Marxismo e teoria da personalidade [III]

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HORIZONTE UNIVERSITÁRIO A FORMAÇAO DA CIÊNCIA ECONÓMICA Henri Denis PROBLEMAS d e h i s t ó r i a d a f i l o s o f i a Théodore Oizerman e n sa io so b r e o d esen v o lv im en to da concepção m o n ista

DA HISTÓRIA PleKhanov HISTÓRIA GERAL DO SOCIALISMO, I vol. Jacques Droz e outros HISTÓRIA GERAL DO SOCIALISMO, II vol. Jacques Droz e outros HISTÓRIA GERAL DO SOCIALISMO, Ш vol. Jacques Droz e outros POSIÇÕES . Louis Althusser • DO PORTUGAL DE ANTIGO REGIME AO PORTUGAL OITOCENTISTA Albert Stfberí . EPISTEMOLOGIA GENÉTICA E EQUILIBRAÇAO В. inhelder, В. Garda e J. Vonéche DA INDÚSTRIA PORTUGUESA — DO ANTIGO REGIME АО CAPITA­ LISMO — ANTOLOGIA Joel Serrão e Gabriela Martins O DESENVOLVIMENTO DO PSIQUISMO Alexis Leontiev DOUTRINADORES COOPERATIVISTAS PORTUGUESES Fernando Ferreira da Costa MARXISMO E TEORIA DA PERSONALIDADE. I vol. Luden Séve MARXISMO E TEORIA DA PERSONALIDADE. II VOl. Luden Séve MARXISMO E TEORIA DA PERSONALIDADE, III vol. Luden Séve

Lucien Sève

MARXISMO E TEORIA DA PER SO N ALID A DE VOLUME Ш

LIVROS HORIZONTE

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Titulo original: Matxisme et Théorie de la Personnalité Copyright by: Editions Sociales Tradução: Emanuel Lourenço Godinho Capo: Soares Rocha

Reservados todos os direitos de publicaç&o total ou parcial para a língua portuguesa por

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LDA.

Rua das Chagas, 17*1.° Dt.o — 1200 LISBOA

que reeerva a propriedade sobre esta tradução

CAPITULO IV

HIPÓTESES PARA UM A TEORIA CIENTÍFICA DA PERSONALIDADE

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( ( ( ( «О tempo é о campo do desenvolvimento humano» К. Marx: Salaire, prix et profit. £d. Sociales, 1968, p. 107.

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«Será que tun dia o homem náo conseguirá, efectuar no tempo progressos análogos aos que tem efectuado no espaço?» P. Janet: De Vangoisse à Vextase, Alean, 1926, t. I, p. 233.

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Os capítulos precedentes propõem uma solução para о problema da delimitação do campo das ciencias na área do psiquismo humano, e» em particular, uma definição da psi­ cologia da personalidade, que nos surge como sendo urna ciencia essencialmente a constituir em novas bases. A o reflectirmos sobre estas questões a partir do materialismo dialéctico e histórico, e da articulação que a ciencia do individuo humano toma necessariamente com este, não pensamos ter-nos entregue, em princípio, a uma intervenção arbitrária de não especialista no terreno de uma ciência específica, mas sim a uma investigação legítima de ordem antropológica e episte­ mológica geral, e, logo, de filosofia, na acepção marxista do termo, investigação essa cujos resultados são única e simples­ mente propostos ao psicólogo a fim de que ele julgue sobre a sua eventual congruência com os resultados e os obstáculos por si mesmo encontrados no seu terreno. Mas, neste último capítulo, propomo-nos ir mais além: adiantar, a título de hipóteses indicativas, um certo número de ideias relativas a conceitos fundamentais e a leis genéricas de desenvolvimento que poderiam dar forma a esta ciência da personalidade surgida mais atrás. Ora, basta anunciar um tal projecto para icvar a que surja uma questão prévia de imperiosa impor­ tância: tal não equivalerá, para um filósofo marxista, a colo­ car-se em flagrante contradição com aquilo que foi lembrado precisamente aqui, no capítulo i, no respeitante à absoluta ilegitimidade da intervenção externa nos assuntos de uma ciência particular?

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I OBSERVAÇÕES PRÉVIAS E, com efeito, uma tal intervenção de não especialista no terreno de uma ciência psicológica parece impossível por uma razão decisiva, e que é a de que. toda a psicologia científica se fundamenta na observação e na experimentação objectives, ou, caso contrário, deixa de o ser. Nenhum ensinamento .metodológico surge como sendo de tal forma evidente ao longo de toda a sua história: a psicologia não entrou na via da ciência senão a partir do instante, e na medida em que rompeu com o velho dogma do espiritualismo metafísico, para o qual só existia psicologia na intimidade do quarto e na introspecção do filósofo. Aí reside, portanto, no que lhe res­ peita, ã regra fundamental: o axioma de objectiviaade. E foi precisamente com o fim de atingir, numa medida sempre crescente, essa objectividade que a psicologia foi, a pouco e pouco, elaborando todo o seu vasto conjunto instrumental de métodos especializados. Nestas condições, de que forma é que um filósofo enquanto tal, não especialista por definição, poderia-pretender fornecer fosse que tipo de contributo fosse de concreto para a psicologia — a menos que ele continue ainda a imaginar que a observação artesanal de si mesmo, ou do vizinho, tenha hipóteses de apresentar, hoje em dia, algum interesse para a ciência? É por isso que, se um filósofo anun­ cia que se propõe tratar concretamente do conteúdo de uma ciência psicológica, isso desperta, compreensivelmente, a mais aberta hostilidade, ou compaixão, por parte do psicólogo. Que o filósofo possa, em certa medida, responder a questões — nomeadamente epistemológicas— que lhe são colocadas pelo psicólogo é algo que geralmente lhe é acordado. Mas precisamente é o psicólogo, e só ele, quem possui competência para colocar as questões concretas da psicologia, tal como i

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apenas o astrónomo possui qualificações para colocar as questões concretas da astronomia: onde é que o filósofo iría buscar a ciência particular? Ele é, quanto muito, um homem que pode dar alguns conselhos. Mas que não tenha a desgra­ çada lembrança de se consultar a si mesmo: iluminado e cegó, instrutivo mas impotente, não pode ter permissão para se debruçar, por sua conta, sobre os problemas que só concer­ nem ao psicólogo. E se tenta, apesar de tudo, pô-lo em prática, não estará ai a prova de que é incapaz, por profissão, de se ater ao axioma da objectividade, e volta invencivelmente a cair no biscate introspectivo e na construção especulativa? A dificuldade parece ser, efectivamente, irremediável. Mas uma situação totalmente original se nos depara, presente­ mente: se o que ficou dito atrás se encontra bem fundamen­ tado, uma ciência psicológica nova, não, é certo, pelo lugar que ocupa, mas sim pela delimitação que instaura e pelo tipo de conteúdo que visa, encontra-se projectada a partir de uma reflexão que podemos, caso se queira, qualificar de interdiscipíinar, na ocorrência, a partir da incidência do materialismo histórico sobre a antropologia e a concepção do indivíduo; esta nova ciência, por definição, ainda não constituiu, em si mesma, a sua própria especialização. É essencial reparar em que esta ciência psicológica projectada não se fundamenta, de forma alguma, no voltar a pôr em causa o axioma de objectividade, mas sim, bem pelo contrário, no seu aprofunda­ mento. O que significa, com efeito, em profundidade, a reivin­ dicação de uma psicologia auténticamente objectiva? Tal é a questão que colocámos, e que nos levou, por meio de um exame crítico dos próprios princípios de toda a concepção do homem, a responder que ela não significa apenas a exigên­ cia de objectividade do ponto de vista do método, o que é importante, mas também do ponto de vista do conteúdo, o que é ainda mais vital. Tal como o afirma Marx: «A ’concep­ ção’ não pode ser concreta, quando o objecto da concepção é ’abstracto’.» ’ Ora, exigir que a psicologia da personalidade seja concreta, objectiva quanto ao seu conteúdo, equivale a exigir que vá até ao âmago da essência do seu objecto, e, por­ tanto, que tome por objecto não só este ou aquele aspecto do psiquismo, mas sim todo o conjunto da estrutura e do i K, Marx: Critique de la philosophie de L’Etat de Hegel, Costes, t. IV. p. 166,

