Marxismo e teoria da personalidade [II]

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marxismo e a teoria da personalidade volume 2

horizonte uorversrtário

Luçieijt Sève

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Titulo original: Marxisme et Théorie de la Persormaíité Copyright by: Editions Sociales Tradução: Emanuel Lourenço Godinho Copa; Soares Rocha

Reservados todos os direitos de publicação total ou parcial para a língua portuguesa por LIVROS H O R IZO N TE, LDA. Rua das Chagas, 17-1.'0 Dt.° — 1200 LISBOA que reserva a propriedade sobre esta tradução

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O OBJECTO DA PSICOLOGIA DA PERSONALIDADE

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«O individuo n&o possui só um corpo orgánico»... Karl Marx: Fondements de L'économie politique (I, p. 460.) «Perante todas estas formações (arte e ciência, nações e estados, direito, política e religlüo), que se apresen­ tavam, principalmente, como sendo produtos da mente e que pareciam dominar as sociedades humanas, os produtos mala modestos do trabalho manual passaram para segundo plano [...]. Foi ao espírito, ao desenvolvi­ mento e a actividade da mente que fol atribuido todo o mérito pelo répido desenvolvimento da sociedade.» Friedrich Engels: Dialectique de la nature. (£d. Sociales, (1962, p. П8).

Com que é que, portanto, pretendemos construir a ciencia quando nos propomos edificar uma psicologia da personalidade? A questão, como já vimos, não só se encontra por resolver, como, aliás, parece insolúvel. E o primeiro aspecto desta dificuldade insolúvel consiste no problema do delimitar da fronteira entre o que provém, de direito, das ciências que podemos, de urna forma muito genérica, quali­ ficar de psicobiológicas e o que pertence específicamente a uma psicologia indepenente, no problema da distinção real entre estes dois dominios no seio da sua unidade. E é a este problema que, para começar, nos devemos dedicar se preten­ demos avançar em direcção a uma delimitação racional do campo das ciências, na área do psiquismo humano.

I PSICOLOGIA DA PERSONALIDADE E CIÊNCIAS PSICOBiOLÓGICAS Toda esta questão parece resumir-se, e poder ser abre­ viada, de imediato, da seguinte forma: nao há nada na actividade psíquica que não seja de ordem nervosa e que, por consequência, não caia, ou não seja chamado a vir cair, na alçada do campo das ciências de tipo fisiológico. Para quem se mantém firmemente apegado, nestas matérias, a uma posição científica, e, com muito maior razão, para um mate­ rialista consciente, toda a tentativa para separar uma parte do psiquismo que escape, devido à sua natureza, à abordagem fisiológica — quer se trate da «consciência», da «dimensão subjectiva da actividade», da «intimidade», e tc — é intrinse­ camente inaceitável: reconhece-sg^ sem ideias preconcebidas, que a vida.-Psíquica. é~~material d ê uma ponía a outra, ou renuncia-se a todo o rigor ciéútífico. Por outras palavras, para chegarmos a uma solução acei­ tável do problema, é preciso que, para começar, tomemos inequivocamente posição a respeito desta declaração, já antiga mas sempre fundamental, de Pavlov: «Estou convencido de que se aproxima uma etapa importante do pensamento humano em que o fisioló­ gico e o psicológico, o objectivo e o subjectivo, se fundirão realmente, em que a penosa contradição, em que a oposição da minha consciência ao meu corpo será resolvida de facto, ou desaparecerá por vias naturais. Com efeito, quando o estudo objectivo de um .animal superior, o cão, por exemplo, atingir o grau — e isso acontecerá certamente— em que o fisiologista terá a possibilidade absoluta de prever, com

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exactidão, o comportamento deste animal, seja em que condições for, o que restará, então, para a exis­ tência particular, independente, do seu estado subjectivo, que existe naturalmente nele, mas que lhe é tão específico como o é para nós o nosso? A actividade de todo o ser vivo, precisamente e inclusive do homem, não se transformará, nesse caso, obrigatoriamente para o nosso pensamento, num todo indivisível?» 12 L

R elações CONDUTAS

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Esta declaração de Pavlov é, num certo sentido — um sentido cujo todo convém precisar—, totalmente inatacável. Constitui a premissa obrigatória de toda a concepção da per­ sonalidade humana que pretenda situar-se, sem reservas, no terreno da ciência positiva, com exclusão de tóda e qualquer «colagem estranha»-, segundo a expressão de Engels \ isto é, de toda e qualquer «ridícula fantasia idealista de impossível conciliação com os factos» 3. E, deste ponto de vista, o desdém pela «absurda psicologia pavloviana», segundo a já citada expressão de Sartre, é, quase sem excepção, o índice de uma falta de firmeza científica e materialista — na melhor das hipóteses. Pelo contrário, todo o desenvolvimento moderno das ciências fisiológicas fornece flagrantes confirmações ao grande princípio exposto por Pavlov. Mas são, sobretudo, as consequências deste princípio que devem reter aqui a nossa atenção, e tomar-se no objecto de um exame mais aprofun­ dado. Com efeito, se toda a concepção da psicologia como ciência de uma parte não fisiológica do psiquismo, de uma actividade que seria essencialmente distinta da actividade nervosa — ou que, pelo menos, o que vem a dar no mesmo, devesse ser tratada metodicamente, a título definitivo, como se, de facto, o fosse — é basicamente idealista, e deve ser banida dà ciência de uma forma radical, não só ao nível de 1 I. Pavlov: «Discurso no XIV Congresso Internacional de Fisiologia», Boma 1932, citado em Orientation $es thèories médicales en U. R. S. S., £d. France-U. B. s. S., s. d., p. 25. Cf. igualmente CEuvres Choisíes, Moscova* 1954, pp. 474-476. 2 Dialectique âe la nature, p. 198. 3 «Ludwig Feuerbach», Êtudes philosophiques, p. 209.

