Marxismo e teoria da personalidade [I]

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MARXISMO E TEORIA DA PERSONALIDADE

HORIZONTE UNIVERSITÁRIO A FORMAÇAO DA CIÊNCIA ECONÓMICA Henri Denis PROBLEMAS DE HISTÓRIA DA FILOSOFIA Théodore Oizerman ENSAIO SOBRE O DESENVOLVIMENTO DA CONCEPÇÃO MONISTA DA HISTÓRIA Plekhanov HISTÓRIA GERAL DO SOCIALISMO, I vol. Jacques Droz e outros HISTÓRIA GERAL DO SOCIALISMO. II vol. Jacques Droz e outros HISTÓRIA GERAL DO SOCIALISMO, III vol. Jacques Droz e outros POSIÇOES Louis Althússer DO PORTUGAL DE ANTIGO REGIME AO PORTUGAL OITOCENTISTA Albert silb e n EPISTEMOLOGIA GENETICA E EQUILIBRAÇAO В. Inhelder, R. Garda б J. Vonéche DA INDÚSTRIA PORTUGUESA — DO ANTIGO REGIME АО CAPITA­ LISMO — ANTOLOGIA Joel jSerroo e Gabriela Martins O DESENVOLVIMENTO DO PSIQUISMO Alexis Leontiev DOUTRENADORES COOPERATIVISTAS PORTUGUESES Fernando Ferreira da Costa MARXISMO E TEORIA DA PERSONALIDADE. I vol. Luden Sève

Luden Sève

MARXISMO E TEORIA DA

PE R SO N A L ID A D E VOLUME I

LIVROS HORIZONTE

Titulo original: Marxisme et Théorle de la personnallté Copyright by: Editions Sociales Tradução; Emanuel Lourenço Godlnho Capa: Soares Rocha

Reservados todos os direitos de publicação total ou parcial para a língua portuguesa por

LIVROS

HORIZONTE,

LDA.

Rúa das Chagas, 17-1.» Dt.° — 1200 LISBOA que reserva a propriedade sobre esta tradução

PRÓLOGO O livro que vão ter nãotem nada a ver com шла simples obra de circunstância, bascada improvisação; Desde o inicio da u n t í^ intelectual indepen­ dente, dediquei aos problemas da psicologia uiri interesse profundó., ■ ;•CU4 -.íf;v.-■ ^ \ Foi em parte o desejo de me tomar psicólogo que, quando estudante, me fòvou em Í945. Ifi, dedicar-me Jt filosofia é sabido que nó^énsinp francêsestá compreende iguàlínente a psicologia ^ e mais tárdê, já ' que era exigido iim certifi­ cado de licenciatura: científica. para á admissão como pro­ fessor de Filosofia, 'a'^es^Jber o dê Psicofisiologia. Mas a psicologia vigente; por Vezes cativante ém certófí aspectos, globalmente acabou pòí me dècepcionan só nela encontrei algum rigor científico nò qué respeita ao éstudo dé problemas perfeitamente despersonalizados, e praticaménte nada que tivesse relações concretas com pma vida humana real, e, para começar, com a munha; Foi, à\ margem do ensino psicológico universitário, e não poucas vezes contra ele, que me debrucei sobre a personalidade, embrenhando-me em numerosas obras de índole literária ou filosófica, em busca de uma compreen­ são autobiográfica. Fora publicada pelas Êditions Sociales em 1947 La Crise de la psychologie contemporaine; esta crítica profunda de Politzer contribuiu para ¿mentar as minhas reflexões no sentido do marxismo. O que me inte­ ressava na sua obra era o facto de que o rigor da sua recusa da psicologia clássica desembocava precisamente na pro­ messa de uma psicologia ao mesmo tempo concreta e cien­ tífica, à qual eu justamente aspirava. Estava de acordo quer com o que Politzer negava quer com o que ele defendia. A este respeito, a psicanálise, se bem que me parecesse

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conter uma grande dose de verdade, interessava-me menos do que a malfadada obra de Janet, a qual, apesar das suas inúmeras limitações, me entusiasmava pelo seu sentido da actividade psicológica e do carácter histórico-social da per­ sonalidade. Uma viragem decisiva nesta reflexão sobre a psicologia foi resultado de ter empreendido a fundo o estudo de Lenine, a partir de 1950. Com o que aprendi em Lenine adquiri a con­ vicção de que o que viciava a concepção vulgar do indivíduo era a ideologia burguesa, a qual naturaliza a actividade psi­ cológica e a personalidade — quer este naturalismo adquira formas materialistas ou espirituais. Em Lenine, pelo con­ trário, julgava discernir os fundamentos de uma psicologia historicamente concreta e revolucionária, em que a vida real do indivíduo é entendida no quadro da interiorização das relações políticas. Foi por isto que, quando a revista mar­ xista de psicopatologia La Raison (*), no seu n.° 4 (1952), apresentou, em vários artigos, a psicologia pavloviana como sendo a base da verdadeira psicologia materialista, lhe enviei uma longa carta de discordância onde procurava traçar a fronteira, quer dizer, o limite de validade, entre a ciência pavloviana da actividade nervosa superior e uma ciência da personalidade que eu pretendia basear no materialismo histó­ rico, mas que, nessa época, eu confundia, de facto, com uma «psicologia social)). Foi esta posição que tornei clara no meu artigo de La Raison, intitulado «Pavlov, Lenine e a psi­ cologia» (escrito em 1953, publicado no n.° 9-10 de Dezembro de 1954) e na minha intervenção no colóquio sobre Lenine organizado pela revista L a Pensée («Lenine e a psicologia», La Pensée, n.° 54, de Setembro de 1954). Mas, durante este período, uma outra viragem decisiva tivera lugar nas minhas reflexões, e da qual estas publica­ ções ainda não dão mostras: a leitura e o estudo atento de O Capital, feitos em 1953, leitura essa durante a qual me não privei de colocar ao texto de Marx as minhas questões psico­ lógicas. Em numerosas notas, que nunca passaram do estado de rascunho, comecei a entrever um terreno específico no que respeita à psicologia da personalidade articulada com o

(*) -FOI aqui decidido m anter o título original das revistas citadas por razões perfeítamente óbvias (N. do TO