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desenvolvimento d a s personalidades humanas reais, que se proponha como tarefa ajudarmos a auto-reconhecermo-nos teori* camente e a intervir praticamente no crescimento dessas per­ sonalidades. não nestas ou naquelas condições artificiais ou sob este ou aquele ângulo particular, mas sim no âmbito da própria vida e de uma forma global. A este respeito, a velha psicologia filosófica faltava claramente ao axioma de objectividade, visto que teorizava no seio do abstracto e longe de toda a prática. Mas, inversamente, as teorizações psicológicas actuais sobre a personalidade efectuam-se, com demasiada frequência — Politzer demonstrara-o claramente e as suas observações estão longe de terem alcançado a caducidade —, a partir de práticas em si mesmas bem «teóricas» e pouco con­ cretas, na medida em que não apreendem a actividade pessoal senão de uma forma fragmentária, marginal, quando não artificial, porque deixam de lado as condições da vida real, a começar pelo trabalho social. E é por isso que, nesta ma­ téria, nos parece que o enunciado primeiro do axioma de objectividade poderia ser: a psicologia da personalidade é a ciência da vida real dos indivíduos, ou, caso contrário, perma­ nece mergulhada na ilusão ideológica. Ora, se é, de facto, assim, o material fundamental de toda a investigação científica objectiva sobre a personalidade humana é a biografia; e a relação prática de base com seme­ lhante material é o conjunto das investigações ordenadas visando a modificação do crescimento «espontâneo» — espon­ tâneo, relativamente a essas intervenções— das personali­ dades humanas. Vemos, de imediato, que nem o conjunto imponente do que constitui até aqui a psicologia experimental, nem mesmo, na acepção patológica da expressão, a psicologia clínica, constituem as únicas vias de acesso possíveis a um saber psicológico verdadeiramente objectivo sobre a perso­ nalidade, e talvez mesmo nem sequer sejam a& mais fecundas. Porque é que, por exemplo, não obstante as justas sugestões de Politzer a este respeito, deveríamos persistir em encarar como tratando-se de uma quantidade negligenciável o corpo de observações e de experiências contido na expressão «ter psicologia», e não ver nele senão aforismos dos mais super­ ficiais, até mesmo dos mais ideológicos, que, efectivamente, aí abundam, mas sem levarmos em linha de conta que no seio desta «psicologia popular», a_par, e adentro, do produto pobre, frequentemente mistificado, de um velho empirismo rudi-

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mentar e de crenças parasitárias, há igualmente, há sobretudo o capitai de conhecimentos concretos mal elaborados teorica­ mente, bem entendido, mas praticamente comprovados, que os grandes movimentos sociais progressistas, e o movimento operário em particular, acumularam ao longo das gerações sobre o desenvolvimento dos indivíduos na vida real? O que um partido operário experimentado, por exemplo, nos pode sugerir a respeito de certos aspectos do crescimento das personalidades humanas seria, por princípio, menos interes­ sante do que o que o último dos psicossociólogos nos pode revelar sobre a dinâmica dos pequenos grupos, ou mesmo, talvez, o primeiro dos psicanalistas sobre a estrutura do inconsciente? Eis o que merece, em todo o caso, ser analisado. Pela minha parte, considero que o grau de objectividade real alcançado por certos princípios psicológicos da política dos quadros do Partido Comunista Francês (relativos, por exem­ plo, à sintomatologia do mau quadro) vale largamente o de inúmeros resultados da caracterología ou da psicologia social, por mais recheados que estes possam estar de cientificidade externa, até mesmo de formalização matemática. Contudo, não nos deixemos equivocar. Quando dou um tal exemplo de uma via de acesso possível à área em que se situa o objecto autêntico da ciência da personalidade — exem­ plo típico pela sua extrema oposição às vias de acesso hoje em dia usadas, em geral, pelos psicólogos, mas também exemplo-limite — não está nos meus propósitos, por meio seja lá de que tipo de demagogia obreirista for, sugerir que um praticismo. militante desempenha aqui o papel de uma investi­ gação científica. N a realidade, tráta-se, na mesma diminuta medida, de opor, em nome do concreto, uma qualquer psi­ cologia do pobre às teorias actualmente dominantes, como se trata, no respeitante à economia política marxista, por exem­ plo sobre a questão dos salários e dos lucros, de opor a prática espontânea-do movimento operário à ciência económica bur­ guesa. A psicologia dá personalidade não poderia passar à maturidade senão a um certo nível de conceptualização, nunca inferior mas sim superior àquele que, no seu conjunto, ela alcançou até hoje. Não se trata, portanto, aqui, de forma alguma, de uma apologia do primitivismo científico: talvez já se tenham apercebido, no decurso desta exposição, que se tra­ taria precisamente do contrário. Da mesma forma, repito-o, não se trata, na minha opinião, de um excesso de formalização

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que sofre essencialmente a psicologia da personalidade, raas sim de um defeito de conteúdo: se o seu discurso nos parece, com tanta frequência, formal, tal advém de que nos fala pouco, muito pouco mesmo, dos homens reais. Aquilo de que se trata, por consequência, é o facto de que, sem neglicenciar nenhum dos instrumentos de trabalho, nenhum das procedimentos de uma ciência instruída, nunca se deve perder de vista, em tal domínio, nem que seja no fulcro da mais avançada especiali­ zação, que o fim último é o de obter o domínio teórico e prático das condições psicológicas de um pleno desenvolvimento das personalidades. E se não perdermos tal facto de vista, apercebemo-nos de que de .toda a hipotética psicologia da persona­ lidade, a partir do instante em que surge como pensável, a que existe hoje em dia ainda não pôs em prática senão uma diminuta parcela, que não é, de forma alguma, seguro que seja a mais interessante, nem mesmo a melhor, ao abrigo de contestações'fundamentais. E persuadimo-nos de que a explo­ ração de novas vias de acesso, não referenciadas nos documen­ tos oficiais, e menos ainda providas de especialistas, em direcção à matéria-prima de uma ciência assim concebida e definida* não só é teoricamente lícita, como também repre­ senta, sem dúvida alguma, a condição determinante da sua passagem a maturidade. A este respeito, a exploração da experiência psicológica acumulada pelo movimento operário não passa de um exem­ plo do que poderia ser feito. Há, na realidade, muitos outros, de que se impõe um recenseamento sistemático, a começar pela enorme diversidade das práticas pedagógicas, no sentido mais geral de semelhante adjectivo. Deste ponto de vista, não será, efectivamente, flagrante e desarrazoado o contraste entre os mui raros cumprimentos de chapéu dados, de longe em longe, à obra considerável de um Makarenko, que permanece entre nós quase totalmente por utilizar, do ponto de vista da teoria fundamental da personalidade, e a inverosímil proli­ feração bibliográfica de segunda ou de terceira, ordem sobre a psicanálise, que, a este nível, acaba por se transformar, essencialmente, no álibi medíocre de uma fuga perante as questões psicológicas decisivas do trabalho e das relações sociais? Mais genericamente, podemos pensar que em toda a parte em que haja uma prática social regular, e, com muito mais razão, quando esta se encontra já capitalizada em cultura empírica, visando de uma forma ou de outra a melhoria do crescimento espontâneo das personalidades, há uma mina à

