Teorias da personalidade em Freud, Reich e Jung 8512621702

Essa obra apresenta de forma clara e introdutória os elementos fundamentais da formulação da noção de personalidade em F

183 31

Portuguese Pages 171 [173]

Report DMCA / Copyright

DOWNLOAD PDF FILE

Table of contents :
Parte I: Teorias da Personalidade em Sigmund Freud (Alberto O. Advincula Reis). Sigmund Freud: um homem, uma obra. Estrutura da personalidade. Gênese da personalidade. Personalidade e caráter. Narcisismo. Revolução na revolução. Tipos libidinais. Pulsão de vida e pulsão de morte. Bibliografia. Parte II: Teoria da Personalidade em Wilhelm Reich (Waldir Lourenço Gonçalves). Reich: um homem, uma obra. Freud e Reich: da psicanálise à orgonoterapia. Uma teoria do caráter à guisa de teoria da personalidade. Psicanálise e materialismo dialético: retomada e revisão dos conceitos freudianos. Referências bibliográficas. Parte III: Teoria da Personalidade em Carl Gustav Jung (Lúcia Maria Azevedo Magalhães). Biografia. A teoria psicológica de Jung: principais conceitos. Conclusão. Freud e Jung: semelhanças e diferenças. Referências bibliográficas e bibliografia.
Recommend Papers

Teorias da personalidade em Freud, Reich e Jung
 8512621702

  • 0 0 0
  • Like this paper and download? You can publish your own PDF file online for free in a few minutes! Sign Up
File loading please wait...
Citation preview

r

a

a

r

CLARA RÊGUMA RAPPAPORT



:

(Coordenadora)

Reis - Magalhães - Gonçalves

TEORIAS DA PERSONALIDADE EM FREUD, REICH . . E JUNG ^w

o a

Volume 7

Temas Básicos de Psicologia Coordenadora: Clara Regina Rappaport

CIP-Brasil. Catalogação-na-Publicação Câmara Brasileira do Livro, SP

R298t

84-0955

Reis, Alberto Olavo Advincula. Teorias da personalidade cm Freud, Reich e Jung/ Alberto O. Advincula Reis, Lúcia Maria Azevedo Magalhães, Waldir Lourenço Gonçalves. — São Paulo: EPU, 1984. (Temas básicos de psicologia, v. 7) Bibliografia. 1. Freud, Sigmund, 1856-1939 2. Jung, Carl Gustav, 1875-1961 3. Personalidade 4. Reich, Wilhelm, 1897-1957 1. Magalhães, Lúcia Maria Azevedo. II. Gonçalves, Waldir Lourenço. Ul. Título. CDD-15 5.2

índices para catálogo sistemático: 1. Personalidade: Teorias: Psicologia individual 155.2 2. Teorias da personalidade: Psicologia individual 155.2

ALBERTO O. ADVINCULA REIS LÜCIA MARIA AZEVEDO MAGALHÃES WALDIR LOURENÇO GONÇALVES

TEORIAS DA PERSONALIDADE EM FREUD, REICH EJUNG

Í.M ,

* Ri ©ITOM KD8GOGICB fe I € ■HOSITMM1 UDH

Sobre os Autores Alberto O. Advincuh Reis é psicólogo formado pela Universidade de Pans VII* Sorbonne Mestrado e especialização em Psicologia Clínica pelo Instituto de Psicologia da Universidade de Pans V-Sorbonne. Tese de doutoramento em preparação, com D. Anóeu. sobre “Psicanálise e Obra de Arte**. Professor de Psicologia na Faculdade de Medicina - PUC/Sorocaba; Professor titular da cadeira de Psicologia de Desenvolvimento do Instituto Unificado Paubsta (Objetivo). Lúcia Maria Azevedo Magalhães é psicóloga formada pelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo. Psicoterapeuta infantil e de adultos. Pertence ao grupo de analistas em formação na Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. Waldir Lourenço Gonçalves é psicólogo e pós-graduado pelo Instituto de Psicolo­ gia da Universidade de São Paulo. Psicoterapeuta e professor universitário. Com experiência em trabalhos psicotenpêuticos de abordagem corporal, tendo participado de atividades terapêuticas e workshops coordenados por Gerda Boyesen, Eva Reich e Ed Svastas. Coordenador de Grupos Operativos, desenvolvendo cursos e análise de grupos em empresas e escolas.

Capa: Paulo Hiss

2? Reimpressão

ISBN 85-12-62170-2 © E.P.U. - Editora Pedagógica e Universitária Lida., São Paulo, 1984. Todos os direi­ tos reservados. A reprodução desta obra, no todo ou em parte, por qualquer meio, sem autorização expressa da Editora, sujeitará o infrator, nos termos da Lei n? 6.895, de 17.12.1980, às penalidades previstas nos artigos 184 e 186 do Código Penal, a saber: reclusão de um a quatro anos. E.P.U - Praça Dom José Gaspar, 106 - 39 andar - Caixa Postal 7509 - 01047 São Tel.: (011) 259-9222 Paulo, Brasil Printed in Brazil Impresso no Brasil

Sumário

Prefácio geral da C o le ç ã o ................................................................................... P refácio......................................................................................................................

IX XI

Parte I — Teorias da personalidade em Sigmund Freud (Al* berto 0 . Advincula R eis)...............................................

1

1. Sigmund Freud: um hom em , uma o b r a ................................................. 2. Estrutura da person alid ad e........................................................................ 2.1. Uma estrutura biológica da personalidade: sonho e delírio em F reud............................................................................. 22. Uma estrutura psicológica da personalidade: sonho em F r e u d .................................................................................. 2.3. Uma concepção geral e abrangente da personalidade............. 3. Gênese da personalidade............................................................................. 3.1. L ibido.................................................................................................

9 17 19 19

3.2. Diferenciação do aparelhopsíquico............................................ 4. Personalidade e caráter............................................................................... 4 .1 . Caráter, caráter normal e caráter reativo.................................... Sexualidade e caráter.................................................................... 42. Sexualidade oral e caráter............................................................. 43. Sexualidade anal e caráter............................................................ 4.4. 4.5. Sexualidade fálicae caráter......................................................... 4.6. Complexo de Édipo e personalidade......................................... 4.7. Complexo de castração e complexo de É d ip o ........................ 4.8. Complexo de Édipo m asculino.................................................... 4.9. Complexo de Édipo f e m in in o ....................................................

20 24 25 26 27 30 33 37 38 39 40

4.10. 4.11.

Período de latência e genitalidade............................................. Genitalidade e caráter....................................................................

3 7 7

40 41

5. Narcisismo................................................................................................... Libido do Ego e libido do o b j e t o ............................................ 5.L 6. Revolução na revolução.......................................................................... 6.1. Uma nova estrutura da Personalidade: a 2 a t ó p ic a ............... 6.2. Superego, Ideal do Ego e Ego-Ideal........................................... Relações entre a realidade externa, o Id, o Superego e 0 63. Ego................................................................................................... 7. Tipos libidinais........................................................................................... 8. Pulsão de vida e pulsão de m o r t e ......................................................... 8.1. Pulsão de morte e estrutura da personalidade...................... 9. Bibliografia...............................................................................................

42 42 47 47 52 53 55 58 60 61

Parte I I — Teoria da personalidade em W ilhelm Reich 63 (Waldir Lourenço G o n ç a lv e s )........................................... 65 10. Reich: um homem, uma obra................................................................. 71 10.1. Obras consultadas*........................................................................ 72 11. Freud e Reich: da psicanálise à orgonoterapia................................... 78 12. Uma teoria do caráter à guisa de teoria da personalidade............... 12.1. A gênese da couraça..................................................................... 78 81 12.2. Caráter gcnital e caráter n e u r ó tic o ......................................... 82 1 2 3 . Aspectos qualitativo e quantitativo do caráter..................... 84 12.4. Algumas formas de caráter descritas por R e ic h ................... 1 23. Potência e impotência orgástica: a função do orgasmo . . . 93 96 12.6. Couraça caracterológica e couraça m uscular........................ 98 12.7. O caráter masoquista e o princípio do p r a z e r ..................... 12.8. A descoberta da energia orgônica........................................... 104 12.9. A estrutura segmentada da couraça........................................ 106 12.10. Conclusão..................................................................................... 108 13. Psicanálise e materialismo dialético: retomada e revisão dos con­ ceitos freudianos................................................................................ 110 13.1. Sublimação ouformação reativa?.............................................. 110 13.2. O princípio da realidade........................................................... 114 133. A organização social e o in co n scien te.................................... 116 13.4. A organização social e o complexo de É dipo......................... 118 14. Referências bibliográficas....................................................................... 122

Parte I I I — Teoria da personalidade em Carl Gustav Jung (Lúcia Maria Azevedo M agalhães).................................... 123 15. Biografia.................................................................................................... j25 V)

16. A teoria psicológica de Jung: principais c o n c e ito s .............................

132

16.1.

Libido - energética psíquica.....................................................

133

16.2.

Estrutura psíquica........................................................................

135

163.

Relação consciente-inconsciente. Funções do inconsciente

143

Processo de in divid uação.......................................................... 16.4. A teoria dos tipos psicológicos.................................................. 16.5. 17. Conclusão - Freud e Jung: semelhançasc d iferen ças.......................

147 152 163

18. Referências bibliográficas e bibliografia................................................

166

V II

Prefácio geral da Coleção

A Coleção Temas Básicos de Psicologia tem por finalidade apresentar de forma didática e despretensiosa tópicos que são ministrados em várias disci­ plinas dos cursos superiores de Psicologia ou outros em cujo curriculum constem disciplinas psicológicas. O objetivo fundamental é o de oferecer leituras introdutórias que sir­ vam como roteiro básico para o aluno e que ajudem ao professor na elabo­ ração e desenvolvimento do conteúdo programático. Neste sentido, selecionamos autores com vasta experiência didática em nosso meio, os quais, em virtude da profundidade de seus conhecimentos e de contato prolongado com alunos, cientes da dificuldade de adaptação da literatura importada para o nosso estudante, se dispuseram a colaborar co­ nosco. Esperamos, assim, contribuir para a formação de profissionais psicólo­ gos ou não, sistematizando e transmitindo, de forma simples, o conhecimen­ to acadêmico e prático adquirido por nossos colaboradores ao longo dos anos, e também tornando a leitura um evento produtivo e agradável.

Clara Regina Rappaporr Coordenadora

IX

Prefácio

A Freud coube o mérito de ser o primeiro a levar a sério a noção de in­ consciente e, assim, revelar-lhe a estrutura. Esta postura o incluiu naquela “raça de austeros sábios germânicos que fundaram a fisiologia e a filologia, renovaram a lógica, a física, a história e a filosofia” (Anzieu). Abriu-se um caminho novo no estudo da Personalidade. Através dele puderam vir outros pesquisadores. Escolhemos apresentar também, neste volume, as idéias de dois Outros autores que, além de Freud, perscrutaram corajosamente os segredos desta vereda. O que os une, consequentemente, em uma identidade de con­ cepções é o fato deles terem centrado o estudo da personalidade tomando como ponto focal o inconsciente. Isto pode, hoje, parecer banal. Mas repre­ sentou, para a Psicologia, uma revolução equivalente àquela efetuada por Copémico, na Astronomia, e por Darwin, na Antropologia. Copémico re­ tirou o homem do centro do universo. Darwin destronou-o, ao situá-lo na cadeia animal e Freud revelou o inconsciente, aquela parte que o sujeito ignora de si mesmo, erigindo-o como pedra fundamental sobre o qual se apóia o edifício da Personalidade. “Foram três feridas profundas na autoestima da humanidade” (Freud). Os autores, Freud, Reich e Jung, que ora apresentamos, refletem, tam­ bém, diferenças fundamentais. Mas estas diferenças, pelo seu teor, fazem de­ les pontos de referência de um amplo arco onde se situam todos aqueles que visam a circunscrever a noção de Personalidade dentro de uma aborda­ gem que podemos classificar de dinâmica. As diferenças básicas entre Freud, Reich e Jung pertencem a órbitas cujo centro gravitacional é a noção de sexualidade. Enquanto Jung dessexualiza, progressivamente, a noção freudiana de libido, Reich tende a concen­ trar a idéia de sexualidade, cada vez mais, nos limites estreitos da genitalidade para, finalmenlc, dissolvê-la numa concepção cósmica e fantástica. XI

A partir das diferenças e do que é comum entre as três concepções apresentadas, o estudante de psicologia, para quem esta obra é dirigida, poderá ter uma visão clara do horizonte onde se perfila a noção de perso­ nalidade. Deste modo, não tivemos a intenção de apresentar nenhum es­ b oço que refletisse a generalidade de cada uma das teorias âs quais nos re­ ferimos. Tentamos, simplesmente, extrair, do conjunto geral de cada uma delas, uma concepção específica de personalidade. A lberto O. Advincula R eis

PARTE I TEORIAS DA PERSONALIDADE EM SIGMUND FREUD Alberto O. Advincula Reis

1 Sigmund Freud: um homem, uma obra

Sigismund Freud nasceu a 6 de maio de 1856, recebendo, em confor­ midade com o costume judaico, o nome de Schlomo. Mais tarde, aos 22 anos, Freud escolherá uma forma mais concisa para seu nome: Sigmund. Os psicanalistas não deixaram escapar a ocasião de relacionar tal escolha com a utilização sistemática que Freud fazia do termo mais conciso “ Narcismo” , para “ Narcisismo” . Quando Freud tinha três anos, seu pai Jacob Freud, aos 44 anos, viuse arruinado pela crise econômica. Obrigado a deixar a cidade de Freiberg, instala a fam ília Freud em Viena. Aos 16 anos, S. Freud retomará a Freiberg para passar as férias. Aos 17 anos, termina seus estudos secundários de ma­ neira brilhante. Indeciso quanto â carreira que pretende seguir, S. Freud pensa, inicialmente, em estudar D ire ito ; abandona, em seguida, tal idéia e decide-se pelos estudos biológicos. Os estudos secundários de Freud foram acelerados e coroados de êxito. Em contrapartida, seus estudos universitá­ rios alongaram-se mais do que o normal, retratando o mal-estar que sentira em sua formação profissional. Freud permaneceu durante seis anos no Ins­ titu to de Fisiologia da Universidade de Viena como estudante de Biologia. Somente após este tempo é que decidiu, finalmente, trocar a Biologia pela Medicina. Em 1885, graças a uma recomendação de seu ex-professor £. Brücke, obtém uma bolsa de estudos no exterior. Escolhe Paris, onde estu­ da com Charcot, no hospital da Salpêtriére. A li observa as manifestações da histeria e os efeitos da hipnose e da sugestão. “ Charcot cria e suprime sin to­ mas pela palavra, mas não se trata de magia; ele mostra como os fenômenos histéricos obedecem a leis” . Freud retorna a Viena em 1886 e apresenta em conferência o resulta­ do de suas observações ju n to a Charcot. É criticado e ironizado pelo círculo

3

médico, arredio às novas idéias clínicas a respeito da histeria. Freud, que atingira a idade de 30 anos, casa-se com Martha Bernays. A jovem esposa de Freud possui uma amiga de nome Bertha Pappenhcim que fora paciente de Breuer. prestigioso médico vienense com o qual Freud se ligara. Freud pede a Breuer que lhe com unique as anotações do trabalho terapêutico que realizara com B. Pappenheim e depara-se, então, com algo extremamente original. Breuer conseguira que Bertha, sob hipnose, encon­ trasse por si só as origens ou a explicação de seus sintom as. Uma vez alcan­ çada a explicação, os sintomas se dissolviam! Breuer chamava este método de catártico. assimilando-o a uma purgação das lem branças e idéias retidas num suposto núcleo isolado da consciência. O caso de Bertha Pappenheim foi publicado mais tarde e passou a ser conhecido com o o “ caso de Ana O .“ . O método catartico, onde o paciente conduz o tratam ento longe das sugestões do médico, constituiu-se em ponto de partida da Psicanálise. Freud escreve, em 1923: “O método catartico é o precursor im ediato da Psicanálise; a despeito de toda extensão que a experiência tom ou depois e de todas as modificações que a teoria recebeu, a Psicanálise ainda contém esse método em seu núcleo**. Os estudos sobre a histeria realizados por Freud haviam perm itido que ele se livrasse da hipnose e da sugestão, descobrisse o m étodo da livre asso­ ciação e vislumbrasse o papel da sexualidade na etiologia da neurose. A partir do momento em que Freud se cala e deixa seus pacientes associaram livremente, eles começam, naturalmente, a contar-lhe sonhos. Freud interessa-se pelos sonhos. Surge, então, em 1900, o magistral livro á Interpretação dos Sonhos. Em 1905, publica os seus Três Ensaios sobre a Teoria da Sexualidade, em cujo prefácio (4? edição) escreve que “se a humanidade fosse capaz de instruir-se pela observação direta das crianças, eu poderia ter economizado a fadiga de escrever este livro**. Para Freud, a sexualidade e os diferentes mecanismos que se acoplam à sexualidade infantil constituem a origem da formação do caráter e da personalidade. Até 1906, durante um período de praticamente pouco mais de 10 anos, Freud manteve-se solitário, isolado em sua atividade. Trabalhou, escreveu, publicou e escandalizou o público com suas idéias. A lguns pou­ cos interessados, entre eles Fedem e Stekel, com eçam a reunir-se em tom o dele. O que Freud transmite a estes discípulos é um conjunto de conheci­ mentos que constituem uma concepção global da vida m ental. A base des­ tes conhecimentos é representada pela dualidade dos im pulsos de autoconservação e impulsos sexuais; pela representação de um m odelo de perso­ nalidade, constituído por instâncias topológicas denom inadas, respectiva­ mente, de inconsciente, pré-consciente e consciente; por p rin cíp io s de fun4

cionamento da personalidade que tendem a reduzir as tensões internas atra­ vés de um processo de descarga exterior, ou por meio de processos internos de defesa. Em fevereiro de 1907, Freud recebe a visita de Carl Gustav Jung, que já havia tomado conhecimento das obras psicanalíticas. A adesão do suíço Jung à Psicanálise representou, para Freud, a esperança de veicular esta no­ va disciplina em direção aos países mais ocidentais, além do fechado círcu ­ lo judaico da Europa central. A colaboração destes dois homens durará cer­ ca de 6 anos. Este período foi marcado por contribuições mútuas, senti­ mentos intensos e complementares, discussões profícuas e término emocio­ nalmente dilacerante, para ambos. Esta adesão temporária da Escola de Zurique teve, entretanto, diversos efeitos duradouros. “ Inicialmente, dela restou algo no plano do reconhecimento internacional; depois, valeu a Freud adesões importantes como a de Bnll, de Pfister e, sobretudo, de Abraham, jovem psiquiatra berlinense que trabalhara em Zurique. Se a Escola de Z u ­ rique contribui com algo na extensão da Psicanálise âs psicoses, tal fato não se deu por Jung ou Bleuler, mas por Abraham, sobretudo através de sua alu­ na Melanie K lein ” (Mannoni). Do ponto de vista da teoria, a ruptura com Jung deu-se em função do abandono, por parte deste, da centralidade da noção de sexualidade na com­ preensão da personalidade humana. Do ponto de vista técnico, a ruptura ex­ plica-se pela ênfase dada por Jung à compreensão dos conflitos atuais, em detrimento da análise dos conflitos passados. Em 1914, Jung demite-se, formalmente, da Sociedade Psicanalítica. Neste mesmo ano, Freud publica o importantíssimo artigo “ Introdução ao Narcisismo”, que foi motivado, inicialmente, pela necessidade de dar uma resposta psicanalítica às construções teóricas junguianas. A “ Introdução ao Narcisismo” também preparava o terreno para as modificações capitais que iriam ser introduzidas a partir de 1920, na teoria psicanalítica. Estas modificações constituíram-se numa verdadeira revolução que abrangeu, sobretudo, dois pontos básicos da doutrina: 1. A teoria das pulsões é modificada. A nova teoria opõe as pulsões de Vida (sexualidade, libido, Eros) às pulsões de Morte (Thanatos). Alguns biógrafos relacionaram esta nova formulação da teoria das pulsões, onde a morte é colocada em primeiro plano, com a experiência da enorme carni­ ficina que fora a I Guerra Mundial, terminada recentemente; com a morte de Sofia, filha de Freud, ocorrida no início de 1920 e com as suspeitas de câncer, que se confirmariam mais tarde. 2. Um novo modelo de constituição da personalidade é proposto. Este modelo assimila as noções de consciente, pré-consciente e inconsciente. PasS

sa, porém, a considerar a personalidade co m o fo rm ad a p o r trés instâncias: o Id ,o Egoe o Superego. \ p a r t i r desta mesma época, 1 9 2 0 , e co m o té rm in o recente da I Guer­ ra Mundial, a Psicanálise começa e desenvolver-se no plano internacional. Em Viena, Freud recebe, já , a terceira geração de psicanalistas. Entre eles, está o jovem W ilhelm Reich, que se destacará n o m o vim en to psicanalític o por dar continuidade, de m aneira sistem ática, aos trabalhos de Freud, Abraham e outros, relativos á form ação e à análise do caráter. Cabe, tam­ bém, a Reich o m érito de ter ousado p ro p o r, de m o d o p io n e iro , uma síntese entre o freudismo e o m arxism o. Esta ú ltim a parte da investigação reichiana será brilhantemente retomada por H erb ert M arcuse. A m entalidade conser­ vadora da maioria dos psicanalistas será, p arcialm en te, responsável por sua exclusão da Sociedade Psicanalítica. Esta exclusão leva R eich a rom per os laços teóricos que o uniam a F reu d . V ale acrescentar q u e , ta n to Freud como Abraham (Jones), apoiaram com entusiasmo a atividade de R eich enquanto este permaneceu psicanalista. R eich dirá, mais tard e, que rom pera com Freud devido às suas teses referentes ás pulsões de M o rte , visto que estas consistiam num abandono da teoria sexual. Trata-se de u m estranho argu­ mento, quando se sabe que Reich aderira à Psicanálise precisam ente no ano em que Freud publicara sua nova teoria das pulsões! Em 1923, Freud publica O I d e o E g o e submete-se a um a prim eira operação destinada a extirp ar o câncer que se m anifestara em sua m andíbula. Até o final de sua vida, ele se subm ete a trin ta e trés operações destinadas a deter a doença que se expandia. E m

1 9 3 3 , os nazistas, n u m verdadeiro

auto-da-fé, queimam as obras de F reu d , em B erlim . Em 1938, a Áustria é anexada à A lem an h a. A casa de Freud é por duas vezes invadida, mas tanto Roosevelt co m o M ussolini intervém em seu favor. Em 1938 foi-lhe possível, en tão , p a rtir para Lon dres, onde faleceria a 23 de setembro de 1939.

6

2 Estrutura da personalidade

2.1.

Uma estrutura biológica da personalidade: sonho e delírio em Freud

Na Psicanálise, o conceito de personalidade ocupa um espaço im por­ tante. Isto porque, enquanto psicoterapia, “ a Psicanálise é uma relação de pessoa a pessoa; enquanto psicologia, ela dá uma importância de prim eira o r­ dem à história individual e, nesta, às relações interpessoais” (Lagache). De* corre daí o fato de a Psicanálise ser uma das raras formas de psicologia que se têm preocupado com a estrutura da personalidade ou aparelho psíquico. Esta preocupação com a personalidade é tão antiga quanto a própria Psicanálise. Retomando-se os escritos de Freud, percebe-se que, na prim ei­ ra descrição da estrutura da personalidade, ou do aparelho psíquico, ele ten­ tou seguir a linha e o sentido do pensamento de seu mestre e professor de Fisiologia, Brücke. Na verdade, essa primeira descrição da personalidade re­ presentava um empenho de Freud em estabelecer um “ modelo em que toda discussão psicológica repousasse sobre modificações fisiológicas e sobre aqui­ lo que é fisicamente mensurável’* (Freud). Esta tentativa foi concretizada no famoso Esboço de uma Psicologia Científica, conhecido também como Projeto de uma Psicologia para N euro­ logistas (1895). Nele, Freud estuda a percepção, a memória, o pensamento, a afetividade, a psicopatologia da vida cotidiana e, igualmente, a sua prim ei­ ra teoria dos sonhos. Mas, trata-se, antes de tudo, de uma tentativa coerente destinada a reduzir o funcionam ento do aparelho psíquico (K ns) a um siste­ ma de neurônios e conceber, em suma, todos os processos psíquicos como modificações quantitativas.

A declaração inicial do esboço resume toda a perspectiva desta primei­ ra teoria da personalidade concebida como um aparelho mental, isto é, uma máquina mental: “Neste Esboço nós procuramos fazer a Psicologia entrar no quadro das ciências naturais, isto é, representar os processos psíquicos como estados quantitativamente determinados de partículas materiais dis­ tinguíveis. Este projeto comporta duas idéias principais: l?)aquilo que distingue a atividade do repouso é de ordem quantita­ tiva. A quantidade (Q) encontra-se submetida às leis gerais do movimento. 2?) as partículas materiais em questão são neurônios.” A concepção de personalidade que pode ser retirada deste ensaio onde Freud tenta abordar o universo inteiro da Psicologia, nos limites estreitos de uma teoria biológica, parece ser a de um aparelho composto de neurônios dotado de uma certa quantidade de energia (Q). A origem desta energia, entendida como análoga à energia física, provém tanto das excitações extemas quanto das excitações internas (Freud referia-se a ela como “uma corrente que circula” , que “ ocupa” , que “preenche” , “evacua” e “canega” os neurônios). No aparelho psíquico, a energia deve submeter-se ao princípio de constância. Ou seja, sempre que ela aumentar, o aparelho psí­ quico funcionará no sentido de descarregá-la. Isto porque qualquer aumen­ to na quantidadeMe energia significa um aumento de tensão e, portanto, de desprazer. Da ipesma forma, toda descarga de energia equivale a uma di­ minuição da tensão e, assim, há prazer. Consequentemente, Prazer e Despra­ zer são os reguladores do aparelho mental. Em síntese, pode-se dizer que, nesta primeira descrição da personalidade, o aparelho mental era conce­ bido como um sistema biológico, sujeito a excitações externas e internas, que propiciavam o aparecimento de quantidades maiores ou menores de energia. Esta quantidade de energia, por sua vez, seria regulada pelo prin­ cípio de constância, segundo o qual o aparelho psíquico deve procurar o prazer e evitar o desprazer. Para se captar esta tentativa de Freud de elaborar uma psicologia que entendesse a personalidade como um sistema mecânico de neurônios é pre­ ciso retomar o universo cultural berlinense e vienense de sua época. Lá, a Biologia era compreendida através de uma teoria físico-fisiológica, regida pelo princípio de conservação de energia e embasada nas idéias de força, atração e repulsão. Freud teve a oportunidade de estudar com o represen­ tante vienense dessa escola. Decorre deste contato seu sonho de introduzir a teoria físico-fisiológica num terreno ainda indevassado: a do estudo da personalidade. Segundo O. Mannoni, o Esboço é a última tentativa de Freud de des­ crever anatomicamente suas descobertas. Representa, desta forma, um adeus 8

à anatomia sob a forma de uma anatomia fantástica. Embora concordemos que o Esboço sintetiza um sonho e um delírio de Freud, parece-nos tam­ bém que, através dele, abriu-se o caminho para uma primeira concepção psicológica da personalidade. Muitas noções e princípios nele formulados serão preservados e utilizados como noções-chaves e princípios diretores para toda sua obra.

2.2.

Uma estrutura psicológica da personalidade: sonho em Freud

Em 3 de janeiro de 1899, Freud havia quase terminado sua monumen­ tal obra Interpretação dos Sonhos. Faltava-lhe escrever o famoso capítulo V II, referente à teoria do funcionamento do aparelho psíquico. Nele, pela primeira vez, Freud fala da personalidade utilizando-se de um modelo pura­ mente psicológico. A personalidade passa a ser compreendida como um apa­ relho psíquico e não mais neurológico. Freud abandona, na Interpretação dos Sonhos (1900), seu doce delírio de construir uma “Psicologia Neuro­ lógica” . O que ele expõe em seu capítulo V II é um modelo fictício e sem referência concreta a nenhuma biologia. Na construção deste modelo de personalidade figuram, de maneira bem demarcada, três instâncias: o cons­ ciente, o pré-consciente e o inconsciente. Quando Freud fala dessas instân­ cias ou “lugares” , ele o faz num sentido metafórico que nada tem a ver com as famosas localizações cerebrais. O aparelho psíquico figurado possui uma extremidade sensitiva (P), dotada de um sistema encarregado de receber as percepções, e uma outra extremidade, onde se localiza um sistema que abre acesso à motricidade (M). A atividade psíquica, partindo de estímulos externos e estímulos in ­ ternos (E ), percorre o aparelho psíquico indo, em geral, da extremidade perceptiva em direção à extremidade motora. Para Freud, as extremidades P e M podem ser consideradas como constitutivas do sistema consciente.

Figura 2.1

9

Figura 2 .2

Ora, acontece que este aparelho não é uma caixa preta, posto que tudo aquilo que nos atinge enquanto percepção (extremidade de P), interna ou externa, deixa em nosso aparelho um traço m ném ico (S). Desta forma, temos que considerar que a estrutura do aparelho psíquico é constituída não só pelos pólos perceptivo (P) e motor (M) mas, também, por outro sistema, destinado a conservar os traços dos estím ulos que o atravessam no sentido dePaM . Assim, Freud propõe a existência de um terceiro sistema denominado “sistemas S”, através do qual se esclarece o processo que se desenvolve no interior do aparelho psíquico. A postulação desses “sistemas S” justifica-se pelo fato de que o pólo perceptivo (P), tendo uma função receptora, deve conservar-se sempre apto e livre para poder receber, continuamente, novos estímulos de proveniência externa e interna. De fato, um mesmo sistema se­ ria incapaz de executar, simultaneamente, as funções de recepção e arma­ zenamento (registro), sem entrar em colapso. Este terceiro sistema (S), tal com o Freud o descreve, é formado por vários subsistemas (donde a utilização do plural, sistemas S), todos eles empenhados em fixar e organizar as excitações que os atravessam, sob a forma de traços mnémicos. O primeiro subsistema deverá reter e organizar estes traços através de relações de simultaneidade, e os posteriores fixá-losão através de relações de semelhança. Estes traços, gravados e organizados por relações de semelhança e de simultaneidade em nossa personalidade, são de natureza inconsciente e constituem a base sobre a qual repousa nosso caráter. Desta forma, existe inscrita em nossa personalidade uma série de tra­ ços mnémicos, radicados em sensações perceptivas (tateis, visuais etc.) expe­ rimentadas em nossa infância que, tomando-se criticáveis em nossa vida adulta, são impedidos de se realizarem de maneira consciente e voluntária. Estes traços, embora inconscientes, permanecem ativos e marcam nossa ma­ neira de ser, determinando nosso caráter. 10

Percepção Conicléncla

Pré-coniciente

Figura 2.3.

Ora, se os traços mnémicos, apesar de poderem “tornar-se conscien­ tes” , permanecem inconscientes, isto se dá por força de uma “instância p sí­ quica que submete a atividade inconsciente a uma crítica ” , impedindo seu acesso à consciência. Esta instância crítica é o princípio que norteia nossa vida, desperta e dirige nossas ações voluntárias, engindo-se como verdadeira barreira entre a parte criticada de nossa personalidade e a consciência. O sistema encarregado da crítica encontra-se na extremidade motora da personalidade e é assimilável ao que Freud descreve como pré-consciente. No esquema final do aparelho psíquico (ílg. 2.3), esta configuração pode ser observada. 2.2.1. Os três sistemas da personalidade: inconsciente, pré-consciente e consciente Na teoria psicanalitica, a concepção de personalidade é frequentemen­ te identificada com este modelo de aparelho psíquico que acabamos de des­ crever. Entretanto, a concepção de um aparelho psíquico estruturado em três instâncias distintas, a saber, inconsciente, pré-consciente e consciente, não constitui o único modelo psicanalítico construído para tentar abraçar a noção de personalidade. Freud, posteriormente, construiu um outro mode­ lo (trabalhando, agora, com as noções de Id, Ego e Superego) sem, contudo, abandonar esta primeira descrição que, embora limitada, guardou um grande valor explicativo. Ao examinar o primeiro modelo de personalidade (também denomi­ nado de primeira tópica), observa-se que suas três instâncias (inconsciente, pré-consciente e consciente) são nitidamente demarcadas por barreiras que as separam entre si. A barreira que separa o inconsciente do pré-consciente é constituída por um ato bem preciso, o recalcamento. O recalcamento con­ siste em excluir da consciência toda representação psíquica que a crítica for­ mulada pelo princípio que norteia nossa vida desperta e voluntária julgue inaceitável. O processo de separação entre as instâncias psíquicas é estabele11

cido, além do recalcamento, pelo fato de cada uma das instâncias apresentar modos diferentes de funcionamento. Entretanto, referir-se à personalidade com o um aparelho psíquico composto de trés sistemas, demarcados por m odos diferentes de funciona­ mento, é insuficiente. No nosso entender, o essencial da Psicanálise reside na ousadia de postular a existência desses trés sistemas p síq u icos, im plican­ do em uma ruptura com toda tradição psicológica que, desde Descartes, de­ fine a personalidade tomando a consciência com o ponto de referência. Em ­ bora Freud não estabeleça o centro da personalidade na consciência, ele não compreende esta última como fenômeno pouco im portante. A consciência continua sendo, para ele, um dado inegável da experiência hum ana. Mas são, precisamente, as lacunas da consciência que o levam a postular a existên­ cia dessa outra instância denominada inconsciente. Inconsciente O inconsciente não é uma negação do consciente, define-se com o um outro território ou uma outra cena da personalidade. Este território incons­ ciente é ativo, organizado por leis e p rincípios que lhe são próprios, e sub­ metido a um regime de funcionamento energético que lhe é específico. Este sistema constitui o núcleo ativo da personalidade. Considera-se o inconsciente como sendo co n stitu íd o de dois aspectos principais: l. Um conteúdo definido pela presença de atos psíquicos que care­ cem de consciência. Por ato psíquico (idéia), entende-se traços mnêmicos devidamente investidos de energia libidinal. “ O conteúdo do inconsciente con­ siste, pois, em impulsos canegados de desejo” (Fre u d , 1915). O conteúdo do núcleo do inconsciente são as formações herdadas (protofantasias)*e

* Protofantasia ou fantasia originária são, na concepção freu d ian a, precipitados psí­ quicos de eventos reais ocorridos na aurora da hum anidade. Estes precipitados foram , em seguida, transmitidos de geração em geração, passando a co n stitu ir o núcleo do inconsciente de cada indivíduo. A fantasia de castração é um a protofantasia. Para Freud, ela teria ongem na separação real dos seres humanos em indivíduos sexualmente diferentes: masculino e feminino. Freud supõe, baseado na an ato m ia com parada, onde se notaria a equivalência entre o clitóris e o pênis, a próstata e o ú tero e tc ., que o ser humano primordial ou original era bissexual. A p a rtir de um m o m e n to , houve uma diferenciação em indivíduos idênticos e sexos diferentes. A marca deste m om ento crítico existiría em nosso inconsciente enquanto protofantasia.

12

transmitidas de geração em geraçío (Freud, 1915). Esta opinião de Freud relativa ao núcleo do inconsciente assemelha-se integralmente às noções de inconsciente e arquétipo, de Jung. A essas formações herdadas junta-se tu­ do aquilo que foi descartado durante o desenvolvimento infantil e que não é admitido no consciente do adulto. Em geral, uma divisão definitiva entre o conteúdo dos sistemas inconsciente e consciente só ocorre após a puber­ dade. 2 . Um modo de funcionamento que o define, então, enquanto um sis­ tema organizado. Percebe-se, em decorrência disso, que o inconsciente apre­ senta características que não são encontradas em nenhum outro sistema. Essas características consistem nos seguintes aspectos: - Os conteúdos do inconsciente são coordenados entre si sem, con­ tudo, se influenciarem mutuamente. Assim é que, quando dois impulsos psíquicos carregados de desejo tomam-se ativos, eles não se anulam nem se reduzem, mesmo se suas finalidades se revelam incompatíveis entre si. O sistema inconsciente funciona, consequentemente, isento de todo e qualquer tipo de contradição. - O sistema inconsciente desconhece a dúvida e a negação. Ele tende unicamente à satisfação afirmativa de seus desejos. Este sistema é regulado exclusivamente pelo princípio de prazer. - O inconsciente dispensa toda e qualquer referência à realidade, ele ignora a realidade. — Os processos inconscientes são atemporais. A atemporalidade do inconsciente envolve basicamente dois aspectos. Em primeiro lugar, seus conteúdos não são organizados em função da ordem de suas ocorrências, vis­ to que a dimensão da temporalidade é desconhecida por ele. Em segundo lu ­ gar, tais conteúdos não se alteram ao longo da história de vida do sujeito, uma vez que esta é, em última análise, fruto da passagem do tempo. Assim, os conteúdos inconscientes são sempre idênticos a si mesmos e imortais. En ­ contra-se a í a explicação de como eventos que ocorreram na infância po­ dem» a partir de seu registro no inconsciente, exercer plenamente seus efei­ tos na vida do sujeito adulto. — Esses conteúdos estão sempre ativos e permanecem presentes no inconsciente, mesmo quando passam para o sistema consciente (veja, a este propósito, esquema da fig. 2.4). - Embora a dimensão temporal não exista no inconsciente, ele contu­ do não carece de organização. É estruturado por relações de semelhança e contigüidade. — As relações de semelhança e contigüidade coincidem, respectiva­ mente, com os processos de condensação e deslocamento. Na condensação. 13

Figura 2.4. No primeiro esquema observa-se que aquilo que é de interesse para a psica­ nálise não é a pulsão em si, que é um conceito essencialmente de caráter biológico, mas seu efeito no aparelho psíquico denominado de “ representante psíquico da pulsão". 0 representante psíquico da pulsão presente no inconsciente pode tam bém apresentarse no consciente e vir, então, a ser observado, notado, pela consciência (o lh o ). Chama­ mos, sobretudo, atenção para a localização simultânea do representante psíquico da pulsão no inconsciente e no consciente. O segundo esquema ilustra, parcialm ente, o mecanismo do recalcamento. O representante psíquico não se apresenta mais no cons­ ciente, figurando apenas no inconsciente.

14

uma idéia pode apropriar-se dos investimentos energéticos de várias outras idéias, reunindo-as num todo único. No deslocamento, uma idéia pode ceder a outra sua intensidade energética. - O regime energético presente no sistema inconsciente é caracteri­ zado por seu aspecto móvel e livre. É este regime livre e móvel que permite, por exemplo, o funcionamento estruturante das operações de condensação e deslocamento. - Os processos inconscientes não são aptos a passarem diretamente para o consciente e, a partir daí, realizam-se na realidade. O sistema "in­ consciente não seria sequer capaz, em condições normais, de provocar atos musculares adequados à exceção dos já organizados como reflexos" (Freud, 1915). O inconsciente é concebido, desse modo, como um sistema que possui um conteúdo e um modo de funcionamento, cujas características básicas encontram-se: - na ausência de contradição, de negação e de temporalidade; — na presença de um processo primário (mobilidade dos investimen­ tos libidinais orientados peb serie prazer-desprazer) e - na possibilidade de substituir a realidade externa pela realidade psíquica. Pré-consciente O consciente divide-se em dois sistemas: o pré-consciente e o conscien­ te propriamente dito. Estes sistemas possuem basicamente as mesmas carac­ terísticas. A distinção existente entre eles, embora fundamental, é apenas de cunho funcional. O pré-consciente é um sistema situado entre o consciente e o inconsciente. Por sua vez, entre o pré-consciente e o inconsciente existiria uma “censura", cuja função é impedir que certos conteúdos, presentes no sistema inconsciente, tenham livre acesso aos demais. Esta censura é res­ ponsável pelo recalcamento, processo que afeta, essencialmente, as idéias, na fronteira do sistema inconsciente com o pré-consciente. A distinção entre um sistema inconsciente e um sistema pré-consciente esclarece, por inteiro, a situação dos atos psíquicos no interior da personali­ dade. Podemos, segundo Freud, dizer que todo ato psíquico passa por duas etapas, entre as quais se interpõe a censura. Como já foi visto, na primeira delas o ato psíquico é inconsciente e pertence, pois, ao sistema inconsciente. Ao tentar passar para o sistema pré-consciente, o ato psíquico é submetido à ação da censura. Caso lhe seja barrado o acesso a esta segunda etapa, diz-se que houve recalcamento. Entretanto, se a censura libera-lhe a passagem, o 15

ato psíquico em questão passa a pertencer ao sistema pré-consciente. Tal ato adquire, desta maneira, a capacidade de se tomar consciente, desde que cer­ tas condições mínimas sejam atendidas. Uma vez no pré «consciente, não há necessidade de o ato psíquico enfrentar nenhuma resistência maior para se tornar consciente. Neste sentido, cabe ao pré-consciente acolher e organizar os atos psíquicos susceptíveis de se tornarem conscientes, podendo assim ser comparado a uma sala de espera, onde as idéias se reúnem na esperança de serem recebidas e notadas por um soberano ilustre, ou seja, a consciência. Em resumo, o pré-consciente constitui-se, a exemplo do inconsciente, em um sistema da personalidade, no interior do qual podemos distinguir um conteúdo e um processo que regem o seu funcionamento. O conteúdo do pré-consciente é formado por representações (atos psíquicos) que lograram transpor a censura e integrar-se aos princípios do processo secundário. Estas representações mostram-se aptas, nestas condições, a se tornarem conscien­ tes. O processo de funcionamento do sistema pré-consciente (o processo secundário) caracteriza-se pela forma de seu regime de energia e pela nature­ za de seu próprio processo de funcionamento. Ao regime de energia pré-consciente dá-se o nome de energia ligada (em oposição â energia livre do sistema inconsciente). A energia ligada refere-se a um funcionamento energético que pressupõe um grau mais elevado na es­ truturação da personalidade. Assim, no pré-consciente, ao contrário do que ocorre no inconsciente, a energia não busca uma descarga imediata, direta e rápida. O processo secundário possui um movimento controlado, operando no sentido de inibir a tendência, própria das idéias investidas libidinalmente, de procurar uma descarga (satisfação) imediata. Este processo, que posterga e inibe a tendência à satisfação imediata, associa-se integralmente ao prin­ cípio de realidade. Diz-se que o princípio da realidade opõe-se ao princípio de prazer, que é dominante no inconsciente. Opor-se ao princípio de prazer signi­ fica obter prazer em conformidade com as condições oferecidas, ou impos­ tas, pela realidade. Em virtude da consideração que o pré-consciente tem pe­ la realidade, torna-se necessário que ele possua o controle do acesso à motilidade (pólo motor). Ele é, então, responsável pela execução adequada das ações motoras efetuadas pelo sujeito. 0 funcionamento do sistema pré-consciente atinge não só o controle da motilidade como também o pensamento ágil, a atenção, a memória e o raciocínio. Além dessas funções, o pré-consciente é responsável pela censura que bloqueia o livre acesso dos conteúdos inconscientes ao consciente e à realidade. Entretanto, quando assimilados pelo pré-consciente, os atos psí­ quicos são imediatamente organizados e coordenados através das categorias de espaço e tempo e associados, finalmente, a um código representacional. 16

J

Consciente Ao consciente dá-se o nome de sistema percepção-consciência (PcptCs). Nele, a consciência aparece como uma qualidade momentânea que se caracteriza pelo fato da personalidade dispensar, temporariamente, atenção a certas representações pré-conscientes. Para Freud, é como se este sistema se situasse na periferia do aparelho psíquico. Sua função principal consiste na recepção de excitações provenientes do mundo externo ou do interior do sujeito. Entretanto, ao contrário do que ocorre no pré-consciente, bem co­ mo no inconsciente, o consciente não se deixa marcar por nenhuma excita­ ção (sistema dos traços mnêmicos). Os mesmos processos que regem o préconsciente encontram-se também no sistema consciente. A censura que separa o consciente do pré-consciente é simplesmente uma censura “ funcio­ nal” , que deixa passar os elementos psíquicos pré-conscientes que interes­ sam â consciência num dado momento.

2.3.

Uma concepção geral e abrangente da personalidade

A contribuição freudiana ao estudo da personalidade não se limita apenas â descrição sistemática das instâncias psíquicas do inconsciente, do pré-consciente e consciente, nem tampouco das do Id, Ego e Superego, for­ muladas posteriormente. Sabe-se que o aprofundamento das motivações hu­ manas conduziu Freud a articular uma concepção geral e abrangente de personalidade, denominada Metapsicologia. Meta psicologia significa a psicologia que “consegue descrever um processo psíquico em suas relações dinâmicas, tópicas e econômicas” (Freud, 1915). O estudo psicanalítico da personalidade envolve, conseqüentemente, a obrigatoriedade de considerála sob estes três pontos de vista. Desta forma, quando nos referimos ao aspecto tópico da personali­ dade, estamos nos reportando a uma concepção que a encara como sendo dividida em territórios ou localizações distintas. Por sua vez, o aspecto di­ nâmico nos chama a atenção para os processos específicos que se passam no interior de cada um dos territórios da personalidade. Finalmente, o aspecto econômico ressalta o fato de que as quantidades de energia de cada um dos processos são distribuídas de maneiras distintas. São, portanto, regidas por diferentes regimes. Além das três dimensões acima, deve-se assinalar uma outra que in­ troduz, aliás, uma noção extremamente moderna no domínio da Psicologia: a de gênese. A perspectiva genética, aberta por Freud, mostra que a perso17

nalidade se constrói através dos cam inhos e descam inhos do desejo. A o a fir­ mar que é pela história de nossos desejos que fo rja m o s nossa personalidade, a Psicanálise tom a esta noção m u ito p ró x im a da de in d iv id u a lid a d e e de história de vida. Ao considerar a personalidade co m o u m sistema geral que se con strói através das vicissitudes de nossos im pulsos, F re u d ressalta alguns m o m en to s críticos e certos pontos nodais. Estes m o m en to s decisivos na fo rm a ç ã o do caríter e na edificação da personalidade são as fases lib id in a is pré-genitais c os complexos correlativos (co m p lexo de C astração e c o m p le x o de É d ip o ).