Prólogo

materialismo histórico, e elaborei, a partir de O Capital, um certo número dos conceitos essenciais de que me servi no último capítulo da presente obra, particularmente no que respeita ao conceito, que é, a meus oihos, fundamental, de emprego do tempo. Contudo, imimeros conhecimentos, indis­ pensáveis em psicologia e ainda mais em marxismo, conti­ nuavam^ faltar-me. Õ meu trabalho sobre a psicologia pros­ seguiu até por volta de 1956, mas sempre emperrando em contínuos obstáculos, para além de que o curso das minhas actividades levou a que me consagrasse, principalmente e durante alguns anos, ao estudo de outros problemas: a crítica das deformações revisionistas dó m agism o, a, dialéctica, a história da filosofía francesa despe o século Na realidade, através dessa; lógica profunda qué informa todo o tipo de pesquisa teórica*1quando esta atinge pm pro­ blema realmente fundamental e é prosseguida ao lpngp de várias dezenas de anos, cada uni destes temas por piim abor­ dados acabava por me reconduzir, de uma certa forma, à teo­ ria da personalidade: a luta contra as mfomulações xlireitistas do marxismo e. a critica dó existencialismo colocavam p pro­ blema do psicologismo, enquanto a história da fílosofia francesa do século x ix , o do biologismo; quanto ao estudo da dia­ léctica, à qual me comecei a consagrar com um ardor sempre crescente, ela representa o preâinbulo epistemológico decisivo para todo e qualquer trabalho;teórico que pretenda ter um mínimo de rigor científico. O ensino da Filosofia no liceu, devido, ao mesmo tempo,. a o : programa de psicologia que nela se inclui e à prática psicopedagógica que deve procurar desenvolver, não deixava igualmente de me ШреИг no mesmo sentido. Eis porque quando a revista U Êçote et la nation me pediu, em 1962,. um; artigo sobre os problemas dás relações entre os docentes e os pais dos alunos, vi, de ime­ diato, estar aí a ocasião para tornar do domínio público um certo número de ideias que, de ihá meses, eu vinha incubando, e, em particular, a oportunidade para retomar á crítica, sempre necessária, do físiologisíno, ao nível primário e popu­ lar, mas realmente fulcral, crença nos «dons». Um pri­ meiro artigo, bastante resumido, publicado em Novembro de 1962 em L ’Écoie et la natipn, desencadeou uma yiva dis­ cussão, no decurso da qual foquei mais em pormenor o pro­ blema em causa (Junho de 1963), o que me obrigou ^ con­ sultar toda uma vasta bibliografia especializada. Após deba-

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tes colegiais e públicos bastante animados, retomei nova­ mente a questão num longo artigo intitulado «Os ’dons’ não existem» (L ’École et la nation, Outubro de 1964). As crí­ ticas que me foram feitas relacionavam-se; na minha opinião, por um lado com a elaboração ainda insuficiente da con­ cepção da personalidade, subjacente a este estudo, e por outro com a persistência, mesmo entre os marxistas, de fer­ renhas ilusões pseudomaterialistas a respeito do homem. Contudo, em relação ao sentido geral do artigo, quer dizer, à refutação da ideologia burguesa dos «dons», a aprovação do essencial foi, ao fim e ao cabo, claramente superior às críticas. Julgo ser meu dever referir a de Jean Rostand, expressa publicamente por várias vezes, e tanto mais signi­ ficativa quanto, na base de alguns dos seus anteriores textos, já antigos, ele é frequentemente considerado como um defen­ sor do inatismo das aptidões intelectuais. Estes dois anos de trabalho sobre o problema dos «dons», ao mesmo tempo que me davam uma consciência mais aguda de tudo o que, no fundo, era ainda necessário elucidar em matéria de teoria da personalidade, quer no que respeita às minhas próprias concepções, quer à bibliografia cientí­ fica existente, foram a origem directa da presente obra. Tanto mais que a importância verdaderamente fulcral do problema da individualidade humana surgia em todos os pontos car­ deais da pesquisa marxista e dos debates ideológicos: crítica e ultrapassagem das deformações dogmáticas do marxismo, bem como da sua alteração «humanista»; elaboração exaus­ tiva do materialismo histórico e reflexão sobre as modali­ dades e finalidades humanas do socialismo; discussão dos recentes ensinos das ciências humanas e do anti-humanismo estruturalista — tudo acaba por colocar incessantemente na ordem do dia esta temível interrogação: que é o homem? Elaborei, portanto, no início de 1964, o projecto de um breve ensaio onde avançaria algumas hipóteses sobre a forma de resolver em profundidade este vasto problema a partir do marxismo, e, no Verão de 1964, iniciei uma primeira redacção, que a falta de tempo e o desabrochar constante de novas dificuldades teóricas, interrompeu a meio caminho. A publicação, em 1965, dos três livros de Louis Althus­ ser e dos seus companheiros, marcou uma nova etapa no meu trabalho. A interpretação anti-humanista, teoricamente fa­ lando. que neles é dada de O Capital, e, partindo daí, de todo

Prólogo

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o marxismo* vinha dar a certas teses do meu manuscrito urna indiscutível confirmação, a outras uma radical oposição, e, em resumo, a todas elas uma. nova exigência de aprofun­ damento de análise. Estes livros,,, de valor sem par, bem como a igualmente valiosa discussão que suscitaram, obri­ garam-me a elaborar, de uma forma muito mais exaustiva, as minhas próprias posições, em desacordo consumado, se bem que devidamente circunscrito, com o anti-humanismo teórico, logo, a reformular por completo toda a minha obra sobre o assunto, o que é suficiente para dar a entender o quanto esta lhes é devedora. Em 1966 dediquei-me a elaborar uma segunda redacção do meu livro, que parecia acabar por vir a ter шла conclusão rápida, e do qual uma passagem, consagrada a O: Capital e às lições que dele dimanam no que respeita a uma concepção do homem, surgiu em L a N ouvelle Critique, em Novembro de 1966. N o seguimento de várias e inúmeras dificuldades, e do amadurecimento tanto subjectivo como objectivo do problema, só pude retomar este trabalho no Verão de 1967, procedendo a uma terceira redac­ ção, desta feita quase completa, e à qual corresponde o texto de uma conferência pronunciada na Universidade Nova de Paris, em Março de 1968, sobre a teoria marxista da indivi- v, dualidade humana. O texto que vão ler é o fruto de uma quarta redacção, mais uma vez profundamente remodelada, que foi iniciada em Abril e terminada em Agosto de 1968. É certo que não tenho intenção de dissimular as inúmeras imperfeições do meu trabalho, tal como aqui se apresenta. Reconheço, desde já, bastantes falhas que justificariam uma quinta redacção. Tal como Marx escrevia, numa carta enviada a Lassale, em 22 de Fevereiro de 1858, na altura em que começara a redacção, que julgava ser a afinal, da Contri­ buição para a Crítica da Economia Política, o que corresponde, de facto, ã verdade: «O assunto a avançar muito lentamente; assim que se pretende terminar com certo tipo de temas, os quais foram, durante anos, o objecto principal das nossas pesquisas, não cessam de surgir novos aspectos sob os quais estes podem ser focados, e de nos encherem de escrúpulos. Por outro lado, não sou senhor do meu tempo, mas antes seja servo...» Mas chega uma altura em que, do próprio ponto de vista da prossecução da investigação, nada é mais neces­ sário do que a crítica colectiva, que pressupõe a publicação.

