos objectivos são de ajudar a construir uma comunidade política soberana, democrática, solidária e fundada sobre valores moçambicanos. Penso que seria tempo de uma análise crítica das atitudes da Comunidade Internacional e da sua responsabilidade no clima que existe no Moçambique de hoje. Existe hoje um risco de confusão entre a democracia e o neocolonialismo; risco de ver na democracia e no liberalismo, simples avatares do neocolonialismo. O maior erro, que poderiam cometer as «velhas democracias», seria apresentarem-se como modelos, como os que sabem como as coisas devem ser feitas, como os problemas devem ser resolvidos, o que elas não são e nem podem ser; e impor, mesmo em termos económicos, o modelo e o estilo de sociedade que elas consideram boa para Moçambique. Neste sentido, é extremamente lamentável a atitude de certas organizações. Exigir que o Estado, o Governo, adopte e implemente práticas políticas e económicas decididas por investigadores e por centros de poder ocidentais, como condição da ajuda económica, é uma política que se baseia no desprezo pelos governantes nacionais. O perigo evidente, neste caso, é desacreditar gravemente o Governo aos olhos do povo, mas sobretudo desacreditar a própria democracia aos olhos do povo e dos seus líderes. A comunidade internacional, pelo menos a não colonialista, deve rever a sua posição, deve compreender que ela não pode ser colonizadora, neocolonizadora, tuteladora, sem ser contra Moçambique e contra os moçambicanos. O específico das ciências filosóficas no contexto actual deveria ser a invenção de espaços e de mecanismos de incremento da soberania, quer contra o intervencionismo anti-democrático dos democratas ocidentais, quer, e sobretudo, no trabalho sobre as condições susceptíveis de libertar a imaginação e a criatividade nos moçambicanos, a fim de podermos assumir responsavelmente a nossa liberdade. A «tarefa» da filosofia é não esquecer que a nível interno ainda não somos capazes de ser cabalmente responsáveis pela nossa liberdade. Incumbe-nos, portanto, descobrir e inventar espaços de liberdade concretos, dar material e instrumentos teóricos aos políticos nacionais.
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A reflexão filosófica moçambicana tem que se situar na intersecção do conflito de soberania entre a soberania externa dos estados europeus e Moçambique; entre a nossa vontade de soberania e a nossa incapacidade de assumi-la; entre a nossa vontade de soberania e a incapacidade dos ocidentais de se libertarem dos seus élans coloniais. Em segundo lugar, ela deve investigar as razões históricas, culturais e sociais que estão na base da nossa fraqueza existencial e as maneiras concretas de combatê-la. A ideia da soberania (liberdade) tem uma valência interna condicionada pelo movimento de participação cultural, que comummente se chama democracia. Esta deve ser internamente garantida por uma cultura política moçambicana que se forja a partir das culturas políticas nacionais, e que tenha em conta a preservação e o incremento da soberania moçambicana. A filosofia africana na sua valência política deve contribuir para a realização das exigências de justiça. Por conseguinte, filosofar sobre a acção significa interrogar as legitimidades edificadas pelos homens (nacionais e internacionais), e tentar dar palavra às pessoas, grupos e culturas que foram privadas dela até aqui. A filosofia não se pode contentar em justificar o status quo, mas, ao contrário, deve dessacralizar os equilíbrios políticos que parecem únicos. Eis porque eu proponho um contracto cultural, social e político.
Contrato Cultural A democracia comporta duas partes: uma axiológica e outra institucional. A dimensão axiológica repousa essencialmente no princípio da igualdade em direito concebido como uma abstracção para corrigir as desigualdades naturais. Ela impõe, de uma maneira apodíctica e não negociável, o respeito pelos direitos do homem, a igualdade entre os cidadãos e o respeito pela dignidade das pessoas. Se os valores não são negociáveis, as instituições, ao invés, nunca conheceram, na história das democracias, uma forma única. Se os valores têm uma vocação universal, a dimensão institucional da democracia releva da história, das sociedades e das culturas. As instituições, melhor, os modelos institucionais da democracia podem e devem mudar, podem e devem ser aculturados, aurir a sua legitimidade
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dos imaginários colectivos, das linguagens das pessoas, da maneira como eles concebem a sua vida social e colectiva. Eis o que eu chamo contrato cultural.
Contrato Social A segunda República é percebida pelos moçambicanos como profundamente injusta. O conceito de justiça não é e nunca foi exclusivamente político. Ainda menos jurídico. Ele pode ser apreendido em diferentes sentidos: ético, metafísico-histórico (justiça imanente), religioso (transcendental), até mesmo estético. Entre estas múltiplas acepções, não separáveis por nenhuma fronteira bem definida, toda uma série de ligações mais ou menos subterrâneas se teceram durante séculos. Esta é a razão pela qual a dimensão política e a dimensão ética estão ligadas, como bem prova John Rawls (1987) na sua Teoria da Justiça que, há trinta anos, teve o grande mérito de dar um novo alento à questão da filosofia política, que tinha sido transcurado depois de Rousseau e de Kant.
Contrato Político Sabemos da História que o processo da escravatura foi facilitado pelas nossas divisões internas; sabemos que o colonialismo foi também facilitado pelas nossas divisões; sabemos que, para neo-colonizar a África, o Ocidente, desde o Congo até Moçambique, passando pela Nigéria, utilizou ou suscitou divisões. Mas a Historia também nos ensina que quando fomos capazes de unidade, fomos fortes e conseguimos, se não ganhar, pelo menos resistir! Eis porque o «contrato político» que permitiu a unificação da Udenamo, Unamu e Mani e a fundação da Frelimo tem um grande valor pragmático-político, mas sobretudo moral. É necessário que as diferentes forças políticas e sociais do país sejam os principais interlocutores uns dos outros, que tenham o sentido da significação profunda da «palavra» em termos de escuta, diálogo, espaço de reconciliação. Mas como família moçambicana, que tenhamos o sentido do segredo
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(prudência, cautela) familiar, isto é, do que não pode a nenhum preço ser dito aos estrangeiros, seja eles quem forem. Isso permitiria evitar a ingerência dos que se sentem autorizados a meter o nariz nas nossas coisas privadas (ministérios) com a pretensão de querer resolver problemas em nosso lugar. Por conseguinte, os partidos políticos devem considerar-se adversários e não inimigos. Devem rivalizar uns com os outros não a partir de pertenças étnicas ou regionais, de amizades e apoios internacionais, mas de programas políticos com vista a incrementar as liberdades nacionais, os espaços democráticos, a participação das culturas no debate civil, do nível de vida moçambicano, etc. É indispensável criar um espaço público e uma espécie de contratualismo moçambicano. Para isso, deve-se concretizar um múnus de princípios, um contrato político que os governantes, independentemente da família política a que pertençam, deverão imperativamente respeitar e defender a todo o custo, um número de valores mesmo materiais, que não podem ser alienados sem o consentimento explícito dos moçambicanos, através de um referendo, por exemplo. As forças políticas e sociais moçambicanas devem ser os principais interlocutores umas das outras na vida política moçambicana. As forças políticas moçambicanas deveriam fazer um deal sobre o essencial, o indiscutível, deveriam fazer com os povos de Moçambique uma espécie de contrato social sobre a essência mesma da liberdade moçambicana, sobre o que não é negociável, o que deveria constituir o fundamento normativo do Estado. A nível de bens económicos que constituem o património nacional (portos, caminhos de ferro, minas, a terra, etc.), de jurisdição política, espaços estritamente nacionais que não são acessíveis a estrangeiros (ministérios, lugares de defesa, de segurança, de planificação, etc.), prerrogativas ciumentamente nacionais não cedíveis a ONG, cooperações, doadores, etc.
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O «ESPÍRITO» DA DEMOCRACIA Severino Elias Ngoenha
Embora o partido libertador e maioritário no Parlamento moçambicano hoje, a Frelimo, defenda, recorrendo ao que chama de verdade histórica de que ele é o autor da constituição de 1990, o primeiro texto mãe a consagrar liberdades democráticas individuais aos moçambicanos, e a Renamo argumente, em contrapartida, que se não fosse a pressão que veio das matas não teríamos Democracia, na verdade, a «paternidade» do espírito da Democracia que se fez verter naquele pertence à história comum, e não de partes, dos moçambicanos. Pretendemos, neste artigo, conceptualizar e defender este espírito à luz dos processos sistémicos, metodológicos e ético-morais do Moçambique de hoje. Faremos isto tornando frutíferas as evidências explícitas e implícitas deste espírito centrando-nos no texto constitucional, sem, no entanto, limitarmo-nos a ele. Uma cultura política baseada num culto ao conflito, ao contraditório, pode penumbrar o espírito da Democracia, espírito este que está profundamente impregnado na história comum dos moçambicanos. E dizer ou colocar as coisas desta forma não significa (e nem pode significar) esquecer as atrocidades cometidas durante a chamada guerra dos 16 anos, em que morreram mais de um milhão de concidadãos. Bem pelo contrário. «Aquilo» não deve voltar a acontecer neste solo pátrio. Colocar a história de Moçambique do lado do espírito comum dos moçambicanos é deixar-nos conduzir pelo espírito da Democracia; ou seja, significa reconhecer o simples facto de que, se todos reclamam a paternidade da Democracia (e nenhum pai reclama a paternidade de um filho que não quer) é porque o espírito da Democracia
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(melhor: o espírito democrático) está impregnado no fundo, bem no fundo destas almas. E este espírito basea-se num acordo básico que temos como moçambicanos: de que precisamos de uma Constituição democrática para vivermos conjuntamente. O texto constitucional aprovado pelo Parlamento moçambicano a 16 de Novembro de 2004, hoje em vigor, proíbe que se toque, de ânimo leve, no espírito democrático nele plasmado. De facto, no seu artigo 292º (Limites Materiais), no capítulo Revisão da Constituição, reza, na sua alínea b), que qualquer revisão deve respeitar a forma republicana de Governo, e, através da alínea l) que também as normas que regem a nacionalidade não podem ser alteradas para restringir ou retirar os direitos de cidadania. Qualquer grupo que quiser alterar estes e outros aspectos constantes nos limites materiais6 devem estar sujeito a um referendo. O resto, podemos alterar. Entretanto, qualquer asserção sobre o espírito da Democracia deveria começar como uma pergunta: Porquê precisamos de uma Constituição? A Constituição, esta lei-mãe, é como um espelho. Vamos ao espelho todos os dias, não somente por motivos estéticos, mas por motivos profundamente humanos, de rever-nos a nós mesmos, de nos reconhecermos a nós mesmos. Se não formos ao espelho por longo tempo, não nos reconheceríamos a nós mesmos. Há, no entanto, uma diferença entre o espelho e a Constituição: ao espelho vamos todos os dias, mas à Constituição somente e sobretudo, quando se sente que uma parte do corpo (Moçambique) está sendo violada ou há dificuldades de a manter sã e próspera. Assim, a primeira resposta básica à pergunta porquê precisamos de uma Constituição? A resposta é: para que todos nós nos possamos reconhecer neste texto-base, principalmente quando os nossos direitos que lá inscrevemos, como cidadãos e como grupos, estiverem a ser violados. Porém, embora a resposta seja plausível, ela não é suficiente. É apenas o começo. Precisamos de discernir mais elementos constituintes da nossa Democracia que, sem ferir, confiram a substância necessária que corporize um Estado e uma forma de convivência democrática. Quais são estes elementos complementares mas ao mesmo tempo fundamentais à constituição para que, no seu conjunto, o espírito da Democracia se reconheça no dia-a-dia dos moçambicanos? Quais são as várias e outras formas de materializar o
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espírito democrático que, de vez em quando, impregna nos reclamantes da sua paternidade, i.e. de todos moçambicanos? A intenção deste artigo é a de procurar resposta a uma questão que consideramos importante: Como corporizar o espírito da Democracia em Moçambique para além do texto-mãe constitucional? Partimos do pressuposto que as constituições garantem uma Democracia enquanto sistema; contudo, para além da garantia do funcionamento do sistema democrático há elementos, há dimensões da Democracia que não se encontram explícitas no texto-mãe, embora implícitas. Essas dimensões são o método de trabalho democrático e, ainda mais importante, os valores democráticos. Partimos do pressuposto que o espírito pleno de uma Democrcia terá que tomar em conta estas três dimensões: sistema, método e valores.
Democracia como Sistema O espírito do sistema democrático, como bem fundamentaram os cássicos da filosofia política (Locke, Rousseau, Hobbes), reside na chamada divisão de competências entre as instituições e os titulares dos poderes legislativo, executivo e judiciário e na garantia da participação dos cidadãos, individual e colectivamente, na gestão da coisa pública. De facto, os clássicos sublinharam a necessidade de separar entre quem formula leis, daquele que julga e, outrossim, daquele que tem por missão vigiar o seu cumprimento; deve perceber-se que este princípio de divisão de poderes visava, na óptica dos clássicos, combater as monarquias absolutistas (portanto combater a possibilidade institucional do abuso do poder) que imperavam na Europa e defender o direito do cidadão como portador da liberdade de emitir juízos sem o perigo de ser perseguido por isso. Pois, a invenção da cidadania implica isto mesmo: a possibilidade de cada indivíduo usar o espaço público para fazer o uso público e livre da sua razão, como diria Imanuel Kant no seu texto Was ist Iluminismus? Este espírito, nomeadamente o da divisão de poderes e o da defesa do indivíduo perante a possibilidade do uso arbitrário do poder pelos titulares dos órgãos do Estado, está praticamente vertido em quase todos os textos constitucionais dos regimes democráticos africanos, salvo algumas excep-
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ções. Em Moçambique, a julgar por este espírito, temos uma Constituição moderna e democrática. Que ainda exista a grande preocupação de como assegurar a plena separação de poderes, no sentido de garantir que o poder executivo dos governantes do dia não intervenha nos processos judiciários, esta preocupação foi constatada e discutida num dos textos desta colectânea. Em Por um Pensamento Engajado, o texto referido, abordam-se dois conflitos que não são somente inerentes à nossa Democracia moçambicana: primeiro, o conflito entre o poder executivo e o poder legislativo que se manifesta a partir do próprio texto constitucional dando, num e noutro caso, importância diferente a cada um deles; por outro lado, é identificado o conflito potencial entre o executivo e o judiciário dado que os titulares e agentes deste são nomeados pelos titulares do executivo. Na prática e por causa desses conflitos, torna-se impossível garantir a máxima «ninguém está acima da lei». Existem, no entanto, outros conflitos que ferem o espírito da democracia como sistema e que merecem ser analizados com mais cuidado. O primeiro desses aspectos refere-se à ideia de que uma Constituição deve ser um recurso último para gerir politicamente a diversidade cultural devido, como se argumenta, ao facto de Moçambique ser um mosaico de culturas; usa-se, neste argumento, o termo cultura numa perspectiva principalmente antropológica. O segundo aspecto a aprofundar é o caracter da ligação entre o liberalismo político (consagrado no texto constitucional) e o liberalismo económico (também indirectamente consagrado no mesmo texto): é uma ligação necessária ou contingente? Um terceiro aspecto de não menos importância do nosso sistema democrático diz respeito ao tratamento das minorias políticas (oposição) pelas maiorias que chegam ao poder democraticamente (por via das eleições). São estes os problemas do sistema democrático moçambicano mas que são extensíveis aos outros países africanos. Respostas não claras a estas questões têm levado a muitos problemas que concorrem para penumbrar o espírito da Democracia dos sistemas de governo no contexto africano. Comecemos pela questão da diversidade. Nos debates sobre a possibilidade do contratualismo político insiste-se muito no tipo de contrato de natureza política que viabilize a convivência entre as diferentes culturas em Moçambique. Para tal constatação, tem sido tomado como pressuposto o
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chamado «mosaico de culturas». Argumenta-se, com razão, que a diversidade de línguas, de hábitos e costumes, de crenças colectivas, de práticas religiosas, etc., não deve ser fonte de desunião, senão exactamente o contrário: deve ser vista como uma riqueza. O discurso sobre as premissas principais para a formação de uma nação unida, portanto, para além de se basear na pertença a um território e a uma história comuns de sofrimento, descriminação e luta, tem sido também argumentado com base no princípio da «unidade na diversidade». Enquanto a dimensão «unidade» é vista sob o ponto de vista político (como uma nação), a dimensão «diversidade» neste argumento, é tomada, geralmente, na sua acepção antropológico-cultural. Pensa-se que as culturas – enetendidas na sua dimensão antropológica – são a fonte primária das identidades diversas que deverão concorrer para a formação de uma identidade nacional7 . Nesta argumentação – referimo-nos àquela que considera as culturas como a base e fonte primária das identidades que iriam confluir numa unidade nacional – assenta-se sobre uma problemática sobreposição entre a concepção cívica e a concepção étnica do processo da formação das nações em África8 . Na primeira estamos a tratar de cidadãos, portanto como matéria constitucional da democracia; na segunda estamos a tratar de comunidades, ou seja, de grupos com um outro tipo de ligações (língua, costumes, religião, crenças, etc.) que primeiramente não operam numa esfera política, mas atingem-na como consequência. No caso de Moçambique, as comunidades étnicas não tiveram a ocasião de se desenvolverem e se tornarem formas de articulação política e económica. Este processo de amadurecimento, como sabemos, foi interrompido pela colonização. 7
Veja-se, por exemplo, o Manifesto Eleitoral da Frelimo onde a justificação apresentada a mobilização do respeito pela «Unidade Nacional» são a «origem étnica, rácica, religiosa, de região» e também «línguas». (Frelimo, Manifesto Eleitoral. Maputo, Outubro 2004, p.16).
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Aqui fazemos referência à diferenciação adiantada por Ferdinand Tönnies entre as noções Gesellschaft (sociedade) e Gemeinschaft (comunidade). Os laços entre os cidadãos numa sociedade são burocráticos (a Constituição é o último garante) e entre os membros das comunidades são sanguíneos. Os termos «concepção cívica» e «concepção étnica» foram emprestados de Habermas do artigo Porquê necessita a Europa de uma Constituição? In: ROCHA, A.S.E., «Europa, Cidadania e Multiculturalismo». Universidade do Minho/Centro de Estudos Humanísticos, Minho, 2004, pp. 21-40.
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Daí, seria ingénuo pensar que essas comunidades linguísticas e culturais poderiam formar hoje base de uma articulação política no contexto da formação da nação moçambicana. Não existe, neste momento, nenhuma esfera pública nem na economia, na arte, na cultura, nas diferentes regiões ou províncias, etc. onde a articulação dos diferentes actores tem como base a língua ou a cultura. Mesmo os diferentes agrupamentos em forma «Associações de Amigos de …» não se mostraram viáveis; o seu fracasso na articulação dos interesses dos pretensos membros e a sua incapacidade para evoluir para além dos seus membros fundadores é uma prova da inviabilidade de qualquer projecto político que tenha como base tais afinidades baseadas em «culturas» na esfera pública. Por fim, também não podemos considerar as províncias como culturalmente (no sentido antropológico) homogéneas para serem a unidade cultural que seria a base para a unificação política dos moçambicanos. Não se pretende defender aqui que as permissas étnico-culturais não façam algum sentido para a articulação de iniciativas de políticas no contexto democrático. A política linguística é um bom exemplo de espaço de articulação e comunicação, mesmo e sobretudo ao nível do Parlamento. O que se pretende dizer é que a viabilidade dessas comunidades, no sentido de Tönnies, veicularem interesses políticos com base nas afinidades étnico-linguísticas é extemporânea; a época histórica em que seria possível a essas comunidades culturo-linguísticas evoluírem para formarem sociedades políticas ficou históricamente, graças ao colonialismo, ultrapassada. As culturas não são um espaço de reivindicação de afinidades políticas de qualquer ordem. Trata-se, pois, de fundamentar a unidade política e a política da unidade nacional de Moçambique a partir de um outro ângulo, dum discurso de natureza política e não cultural. O ponto de partida para esta nova argumentação da unidade nacional pode ser tomado da própria evolução constitucional em Moçambique. Somos do ponto de vista que, a começar pela Constituição
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de 19759 , passando pela de 199010 , até ao texto constitucional aprovado pela Assembleia da República em 200411 , emergiu uma nova forma de solidariedade no seio dos moçambicanos: baseada no Direito e, na verdade, no direito fundamental de sermos e articularmo-nos como moçambicanos. Ser moçambicano passou a ser um valor. Aqueles textos constitucionais inauguraram e consagraram uma única cidadania, a moçambicana; neles, tomam-se as culturas diferentes como elementos que fundamentam o que chamamos por «concepção cívica» para a nação moçambicana. A proclamação da Independência Nacional foi, sem dúvida, o acto criador, o acto fundador, acto este necessário para qualquer processo identitário. Esta nova forma de integração social (cívica), que vai para além das relações pessoais, familiares, étnico-linguísticas, desenvolveu-se como possibilidade graças ao novo estatuto de cidadão moçambicano fixado pela Constituição de 1975. Extrapolando para os outros países africanos, podemos defender que as Independências inauguram o espaço histórico, a primeira possibilidade empírica, para a formação e o desenvolvimento de sociedades civis nos diversos países africanos. Este espaço criado como resultado de uma luta armada é o que permite, mais tarde, a que todos os moçambicanos tivessem a oportunidade e o direito de reivindicarem uma cidadania mais activa, ou seja, a luta ou as lutas pela ampliação dessas liberdades. Esta cidadania activa tinha sido negada pelo colonialismo. Infelizmente, algumas dessas lutas posteriores de reivindicação e para a ampliação dos espaços de exercício da cidadania, pela ampliação do espírito da democracia, foram ou tiveram que ser violentas. Hoje, porém, a fundamentação da unidade nacional deve acentar sob outros alicerces, precisamente porque se configuram novos espaços e, respectivamente, outros substratos por debaixo das solidariedades. 9
Sobre esta Constituição lê-se, no preâmbulo do texto de 2004: com a Independência Nacional «devolveram-se ao Povo moçambicano os direitos e as liberdades fundamentais».
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No mesmo texto lê-se: «A Constituição de 1990 introduziu o Estado de direito democrático […] para a instauração de um clima democrático que levou o país à realização das primeiras eleições multipartidárias».
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Sobre a Constituição aprovada em 2004 diz-se que « desenvolve e aprofunda os princípios fundamentais do Estado moçambicano» (carácter soberano do Estado, baseado liberdade de expressão, organização partidária e garantia de direitos e liberdades fundamentais dos cidadãos).
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Em primeiro lugar, como resultado da nova aliança capitalista no contexto da globalização, formaram-se e articulam-se novas solidariedades entre os que estão do lado perdedor. De facto, há uma aliança sem precedentes entre os capitais manufactureiro (em países desenvolvidos poderíamos chamar por industrial), comercial e bancário-financeiro, com os bancos comerciais a ocupar o lugar central na aliança. Esta aliança dos sectores mais fortes da economia é feita à custa da democratização económica, em que o operário explorado é o mesmo: homens e mulheres da periferia. É neste contexto que o economista africano Ayittey, no seu livro Africa Unscheined, fala da nova cheetah generation: trata-se de uma nova geração que se despediu de duas heranças ideológicas, nommeadamente da ideologia do Estado-pai que exagerava pela sua pan-presença (Ngoenha) e das ideologias baseadas no suposto conluio sistémico dos extrangeiros contra nós. Relativamente à despedida da ideologia da paternidade (exagerada) do Estado: esta geração não acorda de manhã e espera que seja afectada num dos sectores considerados como prioritários para o nosso país. Os cheetah procuram o seu emprego percorrendo todos os dias as ruas das cidades capitais e distritais, procurando vender tudo o que lhes vem à mão; são já pais que reclamaram contra o facto de a polícia ter ensaiado o encerramento das fabriquetas de CDs fraudulentamente copiados dizendo que com este gesto ficariam sem poder levar o pão à casa, sem pagar as propinas da escola dos seus filhos (entrevista na TVM); são mães-jovens que desde manhã até à noite se sentam à porta dos prédios e lojas para venderem e revenderem produtos agrícolas, refrescos, doces, rebuçados e outros para poderem justificar o seu rendimento diário que, muitas vezes, acaba a caminho para casa; são os mesmos e as mesmas que, ao princípio da noite, empurram-se na azáfama das filas para matricular-se nas escolas técnico-profissionais ou faculdades universitárias, frequentam aulas de inglês e informática ou ainda secretariado. Não esperam pelo Estado para lhes indicar que decisões tomar: «viram-se» por eles mesmos, é uma «geração da viragem»! Tentam tudo para viver e sobreviver. Na verdade, como diz Ayittey, nasceram numa nova selva: a cidade onde cada um deve virar-se. Com uma diferença: são técnicos formados, são profissionais temporários, leêm jornais, participam em ralis políticos, informam-se sobre os processos que lhes são vitais (sobre
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a taxa de câmbio do dia, por exemplo) e, de forma semi-estruturada, sabem como exercer pressão a partir da rua e do «chapa 100». De facto, não são uma geração; o termo correcto para classificá-los é «classe», nomeadamente a classe dos perdedores da globalização, a classe dos afectados pelos riscos globais, como diz Ulrich Beck em Risikogesellschaft (Sociedade de Riscos)12 . O que Ayittey considera cheetah generetion nós chamaremos por classe dos afectados pelos riscos globais. Eles vivem as consequências nefastas dos riscos e neles se baseiam as novas solidariedades. A propósito da mudança de uma sociadade classista capitalista para uma sociedade classista de riscos Beck escreve: A força motriz da sociedade de classes (capitalista) deixa-se resumir pela frase: Tenho fome! O princípio que vai por a Sociedade de Risco em movimento será, pelo contrário, baseado na expressão: Tenho medo! No lugar da solidariedade devido à miséria enfrenta-se a solidariedade baseada no medo.13
É o medo cotidiano pelas consequências da pobreza, e não o medo da condição de pobreza em sí, que constitui a nova força motriz da solidariedade desta nova classe; e é por isso que o seu engajamento político não é, à primeira vista, em torno de quaisquer valores patrióticos, sociais ou morais. É em volta da sobrevivência, é em volta do medo. Da mesma forma que esta solidariedade em volta do medo de sobrevivência atravessa todos os estratos sociais, desde os mais desfavorecidos aos mais favorecidos, atingindos e ainda-não-atingidos, atravessa também todas as culturas no seu sentido antropológico (etnias, religiões, hábitos, costumes, etc.). Em todas as culturas encontramos os atingidos e os ainda-não-atingidos. (pensemos no risco de ser atingido pelo SIDA, no risco de respirar o ar poluído com tudo aquilo que a MOZAL representa no imaginário ambiental, no risco do aumento dos preços, no risco provocado pelas crises financeiras, etc.). É por isso, também, que as acções políticas da classe de atingidos parecem, aos olhos dos poderes, baseadas no irracionalismo, fanatismo, extremismo políticos, diz-nos Beck. 12
Cfr. BECK, U., Risikogesellschaft. Auf dem Weg in eine andere Moderne. Suhrkamp, Frankfurt am Main, 1986. Neste livro Beck divide a «Sociedade de Riscos» em duas classes: os «afectados» e os «ainda-não-afectados» pelos riscos, mas nenhuma delas pode evitar os seus efeitos.
13
Cfr. BECK, 1986,p.66.
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Assim, também as justificações comuns («são as políticas do Banco Mundial que nos obrigam...»; «são consequências da globalização capitalista»; «os países ocidentais não gostam da nossa independência»; «comércio internacinal injusto para nós»; enfim, justificações baseadas numa teoria de conluio ao nosso desenvolvimento) sobre as causas do estado precário da sua situação social já não são plausíveis aos seus olhos. Da mesma forma que veêm como muita relutância os argumentos históricos, segundo os quais, vivemos ainda as consequências de uma longa noite colonial. Um outro tipo de medo é característico na classe dos ainda-não-atingidos (as elites): o medo da invasão pela classe dos atingidos aos empregos, às mansões, aos carros (o «movimento de 5 de Fevereiro» em Maputo (2008) começou por atingir o mais evidente símbolo de luxo na rua: o automóvel). Daí se perceber as alianças (ou solidariedades) entre as elites políticas, económicas e intelectuais. Estas também atravessam as frágeis fronteiras linguísticas, étnicas, regionais, costumeira de Moçambique. No entanto, porque os lugares ao sol são poucos, no seio desta classe surgem os que pretendem falar em nome das culturas, arvorando-se seus representantes. Assim se percebe a politização das etnias: fala-se em nome de uma comunidade (política) imaginada a partir das afinidades culturais e étnicas para se reivindicar ou assegurar espaços de articulação política, económica, social e académica. Voltando ao nosso ponto central: o discurso sobre a unidade nacional tanto por parte de quem a defende, como por parte dos que querem montar cancelas no rio Save para dividir Moçambique - torna-se obsoleto se continuar a ter como pressuposto o velho paradigma de «matar a tribo para erguer a nação». O que está errado nele é a sua base: a existência da possibilidade de articulação política de comunidades etno-linguísticas num contexto de sociedades políticas nacionais. Por isso, se há algo que pode marcar a linha divisória da diversidade em Moçambique, e que mereça uma atenção no sentido de desenvolver o espírito da Democracia como sistema, esta linha é marcada pela posição que os grupos sociais e indivíduos ocupam em relação aos riscos económicos e sociais e muito pouco em volta das línguas, hábitos culturais, crenças religiosas, etc. A segunda grande questão resulta de uma abordagem bastante difusa, no debate político moçambicano, acerca da relação entre os liberalismos
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político e económico: existe, entre eles, uma relação necessária ou contingente? Perguntando-nos de forma mais simples: Moçambique, ao consagrar constitucionalmente o liberalismo político, deve necessariamente adoptar, como consequência, uma economia liberal (liberalismo económico)? Ou pode ser possível que o regime da democracia liberal (liberalismo político) pode coabitar com as formas mais socialistas de estruturar e organizar a economia? O adeus ao regime político marxista (Estado-providente) em Moçambique deveria necessariamente significar também um adeus à orientação socialista da economia, enterrando o socialismo como um faraó, ou seja, levando consigo ao fundo da terra toda a sua riqueza de medidas e solidariedade social instalando-se um Estado minimalista liberal? De facto, nem teoricamente e nem na prática, existe uma ligação necessária entre o liberalismo económico e político. Sob o ponto de vista teórico, é uma relativa distorção na interpretação teórica da tese de Marx - mais especificamente o princípio de que a infraestrutura económica explica, em última instância, a superestrutura político-ideológica - que levou a uma falácia de haver uma ligação necessária entre os dois processos, quanto a nós, independentes. Esta ligação falaciosa levou os actores políticos a tomarem opções de políticas económicas de certa forma anti-populares, em nome do liberalismo, porque os mesmos actores se teriam «esquecido» do termo «em última instância», preferindo fazer uma ligação directa. Sob o ponto de vista prático, os sistemas económicos (socialistas) adoptados pelos países nórdigos como a Holanda, Noruega, Dinamarca, etc., são exemplos empíricos de regimes de liberalismo político, mas que descansam sobre uma economia baseada na solidariedade social para com os mais desfavorecidos e no princípio de subsidariedade para derimir as disparidades de carácter regional. O adeus ao marxismo não poderia ter significado também a morte de um Estado orientado pelos valores de solidariedade e justiça sociais na sua política económica e a consequente instalação de uma economia capitalista «selvagem» na qual cada um está por si só. O argumento político que se adianta, segundo o qual «não se pode distribuir o que não se produz» não pode traduzir-se no seu correlato «vamos esperar sermos ricos para podermos redistribuir a riqueza pelos pobres». O resultado desta poluição no debate
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teórico sobre ou «liberalismo político ou socialismo» é um desvio do espírito da democracia, na sua vertente económica. Podemos ir mais longe afirmando que, nos países africanos de hoje, a maior ameaça à estabilidades dos regimes políticos democráticos (baseados na democracia liberal), é a falta de uma democracia económica e não da existência de diversidade de culturas. O que queremos dizer com o termo «democracia económica? «A democracia económica começa […] pela ética dos resultados. Não nos adianta muito saber que [os] dirigentes […] são bem intencionados, que contribuem para escolas das regiões pobres, se, no conjunto, o resultado é o aprofundamento das desigualdades […]» escreve o economista Douwbor no seu livro Democracia Económica14 .»
O que Dowbour propõe é, no fundo, um adeus à ideologia de que o mercado regula tudo porque o resultado desta economia capitalista selvagem é a pauperização progressiva dos mais pobres: o problema é que os grandes vencedores vencem sempre porque têm a capacidade de mudarem as regras. E quando o fazem, é sempre em atenção aos seus interesses empresariais (veja-se a última conversa chamada «público-privado» entre os ministérios económicos do Governo moçambicano e os representantes dos empresários [CTA, Conferederação das Associações Económicas]; na sua pauta de debate constam assuntos como «a depreciação do metical», «Regulamento da Lei Cambial», «revisão das tarifas e taxas dos scanners», «revisão dos preços e dos períodos dos pagamentos na contratação com o Estado», «revisão da taxa rodoviária para a exportação», «redução da carga fiscal», «eficiência da colecta de impostos», etc.). O princípio da viragem paradigmática proposto por Dowbour é simples: a gradual passagem (que ele chama de «deslocamento sísmico») do paradigma económico da competição substituindo-o pelo paradigma da colaboração. No paradigma económico da cooperação deve reinar o princípio da «productividade sistémica» (ele empresta este termo de Celso Furtado que usa «rentabilidade social»). Como o próprio diz:
14
DOWBOUR, L., Democracia Económica. Um Passeio pelas Teorias. Fortaleza, Banco do Nordeste do Brasil, 2007,p.171.
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«A lógica básica é simples: quando um grande produtor de soja expulsa agricultores para as periferias urbanas de região, podemos eventualmente dizer que aumentou a produção de grãos por hectar, a produtividade da empresa rural. O empresário dirá que enriqueceu o munincípio. No entanto, se calcularmos os custos gerados para a sociedade com as favelas criadas e com a poluição das águas, por exemplo, ou o próprio desconforto de famílias expulsas das suas terras, além do desemprego, a conta é diferente. Ao calcular o aumento da produção da soja, mas descontando os custos indirectos gerados para a sociedade, o balanço sistémico será mais completo e tecnicamente correcto. Ou seja, temos de evoluir para uma contabilidade que explicite o resultado em termos de qualidade de vida, de progresso social real.»15
Da mesma maneira que, se um banco leva as poupanças dos seus clientes e aplica-as em acções especulativas do mercado e, no fim do ano, apresenta no seu relatório de contas lucros fabulosos (veja-se os relatórios anuais dos bancos) aumenta o PIB, mas, provavelmente, esse «desvio» de aplicação (que segundo a ideologia do «mercado livre» não vê nenhum problema) teve como «resultado social» a descapitalização de comunidades ou uma redução do «uso productivo» das poupanças. O lucro, na óptica da democracia económica, tem de ser social, e a productividade tem de ser calculada numa base sistémica. Podemos assim concluir que, pelo menos nas nossas circunstâncias, a ideologia do liberalismo económico, ou melhor, nas condições de um capitalismo selvagem, ou melhor ainda, da dolarcracia, oespírito da democracia continua sendo sistematicamente ferido.
Democracia como Método Não é possível construir uma democracia sem democratas. «Democratas» são os titulares de órgãos políticos eleitos na base de regras claras e pré-estabelecidas. O método, neste contexto, define as vias segundo as quais os titulares de cargos políticos chegam ao poder. 15
DOWBOUR, L., Democracia Económica. Um Passeio pelas Teorias. Fortaleza, Banco do Nordeste do Brasil, 2007,p.172.
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Uma característica importante de regimes democráticos – senão mesmo a condicionante para que qualquer regime seja classificado como «democrático» – para além da divisão de poderes, é a eleição do presidente e dos parlamentares através de eleições periódicas e a consequente limitação no tempo do exercício do cargo, ou, limitação das vezes que os titulares podem candidatar-se ao mesmo. Ou seja, a organização de eleições depois de um determinado período (normalmente de 5 anos) é o método na base do qual as democracias modernas representativas procuram garantir a reprodução dos seus «democratas». Neste contexto, quase todos os países africanos possuem, no mínimo, leis eleitorais que pretendem ser democráticas. Porém, só por sí a existência de uma lei eleitoral não garante que os eleitos sejam democratas. Tiranos ou populistas também podem deixar-se eleger por métodos democráticos ao nível nacional, tendo sido, porém, «eleitos» de forma não democrática para se tornarem candidatos ao nível dos seus partidos. A existência de um sistema de eleições ao nível da nação, só por sí, não garante que os melhores filhos desta nação sejam os que são eleitos. Alguns dirigentes africanos foram eleitos e depois (ab)usaram dos poderes que tiveram para mudarem a Constituição por formas a se «fazerem» eleger de novo. Assim também, nem todos os bons e corajosos dirigentes que fizeram os seus países desenvolver, foram eleitos em processos democráticos. No que concerne aos regimes democráticos, o risco que sempre está a espreita de tiranos ou populistas se fazerem eleger, pode ser definido de duas formas: atarvés da limitação do período do exercício do poder pelo candidato vencedor e através da limitação das vezes que um mesmo candidato se pode recandidatar, independentemente de ter mostrado bons serviços. Estas limitações, no mínimo, evitam que o poder seja exercido pelas mesmas pessoas durante muito tempo. Qualquer poder, quando exercido durante muito tempo, corrompe; ou, no mínimo, levanta a suspeição de se ter corrompido. No entanto e como vimos, a aplicação do método democrático nas eleições ao nível nacional não é uma condição suficiente para garantir que tenhamos «democratas» como candidatos a titulares dos cargos mais altos. Ou seja, a realização das eleições periódicas não constituem por si uma garantia do «espírito» democrático. Dois passos em diante devem ser dados:
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o primeiro que obrigue os partidos políticos a realizarem eleições internas democráticas periodicamente e, o segundo, que obrigue os partidos diferentes a entrarem num «pacto de transferência de poderes» no caso de haver mudança do partido governamental como resultado das eleições. Os partidos políticos, junto às organizações da chamada Sociedade Civil, são a forma moderna de participação política organizada dos cidadãos. Nesta conformidade os partidos políticos deveriam ser o viveiro do espírito da democracia que depois iria transbordar ao nível nacional através da sua participação nas eleições. Assim, entre as obrigações dos partidos políticos (expressa em lei) deveria constar a apresentação de evidências de organizarem eleições internas periódicas para o preenchimento de cargos partidários. Também, à semelhança do contexto nacional, ao nível partidário deveria haver a limitação do período de exercício dos mandatos mais importantes, particularmente do seu presidente e das comissões ou comités centrais. Estes pode ser considerados o «viveiro» dos futuros presidentes. Esta exigência seria duplamente favorável ao desenvolvimento do próprio partido: os seus membros haveriam de experimentar e interiorizar internamente o método democrático e instalar-se-ia um mecanismo transparente de selecção de líderes capazes de concorrerem à escala nacional que iriam aumentar as probabilidades de sua vitória. A ideia de base é a seguinte: a consolidação do espírito da democracia ao nível nacional passa necessariamente pela construção do mesmo espírito ao nível do funcionamento interno dos partidos que actuam na arena nacional. Para garantir este propósito seria necessário condicionar a legalização dos partidos políticos ao cumprimento das normas democráticas no seu funcionamento interno. Da mesma forma, dever-se-ia instituir um órgão apropriado para monitorar e sancionar os partidos políticos que não cumpram estas normas. No Brasil, por exemplo, este órgão é o Tribunal Eleitoral. Embora sem eliminar totalmente, o estabelecimento de um mecanismo de natureza jurídica para sancionar o não cumprimento do método democrático, à semelhança de um Tribunal Eleitoral, diminuiria a probabilidade de candidatos com evidências de métodos tiranos de governar concorrerem para as eleições nacionais; isto diminuiria, por sua vez, a probabilidade da nação ser governada por um tirano ou por uma oligarquia.
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Uma outra melhoria do sistema democrático diz respeito a prevenirmonos, enquanto nação, para as mudanças de regimes políticos, ou seja, de partidos no poder. E aqui o assunto de fundo é a consciência e a regulação da separação e ligação entre o Estado e o Governo. A essência de um Estado reside na organização das relações sociais (poder) usando procedimentos institucionais pré-estabelecidos; ou seja, que não obedecem às vontades de momento do líder. Em qualquer dos casos, estes procedimentos devem prevenir e, se este for o caso, poder neutralizar os focos de conflitos entre os membros e grupos sociais. Por isso, basta que uma parte da sociedade concorrente ao poder (partido, associação, igreja) ou um indivíduo (presidente, rei) se confunda com o Estado, então não haverá possibilidade deste Estado derrimir os conflitos que vão aparecendo na sociedade. No entanto, a concorrência política para o exercício da hegemonia (para derrimir conflitos) num Estado – dado que nem todos podem estar na posição de fazê-lo – detrminou o surgimento do fenómeno que consideramos ser «político». Ou seja, paradoxalmente à natureza contratual do Estado para manter a convivência social harmoniosa, esta somente pode ser mantida num ambiente social em que se criam espaços abertos a todos os cidadãos ou grupos destes para a competição no exercício do poder. O sistema de representatividade parlamentar (para onde entram grupos e indivíduos vencedores das eleições) e a Constituição (documento-mãe que se aplica a todos os cidadãos) são duas das maiores conquistas do Estado moderno. Os parlamentos profilaram-se como o espaço para debater e aprovar leis; a Constituição profilou-se como o espaço onde são fixadas as leis fundamentais. Nesta ordem de ideias, uma Constituição é um documento que fixa os aspectos fundamentais de um Estado. O Governo, por seu lado, pode ser definido como um conjunto de pessoas que exercem o poder político numa determinada sociedade e durante um determinado período. A responsabilidade dum Governo é, portanto, dirigir os destinos de um Estado durante este período. Pela sua precariedade temporal, o Governo e os seus titulares podem ser modificados com certa facilidade, o que não é o caso das estruturas do Estado.
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Por sua vez, a essência de um partido político é a de ser uma associação de cidadãos livres com um fim deliberado de assumirem o poder político. Alguns partidos resultam de vínculos pessoais; outros, os de massas, atinjem uma complexidade maior que os seus laços só podem ser mantidos de forma burocrática e impessoal. Quaisquer que sejam os casos, os partidos políticos surgem para «representarem» algumas camadas da sociedade na corrida para o poder. A participação política está, portanto, na génese das associações partidárias. É por isso que os partidos políticos surgem somente no contexto da institucionalização das democracias representativas no séc. XIX na Europa. Ora, governos e partidos, pela sua natureza precária em termos de existência, tendem a ser temporários, portanto a mudar. Em contrapartida o Estado não. Embora a noção de Estado pareça muito mais abstracta que as noções de Governo e de partido político, a ligação entre eles durante o período de exercício do poder de um determinado partido e seu respectivo Governo, é feita através de pessoas concretas. Assim, é «natural» que alguns partidos políticos, uma vez no poder, queiram criar o maior número possível de «cargos de confiança», ou seja, aqueles cargos em que as pessoas são nomeadas porque se deposita a confiança inteira nos seus titulares. Ora, esta é a forma mais comum que os partidos encontram para se manterem no poder: misturando os cargos políticos «de confiança» com os cargos administrativos do Estado. Este (ou seja, a mistura de cargos políticos com os cargos técnicosadministrativos) é um dos efeitos perversos das democracias modernas que os teóricos da separação de poderes não conseguiram superar. Por isso, a este nível, se torna necessário introduzir um método para preservar o espírito democrático. Desta forma, é com base na possibilidade de os partidos e os governos mudarem-se no exercício do poder e, para manter o espírito da democracia no Estado, que a transição de um Governo para outro deve ser acautelada por um «pacto de transição». Este pacto visa evitar a prática de the winner takes all. Esta prática iria perigar a própria essência do Estado que, como dissemos, é de concórdia e não de conflito. Dever-se-á, pois, definir, no quadro do pacto de transição, o princípio da separação de cargos políticos dos cargos técnico-administrativos. Os cargos políticos podem ser mexidos
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pelo Governo do dia, equanto que os outros não necssariamente. O critério para substituir os titulares dos cargos políticos são as eleições, enquanto que o critério para a substituição dos cargos técnico-administrativos é a competência, e não a pertença a qualquer associação política, social, cultural ou de natureza religiosa. A definição exacta dos cargos políticos e dos cargos técnico-administrativos deveria ser matéria constitucional. O Governo e outros titulares nomeados pelo presidente vencedor são, por excelência, os cargos considerados como de natureza política. O espírito da democracia não pactua com dirigentes eternos, por mais bons e carismáticos que sejam.
Democracia como Valores Valores constituem a base duma democracia vigorosa; manifestam, na verdade, o seu verdadeiro espírito da democracia. Numa democracia é importante ter informações sobre os processos e factos políticos dos partidos, sobre a acção dos Governos e das associações da sociedade civil, sobre as oportunidades de negócios, etc. O acesso à informação, como se soi dizer, é fundamental na era moderna e pós-moderna, para poder tomar-se decisões políticas acertadas. A informação responde à uma questão básica em política, nomeadamente «o que se faz?», «quais são os dados à disposição?». Porém, embora sendo importante ter acesso às informações mais importantes, ela não é suficiente para um sistema democrático em desenvolvimento e nem pode alimentar por muito tempo o seu espírito. O mesmo tipo de informação que precisamos para poder ganhar eleições, pode ser usado também para manipular as mesmas eleições. Neste ultimo caso teríamos um vencedor das eleições pelo domínio de informações, mas seria um domínio manipulado. Em suma, teríamos uma democracia sem democratas. Um democrata teria que ir mais longe do que obter informações. Ou seja, deve também ter conhecimentos consolidados sobre como funcionam as instituições e o sistema social. Em outras palavras, deve dominar o nível de teorias científico-sociais que respondem à pergunta «como se faz?» ou «como se organiza?». Esta questão é fundamentalmente metodológica, como
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vimos no capítulo anterior quando discutimos a democracia como método. O domínio dos métodos é fundamental para se poder participar nos debates democráticos de uma forma consciente, porque nos permite um certo pragmatismo nas nossas propostas para melhorar o próprio sistema democrático. Karl Popper diria que nos permite fazer uma certa «engenharia social», ou seja, irmos substituindo «os males pelos males menores». A grande invenção da democracia é, nesta ordem de ideias, permitir-nos poder substituir, periodicamente e cada vez mais, governos maus por governos menos maus. E, para que uma sociedade possa fazer isso, não basta ter informação sobre o «que se faz», mas também sobre «como se faz» ou «como se poderia fazer melhor» no interior do quadro democrático. Embora o conhecimento dos métodos democráticos seja muito importante, temos que reconhecer que em sociedades complexas como as modernas, seria inapropriado exigir que todos conheccessem com profundidade o método de Hondt, por exemplo. O domínio de conhecimentos desta natureza é necessariamente elitista, isto é, só pode ser dominado por uma certa classe de profissionais ou de pessoas letradas. Em Moçambique somente uma pequena parte da população seria capaz de dominar o sistema eleitoral nacional, ou o que é usado dentro de um partido ou associação. Tanto o acesso à informação, como o acesso ao conhecimento são ambos limitados a certas pessoas. No pior dos casos, o acesso a ambos pode ser sonegado de diversas formas e artimanhas às pessoas comuns ou aos adversários (como aliás sucede frequentemente na esfera política e económica). Todavia, o que não é facilmente manipulável ou sonegável são os valores. Ninguém pode reclamar a exclusividade de dispor de valores somente para si mesmo porque é impossível imaginar uma vida humana sem valores. De entre os valores, existem aqueles que podemos chamar por «universais» ou ainda «bens transculturais» (Acílio Rocha). Ou seja, aqueles que encontramos profundamente enraizados no ser humano enquanto vivo. Referimo-nos aos valores «liberdade», «tolerância» e «justiça social». Esses valores alimentam o espírito democrático e são independentes de quanta informação dispomos ou do nível de conhecimento que possuímos. O valor mais elevado impregnado no espírito da democracia é a liberdade. Em «Was ist Iluminismus?» Kant nota que a modernidade caracteriza-se
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pela saída do homem da sua menoridade. E diz que é o próprio homem que é o culpado da sua menoridade (selbsverschuldet). Acrescenta ainda que o lema do iluminismo é: «tem coragem de fazer uso do teu próprio entendimento». Assim, o valor máximo, que é a conquista da modernidade, é a liberdade («para este iluminismo porém nada mais se exige senão Liberdade» – escreve Kant). Este filósofo acrescenta ainda que a liberdade fundamental é a de fazer um «uso público» – diferentemente do «uso privado» – da razão em todas as questões. Em Locke, por exemplo, há valores que são prévios ao próprio contrato social entre os cidadãos, sendo a liberdade um deles (ao lado da propriedade e da tolerância). Ou seja, só homens livres é que podem entrar em contrato social. Por natureza, o soberano ou o tirano tiram partes da liberdade dos outros para poderem governar. Um outro valor muito evocado no contexto do espírito democrático moçambicano é a tolerância. Em muitas campanhas para a paz foi frequente ouvir apelos para que todos os concorrentes nas lutas políticas permaneçam «tolerantes» para com os adversários. Este valor é muito cultivado no seio das congregações religiosas, particularmente após a guerra em Moçambique. Curiosamente, porém, quase todos os escritos do iluminismo sobre a tolerância eram dirigidos contra a intolerância da religião cristã para com o pensar diferente. O apelo à tolerância tem, em todo caso, a sua funcionalidade no contexto das democracias modernas, principalmente das democracias africanas, algumas das quais nasceram e triunfaram após lutas armadas. Portanto após um ambiente social de intolerância das potências colonizadoras. O que pode, porém, incomodar ao espírito da democracia, e a medida que ela se desenvolve como sistema e como método, não é o valor tolerância em si, mas os seus limites. Muitos adversários políticos no contexto dos debates democráticos parlamentares se perguntam frequentemente «até aonde pode ir a tolerância?» Ou seja, o paradoxo deste valor é mesmo o apelo de termos que ser tolerantes perante intolerantes: estaríamos legitimados a, em nome da tolerância, a não tolerar os intolerantes? Mais uma vez, o problema do exercício prático do valor tolerância é teórico: não podemos chegar a uma definição positiva de quando é que
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estamos a ser tolerantes ou intolerantes perante fenómenos ou factos de natureza política. Só podemos discutir os limites da tolerância, ou seja, pela sua negativa perguntando-nos «onde termina a tolerância?» O primeiro limite da tolerância deve ser a violência física. Ou seja, a tolerância deveria acabar quando o interlucutor começa a usar a violência física para fazer valer os seus interesses ou ideias. Este é um consenso fundamental ao qual a sociedade moçambicana teve que chegar, infelizmente após uma guerra fracticida. Por este limite (violência física) ser óbvio, não nos vamos ocupar mais dele. Há outro limite mais subtil: a injustiça social. Não será violência quando nas nossas sociedades africanas uma grande maioria vive em condições de pobreza? Não é violência negar a uma criança o direito ao ensino? Não será violência quando uma parte da sociedade morra por falta de assistência médica, enquanto a outra tem todas as possibilidades de tratamento nas melhores clínicas? Ou quando negamos a uma parte da população o acesso à àgua potável e ao mesmo tempo uma pequena parte consome num dia a mesma quantidade que a outra usa numa semana? Esta é uma violência subtil. Portanto, a injustiça social deve ser o segundo limite da tolerância. Formulado de forma positiva, diríamos que a justiça é um valor que deve complementar a tolerância. A tolerância, como dissemos antes, não é suficiente para manter a paz e a democracia. A justiça social é um dos bens que chamamos por transcultural. O seu espírito não depende de culturas e nem de camadas sociais. Sobre este aspecto há muita literatura. A mais conhecida é sobre «justiça como equidade» adiantada por John Rawls (Uma Teoria da Justiça). Walzer, Taylor, MacIntyre mas sobretudo Sandel criticaram, cada um a partir do seu ângulo, esta teoria da justiça adiantada por Rawls. Eles criticam sobretudo a ideia de Rawls sobre a «posição original»: uns dizendo que o liberalismo de Rawls baseia-se numa concepção deficitária de justiça por ser abstracta (Sandel). Ou ainda, como o faz MacIntyre, critica-se o facto de Rawls supostamente ter «inventado» princípios prévios às várias culturas concretas. MacIntyre defende que «o transcultural é abstracto». A liberdade, a tolerância e a justiça social como valores não constituem, no entanto, o monopópio apenas da modernidade. Ngoenha tem
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demonstrado, como o paradigma libertário no pensamento africano resulta do contacto que a África teve com a modernidade europeia. Os africanos entram na modernidade primeiro como escravos, depois como colonizados e finalmente como globalizados. No entanto, teríamos que pesquisar se, antes da sua entrada na modernidade, indivíduos ou grupos isolados africanos não se revoltaram contra os soberanos locais africanos da época. Aí poderíamos radicar a origem profunda do valor Liberdade que ainda hoje subsiste nos moçambicanos e vai alimentando, em cada fase histórica, o espírito da democracia. O mesmo podemos dizer do valor tolerância. Este radica também na alma profunda das populações moçambicanas antes do seu contacto com a modernidade europeia. Os povos asiáticos que visitaram as nossas costas antes do século XV foram recebidos com tolerância (sem violência). O facto de os povos africanos terem abraçado as instituições, as religiões, para além dos produtos de troca que os povos asiáticos traziam, atesta a existência, já nesta época, do espírito de tolerância e alto sentido de interculturalidade. O que porém teria falhado, é o facto de não termos observado os limites da tolerância. Ainda o mesmo podemos concluir sobre o valor justiça social. No caso africano, existe uma vasta literatura que aponta a solidariedade como sendo um valor tradicional que forma e se consubstancia no mundo da vida comunitária onde existe ajuda mútua. Este espírito de solidariedade adjacente às almas africanas constitui a base sobre a qual se pode erguer, num contexto moderno e de globalização, o espírito da democracia. Nyerere tentou capatar esta solidariedade com o seu projecto social Ujamaa. A luta de libertação lançou não somente os fundamentos políticos do futuro Estado moçambicano, como também e sobretudo, os fundamentos da ética política, ética esta centrada, em nossa opinião, no princípio da solidariedade. Recordemos o lema da luta armada segundo o qual «os responsáveis são primeiros no sacrifício e últmos em benefícios». Resta saber como este princípio pode alimentar, no contexto moderno do liberalismo político, o espírito da democracia.