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declarações teóricas de domingo, mas também na pesquisa concreta e na actividade ideológica quotidianas, tal quer dizer, nesse caso, que urna grande parte daquilo que é ainda correntemente apresentado como sendo proveniente de urna psicologia intrinsecamente independente está destinada a ser reabsorvida mais tarde ou mais cedo, por urna «neurofisiopsicoíogia», vasto complexo das ciências psicobiológicas, cujo campo se alargará à totalidade dos comportamentos humanos — do reflexo absoluto às operações mentais mais compli­ cadas — considerados em toda a sua profundidade— do seu aspecto consciente e socializado às suas infra-estruturas neuro­ lógicas. Talvez a reabsorção efectiva de toda a pseudopsicologia por este complexo científico materialista exija ainda muito tempo, se bem que o ritmo ao qual avançam nesta direcção os problemas seja, hoje em dia, dos mais rápidos; talvez que uma divisão técnica do trabalho, nomea­ damente entre abordagem comportamental e abordagem neurofisiológica da actividade psíquica,' esteja destinada a subsistir por bastante tempo, ainda que a sua tendência para a fusão pareça estar, de facto, a acentuar-se; mas, do ponto de vista teórico, podemos e devemos, desde já, considerar esta reabsorção e esta fusão como obrigatórias. A quem pudesse ser tentado a ver nisso uma extrapolação ocasional limitar-nos-emos a observar que esta passagem inexorável da psicologia — no sentido (hoje em dia ainda corrente em França) de «ciência» de um psiquismo consi­ derado como substancialmente distinto da actividade nervosa, isto é, no sentido idealista — para a fisiologia, na vasta acepção pavloviana do termo, longe de ser uma especulação sobre o futuro, está presentemente a eíectuar-se sob os nossos olhos, e cada vez com maior rapidez, em particular sob a forma do impressionante desenvolvimento da psicofisiologia. O que é, na verdade, considerada no seu conjunto, a psicofisiologia? A acreditar na opinião de alguns, tratar-se-ia de uma dessas jovens e simpáticas ciências-charneira que marcam, como é bem conhecido, o impulso actual do saber e das suas impetuo­ sas transformações. A uma primeira análise, esta denomina­ ção de ciência-charneira, que se baseia, em si mesma, em ópticas epistemológicas e históricas perfeitamente fundamen­ tadas, parece corresponder à realidade da situação concreta de que nos ocupamos aqui. Parece implicar o reconhecimento leal do papel crescente da abordagem materialista dos proble-

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mas psicológicos e basear-se numa concepção dialética da sua conexão com os problemas fisiológicos. Na realidade, trata-se, neste caso preciso, de uma ilusão — e por vezes mesmo de um malabarismo— típica do idealismo. Definir a psicofisio­ logia como ciência-charneira é, com efeito, sub-repticiamente, confiná-la antecipadamente ao estudo dos problemas fron­ teiriços que opõem à fisiologia uma psicologia, de que ela não teria nem o poder de transformar o estatuto, nem, com muito mais razão, o de se apropriar do objecto; equivale mesmo a extorquir-lhe, de uma forma subtil, a confissão de que, se é charneira, a psicologia, como a fisiologia, é, por­ tanto, quanto a ela, uma porta que se abre totalmente para um domínio específico e inalienável, logo, para o psiquismo considerado como não fisiológico; em resumo, é defini-la de forma restritiva e estática, sob roupagens dialécticas e mo­ dernas, e, por consequência, mascarar a significação episte­ mológica revolucionária dos seus rápidos progressos. Na realidade, o desenvolvimento da psicofisiologia não é, de forma alguma, o avolumar local do estudo das simples zonas de contacto entre uma fisiologia e uma psicologia imutáveis, mas sim, antes pelo contrário, o processo de trans­ formação dos problemas apresentados como «psicológicos» — isto é, dos problemas do psiquismo abordados de forma idealista, em última análise — em problemas fisiológicos — isto é, em problemas do psiquismo abordados de forma materialista, ou, em todo o caso, susceptíveis de o ser. É não a consolidação, mas sim, pelo contrário, a liquidação do velho statu quo entre a prudência positivista de uma fisiologia que não se arrisca a ocupar-se da «consciência» e a arrogância espiritualista de uma psicologia que não condescende em tomar em consideração as realidades de ordem nervosa. A este statu quo, a esta dicotomia científicamente retrógrada, enraizada no estado da correlação de forças ideológicas do século passado, a psicologia do comportamento desferira já, no início deste século, um rude golpe, ao demonstrar que a actividade psíquica, se bem que consciente, pode ser estudada de um ponto de vista puramente objectivo. O pavlovianismo desferiu-lhe um golpe ainda mias duro, mortal mesmo, ao provar que isso é válido para a actividade psíquica, não só se bem que consciente, mas também enquanto consciente. O impulso actual da investigação e da descoberta no vasto terreno neurofisiopsicológico, impulso que, para além das

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formas ideológicas e das incompreensões individuais através das quais, por "vezes, se processa, possui o carácter de um p oderosò movimento obfectivó ida história contemporânea^ d o 1 sábérT marchando em direcção ào materialismo, completa a demonstração! Õ próprio significado do termo «psicofisíologia», em que apenas metade do termo «psicologia» emerge ainda da bocarra da fisiologia, atesta que a fisiologia mate­ rialista, no sentido lato da expressão, já devorou, numa boa parte, a velha psicologia. Podemos estar seguros de que o resto terá o mesmo destino. Relativamente ao uso, hoje em dia tão frequente, e que conserva mesmo, para muitos, a dimensão de uma evidência, dos termos «fisiologia» e «psicologia», no que respeita à repar­ tição das matérias, à eliminação dos seus domínios que seme­ lhante uso implica, impõe-se, portanto, uma reclassificação fundamental, pondo de parte todo e qualquer capricho de índole terminológica. No. ponto actual da análise, a natureza exacta dc uma delimitação verdadeiramente científica não se encontra aindã definida; mas surge já claramente o facto de que aquilo que o termo «psicologia» implica não pode conti­ nuar a persistir sem correr o risco de um intolerável equívoco. Abra-se, para considerarmos um exemplo simples mas,- na realidade, de uma extrema importância, qualquer manual de filosofia destinado ao ensino secundário, nos capítulos que tratam de «psicologia»: em quase todas as questões - que aí são abordadas, que encontramos de facto? Uma mis­ tura extraordinariamente heteróclita que, feita a devida dedução, deixa a descoberto, numa proporção variável segundo os temas e os autores, duas espécies de ingredientes sem nenhum ponto de contacto: por um lado, dados fisioló­ gicos ou psicofisiológicos que, não obstante a sua insuficiên­ cia quantitativa e qualitativa mais ou menos marcada, cons­ tituem prestações por conta do que deveria ser um tratamento real da questão à luz de uma neurofisiopsicologia geral do comportamento — e por outro, como excipiente, uma coze­ dura de teses filosóficas mais ou menos nulas, de referências literárias mais ou menos pertinentes, de considerações morais, quando não se tratar de banalidades introspectivas teleguia­ das por uma metafísica preestabelecida, isto é, trata-se, pura e simplesmente, por mais «moderna»' que possa ser a apresen­ tação, e algum interesse que, aliás, possam, por vezes, possuir, de resíduos da velha maneira especulativa de considerar a