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Assim, escrito à base de investigações, de publicações e de sucessivos aprofundamentos da análise, prosseguidos durante cerca -de vinte anos, o livro que vão ler exprime um ponto de vista que, seja qual for a óptica por ~que for apreciado, atingiu, no que respeita ao essencial, a sua plena maturidade. Formulo a esperança de que será lido e julgado como tal. Dezembro de 1968.

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CAPÍTULO I

U M A CIÊNCIA EM GESTAÇÃO: A PSICOLOGIA D A PERSONALIDADE

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É assiin que, desde o início da exposição da economia política marxista, surgem as contradições de base entre a uti­ lidade e o valor no seio da mercadoria, entre o aspecto con­ creto e o aspecto abstracto do trabalho social, etc. A desco­ berta da conceptualização, correspondente às contradições fundamentais do objecto, é um critério essencial para definir a maturidade de uma ciência. É digno de nota, a este respeito, o facto de que, na base da psicologia pavloviana, se bem que não tenha sido elaborada a partir de um conhecimento pré­ vio da dialéctica marxista, se encontrem as contradições entre excitação e inibição, entre irradiação e concentração, entre análise e síntese. Não podemos igualmente deixar de reflectir no facto de que a psicanálise obtém uma considerável parte da sua audiência teórica precisamente porque apesar do carác­ ter discutível de um certo número de conceitos que estão em jogo, procura reflectir a estrutura contraditória do incons­ ciente e do psiquismo, por exemplo, quando opõe pulsões de vida e pulsões de morte, concretização das possibilidades e redução das tensões, líbidoobjectiva e libido-narcisista, trans­ feri (*) e contra-transfert* etc.40 Na minha opinião, os mar­ xistas, por outro lado, subestimaram, no seu conjunto, esta contribuição, pelo menos tendencialmente dialéctica, da psica­ nálise, nem que fosse, em primeiro lugar, pelo seu valor de sintoma. за к . Marx e F. Eneels: Mudes philosophiques, £d. Sociales. 1974, p. 130. (*) Transfert — termo usado em psicanálise que pode traduzir*se em português por transferência, sendo, contudo, igualmente legítimo o uso do próprio termo transfer. (N. do T.) cf. nomeadamente D. Lagache: «Psychanalyse e t structure de la personnalité». La psychanalyse, n.o 6, Perspectives structureles, P. U. F.. 1961, p. 21; J. Laplanche e' J.-B. Pontalis: Vocabulaire de la psychanalyse, P. U. F., 1967, artigo: «Couple d ’opposés», p. 106.

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Ora actualmente, salvo erro, os conceitos de actividade que são usados pelas varias teorías psicológicas, como com­ portamento, estrutura, função, etc., não vão, de forma alguma, ao encontro das verdadeiras contradições fundamentais e per­ manecem como conceitos prérdialécticos, incapazes de expri­ mir a lógica interna do desenvolvimento psíquico. Isto, segundo parece, com uma única excepção: na conceptualização psicológica contemporânea, a única contradição que pos­ sui, a uma primeira abordagem, a amplitude de uma contradi­ ção fundamental, é a contradição entre o indivíduo e a sociedade, que encontramos, sob várias formas, na base de toda a psicologia do comportamento, tal como, igualmente, na da psicanálise, e que é a própria contradição que obceca as relações entre psicologia e ciências biológicas, por um lado, e ciências sociais, por outro. E mesmo assim acontece que esta •-contradição fundamental» é uma falsa contradição, mesmo e sobretudo se nos esforçarmos por a pensar dialécticamente. Com efeito: a) Ou bem que a terminologia indivíduo-sociedade pre­ tende significar e, em todo o caso, recobre uma oposição entre hereditariedade e meio ambiente, entre inatismo e aquisição, entre Natureza e cultura ou, se preferirmos a terminologia inglesa. Natureza e nurture (*), em resumo, entre coorde­ nadas biológicas e condições sociais. Mas então, se as coorde­ nadas biológicas em que se pensa são, realmente, biológicas de uma forma autónoma — por exemplo, o tipo nervoso, no sentido pavloviano do termo, e considerando que se manifesta muito precocemente — não apresentam com as condições sociais a mínima das unidades, e não são, portanto, de modo nenhum, contrários, no sentido dialéctico fundamental do termo. Não são o resultado da diferenciação de uma unidade em elementos opostos cuja luta interna impulsiona o desenvol­ vimento necessário, mas sim o encontro fortuito de elementos em si mesmo independentes, ou seja, que são aquilo a que por vezes se chama — usando uma expressão perfeitamente discutível do ponto de vista dialéctico — «contrários externos» (como, por exemplo, o podem ser a geografia física e estru­ turas políticas no desenvolvimento de uma nação), cujas relai’l

Nurture — um Inglês, uo original: criação (N. do T.)

Orna ciência em gestação

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ções recíprocas não poderiam ser determinadas por uma lei dialéctica interna de crescimento. Em suma, se bem que pos' sam exprimir um aspecto real e não negligenciável do desen­ volvimento da personalidade, e sobre o qual voltaremos a talar, não vão ao encontro, na sua oposição externa, de uma real conceptualização de base, que exprima as contradições internas do seu objecto, e não podem, portanto, de forma alguma, fundamentar uma ciência, isto é, baseá-la por inteiro. b) O il então as coordenadas para as quais remete a noção de indivíduo são, na realidade, em si mesmas, coordenadas sociais disfarçadas — como, por exemplo, o essencial do que se visa, ao falarmos de necessidades, ou de «instintos», no homem — e, nesse caso, a «contradição entre o biológico e o social» não passa de uma forma ilusória, mistificadora, de uma contradição entre determinadas coordenadas sociais e outras coordenadas sociais, o que equivale a afirmar que, nesse sentido, a oposição clássica entre indivíduo e meio am­ biente em psicologia, longe de exprimir uma contradição pri­ meira, é, em si mesma, uma forma derivada da oposição da sociedade consigo mesma. Não é, portanto, limitando-nos a opor superficialmente o indivíduo e a sociedade — nem, com muito mais razão, atendo-nos à tarefa absurda que con­ siste em avaliar matematicamente qual a «parte relativa de influência» destes dois «factores de desenvolvimento da per­ sonalidade» que seriam a «hereditariedade» e o «meio am­ biente», tarefa essa na qual o formalismo matemático parece ser, efectivamente, a folha de videira que cobre a vergonha da miséria dos conceitos de base — , mas sim ao analisarmos os efeitos psicológicos internos das contradições sociais, que se pode esperar atingir uma verdadeira conceptualização de base em psicologia. Por outras palavras, enquanto o funda­ mento teórico do conceito de indivíduo humano não for escla­ recido, a teoria da personalidade mantém os seus alicerces mergulhados nas areias movediças da ilusão ideológica. Ora, não se vê, pelo menos de momento, perfilar-se uma teoria da personalidade que assente numa elucidação verda­ deiramente científica deste conceito. Melhor: inúmeros psi­ cólogos que se ocupam destas questões nem sequer parecem aperceber-se deste estado de coisas, ou tomam a sua posição com uma facilidade desconcertante. Quando se lê, por exem­ plo,' em As Variedades do Temperamento, de Sheldon, ina­ creditável referência ao falso problema «hereditariedade-meio

