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portuguese Pages 345 [172] Year 1989
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ESPELHOS
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UMBERTO ECO
primeiro ensaio deste volume, que reúne escritos sobre diversos temas.De qualquer forma, a metáfora do espelho sugere alguns dos temas que todos estes ensaios, em meio a várias referências comuns, abordam: o signo, a representação, a ilusão, a imagem, deste e de outros mundos. De Pirandello ao ET., da crônica de viagem às expressões do rosto humano, de Jorge Luis Borges às investigações policiais, da poesia ao jogo, etc. Umberto Eco apresenta aqui uma série de escritos motivados por encontros, debates e prefácios e ao reuni-los (e em parte ao reescrevê-los e adaptá-los) percer'eu que eles navegavam entre as várias ilhas de um só arquipélago, como se fizessem uma pequena viagem entre estética, teoria das comunicações de massa, filosofia, história das idéias, mais alguns aspectos da Idade Média, formando um retrato dos interesses do próprio autor, como se esse conjunto de ilhas se chamasse Arquipélago Eco. s espelhos são o assunto do
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Uma coleção de ensaios de Umberto Eco, autor de O nome da rosa e Viagem na
LIVRO
Sobre os espelhos e outros ensaios /
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Cmt, Doação
: ítulo original: SUGLI SPECCHI E ALTRI SAGGI O Gruppo Editoriale Fabbri, Bompiani, Sonzogno, Etas Sp.A, Milan
1985.
Direitos de ediçãoEDITORA da obra em língua portuguesa no Brasil adquiridos pela NOVA FRONTEIRA S/A
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Rua Bambina, 25 CEP 22251 Botafogo Tel.: 286-7822 Endereço telegráfico: NEOFRONT Telex: 34695 ENFS BR -
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Rio de Janeiro, RJ.
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dos de sonhar a Idade Média CIP-Brasil. Catalogação-na-fonte Sindicato Nacional dos Editores de Livros,
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ENTRE EXPERIMENTAÇÃO E CONSUMO perimentalismo e a vanguarda
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Eco, Umberto, 1932—
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Rio de Janeiro : Nova Fronteira, 1989. -
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O tempo da arte A inovação no seriado
Sobre os espelhos e outros ensaios / Umberto Eco ; tradução de Beatriz Borges.
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Tradução de: Sugli specchi e altri saggi. Bibliografia.
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Estética. 2. Análise do discurso. 3. Cultura de massa. 4. Semiótica.
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Osmundos da ficção científica e Plínio quando jovem inatória dos possíveis e a incumbência da morte
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ENTRE POESIA E PROSA
A epístolaXIII, o alegorismo medieval, o simbolismo moderno O signo da poesia e o signo da prosa Pirandello Ridens -
Mas o que
é este
Campanile?
DISCURSO SOBRE AS CIÊNCIAS HUMANAS Huizinga € € jogo Signos, pe.3-s e botões. Anotações sobre Semiótica, Filosofia e ciências naturais O antiporfírio
REFERÊNCIAS
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trabalho tem uma fisionomia como um discurso homogêneo, estaria ssível, como escalar os espelhos que, por pura sinédoque, sse mostrar que este
foi planejado
pa ensaios sobre estética, interpretações de fenômenos ular, leituras críticas de textos, escritos filosóficos e de, reuni aqui uma série de intervenções, mais ou menos mprovam as referências às páginas: 343-345) e cujo to ou sugerido por um convite para participar de um pedido de prefácio, por um dever/prazer polêmico, por senhar.
tei é porque acredito que estes textos tenham reforçado uais simpatizo, ou porque me serviram para esboçar muitos deles não são encontrados com facilidade, agrade recolocá-los em circulação. Sem falar nos que podem s inéditos, pelo menos em italiano. ão fruto de intervenções acadêmicas, outros (poucos, e de intervenções jornalísticas; a maior parte fica entre é exaustivo, mas sua exposição sacrifica notas e um maior imediatismo. Espero que sejam todos íveis. Estava em dúvida quanto a inserir os ensaios da indubitavelmente mais árduos, mas achei que se relacionaes, por um lado, e a outros livros mais recentes, por -los, percebi que se assemelhavam, às vezes beirando a atravessados por correntes temáticas comuns. Eu não
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deveria surpreender-me, não só porque todos foram escritos pela mesma mão, ou porque foram todos escritos no mesmo período de anos, mas porque é normal (e justo, e útil) que um autor, participando de convenção em convenção, de debate em debate, sejam orais ou escritos, acumule “experiência, se apegue a exemplos que lhe pareçam mais significativos, efetue transferências e migrações de argumentos Tentei então uni-los por núcleos temáticos, até para ajudar o leitor a orientar-se. Esses núcleos, ou seções, valem o que valem, e não será difícil perceber uma relação muito íntima entre dois ensaios colocados em seções diferentes. Concluindo, repito que não tento apresentar estes textos como capítulos, rigorosamente coordenados, de um discurso contínuo. Penso, porém, que podem ser encarados como uma galáxia de observações não totalmente desconexas, entre as quais quem lê poderá estabelecer as ligações que lhe pareçam oportunas. Não creio que deva desculpar-me pelas desigualdades estilísticas. De acordo com as Yespectivas origens, alguns escritos são mais rígidos e minuciosos, ouros têm tom de nota ou de conversa mais descontraída. A ...
unidade, se existe, está no conjunto dos problemas. Contudo, quase nenhum destes textos aparece exatamente como era, quando publicado pela primeira vez. Na tentativa de relacioná-los, fiz cortes para eliminar as repetições, acrescentei, às vezes fundi textos diferentes que tinham um tema comum.
Em todo caso, o leitor leigo em tecnicismos semióticos, e mais interessado em questões de arte ou de comunicação de massa, pode evitar a leitura da última seção. Sobreviverá do mesmo jeito.
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Milão, junho de 1985.
MODOS DE REPRESENTAÇÃO
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SOBRE OS ESPELHOS*
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imagem refletida é um signo?
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Os espelhos são um fenômeno semiósico ? Ou são signos as imagens refletidas pelas superfícies dos espelhos? Seria possível que estas perguntas não tivessem significado no sentido em que o bom senso exigiria que se respondesse que espelhos são espelhos. Em todo caso, não é inútil questionar-se: poderia ter pouco sentido descobrir que também as imagens especulares são signos, mas poderia ter mais sentido descobrir o que, e por que, não o são. Mesmo admitindo que já saibamos tudo sobre os espelhos, excluí-los da categoria dos signos poderia levar-nos a definir melhor um signo (pelo menos por aquilo que ele não é). “Naturalmente, seria necessário, em primeiro lugar, estabelecer o que se entende por “signo” e por “espelho”. Mas surge logo uma dúvida de que as duas definições não estejam de algum modo interligadas, e circularmente: de tal modo que não saberíamos se começar pelos espelhos para definir os signos ou dos signos para definir os espelhos. O que nos garante que, partindo de uma definição de signo, esta não esteja já construída de modo a excluir os espelhos ? Pareceria mais fácil começar pelos espelhos (dos quais se prevê que a óptica fale de modo objetivamente indiscutível): mas também definir o que é um espelho, excluindo o que ele não é, pode
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leitor encontrará neste ensaio, eno resto do livro, a oposição entre semiose semiótica. A semiose é o fenômeno, típico dos seres humanos (e, segundo alguns, também dos anjos e dos animais) pelo qual como diz Peirce entram em jogo um signo, seu objeto (ou conteúdo) e sua interpretação. A semiótica é a reflexão teórica sobre o que seja a semiose. Em consegiiência, o semiótico é *0O
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aquele que nunca sabe o que seja a semiose, mas está disposto a apostar a própria
vida no fato de que ela exista.
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depender de várias suposições prévias, embora não confessadas, sobre a natureza dos fenômenos semiósicos enquanto diferentes dos especulares. Para estabelecer uma prioridade não existem bons argumentos filogenéticos. Que o homem seja um animal semiósico parece já estabelecido, mas o fato de dizê-lo não exclui que seja assim exatamente em virtude de uma experiência especular ancestral. Claro, o mito de Narciso parece pôr em cena um animal já falante, mas até que ponto podemos confiar nos mitos ? Do peajo de vista filogenético, a questão é semelhante à do ovo e da galinha, ou à das origens da linguagem. Na falta de registros exatos sobre o “momgnto da aurora” da espécie, convém calar. Também do ponto de vista ontogenético as garantias são escassas. Por um lado estamos em dúvida se é a semiose que fundamenta a percepção ou se é a percepção que fundamenta a semiose (e, portanto, se a semiose fundamenta o pensamento e vice-versa). As reflexões de Lacan sobrea fase do espelho nos sugerem que a percepção (ou pelo menos a percepção do próprio corpo como unidade não fragmentada) e a experiência especular caminhem lado a lado. E eis que percepção, pensamento, consciência da própria subjetividade, experiência especular, semiose, aparecem como momentos de um nó bastante inextricável, como pontos de uma circunferência cujo ponto de partida parece difícil estabelecer.
semiósico, mesmo que se trate de um semiósico identificado com a linguagem verbal. No estado de júbilo especular manifesta-se uma matriz simbólica na qual o eu se precipita de forma primordial e a linguagem é o que deve restituir-lhe a função particular de sujeito no universal? Como veremos, essa restituição “no universal” deveria ser própria de todo processo semiósico, mesmo que não seja verbal. No momento em que se delineia a “virada” do eu especular para o eu social, o espelho é a “encruzilhada estrutural” ou, como dizíamos, fenômeno-limiar.
3.
Entrar pelo espelho
Se, todavia, essas conclusões são válidas, elas nos dizem o que é (ou melhor, para que serve) o espelho num momento específico, único, que não se repete, da ontogênese do indivíduo. As reflexões sobre a fase do espelho não excluem, enfim, o fato de que, em fases superiores do desenvolvimento da vida simbólica, o espelho possa ser usado como um fenômeno semiósico. Para tanto, agora será conveniente propormo-nos um percurso diferente. Não questionar-se sobre um momento inaugural ou primário (seja este filo ou ontogenético), mas sim sobre o uso que os adultos humanos fazem do espelho adultos esses que já produzem signos e se sentem como indivíduos, e que, sobretudo, já têm familiaridade com as imagens especulares. Tomando o problema nesta fase, poderemos valer-nos das nossas experiências cotidianas, no sentido de fazer uma redução fenomenológica, sem precisar questionar as experiências (inverificáveis) dos nossos antepassados, ou aquelas (definidas conjeturalmente, com base em dados externos) dos nossos filhos —
2. O imaginário e o simbólico Os escritos de Lacan sobré a fase do espelho parecem resolver, de saída, o nosso problema. O espelho é um fenômeno-limiar, que demarca as fronteiras entre o imaginário e o simbólico. Entre os seis e oito meses, a criança se defronta com a própria imagem refletida no espelho. Numa primeira fase confunde a imagem coma realidade, numa segunda fase percebe tratar-se de uma imagem, numa terceira compreende que a imagem refletida é a sua. Nesse estado de júbilo, a criança reconstrói os fragmentos ainda não unificados do próprio corpo, mas o corpo é reconstruído cqmo alguma coisa de externo e diz-se em termos de simetria inversg (conceito sobre o qual voltaremos a falar). À experiêr;z-a especular surge do imaginário, assim como do imaginário surge a experiência do buquê de flores produzido como imagem ilusória pelo espelho esférico descrito em “A tópica do imaginário”! O domínio do próprio corpo permitido pela experiência do espelho é prematuro em relação ao domínio real: o “desenvolvimento só acontece à medida que o sujeito se integra ao sistema simbólico, ali se exercita, ali se afirma através do exercício de uma palavra verdadeira”. Lembra-se, por implícito, que o que Lacan chama de simbólico é o —
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menores. À não ser que o problema seja, mais uma vez, saber se começar pela experiência do espelho ou do signo.
Tratando-se de um círculo, tanto faz adentrá-lo de um ponto qualquer. Decidimos entrar pelo espelho (como veremos, sem permanecer dentro) visto que a óptica parece saber muito sobre os espelhos, ao passo que é incerto. o quanto a semiótica possa saber sobre os signos.
4. Fenomenologia do espelho: os espelhos não invertem
Definimos inicialmente como espelho qualquer superfície regular capaz de refletir a radiação luminosa incidente (excluem-se portanto: “espelhos” para outro tipo de ondas, como as de radiocomunicação). Tais superfícies são ou planas ou curvas. Entendemos por espelho plano uma superfície que fornece uma imagem virtual correta, invertida (ou simétrica), 13
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especular (de tamanho igual ao do objeto refletido), sem as chamadas aberrações cromáticas. Entendemos por espelho convexo uma superfície que fornece imagens virtuais corretas, invertidas, reduzidas. Entendemos por espelho côncavo uma superfície que: a) quando o objeto está entre o foco e o espectador, fornece imagens virtuais retas, invertidas, ampliadas; b) quando o objeto varia de posição, do infinito à coincidência com o ponto focal, fornece imagens reais, invertidas, ampliadas, reduzidas, conforme o caso, em pontos diferentes do espaço, que podem ser observadas a olho nu, ou reunidas numa tela. Ficam de lado os espelhos parabolóides, elipsóides, esféricos ou cilíndricos, porque não são de uso comum nanossa experiência cotidiana, e cujos eventuais resultados serão considerados sob as rubricas genéricas de espelhos deformantes e de teatros catóptricos. Já nessas definições seria necessário questionar-se a respeito do significado de termos como “virtual” e “real”. A imagem real dos espelhos côncavos £, do ponto de vista do senso comum, irreal, e é chamada “real” nã: somente porque o indivíduo que a percebe pode confundi-la com um objeto fisicamente consistente, mas também porque pode ser concentrada numa tela, coisa que não acontece com imagens virtuais. Quanto à imagem virtual, é assim chamada porque o espectador a percebe como se ela estivesse dentro do espelho, quando o espelho, obviamente, não tem um “dentro”. Mais curiosa ainda é a definição pela qual a imagem especular seria invertida, ou simétrica, ou como se diz vulgarmente de simetria inversa. Tal opinião (de que o espelho ponha a direita no lugar da esquerda e vice-versa) é tão arraigada que alguém até insinuou que os espelhos têm essa curiosa propriedade, a de trocar a direita pela esquerda, mas não o alto pelo baixo. A catóptrica não autorizaria certamente essa conclusão: se em vez de estarmos habituados com espelhos verticais fizéssemos uso constante de espelhos colocados horizontalmente no teto, como fazem os libertinos, nos convenceríamos de que os espelhos também trocamo alto pelo baixo, mostrando-nos um mundo de cabeça para baixo. Mas o ponto é que nem mesmo os espelhos verticais invertem ou emborcam. O espelho reflete a direita exatamente onde está a direita, e a esquerda exatamente onde está a esquerda. É o observador (ingênuo, mesmo quando físico por profissão) que, por identificação, imagina ser o homem dentro do espelho, e olhando-se percebe que usa, por exemplo, o relógio no pulso direito. O fato é que o usaria se ele, o observador, fosse aquele que está dentro do espelho (Je est un autre!) Quem, ao contrário, evita comportar-se fomo Alice e não entra no espelho, não sofre essa ilusão. Tanto é vercg le que todos conseguimos, pela manhã no banheiro, —
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usar o espelho de modo digno, sem nos comportarmos como débeis mentais. Aliás, nos comportamos como débeis mentais quando, querendo aparar as costeletas, usamos espelhos laterais contrapostos e nos encontramos diante de imagens que (reflexos de reflexos) têm a direita onde sentimos que temos a direita e vice-versa. É sinal de que nosso cérebro se habituou a usar os espelhos tal como refletem fielmente aquilo na frente, como também se habituou a inverter a imagem daretina ue, sim, é realmente invertida. Só que teve milhões de anos incluindo os anteriores ao surgimento do homo sapiens) para habituarse a inverter a imagem da retina, de tal modo que, por milênios, a reflexão crítica nada suspeitou desse fenômeno; mas teve poucos milhares de anos para habituar-se à imagem especular. Portanto, no plano perceptivo ou notor à interpreta corretamente, mas no plano da reflexão conceitual ainda não consegue separar de todo o fenômeno físico das ilusões que este ropicia, criando uma espécie de divergência entre percepção e juízo. im, usamos a imagem especular de modo certo, mas falamos a seu odo errado, como se esta fizesse aquilo que, efetivamente, nós a obrigamos a fazer (ou seja, inverter-se). Se reduzimos o fenômeno especular a um esquema puramente absto, percebemos que não acontecem fenômenos do tipo câmera escura (Fig.1), mas sim fenômenos nos quais nenhum raio se cruza (Fig.2). Somente se antropomorfizarmos aquilo que no esquema corresponde ao al é que este objeto adquire consciência de uma direita e de uma esquerda e as compara com o objeto que se reflete na superfície e com o objeto virtual que aparece além da superfície mas sempre partindo do cálculo ilusório do que seria esquerda e direita se aquele objeto, em vez de refletido, fosse real. esta
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Diante do espelão não se deveria falar de inversão, mas de absoluta congruência; a mesma que se verifica quando pressiono um mata-borrão sobre uma folha em que acabei de escrever a tinta. Que depois eu não consiga ler o que ficou impresso no mata-borrão (a não ser usando um espelho, isto é, recorrendo à congruência de uma congruência, como acontece com os espelhos laterais contrapostos no banheiro), tudoisso tem a ver com meus hábitos de leitura, não com a relação de congruência. Sinal de que a espécie humana teve milhares de anos a mais para aprender aler os espelhos do que para aprender (à exceção de Leonardo) a ler mataborrões. Os quais, repito, mostram escritos ao contrário se os confrontarmos com as regras gramatológicas, mas, se os considerarmos como impressões in atto, registram os sinais da tinta exatamente onde esses se apóiam sobre sua superfície.
A espécie humanajá sabe usar os espelhos, exatamente porque sabe que não há um homem no espelho e que aquele a quem se deve atribuir esquerda e direita é o que olha, e não aquele (virtual) que parece olhar o observador.
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Tudo isso nos diz como é difícil falar de espelhos, como se deles falássemos antes de tê-los conhecido e utilizado (e é fácil imaginar a expressão da criança na fase crucial, quando ainda não conhece sequer o próprio corpo). Nós, quando adultos, somos exatamente como somos,
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exatamente porque.somos (também) animais catóptricos: que elaboraram a dupla atitudk de olhar para si mesmos (o quanto possível) e para os outros, tanto na realidade perceptiva quanto na virtualidade catóptrica.
Sem dúvida, usamos os espelhos com mais desenvoltura no que diz respeito ao nosso próprio corpo do que ao dos outros.
Enquanto escrevo, estou diante de um espelho que reflete, às minhas costas, uma porta com uma maçaneta. Para estabelecer se a maçaneta está à direita ou à esquerda (de quem?), para saber em que direção eu deveria mover (para trás) o braço se quisesse jogar meu isqueiro na maçaneta, estudo primeiramente com o e sobre o meu corpo. Deveria mover a mão “direita para trás, na direção do meu ombro esquerdo, atrás do qual vejo a maçaneta. Pronto, jogo, e acerto (mais ou menos). Agora sei (mas já sabia antes de tentar) que se eu me voltasse a maçaneta estaria à minha direita. Mas tive de fazer esses cálculos de inversão porque, de fato, eu mirava (com os olhos) a porta virtual que estava dentro do espelho. Era um problema meu.nenhuma Entre espelho porta (ambos sem órgãos de percepção) não havia relaçãoe de inversão.
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5. Pragmática do espelho
Normalmente, nós usamos bem os espelhos. Isso significa que. introjetamos as regras de interação catóptrica. O que nos obriga a falar de uma pragmática do espelho. O problema é que, para usarmos bem o espelho, precisamos, antes de mais nada, saber que temos um espelho à nossa frente (condição essencial, também nos estágios lacanianos, para que o espelho não seja simples ilusão ou experiência alucinatória). Tendo apurado que o que percebemos é uma imagem especular, partimos sempre do princípio de que o espelho "diga a verdade". A diz atal ponto que nem mesmo se preocupa em reverter a imagem (como faz a fotografia revelada que quer dar-nos uma ilusão de realidade). O espelho não se permite sequer esse pequeno artifício destinado a ajudar nossa percepção ou nosso juízo. Ele não “traduz”. Registra aquilo que o atinge da forma como o atinge. Ele diz a verdade de modo desumano, como bem sabe quem diante do espelho perde toda e qualquer ilusão —
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sobre a própria juventude. O cérebro interpreta os dados fornecidos pela retina, o espelho não interpreta os objetos. Mas é exatamente essa declarada natureza olímpica, animal, desumana dos espelhos que nos permite confiar neles. Confiamos nos espelhos assim como confiamos, em condições normais, nos próprios órgãos perceptivos. Agora se entende por que se falou em “pragmática”: valem perfeitamente para os espelhos algumas regras que, por convenções sociais e de modo muito relativo, valem para as interações conversacionais, exceto que nestas considera-se a mentira como infração. Não é assim com os
espelhos.
6. Os espelhos como próteses e como canais
Confiamos nos espelhos como confiamos nos óculos e nos binóculos, porque, assim como os óculos e os binóculos, os espelhos são próteses. Uma prótese, no sentido exato, é um aparelho que substitui um órgão que falta (membro artificial, dentadura); mas, num sentido lato, é todo aparelho que aumenta o raio de ação de um órgão. Nesse sentido podem ser consideradas próteses as cornetas acústicas, os megafones, as pernas de pau, as lentes de aumento, os periscópios. Uma prótese estende a ação do próprio órgão, mas pode ter funções tanto de aumento (comoa lente), como de diminuição (como as pinças, que permitem estender o raio de preensão dos dedos, mas eliminam as sensações térmicas e táteis). O 17
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espelho, nesse sentido, é uma prótese absolutamente neutra, e permite que se obtenha o estímulo visual onde o olho não poderia alcançar (a frente do próprio corpo, atrás de um canto, uma cavidade) com a mesma força e evidência. Às vezes O espelho pode funcionar como prótese redutora (espelhos curvos ou espelhos esfumados, nos quais se sacrifica a percepção do comprimento de onda para favorecer a percepção das relações de intensidade). As próteses podem ser meramente extensivas (como a lente) ou intrusivas (como o Seriscópio ou certos espéculos usados pelos médicos): o espelho se prestá a ambos os usos (o espelho pode ser usado para aumentar o alcance dos olhos como se tivesse órgãos visuais no dedo indicador). Também os espelhos en abime do barbeiro desempenham função intrusiva. A magia dos espelhos consiste no fato de que sua extensividade-intrusividade não somente nos permite olhar melhor o mundo mas também ver-nos como nos vêem os outros: trata-se de uma experiência única, e a espécie humana não conhece outras semelhantes. Como prótese, os espelhos são canais. Um canal é cada medium material que permite a passagem da informação (o conceito de informação é entendido aqui no sentido físico, como passagem de estímulossinais computáveis quantitativamente e nada tem a ver, ainda, com os fenômenos semiósicos). Nem todos os canais são próteses, porque nem todos estendem o raio de ação de um órgão (o ar é, por exemplo, o canal através do qual viajam as ondas sonoras); mas todas as próteses são canais ou media. Podem existir canais de canais. Por exemplo, se usamos o espelho para refletir raios de luz mediante os quais modulam-se os sinais do código Morse, o espelho é um canal primário que veicula a luz, a qual refletida transforma-se por sua vez em canal secundário que veicula os traços próprios do alfabeto Morse. De qualquer forma, esse fenômeno, que diz respeito à reflexão e à canalização de raios luminosos, nada tema vercom a imagem especular. A identificação do espelho com o canal nos permite eliminar os casos nos quais a imagem especular é usada como sintoma de uma presença. Por exemplo, obse:; ando um espelho colocado verticalmente na minha frente e diagonalmente em relação ao plano de observação, posso perceber que no quarto ao lado figuras humanas se movimentam. Ainda neste caso o espelho atua como prótese, mas poder-se-ia pensar que já que as imagens refletidas são sintomas de presenças em outros lugares ele pode revestir-se de funções semiósicas. Todavia, cada canal, enquanto aparece em funcionamento, é sintoma da existência de uma fonte —
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emissora de sinais. Neste sentido, quando alguém fala comigo, indepen-
dentemente daquilo que me diz, eu posso interpretar seu ato de falar como um sintoma duplo: de que não é mudo e de que quer dizer alguma coisa, ou então exprimir um estado interior. Esses casos, nos quais o estado de atividade do canal se transforma em sintoma de sua eficiência e da
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existência de uma fonte, concernem, porém, ao uso sintomático que se faz do canal, e não às “mensagens” que ele veicula. O espelho usado como sintoma nos diz alguma-coisa sobre o próprio espelho e sobre o uso que dele se pode fazer, não sobre a imagem especular. Como canal-prótese, o espelho pode provocar enganos perceptivos, como todas as próteses. Entro num quarto e acredito-estár vendo um homem que vem ao meu encontro, percebendo só depois que se trata da minha imagem refletida num espelho. Este “estar da imagem para alguma outra coisa”, mesmo transitório, pode induzir-nos a pressentir o esboço de um fenômeno semiósico. Mas trata-se de uma ilusão perceptiva, como posso ter, mesmo sem espelhos, quando tomo “vaga-lumes por lanternas” ou, como se diz, dou corpo às sombras. Do mesmo modo, pode-se provocar enganos apresentando como espelhos o que não são espelhos. Num filme dos irmãos Marx, há uma cena em que Groucho se olha num espelho; mas o espelho não é um espelho, e sim uma moldura vazia, atrás da qual Harpo tenta desajeitadamente (e com efeitos cômicos) imitar os gestos de Groucho. Este fenômeno de mentira sobre os espelhos ou a respeito dos espelhos, naturalmente nada tem a ver com a imagem especular. A representação que o enganador desempenha é certamente algo que tem a ver coma ficção, com a significação, com a mentira através de signos, mas nada disso diz respeito à natureza da imagem especular. Falaremosa esse respeito quando examinarmos uma semiótica da mise-en-scêne, que pode concentrar-se no uso dos espelhos como canais.
7. Os ícones absolutos
Dissemos que a prótese catóptrica estende o alcance do órgão e lhe fornece estímulos análogos aos que receberia se fosse capaz de funcionar onde a prótese prolonga o raio de ação. Nesse sentido, o espelho me fornece uma duplicata absoluta do campo estimulante. Ingenuamente, poder-se-ia dizer que o espelho me fornece um “ícone” do objeto, caso se defina o fcone como uma imagem que contenha todas as propriedades do objeto representado. Mas a experiência catóptrica me diz que (mesmo que existam signos que se chamem ícones dotados de tais propriedades) o ícone absoluto catóptrico não é um ícone, mas uma duplicata.? A folha
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de papel sobre a qual estou escrevendo é (ao nível macroscópico da minha experiência perceptiva e das finalidades práticas a que a destino) a duplicata da folha de papel que acabei de preencher. Mas nem por isso a considero quase um “signo” da outra. Dir-se-á que a imagem do espelho não está para o seu objeto como a primeira folha para a segunda. Mas é preciso considerar que a imagem especular não é uma duplicata do objeto, é uma duplicata do campo estimulante ao qual se poderia ter acesso caso se olhasse o objeto ao invés da sua imagem refletida. Ofato de a imagem especular ser, entre os casos de duplicatas, o mais singular, e exibir características de unicidade, sem dúvida explica por que os espelhos têm inspirado tanta literatura: esta virtual duplicação dos estímulos (que às vezes funciona como se existisse uma duplicação, e do meu corpo objeto, e do meu corpo sujeito, que se desdobra e se coloca diante de si mesmo), este roubo da imagem, esta tentação contínua de considerar-me um ,outro, tudo faz da experiência especular uma experiência absolutargente singular, no limiar entre percepção e significação. E exatamenty dessa experiência de iconismo absoluto que nasce o sonho de um signo que tenha as mesmas características. Por isso desenha-se (e produzem-se justamente os signos ditos “icônicos”): para realizar sem espelho aquilo que o espelho permite. Mas, o mais “realístico” dos desenhos não exibe todas as características de duplicação absoluta próprias do espelho (além do fato, do qual ainda falaremos, de o desenho colocar-se numa relação diferente de dependência relativamente ao objeto do qual é desenho). Então, a experiência especular pode explicar o nascimento de uma noção como a (semiótica) do iconismo, mas ela mesma não é explicada. Todavia, o espelho, fenômeno-limiar, pode prestar-se a algumas operações que o tornam ainda mais “limiar”. De fato, posso reduzir o iconismo absoluto das imagens especulares, e os espelhos esfumados são” exemplos excelentes dessa técnica, O espelho começa a transformar-se em prótese redutiva. Imaginemos um espelho composto de listas horizontais de superfície refletora, intercaladas por finas listas opacas. A imagem virtual que eu vejo é, obviamente, incompleta. No plano da reconstrução perceptiva, o resultado pode ser excelente, variando a eficácia de acordo com a largura das listas opacas. Imaginando listas opacas de uma largura razoável, mesmo que a imagem refletida não seja a minha (sobre a qual já sei muito, tanto que a construção do que foi percebido poderia valer-se de informações prévias), posso perceber de modo satisfatório o objeto refletido. Isso não impede qu -enham interferido elementos (mesmo mínimos) de interpretação. % -
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Contudo, elementos interpretativos desse gênero interferem até na percepção de objetos do mundo circunstante. O escuro, a presença de obstáculos opacos, a névoa, são todos “rumores” no canal, que tornam “menos definidos os dados sensoriais e impõem esforços de interpretação que levam à formação (fregiientemente conjetural) do conteúdo da percepção. Se tais esforços interpretativos e conjeturais são entendidos como semiósicos, então a semiose se insinua em todos os aspectos da nossa relação com o mundo circunstante: mesmo admitindo essa hipótese, não se deve concluir que todo processo inicialmente semiósico seja produtivo e interpretativo de signos. Se até o espelho impõe processos semiósicos, Testa definir em que sentido esses processos não acabam na produção, interpretação e uso de “signos”. .
8. Os espelhos como designadores
rígidos
Os espelhos têm uma curiosa característica. Enquanto eu os observo, me restituem os traços do meu vulto; mas se eu mandasse pelo correio à minha amada um espelho no qual me olhei demoradamente, para que ela se recordasse da minha aparência, ela não poderia me ver (e veria a si
mesma).
Ofato óbvio que acaba de ser abordado é digno de algumas reflexões (não especulares). Se as imagens do espelho tivessem que ser comparadas às palavras, essas seriam iguais aos pronomes pessoais: como o pronome eu, que se eu mesmo o pronuncio quer dizer “mim”, e se uma outra pessoa o pronuncia quer dizer aquele outro. Todavia, pode acontecer-me encontrar uma mensagem numa garrafa, onde está escrito “eu naufraguei no arquipélago Juan Fernandez”, e eu saberia que um outro (alguém que não sou eu) naufragou. Mas se encontro um espelho na garrafa, uma vez tendo feito um esforço considerável de tirá-lo de dentro dela, verei sempre a mim mesmo, seja quem for que o tenha enviado como mensagem. Se o “espelho “nomeia” (mas, claramente, trata-se de uma metáfora), ele nomeia um só objeto concreto, um de cada vez, e sempre e somente o objeto que está na sua frente. Em outras palavras, o que quer que seja uma imagem especular, esta é determinada nas suas origens e na sua subsistência física por um objeto a que chamaremos referente da imagem. Na tentativa extrema de encontrar mais uma relação entre imagens especulares e palavras, podemos comparar a imagem do espelho a um nome próprio. Se numa estação apinhada eu gritasse “João!” teria muitas probabilidades de ver várias pessoas se voltarem. Cada João presente -
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ligaria o nome a si tnesmo. O que fez com que muitos se dissessem que os nomes próprios têm relação direta com seus portadores. E ainda, se alguém olha pela janela e diz “olha lá o João!”, eu, que estou dentro do quarto e não conheço João, sei em todo caso que o outro viu (ou diz ter visto) um ser humano do sexo masculino (salvo usos impróprios da linguagem). Então, nem mesmo os nomes próprios remetem diretamente a um objeto cuja presença determina a sua emissão. Não somente o meu colega poderia ter mentido e aludido a João quando João não estava lá, mas a expressão lingiiística /João/ tem sobretudo a propriedade de remeter-me a um conteúdo geral. Tanto é que se alguém decidisse batizar como /João/ a própria filha recém-nascida, eu o faria notar que está usando impropriamente a onomástica corrente, porque João geralmente é nome de homem.
Existe, então, diferença entre uma imagem especular e um nome próprio. Ou melhor, a imagem especular é nome próprio absoluto assim como é ícone absoluto. Em outros termos, o sonho semiótico de nomes próprios que sejam imediatamente ligados aos seus referentes (assim como o sonho semiótico de uma imagem que tenha todas as propriedades do objeto ao qual está relacionada) nasce exatamente de uma espécie de nostalgia catóptrica.* Existe de fato uma teoria dos nomes próprios como designadores rígidos segundo a qual os nomes próprios não poderiam ser influenciados por descrições fixas (do tipo “João é o tal que...”) nem submetidos a exercícios contrafactuais ( do tipo “João seria ainda João se não fosse o tal que...;”): esses estão ligados por uma cadeia de designação contínua, cadeia chemada “causal”, a um objeto originário ao qual foram atribuídos por umaespécie de “batismo” inicial.
1
*
Agora, são justamente os espelhos que nos permitem imaginar uma situação deste gênero. Suponhamos que ao longo de uma distância de alguns quilômetros, de um ponto A, onde existe o objeto refletido, a um ponto B, onde está o observador (que em condições normais não pode ver o ponto A), se coloque uma série contínua de espelhos, com intervalos regulares e inclinação adequada, de modo que num jogo de reflexos em cadeia o observador no ponto B aviste no último espelho a imagem do objeto no ponto A. Teremos sempre o caso de uma prótese-canal. Devese, naturalmente, pressupor que o número de espelhos seja ímpar. De fato, só com essa condição o último espelho em B forneceria ao observador a imagem do objeto originário comoa veria se este estivesse refletido no primeiro espelho em A. Com um número par de espelhos, a imagem apareceria “invertida” duas vezes e não estaríamos mais diante do efeito de uma prótese especular simples, mas de espelhos catóptricos mais complexos que têm, até mesmo, funções de tradução. Em todo o caso, para o
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que aqui nos concerne, basta que o observador saiba se os ão pares ou ímpares, e agirá como age diante do próprio espelho iro, ou diante de uma série de espelhos no barbeiro. Agora, devi-
ncípios enunciados como “pragmática do espelho”, o observae a) o espelho final diz a verdade e que b) é um espelho; be que c), o objeto refletido, existe realmente naquele mesmo ponto A. Esta cadeia causal faz da imagem especular final um rígido do objeto fonte de estímulos, aliás, sabe-se que a al “batiza”, por assim dizer, o objeto inicial, naquele mesmo aparato catóptrico seria um aparato de designação rígida. Não nhum artifício lingiístico que possa oferecer as mesmas garanmesmo um nome próprio, porque nesse caso faltariam dois ara uma designação absolutamente rígida: a) o objeto original ão só não existir mais, como também nunca ter existido; b) não nenhuma garantia de que o nome corresponde mesmo àquele ão a outro que possua características genéricas análogas. to, descobre-se que toda a semântica da designação rígida é do) semântica das imagens especulares, e que nenhum termo co pode ser um designador rígido absoluto (assim como não exisabsolutos). Faltando a condição do absoluto, cada designador não seja uma imagem especular, corrompível na sua rigidez de os e sob diversas condições, torna-se um designador “flexível”. te a imagem especular, como designador absolutamente rígie ser questionada por contrafactuais. De fato, nunca poderia -me (a não ser violando os princípios pragmáticos que regem as ações com os espelhos): “se o objeto do qual percebo a imagem edades diferentes daquelas da imagem que percebo, seria ainda objeto?” Mas essa garantia anticontrafactual me é dada somente fenômeno-limiar que é justamente o espelho. a dos designadores rígidos é vítima da magia dos espelhos.
signos
pelho nada tem de análogo aos nomes próprios, com mais razão e análogo aos nomes comuns, os quais remetem sempre e (à exceção do seu uso como índice) a conceitos genéricos. Mas os diz ainda que a imagem especular não seja um signo porque semiótica, das syas origens gregas aos nossos dias, elaborou to de signo que vai além do conceito de signo verbal. 23
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Segundo as definições mais antigas, um signo é aliquid que stat pro aliquo. O tipo de signo rememorativo mais elementar, teorizado pelos estóicos, é o da fumaça que está para o fogo. Agora, trata-se de verificar se a imagem especular está para o corpo que a causa como reflexo, assim como a fumaça está para o fogo que a causa. Se interpretarmos corretamente a primeira e mais completa teoria do signo já elaborada (isto é, ados estóicos), percebemos que qualquer coisa pode ser vista como signo de qualquer outra coisa, desde que se trate de um antecedente que se torna revelador do consegiiente ( onde antecedente e consegiiente têm o valor que assumem na rgjação lógica de implicação: não se trata de relação cronológica, visto que como no caso do:fogo e da fumaça o consegiiente pode muito bem ser a causa mais ou menos cronologicamente remota do antecedente). Mas, essa definição não é suficiente. É preciso acrescentar os seguintes requisitos: 1. Para que o antecedente se tome o signo do consegiiente, é necessário que o antecedente esteja potencialmente presente e perceptível, enquanto o conseqgiiente deve estar necessariamente ausente : de fato, se vejo a fumaça que surge das chamas, não tenho nenhuma necessidade de designá-la como signo do fogo. A ausência do conseqiiente assume duas formas: uma que diremos preliminarmente necessária à existência do signo como tal (isto é, o consegiiente deve estar fora do meu raio de percepção) e a outra, opcional, no sentido em que o consegiiente, como causa remota, pode não mais existir materialmente no momento em que interpreto o signo (vejam-se os rastros, as pegadas, talvez de animais préhistóricos). 2. Como consegiiência, o antecedente pode ser produzido mesmo que o consegiiente não exista e nunca tenha existido. Posso produzir fumaça quimicamente, para fazer acreditar que houve fogo. O signo serve também para mentir a respeito do estado do mundo. 3. O signo pode ser usado para mentir porque o antecedente (expressão) não requer o consegiiente como sua causa nem necessária, nem eficiente. O antecedente é pressuposto como causador do consegiiente, mas não necessariamer:f- causado por ele. 4. Existe uma Sutra característica do antecedente-expressão: ele é sempre correlato a um conteúdo mais ou menos geral e não ao referente. 5. Mas a semiótica estóica nos diz alguma coisa a mais. Não diz que a fumaça é signo, e muito menos a fumaça como ocorrência material. O signo estóico é um incorporal, e é a relação de implicação entre duas proposições (“se há fumaça, então há fogo”, que também se poderia traduzir nos termos de uma lei: “sempre que houver fumaça, deve-se presumir que há fogo”). A relação semiótica é, então, uma lei que —
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um antecedente tipo a um consegiiente tipo.
O signo não é que esta fumaça me remeta àquele fogo: a classe geral ncias reconhecíveis como fumaça remete à classe geral das iníveis como fogo. A relação ocorre entre tipos e não entre
que a relação semiótica ocorra entre tipos permite que ela o canal ou medium material no qual, e através do uzidas e veiculadas as suas ocorrências correspondentes. A a fumaça/fogo permanece a mesma, seja a fumaça pronte, mencionada verbalmente, ou representada por relação que liga os pontos e traços às letras do alfabeto código Morse permanece inalterada, sejam os pontos e mitidos como simples sinais elétricos ou batidos por um aredes da sua cela.
aqui em parte desenvolveremos (mas não muito) os tóicos originais, o conteúdo de uma expressão é interante da fumaça alguém anuncia o fogo, posso sempre que entende por fogo, e este alguém pode explicá-lo ogo, a imagem de uma chama, pronunciando uma al, evocando-me uma sensação térmica, citando-me um dente no qual eu experimentei a presença do fogo. Assim, nome /João/ eu posso perguntar qual é o significado do é necessário que o locutor me coloque obrigatoriamente ão, basta que mo defina de algum modo (o marido de Lúcia, ê conheceu ontem, aquele representado nesta miniatura, aminha com a cabeça desse ou daquele jeito, etc.) Toda ão somente me define o conteúdo da expressão, mas cada odo, me faz conhecer alguma coisa a mais sobre elas 2
s espelhos
não produzem signos
tas sete premissas,
fica enfim claro
nãoé um signo:
em que
sentido uma
imagem especular (mesmo admitida como antecedente) está presença de um referente que não pode estar ausente. a consegiientes remotos. A relação entre objeto e imagem presenças, sem nenhuma mediação. O consegiente ente sob forma da ação de prótese do espelho) no raio de rete. é causalmente produzida pelo objeto e não é possível usência do objeto.
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3º. Como já foi visto, portanto, a imagem especular não pode ser usada para mentir. É possível mentir sobre as imagens especulares e a respeito delas (fazendo passar por imagem especular fenômenos que não o são), mas não se pode mentir com a imagem especular e através dela. 4º. A imagem especular não é relacionável a um conteúdo, ou melhor, poderia até sê-lo (eu olho a minha imagem no espelho para refletir sobre as características genéricas do corpo humano), mas somente graças a uma sua relação necessária com o referente. Os signos podem ser atribuídos a um referente porque remetem, antes de mais nada, a um conteúdo, enquanto a imagem especular pode remeter a um conteúdo somente porque mantém uma relação primária com o referente. 52. Portanto, a imagem especular nunca estabelece uma relação entre tipos mas só entre ocorrências (o que é um outro modo de distinguir o imaginário do simbólico o simbólico implicando numa mediação de caráter “universal”, que é exatamente a relação entre tipos). 62. Deduz-se que a imagem especular não é independente do canal —
do medium no ayal é modulada e ao qual é vinculada. com um, e somente*um, canal, o espelho.
ou
É um só corpo
q
7º. Enfim, a imagem especular não é interpretável. No máximo é interpretável (em termos de inferências de vários gêneros, definições, descrições cada vez mais analíticas) o objeto ao qual ela remete, ou seja, o campo estimulante do qual se constitui uma duplicata. A imagem como tal pode somente ser refletida, tal e qual, por um segundo (terceiro, quarto...) espelho. Por outro lado, se a interpretabilidade é característica dos conteúdos, uma imagem sem conteúdo é, por definição, não-interpretável (pelo menos no sentido que conferimos ao conceito de interpretabilidade).
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11.
Freaks: os espelhos deformantes
“irreal”.
As imagens especulares não são signos e os signos não são imagens especulares. E ainda assim podem existir casos em que os espelhos são usados de tal maneira que produzem processos definíveis como semiósicos. O primeiro caso curioso é o dos espelhos deformantes, cujos admiráveis efeitos já eram celebrados pelos físicos árabes e pelo Roman de la rose. Estranha prótese, o espelho deformante estende, mas deforma, a função do órgão, como uma corneta acústica que transformasse qualquer discurso num trecã» de ópera-bufa. Logo, uma prótese com funções
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alucinatórias. Se gomamos substâncias alucinógenas, continuamos 1
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perceber formas, cores, sons, odores, mas de modo alterado. Os órgãos sensoriais funcionam de modo anômalo. E mesmo assim sabemos que são os nossos órgãos sensoriais, nos quais normalmente confiamos. Se não sabemos que estamos drogados, acreditamos neles, com os efeitos mais imprevisíveis; se o sabemos, na medida em que ainda conseguimos controlar as nossas reações, nos esforçamos por interpretar e traduzir os dados sensoriais para reconstruir percepções “corretas” (ou seja, análogas às da maioria dos seres humanos). O mesmo acontece com o espelho deformante. Se não sabemos nem que é espelho, nem que é deformante, então nos encontramos numa situação de engano perceptivo normal. Mais interessante é o caso em que sabemos que temos diante de nós um espelho deformante, como acontece nos parques de diversão. O nosso comportamento é então dúplice: por um lado nos divertimos, ou seja, aproveitamos as características alucinatórias do canal. Decidimos então aceitar (lucidamente) o fato de termos três olhos, ou uma barriga enorme, ou pernas curtíssimas, assim como se aceita uma fábula. Na verdade, entramos: numa espécie de descanso pragmático: aceitamos que os espelhos, que normalmente devem dizer a verdade, não a digam. Mas a suspensão da nossa incredulidade não diz respeito tanto à imagem, quanto à virtude da prótese deformante. O jogo é complexo: por um lado me comporto como se me encontrasse diante de um espelho plano, que diz a verdade, e acho que me devolve uma imagem “irreal” (daquilo que não sou). Se tomo a imagem como correta, ajudo, por assim dizer, o espelho a mentir. O prazer que sinto nesse jogo não é de ordem estritamente semiósica, é de ordem estética. Faço o mesmo com outras próteses também, por exemplo, quando observo o mundo com uma lente colorida. Mas este jogo não é diferente do que faço se, em meio a um grande burburinho, comprimo as orelhas com as palmas das mãos, tirando-as e reapertando-as ritmadamente, de modo a ouvir um rumor
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Porém, ao mesmo tempo (ou logo depois), sobrevém um outro tipo de comportamento: como sei que me encontro diante de um espelho penso que de algum modo, este diga sempre a verdade porque reflete (mesmo que “mal”) raios incidentes provenientes do meu corpo. (Naturalmente o discurso também vale se olho no espelho deformante o corpo de outra pessoa, mas é indubitável que o assunto torna-se psicologicamente mais interessante, narcisisticamente, se o corpo é o meu). Em tal situação, eu interpreto os dados que o espelho me fornece, do mesmo modo que, nos fenômenos de refração, mesmo não cessando de ver o bastão que se quebra na água eu, todavia, interpreto os dados ,
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continuando a julgar que o bastão está inteiro. Existem regras de interpretação (se não em nível perceptivo, pelo menos em nível de julgamento intelectual) para “decodificar” as ilusões de óptica. Diante do espelho deformante ponho em jogo algumas regras de projeção, segundo as quais a um determinado comprimento ou amplitude da imagem virtual deve corresponder um determinado comprimento ou amplitude no objeto refletido. Procedo como se devesse interpretar um tipo de projeção cartográfica nos termos de uma outra. Tais regras de projeção não são diferentes das que avlico para reconhecer num desenho estilizado, caricatural, apenas sugarido, as características do objeto ou da classe de objetos-tipo a que rêmete. Nesse sentido, a experiência da imagem deformada constitui um ulterior fenômeno-limiar que desloca as fronteiras entre o especular e o semiósico. Se não fosse pelo fato de que, como já foi dito, também a imagem deformada ser supérflua em relação ao referente, deveríamos dizer que ela tem muitas características do semiósico, ainda que somente esboçadas, imprecisas, flutuantes. Por exemplo, nessa relação, que é sempre entre ocorrência e ocorrência, sou induzido a ver a mim mesmo como a figura de um outro (de um gigante, de um anão, de um ser monstruoso): há como que um início de um processo de universalização, um esquecer-se do referente para fantasiar sobre o conteúdo mesmo que seja com uma tentação continuamente reprimida, controlada pela consciência da singularidade do fenômeno, por um raciocínio frio sobre a situação alucinatória em ação... Há um “saber mais” sobre aquilo que sou ou poderia ser, uma aurora de exercício contrafactual, um início de —
semiose.
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Talvez, aterrorizados por essa possibilidade, releguemos os espelhos deformantes aos castelos encantados, para não ter de pôr em perigo a fronteira, que instintivamente tão bem traçamos, entre catóptrica e semiose. Umaúltima anotação: indubitavelmente, a imagem que me é devolvida pelo espelho deformante é sintoma do fato de que o espelho, como canal, é, sem dúvida, deformante. Assim como a imagem do bastão partido me diz que o bastão (cerro se eu ainda não o soubesse) está submerso na água. Já descrevemos é : usos sintomáticos da imagem, onde a imagem não nos dá informações Sobre o objeto, mas sobre a natureza do canal. Nestes casos, é aminha surpresa perceptiva (como é que eu vejo o bastão partido, meu rosto com três olhos, quando eu sei que “não é o caso”?) que se torna sintoma das anomalias do canal. Para o qual o esforço semiósico ocorre entre surpresa perceptiva (neste caso equivalente a uma sensação térmica anômala) e canal, não entre imagem e objeto.