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«psicologia» 4. Este monstro ideológico é o fruto da mutação materialista parcial, irresistivelmente induzida, mas secunda­ riamente contrariada, ao mesmo tempo, pelo movimento contraditório das ideias, de uma psicologia cuja função era unicamente, de início, no plano dos estudos secundários con­ cebidos pela burguesia do século passado, levar a crer que as teses mestras da metafísica espiritualista eram dados ime­ diatos da consciência5. O progresso que falta, pois, levar por diante, consistirá, em primeiro lugar, em desenvolver por toda a parte a consciência clara de que chegou o fim da «psicologia» apresentada como a dupla não científica da ciência materialista da actividade psíquica, e que todos os combates ideológicos de retardamento, com o fim de evitar que essa «psicologia» tenha um fim fatal, estão antecipada­ mente perdidos. É importante sublinhar que, nesta campanha, o filósofo marxista apoia sem reticências o psicólogo cien­ tífico. A questão, que, sob formas aproximadas, foi, com tama­ nha frequência, terreno de pousio desde há mais de um século, consiste, então, em saber se entre esta fronteira da neurofisiopsicologia em gestão e a fronteira da ciência das relações sociais, incluindo a teoria das formas gerais da individualidade — se, entre a «fisiologia» e a «sociologia», como se podia ler num vocabulário tradicional que, se bem que demasiado vago, não deixava de ser sugestivo— existe matéria para mais uma outra ciência psicológica, uma ciên­ cia psicológica da personalidade, irredutível à ciência mate­ rialista dos comportamentos humanos, ou se, pelo contrário, a totalidade do saber está votada, a este respeito, a inte­ grasse, ela própria, na neurofisiopsicologia. Encontramo-nos aqui no próprio âmago do problema da definição de uma psicologia verdadeiramente científica da personalidade, caso * Numa recolha Intitulada Les grands textes de la psychologie modeme (Bordas, 1967) e destinada nfio só aos alunos de liceu mas também aos estudantes uni veraitárloe, o autor, Louis Millet, escolheu consagrar um terco dos textos a filósofos (Bergson, Alain, Sartre, Merleau-Ponty e mesmo Hamelln) e apresenta a fenomenología como uma das correntes principais da psicologia moderna, quando nem sequer cita um único texto de -Tanet. de Wallop, de Zazzo, de Folltzer ou da escola soviética oriunda de Vygotskl, e só apresenta um texto*”de Pléron. bem como um de Piaget. 5 Gf. L. Sève: La philosophie française contcmporalne, nomeada­ mente pp. 120 e seguintes.

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possa surgir, no amago do problema da delimitação geral do campo das ciências na área do psiquismo humano. Isto quer dizer que se trata agora de precisar, com exactidão, em que sentido é que a declaração de Pavlov sobre a fusão do psi­ cológico e do fisiológico e perfeitamente inatacável, ou, o que vem a dar no mesmo, se não existiria um outro em que ela fosse totalmente inaceitável. Ora, este segundo sentido não é muito difícil de estabelecer, na base de tudo o que foi lem­ brado a respeito da concepção marxista do homem. Quando Pavlov, ao falar na qualidade de fisiologista, declara que a fusão do psicológico e do fisiológico, se é perfeitamente reali­ zável para o cão, o é também para «todo o ser vivo, até e inclusive para o homem», tem toda a razão do ponto de vista das ciências naturais, do materialismo filosófico: o homem não é outra coisa senão um ser natural. Mas se intérpretes im­ prudentes do pavlovianismo, ao aplicarem esta declaração ao problema de uma psicologia da personalidade, pensassem que é possível resolvê-lo da mesma forma — no que respeita ao princípio — que o da psicologia animal, pela redução pura e simples de tòdo o estudo à neurofisiopsicologia do comporta­ mento, eliminando, por consequência, de forma implícita, toda e qualquer diferença qualitativa de essência entre o homem e os animais, estariam radicalmente errados do ponto de vista da ciência social, do materialismo histórico: õ homem é um ser natural, mas é um «ser natural humano», um ser cuja ~essêfíCiã~co5siste no conjunto das relações socials. Acreditar *que "seja possível esgotar o conhecimento de uín tal ser, de alcançar verdadeiramente a sua essência, de captar o seu espírito por vias declaradamente idênticas às quais são válidas para os animais, é uma incrível .aberração — a aberração fisiologista. Voltaremos a este ponto. Eis aqui, portanto, de que forma se apresenta o problema: por um lado, não seria possível, de forma alguma, continuar a existir uma psicologia enquanto ciência de algo que seja considerado como substancialmente distinto da actividade nervosa, porque esse algo não existe e, portanto, se é, de facto, verdade que a essência humana é totalmente diferente da essência animal, uma vez deduzido tudo o que a neurofi­ siopsicologia nos pode revelar sobre os comportamentos do homem, estamos ainda longe de ter esgotado o estudo da sua essência específica; num certo sentido, ainda nem sequer a' aflorámos.. Ora, que é uma essência que não representa