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ambiente», onde o autor afirma não ver, ao fim e ao cabo, outro meio de ultrapassar a oposição que não seja «dar provas de tolerância na definição da personalidade» 41, ou seja, em suma, que propõe adoptar a irresolução face a esse falso probema, como solução de compromisso, somos tentados a con­ siderar que, se perseverasse nesta via, a psicologia da perso­ nalidade correria o sério risco de envelhecer sem nunca ter atingido a maturidade. 3.

U ma ciência e m questão

Quanto às leis gerais de desenvolvimento dei personalidade, apenas é necessário sublinhar que, neste domínio, nada se encontra, de momento, estabelecido. Não só ninguém se arrisca a enunciar cientificamente tais leis, como também as coisas se encontram num ponto tal que o simples facto de propor semelhante tarefa tem todas as hipóteses de passar por perfeitamente incongruente. Reflectindo bem no problema, trata-se mesmo neste caso de uma estranha situação. Em toda a ciência adolescente observa-se, vulgarmente, uma profusão de generalizações sugestivas e frágeis, de teorias ambiciosas e nadas-mortas: defeitos de juventude, é certo, mas, ao mesmo tempo, indícios claros de vida, esboços falazes mas eminen­ temente úteis do que será a ciência adulta de amanhã. Este período heroico, esta floração de hipóteses anunciadora de grandes descobertas, são desconhecidos, no caso da psicologia da personalidade, de que, contudo, poderia ser a época, mas que, em relação a estas grandiosas ambições teóricas, parece, com frequência, ter-se deixado cair num cepticismo moroso, pronta a satisfazer-se indefinidamente com a justaposição de modelos fragmentários e contraditórios. Deste ponto de vista, que é certo que não devemos sobrestimar, mas que, hoje em dia, vemos principalmente ser desprezado, um certo afã em trabalhos de uma limitação deliberada, uma espécie de pola­ rização invencível no sentido da ciência fragmentada, uma fixação em clássicos, sem dúvida dignos de consideração, mas que também seria necessário saber ultrapassar, dão fugidiaim, de lhe fornecer os materiais teóricos existentes, graças aós quais ela pode defini-los. Mas o que afasta um grande número de psicólogos de procurarem na filosofia marxista, tal como em qualquer outra filosofia, ò fundamento prévio para uma concepção cientí­ fica geral do homem é a convicção extremamente difundida e enraizada, em particular nos homens de ciência, de que toda a filosofia, sem excepção, seria, segundo a fórmula bastante significativa de R. Pages, na sua resposta a G. Canguilhem, «uma forma de explicitar valores (escolhas, apre­ ciações) para lá do conhecimento» N o mesmo espírito, Jacques Monod afirma que existe «um hiato nas relações entre o conhecimento objectivo [...] e toda a espécie de sentimentos ou de teorias dos valores». e que, por consequência, a adopção de um sistema ético, elemento capital de toda a antropologia filosófica, advém de uma «opção (que) nunca poderá surgir como totalmente satisfatória» ÓS. Ora, é perfeitamente exacto que toda a filosofia, até Marx, se baseou, pelo menos parcialmente, em premissas teóricas por demonstrar, em juízos científicamente contingentes. Mas o acto de irrupção do marxismo consiste numa transforma­ ção radical da própria posição da questão. Toda a filosofia se baseia em premissas teóricas que, enquanto tais, são, em parte, arbitrárias, e, por consequência, é impossível que uma filosofia se fundamente, por completo, em si mesma. Mas,*65 « Obra citada, p. 31. 65 j. Monod, «La science, valeur supreme de l’Jiomme». ñaison présente, n.° 5. Novembro de 1967, p. 15.

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estudadas de uma forma radicalmente crítica, ou seja, à luz de uma verdadeira ciência da história,. estas premissas teó­ ricas arbitrárias revelam não ser outra coisa senão expressões ideológicas, mais ou menos deformadas e abstractas, das premissas reais em que, necessariamente, se baseia a própria actividade filosófica, quer dizer, a vida social reaL Como o escreveu Marx, a propósito de Max Stirner — mas a obser­ vação tem um alcance universal: «Estas premissas reais são igualmente as premissas das suas premissas dogmáticas, que encontra simulta­ neamente, ao mesmo tempo que as condições reais, quer o queira quer não, e isto enquanto as premissas reais não tiverem mudado e com elas as premissas dogmáticas, ou ele não tiver compreendido, como pensador materialista, que as condições reais são as premissas do seu pensamento, o que elimina, de uma vez por todas as premissas dogmáticas.» 66 Texto capital, onde se encontra, ao mesmo tempo, for­ mulada uma crítica decisiva a toda a filosofia, no anterior sentido do termo, e indicada a via para uma concepção radicalmente nova da filosofia, que se tomou plenamente científica na medida em que, tendo sido afastada toda e qualquer premissa arbitrária, passa a fundamentar-se unica­ mente no estudo objeetivo das condições reais. «As premissas de que partimos não são bases arbi­ trárias, dogmas; são bases reais de que só podemos abstrair em imaginação. São os indivíduos reais, a sua acção e as suas condições materiais de existência, tanto as que encontraram como já existentes, como as que nasceram da sua própria acção. Estas bases são, portanto, passíveis de verificação por vias mera­ mente empíricas.» 67 Trata-se de uma concepção «1»’« |> » и а» гш км ы 8 и ад а'ц а н л