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nossa inteira disposição de matéria-prima psicológica — e em todo o lado em que haja peritos conscientes desta prática há psicologia da generalidade em potência. Assim, acabamos por verificar —*facto de uma importância primordial relativa­ mente à objecção de incompetência que nos ocupa aqui — que o caso da psicologia do indivíduo humano normal, con­ siderado no conjunto da sua estrutura e do seu desenvolvi­ mento psíquicos, é, à partida, totalmente diferente daquele de que se ocupa -a maioria das ciências, inclusive as ciências do homem. Em astronomia ou em microfísica, e mesmo, no res­ peitante ao essencial, em economia política ou em linguística, o não especialista não dispõe de nenhuma via de acesso real à matéria da ciência, ou então não acede senão às jazidas mais superficiais, cujos filões se encontram, de há longo tempo, esgotados, e não apresentam qualquer interesse para o avanço da ciência. Em psicologia da personalidade, no sen­ tido em que foi .definida mais atrás e no estado embrionário em que ainda se encontra, não só o acesso à matéria-prima actualmente útil não é privilégio do especialista, pelo menos tal como é concebido e trabalha em geral hoje em dia, como também eu coloco precisamente a questão de saber se todo o segredo da obstinação desta ciência quanto à teoria funda­ mental não reside no facto de que, em larga medida, ela deli­ mita falsamente o seu objecto e se extravia do caminho para a jazida central, por razões que se relacionam, em última análise, com as condições de classe e com as ideo­ logias mistificadoras no seio das quais ela se edificou, e de que mesmo um marxista não se consegue emancipar sem algumas dificuldades. A consequência deste estado de coisas, e o ponto a que eu pretendia chegar, é o de que, se o não especialista de psi­ cologia — nem que seja, por exemplo, um filósofo — é, evi­ dentemente, incapaz de intervir concretamente no trabalho psicológico tal como este constituiu, até aqui, a sua especia­ lização, ele não pode ver-se impedido, n a base do reexame radical dos fundamentos da psicologia da personalidade, de pôr em causa os limites dessa própria especialização, nem de sugerir a constituição de novos tipos de pesquisa, votados, bem entendido, a novas, .especializações, mas abertos à par­ tida a quem se encontre em posição de, por meio deles, avan­ çar de uma forma mais ou menos frutuosa. O próprio Piaget, num livro integralmente consagrado à crítica das pretensões

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ilegítimas de filósofos como Bergso: , Sartre ou Merleau-Ponty a tratarem, enquanto tal, de problemas psicológicos, não levanta dificuldades em concordar 'em que certos filó­ sofos tiveram, por vezes, «iniciativas felizes antecipando a possibilidade de ciências ainda por constituir, facto este de que é testemunho a história das ideias ulteriores aos seus trabalhos» 2: é muito precisamente sob esta rubrica que pode ser arquivada a ambição do presente ensaio. Por outras pala­ vras, um não especialista, no sentido actual deste termo — por exemplo, um filósofo m arxista— na medida em que alia um conhecimento da articulação do materialismo histórico com a teoria do indivíduo e uma densa participação em diversas práticas pedagógicas, não é, a priori, incapaz de ter acesso à matéria de que pretende tratar, se se ocupa da personalidade humana. Naturalmente, e nem que seja no melhor dos casos, o valor experimental das hipóteses assim adiantado permanece sempre por demonstrar na prá­ tica, e, sublinho este ponto essencial, é sempre aos homens da profissão que compete, em. última instância, determiná-lo de acordo com procedimentos científicos comprovados, quer estes existam já, quer tenham de ser formulados. Da mesma forma, este último capítulo não se propõe, rigorosamente, senão submeter ao exame crítico de quem pretenda interes­ sar-se por ele um conjunto coerente de hipóteses relativas à dimensão geral do conteúdo que poderia ter a ciência da personalidade definida mais a trá s3. O carácter das páginas que seguem é, portanto, bastante diferente do dos capí­ tulos precedentes, situados unicamente ao nível da articula­ ção entre materialismo histórico e psicologia, e operando, por meio de uma construção crítica, a partir dos resultados científicos obtidos na base do primeiro. Pelo contrário, as hipóteses que seguem, se bem que logicamente ligadas às teses gerais do último capítulo, delas não são, de forma alguma, deduzidas — daí poderíamos, certamente, deduzir outras— , mas sim constituídas, ao mesmo tempo, através de conjecturas teóricas e de práticas semiempíricas. O juízo que sobre J. Piaget: Sâgesse et illitsions de la philosophic, p. 159. л Em Apprenttssage et activités psyohologiques, J.-F. Le Ny escreve: «A experimentação elementar nfto é, de forma alguma, no caso do homem, o melhor melo para a busca da prova. O estabelecimento de construções hipotéticas, que são, em seguida, verificadas nas suas con­ clusões, pode revelar-se preferível.» (P. 300.) 2

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elas vier a ser formulólo não poderia, simultaneamente, ser alargado às ópticas de conjunto sobre a psicologia da perso­ nalidade, com as quais se encontram articuladas, sem que constituam o seu corolário tínico e necessário. O que me incita a dar aqui conta de tal é, portanto, pre­ cisamente o contrário da velha tentação filosófica, justa­ mente, criticada pelo psicólogo experimentalista; tratar-se-ia efectivamente, bem pelo contrário, de fornecer ao psicó­ logo um meio complementar para a elaboração do seu tra­ balho crítico relativamente às hipóteses gerais adiantadas nos capítulos precedentes. Porque seria demasiado cómodo defen­ der, por razões de princípio e unicamente ao nível das con­ siderações teóricas, que uma delimitação alterada pode for­ necer à ciência da personalidade a ocasião para sair dos seus actuais impasses, para, logo de seguida, se esquivar pruden­ temente a toda a indicação que não seja de ordem progra­ mática, até mesmo inapreensível, sobre o que poderia ser o conteúdo concreto desta ciência. Censurou-se frequentemente a Politzer o facto de ter anunciado uma psicologia do «drama» sem mesmo lhe ter dado um início de execução. A objecção, mesmo se inúmeras respostas lhe podem ser dadas, tal como o demonstraremos mais adiante, parece-me formalmente aceitável. Equivale, portanto, pura e simplesmente, ao assu­ mir das suas responsabilidades, o submeter, a título de hipó­ teses indicativas, algumas ideias que permitam ajudar seja quem for a concretizar o sentido das proposições teóricas que são adiantadas e a elaborar a seu respeito um juízo, na base de um mais claro conhecimento de causa. Quanto ao resto,; o perigo que ameaça actualmente a psicologia da per­ sonalidade não parece ser* como já o dissemos, o pulular de hipóteses irresponsáveis, mas sim a raridade de novas ópticas que possam suscitar, em tal circunstância, um desenvolvi­ mento da pesquisa. Sem dúvida que já disse o suficiente para prevenir certos mal-entendidos de leitura, e, talvez, para poder restringir, nas páginas que seguem, excessivas pre­ cauções de escrita.