18

Gênese da personalidade

3.1.

Libido

Nós sabemos que o núcleo ativo da personalidade, na concepção psicanalítica, é constituído pelo inconsciente. Este, por sua vez, também possui um núcleo constituído por formações herdadas que passam de geração em geração. Estas formações são as fantasias originárias ou protofantasias. A estas formações mentais originárias agregam-se todos os elementos que impressionaram o sujeito no curso de seu desenvolvimento e que fo­ ram rejeitados, posteriormente, pelo consciente. Estes elementos rejeita­ dos permanecem, entretanto, ativos no inconsciente. Estas impressões in­ conscientes (traços mnémicos) são precisamente aquelas que agirão de ma­ neira mais forte no indivíduo. Para Freud, estas impressões que raramente se tornam conscientes são, em essência, de natureza sexual. A Psicanálise, entretanto, entende, pelo termo sexual, algo que difere da idéia corrente de “sexo” e é mais abrangente do que a noção restrita à genitalidade. Esta é efetivamente uma expressão da sexualidade, embora a sexualidade não seja redutível â genitalidade. De maneira geral, concebe-se a noção de sexualidade como sendo correlativa à noção de impulso. Como vimos anteriormente, o aparelho mental é submetido a excitações (E) de procedência tanto externa quan­ to interna. Ao representante psíquico das excitações internas dá-se o nome de impulso. Assim, na definição freudiana, impulso é um conceito ener­ gético, situado entre o somático e o psíquico, que se define por quatro características básicas: origem, especificidade, objetivo e objeto. Toda energia, ou todo impulso, possui uma origem. A origem desta energia é somática, localizada na região do corpo onde nasce a excitação. 19

Além disto, a energia possui uma especificidade, ou seja, ela exerce uma força contínua no sentido de sua satisfação, que nada mais é do que uma diminuição da intensidade da pressão ocasionada pela excitação. O objeti­ vo do impulso é, assim, alcançar sua satisfação através de um modo ou maneira específica e, para tanto, ele irá necessitar de um objeto. Existe uma infinidade de im pulsos (de ver, sentir, de se alimentar, de conhecer, os sexuais, os agressivos etc.). A Hm de se evitar o inconve­ niente de listá-los, incorrendo em uma ação desprovida de sentido prático e interesse explicativo, Freud optou por agrupar os im pulsos em catego­ rias. Assim, em um primeiro m om ento, ele estabeleceu dois grupos de impulsos: os de autoconservação e os sexuais. Os impulsos de autoconservação são aqueles destinados a preservar a vida do indivíduo, podendo-se assinalar, entre eles, por exe m p lo , a fome. Os impulsos sexuais ignoram completamente a finalidade própria dos im ­ pulsos de autoconservação e destinam-se exclusivam ente a preservar a vida da espécie. É nesta medida que eles estão associados, direta ou indireta­ mente, à função de reprodução. Desta form a, os dois grupos de impulsos tém em comum o fato de estarem ambos em penhados na atividade vital, seja do indivíduo, seja da espécie. Na realidade, o que os diferencia é o fato de os im pulsos sexuais, ao contrário dos impulsos de autoconservação, não estarem ligados a nenhu­ ma satisfação de necessidades fisiológicas de sobrevida. A pressão dos im ­ pulsos sexuais é, entretanto, tão poderosa e im perativa quanto a dos im pul­ sos de autoconservação.

Excitação

Externa

3J .

sexual

Interna ----- Impulso

autoconservação

pré-genital

genital

Diferenciação do aparelho psíquico

A distinção que acabamos de estabelecer entre im pulsos de autocon­ servação e impulsos sexuais é de grande valor na com preensão da gênese da complexa e contraditória personalidade humana. Vejam os por quê. Postula-se, inicialmente, que o aparelho mental do bebê recém-nasci­ do seria relativamente simples, homogêneo e onipotente em seu funciona­ mento. A este modo inicial de funcionam ento, cuja característica prim ordial é a ausência de contradição, Freud chamou de processos m entais prim ários:

20

“o que chamamos de processos mentais inconscientes são os processos mais antigos, primários, resíduos de uma fase do desenvolvimento em que eram o único tipo de processo mental*’ (Freud). Assim, pode-se dizer que os pro­ cessos mentais primários constituem, no bebé, a única forma de funciona­ mento do aparelho mental. São, portanto, anteriores à divisão da personali­ dade em sistemas conscientes e inconscientes. Os processos mentais primários são orientados exclusivamente pelo princípio de prazer. Neste sentido, eles esforçam-se por alcançar o prazer (reduzindo a tensão gerada pelas excitações internas, no aparelho psíquico), afastando-se de toda situação que possa suscitar desprazer (acúmulo de ten­ são, provocada pelas excitações internas, no aparelho psíquico). Assim, o aparelho mental do bebé satisfaz as exigências dos impulsos, ignorando a realidade. Freud explica esta possibilidade de satisfação imediata dos impulsos do recém-nascido, que descarta os limites impostos pela realidade, da se­ guinte forma: a primeira obtenção de uma satisfação ocasional, através de um impulso qualquer, deixa uma marca no aparelho psíquico do bebê, sob a forma de traço mnémico. Quando, novamente, o aparelho psíquico for perturbado por uma excitação interna (aumento da tensão equivalente ao desprazer), o recém-nascido alcançará satisfação imediata por meio de uma alucinação. Esta alucinação nada mais é do que a revivescência perceptiva (P) do traço mnémico referente à primeira experiência de satisfação. Poderiamos, então, dizer que o aparelho psíquico do bebê toma seus desejos por realidade. É neste sentido que ele é onipotente. Porém, a frus­ tração e a decepção, decorrentes da inocuidade das satisfações alucinatórias, induzem o aparelho psíquico a, gradativamente, levar em consideração a realidade e abandonar a alucinação como meio exclusivo de satisfação. O bebê é, assim, impelido a levar em conta o real, mesmo se este se apresenta como desagradável. Desta forma, um novo princípio no funcionamento do aparelho mental é introduzido ao lado do princípio de prazer: o princípio de realidade. O princípio de realidade, ao obrigar a criança a levar em consideração a realidade na tentativa de satisfação de seus desejos, vai obrigá-la a poster­ gar a satisfação de ímpeto imediato. Esta é submetida por uma satisfação tardia, porém mais segura, que incorre em menor risco para a integridade da personalidade do indivíduo. Uma série de funções colocam-se, então, â disposição do princípio de realidade e atuam no sentido de investigar a rea­ lidade exterior, agenciando ou ligando os impulsos internos “livres” a possi­ bilidades concretas de satisfação. Essas funções, que são a consciência do real, a atenção, a memória consciente, o pensamento racional etc., estão 21

regidas pelo princípio de realidade e constituem um todo, um novo sistema de funcionamento psíquico que co-existirá ao lado dos processos primários. Este novo sistema é denominado processo secundário, por derivar do processo primário. Desta form a, com a introdução do prin cípio de realidade, a personalidade toma-se mais com plexa, distinguindo-se em dois sistemas: um, regido pelo princípio de realidade, sede dos processos secundários, do­ tado de funções apropriadas à satisfação segura, porém mais limitada, dos desejos; outro, regido pelo p rin cíp io de prazer, sede dos processos primários que ignoram a realidade que, em decorrência, tendem a satisfazer o desejo de maneira imediata, sem postergação, e de forma alucinatória. Enquanto o primeiro sistema utiliza-se, sobretudo, de um modo de pensar consciente para atingir seus fins, o segundo sistema utiliza-se de um m odo de pensar inconsciente que denominamos fantasia. A fantasia está presente nas brin­ cadeiras e jogos infantis, nos sonhos dos adultos, nos sintomas dos neuró­ ticos, constituindo o fundo dinâm ico da personalidade de todos nós. Esta diferenciação no interior da personalidade prim itiva não se esta­ belece repentinamente, mas sim no decorrer de um processo, ao longo do qual ela se torna cada vez mais com plexa. A o diferenciar-se em modos au­ tônomos de funcionar, a personalidade é dotada, por assim dizer, de duas formas distintas de pensar: a primeira denominada fantasia, regida pelo princípio de prazer e de natureza inconsciente e, a segunda, regida pelo principio de realidade, constituída pelos processos cognitivos de natureza consciente. O advento do princípio de realidade não determina, porém, apenas a diferenciação da personalidade em dois sistemas mas, também, implica em uma diferenciação progressiva na econom ia, na topologia e na dinâmica psíquica dos dois grupos de impulsos (autoconservação e sexuais) que, no início da vida, encontravam-se im brincados um no outro. Os primeiros im­ pulsos a cair sob o domínio do princípio de realidade são os impulsos de autoconservação. A razão disto pode ser demonstrada de maneira evidente e clara. Estes impulsos de autoconservação, tais com o a fome e a sede, exi­ gem, com efeito, uma satisfação mais concreta e ajustada à realidade. Um viajante sedento, perdido no deserto, pode, durante algumas horas, satis­ fazer-se com a miragem de um oásis repleto de água e tâmaras. Esta aluci­ nação, porém, em breve se esvanecerá. Caso ele não procure meios reais que possam satisfazer seu desejo de beber, seguramente perecerá. Já os impulsos sexuais, por se comportarem de maneira auto-erótica, podem subtrair-se facilmente às exigências da realidade. Assim , podem en­ contrar condições de satisfação no próprio corpo quando estas condições se revelam inexistentes ou árduas no mundo externo. Um exemplo dessa 22

situação pode ser fornecido através da consideração da masturbação. Em vir­ tude disso, “o impulso sexual, em seu desenvolvimento psíquico, permanece muito mais tempo sob o domínio do princípio de prazer do qual, em muitas pessoas, nunca é capaz de afastarse” (Freud). É, pois, a existência do auto-erotismo que torna possível a satisfação imediata e imaginária, em relação ao objeto sexual, em lugar da satisfação real, que exige esforço e adiamento. Em consequência destas condições, surge uma vinculação mais estreita entre o impulso sexual e a fantasia. Am­ bos, com efeito, por se desligarem e ignorarem as exigências da realidade, associam-se entre si. Os impulsos de autoconservação e as atividades da cons­ ciência, por sua vez, também estabelecem vínculos. A parte consciente da personalidade, associada aos impulsos de autoconservação, necessita, tão-so­ mente, lutar pelo que é útil e resguardar-se contra possíveis danos e ameaças. Esta identificação ou vinculação estreita entre fantasia e impulsos sexuais de um lado, e atividades conscientes e impulsos de autoconserva­ ção de outro lado, não é primária: ela se dá ao longo do desenvolvimento e diferenciação da personalidade. É no processo de desenvolvimento psíqui­ co que toda fantasia toma-se fantasia sexual, constituindo o fundo dinâmi­ co da personalidade humana.

23

4 Personalidade e caráter

0 termo ‘'personalidade"denva de Persona*,que significa máscara. Es­ tá em relação estreita com as noções de pessoa e personagem, ao passo que caráter origina-se do grego kharasséin ou kharakter significando, respectiva­ mente, gravação e marca. A primeira destas noções, a de personalidade, é usada, na teoria psicanalítica, no sentido de compreender os interesses gerais da pessoa e o jogo conflitivo destes interesses enquanto se acordam ou se opõem. Personalidade é, tomada, então, como sinônimo de aparelho psíqui­ co ou aparelho mental. Já o termo caráter é mais específico. Implica na aquisição e estruturação de um certo número de traços ou marcas, deixadas no sujeito ao longo de seu processo de desenvolvimento,e que determinam, no interior da personalidade, uma postura típica face aos diferentes aconte­ cimentos e situações da vida. Os traços indeléveis, precipitados no inconsciente durante o processo de desenvolvimento são, sobretudo, decorrentes dos impulsos sexuais. De fato, observa-se que, entre o início e o término do processo de gênese da personalidade, ocorre uma série de fases através das quais os impulsos se­ xuais se organizam. A seguir, os traços psíquicos dos impulsos sexuais, oriundos deste processo de organização, são depositados no inconsciente e transformados em traços manifestos de comportamento, definindo, então, um tipo específico de caráter. Em função disto, fala-se em fontes orais, anais, fálicas e genitais do caráter.

*

24

Ver parte UI desta obra, "Teoria da Personalidade em Jung”.

4.1.

Caráter, caráter normal e caráter reativo

A teoria psicanalítica apresenta duas concepçOes ligeiramente diferen­ tes dc caráter. Sc. de um lado, esta noção é apresentada através de uma ver­ tente que se pode qualificar de normal, dc outro lado ela é apresentada atra­ vés de uma outra que faz ressaltar seu aspecto patológico. A primeira destas concepções liga-se às formulações de Freud presen­ tes na Interpretação dos Sonhos (1900). A í. ele afirma que tudo aquilo que nos ocone ao longo da vida permanece inscrito cm nosso inconsciente sob forma de traços mnémicos indeléveis. É sobre os traços das primeiras experiências, que agiram em nós da maneira mais impressionante, que se constrói o caráter. Decorre daí que caráter pode ser definido, então, como uma transformação do precipitado, relativamente estável e estruturado, resultante do desenvolvimento das organizações libidinais pré-genitais e genital. Os mecanismos que operam esta transformação, determinando a for­ mação de um caráter, são a sublimação e a formação reativa. 4. L 1.

Sublimação e caráter normal

A sublimação é o mecanismo predominante na formação do caráter normal. Ela se define como derivação do impulso sexual em direção a um objetivo não sexual. Desta forma, a sublimação visa sempre a objetos so­ cial ou culturalmente valorizados. Esta transformação do impulso sexual em atividades culturalmente valorizadas é particularmente nítida no trabalho intelectual ou na criação artística. “ O impulso sexual coloca à disposição do trabalho cultural quantidades de força extraordinariamente grandes. Isto em virtude de sua particularidade de deslocar seu objetivo, sem perder sua intensidade” (Freud). É importante, ainda, assinalar que a subli­ mação incide eletivamente sobre os impulsos sexuais pré-genitais (Freud, 1904) que não lograram integrar-se na sexualidade genital total: “ Os im pul­ sos sexuais pré-genitais que não participam da sexualidade genital são, pos­ teriormente, sublimados e irão constituir a gama de comportamentos está­ vel e estruturada que nós denominamos caráter” (Freud). 4.1.2.

Formação reativa e caráter reativo

A segunda concepção de caráter percorre a vertente clínica dos tex­ tos psicanalíticos e refere-se ao caráter, enquanto este revela uma certa or­ ganização patológica. Neste caso, caráter passa a designar toda neurose as25

sintomática. Trata-se de um tipo de neurose onde o conflito defensivo no interior da personalidade n lo se traduz pela formação de sintomas, mas apresenta-se através de traços de caráter ou modos de comportam ento. As­ sim, caráter é entendido como uma formação essencialmente defensiva, des­ tinada a reagir face aos impulsos sexuais e a opor-se ao

aparecimento de

sintomas. Este caráter reativo distingue-se do caráter normal por seu aspecto rígido, acentuadamente estático, forçado e, por isso mesmo, frágil. Um cará­ ter constituído por traços de comportamento onde nenhuma flexibilidade cabe pode romper-se diante de uma situação particularmente intensa, dei­ xando a personalidade à mercê das forças incontroláveis (livres) do incons­ ciente. 0 meçanismo predominante na formação deste caráter é a formação reativa. A formação reativa é uma atitude ou hábito de sentido oposto a um desejo inconsciente. Freud fornece alguns exemplos de formações rea­ tivas através da análise do pudor, que se opõe às tendências exibicionistas, do nojo, opondo-se às tendências anais, e da piedade, como reação contra as tendências sádicas do sujeito. “ Em termos econômicos, a formação rea­ tiva é um contra-investimento de um elemento consciente de força igual e oposta a um investimento inconsciente. A formação reativa exclui da consaêncà tanto a representação sexual inaceitável como a condenação que ela suscita?*

4.2

Sexualidade e caráter A distinção entre caráter reativo e caráter normal possui apenas um

valor prático e descritivo, visto que a base sobre a qual ambos se edificam é a mesma. Esta base é formada pelos “ elementos da sexualidade infantil excluídos da vida sexual do adulto e sofrem uma transformação que os converte em certos traços de caráter” (A braham ). O que dá um aspecto normal ou então patológico ao caráter é o mecanismo de transformação dominante da sexualidade pré-genital: a sublimação ou a formação reativa. A Psicanálise estabelece que o critério afetivo, isto é, o comporta­ mento do indivíduo face a seus objetos de amor ou objetos sexuais, é o cri­ tério central na avaliação do desenvolvimento do caráter humano. Impõese, assim, a necessidade de se entender o processo de desenvolvimento psicossexual como condição para se compreender a formação do caráter. Sabe-se, neste sentido, que Freud assinalou que os objetos sexuais de um in­ divíduo transformam-se de maneira sucessiva. Não é, entretanto, somente sobre os objetos de satisfação sexual que incide tal transformação. O tipo de relação que o indivíduo entretém com seu objeto sexual também varia pe­ riodicamente. Freud, em conclusão, estabeleceu três grandes momentos que

26

revelam os aspectos essenciais das relações com os objetos sexuais no curso do desenvolvimento. O primeiro deles é o momento auto-erótico, o segundo é o narcisista c, finalmente, o terceiro é o das relações objetais. 0 momento auto-erótico coincide com o primeiro segmento da fase oral. O momento narcisista abran­ ge a parte final da fase oral, a fase anal e a fase fálica. Enfim, o momento das relações objetais refere-se à fase genital. O auto-erotismo, no sentido psicanalítico do termo, refere-se ao com­ portamento sexual infantil precoce, onde a satisfação é obtida sem que haja recurso a um objeto exterior. Isto em um momento em que a criança não possui ainda uma imagem unificada de seu corpo. A sucção do seio materno passa a ser o protótipo do auto-erotismo. O seio materno no interior da boca da criança não é percebido, neste momento da vida do bebé, como algo separado dela. £ sentido como parte da cavidade oral e confundido com a mucosa bucal, gengiva e língua. Embo­ ra, do ponto de vista do observador, o seio materno seja considerado um objeto exterior, pode-se dizer, em contrapartida, que do ponto de vista da criança ele é parte de seu corpo. A aparente contradição em denominar a suc­ ção do seio materno de auto-erótica explica-se pelo fato de que a psicanálise refere-se não ao observável mas á significação psicológica que diferentes eventos adquirem para o sujeito. O período narcisista é aquele caracterizado pela emergência de uma imagem unificada do corpo. Esta imagem é investida pela libido e toma-se o objeto de amor da criança. Os limites desta imagem são variáveis e relativa­ mente flutuantes. Nos primeiros anos de vida, por exemplo, a criança englo­ ba nesta imagem todos os objetos através dos quais ela obtém satisfação de seus impulsos sexuais. No caso da sexualidade anal infantil, o objeto de sa­ tisfação, as fezes, é parte integrante de seu corpo. £ através das fezes, neste caso, que ela obtém satisfação. Mas este objeto assimila-se totalmente a seu Ego, tomado como objeto de amor. A relação objetai só é alcançada quando o indivíduo é capaz de amar e obter prazer através de um objeto percebido como exterior, total e inde­ pendente dele. Trata-se do amor genital adulto.

4.3.

Sexualidade oral e caráter

A etapa oral da organização da libido constitui o primeiro momento do desenvolvimento psicossexual onde o prazer está ligado à excitação da ca­ vidade oral, dos lábios, da língua e regiões circunvizinhas. O objeto de satisfa­ ção desta etapa é o seio materno, com o qual a criança estabelece uma rela-

27

çâo definida pela sucção. Esta atividade, utilizada para sc obter satisfação dos impulsos sexuais orais, constituir-se-á em modelo de todo m odo de rela­ ção incorporativo, onde o que é visado é a introjeção do objeto amado. Fo i Karl Abraham quem procurou» em seus estudos sobre a depressão, diferen­ ciar os tipos de relação em obra no estágio oral da libido. No primeiro momento desta fase, o modo de satisfação prevalente é a sucção. Este modo de satisfação caracteriza o estágio oral precoce autoerótico. No segundo momento, o modo de satisfação é a devoração. Freud e Abraham denominaram de fase oral-canibálica este segundo momento da organização da libido pré-genital. Esta sub*fasc do desenvolvim ento psicossexual coincide com o aparecimento dos dentes. O m odo de relação com o objeto, neste estágio, a devoração. a incorporação e a m ordida, im plica que o sujeito, ao obter prazer do objeto (incorporação), é levado simultanea­ mente a destruí-lo (mordida). O crime passional seria um exem plo, no adul­ to. deste modo de relação oral canibálica. Nele, o sujeito destrói, ao querer conservar em si. o seu objeto amado.

4.3.1.

Caráter oral

0 caráter oral é aquele que se constrói a partir das transform ações dos impulsos orais em traços de comportamento. Não é fácil observar este cará­ ter posto que a oralidade funde-se m uito bem com a genitalidade. Mas ape­ sar de seus elementos ocultarem-se em manifestações aparentemente genitais, pode-se extrair algumas características marcantes deste caráter. In icia l­ mente, estabelecendo uma diferenciação do caráter oral, tom ando com o ba­ se a sub-divisão da organização oral em duas etapas: a fase oral precoce autoerótica e a fase oral canibálica. Em outros termos, pode-se efetuar uma dife­ renciação de dois tipos iniciais de caráter, o prim eiro sendo expressão da tendência inconsciente de sugar e o segundo de m order (devorar). Para me­ lhor compreender esta diferenciação, deve-se levar em conta que o prazer inicial de sucção é, em grande medida, um prazer de tom ar ou receber algo. Assim, as sensações oriundas da sucção são o fundam ento do prazer psíq u i­ co presente em todo tipo de possessão. Possuir um objeto sign ifica, original­ mente para a mente infantil, incorporá-lo, isto é, intro duzi-lo no interior do corpo. Observa-se, desta forma, que um dos traços mais marcantes do caráter oral de um indivíduo é a certeza de possuir tudo que é necessário para sua sobrevivência. Em suma, tratam-se de indivíduos que enfrentam a vida com um otimismo imperturbável e ingênuo. Eles trazem consigo, com o Panglós, a convicção fundamental arraigada de que tudo irá sempre bem no melhor

28

dos mundos. Este otim ism o reveste-se na espera, tida com o certa, de um ser protetor e continente que cuidará do sujeito e proverá tudo aquilo que lhe for necessário na vida. Trata-se da idéia de um representante do seio m ater­ no que o am am entou na infância. Esta crença otim ista condena o in d ivíd u o , muitas vezes, a uma inatividade, na m edida em que ele não realiza nenhum esforço c desdenha ocupações concretas que lhe perm itam ganhar a vida. O ti­ mismo, generosidade, despreocupação, desprezo pela realidade e confiança cega no futuro constituem os traços desse caráter. Mas encontramos, tam bém , uma categoria diferente de indivíduos cujos traços de com portam ento derivam não de um increm ento da atividade tibidínal oral, mas dos efeitos de uma sucção insatisfatória. Em seu co m p or­ tam ento, estes indivíduos parecem estar sempre pedindo algo sob form a de solicitação ou exigência im perativa. “ A maneira com o expressam seus dese­ jos tem algo do caráter de uma persistente sucção; não conseguimos afas­ tá-los com argumentos nem atos duros. Podemos dizer que se agarram aos outros como sanguessugas" (A b rah am ). O apego in fan til em experim entar uma gratificação oral, utilizando-se da sucção, transforma-se em desejo permanente de tudo obter. Observa-se, nestas mesmas pessoas, outros tra­ ços de caráter originados de transformações peculiares da sexualidade oral precoce. A impaciência, nelas, é típica. C oncom itantem ente, a relação com as pessoas efetua-se através de uma descarga oral. Trata-se, no caso, de uma intensa urgência de falar, de um flu xo aparentemente inesgotável de pensa­ m ento. Este tipo de caráter apresenta, na esfera social, uma característica precisa: ele está sempre apto para absorver novas idéias e valores. A capacidade para absorver novas idéias desdobra-se, quase sempre, em comportamentos de aspecto mais positivo. Se, de um lado, o in d ivíd u o pode-se tornar mais inform ado, menos obtuso, de o u tro , pode transform arse em consumista e modista. Tudo isto dependerá da predom inância dos mecanismos em jogo (sublimação e formação reativa) e da intensidade dos impulsos orais. A derivação do prazer de sucção para a esfera intelectual possui grande interesse prático. A grande capacidade m ental para absorver transforma-se, em muitas pessoas, em especial inclinação para a observação científica. E n fim , um caráter arraigado, deste m odo, no erotism o oral, e n ­ volve tanto o conjunto das condutas individuais, como incide sobre a esco­ lha de profissões ou influencia o tipo de predileção dom inante no sujeito. 4,3.2.

Caráter oral canibálico O processo de irrupção dos dentes leva a criança a substituir o prazer

de sucção pelo prazer de m order. Este deslizamento do m odo de satisfação oral inaugura o período canibálico da fase oral. Nesta fase aparece, pela pri29

meira vez, uma relação com o objeto sexual que é marcada pela ambiva* léncia. A coexistência de duas valências afetivas opostas, dirigidas ao mes­ mo objeto, prazer (incorporação) e destruição (m ordida), configura o sa­ dismo na relação afetiva. A derivação do sadismo oral em traços de caráter pode ser apreendi­ da no uso agressivo da linguagem. Assim , atribui-se a tal in d iv íd u o um ca­ ráter mordaz ou língua ferina. Neste caso, o im pulso de falar significa pra­ zer e desejo de aniquilar, destruir. O caráter sádico-oral é marcado, em todos os seus traços, pela coexis­ tência de tendências amistosas e hostis dirigidas ao objeto de satisfação ou de amor. A inveja, a hostilidade, ciúmes, enquanto sc constituem em traços do caráter sádico-oral, impossibilitam a preponderância de sentim entos de gratidão e comportamentos generosos em relação ao objeto am ado. Senti­ mentos positivos, opostos ao ciúme e á inveja, podem entretanto surgir sob forma de formações reativas. Socialm ente, o caráter can ib álico apresenta-se como agressivo, mal-humorado e inacessível. Tem -se, na figura m ítica do vam ­ piro, a melhor expressão que a humanidade crio u para designar tal caráter.

4.4.

Sexualidade anal e caráter

Os 9/10 dos elementos que compõem a relação de um a criança entre 1 e 3 anos com os adultos referem-se, direta ou indiretam ente, aos cuidados oro-alimentares ou à aprendizagem do controle esfincteriano. Po r volta do segundo ano de vida, sem abandonar com pletam ente o prazer oral, a crian­ ça começa a privilegiar as excitações provenientes da zona anal, decorrentes do jogo fecal e mictório. “ A libido, que provocava a sucção lú d ica da fase oral, provocara agora a retenção lúdica das fezes ou da urina” (D o lto ). É bem verdade que, durante a evacuação, a criança m antém as nádegas e regiões vizinhas em contato com a urina quente e excrem entos pastosos que lhe propiciam sensações agradáveis. Observa-se, am iúde, que a criança começa a denotar sinais de desprazer somente quando os produtos excre­ tados esfriam-se contra seu corpo. Considera-se, tam bém , que o prazer da excreção compreende, além dessas sensações física s, um a gratificação psí­ quica no ato em questão*. Quando o aprendizado da higiene e a educação

* Jones (1916) destaca a relação entre a auto-estima elevada na criança e seus atos cxcretores. Podemos nos referir, como ilustração, ao caso de um garoto de dois anos, em pré-escola, que sentia-se particularmente poderoso por ter conseguido urinar na tomada de eletricidade da sala e ter feito explodir, através de um curto circuito, a iluminação do estabelecimento. Neste caso, a realidade veio confirmar suas fantasias narcisistas oni­ potentes.

30

vêm exigir, da parte da criança, uma estreita regularidade das excreções, uma dupla norma se impõe: 1. A criança não deve sujar-se com excrementos e urina. 2. As excreções devem-se efetuar rm horas mais ou menos estabelecidas. Como resultado deste processo, o narcisismo infantil recém-estabele­ cido vê-se submetido a uma primeira e dupla prova. De toda maneira, a maioria das crianças adapta-se a essas exigências, assumindo o prazer de figu­ rar na estima dos pais. Foi Abraham quem distinguiu, de maneira precisa, dois momentos no interior da fase anal. O prim eiro foi caracterizado pela evacuaçío incontinenti e o segundo pela retenção intempestiva das fezes, na ocasião em que a criança acede ao controle voluntário dos esfíncteres. No primeiro desses m o­ mentos, o modo de satisfação da criança consiste na obtenção do prazer pela passagem livre das fezes através da mucosa anal. A partir desses dois modos diferentes de relação com o objeto sexual da fase anal, as fezes, são descritas duas subfases: a fase sádica anal precoce e a fase anal tardia. Na primeira subfase, a criança obtem prazer expulsando seu objeto sexual; na segunda, ela o obtém retendo e controlando o objeto.

4.4.1.

Caráter anal É a partir das transformações da sexualidade anal em traços estáveis

e homogêneos de comportamento que surge o caráter anal. A literatura psicanalítica clássica referente a este caráter é particularmente rica. Freud, Sadger, Jones, Abraham e Reich forneceram contribuições decisivas para o entendimento de sua formação. Os estudos de Freud assinalaram, de modo específico, que o caráter anal decorre do prazer infantil experimentado na evacuação intestinal e na manipulação fecal. Este prazer anal sofre, mais tar­ de, uma repressão que o obriga a derivar, via sublimação ou via formação reativa, por exem plo, em prazer de pintar ou modelar ou em obsessão por limpeza. A consulta bibliográfica revela, assim, que a direção deste caráter em questão abrange um certo número de traços. Estes se referem a três carac­ terísticas básicas: ordem, parcimônia ou economia e obstinação. A ordem exprime-se pelo colecionismo, a preocupação de tudo classi­ ficar, o apego à minúcia. A ordem doméstica, por exem plo, quando confun­ dida com a limpeza excessiva e exagerada constitui-se como um dos traços marcantes deste caráter. Neste caso, trata-se de uma formação reativa tí-

31

picamente anal (exageração de um traço de caráter - limpeza - com o rea­ ção contra uma tendência inversa - gosto pela atividade anal e interesse pe­ las matérias fecais tidas como ‘*sujas” ). A ordem expressa-sc, também, como gosto pela simetria, intolerância pela assimetria. Na vida prática, pessoas com tais traços dividem todas as coisas; um marido, por exemplo, fará cálculos para demonstrar à esposa que seus gastos respectivos nâo são iguais. 0 perpétuo desejo de estar em paridade com os outros, isto é. de nada dever a ninguém, é um elem ento expressivo da parci­ mônia anal. Ao contrário disso, observa-se pessoas com tendência a esque­ cer dívidas (sobretudo se se trata de pequenas somas). Neste último caso, considera-se que tal atitude exprimiria um erotism o anal não sublimado. A parcimônia revela-se como expressão do prazer anal em reter e con­ servar as fezes e que foi. em seguida, deslocado para outras áreas do compor­ tamento. A parcimônia possui o sentido de economia exagerada que se con­ fina na avareza. Pode-se observá-la no prazer acentuado de guardar bens e possuir coisas; na exigência para si daquilo que se recusa aos outros, na au­ sência de generosidade, sobretudo nas pequenas coisas. A parcimônia mos­ tra-se, ainda, através da avareza de palavras, que configura um medo de se revelar ao outro, ou na economia de tempo: pontualidade minuciosa e in­ quieta, exatidão minuciosa. Uma mulher fará questão, alegando motivos plausíveis, de repartir equitativamente uma conta de restaurante com o ma­ rido apegando-se â exata divisão dos centavos. A obstinação, em sua expressão psíquica, pode ser considerada com o um prazer em dominar os outros, acompanhado do m edo de se deixar in­ fluenciar pelo outro. A obstinação, em todo caso, significa apego e retenção mental de uma idéia, independente de seu valor social ou cultural. A obsti­ nação está em estreita relação com este m odo de satisfação anal que é a re­ tenção, o controle, que permanece ativo no inconsciente. Tal m odo de rela­ ção com o objeto sexual expressa-se, por derivação, na vida manifesta, pela ânsia mais ou menos marcada com que um indivíduo im põe seu próprio sis­ tema em todas as coisas. Tal característica anal pode, entretanto, desenvol­ ver-se em direções diferentes: a inacessibilidade e a teim osia, de um lado, e a perseverança e a escrupulosidade, de outro. A inacessibilidade e a teimosia são condutas, em última análise, improdutivas e anti-sociais, ao passo que a perseverança e a escrupulosidade possuem características sociais valiosas. É evidente, entretanto, que essas duas últimas características só possuem valor social na medida em que não chegam a extrem os clínicos ou ao limite de um funcionamento improdutivo, tal com o a observação pedante de for­ mas rígidas, onde a preocupação pela forma exterior supera o interesse pelo objeto em si. Tem-se exemplos no com portam ento de juristas que se apegam

32

à letra da lei cm detrimento do espírito da lei, ou dc leitores de romance que fixam atenção na devida colocação de pronomes e sc esquecem do interesse c valor geral da obra. A afabilidade, a concórdia sistemática, o liberalismo sem princípio no trato das relações humanas podem ser vistas como expressões da transforma­ ção do controle, retenção e agressividade anal pelo mecanismo de formação reativa. Observa-se, também, no caráter anal, um traço muito frequente, cons­ tituído pelo hábito dc adiar decisões, conclusões e ações. Associado a ele, encontra-se outro lado caracterizado pela interrupção de toda tarefa inicia­ da. Mais frequente, trata-se dc resistir ao máximo ao início de uma tarefa a qual, uma vez iniciada, toma-sc verdadeira obsessão para o sujeito, escravi­ zando-o. Estas atitudes seriam derivações do antigo prazer infantil em reter as fezes durante algum tempo, em vista de um acréscimo de prazer na evacuação.

4.5.

Sexualidade fálica e caráter

A fase fálica inicia-se ao término do segundo ano de vida, quando a criança renuncia ao prazer obtido na manipulação das matérias fecais. A ultrapassagem da fase anal e o acesso à fase fálica não se dá de maneira espon­ tânea. Mas sim quando a criança se vé obrigada, em nome de uma estética ( “sujo” , “ feio**, “caca” ), a abandonar seu objeto de prazerías fezes. Mas es­ te abandono somente pode ser efetivado com sucesso quando a mãe se reve­ la amante e amável, isto é, capacitada a substituir as fezes tidas, até então, como objeto de satisfação. Freud percebeu que o desenvolvimento da organização da libido, no menino e na menina, ocorre, em grande parte, de maneira idêntica. Isto equivale a dizer que, do ponto de vista psicológico, nao há diferença sexual. Inexiste separação psíquica dosgénerosmasculino e fem inino.Esta semelhan­ ça sexual entre o menino e a menina é de fácil entendimento quando se aborda a sexualidade oral e anal, mas torna-se de uma compreensão mais árdua quan­ do se trata de explicar a etapa fálica do desenvolvimento da sexualidade. Esta identidade pode, entretanto, ser esclarecida, basicamente, a partir de dois pólos de reflexão: 1. Para a criança, na fase fálica, existe “um só órgão, ou mais precisa­ mente, uma única espécie de órgão sexual: o/àZo ” (Safonan). Na antiguidade greco-latina o termo falo designava a “ representação figurada, esculpida etc. do órgão viril. Esta representação simbólica do pênis era objeto de venera­ ção, desempenhando um papel central nas cerimônias de iniciação’* (Laplan33

che e Pontalis). Nesta época, o falo em ereção traduzia o poder soberano c mágico e não uma variação do poder do macho. Em Psicanálise, o termo falo conserva o significado da expressão gre­ co-latina. Boa parte, aliás, da incompreensão fem inista da leitura de Freud decorre do entendimento demasiadamente concreto, pragm ático e pouco erudito do termo em questão. 0 falo não é o pênis. Sign ifica, precisamente, um órgão genital comum, em sua espécie, ao gênero hum ano; tratando-se, consequentemente, de um órgão esscncialmente im aginário. É frcqüente, contudo, que meninos e meninas vislumbrem, respectivamente, este falo no pênis ou no clitóris. A criança, efetivamente, com eça a atribuir à região genital. devido à influência primária das excitações provenientes da micção, uma importância crescente na manifestação de sua sexualidade. Esta sexualídade associa-se, então, a fantasias de poder m ágico, de realizações imagi­ nárias que desconhecem barreiras, de conquistas que não adm item limites. É necessário ainda dizer que o falo, por se tratar de um órgão imaginário, possui, na mente infantil, a característica de ser destacável do corpo, trans­ posto, presenteado, retirado etc. 2. O segundo pólo de reflexão refere-se ao fato de que, tanto para o menino como paia a menina, a mãe se tom a um objeto de desejo. É claro que a mãe sempre se constituiu enquanto objeto de am or. Mas era vista co­ mo um objeto parcial, isto é, como um seio que satisfaz ou m ão que acari­ cia. Neste momento, porém, os diferentes im pulsos sexuais, a saber, orais, anais, escópicos* etc., tendem a se agregar numa totalidade submetida à função genital. Ora, concomitantemente, a esta unificação dos diferentes impulsos sexuais, a mãe passa, e somente então, a sign ificar um objeto total de satisfação geral. A relação da criança com a mãe é, na fase fálica, uma relação inscrita sob o signo do narcisism o: sob a influ ência de fanta­ sias onipotentes, a mãe é percebida com o mera extensão do E go infantil. A mãe, um objeto total em direção ao qual o desejo in fa n til estende-se sem barreiras nem limites, passa a ser envolvida, assim , narcisicam ente, no Ego infantil. Estes dois pólos aos quais acabamos de fazer referência, a saber, a zo ­ na erógena concebida como falo e a eleição da mãe com o objeto de desejo, colocam a criança numa situação de cujo em aranhado, co m o veremos, será mais fácil para o menino desfazer-se. Certam ente, o m enino deverá renun­ ciar à mãe substituindo-a futuramente por um a m ulher; a m enina deverá não só efetuar esta mesma renúncia, com o também su b stitu ir a mãe por um

* Impulso sexual de olhar ou ser visto: “exib icion ism o ou voyeu rism o" .

34

objeto de amor do outro sexo. Além disso, o pênis contínua, no menino, a desempenhar função de zona erógena, ao passo que a menina deverá, ainda, descobrir libidinalmentc a vagina. Será o drama do complexo de Édipo que permitirá à criança efetuar essas renúnciase adquirir uma identidade psicos* sexual própria, atribuindo-sc um lugar na rede de relações elementares da cultura humana. 4.5.1.

O caráter fálico

O caráter fálico foi descrito por Wilhelm Reich em um trabalho apre­ sentado à Sociedade Psicanalítica Vienense, em outubro de 1926. Trata-se, portanto, da contribuição de um psicanalista que dá continuidade aos tra­ balhos de Frcud (1908) e se insere, nesta medida, no esforço para o avanço do pensamento psicanalítico da época. O destino posterior de Reich, que o fará se afastar da Psicanálise, é ainda estranho às atividades que, neste mo­ mento, ele desempenhava no interior do movimento liderado por Freud. Desta forma, achamos legítimo adicionar suas idéias a respeito do caráter fá­ lico, no âmbito geral da compreensão freudiana do caráter e da personalidade. O caráter fálico constitui uma das expressões do narcisismo. Reich o descreve ocupando uma posição intermediária entre os traços obsessivos de controle, depressão e inibição e os traços histéricos de nervosismo, apreen­ são e labilidade. E , justamente por ocupar esta posição intermediária entre os traços obsessivos e histéricos, o caráter fálico pode ser descrito, essencial­ mente, pelos seus aspectos de segurança, arrogância e vigor. Na trama que liga os indivíduos de caráter fálico aos objetos (incluindo a í o objeto amoro­ so) domina o elemento narcisista, notando-se, amiúde, a presença quase constante de traços sadios que, de maneira mais ou menos disfarçada, colo­ rem suas relações afetivas. O caráter fálico corresponde à expressão da fixação na fase fálica do desenvolvimento libidinal, que se situa no término da fase anal. Esta fixação indica, antes de tudo, que o indivíduo não atingiu ainda uma posição Libidi­ nal propriamente objetai e que, conseqüentemente, não superou o impasse de sua relação narcisista. Segundo Reich, “este narcisismo fálico revela-se por uma concentração orgulhosa no próprio genital” e, em sua forma típica, a análise revela uma identificação, do Ego como um todo, ao falo. A concen­ tração do orgulho no próprio falo revela-se, assim, como uma concentração orgulhosa do próprio Ego. Compreende-se, pois, que uma ameaça ao falo, isto é, ao pênis mágico capaz de todas as realizações, é vivida pelo sujeito como uma ameaça à pró­ pria integridade do Ego. Em função desta identificação da totalidade do Ego 35

a um objeto parcial (falo), tudo se passa como se houvesse uma substituição do Ego pelo Falo. Originam-se daí condutas de exibição do Ego que equiva­ lem, a nível inconsciente, à exibição do pênis imaginário. A conduta de ostentação de si revela uma fantasia subjacente de pos­ suir um pênis mágico e todo-pode roso. Fantasia, pois, comum tanto a mu­ lheres e homens de caráter fálico. Segundo Reich, quando o impulso fálico é severamente reprimido ele pode irromper, episodicamente, sob forma de acentuado sentimento de vergonha e rubor facial (eritrofobia). Da aliança que se estabelece entre impulsos extremamente vigorosos e fantasias de onipotência, resulta que as defesas alinhadas pelo caráter fálico constituem-se em defesas muito poderosas, encarregadas, antes de tudo, de manter a sobrevivência psicológica do sujeito identificada à integridade do falo. Mas devemos sempre distinguir, com atenção e cuidado, os impulsos que encontram uma gratificação direta nas condutas emanadas do caráter fálico, daqueles impulsos que se estruturam, por formação reativa, em um verdadeiro aparelho de proteção narcísica. No caso dos primeiros há a predominância da sublimação na gênese do caráter fálico, o que acarreta, na existência individual, um sentido de reali­ zação pessoal determinante. Estes indivíduos revelam-se extremamente pro­ dutivos e enérgicos empreendedores, graças à transformação da agressão em ações socialmente construtivas. Já nos segundos, onde a formação reativa ocupa largo espaço na estru­ turação do caráter, o esforço de realização pessoal toma-se peculiar, desem­ bocando, não raramente, num sistema de tipo paranóide fechado, circular, de pouco valor social ou cultural. De fato, vivendo sob a ameaça constante de ser agredido (ansiedade de castração), o indivíduo de caráter fálico de­ fende-se constantemente. Desta forma, ele reage atacando, antecipadamente, toda e qualquer agressão imaginada ou esperada. Um outro fator a ser mencionado é que a vaidade fálica ferida resulta em depressão instantânea ou determina uma agressão viva. Neste sentido, a agressão defensiva fálica ê uma agressão onde predomina a forma sobre o conteúdo. A agressão está muito mais no como do que naquilo que ê efeti­ vamente feito ou dito. Finalmente, poderiamos estabelecer que, para o homem de caráter fá­ lico, o pênis não se encontra a serviço do amor: ê utilizado enquanto instru­ mento de ataque e vingança contra a mulher. As mulheres de caráter fálico são, por outro lado, predominantemente motivadas pelo desejo de tom ar o homem impotente ou de fazê-lo parecer impotente. Em ambos os sexos, o caráter fálico revela-se também pela poligamia neurótica e o ativo esforço em causar decepções ao outro. 36

4.6.

Complexo de Édipo e personalidade

O complexo dc Édipo constitui a noçfo central da teoria freudiana da personalidade. É ela que arregimenta e dá significado unitário ao con* junto dos conceitos psicanalíticos. Toma-se compreensível que uma noção a este ponto diretora seja particularmentc fecunda c, por isso mesmo, nem sempre de fácil manejo. Há, mesmo, inicialmcnte uma questão terminológi­ ca que deve ser devidamente esclarecida; Frcud referiu-se ao complexo de Édipo para elucidar tanto a questão da personalidade feminina quanto da masculina. A expressão complexo de Eletra, muitas vezes utilizada para anunciar o drama vivido pela mulher num momento fundamental de sua infância, é estranha ao vocabulário psicanalítico. Pertence, aliás, à escola de Carl Jung, onde é empregada num sentido bem peculiar. Em seguida, há que se precisar, de maneira clara, o plano onde Freud situa os termos constitutivos do triângulo do complexo de Édipo. Este plano é o do terreno psicológico. O terreno psicológico não recobre nem coincide, necessariamente, com o terreno biológico. Desta forma, quando Freud se refere à atração sexual0 que a criança sente pela mãe, ele não está, necessariamente, referindo-se à mãe biológica, mas sim à função maternal que é um conceito eminentemente psicológico. Ora, a função maternal pode encarnar-se em qualquer pessoa de qualquer se­ xo, ou mesmo num determinado aparelho institucional, tal como creche etc. Evidente mente, a função maternal ou, mais sucintamente, “a mãe” , conforme a terminologia psicanalítica, assume uma importância de primeira grandeza no desenvolvimento infantil. O homem é, dentre os animais, aquele que nasce em um maior estado de incompletude, responsável, aliás, por uma infância marcadamente longa, durante a qual ele se perfaz não só psíquica, mas também biologicamente. Esta fraqueza constitucional faz com que o homem dependa, para a sua sobrevivência, de uma função maternal que su­ pra suas necessidades básicas. A criança, assim, acopla-se â pessoa que de­ sempenha a função materna], constituindo com ela uma unidade que, do ponto de vista infantil, é auto-suficiente. A história das fases do desenvol­ vimento, que marcam de maneira tão nítida o caráter humano, é a história deste acoplamento materno-infantil; fa T oral, anal e fálica.