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PUBUNTU: NOVO MODELO DE JUSTIÇA GLOCAL? Severino Elias Ngoenha
A centralidade da questão da justiça é hoje sobejamente reconhecida pelos diferentes círculos de pensamento, não só filosóficos, mas também sociológicos, jurídicos e sobretudo económicos. Deveria surpreender que o sec. XX com o seu processo colonial, e com tudo o que isso significa em termos de descriminação, de violação dos direitos mais elementares da pessoa e dos povos, de mortes, não tenha feito da questão da justiça um dos temas principais do seu debate de ideias. Digo deveria porque, na realidade, a identificação dos temas centrais do debate de ideias é intrinsecamente ligada à História, e esta é um campo aberto, multiforme e destituído de uniformidades. Porém a apreensão conceptual das prioridades históricas, no sentido hegeliano, depende de hermeneutas cujas prioridades interpretativas não são dissociáveis dos interesses e das relações de poder que marcam os seus lugares de observação. É assim que na primeira metade do sec. XX o debate de ideias foi dominado pelo estadual-centrismo intraeuropeu e, na segunda metade, pelo conflito ideológico entre os blocos da esquerda e da direita. O fim desta disputa viu a emergência do que Francis Fukuyama, com uma falácia hermenêutica da Filosofia da História16 hegeliana chamou O fim da história, entendo a emergência de um pensamento único pós-dialéctico, que paradoxalmente ganha forma na hodierna meta-narrativa ultra-liberal, com os seus corolários da globalização, sob égide de uma economia individualista. 16
NGOENHA, S.E., Duas Interpretações Filosóficas da História do Século XVII, Porto: Ed. Salesianas, 1992.
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Entre os vários questionamentos filosóficos que o processo da mundialização suscita, ressalta a uniformização axiológica e cultural do mundo; o paradoxo ecológico, entre o imperativo de uma solidariedade diacrónica para com as gerações futuras e o esquecimento – no sentido heideggeriano – de uma solidariedade sincrónica para com os países pobres do planeta. Mas a questão crucial é a assimetria sempre maior entre a globalização de riscos e a localização de riquezas, o que levanta imediatamente a questão da justiça planetária. De facto, para o grande público, a mundialização apresenta-se como uma questão de justiça ou injustiça global, configurado simbolicamente pelo movimento não global e pelos alter-mundialistas, ou se quisermos, pela oposição simbólica entre Davos e Porto Alegre. No seu início, o movimento de Porto Alegre apresentou-se como antiglobalização. O facto mesmo que este movimento se tenha metamorfoseado e se tenha tornado num movimento por uma outra globalização, mostra de um lado, que a hodierna mundialização pode ser compreendida através de categorias agostinianas da teologia da história (mundus)17 , na qual a humanidade passa gradualmente da cidade terrestre a Civitatis Dei. Mas a esta modernidade pró-cristã, se deve acrescentar – o que Agostinho não previu – a modernidade pós-cristã, que comportou o gradual esvaziamento das categorias da teologia da história e a emergência de uma nova volteriana civis terrestre – filosofia da história – baseada sobre uma iura humana contratualista, como ele emerge nos alvores da modernidade com os trabalhos de Hobbes, Rousseau, Locke, Monstesquieu. Mas por outro lado, um dos principais problemas desta nova politeia baseada sobre o contracto – quer nas suas vestes liberais, como demonstra o surgimento dos socialismos utópicos (Fourier, Jean-Giresse, Robet Ower) e depois do marxismo – como nas suas vestes neo-liberais é a justiça: como fazer com que o Príncipe (Maquiavel), o Leviathan (Hobbes), ou os detentores dos poderes democraticamente instituídos (Rousseau, Locke, Montesquieu) sejam o menos injustos possíveis? O pensamento utópico (Gioacchino di Fiore, Campanella, Thomas More) que acompanha suspeitosamente toda a modernidade, funciona como revelador da discrepância entre os ideais 17
DUMOUCHEL, P., Mondialisation et Philosophie de l’Histoire. In: BONIN Pierre-Yves (dir.), Mondialisation: perspectives philosophiques, Laval: Les Presses de l’Université, 2001.
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modernos e a sua efectiva realização. Aliás, este é o sentido da crítica pósmoderna (Lyotard, Vattimo, Derrida e Rorty), na realidade começada pelos filósofos da suspeita Nietzsche, Freud e Marx. A solução liberal-económica parece ser incapaz de dar a eudemonia para o maior número preconizada pelo utilitarismo de Bentham e Stuart Mill. Se Adam Smith parecia convencido que a solução do problema moral não estava no proibicionismo clássico das doutrinas morais, hoje podemos constatar que o livre jogo dos interesses egoístas, racionalmente calculados, não trouxe a eudemonia para todos que se procurava. Dos dois correctores postulados – Providência e Estado – o primeiro foi abandonado e o segundo é um artefacto em crise. Alias, a globalização axiológica e de crenças levanta(ria) um problema de uma organização mundial do político e do económico subordinado a substratos teológicos, num mundo de disparidades de panteões, mas também de munus axiológicos não ancorados a nenhum credo transcendental. O Estado, principal regulador das relações sócio-económicas da modernidade, é hoje um artefacto em crise. A sua saída da cena política remete(ria) as relações sociais aos simples ditames da razão económica, o que é de natureza a aumentar as discrepâncias sociais e a repropor o postulado hobbesiano bellum omnia contra omnes. É sintomático que a chamada «revolução de ‘68» tenha sido feita em nome de valores da esquerda, contra um Estado que era tido por opressor e fazedor de guerras e que hoje, volvidos cinquenta anos, a esquerda anti-estadual de ontem, se tenha transformado no maior defensor do Estado, contra o privadicionismo do liberalismo global. Para os herdeiros da esquerda hegeliana, o Estado já não funciona como lugar da realização da liberdade, mas como último baluarte de uma justiça social em perigo. De facto, não se vislumbram no horizonte instituições susceptíveis de substituir o Estado na sua função de regulação e de equilíbrio social, o que Rousseau considerava a correcção do estado da natureza. Apesar do sec. XX ter visto a emergência de instituições globais, elas não parecem estar à altura de se substituírem ao Estado na regulação do social. A ONU, instituição não democrática e sem nenhum poder de coerção sobre os seus membros, serve de caução às relações assimétricas entre países no nome do Direito Internacional, como alias já fizera a Ius Inventionis de Cristóvão Colombo
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que serve de substrato do direito internacional moderno desde a escola de Salamanca até Kelsen. As outras instituições globais importantes FMI, BM, OMC inscrevem as suas acções no interior de um paradigma económico-centrista que levam a extremos problemáticos as desigualdades e injustiças entre países. Mas de uma maneira mais preocupante, assiste-se a emergência de máfias globais, empresas de drogas; mais paradoxalmente e na esteira do Estado moderno, trata-se de organizações com duas caras, pretensão de ser politicamente correctas no Ocidente, mas com atitudes e funcionamentos selvagens no terceiro mundo. Ainda mais paradoxal, é o facto destas organizações funcionarem com o assentimento implícito ou mesmo com a conivência e cumplicidade de Estados democráticos. Em definitiva, os alter-mundialistas levantam a questão da justiça no mundo global. Se a globalização não parece uma questão discutível, o que põe problema é saber se esta globalização pilotada por grandes grupos económicos, por doutrinas neo-liberais, de Davos, do FMI, BM, das bolsas de valores, não é um mecanismo orientado a exacerbar ulteriormente a fractura entre ricos e pobres. Isto evidencia todo o mecanismo de violência que acompanha a questão da globalização económica. Mas esta questão, justamente por causa da sua dimensão global, ultrapassa as fronteiras regionais, apesar de algumas tentativas de filósofos pós-modernos em teorizarem o fim de um discurso meta-narrativo a favor de uma espécie de tribalização epistemológica. Dois argumentos podem demonstrar a fragilidade deste discurso, primeiro, a dimensão meta-narrativa do discurso neo-liberal e da globalização, com os seus assertores teóricos que são o G8, Davos, BM, FMI, OMC etc. Segundo, a existência de um enunciador epistémico comum transversal a todas as sociedades, isto é, a questão da justiça. São prova disso, o ressurgimento da filosofia política nos EUA envolta dos trabalhos de Rawls, a teologia da libertação latino-americana ou ainda as teorias pós-coloniais; todos centrados sobre a questão da justiça. Com efeito, o ultra-liberalismo e a globalização, como discurso único e como novo discurso meta-narrativo, tem mobilizado um número sempre crescente de intelectuais e pensadores, pela aversão filosófica de uma sotereologia imanente que o liberalismo é suposto representar na teologia da
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história fukuyamana; pelos limites objectivos de um sistema antropocêntrico e de depredação da natureza; pela insustentabilidade antropológica e social da uniformização axiológica do mundo e das culturas; mas sobretudo pela injustiça planetária que ela provoca, globalizando os riscos humanos e sociais dos seus empreendimentos mas privatizando as suas benesses. Se o grande problema da filosofia desde Karl Marx, consiste em não contentar-se em interpretar o mundo mas em militar para a sua transformação, então a questão é saber se o liberalismo pode incorporar preocupações fundamentais de justiça social e planetária, e se não, questionar-se quanto a possibilidade de pensar a um modelo alternativo. Se a correlação ontológica necessária entre as categorias heideggerianas de Sein e mit-Sein não surtiram efeitos nas doutrinas morais e políticas da segunda metade do sec. XX, podia se ter esperado que a categoria existencial do Sein-In-der-Welt, levasse através do reconhecimento dos limites ontológicos intrínsecos ao homem, a reconhecer através de uma ecologia primeiro filosófica e depois política, a necessidade de repensar os modelos políticos, de desenvolvimento – a famosa questão de decrescimento económico avançado por Serge Latouche18 – o relacionamento com a natureza – os contractos naturais de Michel Serre e Luc Ferry19 – mas sobretudo a necessidade de associar a necessária solidariedade diacrónica com as gerações futuras com a solidariedade sincrónica com todos os povos, corrigindo assim a contradição histórica de uma modernidade que tornou-se possível graças ao encontro com os outros, mas realizou-se contra esses mesmos outros (E. Dussel)20 . Infelizmente a Real Politik presidida pelo postulado egoísta da não negociabilidade do nível de vida dos ricos, matou ao nascer a possibilidade de um compromisso histórico global, em favor, uma vez mais, de estratégias de dominação.
18
LATOUCHE, S., Décoloniser l’imaginaire: la pensée créative contre l’économie de l’absurde. Paris, Parangon, 2003.
19
Cfr. NGOENHA, S.E., O Retorno do Bom Selvagem. Uma perspectiva filosófica-africana do problema ecológico, Edições Salesianas, Porto, 1994.
20
DUSSEL, E., L’éthique de la libération. À l’ère de la mondialisation et de l’exclusion, Paris: L’Harmattan, 1998.
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A verdadeira questão glocal de hoje – no sentido que interpela as relações entre grupos no interior de todas as sociedades, mas também a relação entre as diferentes partes do mundo – é a justiça. Trata-se então de estender a questão posta a África do Sul, pelo graffiti que ornamentava a casa de Desmond Tutu na Cidade do Cabo, ao mundo inteiro: How to turn human wrongs into human rights? Esta questão esteve na base do movimento, primeiro, da teologia de libertação latino americana - basta consultar os trabalhos de Leonardo Boff - depois do movimento de filosofia de libertação – cfr. a centralidade da questão da justiça no pensamento de Dussel – e hoje nos trabalhos da filosofia de interculturalidade (Raul Bentacourt). Mas como se sabe, o movimento da teologia de libertação latino-americano foi precedido pelo movimento de Black Theologie of Liberation dos EUA com os trabalhos de James Cone, que por sua vez depende de todo um movimento político-cultural de revindicação de igualdade de direitos, quer dizer de justiça, que ganha forma nos EUA já durante o período da escravatura e cujo ápice foi atingido em Harlem da Black Rennaisance com os trabalhos sócio-filosóficos de Dubois, literários, de Langston Hugues, políticos de Marcus Garvey. Todavia, os eventos dos anos sessenta com Martin Luther King e Malcom X – definidos por James Cone como partes complementares de um mesmo processo, ou ainda a emergência de movimentos como o Black Power, estão a demonstrar que os problemas da justiça não tiveram um êxito positivo. A filosofia africana, por seu lado, reclamou a justiça, primeiro como reconhecimento da dignidade humana dos africanos, depois como direito a soberania política. Hoje a questão de fundo é a possibilidade de utilizar os recursos africanos para o desenvolvimento do continente, o acesso aos mercados internacionais contra as barreiras proteccionistas dos potentes, uma soberania alimentar, direito a não ser sufocado pelo sistema da dívida, etc. Nos últimos anos o Ocidente aproximou-se das questões dos danados da terra. Alter-mundialistas, sociólogos, economistas, filósofos reabilitam a filosofia política com a questão da necessidade de um novo contracto social. É obvio que não se pode dizer que o terceiro mundo tenha inventado a justiça como questão maior da filosofia política. Alias, a justiça está presente sob for-
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ma de Filia em Aristóteles, Eros em Platão, Ágape em Agostinho, distributiva em Thomas de Aquino, equidade em Kant, etc. Isso não obstante, a particular contribuição sul-africana da justiça através do conceito operatório Ubuntu (justiça restaurativa) merece uma menção especial, e isto por duas razões. Primeiro, a filosofia africana ocupou-se essencialmente de problemas particulares do mundo negro: luta contra a escravatura, integração social das diásporas, emancipação política, luta contra a pobreza absoluta. Esta é a razão pela qual não teve eco fora do mundo negro, e mesmo aqui de uma maneira diferenciada. As questões postas pela filosofia africana nunca interessaram os asiáticos. A teologia da libertação interessou os latino americanos, mas muito rapidamente trilharam caminhos diferentes dos nossos. As questões da filosofia Bantu, da etnofilosofia, da Negritude, da autenticidade, são questões de uma filosofia que corre o risco de ser etnocêntrica, racial ou quando muito afrocêntrica. Interessar-se pelas questões da justiça significa debruçar-se sobre questões que ultrapassam o âmbito afro-africano, e por conseguinte, a qualidade e a pertinência da resposta podem constituir uma contribuição africana no âmbito da filosofia em geral, mas também, dada a natureza polissémica da justiça, ao direito, a moral e a política. Neste sentido a RSA com o seu conceito de justiça restaurativa, como foi praticada e como pode ser teorizada, pode constituir uma das primeiras contribuições importantes do continente africano para um debate de ideias que ultrapassa a dimensão africana. Não é por acaso que o processo da reconciliação interessou filósofos como J. Derrida, P. Ricoeur entre outros. A segunda razão tem a ver com a especificidade e a pertinência teórica do conceito Ubuntu na reflexão sobre a justiça. Em relação ao resto do continente negro, a RSA tem a particularidade de não ser uma colónia mas uma República independente com um sistema político baseado sobre a segregação racial. Por isso, enquanto os nacionalismos que atravessaram o continente, sobretudo na segunda metade do sec. XX, eram de natureza emancipadora, o nacionalismo - ou os nacionalismos sul-africanos - é, como os movimentos pós-escravatura nos EUA, antisegregação. Isto explica aliás, alguns empréstimos teóricos que contribuem a dar um respiro histórico amplo a reflexão sul-africana.
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No seu livro auto-biográfico Africa, The Time has Come, Thabo Mbeki21 mostra-se um fino conhecedor da história dos movimentos panafricanos e das filosofias políticas que subentenderam os seus diferentes movimentos. Por isso, quando fala de African Rennaisance conecta deliberadamente o substrato filosófico-político da nova África do Sul, com o espírito do movimento de Harlem entre os anos ‘20-‘40, que mereceu da parte do filósofo afro-americano Alain Locke, o nome de Black Rennaisance. O pai imputativo do movimento americano, William Dubois, desde os seus primeiros trabalhos The Philadelfia Negro, passando pelo Black Folks, até às controversas com Booker Washington, tinha claramente demonstrado que a questão negra era fundamentalmente política, e era a esse nível que tinha que ser resolvida. O objectivo de Dubois era fazer com que os negros gozassem, como os outros cidadãos, de todas as prerrogativas previstas pela constituição americana. Mas esta passagem tinha que ser acompanhada por uma série de medidas de descriminação positiva, susceptíveis de levar os então negativamente descriminados a integrar a sociedade global. A posição deboista recorda de perto a política pós-apartheid da África do Sul. Langston Hugues, na tentativa de colmatar o maior deficit históricoidentitário dos negros nos EUA, como aparece no Black Folks de Dubois22 , isto é, a necessidade de uma autónoma definição de si lança-se a procura da sua blackness. Porém, nesta sua busca existencial ele descobre a sua twoness. A busca de uma autodefinição de si, leva-o a cair na conta que para fazê-lo, como os intelectuais do Renascimento Irlandês, tinha necessariamente que passar pelo outro, pelas suas categorias linguísticas e culturais. Ele então se dá conta que o pluralismo cultural lhe é interior. Ele poderia ter dito como Rambow eu sou um outro. Este é o sentido profundo da sua afirmação eu também sou a América. O espírito que atravessa o renascimento afro-americano e o sul-africano, é de uma busca identitária que por razões históricas e sociológicas não pode ser exclusiva mas inclusiva, não é de separação mas de integração no respeito da dignidade e das particularidades de cada pessoa e grupo. Este é o significado mais profundo do conceito Ubuntu, cuja expressão iconográfica é Rainbow 21 22
Ed. por Thabo MBEKI, 1998. DU BOIS, W. E. B., As Almas da Gente Negra, Lacerda Editores, 1999.
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Nation. Contudo, o espírito de Ubuntu como orientação performativa da RSA pós-apartheid encontra-se já no discurso de Albert Luthuli na recepção do prémio Nobel para a Paz em 1961: A futura África do Sul será africana, mas não será necessariamente negra. Estavam lançadas as bases que se tivessem sido cuidadosamente analisadas, poderiam ter orientado diferentemente a filosofia africana e sobretudo evitado debates estéreis envolta de questões etnofilosóficas, negritude ou ainda de autenticidades. Mas se o objectivo não era expulsar os estrangeiros ou invasores, porque não havia estrangeiros nem invasores; se a luta não era racial mas anti-racial, se não se tratava de dividir mas unir, quais eram os apetrechos intelectuais capazes de servir de fundamento a uma tal empresa? Em outras palavras, se a questão era mudar as relações de poder e de sociedade, qual era a concepção operacional da justiça que podia favorecer a emergência de uma vida comum entre as diferentes raças – o que supunha provavelmente uma reconciliação entre as partes – mas desta feita, no respeito do espírito de igualdade que toda e qualquer democracia supõe? As tradicionais concepções operacionais de justiça eram evidentemente inadequadas. Tratava-se de encontrar um conceito operacional de justiça, que não se configura como o Maat egípcio ou como a Minerva grega, cujos corolários das suas visões do que é justo, acabam quase sempre leviatanamente cortando, separando, dividindo; mas quase nunca recriando, recompondo, recosendo o tecido social. Paul Ricoeur23 fala da produção da violência pela justiça, e considera que o direito penal é um escândalo intelectual, na medida em que acrescenta um sofrimento a um sofrimento, o sofrimento da pena ao sofrimento do mal feito a uma outra pessoa. A isto pode se acrescentar a preocupação manifestada por Karl Jaspers24 , em resposta aos crimes da segunda guerra mundial, em encontrar uma justiça que não de limite a estabelecer os factos, mas que compreenda uma dimensão catártica; ou como diz Derrida25 , que liberte o opressor. 23
Avant la justice non violente, la justice violente, In: CASSIN, CAYLA, SALAZAR (dir.), Vérité, reconciliation, réparation, Paris: Ed. Seuil, 2004, pp.159-171.
24
Cfr. GARAPON, A., La Justice comme Reconnaissance, In: CASSIN, CAYLA, SALAZAR (dir.), Vérité, Reconciliation, Réparation, Paris: Ed. Seuil, 2004, pp.181-203.
25
DERRIDA, J., Versöhnung, Ubuntu, Pardon: quel Genre?, In: CASSIN, CAYLA, SALAZAR (dir.), Vérité, Reconciliation, Réparation, Paris: Ed. Seuil, 2004, pp.111-156.
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Onde ir buscar uma justiça que compreenda os imperativos da catarsis através do reconhecimento do outro e da reconstrução da relação social? A justiça que se procurava, era a justiça de uma costureira que com o trabalho tenaz e de muita paciência cose a diferentes partes afim de construir uma peça única. Onde ir buscar um tal conceito? Aqui reside a segunda fonte específica da busca sul-africana: a dimensão teológica. A escolha de uma comissão de reconciliação e não a instauração de um tribunal especial para punir os crimes contra a humanidade, mostrava claramente que o caminho a percorrer para passar do human wrongs ao human rights subordinava a tradicional justiça punitiva à reconciliação. Isto é, o reconhecimento público do mal cometido, o arrependimento, a vontade de reintegrar a comunidade com uma nova atitude relacional (é o que se chama Ubuntu). Ora Desmond Tutu não foi só o executor material desse processo, mas de certa maneira também seu conceptualizador. É na mediação teológica, trabalhando de uma maneira particular São Paulo (metanóia) mas também a tradição vetero-testamentária do retorno dos malfeitores a justiça e ao bem comum, que Tutu construiu durante as suas pregações de combate que ele livra ao Apartheid a partir de 1976, o pensamento de reconciliação. Todavia, Tutu inspirava-se teologicamente na Black Theologie of Liberation dos USA iniciada por personalidades como James Cone. Esta teologia com um processo que os pós-modernistas chamariam de dekostrution, chama em causa a instância última da garantia moral da sociedade americana, aquele Deus bíblico que serve de garante da constituição. Fazendo uma exegese histórica das manifestações de Deus, os teólogos da libertação negra americana evidenciam que o Deus bíblico inscreve a sua acção num quadro histórico dominado pela hegeliana contraposição dialéctica mestre-escravo. Mas a particularidade do Deus vetero-testamentário era estar sempre ao lado dos oprimidos, e os oprimidos nos EUA eram os negros, como vão também ser os negros na RSA. Esta conclusão exegética vai constituir o leit motiv de toda a teologia negra nos USA, o que aliás vai ser retomada primeiro pela teologia de libertação latino americana e depois pela sul-africana.
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Todavia, apesar de estar ao lado dos oprimidos, o Deus vetero-testametário não quer a morte dos opressores mas a sua conversão, o que a teologia Paulina chama de metanoia. A premissa deste restorative justice encontrarse-ia, segundo Gustavo Zagrebelsky26 , na oposição que o direito hebraico faz entre nispat e ryb, isto é, entre a justiça concebida como intervenção de uma terceira pessoa e a justiça entendida como encontro entre o culpado e a vítima cujo objectivo não é a punição do culpado mas a composição da controversa graças ao reconhecimento do mal feito, o perdão e de consequência a reconciliação e a paz. A finalidade desta forma de justiça é a inclusão, é recozer as relações sociais. Contudo, mesmo que se reconheça o seu fundamento hebraico, não se pode ignorar a novidade sul-africana em ter estendido esta forma de justiça ao plano colectivo e nacional, em suma ao plano político. Pode-se então deduzir que a RSA promoveu um novo modelo de Justiça? Trata-se de um imbróglio jurídico-político-ético-religioso como parece sugerir Barbara Cassin, ou de um abandono positivo das limitações disciplinares? Quid da reparação? Pode a nova justiça negligenciar a questão da redistribuição? A restorative justice, na argumentação de Tutu, implica a reparação. Só que o prelado introduz uma diferença entre o conceito de reparação e o conceito de compensação. O reconhecimento público dos males subidos é uma reparação, mas compensar implicaria a possibilidade de quantificar os sofrimentos, restituir alguém pela perda de um ser querido. Esta argumentação é considerada por Jacques Derrida não convincente sob plano intelectual27 , e é contestada no plano prático, por exemplo, pelos companheiros sobreviventes de Steve Biko, fundador do movimento da consciência negra28 .
26
Cfr. GARAPON, A., La Justice comme Reconnaissance. In: CASSIN, CAYLA, SALAZAR (dir.), Vérité, Reconciliation, Réparation, Paris: Ed. Seuil, 2004, pp.181-203.
27
DERRIDA, J., Versöhnung, Ubuntu, Pardon: quel Genre?, In: CASSIN, CAYLA, SALAZAR (dir.), Vérité, Reconciliation, Réparation. Paris: Ed. Seuil, 2004, pp.111-156.
28
Cfr. CHARLAND, M., Prudence Plurielle. In: CASSIN, CAYLA, SALAZAR (dir.), Vérité, Reconciliation, Réparation, Paris: Ed. Seuil, 2004, pp.205-215
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Esta justiça como reconhecimento (recognition) que implica a restauração da dignidade humana das vítimas, pode fazer a economia da justiça penal e retributiva e ainda mais da justiça social distributiva? O objectivo final da justiça restaurativa (ubuntu) não era simplesmente a identificação do outro, nem mesmo perceber o outro como semelhante, mas também dar-lhe o respeito, admitir que a minha vida é igual a sua. Trata-se do reconhecimento do seu ser, da sua existência, da sua identidade, do seu lugar numa cidade comum. Fazer comunidade é tornar-se uma sociedade de com-munia, isto é de dádivas (munia) partilhadas. A mútua construção de uma comum comunidade de destino não implica então uma redistribuição social dos bens oriundos da segregação que se quer ultrapassar, não necessariamente como reparação dos tortos subidos, mas tradução para o terreno existencial dos postulados ético-jurídicos? Se essa justiça não se faz ágape/dilectio não se corre o risco de se transitar de racialização política-jurídica do apartheid a uma racialização económicosocial pós-apartheid? O tecido social que a costureira começou a coser com coragem e abnegação, necessita de muito fio e muita bordado para que não se rasgue ao primeiro movimento desajeitado. Este processo de solidificação, pode prescindir de uma redistribuição económica? A RSA, mundo em miniatura, onde uma minoria detém os meios de produção, o saber, os meios económicos e a maioria é miserável, pode ser um laboratório onde se experimentam as soluções de justiça susceptíveis de ser globalizáveis (rainbow world); como pode ser uma simples extensão do sistema mundial baseado sobre a desigualdade, onde os negros como nos EUA, na Jamaica no Brasil, para dar alguns exemplos, passaram pura e simplesmente de escravatura a semi-cidadãos, tributários unicamente de deveres servis. Em suma, rainbow world ou apartheid económica?
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FILOSOFIA COMO ENGAJAMENTO CONTRA OS MITOS * José P. Castiano
A filosofia, como qualquer outra ciência, está na fronteira máxima entre a acção ou o agir e a reflexão ou o pensamento. A particularidade dos filósofos, porém, é que eles residem nos ambos extremos: ou pensam demais ou agem demais. Entendo o demais como sendo sinónimo de para além das fronteiras epocais e políticas. Isto quer dizer que há, na História do pensamento filosófico, dois paradigmas de conceber o papel do filósofo numa sociedade: o paradigma duma filosofia da contemplação (que se concentra mais no pensamento) e o paradigma de uma filosofia de intervenção (que concebe o pensamento para servir a acção, em particular a política). O primeiro poderia chamar-se de um paradigma hegeliano e o segundo de um paradigma marxiano. Para Hegel, a filosofia é o resumo do tempo no pensamento (ou num conceito) e como tal ela só vem ao entardecer quando tudo já aconteceu. Para Marx, pelo contrário, a filosofia é chamada não somente a revelar e compreender o mundo, mas sim e sobretudo a transformá-lo. O acto de revelar e de compreender o mundo não é um fim em si, mas sim um meio para mudá-lo. Assim, o filósofo não deve somente contemplar o mundo, mas sobretudo ajudar a mudá-lo, assevera-nos Marx, ou a moldar o futuro, como sustenta Ngoenha. Poderia propor outros exemplos que ilustrem esta contraposição na História do pensamento filosófico desde a Grécia até aos nossos dias. Porém, acho que este é um debate falso. Mesmo a contraposição entre a contemplação e a intervenção é falsa porque, para mim, um filósofo é ambas coisas: um *
Apresentação perante estudantes de filosofia e docentes na Faculdade de Medicina da UEM no dia 22 de Setembro de 2007. O tema inicial deste artigo foi “O meu credo filosófico”.
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contemplador em acção e um actor em reflexão. Eu penso que há um eixo que une estes dois paradigmas aparentemente opostos da filosofia: é que os dois paradigmas são, na sua essência, um engajamento de desmistificação permanente contra os mitos. Para mim a filosofia é uma arma de desmistificação ou de revelação dos mitos. Em outras palavras e paradoxalmente, a filosofia é um espelho do mito, isto é, torna os mitos perceptíveis aos humanos através de um exercício de reflexão crítica.
A Filosofia como Espelho do Mito Se não fosse o espelho, não nos conheceríamos a nós mesmos. Se ficássemos muitos anos sem nos vermos ao espelho, o mais provável seria não reconhecer a nossa própria foto actualizada. A nossa face seria a de um estranho. No entanto, por mais estranho que pareça, por mais atraente que seja um espelho, ninguém gosta de ir ao espelho nu. Nós só vamos ao espelho depois de nos vestirmos para vermos se a máscara (a nossa personalidade) ficou bem, conforme o que queremos parecer. Mas mesmo assim, são poucas as pessoas que ficam satisfeitas com a sua imagem ao espelho: sempre gostaríamos de trocar de roupa para criar melhor impressão. É assim a filosofia: quando ela se coloca perante o espelho vê mitos. Não é por acaso que a filosofia nasceu do mito. O mito vai ser sempre o que a filosofia vê quando se põe perante um espelho numa batalha interminável. Por isso, a natureza e a essência da filosofia é desvelar estes mitos. Neste empenho de desmistificação, a filosofia chega até ao extremo de olhar-se ela própria como um mito e não o seu oposto. Não é, pois, por acaso que Richard Rorty pensava que o maior erro da filosofia foi o de ter-se visto como «espelho da natureza», ou seja, que tem a possibilidade de conhecer e revelar a verdade que governa os fenómenos naturais e os factos sociais. A razão se tornara ela própria um mito. Pois, se sabemos que a filosofia nunca vai ser capaz de conhecer a natureza das coisas, porquê então filosofar? No entanto, mesmo estando constantemente a se descobrir como um mito, a filosofia nunca deixou de lutar contra o mito. O mito é a sua imagem, o seu reflexo e ao mesmo tempo o seu oposto, a sua sombra. Assim, radicalizando a nossa posição, a filosofia leva o tempo a lutar consigo própria (o mito).
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Daqui deriva a posição central que quero defender: um filósofo digno deste nome é um caçador de mitos, isto é, de si mesmo. A sua arma é o argumento. Ele é severo, rigoroso e intransigente quando se trata de argumentar contra o mito. Mas há uma pergunta à qual não podemos escapar se estivermos de acordo com o pressuposto de que a essência e a origem da filosofia está na sua luta e amor contra e com o mito: será que a filosofia se desenvolveu realizando uma transformação gradual dos mitos ou nasceu por uma ruptura radical com os mitos do seu contexto?29 O mito é uma narrativa sobre a origem de alguma coisa. A palavra mito tem, na sua origem grega, duas acepções. Uma: contar, narrar, etc. E outra: conversar, anunciar, designar, etc. Assim temos que o mito é um discurso que é feito para um certo número e tipo de ouvintes. É uma narrativa feita em público por um narrador (na Grécia por um poeta). Outra característica básica do mito é que o público aceita o que ouve como verdadeiro, pois o poeta é um escolhido dos deuses para narrar aos ouvintes o passado, ou seja, a origem das coisas. Assim, a palavra do poeta como o enviado divino – o mito – é uma revelação também divina. Houve dois grandes poetas na Grécia Antiga: Homero – de família aristocrata, escreveu duas obras a Ilíada e a Odisséia e Hesíodo – um camponês, de classe mais baixa que escreveu Teogonia e Trabalho e seus Dias. O mito, tal e qual é narrado na Grécia Antiga, tem três formas principais de justificar a existência e o estado das coisas. A primeira forma: Tudo o que existe decorre de uma relação sexual entre forças divinas que geram titãs (seres semi-humanos e semi-divinos), heróis (filhos de um deus com uma humana ou de uma deusa com um humano), humanos, o resto das coisas da natureza e as suas qualidades respectivas (quente, frio, bom, mau, etc.). Esta é uma narração de origem ou genealógica. O exemplo duma narração genealógica: Observando que as pessoas apaixonadas estão sempre cheias de ansiedade e de plenitude, inventam mil expedientes para estar com a pessoa amada ou para seduzi-la e também serem amadas, o mito narra a origem do amor, 29
Os exemplos que se seguem foram adaptados da página electrónica http:/www.algosobre.com.br (consultada a 20 de Setembro 2007).
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isto é, o nascimento do deus Eros (Cupido). A seguir dá-se um exemplo extraído do Banquete 203a, de Platão: Quando nasceu Afrodite, banqueteavam-se os deuses, e entre os demais se encontrava também o filho de Prudência, Recurso. Depois que acabaram de jantar, veio para esmolar do festim a Pobreza, e ficou na porta. Ora, Recurso, embriagado com o néctar – pois o vinho ainda não havia – penetrou o jardim de Zeus e, pesado, adormeceu. Pobreza então, tramando em sua falta de recurso, engendra um filho de Recurso, deita-se ao seu lado e pronto concebe o Amor. Eis por que ficou companheiro e servo de Afrodite o Amor, gerado em seu natalício, ao mesmo tempo que por natureza amante do belo, porque também Afrodite é bela. E por ser filho, o Amor de Recurso e de Pobreza, ficou nesta condição . Primeiramente ele é sempre pobre, e longe está de ser delicado e belo, como a maioria imagina, mas é duro, seco, descalço e sem lar, sempre por terra e sem forro, deitando-se ao desabrigo, às portas e nos caminhos, porque tem a natureza da mãe, sempre convivendo com a precisão. Segundo o pai, porém, ele é insidioso com o que é belo e bom, e corajoso, decidido e enérgico, caçador terrível, sempre a tecer maquinações, ávido de sabedoria e cheio de recursos, a filosofar por toda a vida, terrível mago, feiticeiro, sofista: e nem imortal é a sua natureza nem mortal, e no mesmo dia ora ele germina e vive, quando enriquece; ora morre e de novo ressuscita, graças à natureza do pai; e o que consegue sempre lhe escapa, de modo que nem empobrece o Amor nem enriquece, assim como também está no meio da sabedoria e da ignorância. Eis com efeito o que se dá.
A segunda forma: Explorando a rivalidade ou uma aliança entre os deuses. No caso da rivalidade o mito explica as guerras e no caso da aliança entre as forças divinas surgem novas coisas no mundo. O poeta Homero, no livro Ilíada, explica as derrotas e as vitórias ora dos troianos, ora dos espartanos a partir das rivalidades dos deuses que estavam divididos e o Zeus, de cada vez, tomava partidos diferentes. O interessante é notar, porém, que a causa das guerras era a deusa do amor – Afrodite – que aparecera como a escolhida nos sonhos do príncipe troiano – Páris – e as outras deusas zangaram raptando a mulher do general grego – Menelu – começando aí uma guerra entre os humanos.
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A terceira forma: O mito distribui as recompensas ou os castigos que os deuses dão, dependendo se as pessoas ou os semi-deuses obedecem ou desobedecem. O uso do fogo pelos homens é um bom exemplo pois, para os homens, o fogo é o que os diferencia dos animais; ele serve para cozinhar os alimentos, a iluminar caminhos na noite, a se aquecer e serve para fabricar instrumentos de metal para o trabalho e para a guerra. Um titã (semi-deus), Prometeu, mais amigo dos homens do que dos deuses, roubou uma centelha de fogo e a trouxe de presente para os homens. Prometeu foi castigado (amarrado num rochedo para que as aves de rapina, eternamente, devorassem seu fígado) e os homens também. Qual foi o castigo dos homens? Os deuses fizeram uma mulher encantadora (Pandora) a quem foi entregue uma caixa – conhecida por Pandora box – que conteria coisas maravilhosas, mas que nunca deveria ser aberta. Pandora foi enviada aos humanos e, cheia de curiosidade e querendo dar a eles as maravilhas, abriu a caixa. Dela saíram todas as desgraças, doenças, pestes, guerras e, sobretudo, a morte. Explica-se, assim, a origem dos males do mundo.
A filosofia emerge – e penso que não deve perder esta sua origem e natureza – de uma luta com o seu oposto, o mito, encostando os argumentos que tenham fundamentos duvidosos cada vez mais contra a própria parede.
O Meu Credo Filosófico Porém, nem todos os filósofos, ao olharem para o espelho, acertaram sempre na definição do mito. Isto porque o mito consegue sempre deslocar-se para zonas de maior penumbra e esconder-se lá onde raramente um filósofo desprevenido poderia pensar em procurar o seu lado perverso: no próprio íntimo do homem. Quando o filósofo pensa ter destruído o mito, ele volta a espreitar com mais força. Porquê esta persistência do mito? Muito simples: porque, como descobriram os antropólogos e historiadores nos meados do século passado, os mitos são parte integrante da organização social e cultural de todas as sociedades; no mito estão profundamente
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entranhados os modos de pensar e de sentir de uma sociedade. Assim, embora a filosofia seja uma racionalização do mito, ela não consegue sair do interior do próprio mito. Como dizia, filósofos diferentes caçaram e acertaram em mitos diferentes. O meu credo filosófico gira em volta daqueles filósofos que penso terem sido os que mais acertaram deconstruindo os mitos que ameaçavam as suas sociedades e, por isso, transcenderam as suas épocas. A minha escolha destes filósofos prende-se, portanto, pelo facto de terem desvendando os mitos que nos ajudam a compreender o nosso tema de hoje: o papel do filósofo na desmistificação dos mitos da globalização. Naturalmente que nem todo pensador que escolho é filósofo. Mas como pensadores souberam transcender as suas épocas, isto é, engajaram-se no combate contra mitos que a maior parte dos seus contemporâneos acreditaram. Esses filósofos são: Sócrates, Marx, Nietzsche, Eduardo Said, Cheikh Anta Diop, Hountondji e Ngoenha. O primeiro, Sócrates, engajou-se contra o mito que todos nós temos em algum momento e é o básico para ser destruído em primeiro lugar, se queremos ter a pretensão de sermos considerados filósofos: o mito de sermos os detentores da verdade, de sabermos tudo, enfim, de nos considerarmos superiores aos outros. Sócrates, como é sabido, gostava de dizer: «só sei que nada sei, e é nisto que penso superar aos que pensam que sabem». Com isto Sócrates queria dizer que explicar a origem e a verdade das coisas através de objectos e realidades materiais torna-se absurdo. Só no interior do homem se pode encontrar a verdade e Sócrates passa toda uma vida a ridicularizar aqueles que pensam saber qualquer coisa que não seja de natureza espiritual. Até Platão, seu discípulo, se indignou pela maneira como ele assistiu a Democracia a ser capaz de condenar à morte ao seu mestre por «adorar deuses falsos» e por não aceitar ser impingido uma verdade que não fosse produto do pensamento. Hoje, num mundo considerado globalizado, o Ocidente se comporta e é visto como um mito de uma civilização avançada a qual sabe o caminho que os nossos países devem seguir o modelo democrático por ele construído. Sócrates nos inspira como exemplo para, na pretensão de sermos filósofos africanos hoje, combatermos este mito. Ou seja, deconstruirmos o Ocidente como um mito.
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Marx, por sua vez, desmistifica o capitalismo mostrando que este sistema é uma ideologia que se baseia no carácter fetichista perante o dinheiro. Ele descobre que, por causa do dinheiro, o homem aliena-se da sua essência que é o trabalho. O capitalismo não é uma ordem natural da sociedade e nem a última palavra do desenvolvimento das sociedades. É por causa deste elemento de alienação capitalista que Marx denuncia, que hoje somos capazes de ter consistência teórica na luta contra a opressão do capital global e podemos denunciar que o liberalismo político não assenta necessariamente numa ordem económica capitalista. Por outras palavras, Marx despertou-nos para a ideia de que podemos ter uma democracia liberal que esteja assente numa ordem económica mais justa que supere as injustiças inerentes ao capitalismo selvagem (i.e., sem regras que limitem o fetichismo pelo dinheiro e pela propriedade), como o que impera hoje em Moçambique. Mostrar as fraquezas e as contradições internas de um capitalismo selvagem deveria ser uma batalha de qualquer que se preze ser filósofo africano engajado pela liberdade. Nietzsche foi o mais radical na destruição do mito. Ele denuncia a racionalidade como sendo um mito da modernidade. Quer transmutar todos os valores modernos. Para ele o Homem moderno sucumbira perante a religião e perante o Estado, tornando-se um camelo. É preciso renascer como uma criança que abandona toda a carga da tradição. Para ele a razão não é mais outra coisa que a vontade pelo poder, uma ambição que a razão ocultara em forma de iluminismo. Nietzsche quer ver de volta o culto ao Dionísio: Zeus engendrou Dionísio com Semele, uma mulher mortal. Hera, mulher de Zeus, ficou colérica e condenou Dionísio à loucura. Desde então, Dionísio vagueia sem rumo pela África do Norte e na Ásia Menor. Um «deus estranho» este que vagueia e desaparece de repente. Dionísio distingue-se de todos os deuses pelo facto de ser um deus ausente. Mas ele voltará liberto da loucura, renascido dos mistérios da vagabundagem. Assim, o caos do Ocidente é um presságio do regresso de Dionísio para repor a moral, a ordem e a liberdade. Para mim, um filósofo deve desvelar tudo o que se tornara tradição: a própria racionalidade e a tradição propriamente dita. Aliás, um filósofo deve ir muito mais além: demonstrar que o pensamento dicotómico, que está por trás da nossa forma
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de analisar as sociedades africanas de hoje, já não faz sentido epistémico para abarcar as dinâmicas sociais africanas e resumi-las num conceito. Eduardo Said, em Orientalismo, mostra como uma civilização, o Ocidente, fabrica o mito de uma outra, o Oriente. Neste livro se percebe muito bem como o Ocidente, para dominar os outros territórios, projectou a ciência para o conhecimento do Outro, objectivando-o. Said mostra como um discurso científico – feito em forma de relatos de viagens, de discursos políticos, de pinturas, de literatura, de romance, de estudos antropológicos, geográficos, linguísticos, etc. – foi capaz de legitimar a dominação. Tudo isto, segundo Said, fazia parte de uma arquitectura monumental de criação do Oriente pelo Ocidente. Nas palavras do próprio autor, entretanto, o orientalismo não pode ser compreendido como um complô imperialista ‘ocidental’ para subjugar o mundo «oriental». (…) É antes uma distribuição da consciência geopolítica em textos estéticos, eruditos, económicos, sociológicos, históricos e filológicos». Este estudo de Eduardo Said foi seguido, no contexto africano, pelo livro The Invention of Africa de Mudimbe. Para mim estes livros desvelam o mito da invenção do Outro (africano ou asiático) pelo Ocidente. Para Cheikh Anta Diop a origem e o berço da humanidade assim como a emergência da civilização do mundo devem ser procurados em África. O lugar que a Grécia ocupa na História do pensamento científico filosófico, deveria ser ocupado pelo Egipto Antigo, e, no sentido mais alargado, pela África. A civilização egípcia é especificamente negra. Anta Diop aponta como sendo características comuns de toda África o matriarcado a espiritualidade, o humanismo e o pacifismo. Em Precolonial Black Africa Diop destaca o desenvolvimento da produção do saber científico (escrita, matemática, lógica, astronomia, medicina, etc.) nos centros do saber do Egipto, em Tumbuktu, no Benin (que ele compara com o classicismo grego); e destaca, em segundo lugar, o desenvolvimento técnico (arquitectura sudanesa, ganêsa e nigeriana, a metalurgia, o fabrico do vidro, a tecelagem, técnicas ligadas à agricultura, pesca, caça, etc.) nesses centros de produção do saber. Anta Diop é aqui alinhado não tanto pelo conteúdo do seu discurso, mas por ter sido um dos primeiros a recentrar África na História do pensamento e da criação científica. Destruiu o mito de uma África à margem da História universal. Hountondji lança uma crítica geral ao que ele mesmo cunhou por
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etnofilosofia. Este filósofo destrói o mito do unanimismo (a ideia de que os africanos pensam da mesma forma, adoram os mesmos deuses, dançam da mesma forma, etc. adjacente aos estudos etnológicos e antropológicos). Hountondji não considera etnofilosofia como uma filosofia, porque mesmo que esta consiga mostrar as contribuições que são especificamente africanas na civilização, elas são simplesmente aspectos da Mitologia. A filosofia começa onde a sabedoria e a opinião popular terminam já que estas últimas constituem acepções a-críticas em relação às tradições e à autoridade que os costumes exercem sobre o homem africano. A existência da filosofia pressupõe, segundo Hountondji, a emergência do logos e da escrita a partir da oralidade e do mito. Por outro lado a filosofia só pode ser concebida como resultado de uma actividade crítica de um sujeito autónomo que não está totalmente submerso no grupo e no mundo, senão que se põe a si mesmo à margem deste grupo e do Mundo. Embora Hountondji possa ser tomado com reservas por ter elitizado o conceito e a prática da filosofia ao submetê-la aos critérios do logocentrismo e da escrita, isto não invalida porém o grande mérito de nos ter alertado para a necessidade de preservar o carácter críticoreflexivo da filosofia profissional africana. Filosofia é um engajamento crítico.
O Filósofo e os Mitos na Globalização O Ocidente é, para Moçambique e para África, uma espécie de Deus; os africanos substituíram Deus pelo Ocidente – como diz Severino Ngoenha em Os Tempos da Filosofia. Em tudo o que pretendemos fazer, como o desenvolvimento, fazemo-lo à imagem e semelhança do Ocidente como horizonte, como justificação, como legitimação. Hoje, um filósofo que tenha a pretensão de tal ser, deve, em relação a esse mito, deixar de ser tradutor do pensamento ocidental, para ser um intérprete daquele. Ulrich Beck na Sociedade de Riscos defende que as sociedades capitalistas modernas já não se caracterizam pela distribuição desigual de capitais, mas sim por uma distribuição desigual de riscos globais. Esses riscos, por serem invisíveis, continua ele, distribuem-se desigualmente de forma argumentativa. O intelectual moçambicano deve ser capaz de interpretar, para o seu povo, o que certas opções e propostas teóricas e políticas do Ocidente
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comportam como riscos para os nossos povos. Resumindo os riscos que a globalização pode comportar para o caso dos países africanos incluindo Moçambique, Ngoenha, como texto final de Mukhatchanadas, escreve: Então Deus, por trás do seu sacrário, satisfeito nos seus sapatos made in CEE, nas suas calças «Tio Sam» e a sua camisa FMI e BM, ordenou à Caritas Internacional, à Cruz Vermelha, aos Médicos sem Fronteiras, que mandasse para os países dos danados algumas centenas de toneladas de arroz, milho, feijão. E acrescentou: Oh, não se esqueçam sobretudo de meter debaixo dos sacos de arroz algumas toneladas de granadas, de bombas e metralhadoras! Ah, metam também dentro os nossos desempregados e resíduos nucleares. O segundo mito que um filósofo nas condições de Moçambique e face à globalização tem pela sua frente é a sua própria tradição. Os intelectuais moçambicanos/africanos estão encalhados numa espécie de dança de amor muito estranha com as suas tradições-mães: convidam-nas para à pista de dança quando se sentem exaustos de dançar com o seu Ocidente-Pai. O convite à mãe é formulado quando se sentem abandonados pelo pai e precisam da mãe para, de alguma forma, continuarem a sobreviver como intelectuais. A tradição é um refúgio onde têm a certeza que podem continuar a dançar no palco do grande público global. Na tentativa de recentrar o sujeito africano na História, vêm a tradição como o último reduto. A perdição do nosso filósofo é maior porque, habituado a livros na sua confrontação com o pensamento ocidental, quando se vira para a tradição-mãe nota que não há livros, mas sim pessoas sentadas à volta da fogueira imbuídas no exercício da palavra (oralidade). O nosso filósofo fica, assim, perdido porque primeiro não domina o instrumento fundamental que o haveria de permitir sentar-se à fogueira com os outros: a língua. Segundo porque a interpretação do que a tradiçãomãe diz pressupõe uma mudança radical nos termos do método (deixar de trabalhar num contexto de escrita para passar para um contexto oral) e em termos éticos (deixar-se ensinar pelos seus interlocutores tradicionais).
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ENGAJAMENTO POR UMA EDUCAÇÃO GLOCAL José P. Castiano
Qualquer projecto de educação fundamenta-se na concepção predominante sobre o homem. Pois, o homem é o ponto de partida e de chegada da acção educativa. Ele é o ponto de partida porque a educação parte da imagem que temos do homem que queremos construir. O mesmo homem é o ponto de chegada porque a finalidade do acto educativo é a de desenvolver as faculdades deste. Será assim na educação glocal que, quanto a mim, inicia com a introdução do currículo Local em Moçambique? Sob que fundamentos ela assentaria? Para empreender qualquer acção educativa partimos, no entanto, da crença que este homem tem condições (faculdades) potenciais para ser educado. A educabilidade do homem, isto é, a capacidade do homem ser educável, assenta no facto de ele ser um ser racional; um ser que, segundo Sartre em Ser e Nada, se fragmentou do ser entanto que tal, para ser em si possuidor de uma consciência. Dizer que o homem é um ser racional significa, no fundo, que este homem é potencialmente capaz de usar as suas faculdades de pensar e julgar para poder decidir sobre a sua acção sobre factos e artefactos com os quais entra em contacto. Por outras palavras, cada homem usa a sua faculdade de pensar, i.e. de usar a sua razão, e de julgar para poder agir ou emitir juízos sobre os fenómenos que o rodeiam. Por isso, a primeira fundamentação para a educação é a de libertação: libertar as faculdades do homem poder pensar sobre si mesmo e de poder formular seus próprios juízos. De fazer o uso público da sua razão, diria o filósofo de Koenisberg, Immanuel Kant. Este é o sentido profundo quando dizemos que a educação é um instrumento de libertação do homem.
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Refere-se portanto a uma libertação no sentido de o homem ser capaz de pensar correctamente e de emitir juízos de valor de forma autónoma e sem contrições positivas. Dissemos antes que a educação se deve centrar no homem. O seguinte problema educativo começa, entretanto, quando temos como pressuposto que todos os homens são iguais, todos os homens são diferentes. Como garantir assim que todos sejam tratados de forma igual e de forma diferente ao mesmo tempo? Daqui infere-se a segunda fundamentação da educação que é a de garantir a igualdade de todos porque todos são educáveis; ao mesmo tempo, porém, a educação deve reservar espaço para que as diferenças entre os homens e grupos sociais não morram dado que ela deve, por exemplo, garantir que cada utente dos serviços educacionais possa desenvolver a sua própria cultura. Formulado mais concretamente: podemos perguntar-nos se cada aula providencia a ocasião institucional no qual se concretiza a ideia de que todos são iguais, mas diferentes ao mesmo tempo. É possível o professor atender a todos de forma igual ao mesmo tempo que trata a todos de forma diferenciada? Daqui deriva a terceira fundamentação para a educação que é a de cultivar um homem universal (i.e., que possa viver na base do saber e valores universais) mas ao mesmo tempo que conheça e pratique as suas tradições familiares e culturais. Ela deve permitir que a criança entre no mundo global com os pés firmes, apontamos já algures30 . A educação é um caminho que começa na família – onde a criança nasce – até ao sistema-mundo, passando pela comunidade e pela nação. Ora, o caminho da criança ao sair do seu meio familiar para um em que as autoridades comunitária e estatal se acrescentam à autoridade familiar, não deve ser percorrido de uma forma violenta. Na entrada para ser um membro de pleno direito da sua comunidade e depois para cidadania, a criança não deve ser nem fisicamente, nem simbolicamente violada. Até agora já se conseguiu, pelo menos formalmente, fazer com que a criança não seja fisicamente agredida; no entanto ainda resta muito por fazer para eliminar aquilo que se considera como sendo violência simbólica, se emprestarmos um termo muito usado por Bourdieu. É desta forma que o professor tem a gloriosa responsabilidade de fazer com que a marcha da
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criança da família para a sociedade e para o sistema-mundo não seja nem corporalmente e nem simbolicamente (espiritualmente) violenta. Chegados aqui urge perguntar em que medida a introdução do currículo local no sistema do ensino moçambicano vem responder a estes fundamentos da educação? O currículo local é uma parte do currículo do ensino básico (20% do tempo alocado para cada disciplina) que deve ser preenchida por conteúdos que os membros da comunidade abrangida por uma certa escola, de uma forma organizada, acham ser relevantes para a criança inserir-se na sua própria comunidade, após ou mesmo durante o período da sua frequência na escola. Portanto, não se trata de conteúdos que são determinados centralmente pelo Instituto Nacional de Desenvolvimento (INDE) ou pelo ministério moçambicano de educação, embora ambas instituições, por serem de carácter e dimensão centrais, possam de certa forma influenciar na determinação dos conteúdos. Trata-se sim de conteúdos que devem ser produzidos pelos professores com a ajuda da comunidade, dos próprios alunos e das instituições locais como as da saúde, da agricultura, do meio ambiente, etc. No entanto, para que estes conteúdos se tornem ensináveis, ou seja, para saírem da cabeça dos membros das comunidades e dos papéis das instituições locais para a sala de aulas, é necessário que o professor os adeqúe à idade, à classe/ciclo dos alunos e atendam às competências localmente necessárias para a vida da criança na comunidade. Para além disso, o professor deve produzir textos (brochuras do currículo local) e materiais didácticos. Assim, os professores devem ser capazes de trazer para a sala de aulas os factos e artefactos culturais do local onde uma certa escola se encontra inserida. Em relação ao levantamento dos conteúdos relevantes para serem abordados pelos professores na sala de aulas já se fez muita coisa embora reste ainda muito por fazer. Foram, neste âmbito, levantados conteúdos sobre a história local da escola e da comunidade, sobre a proveniência do nome da escola, sobre as principais culturas locais, sobre os recursos locais, sobre a vegetação e a fauna, sobre as estruturas administrativas e tradicionais locais, sobre os principais pratos, sobre as profissões locais, sobre os hábitos e costumes das localidades, sobre as crenças colectivas, etc. O desafio agora (2009) é trazer estes conteúdos para a sala de aulas repartidos em ciclos e
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classes assim como elaborar materiais de ensino e de aprendizagem na base desses conteúdos para que a criança possa efectivamente aprender aspectos ligados à sua cultura e que sejam relevantes para a aprendizagem. Muitos conteúdos, portanto, dizem respeito às tradições e aos costumes levantados pelos professores nas comunidades. No entanto, como educadores, a nossa tarefa não termina na recolha e na sistematização dos conteúdos considerados relevantes localmente, e nem deve por aí terminar. Pôr um ponto final aqui seria continuar a condenar aos alunos a meros elementos que se destinam a absorver as tradições e os costumes ancestrais; estaríamos a perpetuar, usando a educação, aquilo que alguns filósofos africanos chamaram de anthropological mess, ou seja, a ensinar um conjunto de conteúdos não relevantes para a vida do estudante hoje e aqui. É necessário, portanto, fazer mais do que isso, mais do que o INDE fez até agora. É preciso passarmos para o passo seguinte: o de fazer justiça ao sentido da palavra educação usando, naturalmente, esses conteúdos recolhidos. Dissemos antes que a primeira fundamentação da educação é a de desenvolver a faculdade de cada aluno pensar por si mesmo e de julgar. No que diz respeito a uma Educação Glocal, é muito importante que desenvolvamos nas crianças não só o conhecimento dos conteúdos e tradições locais como os que demos exemplos acima; é ainda mais importante desenvolver, e só assim faz sentido falarmos de educação, a faculdade de cada criança julgar, ou seja, de formular seu próprio juízo sobre estes mesmos hábitos e tradições que o professor recolhera das cabeças das comunidades e das instituições tradicionais locais. Portanto, a maior forma de inserir a criança numa determinada tradição viva não é só dizendo-a sobre o quê (conhecimento dos factos e artefactos), mas sobretudo o porquê desses factos e artefactos locais (faculdade de julgar). Aliás, esta é a missão da educação para o futuro. Um parêntesis: quando falamos de factos locais referimo-nos aos eventos próprios de um local, sejam eles ligados com a história de um determinado local como a batalha de Manhiquene; sejam eles de carácter cultural, como por exemplo o M´saho (festival de timbilas de Zavala ou de Varimbas de Sena). E quando falamos de artefactos culturais referimo-nos aos produtos materiais que são fabricados nas diferentes comunidades culturais de Moçambique.