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12. A mise-en-scêne procatóptrica
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Veremos agora um caso mais inquietante. Estou num quarto, tenho na minha frente um espelho vertical, colocado obliquamente em relação aos raios que emanam do meu corpo. Efetivamente eu vejo ali não eu mesmo, mas alguém no quarto ao lado, que age sem saber que está sendo visto. Caso análogo ao do xerife que no filme de bangue-bangue vê, no espelho do bar do saloon , que na sua frente está o bandido que entra às suas costas. Esses casos não parecem problemáticos, já se disse que o espelho é prótese, e em certos casos desenvolve a ação intrusiva de um periscópio. Imaginemos agora que no quarto ao lado esteja um sujeito S1, o qual sabe que S2 o está espionando através do espelho, mas acha (corretamente) que S2 acredita que S1 não sabe que S2 o está olhando. S1 quer fazer S2 pensar que ele (acreditando que não está sendo visto) está fazendo alguma coisa que o valoriza, e executa algumas ações que S2 deve considerar espontâneas, mesmo sendo ações que S1 faz para S2 e para seu exclusivo benefício (ou malefício). S1 está, então, pondo em ação uma representação de tipo quase teatral, a menos que o espectador confunda o teatro com a realidade. Sl usa a imagem especular para mentir. Que há de semiósico nesta situação? oo Tudo, embora nada relativo à imagem especular em si. Também usando a linguagem verbal posso fazer uma afirmação verdadeira com o objetivo de dar a entender ao meu interlocutor uma outra coisa (a respeito das minhas idéias, dos meus sentimentos ou de outras coisas) que não correspondam à verdade. E o mesmo acontece neste caso. A imagem especular continua a ter todas as características de obtusa honestidade que teria se S1 agisse de boa-fé; ela reflete exatamente o que Sl faz. Eo que S1 faz é mise-en-scêne e, portanto, artifício semiótico. Existe uma mise-en-scêne profílmicaé Eu posso até acreditar que a máquina de filmar seja'o instrumento mais “verídico” do mundo, mas isso nada tem aver com à predisposição da cena que ela vai filmar — e a respeito da qual eu posso não nutrir a convicção que seja matéria de ficção. Diante de um filme que representa uma fada com sete anões numa carruagem voadora, eu sei que fada, anões e carruagem são mise-en-scêne (ficção) e sei, mais ou menos, o quanto devo confiar na fidelidade da câmera usada paraa filmagem. Somente uma criança pode, considerando como pura verdade a tomada cinematográfica, tomar como realidade até mesmo a miseen-scêne (mas a sua imaturidade diz respeito a uma semiótica da mise-enscêne, nãoa uma semiótica da tomada cinematográfica). Do mesmo modo, existe uma mise-en-scêne procatóptrica. Com ela podem-se criar ilusões de realidade. Mas nesse caso o discurso semiótico se desloca da imagem especular para a mise-en-scêne. A imagem especu-
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lar é
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o canal dos signos procatóptricos. Essas reflexões sugerem ainda que, além de uma mise-en-scêne procatóptrica, pode existir também uma gramática do enquadramento e uma técnica de montagem catóptrica. S1 pode inclinar o espelho de modo que S2 veja somente alguns aspectos da cena que está se desenvolvendo no quarto ao lado (independentemente do fato de que esta seja real oumise-en-scêne). O espelho é sempre o artifício que enquadra, e o fato de incliná-lo de um certo modo explora esta sua propriedade. Mais uma vez, o artifício semiósico não diz respeito à imagem especular (que, como sempre, restitui as coisas tal como o espelho as vê) mas à manipulação do canal. Imaginemos agora que S1 disponha de um controle remoto que possa inclinar o espelho segundo a sua vontade, de modo que ele possa mostrar a S2, em poucos segundos, primeiro um detalhe do que acontece num canto do quarto ao lado, depois um outro aspecto do que acontece num outro canto. Se no primeiro canto o espelho mostra um certo objeto, no outro um indivíduo que olha para a frente com olhar vago, S1 poderia criar catoptricamente aquilo que na montagem cinematográfica se chama efeito Kuleshov. “gundo a “montagem” que elabora, S1 pode dar a entender a S2 que ó homem sentado olha cada vez com olhar diferente, com ódio, com luxúria, com surpresa, diversos objetos. Um rápido jogo de inclinação dos espelhos poderia fazer S2 perder a noção das efetivas relações espaciais entre os objetos. Neste caso, a manobra dos espelhos poderia produzir uma autêntica situação semiósica, um conto, uma ficção, uma manipulação da verdade. O uso dos espelhos como canais pode permitir mise-en-scêne, enquadramento e montagem dos enquadramentos, todos artifícios semiósicos que darão um melhor rendimento quando se referirem a imagens não especulares. Aquilo que permaneceria inalterado (qualquer que seja a alucinação de S2) seria a natureza assemiósica das imagens especulares, sempre ancoradas por uma relação causal ao seu referente. S2 poderia ser levado a processos de universalização, a quase esquecer que observa imagens especulares, vivendo assim uma “estória-tipo” e não uma estória-ocorrência.
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Todavia, a experiência poderia ser repetida no dia seguinte. Que haveria de diferente da mise-en-scêne natural (isto é, de uma comédia normal) onde parece que cada reprodução de ocorrência gestual seja ligada fisicamente à presença de um ator que a encarna? É que na representação teatral o ator não é referente do discurso, é, quando muito, o próprio canal, e os seus gestos ocorrentes remetem a gestos de tipo interpretável, atribuíveis a outros seres humanos. Enquanto nesta representaçã catóptrica as imagens especulares (o espelho agindo a
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eriam a referentes salvo esforço de interpretação do alizar a experiência. Mas nesse caso o espectador mbramos, é que ele saiba que está observando um portaria mais uma vez ambiguamente, como Alice, teria lho, viveria a imagem virtual como se fosse real. Mais ão-limiar, alucinatória. —
pecular dessa história faria com que ela não pudesse, s seus próprios referentes causais: ela permaneO entre semiose e especularidade, entre simbólico e
das morganas
eflexão parcial é o arco-íris, ainda que misturado a o e dispersão da luz solar que atravessa pequenas amadas baixas da atmosfera. Todavia, a sua imagem mo imagem especular. Ele pode ser usado semiosidois casos. Pode ser visto como um prodígio, “signo” ade: porém não mais do que são considerados como rais, os maremotos, os eclipses, o vôo dos pássaros. A mpos imemoriais, semiotiza vários fenômenos m função de sua natureza catóptrica específica. e ser interpretado e usado como sintoma (do fim do ode também funcionar na ausência do referente aparecem arco-íris também nas quedas das cascatas. esmo quando é usado corretamente como sintoma da água suspensas na atmosfera, ele é sintoma não de um a situação anômala do canal. Quanto às fadas morganas ares, nunca são interpretados, pelo observador ingênuo, eculares: representam casos de ilusão perceptiva. O. pode interpretá-los como sintoma de uma situação do da presença de um objeto distante. Isso apurado, pode agens especulares daquele objeto, e até mesmo como
ente os fenômenos de fada morgana que nos concom espelhos, definidos através dos séculos de 31
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diversas maneirasicomo Theatrum catoptricum, Theatrum polydicticum, Theatrum protei, Speculum heterodicticum, Multividium, Speculum multiplex, Tabula scalata, etc.” Todas estas maquinações podem serreduzidas a três alternativas. a) Através de espelhos se multiplicam e alteram imagens virtuais de objetos, postos em cena de qualquer modo, que o observador reconhece como refletidos por espelhos. b) Através do jogo combinado de espelhos recurvos diferentes, partindo de um objeto colocado em cena, criam-se imagens reais que o observador deve considerar efeito de um prodígio. c) Através de espelhos planos, dispostos de maneira adequada, criase sobre uma superfície especular a imagem de mais objetos superpostos, justapostos, amalgamados, de modo a dar ao observador, que ignora assistir um jogo catóptrico, a impressão de aparições prodigiosas. Ora, no caso a) o observador, consciente da natureza catóptrica do jogo, não está em situação diferente da de quem se encontra na presença de espelhos contrapostos de várias maneiras, que ele mesmo manobra. Pode desfrutar esteticamente da manipulação do canal ou dos canais. Enquanto, com um binóculo, observa melhor uma mise-en-scêne teatral, o binóculo é destinado à percepção damise-en-scêne; neste caso, é amiseen-scêne que está dirigida para a percepção estética das possibilidades da prótese-canal. Em cada evento fruído esteticamente têm-se fenômenos de auto-reflexividade. O fruidor focaliza a própria atenção não só sobre a forma das menszens, mas também sobre o modo pelo qual essas são exploradas pelo3 >anais, assim como em uma execução orquestral não se usufrui somente-da melodia (que como tal é independente do canal) mas também do modo pelo qual são explorados os recursos do instrumento. Nos casos b) e c), em vez disso, estamos de novo em situações afins às das fadas morganas e das ilusões de óptica em geral. Os espelhos são ainda usados como canais, mas o observador não concentra nenhuma atenção neles, porque ignora a sua presença, No máximo, desfruta esteticamente de uma mise-en-scêne cuja natureza ignora. E, se acredita que se encontra diante de um prodígio, sua situação não é diferente daquela de quem vê a si mesmo num espelho e pensa que se encontra diante de um intruso em carne e osso. Pura ilusão perceptiva, não a
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experiência de imagem especular vivida como tal. “À luz da tipologia dos modos de produção sígnica (vide o meu Tratado geral de semiótica), essas produções de ilusões perceptivas podem ser definidas como estímulos programados. Como tal, baseiam-se numa mise-en-scêne que é fenômeno semiósico (tanto é que poderia ser canalizada de outros modos; e não se usam mais teatros de espelhos já que
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possível dispor de diversos sistemas de projeção de imagens), mas as imagens especulares usadas são em si verídicas e assemiósicas. é
15.
Espelhos que “congelam” a imagem
Prosseguimos agora com a nossa experiência fenomenológica, imagio espelhos mágicos (no sentido de realmente mágicos, e não usados ara criar impressões de magia). Imaginamos dispor de um espelho congelante. A imagem refletida congela-se sobre a superfície, mesmo
quando o objeto desaparece. Finalmente instituífmos uma relação de ausência entre antecedente e consegiiente. Todavia, ainda não teremos eliminado a ligação causal entre referente originário e imagem. Um passo adiante, então, mas mínimo. Espelho congelante é a chapa fotográfica. Considera-se aqui, naturalmente, a existência de uma chapa capaz de reproduzir a imagem com altíssima definição (comprimento de onda relações de intensidade, contornos): e por outro lado somos capazes de reconstruir perceptivamente também as imagens dadas pelos espelhos quebrados ou interrompidos por listas opacas. O que torna uma fotografia semelhante a uma imagem especular? Uma convicção pragmática segundo a qual a câmera escura deveria dizer a verdade tanto quanto o espelho, e de qualquer modo, atestar a presença de um objeto impressor (presente no caso do espelho, passado no caso da fotografia). A diferença é que a chapa impressa constitui, sem dúvida, um registro ou um vestígio. Um registro tem algumas características diferentes da imagem especular, mesmo deixando de lado as relações de inversão sobre a chapa, ou de reversão, sobre fotografia estampada, de restituição da simetria inversa, ou seja, de efetiva inversão daquela simetria congruente que caracterizava a imagem especular. O que nos interessa é que a chapa traduza os raios luminosos em outra matéria. O que percebemos não são mais raios luminosos, mas relações de intensidade no estado
uro, é relações de pigmentação. Acontece então uma projeção de matéria a matéria. O canal perde em consistência, a foto pode ser: retraduzida de diversas maneiras, as relações permanecem inalteradas. A imagem não é assim tão independente do canal comoo alfabeto Morse o é do material no qual seus sinais-tipo podem ser realizados, mas há um início de liberação. Essa heteromaterialidade, típica de todos os registros*, faz com que na ontogênese do sujeito o “estágio da foto” seja muito mais tardio do que o est ágio do espelho. A criança não tem dificuldade de reconhecer-se na imagem especular; o menino em idade pré-escolar faz muito esforço (e 33
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necessita de um certo aprendizado) para reconhecer os objetos fotográficos: antes, com freqiiência, encara as imagens como expressões que remetem a um conteúdo genérico, e somente através dessa passagem ao universal realiza depois atos de referência impróprios. Vê a foto de uma mulher, adota-a como foto de mulher-padrão, aplica esse padrão a uma mulher ocorrência “Y”, e afirma que é a foto da mamãe. Erra ao citar aquele nome próprio-impróprio, aquele designador flexível que é a imagem fotográfica. Estamos já na semiose. Os efeitos desses primeiros erros refletem-se na nossa pragmática da fotografia. Provatde que alguma coisa existia para impressionar a chapa (fregiientemente usada como prova), ela, todavia, sempre gera a suspeita de que alguma coisa não existia. Sabemos que alguém, ou por mise-enscêne, ou por efeitos ópticos, ou por misteriosos jogos de emulsão, solarização, et similia, pode ter feito aparecer a imagem de alguma coisa que não era, que não foi nem será nunca. A foto pode mentir. Sabemos disso até mesmo quando supomos, ingenuamente, quase confiantemente, que ela não minta. O referente objetivo é conjeturado, mas corre o risco de desfazer-se a cada momento em puro conteúdo. Uma foto é a foto de um homem ou a foto daquele homem? Depende do uso que dela fizermos. Às vezes, por uma passagem sub-reptícia ao genérico (universal, conteúdo) tomamos a foto de X como se fosse a foto de Y. Não é um simples erro de percepção, como se víssemos no espelho a imagem de X que entra e acreditássemos que se trata de Y: é alguma coisa a mais, é que em cada registro, mesmo bem definido como o da chapa impressa, as características genéricas acabam prevalecendo sobre as características específicas. No espelho, exceto os teatros catóptricos, sou eu que escolho o enquadramento, mesmo quando espio os outros: basta que me desloque. Além disso, no espelho, se me vejo da cintura para cima, sem as pernas, basta que me aproxime e olhe dentro, para baixo, e o quanto possível verei as pernas que a imagem não me mostrava antes. O objeto está ali, causando a imagem, até mesmo onde eu, inicialmente, não a via. Nafoto, em vez disso, c gaquadramento já está feito e é rígido; se a imagem não tem pernas, jaránis verei aquelas pernas, devo somente pressupô-las: poderia ser a foto de um cul-de-jatte *. E o que pressuponho não são as suas pernas, mas a sua “bipedidade”. A impressão de referência se desfaz subitamente num jogo de conteúdos. A foto é já fenômeno semiósico. Segunda experiência mágica: a imagem congelada se move. O cinema, obviamente. Onde intervêm todas as considerações feitas para a
JO 9
*
Indivíduo
sem pernas nem coxas.
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fia, mais tudo que se refere à gramática da montagem, com todos de mentira e de universalização que esta permite. Registros, movimento. ceira experiência. O registro tem baixíssima definição, o espelho m congelador de imagens, mas não tenho sequer a garantia de que e um espelho, e de que exista um referente determinando a imaese vênão somente é mise-en-scêne, enquadramento, escoulo visual, mas efeito de uma operação sobre a superfície, de parece refletir raios provenientes de um objeto. Estamos Aqui, a esta altura, todos os requisitos do fenômeno semiósico ados, a física da produção liga-se à pragmática da interpretação radicalmente diferente de tudo o que acontece com a imagem à
nossas três experiências imaginárias nos levaram a imaginar que nada mais têm a ver com os espelhos. Mesmo que, ao esses fenômenos, não se consiga abandonar totalmente a lemda imagem especular, da qual são macacos de imitação (assim é sempre símia naturae). rre, todavia, retomar por um momento a nossa experiência da sede espelhos colocados em intervalos regulares ao longo de uma
-se agora de supor que, no lugar da série de espelhos, ali estejam paratos que transformam os raios luminosos provenientes do m sinais elétricos, que um aparelho final retransforma em os. A imagem recebida na chegada teria todas as característiles registros que são as fotografias e as imagens cinematográfimateriais, na mais baixa definição da imagem especular (mas os considerar esse inconveniente como provisório), retraduzidas as). E, todavia, um tal sistema pareceria, como a cadeia de os,' um sistema de designação rígida, porque a imagem seria ada pelo referente presente que a causa, e a relação seria de ncia a ocorrência.
turalmente esse dispositivo, no qual se reconhece um modelo mático de transmissão televisiva, teria essa característica somente issão fosse ao vivo. Uma transmissão televisiva em vídeo-teipe stingue, quanto ao comportamento pragmático a que induz, de eção cinematográfica, exceto por diferenças na definição da no tipo de estímulo sensorial veiculado até os olhos. Somente a televisiva ao vivo teria, do espelho, a relação absoluta com não ser que (e o princípio poderia valer também para série de que refletem uma imagem a distância) seja exatamente a a espacial entre referente e imagem, que gera, mais ou menos in35
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uma
eseregistros, basta recorrer ao experimentum crucis: reproduza-se um espelho numa fotografia, num enquadramento cinematográfico ou televisivo, num quadro. Essas imagens de imagens especulares não funcionam como imagens especulares. Do espelho não surge registro ou icone que não seja um outro espelho. O espelho, no mundo dos signos rma-se no fantasma de si mesmo, caricatura, escárnio, lembrança. . Pode-se fazer um retrato, fotográfico ou pictórico, e convencer que é Tealístico”, mais verdadeiro que o original. Dos espelhos não nasce imagem mais verdadeira do que os originais. O catóptrico, capaz de refletir (sem modificá-lo) o semiósico que existe fora dele, não pode ser Tefletido” pelo semiósico. O semiósico pode somente universalizá-lo reduzi-lo a gênero, esquema, conceito, puro conteúdo. os universos, dos quais o primeiro é o limiar para o segundo, não têm pontos de encontro, os casos-limites dos espelhos deformantes são pontos de catástrofe, em certo momento é necessário decidir-se, ou se está qui, ou se está lá. .
semiótica da imagem fotográfica, cinematográfica e televisiva. Ela
se encontra dentry das fronteiras da semiose, mas por certo não dentro dos limites do lingiígtico. Cada registro é uma projeção que funciona como um todo topo-sensível, não como uma seqiiência de elementos discretos e refutáveis por ratio facilis.:º O modo de interpretar um registro (que já é signo) é afim àquele com o qual se interpreta uma imagem especular deformada ou pouco definida (que não é signo). Procede-se por relações de projeção, a tal dimensão na imagem deve corresponder outra dimensão, se não no objeto-ocorrência (referente) pelo menos no objeto-
tipo (conteúdo) do qual a imagem me “fala”. As verdadeiras e exatas categorias “gramaticais” intervêm ao nível de enquadramento e montagem. Os registros não são imagens especulares, mas continua-se a lêlos quase como se o fossem. E, às vezes, pode-se fruir das possibilidades semiósicas de tais imagens-registros como se fossem imagens especulares e, em consegiiência, resultado de uma percepção “real” tout-court, investigando as suas estratégias em níveis superiores de manipulação. Salvo reinterrogarnos sobre as modalidades, abundantemente culturalizadas, de interpretação das imagens-registros, quando surja o problema da presumida relação causal entre estas e o referente.
16.
O experimentum crucis
Em todo casp, por mais fortes que sejam as ilusões, as ambigiiidades, as confusões “sgbre o limiar”, a tentação de homologar imagens especu$
ne
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conscientemente, a suspeita de potencial ausência. O objeto deveria estar presente, mas também poderia não estar. Sem levar em conta o elemento, contudo fundamental, ou seja, que a prática da transmissão em: vídeoteipe cria em cada destinatário desconfianças quanto à veracidade da transmissão ao vivo. A imagem televisiva, do ponto de vista pragmático, participa das vantagens da imagem especular, e das desvantagens de outros registros foto e cinematográficos. E ocorrência, supérflua ao referente, mas poderia também não sê-lo. Quem pode ter certeza? E, ao longo do canal, quantas e quais manipulações podem ter interferido? E qual a importância, não só do enquadramento, mas da montagem, aquela montagem que se faz notar também ao vivo, devido à qual a câmera decide quais os aspectos do referente real explorar, e a mensagem pode criar efeitos Kuleshov a todo instante? Mas esses confrontos entre os registros fotossensíveis e as imagens especulares nos dizem ao menos alguma coisa de muito importante para
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universo catóptrico é uma realidade capaz de dar a impressão da alidade. O universo semiósico é uma virtualidade capaz de dar a impressão da realidade.
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—
os
escritos técnicos de Freud (1953-54), Rio de
2. Jacques Lacan, Scritti, Turim, Einaudi, 1974. '
3. Umberto Eco, Tratado geral de semiótica, São Paulo, Perspectiva, 1980
Kripke, Norme
4 5.
Ch.
Turim, Boringhieri, 1982. Turim, Einaudi, 1980, p.189.
e necessitã,
S. Peirce, Semiotica,
6. Gianfranco Bettetini, Produzione del senso e messa in scena, Milão, Bompiani, 1975 7. Jurgis Baltrusaítis, Lo specchio, Milão, Adephi, 1981. 8. Umberto Eco, cfr. Tratado, op.cit.
:
9. Nelson Goodman, 1 linguaggi del? arte, Milão, Sapgiatore, 1976 10. Umberto Eco, cfr. Tratado, op.cit.
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O SIGNO TEATRAL
situação teatral por excelência: um ser humano, com os seus gestos cotidianos e as suas características mais notáveis, é exposto com fins Fepresentátivos. A sua representatividade não é ada representação teatral, é aquela pela qual um signo Tepresenta sempre alguma coisa a mais, aos olhos de alguém, sob qualquer aspecto ou capacidade, como dizia Peirce.
E, porém, não é por acaso que para indicar a ação teatral usamos, pelo menos em italiano, o termo rappresentazione, que é o mesmo que se usa para o signo. Chamar uma representação teatral de “show” acentua so-
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Gostaria de antecipar que o teatro representa a forma de comunicação artística que me é mais alheia, à qual nunca dediquei estudos espec co ) e que, nos últimos anos, por razões totalmente casuais, encontr u-me ausente e distraído. Esta premissa é feita não com pesare vergo a S por razões de eficácia metodológica: digamos que me sinto conten e po sacrificar-me como cobaia para O bom êxito da nossa mesa-redon: as Tenho, por assim dizer, a oportunidade de encontrar-me nas mes as condições do Averroé, de quem fala Borges em um dos seus contos>au e se propõe a questão do que seja uma ação dramática, tem o encontra oa definição abstrata em Aristóteles sem que a sua civ zação algu na vez lhe houvesse apresentado um exemplo correto. Averroé era incapaz, segundo o contc;,* de reconhecer uma ação teatral que algumas crianças estavam de fato tesenvolvendo debaixo de sua janela, ao brincarem de rsonificar personagens diversos. Pe Confesso que meu alheamento, mais do que em distração, consiste em Verfremdung, distanciamento revelador. Quero colocar-me frente àação teatral nas suas formas mais elementares, com o olho do semiólogo, para
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entender duas coisas: a) os problemas que a própria existência de uma ação teatral elementar o
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impõe ao estudioso da significação; 9) que os estudiosos significação elaboraram e esclare ceram de problemas maneira tal a ponto dedapoderem oferecer, indiretamente, cc.
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sugestões úteis a quem se interesse por teatro.
Gostaria dedepartir um exemplo quase por acaso, no encerramento umade discussão sobremencionado os signos icônicos, pelo grande mestre da semiótica Charles Sanders Peirce (Collected Papers, 2.282) O exemplo se refere a um homem bêbado, apresentado para demonstrar a necessidade da temperança.- Refletindo bem, trata-se de
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mente as suas características de ostentação de uma certa realidade; chamá-la “play” acentua as suas características lúdicas efictícias; chamála “performance” acentua as suas características de execução, mas chamá-la “representação” acentua o caráter de signo de cada ação teatral, onde alguima coisa, fictícia ou não, é exibida, através de alguma forma de execução, com fins lúdicos, mas antes de mais nada para que fique no lugar de alguma outra coisa.
O teatro é também ficção, somente porque é, antes de mais nada, signo. E justo dizer que muitos signos não são ficções na medida em que, pelo contrário, pretendem denotar coisas realmente existentes. Mas o
signo teatral é signo fictício não porque seja um signo falso ou um signo que comunica coisas inexistentes (e tratar-se-ia, pois, de decidir o que significa dizer que uma coisa ou um evento são inexistentes ou falsos) mas porque finge não ser um signo. E tem êxito nesta empresa porque o signo teatral pertence aos signos classificados por alguém como naturais e não artificiais, motivados e não arbitrários, analógicos e não con-
vencionais.
Em outras palavras, o elemento primário de uma representação teatral (além da colaboração de outros signos como os verbais, cenográficos, musicais)é dado por um corpo humano que se sustenta e se move. Um corpo humano que se move se apresenta como uma coisa verdadeira, eventualmente objeto de signos possíveis (fotografável, definível verbalmente, desenhável. --). Mas o elemento sígnico do teatro consiste no ato de que esse corpo humano não é mais uma coisa entre outras coisas, porque alguém o exibe, recortando-o do contexto dos eventos reais, e O constitui como signo constituindo ao mesmo tempo como significanOS movimentos que este executa e o espaço no qual se inscrevem. Tal é o bêbado de Peirce. Quando bebiá e cambaleava por conta própria era um objeto do qual se podia eventualmente falar. Agora que foi mostrado, mesmo se não é um indivíduo que fala, é já, contudo, uma “palavra”. O bêbado verdadeiro está para a classe dos bêbados. Ele é um significante cujo significado (interpretável em palavras, desenhos, definições e conceitos) é “homem bêbado”. Esta situação elementar nos permite três tipos de observação: —
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corrente retórica já dita, “elogio à temperança”, não é necessário une) considerado em todas as suas características físicas. Será por exem Lo, irrelevante que tenha um paletó preto, ao invés de cinza e um nai aquilino ao invés de achatado. Não será irrelevante que o paletó seja novo ou surrado e o nariz vermelho ou verruguento. Pode ser que se a irrelevante que tenha 32 ou 28 dentes, mas não é irrelevante que os quatro den tes que faltam sejam os incisivos superiores; e, contudo, seria pertinente a diferença entre 28 e 32 dentes. Um objeto, uma vez considerado signo unciona como tal para alguns e só por algumas das suas características, não por outras, e, portanto, constitui (já no âmbito da convenção re resentativa) uma abstração, um modelo reduzido, uma construção semiósica Agora suponhamos que o nosso bêbado faça um movimento esboce um tropeção. Pode fazê-lo sem querer, ou porque está tomado. r furor exibicionista (ele quer manter alegre a companhia). No tim iro caso o gesto é um sintoma, e todavia funciona como signo para cem dele infira a instabilidade motora do embriagado (e, portanto o tro ão corrobora o significado de miserável intemperança). O tropeção TODOSão tal, ao contrário, seria signo para todos os efeitos, mas quem arante q ue será interpretado como proposital? Ou que o bêbado o tenha executad para que fosse interpretado como proposital? ?
Considerando que os signos podem ser emitidos e recebidos seja inencionalmente (+) ou sem intenção (-) por parte do Emitente (F) e d Destinatário (D), e dado que este último pode atribuir ou não ao Emitente uma Intenção (TE), eis que as várias possibilidades são expressas seguinte matriz: Pea pel
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+ +
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Porque, para que o nosso bêbado signifique “homem bêbado” e,
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a) não é necessário, para que exista um signo, que o signo seja emitido intencionalmente por alguém e seja construído artificialmente como signo; basta que exista uma convenção que permita interpretar como signo um evento, mesmo natural como um sintoma, um indício ou, sem dúvida, uma “amostra”; b) todavia, como signo, o bêbado foi emitido por alguém, assim como o objeto encontrado, a partir do momento em que o artista o expõe num museu, foi de alguma forma produzido como obra de arte; c) o nosso bêbado co-significa várias coisas, em um primeiro nível, ele significa “um fomem bêbado”, em um nível retórico, significa, por antonomásia, “bebedeira”; na medida em que a antonomásia é desenivolvida em metonímia, ele conota “os perigos da intemperança”; e, enfim, visto que cada signo evoca por antonímia o próprio oposto, o antônimo, elevado por sua vez a antonomásia e desenvolvido em metonímia, significa “as vantagens da temperança”. Como vêem, toda uma ação teatral com finalidades persuasivas desenvolveu-se no exato momento em que uma dama qualquer do exército da salvação cinicamente usou o pobre homem para induzir seus semelhantes a beberem algumas cervejas a menos. Suponhamos agora que o nosso bêbado espontaneamente fale e diga por exemplo, “eu sou infeliz”. Já na vida cotidiana essa operação teria colocado em jogo uma série de fenômenos semiósicos. Em pouco tempo teríamos tido um sujeito da enunciação, o bêbado, que, no exato momento em que usa termos culturalizados, se anula no sujeito do enunciado. O eu que fala não é mais ele, é o sujeito que a cultura lhe oferece lingiisticamente para definir-se. Este pronome, além disso, teria tido valor de índice, como uma seta indicativa, um vetor de atenção, cujo significado é “tudo quanto será dito em seguida estará relacionado ao sujeito da RA) enunciação”. Mas, posto no palco, o bêbado que diz “eu” não se propõe mais este índice para indicar o si mesmo real, mas sim para indicar O significado “homem bêbado” ao qual ele remete. Não é necesgário muita imaginação para reconhecer no problema gramatical desta;oronome o problema do paradoxo do ator e dos personagens à procul de um autor. A proposta nova é: quanto e como as modernas técnicas de análise semântica e sintática podem ajudar a redefinir a ficção teatral; e quanto a ficção teatral constitui um “território privilegiado” para pôr à prova problemas semânticos e sintáticos como o uso dos índices gramaticais nas situações de referência. O nosso bêbado repropõe também o problema da definição dos signos icônicos (ingenuamente considerados como tendo uma semelhança com o objeto a que se referem).
cortesaaadaa uma abstração da matriz, é fácil ver como cada um dos casos situação comunicativ Copesponde a que acontece normalmente na Eu finjo caminhar 1 como um coxo e vocês reco
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tação voluntária de um coxo.
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represen-
2. Eu simulo e finjo ser coxo e vocês acham que sou um coxo que trai involuntariamente o seu defeito. 3. Para livrar-me de um importuno companheiro de rua, finjo estar cansado e manquejo com dificuldade. Este não percebe intencionalmente o signo, mas tem uma sensação de mal-estar e vai embora. Mais tarde apercebe-se de ter recebido uma mensagem e entende que esta foi emitida intencionalmente. 4. Situação igual à precedente, exceto que o importuno, reconsiderando, pensa que eu tenha traído involuntariamente o meu defeito 5. Passeando com um importuno, manifesto involuntariamente meu mal-estar e manco com ar cansado. Este percebe a mensageme acredita que seja emitida intencionalmente. 6. No divã do psicanalista deixo escapar um lapso. O psicanalista o decodifica como uma mensagem precisa, mesmo sabendo que não era intencional. 7e 8. Casos agálogos a 3 e 5, exceto por uma estratégia diferente de mal-entendido. Pode:se obsetvar que a matriz reproduz alguns dos modelos de interação entre falantes, tão esplendidamente analisados por Erving Goffman. Mas é também evidente que aqui temos esquematizados os casos fundamentais de comédia dos equívocos de Menandro a Pirandello, exceto que numa obra teatral as situações se entrelaçam, cada um dos personagens representando uma perspectiva diversa. Acrescente-se que, se se considera a matriz como modelo de uma combinatória teatral, seria necessário acrescentar um novo valor, e este é o modo pelo qual o Emitente gostaria que o Destinatário lhe atribuísse uma Intenção. Introduz-se então um elemento de volição do equívoco: é a situação (com a qual Lacan já se deleitou) da carta roubada, ou seja, aquela do hebreu de Varsóvia que diz ao amigo “por que me mentes dizendo que vais à Cracóvia para que eu creia que tu vais a Lenberg enquanto, na verdade, vais realmente à Cracóvia?” Por que você me mostra um bêbado fazendo-me acreditar que, através dos efeitos da bebedeira, deveria elogiar a temperança, enquanto de fato você se diverte convidando-me à embriaguez? E se o bêbado tropeça, demonstra involuntariamente a sua instabilidade motora, ou finge tropeçar para representar ludicamente um bêbado que tropeça, ou quer teatralmente representar um bêbado que finge tropeçar para fazer crer que finge estar bêbado e, portanto, para fazer crer que não o está (quando a intenção final do ator é mostrar que o personagem esiá realmente bêbado)? Não sei se estas observações —
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servem mais ao semiólogo para entender o fenômeno teatral ou ao homem de teatro para entender os fenômenos semiósicos oua ambos para cada um entender o próprio problema específico. em Proponho notas, menções, esperando que alguém as observe. Mas há, aso, uma série de estudos semióticos que podem dizer algo para
pa
Tínhamos dito que o bêbado assume certos comportamentos, move a língua, articula sons, palavras, grunhidos e arrotos, move-se em um espaço. Eis três campos de pesquisa semiótica: a cinésica: esta estuda O significado dos gestos, das expressões do rosto, das atitudes motoras, das posturas corporais: cada um desses traços cinésicos é comumente codificado; como indicações de máxima eu daria um ensaio de Jakobson sobre os gestos motores para o sim e o não, o )
estudo de Mauss sobres as técnicas do corpo, as pesquisas do volume
Paralingiística e Cinésica e, enfim, os últimos estudos de Birdwhistell reunidos em Kinesics and Context; paralingiiística: esta estuda as entonações, as inflexões de voz, o significado diverso de um modo de pronúncia, um sussurro uma hesitação, um fonema, uma inflexão, até um soluço ou um bocejo: folheando as pesquisas de Trager e outros (vide Paralingiiística e Cinésica) apercebemo-nos de que não existe som emitido entre (ou acima, ou abaixo de) uma palavra € outra que não seja significativo, quase sempre por convenção cultural precisa; quem faz teatro e, portanto, deve articular significação em todos os níveis comportamentais, não pode ignorar essas técnicas que, por serem técnicas de esclarecimento do codificado, são instrumentos formidáveis para a articulação da simulação. a prossêmica: quem leu livros como A dimensão oculta, de Hall já sabe que não existe a mínima alteração das distâncias espaciais entre dois Seres que não tenha um significado diferencial; para representar dois sicilianos que falam entre si, é preciso dispor de um espaço diferente do que seria necessário entre dois piemonteses; sei muito bem que atores e diretores resolvem essas situações instintivamente, mas acho que esclarecer e aperfeiçoar os dados do instinto é importante; sei também que muitas intuições, seja da cinésica, da prossêmica ou da paralingilística chegaram aos semiólogos exatamente a partir do estudo das técnicas de adestramento teatral; uma boa razão para encontrar a experiência teatral numa fase de maior sofisticação analítica e definição científica. Lembro do fascínio que provocava um filme como A armada a cavalo, de Jancsó; lembro de ter entendido que toda a sensação de desumanidade e crueldade, desespero e loucura que o filme, falando da guerra, conseguia transmitir, era dada pelo uso calculado do excesso de
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movimentos e pelé alteração das distâncias normais entre os personagens. Quando fale «obre isso com O autor, ele confessou não conhecer os livros aos quais me referia, mas confirmou que lhe tinham ocorrido instintivamente esses modelos de comportamento comunicativo. Uma conclusão desse tipo poderia levar a dizer que a contribuição da semiótica ao teatro é mínima; este descobre os próprios princípios
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A LINGUAGEM DO ROSTO
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sozinho e por natural e espontânea criatividade, e tanto melhor se semiólogo lhe proporcionar, depois, ocasião para reflexão. Mas creio que, como a espontaneidade inventiva nutre a reflexão científica, também a reflexão científica pode potencializar a invenção. Ninguém virou escritor estudando lingiiística, mas os grandes escritores estudam os
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problemas da língua que usam. o Disse o gramático indiano ao barqueiro: sabes gramática? E quando este respondeu que não, disse-lhe: perdeste a metade da tua vida. Disse o barqueiro ao gramático, quando o barco virou: sabes nadar? E quando ele respondeu que não, disse-lhe: então perdeste toda a tua vida. Mas que existiria de melhor do que um gramático que soubesse nadar e um barqueiro que conhecesse gramática?
1. A fisiognomonia (ou fisiognomonomia, ou fisiognomônica, ou fisiognômica, ou fisiognomia) é uma ciência muito antiga. Ou melhor, não é certo que seja ciência, mas é certo que seja antiga. Folheando as obras de Aristóteles (por exemplo Analíticos primeiros II, 70b) verificase que é possível julgar a natureza de um homem ou de um animal baseando-se na sua estrutura corporal, visto que todas as inclinações naturais transformam simultaneamente o corpo e a alma: e assim os traços do rosto, ou as dimensões de outros órgãos, são sinais que remetem a um caráter intemo. Aristóteles dá o exemplo do leão, que sem dúvida é corajoso, e se questiona sobre qual seja o sinal externo desta coragem. Encontra-o nas “grandes extremidades”, e deduz que um homem com um par de pés fortes só pode ser corajoso. Em outras palavras, o rosto é o espelho da alma. Essa convicção não é científica, faz parte do que Hegel chamará “fisiognomônica natural”: como resistir à tentação, no decorrer de nossa vida diária, de pensar que um indivíduo com olhos baços e injetados de sangue, cóm a cara prognata, o nariz achatado, com grandes caninos aguçados, com a barba hirsuta e suarenta seja a pessoa menos indicada para confiar as nossas
economias ou a guarda do nosso carro com as crianças a bordo? Dessa disposição natural passa-se facilmente à ciência, por mais intuitiva que seja: e, à ciência fisiognomônica referiram-se Cícero, Quintiliano, Plínio, Sêneca, Galeno, Alberto Magno, Campanella, até chegar (e não podia ser de outro modo) a Darwin e Lombroso.
Apoiada na autoridade da ciência, a fisiognomonia natural pode então celebrar gs próprios faustos: e a narrativa popular, depois que no início do século XIX a frenologia (como veremos) encorajou a pesquisa de correlações entre as protuberâncias cranianas e as disposições psíquicas, é uma verdadeira orgia de fisiognomonia natural: 44
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De umataberna situada entre a rua Barbaroux e arua Bertola, saíra um homem mal vestido, com a face marcada pela varíola, a fronte afundada, os olhos
injetados de sangue, a boca enorme (Carolina Invemnizio, ! misteri delle cantine).
Era alto, esbelto, nervoso, o rosto pálido, mas como se tomado por uma nuvem fosca... Os lábios finos eram apenas esboçados, e a boca mais parecia uma
longa ferida ainda não cicatrizada... Todavia, examinando bem o ângulo do maxilar e a curva da beca, um olho escrutador de almas teria podido surpreender ali uma certa dureza fria e egoísta, talvez até alguma coisa de felino, ou seja, paciência e ferocidade... (Luigi Natoli, 1 beati Paoli).
Não se poderia imaginar alguma coisa mais apavorante do que o rosto deste bandido. A face era sulcada em todas as direções por cicatrizes lívidas e profundas; os lábios intumescidos pela ação corrosiva do ácido sulfúrico; as cartilagens do nariz cortadas; as narinas substituídas por dois buracos disformes. Os olhos cinzentos, claríssimos, microscópicos, bem redondos, lampejavam ferocidade; a fronte achatada como a de um tigre era quase escondida por um gorro de pele de pêlos longos e avermelhados... podia-se pensar na crina de um monstro. O maestro não tinha mais de um metro e meio de altura: a cabeça, desmedidamente grande, encaixava-se entre dois ombros largos, altos, fortes, camudos... tinha os braços longos e musculosos, as mãos curtas, grossas € peludas até sobre os dedos; as pernas eram um pouco arqueadas, mas as enormes panturrilhas denunciavam uma força atlética (Eugêne Sue, Os mistérios de
Paris).
Naturalmente a recíproca também é verdadeira, e uma figura suavíssima revela uma alma nobre e gentil:
A Goualeuse tinha dezesseis
anos e meio.
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Uma fronte puríssima, muito
branca, sobressaía no rosto de um oval perfeito. Uma franja de cílios longos a
ponto de se curvarem nas pontas escondia a meio dois grandes olhos azuis. A penugem da puberdade aveludava as maçãs do rosto redondas e coradas. A pequena boca purpúrea, o nariz fino e reto, O queixo com a covinha, eram de uma adorável doçura de aços... (Eugêne Sue, Os mistérios de Paris).
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Rosto longo e moreno; maçãs salientes, sinal de sagacidade; músculos maxilares enormemente desenvolvidos, indício pelo qual se reconhece infalivelmente um fanfarrão... o olhar vivo e inteligente, nariz adunco mas com linhas elegantes; alto demais para um adolescente, baixo demais para um adulto, um olho pouco experiente poderia confundi-lo com o filho de um arrendatário em viagem, se não fosse pela longa espada... (Alexandre Dumas, Os três mosqueteiros).
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No último retrato, a sabedoria fisiognomônica chega ao máximo visto que os traços do rosto ameaçam até mesmo revelar a profissão do pai. E, todavia, o retrato em Dumas aparece como um instrumento de introspecção muito insidioso. No mesmo capítulo em que D' Artagnan aparece tão indul gentemente descrito, entra em cena uma bela senhora “entre os vinte e vinte e dois anos... um ser pálido e louro, com longos cabelos encaracolados caindo sobre os ombros, grandes olhos azuis lânguidos, lábios vermelhos e mãos de alabastro”. Dela Athos dirá, no vigésimo sétimo capítulo, que “era bela como as Graças” e que “através da ingenuidade própria de sua juventude transparecia um temperamento ardente, um temperamento não de mulher mas de poeta”: um anjo de candura. No capítulo giiinquagésimo quarto ela aparece como “uma virgem santa à espera do martírio”. Essa mulher é Milady, um monstro de infâmia, a quintessência da traição, da crueldade, da intriga, do despudor cortesão: ladra, envenenadora, mentirosa e sedutora. Horror. Então, a fisiognomonia não é uma ciência segura! E o narrador romântico, que até nos convence a respeito de seus miseráveis, no-los apresentando com a fronte baixa e os olhos redondos, sabe também jogar com o equívoco e nos apresenta heróis satânicos que têm aparência belíssima mas encerram no fundo de seu coração doentio as mais sórdidas paixões. (O) romance policial de segunda geração, o hard boiled novel, de Dashiell Hammet a Mickey Spillane, até o Fleming, de James Bond plora bem a lição e nos produz (ao lado de uma geração de gângsteres de TOsto sórdido) uma segiência de mulheres louras e meiguíssimas que no fim o detetive é obrigado a matar, com o coração cheio de amor e os olhos cintilantes de ódio, porque não passam da personificação exata do Mal. 2. Este uso ambíguo da fisiognomonia natural (feio e mau; bonito e mau; feio e bom; bonito e bom) reproduz, obviamente, antigas tendências: por um lado o instinto de associar o espírito ao rosto, por outro a propensão, muito católica, de ver na beleza uma máscara do mal. Diante da inconstância da fisiognomonia natural, a fisiognomonia dita científica não tenta associações fáceis: não é a beleza que exprime necessariamente os sentimentos positivos, a análise é conduzida a partir de sinais mais sutis.
Começa, com pretensões de cientificismo, Giovan Battista Della Porta, napolitano, na Itália da Renascença. Estudioso de “magia natural” onde não se sabe quanto o adjetivo melhora o substantivo, inventor nas horas vagas, e sem sabê-lo, do binóculo, do microscópio e da câmera escura, Della Porta escreve em 1586 De humana phisiognomonia onde 47
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Coclês, no seu Phisiognomonia, de 1533, descreve mulheres dotadas de excelente saúde, homens dotados de temperamento impetuoso, frontes de homens irascíveis, cruéis e cúpidos, ou levianos e tagarelas; Jean d'Indagine, em Chiromancie, 1549, nos apresenta bocas de homens audazes e destemidos, despudorados e mentirosos, dentaduras de homens cruéis (os dentes são salientes), olhos de homens preguiçosos, olhos de homens instáveis, luxuriosos, traidores e mentirosos. Mas Coclês fazia mais: prosseguia com a fisiognomonia de cabelos e barbas, representando a barba de um indivíduo brutal e dominador e os cabelos (delicadamente rafaelescos) de um indivíduo tímido e fraco. Licenças estas que permitiriam a Lichtenberg, alguns séculos mais tarde, enquanto reagia violentamente contra a fisiognomonia de Lavater, afirmar que “suposto que o fisiognomonista tenha apanhado uma só vez o homem, bastaria tomar uma decisão resoluta para tornar-se novamente incompreensível por milênios”. Milady tinha aprendido, sem dúvida, essa lição. Mas os fisiôgnomos não desistem: Wulson de la Colombiêre, Robert Fludd, Michel Lescot no século XVII, e outros mais, continuavam a redigir tratados, firmemente convictos de que um nariz achatado denotava luxúria. É que a fisiognomonia, sulcada por intuitivo bom senso e por tentações divinatórias, faz-se acompanhar, no seu desenvolvimento, de estudos anatômicos, e homens doutos e seriíssimos frequentemente a levam a sério. Tanto que podemos chegar a Lavater e aos seus Physiog-
nomische Fragmente zur Beforderung der Menschenkenntnis un Menschenliebe, quatro volumes, publicados de 1774 a 1778, com a colaboração £ a adegão entusiasta de Goethe e Herder. 3
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3. Johann Kaspar Lavater (1741-1801), teólogo, pastor, orador sacro es
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compara as caras dos animais, ovelha, macaco, leão, cachorro, boi e assim por diante, com os rostos dos homense tira conclusões sobre o caráter deles: “a experiência nos permite compreender com facilidade que o espírito não é impassível em relação aos impulsos do corpo, assim como o corpo se corrompe pelas paixões da alma”. Sob essa certeza revela-se, como confirmará o próprio Lavater, uma visão do divino que, circulando através de todos os seres, não pode deixar de manifestar a sua sabedoria organizadora também nos traços do rosto. Eos princípios da fisiognomonia estendem-se dos homens e dos animais até às plantas e aos corpos celestes. Os perfis são belos e persuasivos, e é difícil esquivar-se da convicção de que a bondade e a suavidade não transparecem, sem qualquer dúvida, no rosto não belo mas sereno de um ser semelhante a uma ovelha, de olhos úmidos, que emite moralíssimos balidos. Depois disso, como deter um fisiôgnomo? Os tratados pululam. E, para dizer a verdade, alguns precedem até o de Della Porta. Barthélemy
de grande sucesso, autor de um José de Arimatéia, um Cantos suíços (patrióticos), uma Messíada e um Abraão e Isaque está como Della Porta (em quem se inspira) convencido de que cada grão de areia e cada folha
contêm o infinito, que existem sutis harmonias entre o corpoe aalma, que a virtude embeleza e o vício deforma. Já que une ao sentimento religioso tendências iluminísticas, traduz essa convicção numa espécie de observação “científica” do mundo natural: e assim ele também encontra corTespondências entre homens e animais, traços do rosto e paixões do espírito, mães e filhos, membros de uma mesma comunidade nacional. Estuda o rosto, a cabeça, as mãos, faz um exame pormenorizado de fisionomias de grandes personagens do passado (naturalmente através da idealização das gravuras do século XVIIN), propõe-se melhorar moralmente a humanidade, acaba sua vida numa histeria de misticismo que o faz esquecer seus bons propósitos racionalistas, briga com Goethe, morre assassinado por um soldado de Massena, do qual os relatos não registram Os traços do rosto nem o tamanho dos pés. Na virada daquele mesmo século, Franz Joseph Gall inventa a
frenologia. Todas as faculdades mentais, todas as tendências, os instintos, superfície do cérebro. Os que têm acentuadas qualidades mnemônicas têm o crânio redondo, olhos salientes e distantes um do outro. E depois as protuberâncias. Como Gall, a seu modo, antecipa a pesquisa sobre localizações cerebrais, ei-lo à procura de protuberâncias que, em pontos diversos do crânio, expressarão a prevalência de uma ou outra faculdade. A igreja austriaca o acusa de materialismo e de determinismo. Gall vai para Paris e, com seu colaborador Spurzheim, escreve uma Anatomie et phisiologie du systême nerveux en général et du cerveau en particulier, avec observations sur la possibilité de reconnaitre plusieurs dispositions intellectuelles etmorales de homme etdes animaux parla configuration de leur têtes, 1810-1819. Deus nos acuda. Por intervenção do próprio Napoleão, lhe são negadas honrarias acadêmicas, a Europa inteira discute a respeito das protuberâncias do crânio, Lichtenberg se enraivece e afirma: “Se alguém dissesse estas palavras: é verdade que você age como uma pessoa de bem; mas eu vejo pelo seu aspecto que você se esforça e que no fundo é um tratante não há dúvida de que até a consumação dos séculos diante de tal discurso, todo homem de valor responderá com uma bofetada”. Os sentimentos têm sua representação na
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Georg: Wilhelm Friedrich Hegel, em A fenomenologia do espírito (1807, cap. C AA., V, A, c) aumenta a dose: “a frenologia natural não
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pensa somente que &m homem perspicaz deva ter atrás das orelhas uma protuberância grande como um punho, mas também que a esposa infiel deva ter, não propriamente em si mesma, mas no seu legítimo cônjuge, protuberâncias frontais”.