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algo, a nenhum grau? É uma relação. Nesta simples afirmação reside todo o segredo“deT m a psicologia da personalidade efectivamente distinta das ciências psicológicas e capaz de passar à maturidade, isto é, antes do mais, de adquirir uma consciência perfeita da natureza _dp seu objecto;j"X~üíeñcia da personalidade não tem por missão ser ciência de algo considerado à parte, mas sim de ser ciência de relações % o que, aliás, poderíamos suspéitaf se reflêctísseiHoS"Sènã;r“ mente nas lições que dimanam da economia política mar- ^ xista, essa ciência-piloto, e que servem para todas as ciências do homem. Porque a economia política marxista, cujo nascimento marcou o termo da passagem da ciência econó­ mica à sua maturidade, fundamenta-se, precisamente, em boa parte, na solução de um problema análogo. Como o diz bas­ tante bem Engels, não compreendemos nada da economia política se não apreendermos o facto de que não tem por objecto o estudo da produção das coisas em si — pois em que é que se distinguiria, nesse caso, das ciências naturais e f tecnológicas? —, mas siin o das relações sociais que se esta- í, belecem porjocasilo da produção dessas coisas e que são / mascaradas por estas: ' ~ 1 ~~~ «Eis que, desde o início, detemos o exemplo de um facto, de natureza particular, que se encontra por todo o lado, ao longo da economia, e que provocou uma não pequena confusão na mente dos economistas bur­ gueses: a economia não se ocupa de coisas mas sim de relações entre pessoas e, em última instância, entre classes; ora, estas classes encontram-se sempre relacio­ nadas com as coisas e surgem mesmo como tratando-se de coisas.»6 ■ Se bem que num sentido diferente, não acontecerá o mesmo com a psicologia da personalidade, caso esta deva ser uma ciência autêntica? Tal é, pelo menos, a tese liminar aqui defendida: sendo ciêncik de um ser cuia^essência é o conjunto das relações „sociais, a psicologia da personalidade não tem "pôr objecto o ocupar-se de condutas psíquicas — isso é assunto

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6 Segundo artigo de Engels sobre a Contribuição ttudes philosophu ques, p. 112. 17

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para a neurofisiopsicologia—, mas sim das relações que as subentendem na vida concreta da personalidade, relações essas que4são, ém última instancia, sociais, mas que se ehcpntram sempre ligadas a condutas e que surgem como se de con­ dutas se tratasse. . — •л... Que deve, efectivamente, entender-se por isso? Se se trata de estabelecer que o psiquismo humano é inte­ gralmente marcado pelas relações sociais, não se tratará, neste caso, de uma ideia antecipadamente adquirida pela actual psicologia? Não é verdade que foi, há já bastante tempo, intro­ duzida na própria fisiologia nervosa pelo pavlovianismo? Assim, em Pavlov, a teoria do segundo sistema de sinalização, a linguagem, não é certo que introduz as relações sociais no âmago da ciência da actividade nervosa superior? A sua teo­ ria das nevrosés — outro exemplo significativo — não se fun­ damenta, efectivamente, na ideia de uma sobretensão, de uma fadiga, impostas ao sistema nervoso,’ nomeadamente pelas características contraditórias de certas relações sociais? Se, portanto, o- nosso estudo tinha por fim estabelecer que as con­ dutas não podem ser entendidas abstraindo das relações constitutivas do meio social, no seio do qual elas se desen­ volvem, isso equivaleria a arrombar uma porta perfeita­ mente escancarada. Mas, da mesma forma, para não dar ori­ gem a mais do que um fruto tão ridículo, ser-lhe-ia necessário esquecer, no decurso da caminhada, os ensinamentos funda­ mentais do materialismo histórico em matéria de teoria da personalidade. Com efeito, é bem verdade que a fisiologia e a psicologia contemporâneas, na sua parte mais científica, dedicam uma grande atenção aos efeitos que o meio social produz sobre as condutas dos indivíduos humanos — e, dessa forma, num certo sentido, têm perfeita consciência das rela­ ções sociais, na medida em que o permite e o exige o estudo das condutas consideradas, em si mesmas, como objecto. Mas, precisamente, nesta forma de considerar as coisas — perfei­ tamente legítima, se nos colocarmos no campo da ciência dascondutas— as relações sociais não são consideradas senão enquanto meio, através do qual essas condutas, portadoras, em si mesmas, da sua essência de actividade nervosa, se encontram condicionadas. Pode reconhecer-se nesta oposição indivíduo-meio um elemento clássico da conceptualização das ciências biológicas, o que não deve surpreender, visto que, no seu sentido mais amplo, a ciência das condutas trata o homem

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como sendo um ser essencialmente biológico. A melhor prova consiste em que, para ela, e se bem que não desconheça, de modo algum, as diferenças qualitativas que surgem, no seu próprio terreno, entre condutas humanas e condutas animais, a passagem teórica de umas para outras é sempre possível em princípio; e é incessantemente praticada, salvo impedimento externo. Também .deste ponto de vista, a declaração de Pavlov lembrada mais atrás é válida para o conjunto da ciência das condutas. Mas como é possível não ver, simultaneamente, que, ao tratar as condutas como sendo realidades biológicas e as rela­ ções sociais como uma forma específica do meio, ainda não se tomou, de forma nenhuma, consciência daquilo que o materialismo histórico nos indica sobre a própria essência do homem enquanto ser social desenvolvido? Se considerarmos realmente a sério a descoberta capital consignada na VI Tese sobre Feuerbach, daí deve advir o facto de que, para além da fronteira da ciência das condutas, surge um espaço para uma ciência da personalidade _humana, „articulada, bem enten­ dido, cqm a ciência das condutas, mas para a qual as relações jgcTais~sao já não JSZmeio..exLenmmerjte cotáiciow nte. das relações nervosas entre as condutas, mas sim a base de uma outra espécie de relações~ehfrè~“ás cóÃHutàs, relações essas não fisiológicas, constitutivas dás báses^a" pemohalidade^ na suá acepção histôrico-sociaL B a condição da passagem para esté novo ponto de vista, sem o qual é impossível compreen­ der verdadeiramente, em toda a sua profundidade, o efeito produzido pela sociedade nos indivíduos, consiste no estudo prévio do que os indivíduos produzem na sociedade. Por outras palavras, trata-se de estabelecer, de imediato, os domínios da ciência da personalidade no terreno da produção social: jirecistoente.jQnde^segundo o, m a ^ n ^ ^ ^ biistórico nos revela, osjhomensse criam a si mesmos. ""**■ ’~ Ora, se desenvolvermos ~ã reflexão psicológica a partir daí, assistimos ao surgir de um tipo de relações entre as con­ dutas humanas totalmente estranho ao ponto de vista da ciência das condutas. Consideremos, por exemplo, actividades como trabalhar a madeira ou o metal, ceifar um prado, con­ duzir um automóvel, cozinhar, tratar de um ferido, procurar a solução de um problema técnico, educar uma criança, for­ necer directivas a alguém, etc. Numa primeira análise, tra­ ta-se aqui de conjuntos complexos de condutas, dando origem