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expressamênte, nas suas notas sobre o Tratado de Economia Política, de Wagner: «O meu método analítico, não partindo do homem, mas sim do período social economicamente determi­ nado, nada tem de comum com o método de acosta­ gem de noções dos professores alemães,» 118 É por isso que seria uma ideia pelo menos infeliz conside­ rar, sem nenhum tipo de precauções, um tal texto como característico do que há de mais fundamental no marxismo. Não que seja falso, bem entendido, afirmar que o homem é, / acima de tudo, um ser que trabalha, e que ele próprio se í constrói por meio do trabalho. Trata-se, pelo contrário, de w uma grande verdade, e que, por si só, situa o marxismo, e o distingue já de muitas outras concepções gerais do homem. Mas ao afirmar-se tal não se deu, contudo, um maior con­ tributo para a definição da essência específica do marxismo do que se daria para a definição da essência específica da dialéctica ao afirmar-se que consiste numa «teoria da evo­ lução». É preciso ir radicalmente mais longe do que estas generalidades abstractas, que nada dizem ainda sobre o con- v teúdo real do marxismo, e as quais podem ser subscritas por quem não é, de forma alguma, marxista. É necessário afirmar que, na questão que nos ocupa, o que define o marxismo é a alteração radical da relaçao especulativa entre a essência humana e as relações sociais, com todas as consequências teóricas que isso acarreta, nó que respeita à concepção dos homens reais. Caso contrário, o «homem» e o seu «trabalho criador» em geral transformam-se em entidades metafísicas, se não em temas místicos. Julgar-se-á talvez útil a verificação destas conclusões a partir da análise de um novo exemplo, limitado na aparência, mas sem deixar, por isso, de ser igualmente significativo. Incapaz, não sem motivo, de dar de O Capital, considerado no seu conjunto, uma representação minimamente coerente, a interpretação humanista-especulativa do marxismo procura lançar a confusão nos espíritos, brandindo alguns parágrafos, algumas frases, alguns pedaços de frase que repescou aqui e ali, e nos quais encontra jubilosamente a «prova» invisível ив Le Capital, I, 3, p. 249.

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de que Marx lhe dá razão. É assim que, afirmam-nos, numa nota do capítulo x x iv do livro i, Marx escreve: «trata-se, em primeiro lugar, de aprofundar a natu­ reza humana119120em geral e de lhe captar, posto isto, as modificações próprias de cada época histórica» 12°. Esta «natureza humana em gerai» que seria necessário, «em primeiro lugar, aprofundar» devia, bem entendido, ser-nos apresentada como um argumento de peso a favor da inter­ pretação filosófico-humanista do marxismo, e isto sem o esta­ belecer de nenhuma relação com a massa de textos que con­ tradizem absolutamente esta tese — como se, fosse como fosse e seja qual for o sentido desta pequena frase, de que nos iremos ocupar, uma linha de uma nota de rodapé pudesse prevalecer contra a flagrante coerência científica de sentido inverso que marca as duas mil páginas de O Capital, e, mais genericamente ainda, toda a obra de Marx e de Engels, desde 1845-1846. Mas vejamos um pouco esta curiosa linha, e o seu contexto — porque, na realidade, aquilo que nos apresentam como sendo um aforismo independente não passa da proposição principal de uma frase de circunstância que se inclui nomeadamente num parágrafo consagrado à crítica de Bentham. Bentham, afirma Marx, é «a imbecilidade bur­ guesa levada até à generalidade». «O famoso princípio de utilidade não é da sua invenção. Ele limitou-se a reproduzir, sem inteligência, o espírito de Helvétius e de outros escritores franceses do século xv iii. Para saber, por exemplo, o que é útil a um cão temos de estudar a natureza canina, mas não poderíamos deduzir esta mesma natureza do princípio de utilidade. Se se pretende transformar este «Die mens ch li che Natur», Das Kapital, M. E. W., t. 23, 1968, p. 637. 120Obra Citada, I, 3, p. 50. no ta 2. A citação é usada por Roger G araudy (Cahiers du Communisme, Julho-Agosto de 1967, p. 128; e peut-on être communiste aujourd’Kui?, p. 291). Já fora, no mesmo sentido, usada por Adam Schaff, em 1965, no seu livro Le Marxisme et Vindividu (A. Colin, 1968, p. 98), no qual encontram os igualm ente a pseudo V7 Tese sobre Feuerbach: «o indivíduo é o conjunto das relações sociais» (pp. 74, 119, 157, etc.) com desenvolvimentos análogos aos de Roger Garaudy, se bem que as sim patias do autor nesta m atéria vão não para o espiritualism o cristão, mas sim para a psicanálise de Fromm.

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princípio em critério supremo dos movimentos e das relações humanas trata-se, para começar, de aprofun­ dar a natureza humana em geral e de lhe captar, posto isto, as modificações próprias a cada época histórica. Bentham não se deixa embaraçar por tão pouco. O mais seca e ingenuamente deste mundo, " apresenta como homem-íipo o pequeno-burguês mo^-derno, o merceeiro, e Especialmente o merceeiro inglês. Tudo o que se refere a este estranho homem-modelo e ao seu mundo é deçlarado útil em si e por si. É por esta bitola que mede o passado, o presente e o futuro.» Assim, a crítica mordaz de Marx consiste em demonstrar que Bentham nem sequer é capaz de aplicar correctamente o método de análise dos filósofos materialistas franceses do século x v iii. Parece ser lógico esperar-se de um filósofo marxista que saiba reconhecer, nesta crítica, um condensado da longa análise que, em A Ideologia Alem ã, Marx e Engels consagravam precisamente à teoria da utilidade na filosofia das Luzes e, em particular, em Helvétius e d’Holbach, bem como à sua redução a banalidades moralizantes em Ben­ tham m. A leitura destas páginas, que Marx tinha, com toda a evidência, em mente quahdo escreveu esta pequena nota de O Capital, não permite que subsistam quaisquer dúvidas sobre o seu julgamento a réspeito desta questão. «Esta aparente tolice», lê-se em A Ideologia Alem ã, «que consiste em reduzir as múltiplas relações que os homens estabelecem entre si a esta única relação de utilitarismo possível, esta abstracção de aparência metafísica, tem como pjonto de partida o facto de que, na sociedade burguesa moderna, todas as relações se encontram praticamente subordinadas e reduzidas à relação monetária única e abstracta, à relação da troca.» *122 Por outras palavras, a teoria utilitarista acaba por consi­ derar o burguês como o homem em geral. 121- L’idéologie allemande, pp. 450 a 455. ibidem, p. 450.