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Por exemplo, o vestuário tradicional da Ilha de Moçambique é diferente do vestuário tradicional de uma outra parte qualquer. Cultivar a faculdade de pensar significa, portanto e no âmbito do currículo local, que nos esforçamos para que o aluno conheça e aprenda os factos (eventos do passado e presente), artefactos (produção material específica) da sua cultura assim como a vida espiritual da zona. Portanto, uma implementação correcta do currículo local vai permitir inserir ao aluno e à aluna na vida económica, social, política e espiritual da comunidade em que ele está inserido ou inserida. Por outro lado, cultivar a faculdade de julgar significa, no âmbito do currículo local, que o professor deve proporcionar ao aluno e à aluna os instrumentos teóricos necessários para ele se confrontar criticamente, isto é, argumentativamente, com os mesmos factos, artefactos e a vida espiritual da comunidade onde vive. Isto vai fazer crescer, sem dúvida, o espírito de engajamento pela coisa pública na comunidade por parte dessas crianças, uma vez conhecerem do que se trata e, por isso mesmo, poderem defender ou argumentar com propriedade sobre aquilo que se pode considerar como tradição local e sobre os acontecimentos de natureza política, porque é disso que se trata.
Escola como Espaço Glocal Na definição que demos acima sobre o currículo local vimos que este é preenchido por conteúdos pedagogicamente considerados como sendo relevantes para a aprendizagem do aluno a partir da comunidade segundo a definição que nos é dada pelo Instituto Nacional de Desenvolvimento da Educação, uma instituição moçambicana ligada à pesquisa de base na educação. Parte-se portanto da ideia que cada escola está inserida num determinado meio cultural e que se deve dar oportunidade a cada aluno e aluna para poder explorar as potencialidades educativas que este meio oferece a fim de melhorar a qualidade da aprendizagem dos alunos e das alunas. Entretanto, ao fazermos o levantamento das questões locais, é muito bem possível que surjam conteúdos que podem ferir os Direitos Humanos, podem ser discriminatórios com base ao género ou à raça ou ainda que possam ir
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contra o ideal da dignidade humana. É esta a oportunidade educativa para humanizar a educação. Para isso é importante estarmos vigilantes para que este tipo de conteúdos seja efectivamente retirado dos programas de ensino. O currículo local não tem o objectivo de instigar a qualquer forma de discriminação racial, cultural ou em termos de género; também não pretende e nem deve ser uma fonte do divisionismo baseado em pertenças étnicas ou mesmo contra a dignidade de qualquer ser humano. O espírito do currículo local é que as crianças se confrontem racional e criticamente com o meio natural, social, cultural, epistémico e político no qual vivem e que o professor seja o facilitador desta confrontação com o respectivo meio. Quando usamos o termo confrontação não nos referimos somente ao conhecimento das danças, das lendas, das profissões, da história local, das tradições, dos hábitos e dos costumes, etc. O que é ainda mais importante é desenvolver o saber fazer e o saber estar com outros na comunidade e sociedade. Por exemplo, não basta que a criança saiba como é que tradicionalmente os seus pais e tios sempre construíram e constroem uma palhota africana, mas é necessário dar ferramentas para que a criança possa melhorar essa mesma palhota, isto é, torná-la mais segura e confortável, sem no entanto deixar perder a estética e arquitectura básica da casa africana (normalmente redonda, principalmente o seu tecto/cobertura). E esta tarefa (desenvolver a nossa civilização africana) é da educação e é educativa. O que queremos dizer com este exemplo é que o levantamento e o conhecimento das tradições ou dos valores que governam a vida local não é e nem pode ser um objectivo em si e terminal da educação com base nos conteúdos locais. Esse levantamento e conhecimento são apenas um ponto de partida necessário para podermos efectivamente desenvolver as nossas tradições, enfim as nossas civilizações africanas. Porque um verdadeiro desenvolvimento só se pode basear no conhecimento profundo das tradições culturais e valores locais. Mas, por outro lado, nós podemos desenvolver estas tradições e valores somente na medida em que eles oferecem respostas alternativas válidas para resolver os problemas sociais, económicos, políticos e espirituais da actualidade. Na globalização só podemos estar firmes na medida em que oferecemos soluções locais para os problemas que nascem do interior desta mesma forma de existência global. Por via do currículo
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local abrimos a porta ao aluno e à aluna para que eles mesmos se inspirem na cultura local para poderem encontrar soluções localmente fundados aos problemas globais. Na prática, porém, para conhecer as tradições, não basta (embora seja importante) que o aluno ou a aluna seja levado a observar factos e artefactos na sala de aulas ou através de uma visita de estudo. É necessário que o professor elabore textos onde descreva estes eventos históricos ou os artefactos culturais; os textos devem ser escritos por formas que sirvam de apoio ao próprio professor e sirvam também como meio de aprendizagem ao aluno e à aluna. Para isso, o professor precisa de registar minuciosamente os eventos e artefactos no acto da recolha dos conteúdos junto à comunidade e às instituições locais. O professor precisa de reunir o maior número de informações possível, não só sobre o passado mas também sobre o presente de que ele deve ser um testemunha atento. Pensamos que para poder recolher as informações e registá-las correctamente, o professor precisa de um apoio concertado das autoridades da educação e das instituições do Ensino Superior, particularmente da Universidade Pedagógica. Este poderia muito bem constituir também um dos campos ainda virgem para muitas investigações dos estudantes do nível de mestrados.
Da Escola como Espaço sem Violência Em que medida uma educação Glocal, como a que viemos fundamentando, é uma oportunidade para construir uma escola sem violência, sobretudo a simbólica? Todos sabemos que quem tem poder, se não tiver o devido cuidado, estará sempre tentado a usá-lo em seu benefício violando os direitos dos outros. O professor ou a professora têm, no contexto da sala de aulas, demasiado espaço, no contexto legislativo educacional actual, para exercerem o seu poder sobre os alunos ou as alunas; e isto pode conduzir ao uso da violência física e simbólica. No tempo colonial, por exemplo, um aluno que não fosse capaz de assimilar uma determinada matéria na aula era batido com reguadas na mão ou noutra parte do corpo qualquer. Esta prática constituía uma violência
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corporal ou física que inculcava a dimensão do medo na aprendizagem. Este tipo de atitude, por parte dos professores, não é educativa e constitui uma violação aos direitos da criança. Também não podemos insultar a criança ou submetê-la aos castigos corporais de qualquer espécie. A criança merece o nosso respeito para que ela nos possa também respeitar. Mas há um outro tipo de violência mais subtil, a que chamamos de simbólica ou espiritual. Quando uma criança entra pela primeira vez na escola e lhe é praticamente vedada a possibilidade de comunicar-se e desenvolver a língua com a qual cresceu no seu ambiente familiar, estaríamos, no fundo, a dizer à criança duas coisas muito graves: que a língua com que se comunica em casa não serve para adquirir conhecimentos científicos na escola e, o que é ainda pior, estamos a dizer que aquela língua é inferior em relação àquela que se usa na escola. Assim, estamos a violar um símbolo importante que a criança trás de casa. Mas também estamos a fazer uma violência simbólica e espiritual quando, ao invés de ensinar a tocar a timbila na escola, ensinamos somente a tocar uma viola. Fazemos violência simbólica quando classificamos de dialectos em vez de língua, de feiticeiro/curandeiro em vez de médico tradicional, de droga em vez de remédio, de seitas em vez de religião. Dos Perigos
Há certos perigos que podem espreitar ao tentarmos implementar uma Educação Glocal, onde uma das bases é o currículo local. Em primeiro lugar é preciso alertar para o perigo do folclorismo ao introduzir os conteúdos ou temas do currículo local. É preciso ter em atenção que, ao introduzir-se o currículo local estamos a tentar implementar dois princípios de cada ser humano não negociáveis por via da educação: o do direito à diferença e ao mesmo tempo o da igualdade de oportunidades. O princípio do direito à diferença exige uma atenção muito especial aos processos de produção e valorização das culturas e do ambiente social em que cada escola se encontra e exige, como disse, que se aproveitem todas as possibilidades e potencialidades naturais, sociais, culturais, históricas e políticas locais para a aprendizagem da criança. Todos os aspectos locais têm um valor educativo em potência.
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Por seu lado, o princípio da igualdade de oportunidades exige que a educação possa oferecer as mesmas oportunidades de progressão a todas as crianças no sistema de educação, independentemente do lugar onde estudam dentro do país. O perigo que correm as pedagogias que tentam valorizar as culturas locais no contexto da educação glocal é o de usar os elementos das culturas locais como uma espécie de folclore, ou seja, que só sirvam para embelezar o currículo nacional com alguns elementos da tradição sem no entanto tomar a sério estes elementos em todas as fases da actividade pedagógica. Geralmente, em nome da igualdade sacrifica-se a diferença. Não se trata pois de desenvolver o que se pode designar por um currículo para turistas, ou seja, o tipo de currículo que admite esporadicamente e de forma fragmentada temas de natureza local cultivando nos alunos atitudes exóticas e folclóricas quando estão perante as suas próprias tradições. Trata-se, pelo contrário, de fazer com que os alunos reconheçam e se confrontem com a sua tradição viva, promovendo um olhar do diferente como algo de estranho e de exótico, numa atitude comparativa que tem, muitas vezes, o efeito perverso de separar o nós dos outros e de realçar as diferenças, reforçando os estereótipos entre as gerações e povos. Em segundo lugar é necessário alertar para o perigo da mistificação das tradições ou dos conteúdos locais. O objectivo último da introdução de conteúdos locais não é só para ter em conta a função reprodutiva da escola (como uma instituição que deve espelhar o que a sociedade/comunidade tem como valores e tradições), mas também se deve olhar para a função produtiva/inovadora da escola, i.e. a responsabilidade desta instituição em melhorar a vida das pessoas que vivem nas comunidades. A inovação só pode ser possível se se der a oportunidade às gerações mais novas de se confrontarem criticamente com os valores e as tradições locais (o que não significa não respeitá-las). Lemos em várias escolas a tendência de mistificação das tradições e costumes em lugar de se mobilizar, através da escola, um esforço intelectual para compreender a racionalidade que está por trás delas. Como manifestação desta mistificação pode observar-se a tendência de só considerar-se os velhos da comunidade como informantes ou pessoas de recurso. O terceiro perigo que pode matar o processo de implementação do currículo local é o que diz respeito à preparação teórica (mediar uma con-
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frontação argumentativa e não contígua de saberes de natureza e lógica de fundamentação diferente), pedagógica (elaboração de textos didácticos a partir de conteúdos locais) e ética (humildade intelectual para aprender com os membros das comunidades escolares) dos professores. Embora tenha encontrado muitos professores que se mostram entusiasmados com a possibilidade de abordar na sala de aulas aspectos do mundo da vida dos alunos e da comunidade circundante, este entusiasmo porém é insuficiente. Sob o ponto de vista teórico é preciso preparar os professores para mediarem uma confrontação argumentativa entre os saberes de natureza argumentativa diferente. Sob o ponto de vista pedagógico torna-se necessário preparar os professores a tornarem os saberes, temas e conteúdos que recolhem das comunidades ensináveis, ou seja, destrinçar os conteúdos em objectivos e competências assim como fragmentá-los em tempos lectivos e de aprendizagem. Há muitos conteúdos relevantes que já foram recolhidos do seio de personalidades das comunidades diferentes deste país, mas o problema parece prevalecer em como levá-los à sala de aulas (definir objectivos e competências, enquadrar, dosificar, etc.). Sob o ponto de vista ético os professores devem ser preparados para tratar os assuntos muito sensíveis da vida da comunidade. São assuntos que dizem respeito aos tabus, às crenças, à medicina tradicional, etc. com que o professor se vê pela primeira vez confrontado em abordar na sala de aulas. Ainda sob o ponto de vista ético os professores deverão ser preparados para exercerem a sua função investigativa dos saberes locai com a necessária humildade intelectual, isto é, de serem capazes de deixarem-se ensinar conteúdos, valores e saberes por parte dos membros da comunidade (mulheres, homens, jovens, velhos, etc.). Estas matérias deverão fazer parte dos módulos tanto de formação inicial assim como das capacitações (formação em exercício). Também temos que considerar que o papel do professor passa a ser, no contexto de uma educação glocal, não só o de transmitir conhecimentos (que vêm nos livros escolares) mas também o de produzir os mesmos através da sua própria investigação e dosificação para serem ensinados. Este último aspecto dá matéria suficiente para se repensar nas estratégias pedagógicas nas formações (inicial e em exercício) dos professores, ou seja, em buscar novas estratégias de formar um professor-investigador. Teremos que baixar alguns conteúdos
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metodológicos que, no contexto da educação actual, são ensinados somente ao nível superior universitário, para a formação de professores primários, se apostarmos numa educação glocal de qualidade. A escola é uma instituição de transmissão de conhecimentos e saberes. O quarto perigo reside na possibilidade de se introduzir na escola conteúdos ou valores de qualquer tipo (ex: de natureza supersticiosa, boatos ou anticonstitucionais). Por isso é necessário, numa primeira fase, desenvolver mecanismos de selecção (não confundir com censura) dos conteúdos relevantes. É uma responsabilidade social das estruturas de educação garantir que estes conteúdos sejam veiculados pela escola de forma mais científica (no sentido de um conhecimento fundamentado) possível. Uma das formas de certificar-se desta cientificidade é garantindo que o professor tenha material didáctico de consulta (livros) em relação ao currículo local, o que actualmente não existe. Por isso propomos que esta grave lacuna de falta de material seja minimizada na base de temas gerais de nível de cada Província as autoridades provinciais de educação se encarregariam por elaborar brochuras didácticas em redor aos temas provinciais propostos. Um último perigo diz respeito à exclusão dos alunos e jovens na definição dos conteúdos de aprendizagem. Como nos referimos acima, a tendência das consultas que se fazem às comunidades e instituições locais quando se elaboram as brochuras escolares do currículo local é a de abrangerem somente ou quase que exclusivamente às pessoas idosas das comunidades, deixando os jovens e os próprios alunos à margem. De facto é preciso recordar permanentemente que não há ensino possível sem o seu reconhecimento, por parte daqueles a quem o ensino é dirigido. De tudo o que foi abordado, pensamos, porém, que o maior desafio ao nível da formulação de uma educação glocal que se impõe ao nível teórico, é o da formulação de um discurso lógico que mostre que este tipo de educação se enquadra num âmbito mais amplo de uma utopia social. A nossa utopia social é a de construir um Moçambique mais justo. Pois, se ontem o paradigma da nossa acção deveria ser julgado na medida em que ela se aproxima à liberdade dos moçambicanos contra o jugo colonial, hoje a nossa utopia deve ser formulada em termos do que a liberdade conquistada comporta como responsabilidade; pensamos que o eixo desta responsabilidade está
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num engajamento pela justiça social. Lutar pela liberdade hoje significa lutar por uma justiça social, é o que queremos dizer. Uma educação glocal deve estar em condições de avaliar os aspectos do passado, dos hábitos culturais, dos saberes locais a partir do ângulo em que eles se aproximam ao ideal da justiça social. Este é, se assim quisermos, um fim pelo qual vale a pena engajar o nosso pensamento e engajarmo-nos.
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PORA ACTUALIDADE DE JUNOD Severino Elias Ngoenha
Este artigo resulta de uma série de conferências organizadas em Maputo por Nicolas Monnier no quadro do lançamento da Fundação Henri Alexandre Junod. A primeira dessas conferências foi feita por Mia Couto, na qual, com toda a eloquência que se lhe reconhece, traçou um portrait biográfico exemplar de Junod, ainda por cima apoiado por uma série de ilustrações fotográficas do etno-missionário e do Moçambique do seu tempo. Por isso não vou refazer a biografia de Junod, mas reflectir sobre a actualidade da sua obra, isto é, trato de reflectir sobre uma série de actualidades sociais a partir dos problemas que se depreendem de uma leitura atenta do missionário e etnólogo romando. Para isso vou tomar como postulados algumas questões paradigmáticas solevadas por Mia: i) As suas classificações linguísticas e a sua dimensão antropológica; ii) A sua posição pró-Gaza e anti-portuguesas; iii) Os encontros com Frei de Andrade a Genebra que o levaram a atenuar as suas críticas ao colonialismo português.
A Dimensão Antropológica Decidi subordinar esta reflexão às metamorfoses do meu percurso identitário e a maneira como entrei em contacto com a minha identidade tsonga, categoria etno-linguística intrinsecamente ligada as classificações linguísticas e a monografia etnológica de Junod. Eu nasci na então cidade de Lourenço Marques, de pais oriundos da província de Gaza, Ngoenha -Tusini da parte paterna e Mondlane - Cambane da parte materna. O estado actual das investigações da etno-história moçam-
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bicana avança a hipótese de uma origem Ndau dos ngoenhas, que teriam sido forçados a emigrar para as actuais províncias mais ao sul, sobretudo Gaza e Maputo, em seguida aos conflitos zulo do sec. XIX que acabaram levando os vencidos a fugirem para Moçambique e a constituírem o Império de Gaza. A minha avó paterna, apesar de ter sempre sido idiomática e culturalmente uma Changana perfeita, quando tinha dois copos, metamorfoseavase e metia-se a cantar em Ndau. Contudo, apesar da guerra, dita civil, que assolou o nosso pais durante anos, ela nunca quis deixar o seu Chibuto natal, provavelmente porque nessas terras repousavam os restos mortais do seu querido marido, Ukjafeno Ngoenha, avó que não tive a sorte de conhecer. Assim, apesar dos esforços de toda a família ela persistiu em ficar em Chibuto perto do seu marido. Todavia, o fenómeno das terras pesadas acabou fazendo claudicar a sua tenacidade; e quando se sentiu muito perto da morte tomou a última grande decisão da sua vida, mas infelizmente foi para trocar Chibuto pelo cemitério de Lhanguene. O meu pai, se tivesse hoje vinte anos estaria na moda! Desde sempre tem dois furos nas orelhas, o que significa moda para muitos jovens hoje, mas que no passado remoto, era sinónimo de submissão aos vencedores Ngunis que chamavam aos futuros Tsongas junianos, thongas isto é vencidos, escravos ou mesmo cães. Quando eu nasci, os meus pais viviam no Bairro do Aeroporto. Em casa, a língua era obviamente o Changana, mas bem cedo o meu Changana, como de muitas crianças da minha idade era uma mistura entre o Changana -intra-muros- e o Ronga da socialização ambiente, gradualmente substituídos pelo português devido ao factor escola e por ter ido habitar num bairro cristão-lusofilo de São José de Lhanguene. Nós changanas-rongas-lusofilos não tínhamos ritos de iniciação, grios, circuncisão, e se os tínhamos, eu não os conheci. Os meus pais, cristãos praticantes, eram também contrários aos Timambas, não acreditavam nos feiticeiros, não frequentavam curandeiros. Breve, não fui educado no orgulho de uma particular pertença identitária nem a nenhum munus axiológico culturalmente (etnicamente) conotado. A isto contribuiu o facto que quando a independência chegou eu tinha doze anos apenas.
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Com a independência surgiu a primeira consciência identitária. Fascinado por Samora Machel, pelos seus discursos carismáticos e incisivos, como todos os adolescentes da minha geração aprendi a ser moçambicano. Mas este postulado identitário era acompanhado por uma negação de outras identidades consideradas nefastas para a identidade moçambicana; tribalismo, regionalismo, racismo. Quer dizer que a minha compreensão identitária supunha a afirmação de uma identidade moçambicana, que por sua vez supunha uma apreensão negativa e a consequente negação de uma suposta identidade Ndau de onde provavelmente provêm os meus bisavôs (ou mesmo trisavôs), Changana de proveniência dos meus pais, Ronga do meu lugar de nascimento. A minha afirmação como moçambicano foi de tal maneira marcante, que ainda hoje, talvez também por outras razões, continuo a fazer da moçambicanidade o socle fundamental da auto-compreensão do meu Eu em termos identitários. Eu me identifico, me compreendo e me afirmo antes de mais e sobretudo como moçambicano. Apesar de ser então seminarista e membro da Igreja Católica (o que quer dizer universal) foi como moçambicano que fui continuar os meus estudos em Roma em 1984. Paradoxalmente, na capital da cristandade aprendi a ser africano. Não fui o primeiro nativo de algures em África a africanizar-se na Europa. Personagens como Senghor, Cheikh Anta Diop, Sekou Touré (…) tinham ido para Europa (França) como Walof, Serere, Bamaleque e foi em Paris que descobriram o orgulho de uma certa africanidade. Para isso tinha contribuído o encontro primeiro através da literatura e depois ad personam com os escritores da Black Rennaissance americana, em particular Langston Hugues, Claude Mackay; a descoberta do lugar central que ocupavam as chamadas artes negras na grande cultura parisiense – Josephine Baker – e europeia – a importância do Jazz nos anos trinta, o reconhecimento da influência da escultura negra na revolução que o cubismo de Picasso, Braque, Matisse representa para a revolução da arte ocidental do sec. XX. Mas sobretudo, a mudança paradigmática da antropologia francesa a partir dos anos trinta, de uma perspectiva evolucionista, administrativa, residualista e racista, versus uma perspectiva crítica, que resultou na reabilitação das culturas africanas por Maurice Delafosse, Les Negres, Paris Rider, 1927; Georges Hardy, L’Art
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Nègre, Paris, Laurens, 1927; Leo Frobenius, Histoire de la Civilisation Africaine, Paris, Gallimard 1926. A este esforço de reabilitação vieram juntar-se os grandes nomes de Michel Leiris, Marcel Griaule, Georges Balandier, Lévi-Strauss, Mircea Eliade. Quando eu cheguei a Europa, na década oitenta, o movimento da negritude estava já sem fôlego para seguir a corrida dos tempos, e estava substituído por uma literatura africana crítica com pressupostos e objectivos diferentes dos valores defendidos por Senghor, Cezaire e Damas. A partir dos anos setenta nos países francófonos e anglófonos os processos das independências africanas deixam no palco problemas identitários que ganham corpo através do nascimento de uma literatura filosófica, primeiro de carácter etnológica – Tempels e Kagame – e depois crítica – Hountondji, Towa e Eboussi. Assim, enquanto a pouca filosofia que se aprendia em Moçambique era uma simplificação do marxismo para o maior número e escolástica para o exíguo número de seminaristas ao qual eu pertencia, os meus novos colegas oriundos da África anglófona e sobretudo francófona analisavam a emergência de um pensamento filosófico grego a partir de uma perspectiva que Assante chamaria de afroncêntrica que ia de Cheikh Anta Diop até Obenga, liam a filosofia da história e de direito de Hegel com os olhos críticos de Towa, analisavam as teorias diferencialistas de Gobineau a partir do criticismo de E. Firman e racialistas de Blyden, etc. Então comecei a deixar-me instruir, não só pelos meus professores, especialistas em Aristóteles, Kant, Sartre, Habermas, Lyotard (...); mas também pelos meus colegas iniciados na neo-tentativa de filósofos africanos a levar a Africa a ser sujeito da sua Historicidade, através da mobilização dos métodos desta disciplina na análise da actualidade dos problemas do continente. Esta introdução filosófica-africana de carácter teórica e epistemológica foi acompanhada por uma imersão nos dilemas etno-antropológicos de uma africanidade vivida, que se manifestavam sob forma de etnicismos, que levavam muitos colegas de um só e mesmo país a agruparem por zonas de origem, pertenças étnicas, línguas de comunicação comum, etc. Em relação a esses colegas eu sentia-me diferente, distinto, particular. Porque fazia parte do último grupo de países a aceder a Independência? Porquê a Independência teve que passar por um processo de luta de liber-
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tação nacional? Pelas opções ideológicas do país que é o meu? No colégio urbano, em frente mesmo da Basílica S. Pedro, onde vivi quatro anos, colégio histórico construído sobre um antigo cemitério romano por vontade de Urbano VIII em seguida aos eventos que tinham levado a condenação de Jordano Bruno e de Galileu e a necessidade de dar uma formação substancial e uniforme (propaganda fidei) aos futuros evangelizadores do novo mundo, Moçambicanos éramos dois, mais tarde três. Um do sul, eu, um do centro e outro do norte. Contrariamente aos nossos colegas, quer fossem do Uganda, do Zaire ou da Nigéria que apesar do catolicismo e no alto nível de instrução juntavam-se só por regiões de proveniência, nós moçambicanos estávamos sempre juntos, falávamos sempre português (características sobre as quais o colonialismo e a Frelimo estavam de acordo) para a surpresa e incompreensão dos nossos colegas. Aliás, a questão mais comum colocada por eles era: vocês vêem da mesma tribo, são da mesma região, porque falam português entre vocês? Padres ou seminaristas, nós moçambicanos, membros de uma qualquer etnia, raça ou região, universalistas pela nossa profissão de fé; nós luso-falantes pelo assimilacionismo colonial português e pelas estratégias de unidade postcolonial, éramos antes de tudo e sobretudo moçambicanos. O afro-moçambicano talvez fosse melhor dizer o moçambicano-africano em que eu me tinha tornado, solicitou um professor alemão para dirigir a sua tese de licenciatura sobre temas de filosofia africana. Isso não é filosofia, ouvi-me responder. E de uma maneira mais pertinente, você é jovem, aprenda a fazer filosofia debruçando-se sobre os clássicos da disciplina, quando tiver aprendido e consolidado o método e o espírito da filosofia, então fará o que quiser. Que remédio, aceitei a melhor parte deste discurso epistemologicamente e moralmente discutível e fiz uma tese de licenciatura sobre Giovanni Battista Vico e um doutoramento sobre Vico e Voltaire. Enquanto me debruçava sobre a minha tese, durante as férias de verão fui a Londres para um estágio linguístico. Inscrevi-me numa escola, a Tottridge, quarteirão norte da cidade, dirigida por uma sul-africana. Numa sexta-feira, depois de uma pequena festa da escola, a directora pediu-me para acompanhar uma estudante que vivia perto da casa onde eu era hóspede. Como sou obediente e fiel aceitei, e desde então acompanho essa jovem, que desde há
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doze anos tornou-se minha esposa. Por acaso essa moça era Suiça – da parte italiana e, ainda mais por acaso, entre as diferentes possibilidades que tinha ela escolheu fazer os seus estudos universitários em Lausanne. Junod era suíço de Neuchatel. O azar quis também que a única missão Suiça de língua francesa - havia outra de língua alemã em Basel - tivesse sido fundada em Lausanne. Foi um antropólogo de Universidade de Lausanne, Gerald Berthoud, que me levou a me interessar pela missão romande. Nunca soube se a sua principal motivação fosse a estima que ele tinha pelo trabalho científico de Junod, a quem ele consagrou um capítulo num dos seus livros, Antropologia Geral Teoria, ou se estava a procura de traços de um outro Berthoud que no fim do sec. XIX de Neuchatel, de onde ambos eram oriundos, tinha desembarcado em Moçambique fundado a missão Suíça. Alías Berthoud e Junod são os únicos missionários cujos restos mortais repousam em Rikathla. Apesar de existirem algumas obras e objectos, sobretudo de carácter etomológico e etno-museológico nos depósitos e na biblioteca do museu de etnologia de Neuchatel, os principais trabalhos de Junod encontram-se nos arquivos de departamento missionário de Lausanne, sobejamente conhecido entre nós, por ter sido frequentado por investigadores, como Teresa Cruz e Silva, Alexandrino José, Janet Mondlane, Nicolas Monnier, entre outros. Quando pela primeira vez fui ao Departamento Missionário, fui recebido por um bibliotecário angolano que se mostrou interessado em receber um investigador moçambicano, mesmo se o meu «catolicismo» e percurso jesuíta – a universidade gregoriana onde fiz a minha tese é a Meca do saber jesuíta – suscitou algumas perplexidades. Soube rapidamente que o trabalho de arquivo e de catalogação dos diferentes documentos existentes na biblioteca era obra de um certo André Clerc, antigo missionário que depois do seu regresso definitivo para Suiça nos anos sessenta, tinha dedicado a esse trabalho o essencial do seu tempo. Para além de ser a principal chave para a compreensão da particular organização dos arquivos do DM, André Clerc passou a ter para mim uma importância ainda maior quando soube que ele tinha sido o tutor de Eduardo Mondlane com quem manteve uma correspondência intensa – que se pode consultar nos arquivos – quer no período em que Mondlane esteve em Chikuki, quer no período americano
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passando pelo período delicado dos seus estudos na África do Sul. Por outro lado, vim a saber que Clerc tinha sido o fundador dos miklawas onde tinham germinado ideais nacionalistas nos jovens como Mondlane, Mocumbi, Graça (…). Soube que Clerc era o responsável da comissão das bolsas de estudo que permitiu a formação de um certo número dos quadros moçambicanos do post-independência. Soube das relações estreitas que existiram, durante a Luta de Libertação Nacional, entre a Frelimo e o DM; basta pensar que esta estava constantemente sob vigilância da PIDE. Um dia enquanto trabalhava na biblioteca e falava com curiosidade e interesse do papel importante de Clerc na vida de Mondlane, de Moçambique e da sistematização dos arquivos ouvi-me perguntar, porque não vai vê-lo? Ele é velho mas ainda completamente lúcido. Foi assim que vim a saber que ele estava ainda vivo. Pedi o número de telefone e chamei imediatamente. Alô, aqui André Daniel Clerc. Quem é o senhor? Quem era eu? Ou para dizer como Montaigne, quem sou eu? Católico educado em Roma por Jesuítas, casado com uma Suiça, membro da Universidade de Lausanne, não como estudante, mas como professor. A minha imagem (portait) não correspondia em nada ao que o «velho missionário», educador de gerações de moçambicanos poderia esperar. – Sou «moçambicano» e chamo-me Severino (…); antes que eu pudesse terminar Clerc interrompeu-me para perguntar U wa ka mani (Donde vens e de quem és filho ou qual é o teu apelido): Ni wa ka Ngoenha, ni huma kapfumo (je suis un Ngoenha, je suis originaire de Maputo). U wa ka hina (Tu és dos nossos!). Eu acabava de descobrir, que ao lado da minha identidade moçambicana ligada, primeira a delimitação geo-colonial de Berlim e depois a Independência nacional mas sobretudo a minha escolha; ao lado da minha identidade africana ligada a minha africanização em Roma mas também a minha adesão, eu tinha uma outra identidade imputativa que até então eu ignorava: que se declina missiologica e antropologicamente como Tsonga. O que é que significava e de quê (circunstâncias) e quem dependia uma tal identidade?
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Em poucas palavras e a priori se pode responder que a ideia de uma identidade Tsonga é intrinsecamente ligada à missão, aos seus debates etnolinguísticos ligados às suas necessidades de evangelização, às necessidades escriturais do repertório protestante, e por último à circunspecção etnográfica dos trabalhos de Junod. A razão de ser desta pretensa identidade tem, portanto, que ser procurada do lado da missão suíça, nas metamorfoses históricas que levaram à criação da missão de Vaud (conflito com o poder político da terra de origem), na dimensão missionária da jovem Igreja Livre, no repertório protestante que exige a transmissão da fé através da Bíblia, nas vicissitudes histórico-sociais da Europa na fase da industrialização, nos paradigmas evolucionistas do sec. XIX, nos processos classificatórios das ciências a partir do sec. XVIII, nos conflitos católico-protestantes, etc. Breve, é do lado de Lausanne e da missão Suíça que se tem que indagar a razão de ser desta construção identitária. Ora, no Moçambique da II República, começaram veleidades tribais bastante veementes. Não se trata simplesmente de Ndaus e Senas no Centro, ou Macuas e Macondes no Norte, mas sempre mais se ouve falar nos Rongas, Changanas e Bitongas no Sul; e mesmo de Tsongas sobretudo pelos membros da Igreja Presbeteriana... Também participa desta forma de veleidades étnico-tribais, o surto repentino de associações de amigos de Gaza, da Zambézia, do Maputo; e risca de ganhar proporções políticas se o Ministério de Educação tem que deferir ou transferir a introdução do ensino bilingue por razões de equilíbrio étnico-linguístico ou pior, se ou principais partidos políticos nacionais se identificam ou são identificados com uma região, ou pior, com uma dita identidade étnica. O que significa que não somos indemnes de um conflito étnico no país, com consequências que podem ser muito nefastas como vimos no Biafra dos anos sessenta ou no Ruanda dos anos noventa. Estudar Junod, como outras figuras de invenção identitária pelo Moçambique fora, deveria levar-nos a ter consciência da dimensão construída, inventada, das nossas ditas identidades étnicas muitas vezes por razões – bíblicas, teológicas, cristãs, missionárias, coloniais – alheias e em princípio coercivas em relação a uma certa autonomia aos nossos processos sociais. Mesmo se devemos também reconhecer, que a invenção exógena partiu de
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dinâmicas proto-culturais que já estavam presentes, e foram seguidas por um processo de re-apropriação pelos actores locais. Ter consciência destes processos talvez nos leve a moderar/atenuar certas adesões acríticas a certas reivindicações identitárias, que na realidade representam ou podem representar uma ameaça a convivialidade civil moçambicana, espaço identitário que não resulta simplesmente da arbitrária divisão de Berlim, nem das estratégias assimilacionistas luso-católicas de António Ennes; mas da capacidade dos nacionalistas moçambicanos de fazerem uma leitura histórico-política objectiva quanto ao espaço geo-político da reivindicação das independências, que não podiam ser de nenhuma maneira as etnias, como também não puderam ser nem a África unida de Nkrumah, nem os espaços de complementaridade cultural de Cheikh Anta Diop, nem os espaços de complementaridade económica de Mamadou Dia; mas as fronteiras coloniais assumidas pela carta da Organização da Unidade Africana. E segundo lugar, pela coragem de mobilizarem os eláns proto-nacionalistas existentes (Udenamo, Unamo, Mani) alguns nascidos mesmo nos miklawas tsonga-centradas, para reivindicarem uma moçambicanidade. Uma das funções (talvez fosse melhor dizer desafio) dos estudos sociais e antropológicos é deconstruir estas realidades identitárias, relevando o seu carácter «construído» por razões, muitas vezes exógenas e desconhecidas aos actores locais. Em todo o caso, ter consciência da dimensão construída das identidades étnicas e culturais deveria relativizar adesões muitas vezes acríticas a certos etnocentrismos que podem minar a identidade moçambicana. Mas a identidade moçambicana é também uma construção – eu diria mesmo a infieri – em nome da qual, num primeiro momento combateram-se ideologicamente (matar a etnia para nascer a Nação) as identidades locais. O problema é saber como equacionar os diferentes níveis de pertença não para que se excluam nem que se combatam, mas para que se completem. O segundo desafio da ciência entre nós é criar os pressupostos, as bases, as teorias, os postulados, os axiomas, para fazer uma ciência que nos permita de melhor apreender as nossas realidades sociais. Há alguns anos atrás em frente da entrada principal da Universidade Eduardo Mondlane viam-se muitos trabalhadores que participavam na construção das embaixadas da China e da Alemanha. A maioria dos pedreiros,
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carpinteiros que participaram nessas empresas limitavam-se a seguir ordens e ignoravam completamente quer a estrutura das obras em construção quer o resultado: um edifício de arquitectura asiática e outro europeu. Quem conhecia antecipadamente o resultado era o arquitecto que projectou a obra. Fazer ciência significa não limitar-se a ser pedreiro, mas ousar ser arquitecto. Este é um déficit ou, se quisermos, um dos desafios da ciência em Moçambique. Ora, Junod também correu o risco de limitar-se a ser pedreiro e nunca ser um arquitecto, pois os seus primeiros trabalhos etnográficos foram subordinados a um questionário que recebeu do antropólogo administrativo inglês Lord Brice. Muitos outros missionários na América Latina, na Austrália e em África e na Ásia tinham recebido questionários da escola francesa ou inglesa e o trabalho deles tinha sido preencher fichas e questionários e enviá-los aos antropólogos que estavam nas capitais. Morgan, Taylor foram alimentados assim e daí produziram as suas monografias. Junod não se contentou em preencher as casinhas que lhe foram mandadas pelos sábios de gabinetes, mas ele foi para além disso e é isso que faz com que ele seja reconhecido e os seus trabalhos pertinentes para as análises sociais hodiernas. Quer dizer que ele entrou em contacto com os paradigmas teóricos então vigentes, com os construtores de estradas ingleses mas também francesas. Se ele tivesse simplesmente preenchido as casinhas nunca teria sido o antropólogo que ele é hoje. Ele foi o trabalhador predestinado a ser pedreiro mas que com a sua curiosidade e trabalho ousou projectar o seu próprio edifício, é por isso que hoje ele faz parte dos antropólogos reconhecidos pela sua particular contribuição ao mundo científico. O desafio que se coloca às ciências sociais moçambicanas é que não se contentem em ser pedreiras dos arquitectos Bourdieus, Levy Strauss; Mas que procurem na emergente filosofia africana crítica e hermenêutica e post colonial – pressupostos teóricos de reflexão – sem que isso signifique virar as costas à teorização ocidental. Mas sobretudo, que não reduza o projecto antropológico ao estudo dos selvagens de Moçambique, mas ouse reflexivamente uma auto-reflexão crítica (sciere) e mesmo tomar os missionários de ontem e de hoje – cooperantes, doadores, ONG – como objecto de estudo.
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Entre o Assimilacionismo e o Multiculturalismo A pertinência científica e a actualidade da obra de Junod reside também no facto de ele ser susceptível de ser mobilizado para uma melhor compreensão de fenómenos socio-políticos que constituem preocupações actuais quer para a sociologia como para a filosofia política. Com o fim do apartheid, a África do Sul orientou-se de uma espécie de multiculturalismo doutrinal iniciado por Henrik F. Verwoerd, em direcção a uma espécie de assimilacionismo (Ubuntu). Ao mesmo tempo, Moçambique fez o caminho inverso: do assimilacionismo colonial seguido pela doutrina revolucionária do «matar a tribo para criar a nação», foi se repristinando o reconhecimento e a valorização das diferenças culturais internas, a partir da introdução da educação bilingue (método pedagógico outrora praticado no Sul de Moçambique pelos missionários suíços), até a derrapagens etnicistas preocupantes que vão do surto repentino de organizações de amigos desta ou daquela cidade (que em alguns casos os nomes das cidades são simples sinónimos, apenas velados de revindicações étnicas) até uma certa etnicização da política. O mundo actual, dito de globalizado – utilizo globalização porque é ligado ao conceito geográfico de globus que entra na linguagem científica a partir do século XVI, enquanto mundialização é ligada a filosofia e teologia da história começada por Santo Agostinho no século IV (cfr. Marramão) – é caracterizado, entre outras coisas, por uma grande mobilidade de pessoas, de raças, de religiões e de culturas. Quando as pessoas vão do Sul ao Norte são, de todas as maneiras cunhadas de imigrantes e, por conseguinte, intimadas a se integrarem o que é de facto um eufemismo para dizer que se têm que assimilar. Em contrapartida, a deslocação Norte-Sul independentemente das razões chama-se cooperação, o que dá aos generosos «expatriados» direito a manter as suas especificidades culturais que de todas as maneiras são superiores que as práticas dos indígenas… No debate actual quanto aos «modelos de gestão da diversidade», a América do Norte (Canadá e Estados Unidos) privilegiam o modelo multicultural, por razões inerentes a sua génese histórica: a situação da comunidade amero-indiana, os afro-americanos, as perseguições e as guerras entre
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religiões que estão na base da imigração de muitos europeus para os EUA entre os séculos XVI e XVII, a matris anglo-saxónica das elites americanas, as imigrações europeias dos séculos XIX e XX. Pode-se considerar que o apartheid na África do Sul foi, em definitivo, o multiculturalismo levado às suas consequências extremas, e esta tem sido uma das críticas que a Europa Ocidental tem feito ao modelo norte-americano; o perigo da criação de um apartheid sob forma de «gethização» com todos os corolários de conflitos sociais que uma tal situação provoca. É assim que ao invés do multiculturalismo, e contra o velho sistema assimilacionista praticado na época colonial (França e Portugal), a Europa política fala de integração (o que comporta o respeito de uma base axiológica comum que torna possível a vida social, mas ao mesmo tempo a possibilidade dos diferentes indivíduos e grupos terem valores próprios e fazê-los mesmo beneficiar aos concidadãos) e a Europa científica viu lá a possibilidade de abrir um novo domínio de saber intitulado intercultura. Ora, esses debates que na Europa são contemporâneos, constituíram os substratos das ideologias políticas na África Austral desde o fim do sec. XIX com as estratégias assimilacionistas começadas com António Ennes em Moçambique, e as estratégias separatistas da África do Sul que com Verwoerd atinge simplesmente o cume de um processo iniciado muito antes. Junod atravessou, de uma maneira atenta e muitas vezes crítica, as fronteiras políticas desses dois sistemas sem nunca chegar nem a aderir nem a opor-se totalmente a nenhum deles. Para o etnólogo – e teólogo romântico – que ele era, o apartheid sul-africano tinha uma faceta positiva na medida em que favorecia a emergência e a afirmação de particularidades, expugnadas do outro lado da fronteira pelo assimilacionismo português. Ao invés, para o missionário, a irredutibilidade ontológica entre as raças no sistema do apartheid metia em causa a universalidade do cristianismo e abria espaço a teorias poligenistas e predeterministas, o que os pressupostos evolucionistas do assimilacionismo não permitiam. Por conseguinte, a África, nas suas metamorfoses históricas e Junod na sua maneira de estar, entre o registo universalista e assimilacionista da missão e as preocupações particularistas do etnólogo, são de grande pertinência e actualidade nos debates hodiernos da filosofia política e sobretudo, na
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exigência actual de encontrar um modelo que permita uma convivialidade pacífica entre pessoas de culturas diferentes, que não é um epifenómeno, mas tornou-se constitutivo das sociedades contemporâneas.
Junod e o Colonialismo Entre os vários conotativos atribuíveis a Junod – missionário, antropólogo – a categoria mais geral, mas também mais problemática é a categoria de colonizador. Com efeito, Junod defendia a colonização dos africanos, ele veio para a África como colonizador. Só que colonialismo no sec. XIX é um conceito positivo. Colonizar queria dizer libertar o negro da pobreza, da escravatura, do islamismo, etc. Então dizer-se grande colonizador no sec. XIX era sinónimo de grande filantropo, humanista. Os colonialistas, aliás humanistas de hoje chamam-se doadores, ONGs, cooperantes, ... Se o missionário era tão colonizador como o militar e o mercante, eles diferiam contudo nos objectivos. O que diferencia Junod de António Ennes primeiro e de Mouzinho de Albuquerque depois, é que os portugueses queriam colonizar Gaza de um colonialismo de exploração. Enquanto Junod concebia a colonização da África e dos africanos por parte dos europeus simplesmente como meio para libertar os negros do paganismo e da ignorância. Como a escola de Salamanca no sec. XV (Soares, Vitória) a propósito da colonização da América, ele subordinava a Ius inventionis à Ius praedicanda evangelium. Era necessário que a colonização fosse rentável para as duas partes senão seria moralmente injustificável. Esta é a razão pela qual no conflito do fim do sec. XIX que opôs portugueses – que queriam reintroduzir a escravatura através do xibalo – e Gaza, ele era da parte de Ngungunhana. Este combate de Junod é ainda de grande actualidade, dado que algumas práticas económicas e sociais de hoje (condições de trabalho e salários) levados a cabo pelos novos «Mouzinhos» de Albuquerque, que sejam moçambicanos, portugueses de volta, sul-africanos ou outros agentes da globalização económica se parecem muito com o xibalo do passado. A diferença específica do colonialismo de Junod era a missão cristã. Foi por razões de envagelização que ele deixa a Suiça, e atravessa fronteiras geográficas, linguísticas, culturais até chegar no que hoje é Moçambique. Todavia,
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ele trazia já consigo uma certa inclinação para os estudos sociais – o que vai muito interferir no seu trabalho de missionário -, na medida que ele fazia parte daquelas pessoas que olhavam com uma certa angústia as transformações bruscas que se produziram na Europa em seguida à revolução industrial e que levaram a perda de identidades locais, do folclore, de especificidades culturais, de referências morais, etc. Este processo de transformação era tanto mais significativo, quanto na esteira da filosofia e da teologia românticas, Junod pensava que as identidades, as línguas e as culturas fossem espaços epifánicos privilegiados para a revelação divina. Por isso, Junod chega à Moçambique com predisposição de defender particularidades. O grande dilema é como conciliar a actividade missionária com a actividade antropológica. O missionário é alguém com convicções fortes, que tem «verdades» a levar aos outros homens, povos e culturas. E em nome das suas verdades ele intima os outros a abandonarem as suas crenças e práticas culturais inerentes. Neste sentido o missionário é um reformador de crenças mas ao mesmo tempo também de culturas. Como consequência, o missionário que acredita que a sua fé pode ser difundida sem limites de fronteiras geográficas, linguísticas e culturais, é na realidade um universalista. O etnólogo, por sua vez, de um lado não tem verdades a transmitir, está mais interessado a aprender das culturas que a ensinar; por outro lado está interessado na maneira particular através da qual a humanidade dá razão a existência por meio de uma cultura particular. Neste sentido, a pior coisa que pode acontecer com um antropólogo é chegar a um lugar por onde tenha já passado um missionário. Ora, Junod – e aqui reside ambiguidade do seu trabalho – é ao mesmo tempo um reformador de culturas e um defensor de particularidades. Podemos questionar a sua pretensão de ter estado, exactamente porque missionário, numa posição privilegiada para fazer a sua inchiesta etnológica, como podemos também questionar a pertinência epistemológica de inchiesta antropológica que se limita unicamente a aurir informações nos já convertidos membros da Igreja. Mutatis mutandis devemos relevar que já na introdução da sua célebre monografia ele afirma querer ser o mais objectivo possível, tentando render
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as particularidades do grupo sem tentar influenciar e interferir nelas. Foi esta perspectiva teórica muito próxima da antropologia científica do seu tempo que fez dele um dos poucos antropólogos missionários: o facto de ter reconhecimento e pertinência nos debates académicos.
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PEDUCAÇÃO E POBREZA* José P. Castiano
A questão que pretendo tratar é esta: Nos tempos de pobreza que afecta a maioria dos moçambicanos, qual pode ser a contribuição específica da pesquisa educacional no alívio ao sofrimento dos moçambicanos (devido à pobreza)? E a proposta que quero defender é esta: Para que a educação contribua realmente para o combate à pobreza é necessário que o projecto educacional assente nas necessidades materiais e espirituais das comunidades. Esta proposta parte do pressuposto básico que a pobreza da qual a sociedade moçambicana enferma, tem uma face material, mas também tem outra face que é imaterial. Por consequência, a pesquisa educacional é chamada em primeira linha a elaborar um discurso pedagógico a partir do inventário aturado que deve fazer sobre as necessidades básicas de aprendizagem materiais e imateriais tendo como centro comunidades concretas. Penso que esta é a direcção que as linhas de pesquisa que se desenvolvem, tanto na Universidade Pedagógica assim como em outras instituições de educação, poderiam tomar se têm como pretensão serem úteis na luta contra a pobreza. Se formos a falar em termos gerais, a pobreza material e a pobreza espiritual, chama-nos a atenção para a necessidade de acelerar o aprofundamento de duas «revoluções» que penso estarem a tomar seus contornos próprios na sociedade moçambicana: uma é a revolução agrícola cujo objectivo é eliminar a fome e a pobreza material. A outra é a revolução cultural cujo marco fundamental é uma dupla abertura: para as novas tecnologias e para * Texto da oração de sapiência pronunciada em Quelimane por ocasião da abertura do ano lectivo na Universidade Pedagógica, a 22.02.2005.
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os saberes locais. A luta contra a pobreza é apenas uma fase dum objectivo mais amplo: o desenvolvimento de Moçambique. Mas o desenvolvimento deve basear-se no homem moçambicano que vive em comunidades concretas. Este deve estar apto para dominar tanto as novas tecnologias e usá-las em prol do desenvolvimento, assim como ser capaz de beber dos saberes locais e tradicionais que estão depositados em pessoas concretas nas comunidades na medida em que (as tradições) são mobilizáveis para dar respostas aos problemas inerentes à pobreza. Para ilustrar a ligação entre a pobreza material e imaterial, permitam-me que o faça por meio de uma história: Durante um festival tradicional chamado «Ndaam Koya», David Millar, membro de uma organização denominada CECIK encontrou Adongo Nso, um velho da comunidade Gowrie-Konkwa no norte de Gana. O velho estava a tocar um instrumento musical muito antigo que emitia melodias estranhas, mas muito bonitas, próprias para celebrar o evento. Esta era a primeira vez que David via aquele instrumento e escutava aquele tipo de música, não obstante ele estar a trabalhar há muito tempo naquela mesma vila. Assim, ele aproximou-se ao velho que lhe fez revelações interessantes: David: Que idade tem este instrumento e há quanto tempo o tem estado a tocar? Eu venho anualmente para estas celebrações de «Ndaam Koya», mas nunca lhe tinha visto a tocar este instrumento! Adongo Nso: É um instrumento muito antigo usado pelos nossos antepassados para adorar os seus antepassados ou para as cerimónias fúnebres. Somente a minha família tem habilidades de fabricar e de tocar este instrumento. Não é possível encontrá-lo num outro lugar. David: Imagino que tens uma família muito grande. Quantas pessoas da tua família sabem tocar este instrumento e quantos jovens da tua família sabem tocar ou estão a aprender de si a usá-lo? Adongo Nso: Somente dois de nós sabemos usar este instrumento. Eu e o meu irmão gémeo! Os nossos filhos e netos recusaram aprender porque eles disseram que é um instrumento tocado por homens pobres e que iria perpe-
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tuar a sua pobreza; como vê, as pessoas vêm a pobreza em várias dimensões. Adicionando ao facto de não ter condições materiais, pode também ver-se como uma pobreza de espiritualidade, de conhecimento e de habilidades. David: Podes explicar um pouco mais esta outra dimensão da pobreza? Adongo Nso: Os missionários foram os primeiros a dizer-nos sobre a nossa pobreza espiritual. Eles pensaram que pobreza era venerar os nossos antepassados. Eles mesmos ocuparam-se de fazer-nos cada vez mais pobres destruindo as nossas religiões. A seguir os funcionários do Governo vieram com os seus conhecimentos sobre a produção alimentar e de novo nos disseram que o nosso conhecimento, a nossa capacidade de produzir era pobre. Estes também nos fizeram cada vez mais pobres ao tentar destruir o nosso conhecimento e substituí-lo com as suas técnicas. Hoje temos uma pobreza «absoluta» na nossa comunidade e estes que substituíram os nossos conhecimentos e capacidades são responsáveis por isso.31 David: E qual é a sua sugestão para isso? Adongo Nso: O Governo deveria, de certo, olhar para a pobreza material. Mas a pobreza no conhecimento, capacidades e espiritualidade deveriam também fazer parte da sua preocupação.
O Governo de Moçambique acaba de anunciar que cerca de 75% do orçamento será aplicado nos diversos programas de redução da pobreza32 . Penso que a história que acabei de contar pretende mostrar que a pobreza não pode ser só equacionada em termos materiais. Aliás nos mostra que a pobreza espiritual está muito mais enraizada em nós do que às vezes pensamos. Neste aspecto aprecio bastante o lado da pobreza que o actual Chefe 31
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Tradução livre minha de: MILLAR, D.; HOOFT, K.; HAVERKORT, B.; HIEMSTRA, W., Ancient Visions and New Challenges. In: Compas Magazine for Endogenous Development. Nr. 4, March 2001. Segundo o Telejornal das 20 horas, de 17.02.2005 na Televisão de Moçambique (TVM).