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a resultados determinados pela sua natureza concreta. A este título, as suas relações entre elas e o conjunto das outras con­ dutas são, pura e simplesmente, do âmbito da ciência das condutas, que as delimitará de acordo com os seus métodos e conceitos próprios, e pode mesmo parecer, inicialmente, que* uma tal abordagem lhes esgota o conteúdo. Mas, na rea­ lidad e, este primeiro ponto de vista é ainda declaradamente abstracto, porque não foi nele levado em consideração o estatuto destas actividades enquanto actividades sociais do indivíduo — e já não enquanto actividades nervosas: que lugar ocupam elás na vida real da personalidade, isto é, nas suas relações com o mundo social existente, e consigo própria? Suponhamos, a fim de precisar este ponto, que estas condu­ tas, ém vez de corresponderem a actividades de indivíduos que têm vagar para trabalhar em ocupações pessoais ou domésticas — trabalho em madeira ou em metal a título de biscates, condução de um automóvel para fins turísticos, edu­ cação dos seus próprios filhos, etc. —, têm lugar no âmbito de um trabalho profissional assalariado, no seio de uma socie­ dade capitalista— o de um operário fabril, de um motorista de táxi, de um professor, etc. Poderá parecer, de início, que, não só a sua natureza específica de condutas, mas também o seu papel na economia de conjunto da personalidade não são substancialmente modificados: quer num caso quer nou­ tro, visam e alcançam resultados úteis almejados pelo indi­ víduo. Poderá parecer que o salário que lhes corresponde é o produto deles resultante para o sujeito, tal como o é o seu resultado concreto na hipótese em que se tratasse de condu­ tas não profissionais. Na realidade, tal consistiria em cometer um erro económico decisivo e, em consequência disso, um erro psicológico que barra inevitavelmente o acesso a uma real compreensão da estrutura e do desenvolvimento da perso­ nalidade. ' Para disso nos apercebermos é necessário reflectir na des­ coberta crucial de Marx sobre a verdadeira natureza das relações entre o salário e o trabalho no seio das relações capitalistas — descoberta esta de que partiu toda a economia política marxista. Esta descoberta não se encontra mais bem exposta, sem quaisquer dúvidas, do ponto de vista que é aqui o nosso, em nenhuma outra parte que não seja iio breve capítulo da vi secção do livro I de O Capital,

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intitulado: a transformação do valor ou do preço da força de trabalho em salario. «Ficticiamente, na sociedade burguesa, começa por observar Marx, a retribuição do trabalhador toma a forma do salário pago pelo trabalho: tanto dinheiro pago, por tanto trabalho prestado.» 7 Se esta aparência coincidisse com a realidade não exis­ tiria, portanto, do ponto de vista psicológico, nenhuma dife­ rença fundamental entre um conjunto de condutas, funcio­ nando como simples actividade pessoal, e o mesmo conjunto de condutas, funcionando como trabalho assalariado: a rela­ ção entre o salário e o trabalho seria análoga à relação genérica entre o resultado de uma conduta e essa própria conduta, e esta relação, do ponto de vista psicológico, perma­ neceria integralmente enquadrada no âmbito da ciência das condutas. Mas trata-se. precisamente, aqui, de uma ilusão específica da sociedade burguesa. Com efeito, «que é o valor? A forma objectiva do trabalho social despendido na produção de uma mercadoria. E como medir a amplitude de valor de uma mercadoria ? Pela quantidade de trabalho nesta contido. Como é que, desde logo, se pode determinar, por exemplo, o valor de uma jornada de trabalho de doze horas? Pelas doze horas de trabalho contidas na jornada de traba­ lho de doze horas, o que é uma tautologia absurda»8. Foi deste impasse que Marx conseguiu tirar a economia política, ao estabelecer que, na realidade, o que o trabalhador vende áo capitalista, não é, de forma alguma, o seu trabalho, mas sim a sua força de trabalho. «O que, no seio do mercado, defronta directa­ mente o capitalista não é o trabalho, mas sim o tra­ balhador. O que este vende é ele próprio, a sua força de trabalho. A partir do instante em que principia 7 Le Capital, I, 2, p. 206. в Obra citada, p. -206.

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a pôr em movimento esta força, a trabalhar, a partir cio instante em que o seu trabalho se torna real, esse trabalho deixou já de lhe pertencer, e já não pode, doravante, ser vendido por ele. O trabalho é a subs­ tância e a medida inerente aos valores, mas não possui, por si mesmo, qualquer valor.» 9 O salário não é, portanto, não obstante as aparências, o preço do trabalho, pela simples razão de que o trabalho, não possuindo valor, não poderia possuir preço. Do que é que o salário é preço, nesse caso? Da força de trabalho. «Sob este nome, deve entender-se o conjunto das faculdades físicas e intelectuais existentes no corpo de um homem, na sua personalidade viva, e que ele deve pôr em movimento com o fim de produzir coisas úteis.» 10 Ora, a força de trabalho, como qualquer outra merca­ doria, vende-se pelo seu valor, determinado pelo tempo de trabalho social necessário, à sua produção. De que forma se pode determinar este tempo? ((Considerando o indivíduo, verificamos que este cria a sua força vital ao reproduzir-se ou ao se autopreservar. Para se manter vivo, necessita de um certo número de meios de subsistência. O tempo de trabalho necessário à produção da força de trabalho resolve-se, . portanto, no âmbito do tempo de trabalho necessário para a produção destes meios de subsistência; ou então a força de trabalho possui, precisamente, o valor dos meios de subsistência necessários àquele que a põe em acção.» 11 Assim, tendo o capitalista pago a força de trabalho pelo seu valor, é-lhe possível pô-la a funcionar em condições tais que esta cria uma quantidade de valor superior àquela que paga ao trabalhador sob a forma do salário, e é esta dife8 Le Capital, pp. 206-208. Obra citada, I. 1, p. 170. и Ibidem, pp. 173-174. 10