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«Vê-se, a uma primeira análise, que é unicamente das relações reais de troca que mantenho com outros homens que se pode deduzir, por abstracção, a cate­ goria ’utilitarismo’; não pode deduzir-se nem da reflexão nem da simples vontade; e apresentar, então, estas relações como provas da realidade desta cate­ goria que delas se abstraiu é uma forma de proceder meramente especulativa. Do mesmo modo e com igual legitimidade, Hegel apresentou todas as relações como relações do espírito objectivo. A teoria de d’Holbach é, portanto, a ilusão filosófica, historicamente justifi­ cada, sobre o papel da burguesia, cujo desabrochar teve precisamente lugar em França e cuja vontade de exploração podia ser ainda interpretada como uma vontade de ver os indivíduos desenvolverem-se com­ pletamente adentro de trocas libertas dos velhos entra­ ves feudais.» 123 Em Bentham, este sistema filosófico impregna-se de um conteiido económico, ao mesmo tempo que o homem ideali­ zado dos pensadores franceses se toma, de uma forma cada vez mais clara, no burguês; dessa forma, a filosofia das Luzes transmuta-se numa «simples apologia da ordem existente» ,24. «Este carácter de generalidade, com a desaparição do conteúdo positivo, que se manifesta em Helvetius em d’Holbach, é fundamentalmente diferente da uni­ versalidade alimentada por dados concretos que se encontra, pela primeira vez, em Bentham e Mill. A primeira corresponde à burguesia em luta, em vias de desenvolvimento, e a segunda à burguesia triun­ fante, que completou o seu crescimento.» 125 Voltemos agora à nota de O Capital O seu sentido é evidente: «Se quisermos transformar o princípio (de utili­ dade) no critério supremo dos movimentos e das rela­ ções humanas (por outras palavras, se quisermos*12 m Uidéologie allemande, p. 452. 121 Ibidem, p. 455. ir. ibidem, p. 453.

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raciocinar como filósofos franceses do século xviii, ao id e a liz a r e m e s p e c u la tiv a m e n te as relações reais) trata-se, em primeiro lugar, de aprofundar a natureza humana em geral e de lhe captar, posto isto, as modi­ ficações próprias de cada época histórica. (Noutros termos, trata-se, na lógica de uma tal atitude especula- tiva, de apresentar as relações da sociedade burguesa escom o correspondendo às exigências de desenvolvi­ mento da ’natureza humana’.) Bentham não se deixa embaraçar por tão pouco. O mais seca e ingenuamente deste mundo (porque nem sequer compreende a fun­ ção decisiva da ideia abstracta de n a tu re za h u m a n a na teoria filosófica que retoma por sua conta) apresenta como homem-tipo o pequeno-burguês mo­ derno...» É evidente: o fragmento de frase que o preconceito filo­ sófico-humanista leva a atribuir a Marx, não obstante a evidência do contexto, como um enunciado irrecusável do se u método científico, é, na realidade, a caracterização resu­ mida de um método tip ic a m e n te e s p e c u la tiv o , o da filosofia b u rg u e sa do século xviii. Que se possa assim c o n fu n d ir, com toda a tranquilidade de espírito, o método de Marx, que é a própria essência do marxismo, com aquele que lhe é totalmente oposto, e de que o conjunto da sua obra, desde 1845-1846, constitui uma esmagadora refutação, isso teste­ munha, parece-me, com uma eloquência que se basta a si mesma, o carácter radicalmente erróneo da interpretação humanista, no sentido especulativo do termo l26. Quererá isso dizer que, nas obras da sua maturidade, Marx nunca considera, por sua conta, a noção de natureza humana? De forma alguma- Sem falar de alguns casos, raríssimos, em que a expressão não tem, efectivamente, outro sentido que não seja o da «qualidade de homem», «o faoto de ser homem», em geral, com tudo o que isso implica 127, nelas i2s Aqueles que, contudo, posuem o gosto deste tipo de pleitos não gostaríamos de deixar de assinalar um a o u tra «citação decisiva»: em Misère de la philosophic lê*se qpe a «história não passa, integralm ente, de п тя. transform ação continua da n atureza hum ana» {Éd. Sociales, 1947, p. 115). Que tenham , contudo, a bondade de observar o contexto, se desejarem evitar o ridículo de atribuir, desta feita, a Marx o vocabulário e a concepção de P roudhon... iar Cf., por exemplo, Le Capital, III, 3, p. 199.

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encontramos, por inúmeras vezes, o substantivo natureza, ou o adjectivo natural, com o fim de designar uma reaJidade bem definida; a base biológica de toda a existência humana, considerada independentemente dos efeitos que sobre ela tem a socialização. Ê assim que A Ideologia Alemã coloca, como ponto de partida de toda a história, «bases naturais», entre as quais «a compleição corporal dos indivíduos e a relação que, fruto desta, estabelecem com o resto da natureza» ,28, e as «necessidades oriundas da natureza humana imediata» 12829130*. Da mesma forma, os Grundrisse qualificam o «sujeito que trabalhai) das sociedades pré-burguesas de «indivíduo na­ tural», na medida em que «a primeira condição objectiva do seu trabalho é a natureza, a terra», que é «o seu corpo inor­ gânico», tal como possui «um corpo orgânico» ,3°. Noutro lado, Marx chama «necessidades indispensáveis» «às necessi­ dades de um indivíduo levado ao estado natural» ,31. E é perfeitamente adentro do mesmo espírito que O Capital analisa, por exemplo, as «necessidades naturais» que servem para a determinação do valor da força de trabalho ,32. ou o «limite fisiológico externo da jornada de trabalho» 133. Mas o que é absolutamente essencial ver claramente é que esta natureza humana não é precisamente a «natureza humana» de que fala incessantemente o humanismo especulativo, isto é, o conjunto das manifestações de vida do homem enquanto ser socialmente desenvolvido; como o afirmavam os Manus­ critos de 1844, numa fórmula cuja dialéctica é ainda bastante abstracta, mas já extremamente profunda, «o homem não é apenas um ser natural, mas também um ser natural humano. [...] A história é a verdadeira história natural do homem {voltando a ele)» 134. Toda a antropologia científica roda em torno deste ponto, que Marx foi o primeiro a compreender verdadeiramente. E toda a sua obra é o seu desenvolvimento devidamente justificado. Já A Ideologia Alem ã demonstra muito claramente o princípio do processo que, da produção pelo homem dos seus meios de subsistência, cria, ao mesmo tempo, a produção

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L’idéologie allemande, p. 45. ibidem, p. 320. Cf. tam bém p. 481. Fondements, t. I, pp. 450 e 451. Ibidem, t. II, p. 19. Cf. Igualm ente p. 115. Le Capital, l, 1, p. 174. ibidem, I, 1, p. 260.