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do Estado costuma falar. Pois, se ele insiste na ideia de «os moçambicanos devem confiar nas suas próprias forças» para vencer a pobreza, isto significa que é um apelo para mobilizarmos os inimigos não materiais do desenvolvimento, aos quais o nosso velho Nso na nossa história classifica de «pobreza de conhecimento, de habilidades e de espiritualidade». Como então a pesquisa educacional pode redireccionar-se para que contribua para o combate à pobreza? Se quiser tornar a história frutífera para o tema que estou a abordar, ou seja redireccionar a pesquisa na educação para o combate à pobreza pondo no centro a comunidade na definição das necessidades de aprendizagem, então o velho Nso na nossa história faz quatro propostas interessantes, a saber: a primeira, em relação ao objecto da pesquisa educacional; a segunda, em relação ao sujeito da pesquisa educacional; a terceira, em relação às metodologias de pesquisa e a quarta em relação à utilidade social dos resultados da pesquisa (responsabilidade perante as comunidades). Em seguida vou explorar cada uma destas propostas. Primeiro: Em termos do objecto de pesquisa. A comunidade deve ser o objecto central da pesquisa educacional. Colocar a comunidade no centro significa que ela é o início e o fim da pesquisa educacional. Pondo a comunidade como o objecto central da pesquisa no contexto da luta contra a pobreza significa, em primeiro lugar, equacionar as metas da «Educação Básica para Todos» assim como os «Objectivos do Milénio» a partir da comunidade. Concentremo-nos na Educação Básica para Todos tal e qual ela foi definida na Conferência de Jomtien. Para isso temos de equacionar o que significa «educação básica», por um lado, e o que significa o termo «todos», por outro lado Esta equação vai ser feita evidentemente a partir de uma comunidade. Comecemos pelo termo «básico». Na aplicação prática há uma restrição de educação básica para uma educação escolar ou primária. O termo básico pretende sublinhar que não é só com a formação escolar primária que se podem cobrir as necessidades básicas de aprendizagem. Pois, as que se podem considerar como sendo necessidades básicas para um indivíduo, se estendem e variam ao longo de toda a vida. Portanto, não deve reduzir-se a educação básica a uma educação oferecida pela escola primária e esta não deve bastar
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para o indivíduo. Por outro lado o básico é confundido com o mínimo ou seja, as necessidades básicas passaram a ser entendidas e aplicadas no sentido de «o mínimo que se pode dar», de «pacote restrito e elementar de capacidades» úteis para satisfazer as necessidades imediatas. Na aplicação dos programas de ensino básico, o conceito de necessidades básicas passou a ter a conotação de «programa mínimo», «conteúdos mínimos», ou ainda «padrões mínimos» de aprendizagem. Mas partindo da ideia de que cada escola deveria ter o seu projecto pedagógico e este deve assentar-se nas necessidades básicas da comunidade, então e pondo a comunidade no centro da pesquisa, teremos que ser capazes de definir o que pode ser considerado uma educação básica para cada escola numa determinada comunidade. O outro termo a equacionar é o de «todos». No tempo das matrículas, as nossas comunidades e bairros quase que se dividem em duas partes: entre as crianças que conseguiram a matrícula e as que vão ficar mais um ano fora da escola; entre os pais e encarregados que conseguiram matricular os seus filhos e educandos e aqueles que não conseguiram fazê-lo. Então aí o termo «todos» se restringe aos poucos com lugar na escola. A pergunta é: e os «outros» que não conseguiram entrar na escola perdem o seu direito? Ficam desempregados? Quais são as alternativas que se lhes oferece? O sistema de educação elitista que herdamos do colonialismo está desenhado por formas a «lavarmos as mãos» para os «outros» mal o processo de matrículas termine. Pois, após terminar o processo das matrículas, concentramo-nos então literalmente na parte das crianças da comunidade que conseguiram matricular-se para lhes fornecer livros, afectar ou contratar professores, etc. Os jovens que perderam a matrícula, os adultos e as mulheres fora do sistema escolar, ficam a espera para o outro ano. Estão condenados a não terem a oportunidade de desenvolver as suas capacidades para o combate efectivo à pobreza material e imaterial. A linha divisória nas comunidades e bairros entre as pessoas nas comunidades passa a ser a escola. Penso que aqui a pesquisa educacional tem muito a dar na luta contra a pobreza, apontando ou reordenando as linhas de pesquisa tanto para os que estão dentro do sistema como para os que estão de fora. Para as crianças que estão dentro do sistema poderia formular questões concretas que afectam a aprendizagem nas comunidades (que podem ser
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tratadas usando métodos qualitativos e quantitativos). A título de exemplos de perguntas podemos formular as seguintes: qual a percentagem de crianças que devem tomar conta dos irmãos em casa? Quais e como as crianças ajudam aos parentes nos trabalhos caseiros? Qual é a percentagem daqueles que desistem porque devem ajudar na agricultura e/ou na pastagem? Qual é a parte de crianças que num determinado ano teve de começar a trabalhar para poder ganhar o pão? Quais são as crianças que desistiram pelo facto de os pais não estarem interessados na sua escolarização ou na continuidade dos estudos? Quantas crianças desistiram por causa dos custos reais (apesar de a escola teoricamente ser gratuita)? Quantas crianças na comunidade desistiram porque tinham que tomar conta dos doentes nas suas respectivas famílias? Por gravidez? Quantas refeições têm as crianças em casa? Estas e outras mais perguntas estão dirigidas para apurar os factores da pobreza que afectam a aprendizagem ou provocam a desistência obrigando o Estado a despender recursos enormes. Penso que o pesquisador, ao direccionar as linhas de pesquisa para estes problemas, pode influenciar positivamente para a definição de estratégias educacionais a nível da comunidade e pode também ganhar espaço na definição do discurso educacional. Mas penso também que este é o tipo de informações ou dados que os directores de escolas e os directores distritais de educação devem dominar para terem maior domínio das políticas educacionais a nível local e poderem optar por vias mais acertadas na implementação da educação para todos também ao nível local. O que pode fazer o pesquisador educacional para os que estão fora da escola, sobretudo para os jovens e para as raparigas nos bairros e nas comunidades? Penso que a ideia lançada em Jomtien e que infelizmente ficou apenas bastante teorizada, porque não se traduziu ainda em prática sistematizada, a ideia portanto de «educação básica fundada em necessidades básicas», deve ser explorada e aplicada usando como horizonte de implementação a comunidade. Se por um lado o pesquisador educacional se pode concentrar na inventariação do que são as necessidades básicas de aprendizagem em comunidades concretas, também poderá, por outro, desenhar programas educacionais adicionais e alternativos para esses jovens com base nessas necessidades. O que impede, por exemplo, a uma escola organizar cursos para preenchimento de requerimentos (para a obtenção de títulos de terra ou de
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negócios) ou o que trava a nossa Universidade Pedagógica em abrir cursos de capacitação, de actualização ou de reorientação profissional de acordo com a demanda? Penso que absolutamente nada, a não ser o próprio sistema do ensino que é mais selectivo e excludente do que aberto e inclusivo. Naturalmente que o desenho destes programas alternativos ou adicionais vai requerer repensar no sistema de creditação ou certificação escolar. Mas isso é um problema técnico e não de princípios ou de fundamentos do sistema de educação. Segundo: Em relação ao sujeito da pesquisa. O professor deve ser o sujeito central da pesquisa educacional. A actividade de pesquisa deve deixar de ser o privilégio elitista universitário. O termo bastante usado pelo Presidente da República que «os moçambicanos, para combater a pobreza, devem acreditar nas suas próprias forças» é um apelo muito claro para a necessidade de passarmos a ser sujeito (e não objecto) do processo do desenvolvimento. Na educação significa que o professor deve ser o centro das nossas atenções. O desafio que é agora lançado ao professor é o de não ser só um transmissor de conhecimentos, mas também e sobretudo ele deve passar a ser um produtor de conhecimentos. O que aflige o velho Nso na nossa história acima é o facto de não ter campo ou espaço institucionalizado que lhe é posto à disposição para passar a ensinar aos mais novos a técnica do fabrico e a arte de tocar o instrumento tradicional para tocar melodias lindas. O que lhe aflige é o terror de não haver possibilidade de as cerimónias de veneração aos antepassados serem abrilhantadas com a música, dança e canções por ele consideradas de «apropriadas». Se a escola não se abrir totalmente para esse desafio, ou seja para o conhecimento, as habilidades e a espiritualidade, o desenvolvimento ficará adiado. A educação com base na comunidade é uma questão de «educar ou perecer» (educate or perish) como escreveu o grande historiador africano Joseph Ki-Zerbo. As questões colocadas acima só podem fazer sentido se o professor tiver capacidade técnica de formulá-las e de investigá-las. Ou por outra, mesmo que a Universidade Pedagógica (neste caso) tome dianteira em chamar a atenção para aquelas questões, ela não está em condições de fazer aquele levantamento sem o auxílio dos professores concretos nas comunidades. É o professor que deve saber o porquê dos seus alunos e alunas terem problemas
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na aprendizagem e até mesmo desistirem. Também é só com base nele que se pode elaborar um discurso em volta das necessidades básicas de aprendizagem para alargar as ofertas educativas. Por isso penso que os programas de pesquisa educacional desenhados no contexto de combate à pobreza devem necessariamente envolver professores nas escolas. Este envolvimento deve mostrar claramente em que medida o professor é o sujeito e não um mero participante para fazer número. Ao nível da Universidade Pedagógica foi um grande passo abrir cursos para a Educação Básica. No entanto, ainda estamos muito longe de pensar todo o sistema de formação de professores em função dos desafios que se colocam em termos de necessidades básicas de aprendizagem. O que temos, e para começar é bastante bom, é a vontade e a consciência da necessidade de oferecer um currículo de formação de professores baseado nas necessidades materiais e imateriais. Porém, enquanto não tivermos o conhecimento de quais são as necessidades concretas teremos sempre que adiar o desenho de conteúdos para uma formação que dê respostas claras para estas necessidades. Por isso, para mim, a Universidade Pedagógica e outras instituições de formação de professores deve formar um professor que deverá ser sujeito da pesquisa educacional porque só ele poderá ajudar a cada escola a desenhar o seu próprio projecto educacional. As experiências da ADPP mostram que o tipo de formação de professores baseado na comunidade é possível e é nossa a responsabilidade social de aprofundar aquela experiência. Terceiro: Em relação às metodologias. penso que se estivermos a falar em termos de combate à pobreza, tanto os métodos quantitativos assim como os qualitativos são igualmente mobilizáveis para este combate, desde que tenham a comunidade no centro da sua pesquisa. Mas aqui penso que a Universidade Pedagógica e outras instituições de pesquisa educacional têm uma dupla missão. Por um lado é a missão de ensinar e treinar professores e disseminar as metodologias de pesquisa centradas nas comunidades e valores locais. Por outro, o que é mais complicado, é a missão de elaborar um discurso em torno dos métodos (locais/tradicionais) de ensino e de pesquisa. Isto significa na prática, que ao lado do inventário sobre as necessidades locais de aprendizagem que está a ser feito pelo Instituto Nacional de Desenvolvimento
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de Educação (INDE) no âmbito do currículo local, deve-se paralelamente fazer um inventário dos «saberes educacionais e/ou pedagógicos» também depositados e circulados nas comunidades. E também significa tornar estes saberes educacionais frutíferos para o processo de ensino e de aprendizagem na escola. Se resgatarmos somente o conteúdo das necessidades básicas e deixarmos os métodos e as estratégias locais de como essas mesmas necessidades duma ou doutra forma são resolvidas no contexto local, então correremos o risco de falhar na contribuição que queremos dar para o combate à pobreza. Penso que a pesquisa educacional deveria tomar uma atenção especial na recolha e sistematização dos «saberes educacionais». Naturalmente que a «viragem» da pesquisa educacional para a comunidade levanta novos problemas éticos e epistemológicos que não serão aqui discutidos. Um exemplo para a reflexão ética seria a questão dos direitos de propriedade intelectual sobre o conhecimento produzido no contexto da pesquisa educacional com base na comunidade. O outro problema (epistemológico) seria pensar até que ponto os métodos de tradição positivista ou interpretativa se adequam e são plausíveis no contexto da pesquisa onde as pessoas nas comunidades vivem com muitas crenças anónimas e numa cultura oral. Estas questões, porém, já foram por mim discutidas num outro âmbito33 . Quarto: Utilidade social da pesquisa educacional. Uma pesquisa educacional que se quer no contexto da luta contra a pobreza deve estar em condições de mostrar a sua utilidade (imediata, a curto ou a longo prazo) para a comunidade onde ela foi realizada. Penso que a pesquisa educacional, tal como é praticada hoje, percorre um «caminho» muito longo para ter algum impacto directo na comunidade. O pesquisador que vai à comunidade ou a uma escola concreta, volta para a Universidade ou Instituto de Pesquisa com um conjunto de dados e materiais, mas também com uma boa vontade de melhorar as condições que encontrou. Faz um «relatório de campo» para a agência com as necessárias «recomendações» e entrega-o. Se se tratar de um trabalho de fim de curso, ele recebe a sua nota e considera a pesquisa «fechada». Se se tratar de uma pesquisa mais séria, o nosso pesquisador fica
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Cfr. CASTIANO, J.P., Community-Based-Research and Education: Towards an African Approach. In: INDILINGA 2003.
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com a sensação de «missão cumprida» quando entrega o relatório «dentro do prazo». Para ele o problema acabou. Porém, na perspectiva da pesquisa com base comunitária, o problema da responsabilidade (ou do compromisso) social começa aqui mesmo. O que se faz hoje com as «recomendações» saídas destes relatórios? Praticamente quase nada, senão desaparecer em seminários de pesquisa ou em conferências que se fazem em inúmeros hotéis nas capitais provinciais e em Maputo. Quem é responsável por elas? Quase ninguém! Acho que a nossa responsabilidade social aqui deveria ser a de estudarmos a possibilidade de «reciclar» estas recomendações por formas a terem retorno na comunidade onde a pesquisa foi feita. Naturalmente que quando falo de «retorno» não significa que todas as recomendações deverão ser aplicadas; isto seria utópico e também não seria desejável. O termo «retorno» aplica-se no sentido de as ideias ganhas pelo pesquisador serem circuladas e debatidas ao nível local por formas a enriquecerem as estratégias e as ideias locais na construção de uma escola que seja vanguarda na luta contra a pobreza. É necessário fazer da escola na comunidade um espaço de debate de ideias e de valores e torná-los frutíferos no combate a pobreza. Estas propostas sobre a pesquisa educacional no contexto de luta contra a pobreza não têm necessariamente que ser as únicas. Mas penso que vão fazer parte de outras propostas para eliminarmos o mais depressa possível tanto a nossa pobreza material como a imaterial. A pesquisa educacional tem agora a oportunidade de arregaçar as mangas e fazer-se à luta contra a pobreza. E para isso tem o melhor aliado que jamais poderia ter tido: o Governo de Moçambique que acaba de declarar que vai disponibilizar muitos recursos para esta luta por via da educação. Mas a pesquisa educacional baseada na comunidade tem uma oportunidade redobrada porque o mesmo governo, na pessoa do Presidente da República, aquando da investidura dos governadores provinciais, declarou que os distritos devem transformar-se na base e centro de toda a acção governativa. Que outra oportunidade podemos esperar para arregaçar as mangas e ir para as comunidades? Para tornar realidade o sonho do velho Nso em poder ensinar na escola aos mais novos o conhecimento e as habilidades do fabrico e a arte de tocar lindas melodias, enfim para sairmos da «pobreza espiritual» que ele mais temia, teremos que repensar a pesquisa educacional pondo no centro a comunidade concreta.
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FILOSOFIA, ENSINO E INTERSUBJECTIVACÇÃO José P. Castiano
O tema Filosofia, Ensino e Intersubjectivacção tem como motivação a necessidade de hoje reflectirmos sobre o estatuto do ensino da filosofia nas escolas, na formação dos professores de filosofia (até agora a decorrer somente na Universidade Pedagógica) e nos programas de investigação filosófica. Usaremos o termo filosofia profissional ou filosofia institucionalizada para classificar a esta filosofia ensinada nas escolas e na universidade. Chamarei, em contrapartida, filosofia não-profissionalizada ou não-institucionalizada ao saber crítico reflexivo expresso individualmente pelos sábios num determinado contexto cultural. Enquanto a primeira filosofia é geralmente baseada no texto escrito, a segundo baseia-se na oratura. O intuito desta comunicação é fundamentar a necessidade de a filosofia profissional africana submeter-se a si mesma a uma dupla emancipação, nomeadamente emancipar-se do eurocentrismo e emancipar-se do debate tradicionalista. Isto faz parte de um programa ainda mais amplo que é o da emancipação da filosofia africana de ser africana. Vejo a dupla emancipação como um caminho necessário para que a filosofia profissional possa desmarginalizar-se a si mesma e desmarginalizar à(s) filosofia(s) não-profissionalizadas ou não-institucionalizadas nos programas de aprendizagem, de formação e de investigação filosóficas em Moçambique. É só desmarginalizando as outras formas do saber que a filosofia profissional ganhará o seu estatuto primário enquanto filosofia do ensino e formação: não ensinará pensamentos (teorias), ensinará sim os alunos e formandos pensar por si mesmos, como Kant defende.
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Para ajudar-me a reflectir sobre este tema vou convocar principalmente Foucault, Marx, Hountondji e Odera Oruka. A paixão teórica de Foucault, segundo Jardine34 , consistia em examinar os mecanismos e os efeitos práticos do poder e do conhecimento. Nesta óptica, Foucault serve-me para deconstruir os mecanismos pelos quais a filosofia profissional institucionalizada exerce o seu poder de marginalização perante as filosofias não-profissionais e não-institucionalizadas. A deconstrução dos mecanismos institucionalizados de exclusão que a filosofia profissional usa para com as outras filosofias é uma boa porta-de-entrada para mostrar os possíveis caminhos da auto-emanciapação da filosofia profissional do eurocentrismo e do debate tradicionalista. Por seu turno, a paixão de Marx foi desmistificar o capitalismo como um sistema económico e fundamentar uma sociedade pós-capitalista em que a classe trabalhadora se veria livre das relações de trabalho baseadas na exploração do homem pelo homem. Ou seja, Marx quis pôr a filosofia ao serviço das mudanças sociais. Por isso, ele ajuda-me a reflectir sobre como, no contexto moçambicano, renovar o estatuto filosófico do ensino e da formação filosóficas: ensinar uma filosofia que seja responsável, engajada e comprometida para com os problemas nacionais e mundiais. A paixão do filósofo beniniano Hountondji foi, numa primeira fase, a de desmistificar a tendência unanimista que a filosofia Africana parecia, aos seus olhos, estar a tomar devido a um debate poluído pela antropologia. Para ele, a Etnofilosofia de Tempels e outros não passava mais de uma antropologia com a pretensão de ser filosofia especial dos diferentes povos africanos. A ameaça da antropologização da filosofia ainda não desapareceu. Pois, nas nossas universidades parece que a febre das chamadas etnociências (incluindo a tendência para a etnofilosofia) está a ser moda. A obra de Hountondji, sobretudo a sua filosofia do sujeito, ajuda a olhar para o ensino e a formação filosóficas em Moçambique como um empreendimento que deve ter em conta os diferentes imaginários culturais dos povos de Moçambique, sem, no entanto, cair no antropologismo ao qual Hountondji já nos teria alertado. Por último, a paixão do queniano Odera Oruka foi de dar voz (no sentido de pôr o sábio a falar por si) ao que chamei acima de filosofias não 34
Cfr. JARDINE, G.S M., Foucault e a Educação. Edições Perdago, Portugal, 2007,p.43.
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profissionais africanas. Oruka, em vida, desenvolveu um tipo de investigação filosófica que acabou por se estabelecer na filosofia Profissional Africana como uma corrente denomina por Sage Philosophy. Neste sentido, Oruka vai ajudar-me a procurar e a propor formas de como os imaginários sócioculturais moçambicanos e as formas filosóficas adjacentes podem ser tidas em conta nos programas de ensino, formação de professores e de investigação filosófica institucionalmente. Termino esta comunicação explorando a possibilidade de a universidade moçambicana tornar-se um verdadeiro espaço de inter-subjectivacção, ou seja, um espaço virado ao saber desinteressado e que não marginaliza os saberes não profissionalizados do seu seio. A filosofia profissional, que por definição significa amor (desinteressado) pelo saber, deve tomar dianteira neste combate e causa.
Para quê Ensinar Filosofia? Depois desta breve introdução e antes de abordar o tema directamente, é necessário responder à seguinte questão clássica sobre o ensino da filosofia: é possível ensinar filosofia? Porquê se deve ensinar uma tal ciência que, segundo opiniões comuns, só atrapalha e serve somente para falar? Aliás a essência da própria filosofia pode levar a confirmar a tendência de se considerar a filosofia como sendo inútil do ponto de vista económico e social. Heidegger, para quem a linguagem é a casa do ser, confirma que a palavra é o elemento fundamental numa casa da filosofia. Sob este ponto de vista, a filosofia está, nos tempos modernos em Moçambique e no mundo, em desvantagens relativas. Primeiro: o mundo de hoje é de poucas palavras e de muita imagem. O tempo que gastamos em frente ao televisor a ver filmes, vídeos e reportagens sensacionalistas é muito superior em relação ao tempo de leitura e de conversa com os colegas e familiares. Também os recursos que usamos para adquirir aparelhos multimédias parece tender a superar de longe ao que gastamos na compra de livros ou em construir bibliotecas. Em quase todo o mundo as editoras e os jornais de qualidade sobrevivem a muito custo. As bibliotecas das nossas cidades e universidades andam às moscas. Segundo: este tempo em Moçambique
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parece ser mais de negócio que de ócio, como disse o professor Machado da Universidade do Minho. O desenvolvimento económico com a sua filosofia de empreendedorismo parece estar a conquistar mais espaços na educação em Moçambique do que a reflexão desinteressada. Uma boa vida é, hoje em dia, aquela que procura permanentemente dar respostas mecânicas às necessidades materiais. O penso logo existo cartesiano passou a ser substituído pelo consumo logo existo. Ninguém como o filósofo francês Gilles Lipovetsky fundamentou a era do consumo. No seu recente livro A Felicidade Paradoxal ele sustenta que a sociedade evoluiu para o hiperconsumismo: o indivíduo, divorciado da política e do interesse colectivo, centra-se no prazer buscandoo no consumo dos bens materiais. Ora, o ócio é a casa da filosofia porque é nele que se reflecte. Pensar passou a parecer luxo e inutilidade. Terceiro, a institucionalização da filosofia no ensino, formação e investigação parece estar contrária à essência da própria filosofia como um pensar livre. É que assim a filosofia passa a submeter-se aos critérios de utilidade. E neste caso ela não tem outra saída senão ser tentada a ser uma espécie de estudo de legislação, estudo do direito, ou como é o caso na UP, a aceitar o seu lado pragmático criando um curso de filosofia do desenvolvimento. Filosofia começa a ficar ao serviço do Estado desde Napoleão Bonaparte. Em vez de, com o ensino da filosofia, se cultivar para uma cidadania crítica, cultiva-se para uma cidadania aparentemente engajada, significando este engajamento justificar ou fundamentar a normatividade do Estado. Nas universidades não se ensina o pensar senão o empreendedorismo. Uma quarta desvantagem específica para Moçambique é a desconfiança (ou o desejo) permanente de que filosofia aprendida seja ou uma ideológica ou religiosa. A recente experiência de Moçambique com o ensino unilateral da filosofia marxista e com uma literatura filosófica mais virada para o campo libertário (Fanon, Nkrumah, Cabral, Nyerere) encontra-se ainda recalcada nas preconcepções das pessoas que, quando ouvem falar de filosofia, não a separam das conotações ideológicas. Por outro há a experiência do ensino da filosofia nas escolas missionárias que leva a ligar a filosofia à religião, confundindo-a ou reduzindo-a ao ensino da moral religiosa. Com estas desvantagens todas é lógico que a pergunta (o que significa o ensino da filosofia e a respectiva formação filosófica dos professores hoje?) ganha ainda mais sentido hoje em Moçambique.
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A estas desvantagens extrínsecas à filosofia profissional, acrescentam-se, como se não bastasse, as desvantagens intrínsecas à própria filosofia e ao acto de filosofar. À pergunta filosófica se faz algum sentido ensinar filosofia teve diferentes respostas pelos próprios filósofos. Para Baruch Espinosa, por exemplo, há uma incompatibilidade entre filosofia e o seu Ensino. Quando um filósofo é obrigado a ensinar filosofia, este, praticamente perde a sua liberdade de pensar porque teria que estabelecer fronteiras entre o que deve dizer, quando deve fazê-lo e em que medida deve fazê-lo no âmbito de um programa preestabelecido. Ele declara que nunca aceitaria ser professor de filosofia numa faculdade. Frederich Nietzsche é ainda mais radical. Para ele o Estado constrange aqueles que seleccionou a passarem um tempo determinado, num lugar determinado, no meio de homens determinados, para um aluno determinado a fazer filosofia. Pode realmente um filósofo, com plena consciência, passar a ensinar, ou seja, em horas preestabelecidas, ter que dizer certas coisas? Para Heidegger, por outro lado, afirma que ensinar (filosofia) é mais difícil do que aprender, não porque o professor deva ter mais conhecimentos que o aluno de filosofia, mas porque ensinar é fazer aprender. Estas breves considerações sobre a aprendibilidade (não ensinabilidade) da filosofia mostram que ela, ao longo da história e em diferentes contextos, trouxe mais problemas que soluções. Ou seja, dito de uma forma mais filosófica, o horizonte aporético da filosofia é muito mais vasto do que o horizonte eurético que ela pode oferecer à sociedade. (como disse Fernado Machado) Em nossa opinião, a aparente dificuldade de se ensinar filosofia em Moçambique e na África em geral prende-se com o facto de a própria filosofia profissional (esta que se deve ensinar e que se institucionaliza) estar à margem da sociedade por duas formas: pelo conteúdo do seu ensino e pelo facto de praticamente marginalizar as formas de pensar filosóficas ainda não-profissionalizadas. O pressuposto é que se as preocupações temáticas da filosofia, reflectidas nos seus programas de ensino, formação e pesquisa, estiverem a procurar respostas a problemas concretos de Moçambique, então esta filosofia será relevante e daí, aprendível. Interessa, pois, em seguida, olhar para dentro da filosofia profissional para revelar os mecanismos institucionalizados pelos quais ela se marginaliza a si mesma, concomitantemente, marginaliza as filosofias ainda não-profissionalizadas. Para isso, nos vai ajudar Foucault.
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Focault O que significa, então que a filosofia profissional africana deve desmarginalizar-se? Significa que ela deve deixar de predeterminar as condições epistémicas pelas quais se produz um discurso para que seja considerado como filosófico. Michael Foucault encontra três procedimentos externos e outros três internos na base dos quais um tipo de discurso exclui outros discursos concorrentes. Aos procedimentos externos pertencem a interdição, a oposição entre o racional e o louco e a oposição entre o verdadeiro e o falso (Foucault 1971,10pp.). Aos procedimentos internos de exclusão dos discursos pertencem o comentário, o autor e a disciplina. Comecemos pelos três procedimentos externos dos quais a filosofia africana profissional deve esconjurar-se para que ela própria esteja apta para desmarginalizar-se. A forma elementar de exclusão que os filósofos africanos profissionais mais usam é a interdição, isto é, tirar o direito aos seus colegas sábios de dizerem tudo e em quaisquer circunstâncias; justifica-se que não é qualquer um que pode ser cientista e, por extensão, filósofo. Os sábios interditos de entrarem nas instituições públicas (escolas, hospitais, tribunais, etc.), embora possam contribuir lá com o seu saber. O sistema formal de qualificações não prevê equivalências para as suas qualificações e nem os quadros nacionais profissionais prevêem as suas qualificações. Embora uma grande parte da sociedade recorra aos seus préstimos para resolver vários tipos de perturbações individuais e colectivas, esses sábios são interditos, na linguagem de Foucault, de aparecerem nos espaços públicos. Foucault chama o segundo procedimento por oposição razão e loucura: [O] louco é aquele cujo discurso não pode circular como o dos outros. A palavra do louco é muitas vezes considerada nula e não é acolhida, não tendo verdade nem importância. Os procedimentos instituídos encarregam-se de excluir a sua palavra, de ser suspeitada como possível blasfémia, de não ser escutada como sendo verdade; enfim, de ser considerada como palavra de louco. No entanto, diz Foucault, todo este discurso do louco não desaparece, mas continua a provocar ruído no seio do discurso formal. Por isso, diz ele, que é no teatro onde o louco apresenta-se e representa, pois aí tem a possi-
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bilidade de representar o papel da verdade mascarada (Foucault 1971,11p.). Assim procede também o filósofo africano profissional. Ele criou procedimentos para que a palavra do sábio tradicional seja logo rejeitada, mal seja proferida num espaço público. A filosofia profissional africana criou rituais para declarar a maior parte do que vem da tradição como sendo supersticioso, ou no mínimo suspeito. O sistema de educação construiu um aparato burocrático que não deixa o sábio tradicional desenvolver o seu discurso ou cair no ridículo. São declarados loucos no sentido de Foucault. A coisa piora porque, num contexto desses, o que é encarado por louco não é somente o sábio tradicional mas também todo aquele que, embora treinado formalmente, pretenda estudar questões ligadas à tradição. A filosofia africana académica é racional; pelo contrário, a filosofia que emana dos saberes tradicionais é irracional, é de loucos (no sentido de Foucault empregamos este termo). No entanto, é o próprio filósofo profissional que volta e meia pretende ouvir, em surdina, a palavra dos sábios da tradição. Como o próprio Foucault diz, ao louco se lhe atribui estranhos poderes, o de dizer uma verdade escondida, o de pré-anunciar o futuro, o de ver com toda a ingenuidade aquilo que a sabedoria dos outros não pode perceber. É assim que são tratadas as áreas da medicina tradicional, a do direito costumeiro, a das filosofias etnocêntricas e por aí fora. Senão, qual é a universidade que lhes abriu as suas portas? Há todavia uma terceira forma de exclusão do discurso periférico tradicional: a oposição entre o verdadeiro e o falso. Segundo Foucault (1971,15), é nos séculos XVI e XVII, sobretudo na Inglaterra, onde se criam os critérios e se institucionaliza a oposição entre o verdadeiro e o falso nas ciências: antecipando-se aos conteúdos actuais, desenham-se planos de objectos possíveis, observáveis, mensuráveis, classificáveis. No caso da filosofia africana, e seguindo esta forma de proceder, a oratura (provérbios, contos, mitos, crenças colectivas, etc.) toma o lugar do falso. Para que ela se tornar verdadeira deve ser escrita e ser submetida ao tribunal da lógica. Os argumentos usados pelas filosofias ainda não-profissionalizadas são declarados, muitas vezes, pouco sólidos ou mesmo sem nexo. Estes procedimentos externos completam-se com os procedimentos internos da própria filosofia Profissional Africana: o comentário, o autor e a classificação das disciplinas.
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O pressuposto do qual Foucault parte para caracterizar o comentário como procedimento interno de exclusão é que todas as sociedades têm dois discursos: primeiro, estão os discursos que se dizem ao correr dos dias e das trocas, e que passam com o acto mesmo que os pronunciou. Este é o tipo de discurso que é efémero, do dia-a-dia, do quotidiano ou de narrativas menores. Segundo, existem as narrativas maiores que são os discursos que contam-se, repetem-se, propõem fórmulas e rituais perenes. São narrativas que estão na origem de certo número de novos actos de fala que os retomam, os transformam ou falam deles. Segundo Foucault, estes discursos podem ser textos fundadores religiosos ou jurídicos, podem ser também textos literários ou científicos. São narrativas ou discursos fundacionais. O que seria, entretanto o comentário? Segundo Foucault, o comentário é aquele que permite dizer algo para além do próprio texto (fundador), mas com a condição de que o texto mesmo seja dito e de certo modo realizado (Idem,21). Assim, o comentário é periférico, pertence ao efémero, à sombra (e não à ideia) platónica. Não será isso que se verifica na prática da filosofia institucionalizada? Às narrativas maiores não pertence apenas todo o cânone da filosofia ocidental (europeia e americana, mas sobretudo a europeia) e o discurso das filosofias tradicionais fica relegado às narrativas menores e toma a função de comentários? Sem dúvida que, quando fazemos programas e cursos de filosofia nos países africanos, duma forma aberta ou simulada, os saberes endógenos, tradicionais e locais permanecem como exemplos periféricos da filosofia, ou seja, com um estatuto subalterno e marginal. Se a própria disciplina da filosofia africana é dada, em muitos casos, como uma cadeira somente, então imaginemos o lugar que é reservado aos saberes indígenas e tradicionais originários de cada cultura africana. Mesmo nos casos em que os cursos de filosofia adoptem uma abordagem em que a filosofia africana é tratada transversalmente, e não como uma disciplina, aí os assuntos da filosofia tradicional também têm a função de comentários. Isto é, permitem reforçar o lugar de narrativas maiores aos textos fundadores da filosofia, que são os ocidentais. É isso que Kagamé fez ao encontrar as categorias aristotélicas no sistema do pensamento dos banyaruanda; é isto também que Tempels fez ao tentar mostrar que os Bantu possuem (também) uma ontologia comparável à europeia e por aí fora.
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Passemos, em segundo lugar, para o autor. Foucault chama de autor não […] o indivíduo falante que pronunciou ou escreveu um texto, mas o autor como princípio de agrupamento do discurso, como unidade e origem de suas significações, como foco de coerência (Idem,22). Assim, no domínio das narrativas pequenas, o autor do discurso não existe ou é apagado. O discurso que este pseudo-autor formula é considerado como conversa do quotidiano, como um discurso proferido por um louco. Este autor fica no anonimato dentro de uma colectividade. A partir do século XVII particularmente, a menção do autor de um discurso não serve somente para indicar o dono da obra; esta menção serve para dar um nome às teorias com um corpo coerente (marxismo, por exemplo) ou a um teorema (teorema de Pitágoras, por exemplo), ou ainda a uma linha de pensamento (kantianismo, por exemplo). Assim, o autor é aquele que indica a direcção em que devem ir as interpretações, que dá nós de coerência aos comentários que se fizeram, que se fazem e que se irão fazer. Neste aspecto sobre o autor não precisamos de alongar muito ao adoptar a ideia para a nossa realidade. Pois, é notável que a oratura, forma privilegiada em que circula o texto das filosofias tradicionais africanas, não tem, aos olhos do etnofilósofo, seus próprios autores. A etnofilosofia e as etnociências fazem circular a imagem de existência de filosofias, ciências africanas de carácter colectivo (filosofia sem filósofos, ciência sem cientistas). Os autores tradicionais ficam diluídos, anónimos por trás dos provérbios, dos contos, das lendas, das canções. O que sucede é ainda pior: o etnofilósofo e o etnocientistas não se vêem obrigados a mencionar os autores dos saberes que recolhem, porque, doutra forma, a sua menção poderia tirar-lhes o mérito de serem eles que pensam e escrevem. É este o mecanismo pelo qual o autor tradicional desaparece na sua qualidade de sujeito que prescreve significações, que reflecte criticamente sobre a sua condição. O mecanismo de exclusão do autor tradicional funciona de duas maneiras: o autor etnofilósofo não menciona o colega tradicional reduzindo-o à condição de informante e o filósofo profissional africano à periferia e, desta posição epistémica, incapaz de fornecer grandes sistemas de pensamento com significações próprias. O princípio de disciplina, juntamente com o do comentário e do autor. A disciplina define-se como um domínio de objectos, um conjunto de métodos,
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um corpus de proposições consideradas verdadeiras, um jogo de regras e de definições, de técnicas e de instrumentos (Foucault 1971,24). Foucault alerta-nos, no entanto, que nem tudo o que é dito e escrito sobre o objecto de uma disciplina faz parte desta mesma disciplina. Assim, nem tudo o que é dito e escrito sobre a doença pertence à medicina da mesma forma que nem tudo o que é dito e escrito sobre as plantas pertence à disciplina de botânica. Ora, isto levanta o problema do critério da exclusão do conhecimento que não é chamado para o interior de cada disciplina. Por outras palavras, as perguntas que podemos lançar são: porque é que todo o corpo do que é dito sobre as doenças pela medicina tradicional não passa a pertencer automaticamente à medicina? Porque é que o conhecimento dos herbanários tradicionais não pode pertencer ao corpo de conhecimento da disciplina de botânica? Ou ainda: porque é que as posições que existem nos provérbios, nos contos, nos chamados usos e costumes, etc. não podem fazer parte dos capítulos da filosofia como sejam a ética, epistemologia e/ou metafísica, isto é, passarem a incorporar-se como parte integrante da filosofia praticada nas instituições formais? Enfim, qual é o critério de exclusão? A estas perguntas Foucault responde dizendo que é [n]o interior dos seus limites [que] cada disciplina reconhece proposições verdadeiras e falsas; mas ela repele, para o outro lado das suas margens, todo o saber que esteja fora dos seus limites; em outras palavras estipula-se que uma proposição deve preencher exigências complexas e pesadas para poder pertencer ao conjunto de uma disciplina. É este mesmo mecanismo que tornou possível chamar todo o (ou parte do) pensamento filosófico que não proviesse dos profissionais como sendo selvagem, primitivo, tradicional, ilógico e por aí fora. De facto, o que temos hoje na filosofia profissional africana são regiões do discurso que se abrem e se fecham às novidades sugeridas da tradição. Num primeiro momento fecham-se declarando errado ao conhecimento que emana das entranhas tradicionais ou tratando como loucos, primitivos, selvagens os seus autores. E num segundo momento a filosofia profissional africana abre-se quando precisa de se legitimar a si mesma enquanto filosofia africana. Este último foi e é o caso das etnociências e da etnofilosofia. De facto, fizeram o papel de comentários à filosofia ocidental.
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Marx Rechamar Marx para a filosofia hoje em Moçambique tem um duplo interesse: O ensino da filosofia na primeira República foi baseado (em alguns momentos quase que exclusivamente) em Marx e os seus discípulos do Leste como Lenine e Mão-Tsé-Tung. Estes são os «autores» no sentido de Foucault, que acabamos de ver. O facto de quase toda a nossa geração de moçambicanos nas décadas de setenta e oitenta ter-se confrontado quase única e exclusivamente com as obras de Karl Marx ou interpretações marxistas impregnou em nós uma estrutura mental e analítica que ainda hoje, consciente ou inconscientemente, recorremos para analisar os fenómenos sociais e políticos em nossa volta. Em segundo lugar porque o Marxismo pertence à uma espécie de tradição filosófica em Moçambique. Foi o marxismo que infundiu categorias como capital, classe, ideologia, partido, proletariado e outros por aí fora. São essas categorias que constituem hoje os alicerces da linguagem filosófica e social de qualquer um de nós hoje. A tradição do ensino filosófico em Moçambique teve três fases: a colonial, a marxista-ideológica e a liberal. Na fase colonial a filosofia era ensinada em dois espaços: nos liceus e nos seminários. Nos liceus a filosofia era ensinada aos alunos do 6º e 7º anos. No 6º ano o programa de filosofia era basicamente a História de Filosofia alicerçado por dois compêndios de filosofia da autoria de Saraiva e Bonifácio. O peso aqui era dado à filosofia clássica aristotélica e platónica, assim como a escolástica. Ao lado da filosofia os alunos tinham uma cadeira denominada Organização Político-Administrativa de Portugal. Esta cadeira complementava à filosofia por subsidiar aos estudantes com rudimentos do direito administrativo e da configuração política do Império Português. Recorde-se que nos anos anteriores, isto é no 3º, 4º e 5º anos, os alunos tinham a disciplina de Moral e Religião que indotrina valores da religião cristã a todos eles. No 7º ano os alunos tinham psicologia como cadeira que substituía a filosofia. A filosofia estava muito ligada à psicologia. Convém acrescentar que todas eram cadeiras são obrigatórias para todos os alunos do secundário, independentemente da sua orientação profissional posterior. Nos seminários, por seu lado, o ensino da filosofia era mais clássico. O programa de filosofia contemplava, para além do seu estudo, leituras obri-
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gatórias de textos de Escolástica, da Lógica Antiga e Moderna, seminários de Aristóteles e Santo Agostinho, Teoria do Conhecimento e Filosofia da Natureza. Aristóteles, Platão, Tomás de Aquino assim também Heiddegger, parecem ter sido o prato forte dos seminaristas. Acrescente-se que o estudo e a leitura de textos em latim e alemão faziam parte da formação filosóficoteológica. Este tipo de programa de formação em filosofia continua até hoje nos seminários médios. Isto é importante porque a maior parte dos estudantes que seleccionamos até agora na UP, para serem professores de filosofia, provêm destes estabelecimentos de ensino. A segunda tradição de ensino e formação na filosofia em Moçambique, como dissemos, é a marxista. Esta, podemos chamá-la de tradição filosóficoideológica. Esta teve diversos espaços e níveis de ensino e formação. Nas escolas secundárias havia as cadeiras de marxismo-leninismo e de educação política (como é óbvio, as duas substituem, respectivamente, as cadeiras de filosofia e de organização político-administrativa do tempo colonial). À parte disso os alunos tinham aulas de preparação político-ideológica que também transmitia alguns rudimentos de análise marxista da sociedade. Ao nível da formação de professores tínhamos os institutos pedagógicos onde se formam especificamente professores para as cadeiras de Marxismo-Leninismo e Educação Política. Alguns professores, para o nível superior, foram formados nos países socialistas como a Alemanha Democrática, a União Soviética, Polónia, etc. Não se deve esquecer que as cadeiras de Marxismo-Leninismo e Educação Política eram de carácter obrigatório para todos os cursos de formação de professores. Os programas de ensino eram fundamentalmente naquilo que se considerava serem as três componentes fundamentais da doutrina do marxismo (chamados por fundamentos): O Materialismo Histórico, a Economia Política do Capitalismo e o Socialismo Científico. A leitura de textos nos manuais do marxismo-leninismo, de textos directos de Marx e Lenine constituíam os materiais de ensino e de formação. Estes textos são misturados com os discursos políticos partidários e presidenciais das grandes ocasiões como sejam as nacionalizações, os congressos do partido Frelimo, planos estratégicos de desenvolvimento, etc. Ao mesmo tempo, circulavam textos, que se consideram «literatura marxista revolucionária», de teóricos como Franz Fanon, Amílcar Cabral, Kwame Nkrumah, Julius Nyerere,
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Fidel Castro e outros para fundamentar a possibilidade da construção de uma sociedade socialista em Moçambique. Uma boa parte dos docentes que iniciaram e abriram os cursos de filosofia da Universidade Pedagógica foi forjada por esta tradição. O marxismo deve interessar-nos, em primeiro lugar, pela função que reserva à classe operária Libertaria que às outras duas classes, nomeadamente a classe camponesa (que era vista como sequela da sociedade feudal decadente) e a classe burguesa (que era a camada exploradora). Sob o ponto de vista político, a ideia da praxis revolucionária significa auto-emancipação. Ou seja, expressa a convicção de que nenhum salvador, nenhum herói esclarecido ou uma elite intelectual irá libertar a classe maioritária dos trabalhadores. Com esta posição, Marx colocava-se claramente contra o materialismo francês e contra o idealismo alemão, ao mesmo tempo que usava a filosofia para dar conta dos movimentos operários do sec. XIX. A ideia marxiana da auto-emancipação pode ser feita frutífera para a problemática do ensino/formação/pesquisa da filosofia em Moçambique. De facto, a reflexão sobre o ensino da filosofia em Moçambique deve, num futuro breve, passar pela reflexão em torno da auto-emancipação da própria filosofia. O que quero mostrar aqui é que a filosofia deve encetar um combate contra os constrangimentos internos à sua própria emancipação. Esta autoemancipação da filosofia em Moçambique deve ser dupla: do eurocentrismo e do debate tradicionalista. Em relação ao centramento do ensino da filosofia nos assuntos europeus não preciso muita argumentação: basta olhar para a série de temas que compõe o programa de filosofia nas universidades, olhar para os autores que são tratados desde a Grécia Antiga até aos pós-modernistas e olhar também para o conjunto de temas das teses defendidas tanto ao nível de licenciatura bem como ao nível dos mestrados de filosofia na Universidade Pedagógica. Neles, o lugar que é preservado para autores africanos e moçambicanos é exíguo e periférico. O ensino da filosofia deve, na minha opinião, auto-emancipar-se do Ocidente. Emancipar-se para mim não é uma espécie de luta contra o património do pensamento filosófico ocidental. É antes de mais cultivar nos alunos uma atitude de confrontação crítica para com os sistemas de pensamento que evoluíram no Ocidente. Significa que devemos abordar Kant,
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Hegel, Marx, Heiddegger, Habermas e outros com a consciência de que o seu edifício teórico foi constituído para dar respostas filosóficas a problemas concretos da sua região e época. Emancipar a filosofia profissional africana significa, para mim, insistir no princípio segundo o qual: pela sua natureza os problemas que a filosofia deve tratar são concretos num determinado contexto; pela sua natureza, as respostas filosóficas a estes mesmos problemas são universalisáveis. Esta deve ser a chave e o espírito para a emancipação da filosofia profissional e do ensino da filosofia. O ensino/formação/investigação da filosofia em Moçambique deve emancipar-se do debate tradicionalista. Esta emancipação é tridimensional: emancipação do essencialismo/unanimismo, da religião e do elitismo da escrita. Emancipação do Unanimismo: Com efeito, o primeiro passo libertário da filosofia africana é libertar-se a si mesma da propensão de tender a dedicar-se a assuntos que as seguintes frases nos sugerem: «os africanos pensam assim», «os yoruba acreditam que…», «a essência da ontologia dos sena/ronga/macua é esta», «os bantu acreditam que…», etc. A filosofia deve manter-se vigilante a este tipo de busca filosófica onde uma comunidade ganha a capacidade de pensar, o que é filosoficamente uma aberração. Mesmo os velhos supostos de estarem em condições de orientar certas cerimónias e/ou ritos de iniciação, religiosos, familiares, etc. manifestam discordâncias nas suas interpretações sobre os mesmos fenómenos e processos. De outra forma não se justificariam os longos debates que antecedem o início de certas cerimónias. De facto, o unanimismo existe somente na cabeça do (etno)filósofo. A segunda dimensão da qual a filosofia profissional africana deve emancipar-se é a religião. Há muitos que, como Mbiti, propõem que a verdadeira filosofia africana deve procurar-se por trás da religiosidade naturalista do homem africano. Nesta ordem de ideias, a tarefa da filosofia segundo Mbiti seria, primeiro, descrever as práticas religiosas dos homens africanos e, segundo, interpretar estes mesmos a partir da visão religiosa dos africanos. Porém, a filosofia africana não deve estar presa às profecias religiosas. Como sublinha Ngoenha no livro Das Independências às Liberdades, se adoptarmos uma visão futurista, a religião faz profecia e a filosofia utopia. Isto significa que a filosofia deve-se libertar da religião para que a própria filosofia não se veja na contingência de espalhar profecias e se concentre em elaborar utopias.
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Emanciapação da Oratura: Quando falamos da filosofia nas condições de África, coloca-se sempre o problema do papel da oratura dos sábios africanos para a criação de um sistema filosófico. Em torno da problemática da oratura se tem levantado muitas questões a saber: os dizeres orais ou provérbios africanos podem ser considerados filosofia ou não? Ou é filosofia o conjunto de textos da interpretação filosófica da oratura que deve fazer parte do corpus da filosofia africana? Ou ainda ambas? Qual é o papel do filósofo africano profissional perante estes dizeres? Transcrevê-los ao estilo de Griaule? Interpretá-los com base na ordem discursiva formalmente estabelecida da filosofia como uma disciplina académica, seguindo, desta feita, as pegadas de Tempels e Kagamé? Ou entrarmos num diálogo intersubjectivo entre os sábios e os filósofos profissionais? Resumindo, podemos dizer que a filosofia africana deve libertar-se de ser considerada africana pelo facto de estar a debater com muita insistência sobre a tradição. Ela, enquanto filosofia, deve tratar de questionar assuntos; enquanto africana deve tratar assuntos que dizem respeito (mas que não se limitam) à África. Nós pensamos que já é momento para a filosofia africana libertar-se a si mesma do debate tradicionalista. O debate tradicionalista é aquele que tende a mistificar em vez de desmistificar, tende a idolatrar os hábitos e costumes tradicionais, em vez de questionar a contemporaneidade dos valores que estariam no seu substrato; enfim, é um debate poluído pelo misticismo. Para a filosofia africana avançar um pouco mais na sua própria liberdade (porque está presa ao debate tradicional) ela deve acender o fogo libertário interno que queime os mitos que a prendem ao tradicionalismo e assim poder concentrar-se na busca de respostas a assuntos que dizem respeito ao futuro. Para além de a doutrina de Marx ser útil para abordar a questão da autoemancipação da filosofia profissional e seu ensino/formação/investigação, ela propõe ferramentas alternativas de interpretação e abordagem de fenómenos actuais. Peguemos, por exemplo, na chamada crise económica mundial. Sob o ponto de vista marxista, a forma como se está a apresentar as terapias é contrária à sua solução. A crise não é somente financeira (dos bancos) ou de empresas de imobiliárias ou ainda de empresas de automóveis. Não se deve tratar esta crise pelas partes, senão olhá-la de uma forma global. Olhar de
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forma parcial aos fenómenos sociais como este é uma forma típica de como a burguesia capitalista tende a fazer. Se adoptarmos uma perspectiva marxista, segundo o neo-marxista brasileiro Michael Löwy, esta crise de todo um modelo da civilização ocidental e moderno capitalista. O problema é que a classe operária mundial é actualmente duplamente explorada: de forma clássica isto é, pela venda da sua força de trabalho em troca de um salário, mas ao mesmo tempo pelo sistema financeiro através dos bancos que cobram juros astronómicos. Estes juros provocam um sucessivo endividamento dos operários que são obrigados a trabalhar cada vez mais. Portanto, trata-se de uma crise do sistema todo e não de cada um deles. Assim também, não se acaba com a crise com reformas senão com uma revolução total civilizacional.
Hountondji O filósofo beniniano Hountondji interessa-nos na sua segunda fase onde ele retrata-se da sua posição em relação ao seu conceito inicial de filosofia. Em quanto que na primeira fase ele define a filosofia como um «conjunto de textos escritos por africanos e considerados por eles como filosóficos», Hountondji da segunda fase já admite que a filosofia africana pode também conter textos orais. Portanto, o Houndondji da segunda fase é aquele que, não abandonando a crítica unanimista, distancia-se da sua posição inicial admitindo implicitamente que pode haver filósofos de tradição oral. É importante sublinhar que o projecto filosófico de Hountondji não visava escapar ao debate sobre os conteúdos que os chamados etnofilósofos arrolavam nas suas obras e que, de certa forma, estavam a fazer furor. Pelo contrário ele queria, com essa definição restritiva da filosofia, evitar que o debate sobre a identidade da filosofia africana se limitasse à ideia de que esta só poderia nascer e desenvolver-se em volta de questões tradicionais, e que, à semelhança da ideia geral sobre a tradição, a filosofia africana se transformasse num pensamento de consenso e unânime a todos os africanos. Ele queria cortar o crescimento de uma filosofia africana que tivesse uma imagem anti-filosófica: uma que não contem em si mesma a possibilidade de um debate crítico. Era preciso, segundo Hountondji, desmistificar a ideia de uma África homogénea no pensamento.
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Para nós interessa repisar, usando Hountondji, que, ainda hoje, a tentação unanimista está sempre a espreita. A filosofia profissional africana ensinada em Moçambique pode cair nesta tentação. Mas não é tudo. O projecto do Hountondji visava também libertar a própria filosofia africana do debate poluído tradicionalista. O método do Hountondji foi cortar este debate e permitir que, na filosofia africana, houvesse outras tendências que não fossem do continente negro. Por último Hountondji dá-nos pistas para subjectivar a filosofia africana. Como fazê-lo? O próprio Hountondji não dá resposta a esta questão. A resposta virá, no entanto, do queniano Odera Oruka.
Oruka Sage Philosophy, um projecto iniciado por Odera Oruka, parte dos seguintes pressupostos básicos: [i] Que o pensamento tradicional africano, em várias áreas, não está escrito ou transcrito; ele é veiculado de forma oral; [ii] Tal como Platão escreveu os diálogos de Sócrates (e através deste de outros como Thales de Mileto), ao filósofo profissional africano cabe-lhe a missão de transcrever o pensamento filosófico tradicional. Porque na sua maioria está de forma oral. Estes princípios levantam, à partida também dois problemas, a saber: o problema do critério para identificar o «sábio» que potencialmente pode ser considerado como um filósofo; o segundo problema é o do critério ou dos critérios para classificar um certo pensamento tradicional como sendo filosófico. Como pois identificar um filósofo tradicional do qual depende a escolha da pessoa que podemos transcrever o seu pensamento para texto escrito e comentado? Convém antes dizer que há uma atitude geral – denunciada por Oruka – segundo a qual considera-se «sábio» a uma pessoa iletrada que vive numa comunidade cuja maioria dos seus habitantes também é iletrada; supõese também que a comunidade não seja tecnologicamente não desenvolvida. Assim, a sobrevivência da comunidade entanto que tal, a vida espiritual e transcendental é explicada e interpretada com a ajuda destes sábios.
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Oruka alerta que devemos ter em atenção não confundir um sábio de um profeta, embora uma mesma pessoa possa ser ambas as coisas. Um profeta é aquele que tem a tendência de predizer ou adivinhar o futuro da sua comunidade. Este conhecimento do futuro lhe é dito por revelação, algumas vezes em sonho, ou ainda através da leitura que fazem da sua própria experiência e passado. Muitos dos profetas exploram o futuro de uma forma sistemática. Oruka dá o exemplo de um profeta chamado Elija Masinde, do Quénia, que fez o predicamento do desaparecimento dos colonialistas brancos quase trinta anos antes do Uhuru (independência). Embora um profeta possa predizer o futuro, na óptica de Oruka, esta pessoa não é (ainda) um sábio: A person is a sage in the philosophic sense only to the extent that he is consistently concerned with the foundamental ethical and empirical issues and questions relevant to the society and his ability to offer insightful solution to some of those issues ou seja, a pessoa é um sábio no sentido filosófico somente na medida que ele está consistentemente preocupado com questões éticas e empíricas fundamentais relevantes para a sociedade e tem a capacidade de oferecer soluções fundamentadas para algumas daquelas questões. Em muitos países africanos – diz-nos Oruka – procurou-se sábios entre os não letrados. Mas isto não quer dizer que a sagacidade exista somente nas culturas iletradas. Segundo ele, a causa é porque as sociedades africanas perderam interesse em contactar a essas pessoas devido à educação formal introduzida pelos colonialistas. Esta valoriza mais o conhecimento adquirido através dos livros, nas bibliotecas e de pessoas com uma formação formal (técnicos). Deve notar-se, porém, que todas as sociedades têm sábios que procuram formular um discurso coerente em relação à sua existência. Oruka diz que não interessa se o nome que esta pessoa foi recebendo em diversas culturas foi o de filósofo, homem de Estado, sábio, ou cientista. Sob esta perspectiva podemos dizer que um Gandhi, um Marx, Nyerere ou John Rawls são todos eles sábios das suas respectivas sociedades. Mas também há casos contrários em que alguns filósofos ocidentais, embora tenham escrito, coisas muito comuns (sabedorias populares) e pouco abonatórias para a categoria de grandes pensadores, são, no entanto, tomados como tais. Oruka dá o exemplo de Arthur Schopenhauer que teria escrito que
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mulheres são apropriadas para serem enfermeiras e professoras das crianças porque elas são infantis e não muito visionárias em relação aos homens. Para Schopenhauer as mulheres estão num estado intermediário entre a criança e o homem, ou seja, uma criança grande. No entanto os escritos de Schopenhauer são considerados como sendo de um grande pensador. A diferença entre as sociedades reside no facto de que numas sociedades a estrutura social leva a valorizar mais o pensamento expresso nos livros, enquanto noutras não estão estruturadas desta maneira. Desta forma Oruka acha que, tal e qual se fez com Tales de Mileto (de quem sabemos somente que defendia que o princípio de todas as coisas é a água) ou de Anaxímenes (de quem sabemos somente que teria defendido que o princípio de todas as coisas o fogo), se deve fazer o mesmo com os dizeres dos actuais sábios africanos. Ou seja, sabemos que essas frases se tornaram filosóficas por terem sido, ao longo da história do pensamento, repetidas e comentadas como sendo argumentos diferentes em volta de um assunto. Esse foi o caso de Sócrates: para Oruka este não passou de um sábio considerando que ele usou a sua sabedoria para abordar as questões na praça pública. Da mesma sorte foram os sofistas que vendiam o conhecimento que tinham sacrificando, algumas vezes, a própria verdade. Os sofistas violavam assim a definição verdadeira da filosofia (amor desinteressado pela sabedoria). Assim, também hoje em África devemos começar por transcrever os saberes dessas pessoas. Sobre a questão dos critérios para o reconhecimento de que estamos perante um sábio, a resposta de Oruka é também clara ao afirmar que […] the best judge must be the community from which the person hails, ou seja, o melhor juiz deve ser a comunidade na qual a pessoa pertence. Embora o pesquisador se deva basear na informação e no julgamento dado pela comunidade, Oruka acrescenta que este deve também estar em condições de diferenciar entre os que são alegadamente sábios no sentido filosófico do termo, porque a própria comunidade pode ter alguns equívocos do que pode ser um sábio confundindo com alguns que são simplesmente charlatães. Oruka debruça-se também sobre as questões do método do sage philosophy. Ele acha que, em primeiro lugar, o pesquisador deve assumir que, em qualquer sociedade, existe dois tipos de afirmações, nomeadamente aquelas
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que são sábias e outras comuns (recorda-se que Foucault também opinava que em qualquer sociedade existem dois tipos de discursos: o racional e o do senso comum). Em segundo lugar, Oruka propõe que, por questões metodológicas, o pesquisador deve distinguir três tipos de afirmações: [i] afirmações sábias, [ii] afirmações comuns e [iii] afirmações loucas. Na sua opinião, o entrevistador-filósofo profissional deve agir como um provocador, de certo modo agindo com ironia socrática, para ajudar ao entrevistado a dar parto às suas ideias (método maiêutico). Oruka conta um episódio que demonstra que este papel nem sempre é fácil e gratificante. Numa das entrevistas ele perguntou sobre a morte. Enquanto um dos sábios mostrou-se indignado com a pergunta e reagiu perguntando se Oruka queria a sua morte, um outro, pelo contrário, respondeu dizendo que a morte é tão boa como a vida; porque segundo ele se não morrêssemos não haveria comida suficiente para todos e isto mostra, na sua própria opinião, a bondade de Deus A obra de Oruka é interessante para mim por duas razões: embora retomando o espírito principal do empreendimento da etnofilosofia (que é procurar conteúdos filosóficos por trás dos saberes populares), Oruka no fundo faz duas críticas fundamentais. Por um lado, nega alinhar no unanimismo da etnofilosofia. Por outro, ao apresentar os saberes tradicionais como resultado de uma reelaboração individual acerca de questões fundamentais da vida da comunidade por parte do sábio, ele critica a ideia de que os sábios tradicionais não têm pensamento individual elaborado sobre as questões fundamentais da vida. Oruka resiste assim à tentação unanimista da filosofia africana denunciada por Hountondji, mas constituindo um projecto de filosofia subjectiva africana, mas consequente com a realidade africana do que o projecto do beniniano.