Alguns anos atrás, na Universidade de Bolonha, Antonio Conversano apresentou uma tese sobre o bandido Musolino, e era interessante destacar, pelos documentos trazidos, como os relatórios dos peritos de defesa e de acusação, através da influência lombrosiana, eram ricos de
4. Mas Hegel não se limita a essas sarcásticas brincadeiras. Seu
tratados lavaterianos. O perito da defesa, Bianchi, observa como o bandido apresenta “submicrocefalia, estenogratocefalia, fronte um tanto
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discurso é muito complexo e diz respeito ao modo pelo qual o espírito, força ativa, seja capaz de determinar o cérebro em que reside e o crânio que comprime o cérebro; se uma coisa morta, como Os ossos cranianos, pode impor sua conformação à atividade do espírito, e se entre os dois não se estabelece uma espécie de livre e imprevisível adaptação. Se, enfim, posto também que existam predisposições originárias manifestas na conformação craniana, essas não são meras possibilidades, que a própria ação, e a atividade do crescimento histórico de um indivíduo, não podem corrigir e encaminhar para outros fins. E, quanto aos traços lavaterianos do rosto, que funções de signo podem ter essas expressões da fisionomia imóvel, quando o homem exprime melhor a si mesmo através do próprio agir, e do resultado das próprias ações. O texto é árduo e sutil, os sarcasmos dirigidos a Lavater e à sua fisiognomonia são pesados e até mesmo grotescos (o capítulo termina com uma observação sobre a ambigiiidade dos nossos órgãos, fusão de sublime e ínfimo, que “a inocência da natureza mostra na conjunção do órgão de suprema perfeição, o da procriação, com o órgão da micção”), a tentativa é de subtrair a livre criatividade do espírito às razões da determinação física (e aqui
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Hegel está, a seu qnodo, atrasado em relação ao pobre Lavater e ao pobríssimo Gall), jnas ao mesmo tempo o filósofo considera como o discurso sobre o crânio e a fisionomia poderia levar a marcar um indi-. víduo ou uma raça para sempre, sem levar em consideração as ações e as variações da história. 5. Com o que (é óbvio, e literatura crítica a respeito não falta) chegase a
Lombroso.
O exame do delingiiente feito pela antropologia criminal estabeleceu existir nesses uma quantidade de caracteres anormais anatômicos, biológicos e psicológicos, muitos dos quais têm significado atávico. E já que a esses caracteres atávicos associam-se tendências e manifestações criminosas e essas são normais
fregiientíssimas nos animais e nos povos primitivos e selvagens, é legítimo concluir que também nos criminosos essas tendências sejam naturais, no sentido de que dependem necessariamente da organização deles, análoga, por inferioridade de estrutura « de funções físicas e psíquicas, à dos povos primitivos e dos selvagens, e algumas vezes à dos animais (Lombroso, O homem delingiiente).
e
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retraída, plasiosopropia, assimetria torácica, lóbulos auriculares sésseis canhotismo motor”. O perito de acusação fala até sobre a inferioridade étnica dos calabreses em geral. Lombroso, chamado a dar um parecer pronuncia-se com base na fotografia e propõe a hipótese de que Musolino não seja um tipo criminal completo, mas alguma coisa entre o criminoso nato e ocriminalóide. Mas, com a tradição lombrosiana, chegamos muito perto do lavaterismo do nosso tempo. Recentemente um grupo de fotógrafos artísticos milaneses organizou uma exposição na qual se exibiam tanto as habituais cédulas de identificação da polícia (a costumeira foto de frente, com forte iluminação) comoa foto formato três por quatro que normalmente os jornais publicam dos suspeitos de algum delito. Por uma espécie de lavaterismo inconsciente da máquina fotográfica (misteriosas relações entre o Della Porta óptico e o Della Porta fisiôgnomo) não há uma foto do gênero na qual o sujeito não assuma um
aspecto de repugnante degeneração (basta verificar em nossa própria carteira de motorista). Ora, não há um leitor de jornal em que, diante desse tipo de foto, não surjam reflexos lavaterianos, de modo que o “suposto culpado” transforma-se emotivamente no delingiente nato lombrosiano. Nem deve ter sido diferente o circuito mental que predominou no reconhecimento de Valpreda, feito pelo motorista de táxi Rolandi exatamente com a ajuda precedente de uma fotografia. Depois disso, restaria perguntar-se quanto do esquematismo lombrosiano, e até mesmo do lavateriano, domina a construção dos identikit. E enfim, o quanto o lavaterismo inconsciente se deslocou da memória visual para os códigos verbais, orientando as manifestações de racismo que fregiientemente os jornais estimulam quando dão, a artigos de crônica criminal, títulos como: “calabrês assassina esposa em Turim” (e nunca: “bergamasco assassina a esposa”; quando muito: “contador ou comerciante assassina a esposa”): em que fatalmente a imagem do criminoso moreno, de cabelos encaracolados, sobrancelhas espessas, se impõe através da escolha do adjetivo que remete a um mod, estandardizado. “lo émico étni
é
6. Nesses casos fala-se de racismo, mais ou menos inconsciente ou
edulcorado. E não por metáfora, porque a linha que une Lombroso aos teóricos do racismo é facilmente encontrável. 51
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olhos malignos transudando avareza, avidez, luxúria; e o latino baixo, moreno, preguiçoso, o ariano alto e louro, sereno e pacato nos gestos, de crânio suavemente dolicocéfalo. Onde a bibliografia é muito extensa, é suficiente, para dar o exemplo de um moderno Lavater desvairado, citar Ludwig Clauss (Rasse und Seele, 1926), que divide os homens em esféricos, parabólicos, piramidais e poligonais. Esféricos são os italianos e os poloneses (nariz convexo, olhos redondos, movimentos rápidos e fluidos), parabólicês os alemães e os escandinavos (crânio, face e pescoço alongadosg pernas compridas, desenvolvimento lento e imponente). Piramidais são os hipertensose teatralíssimos hebreus, poligonais são os negros, de conformação monstruosa, com a fronte angulosa, o nariz disforme, a face longa na metade superior e larga na inferior. Chegamos à revista em quadrinhos. E, de fato, a revista em quadrinhos e a caricatura são os lugares onde a fisiognomonia adquire valor fotográfico de estenografia e esboça, com poucos traços enfatizados, toda uma história psicológica e moral. Baseando-se exatamente nos preconceitos (e em parte na sabedoria antiga) de uma fisiognomonia natural: usando-os e reforçando-os. 7. Grande parte dos apontamentos anteriores foram escritos como introdução a um livrinho de felicíssimas caricaturas de personagens contemporâneos, maliciosamente colocados junto a capítulos de um “Lavater portátil”, editado em Milão pelos Irmãos Villardi, em 1811.! Ali parecia natural, para mostrar os dardos lançados por uma pena neolavateriana, o rosto do senador Fanfani (embora não menos cruel fosse o tratamento dado a personalidades bem mais fortes). Observa-se naquele livro que, todavia, infinitos e severos são os caminhos da contrapartida, e que fregiientemente quem com Lavater fere, com Lavater será ferido. De fato, foi exatamente o acadêmico de Arezzo que no seu livro Cattolicesimo e protestantesimo nella formazione storica del capitalismo (Catolicismç e protestantismo na formação histórica do capita-
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lismo), elaborou a foria segundo a qual, no curso da história mundial, os períodos de expastsão econômica foram aqueles em que estiveram no poder homens brevilíneos, enquanto que a longilineocracia tinha levado a períodos de recessão, nos quais a ação cedia lugar à contemplação. Teoria essa retomada em 1 mutamenti economici deil Europa moderna e Vevoluzione costituzionalistica delle classi dirigenti (As mutações econômicas da Europa moderna e a evolução constitucional das classes dirigentes), novo monumento ao político brevilíneo, ou, para ser mais claro, de baixa estatura. Teoria que não só testemunhao lavaterismo 52
já conhecido de Fanfani, que claramente associa a um determinado tipo al
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Eis, enfim, os clássicos do racismo contemporâneo, prontos a pintar o hebreu com lábios carnudos, o nariz adunco, as orelhas pontudas, os
físico determinadas características psicológicas e morais, mas que ao mesmo tempo apresenta uma clara concepção da cultura: visto que os períodos poluídos pelos longilíneos ociosos e avessos à ação são aqueles em que florescem as humanitates e “a cultura triunfa”. E que esta perspectiva seja desagradável aos olhos do escritor, deduz-se da frase com a qual ele contrapõe o espírito mercantil do século XIV ao espírito culturalartístico do século seguinte: “enquanto a mentalidade albertiana, e pior ainda (grifo nosso), o espírito que invade as cortes e as classes dirigentes italianas dos séculos XV e XVI, é exatamente de um tipo longilíneo”. Para comprovar a tese, Fanfani prossegue analisando os rostos trazidos até nós pela pintura da época. Faltam nestas obras fanfanianas comparações com os focinhos dos macacos e dos cães, talvez porque o autor se incline, como é sabido, à pintura abstrata, e não poderia substituir a análise histórica por reconstruções ad hoc. Todavia, não faltaram a Fanfani hagiógrafos que desenvolveram seus ensinamentos (e, para o florilégio completo, remetemos aos divertidos panfletos O estilo do professor, publicados pela editora Sugar, os quais traçam do homem um perfil que nada tem a invejar às páginas lavaterianas de onde se origina. Leia-se, por exemplo, o que diz a propósito Roberto Gervaso: “Só os camaradas do partido, que respeitam suas caretas e carrancas, escapam, ou pensam que escapam, aos seus diabólicos fluidos. Exala-os por todos Os poros e por todas as cavidades: dos olhos, dançantes como floretes no duelo, envolventes como adagas no corpo-a-corpo, revoluteantes como durindanas no combate campal; das narinas, bufantes como ventas; dos lábios ameaçadores, ora como gargantas propiciatórias, ora comocibórios; da nuca dé gladiador. Emanam também da voz, procelosa na invectiva, chicoteante no sarcasmo, paterna na exortação, acariciante na lisonja e dos gestos, que lhe servem de contraponto e que são, por sua vez estudados. O esquema nos soa familiar: é aquele dos retratos de Sue, de Dumas de Carolina Invemizio. .
O
círculo se fecha, a fisiognomonia natural, para Hegel tão suspeita.
não morreu.
1.
JK. Lavater, Manuale portatile
o
sia deil'arte di conoscere
gli uomini dai tratti del
volto, XXXII semp scientifici (Manual portátil ou seja c da aite de conhecer os omenscom pelos traços do rosto, com XXXII exemplos científicos), Testa, Milano, Moizzi, s.d. º 7teos) com desenhos de Franco í
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maquetes de cidades do futuro retangulares e imponentes. Porque, afinal, esses quadros, essas estátuas, dão a impressão de “realidade”, as senhoras nuas têm a boquinha rosada que convida a beijar, e os órgãos sexuais dos jovens nus que simbolizam o Partido, o Trabalhador ou a Juventude, parecem “verdadeiros”.
A ILUSÃO REALÍSTICA
E depois, mesmo antes de ir à exposição, permanecia na memória a lembrança da mostra organizada em Milão sobre o hiper-realismo americano, e nos perguntávamos se a arte nazista também não teria sido, a meu modo, um exemplo de realismo “mágico”, a ser examinado sem maiores transbordamentos moralistas, para descobrir as raízes profundas de um comportamento que hoje nos é reproposto num contexto ideológico totalmente diferente. E, sem poder evitá-lo, emergia enfim um outro fantasma, o do realismo socialista de cunho soviético. O que diferencia estes três tipos de “realismo”, qual é sua relação com a realidade e com à pintura?
A abertura da mostra de arte nazista, no Kunstverein, em Frankfurt, realizou-se com atraso, no dia 15 de outubro de 1974, às oito da noite, pre-
A política cultural nazista foi, sem dúvida, mais niveladora do que a fascista e, no panorama da arte hitleriana, não se entrevê aquele jogo de concessões e piscar de olhos que permitia ao fascismo deixar que Terragni vivesse ao lado de Piacentini, ou Campigli e Sironi ao lado dos escultores do Foro Mussolini. Mas ainda assim seria inexato dizer que o nazismo difundiu um estilo uniforme: talvez tenha patenteado como bom estilo ariano uma série bastante desordenada de especulações entre as quais emerge uma só linha “pura” e coerente, a das paradas no estádio de
cedida por uma anignada conferência jornalística, e pela panfletagem de grupinhos que corg'!amavam os cidadãos a sabotá-la. (0) argumento era que não se pode exercitar a objetividade filológica sobre um fenômeno ainda vivo como o nazismo, e que revisitar a arte do Terceiro Reich
significava reapresentá-la como um mito perigoso. Bastava porém dar uma olhada nos salões da exposição para perceber que os seus organizadores haviam montado uma máquina didática muito rigorosa, onde cada obra tinha como contraponto uma foto ou um painel que mostravam o outro lado das coisas: frases de Brecht, de Horkheimer, =
documentos sobre o massacre dos hebreus, etc., etc.
Uma exposição onde levar até mesmo crianças em idade escolar, quando mais não seja, para que aprendam como são tênues as fronteiras entre ditadura, loucura, tragédia, estupidez e mau gosto. Era-se então tentado a pensar que a imbecilidade não tem cor, por isso era natural que uma mostra que reunia os exemplares mais evidentes da imbecilidade de direita fosse contestada por uma insignificante minoria de imbecis de esquerda. Uma nuvem de perplexidade renasceu quando foram lidas rápidas anotações a lápis feitas por algum visitante num painel branco, do tipo: “esta sim era arte verdadeira”. E preciso então perguntar-se se o visitante mal-informado e preguiçoso, que não lesse os painéis e não se desse ao trabalho de decifrar os contrastes visuais entre mito e realidade, não ficaria fascinado por aquela seqiiência de senhoras louras no banho, trabalhadores musculosos e suados, soldados com o maxilar quadrado, velhos camponeses amorosamente absortos no cultivo de alimentos, paisagens agresteg; sulcadas por estradas e pontos com muitos arcos, h
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Nuremberg e da arquitetura de Albert Speer: um neoclassicismo pesado e angulosq, titânico e wagnerizante, de que na mostra de Frankfurt são exemplos menores, mas assombrosos, uma espécie de “von Chirico” teutônico e tolo, o tal de Otto Hirth, que pinta praças quase surrealistas, às quais homens verdadeiros (não manequins) e sombras “realísticas” tiram toda a magia; e um plano para a reconstrução urbanística de Munique, de Hermann Giesler, onde o colossal se une ao tédio eà repetitividade. Mas talvez os dois exemplos mais convincentes sejam dois modelos de entrada e bifurcação de rodovias (no fundo, as rodovias foram a mais típica realização arquitetônico-urbanística nazista): no primeiro modelo os pilares de ingresso deveriam ter a altura de uns quarenta automóveis superpostos; no segundo (autor: Joseph Thorak), para dividir duas gigantescas pistas dever-se-ia erguer uma espécie de monumento ao trabalho, de proporções semelhantes às da basílica de São Pedro, muito apropriado para provocar acidentes em cadeia, freadas irresponsáveis, alucinações nas noites de névoa. Em todos estes casos não se pode, é claro, falar de realismo, mas preferencialmente de Irrealismo Absoluto, ignorância 55
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demencial das proporções humanas, anti-Modulor programático. Esse Irrealismo:arquitetônico produz, em nível escultural, exemplos que definirei comcYiporrealismo. Aqui, aparentemente, os corpos nus dos atletas, do Gênio da Vitória, de Wamper, dos guerreiros de Arno Breker, são academicamente “corretos”: bíceps e deltóides bem colocados, as mulheres têm até seios, parecem todos verdadeiros. Mas “parecem”. Porque, olhando ao redor, percebemos que todas essas figuras alegóricas se assemelham, não são indivíduos, mas tipos simbólicos abstratos; o realismo sabe sempre até onde ir. Por exemplo, os homens têm um pênis perfeito, rematado por pêlos púbicos caprichosamente esculpidos, enquanto as mulheres quase não têm nem púbis nem vagina: a mística nazista, com as suas implicações homossexuais, domesticava a realidade anatômica segundo exigências ideológicas. E, por fim, veja-se os Camaradas, de Thorak, em que os pés e as mãos são maiores do que deviam, e todavia não se trata de ânsia expressionista, mas de presunção visual (como quem, com palavras, dissesse: “Dou-te um bofetão que faço tua cabeça girar duas vezes ao redor do pescoço”). Mas, ao lado do Irrealismo e do Hiporrealismo, a exposição de Frankfurt mostra outras tendências. Chamaremos a primeira de Academismo Especulativo. Em poucas palavras, trata-se da contribuição daquela pletora de pintores falidos, de especialistas da oleografia, de pincéis voltados à decoração de caixas de pó-de-arroz e de bombons, que encontram inesperadamente um mercado político, os hierarcas que se deliciam com os nus de fundo mitológico, e que querem encontrar nas Ledas e nas Vênus as formas de suas Clarinhas e de suas Evas. Aqgi, a exposição de Frankfurt oferece algumas das suas coisas mais divertidas. Um inigualável julgamento de Páris, com Páris vestido (de tirolês) e as três deusas com caras de prostitutas de quarta categoria (de Ivo Saliger), ou então um quadro de um certo Heymann, de estrutura aparentemente rafaelesca (mulher com Menino e Batista) mas no qual o olho do expert italiano reconhece o traço do Mestre: Boccasile! Para chegar enfim a exercitações mais maneiristicamente conscientes, como o Gelôste Stunde, de Bernhard Miiller, no qual se encontram lembranças de um certo academicismo italiano, entre Funi e Borra. A esta corrente podemos associar, como subproduto do subproduto, toda uma série de miseráveis pintores de fim de semana que, cientes do fato de que o Regime gosta de fábricas, barcaças, serrarias, minas, colocam seus pobres e inábeis pincéis a serviço de uma deprimente e monótona paisagística; ou os inefáveis pintores de cavalos, vacas, bois no arado. Mas aqui estamos nos aproximando de uma outra corrente, talvez a mais interessante, porque não pode deixar de fazer-nos reevocar visões
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análogas já suportadas em museus moscovitas. A arte marxista encorajava os quadros com soldados em guerra, mineiros com o rosto enegrecido, trabalhadores rurais com os músculos tesos, forjadores como rosto abrasado pelo fogo. E todos são parentes muito próximos dos conhecidíssimos personagens do realismo socialista. Em ambos os casos os personagens não são Universais, não são representados em poses abstratas, fora do tempo e do espaço, mas aparecem como representantes de artes e ofícios ligados a gestos característicos: representam “figuras típicas em circunstâncias típicas”. Que uns estejam construindo o nazismo e outros o socialismo, é quase irrelevante do ponto de vista pictórico: e nem o mais ferrenho observador temático pode negar que, transportados de um museu a outro, esses quadros tornar-se-iam indistinguíveis e poderiam facilmente representar o Trabalhador de Enxada Alemão ou o Trabalhador de Enxada Ucraniano sem consideráveis diferenças. Dever-se-á então dizer que uma só ideologia artística une os Extremismos Históricos Opostos? O fato é que, por isso, não é necessário tratar esses quadros como objetos de arte. Procuremos vê-los pelo que são, instrumentos de persuasão de massa. Trata-se de enobrecer o trabalho subaltemno e de convencer. o trabalhador de que carregar carvão é um gesto tão nobre quanto guerrear montado num cavalo com arreios de ferro, ou dançar a valsa no palácio de um imperador. Para atingir este objetivo há uma fórmula: a citação pictórica. Se o trabalhador na mina é representado com as mesmas cores, a mesma observância da perspectiva e das leis anatômicas com que eram representados antigamente os Reis Magos, a Virgem, Luís XVI, ou os oficiais de Napoleão, a identificação é obtida. Eis então queo chamado “realismo” não está absolutamente preocupado comarealidade, mas, sim, preocupado com a Pintura. Os quadros reproduzem fielmente a Pintura tal como é (aliás, como era). O realismo nazista e o realismo de Estado staliniano não são realismos, mas “pictoricismos”. Como tal podem às vezes dar até discretos resultados figurativos capazes de mudar o sentido político de acordo como título, com o lugar onde são expostos, com a circunstância histórica em que são vistos. Trata-se de quadros ideologicamente “neutros”, úteis para todos os usos, assim como um fuzil funciona tanto na mão de um guerrilheiro ángolano como na de um coronel grego.
Enfim, na exposição de Frankfurt descobre-se ainda um pequeno grupo de quadros que chamama atenção por sua excelente feitura, e que à primeira vista fazem o hiper-realismo gritar. O mais típico entre estes é a Kahlenberger Bauernfamilie, de Adolf Wissel. A origem é evidente estamos diante dos últimos ecos da Neue Sachlichkeit. 57
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Salvo que nos quadros daquela corrente de vanguarda existia originalmente uma perversidade, uma capacidade de denúncia psicológica gue nesses seus tardios representantes está totalmente ausente: os personagens “hiper-realistas” de Wissel não se comprometem. E difícil dizer que sejam “nazistas”, e certamente não são heróicos: mas não são sequer conscientes da sua petrificação. Estão à espera. Sabem que não são “verdadeiros”, mas gostariam de parecê-lo; para não correr riscos, não se esforçam demais: admirável parábola da falsa consciência de alguém que sem dúvida sabia pintar, não queria renunciar ao próprio estilo, mas procurava agradar ão regime. Quem saísse daiexposição de Frankfurt e fosse diretamente à mostra milanesa dos hiper-realistas, perceberia que os americanos, na sua minuciosa figuratividade, não procuram absolutamente nos fazer crer que seus quadros reproduzem as coisas. Esforçam-se, ao contrário, para fazer-nos entender que estão reproduzindo a fotografia das coisas, com toda a imobilidade, a cromaticidade mecânica, o corte, os achatamentos e as profundidades típicas da fotografia. O Hiper-realismo denuncia o fato de que a realidade, como estamos habituados a vê-la, é efeito de uma manipulação mecânica: e, em consegiiência, toma pública a própria falsidade programática. O Hiperrealismo, o Irrealismo, o Pictoricismo de Estado e o Academicismo da pintura nazista procuram, em vez disso, fazer com que todos acreditem na realidade que representam. A falsidade não é declarada, é exercitada sub-repticiamente. O Hipo-realismo é mentiroso porque quer fazer-nos crer que diz a verdade, enquanto o Hiper-realismo põe logo às claras o fato de que está dizendo mentiras. Esta é a grande diferença entre os dois. Que o grande público, pois, esteja pronto a aproximar fenômenos tão diferentes, com se em ambos os casos houvesse um apelo à “sã” figuração ( finalmente entende-se tudo, não é como nas obras de vanguarda onde não se entendia nada ), isso significa apenas que a “câibra do iconismo”, a atitude ingênua que toma como objetivamente fiel tudo aquilo que aparece de algum modo “reconhecível”, é uma antiga doença da percepção.
E talvez a difiçguldade em reconhecer
o
quanto as imagens podem
mentir seja a mesraa que se sente para reconhecer as mentiras do Poder. Difícil rasgar o;Véu de Maya.
O MILHÃO: DESCREVER O DESCONHECIDO
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Enquanto escrevo, nada sei ainda sobre o Marco Polo televisivo, não sei se será fiel ao Milhão ou se nele se baseará para uma livre recriação do personagem. Admite-se que as dramatizações televisivas de um grande livro lhe estimulama leitura, e eis-me a comprovar a regra, até antecipadamente: reli O Milhão. Depois, me perguntei quantos, após terem
visto os capítulos na televisão, irão comprá-lo em edição econômica, e que satisfação poderão extrair dele. O dialeto da versão toscana, considerada “ótima” (como se sabe, Polo ditou as suas memórias à Rustichello de Pisa na prisão, e este escrevia em francês, mas o texto original é de 1298 e a versão toscana é de 1309), não está ao alcance do leitor comum, ainda que se leia sem muita dificuldade e as palavras incompreensíveis criem atmosfera. Mas, deixando de lado o que atelevisão contará dolivro, como se deve ler O Milhão, ou melhor, a versão do Libro di Monsieur Marco Polo, cittadino veneziano, soprannominato Milione, dove son descritte le meraviglie del mondo (Livro de Monsieur Marco Polo, cidadão veneziano, cognominado Milhão, onde são descritas as maravilhas do mundo)? s
A dúvida que me surgia, relendo-o, não é como possam interpretá-lo os leitores.de hoje, mas como o teriam interpretado os leitores da época. E, entender o que pudesse representar então, talvez possa ajudar-nos a sugerir como deveria ser lido hoje. Porque (e antecipo aminha conclusão) O Milhão se insere, e não é das piores, numa série de narrativas enciclopédicas que descrevem terras desconhecidas e mais ou menos legendárias, quase sempre escritas por autores que nunca saíram de casa, e conta quase as mesmas coisas, mas como jornalista, ou melhor, como enviado especial. Dois séculos antes da invenção da imprensa, três ou quatro antes do
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No original italiano trocadilho entre Prete (padre) e Presto (esperto). 7 da pe
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“anúncios” e das “gazetas”, o livro de Marco Polo antecipa gênero. Só que o gênero é tão avançado que nãoé fácil aceitá-lo. Dou logo um exemplo. Um tanto posterior à redação do Milhão, eis um belo manuscrito francês, conservado hoje na Biblioteca Nacional de Paris, e eis a compilação que ilustra o capítulo 157, onde Polo descreve o reino de Coilu, que afinal se situa na costa de Malabar. Naquele capítulo, falase de um povo que colhe pimenta e (na versão toscana) “sementes exóticas”, que não sei bem se são uma espécie de ameixas ou outro tipo de frutas ricas em tanino. E como o compilador representa os habitantes de Malabar? Assim: um é Blemma, ou seja, um daqueles fabulosos seres sem cabeça, com a boca no estômago; o outro é um Unípede, deitado à sombra do seu único pé; o terceiro é o Monóculo. Exatamente o que o leitor do manuscrito esperava encontrar naquela região, que, afinal, é a Índia, reino legendário do Padre Gianni, ou Presto Giovanni*, como o chama Polo. O interessante é que no texto de Polo esses monstros não são absolutamente mencionados. Polo diz que os habitantes de Coilu são negros, andam nus, e que a região (pensem que partido o compilador poderia tirar) é riça em leões negros, papagaios brancos com bicos vermelhos e pavõeg. Além disso Polo, com a frieza que o caracteriza quando fala de costumes um tanto incomuns para bons cristãos, diz que eles têm pouco senso de moralidade e casam indistintamente com a prima, com a madastra ou com a mulher do irmão. Por que o compilador se atreve a inserir esses três seres, que não existem no universo do Milhão (e, no fim das contas, não existem no universo das nossas ciências naturais e humanas), contra todas as evidências textuais? Porque ele, como seus leitores, acreditando numa série ininterrupta de doutíssimas enciclopédias que discorriam sobre as maravilhas do mundo, no tempo de Polo e noutros tempos, sabia que deviam existir. O mercador Marco Polo era simplesmente um atrevido que se permitia narrar as coisas não como deviam ser, mas (e estas são palavras suas ou de Rustichello) “fantasiar províncias e países onde estivera”. Testemunha ocular. Parece uma tarefa fácil, mas, naqueles tempos, decididamente não era. Para o enviado especial ainda não existia uma regulamentação do sindicato. Quem era então o compilador de enciclopédias históricas e geográficas? Um senhor que, sentado à escrivaninha, baseava-se nos veneráveis textos de Plínio, Solino, Isidro de Sevilha, e assim por diante, nas várias enciclopédias do século XII, o Speculum Mundi, de Vincenzo di Beauvais, ou O Trésor, de Brunetto Latini. E naqueles textos muitos países, sucesso dos
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verdadeiros ou legendários, eram habitados por animais fantásticos e por seres estranhíssimos, cujas características não eram, porém, totalmente arbitrárias. Aqueles seres tinham exatamente as características que serviam para transformá-los em exemplos vivos, em alegorias legíveis: assim, o patriarca dos tratados enciclopédicos de meia-tigela, o Fisiologo, que surgiu entre os séculos Ile III da nossa era, dizia queo leão tinha o hábito de apagar com a cauda as suas pegadas para despistar os caçadores, mas esta característica era “necessária” para que o leão pudesse funcionar como símbolo do poder de Cristo, que apaga os nossos pecados. E dizia que a fênix a cada quinhentos anos ia a Heliópolis e se consumia no fogo do altar para ressurgir três dias depois (como é sabido) das próprias cinzas; e esta particularidade era “necessária” para que a fênix fosse símbolo do Salvador. E neste sentido, o leão era tão “verdadeiro” quanto a fênix. A Editora Saggiatore publicou uma edição do Tratado das coisas mais maravilhosas e mais notáveis que se encontram no mundo de um autor duvidoso, conhecido por John Mandeville. Mandeville, e isto é certo, nunca saiu de casa, e escreve quase sessenta anos depois de Polo. Mas para Mandeville, falar de geografia significa até escrever sobre seres que devem existir, não que existam, ainda que algumas de suas páginas façam pensar que entre suas fontes de consulta estivessem páginas da testemunha ocular Marco Polo. Não é que Mandeville diga sempre e somente lorotas: por exemplo, menciona o camaleão como um animal que muda de cor, mas acrescenta que é semelhante a uma cabra. Ora, é interessante comparar a Sumatra, a China meridional, a Índia de Mandeville com as de Polo. Há um núcleo que se mantém em grande parte idêntico, só que Mandeville povoa essas regiões de animais e monstros humanóides que encontrou em livros precedentes. Polo não. Convenhamos. Polo era um mercador, e não era homem de muitas leituras. Pgr outro lado, começa a sua viagem com dezessete anos e volta com quarenta e um, e dentro de três anos vai subitamente combater, acaba prisioneiro de guerra e dita suas memórias. Sobre assuntos europeus não deve ter lido grande coisa, quando muito ouviu em Catai as lendas e as lorotas que finge engolir. Mas, de um modo ou de outro, foi tocado pela cultura das enciclopédias medievais (além do mais, muitas das informações das enciclopédias medievais provêm, percorrendo longos trajetos históricos, das leúdas orientais). E, o interessante de Messer Marco Polo é que, a seu modo, é um homem do seu tempo e não consegue escapar da influência dos livros talvez não lidos que lhe ensinaram o que deveria vet. —
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A página mais significativa é aquela sobre os unicórnios que lhe aparecem ém Java. Ora, que unicórnios existam, um homem medieval 61
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não põe em dúvida. Entre parênteses, lendo aquele tratado oniabrangente que é o The Lore of the Unicorn, de Odeil Shepard ( 1930), vemos que existiram pessoas que viram e descreveram o unicórnio até muito tempo depois de Marco Polo. Por exemplo, o viajante elisabetano Edward Webbe; ou Vincent Le Blanc, que em 1567 vê três, no harém do Sultão, na Índia, e até mesmo no Escorial, em Madri; no século XVI, o missionário jesuíta Lobo (traduzido por Samuel Johnson) vê um na Abissínia; e depois John Belle, em 1713; e, para terminar, mas não definitivamente, nada menos que o doutor Livingstone. Que o unicórnio existia, dissera-o o Fisiologo que deu origem, na Europa, à lenda de que para capturá-lo era necessário expor numa floresta uma virgem imaculada, e como dizia Brunetto Latini trinta anos antes de
Marco Polo: “quando o unicórnio vê a donzela, sua natureza faz com que, mal a enxerga, se atire em sua direção, e perde toda sua ferocidade... Marco Polo podia deixar de procurar unicórnios? Procura-os e encontra-os. Quero dizer, ele não pode deixar de olhar as coisas com os olhos da cultura. Mas, uma vez que olhou, e viu, com base na cultura passada, eis que se põe a refletir como um enviado especial, é, como alguém que não só fornece informações novas, mas também critica e renova os clichês do falso exotismo. Porque os unicórnios que ele vê são na verdade rinocerontes, um pouco diferentes dos cabritinhos graciosos e brancos, com o chifrinho em espiral, que aparecem no brasão da coroa inglesa.
isto
ve Polo é impiedoso: os unicórnios têm “pêlo de búfalos e patas de leofante”, o chifre é preto e grosso, a língua é espinhenta, a cabeça parece a de um javali e, definitivamente, “é uma besta repugnante de se ver. Não é, como se diz por aqui, que se deixe arrebatar pela donzela, é ocontrário”.
Como se dissesse: pão lhe mandem mocinhas porque ele baixa a cabeça e mete o chifre. Tifste, mas é assim. A outra coisa que impressiona em Polo, neste seu modo de dizer as coisas como são, é que seu livro é dominado pela curiosidade, mas nunca
por uma insensata surpresa, e menos ainda pelo espanto. Narra como se fosse um antropólogo moderno, que existe uma civilização na qual é hábito dar a mulher aos forasteiros e, aliás, os maridos até gostam, conta, amém. Viu (mas viu mesmo, não ouviu falar) tantas, que não se surpreende mais com nada. Consegiientemente, o modo como fala não é incrível, embora seja estupefaciente: existe, simplesmente, e exatamente por isso
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ele narra. Certo, ele ouve vozes misteriosas no deserto de Lop, mas experimentem cavalgar por semanas e semanas no deserto. Certo, aceita como verdadeira toda a história do império do Padre Gianni, mas nisso estava envolvido muito de uma carta, diplomática (embora falsa, hoje o
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sabemos), mandada cem anos antes ao imperador de Bizâncio. Confunde crocodilos com serpentonas só com patas dianteiras, mas vocês não podem esperar que ele se aproximasse muito deles. Tenho a impressão de que encontra mais antropófagos do que realmente existiam, mas, no fim das contas, viajava colhendo testemunhos em terras onde falavam línguas que ele tinha que aprender a duras penas. Porém, encontra o petróleo e o carvão fóssil e nos fala deles de modo muito correto. Entre visões influenciadas pela tradição, das quais se livra com dificuldade, como que esfregando os olhos, ele tem outras em que parece antitradicional até mesmo para nós. Provavelmente, para ele os homens ou são brancos ou são negros, mas é certo que não lhe passa pela cabeça a idéia de uma raça amarela. Os habitantes de Cipangu (que é o Japão) têm a pele branca, e o Grã Cã, que é um mongol, “tem o rosto branco e vermelho como a rosa”. O mais interessante é que talvez ele tenha razão, porque se as enciclopédias (hoje) falam ainda de pele amarelada, quando nós olhamos bem um chinês ou um japonês, percebemos que não é amarelo como o feroz Ming, imperador de Mongo, mas, no máximo, não é branco e vermelho como um tirolês. Se o Grã Cã fosse mesmo rosa e vermelho, bem, talvez se maquiasse, ou talvez Polo o olhasse com olhos afetuosos, ofuscado pelas suas vestimentas e as suas Jóias. Às vezes parece realmente que inventa lendas como os seus antecesSoTes é como os seus sucessores, como quando fala do almíscar, perfume delicioso que se encontra abaixo do umbigo, num “apostema” ou abscesso de um animal semelhante a uma gata. E, verifiquem numa enciclopédia: o animal existe, na Ásia, e se chama moscus moschiferus, uma espécie de cervo, que tem os dentes como Polo os descreve, e que na derme da parte abdominal, na frente da abertura prepucial, segrega um muco com perfume penetrantíssimo. E, além disso, é a versão toscana que O faz semelhante a “uma gata”, porque no original francês diz-se justamente que é semelhante a uma gazela. Polo olhava ao seu redor e registrava com tanta frieza mercantil que nós acreditamos que conte lorotas com.cara de inocente.
Ao contrário de qualquer enciclopédia medieval, não alegoriza e não moraliza, registra para os que seguirão depois dele ao longo daqueles caminhos, que são caminhos comerciais. Sob um certo aspecto é desconcertante e realista como Maquiavel, e fala como técnico a técnicos. O seu mundo reagiu à provocação, lendo-o como se fosse um dos seus antecessores fantasiosos, e temo que nós façamos o mesmo, talvez influenciados por termos heráldicos como “leofante” ou “salamandra”. Mas a salamandra de que fala é um tecido feito de amianto, que ele tão bem descreve, não o animal do bestiário que vive e acrisola-se no fogo. “E estas são as salamandras, e as outras são fábulas.” k&
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AS TENTAÇÕES DA ESCRITA
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O percurso da exposição torna-se alegre e minutos depois fica-se fascinado pela brincadeira, até que se chega à seção infantil e dá vontade de ficar no recinto das crianças, que modelama argila e, com um estilete, copiam hieróglifos e cuneiformes, como pequenos escribas. Mas também não é pouca a distração em decifrar câneos e hieróglifos. Sentimo-nos nos trajes do grande rei que recebe o mensageiro com a sua tabuinha ilegível (os reis não eram intelectuais, nem as coisas mudaram muito desde então), e o escriba da corte traduzia-lhe a mensagem: “caro amigo, mando-lhe dois sujeitos que alguém por aqui acusa de serem espiões do inimigo. Providencie para que sejam jogados no Eufrates, se morrerem é porque eram culpados, se não morrerem é porque são inocentes, nesse caso me avise que mando matar o acusador Simples e eficaz, segundo o código de Hamurabi, mas não sei se funciona com o Tibre, caso contrário poderíamos resolver muitos processos pendentes. Resumindo, uma exposição cheia de enigmas e frases polidescritas, a Página da Esfinge, da Semana Enigmística. Não faço esta referência por acaso, e sim porque os organizadores tiveram o bom senso de descer a exemplos do gênero para fazer-nos compreender como funcionavam aqueles vários sistemas de escrita. Fizeram até mais: sempre nos disseram que muitos baixos-relevos e pinturas egípcias eram verdadeiras e legítimas revistas em quadrinhos, mas ficava sempre a suspeita de que fossem licenças interpretativas inventadas por Lancelot Hogben e pelos apaixonados de Yellow Kid. Aqui, ao contrário, seriíssimos egiptólogos e curadores de museus têm a coragem de exibir o documento original e de pôr ao lado dele uma reconstrução desenhada com verdadeiros quadrinhos, com osrespectivos balões, e os.hieróglifos traduzidos em bom francês, com barqueiros que se consultam entre si ou deuses empenhados em diálogos bem-comportados. E eis que uma civilização sepultada torna-se viva e divertida, mesmo para O visitante com pouca cultura arqueológica. Sinal de que, para fazer uma bela exposição, não são necessárias muitíssimas peças, nem todas precisam ser originais autênticos, e de que o fetichismo dos documentos arqueológicos pode ser temperado pela imaginação. Eis uma exposição para ser lida, um livro animado e se quisermos um programa dp televisão genial, pronto para entrar no ar. Vivida deste modo, a exposição pode induzir a muitas outras intuições. Para começar, foi um bem que se aprendesse a escrever? Vem à mente o episódio contado por Platão, quando o faraó repreende o deus Toth que inventou a escrita. Acabou, diz a ele, homem nunca mais conseguirá cultivar os próprios pensamentos e a própria interioridade, porque estás lhe ensinando a objetivar a própria alma sobre tabuinhas e
O nascimento da escrita é o tema escolhido pelas Galéries Nationales du Grand Palais, de Paris, para esta exposição: pensando bem, era um desafio dos maiores. Passa-se pelos hieróglifos egípcios, sempre divertidos, coloridos (mas no fim das contas bastante conhecidos); porém ao lado, e antes mesmo, está a escrita cuneiforme suméria, assíria e babilônica, e aqui os documentos são tabuinhas, quase sempre bem pequenas,
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que têm a infelicidade, aos olhos do leigo, de se assemelharem umas às outras, e todas juntas conseguem somente evocar a idéia de um excêntrico trabalho de crochê. E pensar que algumas delas são minúsculas e o escriba as gravava enquadrando-lhes uma porção microscópica através de um tubo, para traçar os caracteres que agora conseguimos distinguir somente com a ampliação fotográfica; eis que, a esta altura, uma mostra de tabuinhas em cuneiforme poderia transformar-se numa monótona coleção de pedras. Que fazer? Se estivéssemos em maio de 1968, seria uma batalha a pedradas muito esnobe, embora parar no hospital com traumatismo craniano causado por um fragmento do código de Hamurabi não consolasse as vítimas. Masos organizadores da exposição descobriram uma solução espetacular. Há as tábuas. 2s estátuas, os cilindros, quando não há o objeto real, há a fotografia, mas; tudo é animado por painéis didáticos, de modo que a exposição apresenta-se mais ou menos como um livro cujas páginas, ilustradíssimas, estejam penduradas nas paredes, em estojos, em telas. Na verdade, o catálogo riquíssimo substituiria a exposição, só —
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que dá mais prazer ver de perto os objetos originais e uma vez gue nos é explicado o que dizem e de que modo, as pedras verdadeiras, bem iluminadas, tornam-se perdoem-nos o jogo de palavras falantes. —
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Como se imitam as coisas com os sinais da escrita? Esta exposição, com os seus ideogramas que vagamente evocam a forma das coisas, nos
faz pensar nos inventores dos “primeiros tropos”, de que fala Vico, que interpretam o mundo “através de substâncias animadas”: momento inaugural em que.tudo é metáfora e onomatopéia. Porém a exposição evidencia muito em como rapidamente o sinal imitativo logo se torna abstrato, perde a sta referência visual aos objetos, o pictorama torna-se hieroglífico e o hieróglifo permanece imagem, mas passa a representar
morreu aos quarenta e dois anos.
Quanto ao imaginoso jesuíta barroco, padre Kircher, que acreditava poder interpretar tudo em linha imitativa, aprontou poucas e boas. Vê uma série de desenhozinhos e lê: “Os benefícios do divino Osíris devem ser procurados por meio de cerimônias sacras e da cadeia de gênios de modo a obter os benefícios do Nilo”. Esfrega as mãos e vai dormir contente, ignorando que aqueles sinais queriam dizer somente “Apries”, que era o nome de um faraó. Isso porque os egípcios, com maravilhoso cinismo, usavam alguns hieróglifos com sentido pictográfico e outros com sentido fonético, como nós usamos as letras do alfabeto. Mais uma vez vem à mente Vico, do qual nos contaram na escola que pensava que antigamente os deuses falavam por sinédoques e metonímias (fontes, rochedos, regatos), os heróis por metáforas (os lábios do vaso, O pescoço da garrafa) e enfim os homens passaram à língua “epistolar”, bem mais convencional. Mas Vico sabia muito bem que não se pode falar a primeira língua senão com base na última, e que as três línguas, ou seja, os três modos de produzir signos, nasceram juntas: é como se se dissesse que a invenção da poética nasce sempre de um complexo cultural anterior. ;
Essas tabuinhas nos mostram ainda que, desde aquela época,
ler
Vem à mente um outro diálogo de Platão, o Crátilo, no qual se discute palavras nasceram naturalmente ou por convenção, e a conclusão prudente é que talvez, no início, os sons imitassem as coisas, mas depois este parentesco direto se perdeu, e o que era imagem viva de um objeto tornou-se sinal convencional. O sinal imitativo estiliza-se porque a argila e o estilete não permitem traçar bem as curvas. Em segundo lugar, desde o princípio, os ideogramas não imitam as características da coisa, mas os traços pertinentes a uma concepção mental da coisa. A terra é representada por um losango, a palavra por uma grosseira silhueta humana com tracinhos transversais que sugerem barba, e, portanto, atraem a atenção para a boca como lugar de produção da palavra. Como se vê, não é tanto pura imitação quanto um jogo complexo de sinédoques e metonímias visuais. É necessário muita fantasia para reconhecer a noção de “rei” num vago delineamento de figura humana com uma espécie de escova na cabeça (o espanta-moscas, ou insígnia real). Por outro lado, se não fosse necessário fantasia, qualquer um teria podido decifrar os ideogramas que ficaram incompreensíveis por dois mil anos, e devido aos quais, na grande tensão de decifrá-los, Champollion
sempre foi interpretar, porque era necessário decidir, segundo o contexto, como uma imagem devia estar relacionada ao seu significado e em que direção prosseguir a leitura. Como num enigma, era preciso decidir o que ler em primeiro lugar, o sinal fonético ou o sinal pictográfico. Ademais, era necessário inventar as vogais e muitos sinais eram homófonos, como quando o mesmo som remete a significados diversos. Então, os egípcios tiveram que inventar sinais contextuais. Assim, existem sinais que remetem a idéias (casa, vaca, vento), sinais que remetem a sons (a imagem da boca, que se pronuncia “er”, serve para representar a consoante “r”) e existem, enfim, sinais puramente determinativos: tomando o mesmo sinal que representa um jogo de damas e um fio d'água, se se lhe acrescentã como determinativo o sinal do pano, lê-se “tecido”, acrescentando-se-lhe o sinal de um passarinho, lê-se “estar doente”. Para não falar da metátese gráfica, onde a ordem dos sinais se inverte por razões decorativas, de modo que ler transforma-se numa arte. A escrita como metáfora da textualidade, os códigos que se complicam com regras contextuais (esse deus Toth inventou realmente tudo), as teorias daderivação interpretativa, as místicas da hermenêutica, demonstram, quando muito, em nossa época, uma insuperável nostalgia do hieroglífico, mas de um hieroglífico ainda decifrado à maneira de Kircher. Porque os egípcios e os sumérios, com essas invenções, conseguiam escrever sobre economia, cadastramento, política, em suma
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papiros. Adeus, memória, agora os homens aprenderão a recordar através destes expedientes mesquinhos. Parece um discurso moderno sobre os minicomputadores, e é uma curiosa filípica que dá vontade de atribuir a um Sócrates nada propenso a escrever. Ainda bem que Platão escreveu no lugar dele, e depois de alguns milhares de anos percebemos que a invenção da escrita não impediu Proust, por exemplo, de cultivar tanto a memória comoa própria interioridade. Mas os egípcios bem o sabiam, e esse deus, Toth, tornou-se não só o inventor da linguagem e da escrita, mas também o patrono dos escribas, o deus da medicina e da magia: divindade semiótica como tantas outras, sabia que ler os sinais entalhados numa pedra e ler sintomas num corpo humano, assim como rastrear sinais para dirigir o curso da natureza, é tudo a mesma coisa. Não é por acaso que o deus Toth é frequentemente representado como um macaco: escrever, como falar, é imitar, através de sinais, a realidade.
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Felizmente permanece a pedra de Rosetta. Escrita em hieróglifo, em demótico, e em grego, o texto grego nos diz explicitamente que a pedra é trilíngiie; sede de uma possível mentira, as linguagens e as escritas são também a única garantia de verdade que permanece, e os sinais interpretam-se uns aos outros. Que aquelas palavras dizem realmente aquilo que sabemos, sabemo-lo por causa de outras palavras. Os sinais tênues fantasmas nos asseguram que os faraós existiram realmente em came e osso, estabelecem uma ligação sólida entre a aventura dos olhos e a aventura dos dedos que ainda hoje tocam em múmias friabilíssimas e, ao contrário, sem nome.
SOBRE A MÁ PINTURA
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comunicavam e não apenas se entregavam ao prazer do texto. Observações finais sobre as tentações da escrita. Nasce para registrar dados, mas imediatamente passa a ocupar funções ideológicas. Escrevese tantíssimo para celebrar, para estabelecer direitos, para acentuar prioridades. A escrita torna-se de repente instrumento de poder. Não somente para os reis, que não sabem escrever, mas para os escribas. A exposição nos diz: muito sobre a formação de uma casta intelectual, sobre a escola como lugar de privilégio. E esses escribas não somente se organizam, estabelecem currículos, apregoam as dificuldades, a beleza e a autoridade do seu trabalho (eles, os guardiães da palavra), mas também se fazem representar continuamente por imagens. Servidores, guardiães de bibliotecas fechadas aos leigos, empenhados num trabalho de tal forma fastidioso e humilde que, por causa da discrição deles, perde-se por milênios o segredo dos seus escritos; são, na verdade, orgulhosíssimos do seu papel, vaidosos, estão sempre lá, sentados ou em pé, a dois passos do rei ou do faraó. E, para serem sempre mais importantes, inventam o que podem, mudam as regras do jogo gráfico, entalham bem miudinho para que só eles possam ler, complicam os enigmas porque (tentação que não morreu) quanto mais ininteligível se escreve, mais poder se adquire. Como se posicionam esses escribas em relação ao poder? Aparentemente são seus servos, os amanuenses. Mas, se deste poder sabemos alguma coisa, e se ele pôde impor-se, foi também obra deles. Tanto é que hoje, percorrendo os corredores da exposição, não sabemos mais se tudo que eles nos contam tenha realmente acontecido, porque para testemunhar sobre aqueles grandes impérios restaram somente as suas tabuinhas. Podem ter mentido, inventado reinos e reis que nunca existiram. E se nos tivesseip mentido os grandes decifradores dos séculos XVIII e XIX, como no fundo mentia, sem sabê-lo, o padre Kircher? Se toda a exposição nos contasse uma história inventada não pelos escribas, mas por seus intérpretes modernos? Se essas pedras contassem na verdade uma história bem diferente?