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re n ^ fundamental que permite compreender todo o meca nismo da exploração capitalista, da prévia extorsão da mais-valia sobre o trabalho, por detrás da aparência imediata segundo a qual o salário pagaria todo o trabalho fornecido. «Compreende-se agora, comenta Marx, a imensa importância que possui, na prática, esta mutação de forma que leva a que a retribuição da força de trabalho surja como sendo o salário do trabalho, o preço da força como sendo o preço da função que desem­ penha. Esta forma, que já só exprime as falsas aparên­ cias do trabalho assalariado, torna invisível a relação real entre capital e trabalho e revela o seu con­ trário; é dela que derivam todas as noções jurídicas sobre o assalariado e o capitalista, todas as mistifica­ ções da produção capitalista, todas as ilusões liberais e todos os fogos-fátuos apologéticos da vulgar eco­ nomia. [...] O mesmo acontece, aliás, com a forma «valor e preço dõ trabalho» ou «salário» perante a relação essencial que encerra em si, a saber: o valor e o preço da força de trabalho, tal como com todas as formas fenomenais perante o seu substrato. As primeiras rêflectem-se espontaneamente, de uma forma imediata, no entendimento, o segundo tem de ser descoberto pela ciência. A economia política clássica añora de muito perto o verdadeiro estado de coisas, sem nunca elaborar a sua formulação consciente. E isso ser-lhe-á perfeitamente impossível enquanto não se despojar da sua velha pele burguesa.» 12 De uma tal análise podemos afirmar que não é só decisiva para a economia política, como também, ao mesmo tempo, para a psicologia da personalidade. Porque é igualmente desta «mutação de forma» que derivam todas as ilusões inerentes à ideia que a psicologia vulgar tem do trabalho, na medida em que, por acaso, forme dele uma ideia. E desta psicologia, com não menor justeza, podemos afirmar, tal como no que se refere à economia política, que não conseguirá formular de uma forma consciente o verdadeiro estado das coisas «enquanto não se tiver despojado da sua velha pele burguesa». 12

Le Capital, I, 2, pp. 211-213.

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Com efeito, a psicologia habitual, só se ocupando das condutas enquanto realidades comportamentais e actividades biologicamente definidas — a única coisa que aparentemente existe na vida psíquica humana —, e não suspeitando do problema, totalmente diferente, das relações sociais entre as condutas, atém-se inevitavelmente à aparência que adquire a actividade humana «ficticiamente, na sociedade burguesa». Damo-nos aqui conta, muito claramente, de que forma se iludem aqueles que atribuem ao estudo em laboratório a abstracção da psicologia objectiva relativamente à vida real, quando esta abstracção se encontra já efectuada ao nível da concepção imediata da vida real, de que a psicologia de laboratório não passa, no respeitante a este pontot senão do seu prolongamento. Para uma tal psicologia, tudo se passa como se o salário que corresponde — ao nível das aparên­ cias — a um determinado trabalho concreto, isto é, à execução prática de um conjunto de condutas, se pudesse alinhar, sem dificuldades, como algo que é evidente, na categoria dos resultados concretos visados e em que vem a resultar uma conduta, tal como, por exemplo, os analisa no estudo da aprendizagem. E, por consequência, sem que, regra geral, se coloquem interrogações a este respeito, seja através de que teoria da personalidade for, opera como se fosse possível assimilar, pura e simplesmente, as relações entre trabalho e salário a relações directas entre condutas concretas de tra­ balho e condutas concretas de satisfação das correspondentes necessidades, ou seja, identificá-las às únicas relações que encontra no seu terreno: relações, em última análise, psicoló­ gicas, no sentido vulgar do termo — naturais, imediatas, concretas— em relação às quais o meio social desempenha apenas um papel de condicionante. Nesta perspectiva, e nem que seja através das mais atentas concepções da conduta edas motivações respeitantes aos «factores sociais», deriva-se inapelavelmente, quando se aborda a teoria da personalidade, para a ideia de uma naturera humana regida, em última instância, por leis psicológicas independentes, não, sem dúvida, na sua forma, mas sim na sua essência, em relação à formação social no seio da qual estes indivíduos trabalham. Noutros termos, se raciocinarmos assim, o facto, capital para a vida de um indivíduo real, de que uma actividade concreta seja por ele efectuada ao nível de trabalho assalariado, no lugar do de uma ocupação privada, deixa, evidentemente.