Conclusão Kant, na sua informação acerca da orientação dos seus cursos no semestre de Inverno de 1765/1766 apresenta-se mais desolado do que confiante perante o ensino e a formação filosóficos.
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Ele escreve no seu relatório que […] de um professor espera-se que, nos seus ouvintes, forme, primeiramente, o homem que entende, depois, o que raciocina e, finalmente, o sábio. Para ele o aluno não deve aprender pensamentos, mas aprender a pensar; não se deve levá-lo, mas guiá-lo, se se pretende que no futuro ele seja capaz de caminhar por si mesmo. Se o aluno aprende pensamentos (e não a pensar) então ele levará uma ciência emprestada para fora da sala de aulas. Ele sofrerá de uma doença que se chama ilusão da sabedoria. Assim, o nosso projecto do ensino da filosofia (africana) deve passar pela transformação das aulas (de filosofia) em espaços em que debate entre si sobre questões fundamentais da nossa vida. Chamemos a este tipo de aula espaço de intersubjectivação.
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MUDANÇA PARADIGMÁTICA NA EDUCAÇÃO Severino Elias Ngoenha
I Este artigo tem como objectivo explorar a possibilidade de referências teóricas na busca de respostas à seguinte questão: como e até que ponto os resultados de pesquisas realizadas pelos docentes universitários em contextos culturais moçambicanos são integrados nos programas de ensino, particularmente nos programas de formação de professores? Duma forma mais ampla a mesma questão coloca-se nos seguintes termos: qual é o estatuto dos saberes resultantes das pesquisas feitas pelos africanos no quadro geral da academia? A resposta a esta pergunta parte do pressuposto da existência de duas formas idealtípicas de integrar os saberes produzidos localmente num contexto mais amplo da produção científica: Uma forma de integração é como «exemplo» e outra como «paradigma». Se abordarmos a questão em termos do estatuto desses saberes no quadro das (re)formulações curriculares em curso nas nossas universidades moçambicanas, significa que no primeiro caso – isto é como «exemplo» – o saber produzido localmente pelos docentes adquire o estatuto periférico, marginal, ilustrador das regularidades e das formas (pré) estabelecidas no quadro das ciências modernas. Como diz Ngoenha35 (num dos artigos deste livro), tem um estatuto de «pedreiro». No segundo caso – isto é como paradigma – o estatuto seria o de serem estruturantes, de modelos, de formas, enfim de organizadores do conhecimento, e não de um 35
MBEBE, A., As Formas Africanas de Auto-Inscrição. In: Estudos Afro-Asiáticos, V.23, n.1, Rio de Janeiro Jan./Jun. 2001.
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simples exemplo como no primeiro caso. Emprestando o termo de Ngoenha, diríamos, para este segundo caso, o estatuo de arquitecto. O arquitecto projecta a forma inspirada numa determinada cultura; o pedreiro tem a pesada tarefa de colocar os tijolos obedecendo às formas predeterminadas pelo arquitecto. Somos pedreiros ou arquitectos no quadro da produção do saber de natureza científica? Neste artigo procuramos mostrar, em primeiro lugar, que o estatuto dos saberes produzidos localmente tem sido, até agora, periférico. Contudo, não pretendemos ficar por esta constatação: pretendemos, para além disso e tendo como pano de fundo as minhas pesquisas no quadro da introdução dos conteúdos locais/tradicionais no Ensino Básico em Moçambique desde 2003, explorar e tornar evidentes sinais e tendências de superação deste estatuto periférico pelo estatuto de paradigma. Dito de outra forma, este artigo procura evidenciar algumas referências teóricas à disposição dos pesquisadores universitários em Moçambique, à luz das quais se podem tipificar os paradigmas de enquadramento ou integração dos resultados da pesquisa nos programas de ensino. As referências paradigmáticas que exploramos neste artigo, são tornadas frutíferas a partir dos esforços de auto-inscrição36 dos intelectuais africanos no processo da criação/produção do saber de natureza científica ou que tivesse esse estatuto no concerto universal do que é aceite como ciência. Uma reflexão cuidadosa – mas ao mesmo tempo muito geral – para aferir a questão como é que os intelectuais africanos se representaram a si mesmos no quadro da produção do saber de natureza científica, mostra duas posições epistemológicas: a primeira posição é como objecto de estudos/pesquisas conduzidas, quer pelos próprios intelectuais e académicos africanos, quer pelos seus congéneres europeus no contexto da colonização e/ou da globalização. Nestes estudos o africano aparece como objecto da curiosidade científica dos pesquisadores sejam europeus, sejam eles africanos. A segunda posição epistemológica é a do reconhecimento dos africanos como sujeitos, ou seja, construtores de saberes que procuram interpretar a sua própria realidade. Desta se lhe abre (ao africano) a perspectiva de ser também um sujeito que formula juízos científicos sobre a sua própria realidade e, a partir disto, 36
MBEBE, A., As Formas Africanas de Auto-Inscrição. In: Estudos Afro-Asiáticos, V.23, n.1, Rio de Janeiro Jan./Jun. 2001.
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reclama ter o poder de formular sua própria epistemologia, não periférica e marginal, e que lhe seja outorgada o estatuto de conhecimento científico no quadro da educação, sobretudo superior, em África. Denominaremos estas duas tendências de objectivação e de subjectivação respectivamente. O aclaramento destas posições de auto-inscrição dos africanos (objectivação e subjectivação) serve para justificar a necessidade de defender uma terceira posição epistemológica que consideramos como sendo emergente e a mais apropriada para fazer justiça à luta que afinal está por detrás dos dois paradigmas anteriores: a luta pelo reconhecimento do local (africano) como lugar epistémico não-periférico, que pode ocupar uma posição central e estruturante no quadro das reformulações curriculares em curso nas nossas escolas e universidades. Insistimos aqui na questão de reformulações curriculares porque entendemos que este é um campo importante onde se (devia) receiam os estatutos epistémicos dos diferentes saberes. A terceira posição aqui defendida é a da intersubjectivacção. Na intersubjectivacção reserva-se papel central ao pesquisador no contexto local: ele deverá ser um agente activo na produção de novos saberes com base nos quais participa na criação de escolas moçambicanas de pensamento. As escolas (o mesmo que dizer paradigmas) nascerão da participação activa nos espaços de intersubjectivacção – argumentamos no fim deste artigo.
II A tese que defendemos neste artigo, é a seguinte: existem (já) sinais e tendências de superação do estatuto periférico (exemplo, pedreiro) dos saberes produzidos pelos pesquisadores africanos para um estatuto paradigmático (central, arquitecto) na produção (pesquisa) e na disseminação (educação); todavia, o pressuposto básico para esta mudança é o engajamento do professorpesquisador universitário na criação intencional e na ampliação de espaços de intersubjectivacção dos saberes produzidos. Para explicitar esta tese desdobremo-la em quatro argumentos a saber: primeiro que o estatuto quer dos saberes produzidos por pesquisadores africanos nas universidades, quer dos saberes de natureza local/tradicional produ-
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zidos pelos professores no âmbito do currículo local no âmbito micro-escolar permanece, para ambos casos, periférico, marginal, de exemplo perante os modelos, os paradigmas assimilados no quadro de um sistema de educação orientado e construído segundo os padrões de ciências ocidentais. Em segundo lugar argumenta-se que o estatuo periférico dos saberes produzidos por ambos consubstancia-se no papel de servir apenas de exemplo quando integrados nos quadros curriculares do Ensino . Trata-se da continuação do argumento sobre a apropriação dos saberes locais pelo sistema de educação, argumento este que já defendemos algures37 . O terceiro argumento postula que existem sinais e tendências paradigmáticas de referência teórica a serem recuperados das propostas de auto-inscrição dos intelectuais africanos no concerto universal da produção do saber de natureza científica. Trata-se de tendências de objectivação e de subjectivação. O quarto e último argumento justifica a necessidade e o imperativo da criação formal de espaços de intersubjectivacção. Estes serão os celeiros de futuras escolas moçambicanas de pensamento. Só assim, defende-se, será possível superar tanto a objectivação como a subjectivação porque será nestes espaços onde nascerão referências de cariz paradigmático justamente para servir as reformulações curriculares que se quer justas em relação ao contexto em que fazemos educação. Convém, porém, a este passo da nossa explanação, fazer dois reparos de natureza metodológica. O primeiro reparo é que os argumentos para consubstanciar a tese são desenvolvidos obedecendo a dois níveis de ilustração: num primeiro aborda-se a questão do estatuto do saber produzido pelo pesquisador que trabalha nas universidades; num segundo plano aborda-se o estatuto do tipo de saberes educacionais elaborados pelos professores primários no quadro das suas tentativas em recolher os conteúdos locais relevantes para a aprendizagem dos alunos. A recolha destes saberes pelos professores tem como objectivo serem enquadrados no currículo moçambicano do Ensino Básico, o que recebeu o termo de currículo local. No primeiro caso, usarmos o termo formador-pesquisador para referir os professores universitários com o duplo papel, nomeadamente o de formador de professores e o de 37
Cfr. CASTIANO, J.P., African Traditional Knowledge and Education Today. In: Hountondji, P.J.: La Production du Savoir dans l’Afrique d’Aujourd’hui. Centre Africaine des Hautes Études. Porto-Novo, Bénin, 2009,pp.425-456.
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pesquisador; no segundo caso usamos o termo professor-pesquisador para fazer justiça ao facto de que, no âmbito da introdução dos saberes locais nas escolas moçambicanas, o professor deixa de ser somente transmissor do conhecimento plasmado nos programas de ensino, e passa a ser também um agente activo na organização e na produção dos saberes a serem ensinados na escola onde se encontra a trabalhar38 . O segundo reparo metodológico diz respeito à natureza não acabada dos argumentos aqui alinhados. De facto o epicentro desta análise são os saberes locais e a sua integração nos programas de ensino do nível básico, área que nos propomos concentrar-nos mais. Assim o nosso focus a partir do qual seguimos o fio de argumentação é a produção dos saberes educacionais por parte do professor-pesquisador e a análise do estatuto que estes saberes vão assumindo no processo de negociação da sua integração na escola oficial. No que diz respeito à análise de como o formador-pesquisador, portanto o docente universitário, integra os resultados da sua pesquisa nos seus programas de ensino carece ainda de um estudo mais profundo analisando exemplos mais concretos. Este nível só pode ser ligeiramente aflorado no quadro deste artigo, sem no entanto poder formular evidências acabadas. Assim, nos juízos que fazemos, limitamo-nos, por enquanto, às experiências pessoais como formador-pesquisador dos saberes locais e sua integração no processo de ensino e de aprendizagem (currículo local) e como docente de filosofia de educação na Universidade Pedagógica.
III Formulamos o primeiro argumento da seguinte maneira: Tendo como pressuposto a extraversão na produção e na disseminação dos resultados de pesquisa, o estatuto quer dos saberes produzidos por formadores-pesquisadores africanos nas universidades, quer dos saberes de natureza local/tradicional em África produzidos pelos sábios nas comunidades permanece, para ambos casos, periférico, marginal, de exemplo.
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Cfr. CASTIANO, J.P.., Os Saberes Locais vão à Escola. In: Síntese, Revista da Faculda-de de Ciências Sociais da UP, Maputo, 2008.
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Por uma questão de lógica argumentativa, divido este argumento em duas partes: a primeira explicita o carácter periférico dos resultados dos formadores-pesquisadores que realizam as suas actividades de pesquisa no contexto da sua missão universitária (de pós-graduação ou como pesquisadores seniores) e a segunda parte caracteriza-se os saberes educacionais produzidos pelos professores-investigadores ilustrando-os na base de alguns textos aleatoriamente seleccionados das brochuras do currículo local das províncias de Sofala e Manica. Comecemos, portanto, com a primeira parte do primeiro argumento. Hountondji (2000,p.41) sustenta que a característica geral da pesquisa nas universidades africanas é a extraversão; isto é, a pesquisa está virada para a exportação para o Ocidente dos saberes produzidos. Ele sustenta que há razões organizacionais e cognitivas que consubstanciam esta posição. Sob o ponto de vista da organização do processo de pesquisa nota-se que nos países africanos não existe uma produção industrial dos instrumentos que facilitam e garantem uma boa qualidade de pesquisa tais como microscópios, papel, computador, etc.; estes são importados a preços altíssimos, na sua maioria dos países europeus; as editoras, jornais de natureza científica e académica mais significantes – espaços onde os resultados das pesquisas podem ser divulgados –, as livrarias e bibliotecas mais prestigiadas – distribuidoras de informação científica – também se encontram, na sua maioria, nos países do Norte (Europa e América); as línguas por meio das quais se divulgam os saberes produzidos em África são de origem europeia (ou em inglês, ou em francês, ou ainda em português); isto coloca aos pesquisadores e estudantes europeus – utilizadores privilegiados das informações – em condições culturalmente vantajosas no que diz respeito ao acesso e à disseminação dos saberes desta natureza. Sob o ponto de vista dos conteúdos do conhecimento nota-se, entre outras coisas, que a agenda de pesquisa e os interesses cognitivos que estão no substrato dos projectos de pesquisa são ditados, em última instância, por interesses ligados ao desenvolvimento da actividade científica das universidades do Norte acolhedoras; da mesma forma, os paradigmas e modelos teóricos, quer de natureza positivista-objectivista quer de natureza (cultural) interpretativa-subjectivista, são impostos aos formadores-pesquisadores em
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África pela própria lógica do empreendimento da produção científica; a legitimação dos resultados de pesquisa é feita na base do cânone predeterminado pela tradição científica europeia. A organização da pesquisa na nossa Universidade Pedagógica assim como noutras universidades moçambicanas, está também a braços, por um lado, com dificuldades de ordem material e organizacional e de ordem epistemológica, por outro. As dificuldades de ordem material vão desde a falta de laboratórios bem apetrechados, o fraco acesso aos livros de especialidade, a não existência de assinaturas regulares de revistas especializadas que possam actualizar de forma permanente aos formadores-pesquisadores no que diz respeito às pesquisas realizadas por colegas em outras universidades, entre outras. A pouca actividade de pesquisa na Universidade Pedagógica é realizada, na sua maioria, num contexto de pós-graduação ou de consultoria ou ainda daquilo que comummente se chama por acessoria. Esta situação leva logicamente a certos constrangimentos estruturais e temporais resultantes desta condição, mas sobretudo leva também a constrangimentos de ordem epistemológica. Se tomarmos em conta que nas pesquisas que os docentes realizam é feita quase sempre no contexto da sua pós-graduação – a maioria dos livros publicados são textos dos trabalhos de doutoramento – a fase do trabalho de campo é feita em Moçambique, ficando o chamado tratamento de dados e o seu respectivo enquadramento teórico para a fase de estadia nas universidades do Norte; para o caso da maioria dos docentes da Universidade Pedagógica são universidades da Alemanha, da França, do Brasil, etc. Esta extraversão determina em grande medida que o quadro teórico ou os paradigmas de análise são inspirados ou simplesmente copiados dos livros de autores recomendados como essenciais, na sua maioria do Norte. São teorias produzidas em contextos diferentes aos que o nosso formadorpesquisador se confronta no seu trabalho de campo. Esta acepção se pode confirmar rapidamente com um simples olhar quantitativo e qualitativo à bibliografia das dissertações. A título ilustrativo pode ler-se num dos textos de resumo da comunicação do colega Jó Capece39 (título: Ligação Escola39
Este artigo foi escrito, primeiramente, no âmbito de uma comunicação apresentada no seminário sobre Formação de Professores em Moçambique, realizado na Universidade Pedagógica em Maputo (Maio 2008) no qual Jó Capece apresenta o tema referido no texto.
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Comunidade e os Saberes das Comunidades Locais) no qual se lê: Tomando como referência as obras de Joseph Campbell O poder do mito, Jorge Torres Santomé O Currículo Local, Michael Apple Conhecimento Oficial: educação democrática numa era conservadora, Jean-Claude Forquim A escola e cultura: as bases sociais e epistemológicas do conhecimento escolar e o depoimento da entrevista… (com) ... um conjunto de elementos que fazem ponte entre os saberes das comunidades locais e o conhecimento oficial. Está claro que Capece usa os depoimentos dos elementos da comunidade para confirmar o saber contidos nos livros. Uma coisa notável também, parece que estes elementos da comunidade não têm nome digno de se mencionar ou ser citados neste tipo de artigos ostensivamente académicos. Continuemos, agora, com a segunda parte do primeiro argumento, explorando, desta feita, a questão dos caminhos de integração dos saberes educacionais produzidos pelos professores-pesquisadores a partir das recolhas que orientaram nas diversas comunidades no currículo oficial do ensino básico em Moçambique. Em 2003 o então Ministério de Educação e Cultura moçambicano introduziu algumas inovações no sistema de educação. Uma destas inovações é o chamado currículo local. Desde lá para cá ainda não houve um balanço sistemático e global (relatórios oficiais) avaliando os resultados daquela reformulação curricular. Entretanto, em diversas sessões de capacitação dos professores em matérias de integração de temas locais no currículo centralmente definido surgem muitas questões colocadas pelos professores procurando saber como podem integrar estes mesmos na sua actividade de leccionação. Algumas das perguntas mais recorrentes são as seguintes: Como integrar os conteúdos do currículo local nos planos de aulas? Como seleccionar os conteúdos do currículo local? Em que momento da aula pode tratar-se de matérias do currículo local? Que língua se deve usar para o tratamento dos conteúdos do currículo local (em caso de o professor não ser oriundo da zona)? É possível tratar os
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conteúdos do currículo local em todas as aulas e disciplinas40 ? Como é feita a integração dos 20% do currículo local? Pode fazer-se uma avaliação somente de conteúdos do currículo local? Como professor posso integrar conteúdos no currículo local que eu achar pertinentes para a aprendizagem do aluno ou somente tenho que obedecer aos conteúdos recolhidos e compilados na brochura? A brochura do currículo local é renovável? É possível integrar conteúdos provenientes de outras zonas, por exemplo danças? Como tratar os conteúdos que não são do domínio do professor? Estas e outras perguntas aqui não reproduzidas apontam para a existência de dificuldades de ordem do conceito do currículo local, mas sobretudo no que concerne aos métodos para recolher e inventariar esses conteúdos e também métodos apropriados para poder abordar os mesmos na sala de aulas. Embora falte um acompanhamento sistemático dos professores por parte do Ministério de Educação e Cultura e por parte do Instituto Nacional de Desenvolvimento da Educação, o facto de os professores começarem a preocuparem-se com a formulação de perguntas para o melhoramento da sua própria actividade, não nos pôde passar despercebido. Com efeito, para além de maior capacitação dos professores primários para poderem ter bases em metodologias de recolha dos conteúdos do currículo local e em metodologias apropriadas para ensinar os mesmos, o que os professores mais necessitam é de transformar as suas recolhas em material didáctico (textos de apoio) aos quais podem recorrer sempre que estiver no seu programa a inclusão dos conteúdos locais. O maior desafio, portanto, neste momento é o da transposição didáctica no sentido de transformar os temas, tópicos e alguns textos contidos nas brochuras do currículo local em textos que sejam coerentes, sistematizados, bem estruturados, mas sobretudo responsáveis aos anseios e conteúdos recolhidos nas comunidades. Para nós e no contexto da tese aqui em labuta, consideramos que é nesta fase – que aparentemente é a da transcrição dos resultados das entrevistas e de recolhas 40
Deve notar-se que o novo currículo do ensino básico em Moçambique comporta três áreas curriculares, nomeadamente a área de Comunicação e Ciências Sociais (com as disciplinas de Língua Portuguesa, Línguas Moçambicanas, Língua Inglesa, Educação Musical, Ciências Sociais e Educação Moral e Cívica), a área da Matemática e Ciências Naturais (que comporta as disciplinas de Matemática e Ciências Naturais) e a área das Actividades Práticas e Tecnológicas (que comporta as disciplinas de Ofícios, Educação Visual e Educação Física).
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nas comunidades – que o professor-pesquisador elabora a primeira parte dos saberes educacionais a partir de contextos locais. Os textos básicos são colocados no que o INDE convencionou chamar de Brochuras do Currículo Local. Os textos a seguir são transcritos das brochuras de alguns distritos da província de Sofala. São textos elaborados na sua íntegra por professores primários após terem entrevistado (o termo mais usado pelos professores é recolha em vez de entrevista) sobre os temas e conteúdos locais aos membros das comunidades. Preferentemente foram alvos das entrevistas os pais ou encarregados de educação que fazem parte dos Conselhos de Escolas. A escolha dos textos é aleatória; o único critério foi evitar incluir textos que abordam os mesmos conteúdos locais dado que o objecto da nossa argumentação não é uma comparação, senão mostrar a variedade e a profundidade de como os temas de carácter local são transferidos pelos professores para um texto de natureza didáctica. A repetição foi também evitada, porque se pretende aferir, no fim, como é que os professores integram estes conteúdos no currículo central e oficialmente definido para ilustrar os desafios que se colocam à construção e as reformulações curriculares no contexto da formação de professores. Os textos foram literalmente transcritos, i.e. copiados tal e qual foram elaborados pelos professores. Não procedemos à correcção linguística.
Texto 1: As Plantas Medicinais em Cheringoma (FONTE: Brochura de Currículo Local de do Distrito de Cheringoma, Sofala)
Nhangarume, Ncundo-ncundo, Zingazimo, Nhampheraphera, Vungute, Raiz de Papaira (quer dizer papaeira), Raiz de piri-piri, Raiz de Santo-António, Ndulando, Mpundopundho, Papaia Verde, Raiz de Recino (quer dizer rícino), Kmbamcolo, Khundokundo, Mpanguire, Gona Zololo, Nhanfungu, Ntsembe, Nkotamo, Sequesse, Minimini, Fula, Mussequece, Pau-Preto. Nhangarume – serve para curar abcessos ou enxassos (quer dizer inchaço) a partir das suas raízes raspando e pondo na ferida. Ncundo ncundo – serve para dores de barriga a partir da sua raiz pondo água tomando-a 5 minutos depois. Zingaazimo – é uma planta que serve para expulsar espíritos maus. Pilam-se
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as folhas e põem-se numa bacia com água depois esfrega-se todo o corpo, serve também para curar dores de estômago. Nhapheraphera – serve para prevenir em caso de adulteiro, a continuação de doenças como: febres, diarreias e tosse. Recolhe-se as folhas, lava-se e mergulha-se num copo e os adultos tomam um copo e os adultos tomam um copo as crianças uma colherinha. Folha de limoeiro – serve para curar tosse. As próprias folhas fervidas bebendo água. Vungute – é uma planta que trata as mulheres que tem problemas em produzir leite materno. Para os homens serve para aumentar sexo. Modo de preparar: nas mulheres leva-se a fruta e fura-se a mesma e pegam nos mamilos e colocam-nos no burraco (quer dizer buraco) a mulher vai usando até sair leite sendo duas vezes por dia. Para os homens sobe na árvore e abre buraquinho na fruta fixa na respectiva árvore e o rapaz que ainda não atingiu a idade de casamento, vai subindo de manhã e a tarde para introduzir seu sexo no buraco (6 aos 11 anos). Raiz de papaeira – cura dores de dente. Coloca-se no dente que possui um buraco, deve ser posto no dente que estiver a doer. Folha de eucalipto alivia as febres fortes e malária. Junta-se as folhas de aucalipto, da goiabeira, limoeiro e mistura-se numa panela com água que basta e ferve-se faz-se bafo (duas vezes por dia). Raiz de piri-piri – usa-se para curar a mordedura de cobras. Preparação: tirase a raiz, raspa-se e deita no recipiente de preferência copo e mistura-se com água uma quantidade regulada e depois toma-se a água. Raiz de rícino – serve para curar dores de dente. Preparação: leva-se a raiz de rícino e das bananeira, pilam-se e depois juntam-se com óleo do rícino mistura-se muito bem, coloca-se no buraco onde estiver a doer. Kmbamcolo e Khundokundo serve para curar ferida; modo de preparar: pila-se a raiz de khundokundo e raspa-se; a farinha é posta da ferida. Mpaguire – serve para tirar grávida (abordo). Tira-se as folhas, lava-se e pila-se. Põe-se no copo com água e toma-se a própria água. Evita-se usar a mulheres que tenham grávida de dois meses ou mais se não pode morrer. Gonadzololo – serve para dar mais potência sexual masculina. Estrai-se (extrai-se) a raiz, lava-se, raspa-se e guarda-se e depois pila-se até ficar em pó e guarda-se num frasco. No momento preciso tira-se uma colheirinha e mistura-se com água e toma-se. Aconselha-se usar gonadzololo a partir dos
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40 anos ou mais. Nhanfunga – serve para dar força, vitamina, aumenta sangue as mulheres grávidas e fortalece a mulher no momento de parto. Ntsumbe e Nkotamo – serve para tratar as mulheres que não concebem. Sequece – serve para curar tuberculose e tosse. Modo de preparação: tirase folhas e as próprias raízes, põe-se na panela com água e põe-se a ferver. Toma-se a água fervida para adulto metade de chávena e duas colherinhas para as crianças, sendo três vezes por dia. Minimini – serve para prevenir conjuntivite e complicações de parto. Modo de preparar: pode se tomar as sementes ou pilar-se mistura-se com água e toma-se. Também pode ser usada por pessoas que não têm boa mão para melhorar a criação. Santo António: serve para dores de estômago e para curar cólicas (dores de barriga) para bebé.
Texto 2: A Pescaw (FONTE: Brochura de Currículo Local de do Distrito de Cheringoma, Sofala)
C.Naturais 3. Classe 2. Ciclo A Pesca é uma actividade extra praticada pelas comunidades que vivem perto do rio. Pela natureza dos rios do distrito de Marínguè. A pesca é artesanal e periódica. Para esta actividade a comunidade utiliza o anzol, redes, konga, ndzize. Os principais pescados são: peixe muni-muni, macacana e nsimbo.
Texto 3: Plantas de Valor Espiritual (FONTE: Brochura do Currículo Local do Distrito de Gorongoa, Sofala)
6.Classe Ciências Naturais 1.Ciclo Objectivo geral: conhecer as plantas de valor espiritual O distrito de Gorongosa é rico em plantas de valor espiritual usada pela
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população de azares e de espíritos maus. As plantas de valor espiritual são: Nktunite, Chizinga Ázimo, Ntondo, Mpangapanga (usa-se nas machambas), Mpacassa, Mulembe. Dada a importância destas plantas são respeitadas pelas populações.
Vocabulário Valor: importância Afugentar: expulsar, tirar, correr
Questionário: s-ENCIONEALGUMASPLANTASDEVALORESPIRITUAL s4RAGAPELOMENOSTRÐSPLANTASESTUDADAS
Sugestões metodológicas Propor aos alunos que tragam para a sala das aulas plantas de valor espiritual que os pais conhecem Visitar um lugar onde estas plantas existem. O professor organiza o plantio das plantas em redor da escola.
Texto 4: Os Mitos e Tabus do Distrito de Muanza (FONTE: Brochura do Currículo Local do Distrito de Muanza, Sofala)
No distrito de Muanza, existem tradições com um papel educativo para a comunidade. Tabus são proibições que são feitas a certas práticas; Mitos: são consequências da desobediência das práticas dos tabus. As proibições Em Muanza é proibido o seguinte: sacudir a roupa ou esteira no período nocturno, lavar panelas no rio, praticar relações sexuais na floresta, sentar no tronco caído na floresta, assobiar nas noites, pernoitar em cima de uma árvore.
Consequências Crê-se que com estas práticas será devorado pelo leão ou leopardo.
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Vocabulário Mito: justificação Tabu: proibição Tradição: hábito, costume Questionário 1.O que são mitos e tabus? 2.Quais são os tabus do distritos que aprendeste?
Sugestões Metodológicas O professor poderá recorrer a entrevista aos líderes comunitários e pessoas mais velhas da comunidade, ou convidar alguém da comunidade para falar sobre o tema.
Texto 5: Estrutura da Comunidade (FONTE: Brochura do Currículo Local do Distrito da Machanga, Julho 2004)
Na comunidade existem várias estruturas tais como: s%STRUTURAADMINISTRATIVA s%STRUTURAPOLÓTICA s%STRUTURATRADICIONAL Composição da estrutura administrativa: 1º Administrador 2º Chefe do Posto 3º Presidente da Localidade 4º Secretários de Bairros 5º Chefes de Quarteirões 6º Chefes de 10 Casas Sendo assim o Distrito de Machanga é constituído de Postos Administrativos e 8 Localidades. Postos Administrativos: 1. Sede – com as seguintes localidades: 1.1 – Mavinga 1.2 – Zimuala 1.3 – Javane
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2.Divinhe 2.1 – Divinhe 2.2 – Maropanhe 2.3 – Buene 3.Chiloane 3.1 – Chiloane 3.2 – Inharingue
Composição da estrutura política Comité Distrital Secretário do Comité Distrital – 1º secretário Secretário para Organização, Mobilização e Propaganda Chefe do DAF Dentro desta estrutura existe uma outra denominada Comité de Verificação composta por 1º Secretário e 4 membros.
Comité de Zona 1º Secretário do Comité de Zona Secretário para organização
Comité de Círculo Secretário do Comité do Círculo Secretário para a organização
Célula do partido Secretário da célula Assistentes Composição da estrutura tradicional 1- Régulo 2- Chefes de povoação 3- Chefes de grupos de povoação O régulo tem a sua equipa de trabalho conhecida por Sacutas destes fazem parte os mensageiros, polícia do regulo e advogados. Principais regulados do Distrito: Chiteve, Beia-Peia, Zimuala, Javane, Mo-
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tongua, Vumone, Mutambanhe, Gumbaza (Maropanhe), Ziminine (Inharingue), Nhanguvo, Chiloane, Metuge.
Funções das diferentes estruturas a) Estrutura administrativa: garantir melhor administração dos serviços; b) Estrutura Política: assegurar os trabalhos do partido através dos seus membros; c) Estrutura tradicional: garantir a tranquilidade na sua área de jurisdição, orientar cerimónias tradicionais e cobrança de impostos.
Ficou evidente, neste primeiro argumento, que, para ambos os casos, o resultado final dos saberes produzidos no contexto da pesquisa científica praticada pelos universitários e dos saberes produzidos em contextos educacionais mais localizados pelos professores-pesquisadores no âmbito da construção do currículo local, é de serem duplamente marginais: sendo no primeiro caso marginais no contexto universal da produção do conhecimento científico, e, no segundo caso, sendo marginais em função do conhecimento oficialmente aceite como apropriado para ser ensinado pela instituição escola. Em seguida, no argumento 2, vamos procurar concretizar mais mostrando como esses saberes estão sujeitos a uma apropriação estruturada. Faremos isso olhando mais especificamente para o papel desses saberes na construção do currículo e dos programas de formação de professores (tendo como foco de análise a Universidade Pedagógica) e na construção do currículo local como parte integrante do currículo centralmente definido em Moçambique.
IV Vejamos, pois, o segundo argumento: O estatuto periférico e subordinado quer dos saberes produzidos por formadores no âmbito das pesquisas, quer o que é produzido pelos professores-pesquisadores no âmbito do currículo local têm pouco impacto nas reformulações dos fundamentos das (re) construções curriculares ao nível universitário e ao nível do Ensino Básico. Desdobremos, também, este segundo argumento em duas partes. Na primeira mostra-se que ainda está muito longe um impacto paradigmático dos resultados das pesquisas dos formadores na concepção das reformas curri-
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culares em curso nas universidades africanas, na formulação dos princípios e fundamentações curriculares assim como na docência de disciplinas/cadeiras particulares. Na segunda parte do argumento mostra-se que, não obstante à pressão dos grupos epistémicos locais para a integração dos saberes locais na escola, o resultado da recolha e – para usar o termo do Instituto Nacional de Desenvolvimento da Educação – da integração dos chamados conteúdos locais no currículo nacionalmente definido é a manutenção, na sala de aulas, do estatuto subordinado, inferior, marginal dos conteúdos recolhidos para o currículo local. Portanto, em ambos casos há um processo de apropriação desses saberes por parte da estrutura e ordem científicas (pré)estabelecidas nos programas curriculares de formação de professores nas universidades assim como na escola básica. Em ambos casos podemos falar de haver um processo de apropriação dos saberes produzidos em condições periféricas. Esta apropriação é estruturalmente condicionada pelos princípios e fundamentações das reformulações curriculares que, deliberadamente, olham para a experiência ocidental na educação como o epicentro e para as experiências africanas na educação como periferia.
A Apropriação dos Resultados de Pesquisa pelo Cânon Curricular Universitário Comecemos por demonstrar a primeira parte do segundo argumento. Tomemos, de novo, a pesquisa que é feita na Universidade Pedagógica como ponto de partida. Um dos ramos mais desenvolvidos e fortes da pesquisa na Universidade Pedagógica é, sem dúvidas, a etnomatemática. E isso deve-se principalmente aos trabalhos do seu mentor principal: Paulus Gerdes. Por isso é justo começar por aqui. No texto da apresentação por ocasião do relançamento da 3ª edição (1ª edição 1979) do livro Exemplos de Aplicações da Matemática na Agricultura e na Veterinária, publicado pela primeira vez em 1982, Gerdes41 conta no início a ideia de investigar os conteúdos matemáticos nas culturas moçambicanas. Em 1977 começou a formação de professores 41
Cfr. GERDES, P., Exemplos de Aplicações da Matemática na Agricultura e na Veterenária, Lulu. com & TLANU, 3ª Edição, 2008.
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de matemática para a 5ª e 6ª classes na então Faculdade de Educação da Universidade Eduardo Mondlane. Gerdes conta que era necessário motivar os poucos estudantes porque, entretanto, quase nenhum estudante gostava da matemática porque esta lhes parecia ser uma disciplina esotérica, pouco interessante, e pouco útil para o desenvolvimento social, cultural e económico do país. Gerdes prossegue dizendo que como um dos componentes de motivação, introduziu-se no currículo uma disciplina chamada Aplicações da matemática na vida corrente das populações. Entre outras coisas, a disciplina incluía visitas de estudos. Uma das visitas feitas foi à fábrica de cervejas onde os estudantes teriam, segundo Gerdes, constatado que operários pouco ou não escolarizados trabalhavam com números negativos para controlar vários processos na fábrica… No prosseguimento das pesquisas, os estudantes teriam contactado primeiramente pessoas-na-vida-diária, tais como camponeses, agentes de extensão rural, médicos veterinários (…) para conhecer a natureza do seu trabalho e saber onde a matemática era usada na sua vida, saber quais eram as situações mais frequentes na sua prática onde surgiam dificuldades em lidar com números e figuras geométricas. A seguir, tentou-se formular os problemas matemáticos envolvidos numa forma acessível e didáctica…. Devo acrescentar que As aplicações tem capítulos de matemática aplicadas à sementeira, à adubação, ao combate à certas doenças que afectam o gado bovino (riquetsiose e coccidiose). Este livro pode ser considerado – e espero não estar a trair a ideia de Gerdes – como o texto fundador da pesquisa na etnomatemática em Moçambique.
A Apropriação dos Saberes Locais pela Escola Discutamos agora as questões colocadas para a integração destes textos exemplares nos programas do ensino. No debate em relação ao texto Plantas Medicinais colocou-se o problema da sua integração nos programas do ensino básico da seguinte maneira: onde podemos enquadrar o assunto da planta Gona Dzololo no programa de ensino? No debate acordou-se que este tema do currículo local pode ser perfeitamente enquadrado no tema Plantas Medicinais do 3º ciclo no programa de
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ensino centralmente definido. Também notou-se que este tema não deveria ser integrado na 5ª classe porque as crianças da 6ª classe são mais crescidas e as da 5ª classe não; também deixou-se de lado a possibilidade de enquadrar este tema no capítulo sobre Aparelho reprodutor da 5ª classe, porque esta planta não serve os propósitos da reprodução; a outra possibilidade afastada é de incluir a planta Gona Dzololo no capítulo que fala de medidas para evitar gravidez, da 7ª classe ou ainda na disciplina das Ciências Naturais, na 6ª classe, onde existe uma unidade temática sobre plantas. NOTA: neste caso viu-se que era importante o professor primeiro informar-se com todos os detalhes sobre o conteúdo do tema (Gona Dzololo). Em segundo lugar o professor deve consultar os programas de ensino e analisar os objectivos ou competências descritas no programa para decidir sobre a inclusão ou não desta planta na sua planificação da aula. Por exemplo, as competências contidas no programa de Ciências Naturais (6. classe) são: conhecer as principais plantas existentes na sua comunidade; conhecer a importância das principais plantas da comunidade; usar plantas da comunidade para resolver os problemas da vida real; conhecer as características gerais botânicas das principais plantas da comunidade e dominar métodos de protecção e conservação das principais plantas da comunidade42 . Depois de estar claro sobre as competências o professor pode então decidir em que capítulo ou tema centralmente definido pode integrar o Gona Dzololo como um exemplo local. Em relação ao texto sobre as pescas foi observado que é preciso localizar mais os textos. Localizar significa fazer um texto mais interdisciplinar abrangendo aspectos das Ciências Socais (que costumes e hábitos estão ligados à pesca? Quem vai geralmente à pesca? Como são distribuídas as partes do peixe? Há peixes que têm um significado especial como por exemplo azar, má sorte? O que se faz para que a pessoa tenha sorte na pesca? Quais são os mitos ligados à pesca), da disciplina de Ofícios (sugerindo que os alunos fabriquem ou tragam os instrumentos de pesca na escola como anzol, konga, ndzize). Uma outra vertente de localizar este tema significaria colocar os nomes tradicionais dos instrumentos, procurar saber o significado dos nomes dos 42
MEC/INDE, Programa do Ensino Básico, 3, ciclo, 6. e 7. Classes. Maputo, Moçambique, 2003, p.496.
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rios, perguntar sobre as cerimónias tradicionais praticadas nos rios, perguntar sobre os mitos ligados aos rios, transcrever contos locais sobre os rios, etc. No que diz respeito ao texto sobre O valor espiritual das plantas foram colocadas algumas reservas pelos professores em relação à sugestão metodológica, nomeadamente a de fazer o seu plantio em redor da escola para que as crianças possam observar as plantas referidas como exemplos. Pelo facto de as plantas terem o valor espiritual deveria haver, segundo os professores, extremo cuidado em relação a esta sugestão dado que se deve pedir a anuência e a intervenção dos membros do Conselho de Escola para autorizarem a abertura deste mini-viveiro nos arredores da escola. Por fim, em relação ao texto sobre danças, observaram os professores, que dever-se-ia destacar os tipos de danças segundo a sua função (para alegria ou que expressam a tristeza); deveria também alistar-se as formas como se executa cada dança; e, finalmente, deveria especificar os actores e os executores das danças (crianças, adultos, homens, mulheres). A partir das observações adiantadas acima que ilustram como os professores integram, mas sobretudo, como negociam os conteúdos locais no quadro do sistema oficial de ensino e a sua integração neste mesmo sistema, feita acima, estamos em condições de passar para o argumento seguinte, o terceiro. Este argumento pode ser formulado da seguinte forma: há sinais e/ou tendências novas paradigmáticas (de objectivação e de subjectivação) que podem servir, por um lado, de referência teórica para a construção curricular no âmbito de formação de professores e, por outro, como referência para a planificação curricular ao nível das diferentes cadeiras. As várias correntes de objectivação e de subjectivação podem também constituir-se em quadros teóricos paradigmáticos na elaboração e efectivação de projectos de pesquisas dos formadores-pesquisadores no esforço do resgate dos saberes locais para a formação de professores. A nova tendência paradigmática é tornada frutífera a partir das propostas dos intelectuais africanos no esforço da auto-inscrição da sua identidade no contexto universal da produção de um saber que possa ser legitimado como sendo de natureza científica.
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Kuhn43 considera paradigmas as realizações cientificamente reconhecidas que, durante algum tempo, fornecem problemas e soluções modelares para uma comunidade de praticantes de uma ciência. Durante o período de predominância de um paradigma pratica-se aquilo que Kuhn chama de ciência normal; esta constitui uma promessa de sucesso que pode ser descoberta em exemplos seleccionados. A actualização da promessa de sucesso é garantida e constantemente renovada e ampliada à medida que abordamos novos problemas e encontramos as respectivas soluções no quadro do mesmo paradigma. Kuhn44 também sustenta que os paradigmas orientam as pesquisas, seja modelando-as directamente, seja por regras abstractas. A classe intelectual-académica africana – pelo menos no que diz respeito às ciências sociais e humanas, na filosofia em particular, – sempre procurou auto-inscrever-se na história da produção do conhecimento científico procurando conferir-se a si mesma a autoridade de falar em nome do imaginário colectivo africano. Uma leitura atenta à história desta auto-inscrição dos intelectuais africanos no mundo da ciência nos faz deduzir referências paradigmáticas que podem ser tornadas frutíferas para o nosso propósito. São paradigmas de objectivação e/ou de subjectivação do sujeito africano enquanto participante do empreendimento da produção técnico-científica. O que está em causa é, porém, a busca da identidade própria no seio da comunidade científica local e universal e a elaboração de um discurso de significação simbólica que pudesse dar conta da condição africana. No eixo das reflexões académicas sobre a sua condição histórica e contemporânea, ou seja, no centro das diferentes formas da auto-inscrição (Mbembe) dos intelectuais africanos na história universal, repousam três eventos eixos: a escravidão, o colonialismo e a globalização. Nestes eventos o intelectual africano – mesmo que aparentemente fosse como membro da elite da sua sociedade – participa respectivamente na condição de escravo, colonizado e globalizado. É assim «natural» que o paradigma libertário, como sustenta Ngoenha (2005), ou seja a preocupação da fundamentação
43
\44
Cfr. KUNH, T.S., A Estrutura das Revoluções Científicas. Editora Perspectiva, Ciência, S. Paulo, Brasil, 2000,p.3. Idem, 2000,p.72.
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da liberdade do africano, constitua a referência principal na actividade intelectual dos africanos. Em relação aos três eventos ou processos foram desenvolvendo-se duas tendências paradigmáticas: a da objectivação e da subjectivação.
Paradigma da Objectivação A primeira tendência, que chamo por objectivação, nasce da ideia de que, como consequência da escravidão, da colonização e da globalização, o Eu africano se tenha alienado a si mesmo a ponto de se tornar estranho ao seu próprio corpo (Mbebe 2001). O discurso sobre a condição da própria existência, a redimensão da identidade enquanto africano, são feitos a partir do lugar que a história dita universal, elaborada a partir duma perspectiva predominantemente do Ocidente, o reserva. É essa a base do ocidentalismo no qual a figura do africano sofre um processo de objectivação: ele entra na história dita universal como objecto (e não sujeito) da sua própria história. Na historiografia o Ocidente, apresenta-se como uma posição de localização histórica e científica, como o centro referencial da produção do saber de natureza tecno-científica. O sujeito ocidental apropria-se das referências simbólicas e tecno-científicas, incluindo as que encontrara nas colónias, reelaborando-as e disseminando-as de acordo com o lugar e o estatuto que reserva ao outro africano. Se antes era a Antropologia que se encarregava de estudar o «outro», hoje encontramos uma certa continuidade da tendência objectivação no chamado movimento das etno-ciências, incluindo a etnofilosofia. Depois da independência em Moçambique a tendência de objectivação continuou por uma série de estudos antropológicos, etnográficos em diversos ramos das etnociências, particularmente na Etnomatemática, levados a cabo nas diferentes instituições superiores e de pesquisa moçambicanas. Entretanto o saber científico moderno é o único que continua a ser reconhecido na esfera pública formal, precisamente pela sua qualidade de saber dominante. A sua transmissão nas diferentes vertentes é legitimada pela estrutura dos cursos ministrados em diferentes faculdades, perpetuando a condição colonial no ensino.
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Paradigma da Subjectivação A segunda referência, que chamamos de subjectivação, tenta contraporse à perspectiva eurocêntrica/ocidental do discurso sobre a condição subalterna do africano-objecto na dita história universal, refugiando-se num discurso do imaginário tradicional, de nostalgia em relação ao passado idílico e de idolatria às tradições locais. Mais do que isso, busca e rebusca a sua legitimidade em tradições muitas vezes recriadas a partir das quais pretende elaborar significações e identidades homogeneizantes. Trata-se, desta feita, do afrocentrismo e da filosofia ubuntu. Estas referências procuram re-centrar o sujeito africano na sua própria História e na produção do saber de natureza científica. O afrocentrismo e a filosofia ubuntu apresentam-se como esforços académicos de subjectivação ou seja de retomada da perspectiva das tradições e dos valores africanos depositados, acredita-se, nas comunidades africanas. Ambos manifestam-se numa semântica de «autenticidade», «originalidade», «nossa cultura» e por aí fora. Senghor e Alassane Ndaw, na sua visão afrocêntrica, defendem uma posição animista do conhecedor (Cfr. Ngoenha 1992): para conhecer as propriedades do mundo a epistemologia africana tradicional defende que o sujeito cognoscente deve estar em união com o seu objecto, e não na posição de um observador alheio e frio – como é no caso da epistemologia ocidental. Duma posição de observador não se chega ao âmago das coisas, não se chega ao conhecimento delas. Não é a análise do mundo, mas a união com o mundo que nos pode levar a conhecê-lo na sua essência, numa dança eterna de amor, pois, conhecer é captar o espírito da coisa, do objecto em causa. A epistemologia negro-africana ignora a separação entre a “ordem do conhecer” e a “ordem do ser”. O conhecimento é um ser e não só um instrumento ao serviço do homem45 . De facto, assim se defende, é só numa relação de amor, de sentimento, que o conhecedor revela os mistérios do seu objecto do conhecimento, chega a compreender o sentido da existência do objecto. A unidade, e não a separação entre o objecto e o sujeito, é aqui defendida. No caso de Moçambique a Independência em 1975 trouxe consigo a necessidade de reconstituir e dar uma nova direcção à produção científica. 45
Cfr. NGOENHA, S. E., O Retorno do Bom Selvagem. Edições Salesianas, Porto, 1992,
p.24.
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Na área da produção do saber de natureza científica, uma classe jovem de intelectuais moçambicanos fizeram uma ruptura com os moldes de produção científica vigentes no tempo colonial no domínio das ciências sociais e humanas. Essa ruptura epistemológica entende-se como sendo a mudança do objecto da investigação para áreas temáticas como o impacto do capitalismo colonial e a sua relação com a economia africana, o paradigma dos movimentos de libertação, direito e economia de Moçambique e da região, etc. Para o período da produção socialista e o da economia de mercado a temática da investigação em ciências sociais virou para a análise do processo da implantação da economia e sociedade socialista, o impacto da guerra, a resolução de conflitos, o processo da paz e a construção de uma sociedade democrática, questões ligadas à pobreza, à posse e propriedade da terra, mulher, género, línguas moçambicanas, etc. Mais recentemente os temas de pesquisa na área social e humana estão mais virados para o impacto (social, económico e psicológico) do alastramento do HIV/SIDA, o contexto regional da dominação sul-africana sobre a economia moçambicana e regional, o impacto da cooperação internacional na soberania e independência moçambicanas, etc. Toda esta investigação social pós-independência, porém, realiza-se num contexto de forte dependência em relação aos doadores externos onde as consultorias matam a possibilidade de uma pesquisa séria e de qualidade. Como vimos, para o caso de Moçambique, a história intelectual do esforço de subjectivação na produção do saber de natureza científica carece ainda de uma reconstrução teórica. Por agora só existem pistas. No entanto, por mais paradoxal que pareça, mas nem por isso surpreendente, ambas referências (as etnociências e o afrocentrismo nas suas diversas variantes) representam, no fundo, um esforço de negação em relação ao estatuto de inferioridade e de subalternização reservado ao cientista africano na historiografia da produção científica universal.
Paradigma da inter-subjectivação Passemos agora ao quarto argumento segundo a qual, a inter-subjectivação constitui uma referência de superação dos paradigmas de objectivação e da subjectivação.
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O nosso programa de investigação, como dissemos algures, é o de superar as referências da objectivação e da subjectivação, porque ambas obsoletas para o contexto actual da África e, por inerência, de Moçambique. E, para isso, argumentamos, é necessário reconhecer os novos contornos criados já em volta dum novo referencial teórico: o da intersubjectivacção. Expliquemo-nos. Este quarto argumento defende a criação intencional e de institucionalização de espaços de intersubjectivacção e de escolas de pensamento nas universidades como uma forma de superação dos paradigmas de objectivação e de subjectivação. Adoptando uma prspectiva da sociologia do conhecimento, a intersubjectivacção refere-se ao aumento de espaços de argumentação que permitam o surgimento de escolas de pensamento nas universidades. Dessas escolas, argumenta-se, surgirão momentos semelhantes a pré-paradigmas (Kuhn) e, mais tarde, de paradigmas. Em termos mais claros: é necessário criar e institucionalizar fóruns onde os produtores dos saberes locais e os pesquisadores e docentes profissionais da pesquisa científica se encontrem e se alimentem mutuamente; no fundo a ideia é a abrir as portas das universidades e institutos superiores de formação aos produtores de saberes até agora considerados marginais. Como dizíamos, os momentos pré-paradigmátcos são caracterizados, segundo Kuhn, por debates frequentes e profundos a respeito dos métodos, problemas e padrões de soluções legítimas oferecidos pelos paradigmas anteriores. Pensamos que este momento pré-paradigmático pode ser induzido pelas universidades ao abrirem as suas portas para outras epistemologias (formas de conhecer e de legitimar o conhecimento) alternativas e concorrentes. O pressuposto que nos permite aventar a possibilidade de se induzir os momentos pré-paradigmáticos para a intersubjectivacção são inspirados, de facto, por Habermas: este tem a pretenção de ter mostrado que a Filosofia da Consciência, portanto centrada no sujeito (paradigma da subjectividade), se encontrava esgotada; dito de uma outra forma, quer dizer que a solução algo sentimental da solidão metafísica, à la Descartes, em que um sujeito entende tudo, apresenta sintomas de esgotamento. É preciso passarmos para um paradigma da intercompreensão ( nós chamamos por intersubjectivacção)
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que, segundo Habermas46 , ...é a atitude performativa dos participantes da interacção que coordenam os seus planos de acção através de um acordo entre si sobre qualquer coisa no mundo. Se adoptarmos uma perspectiva da intersubjectivacção, a verdade deixa de ser contemplada simplesmente na perspectiva da sua objectividade, ou somente na sua perspectiva de subjectividade; a verdade, na perspectiva da intersubjectivacção, passar a ser um processo, i.e. que se desenvolve no acto da troca das “pretensões de validade” (Habermas) entre os indivíduos em interacção. Portanto e nesta óptica, a verdade pode somente manifestar-se numa situação comunicativa na qual os interlocutores, cada um com a pretensão de validade e em interacção, se engajam num exercício de argumentação. Em termos concretos, o salto para um paradigma de intersubjecti-vacção deverá ocorrer a dois níveis. Ao nível da interacção entre os formadorespesquisadores dentro das universidades e ao nível da interacção entre os formadores-pesquisadores e professores-pesquisadores. Quanto ao primeiro nível (entre os docentes universitários pesquisadores) trata-se de, teoricamente, deixarem que os resultados das suas pesquisas empíricas lhes sugiram sinais de desafios aos esquemas teóricos aprendidos nos bancos da universidade. Significa perguntar-se, até que ponto os dados empíricos encontrados nos contextos tradicionais e africanos desafiam as ferramentas teóricas que se levam da universidade para o campo de pesquisa. A teoria deve deixar-se enriquecer e, se necessário, transformar pela prática. Por seu lado, o segundo nível de intersubjectivacção, tem como objectivo estabelecer uma cadeia circular de interacção e legitimação dos saberes no qual os extremos estão as duas tradições de práticas académicas, a formal/ moderna (predominantemente escrita e universitária) e a local/tradicional (predominantemente oral e não formalizada). A legitimação e a validade do conhecimento produzido, seja no contexto institucional moderno na base da cultura escrita, seja no contexto institucional tradicional na base da cultura oral, será feita no contexto de um espaço coabitado por ambas comunidades epistémicas sobre temas e problemas comuns. Como participante, os detentores dos saberes tradicionais locais ver-se-ão partilhando benefícios para a 46
HABERMAS, J., Discurso Filosófico da Modernidade. Publicações Dom Quixote/Nova Enciclopédia, Lisboa, 1998, p.277.