* Ver o sentido de sexual, empregado por Freud, no capítulo 3 deste livro.

37

4.7.

Complexo de castração e complexo de Edipo

O complexo de Édipo refere-se a um drama vivido intensamente pela criança» num período geralmente situado entre o terceiro e o quinto ano de vida. Em plena fase fálica» a criança transfere o interesse total de seu Ego para o Falo» que passa então a representá-lo. Convém lembrar também que, neste momento, os diferentes impulsos sexuais orais, anais, escópicos etc. tendem a se agregar numa totalidade submetida à função genital. Concom i­ tantemente a esta unificação dos impulsos sexuais, a mãe passa a ser vista como um objeto global de satisfação geral. A partir do falo onipotente, a criança passa a dirigir sua libido para a mãe. O paradoxo consiste no fato de que este momento maior do desenvolvimento das relações libidinais que unem a criança e a mãe traz consigo o germe da desilusão! A mãe sadia, ao se revelar inteira para a criança, mostra-se também como mulher, isto é, co ­ mo pessoa que procura (concreta ou imaginariamente) num outro o amor genital, que a criança não poderá oferecer-lhe ou substituir. Esta recusa assi­ nala que existe na mãe um espaço afetivo que a criança não pode preencher. É um espaço destinado a alguém outro. Esta recusa foi denominada por Freud como proibição do incesto. Na fantasia infantil, tal recusa não pode vir da mãe, englobada que é no Ego da criança, mas sim de um alguém. Este alguém que desempenha a função psicológica da proibição foi identificado por Freud pelo vocábulo Pai. As funções paternal (proibição) e maternal (objeto de amor) podem ou não coincidir com pai e mãe biológicos. Tais funções podem estar até in ­ cluídas numa mesma e única pessoa. Trata-se, antes de tudo, de um confron­ to psíquico entre uma proibição e o desejo fálico todo-poderoso. Entretan­ to, em qualquer situação, a criança não se conforma com tal amputação de seu desejo e, com toda a força de sua fantasia, procura eliminar aquele que lhe parece constituir-se em obstáculo. A eliminação do rival ou, ainda no vocabulário próprio de Freud, “o desejo de morte em relação ao pai” tam­ bém fracassa, face à manutenção da “ proibição do incesto” . O pai revela-se mais forte que o falo todo-poderoso. Neste confronto, o falo é sentido co­ mo ameaçado e, face a isto, a criança se vé obrigada a renunciar às suas pre­ tensões libidinais em relação â mãe. Seu desejo por ela esbarra na lei do pai. Se antes a criança tomava seus desejos por realidade, agora ela é obrigada a considerar a realidade como irredutível a seus desejos. A criança deverá, então, conformar-se à realidade ou decidir a transformá-la a fim de obter a satisfação de seus desejos. 38

. 0 drama ediplano tem como significado o destronamento do narcisismo infantil. É através dele, desta profunda ferida aberta na onipotência das fantasias infantis, que a criança terá acesso, ao mesmo tempo, ao mundo e à possibilidade de transformá-lo. £ no interior desta ferida narcisista que se incrustará o protótipo de todas as normas e leis futuras, que constituem a base e a essência da cultura. A fissura ocorrida neste narcisismo é vivida pela criança por aquilo que se convencionou chamar de complexo de castração. Desta forma, o complexo de castração constitui o cerne do complexo de Édipo.

4.8.

Complexo de Édipo masculino

A criança de sexo masculino vislumbra o poder do falo nas excitações genitais. Estas excitações concentram todo o interesse libidinal e são. pri­ mordialmente, dirigidas à mãe. Entretanto, as pretensões eróticas infantis es­ barram na presença paterna, que se revela como rival na disputa pela posse da mãe. Os sólidos laços que mantém o interesse erótico da mãe pelo pai despertam um profundo ódio na criança. Este ódio se traduz por um desejo de morte do pai. Este, entretanto, ao triunfar sobre o desejo da criança, co­ loca-se face ao filho como um ser poderoso e indestrutível, apto não só a so­ breviver a seus ataques mortíferos como a vingar-se deles. Esta vingança to­ ma a forma, no pensamento infantil, de uma possibilidade de castração. £ desta forma, em todo caso, que a criança de sexo masculino explica a au­ sência de pênis nas crianças de sexo feminino: elas foram mutiladas pelo pai. Colhida entre o desejo pela mãe e as angústias da castração, a criança preci­ pita-se num drama intenso. Nele, a própria figura paterna é ambivalente: se, de um lado, ela é temida, por outro ela é admirada por sua força e poder. Decorre daí o processo de identificação com o pai. Esta identificação per­ mitirá ao menino resolver o conflito no qual ele se viu inserido. A identi­ ficação consiste em introjetar as qualidades essenciais do pai, transformando o Ego infantil em função destas qualidades introjetadas. Ora, as qualidades essenciais do pai consistem naquilo que o define enquanto tal: a proibição do acesso erótico à mãe. A criança passa então, ela mesma, a proibir-se aqui­ lo que anteriormente o pai lhe barrava. Finalmente, vale ressaltar, a ansiedade de castração faz com que o ga­ roto abandone a relação incestuosa com a mãe e supere o complexo edipia­ no. Esta superação, que se dá via identificação com pai, estrutura sua perso­ nalidade numa identidade psicossexual finalmente definida. 39

4.9.

Complexo de Edipo feminino

A criança, c, antes de vivenciar o complexo de Édipo do ponto de vista das polaridades psíquicas masculino/feminino, indiferenciada. A meni­ na vislumbra o poder do falo nas excitações clitorianas c, tal como nos me­ ninos, é para a mãe que são dirigidos seus impulsos eróticos. O interesse pela região genital fará com que ela se interrogue a respeito da diferença anatô­ mica dos sexos, até então desapercebida. A esperança que o clitóris cresça e se transforme num pênis c. entretanto, logo abandonada. A esta desilu­ são segue-se uma hostilidade pela mãe, visto que ela foi incapaz de fomecerUie um pênis. Por sua vez, a constatação da ausência de um pênis materno, isto é, a descoberta dos gêneros masculino e feminino, fará com que a meni­ na adicione à hostilidade uma enorme decepção para com a mãe. Seu inte­ resse erótico dirigir-se-d, então, ao pai, encarado como apto a fornecer-lhe um pênis ou um substituto deste. A menina dá-se conta neste momento, de que a vagina é um órgão capaz de acolher aquilo que ela almeja: o pênis do pai. Desta forma, se no menino é a castração que o faz superar o complexo edipiano, na menina é pela castração que tem início o Édipo. A posição fe­ minina é particularmente árdua: não só ela se vê obrigada a deslocar a zona erógena do clitóris para a vagina, como também a trocar o objeto de amor materno pelo paterno. Finalmente, é identificando-se com a mãe que a menina passa a assumir a identidade feminina e buscar, nos homens, simi­ lares do pai.

4.10.

Período de latência e genitalidade

O declínio do complexo de Édipo coincide com o início da constitui­ ção do Superego. Este elemento estrutural da personalidade resume-se na internalização daquilo que é visto como interdição paterna. Neste sentido, o Superego de cada um é formado sobre o modelo do Superego dos pais. A internalização das interdições resulta tanto num abrandamento da exuberância da atividade sexual infantil bem como em esquecimento que recobre, progressivamente, este período de efervescência erótica préedipiana. Este período de calmaria, inaugurado pela ação do Superego, denomina-se período de latência. Durante este período, os impulsos sexuais adormecem. Somente na adolescência, irão despertar com fulgor. A estória infantil “ A Bela Adormecida” pode ser, em parte, interpretada como perso­ nificação lendária desta história sexual do indivíduo. Ressalte-se, entretanto,que os impulsos pré-genitais que não lograram êxito na tentativa de se englobar na sexualidade genital serão, a partir de en40

tão, recalcados ou transformados em atividades socialmente produtivas (sublimação). Os impulsos pré-genitais recalcados poderão retomar mais tarde, sob efeito de alguma circunstância particular, interna ou externa, manifes­ tando-se em contradição com os interesses éticos, estéticos ou morais do in ­ divíduo adulto. Neste caso, tem-se, então, a eclosão de um quadro de sinto­ mas neuróticos, ou a estruturação de um caráter reativo. Quando, entretan­ to, os impulsos pré-genitais são devidamente sublimados, transformam-se em poderosos motores para o desenvolvimento do caráter do indivíduo e para o progresso cultural da sociedade. £ompreende-se, desta forma, que o complexo de Édipo se constitua naquilo que Freud definiu como o núcleo da neurose e da cultura. Esta for­ mulação, sucinta e ambígua, que faz pousar sobre um mesmo terreno a e x­ pressão da patologia e da criação cultural, resume toda compreensão freudia­ na da personalidade. O período de laténcia, que se dissolve na puberdade sob o efeito de uma série de fatores, permitirá, então, uma retomada da vida sexual. O ado­ lescente, tendo superado o complexo de Édipo, poderá fazer, finalmente, uma escolha de um objeto de amor ao qual ligar-se-á genitalmente.

4.11.

Genitalidade e caráter

A resolução do complexo de Édipo coloca um fim ao reinado do narcisismo sob a vida afetiva infantil, possibilitando que o sujeito, uma vez libe­ rado do autofascínio, abra-se para o mundo, em busca da aventura de sua auto-realização. O sujeito torna-se, pela primeira vez, apto a amar alguém au­ tônomo, sem desejo de submeté-lo a situações afetivas que simplesmente tra­ duzem fantasias onipotentes. O sujeito atinge, finalmente, aquilo que se de­ nomina de amor objetai. Nas etapas do desenvolvimento libidinal anteriores ao complexo de Édipo, isto é, nas etapas narcísicas, a criança percebe o outro apenas como extensão de seu Ego. 0 amor, que, em última analise, ela parece dedicar a este outro, resume-se num amor ao próprio Ego. Ao dominar, porém, seu narcisismo, a criança adquire a possibilidade de transferir seus sentimentos afetuosos às outras pessoas, fazendo verdadeiras escolhas de objeto de amor. Ao tornar-se apta a amar o outro, ela poderá, então, estender seus sentimen­ tos, progressivamente, ao conjunto dos elementos que constituem seu meio cultural.

41

5 Narcisismo

5.1.

Libido do Ego e libido do objeto

Quando, em 1914, Freud introduziu a questão do narcisismo, ele tez intervir uma distinção na noção de libido, estabelecendo o que se denomi­ nou de ‘libid o do Ego” e “ libido do objeto” . Esta alteração no vocabulá­ rio psicanalítico não acarretou nenhuma transformação essencial no signi­ ficado do termo libido. Este permanece, para Freud, como uma quantidade determinada de energia de natureza sexual. Na verdade, a libido torna-se “ libido do Ego” quando investida e localizada no Ego. De igual maneira, quando a libido, ou parte dela, é transmitida aos objetos (ou seja, neles in­ vestida), ela é denominada “ libido do objeto” . Entretanto, é importante res­ saltar que é a partir do Ego, considerado agora como um reservatório, que a libido é enviada em direção aos objetos. Impulsos

Autoconservaçâo

Sexuais (libido)

Libido do Ego

Figura 5.1. Classificação dos impulsos.

42

Libido do o b jeto

Na concepção de Freud, a libido do Ego e a libido do objeto se encon­ trariam em estreita relação, uma vez que entre elas operaria o que ele deno­ minou de “ Princípio de Conservação e Energia Libidinal": “ Quanto mais uma é empregada, mais a outra se esvazia" (Freud, 1914). Quando a libido está investida principalmente no Ego, tem-se o que Freud classificou como um estado de luto. Assim, um indivíduo em tal estado deixa de se interessar pelas coisas do mundo a seu redor, na medida em que não dizem respeito ao seu sofrimento. Por outro lado, quando a libido está investida nos objetos, caracteriza-se o caso dos estados amorosos: observa-se um desinteresse dos sujeito por si mesmo e uma atenção concentrada no objeto de amor.

Ego

Objeto

"Concentrada está sua alma no estreito orifício do m olar." O poeta com dor da dente, de W. Bresh, citado por Freud (19141

"Um a pessoa que ama priva-eo de seu narcisismo. Torna-se humilde." (Freud. 1914)

Figura 5.2. Relação entre libido do Ego e libido do objeto.

A idéia de Freud é a de que o Ego é originalmente investido, preenchi­ do, ocupado pela libido, constituindo-se então uma situação de narcisismo primário. 0 narcisismo primário é um processo normal, necessário, que ocor­ re num determinado momento do curso regular do desenvolvimento libidi­ nal. Este momento é situado por Freud entre o auto-erotismo e o amor objetai. Por auto-erotismo entende-se o estado inicial da libido, num momento em que o Ego, enquanto unidade organizada, ainda não existe. O Ego é uma categoria psicológica, uma imagem, que tem que ser desenvolvida a fim de preencher suas funções, que são principalmente as de síntese, contato e de­ fesa. As primeiras realizações do indivíduo são indiferenciadas e auto-eróticas. Somente quando o Ego se desenvolve, o indivíduo se toma narcisista. Esta primeira manifestação do narcisismo - denominada de narcisismo pri­ mário — é abandonada quando a criança, na impossibilidade de manter-se como seu próprio objeto de amor, volta-se, finalmente, para um objeto exte­ rior, desenvolvendo o que se chama de “ amor objetai". 43

Compreende-se. neste sentido, que o narcisismo prim áno esteja em oposição ao amor objetai, pois somente quando o narcisismo prim áno term i­ na o sujeito sc encontra em posição de fazer escolhas objetais. O ra, para que tais escolhas sejam feitas, é preciso que o indivíduo tenha percorrido os d ife­ rentes estágios pré-genitais do desenvolvimento da lib id o , incluindo, natural* mente, a elaboração do complexo de Êdipo. Desta maneira, a superação do narcisismo primário coincide com a realização do desenvolvimento psicos* sexual. Entretanto, mesmo após uma escolha objetai ter sido feita, o in d iví­ duo pode, acidentalmcntc, retom ar a um estado narcisista. Esta volta aci­ dental ao narcisismo original, num m om ento da vida cm que sc suporia estar ele definitivamente abandonado, foi denominado narcisismo secundário, su­ blinhando-se seu aspecto clínico patológico. O estudo do narcisismo secundário e suas produções patológicas corre* latas levou Freud a examinar, de maneira mais precisa, o mecanismo da esco­ lha objetai. Ele distingue, então, dois tipos de escolha - a anaclítica e a nar* cisista -

levando-nos a uma compreensão mais profunda da estrutura da

personalidade. Sabe-se que o indivíduo, ao atingir o nível genital da organi­ zação da libido e após liquidar seu complexo de Êdipo, escolhe seus prim ei­ ros objetos sexuais tendo como parâmetro pessoas que, na infância, se ocupa­ ram, protegeram ou cuidaram dele. Freud caracteriza essa escolha de objeto de amor como sendo de tipo anaclítico.^ Mas, ao invés de fazer uma escolha de objeto calcado sobre o modelo de pessoas que o protegeram em seus m o ­ mentos de desamparo in fan til, o indivíduo pode fazer uma escolha diferente de objeto de amor, denominada de narcisista. Neste ú ltim o tip o , o sujeito faz sua escolha amorosa tomando como modelo seu próprio Ego. Para Freud, o amor objetai de tipo narcisista é mais característico do sexo feminino. O desenvolvimento das características próprias deste sexo (seios, curvas etc.), em larência ate' a puberdade, parece, neste m om ento, incrementar o narcisismo originário. O narcisismo, manifestando-se pode­ rosamente, inflexiona a escolha objetai em direção ao tipo narcisista. Mas, de fato, um ou outro tipo de escolha pode ser efetuada por indivíduos de ambos os sexos. A questão central envolvida no mecanismo de escolha objetai é que, em função de se optar por um ou outro tipo (anaclítico e narcisista), dife­ rentes personalidades podem se definir. Decorrem d a í duas formas de amar,

* Anaclítico - que se apóia sobre. Escolha de objeto de tipo anaclítico - que se apoia sobre as figuras dos pais.

44

bastante distintas. No amor em conformidade com o tipo narcisista, o indi­ víd uo ama alguém que apresenta características bastante próximas às que ele próprio possui ou possuiu, alguém cujos atributos ele gostaria de ter ou, ainda, alguém que foi. uma vez. parte dele mesmo. Já no amor em confor­ midade com o tipo anaclítico. o indivíduo busca, como objeto de am or, a mulher que um dia o alimentou ou o homem que uma vez o protegeu. Em resumo, o tipo narcisista procura no outro sua própria imagem, ao passo que o tipo anaclítico procura um parceiro de tipo narcisista que o faz gozar de um narcisismo a que ele mesmo já renunciou. A tese do narcisismo fornece, antes de tudo, uma solução psicanalítica a algumas questões proposta por Jung, tais como a relativa ao tipo in tro ­ ve rtid o * e aos arquétipos do feminino e do masculino (anima e a n im u s )*, sem que haja necessidade de abandonar a referência central à sexualidade. Mas o conceito de narcisismo introduzido por Freud tem uma conseqüência ainda mais profunda; uma série de conceitos, tais como Ego, defesa do Ego, idea) do Ego, “ agente crítico observador" etc., serão colocados em gravitação em to m o da noção de narcisismo. Esta aglutinação de noções e concei­ tos deslocou o ed ifício da Psicanálise de tal maneira, que é possível antever nela a grande reforma conceptual que iria ser promovida a partir de 1920, quando fo i elaborada a nova teoria dos impulsos (de Vida e de M orte) e a postulação de uma nova estrutura da personalidade (Id , Ego e Superego). D entro desta perspectiva, a noção de ideal do Ego é de grande im por­ tância para se compreender a nova descrição da estruturada personalidade. Ora, nós já sabemos que os impulsos sexuais estão, quase sempre, sujeitos a alguma espécie de repressão. Esta repressão é fruto do conflito que opõe os imperativos dos impulsos sexuais às exigências éticas do Ego. Podemos dizer, então, que a repressão é maior naquele indivíduo que fixou um ideal em si mesmo, que ele usa para m edir, avaliar e apreciar seu próprio Ego. Este Ideal do Ego, por ser dotado de todas as qualidades, constitui o fator condicionante da repressão. Freud dirá que aquilo que o sujeito projeta diante de si como sendo seu ideal é, na verdade, o substituto do narcisismo perdido da infância, onde o sujeito era seu próprio ideal. O narcisismo residual do indivíduo, ao deixar a infância, desloca-se para esse ideal do Ego que se acha, assim, possuído de toda a perfeição possível. Freud postula, então, a existência de uma função psíquica especial, responsável por assegurar a satisfação narcisista do Ideal

Ver parte III deste Livro.

45

do Ego. Esta função consiste na observação do Ego real, m ed in d o o e com­ parando-o com o Ideal do Ego. Desta forma, é possível dizer que a satisfa­ ção narcisista é garantida através de uma função observa d ora crítica, em relação ao Ego real. Esta função toma-se um agente de censura do Ego. na medida em que o compara ao Ego ideal. O Ideal do Ego e a função autoobserva dora a ele relacionada constituirão a base daquilo que será descri­ to como Superego.

46

6 Revolução na revolução

6.1.

Uma nova estrutura da Personalidade: a 2? tópica Vim os que o enriquecimento da teoria psicanalítica a partir da intro­

dução do conceito de narcisismo provocou, desde 1914, um considerável remanejamento dos conceitos e termos até então empregados. Na sequência deste remanejamento, Freud elabora, em 1923, uma nova concepção da es­ trutura da personalidade, a fim de melhor apreender fenômenos que, até es­ ta data, escapavam do enfoque restrito da concepção anterior, baseada nas instâncias de inconsciente, pré-consciente e consciente. Masé necessário fri­ sar que, ao invés de abandonar a primeira concepção da personalidade, ele irá integrá-la na nova concepção, denominada 2* tópica ou concepção estru­ tural da personalidade. A 2? tópica divide personalidade em trés regiões que. apesar de não se agruparem em pares harmônicos, entre têm relações mútuas: o íd ,o Ego e o Superego. Falamos, em seguida, de cada uma delas: O I d - em alemão “es” , é a forma latina do pronome neutro “isto” . A expressão já fora empregada antes pelo filósofo alemão F. Nietzsche. Era também o títu lo de um livro de inspiração psicanalítica do médico G. Groddeck, o Livro do I d

Este pronome impessoal parece a Freud especialmente

bem talhado para expressar a característica dessa região da mente - é alheia ao Ego. O Id se constitui, efetivamente, como a parte obscura, “a parte inaces­ sível de nossa personalidade” . Ele é descrito como estando aberto, no seu extrem o, a influências somáticas e encerrando, em seu interior, as expressões psíquicas dessas influências somáticas, isto é, as expressões psíquicas das ex­ citações biológicas. ’ 47

0 Id , neste sentido, nffo se distingue da descrição de inconsciente feita por Freud desde 1900, a nío ser por este seu aspecto radical, que o vincula à essência biológica do homem. É esta abertuda do Id em direção ao biológi* co que fará dele a expressão dos impulsos de morte e de vida que Freud verá presentes em todo organismo vivo. Concebc-sc, o Id assim, repleto de ener­ gias que lhe chegam dos impulsos e lutando, cxclusivamente, por conseguir satisfazê-los. Orientando-se unicamente pelo princípio de prazer, o Id não co­ nhece nenhum julgamento de valor, ignorando o bem, o mal e a moralidade. Podemos descrever as características do Id como sendo as seguintes: - As leis lógicas do pensamento não se aplicam a ele. Assim, por exemplo, no que se refere à lei da contradição, impulsos contrários (ódioe amor) coexistem lado a lado, sem que um anule o outro, ou sem que um diminua o outro. - No Id não há nada que se possa comparar á negação. Ele não é autocontrolado como o é o inconsciente postulado por Gustav Jung. O Id de Freud tende, inapelavelmente, a aprimorar suas satisfações. - O conteúdo do id é de impulsos apenas, em busca de descarga afetiva. - Nenhuma alteração em seus registros dos processos mentais é pro­ duzida pela passagem do tempo. “ Impulsos plenos de desejos, que jamais passaram além do Id e, também, impressões, que foram mergulhadas no Id pelos recalcamentos, não virtuaimente imortais, depois de se passarem décadas, despertam como se tivessem ocorrido há pouco 1’ (Freud, 1932). Desta maneira, os elementos recalcados não se alteram com o passar do tempo. - O fator econômico, que está intimamente vinculado ao princípio de prazer, domina todos os processos do Id. Isto significa que os impulsos em busca de satisfação estão submetidos a um regime de energia móvel. Este regime permite que o acento energético possa passar, constante e livremente, de uma representação a outra, caracterizando o mecanismo de deslocamen­ to. Impulsos contrários podem convergir, formando conciliações momentâ­ neas, com vistas à descarga afetiva. Tal situação, denominada condensação, só se torna possível neste regime econômico caracterizado pela mobilidade energética. Em suma, “ para adotar um modo popular de fa la r,. .. diriamos que o Id significa as paixões indomadas” (Freud, 1932). O Ego - No pensamento freudiano, o Ego não está presente no início da vida do indivíduo, devendo ser desenvolvido. Na ótica genética, uma par­ te do Id é adequadamente modificada pela proximidade e contato com o mundo externo, sendo este o fator decisivo na formação do Ego. Neste sen-

48

tid o, pode-se dizer que o Ego c aquela parte do Id que, modificada pela pro­ xim idade c influência do mundo que circunda o sujeito, está apta tanto a re­ ceber estímulos como a funcionar como escudo protetor contra tudo aqui­ lo que ameaça o aparelho mental. O Ego, enquanto sistema, encontra-se voltado princípalmente para o meio externo, sendo o instrumento perceptivo básico daquilo que surge de fora. Constituindo-se como o órgão sensorial de toda a personalidade, o Ego é, entretanto, receptivo também às excitações provenientes do interior do sujeito. É, portanto, durante seu funcionamento que suige o fenômeno da consciência. Este aspecto do Ego coincide com o pólo perceptivo (P) do prim eiro esquema do aparelho psíquico (ver fig. 2 3 ) , também denominado por Freud, num determinado m om ento, de percepção-consciência (Pcpt-Cs), cuja função maior era a de receber tanto os estímulos externos quanto os internos. Em decorrência de sua posição, o Ego tem a incumbência de observar o m undo externo, devendo estabelecer um quadro do mesmo nos traços da memória. Para tai, é preciso que ele separe aquilo que é oriundo do mundo externo, daquilo que provém de fontes internas de excitação (separação das realidades interna e externa). Adicionalmente, cabe também ao Ego controlar o acesso dos impulsos provenientes do Id à motilidade. Neste aspecto, há coincidência do pólo m otor (M ) do primeiro esquema da perso­ nalidade com esta instância psicológica (ver fig. 2.3). O controle do acesso dos impulsos à motilidade é efetuado, principal­ m ente, pela atividade do pensamento. Este se interpõe, no Ego, entre o im ­ pulso e a ação. Desta form a, deve-se observar que o Ego sofre, cm seu desen­ volvim ento, uma evolução que vai da mera percepção dos impulsos, ao exer­ cício gradativo de controle sobre os mesmos. Em resumo, poder-se-ia dizer que o Ego destrona o princípio de prazer (que domina sem qualquer restri­ ção o curso dos eventos do Id ), cumprindo sua atribuição ao descobrir as circunstâncias em que tais intenções possam ser realizadas com um m ínim o de conflito. Entretanto, para exercer esta função básica, o Ego necessita de uma certa quantidade de energia, ou libido, que será por ele retirada do Id. Mas para que esta retirada de energia seja possível, é preciso que o Ego recorra a um artifício ou subterfúgio. Como já se sabe, todo investimento libidinal de objeto, embora oriundo do Id , passa necessariamente pelo Ego. É este que decide, em últim a instância, a respeito das condições adequadas para sua satisfação. A artimanha do Ego para prover-se da energia consiste em identificar-se com o objeto de desejo libidinal, ou seja, em colocar-se em seu lugar, desviando, desta maneira, para si próprio, a libido do Id. Na verdade,

49

o que particularmente caracteriza o Ego é uma tendência à síntese de seu conteúdo, à combinação e à unificação em seus processos mentais, atri­ butos que não se encontram, de forma alguma, presentes no Id . Embora muitas características, até agora atribuídas ao Ego, coinci­ dam com aquelas que pertencem ao consciente, devc-sc deixar claro que muitas de suas parles são inconscientes. Tal é o caso dos mecanismos de defesa, instrumentos do Ego para lidar com os conflitos emanados dos in ­ teresses e exigências contraditórias entre o Id , o Supcrego c a realidade.

6.1.1.

Mecanismos de defesa do Ego

Os mecanismos de defesa do Ego têm por objetivo auxiliá-lo em sua tarefa de enfrentar os assaltos do Id, as injunções do Superego e as lim ita­ ções impostas pela realidade externa. Estes mecanismos, por pertencerem à zona inconsciente do Ego, operam de maneira velada, subtraindo-se à per­ cepção vigilante do consciente do sujeito. Em seu livro O Ego e seus Meca­ nismos de Defesa, Ana Freud faz um levantamento dos mecanismos descri­ tos por Freud que atuam como salvaguardas do Ego. Os principais mecanismos de defesa seriam o recalcamento, a repres­ são, a regressão, a formação reativa, a sublimação, o isolamento, a anulação retroativa, a denegação, a projeção, a introjeção, a volta contra si e a inver­ são do impulso. A fim de melhor situá-los, para o leitor, daremos, de cada um deles, uma definição sucinta: Recalcamento - consiste numa operação, através da qual o represen­ tante ideativo (ato psíquico, idéia) do impulso psíquico é exclu íd o do cons­ ciente e mantido no inconsciente, por força de um contra-investimento. Repressão - é um mecanismo consciente que desempenha sua ação a nível da “ censura” funcional situada entre o consciente e o pré-consciente. Trata-se de uma inibição do ato psíquico, e sobretudo do afeto, a nível cons­ ciente, não envolvendo sua passagem para o inconsciente. As motivações morais desempenham um papel importante na repressão. Regressão - designa um retomo do sujeito a etapas passadas de seu desenvolvimento libidinal (regressão temporal), ou a um modo de funciona­ mento mental arcaico (regressão tópica). Formação reativa - diz respeito ao aparecimento, sob forma de traços de caráter ou alterações permanentes do Ego, de uma oposição manifesta d i­ rigida contra um impulso psíquico. “Na formação reativa, tanto a represen­ tação sexual quanto a revolta que ela provoca são excluídas da consciência e substituídas por virtudes morais extremadas” (Freud, 1902). 50

Sublimaçâo - trata-se da derivação do impulso sexual em direção a um modo de satisfação não sexual que passa, então, a visar objetos social­ mente valorizados. A sublimação seria uma atividade do Ego subjacente às atividades artísticas e à investigação intelectual. Isolamento - importa num mecanismo que procura isolar um compor­ tamento ou um pensamento, a fim de romper suas conexões com outros pensamentos, ou com o restante da existência do sujeito. Anulação retroativa - implica a anulação das consequências psicoló­ gicas de um comportamento, através de um comportamento seguinte e oposto ao primeiro. Pode-se, amiúde, pensar em colocar em mesma linha de filiação a anulação retroativa e um outro mecanismo de defesa, que de­ sempenha um papel fundamental na teoria kleniana da personalidade, a reparação. Denegação - trata-se de um mecanismo de defesa bem analisado por Freud em seu artigo “ A (Dcjnegação", de 1925. No dicionário contemporâ­ neo da língua portuguesa, Caudas Aulete, lê-se que o termo denegação designa uma “declaração pela qual se sustenta que um fato é falso". Verifi­ ca-se, ainda, que o sinônimo de denegar é desmentir. Assinalamos que o antônimo de denegar é reconhecer, ao passo que o verbo negar tem por antônimo o verbo afirmar. Estas precisões da língua são importantes para se esclarecer aquilo que há de específico neste mecanismo de defesa. A denega­ ção estabelece, com efeito, uma relação negativa com a verdade. Sabemos que a verdade, em Psicanálise, é designada por aquilo que desponta no in­ consciente de cada um. A cura psicanalítica consiste no ato preciso de assu­ mir esta verdade que, quando recalcada, tenta se expressar através dos sinto­ mas. Ora, a denegação encontra-se em obra, sobretudo nos primeiros mo­ mentos da cura quando se delineia um reconhecimento, apenas intelectual, do desejo recalcado. Deste modo, toma-se consciência de um desejo sem, entretanto, reconhecê-lo em toda plenitude, persistindo, pois, o essencial do trabalho do recalcamento. Na expressão, aliás frequente na clínica psica­ nalítica, “Ontem, sonhei com uma margarida; não era minha irmã ", fica evidente que o fato de desmentir assinala que o sujeito pelo menos pensou que tal elemento representasse afirmativamente sua irmã. Projeção — indica a operação, através da qual o sujeito coloca no ex­ terior certas qualidades, desejos ou sentimentos que ele ignora e recusa em si mesmo. Introjeção - diz respeito à operação em função da qual o sujeito faz entrar em seu Ego partes do mundo exterior (objeto, situações ou pessoas), transformando-as em objeto de suas fantasias inconscientes (Fcrenczi, 1909). 51

Volta contra si - refere-se ao processo onde um objeto do impulso psíquico é substituído pela própria pessoa. Quando, no impulso sádico, o objeto é substituído pela própria pessoa (volta contra si), aparece o masoquismo. Inversão do impulso - indica o mecanismo que transforma a ação do impulso psíquico em seu contrário. Por exem plo, transformação de ativida­ de em passividade.

6.2.

Superego, Idea) do Ego e Ego-Idcal

Freud, em um estudo datado de 1921 e referente à psicologia coletiva, introduziu a noção de Superego. Foi este, finalm ente, o nome dado à “agên­ cia crítica’' de nossa personalidade. O Superego forma-se, durante o declí­ nio do complexo de Édipo, a partir da interiorização das imagens idealiza­ das dos pais. Ora, sabemos que a imitação (Lacan) desempenha um papel de primeira importância no desenvolvimento da Personalidade e da linguagem. A criança imita um modelo que é, inicialmente, exterior a ela. Este m odelo, elaborado a partir da imagem que ela faz dos pais, tom a-se, em seguida, in­ terior, isto é, ele é introjetado no Ego. Esta introjeção acarreta uma crispação e uma diferenciação permanentes no Ego infantil. A parte diferenciada do Ego constitui-se no Superego. Decorre deste processo que a parte referente à imagem idealizada (dos pais) transmuta-se, no interior do Ego, em imagem idealizada de si mesm o, e a parte referente á função paterna constitui-se em agente crítico do Ego dotado, pois, de todas as características de severidade e proibições que a criança atribuía aos pais. Conclui-se, assim, que o Superego exerce não somente uma função crí­ tica e normativa, mas, também, revela-se com o base de todo ideal humano. Desta forma, parece claro que o Superego é uma instância com plexa, forma­ da por um núcleo crítico, em torno do qual gravitam vários segm entos que lhe pertencem. Daniel Lagache estabeleceu, a partir da leitura das obras de Freud, uma distinção existente entre as noções referentes a estes segm entos superegóicos. Em primeiro lugar, temos o Ideal do Ego, que compreende tudo aqui­ lo que o sujeito deve ser para responder às exigências do Superego. Este Ideai do Ego forma a base de todo ideal elevado (ético, estético e religio­ s o . . .). Em segundo lugar, temos o Ego-Ideal que corresponde ao que o pró­ prio sujeito espera de si a fim de responder, favoravelmente, às exigências

52

de uma ilusão infantil de onipotência. Este Ego-Ideal é de origem arcaica. Corresponde a um estágio do desenvolvimento, onde a relação da criança com os pais, vistos como onipotentes, era de natureza fusional. Podemos, assim, concluir que o Superego situa-se face ao Ego como modelo c obstáculo. Modelo, se é o “ Ideal", obstáculo, se é o “proibido” . Ele é, finalm ente, responsável pela origem da consciência moral, sentimen­ tos de auto-estima e de culpa.

6.3.

Relações entre a realidade externa, o Id, o Superego e o Ego Como já foi dito, a função básica do Ego é tentar conciliar e sintetizar

as exigências contraditórias, e mesmo incompatíveis, emanadas do Id, do Superego c da realidade externa. Ao exercer sua função, o Ego é, de um la­ do, observado com severidade pelo Superego, que estabelece padrões defi­ nidos para sua conduta, sem levar em conta as demandas do Id. Por outro lado, o Id também luta pela satisfação plena de seus impulsos, permanecen­ do rígido e intolerante no desconhecimento das imposições do Superego e

Figura 6.1. Alguns aspectos devem aqui ser ressaltados. Entre eles, destaca-se o fato do Superego manter relações próximas com o Id, do Id relacionar-se com o mundo exter­ no somente através do Ego, e do Ego constituir-se em um sistema de percepçâo-consciência. 53

0 tipo narcisista: este terceiro tipo tem características de cunho sobre­ tudo negativo. Não existe tensão entre Ego e Superego e nem predominam as necessidades eróticas. Este tipo está orientado no sentido da sua autoconservação; trata-se de pessoas independentes e que não sc deixam inti­ midar. O Ego. neste caso, dispõe de uma considerável carga de agressivida­ de que se converte em uma disponibilidade para a ação. No plano amoroso, preferem amar a ser amadas. Impressionam os demais por sua forte perso­ nalidade; são particularmente aptas para servir de apoio ao próxim o, para assumir o papel de condutores da sociedade, proporcionar novos estímulos ao desenvolvimento cultural ou revolucionar as condições existentes. Esses tipos, em estado puro, são raros. Encontramos com maior faci­ lidade os tipos mistos, onde características dos tipos puros se encontram combinadas. Temos, assim, o erótícoobsessivo, o erótico-narcisista e o narcisista-obsessivo. No tipo erótico-obsessivo, a importância dos impulsos libidinais é res­ tringida pela preponderância do Superego. A dependência deste tipo voltase tanto para as pessoas que desempenham um papel atua) importante em suas vidas, como para aquelas que exerceram, no passado, tal função (pais, educadores etc.). 0 tipo erótico-narcisista é o mais comum dos tipos. Ele reúne em si características contrastantes que se atenuam mutuamente. Por exemplo, este tipo consegue combinar o interesse por si com o interesse pelos outros. O tipo narcisista-obsessivo representa a variante mais valiosa do ponto de vista cultural. Nele, encontram-se combinadas tanto a independência em relação a fatores do mundo externo (elemento narcisista), como a submis­ são aos imperativos da consciência (elemento obsessivo) e a capacidade para a ação enérgica. Desta forma, é possível dizer que, neste caso, o Ego se en­ contra fortalecido e, portanto, em condições de enfrentar as exigências do Superego. Na verdade, se fosse possível postular a existência de um tipo ideal, este seria o que chamaríamos de erótico-obsessivo. A combinação harmô­ nica de atributos dos três tipos acima se tomaria, entretanto, não mais um tipo e sim a norma absoluta. Isto porque o que define um tipo nada mais é do que a distribuição da Libido favorecendo a economia psíquica de uma das três instâncias (Id - Ego - Superego), em detrimento das outras. A distribuição eqüitativa da libido, como no nosso caso ideal, opõe-se, por­ tanto, à própria noção de tipo que, em seu estado puro, notabiliza-se pelo predomínio do investimento libidinal em uma das instâncias psíquicas aci­ ma mencionadas. Os tipos podem existir sem que haja, como já foi dito, a presença de patologia. Aliás, através de seu estudo, não é possível desvendar nenhum S6

aspecto marcante relativo à gênese nem das neuroses nem das psicoces. Os tipos puros, onde predomina o investimento libidinal em uma única instân­ cia psíquica, não são, em geral, propensos a conflitos psíquicos condicionantes da neurose ou psicose. Entretanto, no caso de descncadeamento de perturbações na persona­ lidade, os tipos eróticos evoluiriam para a histeria, enquanto que os tipos obsessivos voltar-se-iam, predominantemente, para a neurose obsessiva. As pessoas de tipo narcisista, pela independência que mostram em relação ao m undo externo, estariam mais propensas à psicose, além do fato de poderem apresentar alguns fatores essenciais que o condicionam à criminalidade.

57

na ignorância dos limites impostos pela realidade externa. Esta última, por sua vez, permanece indiferente aos anseios, desejos e restrições que emanam e são criados pelo próprio sujeito. Assim, o Ego pressionado pelo Id, confinado pelo Supcrego, repelido pela realidade, luta para exercer cficientcm ente sua incumbência de conci­ liar as forças que atuam nele e sobre ele. Entretanto, se o Ego fracassa no exercício desta função, ele irrompe cm ansiedade: ansiedade rcalística refe­ rente ao mundo externo, ansiedade moral referente ao Supercgo que se manifesta através de intensos sentimentos de culpa c dc inferioridade (por comparação ao Ideal do Ego, dotado de todas as perfeições) - c ansiedade moral referente às forças das paixões do Id. Frcud, no esquema da figura 6.1, procurou ilustrar como se configuram as relações entre as diferentes es* tmturas de personalidade. Devido às pressões, de naturezas distintas, que recaem sobre o Ego, o propósito da abordagem clínica psicanalítica da personalidade é fortalecê-lo, tomando-o mais independente do Supercgo, ampliando seu campo de per­ cepção e expandindo sua organização, dc maneira a poder apossar-se dc no­ vas partes do Id. Para que se dé este processo, é necessário que tratemos, em­ bora ligeiramente, do que Freud chamou "tipos libidinais” (1 9 3 1 ).

54

7 Tipos libidinais

Os seres humanos se constituem em variedades de quase infinita multiformação. Podemos, entretanto, delimitar alguns tipos psicológicos gerais, fundamentando-nos no estudo da libido. Deve-se, por outro lado, ressaltar que a descrição de tipos não mantém, para Freud, nenhuma relação com a psicopatologia, muito embora, em suas expressões extremas, possam apro­ ximar-se dos quadros clínicos, vedando, assim, a brecha entre normal e pa­ tológico. Com tal ressalva feita, é possível descrever trés tipos libidinais básicos, de acordo com a localização predominante da libido em diferentes setores da personalidade: o erótico, o obsessivo e o narcisista. O tipo erótico: segundo Freud, este tipo é constituído por pessoas cujo interesse principal está concentrado na vida amorosa. Amar, mas par­ ticularmente ser amado é, para um indivíduo deste tipo, aquilo que existe de mais importante na vida. As pessoas com tal característica são domina­ das pelo temor de perder o amor. Encontram-se, em função deste fator, em estreita dependência daqueles que podem privá-los dele. Este tipo é muito comum. Existem variantes que são constituídas por combinações, mais ou menos consideráveis, de elementos agressivos. Do ponto de vista sócio-cultural, este tipo rep isenta as reivindicações do Id, às quais as outras instân­ cias psíquicas se curvam. O tipo obsessivo: este tipo caracteriza-se pelo predomínio do Superego que se separou do Ego. As pessoas deste tipo encontram-se dominadas pela angústia diante da consciência, ao invés do medo de perder o amor. A de­ pendência que rranifestam não se situa em relação aos outros, como é o caso do tipo erótico. Trata-se, ante' de tudo, de uma dependência interna, decor­ rente de injunções morais e educativas, das quais não podem se livrar. Social­ mente, são portadores da cultura com orientação predominantemente con­ servadora. 55

8 Pulsão de vida e pulgão de morte

A partir de 1920, Freud começa a efetuar uma verdadeira revolução no interior daquilo que Marthe Robert denominou de “a revolução psicanalítica” . Esta profunda transformação no interior da teoria deu-se pela introdução das noções de pulsão de vida e pulsão de morte e, em seguida, pela construção do novo modelo teórico da personalidade constituído pelas noções de Id, Ego e Superego. Não poderiamos, porta' o, finalizar esta ex­ posição da visão freudiana da personalidade, sem art zer menção à nova teoria das pulsões. Deve-se dizer, contudo que “ a teoria freudiana dos impulsos de vida c morte nunca recebeu adesão completa do conjunto dos membros do movi­ mento psicanalítico" (Jones). Determinou, ao c itrário, discussões que se es­ tenderam até os dias atuais. Seria, em todo caso, extremamente instigante retraçar os percalços, o impacto e as conseqüé cias dessas idéias no movi­ mento psicanalítico. Uma edição francesa, estabelecida pelo psicanalista Michel Guibal e pelo historiador J . Nobécourt, e efetuada a partir de docu­ mentos descobertos por dois psicanalistas italianos, mostra, claramente, como estas idéias a respeito da vida e da morte já circulavam nas especu­ lações teóricas de alguns psicanalistas, antes mesmo que Freud as tivesse, finalmente, adotado (Guibal e Nobécourt). A questão básica que fornecerá a Freud a ocasião para deixar-se, en­ fim, seduzir pelas especulações a respeito da existência de impulsos de vida e de morte é uma questão clínica. Esta questão pode ser assim formulada: considerando que o princípio de prazer seja o motor básico do funciona­ mento da personalidade humana, como pode o homem, então, repetir situa­ ções, em sonhos ou atos, mesmo que estas lhe sejam extremamente desagra­ dáveis? 58

Freud começa a respondê-la supondo que toda pulsão tende a restabe­ lecer um estado antigo, anterior, que o sujeito foi obrigado, um dia. a aban­ donar. A partir daí, Freud. num grande salto que ele mesmo qualifica como especulativo, emite, então, a hipótese da existência de uma pulsão de morte que tende a reconduzir os seres vivos a um estado anterior à vida, ou seja, ao estado da matéria inorgânica. Freud encontra, então, uma explicação para estas compulsões cm repetir situações antigas que estariam em contradição com o princípio de prazer, tais como elas se revelam nos repetidos pesadelos onde são retratados eventos traumáticos ou, ainda, em situações de vida on­ de o sujeito fracassa, invariavelmente, segundo um mesmo modelo, nos mo­ mentos mesmo em que ele reunira todas as condições para obter algum su­ cesso ou triunfo. Como se vê, Freud liga a pulsão de morte à compulsão de repetição. A finalidade última da pulsão de morte é a redução de toda tensão ao ponto zero, o que só pode ser obtido na recondução do ser vivo a um estado de inorganicidade. Esta pulsão visa, consequentemente, à destruição da ma­ téria orgânica, da vida e de tudo aquilo que representa união, conjunção e unidade- O impulso de morte encontra-se, inicialmente9 investido no interior do organismo (autodestruição, masoquismo etc.) e ê, em seguida, flexiona­ do, em grande parte para o exterior (destruição, agressividade, sadismo etc.). A i aportância da formulação do conceito “ desta pulsão que opera em silêno " refere-se à in;rodução, na teoria psicanalítica, de um princípio distinti­ vo capaz de explicar os fatos da repetição de eventos dolorosos, do ódio, da agressividade, do fracasso e da culpa. Como já vimos, a teoria das pulsões precedente opunha os impulsos de autocT âServação, também denominados impulsos do Ego, aos im pul^» sexuais ou libidinais. Os primeiros eram vistos como destinados a preservar a vida do indivíduo, na medida em que visavam, justamente, aos interesses do Ego. A fome foi mostrada por Freud como protótipo dos im­ pulsos de autoconservação. Os impulsos sexuais, submetidos em grande es­ cala ao princípio de prazer, constituíam, então, o segundo grupo de pulsões. Eles eram vistos, no quadro desta primeira teoria, como destinados, em últi­ ma instância, à procriação, à preservação da vida da espécie. Com a reformu­ lação da teoria das pulsões, Freud irá aglutinar ambos os grupos de impulsos sob a grande categoria de Pulsão de Vida ou Eros. Estas pulsões de vida são vistas não só como 'tendendo a preservar as unidades vitais existentes, mas, também, destinadas a constituir unidades cada vez mais englobantes (união dos indivíduos de sexo oposto, dando origem a um novo ser, organização biológica harmônica etc.). Decorre daí que o trabalho dos impulsos vitais não se restringe, exclusivamente, à preservação da vida, isto é, à manuten59

ção de um certo limite de organização vital. Destina-se, inclusive, a construir a vida, a qual se define tanto pela organização e diferenciação das formas de atividade, como pelo aumento da diferença de nível energético entre o or­ ganismo e o meio. A antiga oposição entre impulsos de autoconservação c im pulsos se­ xuais encontra-se substituída pela oposição entre impulsos de vida e im­ pulsos de morte. O barulho da construção da vida, da diferença de tensão, opõe-se ao trabalho silencioso do impulso de m orte. Mas apesar da oposi­ ção existente, a pulsão de morte pode também incorporar-se à pulsão de vida. Esta dialética da vida e da morte abre um vasto ten itórío de pesquisa no campo do estudo da personalidade humana.