As grandes mostras retrospectivas são sempre úteis para desfazer as lendas e corrigir os clichês. Como fomos ensinados a pensar em Hayez como um pintor Kitsch, para corrigir os meus clichês fui ver a exposição de Hayez. E muito camp, sabe-se, descobrir que o Kitsch (suposto) era, pelo contrário, arte “verdadeira”, assim como, por outro lado, ter a revelação de que a arte chamada “verdadeira” fosse, pelo contrário, Kitsch, e por isso me apressei a ir ver Hayez. Um dia antes que fechasse. Não fui lá no início-para tomar distância, e por achar que, se um pintor trabalhou há mais de cem anos, vê-lo um mês antes ou um mês depois é a mesma coisa. A surpresa que tive na exposição de Hayez foi que o clichê não devia ser corrigido. E em termos muito claros, Hayez é um pintor péssimo. Aliás, não é um pintor, é um bom ilustrador que hoje poderia fazer capas para romances populares, e olhe lá, porque os vários Frazetta já elaboraram técnicas bem mais sutis. E confesso que me desagradou ver tantos estudantes a correr por aquelas salas, com guias estaduais que lhes explicavam os mistérios do romantismo na pintura, porque tive a dolorosa suspeita de que aquelas jovens mentes, brutalizadas daquele modo na fase mais delicada de sua maturação, aprontam-se para drogar-se com realismo socialista.
À uma exposição, reage-se instintivamente. Meus instintos estavam muito bem-dispostos (que prazer eu me prometia com essa revisitação neomedieval!), mas, mesmo instintivamente, a cada quadro eu me dizia que Hayez fazia uma pintura ruim.
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Percebi que não se pode deixar de lado a estética porque, a menos que se reaja a estas experiências com juízos emotivos (do gênero “aquele tipo eu não suporto”, e sem justificativas que não sejam as razões supremas
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coisa (talvez até irrelevante, como um cilindro ou um quadrado), surgeme a suspeita de que o sentido a mais existia, e de que aquela configuração queira sugerir-me “algo mais”. Posso dizer que a pintura de Hayez é muito malfeita porque me faz lembrar o modo como eu (diletante em desenho, embora não insípido cartunista para os íntimos) procuro desenhar. Faço uma figura, digamos um monge (em primeiro plano como é meu costume), depois me envergonho por ser tão vulgar, e desenho outros dois monges em segundo plano. Como entendo alguma coisa de perspectiva (mesmo que seja a olho) faço os dois monges do fundo menores do que o primeiro. Mas “atontece que tão logo tento sombrear o hábito do primeiro, com traços de pentel, corro o risco de confundi-lo com o hábito também tracejado dos outros dois. E então, para dar a entender aos outros (e a mim mesmo) que as três figuras estão em planos diferentes e são três figuras distintas, contorno, realço as linhas que separam o primeiro monge do espaço branco infinito, e as linhas que situam os outros dois monges. Em outras palavras, ao invés de deixar que os corpos apareçam do, nasçam do, definam-se dentro do espaço luminoso por contrastes de luz e cores, aprisiono-os na armadura de um contorno. Ora, se vocês fossem ver de perto o que faz Hayez, perceberiam que ele faz mesma coisa. Uma perna é uma perna, e para tornar evidente este fato admirável, Hayez contorna a perna, não com uma linha negra de carvão (porque afinal é um artesão que conhece seu ofício) mas de fato contoma, separa-a daquilo que não é perna, do resto do universo, e se vocês olhassem o quadro bem de perto perceberiam também que passou e repassou as linhas da perna com o pincel, porque a cor e a luz não lhe bastavam. E isto se chama desenhar, e desenhar a cores, se quiserem, não pintar. Além disso, acho que mesmo desenhar a cores seja uma outra coisa. E então é claro, com uma perna tão perna (tão “pernosa”, diria a Lucy, de Charlie Brown), como é possível imaginar que exista um segundo sentido? Perna é, perna permanece. ““Hayez tanto sabe que outros sentidos não existem que, para evitar “equívocos”, como dizíamos acima, tem o máximo cuidado em não representar aquele doge, aquele cruzado, aquele conde, mas sim a generalização dos doges, cruzados e condes. E para fazê-lo só precisa pescar norepertório da iconografia do tempo deles, de modo que qualquer uma de suas meninas, ou qualquer um de seus guerreiros, nos lembra alguém que já vimos, como aqueles narizes compridos e afilados, aqueles olhos tristes, aqueles cabelos oleosos, lisos e escorridos: já os encontramos nas belas gravuras dos livros de Sonzogno, em Jeannot, para sermos claros, e nos seus seguidores. Hayez desenha desenhos e ilustra ilusa
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Agora vamos ao ótimo Hayez. Primeira impressão: quando nos diz “eis aqui o doge Fulano de Tal que recebe o mensageiro do inquisidor” (ou “eis aqui os patriotas gregos que devem deixar chorandoa sua terra”), parece que ele nos diz exatamente essas coisas, e nada mais. Aquele doge é mesmo um doge (o problema é que normalmente não é aquele doge, mas um doge, a classe dos doges em geral), não é nada mais do que um doge que ouve os mensageiros do inquisidor, e como a mensagem lhe é dolorosa (até o título o diz, para evitar equívocos) o doge está mesmo aflito, e aflitos estão os pajens e familiares ao seu redor (por implícito, os mensageiros do inquisidor são malvados e traiçoeiros como convém a eles). E que diabo me interessa a história do doge, cujo nome, felizmente, esqueci? Absolutamente nada, é óbvio. Hayez não faz a tela “palpitar”: mas se a expressão até pode parecer impressionista, direi que não me sugere a idéia de que no que diz exista um sentido a mais. Podemos perguntar-nos: existe realmente algum sentido a mais numa bela coluna dórica, ou num quadrado de Van Doesburg? Por enquanto, façamos de conta que não. Mas aqui surge um aspecto (complementar) do objeto artístico, jà sua auto-reflexividade. Acontece que nunca me canso, diante do templo e do quadro abstrato, de admirar como a coisa foi bem-feita. Sei que é difícil dizer o que significa “ser bem-feito”, mas diante dessa experiência de auto-reflexividade, diante do assombro pela dedicação e a admirável paixão com a qual o artista fez “bem” aquela 70
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do desejo), para dizer que um pintor é ruim é preciso ter uma idéia de Arte. Percebi que a idéia de arte com base na qual eu rejeitava Hayez ainda era a mesma que formara há algum tempo, mesmo sem alardeá-la a toda hora. Poderia ainda resumi-la na fórmula jakobsoniana, auto-reflexividade e ambigiiidade, esclarecendo um pouco mais. Nós estamos habituados a achar que obras de arte são os objetos que a) por um lado nos obrigam a considerar o modo como foram feitos e b) por outro, nos deixam inquietos, porque não é assim tão pacífico que queiram dizer o que aparentemente parecem dizer. Neste sentido a “ambigiiidade” não é necessariamente reduzível à deformação, à inovação estilística, an rompimento das expectativas; pode ser também isto (e fregiientemente ga arte contemporânea o é ou o era), mas sobretudo quer dizer um “septido a mais” ou “polissemia”, se quisermos (ou queremos dizer abertura?). A obra está ali quadro, poesia, romance parece contar-nos que existe em algum lugar uma mulher, uma flor, uma colina da qual se vêem outras colinas, um poeta que ama uma criatura angelical, e ainda assim percebemos que não nos diz somente aquilo, mas sugere alguma coisa a mais (e às vezes exatamente o contrário do que parece dizer).
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trações. E reparem, não me importa que o fizesse antes de outros. O faz. Porém esta sua infeliz condição nos explica por que, apesar de tudo, tenha parecido um excelente pintor aos seus fregueses e admiradores do século passado. De fato, não podemos acreditar que o século XIX não tivesse uma idéia da arte e estivesse disposto a aceitar tudo. É que o século XIX, pelo menos na Itália, tinha uma idéia própria da pintura como comentário à literatura e ao teatro. Hayez agradava não por motivos mas por motivos literários e cenográficos. Agradava porque representava a gestualidade e a disposição espacial das cenas de melodrama (por isto os seus ambientes são tão monumentais e vazios, como se esperassem uma invasão de figurantes), porque traduzia na tela, com exatidão, expressões que eram reconhecidas nas páginas, do tipo “ergueu os olhos lacrimejantes ao céu” ou em cena, onde se espera ouvir os sons de passos impiedosos. Alguns anos atrás Aurelio Minonne publicou um belo ensaio sobre “O código cinésico no “prontuário das poses cênicas" de Alamanno Morelli” (Versus 22, janeiro-abril 1979), onde examinava a lógica “cinésica” (a semiótica gestual) dos teóricos do teatro do século XIX, com o seu código de poses e gestos de significado exata e convencionalmente definidosu O teatro do século XIX (especialmente o melodrama), vivia destas; convenções e, sem entendê-las, corre-se o risco de confundir Verdi com um trombone. No mesmo ensaio Minonne mostrava que as mesmas instruções para a cena eram obedecidas pelos pintores italianos do século XIX, de modo especial (justamente) por Hayez. Prova, que os fregueses e o público pediam a Hayez, quando os pintava, que os fizesse lembrar o teatro. Se esta era a solicitação que os fruidores faziam à pintura, bem fez a pintura em satisfazer a solicitação e prover, por assim dizer, uma satisfação vicária: ela veiculava ocasiões de reviver emoções estéticas experimentadas no teatro. E como este tipo de experiência (a evocação da teatralidade) era essencial para aquele público, ela tornavase valor primário, em prejuízo dos outros valores que nós consideramos hoje fundamentais para definir a pintura como tal. Por isso é necessário questionar-se se para aquele público a pintura de Hayez não tinha realmente um sentido a mais: ela não falava daquele doge ou dos doges em geral, mas do teatro que ela não era, e da vida ou da história como teatro (cantado). Sendo assim, talvez no século XIX Hayez fosse um artista. Mas certamente hoje é difícil admitir tal possibilidade. Evidentemente, no-século XIX o chamado intertextual (a pintura como sugestão do teatro) prevalecia sobre a consideração textual (a pintura como pintura). Talvez Hayez não fosse pós-moderno, porque
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moderníssimo (adequado ao seu tempo) fornecia ao público a mercadoria que este lhe pedia, isto é, uma pintura que não falasse de pintura. Mas pode ser interpretado em sentido pós-moderno como triunfo despudorado da intertextualidade, como pintor que vivia de citações extrapictóricas. Tudo é possível, e vivemos numa civilização esteticamente livre, e” flexível. Mas se a idéia de obra ainda tem um sentido, até mesmo o misreading de Hayez, que o torna grande para nós, pode ser legitimado com base num exame do seu texto pictórico, ainda que seja num diálogo livre e aberto como que não é texto, mas ambiente, enciclopédia de uma época. Porém (e é certo que com o passar dos anos nos tornamos observadores) preferiria que Hayez fosse apresentado aos jovens como um pintor que não fazia uma boa pintura, embora num contexto cultural cuja idéia de boa pintura contava muito menos do que a idéia de “literatura” e de literaturalidade da pintura. Seránecessário explicar por que a Idéia de Arte do século XIX não é mais a riossa com o devido respeito a todas as Idéias (desde que não pretendam apresentar-se como a Idéia). —
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DEZ MODOS DE SONHAR A IDADE MÉDIA
somente as belas terras da Itália, porque, se quisesse rever todas as etapas do sonho medieval no mundo todo, não me bastaria a vida, e correria o risco de chegar no fim do meu caminho sem ter posto as mãos no Santo Graal de uma conclusão razoável. E então partamos.
2. Quatro séculos de sonho
Iniciam os poetas renascentistas, que com conveniente ironia revêem aventuras dos paladinos, digo Pulci, Boiardo e Ariosto, mas antes deles, e com menor ironia, o autor dos Reali di Francia e do Guerrin Meschino. E sobre as raízes da Idade Média e da sua glória, raciocina com frieza filológica Lorenzo Valla (para destruir um mito, não para celebrá-lo e muito menos para sonhá-lo, mas, em todo o caso, reevocando o tempo que foi). Joga com a reevocação lingiiística medieval o Baldus, e Trissino dirige um olhar ao tardio classicismo e ao bizantino medievo, cantando a Itália libertada dos godos. Se papai Bernardo canta um Amadis de Gaula, o filho Torquato não encontra nada melhor para fazer do que cantar romanças maneiristas aos medievalíssimos cruzados (sobre os quais, claro, não ironiza como os seus antepassados, usando-os até num outro sentido). Se depois ele escreve uma tragédia, será sobre o Rei Torrismundo, soberano dos godos. O século do Seiscentos parece pouco atento à restauração medieval, como se o Concílio de Trento não tivesse revestido com idéias barrocas o próprio sonho de uma reforma que nunca aconteceu, mas não devemos prestar atenção só aos literatos. Que naquela época antes, aliás reciclamta filosofia medieval, no início do Quinhentos o cardeal Gaetano (e a tal ponto que os incautos nunca entendem bem onde o Tommaso acabou de escrever e onde ele começou), e depois Pedro da Fonseca, e Pietro Ramo, e na época barroca Francisco Suarez, terminando com o grande Jean Poinsot, mais conhecido pelos neo-escolásticos como Giovanni di San Tommaso, para não falar nos inimigos de Galileu, menos néscios do que se pensa. E estes vivem os seus sonhos medievais tão bem que todos, sem exceção, começando pelos neo-escolásticos mais ilustres do nosso tempo, consideram a escolástica contra-reformista deles como uma boa e autêntica escolástica, e acertam por unanimidade, desconhecendo o fato que de todos eles eram alguma coisa mais que simples escolásticos em atraso, e somente hoje se começa a relê-los como autores do seu próprio tempo, que a seu próprio modo olhavam para a frente. E que diremos do período setecentista racionalista e iluminado? Que na Idade Média começa a reconstrução filológica com o Rerum Italias
1.
Que sonho?
Que têm em comum os personagens nibelungos de Frazetta com as extenuadas criaturas dos pré-rafaelitas? Os paladinos de Battiato com o nascimento do purgatório de Le Goff? E, caso se encontrassem a bordo de um objeto voador não identificado qualquer nos arredores de Montaillou, Dart Vader e Jacques Fournier falariam a mesma linguagem? Em caso positivo, seria o latim? O latim do evangelho segundo São Lucas? Como todos os sonhos, também o da Idade Média corre o risco de ser ilógico, e fonte de admiráveis deformidades. Muitos no-lo disseram, e talvez isto bastasse para não induzir-nos a tratar de modo homogêneo o que não é homogêneo. Mas toda vertigem de heterogeneidade pode ser chamada de campo unificado quando exibe no seu interior uma rede de semelhanças de família. Entre estas, porém, será necessário desenredar-se. Quando se começa a sonhar com a Idade Média? Evidentemente quando, se a Idade Média fosse diurna, o dia acaba, e inicia a reelaboração noturna, nas suas formas oníricas naturais. E já que, por consenso das más línguas, a Idade Média é a noite, dever-se-ia começar a sonhar quando surge o novo dia e, segundo um conhecido poemeto goliárdico, entre o descobrimento da América e a tomada de Granada (dois nomes que, como vêem, o presente adora associar, tanto quanto o adorava o passado), a humanidade alegre desperta cantando “que alívio, que alívio, acabou o medievo”. E, àquela altura, mesmo que seja de olhos abertos, começa a sonhar.
Reparem que nesta minha rápida cavalgada, como convém a um bom cavaleiro das eras obscuras, serei rápido como o vento, e percorrerei
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carum Scriptores, de Muratori, enquanto Bettinelli se ocupa, sim, em falar mal de Dante, mas fala dele, e fala porque, evidentemente, alguém
cometa, todas descrições que valem por centenas de torneios, e que têm a virtude de desviar o pensamento do leitor. Além do mais, a erudição foi despejada aqui abundantemente, tendo colaborado para tanto o nosso cronista, que parece ter andado a ciscar entre as memórias do seu tempo, valorizando-as na sua história. ...
do seu tempo ainda fala, e até demais, na sua opinião. Porque, na verdade, se Bettinelli é contrário a Dante, não é contrário à Idade Média, porque no Risorgimento d'Iália, corrigindo-se à luz das descobertas de Muratori, tenta reavaliar tudo o que acontece nos séculos seguintes ao ano mil. Por outro lado, no mesmo período Gasparo Gozzi escreve uma defesa de Dante. E o século das luzes acaba, como no resto da Europa, com as Ossianiche, de Cesarotti. O romantismo está às portas e a literatura inglesa povoa-se de castelos e abadias góticas. Dentro em pouco Chateaubriand nos dirá, respirando ar balsâmico sob os arcos ogivais de uma floresta célticas o que é o gênio do cristianismo. Aquela altura a ifália risorgimentale* povoa-se de medievos revisitados em todos os gêneros e em todos os sistemas semióticos à disposição. Canta Pellico uma Francesca, Manzoni um Adelchi, soa a trombeta de Grossi pelos lombardos na primeira cruzada, jura Berchet a Pontida, discute com Benevento Guerrazzi, freme Prati no teatro do rei Alboíno, repassa Amari os fatos do Vespro Siciliano, e o que faz De Sanctis entre um exílio e uma vitória senão preleções sobre Dante e ensaios sobre Petrarca? Para não falar no Marco Visconti e no Folchetto di Provenza, de Grossi (Folchetto, que belo como uma rosa entre as brumas nórdicas viaja), do Convinto di Alboino, de Guadagnoli, do Castello di Trerzo, de Bazzoni, dos Beati Paoli, de Felice Bisazza (que não são setecentescos como os de Natoli, mas são do décimo-segundo século, porque até a máfia tem raízes medievais), da Lega di Lombardia, de Cesare Balbo, das Leitere siciliane del secolo XIII, de Santorre di Santarosa, ou da plêiade de romances e romancezinhos de Diodata Saluzzo di Roero, de Folleti, de Agrati, ou de Bertolotti. Para terminar com Carlo Tenca, que cito pelas razões não ingênuas, mas certamente sentimentais, que alguns de vocês poderão entrever. Tenca escreve em 1840La Ca' dei cani. Cronaca milanese del secolo XIV cavata da un manoscritto di un canottiere di Barnabô Visconti (A casa dos cães. Crônica milanesa do século XIV extraída de um manus-
crito de um remador de Barnabo Visconti), e assim formula o seu prefácio aos leitores: “,.. porque os episgdios são necessários, aliás constituem a parte principal de uma narrativa histórica, introduzimos aqui a execução de cem cidadãos enforcados em praça pública, e a de dois frades queimados vivos, a aparição de um *Risorgimento, movimento iniciado no séc. XVII e que culminou, em 1870, com a unificação da Itália.
Aliás, foi tão grande seu afã de narrar fatos, que em apenas um ano recolheu acontecimentos de cinco ou seis anos... .
“A respeito do estilo e da linguagem, que hoje em dia detêm o primado da importância, esforçamo-nos por ser o mais estritamente possível fiéis à verdade... De modo que, na boca do senhor e do príncipe, colocamos uma linguagem floreada e sentenciosa, adornada com frases estudadas e peregrinas; na boca do povo, um falar baixo e rufianesco, mistura de solecismos e cavilações de toda espécie. Até nisto os leitores comuns encontrarão aquela diferença, diríamos quase aquele matiz, que tanto agrada no mundo dos romances.”
E, enquanto isso, fremem os palcos de trovadores verdianos, e os amantes de Hayez, com o chapéu de estudante de quarto ano, beijam as suas castelãs que tiveram a sorte de encomendar seus damascos ao encarregado do guarda-roupa do Scala. Mas Hayez não foi o único: fazem quadros com argumentos medievais Adeodato Malatesta, Ludovico Lip-
parini, Massimo Dº Azeglio, e Faruffini, Domenico Morelli, e Nicolô Barabino, continuando até De Carolis, quando, em outros lugares, Ruskin e Morris já tinham lançado sua moda, e os decadentes franceses colocam, no misturador místico do Sar Josephin Peladan, os Rosacruzes e os Templários, para oferecer uma alternativa de vanguarda tradicional à nascente tradição do moderno. Tampouco foge a arquitetura ao chamado do sonho, e enquanto Boito escreve sobre o modelo medieval com refundação de uma lógica construtiva dos edifícios, Pelagio Pelagi e Alessandro Sidoli refazem, à moda medieval; os centros históricos, constroem-se ou reconstroem-se as fachadas da catedral de Nápoles, da catedral de Amalfi, de Santa Cruz é de Santa Maria del Fiore, para a alegria do turista não ainda pós-moderno, em busca desesperada de autenticidade histórica. Modenesi desenha a fachada de São Petrônio, Salvatico, a catedral de Trento, Coppedé, o castelo Mackenzie, Falcini, Treves e Michele, a sinagoga de Florença, enquanto; Edoardo Arborio Mella escreve os seus Elementos de arquitetura gótica, em 1857. Não bastará a unificação da Itália para desviar poetas e narradores do sonho medieval: não falemos em Carducci e das suas igrejas de Polenta, dos seus San Miniati, do seu encanecido sire Hohenzollern que pensa consigo mesmo “morrer/ pela mão de mercadores que apenas ontem cingiram/ aos seus ventres rotundos a espada de cavaleiros”, enquanto e
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as altas tochas da Alexandria, subindo os Apeninos, iluminam a fuga do Cesar gibelino, e as tochas da Liga respondem de Tortona e um canto de vitória na pia noite ecoa. Mas Pascoli comove-se com a doce perspectiva de Paolo Uccello e, sobre o rei Enzo, Verga tece deliciosas novelas menores de estilo gótico, Giacosa joga xadrez, Benelli faz zombaria em
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cena, Gozzano segue por insulae perditae, Comparetti volta vencedor da imensa selva virgiliana.
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Por que hoje?
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escreveram os seus romances e Battiato confiou aos discípulos de Eleanor Fini e de Fabrizio Clerici as armaduras dos seus fantoches
Falamos então hoje de moda medieval porque Pedriali ou Malerba
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palermitanos submetidos a uma plástica facial pelo cirurgião de Fuori? Parece, e me parece, que a moda medieval, e a idealização do medievo, atravessa toda a cultura italiana, e européia por extensão, como já foi sugerido. E sobre o porquê desta fascinação muitos outros já falaram. Não se sonha com a Idade Média porque seja o passado, porque a cultura
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ocidental tem uma ihifinidade de passados, e não vejo por que não se deva voltar Mesopotâmia ou a Sinhue, o egípcio. Mas acontece que, e já foi dito, a Idade Média representa o crisol da Europa e da civilização moderna. A Idade Média inventa todas as coisas com as quais ainda estamos ajustando as contas, os bancos e o câmbio, a organização do latifúndio, a estrutura da administração e da política comunal, as lutas de classe e o pauperismo, a diatribe entre Estado e Igreja, a universidade, o terrorismo místico, o processo de acusação, o hospital e a diocese, até mesmo a organização turística, e, substituam as Maldivas por Jerusalém ou por Santiago de Compostela e terão tudo, inclusive o Guia Michelin. E, de fato, nós não somos obcecados pelo problema da escravidão ou do ostracismo, ou pelo motivo por que se deva, e necessariamente, matar a própria mãe (problemas clássicos por excelência), mas sim por como enfrentar a heresia, e os companheiros que erram, e os que se arrependem, e por como se deva respeitar sua esposa e derreter-se por sua amante, porque o medievo inventa também o conceito do amor no ocidente. à
opor o modelo da reconstrução filológica ao modelo do remendo utilitário. Reconstrói-se a antigiidade clássica, escavam-se os foros imperiais, fortifica-se o Coliseu que periclita, dá-se um polimento na Acrópole: mas não os povoamos novamente, uma vez redescobertos, os contemplamos. Ao contrário, ajeita-se de qualquer forma o que sobra do medievo e continua-se a reutilizá-lo como recipiente, para colocar nele alguma coisa que jamais poderá ser radicalmente diferente da que lá estava. Ajeita-se o banco, conserta-se a prefeitura, arrumam-se Chartres e São Geminiano, mas não para venerá-los ou contemplá-los, e sim para continuar a habitálos. Paga-se, quando muito, o ingresso para visitar o templo grego ou a galeria dos bustos dos filósofos, mas na catedral de Milão ou na igrejinha dos anos mil, ainda se vai à missa, e elege-se o novo prefeito no palácio da prefeitura do século XII. Discute-se se os exércitos devem ser organizados com mercenários ou com cidadãos conscritos, não a reconstrução da legião tebana. A idealização do medievo exercita-se sempre sobre o que pode e deve ser consertado, nunca sobre o que se exibir num museu. :
E se alguém pode objetar que vivemos ainda de Aristóteles, de Platão Plotino, atenção no erro de perspectiva. Quando os usamos como contemporâneos, os usamos e consertamos como herança medieval, pois tal é o Aristóteles dos neo-escolásticos. Porque, mal um filólogo no-lo restitua tal como era, e não como a Idade Média no-lo entregou, este Aristóteles não é mais um mestre de vida, mas texto para prova. Quando muito, para os mais adiantados, transforma-se em modelo de uma possível doutrina, não em instrumento para pensar hoje por seus próprios meios. Taparelli d' Azeglio remendava Aristóteles, Minio Paluello conta a história dos remendos, e sobre aquela base pode-se até crer numa teoria da substância e dos acidentes que nos permite, hoje, aproximar-nos damesa eucarística, mas tão logo o severo filósofo reconstrói o Aristóteles perdido e original, afastamo-nos do remendo e do hábito para entrar no santuário da veneração acadêmica. e de
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5. Dez tipos de medievo
Como se distingue nossa livre propensão para a herança clássica, da nossa necessária atenção para a herança medieval? Creio que podemos
Mas se só se volta ao período medieval remendando-o, nunca reconsna sua plenitude e autenticidade (qual?), talvez então toda a idealização da Idade Média (de 1492 até hoje) não represente a idealização do medievo, mas a idealização de um medievo. Se cada idealização da Idade Média é a idealização de uma Idade
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4. Reconstruir e remendar
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Média, de que sonho e de que Idade Média estamos falando? Deixem-me tentar uma tipologia da muitas Idades Médias que nhecemos tosca e genérica como todas as tipologias.
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5. A Idade Média da philosophia perennis. Talvez entendida como escamoteação arguta por Gaetano e Giovanni di San Tommaso, levada dramaticamente a sério por uma mente estreita como a do padre Taparelli d'Azeglio, e por uma mente ampla como a do cardeal Mercier e, continuando em ordem de grandeza, por Etienne Gilson. Nutrido com amor, quase com luxúria, peio olhar alucinado de Maritain, com obstinação conservadora por Pio XII, em termos de Heroic Fantasy massmediana pelo cruciferário Woytila, esta Idade Média apresenta alguns aspectos de finura filológica e outros de dogmatismo anti-histórico. É infinitamente preferível, no universo católico, ao falso modernismo dos barões espiritualistas que relêem Gentile através de Rosmini.
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A Idade Média somo maneira e pretexto.
A de Tasso, para sermos mais claros, a do melodrama. Não existe real interesse por uma época, a época é vivida como “lugar” mitológico onde reviver personagens contemporâneos.
1.
A Idade Média da revisitação irônica, a de Ariosto, talvez também Cervantes. Volta-se ao imaginário de uma época passada, vista exatamente como passada e irreproduzível, para ironizar os nossos sonhos qu o que não somos mais (“ó grande bondade dos cavaleiros antigos...) Ariosto revisita a Idade Média como Leone revisita o
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6. A Idade Média das identidades nacionais, qual foi a de Scott e de todos os renascentistas, que viam, nos períodos brilhantes do movimento
Ocidente, É a Idade Média da nostalgia, mas trata-se de uma nostalgia incrédula.
comunal, um modelo triunfante de luta contra o domínio estrangeiro. 3. A Idade Média como lugar bárbaro, terra virgem de sentimentos elementares, época € paisagem fora de toda e qualquer lei. É a Idade Média da Heroic Fantasy contemporânea, mas é também a Idade Média de O Sétimo Selo e de A Fonte da Virgem, de Ingmar Bergman. Nada impediria que as mesmas paixões elementares fossem vividas na época de Gilgamesh, ou no litoral da Fenícia. O medievo é eleito como espaço escuro, dark ages por excelência. Mas naquele escuro se quer ver uma “outra” luz. Neste Sêntido, qualquer que seja o tempo e o lugar onde se desenrole, a Tetralogia wagneriana pertence a esta Idade Média. O medievo, por vocação, está à disposição de todo sonho de barbárie e força bruta triunfantes, e eis por que é sempre, de Wagner a Frazetta, suspeito de nazismo. É nazista toda contemplação de uma força, eminentemente viril, que não saiba lernem escrever: o medievo, com Carlos Magno que mal sabia assinar o próprio nome, presta-se maravilhosamente a estes sonhos de retorno à pilosidade intocada. Quanto mais peludo é o modelo, tanto maior é a admiração: seja Hobbit modelo humano para os modernos aspirantes a novas e longas noites de longos punhais.
4. A Idade Média romântica que prefere a escuridão do castelo desmoronado num cenário de tempestade cortada por relâmpagos, habitado por fantasmas de esposas violadas e assassinadas na noite de núpcias. Medievo ossiânico e neogótico, parente próximo das crueldades orientais de Vatheck. Medievo oitocentista, mas ainda o medievo de uma certa space opera, em que o torreão substitui a astronave. -
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7. Uma Idade Média carducciana , tudo reconstituído, para celebrar Terceira Itália, um pouco falsa e um pouco filológica, tudo somado, bonachonae hipócrita, adequada ao renascimento e à estabilização de uma Nação à procura de identidade. Mas parente do medievo decadente, o do êxtase de Des Esseintes nos manuscritos da latinidade tardia, para ser mais claro, e de um certo dannunzianismo, e dos pré-rafaelitas, e de Ruskin e de Morris. E se ponho lado a lado Carducci e Dante Gabriele Rossetti (com todo o neomisticismo medievalizante dos Fedeli d' Amore e as interpretações ocultistas de Dante) é porque, republicano um, aristocrático o outro, ambos no fundo inscrevem-se num esquema de restauração no qual o medievo é visto como um antídoto à modernidade. a
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8. A Idade Média de Muratori e dos Rerum italicarum, uma Idade Média não diferente da dos Annales, só que a primeira reconstruía filologicamente uma época baseando-se nas grandes crônicas e histórias e a segunda baseando-se nos registros paroquiais, nos Tegistros da Inquisição, nos atos notariais. A primeira para encontrar os acontecimentos; a segunda para encontrar os comportamentos cotidianos das massas sem história e as estruturas da vida material, mas ambas decididas à compreender, à luz dos nossos problemas e das nossas curiosidades, como tenha sido uma época que não se pode reduzir a um clichê e deve ser redescoberta na sua pluralidade, no seu pluralismo e nas suas contradições. Fazem parte desta Idade Média as pesquisas estruturais de Viollet-le-Duc, a iconologia de Mãle e a iconografia de Panofsky, para 81
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não citar todos os bons estudos de reconstrução filosófica, que visam mais à compreensão crítica do que à reutilização passional. Note-se que, em todos esses casos, não ocorre a ninguém falar de moda. Trata-se, na verdade, apenas de bom trabalho. Ou talvez seja porque, quem fala em modas normalmente não conhece esse trabalho.
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9. A Idade Média da Tradição. Local onde tomou forma (quero dizer: de modo iconograficamente estável) o culto de um saber bem mais antigo, o do misticismo hebraico e árabe, e da gnose. É a Idade Média sincretista, que vê na lenda do Graal, nos acontecimentos históricos dos Cavaleiros do Templo e a partir destes, passando pela fabulação alquímica, nos
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Huminados da Bavierp, até na atual maçonaria de rito escocês, o desenrolar de uma única & contínua história de iniciação. Acrítica e antifilológica, esta Idadé Média vive de alusões e de ilusões, consegue sempre e admiravelmente decifrar, onde quer que seja e a qualquer pretexto, a mesma mensagem. Felizmente para nós e para os adeptos, a mensagem perdeu-se, o que faz da iniciação um processo sem fim, rosacruz e delícia para os privilegiados que resistem, impermeáveis ao hábito popperiano da falsificação, devotos dos paralogismos da simpatia universal. Mística e sincrética, esta Idade Média registra avidamente a própria história intemporal, tudo o que não pode ser nem provado nem
falsificado. 10. E, por fim, a Idade Média da espera do Milênio, espera que obcecou de maneira diferente cada século, dos cristãos fanáticos aos terroristas, dos fradezinhos aos ecologistas. Fomentada por muitas insanidades quando vivida com nervos frágeis e mente alucinada, nem mesmo quem reflete com mente serena e nervos sãos poderá esquecê-la completamente. Ela nos acompanha, advertência e ameaça, permanente lembrete à possibilidade de um Holocausto, e nos manda ficar atentos, para saber identificar o Anticristo quando este bater à nossa porta, seja em trajes burgueses, ou com divisas militares.
6. Escolher a Idade Média com a qual se sonha é
A esta altura, podémos legitimamente perguntar em que Idade Média se pensa quando se fala de neomedievo, de retorno à Idade Média e de moda medieval. Porque é claro que cada vez se trata e se tratará de uma coisa diferente, às vezes auspiciosa, às vezes inócua, como é inócua a literatura feita por escritores menores, às vezes insidiosa e perigosa. E
será necessário ter muita clareza e dizer com todas as letras à que coisa se alude quando se celebra um retorno à Idade Média. Porque a Idade Média ou é uma época histórica que acaba em 1492, ou é a história da
adaptação contínua que a nossa civilização vai fazendo com o que acontece entre a queda do império romano e a descoberta da América.
Dizer a qual dos dez tipos de Idade Média está-se retornando significa dizer quem somos e o que queremos, se estamos simplesmente nos divertindo, se queremos entender ou se nos prestamos, sem sabê-lo, ao Jogo de uma restauração qualquer. Quando Roberto Vacca falou da Idade Média próxima vindoura, ele estava pensando na derrocada dos grandes sistemas tecnológicos, derrocada que instauraria uma nova Idade Média feudal ou pré-feudal, fundada na penúria e na luta pela sobrevivência. Respondi, então, que a Idade Média já tinha começado, isto é, que não é necessário esperar pela guerra atômica para desejar ou temer uma nova Idade Média. Mas a minha Idade Média era uma época de transição, de pluralidade e pluralismo, de contradições entre um império que nasce, um império que morre e uma terceira sociedade que está surgindo. A minha Idade Média apresentavase como uma época “interessante”, porque era uma época de embaralhamento de cartas, em que as grandes penúrias eram acompanhadas por grandes invenções, e a prefiguração de novos modos de vida. Neste sentido, a Idade Média como modelo pode me interessar, mas o modelo funciona no sentido de perspectiva e, diria, fundamentalmente otimista. Mas a Idade Média pode ser também encarada como modelo de uma Tradição que, por definição, tem sempre razão. E temo este neomedievo, produto das negociatas do absoluto e vos convido a desmistificálo. Usarei as palavras de um crítico que no século passado, em plena efervescência neomedieval, tendo evidentemente, a respeito da Idade Média, uma idéia restritiva que só posso contestar, tinha, todavia, entrevisto o aspecto negativo de todo retorno nostálgico e idealizante, alimentado por paixões e não pela razão crítica. Assim, terminarei citando Carlo Giuseppe Londonio, um crítico de quem gosto porque a rua que traz o seu nome se estende sob a minha varanda, em belas simetrias neoclássicas, proporcionando-me cada manhã, ao despertar, uma perspectiva de árvores ora em flor, ora nordicamente despidas e entorpecidas pela geada. Londonio foi, na controvérsia que dividiu clássicos e românticos, um romântico moderado, e o quanto era moderado no seu romantismo vê-se pelo ressentido ceticismo com o qual, não sem exibir humores pré-positivistas, polemiza como sonho da Idade Média que se sonhava no seu tempo: —
“Após ter examinado 82
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doutrina da nova escola romântica sob o aspecto 83
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literário, resta-me dizer alguma coisa sobre a influência moral e sobre 0 propósito que ela pode ter. Trata-se, nada menos, de corrigir o mundo e de fazer reviver, se fosse possível, a beata ignorância e a feroz anarquia dos tempos da cavalaria. Realmente, a empresa é grande e é digna de louvor, se não de outra coisa, a boa intenção dos hodiemos reformadores das letras e dos costumes. Porém, e seja dito com a mesma trangiilidade deles, Deus nos guarde de ver realizadas as suas esperanças. Que os nossos costumes precisem de correção, «concordo. Mas que devamos espelhar aqueles tempos, isto é algo com que não posso concordar. Não há uma só vez que eu olhe no alto dos montes os solitários restos de um castelo desmoronado e que não sinta um aperto no coração e um arrepio de horror percorrer-me os ossos. Aquelas ameias, aquelas torres trazemme à mente os tempos de barbárie, de depravação, que às vezes alguns, na exaltação de sua imaginação poética, nos pintam como tempos áureos. É interessante ler nas antigas crônicas e nos poemas dos nossos épicos as magnânimas empresas dos cavaleiros errantes; mas que barbárie, que anarquia, não pressupõem necessariamente aquele tipo de sociedade em que a virtude e a inocência, mal defendidas pela lei, eram obrigadas a pôr-se sob a proteção de um
primado moral dos italianos? Claro que não, senão o revisaríamos com o mesmo zelo acrítico com que os seus amigos românticos revisavam a Idade Média. Endossaria, porém, sua manifestação de bom senso lombardo, e traduziria o seu apelo nestes termos: sonhem com a Idade Média, mas perguntem-se sempre qual. E por quê. O que talvez a nossa época tem realmente em comum com a Idade Média é, no fim das contas, o voraz pluralismo enciclopédico. Tudo bem, provavelmente todos nós preferimos a catedral de Estrasburgo, admirada por Goethe, ao templo malatestiano, se devemos mesmo falar claro. Mas Galileu tinha razão (pelo menos ensina-nos Popper, enquanto não estiver outra vez errado) e isto nenhum sonho jamais poderá fazer-nos esquecer.. Então, vida longa à Idade Média e aos sonhos sobre ela, desde que não seja um adormecer da razão. De monstros, já geramos o suficiente.
particular. Voltemos àquela época desventurada e veremos a Europa coberta de bosques, charnecas e pântanos; as províncias, as cidades, as próprias famílias divididas por ódios erernos, dilacerando-se e destruindo-se entre si; nenhum comércio, nenhuma &omunicação de um país a outro; as ciências e as artes negligenciadas, a justiça aviltada pela violência, a religião deturpada pela superstição; os soberanos incapazes de fazer-se obedecer pelos próprios vassalos e de proteger o povo contra a prepotência desses mesmos vassalos; os barões sempre em guerra entre si e de acordo somente quanto a opor-se à vontade do soberano e ao bem do Estado, o povo aviltado e considerado igual a animais de carga; veremos a honra, a vida, os princípios abandonados à fortuita decisão do duelo e da prova do fogo e da água fervente; veremos a Europa inteira armar-se cada vez mais para tirar das mãos dos infiéis os lugares consagrados pelas mais venerandas memórias da nossa religião, os modelos da cruz, os modelos da religião, de virtude, de honra deturparem com mil atrocidades o nome cristão e perecerem vítimas da discórdia, da deslealdade, da licenciosidade. Se tais são, como infelizmente o são, aqueles tempos heróicos que se propõem à nossa admiração, bem podemos felicitar-nos por viver neste século prosaico e em meio à atual depravação... Nós, italianos, também queremos ser românticos, nós, filhos primogênitos da moderna civilização, nós, de quem tomou forma e brilho a poesia ainda tosca dos trovadores: românticos sim, mas inimigos dos preconceitos, da melancolia, da superstição; românticos nas idéias, nas opiniões, nos afetos, mas fiéis ao exemplo e aos preceitos clássicos nas aplicações das formas e das regras de arte.” (Cenni critici sulla poesia romantica, 1817.) Endossaríamos tudo quanto Londonio pensa da Idade Média e do
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O GRUPO 63, O EXPERIMENTALISMO E A VANGUARDA
Razões para uma recuperação
Numa recognição dos eventos culturais italianos dos anos sessenta, O Grupo 63 tem certamente direito a uma extensa menção. Entretanto, mais do que refazer sua história, catalogar seus membros e as obras que encorajou, suscitou ou produziu diretamente, é necessario começar pelo fim e perguntar-se por que o grupo foi tão celebrado e relembrado por ocasião do seu vigésimo aniversário, em 1983. Assim, ao procurar estabelecer os motivos, far-se-á uma análise da sensibilidade cultural italiana nos anos sessenta e oitenta, ao mesmo tempo. Que o grupo tenha sido celebrado além do previsível, é um fato. Não houve um jornal nacional ou local que não tenha dedicado à comemoração pelo menos toda a terceira página, para não falar nos artigos dos semanários. E foram chamados a depor, nessas verdadeiras mesas-redondas, os protagonistas de ambas as partes da barricada, membros do grupo e seus antigos inimigos, cada um interpretando, paradoxalmente, tanto o papel de testemunha como de juiz imparcial. Ora, é verdade que nas últimas décadas os mass media praticam muito O que os americanos chamam de instant nostalgia, ou seja, saudade do passado imediato, mas o vulto das comemorações nos sugere que, portrás disso, devem existir outras razões. Se nos anos de atividade foram atribuídos ao grupo defeitos dos quais não podia orgulhar-se, nos anos de sua celebração lhe foram atribuídas, como veremos, qualidades que não lhe eram devidas. O bastante para suspeitar que a cultura italiana, aparentemente acertando contas como grupo, na verdade acertava contas com alguma outra coisa e, afinal, consigo mesma. 89
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Para entender o que aconteceu nos anos sessenta e oitenta, será necessário perguntar-se: se o grupo existiu realmente; se era um grupo de vanguarda; se era um grupo experimental; se era possível essas duas últimas características coexistirem, e como; se a dialética entre as várias características do grupo influiu no seu funcionamento, no seu fim, na sua redescoberta vinte anos depois. —
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Grupo 63?
O Grupo 63, já se disse, não existia. No sentido organizativo do termo, era real: tratava-se efetivamente de uma comunidade de escritores, E
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ensaístas, pintores, músicos que se conheciam há algum tempo e que faziam coisas de interesse comum. O grupo, então, existia como coisa costumeira e como manifestação ocasional: no sentido em que existe uma filodramaturgia em que pessoas que no dia-a-dia têm profissões muito diversas se reúnem para ensaiar uma comédia, animadas, é claro, por muitos interesses em comum, e se exibem em público de seis em seis meses. Talvez tenha sido esta sua “intangibilidade” que o tornou irritante e influente ao mesmo tempo. Não era uma maçonaria, na qual, com boas recomendações, alguém pudesse inscrever-se, mesmo secretamente (e como risco de não ser aceito pela maioria dos sócios). Era mais uma festa de aldeia, na qual toma parte quem está presente e participa do espírito geral e dos costumes locais. e O grupo, como tal, praticamente só existia quando aconteciam reuniões nas quais os participantes mostravam uns aos outros os próprios trabalhose se criticavam reciprocamente sem acanhamento e sem cum-
plicidade.
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Neste sentido queria-se, antes de mais nada, contestar um costume
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literário baseado no mútuo incensamento, ou, se preferirem, no modelo do mútuo socorro. Existiu por conseguinte, no Grupo 63, alguma coisa que antecipou (em escala reduzida) a contestação do Sessantotto *. Uma regra, uma interpretação da palavra muito além dos rituais (mesmo que, inevitavelmente, estas práticas tenham criado seu próprio ritual). Mas o grupo não era um “movimento” como o do Sessantotto. Os 1968, ano em que explodiu um movimento de contestação juvenil, especialmente estudantil, em alguns países industrializados da Europa. *
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membros do grupo ao contrário dos participantes do Sessantotto não eram jovens às vésperas de integrar-se no ciclo produtivo, ou dispostos a rejeitar a integração. Uns tinham trinta, outros quarenta anos e já trabalhavam na indústria cultural, nas editoras, nos Jornais, nas universidades. Por isso, quando aconteceu a contestação de 1968, o comportamento do grupo foi contraditório e, por assim dizer, interrogativo. Todavia, foi exatamente a revista do grupo, Quindici, que se interessou imediatamente pelo Sessantotto e acolheu textos dos líderes do movimento. Mas não se limitava a publicar as opiniões deles. Quando era necessário, criticava-as. Os homens do grupo tentavam redefinir seu papel de geração intermediária, entre os idosos e os bem jovens. Fazendo isso, como veremos, descobriram que não eram mais um grupo. Isto não teria acontecido se o grupo tivesse existido como instituição: aconteceu porque existia como atmosfera, e as atmosferas, mais do que impalpáveis, são mercuriais e voláteis. —
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No plano literário e artístico em geral, o relacionamento entre os “membros” sempre foi muito complexo.O grupo era culto e experimental, asseveravam uns, e via o próprio dever de contestação como dever cultural, a ser desempenhado no laboratório das linguagens. Mas, para outros, tratava-se de algo como um movimento de vanguarda, em nada silencioso e reservado. Todavia, os movimentos da vanguarda histórica aspiravam, em certo sentido, a apoderar-se da vida, a tornar-se prática cotidiana, enquanto que os intelectuais do grupo, parece, eram muito céticos quanto a essa possibilidade.
Tanto é que não cederam à provocação pós-Sessantotto, que transferiu as técnicas da vanguarda histórica diretamente para os comportamentos cotidianos, refez, por assim dizer, o surrealismo e o dadaísmo sur nature. Daí além do mais, e como eu tentei mostrar no meu Sette anni di desiderio a crise do assim chamado “movimento”, que acabou vítima de uma utopia estética antigiiíssimia: acreditando fazer política, procurou realizar, transferir a arte para a vida. Coisa muito difícil, para não dizer impossível. O Grupo 63 não podia tomar esse rumo, talvez pelo fato de ser ao mesmo tempo um grupo de vanguarda e um grupo de escritores experi—
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mentais que.se apoiavam entre si (com toda prudência, sentido obscuro do trabalho num laboratório de alquimia que tal característica comportava).
Eis que a esta altura é preciso fazer uma distinção entre experimentalismo e vanguarda, como, de resto, autores do grupo, como Guglielmi, por exempla, já tinham feito nos anos sessenta. 91
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Experimentalismo
Vanguarda
Se experimentar quer dizer agir de modo inovador em relação à tradição, toda obra de arte que nós celebramos como significativa foi, a seu modo, experirgental. Era experimental, para Manzoni, escrever uma história que se passava no século XVII, século de humilhação nacional, exatamente no auge do orgulho risorgimentale que preferia a Idade Média considerando-a como uma época de glórias e revanches nacionais. Era experimental para Rabelais jogar, ironicamente, com o patrimônio da cultura sorbônica e sorbonizante, assim como seria experimental hoje escrever questionando a semiótica implícita da École Pratique des Hautes Études. Era experimental Conrad (de fato, Marlow fala como ninguém antes dele tinha falado pelo menos não num romance), e eram experimentais os jogos sob o ponto de vista posto em prática (e teorizado) por Henry James. Certo, como uma espécie de 4 revolução dos bichos da literatura, existem escritores e artistas que são mais experimentais que outros. Mesmo intuitivamente é possível admitir que Joyce experimentasse mais do que James. Uma boa prova intuitiva e sociológica sobre a experimentalidade-de um artista é: “Quanto é compreensível?” A resposta “nada” não garante a experimentalidade do artista, porque, afinal, pode sempre tratar-se de um diletante pretensioso, contudo nos induz a iniciar uma investigação sobre a possível experimentalidade do artista em questão. Um escritor pode tornar-se incompreensível porque não conhece a gramática ou porque intencionalmente fere (e indiretamente reestrutura) as regras da gramática tradicional. Em todo caso, aquilo que caracteriza sociologicamente se não textualmente o autor experimental (e vimos que todo grande autor é, em certo sentido, mais ou menos experimental) é o desejo de ser reconhecido. Ele ofende, mas, diria com objetivo pedagógico, para obter consenso. O sonho de um autor experimental é que suas experiências, com o tempo, tornem-se norma. É claro que, para julgar um autor experimental, é necessário basearse nas suas obras e não na sua poética, porque pode-se projetar muito e praticar pouco.
Outra é a situação da vanguarda. Antes de mais nada, nunca se pode falar de uma obra de vanguarda, mas de uma obra (ou não-obra, esboço de poética, manifesto, declaração) produzida no âmbito de um movimento
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de vanguarda.