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de íer toda e quakper significação científica para a psicolo­ gia, que dele pode abstrair, como se se tratasse de urna circunstância meramente fortuita, e estranha ao seu objecto. Da mesma forma, do laboratório da biotipologia ao divã do psicanalista, os métodos de abordagem do individuo concreto, por mais opostos que possam ser entre si, não passam, a este respeito, de algumas das variadas consecuções práticas desta abstracção implícita do trabalho, e, por consequência, das relações sociais. Mas, assim agindo, a ciência psicológica encerrou-se no seio dos fenómenos superficiais da vida dos homens, no âmbito da sociedade burguesa, e, precisamente quando pretende ser uma psicologia dos abismos, permanece vítima das mistificações ideológicas que aí se impõem espon­ taneamente aos indivíduos, porque «trata-se precisamente aqui das formas ilusórias no seio das quais se locomovem quotidianamente e com as quais tem de se haver»13. Numa tal base, a evocação para a constituição de uma teoria das «relações Eu-Mundo» permanece como uma utopia infecunda, continuando o problema da estrutura históricasocial por resolver. O ponto de que é necessário partir, se nele pretendemos ver claro, consiste em que a correspondência aparente entre condutas concretas do trabalho e condutas de satisfação das necessidades permitidas pelo salário, não possui nenhum tipo de verdade económica e só pode, portanto, ser uma ilusão psicológica. A um mesmo trabalho concreto podem corres­ ponder, segundos as condições sociais, salários muito variá­ veis, e, muito mais obviamente,- formas de os despender totalmente diferentes; inversamente, um mesmo, salário, inclu­ sive uma mesma forma de o despender, pode corresponder a trabalhos concretos dos mâis diversos. Isto basta já para provar que a correspondência entre o trabalho e o salário não é uma relação natural, imediata, «psicológica», no sen­ tido vulgar do termo, e que, por consequência, não há qual­ quer esperança de dela nos apercebermos nos termos e no âmbito da ciência das condutas. É neste ponto que a análise 13 £e Capital, Ш, 3, p. 208.

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ele Marx é insubstituível no que respeita ao e. ’ arecimento clos problemas mais essenciais da personalidade. Ela permite, com efeito, compreender que esta aparente correspondência directa entre o trabalho e o salario é, na realidade, inteira­ mente elaborada na base de mediações criadas no seio de relações sociais objectivas, ou seja, que só é uma «correspon­ dência» na medida em que é portadora de uma relação real, possuindo uma natureza totalmente diferente da relação aparente. Esta relação real é a que liga o salário, não, de forma alguma, ao trabalho concreto que foi efectuado, mas sim à forma-valor da força de trabalho que riele é despendida, isto é, a urna forma em que o trabalho humano intervém como trabalho abstracto, o qual já nao é redutível às con­ dutas concretas que constituem a sua outra face, tal como o valor do ouro enquanto moeda, por exemplo, não é redutível à sua natureza de substância química, se bem que uma seja o suporte da outrá. Encontramo-nos portanto, aqui, em pre­ sença, no próprio âmago da vida psicológica real, de uma relação «psicológica» que é, de facto, não uma relação psicológica, mas sim uma relação social. Aqui, tal como diz Marx, na Introdução de 1857, «a relação entre o produtor e o produto é uma relação externa, e o retomo do produto ao sujeito depende das relações entre este e outros indivíduos»14. E como esta relação social não é, de forma alguma, um simples elemento condicionante do «meio exterior», mas sim a mais íntima de todas as relações constitutivas da vida pessoal concreta, é necessário tomarmos consciência do facto de que com ela surge um tipo de relações psicológicas decla­ radamente novas, um mundo de estruturas da personalidade viva inteiramente específica, em resumo, é o surgir do terreno de uma teoria científica da personalidade histórico-social. Por outras palavras, se considerarmos algumas das condutas con­ cretas — trabalhar a madeira ou o metal, conduzir uma viatura, educar.uma criança, etc. — a ciência das condutas tem toda a razão em as considerar, enquanto condutas con­ cretas, como sendo idênticas a si mesmas, sejam quais forem H Contribution, p. 169.

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as condições sociais em que te am lugar, porque essas condições nada alteram no que respeita à sua natureza de condutas concretas. Em contrapartida, do ponto de vista da economia real da personalidade, separa-as um abismo, segundo funcionem enquanto trabalho assalariado ou actividade privada; isso, todos o sabem perfeitamente sem terem necessidade de estudar Psicologia, e o que é espantoso é precisamente o facto de que a própria psicologia parece não . o saber. A psicologia científica da personalidade começa no 1 instante em que tivermos compreendido que é exactamente isso que tem, em primeiro lugar, de ser estudado: as relações sociais entre as condutas enquanto estruturas fundamentais da vida individual. Uma comparação elementar pode ajudar a captar a natureza da articulação que aqui se desenha entre psicologia das condutas e psicologia da personalidade. Consideremos um puzzle. À primeira vista, nao passa de um amontoado de peças recortadas, de que é necessário efectuar a reunião total. Não há nada no puzzle total que não sejam peças, tal como não há na personalidade nada que não sejam con­ dutas. E não há nenhuma peça do puzzle que não possua relações com as outras, na ordem da delimitação que a cons­ titui como parte integrante do puzzle, tal como não há nenhuma conduta concreta que não possua relações com as outras no sentido que a ciência das condutas dá a esta noção de relação. Mas quando colocamos uma nova peça do puzzle, tendo em consideração não só a sua configuração de peça nas suas relações de engrenagem com as outras peças já reunidas, mas também a parte da imagem que representa nas suas relações de engrenagem com o desenho já iniciado, levamos a intervir uma ordem de delimitação, um tipo de estrutura — o da imagem— totalmente diferentes daqueles que seriam os únicos a surgir, caso iniciássemos a construção do puzzle do avesso. E vemos assim até que ponto seria absurdo procurarmos apercebermo-nos da estrutura da ima­ gem de acordo com os termos da delimitação das peças. Esta delimitação é o suporte da outra, mas a outra não é, de forma alguma, o seu reflexo. Bem pelo contrário, é a imagem que é primordial em todos os aspectos, e a sua configuração, que não possui, em si mesma, nenhuma relação lógica com a delimitação do puzzle em peças, é, na prática, a configura­ ção-piloto, no que respeita a uma parte essencial da reunião