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manutenção e desenvolvimento do seu capital cultural e de conhecimento. O desafio é desenvolver fóruns e mecanismos de levar o conhecimento localmente legitimado para fórums mais abrangentes de legitimação académica e global. Até agora a prática é que o conhecimento produzido nas universidades e nas instituições de pesquisa, para se afirmar, deve ser exposto nos fórums de carácter nacional e internacional. Esta não é uma prática nova. A novidade aqui proposta, porém, é que os fórums científicos nacionais e internacionais abram as suas portas para os portadores dos conhecimentos dos colegas pesquisadores do contexto local/tradicionais. Estes devem ser convidados a expor as suas ideias e conhecimentos no seio da comunidade científica global, numa ronda de um diálogo intersubjectivo circular. Se é certo que as etnociências e a etnofilosofia preocuparam-se até hoje em identificar os sábios das comunidades, estes porém, sempre foram tratados simplesmente como uma espécie de «fontes primárias», de «testemunhas», de «informantes», para a recolha de dados e menos como interlocutores válidos na troca de conhecimento. Para além das novas formas de legitimação, um aspecto particular, e que faz parte da criação deliberada dos espaços de intersubjectivacção, diz respeito à escolha deliberada de modelos e ídolos africanos para serem incluidos nos programas de ensino, particularmente o universitário. De facto, como em todas as actividades, o homem cultiva modelos a seguir, cultiva os seus heróis. Aquí trata-se, portanto, de desmarginalizar cientistas, invenções e ideias africanas na dita narrativa universal sobre a história das realizições científicas. Pensamos que um pricípio semelhante aos de quotas (descriminação positiva) na escolha de autores e cientistas a serem referenciados nos estudos e pesquisas, seria muito saudável. Na verdade, ninguém vai gostar do que não conhece. Esta máxima inclui também os nossos estudantes. Se eles não forem expostos aos pensadores e cientistas africanos, perderemos a oportunidade de construir o novo paradigma da intersubjectivacção a partir dos seus sinais emergentes.
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VIGILÂNCIA EPISTEMOLÓGICA ATRAVÉS DA EDUCAÇÂO José P. Castiano
As inquietações que pretendo abordar neste artigo, são existenciais, e penso que também para muitos africanos contemporâneos. No centro delas estão as seguintes questões: Será que o discurso que apresenta a África como um continente entre a tradição e a modernidade é epistemologicamente coerente? questionando de forma mais construtiva: Não estarão o moderno e a tradição numa relação dialética de tese e antítese, portanto na eminência de epistemologicamente encontrarmos a síntese? Desde já adianto a minha hipotética resposta: Penso que já existem espaços epistémicos onde tanto os elementos considerados da tradição e aqueles que se quer da modernidade coexistem, mas não numa «coexistência silenciosa» como o filósofo de Benin Paulin Hountondji classificou, mas ambas vivem num debate de valores, de argumentação concorrendo para uma síntese. Por isso, partindo desta ideia, pretendo fundamentar a educação como um dos espaços importantes para a coexistência de discursos sobre a tradição e a modernidade. Em consequência disto pretendo justificar a necessidade de uma vigilância epistemológica para com as posições que exacerbam tanto o modernismo como o tradicionalismo no panorama actual do discurso educacional. As questões que se colocam surgem, no fundo, a partir de algumas inquietações e circunstâncias na experiência da minha vida pessoal. Pois me pergunto frequentemente: Porque é que eu para concorrer para o meu posto de trabalho tive que, ao mesmo tempo, escrever um requerimento e ir «tomar banho» dado pelos espíritos dos meus avós? Porque é que continuo a pensar que o facto de não ter sucesso em alguns empreendimentos da vida se deve às «cerimónias» que ainda não fui capaz de realizar para agradecer
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aos meus antepassados? Porque é que quando vou ao hospital em muitos casos para «curar bem» tenho que «completar o tratamento» com uma visita adicional ao médico tradicional? Porque é que a minha sobrinha se chama Maria Luísa na escola e N´tsai em casa, sendo este último o nome que é só evocado nas cerimónias familiares? No final de contas será ela a mesma ou pessoa diferente quando está na escola e quando está em casa? Porém o que me é mais dramático nesta «dupla existência» é que o meu «duplo», este «outro Eu», o outro mundo, este outro banho, este outro nome, não obstante eu usá-lo como recurso explicativo aos meus problemas existenciais de saúde, de emprego de família, etc., ele não emerge, não o ponho à disposição para o debate, não o levo ao escrutínio da argumentação científica e desinteressada. Estas inquietações pessoais levaram-me a abrir mais o horizonte das questões que coloco à nossa existência como africanos: Como se inventou a África? Como nasceu a ideia da África? Como foi modelado o discurso sobre as tradições? Se perguntarmos com Hountondji47 : Como cresceu o «mito da africandade»? A história da «invenção» e do desenvolvimento da ideia do negro primitivo, ou seja, da imagem do «Outro» é o tema do livro The Invention of Africa de Mudimbe. Este defende que o discurso sobre uma África primitiva foi modelado por missionários, antropólogos, aventureiros europeus e finalmente filósofos na sua disputa por dominar a terra e as almas dos africanos, numa lógica imperialista de dominação do continente. No contexto da filosofia europeia da modernidade são notórias as posições dos filósofos alemães Kant e Hegel. As posições de Kant quanto ao negro podem ser tomadas do seu ensaio Von verschiedenen Rassen der Menschen, ensaio este escrito em 1775. Nele Kant é da opinião de que a raça branca é anterior à raça negra e que as tonalidades diferentes da pele dos seres humanos se devem a causas naturais, particularmente ligadas à posição geográfica em que cada uma habita. Assim, para ele, a raça negra é produto da humidade e do calor que actuou sobre a pele da espécie original, a «raça branca». (Cfr. Masolo 1995) 47
Cfr. HOUNTONDJI, P., The Struggle for Meaning. Reflections on Philosophy, Culture and Democracy in Africa. Ohio University Center for International Studies, Africa Series No.78. Athens, Ohio, 2002.
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As posições de Hegel quanto ao «Negro» só poderão ser devidamente compreendidas se forem equacionadas no contexto da sua filosofia da história. Partindo da forma hegeliana de conceber o curso da história real como produto da (auto)objectivação do espírito, infere-se que um determinado nível de desenvolvimento histórico-cultural reflecte necessariamente o nível de maturidade da Razão do momento de um determinado povo. Pois se a cultura e a história europeias se apresentam desenvolvidas, este facto se deve à superioridade da racionalidade do povo europeu que toma consciência da sua história. Mas, ao analisar a história universal, Hegel procura saber o contributo dos diferentes povos para o que chama por a «autoconsciência universal» da história. Aí ele chega à conclusão de que a África Subsahariana, «(n)esta porção da África, falar da história é um facto fora da questão». Em África a história não é o resultado da manifestação do espírito ou da sua autoconsciência, mas sim resultado de uma sucessão de contingências e surpresas. «Os africanos vivem num estado de inocência. Eles não estão conscientes de si mesmos». Ele compara a vida dos africanos ao estado natural da vida antes de Adão e Eva na Bíblia em que o Homem não era consciente das suas potencialidades. Os africanos não conhecem a Razão, e por causa disso, eles não possuem história, não se desenvolvem, não têm cultura. Torna-se portanto bastante óbvio que o ponto de partida para a chamada «educação indígena» projectada no tempo colonial para a maioria dos moçambicanos fosse baseada na imagem de um negro primitivo e selvagem, comparado à uma criança que não atingira a maturidade. O negro não podia ter autonomia. O último aspecto levantado por Hegel é retomado pelas teses «prélógicas» do filósofo e sociólogo francês Lucien Lévy-Bruhl expostas nos seus livros mais conhecidos Les Fonctions Mentales dans les Sociétés Inférieures (1910) e La Mentalité Primitive (1922). Este dedicou quase quarenta anos a estudar as formas de pensamento dos africanos, ou, como ele denomina, a «mentalidade primitiva». Segundo Lévy-Bruhl, a mentalidade primitiva não funciona segundo estas inferências práticas e nem são baseadas na observação. Ainda segundo ele, os africanos estão constantemente a introduzir elementos/ factores não relacionados com a observação quando procuram formular um discurso sobre as suas experiências.
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Ao lado das posições europeias cresce, entre os estudiosos de assuntos africanos, a etnofilosofia. A essência desta «corrente» é a de pressupor que o pensamento em África é eminentemente comunal. A etnofilosofia procura «descobrir» o conteúdo filosófico do mundo africano que se encontra por trás dos mitos, dos contos populares, crenças religiosas, provérbios e línguas africanas. Foi desta forma que Placide Tempels, John Mbiti assim como Alex Kagamé procuraram provar a partir de diferentes perspectivas a existência da filosofia africana. Tempels, por exemplo, pensa ter descoberto o espírito ou a «força vital» dos Bantu. Entre outras coisas ele defende que os africanos acham que o homem só está «completamente morto quando ele já não tem a possibilidade de, através do médium, entrar em contacto com as pessoas vivas e assim interferir no mundo. Assim, do ponto de vista dos Bantu, segundo Tempels, não há nenhuma acção em que não seja o homem responsável. O homem é o agente de tudo o que acontece de mau. Consequentemente, embora um Bantu reconheça que a causa é a mordedura da cobra, mas esta não seria considerada a causa suficiente para explicar o acto porque a cobra não possui vontade própria para prejudicar alguém. Há sempre uma pessoa que é considerada como autora moral do acto. Assim, e ainda de acordo com Tempels, para a cura da vítima não bastará uma cura farmacológica (material); será necessário encontrar o «causador moral», ou seja a força causadora, deste acto e comunicar com ele para depreender o que ele ou ela quererá. Só depois disto é que a ordem das forças regressará ao equilíbrio48 . A Europa não só inventou uma África «tradicional». O grande intelectual palestino Edward Said escreveu um livro com o título de Orientalismo que leva o subtítulo O Oriente como Invenção do Ocidente. Ele mostra aí como o «Oriente» foi sendo criado baseado por um discurso de alteridade produzido e moldado pelo poder político (os países do oriente como colónias), pelo poder intelectual (como objecto de estudo das ciências modernas) e pelo poder cultural (hierarquização de valores). Ele mostra como a imagem do oriente é produto de energias intelectuais, estéticas, eruditas e culturais conjugadas em redor do imperialismo49 . 48
Cfr. MASOLO, D.A., African Philosophy in Search of Identity. East African Educational Publishers. Nairobi, 1995.
49
Cfr. SAID, E.W., Orientalismo. O Oriente como Invenção do Ocidente. Caminho das Letras, São Paulo, 1978.
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Mas se a África primitiva, tradicional, comunal descrita pelos antropólogos, etnólogos, geógrafos, missionários e filólogos pode ser considerada uma lenda que os europeus inventaram e acreditaram nela, também não é menos certo que a tradição africana como ela é descrita por uma boa parte de africanos contemporâneos também pode ser uma lenda; mas é uma lenda que continua a ser inventada e contada por uma boa parte de intelectuais africanos menos atentos e continua a ser acreditada por uma boa parte das crianças africanas que vão diariamente à escola. A geração dos intelectuais pós-independência estava demasiadamente ocupada em lutar contra a ideologia remanescente do colonialismo e em fundamentar os «valores da unidade e soberania nacional» para se dedicar a uma «vigilância epistemológica» para desmistificar esta lenda. O primeiro grande desafio da filosofia africana, como defende Hountondji, é de «desmistificar a africandade», ou seja, destruir o mito do primitivismo e tradicionalismo africano, tal e qual ele foi defendido e continua a ser difundido pelos seus inventores. No mesmo sentido de Hountondji, Edward Said apela para a deconstrução em relação ao discurso hegemónico europeu. Usando este conceito, com a Independência de Moçambique a deconstrução abarcou inicialmente as áreas da administração e política, abarca hoje a área económica e, como desafio, deverá estender-se para a área tecnológica e epistemológica. Mas a deconstrução que defendo, deve ser também em relação ao tradicionalismo, ou seja, em relação à invenção e reinvenção das tradições para a legitimação de certas esferas do poder. Um exercício teórico desta natureza teria consequências políticas fatais (legitimar o separatismo, por exemplo). Aos intelectuais cabe o desafio de estarem vigilantes contra este monstro. A introdução do currículo local nas escolas básicas institucionalizou no espaço escolar a possibilidade de coexistência de discursos de deconstrução do tradicionalismo e do modernismo. Com este artefacto (currículo local), vão entrar «oficialmente» nesta instituição de negociação de saberes (escola) os diversos conhecimentos e saberes existentes nas aldeias. Os professores vão fazer esforço por casar saberes de natureza mais universal com os saberes de natureza e origem local. A criança vai aprender, para além dos valores éticos universais derivados da cidadania e da economia do mercado capitalista, também os hábitos e costumes locais e tradicionais. Isto é, a criança vai
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ser inserida ao mesmo tempo num discurso moderno científico universal e numa «tradição viva» local. Mas a entrada dos saberes locais na escola básica deve ser antecedida por um vasto movimento de «re-apropriação». O capítulo 7 do último livro de Paulin Hountondji50 leva um título interessante: Reappropriation ou seja, «re-apropriação» em português. Neste capítulo ele começa por emprestar o conceito de «extraversão» de Shamir Amin que o havia empregue para caracterizar o tipo de economia dos países da periferia, particularmente dos países africanos. Segundo Amin, as economias africanas da periferia estão viradas para a exportação de matéria-prima o que perpetua o subdesenvolvimento e a pobreza nestes países. Hountondji empresta este conceito para se referir ao tipo de discurso e escritos que a etnofilosofia e as etnociências fazem: trata-se de um inventário dos chamados saberes tradicionais indígenas (ou locais) escritos sempre na terceira pessoa que tenta tratar, sem os «donos» estarem presentes, o que as pessoas nas comunidades africanas é suposto saberem. Na opinião de Hountondji, a etnofilosofia e as etnociências nasceram como um discurso em que o pesquisador, seja ele europeu ou africano, sabe de antemão que o seu público certo é não-africano e que ele pode se orgulhar por, na sua qualidade de «porta-voz» fiel da comunidade que estuda, por não correr riscos de ser contradito. A exclusão do público africano está clara não só na língua de publicação (inglês, francês, português), mas sobretudo no conteúdo do discurso, na escolha dos temas, nos métodos e na forma como se tratam os problemas. Daí Hountondji usa o conceito de «extraversão intelectual» com o tipo de economia dirigida para o exterior, sem no entanto se reduzir a isso. Penso que o primeiro passo das ciências sociais em Moçambique é a de libertarem-se a si mesmas da «extraversão intelectual» a que estão voltadas. Até hoje, a história da educação em Moçambique tem-se caracterizado como um meio pelo qual se possibilita a «extraversão». A educação, no tempo colonial, era um instrumento importante para transmitir o sentimento de inferioridade das populações locais africanas e manter o mito da superioridade 50
Trata-se de The Struggle for Meaning. Reflexions on Philosophy, Culture and Democracy in Africa traduzido para o inglês por John Conteh-Morgan e leva um prefácio assinado por K. Anthony Appiah. O título original em francês leva o subtítulo Un itinéraire africain (Um itinerário africano) como Appiah nota no seu prefácio ao livro (HOUNTONDJI, 2002,xi).
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racial dos portugueses. Já nos princípios do sec. XX, Blyden notava que o resultado da educação colonial era uma criança que era metade europeia e metade africana, uma criança em dois mundos. Isto contrariava o objectivo mais sagrado de qualquer educação que é o de formar em pessoas aquelas qualidades que lhe permitam mais tarde uma óptima inserção na sua própria sociedade e cultura51 . Em Moçambique, desde o tempo colonial até hoje, a língua portuguesa é a língua oficial de ensino. Ela garante a ligação entre as elites económicas, políticas e intelectuais moçambicanas com o mundo internacional. Os falantes do português têm acesso mais facilitado aos mercados de trabalho e maiores possibilidades de ascensão social. O português também é o meio de participação política: É a língua parlamentar, é a língua pela qual circulam os panfletos eleitorais, etc. Dificilmente uma pessoa seria escolhida para cargos públicos de alto nível se ela não fosse bom falante e cultor da dita língua de Camões. Com a introdução das línguas maternas no novo currículo do ensino básico deve estimular-se uma comunicação ‘inteligente’ com as milhões de pessoas vivendo no interior e aprender mais das culturas locais. Efectivamente, no interior de Moçambique vivem milhões de moçambicanos que mantêm também as instituições correspondentes. O contacto com estas pessoas, sobretudo com os estudiosos locais, só pode ser frutífero através da sua língua. Retornando a Hountondji. Ele escreve sobre a necessidade de apropriação da herança científica universal existente e desenvolvê-la duma maneira selectiva e independente de acordo com as nossas necessidades e programas de desenvolvimento. Ele continua dizendo que o «vasto movimento da apropriação» deve ser acompanhado por um processo de re-apropriação metodológica e crítica do que é usualmente chamado de Conhecimento Local e Tradicional. A re-apropriação seria, neste ponto de vista, uma condição básica para a existência e o desenvolvimento de uma ciência africana que seja responsável aos problemas específicos dos povos africanos. (Hountondji 2002,243f.)
51
Cfr. AKIMPELU, J.A., An Introduction to Philosophy of Education. The Macmillan Press, London and Basingstoke, 1981.
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No entanto há algumas inquietações: Como é que a lógica da extraversão pode ser quebrada? Como é que a marginalização do conhecimento local pode ser superada e ser estabelecida uma relação progressiva entre o conhecimento universal e o local? Como integrar o conhecimento local no vasto campo do conhecimento e da ciência universal? Quais são os meios que temos ao nosso alcance para abrir o conhecimento local para ser testado, validado, avaliado e criticado no contexto dos planos de desenvolvimento? Como é que podemos transcender a «coexistência silenciosa» entre o discurso institucional e científico moderno e o chamado discurso tradicional em que o conhecimento local se encontra embutido? Não há dúvidas que para tirar os saberes locais da dupla marginalização será necessário primeiro um trabalho de re-apropriação do local. No entanto essa não pode ser cega. O critério que temos, para submeter o chamado conhecimento local ao escrutínio, só pode derivar dos desafios da nação, entre os quais destaco a eliminação da pobreza. Uma vez feita a apropriação, o conhecimento local deverá ser integrado no discurso universal começando pela via do currículo local. Mas o problema da des-marginalização não se coloca e nem se reduz à integração das racionalidades locais no discurso científico universal. De facto, as racionalidades locais estão já integradas no discurso nacional desde o advento do colonialismo. Mas trata-se de uma integração incompleta e mutilada pela inexistência de um local de encontro que tivesse o papel de «espaço público» habamariano. A desmarginalização será real quando o retorno (no segundo sentido de Cesaire) às tradições locais deixar de ser em jeito de recurso. Ou seja, se for uma apropriação que se faz em função dos desafios actuais colocados pela globalização das economias e pelos avanços das tecnologias de comunicação. Não se trata pois de escolher as tradições e sistematizá-las num quadro epistémico lógico, mas sim de fazer um escrutínio destas tradições em função dos desafios nas áreas económicas, políticas e sociais. Aqui devemos trabalhar com a «hipótese de uma coexistência de discursos» cuja luz só uma verdadeira Sociologia da Ciência no contexto africano nos pode fornecer. Severino Ngoenha escreve o seguinte no seu livro dedicado à consciência histórica da moçambicanidade: «O problema mais importante de Moçambique de hoje não é a escolha de um modelo político, jurídico, ou
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constitucional, mas é muito mais profundo do que isso. O problema é saber que lugar queremos exercer na história de amanhã. Se queremos continuar a ser simples instrumentos em mãos alheias como até aqui, ou se, por uma vez, queremos ser protagonistas da nossa própria história e do nosso próprio destino»52 Penso que o desafio lançado de sermos protagonistas da nossa história é fundamentalmente filosófico. Porque a filosofia, no dizer de Hegel e cito de memória, «é o resumo do tempo no pensamento». A Modernidade é simplesmente uma tese no pensamento; a tradição é uma antítese no pensamento. O grande desafio é procurar a síntese e traduzi-la em pensamento, isto é, num discurso que já não evoque a existência de dois mundos contraditórios, conflituosos ou senão mesmo incompatíveis. Hountondji (2002) chama-nos atenção para a necessidade de transcendermos esta «coexistência silenciosa» entre os discursos institucional-moderno e o tradicional-local. De facto, na África moderna, podemos partir já da hipótese de uma integração destes discursos. O desafio é reconhecer estes novos contornos (ou paradigmas) que se desenham e projectar-lhes numa racionalidade própria. É uma tarefa ampla procurar os espaços de coexistência de discursos. Pode ser que ao nível do discurso (científico) se esteja atrás dos acontecimentos enquanto na realidade esta coexistência já esteja a ser praticada por certos agentes sociais. Assim, podemos identificar, como hipótese, alguns contornos de espaços ou actores sociais que encarnam a coexistência entre os «dois mundos, com probabilidade de superarem a coexistência silenciosa de que Hountondji nos fala. Eis alguns exemplos dos espaços. Em primeiro, e o mais evidente é o da área da agricultura onde há uma partilha não só do espaço físico mas também ao nível do conhecimento e tecnologias. É muito interessante o papel dos extensionistas agrários (ou, ultimamente, a figura introduzida do «camponês de contacto») como interlocutores entre os saberes dominados pelos camponeses e a infusão de
52
Cfr. NGOENHA, E.S., Por uma Dimensão Moçambicana da Consciência Histórica. Edições Salesianas, Porto, 1992.p.22.
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técnicas modernas representadas por instituições como o Ministério para a Agricultura e Desenvolvimento Rural em Moçambique. Nas artes, a área da música é a mais evidente e que tem registado maior integração dos dois mundos. Efectivamente, com o fenómeno da utilização de instrumentos urbanos/modernos, lado a lado com o tambor, a timbila etc, resultando a fusion. O resultado é na prática uma terceira identidade que tem uma estrutura própria. Embora ainda seja uma mistura ela pode perfeitamente passar para um estado de constituição própria, de síntese. As músicas de Isaú Menezes, do grupo Djaka e as do saudoso compositor e cantor do Chiveve Mazembe são exemplos da síntese na área das artes. Da mesma forma podemos explorar a educação em Moçambique, o currículo local em particular, como o espaço epistémico ao nível do Ensino Básico para cultivar a coexistência dos discursos. Também podemos ver no professor primário o potencial agente integrador entre o conhecimento local e o conhecimento universal, e a escola primária, por consequência, como a instituição privilegiada para o cultivo da coexistência dos discursos. Outros exemplos também se podiam explorar na área da administração territorial, onde há cada vez mais e maiores zonas de intercessão entre as estruturas do poder local em representação do poder estatal instituído e as chamadas autoridades comunitárias que respeitam o direito costumeiro local. Num estudo sobre o currículo local que recentemente fiz na cidade de Chimoio e nos distritos de Báruè e Sussundenga, cheguei à conclusão de que o professor é, de facto, o elo epistemológico mais fraco53 . Os professores devem ser valorizados para serem verdadeiros agentes no processo educativo. Eles não podem ser deixados sozinhos nesta «revolução» do conhecimento. Em parte, a introdução do currículo local no ensino básico vem desafiar toda uma lógica de fundamentar e praticar a educação em Moçambique: se ontem o professor era mais um transmissor de conhecimentos que lhe caíam em forma de «instruções pedagógicas» ou ainda de «orientações metodológicas», com o currículo local o mesmo professor deverá estar em condições
53
Cfr. CASTIANO, J. P., O Currículo Local como Espaço Social de Coexistência de Discursos: Estudo de Casos nos Distritos de Báruè, de Sussundenga e da Cidade de Chimoio. Comunicação produzida para Primeira Conferência Nacional da OSSREA em Moçambique, Maputo, 2003.
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de procurar e produzir conhecimentos. Ora isto exige novas abordagens não só metodológicas mas também na própria forma como o professor percebe a sua profissão. Mas esta revolução é fundamentalmente de carácter ético e epistémico. Ético porque o professor terá de se confrontar com matérias de ensino que dizem respeito a usos, costumes e tradições locais, algumas das quais podem contradizer os seus próprios princípios éticos e religiosos ou serem pura e simplesmente de uma cultura alheia à sua origem; neste caso o professor terá que se referir à outras culturas, sem no entanto perder a perspectiva da sua própria identidade cultural. Mas sobretudo terá que ser vigilante em não impor os seus próprios valores usando o seu poder pedagógico. O desafio é também epistémico porque o professor, com o currículo local, deixa de ser o único conhecedor da sua matéria na aldeia ou na comunidade: em algumas questões ele terá que consultar aos elementos da comunidade que mais informações têm ou mesmo ao próprio aluno seu. Em alguns momentos ele terá que conviver com a incerteza e insegurança profissional. Mas há um patamar mais amplo no desafio: Os professores deverão mostrar uma vigilância epistemológica pelo facto de ser o argumentador principal sobre os valores e conhecimentos entre os dois discursos (moderno e tradicional) na sala de aulas. Ele é a peça principal na área da educação que pode tornar a coexistência de discursos rumo ao diálogo entre as culturas e o poderoso discurso científico moderno. Gostaria de terminar com as palavras de um antigo pensador grego mas que foram repetidas pelo Professor Veigas Simão aquando da sua oração de sapiência na abertura do ano lectivo 2004 na Universidade Eduardo Mondlane: «o vento só é favorável para quem sabe para onde ele sopra». O vento da modernidade só vai ser favorável à nossa agenda e história como moçambicanos se, como intelectuais e professores, mantivermos uma vigilância epistemológica responsável a estes desafios; da mesma forma, o vento da tradição e das culturas locais só vai ser favorável aos nossos programas nacionais se for submetido a uma vigilância epistemológica avaliadora em função do futuro. Assim, uma vigilância epistemológica deve ser dupla: em relação aos discursos que exacerbam o modernismo e os que o fazem em relação ao tradicionalismo. A reforma curricular no ensino básico abriu o
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espaço institucional para a coexistência de discursos num debate aberto. A Universidade Pedagógica tem a nobre missão de contribuir, formando professores cientificamente competentes e através da pesquisa educacional, para que a educação seja realmente um espaço em que se encontra e se equacionam ambos discursos em função dos programas de desenvolvimento social. A Universidade Pedagógica deve assumir o desafio e a sua missão iniciando um processo de pesquisa de contextos sócio-culturais das escolas para derivar propostas de paradigmas educacionais que sejam vigilantes aos extremos que exacerbam tanto um modernismo como um tradicionalismo cego.
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CONCEPÇÕES AFRICANAS DO SER HUMANO Severino Elias Ngoenha
Existe uma humanidade especificamente africana? E se sim, qual é o lugar epistemológico a partir do qual se pode formular uma tal especificidade antropológica? Desde 1945 existe em África um debate dialéctico vivo em volta da filosofia africana que não cessou de incrementar-se, quer na evolução dos temas tratados - durante muito tempo foi prisioneiro de um debate rico e contraditório em volta da questão da sua própria existência e do seu estatuto epistemológico e científico. Nos últimos anos discutem-se problemas do estatuto moral e científico da antropologia, da relação entre a tradição e a modernidade, da relação entre a oralidade e a escrita, da natureza das nossas democracias, dos impasses do desenvolvimento, etc. Por outro lado, os intervenientes em termos de áreas culturais hoje não são só francófonos e anglófonos, mas são também lusófonos, aos quais depois do apartheid vieram ajuntar-se a África do Sul que mesmo sendo anglófona tinha ficado a margem dos debates do continente. Quando se percorrem as grandes linhas do debate sobre a filosofia em África como ele se desenrolou na segunda metade do século, identificam-se claramente três lugares de discurso a partir dos quais uma figura do homem africano se construiu: o pensamento tradicional ou a cultura oral; os discursos antropológicos como se construíram a partir do sec. XIX; o pensamento africano (sapiente), isto é, a reflexão dos intelectuais africanos sobre a própria identidade.
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Cada vez que um velho morre, é uma inteira biblioteca que se queima Qual é o significado ontológico desta famosa afirmação de Hampatê Bâ (1972)? Contra a primazia e a superioridade suposta da escrita sobre a oralidade, Hampatê Bâ sugere um duplo postulado. Primeiro, que os anciãos são depositários de um saber que é equivalente aos arquivos e a biblioteca tanto defendidos por Paulin Houtondji (1977:47), ao ponto de fazer deles a condição necessária da existência de uma filosofia africana. Houtondji sustenta que a condição sine qua non para que exista uma filosofia africana é que ela escreva os seus arquivos; não tanto por uma questão de imitação do ocidente, como ela foi injustamente acusada, quanto por aquilo que a escrita é suposta permitir: a introdução de uma tradição crítica sem a qual a filosofia não é possível. Na tradição da escrita o pensador não ocupa a memória com a necessidade de preservar e com o medo de esquecer. Mas ao mesmo tempo, o que escrevo já não me pertence, é algo disposto ao público e susceptível de ser submetido ao juízo crítico de todos. Em contrapartida Hampatê Bâ parece defender a tese segunda a qual, não existiriam critérios objectivos para comparar a escritura e a oralidade. Por conseguinte, a oralidade não seria necessariamente inferior a escrita, mas um saber diferente cuja importância só podia ser pertinentemente avaliada por aqueles, ou a partir daqueles, cujas vidas são animadas por ela. Mas por outro lado, por detrás da oralidade se esconde não simplesmente a apreciação subjectiva e adjectivante das pessoas e grupos culturais por ela animados, mas a oralidade pode compreender uma sabedoria e até mesmo uma filosofia. Mesmo se se reconhece que a escrita favorece uma maior circulação do saber, ela não é necessariamente superior a oralidade, a não ser que se queira reduzir o estatuto e a dignidade da língua a possibilidade de fixa-la em signos simbólicos, artificiais e socialmente concordados, que chamamos escrita. Para H. Bâ uma coisa é a escrita e outra é o saber. A escrita é a fotografia do saber, mas ela não é o saber. Para o homem esta é como a luz. É a Herança de tudo o que os antepassados puderam conhecer e nos transmitiram os germes...
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Segundo H. Bâ a questão não é tão a dicotomia entre escritura e oralidade, mas o facto de que na África contemporânea a cadeia de transmissão foi interrompida pela colonização o que comporta o risco de uma possível perda dos conhecimentos dos anciãos, que por sua vez seria dramático não só para a África mas para o mundo inteiro. Alexis Kagame (1956), considerado por Marcien Towa (1979) o pai da etnofilosofia, foi mais longe, e mete as bases para uma dimensão filosófica das línguas africanas, procurando uma estrutura ontológica da língua ruandêsa. O que é importante para nós não é tanto a dimensão relativista da tese de Kagame mas o facto, relevado por Houtondji (1977: 82), de ter sugerido que os filósofos africanos pensariam de toda uma outra maneira se utilizassem as suas línguas maternas para satisfazer as suas necessidades teóricas. A análise de Kagame tem o mérito de ter atirado a atenção sobre a contingência da linguagem e ao enraizamento de todo o pensamento humano a um universo de significados pré-estabelecidos. A língua é portanto a chave de leitura através da qual Kagame se propõe a apreender a maneira bantu de conceber o mundo. Ele pensava que questionando a gramática e as categorias gramaticais das línguas bantu, se podia descobrir as significações do real. Para fazer isso ele comparou as categorias bantu com as categorias aristotélicas. Kagame pensa que existe uma filosofia e portanto também uma antropologia nos nossos substratos culturais, e esta filosofia foi formulada. De todos os documentos institucionalizados, a língua é a melhor formulação desta filosofia. O método de Kagame consiste em procurar na estrutura da língua ruandêsa, o que Aristóteles teria feito para a língua grega.
Os Discursos Antropológicos Para um filósofo dizer concepções do ser humano invoca em primeiro lugar a antropologia, mas dado que outras antropologias nasceram no sec. XIX ocorre precisar que se trata do que tradicionalmente se chamava antropologia filosófica. Falar assim é sentir o eco da pergunta fundamental de Kant o que é o Homem? pergunta a qual se devem subordinar quer a questão
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metafísica (o que me é permitido esperar) como as questões epistemológicas (o que posso saber) e éticas (o que devo fazer). O ponto mais elevado deste questionamento está na generosidade da proclamação dos direitos humanos, que contudo eram vítimas de um universalismo ou se quisermos de uma antropologia que era uma meta narrativa etnocêntrica. Aliás, naquilo que é considerado por muitos pensadores como sendo o primeiro debate sobre os direitos do homem, refiro-me a disputa entre Las Casas e Sepúlveda, a possibilidade de uma humanidade africana foi encoberta no sentido de Heidegger e sobretudo da filosofia de libertação latino americana. Têm que se esperar o Hegel da filosofia do direito, mas sobretudo da filosofia da história, para se decretar que o africano estava fora do movimento da história porque não tinha consciência da sua liberdade. Por conseguinte, a primeira imagem da humanidade do africano é ligada a filosofia ocidental, ignorada em Valladolid, expulsa da história acusada de não ter consciência da sua própria liberdade, de viver numa condição de inocência, pré-histórica (e pré-racional) e inconsciente. Esta tese encontra um eco nas teses de Lévy-Bruhl (1922) sobre o prélogismo. O antropólogo afirma que a estrutura do aparelho cerebral dos primitivos é o mesmo que dos homens evoluídos; a diferença é que os primeiros são dominados por representações colectivas, sem o hábito da abstracção, do raciocínio e de outras operações familiares do pensamento. Esta é razão pela qual as sociedades humanas têm que ser repartidas em dois tipos fundamentais, as sociedades civilizadas e as sociedades primitivas, as quais correspondem duas epistemologias morais diferentes. Dada a distância que separa as duas sociedades, cada uma deve ser apreendida no interior do seu próprio sistema (conceptual e moral) de referência, lógica para estas e pré-lógicas para aquelas. Estas leituras contribuíram na criação de uma imagem da África e do africano intelectualmente inferior, dominado por crenças colectivas e de natureza essencialmente mágicas, incapaz de um pensamento crítico e do desenvolvimento histórico. Assim se estabeleceu uma oposição significativa entre o logos ocidental que teria uma percepção do mundo fundamentalmente racional e a emoção africana, que seria dominado por uma visão emotiva e instintiva do mundo.
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Os antropólogos do terreno começaram com Edward Tylor a redimensionar a pretensa superioridade da kultur eletista ocidental contra os costumes dos selvagens, continuaram negando a existência de povos sem culturas, e acabarm afirmando categoricamente o valor das culturas africanas. Foi assim que a partir da segunda metade da década vinte, a etnologia passou por uma metamorfose espectacular no seu interesse e relacionamento com as culturas africanas, esforçando-se por superar as teorias racialistas de Lévy-Bruhl, de Gobineau, de Spengler. A nova escola francesa de etnologia recusava, contra a administração colonial, de considerar os povos africanos como desprovidos de civilização. É assim que no seu livro Les Nègres, Maurice Delafosse (1927) procedia a um estudo da história da África ocidental e descobria que a idade média africana tinha sido, em muitos aspectos, comparável a idade média europeia. Ele tirava a conclusão que, não só a pretendida inferioridade intelectual negra nunca tinha sido provada, mas que se podiam encontrar muitas provas do contrário. No mesmo ano, Georges Hardy (1927) revelava as consequências desastrosas da influência europeia sobre a África e exaltava a profunda espiritualidade religiosa da alma negra. Frobenius (1936) descobria que se uma barbaridade existia em África, ela tinha aparecido só com a chegada dos brancos. E descobria os restos de uma antiga civilização que ele ligava ao antigo Egipto. Esta metamorfose na apreciação científica da civilização africana teve um impacto enorme na geração ascendente de intelectuais negros, nomeadamente nos criadores da negritude (Senghor, Damas e Cezaire). Esta nova geração de intelectuais sentiu-se investida de uma missão; só que os fundamentos da missão-negritude eram intrinsecamente ligados às diferentes visões que o Ocidente tinha da África. Tanto mais que muito rapidamente a ousadia dos primeiros etnólogos passou a contar com as contribuições de etnólogos célebres como Michel Leiris, Marcel Griaule, Georges Balandier, Lévi-Strauss e Mircea Eliade; o que aliás tinha levado Lévy-Bruhl ele mesmo a se corrigir e afirmar em seus Cahiers de 1938 que não havia diferença quantitativa entre a mentalidade primitiva e a mentalidade dos povos evoluídos. Como diz Valentin Mudimbe (1988) no seu livro The Invention of África, as imagens da África que resultam dos propósitos dos africanistas ocidentais,
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são mais o resultado de incompreensões e de preconceitos que de um quadro correspondente a realidade africana; de tal maneira que ela nos ensina muito mais sobre as orientações culturais dos autores que do objecto em questão. Todavia, segundo a corrente crítica da filosofia africana, sobretudo dos trabalhos de Eboussi-Boulaga e Marcien Towa (Ngoenha 1993,89-101), o apogeu do trabalho etnológico foi atingido, paradoxalmente com o trabalho de Tempels, que constitui o apogeu da história das visões europeias sobre a África. Aliás, o próprio Tempels qualifica o seu trabalho de etnológico na medida em que consiste numa investigação etnológica sobre a metafísica dos bantus, pois para compreender a alma bantu é necessário reconstruir a sua ontologia, mesmo se esta ontologia deve ser paradoxalmente reconstruída com os instrumentos da etnologia. Contudo, para que esta não se reduza ao simples folclore, ela tem que procurar uma penetração filosófica. Em outras palavras, Tempels, não se limita a polemizar e tentar ultrapassar Lévy-Bruhl, mas avança que a investigação etnológica não se pode contentar por um simples e puro inventário de crenças e de conceitos bantu, mas que é necessário a elaboração de uma teoria sistemática, é nisto que reside a dimensão filosófica, e o elo entre a antropologia e a filosofia.
Sou porque somos; dado que somos todos, também eu sou. Em 1945, Placide Tempels publicou o seu livro a Filosofia Bantu no qual expunha o que ele considerava ser a metafísica da força vital dos bantus. A força vital seria para os Bantus o único valor fundamental, identificável com a existência. Todo o ser é dotado de força vital, ou melhor, é uma participação da força vital e a sua vitalidade é variável. Todas as forças vitais estão interconectadas, interdependentes, e situadas hierarquicamente por referências cruzadas. Se o próprio universo é concebido como uma vasta rede de forças interactivas, nenhuma das quais pode actuar sem produzir um impulso vital nas outras forças individuais e na totalidade. Esta influência pode ser positiva ou negativa. E a meta de todo o ser é penetrar no núcleo do sistema vital para fortalecer a sua própria força e assim fortalecer o sistema todo. Os seres humanos encontram-se no centro do tecido vital e a geração presente na terra constitui o centro da humanidade inteira que inclui mortos
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e os ainda não nascidos. A natureza deve servir para melhorar e perpetuar a vida, a cultura, a religião e todas as instituições do saber humano estão orientados a este mesmo propósito: favorecer a vida e superar todo e qualquer perigo para a vida. O sistema articula-se em volta do conceito da força vital que por sua vez coincide analogicamente com o conceito do ser. Enquanto a metafísica ocidental tem um carácter estático, a metafísica bantu tem um carácter dinâmico. O que é necessário meter em evidência, é que a filosofia das forças vitais deve ser compreendida como uma filosofia da vida, noção que invade e condiciona a vida dos bantus. A ontologia bantu constitui a vida comum de todos os povos primitivos, clánicos. Mesmo se as práticas mágicas variam de região à região, de grupo étnico a grupo étnico, trata-se de variações acidentais. A obra de Tempels tem sido alvo de muitas críticas, muitas das quais pertinentes. Mas por outro lado, foi também o ponto de partida duma reflexão filosófica africana que muitos pensadores continuam a seguir (1984,1617). De facto, muitos intelectuais africanos provenientes de todas as regiões do continente descrevem a concepção africana do mundo de uma maneira análoga, o que poderia levar-nos a uma hipótese da existência de uma certa identidade cultural africana. Os elementos culturais que reconhecemos comuns são fundamentais e portanto a unidade se referiria ao essencial. A definição que Senghor dá do que ele chama ontologie négro-africaine é muito próxima da ideia bantu do mundo exposta por Tempels. É unitária e existencial, um sistema totalmente baseado no conceito de força vital, que é o fundamento do ser e mesmo mais radical do que o ser. A sua fonte é Deus, do qual tiram também as suas forças vitais todos os outros seres. Como aparece nos livros Liberté I (1964) e Liberté III (1977), Senghor refere-se a uma negritude que se caracteriza por uma razão instintiva, segundo a qual os valores da civilização negra são governados por uma razão de percepções, que compreende por intuição, e se exprimem por sensações emotivas e pelos sentimentos. Ele mete muitas vezes em evidência, que contrariamente a razão discursiva, observa-se na razão instintiva, um abandono do eu e uma identificação deste com o objecto através do mito, isto é, através dos arquétipos presentes no imaginário colectivo e, nomeadamente, no mito primordial ligado às imagens do cosmos. Os traços característicos
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da negritude são por conseguinte o sentido de comunhão, os dons inatos da imaginação, do ritmo, etc. Estas características encontram-se em todos os negros independentemente das diferenças étnico-sociais. Como se pode ver, Senghor, na caracterização dos negros procede de uma maneira dicotómica, isto é, os valores e os traços característicos do que constitui o mundo negro, são formulados em oposição aos supostos traços característicos do mundo ocidental. O negro é homem da natureza em oposição ao homem branco da técnica. Razão instintiva contra a razão da vontade, intuição contra reflexão, emoção contra a racionalidade; ou então razão sintética contra a razão analítica; identificação através do mito do sujeito-objecto contra a separação do sujeito-objecto da história, comunitarismo contra o individualismo. La raison est grecque comme l’émotion est hellène. É em oposição a tradição ocidental que ele afirma que o negro não constata através de um processo racional; mas ele sente através de uma percepção emotiva. Enquanto o cogito cartesiano supõe a afirmação da existência do sujeito enquanto pensante e de um objecto que está fora dele, o negro africano é suposto sentir o objecto; mais, ele dança o objecto. Segundo John Mbiti (1972) não se pode dizer que para os africanos o homem ocupa o centro do universo. Nessa posição ele pode servir-se do universo, retirar dele algum proveito por meios físicos, místicos ou sobrenaturais. A partir da sua posição o africano vê o universo e procura viver em harmonia com ele. Mesmo se não há vida no objecto concreto, o africano atribuí-lhe uma vida mística e assim estabelece uma relação directa com o mundo em volta. O homem não é dono do universo, só o seu centro, é amigo, o beneficiário, o utilizador. Deve, por conseguinte, viver em harmonia com o universo, obedecer as suas leis de ordem natural, moral e místicas. Se estas leis são violadas é o homem que sofre as consequências. Os africanos chegaram a estas conclusões através de uma larga experiência de observação e de reflexão. O carácter global é condividido segundo Manzini (2007) por K. C. Anyamwu, Alassane N’Daw, Edem Kodjo, Charles Nyamiti, George Omaku Ehusani, M. V. Tsangu Makumba. Duma maneira geral, todos estes escritores defendem a não existência de uma ordem dual da realidade. Porém, defendem a existência de uma hierar-
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quia dentro da ordem unitária do universo. Esta hierarquia compreende Deus, os antepassados, os espíritos, o homem e a natureza. Não há dicotomia entre matéria e espírito, sagrado e profano, natural e sobrenatural, comunidade e indivíduo, sujeito e objecto. O universo africano é um todo, os africanos viveriam em simbiose com Deus e com a natureza. Segundo Manzini (2007) John Mbiti, Marie-Viviane Tsangu Makumba, G. Omaku Ehusani, Kwasi Wiredu, W. E. Abrahm, J. T. Erumevba, defendem que todas as sociedades africanas são fundadas sobre o clã. O parentesco clánico num tal vitalismo se basearia sobre a consanguinidade e lá onde a consanguinidade não existiria se elaboraria um mito de origem comum. O parentesco clánico se funda sobre o sangue. Esta seria a regra geral quase sem excepções; por conseguinte trata-se de um parentesco estritamente de linhagem. A questão é de saber se se pode ampliar este parentesco estrito a uma comunidade mais ampla. Ntumba (in Budunrin The question of african philosophie) propõe uma interpretação universalista do parentesco africano. O ujamaa de Julius Nyerere (1968) toma a mesma posição. Para alguns intelectuais africanos o vitalismo é um tecido de relações místicas. Toda a força vital circula nos canais da vida em todas as direcções; relacionando-se desta maneira com todas as outras forças da vida. Bodunrin e J. T. Erumevba se opõem às posições de Ntumba e de Nyerere respectivamente. Segundo Etounga Manguelle, se se tivesse que citar uma única característica da cultura africana, o ponto de referência fundamental seria o desaparecimento do indivíduo face a comunidade. O comunalismo é a característica africana mais destacada por um número considerável de intelectuais africanos. Ser comunidade, seria parte integrante da estrutura pessoal do africano. A descrição, o significado e as consequências de ser comunidade são interpretadas de diferentes maneiras. Mas a afirmação de que a comunidade tem precedência sobre os indivíduos é aceite pela maioria. O slogan de John Mbiti Sou porque somos; dado que somos todos, também eu sou, tornou-se paradigma para discussão do homem africano, tanto para os seguidores como para os detractores. Para Mbiti, o indivíduo não só não existe e não pode existir se não corporativamente, mas ele deve a sua existência aos demais, e até somente através de outras pessoas ele chega ao conhecimento do seu próprio ser. O indivíduo não tem por si
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mesmo, nem existência, nem consciência de ser; só pode tê-los no grupo. K. C. Anyanwu (1984) defende que a origem da consciência individual ocidental está no isolamento. Para o indivíduo africano, uma força relacionada com as outras forças, é óbvio que não há indivíduos isolados, pois que todas as forças da natureza estão necessariamente inter-relacionadas. No contexto africano a consciência individual não é possível fora duma comunidade de forças. O comunalismo africano resulta assim ser um dos aspectos do vitalismo africano; ambos têm como quadro de fundo, uma concepção holista do mundo. Ifeanyi A. Menkiti afirma que a precedência da comunidade sobre o indivíduo deve-se aplicar não só ontologicamente mas também no que diz respeito ao conhecimento. O indivíduo chega a saber-se homem por sua implicação dentro duma comunidade humana em marcha. Ao cabo de um processo de conhecimento mediante a sua iniciação na comunidade, chega a ser consciente da sua personalidade. R. K. Nkurunziza defende a identificação do indivíduo na comunidade mais em termos de vida que em termos de conhecimento. Comunidade significa participação existencial de uma vida na vida de muitos. Uma vida sem participação na vida da comunidade não é vida. Elungu P. E. A. também vê a identificação do indivíduo no grupo em termos de vida. Não há distinção real entre ambos: são realidades emersas na mesma cadeia vital sem distinção conceptual que faça mediação entre elas. A sua distinção se funda unicamente nas experiências sensíveis, porém se unem de novo na imaginação mítica fundada sobre a experiência sensível. Para Elungu a África tradicional carece duma consciência individual conceptualmente diferente e independente da experiência ordinária da vida. Segundo J. Nyasani, Tshiamalenga Ntumba, consideram a socialidade anterior a intersubjectividade na experiência africana. Na tradição ocidental a sociedade se caracteriza por uma subjectividade que privilegia o EU na sua interacção com o TU. Na tradição africana esta comunidade de diálogo centra-se sobre o NÓS em interacção com o VÓS, uma relação simbiótica em que o EU e o TU são absorvidos em qualidades de participantes do diálogo no interior de nós. EU e NÓS não parecem funcionar como consciência individual.
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Por J. Nyasani o individuo não existe exclusivamente por e para si mesmo; ele sente e pensa que somente pode desenvolver as suas potencialidades, a sua originalidade em união com os outros homens. Existe o perigo duma supressão do indivíduo ou então a sua redução a um ser sem identidade. O’Donohue (A critical look of spirits and magic, in Spearhead) afirma que numa sociedade, as pessoas têm que escolher entre cooperar ou morrer; e convida-nos a pensar que o africano nem sequer sabe que é uma pessoa até ao momento em que pensa que não é mais nem menos membro do grupo. J. A. Sofola coloca a pessoa no panorama do humanismo que promove relações humanas saudáveis. O indivíduo não se encontra isolado do grupo nem desintegrado no seu próprio interior. Toda pessoa representa o seu próprio papel social em benefício dos outros e não só com a finalidade de sobreviver ou de satisfazer as suas necessidades biológicas. Trata-se de uma dedicação altruísta de uns para com os outros até o ponto de um sacrifício pessoal. A crise do sec. XX é uma crise de relações humanas. O problema é que África tem o seu próprio saber neste âmbito, mas não se lhe dá ocasião de dar forma a sua arte. Segundo E. R. Mbaya a sociedade africana era humanista e colectivista (...). O humanismo africano não desmembra o indivíduo nem lhe desintegra nas suas componentes. Em particular, não considera o indivíduo como uma entidade isolada ou independente da sociedade. O conceito integrado do indivíduo podia constituir uma contribuição positiva ao conceito moderno dos direitos humanos. Para G. Omaku Ehusani o sistema africano não faz dos indivíduos escravos como dizem os seus críticos; é a realização local da fraternidade humana. Deveria por conseguinte ser protegido e generalizado como pressuposto de uma nova ideologia. A existência individual é um facto na África tradicional, mas um facto secundário que não pode existir nem ser entendido se não em referência ao facto primário que é a comunidade. O indivíduo realiza a sua identidade somente se o faz em referência a comunidade. Segundo Maurier (1985), o pensamento africano afirma a individualidade, só que esta individualidade parte e se refere continuamente a comunidade. É certo que o indivíduo não está completamente determinado pela comunidade. Porém, esta condiciona-o de muitas maneiras. Mesmo escri-
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tores que defendem e repetem que o comunalismo africano deixa campo livre ao desenvolvimento de personalidades individuais, reconhecem que as comunidades exercem uma grande força sobre o indivíduo. O’Donohoue sustenta que ninguém ousaria negar que a sociedade domina a vida moral e mental do indivíduo. Apesar de toda a insistência que ele faz sobre a subjectividade e individualidade, H. Maurier, reconhece que o indivíduo está rigorosamente submetido a comunidade. Estamos diante dum totalitarisme villagois e dum totalitarisme lignagier como afirma Daniel Etounga Manguelle (1991). Njoh Mouelle (1975) considera o africano de hoje «medíocre», estando na metade do caminho da verdadeira humanidade. Ele é incapaz de distanciar-se do seu próprio ambiente social, e a adesão total a ele, conduz-lhe inevitavelmente a mediocridade cuja primeira manifestação é o gregarismo e a falta de originalidade. O que faz que a gente não se distancie do grupo é o espírito de conservação e a necessidade de segurança. Este espírito de conservação acaba por ser um instinto de morte. Para Mouelle a mediocridade chama-se rotina, conformismo, repetição, que são sinais evidentes de uma indiscutível deterioração. E acrescenta que se diria que a cultura africana está estruturada para proteger um ambiente conservador e o seu correspondente modo de vida. As mudanças são mínimas e controladas. A sobrevivência do grupo, a sua segurança e solidariedade são os valores mais altos. Não há lugar para dúvida, não se pode experimentar nada de novo. Um tal conceito de sociedade, uma tal praxis social tem travado o progresso em África desde muitos séculos. Joseph Nyasani (1991) quer dar um passo mais em frente e pergunta-se o que faz com que o africano busque refúgio nos outros? Ou melhor, porque se submete ao destino da comunidade? Porque todo africano acredita existir por obra e graça a existência dos outros. Porque a comunidade é anterior e superior ao indivíduo? Ele responde que a socialidade africana consiste no manifesto acto de submissão do EU ao NÓS. Segundo Nyasani a abundante literatura sobre o sujeito gira em volta de aspectos sociais e antropológicos. Mas é importante ir mais longe e referirse a base metafísica em que se funda a experiência africana. A sociedade do africano é ao mesmo tempo única e transcendental. Isto está ligado ao
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seu vitalismo que implica o vivo e o morto, natureza e Deus, um vitalismo centrado sobre o clã. Toda a existência, toda a vida, toda possível fonte de vida são vistas nas suas relações com o clã. As relações internas do vitalismo africano são relações verdadeiramente de existência.
Conclusão No interior dos três campos discursivos distintos que tomamos em consideração - o pensamento tradicional ou a cultura oral; os discursos antropológicos como se construíram a partir do sec. XIX; o pensamento africano (sapiente) - parece que se possa fazer emergir um dado constante, que é a inscrição da figura do homem africano no interior de uma polaridade, que opõe o indivíduo a sociedade, e a sua determinação pela afirmação da primazia desta sobre aquela. Qualquer que seja o lugar do discurso, o ser africano como ser comunitário, no qual a individualidade se absorve na coesão do grupo, aparece como postulado fundamental. Mas, por outro lado, levanta-se a questão da origem dos lugares dos discursos. De facto, podemo-nos perguntar, em primeiro lugar, se o pensamento tradicional não é construído a partir da relação ao mundo ocidental; em segundo lugar, se o discurso proveniente da antropologia não tende a essencializar as posturas e, a partir de lá, a idealizar um communalismo africano pensado como alternativa ao individualismo ocidental que, por sua vez, é carregado de todas as determinações negativas; em terceiro lugar, em que medida os discursos dos intelectuais africanos não são discursos ocidentais assimilados e reproduzidos, a partir das suas origens imaginárias, por africanos radicalmente ocidentalizados. Em suma, a África, em quanto modo específico de ser humano, construiuse como uma espécie de reservatório de solidariedade ou de sociabilidade, quer como solução aos problemas, próprios do Ocidente, do viver-juntos numa sociedade individualista. Então, a questão do lugar epistemológico da africanidade não é uma questão de tipo genealógico ou arqueológico, mas uma questão propriamente filosófica, neste sentido deve ser formulado a partir do questionamento das posições existentes. Aliás, este questionamento releva também de uma
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problemática limitada a África, na medida em que, na sua tensão própria, a figura do homem africano se constitui numa relação com a alteridade, isto é, no campo da interculturalidade.
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ENSINO DA FILOSOFIA E POVOS AFRICANOS Severino Elias Ngoenha
Este artigo reflecte a cerca do ensino da filosofia em Moçambique. Para o efeito, abordei de forma muito breve a história da filosofia em África para contextualizar e explicar as formas como a filosofia se encontrou e se encontra em África. Moçambique é um pedaço do Mundo e da África, por isso, toda abordagem tem em conta este facto. A especificidade da problemática da filosofia em Moçambique deriva da de África, daí a abordagem em relação à questão africana ocupar maior extensão.