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de novas necessidades, «e esta produção de novas necessi­ dades é o primeiro facto histórico» ш. Além disso, é preciso não entender unicamente por «novas necessidades» o facto de que desejos que «existem seja como for» (base natural) vêem «a sua forma e orientação (transformar-se) com as condições sociais», mas também que surgem outras «que não devem a sua origem senão a uma estrutura social determinadara um modo de produção e troca determinado» ,3*, o que. mão equivale, de forma alguma, a afirmar que seriam ((factícias» {uiu prooesso de yidà "determ m am ?#-^ I._ fflfàaptialí 7&Ь''1^Ш^0:ШойЙШ%^:% Wndência para •a ácúmuiaçãò W k , modã^d^EãíSS se manifesta necessariamente tendência^ рЙШзй ф

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quer outra espécie, se reproduz e se desenvolve através de um conjunto de indivíduos. A segunda fase da articulação é precisamente aquela que surge quando partimos não da sociedade, mas sim dó indi­ víduo; quando considerarmos já não a unidade do conjunto das relações sociais, em relação à qual o indivíduo não surge senão sob a forma eminentemente parcial de suporte de tal ou tal categoria económica ou forma de individualidade, mas sim a unidade do conjunto dos processos de vida individual na personalidade, em relação ao que, por seu turno, é a socie­ dade que surge sob a forma extremamente parcial das formas^ gerais de individualidade. Este segundo ponto de vista, especificamente psicológico porque tem por óbjecto o indivíduo enquanto tal, emerge, por várias vezes, como já o vimos, em inúmeros textos do marxismo adulto: os Grundrisse e O Capi­ tal, muito em particular, apresentam variadíssimas pedras-de-toque às quais deve ir buscar apoio uma psicologia verdadei­ ramente científica da personalidade. Mas é bem verdade que não encontramos -aí nada mais, a este respeito, que não sejam pedra-de-toque. Esta ausência de uma teoria perfeitamente elaborada da personalidade humana nos grandes textos mar­ xistas desempenhou um tal papel na crítica, em incessante ressurgimento, humanista-especulativa do marxismo, e, mais recentemente, na interpretação anti-humanista, que importa precisar cuidadosamente quais as suas razões, razões essas que nada têm a ver com uma desqualificação de princípio de toda a psicologia. É necessário, para começar, que tenhamos em mente o facto de que, no momento em que Marx escreve O Capital, a psicologia enquanto ciência positiva, experimen­ tal, ainda não existe praticamente. JÉ, em boa parte, o enorme desenvolvimento contemporâneo das ciências psicológicas que vem ecoar na nossa leitura actual de O Capital e pode tornar evidente a questão aqui colocada, mas não a podería­ mos colocar retrospectivamente a Marx, sem corrermos o risco de um certo anacronismo teórico. Noutros termos, espantarmo-nos de que Marx não tenha desenvolvido mais, no momento em que escrevia O Capital, os elementos para uma teoria da personalidade, equivaleria a espantarmo-nos pelo facto de que, ao realizar a obra colossal da constituição da economia política em ciência adulta, não tenha igualmente, e como se de passagem, inventado e edificado de uma só

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vez a psicologia científica, a qual um século mais tarde não dispõe ainda de uma teoria adulta da personalidade. Mas há mais: isso equivaleria a não compreender que, num certo sentido, ele não pôde, precisamente, tomar a eco­ nomia política numa ciência adulta, senão rompendo, de uma forma total e absoluta, com a tentação de praticar psicolo­ gia como em 1844, separando, de uma forma draconiana, o objectou,da economia política do da psicologia no sentido usado em 1844. Para, de facto, o compreender é-nos neces­ sário tomar consciência, objectivamente, do conjunto dos diferentes momentos da reflexão de Marx sobre os problemas do homem na sua conexão lógica e histórica. O ponto de par­ tida é õ conjunto das formas ilusórias que, na sociedade capi­ talista, adquirem tanto os produtos do trabalho como os pró­ prios produtores, e que mistificam a consciência imediata dos indivíduos, tal como os sistemas ideológicos mais pu menos elaborados. Na mesma medida em que as relações socíaís parecem ser relações entre as coisas, dados naturais, a essên­ cia humana surge como sendo-lhes perfeitamente estranha, & quanto mais parece ser-lhes estranha, tanto mais ela própria adquire o perfil de um dado natural. Ao fetichismo dos pro­ dutos do trabalho corresponde necessariamenteш fetichismo complementar dps poderes do produtor, ao fetichismo da mer­ cadoria, um',fetichismçnd^ímhyídua. Ё aqui que todo o humanismo abstracto e toda a psicologia especulativa mergu­ lham as suas raízes. Marx esclarece nomeadamente este ponto em páginas importantes da versão primitiva da Contribuição: para o produtor, colocado adentro de semelhantes relações sociais, «a particularidade do seu trabalho — e em primeiro lugar a sua materialização — tem a sua origem na sua própria natureza e no que esta pressupõe de parti­ cular». Assim concebida, «a divisão do trabalho é a reprodução, à escala social, * da individualidade particular, que é assim, ao mesmo tempo, um elo na cadeia da evolução total da Huma­ nidade».

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Esta concepção, que inverte as relações reais, é «a con­ cepção corrente da economia política burguesa» 231. é também a concepção corrente da psicologia e da filosofia especulati­ vas, que Marx combatia já, a respeito de-Stirner, em A Ideo­ logia Alemã, ao demonstrar que não devemos fazer derivar a divisão do trabalho das diferenças entre os indivíduos, mas sim, pelo contrário, as diferenças entre os indivíduos da divi­ são do trabalho 232. Mais exactamente ainda, as diferenças entre os indivíduos, por mais que não sejam o produto da divi­ são do trabalho, são, no mínimo, uma das causas que levam a que um dado indivíduo venha a ocupar uma dada posição num sistema social de divisão do trabalho, o qual não é, de forma alguma, a consequência destas diferenças, mas sim, pelo contrário, a origem de uma diferenciação entre os indi­ víduos que encobre e domina as suas outras diferenças. Para captar a realidade oculta por detrás destas formas ilusórias é, portanto, indispensável romper com o substancialismo da essência humana, obstáculo determinante para a alte­ ração materialista de toda a concepção da sociedade e da his­ tória — logo, segundo parece inicialmente, renunciar a ocupar­ mo-nos dos indivíduos humanos para nos ocuparmos das relações sociais objectivas. Este momento da ruptura com a reflexão directa sobre a essência humana, que se encontrava ainda em primeiro plano nos Manuscritos de 1844, é uma etapa essencial e necessária da reflexão de Marx. Em 1844, a psicologia — uma psicologia ainda especulativa— é tanto mais desenvolvida quanto, no meio da confusão, acaba por ocupar o lugar, em inúmeras circunstâncias, de uma análise económica e histórica. É por isso que os Manuscritos de 1844 são a obra de Marx ao mesmo tempo mais sedutora e falaz quanto à articulação entre marxismo e psicologia. A partir das Teses sobre Feuerbach, esta psicologia de 1844 é recusada no seu princípio, sendo a elaboração da ciência económica e histórica concebida como uma tarefa indepen­ dente, e absolutamente primordial relativamente a toda e qualquer consideração sobré o homem individual. Mas A Ideo­ logia Alemã, precisamente porque ajusta as suas contas com a concepção especulativa do homem, concede aos problemas 231 C o n trib u tio n , p. 219, Cf. toda a análise das pp. 211-227. 232 L'idéologie allem ande, pp. 466 a 486. Cf. igualmente M isère de la philoaophie, II, 2, sobre a divisão do trabalho e as máquinas.