Típica do movimento de vanguardaé a atitude provocadora, o querer ofender socialmente as instituições culturais (literárias ou artísticas) através de produtos que se mostrem inaceitáveis. As observações mais lúcidas feitas sobre todos os movimentos de vanguarda deste século ainda são as de Renato Poggioli na sua Teoria dell arte di avanguardia. As características que Poggioli estabelecia para qualquer movimento
de vanguarda eram:
ativismo: entusiasmo, fascínio pela aventura, gratuidade de fins; antagonismo: age-se contra alguma coisa ou contra alguém; niilismo: nenhum escrúpulo ao pôr abaixo os obstáculos tradicionais, desprezo pelos valores correntes; culto da juventude; lucidez: arte como jogo; agonismo: no sentido de significado agônico do holocausto, capacidade 'de suicídio no momento justo, prazer pela própria catástrofe; revolucionarismo e terrorismo ( no sentido cultural); —autopropaganda: violentae “autopublicitária” imposição do próprio modelo como único; preponderância da poética sobre a obra. Creio ser possível revisitar todos os movimentos de vanguarda do nosso século, dos futuristas ao Grupo 63, neles encontrando (mutatis mutandis) esses elementos. —
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Experimentalismo versus vanguarda Isto nos permite opor experimentalismo e vanguarda. O experimentalismo joga com a obra em si, da qual qualquer um poderá extrapolar uma poética, mas que vale antes de mais nada como obra; a vanguarda joga com o grupo de obras ou de não-obras, algumas das quais são meros exemplos de poética. No primeiro caso, da obra obra. extrapola-se uma poética; no segundo caso, da poética extrapola-se a
O experimentalismo tende a uma provocação interna 92
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uma determinada instituição literária (romance como anti-romance, poesia como não-poesia), enquanto a vanguarda tende a uma provocação
externa, isto é, quer que a sociedade, como um todo, reconheça a sua proposta como um modo ofensivo de entender as instituições culturais, artísticas e literárias.
La Battaglia di Adrianopoli, de Marinetti, publicada numa revistinha de circulação limitada, não teria sido mais do que uma proposta experimental. Recitada em voz alta, diante de um público que tinha ido a uma determinada sala para ouvir o que socialmente era considerado “poesia”, provocava escândalo e rejeição. Quando Piero Manzoni pinta uma tela de branco, ainda faz pintura experimental; quando introduz num museu uma caixa hermeticamente fechada e anuncia quexcontém “merda de artistas”, faz vanguarda. No primeiro caso, discute as possibilidades da pintura em si, no segundo, a idéia de arte e de museificabilidade. Para simplificar, e recorrendo a uma esquematização corrente nas semióticas textuais, se considerarmos por um lado uma dialética entre autor e leitor empírico de um texto, e por óutro uma entre Autor e Leitor Modelo (ambos vistos como estratégias textuais), poderemos dizer que a vanguarda diz respeito às relações entre autores e leitores empíricos, o experimentalismo, entre Autor e Leitor Modelo:
Autor Empírico
Autor Modelo Leitor Modelo Leitor Empírico |
experimentalismo | vanguarda
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Sem dúvida os dois espíritos (vanguardista e experimental), convi-
viamno grupo lhe caracterizavam a substancial ambigiiidade. Isso pode explicar por que participavam do grupo personagens como Vittorini, cuja
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Menabô era sem dúvida uma revista de experiências literárias, mas não uma revista de vanguarda, e porque se encontravam à vontade no grupo os jovens turcos do Grupo 70 florentino, de conotações vanguardistas, e escritores neobarrocos como Manganelli. Será oportuno, ao mesmo tempo, entender como o grupo tenha podido “morrer” no que dizia respeito ao seu espírito vanguardista, sem por isso dissipar o crédito exgerimental que tinha acumulado. Fiel ao princípio de que todo grupo de vanguarda marcha conscientemente na direção da própria catástrofe, o grupo praticamente se matou como fechamento de Quindici,e Quindici fechou exatamente no momento do seu maior sucesso comercial e de prestígio.
Não há nada de paradoxal em tudo isso: a Quindici tinha se tornado espaço no qual poderiam expressar-se ao mesmo tempo as velhas exigências “culturais” do grupo e dos seus pais fundadores, e as exigências subversivas e “políticas” do “ movimento”. Os membros do grupo, diante das opções que surgem à sua frente, descobrem que entre eles não existia unidade ideológica (era sabido, mas a diversidade permanecia oculta pelo propósito comum de fazer vanguarda). A essa altura o grupo descobre que como grupo de vanguarda não tem mais nenhuma função, porque nem todos concordam contra queme por quem bater-se: o Sessantotto gerou manobras de realinhamento, desfez antigas alianças, até mesmo curou feridas de muitas lutas polêmicas. O grupo (através da Quindici) tem o mérito histórico (e mesmo que fosse o seu único méritó, já seria grande) de entender quando um movimento de vanguarda deve acabar para não sobreviver pateticamente a si mesmo. A essa altura, dá-se o retorno das várias componentes experimentais do grupo nos respectivos canais de trabalho. O grupo permanece como herança, e como depósito frutífero para quem continuar a trabalhar sozinho. um novo
O Grupo 63 e o iluminismo padano*
Agora deveremos dizer alguma coisa de mais preciso sobre as relações entre o experimentalismo do Grupo 63 e a situação da cultura internacional daquele tempo. O grupo reunia os filhos da primeira geração do pós-guerra, para os quais a Europa não tinha fronteiras e que se sentiam à vontade tanto com Leopardi como com Eliot. No curso das comemorações inspiradas pelo vigésimo aniversário do grupo, em 1983, foram-lhe atribuídos interesses e “descobertas” (lingiiística, estruturalismo, sociologia das comunicações de massa, semiótica, etc.) pelos quais o grupo, como tal, não era responsável. Além disso, não se tratava de “descobertas”, porque descobrir Saussure em 1963 teria sido como hoje descobrir a América, viajando num jato e com tarifa econômica. Quem escreve, por exemplo, naqueles anos ocupava-se com o estruturalismo, mas ligado a estudiosos, na Itália e no exterior, que nada tinham a ver com o grupo, aliás, tinham posições críticas e ideológicas opostas. Mas acontece que a cultura italiana atribuiu ao grupo tudo o que de novo circulava naquela época. Talvez esta tenha sido a verdadeira influência positiva do grupo, ter-se transformado no símbolo, no catalisador da novidade, da luta contra os mitos provinciais. Eis por que hoje *
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Relativo
ao
vale do rio Pó.
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se põe lado a lado, com tanta desenvoltura, o Grupo 63 e a contestação política. Na verdade, naquele tempo, entre o grupo e as revistinhas políticas que mais tarde dariam origem ao movimento do Sessantotto, existia uma polêmica muito áspera. Naturalmente todos respiravam o mesmo clima, no qual não se podia mais falar de suas recordações pessoais regionais, e toda a Europa, e a América, discutiam os mesmos problemas. Neste sentido poder-se-ia analisar o grupo como manifestação mais visível e provocante, mas bastante imitadora do que eu chamaria de “iluminismo padano”. A expressão é sintética demais, concordo, e vale somente quanto ao que pode parecer iluminante opor, desde o século passado, um iluminismo lombardo ao idealismo meridional, Quanto ao chamado iluminismo lombardo, não é por acaso que a revista de Anceschi, em cujas páginas os futuros membros do grupo se encontraram e fizeram as primeiras experiências, se intitulava Verri. Mas não é tampouco um acaso que em 1832, mesmo antes que a cultura napolitana dos De Sanctis, dos Spaventa, e dos Vera, se apoderasse da herança hegeliana, a Antologia florentina, pela mão de Romagnosi, e por conseguinte de um expoente da cultura lombarda, tenha publicado um feroz panfleto anti-hegeliano. Assim, no período em que a cultura italiana era dominada pelo idealismo crociano, hos próprios anos do facismo em que, para muitos italianos, o idealismo crociano (coma estética e o gosto artístico literário consegiientes) representava o único modelo de pensamento liberal e “europeu”, a Itália do norte era o lugar onde se desenvolviao magistério antiidealístico de Banfi; onde do existencialismo positivo de Abbagnano ao neo-racionalismo de Geymonat até o segundo e o último Paci, debatiam-se os temas da filosofia contemporânea com espírito oposto ao do neo-idealismo; onde enquanto os elzeviristas tradicionais ainda toscaneavam os editores Rosa e Ballo publicavam Brecht e Yeats, os expressionistas alemães e o primeiro Joyce; onde o turinês Frassinelli se aproximava de Kafka e do Portrait (via Pavese), e Vittorini primeiro descobria e traduzia os americanos, depois, com Menaboô, explorava as primeiras formas de literatura do triângulo industrial *, onde há muito em Veneza contrabandeavam-se Schônberg e Stravinsky, assim como mais tarde nascia em Milão um dos primeiros laboratórios europeus de música eletrônica. Para não falar do que tinha acontecido antes, na Trieste austrohúngara no início do século. Pelos nomes citados percebe-se que “iluminismo padano” não passa —
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Refere-se às cidades de Gênova, Turim e Milão.
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de um rótulo jornalístico, porque a esta ideal Weltanschauung padana pertenciam o sardo Gramsci e o siciliano Vittorini, assim como muitos intelectuais inscritos nos registros milaneses, ou turineses, ou bolonheses, eram e permaneciam, com todo o direito, membros do idealismo meridional. . Mas não se pode ignorar que Gozzano e Pascoli e Montale pertenciam à koiné nórdica, que mais tarde os jovens críticos do Verri identificariam
como os verdadeiros mestres do século XX
(contra D' Annunzio, contra naturalmente, Carducci e contra a estética da expressão). É claro que a distinção não pode ser étnica ou geográfica, e a fórmula do iluminismo padano caracteriza apenas um modo de pensar, certamente mais mitteleuropeu que mediterrâneo. Mas exatamente porisso não foi possível evitar que esse modo de pensar se polarizasse idealmente ao norte da linha gótica, como não se podia deixar de observar que essa cultura padana fosse contemporânea e de certa forma fundamental ao desenvolvimento do triângulo industrial (com que se entenderá por que mais tarde a cultura tradicionalista italiana se lançará contra o Grupo 63 padano de origem e sentimento, ainda que buscando fundação em Palermo, marcando-o como mosca transmissora do neocapitalismo). Não deve parecer bizarro que uma acusação tão convencionalmente marxista viesse do idealismo meridional, porque então grande parte do pensamento marxista italiano estaria mais próxima da matriz neo-idealista e, por materialista que fosse mas raramente o era um marxista italiano não podia deixar de preferir o Croce de “poesia e não poesia” (e do historicismo) ao espírito da Encyclopédie e a Gramsci que, com soberana indiferença pelas distinções do gênero, se interessava pela literatura popular e por outros fenômenos que tinham mais a simpatia da Padania do que da Magna Grécia. Mais tarde Arbasino criará a feliz imagem do “passeio em Chiasso”. para recordar que desde os primeiros decênios do século era possível e Justo, manter um relacionamento mais intenso e atualizado com os fermentos das vanguardas européias do século, e com pensadores e cientistas que o magistério crociano e a reforma gentiliana da educação haviam excluído do horizonte dos interesses culturais italianos. Mas com essa fórmula, Arbasino não fará mais do que sugerir (propondo-se como modelo dos que iam a Chiasso) que na área padana o passeio a Chiasso era a norma. —
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Ora, se, quisermos periodicizar de modo um pouco rudimentar, a cultura italiana permanece dominada pelo modelo idealista napolitano até a metade do século (e considere-se a data da morte de Croce como data simbólica, assim como 1520, nos manuais de história da arte, marca 97
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Esse é o clima, e Jl Verri primeiro, e o Grupo 63 depois, constituem uma das suas manifestações: exceto que, como foi dito, o grupo é o que se manifesta de modo menos silencioso, como uma minoria assaz “ver-
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bal”. Hoje sabemos de onde provinha o gosto sanguinetiano por uma poesia de inspiração medieval que revalorizava o símbolo e a alegoria, além do chamado 29 inconsciente, contra toda política da expressão e do sentimento; ou de,onde vinha o gosto pela mescla de língua comum e jargão científico na poesia de Pagliarani; e até mesmoa referência ao simbolismo anglo-saxônico em muitos poetas de “linha lombarda”, ou sempre nesse âmbito o gosto mágico pela citação douta em Luciano Erba (mesmo que o Grupo 63 negligencie, erroneamente, esses irmãos maiores). Tudo isso não podia deixar de parecer “natural” no âmbito da cultura padana, mas soava como escândalo na Itália mediterrânea. Diante da verbalidade provocadora e tecnologicamente goliarda dos redatores do Grupo 63 (orientados, com senso alegremente “terrorístico”, por Ballestrini e quem sabe se essa sua postura provocadora não tenha contribuído anos depois para desenhar, aos olhos dos inquisidores, a sua —
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a passagem entre renascimento e maneirismo). Na segunda metade do século impõe-se bruscamente o modelo iluminista padano, redescobre-se a herança do positivismo, apercebemo-nos de que a cultura italiana produzira Peano, Vailati, Pareto, exilados no purgatório dos pseudoconceitos da filosofia do espírito, voltamo-nos para o estudo das vanguardas históricas e da pcesia anglo-saxônica (principalmente Pound e Eliot)... Éum clima, é o clitna da coleção Idee Nuove, de Bompiani, inspirada em Banfi, das edições Einaudi, do Mulino bolonhês e da Universale Feltrinelli contra as velhas capas coloridas da Laterza de Croce, mas é naquele clima que explode a atenção para a sociologia, que nos coligamos aos grupos transmontanos do estruturalismo lingiístico, que se lê Sartre, Wittgenstein, Husserl ou Merleau-Ponty, que os arquitetos neo-racionalistas do triângulo industrial integram às suas reflexões as contribuições da filosofia e da lingiiística contemporânea, que o universo dos intelectuais inseridos nas grandes empresas neocapitalistas se move com uma curiosidade diferente e mais científica na direção do mundo dos mass-media (a televisão nasce primeiro em Turim, depois em Milão, e lentamente, lá pelo fim dos anos cingiienta, emigra em direção a Roma), é nesse clima que, se por um lado se publica O Leopardo (como exame de consciência seja da cultura meridional seja do modo colonialista pelo qual a cultura padana se lhe aproximou), lêem-se agora Gadda e Svevo, e nos preparamos lentamente não para descobrir a psicanálise, mas para entender que exatamente naquela mesma área vivia e trabalhava quem, em silêncio, a descobrira desde o início...
figura de destruidor”), diante dessas manifestações, a opinião cultural italiana enxergava, através do Grupo 63, a imagem inquietante de alguma coisa que o precedia e o tornava possível. E quero dizer que através do recurso sanguinetiano às poéticas medievais descobria-se até mesmo o perigo representado pelo seu moderadíssimo mestre Giovanni Getto, que já há alguns anos vinha revalorizando a leitura alegórica e filosófica do Paraíso dantesco, contra qualquer bom hábito pré e pós-romântico. Porque essa era a aposta em jogo: através do golpe mortal que há muito vinha infligindo ao idealismo meridional, o iluminismo padano estava liquidando os últimos rebentos do espírito romântico. Isso explica por que, não vinte anos depois, mas quase imediatamente, foram atribuídos ao grupo pecados e virtudes que são do iluminismo padano em geral. O iluminismo padano era experimental, porque “científico” e racionalista (nem acreditavano rompimento entre as “duas culturas”): o grupo pode ter sido experimental e tecnológico mas, graças à sua componente vanguardista, atuou como caixa de ressonância do mais acadêmico iluminismo padano. Isso explica também por que, depois de vinte anos apenas, o grupo seja celebrado pelos mesmos que o tinham hostilizado, e tratado com equanimidade por aqueles que tinham sido seus críticos mais suscetíveis. Na realidade, louva-se no grupo o que o grupo não era e, por reflexo, celebra-se a vitória dos pseudoconceitos sobre o espírito absoluto. As celebrações do grupo são um dos muitos aspectos de adulação que os vencidos pagam a quem quer que aos seus olhos represente o vencedor. Mas isso foi possível porque o grupo ficou, na crônicas e nos
arquivos, como unidade experimental, e é próprio do experimentalismo, quando vence suas batalhas, provocar aceitação. O grupo pode ser celebrado como acontecimento experimental, porque como grupo de vanguarda tinha se suicidado, com lúcido e estóico gesto, em 1969. Se em 1983 foi louvado, foi porque soube morrer, e através da sua comemoração celebrou-se outra coisa, ou seja, a reconciliação, enfim sancionada e passada em julgado, entre cultura italiana e cultura européia. f
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3. Parece que alguns autores de narrativa pura se desinteressam pelo estilo, aspirando a um leitor que apenas aprecie as história que contam. Poder-se-ia aqui distinguir entre aspiração ao prazer do enunciado e aspiração ao prazer do ato de enunciação. Ou seja, em termos mais clássicos, entre o prazer do “quê” e o prazer do “como”. Quer dizer, entre o prazer do Mundo Possível descrito na história que o texto conta ou o prazer pela estratégia do conto. Mas eu não veria tal distinção como uma simples distinção, comum na estética tradicional, entre prazer pela forma ou prazer pelo conteúdo. A “narratologia” moderna nos diz que uma história, independentemente do sistema semiótico ao qual está ligada, pode ter uma forma própria, e não é proibido imaginar um autor que preveja no próprio leitor modelo o prazer que obtém à percepção de um mundo possível bem organizado.
dois tipos de Leitor Modelo 4. Toda obra se propõe pelo menos dois tipos de leitor. O primeiro é a vítima designada pelas próprias estratégias enunciativas, o segundo é o
Consumo, sucesso, prazer da leitura representa um emaranhado de fenômenos não facilmente distinguíveis um do outro. O que nos interessa observar aqui é que eles não são uma alternativa ao experimentalismo, são uma alternativa à vanguarda. Gostaria, antes de mais nada, de pôr em evidência alguns pontos que, por serem óbvios, correm o risco de parecer paradoxais:
Todo artista aspira a ser lido. Não existe correspondência particular de um artista que consideramos “experimental” (de Joyce a Montale) que não mostre como aquele autor, mesmo quando sabia que ia contra o horizonte de expectativas do seu próprio leitor comume atual, aspirava a formar um futuro leitor particular, capaz de entendê-lo e de saboreá-lo, sinal de que estava orquestrando a sua obra como sistema de instruções para um Leitor Modelo que estivesse em condições de compreendê-lo, apreciá-lo e amá-lo. Não existe nenhum autor que deseje ser ilegível ou ignorável. No máximo, como Joyce, aspira a educar um “ideal reader affected by an ideal insomnia” mas espera firmemente, e para isso age com toda a sua habilidade, que esse leitor possa um dia existir empirica1.
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mente.
2. Todo texto aspira a proporcionar prazer em sua leitura adequada. O narrador de folhetim quererá um leitor que saiba suspirar e lacrimejar, Robbe-Grillet quererá um leitor capaz de degustar o romance do futuro, ambos querem alguém a quem “agrade” ler (ou ver, escutar) o seu produto.
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leitor crítico que ri do modo pelo qual foi levado a ser vítima designada. Exemplo típico mas não único dessa condição de leitura é o romance "policial, que prevê sempre um leitor de primeiro nível e um leitor de segundo nível. O leitor de segundo nível deve divertir-se não com a história contada, mas com o modo como foi contada. Toda obra de arte, mais do que artesanato, dirige ao leitor a mesma pergunta. Aqui não —
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são considerados os casos de obras mais complexas que requereme prefiguram leitores de terceiro, quarto, enésimo nível. Portanto, um critério estético aceitável e não discordante dos princípios da estética moderna, será distinguir as obras que visam ao prazer do leitor de primeiro nível obras que visam ao prazer dos leitores do nível n. Às primeiras poderão ser definidas como obras “gastronômicas”, as segundas, como obras com finalidade estética.
Sobre alguns casos limite !
Existem enfim certas obras em que essa distinção não é assim tão clara. E indubitável que toda obra, do conto do artífice ao esboço da criança, de Os noivos à Crítica da razão pura, dirige sempre um apelo (freqientemente patético) ao seu leitor: “olhe como fui bem-feita!” Mas é também indubitável que existem algumas obras que, por assim dizer, evitam esta passagem e têm em mira outra coisa. Um exemplo típico desse tipo de obra é 7984, de Orwell. Do ponto de vista das convenções literárias, é mal escrita; do ponto de vista ideológico, é devedora de outras 101
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A consolação, o prazer,
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inovação,
o sucesso
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Diante dessas observações, ainda são válidos certos procedimentos de divisão em categorias que uma sociologia da literatura (aparentemente “democrática”) tomou emprestados às estéticas mais aristocráticas, nascidas da união entre romantismo e vanguardas históricas? Podemos ainda identificar o agradável com o não-artístico? Podemos ainda identificar o consolador com o que satisfaz o horizonte de expec-
tativas do fruidor e que, portanto, não inova e não provoca? Ou, até mesmo, podemos ainda colocar de um lado o consolador, o não inovador,
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obras que, talvez com maior energia, em anos anteriores tinham condenado a ditadura e o destino de um mundo baseado na tecnologia, de Buio a mezzogiorno a Admirável mundo novo. Nada neste romance é de todo original, inclusive a figura do grande irmão, a manipulação das notícias, o relacionamento sadomasoquista entre torturador e vítima, a fusão do decadentismo e moralismo liberal, a idéia (comum a todas as inquisições) de que só se pode morrer depois do arrependimento, caso contrário não vale a pena sacrificar a vida do herege. E ainda assim este romance determina sua cadeia de citações em excesso e impõe uma espécie de apreensão mitológica que traz à luz terrores e tendências latentes dos próprios leitores, atinge o imaginário coletivo e afunda as próprias raízes no simbolismo do subconsciente, joga com os arquétipos. Não convence pelo estilo, não conta bem uma história novae, todavia, torna-se importante por razões semelhantes às que tornam inesquecíveis e memoráveis os mitos e as grandes revelações dos místicos. Se a dialética estética tradicional se desenrola entre o prazer do “quê” e o prazer do “como”, livros como o de Orwell nos põem diante da experiência de um como modesto e de um guê, no fim das contas, mais do que sabido. Mas a natureza dg “quê” nos impede de limitar-nos à dialética estética e nos deixa ( come se pretendia, antigamente, diante da impressão do sublime, que é diferente do belo) inquietos diante de um mistério. De fato, o que nos impressiona diante de 1984 não é que o livro possa ter sido escrito, mas que alguma coisa no gênero possa acontecer também a nós. Então, como recordava Kant a respeito do prazer do sublime, não estamos gozando de uma regularidade sem lei, de uma finalidade sem objetivo, de um universal sem conceito e de um prazer sem interesse, mas sim da desproporção entre razão e imaginação, de alguma coisa que pertence (inquietantemente) às profundezas da nossa alma e não à superfífice ou às profundezas do objeto.
o esperado, e do outro o inesperado, o informativo, o provocador, o que, em suma, produziria um prazer de ordem superior, e não banal? E que significa satisfazer ou provocar um horizonte de expectativas? Creio que, a esta altura, é necessário tomar conhecimento da relatividade fundamental dessas noções e usá-las pelo que são, noções relativas ao patrimônio do saber, à enciclopédia de um certo público, e não aspectos “objetivos” de um texto (ou seja, a objetividade nasce do Telacionâmento entre os aspectos coletivamente identificáveis do texto, e a enciclopédia, de quem o lê) .
E necessário fundir a estética visual com a estética antropológicocultural. Os noivos reforça as expectativas do seu público ou as frustra? E, nesse sentido, oferece-se a um consumo fácil ou prevê um leitor que deva reconstituir todo seu aparato de leitura? Será que Manzoni provocava os liberais leigos e consolava os católicos, ou vice-versa? E Balzac? Marx e Engels estão em dúvida se ele era o enaltecedor ou o crítico do universo legitimista. Ou se, como legitimista, era um crítico provocador da burguesia em ascensão. Legitimista, provoca, contudo, a tradição na qual crê, propondo como realisticamente praticáveis só os desumanos valores da competição capitalista. E, além disso (até segundo Proust), escreve mal. Mas narra bem. Qual é a diferença? O que é um romance experimental? Indubitavelmente A vida e as opiniões do cavalheiro Tristram Shandy o é, tão entretecido de instâncias da enunciação, pronto a criticar a própria forma do romance. E ainda assim transforma-se, no seu tempo, em best-seller e por conseguinte obtém um sucesso de massa como observa Leavis no seu livro sobre o público da narrativa anglo-saxônica.! Leavis se pergunta por que Virgínia Woolf, tão experimental quanto ele, não se tornou igualmente popular. Mas o século XVIII está fascinado pela nova forma do romance, que devora sem remorsos, e sente prazer também em questionar-se sobre essa forma. O século XX já transformou essa forma em mitologia, ou a consome,ou a critica, mas não existe mais uma relação entre as duas possibilidades. Robinson Crusoé éum grande livro, assumo a afirmação não como dado crítico, mas como dado estatístico, pelo consenso do público. Consola seu leitor burguês do século XVIII, sustenta-o nas suas crenças, nas suas esperanças. Provoca identificações, atua como opereta moral, institui pedagogia. Tem todas as características, caso tomadas ao pé da letra as afirmações que acabo de fazer, para assemelhar-se (do ponto de vista sociológico) A mão da morta, de Carolina Invernizio. Mas é a
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um grande livro numa época em que ler para divertir-se, e ler romances para encontrar modelos de identificação, é um gesto inovador de umleitor pertencente a uma classe que surge. Que mais se depreende hoje de Robinson? Muito, e valeria a pena nos
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questionarmos sempre, e a fundo, sobre o motivo pelo qual obras que atendem às solicitações de um leitor passado, ainda continuama fascinar os leitores futuros, pergunta que Marx já se fazia a propósito do fascínio dosclássicos. Creio que se poderia responder explicando como cadalivro contém em si as indicações para compreender o código a que se refere, isto é, que todo grande livro descreve simultaneamente a figura do Leitor Modelo que quer criar, de modo que lendo Robinson todos nós voltamos a ser burgueses ingleses do século XVII. Mas existe também o risco de que hoje o leiamos pela aventura que narra, para dele extrair um prazer superficial, perdendo toda a satisfação que estava destinada ao seu leitor preferido. E hoje, de fato, podemos fazer duas leituras desse romance: uma crítica, que.nos leva a vê-lo tal como funcionava no seu tempo, e é uma leitura crítica para poucos; e uma gastronômica, e nesse caso o livro nos conta uma história tão conhecida que não consegue, efetivamente, nenhum sucesso de massa. Comprado certamente por obrigação, em edições regulares, Robinson hoje não é, contudo, um best-seller. Corre o risco de ser o que os americanos chamam de GUB, great unread book, como a Bíblia e como Proust. "Não gostaria que isso soasse como baixo relativismo. É relativismo, sim, mas “alto”. Repito, ainda é possivel, creio, analisar Robinson é mostrar que a sua complexidade e organicidade são tais, a ponto de permitir-nos reconstruir em nós o seu leitor eleito, enquanto o mesmo não aconteceria com romancezinhos escritos para agradar imediatamente a um público muito determinado e circunscrito ( que é, afinal, um modo um pouco mais estrutural de dizer que o grande autor visa sempre ao universal e não ao seu lucro particular). Mas continua caito que, se não somos capazes de entender a relatividade das categorias que usamos, corremos o risco de não ganhar nada e perder muito. * Veja-se o caso do “sucesso”. Um livro obtém sucesso somente em dois casos: se dá ao público o que ele espera ou se cria um público que decide esperar o que o livro lhe dá Ou seja, toda obra “pequena” atende às solicitações do público que individualizou, ao passo que toda “grande” obrá cria as solicitações do público que decide formar. Não é fácil estabelecer se Os noivos ou Robinson satisfaziam um público já existente ou se criaram um público futuro. Se não é fácil para as obras do passado, será mais fácil para as obras do presente? Não saberia responder com exatidão, e por isso lidarei com as categorias do sucesso e da satisfação com muita prudência. .
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Examinemos o caso de um autor de sucesso, Carducci. De alguns dados que gentilmente me foram fornecidos pela redação da editora Zanichelli, fico sabendo que as Odes bárbaras saíram em 1877 e foram vendidos mil exemplares em dez dias. Em 1878 sai a segunda edição, a terceira em 1880, a quarta em 1883, a quinta em 1887. Se em dez dias venderam-se mil exemplares e depois espera-se um ano para a reimpressão, significa que a primeira edição era de alguns milhares de exemplares e, por conseguinte, pode-se calcular que em uns dez anos, com cinco edições, Odes bárbaras tenha vendido cerca de quarenta ou cingiienta mil exemplares. Então Carducci fazia sucesso porque dava ao público aquela celebração da Terceira Itália que o público pós-risorgimentale esperava. Todavia'não podemos negar que, ao satisfazer-lhe as exigências, Car-
ducci, por outro lado, “criava” o próprio público, acostumando-o ao gosto dos princípios “bárbaros” que ele, como autoridade textual propunha. Vejamos agora um outro autor que no seu tempo foi considerado popular, Lorenzo Stecchetti. Stecchetti propunha ao próprio público um “malditismo” que, em época pós-romântica, já era produto de consumo. Nada estranho, portanto, o fato de que os seus Postuma (sempre pelas indicações da editora Zanichelli) vendam cinco mil exemplares em quatro meses em 1877, de 1878 a 1883 vendam mais dez (veja bem, dez) edições. Na 12º encontramos uma advertência que recomenda ao público que fique atento às contrafações, e em 1905 chegamos à 25º edição. Stecchetti tal como Ken Follett ou Harold Robbins? Ou, para ficarmos mais próximos do seu tempo, Stecchetti igual Da Verona? Entretanto, o sucesso não explica tudo. Creio que seja oportuno voltar também.ao texto. Voltemos então pelo menos a um texto e releiamos aquele “Primo maggio 1895”, que aparece nas Rime di Argia Sbolenfi: a
Passam lentos. Um lampejo febril arde em cada olhar. Passam solenes e das densas fileiras não se levanta um murmário. Tocando-se as mãos cada um deles
indaga quem seja o vizinho. Se o trabalho não lhe deixou seus calos aquela é uma mão de delator. Sob a árdua fadiga e o destino criminoso muitos já caíram, muitos o cárcere tem ou o exílio, e, entretanto cresceram.
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Arrasta-se a grande serpente da multidão obscura ante as portas dos ricos. Dentro, no estupor do medo, fala-se de morte. Enquanto se ouve o passo da muda fileira afastar-se e no silêncio da noite tenebrosa perder-se lentamente.
muito, temos um exemplo de conveniente habilidade artesanal para montar, em ritmo acelerado, topoi já gastos e propô-los no momento certo. E ainda assim sabemos que os surrealistas fazem uma leitura alucinada de Fantomas, a tal ponto que a obra voltou a ser lida por happy few com interpretação diferente (e com tiragens bem mais limitadas veja-se o limitado sucesso da nova versão lançada pela editora Mondadori há uns vinte anos na Itália). Por que os surrealistas não conseguem fazer a mesma operação com Montepin ou com Maurice Leblanc? Creio que valeria a pena reler Fantomas para descobrir que o que nos.parecia habilidade artesanal em manusear os topoi é, no fim das contas, também grande energia visionária para orquestrar, em ritmo acelerado, uma espécie de enxurrada de arquétipos, embora degenerados. Quase como acontece num filme como Casablanca, tão entremeado de “já dito” (e com fins abjetamente comerciais), mas tão vertiginosamente repetitivo a ponto de gerar suspeitas de ironia, de consciência nas citações, de mise en abime intertextual, e por conseguinte de resultado estético (muito além do projeto e dos acordos comerciais que tinham mais importância do que a —
Stecchetti um maldito “em moda”, e ainda assim vemos aqui que vai tanto contra a retórica carducciana da Terceira Itália como contra a dos manifestos socialistas do seu tempo. Representa trabalhadores malditos como dândis, e este é o fato novo. Não vende coisas esperadas pelo público, oferece algo de novo que o seu público obscuramente esperava. O seu esboço nada iém a ver com o grande afresco do Quarto Estado, quando muito lembrá os proletários de Pasolini, e a antecipação não é de desprezar. Cria uma resposta porque intui (mas ao mesmo tempo institui) um horizonte de expectativas. Talvez não seja um grande exemplo, mas serve, eu acho, para evidenciar dois pontos: que jamais se pode falar de sucesso como fato sociológico e estatístico sem relacioná-lo coma situação cultural em que a obra surge (a mesma poesia escrita hoje seria, sim, realmente artificiosa); não se pode falar do sucesso como fato sociológico e estatístico sem verificar no texto as razões da interação entre um horizonte de expectativas (atual ou virtual) e a estratégia textual. Em outros termos, a obra deve ser examinada em conexão com aenciclopédia da época em que surge. é
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A releitura, entre literatura
e
paraliteratura
Mas não basta, ela deve ser examinada também em conexão com a enciclopédia dos seus leitores posteriores, e também nesse caso a comparação textual pode dizer-nos por que uma obra nascida com intenções de consumo pode, num período posterior, transformar-se em estímulo para experiências de leitura mais sofisticadas. Consideremos o gaso de Fantomas, de Souvestre e Allain. Não há dúvida (e um confro:o entre temas e estilemas da literatura francesa da época pode confirma;) de que a série de Fantomas é escrita “mal”, de modo apressado e atamancado, e que as aventuras do gênio do mal em luta contra as forças do bem não são nem novas nem surpreendentes. Quando
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obra). Estaria tentado a dizer que não somos, nos transformamos em paraliteratura. E para certas obras, grandes no seu tempo, e depois transformadas em peças de repertório apreciadas nos seus aspectos mais superficiais, é verdade. Creio que muitos hoje façam uso paramusical do melodrama do século XIX, e um uso paraliterário até mesmo de Boccaccio. Mas percebo que a boutade pode ser invertida. Paraliteratura somos no momento em que a obra é produzida para satisfazer um horizonte de expectativas bem definido e livre de surpresas; mas literatura nos tornamos no momento em que determinada releitura põe em evidência características do texto que não podem ser reduzidas a pura confecção gastronômica, e estas características estão ali, mesmo que o autor não tenha consciência delas (afinal, é possível ser um grande escritor sem sabê-lo, e inventar uma nova forma de prazer textual, assim como se pode ser, € fregiientemente se é, um péssimo escritor acreditando o contrário). Relativamente ao seu público, relativamente ao projeto mercantil que os move, relativamente à sede de dinheiro que os devora, Balzac e Dumas correm juntos. Uma análise do texto (desafio os leitores a escreverem sobre La dame de Monsoreau o que Barthes consegue escrever sobre Sarrazine) poderá dizer-nos qual é a disparidade do resultado, e por que hoje, se Dumás nos fascina, Balzac nos perturba. y
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1.
Leavis A.D., Fiction and the reading public, Chatto & Windus, Londres, 1968.
2. Refiro-me-às intervenções na convenção de Palermo, na qual também a primeira versão deste meu ensaio. 3. Mas adiante, neste volume,
Se as teorias antigas não nos satisfazem, não é porque o próprio conceito de teoria deva ser questionado. É que o crescimento dos fenômenos, as inter-relações de produção e fruição no campo da arte, a consciência cada vez maior que estamos adquirindo sobre esses fatos nos
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Às aventuras da releitura são múltiplas, existem releituras que acentuam as potencialidades do texto, outras que as reduzem. Dias atrás, Barilli falou do costume de usar aspas como típico de uma literatura pósmoderna, que põe em evidência o próprio jogo de citações e a ironia que o sustenta.” Mas depois observou que o risco de obras do gênero é que exista um leitor que não entende as aspas e lê a obra ingenuamente. Tudo bem, mas podemos limitar nosso discurso à importância pura e simples dessa dialética potencial entre leituras “astutas” e leituras ingênuas e, portanto, degeneradas? A situação é muito mais complexa e posso apenas remeter ao que escrevi no ensaio À inovação no seriado: Os exemplos que lá forneço foram extraídos provocadoramente do universo das comunicações de massa, para mostrar como também as formas de dialogismo intertextual já se transferiram para o âmbito da produção popular. Creio ter particularizado uma série ascendente de artifícios de aspeação que de algum modo deve ter relevância para os propósitos de uma fenomenologia do valor estético, e do prazer que nos proporciona. Friso, mais uma vez, que as estratégias da surpresa e da novidade na repetição, ainda que sejam esttatégias semióticas, esteticamente neutras em si, podem dar origem a diferentes soluções, diversamente no plano estético. Então, o mesmo tipo de procedimento pode produzir tanto excelência como banalidade, pode deixar o fruidor em crise consigo mesmo e com a tradição intertextual em seu complexo, e até proporcionar-lhe fáceis consolações, projeções, identificações; pode instaurar um pacto exclusivamente como fruidor ingênuo ou exclusivamente com o fruidor crítico, ou com ambos, em níveis diferentes, ao longo de uma sucessão de soluções que não podem ser facilmente catalogadas. Eis uma série esparsa de observações que não têm a pretensão de oferecer um novo modelo, nem semiótico, nem estético, nem sociológico para discutir as relações entre consumo e inovação, entre vanguarda, experimentalismo e mass media. Estas observações visavam a, no máximo, mostrar a deficiência dessas categorias quando são usadas como chavemestra e pretendem explicar fenômenos que são, parece-nos ter mostrado, bem mais sutilmente labirínticos.
obrigam a proceder com maior prudência a coletar materiais para teorias futuras, mais inteligentes, mais flexíveis. E pode acontecer que percebamos que um mesmo fenômeno pode ser encarado, e nunca esgotado, do ponto de vista de várias teorias, complementares e não mutuamente excludentes. Agora o sabemos, não temos que nos preocupar com “objetos” brutos, é a nossa pesquisa que paulatinamente determina a fisionomia do objeto. E se o físico nuclear sabe disso, com mais razão deveria recordá-lo o estudioso de ciências humanas, que há muito o sabia, embora às vezes tenda a esquecê-lo.
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foi apresentada
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a expressão se desenvolve no tempo
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O TEMPO
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— tempo do enunciado tempo da enunciação
1.
Se Kant tem razão, não existe percepção e classificação que não se enquadre nas intuições do espaço e do tempo. E razoável então que toda estética e teoria das artes se questione a respeito do papel que o tempo desempenha na nossa abordagem de uma obra de arte. Mas se Kant tem razão, sendo toda obra de arte objeto de percepção, cada obra de arte estabelece um relacionamento especial com o tempo.
Mas de que tempo se fala? Já é tão difícil estabelecer o que é o tempo termos físicos e cosmológicos. Acrescentemos as dificuldades próprias de toda física e metafísica do tempo às dificuldades típicas de toda física e metafísica da arte, e concluiremos que o problema do tempo nas obras de arte corre o risco de ser muito confuso. Por isso creio que a função de um discurso introdutório sobre o tema deva ser definir em que sentido falamos do tempo na obra de arte (desistindo de definir, por enquanto, o que se entende por obra de arte, e usando esta expresso de maneira bem intuitiva, imitando a esplêndida afirmação introdutória com que Dino Formaggio iniciava o seu livrinho Arte!: “arte é tudo O que os homens chamaram de arte”. Nestas páginas proponho-me a estabelecer em quantos sentidos o componente “tempo” contribui para definir o nosso relacionamento com a arte. Não pretendo elaborar uma teoria do tempo na arte, mas sim estabelecer em quantos sentidos é lícito falar de tempo na arte. Creio que seja útil começar, antes de mais nada, por uma série de conceitos fundamentais e comumente usados em semiótica. Estes serão esclarecidos em seguida, ainda que para sua definição me reporte a minhas conferências anteriores?, em todo caso, estes podem ser resumidos no esquema que segue: em
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O tempo da expressão
A expressão no tempo:
o consumo físico
obra de arte é um objeto que, independentemente do modo pelo qual consomem, vive no tempo, como todo objeto físico. Esta definição compreende também as obras de arte ditas “conceituais”, que às vezes se concluem com um gesto, uma citação, uma resposta puramente mental. Imaginemos, de fato, a situação de um artista “conceitual” que decida que a sua obra consiste no pensar, entre as 12:55She as 12:56h do dia 12 de dezembro de um ano x, no seu próprio sétimo aniversário. Diante de tal possibilidade, ou a nossa vida é uma segiiência infinita de obras de arte, ou para distinguir esse evento de outros que não foram produzidos coma intenção de fazer arte o artista terá que confiar o evento a uma espécie de representação teatral, e esta última a um tipo qualquer de registro. Este registro, que de um modo qualquer deve concretizar-se num objeto físico, representará, para todos os efeitos, a obra de arte, e como tal será um objeto entregue ao consumo temporal. Na ausência desse objeto, talvez seja possível que (com base numa determinada teoria da arte) tenha ocorrido a produção de obra de arte, mas dessa produção nada se pode dizer. Dela pode-se falar, no máximo, num ensaio filosófico que teorize tal forma de perecível e efêmera arte, masem tal caso o problema do tempo concerne à filosofia e não à arte (de fato sinto-me irritado quando o artista conceitual me obriga a falar de alguma coisa que, por definição, é indescritível). Fiz esta premissa para reafirmar que uma obra de arte é sempre e antes de tudo um substrato, veículo ou “expressão” física mesmo quando não veicula ou exprime (caso fosse possível) algum conteúdo. Como todo objeto físico, esta vive no tempo e é submetida à lei física do consumo. À
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Seria possível afirmar que, tanto do ponto de vista estético como do semiótico, não nos interessa absolutamente que uma estátua ou uma pintura se consumam no tempo até desaparecer. Na medida em que as grandes obras arquitetônicas da Babilônia foram destruídas, a estética não tem mais nada a dizer sobre elas, assim como a semiótica nada mais tem a dizer. Ou seja, a semiótica e a estética terão alguma coisa a dizer sobre as representações que a cultura faz daqueles objetos desaparecidos. E possível que tenha existido uma língua adâmica e pré-babélica (que muitos estudiosos, desde Dante até os semiólogos ingleses do século XVIII, pesquisaram e tentaram reconstruir) mas dessa língua, visto que não temos achados materiais sobre os quais trabalhar, não acontece semiótica alguma, tampouco crítica literária dos poemas que nela tenham sido produzidos. O problema interessante nasce, porém, quando temos achados de uma obra quase perdida; mas não de todo. Nestes, não obstante a ação do tempo; ou exatamehte em virtude da ação do tempo, nós percebemos alguma coisa esteticamente interessante. Partindo dos achados submetidos à ação destrutiva do tempo, procuramos inferir com base no que nos Testa como a obra poderia ter sido. Para fazer isto precisamos de uma teoria da legalidade orgânica das formas, através das quais, não obstante o tempo tenha destruído parte do objeto, nós somos capazes de reconstruílo na sua integridade, com base em critérios de legalidade e organicidade (sobre estes problemas, Luigi Pareyson disse coisas extremamente inte—
ressantes).?
Todavia, essa temporalidade da obra como objeto físico tem, provavelmente, pouco a ver com a relação tempo-arte. Prova disso é que o problema existe também quanto à reconstrução de qualquer achado arqueológico, de modos e instrumentos de vida que nada têm a ver com a arte.
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desenvolve diante dos nossos olhos. A mobilidade pode ser segiiencial (filme) ou global, como no caso do mobile. Daí nascem diversas dinâmicas de percepção da expressão. Existem formas artísticas em que o tempo da sua sintaxe é também o tempo da sua semântica, como a música. Outras (como a música e o filme) em que o tempo de execução coincide com o tempo de consumo.
Obra imóvel e tempo de percurso Existem, porém, formas artísticas nas quais a obra se apresenta especialmente e temporalmente imóvel mas, independentemente do seu conteúdo, ela requer um tempo de circunavegação. Trata-se normalmente de obras tridimensionais em que, se não se quer ter delas uma experiência parcial (como se trata no caso de uma reprodução bidimensional), é necessário um tempo de circunavegação da obra. Isto vale tanto para uma estátua como para uma arquitetura. A estátua e a construção arquitetônica impõem um tempo mínimo determinado aos seus consumidores. E certamente possível decidir empregar um ano, entre várias idas e vindas, para circunavegar a catedral de Chartres, mas certamente existe um tempo mínimo no qual, a passo lento, é possível observá-la e “entendê-la” de modo satisfatório. As dimensões da obra impõem o tempo mínimo de circunavegação. Naturalmente a obra, através da sua forma, pode decidir se ampliar ou diminuir esse tempo de circunavegação. É certo que a biblioteca Beinecke, de Yale, em que cada lado do edifício é igual ao outro, com o mesmo número de Janelas, impõe um tempo de circunavegação menor do que a catedral de Chartres, no qual se supõe que o visitante possa ter uma visão dos vários portais e das suas esculturas. Naturalmente, o espectador é livre para olhar Chartres como olha para minimal, mas é razoável pensar que uma plena apreciação de Chartres se dê somente caso nenhum dos seus detalhes arquitetônicos e decorativos seja perdido. Sob um certo aspecto, a abundância decorativa representa uma imposição da forma arquitetônica sobre o visitante, já que a forma, enriquecendo-se de detalhes, exige dele uma temporalidade maior de' degustação. E não é certo que sejam os detalhes decorativos como tal que exigem mais tempo: às vezes a forma arquitetônica produz os detalhes decorativos como artifício erótico, por assim dizer, para atrair melhor e mais a fundo o degustador para as suas estruturas principais. E creio queessa decisão de ver a decoração não como puro ornamento, mas como prescrição de temporalidade de percurso, possa inspirar interessantes observações críticas. um cubo
A expressão no tempo: o fluxo sintagmático Chegamos ao caso da música, do cinema, ou de obras de arte plástica, como os mobiles de Calder. O fato de que a expressão se desenvolve no tempo não tem nenhum efeito, em linha de princípio, sobre o conteúdo. Um filme se desenrola no tempo como expresgão, e provavelmente fala (no plano do conteúdo) de acontecimentos qug se desenvolvem no tempo; mas o mesmo não acontece com uma composição musical ou com um mobile. A temporalidade concerne, antes de mais nada, ao modo pelo qual a expressão se
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Neste ponto, poder-se-á fazer uma distinção entre obras espacialmente imóveis, que impõem percurso linear, e obras que impõem percurso circular; acrescentando obras que impõem circunavegações múltiplas, uma vez que a cada “viagem” a perspectiva muda e a compreensão da obra se enriquece. É óbvio que cada obra de arte impõe percursos repetidos, mas algumas elegem este princípio com base na sua poética. Um exemplo de tais obras é dado pelo informal e pela action painting. Em tais casos, o quadro se oferece a uma primeira inspeção ingênua, em que basta destacar um simples grânulo material, mas numa segunda “leitura” o quadro pede para ser visto como o registro imóvel da própria formação. O que o espectador deveria descobrir e apreciar é o percurso temporal do gesto produtivo. Pergunto-me, porém, se este é também o caso de um tempo de percurso em torno da expressão, porque-em tais casos o quadro “conta” as fases da própria produção como se fossem o próprio conteúdo. Por isso será oportuno reconsiderar esses fenômenos no parágrafo que dedicaremos ao tempo do conteúdo, e em particular ao tempo da enunciação
enunciada.
Se mencionei o fenômeno neste parágrafo, é porque nos casos de arte informal e de action painting , a decisão de introduzir uma óptica temporal na obra é deixada a critério do espectador: a obra também poderia ser vista sem pensar no fempo que foi necessário para produzi-la. ê *
O tempo da recomposição
Enfim vêm as obras que exigem um tempo de recomposição. Típico exemplo são um quebra-cabeça e um jogo de armar: estes exigem (e não podem ser degustados plenamente sem) um tempo operativo e manual, uma intervenção manipuladora que deve tomar tempo. E se não se gasta tempo reconstruindo ou recompondo o objeto, o objeto não tem valor. Podemos perguntar-nos se também aquela música que se apresenta sob a forma de partitura, que deve ser interpretada e executada, não joga com a indispensabilidade desse tempo de execução, que é sempre tempo de manipulação física do veículo, ou seja, da expressão. Não se consegue usufruir da obra se não se trabalha manipulando a expressão.