Breve Itinerário da Filosofia em África A terra onde, segundo a paleontologia, o homem teria visto o dia, tem uma relação controversa com a filosofia, o saber mais abstracto que o homem tenha produzido. A tradição filosófica ocidental, sobretudo depois do século XIX, quer que a filosofia seja um fenómeno grego (M. Heidegger), isto é, unicamente Ocidental; desconectado assim a Grécia e a filosofia da África - e da Ásia - como denuncia Martin Bernal no Black Athen. No início do século XX o Afro-americano William Dubois, mas sobretudo a partir dos anos sessenta, Cheikh Anta Diop, primeiro, e Teófilo Obenga, depois, denunciaram o eurocentrismo desta posição e apoiando-se nos trabalhos históricos de Heródoto, reivindicam uma relação intrínseca entre Grécia e o Egipto e entre este e a África negra. O que invés é indiscutível, é que a reforma da filosofia medieval pela filosofia realista de Aristóteles contra o Platão canonizado por Agostinho, deveu-se a conservação dos escritos de Aristóteles pela tradição árabe. To-
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davia, pouca importância se dá contudo a uma eventual filiação africana de Agostinho como de outros Pater eclesiae, assim como se mete pouco o acento sobre a relação que existe entre a tradição árabe e a África. Desde o sec. XV a África tornou-se o non mens land; este não reconhecimento jurídico depende essencialmente da desqualificação ontológica da sua condição antropológica. De facto, a justificação filosófico-teológica da prática da escravatura, primeiro, e do colonialismo, depois, por parte de um Ocidente humanista e racionalista, dependia de uma prévia desqualificação ontológica, do alter, do Ocidente. Mas se a escravatura foi um processo deconstrutivo da realidade histórico-existencial para as populações africanas, o colonialismo foi um processo reconstrutivo entre historicidades humanas, a partir do quadro da filosofia da história hegeliana ligada a um darwinismo biológico, histórico e social, na qual a África ocupava o último lugar num processo evolutivo. Isto explica duas coisas: que a filosofia, estado supremo da reflexão humana se tenha aplicado minuciosamente no racialista sec. XIX a um revisionismo histórico a fim de tirar todas e quaisquer manchas negras no arianismo sem mácula do ocidente. Mas, mutatis mutandis, que os africanos tenham visto na filosofia o lugar epistemológico da reivindicação de uma humanidade que lhes era negada (Eboussi-Boulaga). Assim, os sistemas coloniais mesmo quando se viram obrigados, a partir dos anos trinta, a formar elites africanas para colaborar com eles, continuaram a pregoar uma história esquizofrenicamente dicotómica, mas sobretudo foram muito réstios a educar os africanos à filosofia. Assim, só nos anos 40 e por questões teológico-missionárias, se introduziu em África uma filosofia de índole escolástica, vocacionada a ser uma ancilla theologia. Paralelamente e, desta vez por razões administrativas, os regimes coloniais francês e britânico introduziram na mesma década as primeiras escolas secundárias para os filhos de colonos e para alguns assimilados. Como os programas destes sistemas de ensino eram o prolongamento dos sistemas das metrópoles, com eles se introduziram programas de filosofia de cujas referências, inspirando-se na filosofia do humanismo renascentista e sobretudo a herança laicista do Aufklärung, estavam em luta aberta com a escolástica. Assim se transferiram para a África problemas teórico-filosóficos do passado mas não ultrapassados.
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Nos anos sessenta ocorrem dois fenómenos concomitantes que tiveram uma influência determinante para a filosofia em África e o substracto desses dois fenómenos foi o fim do colonialismo. Com ele nasceu uma filosofia africana, primeiro etnofilosófica (Placide Tempels, Kagame) e depois crítica (M. Towa, Eboussi Boulaga, Paulin Hountodji). As metamorfoses históricas que estão na origem da filosofia africana levantam questões de fundo quanto ao seu estatuto e a pertinência de uma filosofia africana, a sua relação com as tradições africanas, com a modernidade ocidental e com o futuro do continente. Todos os países africanos independentemente da região geográfica ou linguística não podem, doravante, fazer a economia dos problemas levantados pela filosofia africana que, se resumem na questão da dignidade do homem negro-africano e na questão do desenvolvimento. No mesmo momento, a África independente, apesar dos seus esforços em aderir a um não-alinhamento ideológico e a sua aposta na unidade africana (K. Nkrumah) encontra-se confrontada com o conflito ideológico que opõe o que sumariamente se chamou de direita e esquerda com os seus corolários ideológicos que se apresentavam sob formas de filosofia liberal e de materialismo. Assim, como demonstra Hountondji no seu relatório ao BREDA intitulado Formation et Recherche Philosophiques en Afrique: Eléments pour une Stratégie a África tem entre os anos sessenta até a queda do murro de Berlim – que Francis Fukuyama com uma falácia hermenêutica da filosofia da história de Hegel interpretou como o fim da história – três tipos de programas de ensino da filosofia. O primeiro tipo calca-se ad literam nos programas das antigas potências coloniais. O segundo tem uma forte conotação ideológica e o terceiro mete um acento forte sobre a identidade africana. A África lusófona tem no contexto africano um percurso sui generis. Portugal foi a única potência colonial a não conceder as independências por vias negociadas, o que vai levar as suas colónias a recorrer à lutas de libertação, mas ao mesmo tempo e por questões estratégicas da política-mundo, a serem obrigadas a se apoiarem no bloco comunista para alcançarem os seus fins. Mas a natureza subalterna do colonialismo português não era só económico mas também intelectual. De facto, Portugal não produziu intelectuais ou filósofos de relevo, até o fim do fascismo em 1974, era um dos países ocidentais com o índice do analfabetismo mais elevado e, os que tinham a sorte de estudar, seguiam programas que eram uma cópia dos programas franceses.
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Nos anos cinquenta, quando as independências dos países africanos pareciam inelutáveis, Portugal actualiza os ideais de António Ennes, Governador de Moçambique no fim do sec. XIX que apregoava que os missionários da África deviam-se formar em África. Mas sobretudo, a ideia de uma aliança entre a Igreja Católica e o governo colonial (chamada concordata) que postulava que a Igreja devia primeiro formar portugueses, ou melhor, fazer dos indígenas portugueses e só num segundo tempo cristãos. A concordata permitiu a introdução de uma filosofia nos seminários que era ancilla theologia. Mas ela compreendia uma dimensão hegeliana evidente, ligada a uma presunta superioridade racial e histórica do lusitano em relação ao africano. A pressão da comunidade internacional contra a natureza do colonialismo português, mas sobretudo as exigências dos militares em ver os seus filhos educados nos mesmos programas e mesmos períodos que em Portugal, levou o colonialismo português a abrir as primeiras escolas secundárias na África lusófona três décadas depois que os franceses e os britânicos tinham aberto as primeiras escolas secundárias em África. Os livros de base eram texto de F. Saraiva e uma tradução do italiano de um texto de história da filosofia de Franco Américo. As guerras nas colónias africanas foram determinantes para a chamada revolução dos cravos em Abril de 1974 em Portugal. Todavia, as alianças Já estabelecidas levaram Portugal em direcção a democracia e empurraram as antigas colónias portuguesas em direcção ao marxismo. Assim começaram a combater os rudimentos da escolástica que Moçambique e Angola conheciam nos seminários católicos, e substitui-se com outros rudimentos anacrónicos em relação à história e aos substractos culturais locais, que foi o marxismoleninismo. Com a sua independência política, a África lusófona com uma década de atraso, alcançava os países africanos e passava a pertencer aquele terço de países onde o ensino da filosofia era de uma conotação ideológica muito pronunciada. O fim da guerra fria trouxe consigo o fim das filosofias ideológicas. Mas ao mesmo tempo a nova meta-narrativa em que se tornou o liberalismo era de natureza a levantar novos problemas mesmo para os maiores assertores do pós-modernismo. Com efeito, o fim da história que encontrava a África
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no último lugar numa escala de desenvolvimento, não significa uma condenação ulterior do continente africano? Mas que relação existe entre o fim da história e as liberdades que os africanos procuram desde a cinco séculos? O que pode fazer a filosofia na luta pela democratização do continente? Qual é o papel da filosofia na luta pelo desenvolvimento? Que relação existe entre as tradições africanas e a racionalidade moderna? Foi neste contexto, do repensar de questões fundamentais que fui contactado para pensar num programa de filosofia «post ideológico» para a formação de professores, que por sua vez deveriam introduzir a filosofia nas escolas. A filosofia em Moçambique a qual eu era suposto reflectir, inscrevese necessariamente num quadro geral da filosofia africana, sobretudo pela natureza comum dos problemas que nos ocupam. Não quero dizer que as problemáticas da etnofilosofia, da filosofia crítica ou da hermenêutica africana, tenham alguma coisa a ver com as preocupações que impregnam a filosofia moçambicana. Aliás, penso mesmo que o debate actual da filosofia africana representa um momento de involucão na história do pensamento africano. Penso mesmo que a filosofia africana não está à altura do debate do pensamento africano que é muito mais antigo e muito mais profundo. O facto de não nos identificarmos com a esclerose do debate que gravita à volta da sua própria existência não implica não identificarmos a nossa busca, a nossa contextualidade com a problemática geral que está na génese do pensamento africano, do qual, finalmente, a filosofia africana é um derivado. O substracto filosófico do pensamento africano é, sem dúvida, a busca da liberdade, devido à situação categorial oprimido/escravo/colonizado/ subdesenvolvido na qual os povos africanos se encontraram, depois do encontro-choque com o ocidente. Estas buscas tomam formas diferentes segundo as épocas, os períodos históricos e os lugares geográficos. A primeira manifestação da busca da liberdade tomou a forma de luta pela emancipação da escravatura. Basta pensar nas lutas dos escravos nos Estados Unidos, na Jamaíca, no Brasil e no Haiti. A segunda forma da busca da liberdade foi a luta pela integração social nos países onde os antigos escravos passaram a ser cidadãos (B. Washington, William Dubois) de segunda categoria. O terceiro movimento identifica a liberdade com a autodeterminação política. A figura mais preponderante é Kwame Nkrumah que, ultrapassan-
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do a Renascente África de Azikiwé, reivindica, primeiro no V Congresso Pan-africano de Manchester de 1945 e depois no livro África Must Unit, a liberdade-independência de todo o continente, e se faz o paladino de uma unidade continental em termos políticos e económicos. O quarto nível de liberdade é o desenvolvimento económico e social. Este nível, iniciado logo depois das independências, ocupa ainda hoje o essencial das elucubrações dos africanos, e é aqui que se situa também o nascimento de uma filosofia africana crítica (Towa, Eboussi, Houtondji). As diatribes da história africana, as vicissitudes existenciais primeiro e, do pensamento em seguida, deram à política africana, mas também à sua filosofia um cunho muito particular a que eu chamo de libertário. A natureza dos estados africanos (se quisermos ir mais longe diremos negros), quer sejam os da Serra Leoa e da Libéria, primeiro, e, depois, os do Gana e Congo são, na essência, libertários; contra a escravatura primeiro e o colonialismo em seguida, aos quais durante séculos os negros estiveram submetidos. A filosofia africana emerge também deste fundo comum de busca de liberdade. Se existe um paradigma - no sentido de Kuhn - do pensamento e da filosofia africanos como eles se desdobraram historicamente, esse paradigma chama-se a busca da liberdade. Não de uma liberdade metafísica ou moral, mas de uma liberdade política. Não podemos pensar a África nem sob ponto de vista político, nem filosófico perdendo de vista o paradigma libertário que deve ser a referência e o critério de julgamento das nossas lucubrações intelectuais e das nossas opções políticas. As nossas reflexões e opções em torno do liberalismo e da democracia devem ser subordinadas a esta busca secular da liberdade. Devem ser analisadas não em função da dinâmica mundial (mesmo se não a podemos ignorar), mas subordinadas à nossa busca secular e histórica. Só na medida em que um regime político, um sistema económico colaboram para incrementar a esfera paradigmática da nossa busca histórica é que eles podem ser avaliados positivamente. Um esforço filosófico a partir de Moçambique não pode não inscreverse no quadro de um esforço africano mais global ligado ao nascimento da filosofia africana que, por seu turno, está intrinsecamente ligado à busca da
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liberdade que caracteriza a visão continental da África. Contudo, se as nossas inquietações não são geneticamente diferentes das preocupações dos outros países africanos, também não são completamente idênticas. Estamos a nível daquilo que os lógicos chamam analogia. Os problemas e as preocupações que norteiam a filosofia africana são também nossos. Mas com algumas diferenças significativas de ângulos de ataque e mesmo reservas sobretudo relativas ao solipsismo que tem caracterizado alguns filósofos que centram as suas reflexões em torno da existência da filosofia africana, esquecendo-se de acompanhar criticamente a evolução (ou talvez a involução) dos diferentes países do continente. Isto fá-los cair no mesmo erro da negritude e da etnofilosofia que era, como dizia Fanon, de continuar a remoer em sarcófagos e não mobilizar as inteligências para a dinâmica histórica da África. Nos meus primeiros trabalhos (Por uma Dimensão Moçambicana da Consciência Histórica; Das Independências às Liberdades; O Retorno do Bom Selvagem; Mukatchanadas) tentei pensar Moçambique, aurindo a base do meu pensamento na história da filosofia e na maneira como ela tem sido pensada e discutida no continente africano. Tentei contribuir para uma reflexão em volta das metamorfoses históricas próprias de Moçambique. Por outro lado, solicitando a filosofia com a sua história e métodos a seguir dialogicamente o percurso histórico de Moçambique e a sua história a se deixarem interpelar pelo saber filosófico. Este esforço de trazer a filosofia ao debate moçambicano atingiu inesperadamente proporções inauditas quando em 1995 me foi dada uma daquelas ocasiões únicas, isto é, conceber um curriculum da filosofia para a Universidade Pedagógica e acompanhar a formação de professores que se encarregariam num segundo momento, de introduzir a filosofia em todas as escolas secundárias do país. A primeira preocupação que tive foi tentar saber a razão pela qual o Ministério da Educação tinha decidido introduzir a filosofia no ensino secundário. Isto é, a que problemas a filosofia devia contribuir a trazer soluções? Tratava-se de criar um curriculum que mesmo respeitando a secular história da filosofia nas suas disciplinas nucleares (história da filosofia, teoria de conhecimento, antropologia filosófica, ética e metafísica) fosse construído
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em função das necessidades do pais. Tratava-se de aculturar a filosofia ao contexto moçambicano sem desapropriá-la da sua dimensão de busca do universal centrado sobre a realidade da condição humana. A vontade política de introduzir a filosofia no ensino era, em si mesma, o reconhecimento da capacidade desta disciplina de contribuir na fase crucial e na encruzilhada histórica em que Moçambique se encontrava a nível político-social, mas também a nível moral. Assim decidi propor um curso de filosofia aculturado às preocupações reais de Moçambique, para levar a filosofia a ser um parceiro sério na elucidação dos problemas e das suas causas, mas também na busca de soluções. Após um período de investigação e de reflexão identifiquei três campos fundamentais da possível contribuição da filosofia em Moçambique. A ética – devido a desestruturação de referências axiológicas que se seguiu a empresa colonial, a revolução marxista e a guerra civil; a política – pela necessidade de pensar numa democracia participativa que não se limite ao voto de a cada cinco anos – e a epistemologia. A escolha da epistemologia como campo de investigação da filosofia em Moçambique resultou, em primeiro lugar, das dificuldades que os estudantes têm que fazer face a questões abstractas. Este défice epistemológico está ligado não só a falta de filosofia (lógica), mas também à fraca preparação do conjunto das disciplinas humanísticas como a história, a literatura, as línguas clássicas, a gramática, etc. Para além de contribuir, dando aos estudantes utensílios de análise mais refinados, a epistemologia pode trazer uma outra contribuição, menos evidente, mas não menos importante. Historicamente, ela teve outras denominações que podem nos ajudar a compreender os seus desafios e, em consequência a alargar o seu campo de aplicação na educação dos jovens. Ela é também conhecida por gnoseologia, teoria de conhecimento e crítica. Dizer «crítica», significa referir-se a uma atitude do espírito que consiste em analisar rigorosamente e sem condescendência os nossos mecanismos de conhecimento, o conteúdo mesmo do que nós dizemos saber, assim como o valor intrínseco dos nossos conhecimentos. Nos últimos anos, uma parte da filosofia africana (P.E. Elungu, M. Towa, Ka Mäna, Ali Mazrui, Georges Ayittey, J. Sofola, Kwasi Wiredu, E. Njoh Mouele) tem centrado os seus debates à volta do valor dos nossos
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conhecimentos ditos tradicionais e a sua relação com a racionalidade moderna. A premissa deste debate é a paradigmática busca da liberdade africana, centrada hoje sobre o desenvolvimento económico e social. Até a década setenta, o discurso africano acusava de uma maneira unilateral a escravatura e o colonialismo de serem os únicos responsáveis do estado actual do continente. Esta atitude impedia um trabalho de introspecção crítica sobre as nossas responsabilidades, sobre a responsabilidade das nossas instituições ancestrais na instauração desses sistemas odiosos. Por outro lado, a grande exaltação das tradições africanas, por obra sobretudo dos adeptos da negritude, encobriu uma análise fundamental quanto ao valor intrínseco dos conhecimentos tradicionais, o seu eventual enquadramento na modernidade, que constitui o substracto mental e filosófico do desenvolvimento a que aspiramos. Marcien Towa (1971) membro, com Houtondji e Eboussi Boulaga, daquilo que Ilungu chamou de escola crítica54 , não só se distancia do caminho traçado pela etnofilosofia aberta por Tempels e Kagame55 , como nem sequer ataca a «negritude-servitude» de Senghor que ele associa à etnofilosofia. Ele vai mais longe e afirma que o tempo das reivindicações acabou: trata-se agora de concentrarmo-nos sobre a questão do desenvolvimento e do progresso. Para Towa a questão é tentar saber o que permite ao ocidente o seu desenvolvimento, a sua superioridade e o seu poder sobre nós. Trata-se de descobrir e de se apoderar do segredo do Ocidente. Para o filosofo camaronês o segredo e a superioridade do Ocidente reside nos seus conhecimentos técnico-científicos. Eis porque a África deveria, segundo ele, concentrar todas as suas energias a desenvolver a ciência e a técnica. P. E. A. Ilungu (1987) prolonga esta tese ajuntando que o segredo ocidental não é meramente técnico, mas trata-se da racionalidade técnico-científica. A superioridade do Ocidente é, assim, remetida para uma dimensão filosófica. A África tem os seus conhecimentos, ditos tradicionais, os seus saberes que no passado certamente ajudaram os africanos a fazerem frente aos problemas com que estavam confrontados - alguns pensadores defendem que 54
NGOENHA, 1993, p.91.
55
NGOENHA, 1993, p.95.
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esses conhecimentos eram fracos e foi essa fraqueza que fez dos africanos vítimas predilectas de todo o tipo de esclavagistas e colonizadores. Mas admitindo que esses conhecimentos tenham ajudado os africanos do passado, que relação existe entre esses conhecimentos e o mundo moderno? Esta questão divide hoje os filósofos africanos em duas posições contrastantes: os que – como Towa, Ilungu, E. Njoh-Mouelle – defendem a ideia de uma irredutibilidade fundamental entre as tradições africanas e a racionalidade moderna e, em consequência, a necessidade para a África ter a coragem de sacrificar a sua história e as suas tradições sobre o altar do desenvolvimento. Esta posição levanta enormes problemas de carácter antropológico, dado que a cultura aparece como uma espécie de acessório vestimental que se pode levianamente despir, e não uma estrutura constituinte da existência humana. Ela levanta também problemas de carácter filosófico, se como Herder56 concebermos a cultura como a segunda natureza do homem, sem a qual a vida do homem não é simplesmente possível. É verdade que a cultura não tem nada de genético, que é intrinsecamente ligada a uma determinada sociedade (Edward Tylor)57 , mas a antropologia (Remotti) demonstrou suficientemente que mesmo se a cultura é uma estrutura precária e exactamente por causa da sua fragilidade e precaridade - ligada ao facto que a cultura só ganha vida através da vida de indivíduos que são diferentes uns dos outros, e ao facto que a simbologia da cultura exige a priori um consenso social, que nunca se obtém completamente – as sociedades reificam as culturas a fim de se protegerem. Por isso, a ideia de um abandono puro e simples da cultura levanta problemas epistémicos enormes. Outros filósofos africanos (W.E. Abraham, M.V.Tsangu Makua, O.A. Onwubiko, P. Apostle, J.B. N’tandou, Y. Assogba, E.R. Mbaya, Tshipanga Matala, A. M. M’bow, C. P. M. Kamala) defendem a compatibilidade entre as tradições africanas e o desenvolvimento moderno. Eles sustentam que o que permitiu a África de sobreviver, não obstante a escravatura e o colonialismo
56
HERDER, Ainda por uma filosofia da história para a educação da humanidade. São Paulo : Ed. Universitarias, 1974, p.111.
57
TAYLOR, E., Culture Primitive. Paris, Seuil, 1974, p.79.
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a que foi sujeita, foi exactamente a vitalidade das culturas africanas. Se essa vitalidade não se manifestou no período pós-colonial e, por conseguinte, não contribuiu para desenvolver o continente, foi devido essencialmente às elites políticas, que manipularam as tradições e as culturas para solidificarem as suas posições de poder. O interesse deste debate reside na sua dimensão crítica, na sua introspecção cultural, e esta não é completamente denuda de interesse para nós. A primeira República moçambicana (1975-1990), em nome da luta contra o tribalismo, tinha pura e simplesmente banido as tradições e as culturas do campo do político. A segunda República (1990-2004), sobretudo por obra de doadores (credores), parece reabilitar as chamadas autoridades tradicionais, sem um debate prévio quanto à sua capacidade de contribuir positiva ou negativamente para o actual curso histórico. De uma maneira mais incisiva, o debate africano interroga-se quanto à capacidade democrática das tradições africanas onde o peso do chefe ou do ancião impediu toda a dimensão de debate de ideias e, em consequência, do desenvolvimento democrático. A filosofia africana interroga-se quanto ao valor estatutário dos mecanismos tradicionais da transmissão do saber que, contrariamente ao modelo democrático do sistema de educação moderno, reserva os seus conhecimentos a uma casta de eleitos, cujo desaparecimento equivale muitas vezes à perda definitiva do saber acumulado. Interroga-se sobre a compatibilidade do sistema familiar africano com as necessidades económicas modernas, dado que sob a aparência de solidariedade, se esconderia, de um lado, um sistema de esbanjamento que impede a acumulação e os investimentos; e do outro, alimentaria um sistema de parasitismo no qual boa parte dos membros da família vive sobre os ombros dos poucos que trabalham. Todavia, na esteira de Eboussi-Boulaga58, podemos pensar a tradição como uma utopia crítica. Isto é, os aspectos acima mencionados relativos às fraquezas da tradição têm que ser tomados a sério. Mas, por outro lado, temos que pensar que alguns aspectos aporéticos da vida política e social
58
EBOUSSI-BOULAGA, La Crise du Muntu. Paris: Présence Africaine, 1979: 45 e 123.
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africana de hoje deixam-se interpelar por aquilo que para o sentido comum constituem o espírito da tradição. O primeiro elemento é a chamada solidariedade africana. Os factos de hoje desmentem a famosa solidariedade africana e fazem dela um mito. Os nossos países têm uma elite económica sempre mais importante, no momento mesmo em que o número de miseráveis progride. Mesmo nos momentos dramáticos, não vimos da parte dos que têm mais meios algum sinal de solidariedade. Os nossos ricos não só não são solidários, mas nós não vimos emergir nem mecenas nem evergetas dedicados a participar na ajuda do bem-estar da maioria. Apesar destes factos, nós continuamos a pensar que o homem africano é solidário. Se pensarmos no espírito da tradição tentando mobilizar os aspectos do passado que podem nos ajudar na nossa aventura em direcção ao futuro (Paul Ricoeur), podemos inferir que a solidariedade deve ser pensada como um dever ser. Insisto, trata-se de mobilizar o espírito da tradição, o que aplicado a este caso, quer dizer que as formas que essa solidariedade deve tomar no quadro da vida moderna. Por conseguinte, uma defesa de um contracto social renovado, que se materializa sob forma de impostos por exemplo, pode apelar-se às teorias clássicas do contracto, desde os sofistas até John Rawls, passando por Hobbes, Rousseau e Locke; mas pode ser postulado a partir do espírito das tradições africanas. Um outro elemento que me parece fundamental é o domínio da justiça. A iconografia envolta da justiça apresenta-nos muitas vezes a justiça configurada numa mulher com uma espada na mão. Mas a verdadeira essência da justiça, que significa tornar possível a relação social e a vida dos indivíduos em sociedade, estaria melhor afigurada na imagem de uma costureira que pega em linhas dispersas e diferentes e cose-as a fim de fazer um todo. Quando pensamos numa sociedade como a nossa, depois dos conflitos que conheceu, quando prestamos atenção ao tribalismo e ao racismo crescentes, o que precisamos é o trabalho paciente e atento de uma costureira que tece, mas fortificando as partes que cose de maneira que o pequeno incidente não rasgue o tecido. Isto significa que é necessário fazer todo um trabalho de carácter ético, mas que não pode prescindir de uma redistribuição de bens materiais.
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Ora, a justiça moderna decide cortando, separando, dividido como um Leviatã, espada na mão. Axiologicamente, o espírito da justiça tradicional é muito mais próximo da costureira. Os estudos da antropologia confirmam (Norbert Roland59 ) que muitos conflitos acabavam (mesmo depois de guerras sangrentas) em casamentos entre vencedores e vencidos; ou na incorporação dos vencidos nos vencedores (Império de Gaza). O último aspecto a relevar, para pensar e propor um modelo político, é uma certa aversão de certas culturas africanas aos sistemas centrais de poder (Pierre Clastre, 1974). O exemplo disto entre nós podia ser a história particular dos Chopes. A filosofia pode ajudar a tomar consciência da necessidade de uma introspecção crítica filosófica sobre o nosso «eu histórico» como ponto de partida a um debate de ideias. A filosofia, antes de lançar-se num discurso sobre o futuro, deve interrogar-se quanto a natureza do colonialismo, das condições históricas, políticas e sociais que permitiram a sua emergência. Da mesma maneira, temos que nos interrogar quanto as razões da escolha do marxismo, sobretudo quanto os sinais da sua decadência eram visíveis; quanto às razões do fracasso de um sistema de não-alinhamento, dos sistemas alternativos como o socialismo Ujaama; quanto às razões endógenas da inviabilização dos Estados Unidos de África prospectada por Nkrumah; quanto à inviabilidade de uma revisão das fronteiras coloniais para criar espaços culturalmente homogéneos (C. A. Diop60 ) ou economicamente complementares (Mamadou Touré61 ). A filosofia deve também interrogar-se sobre a natureza filosófica do liberalismo como foi pensado por Jeremy Bentham (1748-1832), John Stuart Mill (1806-1873), John Locke (1632-1704); as metamorfoses históricas que esta doutrina político-social subiu no curso da história, as diferentes faces que ele tem no mundo de hoje, da maneira como tenta reconciliar o imperativo incondicional da liberdade e a necessidade de um pacto social para que a vida em sociedade seja possível. Temos que nos interrogar quanto a relação 59
ROLAND, N., Anthropologie juridique. Paris, Seuil, 1975.
60
DIOP, C.A., Nation nègre et culture. Paris, Présence Africaine, 1989.
61
TOURÉ, H., Les étudiants africains parlent. Revue Présence Africaine, Paris, 1953.
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entre o liberalismo e a existência do Estado (o nosso é obrigado em esvaziarse das suas funções essenciais), recordando-se que para os pais da economia política como Adam Smith, como para os teóricos que fazem mais referência a filosofia, consideram o Estado uma instituição indispensável para a garantia das liberdades dos indivíduos. Isto tem que nos levar a uma interrogação quanto à relação entre o liberalismo clássico e o neo-liberalismo. Por outro lado, é necessário interrogar a democracia na relação do seu espírito e das instituições que dão ou podem dar corpo aos seus ideais. A filosofia deve poder demonstrar que se o espírito é uno, as formas que a democracia toma nos diferentes países do mundo são múltiplos e dependem de uma aculturação dos ideiais democráticos às diferentes maneiras com as quais os povos entendem e interpretam a sua vida social. Por consequência, no respeito mesmo da democracia, nós temos o dever de tomar a sério a especificidade cultural que nós somos e representamos, e inventar um modelo institucional que se inspira nos substractos culturais das populações. O específico das ciências filosóficas no contexto actual deveria ser a invenção de espaços e de mecanismos de incremento da soberania, quer contra o intervencionismo anti-democrático dos democratas ocidentais, quer, e sobretudo, no trabalho sobre as condições susceptíveis de libertar a imaginação e a criatividade nos africanos, a fim de podermos assumir responsavelmente a nossa liberdade. A «tarefa» da filosofia é não esquecer que a nível interno ainda não somos capazes de ser cabalmente responsáveis pela nossa liberdade. Incumbe-nos, portanto, descobrir e inventar espaços de liberdade concretos, dar material e instrumentos teóricos aos políticos nacionais. A reflexão filosófica africana tem que se situar na intersecção do conflito de soberania entre a soberania externa dos estados europeus e a África; entre a nossa vontade de soberania e a nossa incapacidade de assumi-la; entre a nossa vontade de soberania e a incapacidade dos ocidentais de se libertarem dos seus élans coloniais. Em segundo lugar, ela deve investigar as razões históricas, culturais e sociais que estão na base da nossa fraqueza existencial e as maneiras concretas de combatê-la. A ideia da soberania (liberdade) tem uma validade interna condicionada pelo movimento de participação cultu-
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ral, que comummente se chama «democracia». Esta deve ser internamente garantida por uma cultura política africana que se forja a partir das culturas políticas nacionais e que tenha em conta a preservação e o incremento da soberania africana. A filosofia africana, na sua validade política, deve contribuir para a realização das exigências de justiça. Por conseguinte, filosofar sobre a acção significa interrogar as legitimidades edificadas pelos homens (nacionais e internacionais), e tentar dar palavra às pessoas, grupos e culturas que foram privadas dela até aqui. A filosofia não se pode contentar em justificar o status quo, mas, ao contrário, deve dessacralizar os equilíbrios políticos que parecem únicos. Eis porque eu proponho um contracto cultural, social e político. A democracia comporta duas partes: uma axiológica e outra institucional. A dimensão axiológica repousa essencialmente no princípio da igualdade em direito concebido como uma abstracção para corrigir as desigualdades naturais. Ela impõe, de uma maneira apodíctica e não negociável, o respeito pelos direitos do homem, a igualdade entre os cidadãos e o respeito pela dignidade das pessoas. Se os valores não são negociáveis, as instituições, ao invés, nunca conheceram, na história das democracias, uma forma única. Se os valores têm uma vocação universal, a dimensão institucional da democracia releva da história, das sociedades e das culturas. As instituições, melhor, os modelos institucionais da democracia, podem e devem mudar, podem e devem ser aculturados, aurir a sua legitimidade dos imaginários colectivos, das linguagens das pessoas, da maneira como eles concebem a sua vida social e colectiva. Eis o que eu chamo contrato cultural.
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O DIÁLOGO ENTRE AS CULTURAS ATRAVÉS DA EDUCAÇÃO* José P. Castiano
De princípio pediram-me para que abordasse o tema as Interfaces entre a Cultura e a Educação. Achei o tema muito oportuno sobretudo pelo facto de haver uma crença generalizada, segundo a qual o nosso sistema de educação, de certa forma, anda descalço sem as suas botas, que são as culturas moçambicanas. Por isso, decidi reelaborar o tema para o Diálogo entre as Culturas através da Educação; o sentido desta mudança é para tornar mais clara a ideia principal que quero defender, nomeadamente, que a educação é o espaço institucional epistémico privilegiado para a construção da Identidade Nacional através do cultivo da interculturalidade. O termo ‘interculturalidade’ é crucial para os argumentos que desenvolvo. Assumo a interculturalidade na acepção de Fornet-Bettancourt que diz: «…por interculturalidade compreende-se […] não uma posição teórica, nem tão pouco um diálogo de/e/ou entre culturas […] no qual as culturas se tomam como entidades espiritualizadas e fechadas; senão que interculturalidade quer designar, antes, aquela postura ou disposição pela qual o ser humano se capacita para, e se habitua a viver ‘suas’ referências identitárias em relação aos chamados ‘outros’, quer dizer, compartindo-as em convivência com eles.»62
Adopto esta definição para explicitar a perspectiva educacional na interculturalidade: a formação de atitudes e predisposições no indivíduo que o capacita para o diálogo intercultural; este diálogo entre as culturas é 62
FRONET-BETTENCOURT, R.: Interculturalidade: Críticas, Diálogo e Perspectivas. Nova Harmonia. Campestre, São Leopoldo, 2004, p.12. Texto lido na II Conferência Nacional de Cultura realizada em 2009, Maputo.
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a condição básica para a formação da identidade nacional. Esta perspectiva educacional da interculturalidade (formação de atitudes e predisposições), entendo, deve ter, porém, como pressuposto, uma educação cultural na qual os aprendentes se confrontam com os conteúdos, valores e práticas culturais do seu meio identitário. Por isso, para o meu propósito nesta comunicação, e como sublinha o próprio Fornet-Bettencourt, a interculturalidade, para além de ser uma atitude, é uma experiência ou uma vivência que, por tirar de nossas seguranças teóricas e práticas, permite-nos perceber o analfabetismo cultural do qual nos fazemos culpáveis quando cremos que basta uma cultura, a ‘própria’, para ler e interpretar o mundo. A partir desta definição, aproveito aqui para propor olhar a educação como um campo onde se formam estas mesmas atitudes e predisposições necessárias para formar uma identidade nacional baseada na consciência das diferenças culturais entre os moçambicanos sem, no entanto, menosprezar o cultivo dos aspectos comuns humanos. Repare-se que na tese que formulei falo de Identidade Nacional e não identidades moçambicanas; ou seja, falo no singular porque se trata de um projecto político que visa preservar a nossa moçambicanidade pela qual se deve lutar com todas as energias, incluindo a intelectual. Esta, mais do que teórica, é uma posição política que parte da experiência recente de Moçambique com uma guerra devastadora de dez anos por causa de tendências etnocentristas e divisórias. Falo, portanto, de identidade no singular para me referir à minha aderência ao projecto político de construção de bases culturais que justifiquem o projecto nacionalista, um projecto, a meu ver, libertador. Falo, pelo contrário, de culturas e não de «cultura» nacional, ou seja no plural, para significar que o projecto político de construção da Identidade Nacional só tem sentido no quadro da inclusão de todas as culturas moçambicanas neste mesmo projecto político. A partir destes, consideramos as instituições políticas que criamos, devem ser desenhadas e funcionar por formas a poder responder aos dois imperativos: espelhar a identidade e unidade nacionais e, ao mesmo tempo, comportar ou serem espaços concretos para o desenvolvimento de cada cultura a partir de uma perspectiva de interculturalidade. Em outras palavras,
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o desenvolvimento de cada cultura significa o desenvolvimento de atitudes e experiências que abrem campo para a aderência de cada pessoa às várias identidades ao dispor dos moçambicanos. Por último é importante notar que quando falo de educação, emprego este termo no seu sentido restrito, isto é, no seu sentido formal. Concentrome assim no que comummente chamamos por “sistema de educação” para significar um conjunto de acções institucionalizadas para transmitir às gerações mais novas valores éticos e políticos que precisam como cidadãos e, ao mesmo tempo, um conjunto de competências profissionais que precisam para se sustentarem como indivíduos nas famílias e desenvolverem o país em geral. Nesta definição o peso está no termo acções institucionalizadas porque isso dá ao Governo do dia uma responsabilidade particular na organização de uma educação baseada no diálogo entre as culturas. Vou desenvolver a tese acima anunciada com base em dois argumentos. O primeiro argumento sustenta-se na ideia de que é na educação, em particular na Educação Básica, onde se criam as bases para que o futuro cidadão entre na nação unida com os pés firmes. Por isso a educação a este nível deve ser cultural porque é a cultura que lhe dará estes pés firmes. O segundo argumento sustenta-se a partir da ideia de que é através da educação que se ampliam os espaços de argumentação e se melhora a qualidade dos argumentos; por outras palavras, é através da educação que o aluno pode desenvolver atitudes e experiências como ferramentas necessárias para a sua entrada no diálogo entre as culturas. A ideia fundamental que quero defender, sublinho, é a de que a construção da Identidade Nacional depende, em grande medida, da forma como a educação cria um espaço de diálogo intercultural de qualidade para o desenvolvimento de cada cultura que compõe o nosso país.
Queremos Moral! Na preparação da II Conferência Nacional de Cultura de 2010 foram realizadas as conferências preparatórias em todos os distritos e províncias. Os extractos a seguir reflectem as queixas apresentadas num distrito de Sofala,
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Dondo, numa reunião (Maio 2009) onde participaram, segundo o relatório63 deste mesmo distrito, líderes religiosos, comerciantes, académicos, fazedores de cultura, políticos e outros membros influentes. O sentimento geral destas auscultações é que, actualmente, «há perca da cultura moçambicana», como se pode ler a dado passo: «Os grupos com os quais reflectimos opinam que houve uma evolução cultural em Moçambique precisamente no que concerne aos hábitos e outras formas de manifestação cultural. No entanto há que lamentar a falta de consciencialização no que diz respeito aos aspectos propriamente moçambicanos. Por exemplo, cita-se a perca de valores de cultura africana e moçambicana que se reflecte na forma de vestir, ensinamentos tradicionais, forma de dançar. Esta perca de valor se manifesta como as pessoas vestem que muitas vezes transparecem a nudez, e é permitido na televisão que as pessoas se apresentem desta maneira e dancem com um certo exagero que dá entender um exotismo. Desta feita, estando num mundo globalizado as pessoas chegam a pensar que isto é normal e seguem fielmente esta maneira de viver como se fosse normal, assim aos poucos vamos defraudando a nossa nobre e insubstituível cultura moçambicana».
Parágrafos mais abaixo, já no sentido crítico, aquele documento queixase sobre os curandeiros (médicos tradicionais) que fazem parte da nossa tradição há já longa data. O documento diz que as reflexões feitas indicam que estes médicos nalgumas vezes criam contradições entre famílias e vizinhos porque acusam de feiticeiros a alguns membros de famílias quando não forem sucedidos nos seus projectos ou em caso da existência de alguma doença no seio da família. Assim, para eles, “os curandeiros não contribuem para a harmonia no seio familiar, mas sim para a sua separação”. Num dos parágrafos, o mesmo relatório lamenta a perca da cultura de não trabalhar, aspecto que a comunidade do Dondo considera muito importante mas que é pouco referido no debate sobre a questão da cultura e desenvolvimento, embora o lema da II Conferência Nacional de Cultura seja Cultura como Chave do Desenvolvimento. A justificação aí apresentada refere: 63
Refere-se ao documento Síntese da Auscultação da Comunidade, documento elaborado pelo Serviço Distrital de Educação, Juventude e Tecnologia do Distrito de Dondo, Província de Sofala. Essa síntese foi elaborada no âmbito da preparação da II Conferência Nacional de Cultura para o ano 2009.
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«[que] … é comum no seio dos trabalhadores ter-se a concepção de só assinar o livro do ponto e não efectuar o trabalho que lhe foi confiado. Assim esta pode ser denominada cultura de ‘não trabalho’. Esta forma de manifestação da atitude (…) atrasa o desenvolvimento da economia moçambicana e consequentemente o desenvolvimento social…»
Entretanto, a constatação que julgo ter sido a mais profunda é a que releva a centralidade da cultura para a formação do Homem Moçambicano. O documento diz que a história deste país nos ensinou que o povo moçambicano foi ensinado a negar o mais nobre de si mesmo durante muitos anos pelo colonialismo português. Tudo o que é negro é uma questão de vergonha. Assim imitar o que é do branco ou de outros povos, é bom; por isso mesmo a imitação às coisas estrangeiras tem raízes históricas. E o documento constata que para mudar isto é preciso projectar o homem moçambicano; e acrescenta: o colono projectou o seu homem com as características de ser servo, obediente, vergonhoso de si mesmo. E termina mostrando que o problema está no sistema de educação actual de Moçambique, ou seja, sublinha que não há uma educação moçambicanizada. Queremos moral!, afirma-se sublinhando que é preciso que as pessoas que estejam em frente às nossas crianças apresentem o mínimo de moral.
De como as Culturas cultivam a Educação Comecemos pelas funções da cultura para com a educação. O meu objectivo é mostrar como as culturas “cultivam” a educação. Para isso vamos recorrer às sete funções da cultura desenvolvidas pelo historiador da cultura Ali Mazrui, adaptando-as para o contexto educacional. Digo adaptando em três ângulos: primeiro, porque Mazrui escreveu estas funções da cultura numa perspectiva de análise da geopolítica mundial no contexto da GuerraFria. A adaptação que faço para este texto é, segundo, no sentido de falar de “culturas” e não de cultura, no singular. Por último, a adaptação é no sentido de contextualizar estas funções tendo em conta o sistema de educação em Moçambique.
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Mazrui64 (1990, p.7) identifica as seguintes funções da cultura: [1] como lentes de percepção e de cognição, [2] como base do comportamento humano, [3] como critério de avaliação, [4] como base de identidade, [5] como modo de comunicação, [6] como base para a estratificação (aqui vou empregar o termo diferenciação) social e [7] como determinante para o sistema de produção e de consumo. Vou adoptar estas funções, mas reelaborando a ordem proposta por Mazrui, sem andar muito distante do espírito que ele queria atribuir à cada função. Comecemos pela última, nomeadamente a de que as culturas são determinantes para a configuração do sistema, desta feita, de educação (e não de produção e de consumo como Mazrui). Esta função é a mais simples e a mais profunda, simultâneamente. De facto, a educação é uma parte de cada cultura; no entanto, ela constitui a sua parte especial porque as diferentes culturas criam e desenvolvem seus sistemas de educação para que as próprias culturas não morram. É uma forma de elas garantirem que as gerações mais novas continuem a transportar os seus traços fundamentais e estas, por sua vez, continuem esta tarefa de transmissão. Como veremos, esta transmissão é acompanhada pelas novas gerações por algum grau de inovação, mas isto é matéria mais adiante. Cada cultura, olhando para esta função, deveria, em princípio, alimentar o seu sistema de educação para garantir que ela própria não morra. Olhando porém para Moçambique como país, seria indesejável, mesmo impossível, querer que cada uma das culturas que compõem esta pérola do Índico que é Moçambique tivesse o seu próprio sistema de educação. No entanto, se concentrarmo-nos na função declarada, nomeadamente a de garantir a sua continuidade pelas gerações futuras, então é possível (e imperativo) criar no sistema nacional da educação espaços culturais diferenciados onde cada uma das nossas culturas possa viver e inovar-se. Essa possibilidade de criar espaços culturais deve ser ao nível de políticas e de práticas. Porque, se continuarmos a fazer até como agora, i.e. criar políticas educacionais simpáticas para a diversidade e não investirmos na
64
Cfr. MAZRUI, A., Cultural Forces in World Politics. Heinemann Portmouth, Naiorobi, London,1990, p.7.
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sua implementação prática, corre-se o risco de a educação ser um sistema culturocídio, isto é, que mata as culturas menos bem posicionadas. Passemos para a segunda função da cultura (mais uma vez, na nossa ordem) mormente a de servir de critério de avaliação. Para Mazrui a cultura serve de medida para classificar a acção ou o comportamento das pessoas como sendo bom ou mau, bonito ou feio, moral ou imoral, atractivo ou repulsivo e por aí fora. Em relação à educação esta função é de extrema importância, senão mesmo a fundamental. A educação, antes de ser um lugar onde vamos buscar conhecimento e habilidades profissionais, é antes de nada e sobretudo um processo de confrontação (alguns preferem usar termos como “transmissão” ou “indotrinação”) de valores. As culturas são os espaços onde a educação deveria buscar esses valores. Todavia, a forma como a educação deveria transmitir os valores que pesca das culturas deve ser de confrontação e não de indotrinação e nem de moralização. A confrontação pressupõe uma assimilação dos valores, mas de uma forma crítica e não cega. A este respeito, o filósofo moçambicano Ngoenha pergunta-se: Para quê serve a educação? A quais valores a educação moçambicana deve responder? Qual é o estatuto do saber Moçambicano?65 . De facto, lendo o nosso sistema de educação encontramos uma espécie de melting pot de valores, não estando claro que valores são essenciais tendo em conta a nossa condição cultural em Moçambique. Alguns deles são importados de sistemas educacionais e culturais diferentes dos nossos e apresentam-se, por isso mesmo, de forma não consequente. Como, pois, se quer cultivar os valores moçambicanos (mesmo não estando claro sobre que valores são esses moçambicanos) se nas nossas escolas os jogos tradicionais, os advérbios, as músicas, as canções locais e os seus cantores, a língua em que essas canções são cantadas, as religiões tradicionais, etc. têm um estatuto subalterno e periférico? A terceira função das culturas seria constituir o fundamento da nossa identidade como moçambicanos. Ou seja, é através das nossas culturas que nós manifestamos e renovamos o nosso contrato político de sermos moçam-
65
NGOENHA, S.E., Estatuto e Axiologia da Educação em Moçambique: O Paradigmático Questionamento da Missão Suíça. Livraria Universitária, UEM, Maputo, 2000, p.30.
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bicanos. As nossas culturas oferecem as raízes que precisamos para sermos reconhecidos como moçambicanos no plano da humanidade e da História. Muitas vezes e no seu sentido mais amplo, a identidade de um povo, expressa-se na forma do espírito desse mesmo povo, para falar como Hegel. E a educação é a forma como esse mesmo povo transmite aos mais novos a parte positiva deste mesmo povo. O espírito é o resumo daquilo que um povo é, no pensamento. Alguns exemplos servem para ilustrar o que acabo de formular. Quando se fala do povo alemão nós logo pensamos nos termos de povo de grandes pensadores da filosofia por causa de um Hegel, Kant, Nietzsche, Herder, Einstein e outros que elevaram a cultura alemã ao ponto de ter sido considerada como clássica. Ou quando se fala de americanos podemos exclamar, ah aqueles pragmáticos referindo-nos à ideia geralmente espalhada de que os americanos são muito práticos no que pretendem fazer. Ou ainda quando falamos de moçambicanos podemos enaltecer a ideia de um povo que busca todas as formas para manter a paz e a sua independência arduamente conquistada. Mas também há actos que sucedem na história dos povos que, por serem negativos, servem para vincar a necessidade de mobilizar o espírito positivo. Voltando aos mesmos exemplos, se falamos de alemães podemos muito bem dizer «ah, aquele país de Hitler que iniciou a Segunda Guerra Mundial»; dos americanos «ah aquele país que teve Governo que lançou a primeira bomba atómica em Hiroshima e Nagasaki e forçou a invasão ao Iraque»; de moçambicanos podemos ainda ouvir exclamar, «ah aquele país de calamidades e que esteve envolvido numa guerra fratricida». Nestes casos é o espírito da cultura política de um país, mais do que as culturas particulares e as suas manifestações artísticas, que pesam para a Identidade. Assim, a educação deve centrar-se em cultivar a parte positiva do espírito da cultura nacional e confrontar aos mais novos com as experiências negativas (contravalores) da História. A educação, neste contexto, deveria poder exaltar os valores de paz, democracia, tolerância, justiça social, que são aqueles valores com que todos os moçambicanos se identificam. Se olharmos o nosso sistema de educação na perspectiva da cultura política, então está justificada a pergunta se o nosso sistema de educação já
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esgotou as suas potencialidades para cultivar uma identidade cultural nacional com base em valores positivos desta mesma. Como vemos, esta função de identidade está muito de perto ligada à função de critério para valores. Só que esta se submete mais ao plano da ética política, enquanto que aquela se submete mais ao plano da moral individual. Muito perto ainda da função da identidade (na verdade só as separo por questões analíticas) está a quarta função das culturas: a de modos de comunicação. O conceito comunicação aqui é empregue no seu sentido sociológico, isto é comunicação como coordenação da acção; é interessante notar a coincidência deste conceito com a combinação dos termos «acção» e «comum». Assim, comunicação apela para a clarificação das condições para o tipo de acções humanas que sejam de natureza social e que, portanto, precisam de ser coordenadas, comungadas, enfim, comunicadas. Os modos de comunicação informados pelas culturas são vários, destacando-se o modo que é feito através de uma língua comum; a complementar a língua existe outras formas de comunicação também importantes como a música, a arte, o teatro, a ciência; mas estas todas dependem da língua, melhor, no maior dos casos, usam a língua para fazerem passar a mensagem que pretendem transmitir às sociedades ou para uma parte dela. Aplicado ao sistema de educação podemos dizer que o domínio da língua de ensino pelos alunos tem um papel importante para que os conteúdos de aprendizagem sejam entendidos. Seria impensável que nas escolas do Japão ou da Alemanha, só para dar dois exemplos, as crianças não fossem escolarizadas em japonês ou em alemão respectivamente. Nos países africanos, na sua maioria diga-se de passagem, optaram pelas línguas europeias para o ensino. No nosso caso é o português a língua de ensino desde as primeiras classes até à universidade. A justificação política de Unidade Nacional, ou seja, uma língua que todos podem falar, é historicamente válida, mas nem por isso inquestionável. Se assim fosse há países africanos que são praticamente monolíngues (o Botswana, a Suazilândia, por exemplo) mas que usam o inglês como língua de instrução. Aí não se põe muito o problema de «muitas línguas». De facto o problema está na valorização das línguas nacionais através do sistema de educação e pelas esferas políticas, sociais e sobretudo a sua utilização no mundo da economia e emprego.
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O nosso sistema de educação tem sido ainda muito tímido em tomar decisões corajosas no campo das línguas e as camadas que mais problemas têm com isso são as nossas elites políticas e intelectuais. Neste campo as culturas moçambicanas ainda têm muito a cultivar o nosso sistema de educação. O sistema moçambicano de educação, deve ainda fazer muito para cultivar e valorizar as línguas nacionais ensinando-as, sem isso significar a temida divisão étnica. A quinta função das culturas é a de ser lentes de percepção e de cognição. No que diz respeito ao sistema moçambicano de educação, esta função ajuda a equacionar o facto de os saberes locais e tradicionais (os países anglófonos chamam de saberes indígenas) continuarem, apesar dos avanços, a terem um estatuto periférico, marginal e folclórico na definição dos nossos currículos a todos os níveis. Depois de uma fase muito longa em que estes saberes eram apelidados indiscriminadamente por supersticiosos, o Ministério da Educação em Moçambique, através do INDE, iniciou um processo de introdução dos saberes locais no currículo do ensino básico, o que é conhecido como currículo local. De facto não fazia sentido que aspectos culturais e tradicionais das comunidades onde as escolas estão inseridas (hábitos e costumes, música, danças, jogos, formas de produção, plantas medicinais, plantas venenosas, animais domésticos e selvagens, técnicas e arquitectura de construção de casas, cestaria, latoaria, culinária, personalidade locais, formas de administração local da coisa pública, etc.) continuassem a não fazer parte dos conteúdos que as crianças devem aprender na escola. Até parece que a educação se envergonha das formas de ser do seu povo preferindo entulhar os estudantes de saberes exógenos. Claro que, ao marginalizar os nossos saberes ancestrais da escola, o resultado é que a criança não conheça (reparem bem que emprego o verbo conhecer e não assimilar) as suas tradições e dos seus pais e parentes; o resultado último, porém, é uma criança que cresce sem raízes culturais e, como consequência lógica, não as respeite e nem respeite àqueles que seguem estas tradições, isto é, aos seus pais e parentes. Estes tornam-se pessoas retrógradas aos olhos das crianças. Enfim, as lentes pelas quais as crianças moçambicanas aprendem a olhar, perceber e conhecer o mundo hoje é diferente da lente dos pais e não são dadas as oportunidades de fazerem as suas escolhas culturais
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e nem de aperfeiçoarem as suas mensagens nas línguas moçambicanas. A educação faz um epistemecídio cultural, emprestando um termo usado pelo sociólogo português Boaventura Sousa Santos. A nossa próxima função das culturas – a sexta – é base do comportamento humano. Aparentemente, a forma como nos comportamos parece informada pelo conjunto de motivações, interesses e valores influenciadas pela cultura em que nascemos. Por exemplo, poderíamos supor que a forma como um moçambicano pertencente ao grupo étnico macua conduz ou se comporta (veste-se, cumpre os rituais, etc.) numa cerimónia de casamento, digamos, é diferente como um moçambicano do grupo linguístico Sena, Nhungue ou Betonga. É natural que os pais esperem dos seus filhos um certo comportamento que, na óptica deles, esteja conforme com aquilo que eles julgam serem as tradições da sua cultura. Assim, as aparentemente as culturas emitem motivações, interesses e valores diferentes que informam o nosso comportamento e podem determinar o comportamento que temos.
De como a Educação educa a Cultura Vou, nesta parte, explorar a segunda perspectiva da possibilidade do diálogo entre as culturas e a educação moçambicanas, adoptando desta vez a perspectiva da educação. E aqui, o denominador comum, a tese, a ideia principal a defender é a seguinte: o papel da educação é o de inovar, modernizar as nossas culturas tradicionais; por inovar não quero significar destruir ou ser hostil a elas; quero sim dizer que a educação deve apropriar-se da riqueza tradicional depositada nas nossas culturas moçambicanas e, a partir desta riqueza, propor soluções para os problemas modernos e futuros inspirados pela tradição66; inovar significa que a educação é o espaço privilegiado para que o aluno se confronte criticamente com o mundo de valores, ‘hábitos, costumes, saberes e a língua da comunidade em que ela nasceu ou os pais escolheram67. 66 Cfr. CASTIANO, J.P., Can African IKS provide Solution for Modern Problems? In: INDILINGA, African Journal for Indigenous Knowledge Systems. Vol.4, Nr.2, 2005 (foreword).w 67 Cfr. CASTIANO, J.P., African Indigenous Knowledge in Education Today. In: HOUNTONDJI, P. (Ed.).: Traditional Knowledge and Modernity. Benin. 2009, pp.101-120.