8.1.

Pulsão de morte e estrutura da personalidade

Freud não estabeleceu nenhum estudo sistem ático assimilando a se­ gunda tópica - que apresenta a estrutura da personalidade sob um novo ân­ gulo, estratificada em instâncias denominadas Id, Ego, Superego - , e a se­ gunda teoria das pulsóes - que opõe os impulsos de m o rte,d estin a d o s,ex ­ clusivamente, a um retorno a um estado anterior, nostálgico, aos impul­ sos de vida, que constituem o princípio de união. Preocupado, entretanto, com a questão do “sentimento de culpa do inocente” que é apresentado de maneira explícita no Livro de Jó, Freud irá articular a questão da pul­ são de morte com o Superego e abrir, deste m odo, um novo flanco contra o qual o Ego deverá, ainda, debater-se. Se o inocente se cré culpado é porque, efetivamente ele é um crimi­ noso; mas seu crime reside na intenção, isto é, nas “fantasias e desejos culpáveis da infância" (Mannoni). A culpa advem das satisfações exigi­ das pela pulsão de morte. Estas satisfações aparecem sob a forma de sin­ tomas de culpa que corroem o indivíduo. Aquelas personalidades que fra­ cassam ao triunfar podem ser compreendidas, então, a partir desta assi­ milação da pulsão de morte ao Superego.

60

9 Bibliografia

Abraham, K. Psicoanálisis Clinico. B. Aires, Edicioncs Hormé, 1959. Anzieu, D. Le C orpsde L 'oeuvre. Pans, Editions GaJlimard, 1981. Dolto, F. Psicanálise e Pediatria. Rio dc Janeiro, Zahar, 1977. Favcz-Boutonicr. La Personalité. Centre de Documcntation Universitaire. Federn, P. La Psychologie du Moi et les Psychoses. Paris, PUF, 1979. Ferenczi, S. Problemas y M étodos dei Psicoanalisis. Buenos Aires, Hormé, 1966. Freud, S. Obras Completas. Madríd, Ed. Biblioteca Nueva, 1968. Guibal, M. c Nobccourt, J. Sabina Spielrein entre Freud et Jung. Paris, Aubicr, 1981. Jones, E. Hate and Anal Erotism in the Obsessional Neurosis. Londres, Papcrs on Psychoanalisis, 1918. Jones, E. La Vie e t L ‘o euvre de Sigmund Freud. Paris, PUF, 1970. Kris, E. In: Freud, S. Nascimento da Psicanálise (Introdução). Lacan, J. "Le stade du miroir comme formateur de la fonction du Jc”. In: Ecrits Paris, Editions du Seuil, 1966. Lacan, J. Le Moi dans la Théorie de Freud e t dans la Technique de la Psychanalyse Pa­ ris, Seuil, 1978. Lagache, D. La Psychanalyse. Paris, PUF, 1967. Laplanche et Pontalis. Vocabulaire de la Psychanalyse. Pans, PUF, 1967. Leclaire, S. Psicanalisar. São Paulo, Editora Perspectiva, 1977. Mannoni, O. Freud e a Psicanálise. Rio de Janeiro, Editora Rio, 1976. Reich, W. Analisis dei Caracter. 5?ed. Buenos Aires, Paidós, 1975. Ricoeur, P. De L ‘interpretatíon. Paris, Editions du Seuil, 1965. Safouan. A sexualidade Feminina na Doutrina Freudiana. Rio de Janeiro, Zahar. 1977.

61

PARTEn T E O R IA D A PERSON ALIDADE EM W1LHELM REICH Waldir Lourenço Gonçalves

10 Reich: um homem, uma obra

A vida de Wilhelm Reich foi marcada por uma entrega total às últimas consequências de suas idéias, sempre buscando compatibilizar a sua prática psicanalítica e social com suas propostas teóricas revolucionárias. 0 resulta­ do, em um contexto marcado inicialmente pela oposição entre socialismo » nazi-facismo e, mais adiante, entre capitalismo e comunismo, não poderia ser outro: intensas rivalidades, contestações c perseguições, cujo corolário * assinalado pela sua morte na prisão. O destino de suas obras não foi menos tumultuado. Hoje, há quase trinta anos de sua morte, mantêm-se as controvérsias sobre suas obras, mui­ tas perdidas, outras jamais publicadas, outras alteradas profundamente por evisões ou omissões, que valem acusações de censura ideológica contra Vlery Higgihs, administradora da Fundação herdeira dos direitos sobre «us livros. Resumiremos, nesta introdução, alguns aspectos marcantes que darão ima primeira visão do que foi a vida e a obra deste autor. Reich nasceu a 24 de março de 1897, na Galícia ucraniana, parte do .mpério Austro-Húngaro. Filho de pais camponeses, divide seu tempo entre o trabalho no campo e os estudos. A vida familiar é atribulada, pois sua mãe não se realiza no casamento e acaba dando um fim trágico a sua vida. 0 pai, ressentido c melancólico, morre quando Reich tinha 17 anos. Tendo vivenciado intensamente tal drama familiar, em 1915 é recrutado para o exército, onde chega a tenente, mas perde todos os bens com o desfecho da guerra. Arruinado economicamente, ingressa na Faculdade de Medicina da Universidade de Viena (1918) onde se destaca brilhantemente nos estudos. 65

Participando ativamente dos Seminários de Sexologia prom ovidos pelos alu* nos, acaba por ser eleito para a diretoria desses sem inários. É quando vem a conhecer Freud, Stekel e Adler (1919). A partir daí podemos ressaltar tris m om entos em sua vida c obra: 1919 - 1926 - Momento de dedicação à Psicanálise, com progressiva atenção à miséria sexual do operariado e sua relação com as neuroses. 1927 - 1935 - Momento de crítica à psicanálise ortodoxa: proposta de uma prática psicanalítica revolucionária, pela aproxim ação com o mar xismo. 1936 - 1957 - Abandono gradua] da práxis político-psicanalítica. Incursão pela fisiologia e biologia até chegar a uma cosm ogonia, aparente* mente metafísica e pseudocientífica: m om ento de delírio. No primeiro momento que definim os, Reich ingressa na Sociedade Vienense de Psicanálise e tomasse discípulo de Freud (1 9 2 0 ). Especializa* se em neuro*psiquiatria, forma-se doutor em Medicina (1 9 2 2 ) e passa a tra* balhar como psicanalista, em seu consultório. Freud, que já havia ressaltado, em 1918, a necessidade de clínicas po­ pulares gratuitas, como a dirigida por Karl Abraham, em Berlim, funda, em 1922, a Policlinica Psicanalítica, em Viena, apesar das contestações da classe médica, tomando Reich como seu primeiro assistente. Este destaca-se nes­ te trabalho, mostrando crescente interesse pela miséria sexual du operário, frente à proibição do aborto e controle de anticoncepcionais. Percebe a relação entre a ansiedade ligada ao risco da procriação e a etiologia das neu­ roses. Esta experiência fundamentará toda sua obra psicanalítica e socio­ lógica. Nessa linha, publica seus primeiros trabalhos e realiza conferências em congressos psicanalíticos, já encontrando resistência dos psicanalistas ortodoxos a suas idéias sobre p o tê n c ia orgástica” e “couraça caracterológica". Mesmo assim, estes conceitos formarão a base de publicações posteriores como a Análise do Caráter e A Função d o Orgasmo. Apesar das oposições a suas teorias, Reich ainda é bem conceituado no círculo psicanalítico, assumindo, entre 1924 e 1930, a direção dos Semi­ nários de Psicoterapia, e sendo nomeado subdiretor da Policlínica Psicana­ lítica, entre 1928 e 1930. Participa cada vez mais do m ovim ento socialista, em favor do proleta­ riado, opondo-se ao nazi-fascismo nascente. Em 1927, em Schattendorf, pequena cidade austríaca, ocorrem distúrbios numa reunião do partido socialista, onde dois operários foram mortos. Em 14 de setem bro deste ano, os assassinos foram julgados e absolvidos, causando revolta nos operários. Reich participa de uma manifestação de repúdio, dois dias depois, onde houve um choque com a polícia, sendo massacradas dezenas de operários. 66

Nessa mesma noite, inscrevesse no Partido Comunista austríaco e inten­ sifica seus estudos sobre Marx tentando aproximar Materialismo Dialético e Psicanálise. Por essa época, inicia-se a segunda fase que descrevemos. Em 1928, funda a Associação Socialista para a Investigação e Ajuda Sexual. Abre, em janeiro de 1929, seis centros de Higiene Sexual, compostos por quatro psicanalistas, trés obstetras c um advogado, nos subúrbios de Viena, man­ tendo, com o m eta, a legalização do H orto. Estes centros expandem-se com numeroso afluxo de operários. Rcich passa, cada vez mais, para a psicoprofilaxia das neuroses, buscando uma revolução sexual que elimine o grande fator, a seu ver, gerador da psicopatologia: a repressão imposta pela mo­ ral conservadora. Em 1929, vai conhecer a União Soviética. Em 1930, estabelece-se em Berlim, vinculando-se ao Partido Comunista Alemão. Conferências, palestras, novos textos publicados e, em 1931, funda a Associação para uma Política Sexual Proletária, a SEXPOL. O sucesso do empreendimento é espantoso, arregimentando 20 mil membros, em um ano, por toda a Alemanha. A am plitude do m ovim ento assusta os dirigentes do P.C., que come­ çam a exercer pressão contra suas atividades. Reich funda, para neutralizar esta oposição, uma editora própria: a Verlag für Sexualpolitik, ou SexpolVerlag (E dições de Política Sexual) (1 9 3 2 ). No entanto, a difusão de seus textos com eça a ser proibida pelo Partido. Em 1933 é expulso do P.C. e perseguido pelos nazistas, que assumem o poder. Inicia um longo exílio pela Europa, sendo rejeitado pelos psicanalistas vienenses por descaracte­ rizar a Psicanálise, utilizando-a para fins comunistas. Em 1934, é expul­ so da Associação Psicanalítica Internacional. É obrigado a abandonar os diversos países em que se exila, acusado, pela direita, de revolucionário, pela esquerda, de agitador. Continua publicando textos, alguns com pseu­ dônimos de Ernst Parrel e Karl Teschitz. Gradativamente, vai abandonan­ do as questões ligadas ao Materialismo Dialético e se aproximando da Fisiologia e da B iofísica, a partir de 1935, iniciando sua terceira fase. Envereda pela pesquisa sobre os bions e o orgone cósmico. Em 1939, vai para os Estados Unidos e aprofunda suas pesquisas, funda a editora Orgone Institute Press e m onta um laboratório em Nova York, lança o International Journal f o r S ex-E conom y and Orgone Research (1942). Co­ meça a ser perseguido pelo F.B.I., que entende suas pesquisas sobre a ener­ gia orgônica com o espionagem nazista ou comunista. Cria, em 1 9 4 4 , aparelhos acumuladores de orgone, que seriam usa­ dos na prevenção e cura de doenças físicas e mentais.

67

0 Orgone Institute transformou-se na Wilhetm Reich Foundation, em 1949. * Em 1954, com o advento da caça aos comunistas, por MacCarlhy, Reich é condenado, por ‘'venda ilegal de objetos terapêuticos*', pela Federal Food and Droog Administration. É preso cm 1957, ano em que morre na prisão. Esta última fase foi marcada pelo abandono total da Psicanálise e do Marxismo, fundando toda a compreensão dos fenômenos psicológicos e sociológicos sobre a influência de forças poderosas, resultantes de diferen­ tes concentrações do orgone cósmico, ou de uma energia negativa denomi­ nada DOR-Deadly Orgone (orgone mortal). Este seu trabalho deixa trans­ parecer os processos paranóicos a que chegou, não sem motivos. Durante toda sua vida, manteve freqüentes publicações e reedições revistas de suas obras. Muitas foram destruídas pelos nazistas, outras pelos americanos. 0 Wilhelm Reich Foundation transformou-se no W .R. Infant Trust Found, herdeiro e responsável pelas publicações. Porém, muitas obras mantêm-se não editadas. Muitas outras foram reeditadas em versões “ corrigidas” , amenizadas em seu conteúdo político, o que deu ensejo a inúmeras “edições-piratas” , na Europa, dos textos originais. As obras de Reich seguem seu trajeto biográfico de forma extrema­ mente coerente: inicialmente, ele se aprofunda na perspectiva psicanalítica, com importantes contribuições, até que passa a compreender a neurose como resultante da energia sexual (libido) submetida à moral social repressora, o que já lhe valem as primeiras objeções do círculo psicanalítico. Esta visão das neuroses leva-o à aproximação com o Marxismo, na análise dos processos sociológicos da repressão, e com a Biologia, no estudo da energia sexual. Esta percepção teórica integra-se com sua prática política junto ao P.C. e sua atuação a favor do aborto e da difusão do uso de anticoncepcio­ nais, buscando uma política sexual libertadora, dirigida ao proletariado e àjuventude. Por fim, após anos de resistência enérgica às pressões e persegui­ ções, sucumbe ao processo paranóico, coincidente com seu estabelecimento nos Estados Unidos. Sempre coerente com suas idéias - agora sobre a biofísica orgõnica - , permanece ativo, criando e difundindo os acumulado­ res orgônicos e publicando os resultados de suas pesquisas, o que lhe vale, desta vez, prisão e morte. Esta sequência pode ser acompanhada pela série de textos que relacio­ namos a seguir, em ordem de publicação: 68

1920

-

“ Der Koitus und dic Gcschlechtcr” (O coito c os sexos), em Zeit­

schrift fü r Scxualwisscnschaft 1923 -

“ Z u r Tricb -E n crg ctik” (Sobre a energia do instinto), em Zeitschrift

fü r Scxualwissenschaft 1924 - “ Der T ic ah Onanic aquivalcnt” (O tique como equivalente do onam * m o), cr

Z eitsch rift fu r Sexualwissenschaft.

“ Ubcr G c n ita lità t” (Sobre a genitalidade), cm Internationaler Zeitschrift fü r Psychoanalyse. 1925 - D e r tricb h arftc Charakter (O caráctcr puhional

Eine Studie 2ur Psychopathologie des íchs

Um estudo sobre a psicopatologia do EuX Viena. Intcrnationaler

psychoanalytischcr Vcrlag 1926 - “Ubcr dic Q ucllcn der ncurotischcn Angst" (Sobre a ongem da neurose da angústia), cm In tc rn atío n ale r Zeitschrifte fü r Psychoanalyse 1927 -

“ Dic Rollc des G cn italitãt in der Neurose nthcrapie” (A função da ge­

nitalidade na terapia das neuroses), cm AH A r2 tl fü r Psychoterapie “ Strafbcdürfnis und ncurothchcr Prozcs", em ínternationaler Zeitschrift fü r Psychoanalyse “ E ltcm ais E rzichcr” , cm Zeitschrift fü r Psychoanalyse Pedagogik Dic F u n k tio n des Orgasmus - Psychopatologie des Geschlechtelebens (A fun­ ção do orgasmo -

Uma psicopatologia da sexualidade). Viena. IntemationaJer Psy-

choanalytischer Vcrlag. 1928 - “ Ucbcr Charaktcranalysc (A propósito da análise do caráter), em Internationaler Z eitsch rift f ü r Psychoanalyse 1 92 9 -

“ D er genitalc und der neurotischc Charakter” ( 0 caráter genital e o ca­

ráter neurótico), cm Ín te rn atio n ale r Zeitschrift fü r Psychoanalyse Sexualrregung und Sexualbefriedigung (Tensão e satisfação sexuais), Viena. Münster-Vcrlag. D ialcktischer M aterialism us und Psychoanalyse (Materialismo dialético e psica­ nálise), Viena, Münster-Vcrlag. Publicado simultaneamente em Under dem Bannerdes Marxismus (Sob a bandeira do Marxism o), Moscou. 1 93 0 -

Geschlechtesreife, Enthaltsam keit, Ehemorol - Eine Kritik der bürger-

licher Sexualreform (M aturidade sexual, continência, moral matrimonial - Uma crítica da reform a sexual burguesa). V iena, Münster-Vcrlag. 1 9 3 2 - “ D er masochistische Charakter” (O caráter masoquista), em Internadonater Zeitsch rift f ü r Psychoanalyse. D er sexuelle

K a m p f der Jugend

(O combate sexual da juventude), Berlim.

Viena. Lcipzig, Vcrlag fü r Sexualpolitik. D er Einbruch der Sexualm oral - Z u r Geschichte der sexueüen Oekonomie. (A irrupção da m oral sexual - Sobre a história da economia sexual). Berlim. Viena. Leipzig, Vcrlag fü r S exualpolitik. 1 9 3 3 - Charakteranalyse -

Technik und Grundlagen - Für srudierend und

praktizierende A n a ly tik e r (Análise do Caráter - A sua técnica e bases - Para analistas futuros e em e xe rc íc io ), Copenhague, Scxpol-Verlag. 1 93 4 - Massenpsychologie des Fascismus - Z u r Sexualoekonomie der pohhscher - R eakrio n und zu r proletarischen Sexualpolitik (A psicologia de massas do fas­ cismo - Sobre a econom ia sexual da reação política e sobre a política sexual proletá­ ria), Copenhague. Scxpol-Verlag. “ Was ist Klassenbewusstein? - Ein Beitrag zur Diskussion über die Neufomiiening der Arbciterbcw cgung” (O que c a consciência de classe? - Uma contribuição

69

para o renascimento do movimento operário), em Politirchpsychologische Schriftenreihe. número 2, Copenhaguc. Praga. Zunque, Sexpol-Verlag. "Der Urgcgcnsatz des vegetativen Lcbcns" (A arquiantinom ia da vida vegetativa), em Zcitschrift fü r pohtische, Psychologic und Scxualockonom ic, números 1 ,2 , 3 e 4. 1935 - "Psychistu Kontakt und Vcgctalivc Strõm ung" (Contacto psíquico c corrente vegetatíva). cm Abhandlungen zur pcrsonellen Sexuabckonom ic, número 3. Copcnhaguc, Scxpol-Verlag. "Rcligión, Kirchc Religionstrcit in Dcutschland" (Religião. Igreja c qucrcla reli­ giosa na Alemanha), cm Politisch-pxychotogischc Schcriftcnrcihc. núm ero 3. Copenhaguc. Scxpol-Verlag (Publicado sob o pseudônimo de Karl Tcschitz). 1936 - *'Dic Sexualitat in Kulturkam pf-zur sozialistischcn Um struktuqcrung des Mcnschcn" (A sexualidade no combate cultural - A propósito da reestrutura socia­ lista do homem). 1937 - "Expcrimentelle Ergcbniss über dic clcktrischc b u n ktio n von Sexualitat und A n p t” (Resultados experimentais a propósito da função elétrica da sexualidade e da angústia), cm Abhandlungen zur personellen Sexualockonomic, número 4 , Copenhaguc. Scxpol-Verlag. “Orgasmusreflcx, Muskclhaltung und Kõrpcrausdruck - Z u r T e c h n ik d c r charakteranalytischcn Vcgctothcrapie" (R eflexo orgástico, tônus muscular c expressão cor­ poral - Sobre a técnica da vegetoterapia caratcroanajítica) "D er Diakktischc Matenalismus in der Lcbcnsforschung*Bencht über dic Bion* Versuchc" (O materialismo dialético na investigação sobre a vida - In fo rm e acerca da experiência sobre os bions). em Abhandlungen zur personellen Sexualoekonomie, número S.Copenhague, Sexpol-Verlag. 1938 -

“ Die Bione" (Os bions), em Klinische und experim ente He Berichte,

número 6,Copenhague, Sexpol-Verlag. 1939 -

“ Bion Experiments on the Câncer Problems. D rei Versuchc am statis-

schen Elcktroskop" (Experiências sobre os bions a propósito do problema do câncer. Três ensaios com o eletroscópio estático), em Klinische und experim entelle Berichte, número 7, Copenhague, Sexpol-Verlag. 1942 -

The Function o f the Orgasm: Sex-Economic Problems o f Biological

Energy. V o l 1: The Discovery o f the Orgone (A função do orgasmo: Problemas econômicos-sexuais da energia biológica. V o l. 1: A descoberta do O rgone), New Y o rk .O r* gone Institute Press. Nota: não confundir com o texto de 1927. 1944 - “The "living produebon power, working pow er’ o f Karl M a n ” (A “ força da produção viva, força de trabalho" de Karl M a n ), em In tern atio n al Journal o f SexEconomy and Orgone Research, número 3, New Y o rk , Orgone Institute Press. “Orgonotrc Pulsation" (Pulsação orgonótica), em Intern atio n al Journal o f SexEconomy and Orgone Research. New Y o rk, Orgone Institute Press. 1945 - “ The Emotional Plague" (A peste emocional) em In tern atio n al Journal o f Sex-Economy and Orgone Research, New Y o rk . Orgone Institute Press. The Sexual Revolution-Toward a selfgovem ing character strueture (A revolu­ ção Sexual - Para uma autonomia caracterial do hom em ), New Y o rk , Orgone Insti­ tute Press. ‘Analysis o f Character** (Análise do caráter), versão americana, revista e corri­ gida pelo autor, de Análise Caracterial. . . (publicado em 1933) e de Contacto psíqui­ co e corrente vegetatíva (publicado em 1935), aumentado com O sofrim ento emocio­ nal (publicado oeste mesmo ano), New Y o rk , Orgone Institute Press.

70

1946 - The M an Prychology o f Fasctsm (A psicologia dc massa do fascismo), New York, Oçonc Institute Press 1948 - ‘ T h e Câncer Biopathy” Volume II de The Discovery o f lhe Orgone (Biopatia do Câncer. A descoberta do Orgonc), New York. Orgone Institute Press. “ Listcn. Littlc M an!” (Escuta. Zé Ninguém!) (escrito em 1946), New York, Orgonc Institute Press 1951 - Ether, God and Devil (O céu, Deus e o Diabo). New York. Orgone Institute Press 1953 -

People In Trouble (Gente angustiada). New York. Orgone Institute

Press. The Murder o f Christ (O assassinato de Cristo). New York. Orgone Institute Press. 1957 ~ Contacf with Space (Contato com o espaço). New York. Orgonc Ins­ titute Press.

10.1.

Obras consultadas

Frcnkcl, Boris. Rcich, Etapas de Ia Vida e Bibliografia dc Reich. In: El Psicanalista Revolucionário (compilação) B. Aires, Ediciones Sintesis, 1976, cap. V I. Krawctz, Marc. Las Ediciones dc Rcich. In: El Psicanalista Revolucionário (compila­ ção). B. Aires, Ediciones Sintesis, 1976, cap. V II. Rcich, W. Reich habla de Freud. Barcelona, Editorial Anagrama, 1970. Reich, W. Psicopatologia e Sociologia da Vida Sexual (Die Funktion des Orgasmus). Porto, Publicações Escorpião, 1977.

71

11 Freud e Reich: da psicanálise à orgonoterapia

Por volta de 1915, Freud propõe uma classificação das neuroses, se­ parando-as em psiconeuroses (neuroses com causação psíquica, cujos sinto­ mas são expressão simbólica de conflitos infantis) e neuroses atuais (causa­ das por uma disfunção somática atual, originada a partir da insatisfação sexual, cujos sintomas somáticos não passam por uma intermediação psí­ quica). Embora as neuroses atuais não fossem de interesse para a Psicanálise, Freud propõe uma relação destas com as psiconeuroses, ao supor que toda a psiconeurose possua um ''núcleo neurótico atual” . Ou seja, com o as neu­ roses atuais puras são raras e, muitas vezes, misturam-se com as psiconeuro­ ses, Freud conclui que o sintoma da neurose atual é, muitas vezes, o núcleo e o precursor do sintoma psiconeurótico. Esquematicam ente, te ríamos:

Fator atual (pressões morais, sociais)

frustração (do desejo sexual)

estase Libidinal

Sintom a neurótico atual

Psiconeurose (conflitos infantis)

72

desencadeia

(N úcleo neurótico atual)

Os psicanalistas da época, como Stekcl, rejeitaram tais idéias de Freud, alegando que toda neurose é de origem psíquica, e não somática. Freud não se preocupa com essa discordância, mas tampouco retoma sua proposta de um núcleo neurótico atual. Porém, estas questões vão se tor­ nar o ponto de partida dc Reich. Nessa época, a ênfase cmpiricista trazia à tona a questão da objeti­ vidade científica. A filosofia questionava a posição da Psicanálise entre as Ciências Naturais: Jaspcrs, por exemplo, dizia que o “sentido” só poderia ser entendido filosoficamente, e nâo por algum método científico como a interpretação. A psicologia experimental, de Wundt, seria a única forma de aproxi­ mação entre a Psicologia c a Ciência Natural: por exemplo, a quantificação da mente humana, através da medição do intervalo de tempo necessário para uma pessoa reagir a uma palavra. Ê neste contexto que Reich se defronta com os conceitos freudia­ nos, destacando os seguintes: a) a relação entre origem psíquica e origem somática; entre idéias e excitação somática; b) o conceito freudiano da libido como uma energia psíquica; c) a idéia de que um núcleo neurótico atual, resultante da frustra­ ção sexual, pudesse ser atuante na psiconeurose. A partir destes temas, Reich formula uma primeira questão básica para a elaboração de sua teoria: de onde a psiconeurose retira sua energia para os sintomas?* Dedica-se à análise de seus dois casos clínicos, com esta questão em mente, chegando a alguns dados substanciais. Descobre que a intensidade de uma idéia psíquica depende do grau de excitação somática a que se acha conectada, ou seja: - indivíduos com baixa excitação sexual tém dificuldade maior em fazer aparecer em suas mentes uma idéia sexual. As fantasias evocadas sur­ gem sem colorido ou intensidade. - indivíduos que estejam com alto nível de excitação sexual evocam facilmente idéias sexuais vividas e intensas. - após a satisfação sexual, novamente, as idéias aparecem tênues, imprecisas. - se impedirmos a continuidade de uma idéia sexual, durante o seu aparecimento em indivíduos com alta excitação, esta não diminui. Destes fatos, Reich conclui que, se uma excitação energiza uma idéia, e se esta é incompatível com a consciência (por razões morais), será inibida 73

e se frustrará, enquanto a energia se acum ula (e s ta s e )* sem realizar-se. Es­ ta energia terá que se associar a o u tra idéia para “ descarrcgar-se". Poderá, então, conectar-se com idéias associadas a co n flito s in fa n tis , gerando sin­ tomas neuróticos. Assim, a neurose estásica é um tra n sto rn o so m á tic o devido à frus­ tração e consequente desvio da energia sexual. O desvio da energia é sem­ pre resultante de uma inibição psíquica. Esquema ticam ente. temos:

Energia

Idéia

Se ocorre uma inibição:

idéias atuais (em sua origem não patológicas; mas. agora, sobrecar­ regadas de energia sexual)

Reich conclui, p o rta n to , que as psiconeuroses e seu co n teú d o sexual in fan til aparecem sobre a base de urna in ib ição sexual atu al. Desta form a, desaparece a distinção entre neurose atual e psiconeurose, p o is a psiconeurose tem um núcleo neu ró tico atu al e as neuroses atuais té m u m a superestrutura psiconeurótica.

*

Estase é um conceito utilizado por R eich. tom ado do term o grego stasis, que signi­

fica estagnação ou parada de qualquer flu id o circulante. Reich seguirá a proposta freu­ diana da libido como energia psíquica, funcionalm ente idêntica a uma energia biológi­ ca. A questão da natureza dessa energia biológica será compreendida, inicialm ente, co­ mo uma energia bioelétrica (ver “Couraça caracterológica e couraça muscular, item 12.6), e. por volta de 1939, como uma energia cósmica que se concentra em todo or­ ganismo vivo (ver “ A Descoberta da Energia Orgônica". item 12.8).

74

Com estas conclusões. Reich procura mostrar que Freud estava mais certo do que pensava. Percebe que outros teóricos começam ase distanciar deste caminho pela negação da sexualidade com o eixo mestre da neurose; acusa Jung de transformar a libido em um conceito m ístico, espiritual; vc, em Adlcr, a substituição da sexualidade pelo conceito de “vontade de poder” , enquanto Rank estaria negando a sexualidade infantil. Analisa tais desvios com o uma submissão dos teóricos à crescente oposição da moral repressora da sociedade c resolve levar adiante suas descobertas. Como resultado dessa insistência, chegará à proposta da eliminação da estase libidinal pela realização sexual, o que será a base de sua teoria da “Economia Sexual” . Na medida em que conclui que a moral repressiva, inibidora das idéias sexuais e da realização sexual, causa a estase responsável pela neurose, Reich levanta duas questões: a) terapêutica: o que fazer quando o cliente e o terapeita se cons* cientizam da frustração sexual com o fonte econômica da n eu roe, principal­ mente se não houver m eios imediatos de satisfação? b) profilática: o que fazer para eliminar a causa das ncureses na socie­ dade? A Economia Sexual, com Reich, aponta a solução mais evidente: a eliminação da moral sexual repressiva e o estabelecimento da ilena satis­ fação orgástica. Reich demonstra que era exatamente esse o rumo .iue Freud seguia quando, em 1908, escreve Moral Sexual "Civilizada" e Doença Nervo­ sa Moderna (Freud, 1974, v. IX). Mas, se a própria afirmação do papel da sexualidade na etiologia das neuroses já causou tanta revolta no início da Psicanálise, Reich não esperava aplausos pelo rumo que seguia. Freud havia encontrado uma outra solução, que não implicava em transformação social mais ampla: a sublimação do impulso sexual, que. como vimos na parte I, é um mecanismo adaptado de defesa que descarrega a energia sexual através de seu investim ento sobre objetos socialmente aceitáveis e valorizados, como o trabalho intelectual, a arte etc. Desta forma, o papel da Psicanálise tomase consonante com os princípios morais, sem prejuízos. Mas Reich crê que a sublimação, se mal compreendida, é mais um artifício do que uma solução real. Desenvolvendo sua teoria, chega a seu conceito de caráter e atitude vegetativa. Percebe que a energia sexual não liberada não se descanega to­ talmente. Acumula-se em certos grupos musculares, resultando em um “ca ráter neurótico” . Ou seja, criam-se tensões específicas que vão refletir-se na maneira de agir do indivíduo, sem a formação dos sintomas neuróticos propriamente ditos. Reich percebe que, quando desaparece o sintoma, au­ menta a genitalidade do indivíduo. Mas há ocasiões em que isto não aconte75

ce, porque a energia foi situar-se nos traços de caráter - que acabam sendo socialmente aceitos como “natureza” da pessoa. Contrapõe, então, o caráter neurótico ao “caráter gcnital” . Com isto, modifica a técnica de interpretração do conteúdo psíquico (Freud), passando a interessar-se pela form a cm que o conteúdo surge (atitude do indivíduo). 0 objetivo da Psicanálise náoé mais apenas transformar o inconsciente em consciente (Freud). mas, sim, restabelecer o equilíbrio biofísico pela des­ carga da potência oigástica. Isto é, transformar o inconsciente cm conscien­ te. liberando as energias vegetativas. Não se trata mais dc descobrir meca­ nismos afetivos inconscientes, mas. sim, de descobrir mecanismos físicovegetativos (base física da enfermidade m ental), modificando-os c libe­ rando os conteúdos afetivos inconscientes que assim se expressavam. Com isto, a técnica muda: não mais se centra na fala (associação li­ vre), mas nos afetos e sentimentos vegetativos. Não mais se fica atrás do cliente. Agora, ele é olhado de frente, e seu corpo é analisado. Assim, a vegetoterapia e a análise do caráter, chamados de “ Econo­ mia Sexual” , afastam-se gradativamente da teoria e técnica psicanalíticas, buscando ser, não uma Psicologia, mas sim uma Sexologia, enquanto ciên­ cia dos processos biológicos, fisiológicos, emocionais, sociais da sexualidade. Por isso mesmo, nas fases finais de sua vida, Reich irá desistir do tra­ balho árduo do tratamento individual das neuroses, e investirá seu esforço na direção da psico-higiene e prevenção das mesmas, buscando a criação de condições para o desenvolvimento do caráter genital. Enquanto isso, Freud defronta-se com o mesmo problem a, ou seja, o do recalcamento da pulsão sexual, e acaba levantando uma hipótese teóri­ ca que mudaria o rumo da Psicanálise. Em 1920, como foi visto em Maiz Além do Princípio do Prazer, Freud propõe a existência do impulso de morte, que se contrapõe à pulsão de vida, criando uma oposição de forças inerente ao indivíduo. Assim, desloca-se, segundo Reich, a repressão da so­ ciedade para o próprio mecanismo psíquico. Por outro lado, justifica a emer­ gência, na sociedade, da agressão ou do Mal-Estar na Civilização (1930), em função da dificuldade de repressão a esta pulsão. O papel da sociedade e do terapeuta toma-se o de levar o indivíduo a conter seus próprios impul­ sos - critica Reich. Para ele, este elemento teórico assume o papel de conciliador da Psicanálise com a sociedade burguesa, tirando a força da sexualidade e a ênfase sobre a repressão moral. Neste período Reich sente a necessidade de compreender as forças sociais atuantes e adentra pela Sociologia e a Economia Política. Encontra em Marx o complemento social da Psicanálise, ou da Economia Sexual. 76

Busca uma mudança social, ingressando no Partido Comunista com uma proposta dc liberação sexual da juventude. C bem aceito pelo movimento, trazendo cerca de quarenta mil jovens á organização (1 930 ). Mas, quando envereda pelas conseqücncias práticas da Economia Sexual, é expulso e acusado de “ contra-rcvolucionário freudiano e an ti marxista” . pelos co­ munistas. Ao mesmo tem po, é acusado pelos psicanalistas de tentar destruir a teoria freudiana, por ordens de Moscou. Ê expulso também da Associa­ ção Psicanalítica Internacional, em 1934. Sua crítica a Freud é a sua posi­ ção declaradamente “ a-política” -

na verdade, política conservadora e

resignada. Do ponto de vista da Psicanálise da época, as principais críticas à teoria de Reich eram as de que ele era louco, psicopata, esquizofrênico. Ridicularizaram suas teorias sobre orgone (energia). Acusaram-no de antrifreudiano pela sua incursão pela Economia Política. Reich relata que, até perto da sua separação definitiva de Freud (1 9 3 0 ), este ouvia interessado as proposições teóricas sobre a energia se­ xual. Porém, nunca sequer mencionou a Economia Sexual em suas obras. Assim, pela análise das obras de Freud, é possível perceber que ele pri­ vilegia uma técnica psicológica (sem intervenção física), que irá atuar sobre o nível somático (idéia que se esboça sob o termo “submissão somática” , base orgânica que possibilita a expressão do conflito em um sintoma físi­ co). O corpo é levado em consideração na análise do sintoma, mas apenas seu conteúdo psíquico é que deve ser tomado como elemento de investi­ gação (não a fo rm a ). Por outro lado, ainda a nível da técnica, a abordagem corporal é hoje tomada pela PsicanaTise como uma intervenção desnecessária, que coloca o paciente como objeto da ação do terapeuta, não permitindo que seja sujeito de suas descobertas. Tais intervenções destroem o “setting” psicanalítico e implicam em problemas transferenciais criados pelo terapeuta. Quanto à abordagem social, algumas correntes psicanalíticas estão propondo a análise institucional, como uma forma de levar ás últimas conseqüências o papel da Psicanálise na sociedade, apesar da visível influência de Reich nesta linha de pensamento e atuação. Mas, nessa linha, as questões do instinto de morte e da sublimação precisam ser discutidas enquanto pressupostos teóricos, uma vez que conflitam com uma visão econômico-política da sociedade.

77

12 Uma teoria do caráter à guisa de teoria da personalidade

12.1.

A gênese da couraça

Reich não desenvolve propriamente uma teoria da personalidade. Porém, sua proposta da análise do caráter inclui a noção do desenvolvi­ mento da couraça caracterológica, que poderemos tomar com o gênese da personalidade. A perspectiva genética (n o sentido histórico) existente na teoria reichiana é, explicitamente, tomada da proposta freudiana. A gênese do caráter tem por base o conflito entre as demandas pulsionais e o meio exterior Este conflito será originalmente enfrentado no com plexo de Édipo, quando as funções de defesa do ego estabelecem o recalçamento das pulsões libidinais. Mediante o perigo da emergência de tais pulsões, o recalcamento torna-se crônico e autom ático. A este m odo autom ático de defesa, Reich denomina “caráter” ou “couraça caracterológica”. Durante a vida do indivíduo, repetem-se os conflitos entre o desejo libidinal e as pressões do meio exterior. O Ego, cuja função é exatam ente a de mediação entre as demandas internas (Id) e externas (internalizadas no Superego), estrutura cada vez mais o caráter ou o m odo de defesa adotado. N o en­ tanto, a energia libidinal não realizada se concentra (estase), e adquire maior força que a couraça. Do ponto de vista econôm ico, uma parte desta energia do Id será utilizada pelo Ego, sob a forma de formação reativa. Ou seja, o Ego utiliza-se da mesma energia para reprimi-la. Em um círculo vicioso, a inibição aumenta a estase, que força o Ego a aumentar as forças repressivas, tomando cada vez mais crônica a couraça caracterológica. Com o aumento da energia estásica, a libido cria brechas através da couraça, buscando realização. Um novo trabalho de defesa egóica leva a um 78

disfarce dos desejos sexuais, através da criação dos sintomas neuróticos ou de novos traços de caráter. Desta forma, a personalidade total é composta de diversos estratos de caráter. Estes vão se formando na medida em que o estrato anterior falha em sua função defensiva, gerando angústia, Esqueinaticamentc. teremos:

4 — Inibição por pressões externas

4 -

Energia libidinal

Formação reativa: parte da energia é utilizada para inibir o desejo ...

Pulsão reprimida

3.

A ♦ *

Traço do caráter ... e aparece no com portam ento, como um traço de caráter que busca a gratificação indireta do desejo, servindo, assim, para dim inuição da tensão in tem a.

4.

Este traço se m antem , ate que novas pressões externas o forcem a uma inibição ■ ^

Inibição

Um a nova formação reativa passa a impedir a emergência de tal traço, dando origem a um novo comportamento...

79

6.

... c assim, mccwivaniente. ate o indivíduo encontrar um traço de caráter relativo socialmentc aceito e adequado.

Traço superficial de caráter, que atinge uma conciliação parcial entre a realização indireta do desejo c as demandas sociais

Esta

realização, indireta e parcial, das pulsões sexuais

torna-se

possível através de brechas, mais ou menos fixas, na couraça que se inter­ pôs entre o Ego e o mundo exterior. Através dessas “ fendas” , a libido pode fluir, de modo pouco móvel, para o meio exterior (libido ob jetai), ou refluir para o Ego (libido narcísica). Tal expansão e retração podem ser compara­ das -p a ra maior clareza - aos movimentos de uma tartaruga: sua carapaça a protege dos perigos reais, como a couraça protege o Ego dos perigos eminentemente internos, embora causados pelo meio externo (a couraça protege o Ego da ansiedade interior, causada pela inibição das pulsões Libidinais); em seu contato com a realidade, a tartaruga expande seu corpo através de pequenas frestas, assim como a Libido objetai expande-se através das brechas da couraça; mediante os perigos externos, o animal se contrai, assim como a libido narcísica se retrai de volta ao Ego. N o entanto, e este é o ponto básico, a motilidade do animal fica extremamente limitada pela carapaça, assim como o contato do indivíduo encouraçado é fixo e restrito, sem a mobilidade necessária para a real adaptação às exigências internas e externas. Devido à realização apenas parcial da libido, a energia represada aumenta, levando à cronicidade e rigidez da couraça, à diminuição do prazer sexual e da capacidade de descarga. A falta de satisfação sexual gera angús­ tia; de outro lado, a frustração dos desejos leva a uma reação agressiva, que também acaba sendo inibida, novamente gerando angústia. Assim, apesar de o indivíduo satisfazer às exigências exteriores com seu caráter social­ mente aceito, internamente vive intensa angústia e insatisfação. Desta forma, é importante perceber o sentido genético da couraça, cujo caráter atual condensa em si toda a história dos conflitos enfrentados pelo indivíduo e suas resoluções. Reich fala em “estratificação da couraça” .

80

onde a personalidade total do indivíduo é a somatória funcional de toda sua história, incorporada ao presente sob a forma de atitude de caráter. Esta se expressa em todos os modos de reação do indivíduo, desde seu posiciona­ mento quanto a valores morais, até sua forma de falar, expressão corporal, postura etc. Por outro lado, é importante salientar que. embora possa haver um componente hereditário na forma inicial do caráter, esta será modi­ ficada historicamente a partir das pressões ambientais. A forma final já estará, basicamente, determinada por reação às pressões do meio exterior. Reich vai enfatizar sempre o papel da repressão social à plena realiza­ ção da energia sexual. Assim, como havíamos dito, a distinção entre neurose atual e psiconeurose deixa de ter sentido, uma vez que a angústia atual (gerada pelo bloqueio da realização da libido genital) concorre para aumen­ tar a angústia decorrente da energia libidinal estásica (que, por sua vez, é a fonte da psiconeurose).

12.2.