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2. O tempo do conteúdo
O tempo enunciado
Pode-se falar de tempo enunciado em artes cujo conteúdo é a narrativa de uma seqiiência temporal de fatos. Parece que o tempo é enunciado, por excelência, na narrativa verbal, mas enuncia-se também uma segiiência de fatos na poesia, no cinema e até mesmo na pintura. Parece que um quadro, mesmo quando conta um acontecimento histórico, fala sempre
“no presente”. Mas, especialmente na pintura primitiva, o quadro, o painel, qs altares fregiientemente contam seqiiências de acontecimentos, com os seus “antes” e os seus “depois”. Muitas obras de pintura tradicionais representam o tempo no espaço de uma enquadratura, de modo que pontos diferentes da enquadratura representam frações diferentes de tempo. Por exemplo, no Carro defeno, de Bosch, a imagem à esquerda representa a queda de Adão e Eva, a imagemao centro representa a vida terrestre e o juízo final, enquanto o espaço à direita representa as penas do inferno. Em princípio, todo o assunto deveria ser captado numa só olhada, mas efetivamente o tríptico pressupõe uma espécie de movimento do globo ocular: a atenção do espectador deve deslocar-se de um lado a outro do quadro, e a relação espacial entre esquerda e direita deve ser percebida como expressão da relação temporal (conteúdo) entre antes e depois. E eis que nos encontramos diante de um caso em que não existe decurso temporal no que concerne à expressão, e mesmo uma expressão imóvel (que requer apenas um tempo de percurso instantâneo), exprime como conteúdo uma temporalidade enunciada. Todavia, às vezes o tempo da expressão se transforma em artifício para poder captar o tempo do conteúdo. Veja-se a segiiência da Invenção da cruz, de Arezzo, diante da qual, supõe-se, o espectador deva caminhar para poder acompanhar o desenrolar dos acontecimentos. A expressão, devido à disposição dos afrescos em si, impõe um tempo de percurso, mas, fruindo o tempo de percurso, capta-se melhor o tempo “histórico” e narrativo que o afresco anuncia. Neste ponto, poder-se-á compreender por que tínhamos falado do tempo do conteúdo na pintura informal ou na action painting. O quadro “conta” também o tempoe as fases temporais que foram necessárias para produzi-lo. Existe um direcionamento do dripping, do vestígio deixado pela mão que espalhou as cores, existe uma trajetória do signo imóvel, uma trajetória que é “contada” a quem sabe entrevê-la e reconstruí-la, e é necessário um espaço de tempo, um percurso nem linear nem circular, mas, por assim dizer, espiralado, para poder remontar à dinâmica do gesto que produziu o signo. 115
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Outro é o caso da representação do tempo nas artes verbais, onde este é representado sob forma de assertivas sobre sucessões de estados do mundo. De fato, a sucessão dos estados, que no romance constitui a fábula, não é necessariamente linear: o discurso representa o artifício mediante o qualo texto dispõe numa sucessão linear (mas não cronológica) acontecimentos que nv plano da história ou da fábula devem ser reconstruídos numa sucessão diferente. Em poucas palavras, se a sucessão cronológica da fábula é A, B, C, a sucessão em manifestação linear pode ser B, A, €, onde A constitui um flashback em relação a B. Fábula e discurso põem em jogo o tempo do enunciado. Quando a história verbal diz “Chapeuzinho vermelho encontrou no bosque o lobo e depois foi para casa da vovó”, estamos diante de três segmentos temporais (ida de Chapeuzinho vermelho ao bosque, encontro com o lobo, ida à casa da vovó) que o texto, de algum modo, põe em cena como seqiiência temporal da qual se fala. O tempo da enunciação é outro.
O tempo da enunciação
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Por enunciação entende-se o ato de quem narra, ou “fala”, seja num texto verbal ou num texto visual. Como tal, esse ato deveria pertencer à vida privada do autor e não se referir nem à semiótica nem à estética. Mas vimos que num quadro de Pollock a história do quadro (de como foi feito) vem a constituir parte da “história” que este narra. Falaremos, nestes casos, de enunciação enunciada, ou seja, do ato de enunciação quando encenado como um dos conteúdos do texto. Quando um autor emprega muito tempo (isto é, muitas páginas) para descrever uma paisagem, não temos acontecimentos dignos de nota no tempo do enunciado, mas temos um desdobrar-se interessante do tempo da enunciação. O tempo da enuntiação pode assumir também a forma do ritmo que o autor impõe à prépria página, impondo ao leitor diminuições de velocidade e tempos mortos, como uma lenta aproximação aos acontecimentos da história. Podem existir histórias feitas de nada, onde o tempo do enunciado se conclui em poucas proposições, mas o tempo da enunciação é longuíssimo. Pense-se nos Exercices of style, de Queneau: o tempo do enunciado é reduzido ao mínimo, mas o leitor é insistente e claramente convidado a apreciar o tempo da enunciação. O tempo que Queneau empregou para excogitar os seus noventa e nove exercícios de estilo não faz parte da vida privada do autor: é encenado, exibido pelo autor como parte integrante do seu texto, e por conseguinte a enunciação é enunciada e tem uma temporalidade própria, mostrada no e pelo texto. "
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Correlato ao tempo da enunciação, mas não ao tempo do enunciado, leitura. Certo, é necessário fazer uma distinção entre um tempo de leitura (e um leitor) empírico e o tempo de leitura do leitor modelo, isto é, do leitor que o texto postula e pressupõe.” Aqui, o tempo de leitura empírico não nos interessa: uma pessoa pode levar seis meses para ler um conto de fadas de Perrault e uma semana para ler a Bíblia completa. Isto não nos impede de afirmar que a Bíblia exige do seu leitor ideal um tempo de leitura diferente e mais alentado do que o que Perrault possa exigir. No âmbito do tempo da enunciação enunciada, uma descrição paisagística extensa pede um leitor modelo mais lento e com mais fôlego do que o exigido por um diálogo cerradíssimo num romance de Dumas. Enfim, faz parte do tempo da enunciação o tempo de releitura que o autor explicitamente solicita ao leitor. Em O assassinato de Roger Ackroyd, Agatha Christie conduz o leitor através de uma série de previsões, todas destinadas a serem desmentidas porque (fato novo da história do gênero policial) o assassino é o próprio narrador. Mas, no fim do romance, o narrador diz ao leitor que não o enganou, porque sempre disse o que fazia, mesmo quando cometeu o delito, só que o disse em forma de eufemismo (exemplo: “fiz o que devia fazer”). E convida o leitor a reler as páginas anteriores para reconhecer que se ele (leitor) tivesse querido, poderia ter descoberto quem era o assassino. Neste sentido, o livro negocia com o leitor uma possibilidade de dupla leitura, uma “ingênua” e uma “crítica”, e convida o leitor ingênuo, no fim da sua leitura ingênua, a iniciar uma releitura crítica. O livro de Christie é, pois, um livro feito para estimular uma dupla leitura e esse distanciamento temporal foi levado em consideração pela autora e pelo próprio texto. Chamaremos este tempo narrativo de a loop; em que potencialmente (como numa instrução para computadores em basic language que diga “goto”, o leitor poderia idealmente retomar sempre o livro do início sem parar mais. é o tempo de
O tempo da série e da intertextualidade
Falta, para terminar, o tipo de temporalidade imposto pelas séries de televisão, como, além do mais, também foi imposto pelos romances de folhetim. Aqui, independentemente da temporabilidade da expressão (série televisiva) ou da temporabilidade tanto do enunciado como da enunciação, entra em jogo uma sensibilidade temporal própria do espectador. 117
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Em outros termos, nas obras seriadas encaixam-se diversos tipos de temporabilidade: a) a obra enuncia um decurso temporal e, como veremos, trata-se de um tempo “mascarado”; b) a obra faz o consumidor sentir que ela se desenvolve no tempo: pense-se no folhetim, em que o autor se mostrava sensível às cartas iguais dos seus leitores, decidindo mudar a história ou ressuscitar um personagem de acordo com as solicitações que lhe chegavam de parte do leitor empírico transformado numa espécie de co-autor modelo; c) a obra impõe ao leitor, determinando as pausas e as paradas, um ritmo de leitura e, por assim dizer, estabelece quais são os pontos de suspense, os momentos nos quais elaborar expectativas e concentrar-se na espera (adiada) do que poderá acontecer; d) a obra impõ& ao leitor “recordar”, reunir tudo que já sabe dos capítulos anteriores ho que lhe é comunicado aos poucos; ela, em suma, introduz o tempo psicológico e idiossincrásico do leitor no seu projeto de estratégia comunicativa; e) como veremos, existem casos, não semelhantes à “série”, mas, antes, ligados ao jogo de citações intertextuais a que Bachtin chama “dialogismo”, no qual o tempo do espectador se transforma no tempo da sua competência enciclopédica. serialidade e aos seus problemasé dedicado um outro ensaio deste livro, “Ainovação no seriado”, e a ele remetemos leitor. Da tipologia que lá delineio retomada, decalque, série, saga, e assim por diante deduz-se que também com relação à série surgiu uma espécie de duplo Leitor Modelo, capaz de viver o tempo enunciado de dois modos diferentes, mais acelerado o primeiro, e dirigido ao desenrolar da fábula, mais dilatado o segundo, vivido na revisitação do discurso —
Assim sendo,
as nossas
reflexões vindouras não deverão somente
questionar o fenômeno da temporalidade dentro de uma única obra (ou de uma série de obras), mas também o fenômeno global que torna possíveis as várias estratégias de revisitação do tempo intertextual. Assim o nosso conceito de temporalidade se estende, do tempo do enunciado e do tempo da enunciação, ao tempo psicológico do consumidor e ao tempo histórico, ou seja, ao tempo da cultura.
1.
Formaggio, Dino, Arte, Isedi, Milão, 1973.
2. Eco, Umbérto, Tratado geral de semiótica, São Paulo, Perspectiva, 1980. 3. Pareyson, L., Estetica-Teoria della formatività, Edições de “Filosofia”, Turim, 1954. 4. Cf. Eco, Umberto, Obra aberta, São Paulo, Perspectiva, 1968.
5. Cf. Eco, Umberto, Lector in fabula, Bompiani, Milão, 1979.
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e das suas estratégias exatamente proteladoras. Igualmente, no ensaio que segue, se verá como existe um tempo da —
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citação. Quando um texto cita um texto anterior, este impõe ao receptor uma inspeção na própria competência intertextual e no próprio conhecimento do mundo (ou seja, em conjunto, na própria competência enciclopédica). A exploração da competência enciclopédica requer um tempo: não se trata necessariamente de um tempo computável em nível molecular (o curto-circuito do reconhecimento pode ser instantâneo), mas de qualquer forma trata-se de tersno molecular, embora seja calculável em milionésimos de segundo. E-trata-se de dispêndio energético que, como diz a segunda lei da termíbdinâmica, tem algo a ver com a temporalidade. É necessário, para entender a obra,ir parafora da obra e explorar o que vem antes da obra. 118
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problema do seriado nos meios de comunicação de massa end? A estética “moderna” nos habituou a reconhecer como “obras de arte” os objetos que se apresentam como “únicos” (isto é, não repetíveis) e “originais”. Por originalidade ou inovação entendeu um modo de fazer que. põe em crise as nossas expectativas, que nos oferece uma nova imagem do mundo, que renova as nossas experiências. Este foi o ideal estético que se afismou com o Maneirismo e que se impôs definitivamente, das estética: do Romantismo às posições das vanguardas deste 1.
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século. Ft Quando a estética moderna se viu diante de obras produzidas pelos “meios de comunicação de massa, negou-lhes qualquer valor artístico exatamente porque pareciam repetitivas, construídas de acordo com um modelo sempre igual, de modo a dar a seus destinatários o que eles «queriam e esperavam. Definiu-as como objetos produzidos em série,
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A INOVAÇÃO NO SERIADO
assim como se produzem muitos automóveis do mesmo tipo, segundo um modelo constante. Aliás, a “serialidade” dos meios de comunicação de
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massa Toi considerada mais negativa que a da indústria. Para entender essa natureza negativa dos meios de comunicação de massa em relação às outras produções industriais, é necessário distinguir entre “produzir em série um objeto” e “produzir em série os conteúdos de expressões aparentemente diferentes”. A estética, a história da arte, a antropologia cultural conhecem há muito o problema da serialidade. Falaram de “artesanato” (ao invés de arte) mas não negaram um valor estético elementar a estas, assim chamadas, “artes menores”, como produção de cerâmica, tecidos, utensílios de trabalho. Tentaram definir de "que modo esses objetos podem ser considerados “belos”: são perfeitas de um mesmo
repetições. 120
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tipo ou matriz, concebidas para desempenhar uma função prática. Gregos e romanos entendiam por techne ou ars a habilidade em construir objetos que funcionassem de modo ordenado e perfeito. O conceito de excelência era atribuído ao modelo, e as reproduções do modelo eram reconhecidas como belas ou agradáveis, como era belo ou agradável o modelo no qual se baseavam, sem tentarem parecer originais. Além disso, também a estética moderna sabia que muitas obras de arte originais podem ser produzidas usando elementos pré-fabricados e “em série” e, para ela, da serialidade podia nascer a originalidade, Acontece assim na arquitetura, mas aconteceu assim também na poesia tradicional, em que o autor podia usar esquemas predeterminados (como o sexteto e o terceto) e, todavia, mesmo permitindo ao destinatário reconhecer a presença do esquema, pretendia provocar-lhe a experiência dainovação ou dainvenção. Diverso é o caso de expressões que “fingem” ser sempre diferentes para, em vez disso, transmitirem sempre o mesmo conteúdo básico..E o caso, nos meios de comunicação de massa, do filme comercial, dos quadrinhos cômicos, da música de dança sem dúvida do assim chamado seriado de televisão, onde se tem a impressão de ler, ver, escutar sempre alguma coisa nova enquanto, com palavras inócuas, nos contam sempre a mesma história. E essa serialidade dos meios de comunicação de massa que foi considerada pela cultura “alta” como serialidade degenerada (e insidiosa) em relação à serialidade aberta e honesta da indústria e do artesanato. Naturalmente, no decorrer dessas polêmicas, esquecia-se que esse tipo de serialidade também esteve sempre presente em muitas fases da é
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produção artís artística do passado. Neste sentido, muita arte primitiva é serial, eram seriais muitas formas musicais destinadas ao entretenimento (como a sarabanda, a jiga ou o minueto), e a tal ponto que muitos compositores ilustres não deixavam de compor, por exemplo, uma suíte de acordo com um esquema fixo, e nela inseriam variações melodias de já conhecidas e populares. Por outro lado, basta pensar na commedia dellarte, onde, com base num esquema preestabelecido, os atores improvisavam, com variações mínimas, as suas representações que contavam sempre a mesma
história.
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À presença hoje maciça da série nos meios de comunicação de massa (pensemos, por exemplo, em genero como à novela, a comédia de Situação ou a saga na TV) nos obriga a refletir com uma certa atenção
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sobre todo o problema. Em que medida O serial dos 1meios de cação de massa é diferente de muitas formas artísticas do passado? Em que medida não está nos propondo formas de arte que, recusadas pela estética “moderna”, induzem uma estética dita “pós-moderna” a diversas conclusões'? iso |
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ou seja, a continuação. O exemplo mais famoso é o Vinte anos depois, de Dumas, e no campo cinematográfico são as diversas retomadas de arquétipos como Guerra nas estrelas ou Super-homem. A retomada nasce de uma decisão comercial, e é puramente ocasional o fato de que o segundo episódio seja melhor ou pior do que o primeiro.
2. Uma tipologia da repetição
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Série e serialidade, repetição e retomada, são conceitos amplamente inflacionados. À filosofia ou a história das artes nos habituaram a alguns sentidos técnicos dagtes termos, que será melhor eliminar: não falarei de repetição no sentido de “retomada” à Kierkegaard, ou de répétition différente, no sentido de Deleuze. Na história da música contemporânea, série e serialidade foram tomados num sentido mais ou menos oposto ao que estamos discutindo aqui. A série dodecafônica é o contrário de repetitividade serial típica do universo dos meios de comunicação de massa, e com mais razão é diferente dela a série pós-dodecafônica (ambas, mesmo em modo diferente, são esquemas a serem usados uma vez, e somente uma vez, dentro de uma única composição). Abrindo um dicionário corrente, vejo que, por “repetir”, entende-se “dizer ou fazer alguma coisa de novo”, mas no sentido de “dizer coisas já ditas” ou “fazer monotonamente as mesmas coisas”. Trata-se de estabelecer o que é que se entende por “de novo” ou por “mesmas coisas”. Devemos então definir um primeiro significado de “repetir” segundo o qual o termo significa reproduzir uma réplica do mesmo tipo abstrato. Duas folhas de papel para escrever a máquina são, ambas, uma réplica do mesmo tipo de mercadoria. Nesse sentido, “a mesma coisa” de uma outra coisa é aquela que exibe as mesmas propriedades, pelo menos de um certo ponto de vista: duas folhas de papel são as mesmas em termos de nossas exigências funcionais, mas não são as mesmas para um físico interessado na composição molecular dos objetos. Do ponto de vista da produção industrial de massa, definem-se como réplicas dois tokens ou ocorrências do mesmo type, dois objetos que, para uma pessoa normal com exigências normais, na ausência de imperfeições evidentes, dê no mesmo escolher entre uma réplica ou outra. Sãg.céplicas do mesmo tipo duas cópias de um filme ou de um livro.
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vez disso, a alguma coisa que à primeira vista não parece igual a qualquer
outra coisa.
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Vejamos agora quais são os casos em que alguma coisa nos é apresentada (e vendida) como original e diferente, embora percebamos que esta, de alguma forma, repete o que já conhecíamos, e provavelmente a compramos exatamente por isso. 2.1 A retomada
Um primeiro tipo de repetição é
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retomada de um tema de sucesso,
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2.2 O decalque O decalque consiste em reformular, normalmente sem informar ao consumidor, uma história de sucesso. Quase todos os primeiros westerns comerciais eram decalque de obras anteriores, ou talvez fossem todos uma série de decalques de um arquétipo de sucesso. Uma espécie de decalque explícito e declarado como tal é o remake: vide as várias edições dos filmes sobre o doutor Jekyll, sobre A ilha do tesouro ou sobre O motim do Bounty. Na categoria de decalque podemos classificar tanto os casos de
verdadeiro plágio como os casos de “reescrita” com explícitas finalidades de interpretação. A série 2.3.1 Com a verdadeira série temos um fenômeno bem diferente. Antes de mais nada, enquanto o decalque pode não ser decalque de situações narrativas e sim de procedimentos estilísticos, a série, eu diria, diz respeito, íntima e exclusivamente, à estrutura narrativa. Temos uma situação fixa e um certo número de personagens principais da mesma forma fixos, em torno dos quais giram personagens secundários que mudam, exatamente para dar a impressão de que a história seguinte é diferente da história anterior. A série típica pode ser exemplificada, no universo da literatura popular, pelos romances policiais de Rex Stout (personagens fixos: Nero Wolfe, Archie Goodwin, os criados da casa Wolfe, o inspetor Cramer, o sargento Stebbins e poucos mais), e no universo da televisão por All in the family, Starsky and Hutch, Colombo, etc. Agrupo gêneros televisivos diferentes, que vão desde a novela à comédia de situações e ao seriado policial. A série foi abundantemente estudada, e quando se falou de “estruturas iterativas ha comunicação de massa” visava-se justamente à estrutura da série.? Na série, o leitor acredita que desfruta da novidade da história enquanto,'de fato, distrai-se seguindo um esquema narrativo constante e fica satisfeito ao encontrar um personagem conhecido, com seus tiques, suas frases feitas, suas técnicas para solucionar problemas... A série neste “sentido responde à necessidade infantil, mas nem por isso doentia, de ouvir sempre a mesma história, de consolar-se com o retorno do idêntico, superficialmente mascarado.
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A série consola o leitor porque premia a sua capacidade de prever; ele fica feliz porque se descobre capaz de adivinhar o que acontecerá, e por-
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que saboreia o retorno do esperado. Satisfazemo-nos porque encontramos o que esperávamos, mas não atribuímos este “encoritro” à estrutura da narrativa, e sim à nossa astúcia divinatória. Não pensamos “o autor do romance policial escreveu de modo a me deixar adivinhar”, mas sim “eu adivinhei o que o autor do romance policial procurava esconder de mim”. 2.3.2 Encontramos uma variante da série na estrutura em flash-back: veja-se, por exemplo, a situação de algumas histórias em quadrinhos (como a do Super-homem), onde o personagem não é seguido ao longo do curso linear de sua existência, mas continuamente encontrado em diversos momentos da sua vida, obsessivamente revisitada para descobrir novas oportunidades narrativas. Quase parece que passaram despercebidas ao narrador, por distração, mas que sua descoberta não altera a fisionomia do personagem, já fixada de uma vez por todas. Em termos matemáticos, esse subtipo de série pode ser definido como um loop. As séries a loop são criadas normalmente por razões comerciais: trata-se, a fim de continuar a série, de prevenir o natural problema do envelhecimento do personagem. Em vez de fazê-lo suportar novas aventuras (que implicariam na sua marcha inexorável em direção à morte) faz-se com que reviva continuamente no passado. A solução a loop produz paradoxos que já foram objeto de inúmeras paródias: o personagem tem poúco futuro, mas tem um passado enorme, e todavia nada do seu passado jamais deverá alterar o presente mitológico em que foi apresentado ao leitor desde o início. Não bastam dez vidas para fazer “a pequena órfã” passar por tudo que de fato passou nos primeiros (e únicos) dez anos de sua vida. 2.3.3 Outra variação da série é a espiral. Nas histórias de Charlie Brown aparentemente acontece sempre a mesma coisa, aliás, não acontece nada, ainda assim a cada nova tira o personagem Charlie Brown fica mais rico e profundo. Coisa que não acontece nem com Nero Wolfe nem com Starsky ou com Hutch: nós estamos sempre interessados em conhecer suas novas aventuras, mas já sabemos tudo o que é preciso saber sobre a psicologia, os hábitos e as habilidades deles. 2.3.4 Acrescentaria, por fim, aquelas formas de serialidade motivadas, mais do que pela estrutura narrativa, pela própria natureza do ator: a simples presença 4: John Wayne (ou Jerry Lewis), sem uma direção muito personalizada, só poderia produzir mesmo filme, porque os acontecimentos nascem da mímica, dos esquemas comportamentais, às vezes da própria elementaridade do personagem-ator, que nada sabe fazer a não ser sempre as mesmas coisas. Nestes casos, por mais que o autor se emo
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penhe em inventar histórias diferentes, na verdade o público reconhece (com satisfação) sempre e de qualquer maneira a mesma história.
2.4 A saga À
saga é uma sucessão de eventos, aparentemente sempre novos, que
ligam, ao contrário da série, ao processo “histórico” de um personagem, ou melhor, a uma genealogia de personagens. Na saga os personagens envelhecem, a saga é uma história de envelhecimento (de indivíduos, famílias, povos, grupos). À saga pode ser em linha contínua (um personagem acompanhado do nascimento à morte, depois seu filho, depois seu neto, e assim por diante potencialmente até o infinito) ou ad albero (o antepassado e as várias ramificações narrativas que se reportam não só aos descendentes, mas aos colaterais e aos afins, também aqui ramificando infinitamente, e talvez desviando a atenção para novos núcleos familiares: o exemplo mais imediato é, certamente, Dallas). Nascida com intenções comemorativas e chegando à metamorfose mais ou menos degenerativa nos meios de comunicação de massa, a saga é sempre uma série mascarada. Nela, ao contrário da série, os personagens mudam (mudam quando se substituem uns aos outros e quando envelhecem): mas na realidade ela repete, de forma historiada, cele“brando. aparentemente o passar do tempo, a mesma história, e revela à análise uma atemporalidade e uma ausência de historicidade básicas. Os personagens de Dallas passam mais ou menos pelas mesmas situações: luta pela riqueza e pelo poder, vida, morte, derrota, vitória, adultério, amor, ódio, inveja, ilusão e desilusão. Mas era diferente com os cavaleiros da'Távola Redonda que vagavam pelas florestas bretãs? se
2.5 O dialogismo intertextual 2.5.1. Algumas formas de dialogismo vão além dos limites destas considerações. Veja-se, por exemplo, a citação estilística: um texto cita, de modo mais ou menos explícito, uma cadência, um episódio, um modo de narrar que imita o texto de outrem. Quandoa citação escapa ao leitor e é até mesmo produzida inconscientemente pelo autor, estamos na dinâmica normal da criação artística: os próprios mestres se repetem. Quando a citação deve ser imperceptível para o leitor, e o autor está consciente disso, normalmente estamos diante de um simples caso de plágio. Mais interessante é quando a citação é explícita e consciente: estamos então próximos da paródia ou da homenagem ou, como acontece na literatura. na arte pós-moderna, do jogo irônico sobre a intertextualidade (romance sobre o romance e sobre as técnicas narrativas, poesia sobre a poesia, arte sobre a arte). 125
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O jogo se complica, depois, na retomada de Os caçadores, isto é, em Indiana Jones e o templo da perdição: aqui o herói encontra não um, mas dois inimigos gigantescos. No primeiro caso o espectador esperava que, de acordo com os esquemas clássicos do filme de aventuras, o herói estivesse desarmadoe ria quando descobria que este tinha uma pistola e matava facilmente o adversário. No segundo caso, o diretor sabe que o espectador, que já viu o filme anterior, espera que o herói esteja armado e, de fato, Indiana Jones procura logo a pistola. Não a encontra, e o espectador rn porque fica frustrado nas expectativas que o primeiro filme havia
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2.5.3 Os casos citados põem em jogo uma enciclopédia intertextual: temos textos que citam outros textos, e o conhecimento dos textos anteriores é pressuposto necessário para a antecipação do texto em exame. Mais interessante, para uma análise da nova intertextualidade e
dialogismo dos meios de comunicação de massa, é o exemplo de ET, quando a criatura espacial (invenção de Spielberg) é levada à cidade durante q Halloween e encontra um outro personagem, fantasiado de gnomo de O império contra-ataca (invenção de Lucas). ET sobressaltase e tenta ir ao encontro do gnomo para abraçá-lo, como se se tratasse de um velho amigo. Aqui o espectador deve saber muitas coisas: deve certamente saber da existência de um outro filme (conhecimento intertextual), mas deve também saber que ambos os monstros foram projetados por Rambaldi, que os diretores dos dois filmes estão ligados por várias razões, não só porque são os diretores de maior sucesso da década, deve, em suma, possuir não somente um conhecimento dos textos mas também conhecimento do mundo, ou seja, das circunstâncias externas aos textos. Observe-se, naturalmente, que tanto o conhecimento dos textos um
como o conhecimento do mundo, não passam de dois capítulos do conhecimento enciclopédico e que portanto, numa certa medida, o texto
refere sempre, seja como for, ao mesmo patrimônio cultural. Antigamente, um fenômeno desse gênero era típico de uma arte experimental que pressupunha um leitor modelo culturalmente assaz sofisticado. O fato de tais procedimentos serem sempre mais comuns no se
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2.5.2 Um procedimento típico da narrativa pós-moderna, tem sido, entretanto, muito usado recentemente no âmbito das comunicações de massa: trata-se de uma citação irônica do topos. (tato jps00r cesta “Lembremos o assassinato do gigante árabe vestido de preto em Os caçadores da arca perdida. Ou a citação da escadaria de Odessa em Bananas, de Woody Allen. O que é que estas duas citações têm em comum? Em ambos os casos o espectador, para usufruir da alusão, deve conhecer os “lugares” originais (no caso do gigante, um topos de gênero, nocaso de Bananas, um topos que aparece pela primeira e única vez numa obra isolada, e em seguida torna-se citação obrigatória e por conseguinte topos da crítica cinematográfica e da linguagem cinematorial). Em ambos os casos o topos já foi registrado pela “enciclopédia” do espectador, faz parte do imaginário coletivo, e como tal é evocado. O que diferencia as duas citações é, no máximo, o fato de que em Os caçadores o topos é citado para poder ser desmentido (não acontece o que se espera em casos semelhantes), enquanto em Bananas o topos é introduzido, com as devidas variações, somente devido à sua incongruência. Congruente no primeiro caso, e exatamente por isso eficaz quando desmentido, incongruente no segundo caso.? O primeiro caso lembra a série de cartuns que Mad publicava anos atrás, em que sempre se contava “um filme que gostaríamos de ver”. Por exemplo a heroína, no Oeste, amarrada pelos bandidos nos trilhos do trem, e depois, numa dramática montagem à Griffith, a alternância de imagens que mostram de um ido o trem que se aproxima e do outro a cavalgada furiosa dos salvadores que tentam chegar antes da locomotiva. Em conclusão, a moça (contrariamente a todas as expectativas sugeridas pelo topos evocado) é esmagada pelo trem. Aqui estamos diante de um jogo cômico que brinca com a pressuposição (exata) de que o público reconheça lugar original, aplique à sua citação o sistema de expectativas que este deveria estimular por definição (quero dizer: por definição doframe ou script, tal como a enciclopédia já o registra), e depois ria do modo pelo qual as suas expectativas são frustradas. Nessa altura, o espectador ingênuo, uma vez contrariado, supera a sua frustração, transformando-se em espectador crítico, que aprecia o modo como foi passado para trás. No caso de Bananas, estamos num outro nível: o espectador com o qual o texto faz um pacto não é o espectador ingênuo (que no máximo pode ficar impressionado com o aparecimento de um acontecimento incongruente), mas o espectador crítico, que aprecia o jogo irônico da citação e, mais exatamente, a sua proposital incongruência. Todavia, em ambos os casos temos um efeito crítico colateral: tendose apercebido da citação, o espectador é levado a refletir ironicamente sobre a natureza tópica do evento citado, e a reconhecer o jogo para o qual foi convidado como um jogo de massacre a ser registrado na enciclopédia.
universo dos meios de comunicação de massa nos leva a algumas considerações: os mass media se preocupam com pressupondo-as informações já veiculadas por outros mass media. O texto de ET “sabe” que o público entendeu, através dos jornais ou da televisão, que relações perpassam entre Rambaldi, Lucas é Spielberg. Os meios de comunicação parecem, no jogo das citações extratextuais, referir-se ao mundo, mas de fato se referem ao conteúdo de outras —
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deve realizar-se uma dialética entre ordem e novidade, ou seja, entre esquematismo e inovação; essa dialética deve ser percebida pelo destinatário. Ele não só deve captar os conteúdos da mensagem como deve captar o modo pelo qual a mensagem transmite aqueles conteúdos. Nesse caso nada impede que nos tipos de repetição acima relacionados surjam as condições para uma realização do valor estético, e a história das artes aí está para fornecer-nos exemplos satisfatórios para todas as designações da nossa classificação. —
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A partida é jogada, por assim dizer, numa intertextualidade “ampliada” em relação àqualo conhecimento do mundo (entendido de modo ingênuo como conhecimento derivado de uma experiência extratextual) se tornou praticamente nulo. As nossas reflexões a seguir não deverão, portanto, questionar somente o fenômeno ds repetição dentro de uma obra isolada ou de uma série de obras, mas sim o fenômeno de entrelaçamento que torna as várias estratégias de repetição produtíveis compreensíveis € comerciáveis outras palavras, repetição e serialidade nos meios de comunicação de massa propõem novos problemas de sociologia da cultura. 2.5.4 Uma forma de dialogismo é a embalagem de gênero muito comum nos meios de comunicação de massa. Pense-se tanto no musical da Broadway (em teatro ou em filmes) que não passa disso normalmente como na história de como se monta um musical na Broadway. E esse tipo parece exigir um vasto conhecimento intertextual: de fato, ele cria e estabelece a competência exigida e pressuposta para entendê-lo, no sentido de que cada filme deva contar-nos como se faz um musical na Broadway, fornece-nos todos os elementos em geral indispensáveis para compreender um único espetáculo. O espetáculo dá ao público a sensação de saber o que na verdade ele ainda não sabe e passa -a conhecer somente naquele momento. Estamos diante de um caso de colossal preterição. Neste sentido o musical é obra didática que torna conhecidas as regras (idealizadas) da sua produção. 2.5.5 Enfim temos a obra que fala de si mesma: não a obra que fala do gênero ao qual pertence, mas a obra que fala da própria estrutura, do modo como é feita. A rigor, tal procedimento aparece só em relação a obras de vanguarda, e parece estranho às comunicações de massa. A estética conhece esse problema, e até o identificou há muito tempo: é o problema da morte da arte. jMlas nos últimos anos aconteceram casos em que produtos dos meics de comunicação de massa foram capazes de ironizar a si mesmos, e alguns dos exemplos acima propostos me parecem bastante interessantes. Também aqui, os confins entre arte high brow e arte low brow parecem ser muito sutis.
mensagens de outros meios de comunicação.
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Retomada — Orlando furioso é, no fundo, uma retomada do Innamorato e, exatamente devido ao sucesso do primeiro, que era por sua vez uma retomada dos temas do ciclo bretão, Boiardo e Ariosto acrescentam uma boa parcela de ironia ao material deveras “sério” e “levado a sério” em que se inspiraram, mas também o terceiro Super-homem é irônico em relação ao primeiro (místico e metido a sério), de modo que temos a retomada de um arquétipo inspirado no Evangelho, mas namorando os
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filmes de Frank Tashlin.
À retomada pode ser feita com ingenuidade ou com ironia: a ironia diferencia a retomada furtiva da que é feita com pretensões estéticas. Não faltam critérios críticos (e noções de obra de arte) que nos permitam decidir em que sentido a retomada de Ariosto pode ser mais rica e complexa do que a do filme de Lester. —
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3. Uma solução estética moderada ou “moderna
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Tentemos agora rever os fenômenos acima relacionados do ponto de vista de uma concepção “moderna” do valor estético, segundo a qual se destacam duas características em qualquer mensagem esteticamente bem organizada: 128
Série Todo texto pressupõe e constrói sempre um duplo Leitor Modelo.“ O primeiro usa a obra como um dispositivo semântico e é vítima das estratégias do autor que o conduz passo a passo ao longo de uma série de previsões e expectativas; o outro avalia a obra como produto estético e avalia as estratégias postas em ação pelo texto para construí-lo justamente como Leitor Modelo de primeiro nível. O leitor de segundo nível é o que se empolga coma serialidade da série e se empolga não tânto com o retorno do mesmo (que o leitor ingênuo acreditava ser outro) mas pela estratégia das variações, ou seja, pelo modo como o mesmo inicial é continuamente elaborado de modo a fazê-lo parecer diferente. Esse jogo com a variação é obviamente encorajado pelas séries mais sofisticadas. Poderíamos aliás classificar as produções narrativas seriadas num continuum que leva em consideração as diversas graduações do contrato de leitura entre texto e leitor de segundo nível ou leitor crítico (como sendo o oposto do leitor ingênuo). E evidente que até o produto narrativo mais banal permite ao leitor constituir-se, por decisão autônoma,
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leitor crítico, isto é, em leitor que decide avaliar as estratégias inovadoras, ainda que mínimas, ou registrar a ausência de inovação. Há porém obras seriais que estabelecem um pacto explícito com o leitor crítico e por assim dizer o desafiam a destacar as habilidades inovadoras do texto. Pertencema essa categoria os telefilmes do tenente Colombo: a tal ponto que os autores preocupam-se em fazer-nos saber desde o início quem éo assassino. O espectador não é convidado tanto ao jogo ingênuo das previsões (whodunit?) quanto, por um lado, a divertir-se com a execução das técnicas de investigação de Colombo (apreciadas como o bis de uma peça de bravura muito conhecida e muito querida), e por outro a descobrir como o autor conseguirá vencer seu desafio: que consiste em fazer Colombo fazer aquilo que faz sempre, e todavia não de modo banalmente repetitivo. No limite extremo podemos ter produtos seriais que apostam pouquíssimo no leifor ingênuo, usado como pretexto, e arriscam tudo no pacto como leitor crítico. Pensemos no exemplo clássico das variações musicais: estas podem ser entendidas (e de fato às vezes são usadas) como música de fundo que gratifica o usuário com o retorno do mesmo, ligeiramente mascarado. Todavia, o compositor está fundamentalmente interessado no pacto com o usuário crítico, do qual quer receber elogios pela criatividade demonstrada ao inovar sobre a trama do já conhecido. Nesse sentido, a série não se opõe necessariamente à inovação. Nada é mais “serial” do que o esquema-gravata, e contudo nada é mais personalizante do que uma gravata. O exemplo pode ser elementar, mas não é banal, nem limitativo. Entre a estética elementar da gravata e o reconhecido “alto” valor artístico das variações de Goldberg, há um continuum dividido em graus de estratégias serializantes, ajustadas de modo diferente para criar um relacionamento com o usuário crítico. Que, pois, a maior parte das estratégias serializantes no âmbito das comunicações de massa esteja interessada somente nos usuários de primeiro nível ficando os sociológos e semiólogos livres para exercitarem um interesse (puramente tribunalício) pelas suas estratégias de abundante repetitividade e pouca inovação este é um outro problema. São seriais tanto as naturezas-mortas holandesas, quanto a imagérie d' Épinal Tratase, se quisermos, de dedicar às primeiras profundos ensaios críticos e às segundas afetuosos e nostálgicos catálogos de antiquário: o ponto, porém, consiste em reconhecer que em ambos os casos pode existir um problema de seritilidade. A questão é que não existe, por um lado, uma estética da arte “alta” (original e não serial) e por outro uma pura sociologia do serial. Existe uma estética das formas seriais que não deve caminhar separada de uma
sensibilidade histórica e antropológica pelas diferentes formas que em tempos e países diversos a dialética entre repetitividade e inovação assume. Devemos questionar-nos se, por acaso, onde não encontramos inovação no seriado, isso não depende, mais do que das estruturas do texto, do nosso horizonte de expectativas e da estrutura da nossa sensibilidade. Sabemos muito bem que em certos exemplos de arte extraeuropéia, onde nós vemos sempre a mesma coisa, os nativos conseguem variações infinitesimais e usufruem a seu modo as emoções da inovação. Enquanto onde nós vemos inovação, talvez em formas seriais do passado ocidental, os usuários originais não estavam absolutamente interessados nesse aspécto e, inversamente, apreciavam a recorrência do esquema.
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Saga Para confirmar que a nossa tipologia não resolve problemas de excelência estética, diremos que toda a Comédia humana de Balzac representa um bom exemplo de saga ramificada, pelo menos tanto quanto Dallas. Balzac é esteticamente mais interessante do que os autores de Dallas porque cada romance seu nos diz alguma coisa de novo sobre a sociedade do seu tempo, enquanto cada episódio de Dallas nos diz sempre a mesma coisa sobre a sociedade americana... Mas ambos usam o mesmo esquema narrativo. —
Dialogismo intertextual Aqui parece que a necessidade de explicar dialogismo seja menos urgente, porque a própria noção de dialogismo foi elaborada no âmbito de uma reflexão, estética e semiótica ao mesmo tempo, sobre a arte chamada alta. E todavia, justamente os exemplos que representamos há pouco foram provocatoriamente assumidos pelo universo das comunicações de massa, para mostrar como também as formas de dialogismo intertextual já se transferiram para o âmbito da produção popular. Típica da literatura e da arte dita pós-moderna (mas já não acontecia o mesmo com a música de Stravinsky?) é a citação entre aspas, de modo que o leitor não presta atenção ao conteúdo da citação, mas sim ao modo pelo qual a citação é introduzida na trama de um texto diferente, e para dar lugar à um texto diferente. Mas, como observa Renato Barilli, um dos riscos desse procedimento é o de não conseguir pôr em evidência as aspas, de modo que o que é citado e muitas vezes cita-se não a arte mas o Kitsch. — é recebido pelo leitor ingênuo de primeiro nível como invenção original e não como citação irônica. Propusemos três exemplos de citação de um topos: Os caçadores da arca perdida, Bananas e ET. Vejamos agora o terceiro caso: o espectador que nada soubesse sobre —
os êxitos estéticos do
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as origens de produção dos dois filmes (dos quais um cita o outro) não conseguiria entender por que acontece o que acontece. Se o resultado da gag é condição de prazer estético (isto é, se a gag deve ser considerada como construção que aspira a apresentar-se como auto-reflexiva) e numa medida, por mínima que seja, o é, como o a tirada espirituosa, a piada que espera ser admirada pela economia de meios através dos quais consegue o efeito cômico então o episódio de ET se rege pela necessidade das aspas. Mas poder-se-ia repreendê-los por confiar a percepção das aspas a um saber externo ao texto: nada no filme ajuda o espectador a entender que em determinado ponto deveriam existir aspas. O filme confia no saber extratextual do espectador. E se o espectador não sabe? Paciência, o filme sabe que tem outros meios para obter sua concordância.
Colocaremos enfim, no pólo extremo do interesse estético, uma obra cujo equivalenté não consigo encontrar nos meios de comunicação de massa contemporâneos, e é uma das obras-primas não só do dialogismo intertextual mas também da alta capacidade metalingiiística de falar e da sua formação e do seu gênero, para encerrar, rapidamente, os últimos itens da minha tipologia. Falo de Tristham Shand). É impossível ler é apreciar o romance anti-romance de Sterne sem aperceber-se de que ele está ironizando a forma-romance. E o texto o sabe a tal ponto que creio que é impossível encontrar nele um só trecho irônico onde não deixe evidente seu modo particular de usar aspas, levando a uma solução estética a técnica retórica da pronuntiatio essencial para que o artifício da ironia tenha êxito.
Essas aspas imperceptíveis, mais do que um artifício estético, são um artifício social, selecionam os happy few (que, espera-se, sejam milhões). Ao espectador ingênuo de primeiro nível o filme já deu até demais: aquele prazer secreto fica reservado, por enquanto, ao espectador crítico de
aspas, que, seja como for, deve ter importância para os objetivos de uma
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segundo nível.
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Outro é o caso de Os caçadores. Aqui, se o espectador crítico falha (e não reconhece o topos desgastado), permanecem amplas possibilidades de divertiments vara o espectador ingênuo, que se diverte pelo menos com o fato de ljue o herói leva sempre vantagem sobre o adversário. Estamos diante de uma construção menos sutil do que a precedente, mais inclinada a satisfazer as exigências do produtor que, seja como for, deve vender o produto a alguém. É verdade que é difícil imaginar Os caçadores visto e apreciado por espectadores que não captem o paroxismo citatório, mas é sempre possível que isso aconteça, e a obra está aberta também a essa possibilidade. Não saberia dizer qual, entre os dois textos citados, persegue finalidades esteticamente mais nobres. Basta-me (e por enquanto já me dá muito o que pensar) assinalar uma diferença de funcionamento e de estratégia textual que pode provocar um juízo crítico diferente.
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Creio ter particularizado uma série ascendente de artifícios do uso de fenomenologia do valor estético e do prazer que dele resulta. Destaco, mais uma vez, que as estratégias da surpresa e da novidade na repetição, mesmo sendo estratégias semióticas, esteticamente neutras em si, podem dar origem a diversas soluções diversamente apreciáveis no plano da estética.
Poderíamos concluir dizendo que: cada um dos tipos de repetição que examinamos não está limitado somente aos meios de comunicação de massa, mas pertence por direito a toda história da criatividade artística: o plágio, a citação, a paródia, a retomada irônica, o jogo intertextual, são típicos de toda a tradição —
artístico-literária; muita arte, portanto, foi —
e éserial; o
conceito de originalidade
absoluta, em relação a obras anteriores e às próprias regras do gênero, é
um
conceito contemporâneo, nascido com o romantismo;
a
arte clássica
era amplamente serial e as vanguardas históricas, de vários modos, deixaram em crise a idéia romântica da criação como estréia no absoluto (com as técnicas de colagem, os bigodes na Gioconda, etc.); o mesmo tipo de procedimento serial pode produzir tanto ex—
celência como banalidade; pode deixar o destinatário em crise consigo mesmo e com a tradição intertextual no seu conjunto; e, por conseguinte, pode provê-lo de fáceis consolações, projeções, identificações; pode estabelecer um pacto exclusivamente com o destinatário ingênuo, ou exclusivamente como destinatário crítico, ou com ambos em diferentes níveis e ao longo de um continuum de soluções que não pode ser reduzido a uma tipologia elementar; portanto, uma tipologia da repetição não fornece os critérios para estabelecer diferenças de valor estético; —
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Vejamos agora o caso de Bananas. Daquela escadaria desce não só carrinho de bebê, mas também grupos de rabinos e não lembro mais o quê. O que acontece com o espectador que não percebe a citação do Potemkin ? Creio que, pela energia orgiástica com a qual são representados a escadaria e a sua incongruente população, até o espectador ingênuo percebe o sentido sinfônico e estranho dessa quermesse bruegeliana. Mesmo o mais ingênuo entre os espectadores percebe um ritmo, uma invenção, não pode deixar de concentrar sua atenção no modo de construir. um
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todavia, será exatamente aceitando o princípio de que os vários tipos de repetição constituem características constantes do procedimento artístico, que se poderá partir deles para estabelecer critérios de valor; uma estética da repetição requer como premissa uma semiótica dos procedimentos textuais de repetição. —
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4. Uma solução estética radical ou “pós-moderna”
Percebo, entretanto, que tudo o que disse até agora constitui uma tentativa de reconsiderar as diversas formas de repetição propostas pelos meios de comunicação de massa, nos termos da dialética “moderna” entre ordem e inovação. O fato é que, quando as pesquisas sobre esse tema falam de estética da serialidade, estas aludem a alguma coisa mais radical, isto é, a uma noção de esteticidade que não pode mais ficar reduzida às categorias moderno-tradicionais se me permitem o oximoro. Foi observado que com o fenômeno dos seriados de televisão encontramos um novo conceito de “infinidade do texto”: o texto adota os ritmos e os tempos da mesma cotidianidade dentro da qual (e destinado à qual) se move. O problema não é reconhecer que o texto seriado varia indefinidamente dentro do esquema básico (e nesse sentido pode ser Julgado do ponto de vista da estética “moderna”). O verdadeiro problema é que o que interessa não é tanto a variabilidade quanto o fato de que dentro do esquema se possa variar ao infinito. E uma variabilidade infinita tem todas as características da repetição e pouquíssimas da inovação. O que é aqui celebrado é uma espécie de vitória da vida sobre a arte, tendo como resultado paradoxal que a era da eletrônica, ao invés de acentuar o ferômeno do choque, da interrupção, da novidade e da frustração das expectativas, “produziria um retorno do continuum, do que é cíclico, periódico, regular”. Omar Calabrese aprofundou o problema”: do ponto de vista da dialética “moderna” entre repetição e inovação, pode-se certamente ver, por exemplo, nos episódios da série Colombo, como dentro de um esquema-base trabalharam como variação alguns dos melhores nomes do cinema americano. Seria por conseguinte difícil falar, em tal caso, de pura repetição: se permanecem imutáveis o esquema da abordagem e a psicologia do personagem, o estilo da narrativa muda a cada vez. O que não é pouco, especialmente do ponto de vista da estética “moderna”. Mas é justamente sobre uma noção diferente de estilo que se concentra a conferência de Calabrese. O fato é que nessas formas de repetição “não —
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nos interessa tanto o que é repetido, quanto nos interessa seginentar os componentes de um texto e codificá-los para poder estabelecer um sistema de invariantes, onde tudo que não se encaixa é definido como variável independente”. E nos casos mais típicos e aparentemente mais “aviltados” de serialidade, as variáveis independentes não são absolutamente as mais visíveis, mas as mais microscópicas, como uma solução homeopática onde a porção é bem mais potente quando, por sucessivas
manipulações, as partículas do produto medicinal quase desaparecem. O que permite a Calabrese falar da série Colombo como de um exercice de style à Queneau. À esse ponto nos encontraríamos diante de uma “estética neobarroca”: que funciona com força total não só nos produtos cultos, mas também e principalmente nos mais aviltados. Também a propósito de Dallas pode-se dizer que “as oposições semânticas e a articulação das estruturas elementares da narração podem transmigrar com uma combinatória de altíssima improbabilidade em torno dos vários personagens”. Diferenciação organizada, policentrismo, irregularidade regulada: tais seriam os aspectos fundamentais dessa estética neobarroca, cujo exemplo maior é a variação musical à Bach. Como na época das comunicações de massa “a condição de escuta... é aquela para a qual tudo já foi dito e tudo já foi escrito... como no teatro Kabuki, será então a mais minúscula variante que produzirá o prazer do texto, ou'a forma da repetição explícita do que já se conhece”. É claro o que acontece com estas reflexões. Desloca-se o foco teórico da pesquisa. Se antes tratava-se, para o mass-mediólogo ainda moderno, de salvar a dignidade do seriado nele reconhecendo a possibilidade de uma dialética tradicional entre esquema e inovação (mas nesse ponto era ainda a inovação que constituía o valor, ou o caminho de salvação para tirar o produto do aviltamento e valorizá-lo), agora a ênfase recai sobre o nó inextricável do esquema-variação, onde a variação não influi sobre o esquema e, quando muito, acontece o contrário. O termo neobarroco não deve enganar: aqui fica confirmado o nascimento de uma nova sensibilidade estética, muito mais arcaica, e verdadeiramente pós-mo—
dera.