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Devo dizer antes que sublinho o termo confrontar-se criticamente. Por ‘confrontar-se’ quero sublinhar o elemento cognitivo da aprendizagem, isto é, que o aluno tenha a oportunidade de conhecer as tradições (valores, hábitos, costumes, saberes, língua) que a sua comunidade segue; esta oportunidade deve ser-lhe proporcionada pela escola. Por seu lado, o termo ‘criticamente’ quer significar que ao aluno se devem dar as ferramentas e a liberdade de perguntar o porquê? das tradições; assim, ele próprio estará em condições de escolher, duma forma consciente, a identidade do conjunto de identidades possíveis na sociedade moderna moçambicana e global. Desta forma, pensamento crítico significa, para mim, aquele que não reduz a realidade à necessidade, mas sim vê a realidade como um campo de possibilidades, de contingências. Depois destas observações preliminares, concentro-me, agora nas ‘funções’ da educação para com as culturas moçambicanas. Por uma questão de coerência, vamos seguir o mesmo roteiro do ponto anterior. Em relação à função de as culturas serem determinantes para a configuração do sistema de educação: como referimos acima, todas as culturas produzem, no seu interior, um sistema de educação com vista a garantirem a continuidade das suas práticas, saberes e valores; neste sentido a educação tem um papel de reprodutora do sistema cultural. Mas, como todos sabemos, os professores, os alunos e toda a estrutura dos sistemas de educação, não reproduzem simplesmente o que as culturas nos parecem estar a ditar. Por sua vez, a educação, por ser um sistema dinâmico, tem a função de inovar esses valores, saberes e práticas ditadas pela cultura. Neste passo, convém destacar que nenhuma tradição é em si estática. As tradições evoluem no sentido de adaptarem-se às transformações sociais, económicas e às mudanças ambientais que os grupos que professam uma determinada tradição sofrem. E estas adaptações às transformações são melhoradas pela educação. Se os membros da comunidade tradicional forem submetidos à educação, estarão em condições de adaptarem as suas práticas e saberes aos novos desafios colocados pelo progresso do conhecimento sobre os fenómenos naturais, sociais e económicos. Dois exemplos podem bastar para ilustrar o papel inovador da educação em relação aos sistemas culturais.
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É sabido, por exemplo, que na região centro de Moçambique, principalmente entre os Senas, existem as cerimónias do Pita Kufa; esta cerimónia consiste em a viúva ser tomada pelo irmão do seu falecido marido para garantir a sua protecção social e económica por parte da família do defunto. Ora, o ritual tradicional, suposto acompanhar esta cerimónia, é a prática de relações sexuais entre a viúva e o novo marido que toma a ela e aos filhos sob sua protecção. Porque ultimamente se avolumam causas de morte de homens por causa do SIDA, há cada vez mais consciência entre as pessoas que esta cerimónia representa um vector de transmissão desta doença. O resultado era toda uma família infectar-se e não se cumprir a função social desta cerimónia que é, como dissemos, a protecção social da viúva e a guarida dos filhos. Numa pesquisa de campo que fiz, fiquei a saber que em muitas comunidades não se consuma, de facto, a relação carnal durante a noite de núpcias. Os nubentes somente dormem no mesmo recinto ou compartimento simbolizando este acto uma união e um compromisso. Assim, não se acabou com a tradição do Pita Kufa, senão que se manteve o seu valor simbólico (ao pernoitarem ambos nas mesmas divisões) retirando-se o possível vector de transmissão do SIDA. Também soube que, naquela região, a escola foi determinante para disseminar esta inovação. Um outro exemplo, desta feita da área das construções. Quando os antropólogos europeus chegaram a África, notaram que estes fazem muitas coisas usando o círculo: são as casas, as danças, o sentar para resolver assuntos sérios e por aí fora. Então, por qualquer coincidência, as casas circulares transformaram-se em nossos símbolos de construção, a nossa arquitectura. De uns tempos para cá, nota-se muitas construções (principalmente os lodges) que mantêm esta arquitectura circular fazendo reconhecer a qualquer cidadão do mundo que se trata de um modelo africano. Mas estas casas redondas já são feitas com tijolos e têm canalização e energia eléctrica no interior. Também já têm divisões por dentro. Ou seja, e este é o ponto, o ensino técnico profissional pode transmitir aos mais novos a inovarem as tecnologias da construção das casas mas sem eliminar a arquitectura tradicional africana. Em ambos casos, podemos notar que a escola pode jogar um papel importante na transmissão de capacidades e competências para a melhoria das condições de saúde preventiva (no primeiro caso) e das condições habi-
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tacionais (no segundo caso) sem no entanto se abandonarem a essência das tradições. No fundo, o que quero dizer é evidente: a escola tem um grande potencial de educar as culturas a melhorarem os componentes do seu sistema, ou seja, a inovarem-se. As culturas não morrem, mas tornam-se mais fortes para oferecerem soluções para os problemas modernos. Em relação à segunda função mencionada (critério de avaliação), destacamos o facto de ser nas culturas onde se deve ir buscar os valores a partir dos quais se alinham os conteúdos programáticos, ou seja, se desenham os curricula. A escola deve criar espaços formais e implementar metodologias apropriadas para que os mais novos se confrontem criticamente com estes valores. Em fim, a escola deve submeter estes valores à prova dos desafios modernos que se colocam aos indivíduos e às comunidades. Como a Agenda 2025 destacou, a educação deveria promover valores tradicionais familiares (espírito do ubuntuismo, de ajuda mútua, de solidariedade, de harmonia e respeito) ao mesmo tempo que cultiva os valores nacionais mais altos de patriotismo, auto-estima, paz, diálogo e reconciliação entre os moçambicanos, valores estes que estão profundamente enraizados nas diferentes culturas moçambicanas. Entretanto cabe à educação não só ensiná-los, isto é, levar ao aluno a assimilá-los, senão sobretudo a ajudar ao aluno a reconhecer nesses conteúdos potencialidades para enfrentarem a sociedade moderna. As reflexões que a educação pode ajudar aos alunos a fazerem são, por exemplo, as seguintes: o que significa aproveitar o espírito tradicional de solidariedade no contexto de busca de justiça social hoje? Como fazer com o espírito de ajuda mútua seja o guia da acção governativa? O que significa uma gestão corporativa adoptando como o seu substrato o espírito do ubuntuismo?
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Outros aspectos de ética mais tradicional que merecem uma confrontação mais individualizada são: porquê devemos respeitar aos mais velhos? Quais são os actos que demonstram respeito?68 Que razões estarão por trás deste valor respeito? Qual é a justificação para a mulher ser tratada diferentemente nas sociedades tradicionais? Será que elas têm alguns direitos naquelas sociedades? Quais são? Ou seja, o que queremos destacar é a necessidade da educação, em relação a esta função, ter um papel crítico (no sentido que disse acima) com o intuito de dar oportunidades e criar espaços formais visíveis para que cada aluno possa escolher as suas próprias opções identitárias no mosaico das existentes como possibilidades. O que as culturas aprendem com esta confrontação de valores? Aprendem elas próprias a olharem-se no espelho não na base de superstição, mas como sistema que cada vez mais se consolida com a sua abertura ao escrutínio da razão. No que diz respeito à função das culturas como base de identidades é preciso destacar que, com a modernização e com a mobilidade social daí resultante, não existe coincidência necessária entre as culturas na perspectiva das tradições, e os padrões de comportamento resultantes da pertença às culturas nas outras perspectivas que não sejam tradicionais; tais outras perspectivas identitárias são hoje, por exemplo, religiosas, profissionais, políticas, geracionais ou ainda determinadas pelo estatuto social ao qual cada membro da sociedade pertence. Estas identidades são transversais, ou melhor, «plurais» como o diz Amartya Sen, no seu livro Identidades e Violência.
68
Numa entrevista realizada em 2006 numa escola primária do distrito do Dondo, Sofala, um grupo de pais e encarregados de educação queixava-se sobre as crianças “de hoje” dizendo que “não respeitam aos mais velhos”. Quando perguntei quais seriam os sinais ou manifestações da falta de respeito, em resposta, deram-me os seguintes exemplos: as crianças não dão lugar aos mais velhos nos locais de falecimento em particular, fazem barulho quando passam pelos locais de falecimento, não respeitam os cemitérios e outros lugares sagrados, levantam a voz quando falam com os mais velhos, não ajudam aos mais velhos nos trabalhos de casa, etc. estes eram, para eles, os “sinais de respeito”. Quase tudo girava em volta das necessidades dos mais velhos e pouco dizia respeito às preocupações das crianças mesmo, como seja, o direito de brincarem, de jogarem, de serem ouvidas, de perguntarem, etc. é aqui onde a escola deve, para além de confrontar às crianças com uma espécie de código de ética “do respeito aos mais velhos”, deve também introduzir a temática dos direitos da criança tomando a partir da perspectiva tradicional.
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Sen expressa o seu temor de as identidades serem aproveitadas para a acção política da seguinte forma: «De facto, uma das principais fontes potenciais de conflito no mundo contemporâneo é o pressuposto de que as pessoas podem ser classificadas unicamente com base na sua religião ou na sua cultura. Acreditar no poder alargado de uma única classificação pode tornar o mundo altamente inflamável. O mundo é muitas vezes considerado como um conjunto de religiões (ou de civilizações, ou de culturas), ignorando as outras identidades que definem e valorizam as pessoas, e que envolvem a classe, o género, a profissão, a língua, a ciência, a moral e a política. O carácter redutor das teorias baseadas num só critério de classificação pode contribuir, muitas vezes inadvertidamente, para a violência da acção política69» Por consequência, seria perigoso que a educação procurasse restringir-se a interpretar o comportamento individual ou de grupos somente a partir do conceito restritivo de cultura como sendo hábitos e costumes no âmbito dos grupos étnicos. Muitas vezes, no mundo de hoje, não é a pertença a uma cultura específica que constitui a matriz para a leitura de comportamento e gostos. Acima da função da educação como possibilidade de levar os mais novos a escolherem as suas identidades, esta outra politicamente mais sublinhada: como construir o projecto da identidade nacional sem passar por cima das culturas particulares e quais são as possibilidades e as condições da educação poder ser o espaço privilegiado de interculturalidade para a construção duma identidade nacional mas que mantenha e dê oportunidades institucionais para que se desenvolvam as singularidades culturais? Neste ponto quero destacar que a função da educação é, em primeira linha, inserir o aluno do nível básico na sua cultura onde ele ganhará os pés firmes para entrar no palco do contrato político nacional; nesta inserção está, naturalmente, contado o ensino de línguas maternas não só na sua perspectiva instrumentista70 como hoje se faz no ensino, mas sobretudo na perspectiva 69
SEN, A., Identidade e Violência. A Ilusão do Destino. Edições Tinta-da-China, Lisboa, 2006, p.20.
70
Refiro-me ao facto de a introdução de línguas maternas no ensino básico em Moçambique ser feita em função do desenvolvimento das competências linguísticas para o uso exclusivo do português como língua de instrução nos níveis superiores. Na prática se está a “instrumentalizar” as línguas maternas para a aquisição do português como finalidade.
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de desenvolvê-las no quadro da inovação. Assim, acoplada a esta função de inserção na cultura (que os sociólogos prezam em chamar socialização), está o papel que a educação tem de desenvolver as culturas particulares. O termo desenvolver, neste caso, significa a educação poder proporcionar ao aluno a oportunidade de conseguir comunicar-se e argumentar a partir do seu ponto de vantagem de informações e saberes: a sua própria cultura. Tecidas as considerações acima, é mais fácil agora abordar a questão da língua como meio de comunicação, neste caso concreto como meio de instrução. E aqui os debates são acesos. Pois a questão é a seguinte: se os nossos contos, as nossas canções, as nossas negociações familiares, os nossos provérbios, a nossa forma de ser e estar no mundo, tudo isso é expresso ou (para a maioria dos moçambicanos) usando a respectiva língua materna como meio de comunicar e agir, ou usando permutadamente a língua materna e a língua portuguesa, então uma pergunta lógica se coloca: porque é que nas nossas escolas (e, consequentemente, nas instituições públicas como o parlamento, a administração, etc.), apesar da independência conquistada, ainda continuamos a usar somente o português? O que justifica isto? Frantz Fanon, no seu livro Pele Negra, Máscaras Brancas, dá grande importância à nossa atitude perante a língua nativa e do colonizador. Para ele, falar é existir completamente para o outro71 , querendo expressar com isto que o colonizado (black man), quando fala, a sua linguagem tem duas direcções segundo as circunstâncias: uma dirigida aos seus compatriotas negros e outra dirigida ao colonizador, tentando imitá-lo; esta outra demonstra que por trás do aparente complexo de superioridade que o colonizado tem quando mostra dominar com mestria a língua do colonizador, esta atitude é, pelo contrário, motivada pelo complexo de inferioridade; segundo ele, é que o negro colonizado pensa que só pode ser homem civilizado falando a língua do colonizador e imitando o estilo de vida dele. Para Fanon é esta atitude para com a língua própria que se deve combater; esta posição de Fanon compreende-se a partir do conceito geral que ele tem do colonialismo quando ele afirma que …”o problema do colonia71
Cfr. FANON, F., Black Skin, White Masks. Grove Weidenfeld, New York, 1967, p.17.
72
Idem, p.84.
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lismo inclui não somente as inter-relações da condição histórica objectiva mas também as atitudes humanas perante estas condições72”. O agarrar-se à língua do colonizador é uma patologia, segundo Fanon. Esta atitude de auto-inferiorização descrita por Fanon é compreensível no contexto em que Frantz Fanon a descreveu, ou seja, no contexto de dominação política e cultural colonial. Hoje, a caminharmos para quatro décadas depois da Independência de Moçambique e do derrube do poder colonial, deve reconhecer-se que torna-se difícil conseguir argumentos plausíveis que possam justificá-la. O problema está nas nossas mãos como membros da elite moçambicana com mentalidade ainda não descolonizada, especialmente no que se trata à nossa atitude perante estas línguas. A atitude inferiorizante da elite moçambicana perante as suas próprias línguas maternas é o que justifica a falta de coragem para se tomarem grandes decisões em termos de política linguística na educação. Penso que aqui falta uma grande decisão política em relação ao uso das línguas maternas na escola. Mas o uso delas é somente uma parte da moeda porque, quando assim pensamos, partimos do pressuposto que as crianças conhecem as suas línguas. Acho porém que o grande salto de coragem que a educação deverá fazer é ensinar estas línguas em todos os níveis, assim como faz com o português. Assim, a educação estará em condições de fazer com que as diferentes culturas reaprendam a sua própria língua e, por sua vez, desenvolvam as diferentes expressões de manifestação cultural (literatura oral, provérbios, canções) e também a capacidade destas línguas entrarem no debate político. Temos que nos desvestirmos, pois, do matope (lama, em xiSena) da alienação colonial de que as nossas línguas servem somente para cantar e dançar, mas não servem para ensinar as nossas crianças a escreverem nos computadores, os nossos deputados a falarem no parlamento e os nossos adultos a preencherem requerimentos para solicitar terreno para machambas ou construção. A educação, e em particular as universidades, devem jogar um papel decisivo neste desafio de desenvolver as línguas nacionais originárias de Moçambique; o seu papel específico seria, para além de investiga-ção, formar professores e desenvolver os cursos e programas escolares.
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A quinta função das culturas que foi objecto acima é a delas servirem de lentes de percepção e de cognição. Como dissemos, este aspecto se refere à necessidade de introduzir os saberes locais na sala de aula. Mais uma vez, a educação é chamada aqui não somente a ajudar ao aluno a absorver os saberes locais mas sim ensinar este a ser crítico perante os saberes de natureza local. Como irei desenvolver exaustivamente este aspecto no último ponto deste artigo, basta a esta altura sublinhar que é o professor que deve poder trazer estes saberes para a sala de aulas e para isso ele precisa de muita ajuda, não podendo ser deixado sozinho. O facto de ter sublinhado a importância que tem a educação no desenvolvimento das línguas nacionais não é contraditório ao papel da educação na construção de identidades plurais, no sentido de Amartya Sen. Bem pelo contrário, se tomarmos em conta que a função das culturas é a de desenhar padrões do comportamento humano (a sexta função no sentido de Mazrui), quanto mais se desenvolverem as culturas singulares, mais padrões de comportamento haverá para as nossas escolhas. O que é fundamental é a educação ser institucionalmente o acervo das matrizes disponíveis de escolha desses padrões do comportamento. O mais importante ainda é a educação concentrar-se no desenvolvimento de atitudes abertas aos outros padrões na mesma medida que confronta criticamente ao aluno com os seus padrões locais. A sétima e última função das culturas, a da estratificação social, é somente visível combinada com a educação; ou seja, as pessoas, mesmo que sejam do mesmo grupo linguístico cultural, são classificadas socialmente na base do saber. Nas zonas urbanas e no país em geral, quando alguém termina o ensino superior, tem já o passaporte mais facilitado para o mercado de trabalho, para a política, para o acesso a uma boa remuneração, do que os seus concidadãos que não fizeram um curso superior. Paradoxalmente, no entanto, é através da educação que existe a possibilidade e a condição institucional de fazer com que estas desigualdades sócias não coincidam com as culturas moçambicanas e perigar assim um verdadeiro diálogo entre as culturas.
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Possibilidades de Diálogo entre as Culturas A este passo é importante explorar duas possibilidades de organizar o diálogo intercultural na educação, nomeadamente a possibilidade institucional e a possibilidade curricular. Vou explorar estas duas possibilidades com base nas observações que fiz nas províncias de Sofala, Manica e Inhambane. Por possibilidade institucional quero sublinhar a dimensão do desenho da relação entre as instituições que cuidam dos processos da educação e aquelas que cuidam da parte cultural. Por possibilidade curricular pretende-se evidenciar as diferentes formas de integrar os saberes locais culturais nos programas do ensino. As duas dimensões, longe de serem concorrentes, complementam-se.
Possibilidade Institucional A história da relação institucional entre a educação e a cultura em Moçambique está repleta de casamentos e divórcios. Depois da Independência de Moçambique, mais exactamente em Fevereiro de 1976 forma-se o Ministério de Educação e Cultura (MEC) que desdobra em Direcção Provincial de Educação e Cultura (DPEC) nas províncias e Direcções Distritais de Educação e Cultura ao nível dos distritos. Dentro do MEC a cultura era administrada por uma Direcção Nacional de Cultura. Este casamento institucional durou pouco, pois, de 1977 a 2004 o MEC dissolve-se em Ministério da Educação (MINED) e Ministério da Cultura (MINEC). Ao nível provincial e distrital havia um desdobramento das funções de cultura e educação pelas suas respectivas direcções distritais. A partir de 2004 a cultura e a educação voltam a casar-se formando o Ministério de Educação e Cultura (MINEC), voltando, portanto, ao modelo de 1976; da mesma forma a gestão do ensino superior regressa para o MINEC. Ao nível das províncias criam-se as DPECs e, ao nível dos distritos criam-se primeiro os Serviços Distritais de Tecnologia, Juventude, Cultura e Educação que cobrem as áreas da juventude, desportos, ciência, tecnologia e
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educação.73 Ou seja, ao nível distrital encontramos a cultura a ser, pelo menos na intenção, a base não só da educação, mas também dos assuntos juvenis e da tecnologia. Este casamento distrital, segundo alguns depoimentos, é o mais problemático neste momento. Mais devido ao modelo socialista de monopólio e hegemonia estatal de fazer política do que pela junção da educação e cultura no MEC, no período após a Independência era notável, no quadro da construção de uma Identidade Nacional, o esforço em promover o intercâmbio cultural entre os moçambicanos, particularmente entre os jovens. A organização de encontros interprovinciais entre os jovens, que implicam viagens programadas, era frequente; no campo da educação eram frequentes a formação de grupos culturais nas escolas que, em nome da unidade nacional, tinham que executar todo o tipo de danças existentes em Moçambique ou cantar a maior parte das canções revolucionárias que eram mesmas ou do mesmo formato do Rovuma ao Maputo. Os jovens da chamada Geração 8 de Março, hoje muitos deles nas rédeas das instituições ao mais alto nível, sabem dançar tanto xigubo como libondo, makwaela como o makwai, o mapico como a varimba, independentemente da sua proveniência. O mesmo sucede com as canções populares. Hoje – queixa-se um professor de Inhambane – os alunos não dançam no âmbito das aulas e nem querem saber disto; não é como antigamente quando na escola cada turma tinha um grupo cultural ou pertencia a um grupo coral da escola. A cultura aparece como um apêndice da educação. Embora ao nível macro nacional o casamento institucional entre a cultura e a educação pareça estar a ser feliz, ao nível local do distrito e de cada escola não parece ser de idêntica sorte. E isto pode avaliar-se pelos resultados que obtive em algumas observações e entrevistas. Segundo as entrevistas que fiz mostra-se que, ao nível do distrito, muitas vezes se pega em alguém, por saber dançar, pensa-se que pode chefiar a repartição que trata das questões culturais na Direcção Distrital, não tendo porém uma formação especializada para gerir o sector da cultura. 73
Nos últimos anos do apartheid na África do Sul, os assuntos da educação e da cultura eram administrados pelo Department of Education and Culture. Quando em 1994 Nelson Mandela sobe ao poder, forma o Ministry of Education e o Ministry of Arts and Culture separando assim institucionalmente a gestão da cultura e educação. Esta estrutura predomina até hoje.
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Da mesma forma, desta feita ao nível da escola, parece haver alguns problemas em fazer interessar aos pais e membros das comunidades a ensinarem danças e canções aos seus próprios filhos. Se por um lado os pais e encarregados de educação exigem alguma remuneração pelo seu tempo e material, por outro, algumas danças, se não forem salvas através da educação, correm o risco de desaparecerem. Foi-me dado o exemplo da dança zore, praticada em alguns distritos da província de Inhambane, tende a desaparecer porque é neste momento praticada somente pelos velhos e não integram aos mais novos para aprenderem talentos dos mais velhos. O que também não ajuda muito na relação entre a escola e a cultura é a atitude dos pais e dos encarregados da educação perante a dança e a música que não incentiva a participação das crianças naquelas actividades: tocar viola ou dançar são vistas como actividades de ‘bandidos’ ou de ‘perca de tempo’, especialmente para as meninas, disse-me um professor. Estes pequenos exemplos deixam-nos concluir que, embora na perspectiva institucional o casamento entre a cultura e a educação ao nível nacional esteja a ser, de certa forma feliz, já ao nível dos distritos e das escolas a ligação institucional entre as comunidades e a escola, pelo menos na sua vertente de ‘ligação curricular’, deixa ainda muitos desafios pela frente para que seja também feliz. São esses desafios que são matéria do próximo ponto que vou tratar, isto é, a possibilidade de o currículo local ser a ponte curricular entre as culturas e a educação.
O Currículo Local como Possibilidade de Interculturalidade Para além do casamento institucional entre as culturas e a educação, a mais profunda porém, é aquela que se verifica ao nível dos saberes, valores e práticas (ligação curricular). É sobre esta dimensão da possibilidade de diálogo que me vou referir de seguida, explorando as possibilidades de aprofundamento do diálogo entre as culturas e a educação que o currículo local oferece ao sistema de educação. Mais adiante, vou analisar estas possibilidades de diálogo à luz de conteúdos concretos. Antes, porém, algumas considerações históricas e avaliativas sobre o processo de introdução do currículo local.
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Há sensivelmente sete anos, com a introdução do Novo Currículo para o Ensino Básico em Moçambique, foi criado um espaço para as crianças se confrontem nas escolas com os conteúdos locais. Estou a falar da introdução do currículo local como uma das inovações do novo currículo escolar. Formalmente, os conteúdos locais devem ocupar um quarto (1/4), ou 20%, do tempo total destinado para uma determinada disciplina. Quer dizer que os professores devem trazer para a sala de aulas aqueles conteúdos que a comunidade onde a escola está, ter-lhes-à dado a sua responsabilidade social de ensinar esses conteúdos de uma forma também responsável. A minha avaliação, que se segue, sobre a evolução desta inovação cultural muito importante no nosso sistema de educação baseia-se no acompanhamento que venho fazendo sobre a implementação do CL nas províncias de Sofala, Manica e Inhambane desde 200374 . A minha primeira avaliação sobre o processo foi a de reconhecer que, se as ideias do currículo local forem bem aplicadas, esta inovação é de facto uma revolução cultural no nosso sistema de educação75 . Este juízo baseouse no facto de ser pela primeira vez que no nosso sistema cria-se um espaço formalmente reconhecível (refiro-me aos 20% de tempo) para que conteúdos de natureza local entrem oficialmente na escola e os alunos possam também oficialmente aprender e serem avaliados na base deles. Para mim o currículo local representa uma oportunidade ímpar do sistema de educação fazer com o que os alunos se confrontem criticamente com 74
Cfr. CASTIANO, J.P., O Currículo Local como Espaço Social de Coexistência de Discursos. Estudo de Caso nos Distritos de Bárue, de Sussundenga e da Cidade de Chimoio. In: Revista-Curriculum. Dez. Ano/Vol.1, Nr.001. PUC São Paulo, Brasil, 2006.
74
Agradeço à GTZ/PEB que me permitiu, por intermédio da consultoria na implementação do currículo local nas províncias de Sofala, Manica e Inhambane, ter beneficiado de estadias prolongadas em quase todos diferentes distritos e escolas localizadas nas três províncias o que possibilitou inúmeros encontros com os professores e gestores do sector de educação. Um agradecimento especial à Adla Barreto que, durante muito tempo, foi o “ponto focal” do currículo local e, nesta qualidade, “cúmplice” de muitas reflexões e ideias. Ela entregara-se ao currículo local em Moçambique, como o teria feito (não me atrevo a dizer “mais do que teria feito”) no seu próprio país, Cabo Verde.
75
Cfr. CASTIANO, J.P., O Currículo Local como Espaço Social de Coexistência de Discursos. Estudo de Caso nos Distritos de Bárue, de Sussundenga e da Cidade de Chimoio. In: Revista-Curriculum. Dez. Ano/Vol.1, Nr.001. PUC São Paulo, Brasil, 2006.
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os conteúdos locais, tradicionais e culturais do seu meio; é a oportunidade que o conhecimento local e tradicional tem de revelar as suas potencialidades de, de forma argumentativa, mostrar soluções alternativas para os problemas modernos. Quando falo de problemas modernos refiro-me à pobreza, ao SIDA, à nossa configuração democrática representativa, ao nosso sistema de eleições, à nossa medicina, ao desenvolvimento da música e arte, à formas de interpretação dos fenómenos sociais, naturais e políticos de Moçambique, à nossa própria educação, enfim, para todas as áreas da vida social, económica e política. O princípio é que para todas estas áreas o conhecimento local tem propostas de soluções que podem ser estudadas na escola e confrontadas argumentativamente pelos alunos, com a mediação do professor, naturalmente. Para garantir que isto se faça, os professores de cada escola do ensino primário foram organizados em grupos para entrevistarem aos membros das comunidades, aos pais e encarregados de educação, às instituições formais locais (saúde, economia, desporto, etc.), às autoridades locais e outros intervenientes interessados na vida da escola. Estas entrevistas eram para aferir os conteúdos que o INDE classificou de relevantes para a vida do aluno e da comunidade. A ideia do INDE e, por extensão do MEC, ao introduzir o currículo local, era de garantir que o aluno, após ter terminado o ensino básico pudesse reinserir-se na sua comunidade sabendo fazer qualquer coisa para a sua própria vida. Então, o termo relevante referia a esta possibilidade. Não admira pois que, nos primeiros anos da sua implementação, quase todos os professores e direcções pedagógicas das escolas pelo país adentro, tivessem interpretado o currículo local reduzido ao saber fazer, ou seja, ao conteúdo da disciplina de Ofícios (que, por coincidência foi uma das inovações introduzidas com o novo currículo). As outras dimensões da educação, nomeadamente o saber saber, o saber ser e o saber estar com os outros ficaram praticamente ofuscadas no desenho dos conteúdos que iriam fazer parte do currículo local. Nos primeiros anos o currículo local correu o risco de ser reduzido a levar as crianças a aprenderem alguns ofícios como carpintaria, fazer blocos, latoaria, fabricar potes e panelas, etc., ou seja, a aprenderem algumas profissões que lhes permitiriam sustentar-se. Mas há ainda um problema de maior profundidade que iria emergir a meio do caminho da implementação: a preparação dos professores primários
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para este desafio, mormente para a elaboração de textos didácticos na área do currículo local. Os professores necessitavam de apoio na transposição didáctica, isto é, no ‘transporte’ dos conteúdos locais relevantes em matérias ‘ensináveis’ na sala de aulas. A questão é: como transportar estes conteúdos da comunidade para a sala de aulas produzindo textos usáveis na sala de aulas? Para esta tarefa parecia que os professores estavam abandonados à sua sorte. Para ser efectiva a implementação do currículo local tornara-se necessário, primeiro, capacitar os professores em matérias de metodologias apropriadas de recolha dos conteúdos locais (preparar entrevistas com os pais e encarregados de educação, com as autoridades locais, fazer anotações das suas observações, programar visitas às instituições locais, etc.). Em segundo plano era necessário ajudar aos professores a construírem grelhas curriculares onde os conteúdos locais recolhidos nas comunidades e no seio dos pais e encarregados de educação são inseridos nas respectivas unidades didácticas do currículo nacional. Num terceiro plano era necessário sugerir e desenvolver sugestões metodológicas específicas de ensino dos conteúdos do currículo local. Num quarto plano, e talvez o mais importante, tratar-se-ia de ajudar aos professores em matérias de transposição didáctica para a elaboração de textos didácticos relativamente ao currículo local. O INDE, num esforço de apoiar aos professores na determinação dos conteúdos e na sua leccionação, elaborou o Manual de Apoio ao Professor para a Implementação do currículo local na Sala de Aulas. Neste manual estão propostos os temas que devem fazer parte das brochuras do CL de cada escola. Os temas propostos no manual são: tema 1: Cultura, História e Economia Local; tema 2: Educação de Valores; tema 3: Ambiente; tema 4: Agropecuária; tema 5: Saúde e Nutrição; e tema 6: Ofícios. Em seguida vou analisar os conteúdos levantados em cada um dos temas. A análise tem como base todos os esboços dos manuais do currículo local de todos os distritos das províncias de Sofala, Inhambane e Manica. Os esboços dos manuais do currículo local que servem de base para este artigo são da versão de Dezembro 2008. Neste momento estão em revisão linguística e alguns conteúdos estão a ser revistos. Mas a sua tendência mantém-se e isso não vai retirar a validade das observações que se seguem aos temas se considerarmos a perspectiva analítica que se pretende dar nesta palestra.
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Cultura, História e Economia Local Os conteúdos integrados neste tema são sobre danças, canções tradicionais, jogos tradicionais, instrumentos musicais tradicionais, história local, economia local, mitos e ritos, locais sagrados, literatura oral e artes plásticas. Ao observar os textos deste tema nota-se que a maior parte deles dizem respeito à História da minha Escola e História da minha Comunidade que são agrupadas no subtema História Local; a razão mais forte da super presença destes conteúdos neste tema prende-se com o facto deles já fazerem parte integrante do Currículo Nacional, que é obrigatório para o todo o país. Porém, uma boa parte dos textos que reportam a história local são escritos numa perspectiva eurocêntrica da História de Moçambique: geralmente, começam por dizer que o fundador ou a pessoa que deu nome a uma certa região, cidade ou mesmo montanha são portugueses quando chegaram àquela região sem, no entanto, fazer-se alguma referência ao nome anterior que os próprios habitantes locais davam ou ainda dão ao mesmo local. Em alguns casos, mesmo que o nome local esteja patente, a tendência é ver o acto fundador no momento da escrita ou registro do nome quando o português perguntasse aos locais como se chama esta região. Uma outra característica observada nos textos históricos prende-se com o facto de os professores limitarem-se a usarem uma única fonte de informação para descrever factos históricos ou sociais locais, geralmente sendo esta fonte a que se considera ser oficial (organismos de estado ou estruturas partidárias do partido no poder76 ); a dificuldade em diversificar as fontes pode provir de dois problemas: por um lado a diversificação de fontes implicaria deslocações e disponibilização de meios e tempo para os professores envolvidos; a outra causa, que julgo ser a fundamental para este caso, é falta de cultura de confrontação de fontes pelos professores; pois, sendo esta a primeira oportunidade que se lhes oferece para elaborarem os textos de apoio 76
Numa das entrevistas, Carlitos D. Uire, na altura Chefe da Secção dos Serviços Distritais de Educação, Cultura, Juventude e Desportos de Chibabava, disse criticando a falta de diversificação das fontes: «A comunidade não é só o régulo; a escola pertence ao cidadão». Por isso, para ele, era importante encontrar o maior número possível de fontes para fazer os textos do currículo local: «é preciso envolver os professores, alunos, representantes das comunidades, profissionais de diferentes áreas, líderes políticos locais, médicos tradicionais, diferentes instituições, etc.»
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por eles mesmos, não tendo eles beneficiado de uma formação metodológica adequado ao desafio do currículo local e adicionando a isto os considerandos políticos locais – principalmente na província de Sofala onde a guerra entre os soldados do Governo e da Renamo foi particularmente forte – os professores quase que se sentem desamparados pelas estruturas que lhes dera a missão trazer elementos culturais para a sala de aulas. O segundo conteúdo mais frequente neste tema é o que descreve as danças tradicionais locais; notei que há pouca informação relevante para a elaboração de um texto didáctico que possa servir de base para transmitir às novas gerações este momento cultural importantíssimo na vida cultural das diferentes comunidades; exemplos de informações que falta são: em que ocasião se dança? Qual é o sentido de danças? Qual é o vestuário específico? Qual é a letra das canções? Há festivais regulares de manifestações culturais, quando se realizam? Um outro grupo de problemas colocados neste conteúdo diz respeito à sua especificidade nas cidades capitais das três províncias: Beira, Chimoio e Inhambane; no caso da cidade de Chimoio, por exemplo, os professores alegam não ter sido possível identificar as danças típicas da Cidade de Chimoio porque as pessoas diziam que as danças não são originárias da cidade; elas são importadas de outras regiões das províncias para a cidade, justificam. A mesma situação encontra-se na cidade da Beira onde a justificação era que não existe uma dança típica da cidade senão que todos executam tanto as danças provenientes dos Senas, Ndaus, como também dos Macondes e outros. Este caso de danças esconde por trás, penso, um outro problema fundamental, nomeadamente o facto de alguns os professores parecer terem implicitamente compreendido o termo local como sendo tradicional ou originário; tem sido difícil fazer passar a ideia de o termo local referir-se também (portanto, incluir) às práticas, valores, conteúdos que, embora provindo de fora daquela localidade, estejam porém a ser praticadas pelas pessoas independentemente da sua origem. Esta porém parece não ter sido a compreensão no seio dos alunos; na cidade do Dondo, por exemplo, numa entrevista que fiz aos alunos perguntando sobre quais são as danças que desejariam praticar? incluíram nas suas respostas para além das danças tradicionais originárias (varimba, utse), também danças pop como o rap, kuduru,
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passada, etc. Por seu lado os pais e encarregados de educação incluíram o mapiko, uma dança originária de Cabo Delgado. Assim, todas estas danças passam a ser considerdas «locais» sem necessariamente serem originárias de Dondo, no nosso exemplo. Um outro problema colocado, por exemplo em Inharrime (Inhambane), diz respeito ao papel do currículo local (escola) na transmissão das danças para as gerações mais novas. Quando os professores estavam a fazer as entrevistas sobre os grupos culturais locais, notaram que estes são integrados por pessoas idosas e não contemplam pessoas jovens e crianças: «corre-se um grande risco de desaparecerem as danças porque não há a sua transmissão para os mais novos», disse-me um professor de Inharrime, vendo o currículo local como uma grande oportunidade para a passagem do património cultural para as gerações mais jovens. Um outro aspecto observado nos manuais diz respeito à descrição dos locais sagrados e de cerimónias. Nos textos que tratam deste assunto verificase uma tendência de mistificação dos castigos que são aplicados para casos de violação das regras desses lugares. Escreve-se, por exemplo, que em lugares sagrados como Serra Vumba, Monte Chinhangowe, Monte Nhamundimu, Monte Chitsito, Madzimbawe, não se pode falar escândalo, fazer necessidades maiores e relações sexuais. Para os que transgridem essas normas, geralmente desaparecem ou são perseguidos pelos animais e devorados ou ficam temporariamente descontrolados. A questão da educação musical local, que inclui também danças tradicionais, é também de extrema importância; a situação nesta disciplina é dramática porque actualmente não existe treino de professores especializados em música e dança, não há instrumentos musicais (só havia uma guitarra numa escola de Homoine informou-me um dos professores) e, no curricular escolar a partir do terceiro ciclo, fala-se de notas musicais, mas não há instrumentos, só se dá teorias. A esta dificuldade acresce-se o facto de não se incluírem, muitas vezes, os textos das canções que acompanham as danças. Em alguns manuais insiste-se na aprendizagem dos alunos em fabricarem os instrumentos musicais tradicionais tais como a timbila (veja-se o currículos locais do distrito de Zavala), do ngoma ou batuque (veja-se a maioria dos currículo local dos distritos da província de Sofala e alguns de Manica) e outros, o que é muito
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positivo. Em minha opinião o papel inovador da educação deveria ser mais explorado nesta área da educação musical, seja melhorando tecnicamente o fabrico dos instrumentos, seja inovando-os, ou ainda as letras das canções mais reflectivas e as melodias mais instrumentalizadas. No que diz respeito ao conteúdo economia local, os textos tendem a descrever as profissões existentes, sem no entanto abordar analiticamente o problema do desenvolvimento local na perspectiva política da economia, isto é, em termos de potencialidades, oportunidades de emprego, o uso dos recursos disponíveis, etc. A falta de focalização deste conteúdo nos aspectos políticos da economia faz com que esta parte faça alguma confusão com o tema Ofícios integrado no mesmo manual. Até este momento, parece-me que as grandes ausências em termos de conteúdos são os Jogos Tradicionais e a Literatura Oral Local. De facto, para a área de educação física e desportos, não tenho conhecimento de estudos sistemáticos que descrevam, num primeiro passo, as formas locais tradicionais de fortalecimento físico e, num segundo passo, que contenham estratégias pedagogicamente fundadas sobre a sua integração nos vários níveis do ensino da disciplina; também faltaria aqui a promoção sistemática de uma espécie de olimpíadas distritais, provinciais e nacionais dos jogos tradicionais o que iria divulgar e obrigar a uma inovação das regras e dos espaços desportivos. Em relação à literatura oral local é pena que ainda se esteja muito longe de se coleccionar fixar em escrita os provérbios, as adivinhas, os contos e as lendas de cada distrito; o que ainda é mais dramático é a ausência de um espaço na educação que torne visível o talento no seio das crianças.
Educação de Valores Os conteúdos sugeridos nos manuais (inspirados no Manual elaborado pelo INDE) para o tema Educação de Valores dizem respeito aos princípios/ regras de conduta na comunidade, às formas de resolução pacífica de conflitos na comunidade, às regras de trânsito (segurança rodoviária); à questões de equidade de género, aos ritos de iniciação, às cerimónias tradicionais; aos mitos e ritos, aos locais sagrados e às autoridades locais.
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Neste capítulo julgo ser mais interessante, para respeitar o âmbito desta comunicação, concentrar-me em questões que podemos, não encontrando uma expressão melhor, em chamar de valores morais locais (uma espécie de ética local). A minha proposta é que esta ‘ética local’ se concentre nos valores de integridade familiar e de respeito pelo outro seja rapaz, rapariga, adulto, idoso, mulher, etc. Vou abordar este tema trazendo exemplos saídos de Sofala; e aqui faço referência particular às entrevistas realizadas no distrito de Chibabava (mais concretamente em Muxúngwe) aos professores e a representantes da comunidade.77 A pergunta lançada foi de saber sobre as regras básicas de conduta que os alunos deveriam aprender na sala de aulas. As respostas foram as seguintes: s.ÍOFAZERSEXONOMATOPORQUEPODENÍOCAIRCHUVANODISTRITODE Dondo informaram-me sobre a mesma norma mas com uma justificação diferente: quem fizer sexo fora de casa será devorado pelos leões); s1UANDOHÈFALECIMENTONINGUÏMPODEIRËMACHAMBADAQUELEDIA até ao enterro, independentemente de ser membro da família ou não (aqui é interessante que um dos participantes precisou que o que é proibido é pegar numa enxada, mas as lojas podem abrir e que as pessoas da vila [Muxúngwe] não cumprem porque aqui há uma mistura de tradições); s.ÍOSEPODEARRASTARLENHADEPOISDARECOLHAPORQUEAPESSOAQUE o fizer está também a puxar os espíritos maus para a sua casa. Os alunos devem aprender esta regra para não trazerem estes espíritos para dentro da sua casa e não serem preguiçosos; 77
Uma boa parte dos «tabus», «direitos» e, em geral, muitas das “ideias” que se seguem foram recolhidos em entrevistas realizadas em Muxúngue (Distrito de Chibabava, Província de Sofala) entre os dias 2 e 6 de Julho de 2007. Participaram os seguintes professores: Manuel Mucuchura da ZIP de Chibabava-Sede, Mário Nassone da ZIP de Goonda, Gabriel Bondamar da ZIP Cudove III-Nhango, Abrão Fopence Pundo da ZIP Nhaboa, Gonçalves Jacinto Bonera da ZIP Muxúngue, André Manhoca da ZIP Mangunde, Nelson Miguel da ZIP Mucheve, Jaime António da ZIP Hamamba, Carlitos D. Uire Povo da Direcção Distrital para a área da educação, Augusto Esteves Chaima técnico administrativo, Ema Maria da Conceição Jossias e Celeste Eugénio Cudeca, ambas técnicas da Alfabetização e Educação de Adultos.
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s/SALUNOSDE#HIBABAVA 3EDEDEVEMAPRENDERQUENÍOSEDEVESEMEar ou fazer machamba na floresta sagrada porque saem frutos muito grandes e podes ser apedrejado; acrescenta-se que no mesmo dia a planta cresce e reproduz-se muito depressa [em frente à sede administrativa de Chibabava existe uma floresta de cerca de 500 metros quadrados que é considerada sagrada porque é lá onde se reúnem as pessoas para fazerem cerimónias tradicionais e sacrificam animais em preces; é nesta floresta onde é proibido fazer machamba]; s! MULHER NÍO PODE MATAR GALINHA SEM A AUTORIZAÎÍO DO MARIDO E quando matar a galinha ela deve saber que as partes da galinha que deve servir ao marido são o pescoço, a cabeça, a bacia, as patas [enquanto a mulher não servir as patas ou mphalacaço ao marido significa que ainda resta carne na panela], perna, moela e fígado; a criança come asas, molho e tripas; a mulher come o peito; s-ULHERNÍOPODESENTARNACADEIRAEDEVEAJOELHARAOATENDEROMArido; isto é o sinal de respeito para com o seu marido; s5MAMULHER QUANDOTIVERPARTO NÍOPODEFAZERRELAÎÜESANTESDE sunga ndima (amarrar um fio), senão a criança apanha diarreia; s²PROIBIDOAUMAMULHERCUMPRIMENTARAQUALQUERHOMEMNAESTRADA porque mostra que ela está disposta a ir para o mato com este homem; s3OBREOSDIREITOSDASMULHERESASRESPOSTASFORAMQUEELATEMDIREITO a ser lobolada [nenhuma mulher séria sai de casa sem ser pedida por um homem e este deve deixar dinheiro em casa dela]; a mulher também tem o direito de ser assistida pelos pais no seu primeiro parto [o primeiro parto deve ser em casa dos seus pais]; a mulher tem direito à casa e à roupa oferecidas pelo marido; ela tem direito ao transporte quando o marido vai trabalhar nas minas da África do Sul; tem direito a permanecer na família do seu homem, mesmo que este arranje uma outra mulher; s5MHOMEMNÍOPODEFAZERTRABALHOCASEIROOUDOMÏSTICOELESØPODE ajudar na machamba; o homem não pode varrer; quando o casal vai à machamba, a mulher leva todos os instrumentos e alimentação e o homem vai à frente com a catana. Esta regra de conduta é óbvia: trata-se de uma divisão de trabalho num contexto onde se considera o homem
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como o protector da família, neste caso como o desbravador do mato; e isso o dispensa, de certa forma, dos trabalhos caseiros; s5MRAPAZENTREOSEANOSDEVESABERFAZERARMADILHASDECAÎA a animais selvagens comestíveis para trazer caril para casa e com 16 anos deve aprender a construir uma casa assim como ter uma mulher em casa; s5MHOMEMQUEÏDEFORADECASAVISITANTE NÍOPODEUSARCALÎÜESNA casa dos outros; s3OBREOSDEVERESDOHOMEMPARACOMAMULHERRESPONDEU SEQUEESTE deve pagar lobolo, construir uma casa para a mulher, abrir machamba (particularmente fazer matema, isto é, destroncar as árvores para que a mulher possa cultivar), fazer despesas da casa como comprar sabão, açúcar, pão; para além disso o homem deve atender e obedecer às cerimónias que se realizam em casa e noutras famílias; s®UMAPERGUNTAOQUESECONSIDERASERUMACRIANÎARESPEITOSAAS respostas foram que é aquela que cumprimenta as pessoas/visitantes no caminho, chega cedo à casa, aceita ser mandada, ajuda em casa nos trabalhos domésticos, despede quando quer sair de casa, não mente, cumpre com os recados que os pais deixam quando estiverem a sair de casa, cumprem com os ritos de iniciação, (quando é uma menina) não brinca muito com os rapazes, (no caso de rapaz) sabe construir sozinho a casa/palhota; s®PERGUNTAOQUEPODERÓAMOSCONSIDERARUMAMULHERRESPEITOSAAS respostas foram: as que usam decentemente, saúdam as pessoas, trata bem aos visitantes (principalmente da família do marido), dá cadeira aos visitantes, ajoelha ou baixa a cabeça quando cruza com alguém, não se zanga e nem ralha com o marido e os filhos, tem a casa e o quintal sempre limpos, respeita ao marido; s5MHOMEMRESPEITOSOÏAQUELEQUEBATEASPALMASOUJUNTAASMÍOS em sinal de reconhecimento) quando se cruza com alguém (desconhecido) e pergunta para onde é que pessoa vai, trata bem a sua esposa (compra roupa, constrói casa, atende aos desejos da mulher), veste decentemente, não é grosseiro com a sua esposa, não bebe todo o dinheiro, participa nas cerimónias da zona (por exemplo: maphale que
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é limpeza conjunta das campas; cerimónias de pedido de chuvas, etc.); s0ERGUNTADOS QUE MOTIVOS DE FUNDO PODEM SER CONSIDERADOS COMO suficientes para o divórcio as respostas foram: [1] quando o homem apanha a sua esposa com outro homem; [2] quando a mulher ou o homem é preguiçosa/o [3] Quando o parceiro (marido ou esposa) é apanhado muitas vezes pelo curandeiro nas consultas (é por isso que ao curandeiro não se deve ir sozinha/o, senão sempre acompanhado pela/o parceira/o); [4] Quando não há crianças no lar (quando a mulher não faz filhos o marido pode procurar uma segunda mulher ou tem o direito de ser entregue uma irmã da sua mulher). Da descrição dos tabus e deveres feita acima dois aspectos que saltam à vista: o primeiro aspecto é que a maior parte do que se pode considerar como sendo valores locais estão muito concentrados na convivência familiar e colectiva na comunidade; poderia até aventurar dizendo que os pais e encarregados de educação estão preocupados pela forma como a escola encarrega-se de passar a sua normatividade e o seu conteúdo para os rapazes e raparigas que vão à escola; não precisa de uma análise muito grande para nos darmos conta de que, em vez de a escola promover uma atitude de confrontação racional com estes valores (ou contravalores, como quiserem) promove sim um distanciamento, uma espécie de censura por meio da exclusão total. Então não há espaço na escola para uma confrontação argumentativa em torno de um conjunto de valores vistos pela comunidade como sendo importantes para a sua harmonia. Assim, para o meu propósito actual, de pouco vale começar a analisar cada um dos pontos mencionados acima para chegar a esta conclusão de base: os valores veiculados na escola são diferentes dos que a comunidade acredita e segue (ou pior que o próprio aluno, quando está fora da escola, é obrigado a seguir). A escola fecha as suas portas a estes valores. O segundo aspecto que não salta assim tanto à vista é uma certa confusão que pode resultar em começar a introduzir estes aspectos e outros como os ritos de iniciação, cerimónias tradicionais, mitos, etc. na escola. Professores mostram-se, com alguma frequência, reticentes em relação a estes elementos tradicionais porque acham que não se deve ensiná-los na escola justificando senão estaríamos a estimular a sua prática, correndo o risco de trazermos
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o curandeirismo para o recinto escolar. As reticências são ainda maiores quando se trata particularmente dos ritos de iniciação porque os professores em diversas ocasiões da sua carreira interiorizaram de que essas práticas são humilhantes para a mulher; afinal é lá onde aprendem a submeter-se ao homem. Contra este tipo de argumentação penso que se deve por claro que a abordagem destes aspectos tradicionais na sala de aulas não visa, em primeira linha, e nem é a mesma coisa que ensinar e incentivar a sua prática pelos rapazes e pelas raparigas; o objectivo pedagógico é sim que estes, ao conhecerem, terão uma atitude de respeito perante aquelas práticas, e, por esta via, não faltarão ao respeito que os pais reclamam tanto; mas ter uma atitude de respeito não bastaria; a outra intenção educacional é a de permitir que cada um adira a esses valores por escolha e não por uma obrigação geracional; pois, a confrontação com estes valores na escola permite aos rapazes e às raparigas poderem colocar a questão de porquê é ou deve ser assim?, questão esta que, muitas vezes, não se lhes é deixada colocar no seio familiar; mas há uma última razão que é a mais importante: é a que já repisei, nomeadamente de que a escola tem o papel de inovar as nossas culturas; neste caso inovar os valores significaria, de uma forma muito resumida, proporcionar ao aluno as ferramentas necessárias para que ele olhe para estes valores tradicional e procure, por si mesmo, adaptar ao contexto actual; por outras palavras, a escola, ao inserir estes valores na sala de aulas, deve poder concentrar-se no seu valor educativo (por exemplo, respeito para com o outro, simpatia, partilha, ubuntuismo, etc.) e encontrar conteúdos mais adequados aos tempos modernos para ensinar os mesmos valores. Tendo em conta o argumento de que a aderência aos valores deve ser baseada na escolha racional, sobretudo se tratando da confrontação entre os chamados valores tradicionais e os chamados modernos veiculados pela escola, penso que o termo educação para valores (e não educação de valores) seria o mais adequado, sobretudo se estivermos a tratar a educação de valores no quadro do currículo local; neste contexto, penso que se deve indicar claramente de que valores tratam-se; i.e. de valores que regram a conduta familiar em comunidades determinadas e concretas. E, para terminar este ponto, seriam pertinentes duas observações, uma metodológica e outra de conteúdo; estas observações têm sentido somente
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na perspectiva da educação para valores. A primeira: há um trabalho sério de interpretação que deve ser feito pelos professores para poderem descobrir os valores. Eles não se encontram, pois, escritos em decretos e nem em dissertações já prontas. Estes valores estão inscritos (não descritos) de forma implícita (não explícita) nos contos, lendas, provérbios, adivinhas, nas letras das canções, nas danças e em outras manifestações. Assim, para este tema, deverá um forte apoio metodológico ao professor, apoio este que deve ir para além da distribuição dos manuais. A segunda observação (a metodológica) tem a ver com a ideia de valores culturais tradicionais em contraste com valores culturais locais numa comunidade. Entre os dois termos há certamente zonas de intercepção e zonas diferentes. Valores tradicionais referem-se àqueles que são directamente ligados à cultura predominante na zona, cujo elemento básico de classificação é a língua que se fala (sem no entanto se limitar a isso); por outro lado, o termo valores locais inclui todos os valores que podem ser inferidos na comunidade em que está inserida a escola. Estes incluem certamente os valores de natureza tradicional, mas também incluem valores que tenham sido adquiridos pelo processo de modernização e adoptados/adaptados às condições locais. Ao professor deve ser mostrado a importância de ele destacar esta diferenciação, deixando para ele, entretanto, a decisão de escolha de valores. Em relação ao tema Ambiente há pouca coisa a dizer no quadro desta comunicação. Os conteúdos deste tema foram indicados tendo em conta mais a pressão da agenda nacional que a agenda local. Os conteúdos indicados para este tema são: conservação e preservação da natureza, calamidades naturais, problemas ambientais, principais rios da zona, uso e conservação da água, tipos de solo, vegetação, silvicultura, perigo das minas (no distrito de Guru) e questões do saneamento do meio ambiente. O desafio aqui será o de evitar que os conteúdos deste tema se tratem numa perspectiva muito nacional face à falta de dados concretos para os casos de cada localidade ou distrito. Para que este tema seja devidamente tratado numa perspectiva cultural e local, sair do esquema quase estabelecido de que a pobreza é responsável pela destruição do ambiente e explorar as formas locais de preservação do ambiente natural e social. O exemplo que dei acima de como os habitantes de Chibabava protegem a sua floresta pode servir-nos.
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Por certo que a floresta, sendo um centro de cerimónias tradicionais, também é uma espécie de farmácia para os médicos tradicionais. Assim têm lógica as medidas de protecção, mesmo que cobertas por inferências metafísicas. Sobre os restantes temas (agro-pecuária, saúde e nutrição e ofícios) há pouca coisa que se oferece a dizer ainda neste âmbito.
Notas Conclusivas O propósito principal que eu quis demonstrar ao longo desta comunicação foi o de explorar a possibilidade de o currículo local ser um campo de interculturalidade, ou seja, o campo onde se criam as atitudes a as predisposições básicas no futuro cidadão para um diálogo entre as culturas. Defendo que o desenvolvimento deste diálogo entre as culturas através da educação é a base para a construção de uma identidade nacional firme. Concluímos também que, para além das atitudes e das predisposições a serem criadas pela via do currículo local, o mais importante ainda é proporcionar aos alunos do ensino primário a possibilidade de fazerem suas próprias experiências com a sua cultura inicial; chamei a isso também como um processo de vivenciar a própria cultura. Entendi ainda que as atitudes e as experiências vivenciadas na cultura inicial não bastam para que o aluno entre com os pés firmes no quadro do contrato nacional. É preciso e é imperativo que ele se confronte criticamente com os saberes, valores e práticas tradicionais. O currículo local possibilita esta confrotação do aluno com diferentes temas expostos relevando acima de tudo a questão porquê? do que propriamente a questão como?. Por fim, espero ter demonstrado que as culturas devem ser a base para a construção curricular no sistema de educação em Moçambique; mas ao mesmo tempo quis sublinhar que o papel da educação para com as culturas deve ser o de inovação dos vários aspectos das mesmas, desde as línguas, até às esculturas, etc. Essa inovação só será possível, tratei de argumentar, por via de um aluno que já na sua fase primária é confrontado criticamente com uma educação que chamei de cultural; esta educação visa inserir o aluno na sua tradição
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viva78, ponto a partir do qual o aluno tem vantagens argumentativas para se colocar no meio de uma identidade nacional. Só assim é que teremos uma identidade nacional que respeite as diferenças dadas pelas culturas diferentes que compõem o mosaico deste nosso país.
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Pensamento engajado
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