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II HIPÓTESES 1.

Conceitos de base . A ctos, capacidades . O problema DAS NECESSIDADES

Cada personalidade humana desenvolvida apresenta-se■-nos, de imediato, como sendo uma enorme acumulação de actos, dos mais variados, ao longo do tempo. Logo, a partir deste enunciado elementar, encontramos um conceito que parece ser o único à altura de desempenhar o papel de con­ ceito primeiro no âmbito da teoria científica da persona­ lidade: o conceito de acto. Este conceito distingue-se profun­ damente de todos aqueles que são vulgarmente usados para preencher o seu local próprio, tais como comportamento, conduta, função, etc., cuja legitimidade, no domínio das ciências do psiquismo, não está em causa, mas cujo emprego, no seio da psicologia da personalidade, é quanto basta para barrar, desde o primeiro instante, o caminho para a com­ preensão do problema de fundo destas questões. Com efeito, falar, por exemplo, de condutas equivale, realmente, ao estu­ dar o psiquismo do homem como sendo uma actividade, mas unicamente como sendo uma actividade concreta do sujeito, abstracção feita do seu resultado objectivo para a sociedade, e, através desta mediação decisiva, para o próprio indivíduo, noutros termos, como sendo uma actividade que não realiza socialmente nada -— ou, pelo menos, nada que interesse para o seu conhecimento. Sem dúvida que uma tal abstracção é legítima na medida em que se trate de estudar a conduta enquanto actividade psíquica geral, porque, deste ponto de vista, que a aprendizagem, ou a percepção visual da profun­ didade, ou a localização da lembrança no tempo se efectúe concretamente no seio de um trabalho assalariado ou de uma

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actividad© d e .iazer Hão tem, praticamente, nenhuma impor­ tância. Mas quando se transpõe, sem lhe dedicarmos os devidos cuidados, esta abstracção para o terreno da ciência da personalidade • comete-se um erro teórico redibitório, já analisado mais acima, no sentido em que se eliminam a priori, sem em tal pensarmos, todas as relações sociais entre as con­ dutas, isto é, todas as estruturas reais da personalidade desenvolvida, que advêm precisamente do facto de que estas condutas são, simultaneamente, portadoras de uma activi­ dade social determinada, e determinante para o indivíduo. Falar, logo à partida, de condutas equivale, portanto, a só reter um segmento delimitado do circuito total dos actos — circuito total este que ultrapassa muito largamente, as fron­ teiras da individualidade orgânica e psíquica, no sentido usual do termo, e que efectúa um retomo a si mesmo através da imensa rede de mediações das relações sociais. Ora, são estas mediações, rejeitadas como indiferentes e não perti­ nentes por uma psicologia da conduta, que, na nossa opinião, induzem no indivíduo as necessárias estruturas da sua acti­ vidade, e, dessa forma, da sua personalidade. A personali­ dade não é a origem produtiva de um conjunto de condutas cujo resultado social seria indiferente, e cujo conhecimento se encontraria esgotado pelo estudo dos mecanismos da sua produção. A personalidade é um sistema complexo de actos, e a especificidade de um acto está em produzir socialmente algo. Pôr de lado o estudo deste algo, que é precisamente o instante objectivo da rotação completa do acto, como se os gestos do trabalho, por exemplo, devessem interessar o psi­ cólogo, mas o salário não é parte integrante dessas cegueiras ideológicas, de que nos custa a entender, quando delas saímos, como foi possível a uma. ciência permanecer durante tanto tempo sua prisioneira. Partir do conceito de acto, no sentido indicado, equivale, portanto, a ultrapassar, logo à partida, uma psicologia mera­ mente formal das personalidades — sendo a forma o único aspecto que, no melhor dos casos, poderia, por exemplo, ser alcançado por uma caracterología — para nos instalarmos no terreno ainda passavelmente virgem de uma psicologia do conteúdo das personalidades, e das formas dialécticamente ligadas a esse conteúdo, sem desconhecer, por outro lado, o problema da sua articulação com as formas oriundas de alhures, tipo nervoso congénito ou actividades infantis. É levar a que passe para primeiro plano já não a oposição

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Marxismo e te2, 172-173, 228, 267-268. 278, 281, 336-337, 369, Correspondance entre Marx et Engels, t. I, 324. La Sainte Famille, 46-48, Vidéologie allemande, 96, 263, 320, 356, Travail salarié et capital, 83-85, Fondements, t. í, 235-237, etc.

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M arxismo e' teoria da perso n alid ad e

no .seio ud personalidade humana desenvolvida é necessário ir ainda, de forma radical, muito mais- longe. Porque, no caso do indivíduo humano, se não cometermos o erro prévio de reduzir a inserção dos seus actos num sistema definido de relações sociais à . simples concretização de condutos, no âmbito de um meio ambiente complexo, o conjunto dos resul­ tados que são chamados a intervir na modulação da função instigadora das necessidades já não é unicamente natural mas também social, tal como o lembrámos mais atrás, por exem­ plo, a respeito da análise das relações entre trabalho e salário. Noutros termos, as relações entre necessidades e resultados da actividade, em vez de reflectirem, pura e simplesmente, as leis do psiquismo, por exemplo, as da aprendizagem, encon­ tram-se essencialmente mediatizadas pelas leis da formação social em que esta actividade se desenvolve, e, por consequência, pela estrutura de conjunto da própria personalidade. . Para precisar este ponto capital, chamemos produto psico* cológico ao conjunto dos resultados de qualquer natureza, aòs quais acaba por chegar um acto ou um grupo de actos. Uma análise esquemática da composição deste produto no seio de uma sociedade capitalista leva a que se tom e claro que, l.V um acto pressupõe um certo dispêndio fisiológico e o investimento de um certo tempo psicológico, e, a este título, ele próprio produz directamente ou reproduz as correspon­ dentes necessidades; mas que, 2.°, fornece eventualmente também a uma ou a várias necessidades preexistentes, de uma forma mais ou menos total, uma satisfação directa por intermédio da sua natureza ou do seu resultado de acto con­ creto; para mais, 3.°, na medida em que é igualmente um acto abstracto, enquanto dispêndio de força de trabalho no seio de uma actividade social assalariada, é para o indivíduo um meio para a obtenção de um rendimento que, por seu turno, mas de uma forma meramente mediata, permite a satisfação directa de certas necessidades; 4Л sendo necessa­ riamente, por outro lado, o exercício de uma capacidade e eventualmente uma fonte de progresso ou de especificação desta capacidade, o acto é, ao mesmo tempo, gerador de um produto no sector i da actividade; chamo progresso psico­ lógico a todo o aumento, assim criado, do fundo fixo das capacidades. Ao que é necessário acrescentar que um acto possui ainda um conjunto de funções e de efeitos superstruturais, cuja análise seria aqui prematura, mas cuja importân-