Neste ponto, observa Giovanna Grignaffini, “o seriado de televisão, ao contrário de outros produtos realizados pela ou para a televisão, utiliza este princípio (e o seu inevitável corolário), num certo sentido no
estado puro, chegando a transformá-lo de princípio produtivo em princípio formal. E é dentro desse deslizamento progressivo que toda noção de unicidade fica destruída até à raiz”? Triunfo de uma estrutura de encaixes independentes, que vai ao encontro das exigências primeiro receadas, depois realisticamente —
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reconhecidas como dado de fato, agora finalmente proclamadas como nova condição de esteticidade do “consumo na distração” (que é, portanto, o que acontecia com a música barroca). Que fique claro, não é que os autores dos ensaios citados não enxerguem quanto há de comercialmente animador e de “gastronômico” em propor histórias que contam sempre a mesma coisa e sempre se fecham circularmente sobre si mesmas (não é, digo, que eles não
5. Algumas perguntas à guisa de conclusão
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enxerguem a pedagogia e a ideologia expressa por essas histórias no que concerne aos respectivos conteúdos). E que eles não só aplicam a tais produtos um critério rigidamente formalístico, como deixam claro que devemos começar a conceber uma audiência capaz de fruir de tais produtos desse modo. Porque somente com essa convenção pode-se falar de uma nova estética do seriado. Só a partir dêssa convenção o seriado não é mais um parente pobre da arte, mas a forma de arte que satisfaz à nova sensibilidade estética, ou seja, a forma pós-modema da tragédia ática. Não nos escandalizaríamos se tal critério fosse aplicado (como foi aplicado) às obras de arte “minimal”, como, por outro lado, à arte abstrata. E, de fato, aqui se está delineando uma nova estética do “minimal” aplicada aos produtos da comunicação de massa. Mas tudo isso prevê que o leitor ingênuo de primeiro nível desapareça, para deixar lugar somente ao leitor crítico de segundo nível. De fato, não existe o leitor ingênuo de um quadro abstrato ou de uma escultura “minimal” (ou, se existe quem pergunte “o que significa?” este não é leitor nem de primeiro nem de segundo nível, está fora de qualquer leitura). Da obra abstrata ou da escultura minimal faz-se somente leitura crítica, delas não interessa a inutilidade que está feita, interessa somente o modo de fazer. Podemos esperar o mesmo dos produtos seriados da televisão? Devemos pensar no nascimento de um novo público que, indiferente às histórias contadas, que já conhece, pretende apenas degustar a repetição e as suas mínimas variações? Embora o espectador ainda hoje chore diante das aflições das famílias texanas, devemos esperar para o futuro próximo uma genuína mutação genética? Se assim não devesse acontecer, a proposta radical pareceria singularmente esnobe: como em 1984, existiriam prazeres de segunda leitura reservados aos membros do partido e prazeres de primeira leitura reservados aos prolet. Toda a indústria do seriado existiria, como o mundo de Mallarmé (feitg para resolver-se num Livro), com o único objetivo de fornecer o prazer neobarroco a quem soubesse apreciá-lo, reservando lágrimas e alegrias (fictícias e aviltadas) aos muitos que sobram.
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Se a hipótese máxima é possível (um universo de audiovisores desinteressados quanto ao que realmente acontece a J.R. e realmente decididos a captar o prazer neobarroco da forma que suas aventuras assumem), deveremos perguntar-nos se tal perspectiva (por mais precursora que seja de uma nova estética) é permitida por uma velha semiótica. A música barroca, como a arte minimal, são “assemânticas”. Pode-se discutir, e eu sou o primeiro a fazê-lo, se é possível estabelecer uma divisão tão nítida entre artes de pura sintaxe e artes que transmitem significados. Mas podemos pelo menos reconhecer que existem artes figurativas e artes abstratas. A música barroca e a minimal art não são figurativas, e os seriados da televisão o são. Para usar um termo de Greimas, eles põem em jogo “figuras do mundo”. Até que ponto se poderá apreciar como variações musicais aquilo que varia nas figuras do mundo, sem escapar ao fascínio (e à ameaça) do mundo possível que elas põem constantemente em cena? Por outro lado, se não quisermos permanecer prisioneiros de preconceitos etocêntricos, devemos levar a hipótese às suas últimas consegiiências. Diremos então que a série neobarroca propõe, no seu primeiro nível de fruição (ineliminável, puro e simples mito. Nada tem a ver com a arte. Uma história, sempre igual. Não será a história de Atreu e será a de J.R. Por que não? Cada época tem os seus mitopoietas, os seus centros de produção mitopoiética, o próprio sentido do sacro. Descontada a representação (figurativa) e a degustação “orgiástica do mito (admitida a intensa participação emotiva, o prazer da reiteração de uma só e constante verdade, e as lágrimas, e o riso e enfim uma sã catarse), a audiência reserva-se a possibilidade de passar ao nível estético e opinar sobre a arte da variação no tema mítico assim como se consegue apreciar um “belo funeral” mesmo quando o morto era uma pessoa querida. Temos certeza de que isso não acontecia também na antigiiidade —
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clássica”, Quando relemos a Poética de Aristóteles, vemos que era possível descrever o modelo da tragédia como um modelo serial. Das citações do Estagirita entrevemos que as tragédias de que ele tinha conhecimento eram mais numerosas do que as que chegaram até nós, e todas seguiam (variando-o) um esquema fixo. Podemos supor que as que se salvaram foram as que melhor correspondiam aos padrões da sensibilidade estética antiga. Mas poderíamos também supor que a dizimação tenha acontecido com base.em critérios de política cultural, e ninguém pode proibir-nos de 137
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coletiva, temos certeza de estar lendo como os outros (os “normais”)
Se as tragédias eram bem mais do que as que conhecemos e se todas seguiam (variando-o) um esquema fixo, o que aconteceria se hoje
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imaginar que Sófocles tenha sobrevivido em virtude de manobras de poder, sacrificando autores melhores (mas segundo que critério?) do que
pudéssemos vê-las ou lê-las todas juntas? Seriam diferentes das usuais as nossas apreciações sobre a originalidade de Sófocles ou de Ésquilo? Será que encontraríamos nesses autores sérias variações de temas tópicos onde hoje entrevemos um modo único (e sublime) de enfrentar ôs problemas da condição humana? Seria possível que, lá onde nós vemos invenção absoluta, os gregos vissem somente a “correta” variação dentro de um esquema, e que sublime lhes parecesse não a obra isolada, mas justamente o esquema (e não é por acaso que, falando da arte poética, Aristóteles desenvolvia uma discussão sobre esquemas, acima de tudo, e somente a título de exemplo se detinha nas obras isoladas). Agora, invertamos a experiência e coloquemo-nos, diante do seriado contemporâneo, do ponto de vista de uma estética futura que tenha readquirido o sentido da originalidade como valor. Imaginemos uma sociedade do ann 3000 depois de Cristo na qual, por razões que não pretendo teorizar, noventa por cento da nossa produção cultural atual tivessem desapárecido e de todos os seriados de televisão tivesse sobrevívido só um episódio do tenente Colombo. Como perceberíamos essa obra? Nos emocionaríamos diante da originalidade com que o autor soube representar um homenzinho em luta contra as potências do mal, contra as forças do capital, contra a sociedade opulenta e racista dos wasps dominadores? Apreciaríamos essa representação eficaz, concisa, intensa da paisagem urbana de uma América
Esearesposta fosse negativa, o que teria a estética a dizer então sobre problema do seriado de televisão?
1. Cf. a distinção entre serialidade de veículo e serialidade de programa proposta por A. Costa e L. Quaresima em "Il racconto elettronico: veicolo, programma, durata”, Cinema & Cinema 33-36, 1983, pães. 2024. 2. Sobre essa repetitividade nos meios de comunicação de massa a literatura é muito ampla. Remeto, por exemplo, aos meus estudos sobre Super-homem, James Bond ou sobre 6folhetim do século XIX (publicados em Apocalitici e integrati e ll Superuomo di massa). 3. Para a noção de enciclopédia semiótica cf. os meus Lector in fabula e Semiotica e
filosofia del linguaggio. 4. Cf. para à noção de “leitor- modelo” o meu Lector in fabula, citado. 5. “Dal leggibile alPilleggibile”, em L. Russo, ed., Letteratura tra consumo e ricerca, il Miulino, Bolonha, 1984. 6. Cf. o artigo já citado de Costa e Quaresima em Cinema & Cinema 35-36. 7. “I replicanti”, Cinema & Cinema 35-36, págs. 25-39. 8. “J.R.: vi presento 1] racconto”, Cinema & Cinema 35-36, págs. 46-51.
industrial?
Quando o seriado procede por resumos, porque tudo já foi dito nos episódios precedentes, será que veríamos manifestar-se uma arte da síntese, uma capacidade sublime de dizer através de alusões? Em outras palavras, como seria lido um “trecho” de uma série se o resto da série permanecesse ignorado? Antecipo a objeção: o que nos impede de ler assim, agora, os produtos seriados?
A resposta é: nada. Nada nos impede. Aliás, talvez façamos, com fregiiência, exatamente assim. Mas assim procedendo, fazemos o que fazem os espectadores normais da série? Acho que não. Então, última pergunta, quando tentamos interpretar e definir anova estética do seriado, situando-nos como intérpretes da sensibilidade de
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ELOGIO DO MONTE CRISTO
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Um romance mal escrito
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Na Plêiade, da Gallimard, publica-se agora (depois de Os três mosqueteiros) O conde de Monte Cristo, de Dumas, inserindo também esta obra no panteão dos grandes, entre Stendhal e Balzac. Comparando essa edição, organizada por Gilbert Sigaux, coma de J.H. Bornecque para os clássicos Garnier de 1962, vê-se que não se encontra muita coisa de novo: a primeira tinha até umas ilustrações interessantes, uma longa biografia de Dumas (quanto a esta recomenda-se a edição de Os três mosqueteiros) e, enfim, o volume da Gallimard só tem a mais umas utilíssimas notas e variantes e um novo texto de Jacques Peuchet que “poderia” ter inspirado Dumas; mas a edição da Garnier já publicava, do mesmo Peuchet, o conto “Le diamant et la vengeance” que certamente, e por explícita admissão de Dumas, deu origem ao Monte Cristo. Afora a elegância costumeira, a maior facilidade de manuseio (um só volume em papel-bíblia contra dois em papel-jornal! e o preço mais caro, o que acrescenta a edição Plêiade à edição Garniér? A consagração, há pouco a dizer, a admissão de que Monte Cristo faz parte da história da literatura francesa? Naturalmente será necessário decidir d que se entende por literatura, e em particular por narrativa de alto valor literário. Croce teria dito que Dumas não é poesia mas, puramente, literatura, termo que para ele tinha um sentido, se não depreciativo, pelo menos moderador. Mas o ponto não é esse, o Monte Cristo, na Plêiade, passa por cima dessas distinções. Devemos então dizer que o Monte Cristo equivale a O vermelho eo negro e Madame Bovary? O que é um “grande romance”? “O conde de Monte Cristo é, sem dúvida, um dos mais apaixonantes romances já escrito e, por outro lado, é um dos romances mais mal escritos de todos os tempos e de todas as literaturas.
O Monte Cristo peca por todos os lados. Cheio de palavras ocas, descarado ao repetir o mesmo adjetivo a uma linha de distância, exagerado ao acumular esses mesmos adjetivos, capaz de iniciar uma divagação sentenciosa sem conseguir concluí-la, porque a sintaxe não se mantém, e assim procedendo e ofegando durante vinte linhas, é mecânico e desajeitado ao esboçar os sentimentos: seus personagens ou fremem ou empalidecem, ou enxugam grandes gotas de suor que escorrem pela testa ou, balbuciando com uma voz que nada mais tem de humana, levantamse convulsivamente da cadeira e nela tornam a cair, com o autor preocupando-se sempre, obsessivamente, em repetir que a cadeira em que caíram era a mesma em que haviam sentado um segundo antes. Sabemos bem por que Dumas agia assim. Não porque não soubesse escrever. Os três mosqueteiros é mais seco, rápido, talvez em detrimento da psicologia, mas flui que é uma beleza. Dumas escrevia assim por razões de dinheiro, recebia tanto por linha e precisava esticar. Sem contar que, enquanto escrevia a duas mãos o Monte Cristo, estava ao mesmo tempo redigindo La dame de Montsoreau, Le chevalier de Maison-Rouge, Les Quarente-cing e começava a publicar o romance de Pétion quando até o folhetim devia acabar (nem ele sabia como, interrompendo-se às vezes por seis meses) noJournal des Débats (estamos entre 1844 e 1846). Eis que assim se explicam aqueles que, em outra ocasião, chamei de “diálogos de empreitada”, onde os interlocutores, fazendo um parágrafo a cada fala, dizem-se durante uma ou duas páginas frases de puro relacionamento, como dois desocupados num elevador: então em vou, tudo bem, vai, então adeus, quando nos vemos?, talvez hoje à noite, espero que sim, posso ir?, fique à vontade, está com pressa?, bom dia, obrigado por tudo, então eu vou, vai, adeus. E creio que valha a pena degustar esta amostra textual dos
Mosqueteiros: —
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disse d' Artagnan —, não, confesso-o, não foi o acaso que me pôs vi uma mulher bater à porta de um amigo meu...
no vosso caminho; —
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De 'um amigo seu? interrompe Mme. Bonacieux. Certamente; Aramis é um dos meus melhores amigos. Arâmis? Que é isso? —
Ora! Quereis dizer-me que não conheceis Aramis? Ea primeira vez que ouço pronunciar esse nome. Mas então é a primeira vez que vindes a esta casa? Certamente. não sabíeis que era habitada por um jovem? Não. Por um mosqueteiro?
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Realmente não. Então não era ele que vínheis visitar? Nem por sonho. Como viu, a pessoa com quem falei é uma mulher. É verdade; mas essa mulher é uma amiga de Aramis. Nadaseisobreela.
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—Moracomele. Isso não me diz respeito.
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depois me deixareis? Sim. Ides espionar-me na saída? Não. Palavra de honra? Palavra de cavalheiro. Certo, segurai meu braço e vamos.
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Mas quem é? Oh! Este não é um segredo meu. Cara Mme. Bonacieux, sois fascinante; mas ao mesmo tempo sois a mulher mais misteriosa... E perco com isso? Não; soistadorável. Então, dã-me o braço. Com muito prazer. E agora? Agora me acompanhe. Aonde? Aonde preciso ir. Mas onde ides? Vereis, já que me deixareis na porta. Será preciso esperar-vos? Será inútil. Mas voltareis sozinha? —
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Talvez sim, talvez não. Mas a pessoa que vos acompanhará depois será mulher? Ainda não sei. Eu o saberei! De que modo? Esperar-vos-ei para ver-vos sair. —
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homem ou uma
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Sendo assim, adeus. Como?
Não preciso de vós. Não tínheis pedido... A ajuda de um cavalheiro e não a ajuda de um espião. A palavra é um tanto dura. Como se chamam os que seguem as pessoas contra sua vontade? Indiscretos. A palavra é muito branda.
Então vamos, senhora, vejo que é preciso fazer tudo o que quereis. Por que $os privastes do mérito de fazê-lo logo? Ninguéni pode se arrepender? E vós vos arrependeis mesmo? Nem eu mesmo sei. Mas o que sei é que vos prometo fazer tudo que quiserdes se me deixardes acompanhar-vos ao lugar aonde ides. —
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Para não falar da exigência, comum a todo romance de folhetim, até para recuperar os leitores desligados de um episódio a outro, de uma repetição obsessiva do já sabido, de modo que um personagem conta um fato na página 100, mas na página 105 encontra outro personageme lhe repete palavra por palavra a mesma história veja-se nos primeiros três capítulos quantas vezes Edmond Dantês conta a todos, indiscriminadamente, que pretende casar e é feliz: quatorze anos no castelo de If ainda é pouco para um chorão dessa especie. E também os equilibrismos metafóricos, coisa de circo, de uma velha avó esclerosada que não consegue manter a consecutio temporum... Por exemplo, há uma segiiência de semelhanças admirável (mas se poderia encontrar centenas) no capítulo sobre o telégrafo óptico (LXII), onde a velha torre sobre a colina, vetusta e desbeiçada, é comparada a uma velhinha: “On n'eàt pas dit, à la voir ainsi ridée et fleurie comme une aieule à qui ses petit-enfants viennent de souhaiter la fête, qu'elle pourrait raconter bien des drames terribles, si elle joignait une voix aux oreilles menaçantes qu'un vieux proverbe donne aux murailles.” Fica-se, pois, respeitosamente admirado com a velha e anônima tradução da editora Sonzogno que conseguia, num italiano magicamente consegiente, valorizar tanto a sintaxe, como as audácias do original, com a mesma falta de pudor: Si sarebbe deito, vedendola cosi ornata e fiorita come una bisavola di cui i suoi nipotini celebrano il giorno natalizio, che essaavrebbe potuto raccontare drammiassai terribili se avesse aggiunto la voce alle orecchie minaccevoli che un vecchio proverbio attribuisce alle muraglie”.* É inútil, oencaixar-se das metáforas é desajeitadamente delirante; o tradutor só pode render-se ao fascínio da impudência. —
Traduzir Monte Cristo Alguns anos atrás, a convite da Einaudi, eu aceitara traduzir o Monte Cristo. A idéia me fascinava. Tomar um romance cujas estruturas narra-
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*“Dir-se-ia, vendo-a tão enfeitada e florida como uma bisavó cujo aniversário é comemorado pelos netinhos, que ela poderia contar muitos dramas terríveis se tivesse unido a voz aos ouvidos ameaçadores que um velho provérbio atribui às muralhas.” 143
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tivas admirava e cujo estilo me horripilava, e tentar dar àquela estrutura um estilo mais rápido, ágil, mas (bem entendido) sem “reescrever”, sem cortar, respeitando Dumas. Mas se fosse possível fazendo o editor e o leitor economizarem algumas centenas de páginas. Que deveria fazer o tradutor para responder a um desafio de tal espécie? Se traduz ao pé da letra, a sua dignidade se rebela, a mão hesita em repetir sem motivo a mesma palavra, a mesma expressão pré-fabricada, poucas linhas depois; o tédio exigiria que pulasse, enxugasse, encurtasse. O respeito pela magistral construção narrativa, do qual já se falou, aconselharia cortar onde parece evidente que a divagação não tem nenhuma função. Tanto é sabido, que a parte central (“Roma”, entre a inicial de “Marselha” e a final de “Paris”) existe só porque fazia parte de uma série de anotações de uma viagem à Itália, que depois Dumas refundiu nesta obra; e é longa assim porque, de acordo com suas primeiras intenções, deveria ser a parte inicial, e por conseguinte era lógico que fosse mais prolixa, uma espécie de ouverture; e somente depois Maquet faz Dumas entender que, ao contrário, se devia tirar o máximo partido narrativo da história de Dantês jovem, perseguido, prisioneiro, fugitivo. Por acaso Dumas não era um autor que trabalhava em colaboração? E por que não, então, em colaboração com um seu tradutor cem anos depois? Dumas, por acaso não era artesão pronto a modificar seu produto de acordo comi as exigências do mercado? E se o mercado agora lhe pedisse uma história mais enxuta, não seria ele o primeiro a autorizar cortes, encurtamentos, elipses? O tradutor pode agilizar, ajudar o leitor a seguir mais velozmente os acontecimentos, quando, por instinto, percebe que a lentidão, os jogos de palavras, não têm nenhuma função, nem conservam ares da época. Um problema de ritmo, de fôlego, que Dumas teria resolvido se, querendo escrevero Monte Cristo talcomo é, depois de ter achado que nada deveria ser eliminado, soubesse, entretanto, que receberia um pagamento extra por cada palavra economizada. Um exemplo. O texto original diz: —
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Strappô macchinalmente, uno dopo Ialtro, i fiori di um magnifico arancio; quando ebbe finito si rivolse a un cactus, il quale, di carattere pid difficile, lo punse oltraggiosamente.*
Mesmo a olho nu, nota-se a economia obtida: seja como for, são-vinte e nove palavras italianas contra as quarenta e duas francesas. Mais de
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Danglars arrancou maquinalmente, uma depois da outra, as flores de uma magnífica laranjeira; quando acabou coma laranjeira, dirigiu-se a um cacto, mas então o cacto, de um temperamento menos fácil do que a laranjeira, picou-o acintosamente.
* Arrancoy maquinalmente, uma depois da outra, as flores de uma magnífica laranjeira; quando acabou, dirigiu-se a um cacto, O qual, de temperamento mais difícil, picou-o acintosamente.
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Danglars arracha machinalement, et Iune aprês Pautre, les fleures d'un magnifique oranger: quand il eutfini avec |" oranger, ils'adressa à un cactus, mais alors le cactus, d'un caractêre moins facile que 1oranger, le piqua outrageusement.*
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A tradução em italiano, sem nada perder, nem mesmo o honesto sarcasmo que permeia o trecho, pode muito bem dizer:
vinte e cinco por cento de economia. Não se trata de ganhar espaço, mas de tornar a leitura mais ágil, de saltar, de fato, o que o leitor automaticamente salta com os olhos. E nisto somos ajudados pelas redundâncias, que o francês impõe e o italiano evita, às vezes como regra e frequentemente como norma (por exemplo, muitos sujeitos, e os possessiyos), e também pelo fato de que certas expressões cerimoniosas, usuais tanto na língua como nos hábitos da sociedade francesa da época, devem desaparecer no italiano exatamente por razões de fidelidade ao espírito do texto. Para dar um exemplo, um agradecimento num diálogo entre duas pessoas de baixa condição social soa em francês como “merci, monsieur”, mas em italiano deve tornar-se um simples “grazie”, porque um “grazie signore” nos faria suspeitar de uma relação de subserviência que não está nas intenções do autor nem nas conotações da língua. Poderse-ia objetar que esse fenômeno se verifica em toda tradução italiana de qualquer texto francês: mas num livro como este, onde se abusa dos “merci, monsieur” pelas razões já expostas, a economia conta, e influi na legibilidade. Ou mesmo quando se encontra “comme pour le prier de le tirer de Vembarras obil se trouvait”, é óbvio que o embaraço do qual alguém quer ser retirado é aquele em que se encontra, e não outro, e então basta dizer “come per pregarlo ditrarlo d'imbarazzo”. Ouainda:“M. Morrel ne peut ceder son cheval, son honneur étant engagé à ce qu'il le garde”; onde, visto que mais cedo ou mais tarde explicam-se (longamente) os motivos desse compromisso, basta dizer: “M. Morrel non puô cedere il suo cavallo per motivi d' onore” Poder-se-iam citar os infinitos casos em que uma pessoa fala com outra, volta-se um momento para responder a um criado e, para retomar a conversa, é necessário que Dumas lembre que o personagem está voltando à conversa que, como o leitor sabe, estava desenvolvendo com o senhor fulano de tal e que acabara de interromper. Aqui talyez não se trate apenas do aspecto monetário, mas também de prever as interrupções do episódio, e lembrar aos leitores algo que, textualmente, acontece duas linhas acima, mas folhetinescamente talvez
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tenha sido lido alguns dias antes; por exemplo, entre dezembro de 44 de julho de 45, os episódios interrompem-se, porque o autor tem outros compromissos. Enfim, o tradutor se sentiria autorizado a melhorar o estilo quando estivesse claro que Dumas pecara por desmazelo sem que nada na economia do texto autorizasse, por exemplo, a repetição demasiadamente aproximada do mesmo adjetivo: por que se deve dizer que Villefort “épousait une jeune et belle personne”, repetindo duas linhas depois, a propósito da mesma moça, “outre sa beauté, qui était remarquable...”? Pode-se dizer na primeira vez que a moça era formosa, ou falar de formosura na segunda vez. Ainda mais que, algumas páginas adiante, o autor evidentemente num momento de graça sabe empregar num mesmo período, com hábil jogo retórico, “heureux” e “bonheur” e nesse ponto é o tradutor que corre o risco, se trabalha literalmente, de repetir a pouca distância “felice” e “felicitã”. Daí a decisão de considerar o sistema de adjetivação dumasiano totalmente casual, organizado de acordo com algumas macro-oposições de sentidos que contam (bonito/feio, feliz/infeliz, calmo/agitado, e assim por diante), oposições que podem ser conseguidas com substantivos e adjetivos ad libitum, com a dupla intenção de não atravancar o ritmo discursivo e de respeitar, na variedade lexical, a constância das grandes contraposições caracterológicas e —
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axiológicas. Tentei, e por quase cem páginas. Depois, confesso-o, me rendi. Rendi-me porque percebi que seria necessário prosseguir por duas mil laudas (a edição Garnier é de 1640 páginas) e porque me perguntei se a pomposidade, o desmazelo, as redundâncias não faziam parte da máquina narrativa. Teríamos gostado do Monte Cristo como gostamos se não o tivéssemos lido qs primeiras vezes nas suas traduções do século passado? q
Um romance bem escrito
Mas não basta. Em cima deste arcabouço desenvolve-se a representação da sociedade francesa dos cem dias e depois da monarquia de Luís Felipe, com os seus dândis, os seus banqueiros, os seus magistrados corruptos, as suas adúlteras, os seus contratos de matrimônio, as suas sessões parlamentares, as relações internacionais, os complôs de Estado, o telégrafo óptico, as cartas de crédito, os cálculos avaros e despudorados de juros compostos e dividendos, as taxas de desconto, as moedas e os câmbios, os almoços, os bailes, os funerais. E, sobre tudo isso, reina o topos, príncipe do folhetim, o superhomem. Mas, ao contrário de Sue (Os mistérios de Paris) e de todos os outros artesãos que tentaram este tipo clássico de romance popular, Dumas tenta uma desconexa e arfante psicologia do super-homem dividido entre a vertigem da onipotência (devido ao dinheiro e ao saber) e o terror do próprio papel privilegiado, resumindo, atormentado pela dúvida e trangiiilizado pela consciência de que a sua onipotência nasce do sofrimento. Por isso, novo arquétipo que toma corpo sobre outros, o conde de Monte Cristo (a força dos nomes) é também um Cristo, devidamente diabólico, que cai na tumba do castelo de If, vítima a ser imolada pela maldade humana, e de lá sai para julgar os vivos e os mortos, no fulgor do tesouro redescoberto séculos depois, sem nunca esquecer que éfilho do homem. Pode-se ser esnobe, crítico ferrenho, saber muito sobre
armadilhas intertextuais, mas se é envolvido no jogo, como no melodrama verdiano. Mélo e Kitsch, por falta de método, aproximam-se do sublime, enquanto a falta de método se transforma em genialidade. Redundâncias, certo, a cada passo. Mas poderíamos apreciar as revelações, as agnições em cadeia através dos quais Edmond Dantês se revela aos seus inimigos (e nós fremimos a cada uma, mesmo se já sabemos de tudo) se não interviesse, justamente como artifício literário, a redundância? Tentemos ler três episódios de revelação, para apreciar esse retomo igual, que a cada vez (confessamos) faz nossos cabelos se eriçarem, enquanto um suor gelado nos poreja a fronte. ao
Dito isso, é necessário voltar à afirmação inicial. Monte Cristo é um dos romances mais apaixonantes que já foram escritos. Num só golpe (ou numa rajada de golpes, num bombardeio cerrado), partindo da história insossa de Peuchet, consegue reunir no mesmo romance três situaçõespadrão capazes de fazer sofrer até mesmo um carrasco. Antes de mais nada, a inocência traída. Em segundo lugar, num golpe de sorte, a conquista, pela vítima perseguida, de uma fortuna imensa, que a coloca acima dos mortais comuns. Enfim, a estratégia de uma vingança na qual perecem os personagens que o romance se empenhou desesperadamente em tornar odiosos além dos limites da razão.
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—Mey Deus!
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exclamou Villefort, entrando, com espanto no rosto.
não é a voz do abade Busoni? —
Esta
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(6) abade arrancou a falsa tonsura, sacudiu a cabeça e seus longos cabelos negros, deixando de ser comprimidos, cafram-lhe sobre os ombros e rodearam seu rosto pálido. Este é o rosto do senhor de Monte Cristo! gritou Villefort, com o olhar transtornado. —
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|onge. Não é tampouco isto, -—
senhor procurador do rei, procura melhor e mais
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Esta voz! Esta voz! Onde já a ouvi?
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OQuviste-a em Marselha, há vinte e três anos, no dia do teu casamento com
mademoiselle de Saint-Méran. Procura nos teus reg istros. é
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Não és Busoni? Não és Monte Cristo? Meu Deus, és aquele inimigo oculto, implacável, mortal!...sem dúvida eu fiz alguma coisa contra ti em Marselha; oh! obre de mim! ? Sim, tens memória — disse o conde, cruzando os braços sobre peito largo. —
o terno e o colete; vestiu a jaqueta de marinheiro, pôs um chapéu de homem do mar sob o qual soltaram-se os seus longos cabelos. Voltou assim, horroroso, implacável, caminhando de braços cruzados ao encontro do general que o esperava e que, ouvindo os seus dentes rangirem e as suas pernas se dobrarem sob ele, recuou logo, e só parou encontrando numa mesa um ponto de apoio para sua
mão.
—
Procura, procura. Mas que te fiz então? gritou Villefort, cuja mente já oscilava entre a razão e a demência, numa névoa que já não era nem sono nem vigília. Que te no
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—
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ão?
Diz!
Fala!
e aço me condenaste a uma morte lenta e asquerosa, mataste meu pai, me tiraste o amor corta liberdade e a felicidade 2 és então? Meu Deus! com o amor. Quem
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Sou
—
toaro de um desgraçado que enterraste nos cárceres do castelo de
If. Neste espectro finalmente saído de sua tumba o céu pôs
a máscara do conde de Monte Cristo, e o recobriu de diamantes e de ouro para que só hoje o
reconhecesses. Ah! Reconheço-te! —disse o procurador dorei. Tués... Eu sou Edmond Dantês! Tués Edmond Dantês! gritou o procurador do rei segurando firmemente .
—
—
Fernando! gritou ele — dos meus cem nomes eu só precisaria de um para fulminar-te; mas este nome tu o adivinhas, não é verdade? Ou melhor, tu te lembras dele, porque, apesar de todos os meus desgostos, de todas as minhas torturas, hoje te mostro um rosto que deves ter visto muitas vezes nos teus sonhos depois do feu casamento. ..com Mercedes, minha noiva! O general, de cabeça baixa, com as mãos tensas, o olhar fixo, devorava em silêncio aquele terrível espetáculo: contudo, apoiado às paredes, arrastou-se lentamenté até o umbral da porta por onde saiu deixando escapar este grito lúgubre, lámentoso, lancinante: Edmond Dantês! Então, com suspiros que nada tinham de humano, arrastou-se até o peristilo da casa, atravessou o pátio como um homem bêbado, e caiu entre os braços do seu criado murmurando apenas com voz ininteligível: —
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Paracasa! Paracasa!
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o conde pelo pulso.
Então vem! E arrastou-o pela escada, através da qual, espantado, Monte Cristo o seguiu, ele mesmo ignorando para onde o procurador do rei o conduzia, prevendo alguma nova catástrofe. Observa! Edmond Dantês disse, mostrando ao conde o cadáver de sua mulher e o corpo de seu filho. Observa! Vê, estás bem vingado! Monte Cristo empalideceu diante daquele horrível espetáculo; compreendeu que tinha exagerado os direitos de vingança; compreendeu que não podia mais dizer: Deus é por mim e comigo. —
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Oh! gritou o general, golpeado por estas palavras oh! miserável que me censuras a minha vergonha talvez no instante em que estás por matar-me! Não, —
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não te mandei ficar desconhecido; bem sei, demônio, que tu penetraste na noite do passado, e que leste, à luz de que archote, ignoro-o, todas as páginas da minha vida; mas talvez eu tenha agora mais horror no meu opróbrio do que tusobas tuas
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pomposas aparências. Não, não, eu te sou conhecido, sei, mas és tu quem aa não conheço, aventissiro recoberto de ouro e de gemas | Tu, em Paris, te fizeste chamar conde dejMonte Cristo; na Itália, Simbad o marinheiro; em Malta, que sei eu? Mas é teu vetdadeiro nome que pergunto, é teu nome verdadeiro que quero saber, entre os teus cem nomes, para que eu o pronuncie no campo de combate, no instante em que te enterrar minha espada no coração. Monte Cristo empalideceu de modo terrível, o seu olhar ameaçador incendiou-se, correu para o seu quarto e, em menos de um segundo, tirou a gravata,
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À caminho, a frescura do ar, e a vergonha que lhe causava a consciência de sua inferioridade, puseram-no em condições de ordenar suas idéias; e o trajeto foi curto, e à medida que se aproximava da sua casa, o conde sentia renovarem-se todas as suas angústias. A poucos passos de casa mandou parar e desceu. A porta do palácio estava aberta em toda sua extensão; um coche de aluguel, estupefato por ter sido chamado àquela magnífica mansão, estava no meio do pátio; ó conde olhou para o coche com terror, mas sem ter coragem de interrogar quem quer que fosse, e arremessou-se em direção aos seus aposentos. Duas pessoas desciam a escada; só teve tempo de arrojar-se numa saleta para evitá-las. Era Mercedes, apoiada no braço de seu filho, que juntos abandonavama casa. Passaram rente ao desgraçado que, escondido atrás da cortina de damasco, foi tocado, memo assim, pelo vestido de seda de Mercedes, e sentiu o tépido hálito destas palavras pronunciadas por seu filho: Coragem, minha mãe! Vem, vem, aqui nós não estamos mais em nossa —
casa, se
!
As palávras se extinguiram, os passos distanciaram-se. O general endireitoufirmando-se com as mãos na cortina de damasco; reprimiu o mais horrível
soluço que, alguma vez tivesse saído do peito de um pai, abandonado ao mesmo tempo pela mulher e pelo filho. Logo ouviu bater a portinhola do coche, depois a voz do cocheiro, depois a pesada viatura fez ribombar os vidros; então correu ao seu quarto para olhar mais uma vez tudo o que amara no mundo; mas o coche
partiu sem.que a cabeça de Mercedes ou a de Alberto aparecessem na janelinha para lançar à casa solitária, para lançar ao pai e ao marido abandonado o último olhar de despedida e de pesar, ou seja, de perdão. Assim, no mesmo instante em que as rodas da carruagem ribombavam sobre o calçamento da curva, um tiro 149
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ecoou e uma tétrica fumaça saiu por um dos vidros da janela do quarto, quebrado pela violência daquela explosão.
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dede
Afinal te arrependes? perguntou uma voz cavernosa e solene, que fez os cabelos se arrepiarem na cabeça de Danglars. Seu olhar enfraquecido tentou distinguir os objetos e viu, atrás do desterrado, um homem envolto numa capa. E de que devo arrepender-me? balbuciou Danglars. De todo mal que fizeste respondeu a mesma voz. Oh! Sim, arrependo-me! gritou Danglars. Então te perdôo disse o homem, tirando a capa e dando um passo à frente para fazer-se reconhecer. O conde de Monte Cristo! disse Danglars, mais pálido pelo terror do que há poucos momentos estava pelos sofrimentos. Enganas-te: eu não sou o conde de Monte Cristo. Quem és então? Sou aquele que vendeste, denunciaste, desonraste; sou aquele cuja noiva —
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num período de duzentas ou trezentas páginas, a obra teria ainda o seu efeito, conseguiria arrastar-nos até onde, na ânsia, saltam-se as páginas e as descrições (saltam-se, mas sabe-se que existem, acelera-se subjeti-
vamente, mas sabendo que o tempo narrativo é objetivamente dilatado)? Descobre-se assim que as horríveis intemperanças estilísticas são, sim, “cunhas”, mas tais cunhas têm um valor estrutural, como as barras de grafite nos reatores nucleares, diminuem o ritmo para tornar as nossas esperas mais lancinantes, as nossas previsões mais arriscadas. O romance dumasiano é de uma máquina produzir agonia, e não importa a qualidade dos estertores, importa a sua duração. E uma questão de estilo, a menos que o estilo narrativo não tenha nada a ver como estilo poético, ou epistolar. Le grand Meaulnes, de Alain Fournier, é indubitavelmente muito mais bem escrito do que o Monte Cristo, mas alimenta a fantasia e a sensibilidade de poucos, não é imenso como o Monte Cristo, não é tão homérico, não se destina a nutrir com igual vigor e duração o imaginário coletivo. É só uma obra de arte. O Monte Cristo, ao contrário, nos diz que se narrar é uma arte, as regras
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desta arte são diferentes das dos outros gêneros literários. E que talvez se possa narrar, e fazer grandes narrativas, sem fazer necessariamente o que a sensibilidade moderna chama de obra de arte.
Existem epopéias mal feitas, que não executam uma obra perfeita, mas um rio lamacento. Pode ser que não satisfaçam às regras da estética, mas satisfazem à função fabuladora, que talvez não seja assim tão diretamente ligada à função estética. Desconexas como uma série de mitos bororos, reescrevíveis como o ciclo bretão e por isso pouco importa se no Monte Cristo é mais importante a mão de Dumas ou a de Maquet. Monte Cristo é falso e mentiroso como todos os mitos, verdadeiros em sua verdade visceral. Capaz de apaixonar até quem conhece as regras da narrativa popular e percebe quando o narrador prende seu público ingênuo pelas vísceras. —
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Porque se percebe que, se existe manipulação, o gesto manipulador diz sempre alguma coisa sobre a fisiologia das nossas vísceras: e, portanto, uma grande máquina da mentira, de algum modo, diz a verdade. nos
E eis que a esta altura surgem dúvidas preocupantes. Se Dumas tivesse sido pago não por linha a mais ou linha a menos, e tivesse abreviado, Monte Cristo ainda seria a máquina romanesca que é? Se fosse resumido, se a condenação, a fuga, a descoberta do tesouro, a reaparição em Paris, a vingança, aliás as vinganças em cadeia, acontecessem todas 7
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prostituíste! Sou aguele que oprimiste para criar tua fortuna; sou aquele cujo pai, que te havia condet-ado a morrer de fome, mataste, e que todavia te perdoa, porque precisas de perdag: sou Edmond Dantês! Danglars soltou um grito e caiu prosternado. Levanta-te disse o conde, tua vida está salva. A mesma sorte não cabe aos teus dois cúmplices: um está louco, o outro morreu! Fica com os cinqiienta mil francos que te restam, faço-te presente deles; quanto aos teus cinco milhões roubados nos albergues, já foram restituídos por mão desconhecida. Agora bebe e come; esta noite serás meu hóspede. Vampa, quando ele se recuperar, seja logo libertado. Danglars permaneceu ainda prostrado, enquanto o conde se afastava; quando levantou a cabeça, viu apenas uma espécie de sombra que desaparecia no corredor, e diante da qual os desterrados se inclinavam. Como conde ordenara, Danglars foi servido por Vampa, que mandou trazerlhe o melhor vinho e os mais belos frutos da Itália e que, tendo-o feito até mesmo subir na suadiligência, deixou-o na estrada, apoiado a uma árvore; ele lá ficou até o amanhecer, ignorando onde estava. Ao amanhecer, percebeu que estava perto de um riacho; tinha sede e arrastou-se até ele. Ao abaixar-se para beber, notou que seus cabelos tinham ficado brancos.
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1. Se nos atemos aos escritos dos teóricos do romance policial (por exemplo, às regras ditadas por S.S. Van Dine) os Seis problemas para don Isidro Parodi, de Borges e Casares, parecem totalmente “heréticos”. Foi dito que constituem uma paródia de Chesterton o qual, por sua vez, fazia uma paródia do gênero policial clássico, de Poe em diante. Recentementeo Ouvroir de Littérature Potentielle, de Paris, redigiu uma matriz das situações policiais já excogitadas (o assassino é O mordomo, o assassino é o narrador, O assassino é O policial, etc.) e descobriu que ainda não foi escrito um livro no qual o assassino seja o leitor. Pergunto-me se isso (fazer o leitor descobrir que o culpado é ele, ou melhor, somos nós) não é a solução que todo grande livro realiza, desde Édipo Rei até os contos de Borges. Mas é certo que Borges e Casares, em 1942, haviam individuado um lugar vago na tábua de Mendeleiev das situações policiais: o detetive é um prisioneiro. Ao invés da solução externa de um delito cometido num quarto fechado, eis, saída de um quarto fechado, a solução de uma série de delitos cometidos fora. O
ideal de um detetive que resolve o caso na própria mente, com base
em poucos dados fornecidos por alguém, está sempre presente na tradição
policial: pense-se em Nero Wolfe, de Rex Stout, quem Archie Goodwin traz notícias, mas que nunca sai de casa, deslocando-se com lentidão do seu escritório até a estufa das orquídeas. Mas um detetive como Isidro Parodi, que não pode sair da própria cela, e a quem as notícias são sempre trazidas por imbecis incapazes de compreender a sequência dos acontecia
mentos a que assistiram, é sem dúvida o resultado de um notável tour de
force narrativo. Os leitores têm a impressão de que, como don Isidro zomba dos seus clientes, também Biorges (como foi denominada a excepcional dupla 155
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—
VON NON SNNINNSNNSNNS NNSN N NS s
Bioy-Jorge) zomba dos próprios leitores
—
e que nisso, e somente nisso,
resida o interesse de tais contos. Como se originaram, já é assunto (ou história) conhecido, e melhor do que ninguém nos conta Emir Rodriguez Monegal na sua monumental biografia de Borges.! Mas deixemos a palavra com Borges, transcrevendo do seu Ensaio autobiográfico:?
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vez que aparece numa novela do livro, Montenegro surge como um Como é possível então dar-lhe ouvid -
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Estarçs tam
coefEo a e pomposa retórica vidos, quando louva com tanto acadêmi no Das adoxo de Epimênides c retense; adêmica, todos Os os seus cret autores? sa
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mentirosos, diz Epimênide: s, mas como dar-lhe ouvid. e Ep cretense e por conseguinte mentiroso? (A propósito mapa naquela ocasião parece ter sido inventado por B E meuela p orges, um tal Paolo di ia E Ê a carta a Tito cita o dito de Epimênides como fonte autorizada a j natureza mendaz dos cretenses porque—acentua—- se ele, que etense e conhece os cretenses, no-lo diz, devemos acreditar ) i
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Nesses casos sempre se presume que o homem mais velho é o mestre e o mais novo, seu discípulo. Isto talvez tenha sido correto no começo, mas vários anos mais tarde, quando começamos a trabalhar juntos, Bioy era real e secretamente o mestre. Ele é eu tentamos muitas diferentes aventuras literárias. Compilamos antologias de poesia argentina, contos do fantástico € histórias de detetives; escrevemos artigos e prefácios; anotamos Sir Thomas Browne e Gracián; traduzimos contos de escritores como Beerbohn, Kipling, Wells e Lord Dunsany; fundamos uma revista, Destiempo, que durou três números, escrevemos roteiros cinematográficos que eram invariavelmente recusados. Opondo-se a meu gosto pelo patético, pelo sentencioso e pelo barroco, Bioy fez-me sentir que a serenidade e o comedimento são mais desejáveis. Se me permitirem uma afirmação generalizada, Bios !'evou-me gradualmente ao classicismo. Foi a certo pont» no início dos anos quarenta que começamos à escrever em colaboração um feito que até aquela época eu achava impossível. Eu inventara o que nós achávamos que fosse uma intriga muito boa para uma história de detetives. Numa manhã chuvosa ele me disse que devíamos fazer uma experiência com ela. Concordei relutante, um pouco mais tarde naquela mesma manhã aconteceu. Um terceiro homem, Honorio Bustos Domecq, apareceu é assumiu a direção. Com o tempo, governou-nos com mão de ferro e, para nosso divertimento, e depois para nossa consternação, tornou-se completamente distinto de nós, com seus próprios caprichos, seus próprios trocadilhos e seu próprio estilo, muito elaborado, de escrever. Domecq era o nome de um bisavô de Bioy, e Bustos de um bisavô meu, de Córdoba. O primeiro livro de Bustos Domecq foi Seis problemas para don Isidro Parodi (1 942), e enquanto escrevemos aquele volume ele nunca ficou fora de controle. Max Carrados tentara um detetive cego; Bioy e eu demos um passo adiante e confinamos nosso detetive a uma cela de prisão. O livro era ao mesmo tempo uma sátira da Argentina. Por muitos anos, à identidade dual de Bustos Domecq nunca foi revelada. Quando por fim o foi, as pessoas pensaram que, visto ser Bustos uma pilhéria, seus escritos dificilmente poderiam ser levados a sério.
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Por outro lado, o público argentino tinha outras razões para irritar-se, ou pelo menos para ficar perplexo. O livro traz também o prefácio de um dos seus personagens, Gervasio Montenegro. Ora, um personagem não deveria escrever o prefácio do livro que o gerará. Mas o que é pior, cada a
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Dito isto, parece que a essa altura existam bem poucas razões para reler hoje aqueles contos. Difícil captar as citações em gíria, difícil contentar-se com histórias policiais que são exatamente O contrário das verdadeiras histórias de detection... E então? Não é melhor ler diretamente as enormes histórias de detection (ou falsa detection) de Ficções, como A morte e a bússola? De fato, a primeira impressão do leitor que se aproxima das histórias de don Isidro é a de que, sem conhecer as incompreensíveis alusões das gírias e dos costumes, a charla dos vários personagens é totalmente insossa. A tentação é passar correndo por seus intermináveis monólogos, considerando-os como se fossem um comentário musical, para chegar logo ao fim, e apreciar a solução (injustificável) de don Isidro. Suspeitase, então, que essas histórias sejam a divertida solução de falsos enigmas, como acontece na conhecida historieta: Problema: o navio tem trinta metros de comprimento, o mastro principal tem dez metros de altura, os marinheiros são quatro. Quantos anos tem*o capitão? Solução: quarenta. (Explicação da solução: sei porque ele me contou).
Nada disso. Todos os seis contos observam umaregra fundamental da narrativa policial: todos os dados que O detetive usa para resolver o caso foram colocados à disposição do leitor. A charla dos personagens é plena de informações importantes. Diferencia-se das clássicas histórias de detection porque nestas,
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quando as relemos do início, depois de saber a solução, dizemos: “é isso mesmo, como é que não tinha notado esse detalhe?” Com as histórias de don Isidro, ao invés, o leitor relê e se pergunta espantado: “mas por que razão eu deveria dbtar esse detalhe em vez de outros? Por que don Isidro se deteve nesse contecimento ou notícia e tratou os demais como irrelevantes?” Releia-se por exemplo, e com atenção, a quarta estória, “Las previsiones de Sangiácomo”. O Comendador, uma noite após o jantar, afirma que tem na terceira gaveta da sua escrivaninha uma pumita, um pequeno puma de terracota. A mocinha de nome Pumita se espanta. Não existiria razão para destacar este fato como um indício. E natural que uma moça que se chama Pumita reaja com curiosidade à menção de uma pumita. Mais tarde don Isidro sabe por outro informante (e o leitor também toma conhecimento da informação) que o Comendador tinha na gaveta uma serpente de terracota. O que nos autoriza (o que autoriza don Isidro) a pensar que a serpente estivesse no lugar da pumita? Por que o Comendador não podia ter duas estátuas de terracota? Admitamos, porém, que esse indício autorize don Isidro a pensar que o Comendador 158
estivesse mentindo aquela noite (e dissesse que tinha uma pumita enentia de q an01naverdade, tinha para uma serpente). O que faz don Isidro pensar que ave p scobrir se Pumita tinha mexido na sua l
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Peirce observa que o raciocínio por Abdução é típico de todas as descobertas científicas “revolucionárias”. Kepler aprendeu com quem o precedeu que as órbitas dos planetas são circulares. Depois observa duas posições de Marte e destaca que estas tocam dois pontos (x e y) que não podem ser os dois pontos de um círculo. O caso é curioso. Não seria mais curioso se se admitisse que os planetas descrevem uma órbita que pode ser representada por um outro tipo de curva e se fosse possível verificar que xe y são dois pontos desse mesmo tipo de curva (não circular). Kepler deve então encontrar uma lei diferente. Poderia imaginar que as órbitas dos planetas são parabólicas, ou senoidais... Não nos interessa (aqui) saber por que ele pensa na elipse (tem suas razões). Então ele faz a sua
Abdução: se as órbitas dos planetas fossem elipsóides e as duas posições relevadas (xey) de Marte fossem um Caso desta lei, o Resultado não seria mais surpreendente. Naturalmente, a essa altura ele deve conferir a sua Abdução simulando uma nova Dedução. Se as órbitas são elípticas (se pelo menos a órbita de Marte é elíptica) deve-se esperar Marte num ponto z, que é um outro ponto da elipse. Kepler o espera e o encontra. Em linha de princípio, a Abdução está provada. Agora trata-se somente de fazer muitas outras averiguações e de provar se a hipótese pode ser adulterada.