Caráter genital e caráter neurótico

O resultado do processo descrito é o que Reich denomina “caráter neurótico” . Neste, o encouraçamento crônico leva a atitudes rígidas diante das 'diferentes demandas, com um modo de reação estereotipado e não adaptativo. A energia estásica gera uma constante angústia e, por conse­ guinte, um medo da excitação 4 ue aumentaria a energia acumulada. A capacidade de amar torna-se reduzida e as gratificações sexuais só podem se realizar através do retorno às satisfações pré-genitais. Ou seja, a energia sexual não pode descanegar-se pela plena descarga orgástica, devido às repressões, canalizando-se para pontos de fixação infantis, pré-genitais. O prazer só pode ser obtido por outras atividades sexuais que não o coito ge­ nital, como sexo oral, anal, jogos sado-masoquistas, homossexualismo, “voyeurismo” , masturbação; ou, ainda, não é obtido de forma alguma, le­ vando à abstinência sexual. A ausência de descarga aumenta a estase e as fixações pré-genitais, contaminando todas as atividades sociais e culturais. O trabalho passa a ser executado de modo rígido e não-prazeroso, transformando-se em um dever, onde se incluem atos obsessivos, competição, necessidade de provar potência, sentimentos de inferioridade etc. Reich çofitrapoé ao caráter neurótico o “caráter genital” . Neste, a partir da resolução do conflito edípico e em função do desenvolvimento de maior tolerância à frustração, o Ego estabelece uma relação não repressiva sobre as pulsões sexuais, permitindo, em parte, sua realização direta e, de outro lado, 81

inibindo outros, de forma a perm itir a sublimação. Enquanto neurótico

no caráter

a repressão dá lugar à formação reativa e à estase, no caráter

genital há a realização direta da energia, ou indireta, pela sublimação. E n­ quanto a estase e o bloqueio da genitalidade levam à catcxia pré-genital. no caráter genital estabelece-se a primazia genital e a plena descarga orgástica. Como resultado da sublimação, as atividades sociais e culturais podem realizar-se prazerosamente pelo querer - não pelo dever —. perm itindo um fluir da energia entre a relação sexual e as atividades sublimatórias. As pulsões pré-genitais canalizam-se para as realizações genitais, e estabelecem, com elas, uma unidade. Algumas formações reativas podem estabelecer-se, como no caso da vergonha. Porém, a couraça resultante torna-se móvel e adaptativa. Esquematicamente. o caráter genital poderia ser representado assim:

realização sexual

12.3. Aspectos qualitativo e quantitativo do caráter A formação do caráter é uma função egóica de proteção, ligada às pulsões de autoconservação; portanto, em sua essência, é um mecanismo de proteção narcisista. O caráter é definido, por Reich, do ponto de vista tópico, como o modo típ ico de reação do Ego frente ás pressões do Id (pulsões sexuais) e às do mundo exterior (exigências do Superego). Do ponto de vista biológico, representa uma função autoplástica (m odificação de si mesmo) do orga­ nismo, como forma de se defender frente às estimulações desagradáveis provenientes do meio exterior; no caso, é a defesa contra as frustrações e punições do meio social às tentativas de realização das pulsões sexuais. A limitação ou impedimento das gratificações gera, no indivíduo, o que Freud denominou Realangst, angústia frente a um perigo real, ou, simplesmente, angústia real. 82

Assim, embora em sua origem a couraça tenha tido a função de defesa contra o meio exterior, assume a forma de defesa contra os perigos interiores: as exigências do Id e a angústia real. Passamos, portanto, ao ponto de vista econômico: caráter, ou couraça caracterológica, resume-se na utilização de parte da energia do Id . pelo Ego. contra-investindo-a sobre as próprias pulsõcs (formação reativa), desgastando parte de sua energia para sua própria inibição. Para tanto, o Ego pode prescindir das pressões externas,

através

da introjeção

dos objetos frustrantes, compondo o

Supcrego. O caráter é, então, um fator dinâmico, representado pela “soma total dos modos de reação com que opera o Ego, específicos de uma persona­ lidade dada (...), que sc manifesta em uma aparência específica (andar, expressão, postura, modo de falar, outros modos de conduta)” (Reich, 1976, p. 4 1 ). Apesar do encouraçamento rígido que pode resultar do caráter, este ainda opera pelo princípio do prazer, buscando a maior gratificação possível dentro da estrutura resultante. O resultado desta estruturação depende, basicamente, de dois as­ pectos: qualitativo e quantitativo.

12.3.1.

Aspecto qualitativo

A qualidade do caráter depende de quais impulsos se desgastam nas formações reativas e quais podem ser liberados. Como dissemos, a couraça caracterológica inclui fendas ou brechas que permitem investimento da libido narcísica em objetos exteriores (libido objetai). Porém, como parte desses impulsos são inibidos e desgastados, em sua energia, pelas formações reativas, apenas parte se acha liberada para o investimento no Ego ou no objeto externo. A

qualidade final do caráter varia conforme o condicionamento

histórico de cada indivíduo, ou seja, o estágio de fixação da libido que causou conflitos mais intensos na história de seu relacionamento com o mundo exterior. Portanto, um dos fatores primordiais para a especificidade caracterológica está ligado ao tipo de caráter dos pais e educadores e à etapa do desenvolvimento em que se produzem as frustrações decisivas. Reich aponta alguns tipos de caráter, segundo a fase de fixação que provocou maior intensidade de conflitos, afetando mais caracteristicamente a formação da couraça caracterológica: 83

I. II. UI. IV.

fixação oral: caráter depressivo; fixação anal-sádica: caráter compulsivo, fixação fálica: caráter genital-narcisista ou fálico-narcisista; fixação genital-inccstuosa: caráter histérico.

Em seu livro Analise do Caráter (Reich, 1975a) encontramos uma descrição pormenorizada das características de alguns destes caracteres, que explanaremos mais adiante. A qualidade do caráter reporta-sc, ainda, à solidez maior ou menor da estrutura, que define a abertura possível (brechas da couraça) para contato da libido com o meio exterior. Neste sentido, por exemplo, o “caráter compulsivo" bloqueia todos seus afetos, com raras possibilidades de contato com o meio exterior; o “caráter agressivo" possui brechas mais móveis, possibilitando maior contato, embora limitado a reações impulsivas agres­ sivas e paranóides; o "caráter passivo-feminino” possibilita apenas a expres­ são de submissão e docilidade etc. Por fim, a qualidade do caráter depende do modo de gratificação da libido, que terá implicação na forma de inibição dos impulsos: a gratificação pelo orgasmo genital diminui a tensão pré-genital, facilitando a sublimação; a gratificação pré-genital implica a contenção da libido genital que, por sua vez. intensifica as pulsões pré-genitais, exigindo formações reativas inibitórias. Do modo de gratificação depende a diferenciação básica de caráter genital (indivíduo saudável, com equilíbrio econômico-sexual), ou de caráter neurótico, respectivamente. 123.2. Aspecto quantitativo A formação do caráter é afetada pela economia da libido. Esta, evi­ dentemente, repousa sobre o modo de gratificação. O aspecto qualitativo relaciona-se ao grau de realização das pulsões. Se o modo de realização é pré-genital, o caráter neurótico defronta-se com uma crescente inibição da libido. Se o modo de gratificação é genital, o caráter genital vive um fluxo alternado entre tensão-gratificação, onde não apenas a libido genital se realiza, mas também a pré-genital, seja durante a relação sexual, nas ativi­ dades que precedem o orgasmo, seja através de sublimações.

12.4.

Algumas formas de caráter descritas por Reich

Em seu livro Análise do Caráter (Reich, 1975a), Reich descreve alguns tipos de caráter, baseado em Freud e outros psicanalistas, como Abraham, 84

Joncs e Ophuijsen. revendo as descrições anteriores em função de sua teoria da gênese do caráter. Abreviaremos as descrições, uma vez que muitas destas características já foram abordadas na primeira parte deste livro. Como acabamos de ver. a qualidade do caráter está ligada á fase do desenvolvimento da sexualidade, onde as frustrações mais intensas deter* minaram formações reativas defensivas mais firmemente estruturadas, im­ pondo certas características à couraça caracterológica. Considerando a fase de fixação, portanto, definimos o caráter segundo os tipos histérico, compulsivo, fálico. genital-narcisista e depressivo. 0 caráter masoquista, no entanto, é de especial interesse na teoria reichiana. Coloca em questão a explicação freudiana da hipótese de uma pulsão de morte nas bases do masoquismo. Reich nega a necessidade deste arcabouço teórico para explicar os atos autodestrutivos, criticando esta hipótese como conciliadora da Psicanálise com a moral sexual repressiva da sociedade -

uma vez que retira a responsabilidade da repressão sexual na gênese do

masoquismo e dos atos agressivos. A agressividade é reação da libido ao bloqueio de sua realização. Assim, o sadismo pode ocorrer como resultante do recalcamento libidinal em qualquer fase pré-genital do desenvolvimento, não sendo característico de formações reativas de fixação anal, como se pensava anteriormente. Temos, pois, sadismo oral (morder, despedaçar), anal (amassar, pisotear, golpear), fálico (perfurar, atravessar). O sadismo é. portanto, um traço de caráter que

se integra com

os demais referentes a um determinado

caráter. Em suas formulações iniciais, Freud afirma que o estabelecimento de formações reativas intensas contra o sadismo determina um tipo específico de caráter, cujo traço essencial seria o masoquismo, como oposição ao sadismo. Reich descreve, a partir desta formulação, o "caráter masoquista", contrapondo*se às formulações posteriores de Freud sobre a existência de um masoquismo primário ligado a uma pulsão autodestrutiva. O masoquismo seria mesmo resultante de formações reativas contra pulsões sexuais pré-genitais. ativadas pela estase da energia genital inibida pela repressão social. Os traços característicos do caráter masoquista, e de alguns outros, serão abordados a seguir.

12.4.1.

O caráter histérico

Este caráter diferencia-se dos demais. Sua fonte de energia é o próprio impulso genital. e não formações reativas pré-genitais. O histérico atinge, em seu desenvolvimento, a fase genital, onde o desejo do incesto torna-se a grande ameaça geradora de ansiedade. No

85

entanto, por sua natureza distinta dos impulsos pré-genitais, a pulsa o genital não se presta a sublimações ou formações reativas, exigindo gratificação direta. N o caráter histérico, uma vez atingida a primazia genital, ocorrem raras regressões a fixações pré-genitais.* Desta form a, é a própria energia genital que assumirá a função de defesa contra a angústia genital. Por isso mesmo, a principal característica do histérico é a sua conduta sexual evidente: nas mulheres, o andar, o falar, o olhar são sexualmente provocantes; nos homens, além disso, notam-sc o com portam ento e expres­ são facial femininos, o maneirismo cortês e doce. O histérico é facilmente excitável, sexualmente. Porém, como a sexualidade aparece, a í, em sua função de defesa, estes traços completam-se por uma apreensividade mais ou menos declarada. A melhor compreensão de como atua esta defesa é possível, se atentarmos para o fato de que o indivíduo se vê perseguido pela angústia decorrente da ameaça do incesto genital. O comportam ento provocante tem a finalidade de pesquisar se os perigos temidos se realizarão e de onde partem . A provo­ cação põe a descoberto o desejo e o “ ataque” sexual do o u tro , facilitando a defesa - donde a apreensão constante. Quando o perigo se materializa ou torna-se prestes a ocorrer, outros traços aparecem, evidenciando a função defensiva: a atividade sexual trans­ forma-se em passividade e surge a angústia, podendo, mesmo, resultar em fuga ou afastamento concreto da situação. Por isso, o histérico é m uito suscetível a sugestões, podendo convéncer-se de que ocorreram, ou estão para ocorrer, os fatos mais improváveis. Mas, ao mesmo tempo, a sugestionabilidade implica em inconstância das reações: assim como se convence de um fato, logo pode convencer-se do oposto, abandonando as convicções tão facilmente como as to m o u. A concordância e aquiescência invertem-se em desprezo e desvalorização, igualmente sem fundamento. A sugestionabilidade im plica, tam bém , em rica imaginação, confundida com, e percebida como realidade, levando à mentira patológica. Enquanto os demais caracteres pré-genitalizam a experiência genital, ou seja, os genitais passam a representar a boca, o seio, ou o ânus, o caráter histérico genitaliza as pulsões pré-genitais: o excesso de energia genital

* As descrições que aqui serão feitas referem-se ao caráter puro que, naturalmente, é raro. Normalmente, encontramos traços de outros caracteres em cada couraça especí­ fica, embora possamos falar de um caráter específico, segundo a prevalência de deter­ minados traços. 86

presente,

determinado

pela sexualidade

preponderante, sem realização

direta, invade as pulsôes pré-genitais. dotando-as de uma carga energética tão intensa que não permite as sublimaçôcs. ou formações reativas destes impulsos. Portanto, invertendo as características dos outros caracteres, o histérico genitaliza as zonas erógenas pré-genitais. principalmente a oral, donde é comum a boca absorver o papel de genital, no que Freud denomina “ deslocamento da parte inferior para a superior do corpo” (ver, por exem­ plo, o “ caso D ora” em Fragmento da Análise de um Caso de Histeria, Freud, 1974, v. V I I ) . Como a libido genital não encontra gratificação direta, devido à inibição, que atua como defesa à angústia genital incestuosa, e como, por sua natureza*, não se presta a sublimações ou formações reativas, a energia sexual investe-se nas inervações somáticas, gerando os sintomas de conver­ são histérica (Histeria de Conversão). Quando isto não acontece, a libido estásica livre gera intensa angústia e, secundariamente, acaba por ligar-se a objetos externos, determinando as fobias (sintoma fóbico da Histeria de A n g ú s tia ).** A falha de gratificação sexual e a descarga, via excitações somáticas, determinam que a energia não se invista amplamente em realizações inte­ lectuais nem, tampouco,

no encouraçamento do caráter. Isto explica

o fato da agilidade corporal e vivacidade, contrastantes com a rigidez de outros caracteres, como o compulsivo (a relação entre o caráter e as carac­ terísticas corporais é melhor explicada, quando Reich propõe a identidade funcional entre couraça caracterológica e couraça muscular, o que será exposto adiante no item 12.6). A psicoterapia carátero-analítica terá efeito no caráter histérico, a partir da interpretação da angústia genital infantil, o que liberará a energia sexual genital para catexizar-se sobre objetos externos, permitindo a grati­ ficação direta pela descarga orgástica.

*

Esta “ natureza” não seria devida, segundo Reich, a uma qualidade específica

da pulsão genital, mas à sua quantidade: como a energia genital descarrega-se pelo orgasmo - mecanismo inexistente nas outras pulsôes parciais - , o “quantum” de energia que é gerado na excitação genital é, particularmente, intenso,exigindo investi­ mento ou gratificação diretos, dificultando as sublimações e formações reativas e genitalizando todas as pulsôes. * *

Ver, por exemplo, o caso do “Pequeno Hans” em Análise de uma Fobia em

um Menino de Cinco Anos, Freud, 1974. v. X .

87

12.4.2. O cará ter compulsivo (obsessivo) A neurose obsessiva foi, na literatura psicanalítica, um dos processos mais estudados e mais bem descritos. Segundo a intensidade das repressões, historicamente vividas nas fases anal e anal-sádica, o indivíduo desenvolverá uma conduta contínua, que vai desde o caráter compulsivo, marcado por traços atitudinais específicos, até a neurose obsessiva, marcada pelos sintomas característicos. Por outro lado, uma relativa repressão anal, em conjunto com a intensa inibição de outro impulso pré-genital, dotará um outro caráter de alguns traços característicos do caráter compulsivo, como o sadismo, por exemplo. Nestes casos, não se justifica a denominação de caráter com* pulsivo. Falamos, em vez disso, em traços orais sádicos do caráter histérico (na fixação predominantemente genital-incestuosa, que catexiza as pulsões orais), ou do sadismo fálico*narcisista (na fixação predominante sobre as pulsões pré-genitais da fase fálica). As características do caráter obsessivo-compulsivo já foram clara­ mente expostas na primeira parte deste livro. Portanto, limitar-nos-emos às contribuições específicas de Reich, no que diz respeito à resistência caracterológica no processo psicoterapéutico da análise do caráter. Reich aponta, como Freud, que alguns traços característicos do caráter compulsivo, como preocupação pedante pela ordem, avareza, pensamento ruminativo, autocontrole etc., vinculam-se a formações reativas dos impulsos anais recalcados. No entanto, sublinha, sempre, que o recalcamento sob as pressões do Superego nada mais é do que a introjeção da repressão da moral sexual da sociedade. Assim, tais formações reativas são resultado da educação familiar, que impõe, por exemplo, o controle esfincteriano de modo intenso e precoce. De outro lado, Reich demonstra que os impulsos anais irrompem, por vezes, diretamente, sem formações reativas, resultando em outros traços compulsivos opostos aos anteriores, como a compulsão à desordem e a incapacidade de lidar com dinheiro. Mas a principal contribuição reichiana foi destacar o aspecto form al do caráter compulsivo, demonstrando que o bloqueio afetivo do obsessivo determina, através de um complexo sistema de forças, uma maneira característica de lidar com a realidade, ou seja, a indecisão, a dúvida e a desconfiança. Reich demonstra que estes traços formais do caráter atuam, com toda sua força defensiva, no processo psicanalítico. Portanto, propõe uma revisão da técnica analítica centrada no conteúdo ideativo, que busca a interpre-

88

tação das pulsões anais-sádicas. Se o bloqueio afetivo não for elaborado antes, tais interpretações serão recebidas com dúvida c desconfiança, devido à resistência à irrupção das mesmas pulsões. Ou, simplesmente, serão admi­ tidas em seu aspecto lógico, mas completamente desligadas dos afetos correspondentes, pelo mecanismo do isolamento (dissociação pensamento-emoção, determinado pelo bloqueio afetivo). A este processo. Reich denomina “resistência caracterológica” à terapia. A técnica da análise do caráter deve, portanto, adiar a interpretação do conteúdo, interpretando, antes, a resistência caracterológica. repre­ sentada pelo aspecto formal da couraça. Isto vale para a análise de qualquer caráter. Mas, no caso do compulsivo, é especificamentc importante, devido ao núcleo central da defesa, representado pelo isolamento dos afetos. O bloqueio afetivo estrutura-se como defesa contra a energia agressiva, vinculada aos impulsos anais-sádicos: as formações reativas anais, como autocontrole, suprem a função de impedir a liberação da energia agressiva. Esta, por sua vez, intensifica as formações reativas, pela estase, impedindo a irrupção direta dos impulsos anais; a frustração pulsional gera maior agressividade. Este círculo vicioso estabelece o bloqueio afetivo. O conflito entre a agressão e pulsão sexual pré-genital, ou seja, entre ódio e amor, determina a ambivalência expressa na dúvida do compulsivo. A análise da ambivalência entre amor e ódio, que determina os inten­ sos sentimentos de culpa e que se expressa na resistência formal às inter­ pretações, permite a separação dos diferentes impulsos e a consequente dissolução do bloqueio afetivo. Como resultado, diminui a resistência caracterológica, pela irrupção, primeiramente, dos impulsos agressivos (reação terapêutica negativa). Esta liberação permite a cristalização dos impulsos libidinais pré-genitais. Só então é possível a análise dos conteúdos inconscientes e a liberação dos afetos a eles ligados. Portanto, podemos dizer que uma contribuição essencial de Reich à teoria psicanalítica do caráter é a sua descrição da resistência caractero­ lógica, ou seja, a presença do aspecto formal da couraça, como defesa contra a interpretação e elaboração do conteúdo inconsciente ligado aos traços caracterológicos ou aos sintomas neuróticos. A centração da atenção do analista, sobre a forma sob a qual o paciente traz o conteúdo psíquico, levou Reich à análise das expressões não-verbais da resistência, como atitude corporal, postura, expressão facial etc. Por sua vez, a percepção do paralelismo entre estas expressões corporais e a resistência caracterológica levaram-no à descrição pormeno­ rizada do aspecto físico do paciente. A busca das explicações desta relação entre expressão psíquica e expressão corporal determinam a elaboração do 89

conceito de couraça muscular como equivalente funcional da couraça caracterológica (caráter). Estas relações serão abordadas adiante. No caso do caráter compulsivo, o bloqueio afetivo, que seria um “espasmo** do Ego. utiliza-sc dos espasmos somáticos. Daí. todos os músculos do corpo permanecem cronicamente rígidos e hipcrtônicos, em especial os músculos da pélvis, assoalho pélvico, ombros e rosto. A sensação que temos, ao observar o compulsivo, é a da rigidez corporal e de uma dureza fisionômica que se assemelha a uma máscara (para melhor com­ preensão desta especificidade, veja o item 12.9, “ A Estrutura Segmentada da Couraça").

12.4.3. O caráter fálico-narcisista Os indivíduos que apresentam este tipo caracterológico, tal como o compulsivo, abandonam o modo de realização anal da libido e adentram pela fase fálica. No entanto, enquanto o compulsivo regressa ao estágio anal, o fálico-narcisista utiliza-se de defesas fálico-sádicas contra a regressão à analidade passiva. Este caráter situa-se, portanto, a meio caminho entre o histérico (posição genital-incestuosa) e o compulsivo (fixação anal). Vejamos, primeiramente, os traços característicos deste encouraçamento para, em seguida, compreendermos sua dinâmica e economia. A atitude do fálico-narcisista demonstra segurança e vigor, mes­ clados com um ar arrogante e dominador. À diferença do compulsivo, não é rígido, mas elástico o suficiente para adaptar-se às diferentes situações, colocando-se em posição de liderança e comando, o que lhe permite boas realizações no campo do trabalho. No entanto, neste aspecto, difere do caráter genital, uma vez que suas ações são determinadas por motivos irracionais, apesar de sua autoconfiança. Mostra-se altaneiro, frio e reservado. O tipo físico é marcado pelo porte atlético e masculino. Por vezes, a expressão facial pode ser feminina, mas a postura geral imprime uma aparência de masculinidade, bastante atraente para as mulheres. Estes traços são todos transpassados por uma alta agressividade, presente, basicamente, na forma pela qual fala e age, e não no que diz ou faz. Os impulsos sádicos são relativamente disfarçados pela atitude provocativa, sardònica; estes indivíduos antecipam-se aos ataques espera­ dos, atacando antes. A agressividade está na base de sua postura forte e enérgica. 90

Apesar do narcisismo evidente, normalmente ligam-sc aos objetos e pessoas de forma marcante. A sexualidade é caracterizada pelo homossexualismo ativo, embora os homens exibam sua alta potência eretiva em relações heterossexuais, despertando o interesse das mulheres. Porém, estes traços são complemen­ tados, contraditoríamente. pela “ impotência orgástica" (term o adotado, por Reich, para caracterizar a ausência de descarga da energia sexual prazerosamente, mesmo ocorrendo o orgasmo).* Além disso, a atitude dos homens cm relação às mulheres, mesmo em um relacionamento sexual, é de um profundo desprezo. Também

nas mulheres fálico-narcisistas, o homossexualismo ativo

está presente, com alta sexualidade clitorídea, complementada pela con* fiança em si e cm sua beleza e vigor físico. Estas características, em parte, aparentemente contraditórias, são claramente explicadas, por Reich, pela compreensão da gênese estrutural deste caráter. A estrutura familiar dos indivíduos que apresentam esta couraça carac* terológica é característica: mãe dominadora e pai ausente, ou falecido precocemente, na vida da criança. Além disso, a história de repressão sexual da criança aparece, marcada* mente, no início da fase fálica, pela proibição materna sobre as tendências masturbatórias e fálico-exibicionistas. 0 recalcamento das pulsões sexuais, disto resultante, leva à fixação libidinal na fase transitória entre a posição anal-sádica e a libidinal objetai. Deriva daí o investimento narcisista da libido sobre o Ego, o que explica os traços de autoconfiança e orgulho de si e do seu falo (real

u fantasiado). Este investimento fáJvO leva o homem

a uma identificação com a mãe forte, fantasiada como possuindo o fa’o. A identificação tem a função de defesa contra a frustração e a decepção, causad-. pela repressão materna aos impulsos exibicionistas. Consequente* me .e, o homem renuncia à mulher, objeto da identificação narcisista, e dirige a libido fálica em relação ao pai. Este processo determina o homos* sexualismo ativo (fálico ) que, na verdade, emerge como defesa contra o homossexualismo passivo (submissão ao falo fantasiado da mãe); determina, também, a agressão fálico*sádica, a necessidade de provar potência e o desejo de vingança contra a mulher, degradando-a, destroçando-a, desprezando-a. O pênis é o instrumento de vingança.

Para melhor compreensão deste conceito, ver o item 12.5, “ Potência e Im ­ potência Orgástica’ 1.

91

conscientização dos conflitos inconscientes e da angústia leva, num trata* mento psicanalítico, à eliminação dos sintomas. Assim, a angústia é a causa da perturbação da sexualidade genital. Reifh inverte esta relação, propondo que a perturbação da genitalidade leva a estase da energia libidinal, gerando angústia. Assim, um conflito atual gera uma perturbação na descarga genital (núcleo neurótico atual). A energia sexual não é liberada e investe no conflito psíquico, aumentando, viciosamente, a estase. Esta fornece energia para a reedição dos conflitos edípicos infantis, em si não patológicos, mas tornados núcleos da neurose pela energia estásica. Desta form a, não basta à Psicanálise tornar conscientes os conflitos infantis. É necessário, ainda, eliminar a fonte da energia que sobre eles investe, ou seja, a perturbação da descarga orgástica. Seguindo este pressuposto, Reich encontra uma contradição em sua prática clínica: o conflito ainda se mantém energetizado mesmo após o restabelecimento de relações sexuais normais pelo paciente. Este fato leva-o à análise da função do orgasmo como elemento de descarga ener* gética. Propõe que não basta haver relações sexuais para a descarga da plena potência orgástica. Quando esta ocorre, o orgasmo é pleno e segue uma curva de tensão-relaxamento, composta de uma prim eira fase de controle voluntário dos movimentos do corpo, após a penetração; uma fase seguinte, de contrações musculares involuntárias, aumentando a exci­ tação (carga energética); um crescimento súbito da excitação, seguido do orgasmo; uma queda da excitação (descarga), seguida de relaxamento.

Orgasmo

Figura J2J. 94

A

plena

potência

orgástica dá-se em

indivíduos (masculinos ou

femininos) capazes de atingir a fase dos movimentos involuntários ondulatórios do corpo, onde ocorre uma concentração da energia libidinal sobre o sistema vegetativo e consequente descatexização do sistema psíquico, seguida da descarga orgástica. Numa relação sexual onde não ocorra a pri­ mazia genital. é exigido um investimento de grande parte da energia sobre o sistema psíquico na elaboração de fantasias pré-genitais. Desta forma, a descarga não é total, mantendo grande parte da energia em estase, o que alimenta a angústia e a couraça caracterológjca defensiva. Em síntese, a impotência orgástica, gerada por uma estase resultante de um núcleo atual, aumenta a quantidade de energia acumulada, gerando angústia e realimentando a pré-genitalidade. A frustração, por uma reação natural do organismo, gera agressividade e angústia. Estas, por formações reativas, enriquecem a couraça caracterológica neurótica. Por outro lado, a plena descarga de potência o

ica permite maior

tolerância às frustrações e a canalização da agressividade

v H ta n te , pela

sublimação, para atividades culturais.

Caráter neurótico

Caráter genital

Repressão social núcleo neurótico atual (abstinência, coito interrompido etc. .,..)

perturbação orgástica

energia libidinal

inibição (frustração sem recalca mento)

estase da energia libidinal impotência orgástica conflitos infantis pré-genitalidade

sublimação sintomas

formações reativas, agressividade, caráter neurótico

potência orgástica (genital idade)

Figuro J2.2. 95

12.6.

Couraça caracterológica e couraça muscular Na medida em que propõe a função de descarga energética do orgasmo,

Reich aproxima-se, cada vez mais, do campo biológico. A libido pode ser entendida, enquanto energia sexual, como energia bioelétrica, que atua no campo psíquico. Enquanto este campo é responsável pelo conteúdo simbólico das idéias, fantasias e afetos, o campo biológico é quem prove uma energé­ tica. Corpo e mente, psíquico e somático são vistos como uma unidade funcional. A sexualidade está para a excitação agradável como a moralidade está para o espasmo muscular. A energia, se canalizada para a descarga sexual, permite a potência orgástica e a sublimação psíquica, se acumulada, canaliza-se para outros sistemas vegetativos, como o cardiovascular, gerando os sintomas físicos e psíquicos da angústia estásica (neurose atual, em Freud), e ativa os conteúdos infantis e pré-genitais (psiconeurose). A repressão mora) atua na inibição dos afetos, gerando e m antendo a rigidez nas atitudes de caráter. Do ponto de vista biológico, a energia está­ sica desvia-se para grupos musculares, aumentando a tensão e levando a uma rigidez também crônica, perturbando o eq uilíb rio vegetativo e a m otilidade. Isso explica a relação entre os traços de caráter e determinadas características posturais, motoras, de expressão facial etc. A energia apri­ sionada no sistema vegetativo corresponde ao afeto reprim ido. A unidade entre o psíquico e o somático implica em que toda a rigidez muscular contém, ao mesmo tem po, o afeto e sua história de repressão, onde o signi­ ficado é dado pela psique. Assim, os sintomas de conversão somática podem m elhor ser entendidos em sua gênese. Freud falava em uma "submissão somática” ao conteúdo psíquico. Não desenvolveu m elhor, porém , os caminhos biológicos da energia. Reich amplia a relação entre corpo e m ente, falando, não de uma submissão, mas de uma unidade funcional entre os dois âmbitos. Então, tal relação se estende não mais apenas aos sintomas histéricos, mas a toda a formação do caráter. Cada sublimação ou formação reativa envolve correspondentes no sistema vegetativo. O conjunto de couraça caracterológica tem seu corres­ pondente no sistema de tensões crônicas ou móveis, nas relaxações comple­ tas ou parciais, de acordo com maiores ou menores repressão e estase pre­ sentes na história individual. Reich chama este sistema de tensões de "couraça m uscular", que funciona em unidade, portanto, com a couraça caracterológica (caráter). O espasmo muscular, ao mesmo tem po, é o correspondente do processo de repressão e concorre para sua manutenção. Desta form a, um processo terapêutico terá êx ito se: a) possibilitar a conscientização do co n flito inconsciente (F re u d ); 96

b) concorrer para a dissolução dos extratos sucessivos dos traços reativos de caráter (couraça caracterológica); c) liberar, assim, os afetos reprimidos, através da eliminação da energia

concentrada

nas

tensões

musculares

(dissolução

da

couraça

muscular); d ) eliminar a fonte da energia estásica, ou seja, restabelecer a pri­ mazia genital e a plena descarga da potência orgástica. O restabelecimento do caráter genital não significa a dissolução de toda a couraça, mas, sim, da cronicidade e rigidez da mesma. A adaptação ao meio exige a inibição de impulsos e sua sublimação. em determinados contextos, e a realização, em outros. Assim, é necessária uma mobilidade da couraça, o que só é possível pela eliminação das repressões e das for­ mações reativas crônicas. Com a inclusão do biológico, Reich separa-se gradativamente da Psicanálise, entrando no que chama de “vegetoterapia carátero-analítica” , dentro da Economia Sexual, com alterações técnicas visando à inclusão da análise do caráter e dissolução da couraça muscular na terapia. Através da vcgetoterapia. Reich define um postulado que se torna central na evolução posterior da Economia Sexual: a energia biológica flui, no organismo, durante o orgasmo, do centro vegetativo para a periferia; na angústia, pelo contrário, flui desta para o cerne biológico.• A sexuali­ dade nada

mais

é do que a função biológica de expansão, antitética à

angústia. A energia bioelétrica flui, através do sistema vasovegetativo. “ para fora” c “ para dentro” , em direções opostas, dentro de um mesmo processo de excitação somática. O processo psíquico seria o correspondente funcional qualitativo desse processo quantitativo biológico de excitação. A hipertensão muscular crônica, ou couraça muscular - e sua cor­ respondente funcional que é a couraça caracterológica - , nada mais é, portanto, senão um obstáculo ao fluxo e refluxo da energia: constitui uma inibição biológica do movimento para a periferia (excitação: sexualidade, agressividade), e do movimento em direção ao centro (retração: angústia).

O cerne biológico está localizado, provavelmente, no conjunto ganglionar da região do plexo solar abdominal. 97

12.7.

O caráter masoquista e o princípio do prazer

A partir de sua descoberta dos fluxos energéticos do centro para a periferia. Reich pôde compreender a causa da busca do sofrimento maso­ quista, representado por fantasias de rompcr-sc. de derreter-sc. ou por desejos de rasgar a pele ou ser açoitado nas nádegas. Ou seja, o desprazer masoquista resultaria de um processo vegetativo semelhante ao prazer: a energia sexual, gerada pela excitação, flui para o sistema vegetativo perifé­ rico. com a consequente vasodilatação. O prazer corresponde à descarga desta tensão através do orgasmo. O sofrimento masoquista corresponde à propriocepçâo desta tensão periférica; esta não pode descarregar-se devido à inibição do prazer genital e o conseqüente encouraçamento causado, em última instância, pela repressão moral. O correspondente vegetativo do sofrimento masoquista - a estase da energia libidinal no sistema periférico — gera, portanto, a necessidade da descarga, ou da obtenção do prazer pelo relaxamento. Porém, como a função orgãstica está bloqueada, ao nível fisiológico a solução parece ser romper a pele, com o correspondente ideativo que é o desejo de ser rasgado, açoitado, ferido. A compulsão à repetição não seria, portanto, estimulada por um princípio do desprazer ou por um impulso destrutivo original voltado contra si próprio, mas, ao contrário, pelo desejo do prazer sexual, vinculado à relaxaçâo, pela descarga energética. Não é, portanto, necessária à compreensão do caráter masoquista a postulação de um Impulso de Morte, que levaria ao restabelecimento do estado original de repouso. Esta necessidade de repouso é inerente à própria libido e é a base fisiológica do prazer. Por sua vez, a morte não é resultado do predomínio de uma pulsão específica. Pelo contrário, resulta naturalmente da involução fisiológica do organismo, pelo declínio da função do aparelho sexual. O que há por compreender no caráter masoquista não parece ser, portanto, por que busca o desprazer, ou por que sente prazer com situações desprazerosas — pois, na verdade, busca o prazer, e as situações desprazerosas são sentidas como tal, e não como prazer.* O que Reich conclui

* Em certa ocasião, diante das súplicas de um cliente masoquista para que Reich batesse nele, o analista tomou uma régua e bateu4he nas nádegas. Com surpresa, viu o paciente gemer de dor, sem demonstrar prazer algum. Desta experiência tão pouco psicanalítica, Reich foi capaz de retirar as bases para sua crítica à formulação freudiana de que o masoquista sente prazer na dor, pois realmente o que sente é desprazer.

98

é exatamente o contrário: o masoquista busca excitações prazerosas, mas, por um mecanismo específico, que tem a ver com sua história de repressão pulsional, experimenta estas excitações como desprazer. Ou seja, não tolera a tensão psíquica e a carga energética nos sistemas periféricos -

normal*

mente sentidas como excitações prazerosas - pois estas se torn..ram crônicas com o encouraçamento. o que impossibilita a descarga e o relaxamento. Os principais traços do caráter masoquista são: queixas constantes derivadas de uma sensação crônica de sofrimento, tendências ou fantasias de autoflagelação; autodesvalorização e automenosprezo; compulsão à destruição do outro, acompanhada por intensos sentimentos de culpa; falta de tato no relacionamento social; comportamento provocativo; demanda intensa de carinho, permeada por um alto erotismo epidérmico, especial* mente na pele das nádegas; fantasias de romper-se (nos homens, é freqüente a fantas-a de o pênis derreter se ou explodir; nas mulheres, fantasias de violentação sexual). 12.7.1.

A gênese do caráter masoquista

Apesar da exigência constante de carinho, freqüentemente encontra* mos, na história infantil dos indivíduos masoquistas, mães superprotetoras, que deram extrem a atenção à alimentação e às atividades excretórias da criança, o que incentivou a fixação no erotismo oral, anal e uretral. No entanto, um adestramento precoce e exagerado do controle esfincteriano antepõe, ao prazer retentivo, o temor do castigo face ao descontrole. Este assume a forma fantasiosa de a bexiga urinária ou os intestinos rompe* rem-se, estourarem. Em seu desenvolvimento, a libido atinge a fase genital exibicionista. Mas, ao contrário do incentivo anterior, estes impulsos são fortemente reprimidos pela educação familiar; isto impede todo o desenvolvimento libidinal ulterior, com incremento da angústia genital. Aqui está a base do embaraço e falta de tato nas relações pessoais, tão características do masoquista. A repressão social ao exibicionismo leva a diversas consequências. Em prim eiro lugar, pelo não desenvolvimento da libido genital, não pode haver sublimação das pulsões exibicionistas, que levariam, como no caráter genital, à autoconfiança e segurança. Pelo contrário, estas pulsões são inibidas através de formações reativas que determinam o aparecimento de traços opostos, ao nível do caráter: a tendência ao automenosprezo, ao impedir-se de destacar-se, ao fingir-se ou parecer estúpido. Resulta, ainda, em um medo do elogio vindo de outrem, pois este é uma provocação ao exibicionismo e gera imediata angústia genital. 99

Por outro lado, o evitar angústia e castigo, vinculados à frustração - fantasiada ou real — das exigências de carinho, constitui a base de um desejo de atenção e cuidados impossíveis de satisfazer, face â regressão à voracidade oral. Uma combinação específica destes componentes orais com a fixação anal e o erotismo epidérmico, ligados ao impedimento da realização libidinal pela repressão à potência orgástica, incentivam o medo do abandono, a passividade anal, a demanda de carinho c contato corporal. Ou seja, impedida da realização gcnital, a libido reflui aos componen­ tes pulsi onais pré-genitais. sem possibilidade de sublimação. O indivíduo busca evitar a angústia genital, representada pela punição, através da autodesvalorização, de queixas e lamentações, de parecer infeliz, como forma de conseguir carinho e atenção. A necessidade de carinho aparece disfar­ çada desta forma, anal-passiva, uma vez que a demonstração ou exigência direta de carinho traz de volta a angústia: “Posso ser envergonhado, casti­ gado. menosprezado". Portanto, o comando “Castigue-me!“ é a expressão encoberta do “Proteja-me!". Neste sentido, as constantes provocações masoquistas ao castigo não tomam sentido da busca do desprazer. A provocação tem a função de uma avaliação da realidade: “Até onde posso ir sem ser castigado, sem perder carinho, sem ser abandonado?" - ou seja, são regidos pelo prin­ cípio do prazer. A passividade e o automenosprezo chocam-se, no entanto, com um ideal egóico fálico, ativo, exibicionista, o que reforça o sofrimento masoquista. Como dissemos, as características do masoquismo são decorrentes de uma combinação específica desta economia libidinal; embora os mesmos componentes de angústia e fixação anal-passiva possam ser encontrados no caráter histérico ou compulsivo, podendo incentivar alguns traços maso­ quistas nestes, apenas a presença e a interação conjunta destes traços podem justificar falar-se em um caráter tipicamente masoquista. Neste sentido, a história de fixação anal do masoquista imprime aspectos marcantes e especiais neste caráter. Como vimos, a retenção anal e uretral, incentivada pela educação para o controle esfincteriano, acom­ panha-se do medo da punição, do castigo ameaçado em nome do pai. Daí a presença do medo de explodir e de atitudes passivo-femininas frente ao homem. Com o desenvolvimento da libido genital e a repressão ao exibicio­ nismo, a regressão anal imprime suas características retentivas à angústia genital: a intensificação da excitação genital passa a ser refreada pela contra* ção da musculatura do piso pélvico, com seu correspondente psíquico que é o medo de explodir, de “sujar-se”, e o medo da punição que inflinja danos aos genitais. 100

Aqui. Rcich nos apresenta um caso esclarecedor de como tais temores acabam-se transformando no desefo de ser castigado. Em seu livro Análise do Caráter (Reich, 1975a), apresenta-nos frag­ mentos da história clínica de um cliente, que se recorda de uma situação traumática: aos tres anos, brincando no jardim , suja suas calças. Como havia visitas cm casa, seu pai. furioso, leva-o para um quarto e prepara-se para castigá-lo. A criança deita-se numa cama virando-se imediatamente em decúbito vcntral. aguardando ansioso o castigo. Após pesada surra sobre suas nádegas, advém-lhc uma sensação de alívio. Mais adiante, na análise, foi possível compreender que tal alívio não sc tratava dc um desejo de castigo, mas. pelo contrário, de um temor de que o castigo se aplicasse aos genitais. A posição adotada objetivava proteger seu pênis. As pancadas nas nádegas foram menos desastrosas do que o castigo fantasiado. Este caso perm itiu a Reich determinar como o erotismo anal atua como defesa à angústia genital. Por outro lado, a união deste com o ero­ tismo epidérmico explica as fantasias de castigo centradas na pele das nádegas. Cabe, ainda, compreender tal erotismo epidérmico exagerado. Isto se torna possível pela análise do fluxo energético do centro para a periferia, formulado

por

Reich

como

correspondente

fisiológico

da excitação

prazerosa. Na verdade, os traços masoquistas correspondem a um conjunto de esforços para evitar a disposição à angústia genital. Mas, estes esforços tornam-se infrutíferos porque o espasmo da musculatura, sem realização orgástica, mantém a alta tensão periférica interna, determinando a fixação da libido sobre a periferia, mais especificamente sobre a pele das nádegas, por um deslocamento defensivo da frente para trás ( “Castigue-me. mas não mc castrei” ). Por outro lado, Reich volta sempre a frisar que o masoquista é tam­ bém movido pela busca do prazer, que acaba se transformando no desejo de ser castigado. Agora

isto pode ser melhor compreendido, pela análise

sequencial do processo: a) Inicialm ente, o indivíduo busca excitações prazerosas. b) A excitação aumenta a concentração da libido na periferia. 0 fluxo da energia bioclétrica é possível pela vasodilatação do sistema vegetativo periférico. Este já se encontrava sobrecarregado pela estase. resul­ tante

da inibição

da potência orgástica. Em decorrência, advém uma 101

sensação de calor epidérmico, correspondente fisiológico da necessidade de contato corporal e do erotismo e p id é rm ic o / c) O aumento da excitação, movido pelo p rin cíp io do prazer, c por analogia ao prazer anal, leva ao desejo de romper-se. de explo dir. Este componente ideativo não decorre da introjeção de conteúdos sociais, mas da propriocepção fisiológica da tensão periférica interna, causada pelo aumento da excitação-carga bioelétrica. N o entanto, o encouraçamento muscular espástico do piso pélvico, gerado como defesa à angústia de cas­ tração. impede a “ explosão" orgástica. Reich descreve a sensação resultante como se o indivíduo fosse uma bexiga viva, supcrinflada. impedida de romper-se, pela resistência ou endurecimento da superfície externa, como ilustra a figura 1 2 . 3 / •

~

Cerne biológico

Oposição pela tensão da superfície (encouraçamento)

Figura 12.3

• A formulação posterior da eneigia orgônica. em substituição à energia bioelétrica (v. item 1 2 3 ), leva Reich a c preender a necessidade de contato corporal como uma troca energética entre dois * eternas orgonóticos, ou seja, a busca do equi­ líbrio da energia orgônica por um fluxo de uma pessoa a outra, através da pele. ** O desenvolvimento destas idéias e sua relação com as inervações simpáticas e parassimpáticas não serão detalhados aqui, pois fogem aos objetivos deste trabalho. Podem .no entanto, ser encontrados cm Reich (1975b, cap. VII).

102

d) A

angústia genital

causada pela

internalização das repressões

sociais, por analogia com o medo de castigo da fase anal, transforma o desejo de romper-se no medo de explodir. As sensações que seriam, normal­ mente. prazerosas, tornam-se desprazerosas: a sensação de calor no pênis, por exem plo, pode levar à fantasia angustiante de que este estaria se der­ retendo. A angústia é aumentada, pois a excitação genital próxima ao ápice, diferentem ente da excitação anal, eleva-se repentina e intensamente. A sensação de derreter-se ou romper-se é sentida como o castigo temido e antecipado. e) Com o defesa, o indivíduo inibe a excitação, através da contração muscular, que mantém a estase e a carga sem possibilidade de relaxamento. O objetivo prazeroso original transforma-se em resultado desagradável e temido. f) O indivíduo passa a evitar excitações prazerosas, não por um impulso de buscar o desprazer. mas pelo contrário, para evitar o desprazer final. Assim, as exigências de carinho são encobertas pelo automenosprezo: “ Sou tão desgraçado, ame-me!” De outro lado, explica-se a prática comum do masoquista em masturbar-se até quase atingir o orgasmo e bloqueá-lo pela contração dos músculos pélvicos, retomando a masturbação, em seguida. g) Por fim , a analogia com a bexiga viva permite a compreensão do desejo de ser castigado dentro do princípio do prazer. Tal bexiga desejaria romper-se; mas, impossibilitada de fazê-lo por si, desejaria que uma fonte externa arranhasse, até rasgar, sua superfície. Esta sensação de “ bexiga inflada” leva o masoquista a fantasias de ser furado, rasgado, flagelado de forma a explodir ( = descarga -

relaxamento). Novamente, uma analogia

com a história do prazer anal serve como referência: em situação de retenção urinária ou fecal, um fato assustador pode provocar o descontrole esfinctcriano, podendo a criança sujar-sc sem sentir-se culpada. Assim, também, em estado de excitação genital, a dor resultante de um castigo físico pode provocar o descontrole e o orgasmo. D a í a fantasia frequente - que aumenta, próxima ao ápice orgástico -

de ser golpeado no pênis, no caso do homem,

ou de ser violentada, no caso da mulher masoquista. Em qualquer caso, o orgasmo pode realizar-se p o r culpa do outro. Assim, Reich explica os traços masoquistas a partir de sua vegetoterapia carátero-analítica, pela unidade funcional entre o somático e o psí­ quico, dentro do suposto básico do princípio do prazer, refutando a neces­ sidade de um constructo, como a pulsão de Morte, para tal compreensão. Neste ponto, resta-nos ainda ressaltar a questão de como o caráter masoquista reage ao tratam ento analítico como resistência caracterológica. As queixas freqücntcs de sofrimento, feitas ao analista, encobrem uma crítica à ineficiência do tratam ento. O analista deve trazer á tona a 103

índole sádica envolvida neste comportamento masoquista. Assim, inverte-se o processo histórico da gênese desse caráter, transformando o masoquismo (sadismo voltado para o próprio indivíduo) em sadismo voltado para o exterior. Assim, as fantasias anais passivas invertem-se. Tornam-se fantasias fálico-sádicas ativas, trazendo de volta a angústia gcnital. Durante o tratamento, ressalta Reich, as menores frustrações levarão à recorrência da atitude masoquista. Isto só será eliminado pela definitiva supressão dos espasmos da musculatura pélvica e anal e pela resolução da angústia de castração, o que possibilita a plena descarga orgástica.

12.8.