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cia pode ser determinante, e que convém, portanto, evitar esquecer. Vemos, de imediato, que, se certos pontos deste produto, nomeadamente os pontos 1 e 2, se situam no terreno dos resultados psíquicos directos da actividade e podem, por con­ sequência, ser regidos por certas leis psíquicas em que o pri­ mado da necessidade conserva ища determinada significação, outros, pelo contrário, e singularmente o ponto 3, situam-se no terreno daquilo a que chamámos mais atrás as relações sociais entre as condutas, isto é, relações cujo produto para o indivíduo já não possui um qarácter psíquico directo e escapa à determinação pelo aspecto concreto da actividade, logo, igualmente da necessidade correspondente; o salário, por exemplo, não depende do trabalho concreto efectuado pelo indivíduo, nem das necessidades concretas, fruto das quais ele o efectúa. Apreendemos aqui, em toda a sua ver­ dade e energia, a alteração da relação entre necessidade e produto, engendrada por relações ¡sociais em que a própria actividade se desdobrarem actividade concreta e actividade abstracta. Nesta base compreende-se que a estrutura do pro­ duto psicológico, quando se nos depara uma actividade social real, não seja só relativa às necessidades e ao acto concretos, mas também às condições sociais objectivas e, simultaneamente, à estrutura de qonjunto da personalidade — composição das capacidades, lugar da actividade abstracta, configuração das superstruturas, etc. —, a qual, por seu turno, através da mediação do produto, determina toda a estrutura e o desenvolvimento das necessidades. O que ficou dito atrás ё já suficiente para tornar evidente que a tolerân­ cia excepcional para com a insatisfação, que marca as neces­ sidades humanas desenvolvidas, nãcí pode ser reduzida a uma complicação (mesmo que tivéssemos de a classificar de «ex­ trema»)' do modelo animal da necessidade por meio da socia­ lização das suas formas e das suas normas. Trata-se, na rea­ lidade, de uma verdadeira inversão de essência. O produto, com os seus aspectos sociais abstractos, e determinados, pre­ cisamente, afora do indivíduo, desempenha um papel deci­ sivo na actividade pessoal, parque 0 que incita à acção não é a necessidade em si mesma e considerada à parte, mas sim as proporções e condições no seio das quais a actividade correspondente se encontra em estàdo de a satisfazer, por outras palavras, a relação entre os possíveis resultados do

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acto e as necessidades a satisfazer, no sentido desenvolvido destas noções, em resumo, a relação entre produto e neces­ sidade. Formulo a hipótese de que a estrutura especificap mente humana desta relação —, variável ao mais alto grau, N

de um acto a outro e de um indivíduo a outro, e, contudo, profundamente característica de uma personalidade, fornece o elemento central de uma teoria científica da motivação articulada com o conjunto de uma concepção materialista histórica do indivíduo concreto. Esta relação não é, aliás, de forma alguma, uma simples construção teórica, mas sim um processo biográfico constante, porque um acto não passa senão de uma mediação prática entre uma necessidade e um produto, e a avaliação intuitiva da — , no seu contexto, surge como sendo um dos regulamentos mais simples e mais universais da actividade, a respeito. do qual voltaremos a falar. Tudo isto permite compFeender porque é que a tenta­ tiva para edificar uma teoria séria das formas superiores da motivação humana antes de terem sido esclarecidos os pro­ blemas fundamentais da estrutura de conjunto da personali­ dade não tem qualquer hipótese de chegar a bom termo. O apego inquebrantável, e, contudo, indefensável, a um pri­ mado da necessidade simples, por exemplo, no caso de Lin­ ton, quando não pode explicar a adopção de modelos cul­ turais por um indivíduo de outra forma que não seja através de uma pretensa «necessidade de resposta afectiva», não passa, num certo sentido, senão do reflexo epistemológico da incapacidade para basear a análise na concepção da per­ sonalidade total, que subordina a si os seus elementos, isto é, da incapacidade para compreender realmente a excentrici­ dade posicionai objectiva da essência humana e a estrutura das motivações que de tal facto advêm. Chegamos ao mesmo resultado se analisarmos um outro carácter específico da necessidade humana desenvolvida: a sua extraordinária aptidão para a reprodução alargada. Nas concepções inais clássicas, que chegaram até aos nossos dias, da necessidade e da motivação tudo se baseia no esquema homeoestático: à tensão da necessidade ou do desejo corres­ ponde a actividade cujo resultado é a redução da tensão e, por consequência, o retorno a um novo equilíbrio, isto é, ao

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repouso. Nestas condições, é todo o desenvolvimento da acti­ vidade e o progresso da personalidade que se verifica ser teoricamente inconcebível, a menos que se invente uma «neces­ sidade de auto-ultrapassagem» específica do «homem» — o homem do humanismo especulativo— cuja tensão não seria reduzida senão pelo progresso, o que equivale ao ocultar do carácter de irresolução do problema, ao envolvê-lo no voca­ bulário da própria concepção que impede a sua resolução. Ora uma reflexão não apriorística sobre a biografia mostra, pelo contrário, de imediato, o carácter primordial do desen­ volvimento, de uma forma que, por intermédio de uma alte­ ração em si mesma coerente com todas as outras, se torna claro ser o facto, não obstante frequente, da estagnação o que exige maiores e mais longas explicações. O problema con­ siste, portanto, em compreender, directamente a partir da actividade humana desenvolvida, e não substancializando uma solução imaginária numa «necessidade» ou numa «moti­ vação» específicas, a lógica da reprodução simples e da repro­ dução alargada, não só. dos actos, mas também das próprias necessidades. Ora, sobre este ponto, podemos basear-nos em análises extraordinariamente penetrantes de Marx relativas a uma realidade, cuja importância na vida humana real é flagrante, mas pela qual a psicologia da personalidade exis­ tente não tem, até aqui, demonstrado qualquer tipo de preo­ cupação: o dinheiro. Nos Grundrisse, em particular, Marx estuda o que os antigos denominavam auri sacra fames, a infernal sede do ouro. Escreve: «Antes de ser transposta para valor de troca, cada forma d a riqueza natural implica uma relação essencial entre o indivíduo e o objecto: o indivíduo objectiva-se na coisa, e a posse desta representa, por seu turno, um certo desenvolvimento da sua individualidade (se é rico em carneiros, o indivíduo torna-se pastor, se é rico em cereais, torna-se agricultor, etc.). O dinheiro, em contra­ partida, torna-se sujeito da riqueza geral no termo do pro­ cesso da circulação: enquanto resultado social, representa unicamente o que é geral, não implicando, portanto, nenhuma relação individual com o seu proprietário; a sua posse não desenvolve nenhuma qualidade essencial da sua individuali­ dade, porque esta posse incide sobre um objecto desprovido de toda a individualidade; com efeito, esta relação social existe enquanto objecto tangível e externo que se pode