Naturalmente, abreviei e resumi as fases da descoberta. O fato é que o cientista não tem necessidade de dez mil provas indutivas. Formula uma hipótese, talvez arriscada, muito parecida com uma aposta, e a põe à prova. Desde que a prova dê resultados positivos, venceu. Ora, um detetive não procede diversamente. Relendo as declarações de método de Sherlock Holmes descobre-se que quando ele (e com ele Conan Doyle) fala de Dedução e Observação, na verdade está pensando numa inferência semelhante à Abdução de Peirce. E curioso que Peirce tenha usado um termo como abduction. Ele o formulou emanalogia com Deduction e Induction (e referindo-se também a termos. aristotélicos). Mas não podemos esquecer que em inglês abduction significa “rapto”, “rapinagem” (O rapto do serralho, de Mozart, traduz-se para o inglês como The Abduction from the Serraglio). Se tenho um resultado curioso num campo de fenômenos ainda não estudado, não posso procurar uma Lei daquele campo (se existisse e eu a conhecgsse, o fenômeno não seria curioso). Preciso “raptar” ou “tomar emprestada” uma lei noutro lugar. Como vêem, devo raciocinar por analogia. Reconsideremos a abdução a respeito dos feijões brancos. Encontro um punhado de feijões sobre a mesa. Sobre a mesa há um saguinho. O que me diz que devo relacionar os feijões sobre a mesa com o saquinho? Poderia perguntar-me se os feijões vêm de uma gaveta, se foram trazidos i
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por alguém que depois foi embora. Se eu concentro a minha atenção no saquinho (e por que justamente naquele saquinho?) é porque na minha mente delineia-se uma espécie de “plausibilidade”, do tipo “ é lógico que os feijões provenham de saquinhos”. Mas nada há que me garanta que a minha hipótese é a correta. Todavia, muitas das grandes descobertas científicas acontecem assim, mas também muitas das descobertas policiais e muitas das hipóteses feitas pelo médico, para entender a natureza ou a origem de uma doença (e muitas das hipóteses do filólogo, para entender o que pode existir num texto, nos casos em que o manuscrito original é confuso e falho). Releiam (ou leiam) a segunda história de don Isidro. Tudo o que acontece a Gervasio Montenegro no trem pan-americano é curioso, estupefaciente, sem lógica... Don Isidro resolve o problema (os dados que conhece constituem um Resultado) inferindo que possa ser o Caso de uma Lei bem diferente, a Lei damise-en-scêne. Se tudo o que aconteceu no trem tivesse sido uma representação teatral na qual ninguém era realmente o que parecia ser, então a sequência dos acontecimentos não teria mais parecido misteriosa. Tudo teria sido claríssimo, elementar (caro Watson). E de fato o era. Montenegro é um fanfarrão, e apropria-se da solução de don Isidro coma frase: “A ha inteligência especuladora vem confirmar as geniais intuições do artista.” Mentiroso e larápio como é, diz contudo uma grande verdade: não há diferença (em nível máximo) entre a fria inteligência especuladora e a intuição do artista. Há alguma coisa de artístico na descoberta científica e há alguma coisa de científico no que os ingênuos chamam de “geniais intuições do artista”. O que existe em comum é a felicidade de Abdução. Mas para particularizar de modo “feliz” os dados relevantes da narrativa de Montenegro, era necessário já ter feito uma conjetura: que cada elemento da ocorrência fosse lido exatamente como elemento de uma mise-en-scêne. Por que don Isidro faz esta conjetura? Se conseguirmos explicá-lo, entenderemos alguma coisa, tanto da técnica da abdução como da metafísica de Borges. Existem pelo menos três níveis de abdução. No primeiro nível o Resultado é curioso e inexplicável, mas em algum lugar a lei já existe, talvez dentro daquele mesmo campo de problemas, e só é preciso encontrá-la, e considerá-la a mais provável. No segundo nível, é difícil particularizar a Lei. Existe noutro lugar, e é necessário apostar que possa estender-se também àquele campo de fenômenos (é o caso de Kepler). No terceiro nível, a Lei não existe e é preciso inventá-la: é o caso de Copérnico, que decide que o universo deve ser heliocêntrico por razões de simetria e de “boa forma”é 162
Poderíamos rever juntos a história das ciências, da detection policial, da interpretração dos textos, da clínica médica (e outros), destacando em que casos e como intervêm abduções de segundo e de terceiro tipo. Mas em todos esses casos, quando o detetive, ou o cientista, ou o crítico, ou o filólogo fazem uma Abdução, devem apostar que a solução que encontraram (o Mundo Possível da sua imaginação hipotética) corresponda ao Mundo Real. E por isso devem fazer outras averiguações e outras provas. Nos romances policiais, de Conan Doyle a Rex Stout, estas provas não O detetive imagina a solução e “diz” como se fosse a verdade: e imediatamente Watson, o assassino presente, ou qualquer outro, confirmam a hipótese. Dizem: “era exatamente assim!” E o detetive tem a certeza de ter adivinhado. Nos romances policiais o autor (que age no lugar de Deus) garante a correspondência entre o Mundo Possível imaginado pelo detetive e Mundo Real. Fora dos romances policiais as abduções são muito mais arriscadas e estão sempre expostas ao malogro. Ora, os contos de Borges são uma paródia do conto policial porque don Isidro não tem nem mesmo necessidade de al guém que lhe diga que as coisas eram como ele havia imaginado. Está absolutamente certo disso, e Borges-Casares com ele (e o leitor com eles). Por quê? são necessárias.
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4. Para termos certeza de que a mente do detetive reconstruiu à segiiência dos fatos e das leis tal como deviam ser, é necessário nutriruma profunda convicção spinoziana de que “ordo et connexio rerum idem est acordo et connexio idearum”. Os movimentos da nossamente que indaga seguem as mesmas leis do real. Se pensamos “bem””, somos obrigados a pensar segundo as mesmas regras que ligam as coisas entre si. Se um detetive se identifica com a mente do assassino, só pode chegar no ponto a que o assassino chega. Neste universo spinoziano, o detetive não é apenas aquele que compreende o que o assassino fez (porque não podia deixar de agir assim, se existe uma lógica da mente e das coisas). Neste universo spinoziano, o detetive saberá também o que o assassino fará amanhã. E irá esperá-lo no local do seu próximo delito. Mas se assim raciocina o detetive, assim também poderá raciocinar o assassino: que poderá agir de modo a fazer com que o detetive vá esperálo no local do seu próximo delito, só que a vítima do seu próximo delito será o próprio detetive.
Isto é o que acontece em“A morte envolventes.
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O universo de Borges é um universo no qual mentes diversas só podem pensar através das leis enunciadas pela Biblioteca. Mas esta Biblioteca é a de Babel. As suas leis não são as da ciência neopositivista, sãõas leis paradoxais. A lógica (a mesma) da Mente e a do Mundo são, airibas, uma ilógica. Uma ilógica rigorosa. Só nessas condições Pierre Menard pode reescrever o “mesmo” Don Quixote. Mas, ai de mim, somente nessas condições o mesmo Don Quixote será um Don Quixote diferente. O que tem de rigorosamente ilógico o universo de Borges, e que é que permite a don Isidro reconstruir com rigorosa ilógica os processos de um universo externo igualmente ilógico? O universo de Biorges funciona segundo as leis da mise-en-scêne, ou seja, da ficção. Releiam todas as seis histórias de don Isidro. Em cada um dos casos não temos acontecimentos ocorridos naturalmente, como acontece (assim aprendemos) na vida. Don Isidro descobre sempre que o que os seus clientes sofreram foi uma sequência de eventos planejados por uma outra mente. Ele descobre que eles já se moviam no quadro de um conto segundo as leis do conto, que eram personagens inconscientes de um drama escrito por alguém. Don Isidro descobere a “verdade” porque tanto ele, com a sua mente fértil, como os objetos das suas investigações, procedem segundo as mesmas leis da ficção. Esta me parece uma ótima chave para ler também as outras histórias de Borges. Nunca se está diante do caso, ou do Fato, está-se sempre dentro de uma trama (cósmica ou situacional) pensada por qualquer outra Mente, segundo uma lógica fantástica que é a lógica da Biblioteca. Eis o que eu queria dizer quando falava de mecanismo da conjetura num universo spinoziano doente. Naturalmente, “doente” em relação a Spinoza, não em rg:ação a Borges. Em relação a Borges, aquele universo no qual detetive e assassino se encontrarão sempre no final, porque ambos raciocinam segundo a mesma ilógica fantástica, é o universo mais são e mais verdadeiro de todos. Se estivermos convencidos disso, o modo de raciocinar de don Isidro Parodi não mais nos parecerá paradoxal. Don Isidro é um perfeito habitante do mundo (que está por vir) de Borges. E é normal que possa, da reclusão de uma cela, resolver todos os casos. A desordem e a desconexão das idéias é o mesmo que a desordem e a desconexão do mundo, ou seja, das coisas. É irrelevante que se pense em tudo isso no mundo, observando os fatos, ou fechado numa prisão, atentando para as ingênuas falsificações de observadores néscios. Aliás, uma prisão é melhor do que o mundo: a mente pode funcionar sem excessivos “rumores” externos. A mente, trangiila, funde-se com as coisas. 164
às coisas?
Ah, gentil leitor, estás me pedindo demais. Eu só queria te dizer que o don Isidro de Biorges é um personagem de Borges e que por isso vale a pena refletir sobre o seu método. Biorges não brinca. Ele está falando “seriamente”, isto é, através da Parodi-a. Se, afinal, o mundo é “realmente” assim, creio que Borges acolheria esta interrogação com um sorriso. Parafraseando Villiers de Visle Adam:
que tédio a realidade. Deixemos que nossos criados a vivam por nós.
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3. Peirce, €.S., Collected Papers, Harvard University Press, Cambridge, 1931-1958. 4. Para umasérie de estudos sobre relações entre a abdução de Peirce, o método de Sherlock Holmes, o método científico e a hermenêutica literária, cf. Eco, U. e Sebeok, T.A,, eds. 1! segno dei tre, Bompiani, Milão, 1983. o 5. Cf. Eco, U., “Guessing: from Aristotle to Sherlock Holmes”, Versus 30, 1981, pp. 3-19 além de Bonfantini, M. e Proni, G.P., “To Guess ornot to Guess?”, em 1 segno deitre, cit.
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andamento do mundo real, mas a narrativa realística ística joga com contrafac- | tuais do tipo “o que aconteceria se, num mundo biológica, cosmológica €"sócialmente semelhante ao normal, acontecessem eventos nã . verdade não aconteceram, mas que todavia não são contrários alógica?” 't PLS “Aniárrativa realística procede tál como nós agimos com oscontrafac-. tuais com os quais nutrimos a nossa existência cotidiana: “que me: aconteceria se neste momento interrompesse a redação deste ensaio e quebrasse o meu word processor?” O que distingue a narrativa fantástica da realística é, ao contrário, o 1 [ r Piaço
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Nesse sentido, a ficção científica não seria mais que uma forma moderna do romance, ou até mesmo do romance cavalheiresco, exceto que os castelos os dragões são substituídos por astronaves e monstros alienígenas. Mas podemos ampliar a tal ponto nossa definição do gênero science fiction sem falar de modo muito generalizado da essência da epopéia, do mito, do picaresco? É certo que, desde os tempos antigiíssimos delineou-se, contra uma narrativa rimam dita realística, uma narrativa que constrói mundos estrutuço —
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“mundo normal” o mundo no qual vivemos ou supomos viver, tal como no-lo define o senso comum ou a enciclopédia cultural da nossa época ainda que não seja dito (Berkeley ensina) que este mundo sejareal,eainda que freqiientemente achemos que seja bem pouco correspondente a uma norma qualquer Ora, um conto realístico é sempre construído sobre uma série de condiciuiais contrafactuais (que teria acontecido se no mundo real do século XIX francês tivesse existido também um indivíduo medíocre chamado Rastignac, ou que teria acontecido se um indivíduo possível chamado conde de Monte Cristo tivesse efetivamente alterado o curso da bolsa parisiense manipulando as transmissões de notícias através de um telégrafo óptico?). Os acontecimentos narrados “realis-
Pode imaginar que o nosso mundo seja realmente isto é, que aqui aconteçam coisas que geralmente não acontecem (que os animais falem, que existam os magos ou as fadas): ela constrói um mundo alternativo e afirma que é mais real do que o real tal pont e o leitor se ponto que entre as aspirações do narrador está a de que o leitor se convença de que o mundo fantástico é o único verdadeiramente real Aliás, típico da alotopia é que, uma vez imaginado o mundo alternativo, não nos interessam mais as suas relações com o mundo real, a não ser em termos de significação alegórica. -
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inacessível. E essa a forma que o conto utópico normalmente assume. tanto se a utopia é entendida no seu sentido de projeção, de representação de uma sociedade ideal, como acontece em Thomas More, como se é entendida em sentido caricatural, como deformação irônica da nossa realidade, como acontece em Swift. Este mundo pode ter existido antes ou pode existir num lugar remoto do espaço. Geralmente constitui o modelo dé como deveria ser o mundo real.
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3, Ucronia'— A utopia pode transformar-se ucronia, onde contrafactual seguinte forma: “que teria acontecido que em
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a sua decoração, ou seja, o quanto nele acontece espelho para as nossas esperanças ou para as nossas desilusões. A ficção científica, porém, quando fala de mundos paralelos, está máis interessada nas possibilidades cosmológicas deles (e nos seus consequentes paradoxos) que nos Tespectivos conteúdos. Tanto é verdade as utopias clássicas prevéem um só mundo paralelo, enquanto a ficção científica interessa-se por uma pluralidade em ação de mundos paralelos e pela possibilidade de passar de um ao outro (veja-se, por exemplo, Frederick Brown, What Mad Universe). E, como a condição para explicar essas possibilidades cosmológicas está sempre ligada, de algum modo, à natureza àhtecipadora do conto. A possibilidade é dada pela extrapolação de uia lei —
realmente aconteceu tivesse acontecido de modo diferente por exemplo, se Júlio Cesar não tivesse sido assassinado nos idos de março?” Temos ótimos exemplos de historiografia ucrônica usada para melhor entender os acontecimentos -que produziram a história atual.
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4. Metatopia e Metacronia Enfim, o mundo possível representa uma fase futura do mundo real presente: e por mais que seja estruturalmente diverso do mundo real, o mundo possível é possível (e verossímil) exatamente porque as transformações a que foi submetido nada fpuruvio mais fázém do que completar as linhas de tendência do mundo real. DeVE PoSSiMitO finiremos este tipo de literatura fantástica como romance de antecipação, AN UCAÇÃO “é nos serviremos desta noção para definir de modo mais córreto a ficção científica. —
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Não nego que existem histórias ditas de ficção científica que, de», gal cmmetmamã algum modo, funcionam como as histórias do primeiro tipo (alotópicas), SAS ou seja-comoasfábulas: Em que talvez se façam fábulas sobre um mundo futuro, etalvez ar:á ureza desse mundo se apresente como a conseqiiência $7,'ét. remota de quante contece em nosso mundo, mas em que, entretanto, O Pe Ao que interessa é o esiado alucinado e alucinador do mundo descrito. Trata- po se de histórias nas quais não interessa tanto estabelecer de que modo tal: Alosofiá mundo tenha se tornado possível, mas o que acontece naquele mundo. , Nesse sentido, fala-se de space opera ou de histórias à bug-eyed mons- , ters, é temos uma versão quase science fiction da novela neogótica, A | história vive num mundo antecipado, certamente, mas não há reflexão Ê sobre antecipação ém.si. Diante de histórias do género, basta perguntar- | nos se o que acontece não poderia acontecer também na Earthsea da trilogia de Ursula le Guin (que não é ficção científica, embora seja um f esplêndido romance) e eis que temos uma linha de distinção para concluir que não nos encontramos diante de genuína ficção científica. Igualmente existem histórias ditas de ficção que pertencem fa nossa segunda categoria, isto é, ao conto utópico. Existe, claro, uma VTaIfi / ficção científica dos mundos paralelos. Mas creio que exista um modo de Ed definir se uma história de mundos paralelos é ficção científica ou não. Na Ci a Pub ! ficção científica, o mundo paralelo é sempre justificado por rasgos; ! desfiamentos no tecido espaço-temporal, enquanto na utopia clássica ele é simplesmente um não-lugar dificilmente identificável, um cantinho remoto (talvez passado e desapercebido) do nosso próprio mundo físico. De fato, neste tipo de narrativa utópica não interessa tanto a colocação é “a própria possibilidade cosmológica do mundo possível narrado quanto pa
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E mais, temos bons exemplos de ficção científica ucrônica, nos quais. não só em virtude de determinada descoberta científica pode-se revisitar o passado, mas onde é possível modificar as linhas de força, com todos os paradoxos que disso resultam. Mas eu diria que quando a science
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fiction toma-se historyfiction (e me lembro de um romance cujo protagonista, projetado no passado, transformava-se em Leonardo da Vinci), o que interéssa à ficção científica não é tanto a história modificada quanto a mecânica da sua modificação, ou seja, a possibilidade cosmológica da viagem em retrocesso, o problema “científico” de como projetar a história possível partindo de linhas de tendência do mundo atual.
Temos science fiction como gênero autônomo quando a especulação contrafactual de um mundo estruturalmente possível é conduzida extrapolando, de algumas linhas de tendência do mundo real, a possibilidade mesma do mundo futurível. Ou seja, a ficção científica assume sempre a forma de uma antecipação, e a antecipação assume a forma de real. uma conjetura formulada a partir de linhas de tendência reais do mundo
termo “ciência”. ou seja, que não devemos somente pensar em conjeturas concementes às ciências físicas, mas também às ciências humanas, como a sociologia ou a história ou a lingiistica. Podemos ter bons contos de ficção científica sociológica (como The Space Merchants, de Pohl e Kormbluth) ou de ficção científica lingiiística (como Shall we have a Little Talk, de Sheckley) onde o leitor não fica raciocinando com sutilezas sobre a verossimilhança dos artifícios tecnológicos (astronaves ou seja lá o que for) tomados como pretexto para justificar a viagem a um determinado lugar, as possibilidades de um certo desenvolvimento científico: o que interessa é que um certo desenvolvimento social ou lingiiístico sejam de alguma forma conjeturalmente verossímeis. 5
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Como resolveríamos, a esta altura, a diferença entre homem e deus? Para fazê-lo seria necessário voltar à figura 2 e teríamos perdido de novo a possibilidade de distinguir o homem do cavalo. A única alternativa é que a diferença “mortal/imortal” ocorra duas vezes, uma, sob “animal irracional”, como aparece na figura 4: |
Este tipo de divisão sugere duas interessantes consegiiências: a) as propriedades registradas não são exclusivas de uma só disjunção mas ocorrem em mais partes da árvore; b) uma dada espécie (por exemplo dois, três ounove) pode ser definida pela conjunção de mais propriedades entre as supracitadas. Estas propriedades são, de fato, diferenças. Assim Aristóteles mostra não só que muitas diferenças podem ser atribuídas a uma mesma espécie, mas também que a mesma dupla de diferenças divisivas pode ocorrer em diversos gêneros. E mais, ele mostra também que, uma vez que uma certa diferença revelou-se útil para definir sem ambigiiidades uma certa espécie, não é importante levar em consideração todos os outros objetos dos quais é igualmente predicável. Em outros termos, uma vez que uma ou mais diferenças serviram para definir o número três, é irrelevante que estas sirvam igualmente bem, mesmo em outras combinações, para definir o número dois. Para uma clara e inequívoca determinação deste ponto, veja-se Analíticos segundos (II, XII 97a 16-25).
Agora já podemos tentar dar um passo adiante. Uma vez dito que, dados alguns gêneros subordinados, nada os impede de ter as mesmas diferenças, e como a árvore das substâncias é completamente constituída de gêneros, todos subordinados ao gênero máximo, é difícil dizer quantas vezes o mesmo par de diferenças pode ocorrer. 329
SIS NS
NO substância
Muitos comentaristas medievais da /sagoge parecem encorajar as nossas suspeitas. Boécio (In Is. C.S.E.L.: 256.10-12€e 266.13-15) escreve que “mortal” pode ser uma diferença de “animal irracional” e que a espécie “cavalo” é constituída pelas diferenças “irracional” e “mortal”.
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imortais (e assim também para as outras diferenças concebíveis). Se a diferença “mortal/imortal” ocorresse numa única parte da árvore, “mortal” e /homem/ seriam intercambiáveis, por conseguinte não teríamos que lidar com uma diferekiça, mas com uma propriedade. Existem mais seres mortais do que homens, justamente porque este par de diferenças ocorre também em outros gêneros. E eis por que, como Aristóteles sabia (Tópicos VII 144225), homem é intercambiável com toda a definição, mas não com os seus elementos isolados: não com o gênero (“animal racional”), porque o gênero tem uma extensão maior do que a espécie, e não com a diferença porque (embora de modo diverso) a diferença também tem uma extensão maior do que a espécie. Existem mais seres mortais do que animais racionais. Mas o problema a enfrentar agora diz respeito exatamente à natureza ambígua da maior extensão da diferença em relação à espécie que a constitui. Abelardo, na sua Editio super Porphyrium (157v 15) sugere, também ele, que uma determinada diferença seja predicada de mais de uma espécie: “falsum est quod omnis differentia sequens ponit superiores, quia ubi sunt permixtae differentiae, fallit”. Então: a) a mesma diferença compreende muitas espécies, b) o mesmo par de diferenças pode ocorrer em diversos gêneros, c) diversos pares de diferenças verificadas em diversos gêneros podem, entretanto, ser expressos (analogicamente) pelos mesmos nomes, d) permanece pendente em que altura da árvore está o gênero comum em relação ao qual muitos são os gêneros subordinados que abrigam o mesmo par de diferenças. Por conseguinte, estamos autorizados a repropor a árvore de Porfírio segundo o modelo da figura 6: sd cd é
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animada (vivente)
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(homem)
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Ele sugere também que “imortal” pode ser uma diferença válida para os corpos celestes que são tanto inanimados como imortais: “Neste caso, a diferença imortal é partilhada por espécies que diferem entre si não só por gênero próximo, mas por todos os gêneros até o gênero subalterno que ocupa o segundo lugar no topo da árvore” (Stump, 1978: 257). A-suspeita levantada por Boécio é, segundo Stump, “surpreendente” e “desconcertante”: pelo contrário, é de todo razoável. Tanto Aristóteles quanto Boécio sabiam que a diferença é maior do que o próprio objeto, ou seja, tem uma extensão mais vasta, e isto é possível só porque os “homens não são os únicos a serem mortais ou os deuses os únicos a serem
incorpórea Q)
corpórea (corpo)
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2.4 Uma árvore só de diferenças
2) (2) irracional racional mortal (bruto)
imortal (M)
Figura 6
Esta árvore apresenta características interessantes: a) permite a representação de um universo possível no qual podem ser previstos e colocados muitos gêneros naturais ainda desconhecidos (por exemplo, algumas substâncias incorpóreas, animadas mas irracionais); b) mostra que o que estávamos habituados a considerar como gêneros e espécies (aqui representados em itálico, entre parênteses) são simples nomes que rotulam grupos de diferenças; c) não é regida por relações de hipônimos a hiperônimos: nesta árvore não se pode estabelecer que, se alguma coisa é mortal, logo é racional, ou que se é irracional, logo é um corpo, e assim por diante; d) como consegiiência de c), ela pode ser reorganizada continuamente, segundo as diversas perspectivas hierárquicas entre as diferenças que a constituem. No que diz respeito à característica a), vimos o que Boécio dizia sobre os corpos celestes. No que concerne à característica b), está claro que esta *
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árvore é composta de puras diferenças. Gêneros e espécies são só nomes que damos aos seus ramos. Boécio, Abelardo e outros pensadores medievais eram obceliados pelo problema da penuria nominum, ou seja, pelo fato de que não “xistiam à disposição suficientes itens lexicais para etiquetar todos os ramos (caso contrário se teria encontrado outra expressão em vez de “animal racional”, que, como se vê, é citado repetindo o nome do gênero próximo e o da diferença específica). Admitamos que a queixa dos medievais se deva a razões empíricas: dado que na sua experiência (como na nossa) nunca se tinha encontrado outros animais
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racionais senão o homem (sob a forma de força natural) e o deus, cuja ligação através de um gênero comum não era certamente intuitiva e não podia, portanto, ser registrada pela linguagem, eis explicada a origem acidental daquele caso de penúria. Olhando mais atentamente, não há razão alguma para que devesse existir um nome para aquele ramo superior resultante da conjunção do gênero “vivente” com a diferença “sensível”, e o raciocínio poderia repetir-se para todos os ramos superiores. Na realidade, os nomes dos gêneros são insuficientes porque eles são inúteis: um gênero rtada mais é do que uma conjunção de diferenças. Aristóteles não tinha catalogado as espécies entre os predicáveis porque a espécie é o resultado da conjunção de um gênero com uma diferénça; mas pela mesma razão deveria ter eliminado da lista também o género, que é a simples conjunção de uma diferença conjugada com outra diferença e assim por diante até o topo da árvore onde está a única entidade que talvez seja um gênero, a substância, mas a sua genericidade é tão vasta que se poderia ler a árvore ao contrário e dizer que a substância nada ríiais é do que a matriz vazia de um jogo de diferenças. Gêneros e espécies são fantasma verbais que encobrem a verdadeira natureza da árvore e do universo quecla representa, um universo de simples diferenças. No que diz respeito à característica c), como as diferenças inferiores não postulam necessariamente as do ramo superior, a árvore não pode ser finita: afinando em direção ao topo, não há critério que estabeleça o quanto esta pode ramificar-se para os lados, e para baixo. Como veremos em 2.5, as diferenças, provenientes de fora da árvore das substâncias, são acidentes, e os acidentes são potencialmente infinitos. Acrescente-se que, não sendo propriedades analíticas, em termos contemporâneos, as diferenças serão propriedades sintéticas, e eis que a árvore se transforma, por força de tudo que se discutiu nos primeiros parágrafos deste ensaio, de dicionário em enciclopédia, dado que se compõe de elementos de conhecimento do mundo. —
II
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No momento em que “mortal” não envolve implicitamente “racional”, o que é que impede de colocar “racional” sob “mortal”, ao invés de fazer o inverso, como acontece na árvore clássica da figura 2? Boécio o sabia muito beme ao interpretar um trecho de De divisione V1.7 deixaclaro que dadas algumas substâncias como a pérola, o leite, o ébano, e alguns acidentes como branco, duro e líquido, podem-se construir árvores alternativas como na figura 7:
coisas brancas
coisas líquidas
coisas pretas
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líquidas duras
leite pérola,
líquidas duras
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coisas duras
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brancas pretas
brancas pretas
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leite
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pérola
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Figura 7
É verdade que nesta passagem Boécio está falando só de acidentes, mas em De divisione XI1.37 ele aplica o mesmo princípio a toda divisão de gênero: “generis unius multiplex divisio”. À mesmacoisa é dita por Abelardo em Editio super Porphyrium (150
fit
v.12): “pluraliter ideo dicit genera, quia animal dividitur per rationale animal et irrationale; et rationale per mortale et immortale dividitur; et mortale per rationale et irrationale dividitur”. Equivale a dizer, como mostra a figura 8:
mortal
racional
racional
ou
irracional
mortal
Enfim, no que conceme à característica d), esta árvore poderá ser reordenada continuamente, segundo novas perspectivas hierárquicas.
Figura 8
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imortal
Numa árvore composta só de diferenças, estas podem ser reorganizadas continuamente, segundo a descrição sob a qual um dado objeto é considerado. A árvore é uma estrutura sensível aos contextos, não um
dicionário absoluto. 2.5. As diferenças como acidentes e como signos
As diferenças são acidentes e os acidentes são infinitos ou pelo menos indefinidos por números. Às diferenças são qualidades (e não é um acaso que enquanto gêneros e espécies, ilusões de substâncias, são expressos por nomes comuns, as
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diferenças sejam expressas por adjetivos). As diferenças provêm de uma árvore que não é a das substâncias e seu número não é conhecido a priori (Met. VII 2.6.104b 2 10434). E verdade que Aristóteles diz isto a respeito das diferenças não essenciais, mas a esta altura, quem pode dizer quais diferenças são essenciais e quais não o são? Aristóteles joga com poucos exemplos (racional, mortal) mas quando fala de espécies diferentes do homem, como animais ou objetos artificiais, ele se torna muito mais vago, as diferenças se multiplicam... Em linha teórica, estamos autorizados a apresentar a hipótese de que ele não teria sabido construir uma árvore de Porfírio finita, mas também em linha prática (ou seja, com base na evidência filológica), quando lemos De partibus animalium, vemos que ele de fato desiste de construir uma árvore única e reajusta árvores complementares de acordo com a propriedade cuja causa e natureza essencial quer explicar (cf. Eco, 1981a, e Balme, 1975). A noção de diferença específica significa acidente essencial. Mas este oximoro encerra (ou revela) uma contradição ontológica bem mais grave. Quem entendeu o problema sem dissimulações (mas lhe deu função com muita prudência, como sempre) foi Tomás. No De ente et essentia -
diz-se que a diferença específica corresponde à forma substancial (outro eximoro ontológico, se assim se pode dizer, dado que a coisa mais substancial que podemos conceberé identificada com um ou mais acidentes). Mas o pensamento de Tomás não dá margem a equívocos: a diferença corresponde à forma e o gênero à matéria, e como forma e matéria constituem a substânçia, assim também gênero e diferença constituem a espécie. O raciocíniojé evidentemente analógico, mas o recurso à analogia não exclui o fatc;de que aquilo que define a forma substancial é a diferença como acidente. “Para justificar uma conclusão tão gritante, Tomás excogita com uma de suas habituais tiradas de gênio uma solução muito brilhante: “in rebus sensibilibus etsi ipsae differentiae essentiales nobis ignotae sunt: unde significatur per differentiae accidentales quae ex essentiali—
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bus oriuntur, sicut causa significatur per suum effectum, sicut bipes ponit differentia hominis" (De ente VN). Então: existem diferenças essenciais; o que estas sejam, não sabemos; as que conhecemos como diferenças específicas não são as diferenças essenciais em si mesmas, mas são, por assim dizer, signos, sintomas, indícios delas; são manifestações superficiais de alguma outra coisa, para nós incognoscíveis. Nós inferimos a presença de diferenças essenciais através de um processo semiótico, a partir dos acidentes cognoscíveis. Que o efeito seja signo da causa é idéia familiar ao aquinense (muito da sua teoria da analogia depende desta assunção, em última análise, de origem estóica: os efeitos são signos indicativos). A idéia é reforçada por exemplo em S. T. 1.292 ad 3,0uS.7T. 1.771 ad 1: uma diferença como “racional” não é a verdadeira diferença específica que constitui a forma substancial. A ratio como potentia animae mostra-se externamente verbo et facto, através de ações exteriores, comportamentos psicológicos e físicos (e as ações são acidentes, não substâncias!) Dizemos que os homens são racionais porque manifestam a sua potência racional através de atos de conhecimento, tanto quando executam tais ações através de um discurso interior (e se imagina que esta atividade de pensamento seja tomada como introspecção) como quando a manifestam através do discurso exterior, ou seja, através da linguagem (S.T 1.78.8co). Num texto decisivo da Contra Gentiles (II. 46) Tomás diz que o ser humano não sabe o que ele é (quid est) mas percebe que é assim (quod est) já que se percebe como ator de atividade racional. Conhecemos o que são, na realidade, as nossas potências espirituais “ex ipsorum actuum qualitate”. Assim, também “racional” é um acidente e assim são todas as diferenças nas quais a árvore porfiriana se dilui.
Tomás entende que as diferenças são acidentais, mas não extrai desta descoberta todas as conclusões que deveria a respeito de uma possível natureza da árvore das substâncias: não pode permitir-se (não pode “politicamente”, mas provavelmente nem mesmo “psicologicamente”) questionar aárvore como instrumento lógico para obter definições (coisa que poderia ter feito sem riscos) porque toda a Idade Média é dominada pela persuasão (embora inconsciente) de que a árvore imita a estrutura do real, e esta súspeita neoplatônica afeta até os mais ri gorosos aristotélicos. Mas nós podemos dizer, sem dissimulações, que a árvore dos gêneros e das espécies, seja construída como for, explode numa poeira de diferenças, num turbilhão infinito de acidentes, numa rede não hierarquizável de qualia. O dicionário (porque é como tal que a árvore nos interessa hoje, e podemos olhar com imparcialidade paraa“fissão” deum universo neoplatônico) se dissolve necessariamente, por força interior, )
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galáxia potencialmente desordenada e ilimitada de elementos de conhecimento do mundo. Torna-se, portanto, uma enciclopédia, e o faz porque de fato era uma enciclopédia que se ignorava, ou seja, um artifício excogitado para mascarar a inevitabilidade da enciclopédia. numa
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coisa em si) mas pensamento de objetos imediatos (puro conteúdo), por sua vez interpretáveis por outras expressões que remetem a outros objetos imediatos num processo semiótico auto-suficiente, ainda que, se na perspectiva peirciana, esta fuga dos interpretantes gera hábitos e portanto modalidades de transformação do mundo natural: mas o resultado desta ação sobre o mundo como Objeto Dinâmico deve por sua vez ser interpretado por intermédio de outros objetos imediatos, e assim o círculo de semiose, que se abre continuamente fora de si próprio, em si próprio continuamente se fecha (cf. Eco, 1979, 2). Um pensamento semântico à enciclopédia é “fraco” não no sentido de que não consiga explicar como nós usamos a linguagem para significar. Mas submete as leis da significação à determinação contínua dos contextos e das circunstâncias. Uma semântica à enciclopédia não se recusa a fornecer regras para a geração e a interpretação das expressões de uma língua, mas estas regras são orientadas para os contextos, e a semântica incorpora a'pragmática (o dicionário incorpora, embora semiotizado, o conhecimento do mundo). O que torna a enciclopédia pouco proveitosa é o fato de que dela nunca se extrai uma representação definitiva e encerrada, e que uma representação enciclopédica não é nunca global, mas sempre local, é fornecida a pretexto de determinados contextos e circunstâncias, constitui uma perspectiva limitada da atividade semiótica. Como veremos a seguir, se o modelo enciclopédico exige algoritmos, estes algoritmos só podem ser míopes, como os que permitem percorrer um labirinto. A enciclopédia não fornece um modelo completo de racionalidade (não reflete de modo unívoco um universo ordenado) mas fornece regras de razoabilidade, isto é, regras para combinar a cada passo as condições que nos permitam usar a linguagem para dar sentido segundo algum critério provisório de ordem a um mundo desordenado (ou cujos critérios de ordem nos fogem). Não é aqui que podemos tentar uma resenha dos modelos de semântica —
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3.
A enciclopédia
como
Labirinto
3.1. Enciclopédia
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Se um dicionário é uma enciclopédia mascarada, então a enciclopédia único meio pelo qual podemos explicar não só o funcionamento de uma determinada língua, não só o funcionamento de qualquer sistema semiótico, mas também a vida de uma cultura como sistema de sistemas é o
semióticos interligados. Mas como foi mostrado em outras ocasiões (cf.,
por exemplo, Eco, 1975) no momento em que se toma o rumo da enciclopédia, caem duas distinções teoricamente vitais: antes de mais nada, a distinção entre língua natural e língua-modelo e, por conseguinte, a distinção entre meialinguagem teórica da semântica e língua-objeto. Cai a primeira distinção porque a enciclopédia é modelo teórico que explica uma língua Ratural em toda a sua complexidade e contraditoriedade, e a idéia de uma enciclopédia nasce justamente porque o modelo “forte” do dicionário se revela não só inadequado, mas estruturalmente insustentável. Em outros termos, para ter uma teoria semântica forte é preciso construir (estabelecer) um modelo reduzido de língua de algum modo homóloga no seu funcionamento a uma língua natural: mas não só esta língua estabelecida não é homóloga àquela dada, como não pode sêlo, porque no momento em que é estabelecida se enfraquece por si só, explode. Cai a segunda distinção, porque é impossível construir uma metalinguagem como construção teórica composta de primitivos universais em número finito: tal construção, como foi visto, explode, e ao explodir revela que suas construções teóricas nada mais eram do que termos de linguagem-objeto dada. Os universais semânticos (e tais são os gêneros o
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ontologicamente são qualia consideradas como sintomas, indícios, signos (e portanto se apresentam como puro material semiótico usável para fins conjeturais) e lingiiisticamente são por sua vez nomes de indícios. A enciclopédia é dominada pelo princípio peirciano da interpretação e portanto da semiose ilimitada. Todo pensamento que a linguagem exprime nunca é, a fundo, o pensamento “forte” do objeto dinâmico (ou
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à enciclopédia que a literatura semiótica (em sentido lato) hoje nos propõe. Aqui só podemos remeter às resenhas (parciais) esboçadas em Eco, 1975, 1979, 1981b, 1983. Gramáticas casuais, representações por seleções circunstanciais e contextuais, semânticas para instruções contextualmente orientadas, experiências de Inteligência Artificial que ao invés de prover códigos definitivamente sistematizados, fornecem modelos inferenciais à base deframes, scripts, goals... Estes e outros exemplos poderiam ser frutos de um saber à enciclopédia. Os modelos à enciclopédia não excluem da representação semântica as eventuais propriedades analíticas, mas só na medida em que sabem que podem funcionar com artifícios estenográficos para incluir outras pro-
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e as espécies) são simples nomes da língua natural. Como tal são interpretados, e podem ser interpretados através de diferenças, as quais
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N priedades, e procuram, de preferência, inserirna representação estereótipos que explicam o modo pelo qual os usuários de uma língua natural imaginam os conteúdos das expressões de acordo com certos contextos e circunstâncias.
O modelo à enciclopédia desfecha um golpe mortal nos modelos à dicionário, porque exclui definitivamente a possibilidade de hierarquizar de modo único e incontroverso as marcas semânticas, as propriedades, os semas.
3.2. Labirintos
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O projeto de umg competência enciclopédica é regido por uma metafísica (muito inflyente) que se pode exprimir através da metáfora do labirinto (que por sua vez remete ao modelo topológico da rede polidimensional). A árvore de Porfírio representa (sempre, ao longo da história do pensamento forte) a tentativa de reduzir o labirinto, polidimensional, a um esquema bidimensional. Mas vimos que a árvore reconstitui a cada passo o labirinto (das diferenças). Existem três tipos de labirintos. O labirinto clássico, o de Cnosso, é unicursal. assim que se entra, a única coisa que se pode fazer é chegar ao centro (e do centro só o que se pode fazer é encontrar a saída). Se o labirinto unicursal fosse “desenrolado” encontraríamos entre as mãos um único fio. O fio de Ariadne, que a lenda nos apresenta como o meio (estranho ao labirinto) para sair do labirinto, quando na verdade nada mais é do que o próprio labirinto. Incidentalmente, no labirinto deve estar um Minotauro, para tornar a aventura interessante, já que o percurso (deixando de lado o extravio inicial de Teseu, que não sabe onde irá parar) leva sempre para onde deve e não pode deixar de levar. O segundo tipo é o labirinto maneirístico ou frrweg. O Irrweg propõe escolhas alternativas, todos os percursos levam a um ponto morto, exceto um, que leva à saída. Se desenrolado, o Irrweg toma a forma de uma árvore, é uma estrutura com becos sem saída. Nele podem-se cometer erros, pois somos obrigados a voltar pelo mesmo caminho. Poderia ser útil, neste segundo caso, um fio de Ariadne. O Minotauro não é necessário, o Minotauro é o visitante capaz de auto-enganar-se a respeito da natureza da árvores O labirinto de terz.iro tipo é uma rede, na qual cada ponto pode ter conexão com qualquer outro ponto. Não é possível desenrolá-lo. Mesmo porque, enquanto os labirintos dos dois primeiros tipos têm um interior (o seu próprio emaranhamento) e um exterior, no qual se entra e rumo ao qual se sai, o labirinto de terceiro tipo, extensível ao infinito, não tem nem interior nem exterior. Pode ser finito ou (contanto que tenha possibili338
dade de expandir-se) infinito. Em ambos os casos, dado que cada um dos seus pontos pode ser ligado a qualquer outro ponto, e o processo de conexão é tambem um processo contínuo de correção das conexões, seria sempre ilimitado, porque a sua estrutura seria sempre diferente da que era um momento antes e cada vez se poderia percorrê-lo segundo linhas diferentes. Portanto, quem passa por ele deve aprender também a corri gir continuamente a imagem que dele cria, seja ela uma imagem concreta de uma seção (local), seja ela uma imagem normalizadora é hipotética que diz respeito à sua estrutura global (incognoscível, tanto por razões sincrônicas quanto por razões diacrônicas). Uma rede não é uma árvore.
O território italiano não obriga ninguém a, saindo de Milão, chegar a Roma passando por Florença: pode-se passar por Gênova, Pisa, Civitavecchia, pode-se resolver fazer o percurso Rimini, Nápoles, Roma. Uma rede (sugere Pierre Rosenstiehl, 1979) é uma árvore mais infinitos caminhos que ligam as partes da árvore. A árvore pode tornar-se (multidimensionalmente) um polígono, um sistema de polígonos interligados, um imenso megaedro. Mas esta comparaçãoé ainda enganadora, um polígono tem limites externos, o modelo abstrato da rede não. O modelo da rede é um modelo, não uma metáfora. No meio, entre o modelo e a metáfora, está o rizoma (Deleuze e Guattari, 1976). Cada ponto do rizoma pode ser ligado a qualquer outro seu ponto; diz-se que no rizoma não existem pontos ou posições, mas apenas linhas; porém esta característica é duvidosa, porque cada interseção de linhas cria a possibilidade de particularizar um ponto; o rizoma pode ser partido e reunido novamente em todos os pontos; o rizomaé antigenealógico (não é uma árvore hierarquizada); se o rizoma tivesse um lado externo, com este exterior poderia produzir um outro rizoma, portanto, não tem nem dentro nem fora; o rizoma é desmontável e reversível, sujeito a modificações; uma rede de árvores espalhada em todas as direções cria rizoma, o que significa que cada seção local do rizoma pode ser representada como uma árvore, contanto que se saiba tratar-se de uma ficção devida a razões de comodidade provisória; não se produz descrição global do rizoma, nem do tempo, nem do espaço, o rizoma justifica e encoraja a contradição: se cada uma de suas partes pode ser ligada a outra parte sua, de cada parte pode-se chegar a outra parte, mas de cada parte pode-se também jamais conseguir chegar à mesma parte, voltando sempre ao ponto de partida, e entretanto no rizoma éigualmente verdadeiro afirmar que se p então q e se p então não q; do rizoma dão-se sempre, e apenas, descrições locais; numa estrutura rizomática desprovida de exterior, toda visão (toda perspectiva sobre ela) origina-se sempre de um ponto interno seu e, como sugere Rosenstiehi, este é um algoritmo 339
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míope, toda descrição local tende a uma mera hipótese a respeito da globalidade, no rizoma a cegueira é a única possibilidade de visão, e
aplicava (dado ou posto que fosse). O pensamento do labirinto, e da enciclopédia, é fraco enquanto conjetural e contextual, mas é razoável
pensar significa mover-se às apalpadelas, isto é, conjeturalmente. O labirinto de terceiro tipo não é um modelo da ausência de razão, ou de um universo irracional. É o modelo que foi escolhido por um pensamento fraco por excelência, o dos enciclopedistas do século XVIII, um pensamento da razoabilidade iluminística, não da racionalidade triunfante. Releiam-se as páginas introdutórias da Enciclopédia, que devemos a D' Alembert:
porque permite um controle intersubjetivo, não desemboca
O sistema geral das ciências e das artes é uma espécie de labirinto, de caminho tortuoso que o espírito enfrenta sem bem conhecer a estrada a seguir... Mas esta desordem, por mais filosófica que seja para a mente, desfiguraria, ou pelo menos aniquilaria de todo uma árvore enciclopédica na qual se quisesse representá-la. Por outro lado, como já observamos o propósito da Lógica, a maior parte das ciências que consideraríamos como encerrando em si os princípios de todas as outras, e que por esta razão devem ocupar o primeiro lugar na ordem enciclopédica, não têm o primeiro lugar na ordem genealógica das idéias, porque não foram inventadas primeiro... Além do que, o sistema dos nossos conhecimentos é composto de diversos ramos, muitos dos quais têm um mesmo ponto de união; e dado que, partindo deste ponto não é possível entrar simultaneamente em “todos os caminhos, a determinação da escolha remonta à natureza das diversas inteligências... O mesmoinão acontece com a ordem enciclopédica dos nossos conhecimentos. Esta últéma consiste em reuni-los no mais breve espaço possível, e em colocar, por assim dizer, o filósofo acima deste vasto labirinto, num ponto de vista muito elevado, de onde lhe seja possível divisar ao mesmo tempo as ciências e as artes principais; ver com um único golpe de vista os objetos das suas especulações e as operações que pode executar a partir desses objetos; distinguir os ramos gerais dos conhecimentos humanos, os pontos que os separam ou os agrupam, e entrever até mesmo, às vezes, os caminhos secretos que os reúnem. É uma espécie de mapa-múndi que deve mostrar os principais países, a sua posição e as suas mútuas dependências, o caminho em linha reta que existe entre um e outro; caminho fregiientemente interrompido por mil obstáculos, que em qualquer país não podem ser conhecidos da mesma forma tanto pelos habitantes como pelos viajantes, e que não poderiam ser mostrados senão em mapas especiais muito detalhados. Estes mapas especiais serão os vários artigos da Enciclopédia, e a árvore ou sistema figurado dela será o mapa-múndi.
que a luta dependa de um dicionário. É forte e vence, às vezes, porque
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para regular, provisoriamente, todo evento dado do experior. E transformá-lo numa própria proposta resolutiva. É “fraco” diante de quem crê se
contenta em ser razoável.
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NS N
A Enciclopédia não tem centro, apresenta uma série de pseudoárvores que assumem o aspecto hipotético de mapas locais. Quando se fala de crise da razão pensa-se na razão globalizante que queria dar uma imagem “fortemente” definitiva do universo ao qual se 340
nem na
renúncia nem no solipsismo. É razoável porque não aspira à globalidade; é fraco como é fraco o iutador oriental que ataca exatamente como o adversário, e inclina-se a ceder, para depois encontrar, na situação que o outro criou, os modos (conjeturáveis) para reagir vitoriosamente. O lutador oriental não tem regra pré-ordenada, tem matrizes conjeturais
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PIRANDELLO RIDENS
NON
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A INOVAÇÃO NO SERIADO
SINNVN NT NS DEAR
Este ensaio reúne a contribuição ao encontro A repetitividade e a serialização no cinema e na televisão, (organizado em julho de 1983 em Urbino, agora como “Tipologia della ripetizione” em L'Immagine al plurale, organizado por Francesco Casetti, Marsilio, Veneza, 1984) e uma conferência em Reggio Emilia, “A inovação no seriado”, realizada no Instituto Banfi em 25 de novembro de 1983.
ELOGIO AO MONTE CRISTO
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MAS O QUE É ESTE CAMPANILE? Introdução a A. Campanile, Se la luna mi porta fortuna, Rizzoli, Milão, 1985.
HUIZINGA E O JOGO Introdução a J. Huizinga, Homo ludens, Einaudi, Turim, 1973.
1984.
SIGNOS, PEIXES E BOTÕES. ANOTAÇÕES DE SEMIÓTICA, FILOSOFIA E
CIÊNCIAS HUMANAS
ABDUÇÃO EM UQBAR Inédito em italiano. Escrito como introdução à edição alemã dos Seis problemas para don Isidro Parodi, de Borges e Casares, Hanser, Munique, 1983. OS MUNDOS
DA FICÇÃO CIENTÍFICA
Versão resumida da conferência no encontro sobre ciência e ficção científica realizada maio de 1984.
em Roma em 2 de
Este texto reelabora e funde várias participações. Em particular, alguns aspectos do verbete “Segno”, do volume Sistematica del!" Enciclopedia, Einaudi, XV; dos verbetes “Sign” e “Denotation/Connotation” para o Encyclopedical Dictionary of Semiotics (no prelo); da participação no encontro Una scuola per 1" adolescenza,San Marino, abril de 1983; de Patten Foundation Lecture, “On Fish and Buttons”, realizada na Universidade de Indiana, Bloomington, setembro de 1982 (sucessivamente publicada com o mesmo título em Semiotica 48, 1/2, 1984). O ANTIPORFÍRIO
RETRATO DE PLÍNIO QUANDO JOVEM
A
Inédito em italiano. Ura2 primeira versão foi apresentada no Simpósio Synopsis 2: Narrative Theory and Poetit: of Fiction (Porter Institute, Tel Aviv-Jerusalém, junho de 1979). Uma segunda versão; -m inglês foi publicada como “A Portrait of the Elder as a Young Pliny”, Versus, 35/%, 1983.
De Il pensiero debole, organizado por Gianni Vattimo e Pier Aldo Rovatti, Feltrinelli, Milão, 1983: i
COMBINATÓRIA DOS POSSÍVEIS E A INCUMBÊNCIA DA MORTE Relatório para o colóquio Le frontiere del tempo (Fermo, abril de 1980). Atas em Le frontiere del tempo, organizadas por Ruggiero Romano, il Saggiatore, Milão, 1981.
A EPÍSTOLA XIII, O ALEGORISMO MEDIEVAL, O SIMBOLISMO MODERNO Versão acrescida de “Lectura Dantis” apresentada em Bolonha em 10 de maio de 1984 forma original, em Carte semiotiche 0, 1984.
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