A descoberta da energia orgônica A análise da função do orgasmo e do problema do masoquismo

tornou-se possível pela proposição da fórmula geral da descarga da energia bioelétrica sexual. A fórmula do orgasmo é dada em quatro etapas, a saber: 1. Tensão mecânica: os órgãos sexuais enchem-se de fluidos orgânicos, ocorrendo a ereção. A energia bioelétrica flu i, do centro do organismo, para a periferia. 2. Carga elétrica: os órgãos periféricos carregam-se de energia, com a equivalente excitação psíquica. 3. Descarga elétrica: orgasmo envolvendo convulsões musculares in­ voluntárias. descarregando a excitação com sensações prazerosas. 4. Relaxação mecânica: os fluidos do corpo refluem e a musculatura relaxa; os genitais são distensionados e a sensação de prazer se m antém . Esta fórmula inverte a hipótese freudiana de que a sexualidade é uma função da necessidade biológica de procriação. Agora, a necessidade bio­ lógica é a descarga da energia bioelétrica pelo orgasmo, onde a procriação torna-se conseqüéncia. A fórmula tensão-carga auxilia Reich na sua investigação da natureza dessa energia sexual, inicialmente suposta como uma energia bioelétrica. Reich realizou experimentos buscando a mensuração dessa energia em diversas situações de excitações, confirmando sua hipótese do m ovim ento das cargas do centro para a periferia. Constatou sua presença, sob a form a de diferença de potencial elétrico, na pele, em situação de excitação (por exemplo, cócegas), e nos genitais. Em 1934, prossegue suas pesquisas acrescentando novas informações sobre a energia: I . Sua velocidade aproxima-se da velocidade da luz (3 0 0 .0 0 0 km /s), m uito superior à da energia elétrica (que não ultrapassa um centím etro por segundo). 104

2. A energia provoca efeitos ondulatórios em um galvanõmctro, o que chamou de “ fenômeno titilante” . 3. Os materiais não-vivos não possuem tal energia, mas podem ser carregados -

mesmo os não condutores, como a borracha - . quer pela

aproximação da mão humana, quer pela exposição aos raios solares. A energia solar, pelo aquecimento e ditalação de corpos como areia, borracha c algodão, carrega-os com uma energia com as mesmas características da energia do ser vivo. Reich chama tal energia de “ orgone” , já por volta de 1 9 3 9 .0 orgone é uma energia cósmica biofísica existente na Natureza, e que se concentra no cerne biológico dos organismos vivos. A energia orgônica permite a unificação da análise do caráter e da vegetoterapia, a que Reich chamará de orgonoterapia. A análise do caráter preocupava-se com a formação da base caracterológica

de

reação, envolvendo as couraças caracterológica e muscular,

analisando as perturbações da economia sexual egóica. Esta deve buscar o eq uilíb rio, sem desgaste desnecessário de energia, entre as pulsões do Id e as exigências sociais representadas pelas forças superegóicas. Por outro lado, a vegetoterapia buscava a liberação da energia bio­ lógica sexual, de forma a perm itir sua mobilidade e fluidez entre centro e periferia, recolhendo-se ou expandindo-se adequadamente, de acordo com as demandas exteriores. A rigidez da couraça impede a mobilidade do fluxo plasmático,

perturbando

a

função

orgástica

de

tensão-carga-descarga-

relaxamento. O objetivo da vegetoterapia carátero-analítica era o restabele­ cimento da plena potência orgástica. A descoberta do orgone permite, como dissemos, a unificação destes dois pontos de vista: entendendo a economia sexual como a busca do equilíbrio orgonótico, pela eliminação da estase energética, o papel do plasma biológico neste processo é o de condutor do orgone corporal, pos­ sibilitando, por sua fluidez, o movimento para a periferia e a descarga. Este é o processo de funcionamento do caráter genital. N o caráter neurótico, a repressão social internalizada implica na repressão do fluxo orgonótico, através das formações reativas do caráter, levando à estase da energia, que se concentra sobre certos grupos muscula­ res, com a conseqüente rigidez da couraça. Esta provoca imobilização do fluxo plasmático condutor do orgone, gerando uma tensão interna sem possibilidade de descarga (impotência orgástica). Isto aumenta a estase, angústia e formações reativas num círculo vicioso, podendo resultar em sintomas ou traços caracterológicos neuróticos.

105

12.9.

A estrutura segmentada da couraça

0 movimento ondulatório do orgasmo está ligado ao fluxo e descarga da energia ondulatória orgônica. Esse movimento, segundo Reich, pode ser encontrado em todos os organismos vivos e é visível nos animais inferiores, como a minhoca. O fluxo do orgone se dá em sentido longitudinal, em qualquer orga­ nismo vivo. A análise da couraça muscular levou Reich a perceber que a estase da energia imobiliza certos grupos musculares, no ser humano, exata­ mente no sentido oposto, ou seja, transversalmente ao eixo longitudinal do corpo. A couraça muscular possui uma estrutura segmentada, isto é, deter­ minados segmentos ou grupos musculares são tipicamente afetados. Estes segmentos são em número de sete. Pela sua disposição transversal. Reich os denomina “anéis musculares", a saber: anel ocular, oral, cervical, toráxico, diafragmático. abdominal e pélvico. Cada grupo muscular é responsável, dinamicamente, pela expressão de determinado conjunto de emoções. A repressão de tal ou qual emoção corresponde, funcionalmente, à estase orgonótica e imobilização mais específica de alguns anéis musculares. Passaremos, assim, à análise dos significados psíquicos, ou das emoções, e de suas correspondentes expressões ou bloqueios musculares. Os movimentos de um indivíduo são altamente expressivos. Mas nem sempre a linguagem do corpo pode ser expressa em linguagem verbal. Ressaltada esta limitação, fica claro que, para Reich, a observação atenta dos movimentos expressivos apreende melhor a sua significação do que a exposição que faremos a seguir. Um outro aspecto a enfatizar é que o movimento expressivo envolve todos os segmentos musculares que veremos, embora, didaticamente, seja necessária a exposição específica de cada anel muscular. Do ponto de vista terapêutico, a dissolução das couraças dos anéis musculares parte do extremo superior do corpo (anel ocular) para a região pélvica, uma vez que o fluxo orgonótico deve seguir daquela para esta durante o orgasmo. Assim, a dissolução de um anel anterior permite o fluxo de energia para o anel seguinte - o que intensifica, no indivíduo, a sensação de encouraçamento neste último segmento, facilitando o trabalho terapêutico. Por outro lado, a dissolução de um anel muscular torna-se d ifícil e sem efeito se o(s) anel (is) anterior (es) não se dissolveu (ram). Na verdade, o processo não é tão mecânico e regulado. £ muito mais dinâmico, pois um anel já trabalhado libera um certo fluxo de energia que 106

atinge e é bloqueado pelo seguinte, embora o espasmo anterior não tenha sido totalmente dissolvido. Passemos à descrição dos anéis: I. A nel ocular: é formado por todos os músculos ao redor da cabeça na altura dos olhos, incluindo estes, as pálpebras, glândulas lacrimais etc. Os olhos são responsáveis por muitos movimentos expressivos como a tristeza, o choro, o sorriso, a desconfiança etc. Em um indivíduo encouraçado. os olhos são inexpressivos, o olhar vazio ou triste, dando a impres­ são de máscara. 2. A n el oral: envolve músculos da boca, queixo, garganta e região occipital. Os movimentos expressivos da boca, como morder (raiva), chupar, chorar, fazer caretas etc., estão extremamente vinculados ao anel ocular. Ambos os anéis, encouraçados. diminuem a possibilidade da expressão facial, ressaltando a aparência de uma máscara rígida e inexpressiva. 3. A n e l cervical: musculatura do pescoço e nuca, da língua e laringe. Novamente, as expressões de raiva ou choro envolvem este anel. Os espasmos dessa musculatura implicam no “ engolir” as emoções deste tipo, impedindo o seu fluxo e expressão. O vomitar, em seus sentido literal e simbólico (pòr para fora, descarregar), é impedido pelo espasmo desta musculatura (em conjunto com tórax e diafragma). 4. A n el

peito ral

ou

toráxico:

músculos

peitorais,

intercostais,

ombros etc. A

respiração assume parte importante na expressão de todas as

emoções, na fluidez dos sentimentos. A rigidez deste anel expressa auto­ controle. a imobilidade, a impassividade - como na postura militar. Reich encontrou, com freqüéncia, na dissolução deste segmento da couraça, um fluir de emoções, como soluços, “ choro que despedaça o coração” , desejos intoleráveis, ou raiva destruidora. O encouraçamento deste anel expressa emoções “ frias” e desprezo pelo choro ( “ homem não chora” ). Ligam-se a este grupo muscular os movimentos expressivos dos braços e mãos (abraçar, alcançar). No

indivíduo com este segmento encouraçado, são frequentes a

sensação de um “ nó no peito” e dificuldades em trabalhos manuais, nas mulheres, insensibilidade nos seios e dificuldade de amamentar. O m ovim ento de jogar os cotovelos para trás expressa uma atitude básica deste anel: “ sai!” ou “ não quero!” , também representada pelas cócegas excessivas na região das costelas: “ sai de perto!” ou “ não me toque!” (após a dissolução de couraça, o medo de cócegas desaparece). O caminho para a descarga orgástica inclui um movimento do tórax para frente, expressando um “ dar-se” ou “ entregar-se” .

107

5. A nel diafragma tico: envolve os músculos diafragmáticos c órgãos envolvidos nas funções biológicas gastro-intestinais (vô m ito , diarréia), e respiratórias

(inspiração-expiração):

diafragma,

estômago,

plcxo

solar,

fígado. Deste anel em diante, torna-se cada vez mais d ifícil traduzir em palavras o movimento expressivo. O pulsar diafragmático afirma emoções de prazer ou angústia. Sua rigidez implica na negação desses sentimentos. Por outro lado, na expiração ou no vôm ito ocorre um m ovim ento expressivo de curvar-se para frente que, funcionalmente, é idêntico às contrações orgásticas. Ao mesmo tempo, um anel não encouraçado permite o fluxo de energia deste centro para cima (vôm ito, expiração), ou para baixo (como no orgasmo). Este segmento encouraçado impede tais fluxos e movimentos essen­ ciais ao estabelecimento da potência orgástica. 6. A nel abdominal: envolve os músculos abdominais e laterais entre as costelas e a pélvis. Este anel, segundo Reich, é de fácil dissolução e concorre para a plena expressão orgástica, intermediando o fluxo energético entre diafragma e pélvis. 7. A n el pélvico: envolve todos os músculos da pélvis, região glútea e ânus. Sua principal expressão é a da sexualidade, envolvendo ainda a raiva, o golpear ou atravessar. Seu encouraçamento atua em toda ordem de proble­ mas sexuais, como dessensibilização erógena, ejaculação precoce, leucorréia, vaginismo etc. Embora algumas emoções estejam mais vinculadas especificamente a alguns anéis, todos concorrem, como já dissemos, para o m ovim ento expres­ sivo não-encouraçado.

A

principal

característica emocional do caráter

genital é a capacidade de dar, a gratidão, o entregar-se. O encouraçamento bloqueia tais expressões afetivas e a raiva é sempre resultante de qualquer frustração ou bloqueio emocional. Por isso, na dissolução das couraças, num trabalho terapêutico, a raiva é uma das emoções mais liberadas, pois o indivíduo conscientiza-se cada vez

mais das frustrações ou limitações

impostas, pela sua própria couraça, à expressão afetiva.

12.10. Conclusão Como havíamos dito no começo desta parte do livro, Reich não desenvolve propriamente uma teoria da personalidade, mas sim uma teoria da formação do caráter.

108

Podemos distinguir» em sua obra, três momentos distintos que se intercruzam: a) /t análise do caráter. Este é o momento em que sua teoria mais se aproxima de uma teoria da personalidade. A forma total da personalidade é dada pela couraça caracterológica, ou pelos caracteres genital e neurótico. Neste momento, ele ainda se mantém cm acordo com o movimento psica* nalítico, apesar de alguns pontos de conflito. b) /I

vegetoterapia e a função do orgasmo. Aqui, não apenas se

separa da Psicanálise como também da Psicologia, propondo o campo da Sexologia ou Economia Sexual - onde inclui a Psicologia, mas também a Biologia, Economia Política etc. c) A descoberta do orgone e a orgonoterapia. Neste momento acaba se afastando da Psicoterapia. Avança no campo da pesquisa biofísica, tentando relacionar sua descoberta do orgone com todos os aspectos das Ciências Naturais e Humanas. Desnecessário dizer que esta última parte de seu trabalho não foi levada a sério por muitos de seus seguidores. Mesmo hoje em dia, há pouquíssimas experiências de cunho científico divulgadas, que busquem comprovar a existência de uma energia com as características do orgone. Apesar disso, ao nível da Psicoterapia, a contribuição de Reich faz-se sentir, como eixo-mestre, nas várias abordagens de Psicoterapia e mobilização corporal. Várias técnicas visando ao desencouraçamento foram desenvol­ vidas e são aplicadas, buscando o equilíbrio energético e o livre fluxo da energia. Mas pouco se tem pesquisado, ou quase nada, sobre uma das pre­ ocupações centrais de Reich, ou seja, a de qual a natureza dessa energia. Parece-me que a proposta do orgone enquanto “ energia cósmica” não é aceita ou, muitas vezes, é adotada sob um ponto de vista metafísico, o que diverge da própria concepção de Reich (ao menos sob o ponto de vista dele, que sempre procurou bases experimentais científicas).

109

13 Psicanálise e materialismo dialético: retomada e revisão dos conceitos freudianos

Tendo até aqui delineado os principais aspectos da teoria do caráter e suas implicações na Psicoterapia, resta-nos retomar alguns destes conceitos, uma vez que implicam em séria crítica à Psicanálise. Tanto mais que tal crítica leva Reich, em suas últimas consequências, a entrar pela Economia Política, provocando não apenas uma revisão de pontos-chave da teoria psicanalítica, mas também um posicionamento político frente à sociedade capitalista. Os conceitos a que nos referimos são: o processo de sublimação, o princípio da realidade, a formação do Inconsciente e do complexo de Édipo. É o que veremos a seguir.

13.1.

Sublimação ou formação reativa?

A questão essencial levantada por Reich, que o leva à proposta revo­ lucionária da Economia Sexual, reporta-se ao destino das pulsões incons­ cientes tornadas conscientes pela Psicanálise. Tendo tomado consciência do desejo sexual e eliminado suas inibições, o indivíduo defrontar-se-á, novamente, com a mesma repressão social que o levou à neurose. A restrição à plena realização sexual é um fato social. As jovens terão que enfrentar a restrição às relações genitais, pois a sociedade defende a virgindade até o casamento.* Este culto à virgindade tem como conseqüéncia imediata

* Estaremos falando, a partir de agora, sobre como Reich via a moral sexual de sua época. £ verdade que, em determinados grupos sociais, muita coisa mudou: há moças que, em seu grupo, envergonham-se de serem virgens. Porém, embora, apa-

110

o desenvolvimento da prostituição. Assim, os rapazes dispõem das pros­ titutas para as relações sexuais e das “ moças direitas*' para amarem

o que

cria uma cisão crônica entre amor e sexo. De outro lado, o controle dos anticoncepcionais incentiva a abstinência ou o coito interrompido, impe* dindo a plena realização sexual. Os interesses econômicos burgueses mantém as doenças venéreas, não levando a cabo maiores esforços para sua erradi­ cação total, tirando proveito de seu fantasma persecutório como forma de controle das relações sexuais livres. Igualmentc, a carência de espaços físicos disponíveis para as relações sexuais dos adolescentes é fator neurotizante. Dentro do casamento, a proibição do aborto, ligado ao controle dos anticoncepcionais, c a defesa do casamento monogâmico - contra o divór­ cio e em favor da fam ília - implicam em restrições sociais diretas à realiza­ ção sexual*, criando o adultério. Diante deste quadro social, como pode o paciente, que toma cons­ ciência de seus desejos sexuais recalcados, não retornar à neurose? A Psicanálise, com Freud, deixa claro que o objetivo do tratamento psicanalítico não trata da “ livre expansão" da sexualidade. Ou seja, a tomada de consciência de seus desejos sexuais liberta o indivíduo da deter­ minação inconsciente, mas, sem dúvida, tais pulsões são naturalmente anti­ sociais. O princípio da realidade deve, portanto, estabelecer-se a>. posbilitando ao sujeito dominar seus impulsos sem, no entanto, recalcá-los de volta ao inconsciente. A repressão ao pré-consciente, ou a condenação voluntária dos desejos anti-sociais permitirá o desvio de tais impulsos para fins socialmente valorizados, através da sublimação. Desta form a, a condenação dos impulsos sexuais transforma-se, com a sublimação, no grande m oto r da Civilização. Reich, por sua vez, tendo concluído que a energia sexual genital represada (estásica) só pode realizar-se totalmente pela descarga orgástica,

rentem ente, vivamos em um clima de “ liberação’’ sexual, uma análise mais aprofundada verá quão atuais são as críticas reichianas: freqüentemente encontramos, em nossa prática clínica, sob com portam entos tão “ abertos** em termos de relacionamento sexual, uma culpa assediante que revela a mesma moral conservadora de que Reich nos fala. Da parte dos rapazes, apesar de manterem, com frequência, relacionamento sexual com amigas ou namoradas, a perspectiva de casamento só aparece, na grande maioria dos casos, diante de moças virgens ou, ao menos, diante da exigência de que ele tenha sido “ o primeiro**. *

Mais adiante, analisaremos como a ideologia marxista ajuda Reich a compre­

ender a determinação econôm ico-política da moral sexual repressiva, levando-o a uma revisão do com plexo de É dipo.

111

entende que a sublimação, assim proposta, na verdade, nada mais é que uma nova formação reativa: um novo comportamento surge para impedir a realização de um impulso inibido (ver esquema na p. 79-80). Assim, há um desvio de parte da energia, que se contrapõe ao impulso original, e apenas parte dela realizar-sc-á pelo comportamento adequado socialmcnte. Mas a concentração dessa energia não liberada reativa os impulsos prégenitais. restabelecendo a neurose ou os atos anti-sociais (perversões). Portanto, não há outra solução: o indivíduo que toma consciência de seus desejos sexuais genitais deve realizá-los. Esta é a única condição para o desaparecimento da neurose, uma vez que se retira desta a energia que a movia, ou que determinava as regressões aos impulsos pré-genitais. Com o desenvolvimento normal do indivíduo, estabelece-se a pri­ mazia dos impulsos genitais sobre os pré-genitais. Estes não deixam de existir, mas obtêm sua realização integrados com os impulsos genitais durante o coito - ou, primordialmente, nos jogos sexuais prévios à inten­ sificação das sensações genitais próximas ao orgasmo. De outro lado, para Reich, o homem é um ser natural e espontanea­ mente social. Não é necessária, portanto, a repressão social para impedir os crimes sexuais.* Uma vez retirada a energia genita) estásica dos im­ pulsos pré-genitais, pela plena descarga da potência orgástica, estes perdem sua primazia e podem realizar-se nos jogos sexuais, como dissemos, ou através de sublimações. Estas, evidentemente, implicam numa inibição â realização direta desses impulsos. Mas no indivíduo são, é possível que ocorra sem repressão social ou recalcamento, espontaneamente, uma vez que implicariam em ações anti-sociais contrárias à própria natureza humana. Diferentemente de Freud, para Reich, tal auto-regulação só é possível na medida em que o indivíduo consegue realizar-se totalmente através da plena descarga orgástica. Sente-se, assim, potente e capaz de amar, de modo que os impulsos pré-genitais (por exemplo um impulso sádico, ou de violação) tornam-se descoloridos e de menor importância, podendo, o indivíduo deles prescindir, naturalmente, desviando (sublimando) sua energia para o trabalho social.

* Os crimes sexuais resultam, exatamente, da repressão sexual, que impede a realização genital e reforça as puisões pré-genitais Por outro lado, a participação da pre-genitalidade em outros crimes é evidente, como, por exemplo, no sadismo, e na prática comum, nos furtos, de defecar na residência assaltada (obviamente, esta visão não pretende excluir a compreensão dos complexos fatores sociais de classes deter­ minantes da delinquência e do crime).

112

Como consequência, teremos, em Reich. uma diferenciação entre o trabalho reativo e o trabalho econômico-sexual aulo-regulado. Neste últim o, não há oposição entre sexualidade e trabalho. Ambos influenciam-se mutua­ mente, possibilitando ao indivíduo uma sensação de potência em suas realizações, uma capacidade de amar e de entregar-se. O objeto sexuaJ é definido c diferenciado do objeto do trabalho; mas a capacidade de dar-se aparece em ambas as atividades, ocorrendo um fluir, sem recalcamento, da energia libidinal. entre um e outro (ver gráfico na p. 82). O desempenho social dcscnvolve-se por um querer, e não pelo dever, o que possibilita maior criatividade e espontaneidade, mas, ao mesmo tempo, uma neces­ sidade de auto-rcgulação, ao invés da submissão. Neste sentido, o indivíduo auto-regulado, embora não seja anti-social, desenvolverá uma atitude crítica à sociedade autoritária e repressora. Por outro lado, o desempenho reativo no trabalho se dá de modo mecânico, autom ático e levado pelo sentido do dever. O trabalho se opõe reativamente à sexualidade, o que impossibilita a descarga da energia sexual pela atividade. Por isso, esta energia, por vezes, toma conta do indivíduo durante o trabalho, levando-o a fantasias (primordialmente pré-genitais), que novamente atrapalham seu desempenho, sua concentração e capacidade de trabalho. Mecanismos neuróticos têm que ser usados para recalcar tais fantasias, atingindo diretamente a espontaneidade e a criatividade em rela­ ção ao que faz (com o o trabalho realizado obsessivamente, por exemplo). O baixo rendimento resultante derruba o sentimento de autocon­ fiança. O indivíduo torna-se incapaz de se auto-regular, perpetuando a submissão, ou a onipotência (reativa) dominadora. Assim, repressão gera repressão; ou seja, o indivíduo reprimido social­ mente por uma moral sexual autoritária acaba mantendo esta mesma moral repressiva em sua relação com os outros, quer a nível sexual ou a nível das atividades sociais. A estase da energia sexual, que não pode realizar-se genitalmente, provê de força os impulsos pré-genitais que, se inibidos, geram a neurose; se realizados, geram as perversões e atos criminosos. Estes, novamente, precisam ser obstaculizados por sua natureza anti-social, o que será feito por uma maior repressão sexual. Assim consecutivamente, em um círculo vicioso, a repressão se auto-reforça. Em

síntese,

Reich

basicamente retoma as colocações iniciais de

Freud sobre a sublimação, pois, segundo este, são os impulsos pré-genitais que são sublimados. No entanto, no desenvolvimento posterior da Psica­ nálise, as formações reativas, que se opõem à sexualidade genital, acabam sendo tomadas como sublimações -

segundo Reich

confundindo o

113

princípio da realidade com a submissão à moral sexual repressiva das classes dominantes. Embora tais formações reativas possam não se constituir em uma neurose sintomática, estão longe de se qualificarem como equilíbrio econômico-sexual. Embora o caráter resultante possa se confundir com uma “ natureza” do indivíduo relativamente adaptada ao grupo social, a rigidez da couraça caracterológica evidencia a desorganização do flu xo energético sexual. A vegetoterapia caráctero-analítica, ou a orgonoterapia demonstram, nestes casos, como este caráter (neurótico) se erige às expensas da estase energética. As conseqüências são dramáticas para o indivíduo (sentimentos de impotência, ausência de prazer, incapacidade de entregar-se, de amar etc.), e para a Civilização (trabalho reativo, manutenção da ideologia de classes, incapacidade crítica etc.).

13.2.

O princípio da realidade A partir desta revisão da sublimação, um outro conceito freudiano

precisa ser retomado: o princípio da realidade. Como vimos, em Freud, as pulsões sexuais, movidas pelo princípio do prazer, trantformam-se evolutivamente, de energia livre em “ energia ligada” ; ou seja, as pulsões passam, gradativamente, através da gênese do Ego, a serem reguladas por outro princípio — o da realidade. Passam do sistema inconsciente, dominado pelo processo prim ário, para o sistema pré-consciente-consciente, orientado pelo processo secundário. Assim, as pulsões sexuais buscarão sua satisfação, ainda pelo prin cípio do prazer. Mas não de forma auto-erótica ou alucinatória, através de fantasias, e sim no contato com a realidade exterior. Para isto, toma outros cami­ nhos que não a gratificação direta, como o adiamento

da gratificação» em

função das condições impostas pelo meio exterior, ou a frustração e a condenação das pulsões anti-sociais. O adiamento do resultado desejado não é um processo passivo, mas impõe a transformação apropriada da reali­ dade, no sentido do princípio do prazer. Esta é uma atividade egóica que envolve fatores como pensamento, razão, m em ória, ação social etc. As pulsões egóicas de conservação são as primeiras, historicamente, a se regularem pelo princípio da realidade. As pulsões sexuais defron­ tam-se com este princípio mais tarde, no desenvolvimento ontogenético. Na verdade, nunca se regulam totalm ente pelo mesmo, m antendo, sempre, uma atividade de fantasia realizadora do prazer. A questão que se coloca, prim eiram ente, é: de onde o Ego retira energia para o princípio da realidade? Do exterior não pode ser, pois a única energia de que o organismo dispõe é a das pulsões do Id. Logo, esta

114

energia do princípio da realidade será derivada secundariamente das pulsões sexuais, que se voltarão contra a mesma, de uma forma dessexualizada. Mas este é o processo da formação reativa. Segundo Reich. ele levará, inevitavelmente, à estase da energia libidinal. Assim, a energia que será efetivamente empregada na transformação social pelo princípio egóico da realidade, entrará nas características descritas do desempenho reativo, sem transformação efetiva, com uma baixa na capacidade geral, devido a um sentim ento de impotência etc. O adiamento da realização das pulsões sexuais, im posto pela repres­ são sexual vigente na moral social burguesa autoritária, é fator neurotizante, enquanto formação reativa. Reich não discute a existência de um princípio auto-regulador da realidade; mas este deve formar par com o princípio do prazer - com o proposto pelo próprio Frcud - e não submetê-lo à realidade, entendida com o a moral dominadora existente na sociedade - com o decorre do caminho adotado pelos psicanalistas, seguindo a idéia da condenação ou repressão. O próprio Freud propõe ambas as alternati­ vas: de acordo com o princípio da realidade, ou o Ego adia e desvia a satisfação direta das pulsões, ou, consciente ou pré-conscientemente, reprime-as pela atividade da razão. Estabelece-se, desta forma, uma oposição entre Natureza e Civili­ zação, com o se uma só se realizasse com certo prejuízo da outra. A própria Ciência, com o produto do trabalho humano, pode acabar se sub­ metendo ãs exigências da Civilização. Para Reich, foi esse o destino final da Psicanálise: as pressões sociais contra a revolução sexual - consequência natural da teoria da libido - levaram os psicanalistas à crescente desxualização da energia sexual, adotando propostas teóricas que possibilitavam a conciliação entre libido e moral sexual repressiva. Para Reich, o princípio da realidade está diretamente ligado ao que chama de "natureza social do hom em ” . Ou seja, com sua economia sexual equilibrada — que supõe a realização dos impulsos genitais - , o homem será capaz, por si só, de inibir seus impulsos anti-sociais, que são as pulsões pré-genitais, sem necessidade de repressão. Isto porque estas pulsões perdem sua prevalência com a realização genital. Podem, então, submeter-se ao princípio da realidade, gratificando-se satisfatoriamente, quer pela sublimação, quer pelos jogos sexuais integrados ã relação sexual genital. Este princípio da realidade implica na ação social crítica em favor da liberação sexual e m anutenção de uma sociedade não repressora, onde seja possível a auto-regulação do próprio grupo social. Assim, desenvolve-se a Civilização em com plem entariedade com a Natureza Humana, sem prejuízo de parte a parte. A energia sexual flui livremente entre o trabalho e a relação sexual, predominando a capacidade de amar e o sentimento de potência. 115

13.3.

A organização social e o inconsciente Reich destaca que o inconsciente, para Freud, não é uma entidade

metafísica, mas um produto da relação do indivíduo com a sociedade. 0

homem possui, ao nascer, duas pulsôes básicas: a de autoconser*

vação (fom e-nutrição) e a sexual. Todas as demais são derivativas secundá­ rias destas. A pulsão sexual apóia-sc. de alguma form a, sobre a de autoconservação. Reich tenta relacionar esta últim a afirmação com a tese semelhante de M arx, segundo a qual a necessidade de alimentar e o modo de produção adotado para satisfazé-la são a base infraestrutural de toda a formação da superestrutura social, inclusive da mora) reguladora da satisfação sexual. A relação das pulsôes sexuais com esta superestrutura social pode ou não envolver contradições, segundo a forma de organização da socie­ dade. O que vemos na sociedade capitalista é a existência de uma superes­ trutura mora! inibidora dos processos sexuais naturais. Desta oposição, veiculada, desde o nascimento, por uma educação repressora social - con­ centrada, já de in ício, na célula fam iliar, que reproduz a moral social —, nasce a necessidade, no indivíduo, de impedir a própria realização sexual. Este im pedim ento é tanto maior no bebê, na medida em que seu Ego é fraco e está ainda em formação. A o nível psicológico» tal impedimento constitui-se no processo denominado, por Freud, de recalcamento origi­ nário ou primário (Urverdrangung). Este processo torna-se possível por um sistema de “ pára-excitações" (em alemão, Reizschutz, que, literal­ m ente, significa proteção contra excitação). O mecanismo do recalcamento originário seria, basicamente, o de contra-investimento, ou seja, a utilização de uma energia pulsional que se liga a uma representação, uma situação, um com portam ento m otor etc., investida contra si própria, de forma a impedir o acesso à consciência de tal representação ou m otilidade. Desta forma, ocorre um bloqueio à excitação e à sua resposta (pára-excitação), fixando a energia ao seu objeto, porém, sem acesso à consciência. Os primeiros contra-investimentos resultantes das pára-excitações constituem o recalca­ m ento originário e, portanto, a origem do inconsciente. Segundo Reich, a ligação deste processo, que se opera nas pulsôes sexuais, com as pulsôes de autoconservação é evidente: o recalcamento origi­ nário serve à função autopreservadora de im pedir as sensações ou excitações desagradáveis, criadas pela repressão do meio social à pulsão (pára-excitações servindo ao princípio do prazer). Para Freud, todo o recalcamento posterior, o recalcamento propria­ mente dito, dá-se por duas forças de mesmo sentido: uma pressão do meio

116

exterior sobre o conteúdo a recalcar (repulsão da consciência), e uma atração exercida pelos núcleos inconscientes antes constituídos (como resul­ tado do recalcamento prim ário). Partindo das formulações freudianas sobre recalcamento primário, Reich busca deixar sempre claro que a formação do inconsciente deve*se à repressão social das pulsões sexuais. De outro lado, vê uma distinção básica no mecanismo energético das duas pulsões. que explica por que as pulsões sexuais movem a força produtiva do homem e do seu psiquismo. enquanto as pulsões de conservação constituem, apenas, a base da necessidade sobre a qual se assentam a ideologia e o modo de produção, não desempenhando nenhum papel im ediato na formação do psiquismo: a necessidade alimentar corresponde a uma diminuição da tensão interna pelo acúmulo de energia, a necessidade sexual corresponde a uma diminuição da tensão pela descarga da energia (ver fórm ula tensão-carga-relaxamento, à p. 102). Assim, a energia sexual é o agente organizador do psiquismo, e o seu recalcamento é responsável pela origem do Inconsciente. Outra diferença básica entre a pulsão sexual e a de conservação, é que esta não pode ser “ recalcada", pois exige satisfação direta para a sobrevivência do organismo; já a pulsão sexual é m uito mais móvel, permitindo adiamentos ou desvios em seu trajeto, até a satisfação. P ortanto, as pulsões sexuais, de um lado, e os sistemas sociais, de outro, são os responsáveis pela formação do conjunto psíquico. Porém, assim como a superestrutura social não foi sempre como a conhecemos, comportando uma gênese dialética, da mesma forma, os processos psí­ quicos não com portaram sempre os mesmos conteúdos hoje conhecidos. Esta compreensão coloca em cheque, por um lado, conceitos fundamen­ tais como o com plexo de Édipo - fundado que está em uma superestru­ tura social específica, organizada sobre a família compulsória e o casa* mento monogámico, de que deriva a situação triangular. De outro lado, a perspectiva de uma gênese do “ modo de produção" psíquico nos per* mite

avaliar

as origens históricas da neurose (o nascimento da moral

sexual autoritária que provê, através do recalcamento e das formações rea­ tivas, a energia sexual necessária para reativação das fixações pré-genitais) e antever mudanças sociais que viriam a eliminar suas fontes, psicoprofilaticam ente. A análise das origens da neurose coloca em questão as origens do complexo de É dip o, que assume, para Freud, papel central na estrutura­ ção psíquica, bem como as origens da família triangular que está em sua base. 117

13.4.

A organização social e o complexo de Edipo

Em contato com o materialismo dialético marxista, Reich localiza a função da Psicanálise: Marx vê o fenômeno material como determinante da ideologia social. Porém, não é objeto da Economia Política, mas da Psicologia, descobrir como a infraestrutura econômica se infiltra no sistema psíquico, de tal forma que, em seu grupo social, o indivíduo reproduza, com seu comportamento, a ideologia da classe dominante. A determinação social do inconsciente descrita acima vem. justa­ mente. estabelecer esta relação. O estudo comparativo da Psicanálise e do Marxismo mostra o acordo de seu modelo teórico com os princípios da dialética materialista. Por exemplo, o desenvolvimento do sintoma neuró­ tico é dialético, pois é dado pela contradição pulsão-recalcamento, que é superada pelo - e simultaneamente contida no - sintoma neurótico; a libido narcísica e a libido objetai seguem o princípio dialético da identidade dos contrários etc. • No entanto, o único princípio que parece fixo e imutável, fugindo às leis da dialética, é o complexo de Edipo. Isto parece contrário a toda a explicação dialética dos processos mentais. Nessa linha de pensamento, ou o Édipo é uma forma a-histórica, imutável na natureza humana, ou a estrutura familiar que constitui a base triangular do complexo é que permanece imutável. A primeira hipótese contradiz a perspectiva dialética dos fatos psíquicos; a segunda contradiz a dialética dos fatos sociais. A solução deste impasse aparente está na análise da sociedade em que Freud se baseou para a postulação da situação triangular como base da vida psíquica. De fato, a família assim estruturada compõe a base da sociedade patriarcal, onde predominam os direitos da propriedade privada, mantidos através do casamento monogâmico. No entanto, na sociedade matriarcal a situação é bem outra. Reich analisa “A origem da família", de Engels, e o estudo etnológico de um povo primitivo, habitante das ilhas Trobriand, a noroeste da Melanésia, realizado por Bromislaw Malinovski. Estas análises ratificaram a conclusão de que a estruturação familiar cons­ titui realmente a superestrutura ideológica de uma infraestrutura econômica, submetendo as pulsões sexuais a um modo de produção específico, vincula­ do à satisfação das pulsões de autoconservação (Reich, s/d).

* Não nos alongaremos nesta comparação. Remetemos o leitor interessado ao livro Materialismo Dialético e Psicanálise (Reich, 1977).

118

Os

trobriandeses

constituem, inicialmente, uma sociedade onde o

modo de produção é comunista (comunismo prim itivo), onde as necessida­ des alimentares são supridas por um sistema de trocas e organização do trabalho. O sistema social é constituído por clãs e subclãs, a partir da m ulher, cujo pape! na gestação dos filhos é reconhecido. A participação do homem na geração de filhos não é compreendida, e o “ pai” é entendido como um amigo do clã. Não há situação triangular, donde as pulsões sexuais não se organizam em torno do complexo de Édipo. A moral sexual é liberal desde a infância, não havendo repressão social às relações sexuais adolescentes. Não se valoriza a virgindade, ou a castidade, ou a monogamia. Em contrapartida, Reich não encontra, na descrição de Malinovski. sinais de perversões ou neuroses. Com a evolução da tecnologia de produção e da necessidade de trocas com outras tribos, surge a necessidade de acúmulo de bens para troca, o que se torna possível dentro de um clã. A origem do casamento monogâmico é bastante complexa e foge a nossos objetivos neste livro. Porém, cabe estabelecer a relação entre o acúmulo de bens de troca e a origem do dote m atrimonial. O casamento prim itivo é criado a partir da necessidade de troca de produtos com outros clãs, com uma espécie de contrato representado pelo dote matrimonial da m ulher. A necessidade de acumulação dessas primitivas mercadorias (bens de uso transformados cm bens de troca) leva à exigência de monogamia, que possibilita a concentração da riqueza. D a í deriva a transição da sociedade m atriarcal, ou de herança m atrilinear, para a patriarcal. A propriedade privada de bens de troca impõe uma ordem nos laços sexuais e, “grosso m o d o ” , dá origem aos primórdios da repressão sexual, exi­ gindo a monogamia (que cria o adultério) e a virgindade da mulher até o casamento (que dá origem á prostituição para satisfazer o homem). Este

processo

é,

evidentemente,

extremamente

intrincado,

mas

importa-nos as conclusões tiradas por Reich a partir destes estudos: 1. A organização da vida sexual na sociedade é determinada por relações econômicas, que tém a ver com as pulsões de conservação ou necessidades alimentares. 2. O complexo de Édipo não é inerente à natureza humana, mas, sim, resultado de uma determ inada organização econômica, com sua conseqüente organização sexual: casamento compulsório monogâmico e proibi­ ção do incesto. 3. A origem da repressão sexual remonta á passagem da sociedade matriarcal para a patriarcal, com o surgimento da mercadoria como bem de troca e da propriedade privada, substituindo historicamente o comunismo prim itivo pelos prim órdios do capitalismo. 119

4. A regulação moral da vida sexual, dada a economia específica da sociedade burguesa, é condição para a manutenção deste modo de produção. Portanto, o recalcamento das pulsões sexuais é necessário, não por estes impulsos serem anti-sociais, mas por serem contrários à organização espe­ cífica do modo de produção capitalista. 5. A família monogâmica compulsória constitui o núcleo básico de propagação da ideologia da classe dominante, através da educação sexual repressiva. O complexo de Êdipo origina-se aí. com base na repressão das pulsões sexuais, mediante uma condição superestrutural específica do modo de produção capitalista. Este estabelece um modo de satisfação das pulsões sexuais, pela forma de estruturação da família. 6. A inibição precoce das pulsões sexuais, submetidas, portanto, a um modo de satisfação das pulsões de conservação, modifica a estrutura psí­ quica, enraizando no indivíduo a ideologia conservadora. O que permitirá, por sua vez, que ele constitua nova família, quando adulto, perpetuando esta ideologia. 7. Do ponto de vista psíquico, o recalcamento das pulsões sexuais é possível através de formações reativas, que impedem a plena descarga sexual. Cria-se uma estase da energia libidinal, que irá ativar os impulsos pré-genitais, dando origem a perversões e atos criminosos — quando não inibidas e a sintomas neuróticos, ou à formação do caráter neurótico, aparente­ mente adaptado ao social - quando inibidas. 8. A Psicanálise tem por efeito tornar as pulsões - recalcadas no inconsciente — conscientes e atuantes, restabelecendo o pleno equilíbrio econômico-sexual e a plena potência orgástica, bem como restabelecendo a capacidade criativa de trabalho e ação social, através da sublimação das pulsões pré-genitais. No entanto, o livre fluxo da energia sexual implicará um padrão moral conflitante com a repressão social da sexualidade, que mantém o modo de produção capitalista. 9. A Civilização não exige o recalcamento das pulsões sexuais para seu desenvolvimento. Pelo contrário, a evolução cultural torna-se possível pela capacidade de trabalho não-reativo, resultante do livre fluir energético. Aqui, Civilização não é entendida como sinônimo de Sociedade Capitalista. 10. Um trabalho no campo da psicoprofüaxia das neuroses é neces­ sário e possível, através da Revolução Sexual, eliminando o casamento compulsório e monogâmico; possibilitando à juventude uma evolução sexual libertadora; criando infra-estrutura social para uma relação sexual livre de tensões, ou seja, propiciando espaços adequados acessíveis para a prática sexual, tornando disponíveis métodos anticoncepcionais seguros e eliminando a proibição do aborto. Porém, a mudança da moral sexual 120

está diretamente condicionada à mudança do modo de produção capita* lista para o comunista, pela abolição da economia mercantil. Assim.

Reich

antevê

a possibilidade da existência de um Novo

H om em , obrigando-nos a rever os parâmetros de nossa compreensão da personalidade humana.

I? 1

14 Referências bibliográficas

Freud. S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de S. Freud. Rio de Janeiro. Imago. 1974. Reich. W. Analisisde! Caracter. 5?ed. Buenos Aires, Paidós, 1975a. Reich. W. >4 Função do Orgasmo. São Paulo, Brasiliense, 1975b. Reich, W. El Caracter G enitaly Caracter Neurotíco. Buenos Aires, Paidós, 1976. Reich. W. Matehalismo Dialético e Psicanálise. 3?cd. Lisboa, Presença, 1977. Reich, W. A Irrupção da Moral Sexual Repressiva. São Paulo, Martins Fontes, $/d.