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da personalidade um lugar nada desdenhável; a nova ciência em vias de nascimento despede a psicologia de 1844, através de análises de urna riqueza e dé uma penetração extraordiná­ rias. Contudo, os conhecimentos económicos são aí ainda bas­ tante débeis, sendo a passagem do ponto de vista da essên­ cia humana, abstracta para o ponto de vista das relações sociais perfeitamente clara, mas unicamente de uma forma embrionária. Devido a este facto, todas as indicações psicoló­ gicas de A Ideologia Alem ã conservam um carácter elípico, conjectural — também ele embrionário. E quanto mais Marx avança na via que desbravou, tanto mais o materialismo histó­ rico, a economia política, o socialismo científico — de que, ) para mais, a importância prática nas lutas operárias é, bem entendido, prioritária — adquirem consistência, amplitude e j tempo de pesquisa, mais se alonga e complica a viragem teó- \ rica necessária para um regresso válido ao problema ao indi- / vtoÕ ibim ana Compreende-se, а partir daqui, porque é que, rio^seu conjunto, Marx consagrou uma parte progressivamente diminuta do seu trabalho à elaboração visível, directa., da teoria da personalidade, à medida que a elaboração, cada vez mais alargada, da economia política levava a que surgisse como indirecta e invisível, para quem a procurasse com os olhos postos no passado, a única via de acesso real aos funda­ mentos do processo da vida individual. Em cada estádio novo do seu trabalho, Marx é, então, levado a considerar que as indicações que fornecia sobre este problema, no estádio pre­ cedente das suas pesquisas, eram ainda prematuras em certos,^ aspectos, isto é, insuficientemente científicas. De A Ideologia \ Alem ã aos Grunçtrisse e da Contribuição a O Capital extra- / pola cada vez menos no terreno da teoria do indivíduo conereto, ao mesmo tempo que aprofunda cada vez mais a teoria \ das fornas da individualidade, pàrté“integrànte da^ciinma^eco-^ nórdica. Mas, dessa fõrmár executa precisamente o trabalho que/do ponto de vista dos problemas do indivíduo concreto, é, na realidade, o mais decisivo, visto que consiste no seu preâmbulo absoluto. É, portanto, sobretudo preciso não nos deixarmos surpreender pela falta de hábito em reconhecer, de imediato, as bases da teoria do indivíduo concreto no seio das formas «desconhecidas» que Marx lhes deu — desconhecidas para quem permanece apegado ao fetichismo tradicional do indivíduo humano, à velha representação do indivíduo como sendo portador de uma essência humana abstracta, represen-

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tação essa que, bem entendido, não encontra nenhum corres­ pondente na ciência das relações sociais que constitui a sua negação. Não devemos concluir, da ruptura com as ilusões especulativas sobre a possibilidade de uma psicologia imediata, uma desqualificação, por parte de Marx, de toda a psicologia, quando esta ruptura consiste precisamente na descoberta da viragem teórica que permite, finalmente, pensar a psicologia da personalidade adentro do seu estatuto rigoroso. Este resumo da evolução de Marx relativamente ao pro­ blema que nos ocupa permite não só prestar justiça à ideia, incrivelmente falsa, segundo a qual o marxismo não teria capacidade para inserir, no seu seio teórico, o indivíduo, como também leva a que possamos ver com clareza de que forma o que serve de suporte a esta ideia é, precisamente, o facto de que Marx foi o primeiro a descobrir as vias paradoxais através das quais, e unicamente, dele nos podemos aperceber. E é ver­ dade que, ao descobrir estas vias, Marx não pôde levar até ao fim aquela que remete para a ciência do indivíduo, se bem que tenha designado o seu ponto de partida e o perfil do seu traçado. Isto permite-nos imaginar a tarefa teórica qus falta levar a^^cabõTno âmbito ~dã teoria da personalidade, não só no''que respeita ao ItecéñdéTyfaT psicologia à idade áflulta. mas também ão completar àoyróvriq marxism o neste sector — sendo o termo «completan) considerado, não, benT~entendido, no sentido, incompatível com o marxismo, em que com­ pletado queira significar terminado, e, por consequência, morto, mas sim no sentido perfeitamente dialéctico em que completado quer significar completamente formado, e, por consequência, na plenitude da sua força. Apenas a consciên­ cia clara desta falta de acabamento parcial e relativo do mar­ xismo numa direcção que foi ele próprio a descobrir pode permitir compreender, em todos os seus aspectos, a nostalgia, em contínuo ressurgimento, em tantos marxisantes, inclusive marxistas, para com as obras de juventude de Marx, e nomea­ damente os Manuscritos de 1844: seriam mais ricas do que as obras de maturidade, os frutos não teriam cumprido todas as suas promessas enquanto flores, uma perda de humanismo teria tido lugar durante o percurso, etc. Vê-se sobretudo, vul­ garmente, nesta nostalgia o que nela é, com efeito, quase sempre o principal: a incapacidade, ou a hostilidade para com a passagem, que cada um, a partir da ideologia burguesa, tem de refazer por sua própria conta, de um humanismo ainda

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especulativo, para o materialismo histórico, para o socialismo científico. Mas é igualmente preciso saber discernir aí qual é, pelo menos sob a forma do pressentimento, a conjuntura em que tem lugar esta nostalgia: que, se é perfeitamente falso ver na ciência marxista adulta o produto de um depauperamento relativamente aos germes que se encontram nas obras de juventude — é, na realidade de um extraordinário enrique­ cimento que se trata—, é, em contrapartida, verdade que estasobras de juventude, para além dos germes do que veio a ser, no marxismo adulto, elevado ao nível da ciência adulta, contêm igualmente muitos outros elementos que parecem ser os germes de um outra coisa que não foi ainda elevada ao nível- da ciência adulta, em particular os de uma psicologia — como, ao mesmo tempo, os de uma ética e de uma esté­ tica — e que deviam, também eles, ser elevados a esse nível. FDõnde as tentações, enfconstante ressurgimento, de ir procurar / directamente aí os pontos de partida do que o marxismo adulto parece ter deixado perder-se na realidade, a pesquisa que vem , a culminar em O Capital não é apenas a única via que conduz à economia e à história científicas, mas também, mais generi.camente falando, a única via que conduz a toda e qualquer ciência do homem, visto que conduz à ciência daquilo que constitui a base de todos os factos humanos! Nã