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adquirir maquinalmente e perder da m„*ma forma. A sua relação com o indivíduo é, portanto, meramente fortuita. Em resumo, esta relação não se encontra ligada à pessoa, mas sim a uma coisa inerte, e esta investe o indivíduo com o domínio geral sobre a sociedade e o mundo dos prazeres, dos trabalhos, etc. É como se a descoberta de uma pedra me levasse à obtenção, independentemente da minha pessoa, do domínio de todas as ciências. A posse do dinheiro põe-me em relação com a riqueza (social), tal como a pedra filosofal com todos os conhecimentos. O dinheiro não é, portanto, um objecto do desejo de enriquecimento, mas sim o seu pró­ prio objecto. É essencialmente a auri sacra fames. A paixão das riquezas é totalmente diferente da sede instintiva de riquezas particulares, tais como fatos, armas, jóias, mulheres, vinho; só é possível na medida em que a riqueza geral, enquanto tal, se individualize num objecto particular, em resumo, s e ' o dinheiro passar a existir sob a sua terceira forma. O dinheiro não é, portanto, unicamente o objecto, mas também ainda a origem da sede de enriquecer. O gosto pela posse pode existir sem o dinheiro; a sede de enriquecer é o produto de um desenvolvimento social determinado, não sendo natural, mas sim histórica.» 41 E Marx mostra qual o efeito revolucionário do dinheiro simultaneamente sobre o desenvolvimento das forças produti­ vas e sobre o desenvolvimento da individualidade: «Na sua desvairada corrida para a forma geral da riqueza, o capital leva o trabalho para além dos limites das suas necessidades naturais e cria, dessa form a,. os elementos materiais para o desenvolvimento de uma individualidade rica, tão universal no âmbito da sua produção como no do seu consumo, e de que o trabalho já não surge como trabalho, mas sim como pleno desenvolvimento da actividade: sob a sua forma ime­ diata, a necessidade natural deixou de nele ter lugar, por­ que no lugar da necessidade natural surgiu a necessidade historicamente produzida. É por isso que o capital é produ­ tivo, noutros termos, representa uma relação essencial para o desenvolvimento das forças produtivas sociais. Mas deixa de o ser a partir do instante em que o desenvolvimento des­ sas forças produtivas encontra no próprio capital uma bar­ reira ao seu progresso.» 412 «O indivíduo que cria algo de 41 Fondement3, J, pp. 162-163. 42 ibidem, pp. 273-274.

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supérfluo porque já satisfez suas necessidades elementares não corresponde ao mecanismo do desenvolvimento social. A história mostra, bem pelo contrário, que um indivíduo (ou uma classe de indivíduos) é forçado a trabalhar para além da sua estrita necessidade vital porque o excesso de trabalho se manifesta, no âmbito da sua faceta oposta, como sendo não trabalho e superabundância de riquezas. A riqueza não se desenvolve senão no seio destas contradições: virtual­ mente, o seu desenvolvimento cria a possibilidade da aboli­ ção dessas contradições.» 43 Tais análises, que nos revelam mais sobre a personali­ dade real do que toda uma biblioteca de literatura biotipológica, fornecem imensos temas para uma reflexão sobre a origem profunda das motivações da actividade desenvolvida. A sede de enriquecer, que no sentido ingénuo do termo é uma «necessidade» humana excepcionalmente importante, não é, a nenhum grau, uma necessidade originária mas sim antes um efeito estrutural exercido a partir das relações sociais sobre a produção e a reprodução da actividade e das neces­ sidades. N ão é uma nova necessidade, oriunda não se sabe bem de onde, a «necessidade de enriquecer)), que leva o indi­ víduo a buscar o dinheiro, sendo sim, pelo contrário, o dinheiro, isto é, uma relação social que confere à actividade humana um poder abstracto, logo, intrinsecamente ilimitado, de essência não psíquica, que está na origem da necessidade de enriquecer, a qual é, aliás, menos uma necessidade que vem juntar-se às outras do que uma forma mais geral no seio da qual as necessidades preexistentes se vêm cristalizar: à forma abstracta do trabalho acaba por vir aqui correspon­ der a forma abstracta da necessidade, e nem uma nem outra advêm da fisiologia. Vemos muito claramente aqui que a excentricidade posicionai, de índole social, não é apenas um carácter das necessidades humanas, mas sim, muito mais fun­ damentalmente, o segredo de todos os seus outros caracteres, lai como é o segredo da essência humana em geral. De um ponto de vista mais elaborado, a reprodução alargada da acti­ vidad e e das necessidades humanas é .o resultado do facto primordial de que a essência hum ana. real não consiste num património biológico interno de traços psíquicos hereditá-

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Obra citada, p. 357, nota.

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rios, possuindo, portanto, logo à partida, a forma psicológica e a medida da individualidade, mas sim num património social externo, susceptível de um crescimento histórico ilimi­ tado, e que ultrapassa, portanto, cada vez mais as possibili­ dades' de assimilação directa por parte do indivíduo isolado. Daí resulta que, virtual e posicionalmente, o processo de assi­ milação individual do património humano é intrinsecamente inesgotável, e mesmo tanto mais inesgotável quanto mais avançado este está, visto que o seu avanço significa, em suma, uma multiplicação das capacidades e • uma diversifi­ cação das necessidades, logo, um aumento de extensão das frentes em que o indivíduo se encontra perante a imensidade do património humano. Neste sentido, a tendência para a reprodução alargada, para poder ser entendida, não pressu­ põe nenhuma necessidade particular, já que é a expressão imediata-das relações gerais entre o homem individual e o homem social, entre o indivíduo e a sua essência. Enquanto, no caso dos animais, a interioridade das incitações de base biológica implica o domínio de uma homeoestasia do comportamento, sendo o património hereditário o que define anteeípadamente os limites das capacidades individuais, a exterioridade social e a ilimitada acumulação do património humano, o modo de relações totalmente novas que daí advêm entre ò indivíduo e a espécie repelem a homeoestasia da actividade e da motivação para o nível de ponto de partida onto­ genético, aliás, bem cedo recoberto pelos efeitos da matura­ ção e da simples aprendizagem, e, sobretudo, pouco a pouco dissolvido pela passagem ao estádio da personalidade desen­ volvida. No entanto, enquanto as formas monetárias não alcança­ rem um desenvolvimento universal e as relações sociais de posse continuarem a ser essencialmente relações concretas, a exterioridade social do património humano terá bastante dificuldade em exercer os seus efeitos: a capacidade de apro­ priação por parte do indivíduo permanece estreitamente demarcada, regra geral, pelos limites da actividade e das necessidades concretas, e uma pseudo-homeostasia deste modo de personalidade vem mascarar os efeitos virtualmente revolucionários da excentricidade posicionai, de índole social, das suas bases. Neste estádio, o homem parece, de facto, não ser senão um animal social O papel do dinheiro, e, mais gene­ ricamente, das relações capitalistas, admiravelmente definido