122

PARTE TEORIA DA PERSONALIDADE EM CARL GUSTAV JUNG Lúcia Maria A zevedo Magalhães

15 Biografia

Carl Gustav Jung nasceu em 26-07-1875, na Turgóvia, Suíça. Aos 4 anos, sua fam ília mudou-se para Klein-Huningen, nos arredores de Basiléia, onde Jung fez todos os seus estudos. Desde m uito cedo, Jung interessou-se por Ciências Naturais, Filosofia e Arqueologia. Sentiu também, desde criança, uma profunda inquietação religiosa, que não podia ser compartilhada com seu pai, pastor luterano que, a seus olhos, prendia-se à fé e aos dogmas. Assim, com uma grande quantidade de interesses e anseios, a escolha de uma profissão não foi fácil. Em suas Memórias (Jung, 1981), conta que o tentavam os estudos de História, Filosofia e Arqueologia. Porém, seus recursos só permitiam que estudasse em Basiléia. Desta forma acabou se decidindo por medicina, pois pensava que podería se especializar, futuramente, em direções que melhor o satisfizessem. Ao se formar, estava ainda indeciso sobre qual especialidade seguir. Aparecera uma boa oportunidade de ser assistente de um de seus profes­ sores. Porém, ao estudar para o exame final, deparou-se com o tratado de psiquiatria de K rafft-E bing. Ao ler o prefácio encontrou idéias que o tocaram profundamente, e compreendeu que devería escolher Psiquiatria: “ Somente nela poderíam confluir os dois rios do meu interesse, cavando seu leito num único percurso. Lá estava o campo comum da experiência dos dados biológicos e dos dados espirituais, que até então eu buscara inutil­ mente” (p. 104). F oi, portanto, a partir do seu interesse pelo homem, tanto em sua dimensão biológica quanto espiritual, que Jung chegou à Psicologia. Em 1900, Jung concluiu o curso médico e deixou Basiléia para ocupar o cargo de segundo assistente no Hospital Psiquiátrico Burgholzli. em 125

Zurique. Este hospital vivia então um período de intensa atividade cientí­ fica, sob a direção de Eugen Bleuler. Blculer tentava proporcionar à Psi­ quiatria uma base psicológica, não se contentando com a simples descrição dos sintomas das doenças mentais. Recorria-se, na época, à teoria do associacionismo, que explica a vida psíquica por combinação de elementos mentais segundo leis de contigüidade, semelhança etc. Na base dessa teoria, eram feitas experiências de associação verbal, que permitiram a Bleuler. com seus colaboradores (entre os quais Jung) descobrir que o distúrbio comum às diversas formas da então chamada demência precoce é a dissociação psí­ quica, propondo o termo esquizofrenia. Nestas experiências de associação, o experimentador preparava uma lista de palavras isoladas (palavras indutoras) e solicitava ao sujeito que respondesse a cada uma com uma única palavra, a primeira que lhe ocor­ resse (palavra induzida), medindo-se o tempo de reação deconido entre a palavra indutora e a induzida. Jung, porém, desde o início da sua carreira psiquiátrica havia se interessado pelos estudos de Freud. Já havia lido ^ Interpretação dos Sonhos em 1900. Ao fazer essas experiências, Jung começou a se interessar pelos vários incidentes que ocorriam; tempos de reação muito longos a palavras, reações do sujeito tais como rir, corar, responder com uma frase. A partir destas observações, levantou a hipótese de que as palavras que despertam essas reações deveríam estar atingindo algum conteúdo emocional da pessoa, ou áreas de bloqueio afetivo, sem que o sujeito tivesse consciência do que se passava, ou qual o conteúdo que havia sido despertado. Jung viu que suas descobertas estavam em concordância com as de Freud sobre o inconsciente e os mecanismos de repressão. Foi a partir disso que se aproximou da Psicanálise. A partir destas descobertas, os experimentos de associação transfor­ maram-se, em suas mãos, em um método de exploração do inconsciente. Jung começa a observar quais as palavras indutoras que despertavam reações emocionais, tentando a partir destas descobrir qual o conteúdo emocional inconsciente que estava sendo atingido. Formulou o termo “complexo psíquico” para designar estes conteúdos, definindo-os como um “agrupa­ mento de conteúdos psíquicos carregados de afetividade” . O complexo originar-se-ia de uma situação psíquica incompatível com a atitude e a atmosfera consciente habituais, começando com um núcleo possuidor de intensa carga afetiva que, secundariamente, vai estabe­ lecendo associações com outros elementos afins, formando uma verdadeira “psique parcelada'1. 126

Todos estes conceitos estavam em concordância com a teoria de Freud do inconsciente reprimido. Jung interessou-se, particularmente, pelo grau relativo de autonomia do complexo, com sua capacidade de irromper na consciência, provocando atos falhos, perturbações na memória, distra­ ções, ou sintomas. Em 1906, Jung publica o Estudo sobre Associações, que envia a Freud, marcando o início de uma correspondência entre os dois. Prosse­ guindo seus trabalhos, publica, em 1 907,/I Psicologia da Demência Precoce e, cm 1908, O Conteúdo das Psicoses. Nestes estudos, conclui que, na demência precoce, não há sintoma desprovido de base psicológica ou significação. Em 1907, Jung entra em contato pessoal com Freud, visitando-o em Viena. Deste contato nasceu uma estreita colaboração, que durou de 1907 a 1912. Freud via em Jung um sucessor, alguém que poderia continuar a sua obra. E Jung via em Freud como que um pai espiritual, ou um mestre. Por isso, conta-nos em suas memórias que, apesar das reservas que fazia à teoria sexual de Freud, e de sentir que a formação e as “atitudes mentais’’ de ambos eram muito diferentes, não se animava a expor seus pensamentos e confrontá-los dirctamentc com ele. Em 1909, por ocasião do 209 aniversário da Clark Univcrsity. ambos foram convidados para dar conferências e viajaram juntos para os EUA. Ali Freud pronunciou as famosas “Cinco Conferências sobre Psicanálise” e Jung apresentou seus trabalhos sobre associações verbais. Durante essa viagem, Jung teve um sonho que foi particularmente importante para o desenvolvimento posterior de sua teoria e para o rompimento com Freud. O sonho era o seguinte: “Encontrava-se em uma casa de dois andares, que era a sua casa. Inicialmente, está no 29 andar, decorado com quadros e móveis do século XVIII. Descendo as escadas, chega ao andar térreo, cuja atmosfera é medieval, datando do século XV ou XVI. Ao explorá-lo, en­ contra uma porta e, ao abri-la, encontra uma escada que conduz à adega. Ali encontra uma sala antiga, com teto em abóbada e piso de pedra, remon­ tando à época romana. No chão, encontra uma argola de feno; puxando-a, desloca uma pedra sob a qual encontra outra escada. Descendo, vai dar a uma gruta, em cujo solo encontra restos de cerâmica, ossos espalhados e dois crânios humanos” . Jung interpretou esse sonho como um diagrama estrutural da psique. 0 segundo andar representaria sua situação consciente, sendo que o mobi­ liário condizia bem com a sua formação cultural, ligada aos autores do século XVIII e início do século XIX. Os andares inferiores indicavam épocas anteriores e níveis de consciência ultrapassados. Quanto mais descia. 127

mais se aprofundava em mundos antigos, até chegar a uma espécie de caverna pré-histórica, isto é, o mundo do homem primitivo que existia nele, e que não podia ser atingido pela consciência. Por causa deste sonho, pensou pela primeira vez na existência de um a priori coletivo da psique pessoal. Desenvolveu c consolidou esta idéia, mais tarde, na teoria dos arquétipos. Este sonho também despertou seu antigo interesse pela Arqueologia, pela Mitologia e pela Filosofia. De volta a Zurique, dedicou-se a estudar um amplo material m itológico e gnóstico. Queria investigar os sím bolos que os homens vêm usando com objetivos religiosos ou mágicos. Quando fazia este trabalho, deparou-se com um estudo de caso publicado por Floum oy, que trazia a descrição de fantasias de uma jovem americana, Miss Miller. Jung impressionou-se com o caráter m itológico dessas fantasias. Tom ou então este material e utilizando-se de paralelos m itológicos, elaborou temas significantes. Deste trabalho, nasceu seu livro M etam orfoses e S ím bolos da Libido, publicado em 1912. Este livro marcou a sua ruptura com Freud, que já se esboçava. A í apresentava pontos de vista profundamente diver­ gentes, principalmente quanto à energia psíquica e ao papel da sexualidade na Psicologia. A partir desse m om ento, começa para Jung uma fase difícil. Ao romper com Freud e com o m ovim ento psicanalítico, encontra-se, em certo sentido, órfão, tendo que se decidir a seguir sozinho seu próprio caminho. Para isso, deveria tentar alcançar as raízes do seu envolvim ento pessoal com suas pesquisas. Sente-se perdido, e toma então a decisão de abando­ nar-se, conscientem ente, ao impulso do inconsciente. Neste processo, surgiram lembranças de sua infância, acompanhadas de certa emoção. Eram lembranças de um período em que costumava fazer brincadeiras de construção. Decide seguir essas lembranças, atualizá-las. Depois de vencer grandes resistências, começa a colecionar pedras e a brincar com elas, com o quando criança. Gradualmente, sua imaginação vai se tor­ nando mais nítida e mais rica. Aos poucos, cessa de relacionar-se à brinca­ deira. Jung utiliza escrita, pintura e escultura para clarificar os produtos de suas vivências interiores, sonhos e fantasias. Neste processo de confronto com o inconsciente, a atitude de manter a consciência sempre vigilante, firmemente enraizada na realidade externa, no seu trabalho e na família, deu a Jung o apoio necessário para deixar os conteúdos inconscientes emergirem. Vivenciando com tal intensidade este processo interno, assaltado por fantasias e sonhos impressionantes, Jung compreendeu que suas buscas científicas eram a única possibilidade de sair do caos de imagens. Procurou, então, transformar cada imagem, cada 128

conteúdo, compreendê-los na medida do possível e, principalmente, realizá-los na vida. Pode-se dizer que toda sua obra foi o resultado de elaborar c com­ preender as coisas que experimentava, dentro da ótica científica: “Todos os meus trabalhos, tudo o que criei no plano do espírito provém das fantasias c dos sonhos iniciais. Isso com eçou em 1912, há cerca de cinquenta anos. Tudo o que fiz posteriormente em minha vida está contido nestas fantasias preliminares, ainda que sob a forma de em oções ou de imagens” (Jung, 1981, p. 170). Este período de ativação e confronto com o inconsciente durou até 1917. Jung, então, começava a tomar uma posição objetiva com relação às suas imagens e refletir sobre elas. O primeiro problema que se propunha era: ” 0 que fazer com o inconsciente?” Em resposta, nasceram vários ensaios e conferências, dos quais se destaca “A Estrutura do Inconsciente” , publicado em 1916, em Paris, e posteriormente ampliado num livro de fundamental importância para a compreensão da sua teoria psicológica, O Eu e o Inconsciente, publicado em 1928. Paralelamente, dedica-se aos trabalhos preparatórios do seu livro Tipos Psicológicos (1 9 2 0 ). Na gênese desta obra, teve papel importante uma tentativa de explicar as diferenças entre sua psicologia, e a de Freud e de Adler, a partir das diferenças nas atitudes básicas de cada um para com os objetos, os outros, e consigo mesmo. À medida em que Jung vai se aprofundando em suas vivências inte­ riores e tenta compreendê-las, começa a buscar premissas, raízes históricas deste processo, analogias em outras épocas e outras culturas. Começava já a perceber que o inconsciente é um processo e que a relação do Ego consciente com os conteúdos inconscientes desencadeia uma transforma­ ção, cuja meta é a realização da personalidade total. No entanto, faltava-lhe uma base histórica para estas idéias, pois se este desenvolvimento é algo inerente à natureza humana, deveria encontrar um testemunho histórico que o confirmasse. Em 1928, seu amigo Richard Wilhelm, sinólogo, envia-lhe um tratado alquimista chinês de origem taoísta, ”0 Segredo da Flor de Ouro” , pedin­ do-lhe para escrever um comentário (publicado em 1929). Este livro for­ neceu uma confirmação inesperada de suas reflexões, e permitiu-lhe apro­ ximar-se da alquimia. Assim, seu interesse por esta antiga ciência, consi­ derada apenas uma precursora obscura da Química, nasceu da necessidade de relacionar o que vivenciava internamente a uma fonte paralela. Ao apro­ fundar seu estudo dos antigos filósofos alquimistas, começa a encontrar cada vez mais analogia entre as suas percepções e aquelas imagens. Foi

129

uma investigação lenta e árdua, que o ocupou por mais de dez anos, da qual surgiu o trabalho Psicologia e A Iquimia, publicado em 1944. Desde m uito cedo, as preocupações de Jung relacionavam-se com a concepção do mundo e com o confronto da Psicologia com o problema religioso. Jung concebia a religiosidade como uma função psíquica natural e, como tal. objeto de interesse da Psicologia. Discordando de Freud. Jung via na religiosidade um impulso vital e tão natural quanto a sexualidade, e não um fru to da repressão e da sublimação do instinto. Ele próprio, um homem religioso, tentou abordar cientificamente o problema psico­ lógico da experiência religiosa. A este respeito, escreveu o livro Psicologia e Religião. Em suas pesquisas sobre alquimia, Jung já encontrara uma base e um paralelo para suas idéias sobre o processo de desenvolvimento e transforma* ção da personalidade. Prosseguindo seus estudos, procurou encontrar também uma correspondência ao processo que ocorria especificamente durante a psicoterapia. Este processo centra-se no problema da transferên­ cia. Na alquimia, Jung encontra uma analogia na representação de conju nctio (união) e desenvolveu-a no livro Psicologia da Transferência (1946). Aprofundando e ampliando ainda mais suas pesquisas sobre o pro­ blema religioso, escreve A io n (1951), em que retoma o problema de Cristo e sua simbologia; e Resposta a Jó (1952), em que reflete sobre o lado claro e o lado escuro da imagem de Deus. Em 1955, quando tinha 80 anos, publica M ysterium Conjunctionis, que constitui a conclusão do confronto da alquimia com a Psicologia do inconsciente. Sobre este livro, Jung (1981, p. 194) escreveu: “ Só com o Mysterium Conjunctionis minha psicologia fo i definitivamente colocada na realidade e estabelecida em seu conjunto, graças aos seus fundamentos históricos. (...) No momento em que atingi o fundo sólido, toquei ao mesmo tempo o lim ite extremo daquilo que era, para m im , cientificamente atin­ gível: o transcendente, a essência do arquétipo em si mesmo, a propósito do qual não se podería form ular mais nada de cie ntífico” . Jung permaneceu ativo até quase a sua m orte, escrevendo ainda sobre os acontecimentos contemporâneos, interessando-se pelo fenômeno dos discos voadores, pelos recentes desenvolvimentos da Física, e contri­ buindo ainda para a compreensão da esquizofrenia. Seu últim o livro é a autobiografia, onde se percebe com clareza como sua vida e sua obra são inseparáveis. Em 1961, Jung adoeceu, e morreu em 6 de junho, quando estava com quase 86 anos, legando-nos uma obra vastíssima, que abrange 18 volumes na edição inglesa. Sobre seu trabalho, ele escreveu em suas 130

m em ó rias: “ M inha vida, impregnada, tecida, unificada por uma obra, foi cen trad a num objetivo: o de penetrar no segredo da personalidade. Tudo se exp lica a partir desse ponto central, e toda a minha obra se relaciona c o m esse tem a” .

131

16 A teoria psicológica de Jung: principais conceitos

Jung concebia a personalidade como sinônimo da dimensão psíquica do ser humano, em sua totalidade. Para ele, a Psicologia é uma ciência que tem como objeto a psique, a totalidade da estrutura anímica do ser humano englobando, portanto, tanto fenômenos conscientes quanto inconscientes. Jung começou fazendo experimentos da associação, continuou com a prática da Psicanálise e, posteriormente, com sua própria auto-análise. Na base dessas experiências, desenvolveu generalizações sobre as estruturas e processos psíquicos. Um dos pontos fundamentais de sua obra, e que o levou a novo enfoque na Psicologia, foi a noção de que, assim como os conteúdos cons­ cientes podem mergulhar no inconsciente, há conteúdos novos, que jamais foram conscientes, que podem surgir do inconsciente. Assim, Jung for­ mulou a idéia de que o inconsciente não é mero depositário de experiên­ cias passadas, desejos ou instintos reprimidos. Também é criativo, no sentido de que pode conter as sementes de futuras situações psíquicas e idéias novas. Para Jung, o inconsciente é uma parte tão vital e tão real da vida de uma pessoa quanto a consciência e o mundo do Ego. Um dos exemplos desta capacidade do inconsciente é que em nossa vida diária, os dilemas e conflitos com que nos defrontamos, muitas vezes, resolvem-se a partir de inspirações surpreendentes, que aparecem prove­ nientes do inconsciente. Muitos artistas, filósofos e cientistas devem algu­ mas de suas idéias a este tipo de inspiração, ou a sonhos ou visões. Ao se ocupar dos processos inconscientes que ocorriam em seu íntimo, assim como no de seus pacientes, Jung percebeu que o incons­ ciente se transforma e provoca transformações. Esta transformação não é aleatória. A despeito das diferenças individuais, segue uma determinada 132

direção que. aos poucos, foi se tornando clara para ele. Esta transforma* çâo, este desenvolvimento psíquico, é um crescimento em direção ao “ si-mcsmo" (scl/Y que Jung define como a expressão da totalidade psíquica (consciente e inconsciente). É. ao mesmo tempo, o centro desta, assim como o Ego é o centro da consciência. Este processo de desenvolvi­ mento e totalização da personalidade foi chamado por Jung de “processo de individuação". Este conceito é a transposição, para a Psicologia, da idéia de que “ todo scr tende a realizar o que nele existe em germe, a crescer, a comple* tar-sc. Assim é para a semente do vegetal e para o embrião do animal. Assim é para o homem, quanto ao corpo e quanto â psique” (Silveira, 1971). 0

hom em , porém , possui a consciência e, através dela, é capaz de

participar ativamente de seu desenvolvimento. Deste modo, a partir do confronto

e

do

relacionamento

entre

consciente e inconsciente, vai

surgindo um novo amadurecimento e uma síntese cada vez maior. O processo de individuação é o eixo de toda a Psicologia junguiana, e é o ponto Ge referência para a melhor compreensão das suas conceituações.

16.1.

Libido — energética psíquica Um

dos pontos fundamentais de discordância entre a Psicologia

analítica e a Psicanálise está na definição de libido. Foi no livro Metamor­ foses e Sím bolos da L ib id o que Jung apresentou seu conceito de libido. Para ele, ela equivale à energia psíquica, entendida de modo amplo, e não com significação em inentemente sexual, como para Freud? Temos

numerosos

impulsos:

de

conquista,

agressivos, eróticos,

fome etc. Todos são motivados por um tipo de manifestação de energia, e o significado específico da sexualidade se dissiparia, se todos esses diferentes impulsos e comportamentos fossem incluídos em sua definição. A energia é a quantidade, ou carga, que pode manifestar-se através da sexualidade ou de qualquer ou tro instinto. A libido é compreendida, então, como a intensidade do processo psíquico, o valor energético que se manifesta em qualquer área, como na da fome, do poder, do ódio, da sexualidade, da religião etc., sem que se restrinja a uma pulsão específica.

Lembremos que estamos nos referindo a Freud em 1912, ano em que houve o rompimento com Jung.

133

Jung concebe o psiquismo com o um sistema energético fechado, possuidor de um potência) que permanece o mesmo durante toda a vida do indivíduo. Isto advém do fato de considerar “psique” com o a totalidade da estrutura psicológica do ser humano, a “área” onde se dão os fenô­ menos psíquicos, como que representando um espaço interno. A energia deste espaço é a libido, que é então a energia dos processos vitais. A lei da conservação de energia (potencial constante) só vale se considerarmos consciente e inconsciente. Quando se rebaixa o nível da consciência, o inconsciente se aviva correspondentemente, como por exemplo na atividade onírica, ou nas fantasias, devaneios etc. Quando a energia se dirige para a consciência e dali investe sobre objetos externos, este movimento é chamado de progressão. Ao contrário, quando a libido se afasta dos objetos externos e viví fica conteúdos incons­ cientes, isto é chamado de regressão. Para Jung, a psique está em constante dinamismo, em constante movimento. Tanto o m ovim ento de progressão quanto o de regressão são movimentos normais, que ocorrem continua­ mente. Somente em casos em que há uma fixação ou estagnação da libido é que se tem uma condição patológica. 0 conceito de processo psíquico é fundamental para a compreensão do modelo teórico de Jung. Todas as manifestações vitais são compre­ endidas como consequência do entrechoque de forças antagônicas, em contínua tensão dinâmica. Desta tensão entre os opostos é que surge a energia para as atividades humanas. Em inúmeros sistemas filosóficos e religiosos, encontramos a mesma noção do princípio de opostos. Pode­ mos citar como exemplo os opostos de Yang e Yin, da filosofia chinesa, que traduzem as polaridades macho e fêmea, dia e noite, calor e frio, espírito e matéria etc. Os conflitos que vivemos originam-se da colisão de duas pulsões, por exem plo, dois deveres fundamentais, ou entre um dever e um desejo, fidelidade para consigo mesmo ou fidelidade para com outro etc. Muitas vezes, um dos pólos do conflito é inconsciente, e só podem os verificar indiretamente a sua carga energética, ou seja, a sua intensidade. Quanto maior é a tensão entre os pares de opostos, maior a energia liberada. Sem oposição, não há manifestações energéticas. Os contrários têm também uma função reguladora, expressa no fato de que tudo que é le­ vado a um extremo tende a transformar-se no seu contrário. Por exem plo, a cólera levada a seu extremo é seguida de calma, a pessoa que leva uma existência extremamente reprimida pode ter rompantes de liberação etc. Assim, a regressão é um quadro oposto ao da progressão, e uma se trans­ forma na outra, se a libido não for bloqueada.

134

Desta form a, o im portante para nosso desenvolvimento é se a partir do co nflito entre os opostos, estamos construindo novas sínteses que, por sua vez, irão polarizar uma outra situação, e assim por diante. Deste ponto de vista, o processo de individuaçâo é considerado um “ processo constante de

criação

de

novas sínteses, de integração progressiva de conteúdos

inconscientes carregados de energia, que leva a uma síntese continuamente crescente

entre consciente (com o Ego como centro) e inconsciente”

(Lacaz, 1978). O m ovim ento de progressão surge da necessidade vital de adaptação ao meio. Se, por alguma dificuldade da existência, este movimento em direção aos objetos externos fica bloqueado ou impedido, a libido se detém. Como conseqüência reativará conteúdos do mundo interno. Estes tanto podem ser os conteúdos reprimidos, pulsões sexuais infantis, atitudes ou desejos incompatíveis com a atitude moral consciente, quanto conteúdos inconscientes que nunca haviam sido “ energetizados” o suficiente para emergir. Estes conteúdos se apresentam à consciência sob forma de sím­ bolos, que são a “ linguagem” do inconsciente. É importante notar aqui que, para Jung, a linguagem simbólica do inconsciente não é o resultado do co nflito entre o desejo e a repressão, como para Freud, ou, “grosso m odo” , uma representação disfarçada do desejo, mas sim a melhor repre­ sentação possível do inconsciente que se torna disponível para a consciência. Os símbolos são multideterminados ç contém inúmeros significados, pos­ suindo, po rtanto, a capacidade de estimular a consciência a desenvolver novos significados a partir deles. A

partir do confronto e da elaboração destes conteúdos que se

apresentam à consciência sob a forma simbólica, o Ego pode integrá-los, removendo-se bloqueios e estagnações. Desta forma, as fases regressivas conduzem

não

apenas à recuperação

de possibilidades anteriores não

aproveitadas e elaboração de problemas anteriormente represados, mas também a uma autêntica renovação, sendo os símbolos o veículo desta renovação, verdadeiros transformadores de energia.

16.2.

Estrutura psíquica A partir da descoberta, no decorrer dos experimentos de associação,

de que existem fenômenos inconscientes que podem interferir em nossa vida

consciente, Jung

foi aos poucos aprofundando seus conhecimen­

tos sobre a psique humana e sobre as relações entre o consciente e o inconsciente. 135

Para Jung, então, a psique compreende tanto o campo da cons­ ciência quanto o inconsciente. No campo da consciência, temos o Ego como centro, sendo que este é o sujeito de todos os atos pessoais da cons­ ciência. Qualquer conteúdo psíquico consciente deve estar cm relação com o Ego. Esta conexão é o próprio critério da consciência, pois para que um conteúdo seja conhecido ele deve ser representado para um sujeito. Desta forma, o Ego não é equivalente ao campo da consciência, mas antes é o seu ponto de referência. O inconsciente é definido por Jung, portanto, pela falta de um atributo, pela falta de consciência. Na medida em que o limite da cons­ ciência é o desconhecido, chamamos tudo aquilo que não conhecemos, portanto não relacionado com o Ego, de inconsciente. 0 Ego, apesar de consciente por excelência, não é um fator simples. É complexo, dotado, porém, de unidade bastante coesa para transmitir impressão de continuidade e identidade consigo mesmo. É adquirido, empiricamente falando, durante a vida do indivíduo. Apesar de Jung não ter se detido muito sobre o Ego e como ele se desenvolve, interessando* se mais pelos fenômenos inconscientes e seu relacionamento com o pro­ cesso de amadurecimento da personalidade, deixou algumas indicações a este respeito. Para ele, o Ego se estrutura a partir do insconsciente, diferencian­ do-se e sempre se modificando no decorrer da vida; jamais é um produto acabado. Uma criança viria ao mundo num estado cm que não existe Ego. A partir da colisão com o ambiente, do que Jung chamou “ fator somático", definido como a totalidade dos estímulos endosomáticos (perceptíveis ou subliminares), forma-se aos poucos um "sujeito", que a princípio é identifi­ cado com o corpo. Uma vez estabelecido como sujeito, continua a se desen­ volver a partir de colisões subsequentes com o mundo externo e o mundo interno. Dentro do campo da consciência, o Ego possui o que chamamos vontade livre, não de um ponto de vista filosófico, mas antes psicológico, do sentimento subjetivo de liberdade e livre escolha. Mas assim como nossa liberdade se confronta com as exigências do mundo externo, também é limitada pelos eventos do mundo interno subjetivo. Da mesma forma que os eventos externos nos "acontecem", também o inconsciente age sobre o Ego como uma oconência objetiva, diante da qual nossa vontade pode fazer muito pouco. Podemos citar como exemplo os sonhos, fan­ tasias, idéias que nos "ocorrem", sentimentos que nos assaltam, ou mesmo lapsos verbais e sintomas. Como um fator consciente, o Ego podería ser descrito de forma exaustiva, pelo menos em teoria. Porém, isto nos daria um quadro apenas 136

incompleto da personalidade consciente, pois todas as características des­ conhecidas ou inconscientes para o sujeito estariam faltando. Assim, a personalidade como um fenômeno total não coincide com o Ego. ou com a personalidade consciente. É uma entidade que tem de ser distinguida destes.0

A esta personalidade total Jung chamou de self, ou

si-mesmo. O estudo e a descrição do si-mesmo é intrinsecamente limitado. Por um lado, não é possível fazer uma descrição geral do Ego, apenas uma descrição form al, já que uma de suas principais características é a indivi­ dualidade. Isto significa que o resultado da combinação dos diversos ele­ mentos que compõem o Ego é sempre algo individual e único, compor­ tando diferentes graus de clareza, colorido emocional etc. Por outro lado, uma descrição do inconsciente é impossível, uma vez que este é, por definição,

inconsciente.

Somente

temos acesso aos conteúdos incons­

cientes de maneira indireta, através das suas manifestações e representações à consciência. Por isto, muitas das conceituações acerca dos fenômenos inconscientes partiram da observação clínica de pessoas neuróticas ou psicóticas. Nestes distúrbios, o inconsciente se manifesta de forma mais direta e autônom a, fugindo ao controle da consciência, apresentando-se muitas vezes de forma incompreensível a nossos olhos. Foi Freud quem primeiro apagou a linha de demarcação, antes consi­ derada tão nítid a, entre a psique normal e a patológica, estendendo as suas descobertas no campo patológico também às estruturas e processos da psique “ norm al” . Com o o Ego é o centro da consciência, é o sujeito de todas as adap­ tações do indivíduo ao meio. Sendo seu papel tão importante, não é de se estranhar que por m uito tempo fosse considerado o centro da personalidade, e a personalidade consciente a única existente. Por isto, as alterações patológicas da vida mental eram vistas como algo inteiramente estranho à personalidade normal. A partir do final do século X IX , com o desenvolvimento da Psico­ logia, ficou provado empiricamente a existência de uma psique fora da consciência. Com esta descoberta, a posição do Ego tomou-se relativiza ja. Vale dizer, embora seja o centro da consciência, é questionável se realmente é o centro da personalidade total. Para Jung, o Ego, sendo apenas uma parte do self (todo), é subor­ dinado a este por definição.

* Estamos usando aqui o termo personalidade como Jung o utilizou, ou seja, como sinônimo de dimensão psíquica do ser humano.

137

Do ponto de vista da psicologia da consciência, o inconsciente pode se dividir em três grupos de conteúdos: 1. Conteúdos inconscientes, mas facilmente acessíveis à consciência. Por um esforço de vontade, podemos nos lembrar de coisas, ou trazer à consciência conteúdos que antes não estavam nos ocupando. Corresponde ao pré-consciente de Freud. 2. Conteúdos inconscientes não acessíveis voluntariamente. A exis­ tência deste grupo é inferida a partir das irrupções espontâneas do incons­ ciente (por exemplo, em sonhos, lapsos ou sintomas). 3. Conteúdos inconscientes que não são capazes de se tornarem cons­ cientes. Este é um grupo hipotético, estabelecido a partir da existência do segundo. Do ponto de vista da psicologia da personalidade total (self), porém, Jung estabelece uma outra divisão: 1. Uma psique extraconsciente cujos conteúdos são pessoais. 2. Uma psique extraconsciente cujos conteúdos são impessoais e coletivos. Este segundo grupo seria um substrato da psique, uma hipótese, segundo Jung. “ baseada nos dados empíricos e na alta probabilidade de que a similaridade geral dos processos psíquicos, em todos os indivíduos, deve ser baseada em um princípio igualmente geral e impessoal, assim como o instinto que se manifesta no indivíduo é apenas uma manifestação parcial de um substrato instintivo, comum a todos os homens” (Jung, 1982).

1 6.2.1. Inconsciente pessoal O inconsciente pessoal compreende as percepções e sentimentos sub­ liminares, traços de acontecimentos passados perdidos pela memória cons­ ciente e todo material que não atinge a consciência, por não possuir sufi­ ciente energia ou não estar devidamente diferenciado. A maior parte dos conteúdos do inconsciente pessoal, porém, são os conteúdos rejeitados pela consciência, ao longo da vida pessoal de cada um. É todo um conjunto de material mental e afetivo que, por ser incompatível com as intenções, ideais, ou sentimentos morais conscientes, são impedidos de se conscienti­ zarem e tornam-se, conseqüentemente, separados do Ego. Este impedimento da consciência se dá através dos mecanismos de defesa, dos quais a repressão é um exemplo. Estes conteúdos inconscientes formam então os complexos, que Jung começou a estudar a partir dos experimentos de associação verbal. A noção 138

de inconsciente pessoal de Jung corresponde aproximadamente ao conceito do inconsciente de Freud, sendo que a importante contribuição de Jung neste campo foi com relação à autonomia dos complexos, e sua tendência a personalizarem-se. formando verdadeiras “psiques parceladas” . Sua descrição é. cm linhas gerais, a seguinte: Os complexos originar-se-iam de um conflito, principalmentc dos vivcnciados na infância, embora também ।possam se originar de conflitos ou traumas posteriores. Em virtude desse conflito, um determinado conteúdo, carregado de intensa carga afetiva, scpara-sc da consciência c do Ego. permanecendo no inconsciente; esta­ belece numerosas relações secundárias com elementos afins, formando um todo relativamente coeso, uma verdadeira “entidade psíquica” , como Jung o chamava. Estas entidades possuem marcada autonomia. Aparecem e desapare­ cem independentemente da vontade do Ego, podendo irromper na estru­ tura da consciência. Neste momento, há uma diminuição da intensidade da consciência, e a pessoa pode se tornar desatenta, distraída, sem poder explicar o que se passa. Os primitivos referem-se a isto dizendo que uma alma os deixou, o que realmente exprime o fato de uma parcelada energia consciente ter se transferido para o complexo inconsciente. Este complexo, então, pode causar perturbações verbais, estados de excitação, fantasia, transtornos somáticos etc. Momentaneamente existe uma assimilação do eu ao complexo, isto é, uma modificação inconsciente do Ego, que se identifica com o complexo. Esta noção é a mesma da possessão, conhecida na Idade Média; há apenas uma diferença de grau. Na verdade, não somos nós que temos o complexo, este é que nos tem. Na linguagem comum, temos várias ex­ pressões que exemplificam este fenômeno. Quando alguém se encontra afetado ou dominado por uma emoção, dizemos: “que bicho te mordeu9 " ou “parece que está com o diabo no corpo” , ou “algo lhe subiu à cabeça”. Os complexos, então, do ponto de vista do Ego, tendem a ser per­ cebidos como uma entidade alheia, que se apodera de nós, razão pela qual Jung fazia uma analogia com os gnomos e duendes do folclore (o saci, no Brasil), diabretes que fazem “travessuras” em nossa casa (quer dizer, em nossa consciência habitual). Quanto maior a autonomia de um com­ plexo, maior a sua tendência para se personificar como uma entidade separada. É o caso de algumas psicoses, em que os complexos “falam alto” , e o doente os ouve como vozes de personalidades estranhas. A maior ou menor autonomia de um complexo depende de sua conexão com a totalidade da vida psíquica, isto é, é a própria incons­ ciência do complexo que lhe confere a sua autonomia. 139

Apesar de Jung ter iniciado suas descobertas dos complexos no campo da Patologia, isto não significa que a existência de um complexo seja sempre algo patológico. Um complexo pode se tornar patológico, pois, ao dominar a consciência em maior grau, pode gerar a dissociação neurótica da personalidade (ou, em casos extremos, a dissolução psicó­ tica). Porém, a existência de um complexo é encarada como um fenômeno natural da psique. Indica que há algo não assimilado, muitas vezes conflitivo, mas que, se for integrado, pode abrir caminho para novas possibi­ lidades de realização.

16.2.2. Inconsciente coletivo Além do inconsciente pessoal Jung concebe um substrato inconsciente mais profundo, que é comum a todos os seres humanos, denominado por ele inconsciente coletivo. Esta idéia é a transposição, para o plano psíquico, da identidade anatômica e fisiológica existente entre os homens, indepen* dente das diferenças raciais, culturais e individuais. Assim, do mesmo modo como possuímos a potencialidade de termos dois braços, duas pernas, um coração, um fígado etc., também temos a potencialidade de nos desen­ volvermos o suficiente para cuidarmos de nós mesmos e de outros, de nos separarmos do mundo dos pais, de escolhermos uma profissão etc. No nosso processo de crescimento, do mesmo modo que temos padrões herdados em termos de desenvolvimento físico, herdamos padrões de estruturação da personalidade, nas diferentes fases da vida: a infância, a adolescência, relação conjugal e profissional, velhice, preparação para a morte. Estes padrões foram chamados por Jung de arquétipos, os quais constituem o inconsciente coletivo. Para explicar o que são os arquétipos, Jung utilizou a comparação com os padrões herdados de comportamento nos animais. “ O modo como os pássaros fazem o ninho, por exemplo, é um código inato, assim como certos fenômenos simbióticos entre insetos e plantas. Da mesma maneira, o homem nasce com um certo funcionamento, um certo padrão de comportamento que o torna especificamente humano. Este padrão está expresso nas imagens arquetípicas, ou formas arquetípicas” (Evans, 1964). Aqui é importante fazer uma distinção. Apesar de muitas vezes falarmos, em Psicologia Analítica, de imagens, símbolos ou idéias arque* típicas, na verdade o arquétipo não é uma imagem ou idéia inata, mas antes 140

uma possibilidade herdada, uma matriz onde configurações análogas ou semelhantes tomam forma. Neste sentido, o arquétipo é uma virtualidade que toma form a, traduzindo-se em imagens, a partir da interação com o ambiente, ou seja, ao ser preenchida por materiais da realidade. Os arquétipos são propensões à formação de representações típicas de processos inconscientes, que poderiamos comparar com os mitos. A Mitologia é, então, para Jung. “ a expressão de uma série de imagens por meio das quais se formula a vida dos arquétipos” Assim, o arquétipo seria uma tendência a formar representações de um motivo, que podem variar m uito em detalhe sem perder seu modelo básico. Por exemplo, o motivo da hostilidade entre irmãos: o motivo é sempre o mesmo, em diferentes culturas e épocas, embora as representações variem muito. Por isto, da mesma forma que o biólogo necessita da ciência da anatomia comparada, o psicólogo precisa de uma “ anatomia comparada da psique” , para chegar aos motivos comuns, e isto lhe é proporcionado pela Mitologia. “A

noção

de arquétipo, postulando a existência de uma base

psíquica comum a todos os humanos, permite compreender por que em lugares e

épocas distantes aparecem

temas idênticos, nos contos de

fadas, nos mitos, nos dogmas e ritos das religiões, nas artes, na filosofia, nas produções do inconsciente de modo geral - seja nos sonhos de pessoas normais, seja em delírios dos loucos” (Silveira, 1971). Jung chegou ao conceito do inconsciente coletivo e dos arquétipos a partir tanto da observação clínica de seus pacientes quanto de suas vivências internas. Ele relatou que, uma vez, deparou-se com um doente esquizofrênico paranóide, que o chamou para contar que “se movesse” a cabeça de um lado para outro, o pênis do sol mover-se-ía também, e este movimento era a origem do vento” . Quatro anos mais tarde. Jung encontrou a seguinte descrição de visões de adeptos de Mithra, em um manuscrito grego recém-descoberto. “E também será visto o chamado tubo, origem do vento predomi­ nante. Ver-se-á no disco do sol algo parecido a um tubo, suspenso. E na direção das regiões do Ocidente é como se soprasse um vento do leste infi­ nito. Mas se outro vento prevalece na direção das regiões do Oriente, ver-se-á da mesma maneira o tubo voltar-se para aquela direção.” Esta experiência forneceu-lhe uma primeira idéia sobre a existência de um substrato psíquico comum a todos os homens. Além disto, havia o sonho da casa que des­ crevemos em sua biografia. A partir dessas primeiras experiências, Jung foi se aprofundando em seus estudos, coletando mais material mitológico e histórico, comparando-o tanto com o material de sonhos e fantasias de seus clientes quanto com os seus próprios. 141

Quando Jung utilizou as fantasias de uma jovem americana (caso relatado por Floumoy), analisou-o a partir de paralelos mitológicos, análise esta que apontava já para certas conclusões com relação à natureza coletiva do inconsciente. A partir daí, Jung separa-se bastante da concepção de Freud, em que o inconsciente se constitui principalmentc dc conteúdos rejeitados pela consciência. Em outras palavras, Jung começa a aceitar a “existência do inconsciente como um fato real, um fator autônomo, capaz de ação independente'1 (Evans, 1964). Esta idéia é fundamental para a com­ preensão de como atuam os arquétipos. O fato de considerar o incons­ ciente como fator independente da consciência levou Jung a chamá-lo, em várias obras, de “psique objetiva". Além disto, a seu ver, o inconsciente tem uma função potencial­ mente construtiva. Isto porque contém os arquétipos, que são os elementos necessários à auto-regulação da psique. É importante fazer a distinção teórica entre inconsciente pessoal e inconsciente coletivo, mas isto não é tão fácil em suas manifestações. Em todo material inconsciente que surge na consciência, sejam sonhos, fanta­ sias. emoções etc., há sempre algo de pessoal e algo de arquetípico. Isto é assim porque a própria dimensão pessoal se desenvolve a partir da dimen­ são coletiva, arquetípica. Assim, a relação de uma criança com sua mãe estará sempre determinada pelo campo de ação do arquétipo materno, assim como pela realidade individual e particular daquela criança com aquela mãe. Num complexo também, apesar de os termos visto ligados ao in­ consciente pessoal, sempre podemos vislumbrar um fundo arquetípico. Esta noção faz parte da posterior elaboração de Jung da teoria dos complexos. Quando começou a estudá-los, a questão do inconsciente coletivo ainda não se colocava, datando da época em que ainda não havia se distanciado da Psicanálise. Evidentemente, há conteúdos inconscientes, sonhos por exemplo, que apresentam de modo mais evidente o lado pessoal, específico, e os que tratam mais claramente de problemas gerais da humanidade. Jung os distinguia, chamando os primeiros de “pequenos sonhos" e os últimos de “grandes sonhos". Mesmo na prática clínica, Jung fazia uma distinção. Considerava que havia, normalmente, uma primeira fase da análise que girava mais em torno dos problemas individuais e pessoais, reminiscências e fantasias infantis. Só depois disto ter se esgotado é que se entrava em contato com a “camada" do inconsciente coletivo e dos problemas mais impessoais, que afetam a humanidade como um todo. (O problema religioso, por exemplo, considerado de fundamental importância por Jung, nesta fase.) 142

Embora esta distinção exista, com a continuação da obra de Jung por seus sucessores, principalmentc com a elaboração de uma teoria de desen volvim ento arque típica, isto é, com o estudo de como os determi­ nantes arquctípicos regem as diferentes fases de desenvolvimento infantil, é possível começar a integrar melhor essas duas “camadas" do inconsciente,, sem considerá-las com o duas coisas tão separadas.

16.3.

Relação consciente-inconaciente. Funções do inconsciente

Para Jung, os dois sistemas dentro da psique, consciente e incons­ ciente, são concebidos com o agindo de modo compensatório, de maneira que a psique, com o um todo, se diz auto-regulada. Quando esta regulação falha, o resultado é uma disfunção patológica (neurose, psicose, desordem de caráter etc.). O inconsciente não é algo estático, ou imutável, mas está sempre em m ovim ento; esta atividade do inconsciente se coordena com a cons­ ciência numa relação compensadora. A relação é compensadora e não de oposição porque, com o já dissemos, consciente e inconsciente se comple­ mentam m utuam ente, para formar uma totalidade, o self ou si-mesmo. Porém, nesta totalidade, não é só a função inconsciente que é com­ pensadora e reativa com respeito à consciência: a consciência também se encontra subordinada ao inconsciente. Os processos inconscientes não constituem apenas um “espelhar reativo" dos processos conscientes, mas uma atividade produtiva e autônom a, que é orientada para uma finalidade. Esta finalidade é o desenvolvim ento da personalidade total ou self. Foi através do estudo dos sonhos e de sua interpretação que Jung melhor explicou as funções do inconsciente e como se estabelecem as as relações entre a consciência e o inconsciente. Os sonhos são vistos por ele com o uma manifestação de processos inconscientes, do pon to de vista do inconsciente, ou seja, seriam uma autorepresentação, sob a forma sim bólica, da situação do inconsciente. Assim, o sonho traz a representação de alguns conteúdos inconscientes que se atualizam, cristalizam e selecionam ( “constelam", termo usado por Jung) em correlação com o estado da consciência. “A função geral dos sonhos seria o tentar restabelecer o equilíbrio psicológico, produzindo material onírico que restabeleça de forma sutil o total equilíbrio psíquico." Assim, sempre que a atitude consciente tornar-se demasiadamente unilateral ou exagerada, surgem sonhos compensadores, indicando a função de auto-regulação da psique. 143

Em suas obras, Jung cita vários exemplos de casos deste tipo. Um destes* é o caso de um homem extremamente arrogante, que criticava m uito seu irmão. Porém, sonhava sempre com o irmão nos papéis dc Bismarck, Napoleão. Júlio César. Neste caso, o inconsciente necessitava exaltar o irmão. Portanto. Jung pôde deduzir que o paciente estava sc superesti­ mando e depreciando o irmão de modo exagerado. Além disto, como as figuras usadas no sonho eram de heróis coletivos, concluiu que o paciente se superestimava não só com relação ao irmão, mas com relação a todos, sendo isto depois confirmado. Um outro exemplo ilustrativo é o de uma jovem que amava m uito a mãe, mas que sonhava sempre com a mãe como bruxa ou perseguidora. Na verdade, a mãe a mimava exageradamente e por isso a filha não podia reconhecer conscientemente a influência nociva disto. O sonho, ao mesmo tempo que compensa a unilateralidade da cons­ ciência, também

pode advertir

sobre

os perigos desta atitude. Como

exem plo* *, Jung relata o caso de um homem que se encontrava envolvido com

certos

negócios

obscuros.

Com o

uma

espécie

de compensação,

desenvolveu uma paixão por escaladas perigosas de montanhas, como que buscando “ chegar mais acima de si mesmo” . Em um sonho, viu-se escalando uma montanha, até chegar ao cume, ficando possuído de tal êxtase que continuou escalando no ar. Jung conta que, ao ouvir o sonho, tratou de adverti-lo contra o perigo que corria, mas não fo i ouvido. Seis meses depois, este homem morreu, em um acidente, numa de suas escaladas. Sonhos deste tipo ilustram uma outra função do sonho, segundo Jung, chamada função prospectiva. Isto não quer dizer que o inconsciente tenha capacidade de profetizar o fu turo. Mas pode acontecer que apareça, no inconsciente, uma antecipação da futura atividade consciente. Na ver­ dade, observando-se uma seqüência de sonhos, pode-se prever a eclosão de um transtorno psíquico, como uma psicose, ou mesmo prever doenças somáticas. O que acontece é que esses processos já vêm ocorrendo m uito antes que se manifestem à consciência, porém de modo subliminar, isto é,

inconsciente.

São

impressões,

sensações, sentimentos, pensamentos

subliminares que são apreendidos inconscientemente no sonho.

O Eu e o Inconsciente, Jung, 1978. O Homem e seus Símbolos, Jung, 1980. 144

e se manifestam

Assim, para Jung, o sonho é algo bastante diferente da concepção da Psicanálise. Esta o ve como uma realização disfarçada de um desejo. Mas para ele “ um sonho é sempre a melhor interpretação de si mesmo*'. Para compreender os sonhos, em particular, e os conteúdos incons­ cientes de modo geral, Jung parte sempre de dois pontos de vista, a sua causalidade e a sua finalidade. A abordagem causai visa descobrir as origens da manifestação incons­ ciente, o porqu ê t a partir da análise de suas diferentes partes. No caso do sonho, a análise partirá dos seus elementos constitutivos e, através da cadeia de associações que estes despertam, tenta chegar até o complexo reprimido que lhe deu origem, no centro do qual estará o desejo. É então uma técnica essencialmente redutiva, que visa a atingir um ponto X. causa última do sonho. A abordagem finalista ou sintética, por outro lado, visa a descobrir o para que do sonho, a sua finalidade. Esta abordagem pressupõe um ponto de vista teleológico, conseqücncia da hipótese de Jung de que o incons­ ciente contém uma função potencialmente construtiva, devida ao fato de abranger os organizadores inatos do desenvolvimento psíquico, os arquétipos. Esta hipótese é radicalmente diferente da posição psicanalítica mais tradicional, em que o inconsciente se apresenta como um conjunto de pulsões mais ou menos desordenadas ( “o inconsciente só sabe desejar"). Por isto é que a Psicanálise utiliza sempre a via analítica de interpretação. A abordagem finalista ou prospectiva é a especial contri­ buição de Jung para a compreensão dos fenômenos inconscientes. No caso da interpretação de um sonho, o método sintético con­ sistiría em explorar os conteúdos do sonho em todas as direções possíveis, amplificando-os e enriquecendo-os, não só a partir das associações do sonhador, mas utilizando paralelos mitológicos ou analogias com motivos semelhantes encontrados em outras culturas, no folclore etc. A partir do trabalho complementar das atitudes analíticas e sintéticas surge o Mentido do sonho, isto é, a expressão das forças do inconsciente no exercício de suas funções auto-reguladoras” (Silveira, 1971). Para compreender melhor a atitude de Jung com relação aos sonhos e ao inconsciente, é necessário esclarecer qual a sua atitude e sua concep­ ção dos sím bolos, pois são eles a expressão da vida inconsciente que se torna acessível à consciência. O sím bolo, para Jung, é sempre uma forma extremamente complexa, que contém tanto elementos conscientes quanto 145

inconscientes. Ou melhor, é através do símbolo que se faz a ligação do inconsciente com a consciência. Embora possamos estabelecer consciente* mente algumas significações para um símbolo, nunca o poderemos apreen* der como um todo, pois sempre restará algo de inconsciente. Na compreensão de um símbolo, sempre se deverá levar em conta sua dimensão pessoa) e coletiva. Um símbolo sempre contém uma deter­ minada energia; quanto mais corresponder a uma representação arquetípica, ou brotar das camadas mais profundas do inconsciente coletivo, maior será a fascinação e a força que exercerá sobre a consciência, que geralmente se apresenta sob a forma de um afeto. Por isso, a mera com­ preensão racional dos símbolos não basta para sua integração à consciência. Para Jung. os símbolos que não são individuais, mas coletivos, em sua natureza e origem, são principalmente os símbolos religiosos, cuja função é dar sentido à vida do homem. 0 próprio fato de o símbolo conter uma multiplicidade de significados possíveis, faz com que atue sobre a consciência, impulsionando para além de si mesmo, na direção de um sentido. Se, para Freud, a simbolização surge como resultado do conflito entre a repressão e o desejo, Jung vê nos símbolos uma ação mediadora, uma tentativa de conciliação de opostos movida pela tendência incons­ ciente à individuação. A partir do confronto do Ego consciente com os conteúdos incons­ cientes, traduzidos em símbolos, deve ocorrer uma assimilação destes conteúdos. Por assimilação, Jung entende a “ interpenetração recíproca dos conteúdos conscientes e inconscientes, e não a avaliação, sujeição e a deformação unilateral dos conteúdos inconscientes pela consciência” . Nesta assimilação, que seria melhor designada por integração, nem a consaéncia nem o inconsciente perdem sua integridade: “Nunca se trata da alternativa: isto ou aquilo, mas sempre da aproximação disto ou daquilo” .• Neste processo de assimilação, a consciência se amplia e se modi­ fica. De modo paralelo, os processos inconscientes também se modificam. 0 que ocorre é uma verdadeira transformação da personalidade, o processo de individuação.

O Homem à Descoberta de aia Alma, Jung, 1975.

146

16.4.

Procciwo dc individuação

Através do processo dc individuação o homem torna-se o ser único que de fato é, realiza a sua potencialidade. Em outras palavras, torna-se “ si-mesmo". Ê importante fazer a distinção entre individuação e individualismo, tornar-sc um indivíduo verdadeiro e completo não significa tornar-se egoísta, prcocupar-se apenas consigo mesmo e isolar-se dos problemas coletivos. Esta confusão advém do fato de identificarmos indivíduo com Ego; mas para Jung a individuação supõe a relativização do Ego frente à dimensão maior da personalidade total. O individualismo enfatiza as peculiaridades individuais em oposição às considerações coletivas. 0 conceito junguiano de individuação pres­ supõe, porém, a realização melhor e mais completa das qualidades coletivas do ser humano. Na verdade, é a consideração adequada, e não o esqueci­ mento das peculiaridades individuais, o fator que leva ao melhor rendimento social. Sem esta consideração, o homem torna-se massa, presa fácil de uma coletividade indiferenciada. No outro extremo, temos o egoísmo. Embora o processo de individuação seja algo único para cada pessoa, existem arquétipos que se manifestam sempre, de uma forma ou dc outra. A tarefa da consciência, como já dissemos, será sempre a de confrontar estes símbolos, transformá-los e integrá-los. Assim, não agirão mais de forma independente, originando complexos autônomos, mas serão veículos de transformação da personalidade. No processo de individuação, na segunda metade da vida, tal como Jung o observou e descreveu a partir da análise clínica de seus pacientes e de si mesmo, os principais arquétipos são: a Persona, a Sombra, a Anima, o Animus, e o Self.

16.4.1. Persona Toda sociedade organiza-se de forma tal que existem papéis deter­ minados, colocados à disposição dos indivíduos que dela participam. Estes papéis se definem, a partir das funções que cada pessoa exerce no relacio­ namento com as outras pessoas. Por exemplo, no âmbito das relações familiares, existem os papéis de mãe, de pai, de filho etc. Na verdade são concepções de como uma mãe, por exemplo , deve ser, de como deve se comportar, do que deve fazer e, muitas vezes, até do que deve sentir, o mesmo ocorrendo para os outros papéis. 147

Também isso existe, de forma ainda mais clara, para os papéis do âmbito profissional: existem idéias e concepções a respeito de como aquele profis­ sional deve ser, de como deve agir, de que modo deve sc vestir etc. Cada indivíduo, então, para se adaptar ao mundo cm que vive, assume os papéis disponíveis e que lhe cabem nas diferentes situações cm que se encontra. Tenta preenchê-los e corresponder ao que é esperado dele. No entanto, cada pessoa, como individualidade única, não pode adaptar-se completamente a estas expectativas. Deste interjogo, entre a personalidade individual e a sociedade, com suas expectativas coletivas, nasce a persona, que é como uma máscara que o indivíduo assume para satisfazer a estas expectativas. Porém, as expectativas sociais coletivas são introjetadas. Deste modo, a persona também é descrita como a imagem ideal do homem, tal como ele quer ser. É a imagem que ele apresenta ao coletivo, por trás da qual forma-se aquilo que chamamos “vida particular” . A persona é arquetípica, uma vez que existe em toda sociedade e se estabelece em toda relação entre pessoas. É natural e adaptativo que o indivíduo construa uma persona adequada. Porém, o papel que o indivíduo exerce e a sua identidade não devem ser confundidos. Muitas vezes, o Ego se identifica com a persona, em maior ou menor grau, sendo isto uma fre­ quente fonte de neurose, pois nenhuma pessoa pode caber inteiramente dentro dos moldes determinados pela consciência coletiva. Para que a pessoa se desenvolva, é preciso que aprenda a se distinguir da persona, a fim de encontrar sua identidade mais profunda. 16.4,2. Sombra Na medida em que o Ego se diferencia da persona, da imagem ideal que tem de si mesmo e que tenta apresentar aos outros, começa a ter que se confrontar com seu lado mais escuro, com todos os defeitos e impulsos que gostaria de negar em si mesmo. Este lado foi chamado de “sombra", por Jung, pois é justamente a contraparte do lado “iluminado" da consciência. Compõe a sombra tudo que é considerado fraqueza, defeito, aspectos imaturos e infantis, enfim, os complexos reprimidos. No entanto, também existem na sombra, muitas vezes, características valiosas que não puderam se desenvolver ou alcançar a consciência devido às circunstâncias da vida da pessoa. A sombra corresponde ao inconsciente pessoal, como já descrevemos. Porém, falamos também em uma sombra coletiva, na medida em que, em toda sociedade, existem sempre características humanas não desenvolvidas, negligenciadas ou reprimidas. Quais são e, portanto, qual a natureza dos

148

conteúdos sombrios dc cada indivíduo, vai depender das características da sociedade. Por exem plo, em nossa cultura, um dos aspectos mais reprimidos no ser humano é a sexualidade. Não é por acaso que a Psicanálise e a des* coberta do inconsciente profundo tenham se centrado no problema da sexualidade. Assim com o conteúdos da sombra pessoal são freqüentemcnte proje­ tados nos outros (vem os os defeitos e problemas dos outros mas não vemos que estes são também nossos), os conteúdos da sombra coletiva são projeta­ dos cm bodes expiatórios, “encarregados” de portar todos os defeitos e a culpa por tudo de mal que ocorre. 0 confronto com a sombra, portanto, não é algo fácil. Sempre suscita problemas morais e éticos de grande importância, tanto individuais quanto coletivos.

16.4.3.

A nim a e anim us

Para Jung, estes são os arquétipos do feminino e do masculino Poderiam os dizer que o ser do homem, biologicamente falando, pressupõe a existência da mulher, e vice-versa. A nível psíquico, isto se traduziría pelos arquétipos da anima e do animus. Seriam, então, com­ ponentes contra-sexuais inconscientes: na medida em que a consciência de um homem é masculina, haverá uma contraparte feminina em seu inconsciente, o contrário acontecendo para a mulher. Em diferentes culturas e épocas, sempre existiram concepções, idéias ou imagens sobre o fem inino e o masculino, expressas nos mitos, contos de fada, folclore etc. A anima costum a ser representada com o sereia, princesa, fada, feiticeira, animal, ninfa etc. O anim us pode aparecer como príncipe, demônio, herói, feiticeiro, animal. As personificações são múltiplas, valo­ rizando um ou outro aspecto do comportam ento desses arquétipos. Assim com o a sombra, então, o m odo com o esses arquétipos se expressam também será fortem ente influenciado pelos padrões culturais, pelo que é considerado naquela sociedade com o especificamente feminino ou masculino, o que pode variar amplamente. Jung, ao descrever anim a t animus, tom ou o que era correntemente considerado, cm sua época, com o características femininas e masculinas. Assim, a anima seria a personificação de todas as tendências psico­ lógicas femininas na psique do hom em . C om o, normalmcntc, identificava-se a consciência masculina com o sendo dotada de pensamento desenvolvido e discriminado, lógica e objetividade, essas características femininas apa149

reciam no inconsciente como o oposto: vagos sentimentos e estados de humor» sensibilidade, irracionalidade. No caso da mulher, aconteceria o contrário: sua consciência seria basica­ mente voltada para as relações humanas, para os sentimentos, c não para o mundo do pensamento. Assim, o animus personificaria as características masculinas, ligadas a pensamentos rígidos ou indcfercnciados. Jung dizia: assim como a anima produz “ caprichos” , o animus produz “opiniões’*. Estas opiniões são sempre coletivas e negligenciam as pessoas e os julga* mentos individuais. Baseiam-se em pressupostos inconscientes, que não são questionados. Estas descrições das características do animus e da anima são, como já dissemos, relativas. O importante é notar que são componentes psí­ quicos da máxima importância, pois são os arquétipos que regem o en­ contro do eu com o outro, com o diferente, já que traduzem a polaridade feminino-masculino. Enquanto inconsciente, estes componentes são geralmente projetados. No caso do homem, a mãe é o primeiro receptáculo da anima e, para a mulher, o animus será projetado no pai. Posteriormente, estas projeções deverão ir se desfazendo e transferindo-se para outras mulheres e outros homens, muitas vezes provocando paixões e idealizações dos parceiros. Se a anima não for transferida para outras mulheres, ficará ligada à imago da mãe, o que pode prejudicar muitos relacionamentos. O mesmo se dá para o animus e a imago do pai. Se no decorrer do processo de individuação, estas forças forem atentamente tomadas em consideração, se o Ego confrontá-las e aprender a diferenciar-se destas imagens, gradativamente suas personificações se desfazem, e seus movimentos autônomos desaparecem. Assim, transfor­ mam-se em funções psicológicas da mais alta importância e passam a fazer a ligação entre o consciente e o inconsciente. 16.4.4, S e lf O self é o arquétipo central. Para Jung, é o centro organizador que rege o desenvolvimento psíquico. É o arquétipo da orientação e do sentido. A meta do processo de individuação é o se lf Jung utilizou a mesma palavra para designar a totalidade psíquica e o centro desta. Quando queremos diferenciar uma coisa da outra usamos o termo “ si-mesmo” para a totalidade e “ arquétipo central” para o centro. Jung pesquisou e descreveu um rico simbolismo, proveniente tanto de fontes coletivas (mitos, religiões, folclore etc.), quanto de fontes individuais (sonhos, fantasias). 150

A existência deste centro interior, do qual emana a orientação para a vida, é uma vivência registrada em muitas sociedades. Os gregos, por exempio, falam no daimon interior do homem; em muitas sociedades primitivas, considera-se a existência de um espírito tutelar de cada pessoa, encarnado cm um animal, por exemplo. Na medida cm que o processo de individuação é uma aproximação c um diálogo entre consciente e inconsciente, o Ego não poderá mais ser o centro. Este se constituirá num novo ponto, um ponto de equilíbrio que, devido à sua posição entre consciente e inconsciente, garante uma base mais sólida à personalidade. 0 self pode ser simbolizado, em sonhos, por figuras de um velho ou velha sábia, dependendo se o sonhador é homem ou mulher. Aparece como uma figura superior, de quem emana autoridade e bondade, que serve como guia c orientador. Às vezes, pode aparecer como um jovem, ou mesmo como planta ou pedra. Por exemplo, um motivo mais ou menos comum em lendas é o da planta que cura todas as doenças. Encontra-se num lugar inacessível, e o herói tem que passar por mil peripécias para encontrá-la. Neste caso, a planta é o símbolo do se lf e o herói é o Ego na sua luta pela individuação. No resumo da biografia de Jung, mencionamos que começou a se interessar pela alquimia depois de ter recebido um tratado alquímico chinês denominado O Segredo da Flor de Ouro, traduzido pelo sinólogo R. Wilhelm. Este tratado apresenta as etapas para se encontrar a “flor de ouro” , que é um símbolo do self. Estas etapas coincidem com o que Jung já estava pensando a respeito do processo de individuação. A cor dourada e o ouro geralmente estão associados ao self e à totalidade. Na interpre­ tação de Jung, a obra alquímica é análoga ao processo de individuação, e a pedra filosofal é um símbolo do self. O si-mesmo pode também ser representado por formas abstratas. Tanto o quadrado quanto o círculo são símbolos da totalidade. Jung constatou que o padrão quaternário está presente no simbolismo religioso e mitológico associado à idéia de totalidade (os quatro “cantos” do mundo, por exemplo), sendo, portanto, um padrão arquetípico. A mandala é um símbolo do self que Jung muito utilizou e estudou. Mandala é uma palavra sãnscrita que significa círculo. São círculos com imagens concentricamente dispostas, divididos geralmente em quatro ou oito partes. Jung utilizou esta palavra para designar imagens que represen­ tam a totalidade. Nestas mandalas, o centro do círculo equivale ao arqué­ tipo central e o próprio círculo é a imagem da totalidade. Durante muito tempo Jung desenhou essas mandalas. Utilizava-as para avaliar seu estado psíquico; se estava bem equilibrado, harmônico etc. 151

Assim, a mandala é um símbolo da ordem interna. Sempre é utilizada neste sentido, seja para significar a ordenação dos inúmeros aspectos do Universo num plano cósmico, seja para ordenar os diferentes aspectos da psique. Segundo Jung. é um símbolo que aparece espontaneamente, como uma compensação, em períodos de desordem e caos, e vem trazendo a possibilidade da ordenação em torno de um centro, que nâo é mais o Ego.

16.5.

A teoria dos tipos psicológicos

As tentativas humanas de construir grupos e, com isso, estabelecer unia ordem na multiplicidade de indivíduos são certamentc muito antigas. Temos, por exemplo, a Astrologia, com os trígonos dos 4 elementos: ar, água, tena e fogo. É uma idéia antiquíssima a de que quem nasce sob o signo pertencente a um destes trígonos participará da sua natureza (airosa, ígnea etc.) e terá temperamento e destino correspondentes. Outro exemplo é a chamada “ doutrina dos 4 temperamentos’*, de Hipócrates, que identificou 4 tipos de pessoas, associando a cada tipo um determinado caráter e humor. Os 4 tipos são: sanguíneo, colérico, fleumá tico e melancólico. Mais recenlemente, Kretschemer distinguiu 3 tipos fundamentais baseando-se em medidas antropométricas e observações morfológicas: leptossõmico, pícnico e atlético. A cada tipo são associadas determinadas características psicológicas. Jung, preocupado com o esclarecimento das particularidades indi­ viduais, do problema do indivíduo no seu confronto com o outro, propôsse à elaboração de uma tipologia psicológica. Tiveram papel importante na motivação deste estudo a sua ruptura com Freud e a observação das diferenças existentes entre as várias “psicologias” : a sua, a de Freud e a de Adler. Examinou então, em primeiro lugar, a condição da consciência humana, que seria originadora das várias maneiras de encarar as coisas, das diversas abordagens possíveis. Freud partia do princípio de que as coisas evoluíam segundo as diretrizes do instinto sexual. Adler, porém, concedia a primazia ao instinto do poder. Sem dúvida, tanto Freud quanto Adler viam um sujeito em relação a um objeto; mas em Adler a ênfase é posta num sujeito que se afirma e procura manter sua superioridade sobre os objetos. Em Freud ao contrário, a ênfase é posta nos objetos, que, conforme suas caracte­ rísticas, são proveitosos ou prejudiciais ao desejo do sujeito. (Com o desen­ volvimento posterior da psicologia do Ego e da teoria da libido na Psica-

152

nálise, estas observações não são mais tão válidas. Porém, a controvérsia existia na época e serviu, em parte, como paradigma para o desenvolvimento da teoria dos tipos de Jung.) Para Jung, esta disparidade de colocações só poderia ser devida a uma diferença de temperamento, uma oposição entre dois tipos de pessoa, num dos quais o efeito determinante provém principalmente do sujeito, e no outro, do objeto. Esta questão constituiu sua preocupação por muito tempo. Final­ mente, fundamentado em numerosas observações, chegou aos dois tipos fundamentais de comportam ento ou atitude humanos, chamando-os de introversão c extrovcrsão. Estes conceitos referem-se então a disposições ou atitudes do sujeito em relação ao objeto, ou, em outras palavras, à direção do fluxo de libido, à maneira como se processa o movimento da libido em relação ao objeto (libido entendida aqui no sentido genérico junguiano). A energia da pessoa cuja disposição é mais extrovertida flui de maneira natural, sem embaraços, para o objeto, o mundo externo. N o introvertido, a libido recua frente ao objeto,

fluindo

preferencialmente

em direção ao seu mundo interno.

Naturalm ente, todas as pessoas apresentam as duas atitudes, porém algumas tendem a favorecer mais um tipo e outras o outro. Assim, dizer que alguém é extrovertido ou introvertido significa que esta é a sua atitude mais habitual, a que a pessoa apresenta com maior frequência. Para Jung, porém, a psique é um sistema auto-regulado, e o incons­ ciente tende sempre a compensar a atitude consciente. Desta forma, na pessoa

cuja

atitude

consciente

é habitualmente extrovertida, existirá

um fluxo de libido inconsciente dirigindo-se sempre para o sujeito. No introvertido, há um flu xo de energia inconsciente que se dirige para o objeto. Em outras palavras: existe sempre uma circulação da libido; um movimento

inconsciente

de

introversão,

naquele

cuja

personalidade

consciente é extrovertida, e um movimento inconsciente de extrovcrsão, naquele cuja personalidade consciente é introvertida. Para

esclarecer estes movimentos, Jung dá um exemplo (Jung,

1978Ò): Dois rapazes caminham pelo campo e chegam a um velho castelo. Ambos gostariam de vê-lo por dentro. O introvertido diz: “Gostaria de saber como é por dentro” . O extrovertido, por sua vez, diz: “Vamos entrar” , e vai entrando. O introvertido o detém: “Talvez seja proibida a entrada” , imaginando vagamente uma série de problemas, como guardas, multas, cachorros bravos etc. O extrovertido nem se preocupa, imaginando velhos porteiros afáveis, castelões hospitaleiros e possíveis aventuras românticas. Porém, ao entrar, percebem que o castelo foi reformado, possuindo apenas poucas salas, com uma coleção de manuscritos antigos. Por acaso, 153

Fluxo da libido - E rtro w rtó o consciente

Fluxo da libido — In tro ven ío "inferior" Fluxo da libido - In t r o w t f o consciente

Fluxo da libido — Extroverião "inferior"

Figuro 16.1.

Consciente

Inconsciente

introvertido Figuro 16.2. Tipo pensamento extrovertido.

essa é a paixão do introvertido. Imediatamente absorve-se na contem plação dos manuscritos, entusiasma-se, pede informações ao porteiro etc. En­ quanto isto, a animação do extrovertido só diminui: nada de porteiros afáveis, hospitalidade cavalheiresca ou aventuras românticas. Os manus­ critos cheiram a biblioteca, o que ele associa a estudos e exames, uma ameaça. O objeto toma-se negativo, e ele quer sair. A situação vai se agra­ vando até que os dois acabam brigando.

1S4

0 que aconteceu? Ambos haviam caminhado juntos e os dois quise­ ram entrar no castelo. O introvertido pensou cm faze-lo e o extrovertido ativo abriu caminho. Uma vez dentro, porém, o tipo se inverte. 0 intro­ vertido, que hesitava em entrar, não quer mais sair, fica fascinado pelo objeto. O extrovertido amaldiçoa o momento em que entrou - ficou preso em seus pensamentos negativos. Com o introvertido acontece que o objeto toma posse dele, c ele se entrega docilmente ao poder exercido pelo objeto. Mas, no momento em que o objeto sobrepuja o sujeito, sua atitude perde o caráter social. Esquece-se da presença do amigo, não o inclui mais. Com o extrovertido, acontece o contrário, ficou cativo de um sujeito mal humorado; também perde a consideração pelo outro, no momento cm que sua expectativa não é satisfeita, retraindo-se em suas idéias e sentimentos subjetivos. Podemos formular o que aconteceu da seguinte forma: por influência do objeto, apareceu uma extroversão inferior no introvertido, ao passo que uma introversão inferior substituiu a atitude social do extrovertido. Isto acontece porque, com uma atitude consciente exageradamente extrovertida, os impulsos subjetivos (pensamentos, desejos, afetos, neces­ sidades etc.), dotados de pouca energia, não atingem normalmente a consciência. Tomam, então, um caráter regressivo, de acordo com o grau de inconsciência. (Por isso falamos de introversão inferior.) No caso oposto, a atitude consciente exageradamente introvertida pode levar a uma subjetivização, o que leva a surgir, no inconsciente, uma relação compensadora com o objeto, porém também indiscriminada, infantil, por não ter sido adequadamente desenvolvida (extroversão inferior). Após a conceituação das duas atitudes básicas, Jung tentou explicar a enorme diferença entre as pessoas de um mesmo grupo, seja extrovertido ou introvertido. Essas diferenças, segundo ele, se devem à função psíquica utilizada preferencialmente pela pessoa, seja para se relacionar com o mundo extemo ou com o mundo interno. As funções psíquicas postuladas por Jung são quatro: o sentimento, a sensação, o pensamento e a intuição. Estas funções constituem uma espécie de quatro pontos cardeais para a orientação da consciência. Cada pessoa tende a reagir mais comumente com a função que se tornou mais desenvolvida. Esta função predominante caracteriza então um hábito de reação, e constitui o tipo da pessoa. A questão de como esse tipo é formado, ou seja, por que determinada pessoa tem uma disposição extrovertida com pensamento predominante, por exemplo, c não outra, é complexa. Jung admite um conjunto de 155

influências internas e externas: a herança genética, as influências familiares e culturais, as experiências por que cada um foi passando etc., tudo isso vai determinando o modo preferencial de uma pessoa reagir ao mundo. Porém, para Jung, a definição de um tipo é sempre dinâmica e encerra um sentido de desenvolvimento. Apesar da idéia por trás da tipologia ser a de encontrar regularidades relativamente estáveis dentro da psique, a palavra tipo pode dar a idéia de algo estático, que não pode ser alterado. No entanto, ao associar a tipologia com a teoria da individuação. Jung trans­ formou-a em algo dinâmico, abrindo a perspectiva de que, com o desenvol­ vimento c o evoluir da personalidade, cada um vá atingindo um maior equilíbrio, uma menor rigidez e preponderância entre as atitudes de extroversão e introversão, assim como na utilização das suas quatro funções. Assim. Jung nunca deu um sentido redutivo à sua teoria, de “en­ quadrar" um indivíduo em um tipo ou outro, desconhecendo a sua especi­ ficidade e características únicas. Para ele, isto não tem senão uma impor­ tância prática, como orientação: "Todo o meu plano tipológico consiste, meramente, numa espécie de orientação. Existe um fator, a introversão: existe outro fator, a extroversão. A classificação de indivíduos nada significa. Trata-se apenas de um instrumento, ou aquilo a que chamo ‘psicologia prática', usada, por exemplo, para explicar o marido a uma esposa ou vice-versa” (Evans). Vejamos agora no que consistem as quatro funções. O pensamento é a função que esclarece o que são os objetos. Julga, classifica, discrimina uma coisa de outra. O pensamento, para avaliar os objetos, deve se basear em critérios impessoais, lógicos e objetivos. Para tal, é necessário excluir o valor afetivo que o objeto possa ter para a pessoa; se a atrai ou não, o que é domínio do sentimento. É através do sentimento, então, que o sujeito faz uma estimativa sobre o objeto, também um julgamento, porém que funciona com uma outra lógica, a "lógica do coração” . Podemos ver, então, que pensamento e sentimento formam um par de opostos. Para que o pensamento se diferencie, o sentimento deverá ser relegado a segundo plano, o mesmo acontecendo no caso contrário. À função mais utilizada, e portanto a mais consciente e diferenciada, Jung chamou de função superior, e à função oposta, que será mais inconsciente e indiferenciada, função inferior. Assim, se uma pessoa tiver como função superior o pensamento, sua função inferior será o sentimento, e vice-versa. A estas duas funções, Jung denominou “racionais” , pois ambas introduzem um julgamento, uma consideração sobre o objeto. Parece estranho chamar o sentimento de racional, mas isto se deve às caracterís­ ticas de nossa cultura, que supervaloriza o pensamento e a sua lógica peculiar, classificando de "ilógico” ou "irracional” tudo o que foge disto. 156

As outras duas funções, sensação e intuição, foram chamadas de irracionais, por Jung, devido ao fato de apreenderem a situação direta* mente, sem a mediação dc um julgamento ou avaliação (seja esta prove­ niente do pensamento ou do sentim ento). A sensação constata a presença dos objetos que nos cercam e, através dos nossos sentidos, informa sobre suas características. Já a intuição é uma percepção via inconsciente. Cada coisa que percebemos tem uma história. Seu passado e seu futuro estão contidos, de algum modo, em algumas características presentes no m om ento da observação. Estas características são captadas pela intuição, é a função que nos informa sobre de onde vém os objetos e qual o possível curso dc seu desenvolvimento. Ccralmente, nos chega na forma de “ pressentimentos” , “ palpites” ou “ inspirações” . Desta forma, a sensação e a intuição formam também um par de opostos. A sensação capta e se prende ao imediatamente dado, naquele m om ento, e é isto justamente o que a intuição tem que excluir, para apreen­ der os m ovimentos e possibilidades contidos em cada situação. Assim, se a função superior numa pessoa for a sensação, a intuição será a função inferior, e vice-versa. Naturalmente, cada indivíduo tem as quatro funções com o poten­ cialidades. Mas utiliza normalmente, com maior freqüéncia, a função prin­ cipal, pois é com ela que consegue melhores resultados de adaptação à vida. A função principal está portanto a serviço do Ego, dando à atitude cons­ ciente sua direção principal. A função oposta a ela, então, será mais in­ consciente, sendo mais primitiva e menos desenvolvida, na medida em que é menos utilizada. Assim, a função inferior pode escapar ao manejo cons­ ciente, apresentando um maior ou menor grau de autonomia em relação ao Ego. Mas, justamente por isto, esta função faz a ponte para o incons­ ciente e para o mundo simbólico. Reveste-se então de grande importância para o trabalho terapêutico, que pode utilizá-la para restaurar a comunicação entre o consciente e o inconsciente. Geralmente, as outras duas funções também não apresentam graus de desenvolvimento iguais; uma delas será um pouco mais desenvolvida, e auxiliará a função principal, sendo chamada de função auxiliar. A outra, geralmente apenas parcialmente consciente, é chamada de terciária e utilizada com menor freqüéncia que a função auxiliar. Estas quatro funções se associam às duas atitudes básicas de extroversão e introversão. Assim, se uma pessoa tem com o função predominante o pensamento, e é extrovertida, com o conseqüéncia, a sua função inferior, o sentimento, apresentará características introvertidas. O mesmo se dá com as outras funções. Se a pessoa tem com o função principal a sensação intro­ vertida, sua função inferior é a intuição, que se referirá principalmente aos

157

Intuição introvertida, função superior

Figuro 16.3. Tipo intuição introvertida.

objetos e situações externos (extroversão), compensando a atitude cons­ ciente. Desta combinação, temos então oito tipos básicos: o pensamento extrovertido, pensamento introvertido, sentimento extrovertido» sentimento introvertido, sensação extrovertida, sensação introvertida, intuição extro­ vertida, intuição introvertida. Faremos a seguir apenas uma descrição, bastante sumária, dos oito tipos, para se ter uma idéia mais aproximada de como funcionam as funções e quais características costumam conferir à personalidade. 16.5.1.

Tipo pensamento extrovertido

A pessoa deste tipo tende, preferencialmente, a estabelecer uma ordem lógica, clara, entre as coisas externas; preocupa-se em distinguir o que é essencial e o que não é, dentro das situações externas. Porém, o raciocínio abstrato não a atrai; a ênfase é sempre nos objetos, e não nas idéias. Geral­ mente, este tipo tende a pautar sua conduta por um determinado sistema de conclusões intelectuais, ao qual tenta também submeter os outros, tornan­ do-se no extremo uma pessoa autoritária, sem consideração pelos senti­ mentos dos outros ou nuances pessoais. Seu ponto fraco é o sentimento. Embora capaz de ligações afetivas profundas, tanto a idéias quanto a pessoas, tem grande dificuldade de expressá-las, justamente pela característica introvertida da sua função inferior. Por isso, estas pessoas podem ser taxadas de frias pelo observador.

158

Quanto mais exagerado for o tipo, isto é. quanto mais a pessoa se utiliza apenas do pensamento extrovertido, sua função superior, mais o sentimento se torna inconsciente e assume características absolutas e arcaicas, podendo irromper como um fanatismo ou uma súbita conversão. Também não são raras as explosões repentinas e violentas de afeto, que espantam as pessoas que conhecem apenas o lado objetivo e racional das pessoas deste tipo.

16.5.2. Tipo pensamento Introvertido Ao contrário do tipo anterior, este é principalmente atraído pela organização e clarificação de idéias. O pensador introvertido interessa-se mais pelas abstrações teóricas do que pelos fatos em si, estes o interessam apenas secundariamente. Não se contenta em ordenar objetos ou idéias já existentes, mas interessa-se pela produção de novas abstrações ou de hipóteses originais. Classicamente, o cientista, o filósofo ou o matemático representam melhor este tipo. Seu sentimento manifesta-se de modo intenso e pouco diferenciado, já que é a função inferior: é sempre amor ou ódio, branco ou preto. Além disto, este sentimento dirige-se sempre a objetos externos, pois é basica­ mente extrovertido. Pessoas deste tipo dificilmente compreendem aquelas que possuem o sentimento mais diferenciado, conseguindo discernir nuances ou qualidades positivas em meio às negativas, ou vice-versa. O tipo pensamento costuma encarar isto como um mero oportunismo ou “fazer média” ; ele rejeita abruptamente pessoas ou situações ou as aceita incondicionalmente.

16.5.3.

Tipo sentimento extrovertido

Este tipo mantém uma relação adequada com os objetos exteriores, adaptando-se a eles por meio de uma avaliação basicamente afetiva. Suas relações não são guiadas por princípios lógicos, mas por valores e ideais afetivos. O sentimento é bastante discriminado, indo muito além do “amor-ódio” do tipo pensamento. São pessoas geralmente muito afetuosas, que demonstram o que sentem pelas pessoas de modo expansivo. Costumam ter muitos amigos. Tém grande capacidade de sentir a situação de outras oessoas, e captar o que elas necessitam, sendo caoazes de se sacrificarem por elas. 159

Seu

ponto

fraco

é o pensamento, nrinciDalmente

o raciocínio

abstrato. Pelo fato da função inferior ser introvertida, seus pensamentos muitas vezes se voltam contra o sujeito, assumindo uma característica negativista. Pensam então que sua vida não vale nada, que é incanaz etc. Geralmente, a pessoa tipo sentimento extrovertido não gosta de ficar só, pois isto propicia a introversão, que lhe traz estes pensamentos negativos. Algumas vezes, um sistema de pensamento iá definido é adotado, mas raramente este é questionado, ou a pessoa se interessa em criar algo novo, dar uma contribuição pessoal etc.

16.5.4.

Tipo sentimento introvertido

São pessoas eeralment* calmas, retraídas e silenciosas, em geral d ifí­ ceis de serem compreendidas, porque seus sentimentos, embora muito diferenciados, não se exprimem externamente. Assim, as suas ações, que são motivadas por sentimentos profundos que se desdobram em seu ín tim o , não são geralmente bem compreendidas pelos outros. E como seu pensamento extrovertido é inferior, têm m uita dificuldade de expressarem suas motivações. Porém, esse tipo costuma possuir um desenvolvido padrão de valores, discriminando m uito bem o que realmente é im portante, através de seu sentimento introvertido bem desenvolvido. Por isso, pode muitas vezes exercer uma certa influência moral ou ascendência sobre as pessoas com quem convive. 0

pensamento extrovertido, por ser a função in ferior, tende a ser

rígido, o que o leva a querer im por suas idéias sobre os fatos, ou a querer explicar tudo por meio de um único pensamento.

16.5.5.

Tipo sensação extrovertida

São as pessoas que têm ótim a capacidade de perceber os objetos do m undo externo, relacionando-se de m odo prático e concreto com eles. Por seu agudo senso de realidade, geralmente são pessoas bastante eficientes no lidar com as situações. 0 in divíd uo deste tip o tem prazer na apreciação sensorial das coisas, gosta de comer bem , de se vestir bem etc. Mas como só se move à vontade na realidade palpável, geralmente repele as questões teóricas de caráter mais geral, ou mesmo manifestações subjetivas. É aquele que sempre tende a explicar uma mudança de hum or

160

ou um sintoma pela mudança do tempo ou por alguma coisa que comeu no almoço. Sua função inferior sendo a intuição, muitas vezes este tipo não consegue perceber uma possibilidade de desenvolvimento de uma situação, sendo pego de surpresa pelas mudanças. Além disto, a intuição inferior introvertida pode se manifestar sob a forma de pressentimentos ou pre­ monições negativas sobre si mesmo, achando que desgraças ou doenças podem lhe acontecer. Às vezes, também é atraído por histórias de fantasmas ou superstições, deixando de lado todo o realismo de sua função superior.

16,5,6.

Tipo sensação introvertida

Este tipo, como o anterior, possui uma ótima capacidade de apre­ ender impressões provenientes dos objetos, mas sua atenção e interesse está primordialmente voltada para a percepção de acontecimentos internos e subjetivos. Seu comportamento está, então, mais sintonizado com a sensação interna, despertada nele por um objeto ou fato, do que com o “ aqui e agora", com os fatos concretos do mundo externo. Por exemplo, um colecionador pode pagar uma fortuna por um objeto cujas qualidades estéticas o atinjam profundamente. Sua percepção sensorial é extremamente diferenciada. Pode captar muito bem as sensações internas - não só o prazer estético, mas também as mínimas reações de seu organismo. São pessoas que se preocupam muito com o próprio corpo. A função inferior é a intuição, com caráter extrovertido. Quando esta irrompe, de modo primitivo, pode ter pressentimentos ou fantasias de ser vítima de forças externas, ou de que outros podem ter alguma influência negativa sobre si. Muitas vezes sentem-se inseguras quando uma fantasia ou imagem os assalta. Não estão aptos a lidar com este tipo de coisas, sentindo-se como se o seguro chão da realidade estivesse fugindo sob seus pés.

16.5,7, Tipo intuição extrovertida Como a intuição é a função que apreende principalmente o movimento das coisas, as possibilidades, as pessoas deste tipu geralmente são inovadoras. Sendo extrovertidas, sua intuição lhes diz o que vai acontecer, quais as potencialidades das situações no mundo externo. Por exemplo, um intuitivo extrovertido pode ser um grande jogador na bolsa ou fazer ótimos negócios. 161

utilizando seu “faro" para o que pode dar certo. No campo da ciência, sempre se interessa pelas últimas aquisições. Nunca está parado, sempre está empreendendo alguma coisa nova. Mas, muitas vezes, abandona seus pro­ jetos, pois não suporta a rotina ou as situações estáveis. Em virtude disto, raras vezes colhem o que plantam. Como a função inferior é a sensação introvertida, a pessoa deste tipo raramente percebe o que está acontecendo com seu corpo, demora a perceber que está cansado ou com fome, por exemplo. Estas sensações interiores podem tomar, então, um aspecto negativo e passarem a exigir sua atenção através de sintomas físicos, por exemplo.

16.5.8.

Tipo intuição introvertida

Assim como o tipo intuição extrovertida, as pessoas deste tipo também estão sempre atrás das futuras possibilidades. Mas como são intro­ vertidas. geralmente são os acontecimentos subjetivos que as atraem mais. É o tipo do sonhador místico, dos artistas visionários. Os mais altos expoen­ tes deste tipo são os criadores de novas filosofias ou religiões. Muitas vezes considerados excêntricos, possuem no entanto a capacidade de apreender os movimentos ainda incipientes de transformação de toda uma cultura, como no caso dos profetas. Como é altamente solicitado pelo mundo interno, sua percepção da realidade objetiva é fraca e indiscriminada. É o pior tipo de pessoa para descrever um acontecimento externo ou prestar testemunho, pois pode contar absurdos, sem nenhuma intenção, levado pela sua falta de concen­ tração no mundo externo e fantasia muito viva. Às vezes, chega a fugir da realidade, tomando-se desadaptado e levando uma vida excessivamente simbólica. Para o intuitivo introvertido, a perda de contato com o real, com o mundo objetivo, pode ser uma ameaça, da qual ele só escapa se aceitar trabalhar mais com a sua função inferior, a sensação extrovertida. Muitos artistas, por exemplo, quando passam a ser sustentados por um mecenas e não tém mais que se preocupar com o lado prático da vida (sensação extrovertida), perdem muito de sua criatividade.

162

17 Conclusão Freud e Jung: semelhanças e diferenças

Jung aproximou-se da Psicologia através da Psicanálise e do seu rela­ cionamento com Freud. Assim, a obra de Freud foi o ponto de partida de Jung. É o ponto de referência principal para compreendê-lo e às m odifi­ cações que foi introduzindo. Na verdade, Jung utilizou as mesmas palavras e conceitos que Freud. Porém, a partir de um certo momento, tentou imprimir-lhes um significado um pouco diferente. A noção de energia psíquica ou libído é um exemplo, assim como a noção de Inconsciente, que Jung achou necessário dividir em Inconsciente pessoal e coletivo. A grande diferença entre os dois enfoques é exemplificada pela diferença entre os conceitos de self e superego. Em Freud, a preocupação é com o agente repressor que é introjetado devido a proibições culturais. O instinto sexual buscaria basicamente o incesto que, ao ser proibido, leva à sublimação do instinto nas diversas atividades culturais. Jung, por outro lado, postulou a existência de um “ instinto” psí­ quico principal, que é a tendência da personalidade a realizar-se plenamente. Esta força é basicamente criativa, e seria a fonte tanto da sexualidade quanto da moral e das produções culturais, entre elas a religião. Para Ju ng,o incesto é apenas um entre os muitos arquétipos existentes; e a proibição do incesto é também arquetípica ou natural, ou seja, faz parte da bagagem que torna o homem especificamente humano, e que é inata. Assim, se para Freud a civilização é um resultado da repressão, para Jung, numa visão mais otimista do ser humano, é o resultado da tendência do homem a se desenvolver e realizar. Jung via, inclusive, um desenvolvi­ mento arquetípico da civilização, considerando as transformações que a consciência humana vem sofrendo desde o início da História como uma 163

espécie de “ individuação" da humanidade. Por outro lado, advertia cons* tantemente sobre os perigos que a civilização e o homem moderno estariam correndo, devidos à unilateralidade da nossa cultura, que só valoriza a consciência e o Ego, e ao enorme poder que esta tem conseguido sobre a natureza. Jung procurava, no homem, sobretudo o universal, o arquetípico. Devido a esta visão, ele resgatou, para o estudo psicológico, enorme quan­ tidade de símbolos, mitos, religiões e as mais variadas produções culturais, de diferentes culturas e épocas. Entre estas, talvez o estudo da Alquimia tenha sido uma das contribuições mais importantes. Para a Psicologia e a prática psicoterapêutica, a conseqüéncia mais im portante da mudança de enfoque que Jung proporcionou é a visão do prospectivo e da normalidade. A Psicanálise, com Freud, baseia-se no “ por que“ médico científico — procura as causas das manifestações inconscientes. Jung introduziu a pergunta “ para que“ , pois considerava sempre a tendência para o desen­ volvim ento da personalidade. Assim, um símbolo para Jung não vai ser um substituto de algo que ficou no passado, mas um gerador de energia, um veículo do que a pessoa vai atingir no futuro. A diferença é uma conseqüéncia do conceito do inconsciente. Se, para Freud, o inconsciente é o reprim ido, ele vai procurar, nas manifesta­ ções inconscientes, a causa destas, que será o desejo subjacente. Porém, se, para Jung, o inconsciente é criativo, a manifestação inconsciente vai ser a própria expressão desta criatividade, no sentido do desenvolvimento da personalidade. Além disto, o conceito de arquétipos e do processo de individuação ajuda a tirar um pouco a ênfase no patológico, pois conceitua-se um potencial instintivo na psique que pode atuar paralelamente a traumas e vivências patologizantes, no sentido de contorná-los e ultrapassá-los. Na prática terapêutica, Jung valorizava mais o encontro entre duas pessoas, terapeuta e cliente, do que uma técnica bem definida. Nunca sistematizou uma técnica terapêutica; pelo contrário, dizia que não havia regras, e que com cada cliente faria o que achasse melhor. Então tanto podia dar conselhos sobre a vida do cliente, quanto analisar a transferência. Evidentemente, em sua prática, a análise dos sonhos tinha um papel fundamental. Duas técnicas foram desenvolvidas por ele para lidar com o Inconsciente. Uma delas é a amplificação, que consiste em se relacionar um sím bolo com todas as manifestações e analogias que possa ter em outras culturas, m itos, rituais etc. Através disto, ficaria mais claro qual o sentido do sím bolo, isto é, a direção para a qual ele aponta.

164

A outra é a imaginação ativa. Através desta técnica, a pessoa evoca as imagens do inconsciente e pode dialogar com elas. É uma técnica que ajuda o Ego a sc desidentiflear com as imagens inconscientes, objetivá-las e relacionar-se com elas de forma ativa. Esta, para Jung, é uma atitude essencial para o desenvolvimento da personalidade.

165

18 Referências bibliográficas e bibliografia

Referências Evans. L R. Entrevistas com Cart G Jung e as Reações de Ernest Jones. Rio de Janeiro, Livraria Eldorado. 1964. Jung, C. G. Aion - Escudo sobre o Simbolismo do si mesmo. Petrópolis. Vozes, 1982. Jung. C .G . O Homem à Descoberta de sua Alma. 2? ed. Porto. Livraria Tavares Martins. 1975. Jung. C. G Psicologia do inconsciente. Petrópolis. Vozes. 1978 a. Jung. C. G. O Eu e o Inconsciente. Petrópolis, Vozes. 1978 b. Jung.C. G. Memórias. Sonhos e Reflexões. 4? ed. Rio dc Janeiro, Nova Fronteira, 1981. Jung.C. G .e col. O Homem e seus Sím bolos. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1980. Lacaz.C. R. M. Por que psicologia analítica. Temas. 14. 21-32, 1978. Silveira. N.Jung - Vida e Obra 7? ed. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1971.

Bibliografia Embora a obra completa de Jung nâo se encontre traduzida para o português, indicamos a seguir os livros disponíveis, além dos já citados acima. Apresentamos também uma relação de livros sobre Psicologia Analítica publicados em português. Freud/Jung. Correspondência Completa. São Paulo. Imago, 1976. Jung. C .G . A Energia Psíquica.Peuópohs, Vozes, 1984. Jung, C. G. ^4 Natureza da Psique. Petrópolis, Vozes, 1984. Jung, C .G . Fundamentos de Psicologia Analítica (As Conferências de Tavistock). Petrópolis. Vozes, 1972. Jung.C. G. Interpretação Psicológica do Dogma da Trindade. Petrópolis, Vozes, 1978. Jung. C. G. O Desenvolvimento da Personalidade. Petrópolis, Vozes, 1981. Jung, C. G. e Wilhelm, R. O Segredo da Flor de Ouro. 2? ed. Petrópolis, Vozes, 1984. Jung. C. G. O Sím bolo da Transformação na Missa. Petrópolis, Vozes, 1979. Jung, C. G. Prática da Psicoterapia. Petrópolis, Vozes, 1981. Jung, C. G. Psicologia e Religião Petrópolis, Vozes, 1978. Jung, C. G. Psicologia e Religião Oriental. 2.a ed. Petrópolis, Vozes, 1982. Jung, C. G. Resposta a Jó. Petrópolis, Vozes, 1979.

166

Jung. C. G. Tipos Psicológicos. 4.a cd. Rio de Janeiro, Zahar, 1981. Jung, C. G. Sincronicidadc: Um Principio de Conexões A causa Is. Pctrópolis. Vozes. 1984. Sobre Jung e sua obra Fordham Fricda. introdução à Psicologia de Jung. Lisboa. Coleção Pelicano. 1972. Hall c Nordhy introdução à Psicologia Junguiana. São Paulo. C u ltrix , 1980. Storr Anthony. As idéias de Jung. São Paulo. EDUSP, 1978. Sobre Psicologia Analítica (Diversos autores). Pais e Mães. São Paulo, Ed. Sím bolo. 1979 Franz. Maric Louisc von. interpretação dos Contos de Padas Achiam c. 1981. Guggcnbuhl-Craig, Adolf O Abuso do Poder na Psicoferapia. Achiam c, 1978 Guggcnbuhl-Craig, Adolf. O Casamento esfã M orto. Viva o Casam ento.1 S ím b o lo , 1980. Hiliman, James. Estudos de Psicologia Arquetípica. Achiamc', 1981. Junguiana. Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia A nalítica. São Paulo. 1983.

167

Impresso na

press grafic editora e gráfica Itda Rua Barra do Tibagi. 444 • Bom Retiro Cep 01128 - Telefone: 221^317

Temas Básicos de Psicologia reúne aurores com vasta expe­ riência didática Cm nosso Meio. Os textos elaborados são introdutórios e servirão como roteiro básico para os alunos, além de auxiliar os professores na preparação e desenvolvi­ mento do programa de suas disciplinas. v. v. V.

1 2 3

v.

4

v.

5

v. V.

6 7

v. v. v.

8 9-1 941

v.

9-1II

v. v. v. v. v. v. v. v. v. v.

10-1 10-11 31 12 13 Í4 15