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pelas análises de Marx citadas mais atrás, consiste precisa­ mente em ter desintegrado essas relações de estreita subor­ dinação dos indivíduos relativamente às suas relações con­ cretas com as coisas e com os homens, logo, e ao mesmo tempo, consigo próprios, e, em primeiro lugar, com as suas necessidades imediatas. Assim, surge a possibilidade histó­ rica objectiva, não, isso é evidente, de indivíduos capazes de assimilar a totalidade do património social, que os ultra­ passa enormemente e cada vez mais — uma tal possibilidade encontra-se para sempre fora do alcance da humanidade—, mas sim de homens emancipados de toda a limitação parti­ cular que não seja a forma da própria individualidade e os limites do património social dessa época, e, nesse sentido, integralmente desenvolvidos. Mas se o capitalismo cria as condições históricas objectivas para esta realização integral da essência humana por parte dos indivíduos, ele é, simulta­ neamente, o seu pior inimigo, na medida em que não asse­ gura o desenvolvimento de todas as forças produtivas e de todas as riquezas sociais, bem como a dissolução de todos os grilhões específicos que acorrentam os indivíduos, senão através da alienação e da espoliação mais profundas da grande maioria destes indivíduos, da sua subordinação radi­ cal ao processo social de criação das riquezas, ele próprio submetido aos interesses de uma classe social cada vez mais parasitária. Num tal sistema, a separação entre o trabalho e a fruição é levada, em todos os sentidos, até ao seu ponto mais extremo. Não podendo ser uma manifestação de si, o trabalho surge essencialmente como meio para a simples reprodução da força de trabalho, correntemente identificada com a «satisfação das necessidades», e como esta reprodução dificilmente consegue ser, no capitalismo, outra coisa que não uma simples reprodução, até mesmo uma simples repro­ dução cada vez mais difícil, estabelece-se a ilusão de que as necessidades Orgânicas mais elementares são, em geral, a base absoluta de toda a actividade humana. Por outras palap vras, a — das mais diversas actividades, cujo produto absN

tracto é bloqueado pelas relações capitalistas logo ao seu nível mais básico, já não representa para os indivíduos uma incitação suficiente para a correspondente actividade, e as próprias necessidades subjacentes, longe de se desenvolverem.

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atrofiam-se. ' por isso que, sem jogar com as palavras, pode­ mos afirmai que o capitalismo é profundamente bestial, ao manter enormes massas de indivíduos, no próprio umbral da hominização integral de que ele cria as premissas, nas condi­ ções do animal, para quem não existe a riqueza inesgotável do património social. Compreende-se que o complemento ideológico mais natural do capitalismo seja uma forma vulgar de materialismo biológico, ao qual as utopias espiritualistas vêm acrescentar, por meio de uma inocente contradição, o necessário toque de álibi e de protesto ilusório. Apenas o marxismo fornece ao homem a sua verdadeira dimensão e as suas perspectivas de desenvolvimento ilimitado ao levar de volta a base biológica da necessidade a desempenhar o seu papel efectivo de ponto de partida genético e de condição de possibilidade e ao revelar, no âmbito da hominização, isto é, do entrelaçamento da socialização e da personalização, ao mesmo’ tempo aquilo que o capitalismo generaliza e aquilo a que barra o avanço, bem como o que anuncia neces­ sariamente uma fase superior do desenvolvimento histórico, isto é, do desenvolvimento dos indivíduos humanos. H isto leva-nos a discutir o terceiro argumento adiantado a favor do primado do conceito de necessidade ao criticar a ilusão que vicia certas tentativas, operadas a partir do mar­ xismo, com o fim de substituir à concepção animalizada das motivações específicamente humanas a ideia de que o trabalho é precisamente a primeira necessidade humana. A uma pri­ meira análise, esta tese parece pôr, de facto, em evidência a impotência de todas as concepções não marxistas para se aperceberem da actividade humana a partir de algo que não seja ela própria: neste sentido, qualificar o trabalho de pri­ meira necessidade equivale, pura e simplesmente, a afirmar que «a essência humana não é a necessidade, mas sim o tra­ balho». Mas semelhante interpretação leva ao ressurgir ime­ diato do carácter perigosamente especulativo da tese. Demons­ trámos longamente, ao longo do capítulo и, que se Marx define a essência humana não por meio do «trabalho», mas sim por meio das relações sociais, não se trata aqui de uma variante subalterna, mas sim de um ponto capital. Definir o homem por meio do trabalho é defini-lo por meio de uma generalidade abstracta, logo, desde o início, é afastarmo-nos

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ч materialismo dialéctico e histórico; ao mesmo tempo, tu, equivale a desconhecer o facto de que a essência humana — as relações sociais— não possui em si a forma psicológica, descoberta esta cuja enorme importância para a teoria da personalidade já tivemos ocasião de verificar. Através de um jogo de palavras, a partir dessa altura praticamente inevitável, o trabalho, por meio do qual se define o homem, e que é já, em si mesmo, concebido no âmbito da forma da generalidade abstracta, passa da acepção social (os processos sociais da produção) para a acepção psicológica (a actividade laboriosa individual). Deixámos, então, que se esfumassem, sob a aparência de uma formulação eminentemente marxista, todos os caracteres científicos mais essenciais da concepção mar­ xista do homem. Afirmar que o trabalho é a primeira necessi­ dade do homem corresponde, de uma forma extremamente directa, a transformar o trabalho numa essência psicologizada do homem abstracto: o espiritualismo do «homem criador» não terá certamente nenhuma dificuldade em chamar a si semelhante «materialismo histórico». Quanto ao resto, se «ò trabalho» fosse «a primeira neces­ sidade» do «homem», seria necessário explicar porque é que, com tamanha frequência, este surge, pelo contrário, como sendo aquilo de que o indivíduo tem mais horror, a um ponto tal que a condenação a trabalhos forçados foi sempre con­ siderada como a mais dura das penas, à excepção da pena de morte. É que, no respeitante à tese que discutimos, não foi só o conceito de trabalho que adquiriu a forma deplorável de uma generalidade abstracta, mas também, da mesma forma, o de necessidade. De que forma concreta de necessi­ dade se pretende falar quando se qualifica o trabalho de pri­ meira necessidade humana? A questão é tanto mais impres­ cindível quanto, num certo sentido, que parece, efectiva­ mente, ser o primitivo, o trabalho não é uma necessidade, senão na medida em que provém directamente das cons­ trições sociais: «se tenho necessidade» de trabalhar é preci­ samente porque o trabalho permanece subordinado à forma da necessidade, porque não é, em si mesmo, manifestação de si, mas sim simples meio de ganhar a sua vida. Deste ponto de vista, o ((trabalho que é para o homem a primeira neces­ sidade» não é, de forma alguma, a essência do ser humano, mas sim o trabalho alienado. E é por isso que, de uma forma 30

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tro da sua contradição abstracta com tempo Iivre — tal como acontece no respeitante à economia burguesa. O tra­ balho não pode tornar-se num jogo, como o pretendia Fourier, que teve o grande mérito de demonstrar que o fim último exige que se eliminem não só a distribuição actual, mas tam­ bém o modo de produção, mesmo sob as suas formas mais desenvolvidas. O tempo livre — tanto para o ócio como para as actividades superiores — transformará muito naturalmente aquele que dele usufrui num indivíduo diferente, e é este homem transformado que se apresentará, posteriormente, no seio do processo de produção imediato.» 49 Estes textos, de uma extrema profundidade de análise, tomam perfeitamente claro todo o equívoco da fórmula: o trabalho é a primeira necessidade humana. Porque, na reali­ dade, o conceito de trabalho pode adquirir duas significações não só distintas como também opostas (o trabalho enquanto meio alienado de ganhar a sua vida ou, pelo contrário, enquanto livre manifestação de si) e o mesmo acontece com o conceito de necessidade (a necessidade imediata, pobre, simples servidão animal, que, no caso do homem desenvolvido, longe de ser a base, é o subproduto da alienação, ou, pelo contrário, a necessidade mediata, rica, isto é, a livre aspira­ ção do indivíduo largamente socializado). Na sociedade capi­ talista, o trabalho social alienado (e para a grande massa dos indivíduos não há senão este) não só não é a primeira neces­ sidade (no sentido mais integral do termo) como constitui igualmente a sua radical negação. Nestas condições, não é o trabalho que é a minha primeira necessidade, sendo sim, pelo contrário, a minha primeira necessidade que exige o tra­ balho: necessito de trabalhar como meio de «ganhar» a minha vida (alienada) e, precisamente devido a tal facto, perco-a, não encontrando «tempo para viver» senão fora do trabalho, sob formas em si mesmas estioladas. Falsa na sua letra rela­ tivamente ao capitalismo, será que a fórmula é, pelo menos, válida do ponto.de vista do comunismo? Sim, num certo sen­ tido, mas em relação ao qual devemos ser extremamente cuidadosos para evitar convertê-lo, de imediato, num con­ tra-senso. No comunismo, como escreve Marx na sua Crítica do Programa de Gotha, «quando tiverem desaparecido a escra­ vidão da subordinação dos indivíduos à divisão do trabalho * *9

оъга citada, p, 230;

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e, com ela, a oposição entre rabalho intelectual e o trabalho manual», *9. Esta equivalência reveladora demonstra que a possibilidade metodológica de expor uma antropologia tomando por ponto de partida o indivíduo — possibilidade esta que o marxismo, bem entendido, não contesta de modo nenhum — é confundida com uma prioridade ontológica essencial do indivíduo relativamente às relações sociais: «o homem não é senão aquilo que faz de si mesmo» 10, o que equivale, portanto, a afirmar que é o homem, enquanto indi­ víduo (abstracto), que é obrigatoriamente considerado como 8 As mesmos análises podem, por exemplo, aplicar-se ao ensaio de M. Dufrenne, Роит Vhomme. 9 Vexistentialisme est un iiumanisme, p, 17. » ibidem, p. 22.

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fautor da história, e simultaneamente da sua própria história individual. Encontramo-nos aquí nos antípodas do materia­ lismo histórico, e, desse modo, de uma concepção autenticamente científica do individuo, que nele se articule. Não pode­ mos, contudo, simular ignorar a flagrante necessidade que se . impõe no próprio seio de cada biografía, a partir da posição justa-estrutural do indivíduo para com as relações sociais. Este problema fundamental da articulação interna «da liber­ dade» com a necessidade é um dos calvários do existen­ cialismo. Durante cerca de vinte anos, Sartre procurou resolvê-lo na base-de uma interpretação existencialista da psicanálise, ou seja, de facto reduzindo a tão complexa neces­ sidade biográfica de essência social às proporções de .uma escolha psicanalítica «original», «escolha subjectiva através da qual cada pessoa se cria enquanto pessoa» 11 e que seria enigmaticamente efectuada a partir do próprio nascimento. É evidente que uma tal concepção, em que o tema psicanalítico preenche abertamente a função de substituto para o desconhecimento do papel determinante das relações sociais, não é passível de articulação com o marxismo — o que fornece, por outro lado, a exacta medida da profunda medio­ cridade dos incansáveis biscates freudo-marxistas, aquando do Congresso Lépine da Filosofia. Da mesma forma, à medida que aumentava o seu conhe­ cimento do materialismo histórico, Sartre tomava consciência da fragilidade de uma tal solução. Em Crítica da Razão Dialéctica encontramos a sua refutação inserida numa nota: «A alienação fundamental não advém, tal como O Ser e o Nada poderia levar erradamente a acreditar, de uma escolha pré-natal: advém da relação unívoca de interioridade que une o homem enquanto organismo prático ao seu meio am­ biente.» 12 Encontra-se aqui, sem quaisquer dúvidas, um sintoma de progresso. Ou antes, encontrar-se-ia aí um certo progresso caso o sentido justa-estrutural, caso a excentricidade posicionai essencial desta «relação de interioridade» fossem reconhecidos; mas, nesse caso, tal equivaleria à morte do existencialismo.. Na realidade, toda a Crítica da Razão Dia­ léctica se orienta numa direcção perfeitamente oposta. A tese fulcral do livro está em que «o único fundamento concreto 11 UEtre et le Néant, Gallimard, JL943, p. 662. 12 Critique de la raison dialectique, p. 286, nota.

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da dialéctica histórica é a estrutura dialéctica da acção individual))t3, que os únicos agentes dessa dialéctica histórica «são os homens individuais enquanto executantes de livres actividades» *14 — homens individuais a respeito dos quais se esquece o facto de que eles próprios são previamente pro­ duto das relações sociais. A crer em Sartre, não seriam, portanto, relações sociais concretamente definidas, as relações de produção capitalistas, as responsáveis, em última instância, pela alienação dos indivíduos, ao mesmo tempo que, por outro lado, criam as condições objectivas para a sua eman­ cipação; seria, sim, o indivíduo — em geral— quem se auto-alienaria ao objectivar-se segundo modalidades universais no âmbito do «prático-inerte», ou seja, no âmbito das estru­ turas sociais — igualmente em geral—, e que poderia, por­ tanto, «ultrapassar» a sua alienação voltando a apreender o seu livre projecto individual — e unicamente desse modo. Longe de fundamentar a priori, como de tal se vangloria Sartre 1S16, a crítica marxista do capitalismo, no seio da qual a antropologia científica mergulha as suas raízes na economia política, uma tal diligência remete-se para a crítica filosófica abstracta da sociedade, falsamente concebida como inerte por oposição ao indivíduo considerado como a origem de toda a praxis'6. Assim, no seio da própria obra em que Sartre desenvolveu o mais ingente esforço para pensar, enquanto existencialista, o materialismo histórico, o homem abstracto da antropologia filosófica permanece como sendo anterior no respeitante às relações sociais. Tal equivale a afirmar que, no seio de uma tal antro­ pologia, é o indivíduo isolado da sociedade capitalista que é considerado, sem a devida crítica, como sendo o conceito-chave, é a liberdade formal concedida ao indivíduo pelas relações capitalistas que é considerada enquanto liberdade и Critique de la raison dialectique, p. 279. 14 Ibidem,, p. 377. .15 ibidem, p. 163. 16 Sob pretexto de «determinar as condições formais da história» (p. 743), ou seja, de alcançar os seu3 fundamentos mais genéricos, Sartre coloca no mesmo plano a análise do trabalho dentro de uma fábrica e a da bicha de espera do autocarro