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das pevas. De uma forma análoga, se bem que mais complexa, vemos a que ponto há bem poucas hipóteses de nos aper­ cebermos das estruturas histórico-sociais da personalidade — isto é, precisamente daquilo que a personalidade humana possui de mais específico— a partir das relações entre as condutas tal como se manifestam no terreno da neurofisiopsicologia. Melhor: o novo tipo de estruturas da personalidade .. que a análise de um exemplo tão central leva a que surjam, : ou seja, o das relações entre trabalho e salario, não se encon-(.' tra apenas apto a fornecer a base da teoria científica da perso; / nalidade; esta própria teoria da personalidade, se bem que, num certo sentido, possua o seu suporte na ciência das con­ dutas, não vem, de forma alguma, juntar-se-lhe como se se • tratasse da sua conclusão natural: a sua origem encontra-se alhures, e há todas as hipóteses de que sejá ela própria a constituir a ciencia-piloto sobre a resolução de numerosos problemas obscuros da psicologia das condutas — por exem­ plo, o problema das motivações, cuja complexidade fica tão além, de uma forma perfeitamente visível, das possibilidades teóricas da simples ciência das condutas. J A vida real d a personalidade, como seria possível não o I vermos, encontra-se habitada, até aos seus mais obscuros 3 abismos, por coisas abstractas como o dinheiro, o tempo de j. trabalho ou o salário; ora, estas coisas abstractas não passam j! das formas coisificadas de relações sociais, isto é, de relações /;• humanas, cujas coordenadas biológicas constituem o suporte i individual, mas não são mais a sua causa do que a delimitação 1 em peças do puzzle é a causa da configuração do desenho, j A relação entre trabalho e salário, com as enormes conse­ quências que acarreta para a vida do indivíduo, não depende do sistema nervoso, mas sim do sistema social. É por isso . que a teoria da personalidade, enquanto constituída na base de relações sociais, não pode ser edificada tomando por base dados psicológicos elaborados pela ciência das condutas e que não são a base real da personalidade. É preciso derrubar a relação admitida até aqui: são estas relações sociais que consI tituem, a partir da vida real da personalidade histórico-social, I a base de todas as espécies de relações de que a ciência das f condutas só encontra, no seu próprio terreno, a projecção, I em si mesma enigmática. Sem dúvida que a psicologia conI temporánea dã personalidade, na~ sua parte mais lúcida, reconheceu, precisamente, que a delimitação em condutas.

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lícita na sua ordem, não é pertinente enquanto delimitação da personalidade; mas as delimitações que lhe procura subs­ tituir, por exemplo, a delimitação em junções, permanecem, não obstante o seu interesse, prisioneiras da maioria das ilusões psicológicas vulgares, porque ainda não tomou clara­ mente consciência da prévia necessidade de alterar radical­ mente o primado da conceptualização psicológica: assim, o conceito de função é já um conceito que provém da psicologia — nem que seja da psicologia «social» — quando a verda­ deira base se encontra ao nível de relações sociais que não possuem, em si mesmas, a forma psicológica. Esta necessária alteração, condição para uma psicologia científica da perso­ nalidade, não passa, no fundo, do corolário psicológico da alteração marxista da concepção especulativa da essência humana. E a alteração da concepção especulativa da essência humana representa, em si mesma, em última instância, a reflexão pela ciência da alteração objectiva em que consistiu a passagem da animalidade para a humanidade, isto é, a passagem de seres vivos que contêm em si a sua própria essência, ao nível de património biológico, para outros cuja essência existe afora de si mesmos, ao nível do património social15. Os pontos de vista aqui apresentados sobre a teoria da personalidade não passam, num certo sentido, da neces­ sária consequência de tudo aquilo que o moderno movimento das ciências nos tem revelado sobre a essência do homem, e que veio confirmar, de forma flagrante, o ensinamento da V I Tese sobre Feuerbach. É impossível, se levarmos total­ mente a sério este ensinamento experimentalmente demons­ trado, não ver que a psicologia humana deve ser, num certo sentido, o inverso da psicologia animal. Ora, é desta inversão que ainda se procuram em vão os vestígios numa ciência que, no que respeita ao essencial, se considera como prima da bio­ logia, ao mesmo tempo que ignora a economia política, e que se satisfaz, com demasiada facilidade, com a mesma denomi­ nação que a da psicologia animal. Se a psicologia humana é a especificação, respeitante ao ser humano, de uma ciência 15 Cf. esta formulação de A. Lerci*Gourhan (Le geste et la parole, t. IX, Albín Michel, 1965, p. 34): «Toda a evolução humana concorre para colocar afora do homem aquilo que, no resto do mundo animal, corresponde ã adaptação especifica.»

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de que um outro asp ,¿o é a especificação respeitante aos animais, toma-se claro que só pode compreender, no caso do homem, aquilo que não é radicalmente diferente do que se observa entre os animais. E se isso define o campo, perfeita­ mente passível de apreensão mental, de uma ciência das con­ dutas, ou, mais genericamente, dos comportamentos humanos, é muito precisamente de encontro a este limite intransponível que tem vindo a esbarrar até aqui a impossibilidade de des­ cobrir uma teoria científica da personalidade humana. Neste ponto da reflexão, não é dè uma comparação, por exemplo, com um puzzle, que necessitamos, mas sim, melhor do que toda é qualquer comparação, ^da lição do materialismo histórico, enquanto suporte de articulação para a psicologia da personalidade, que se revela cómo a mais esclarecedora. O materialismo histórico nasceu, precisa­ mente, da descoberta, por parte de MarX, do papel funda­ mental que é desempenhado adentro do desenvolvimento da sociedade humana por uma ordem de relações, até então mal diferenciada das relações concretas entre as condições da vida social: a ordem das relações de produção. Com efeito, mesmo que se estude o próprio mundo da produção dos bens materiais, só encontramos, .inicialmente, segundo^ parece, processos concretos de trabalho, entre os quais existe toda uma multitude de relações, quer sejam relações entre a produção e as suas condições naturais — por exemplo, entre a produção agrícola e as condições climáticas, entre a indús­ tria e as riquezas mineiras, etc. —, quer sejam relações de carácter técnico no seio da própria produção (por exemplo, entre produção dos bens de consumo e produção dos meios de produção, entre nível das forças produtivas e divisão técnica do trabalho, etc.). Deste ponto de vista, o estudo da produção dos bens materiais constitui um vasto domínio que vai buscar os seus materiais às ciências naturais e tecnoló­ gicas. Daí a pensarmos que todas as relações implicadas pela produção, e, mais genericamente, pela vida social, são rela­ ções desta natureza não vai senão um passo, franqueado por todas as concepções pré-marxistas, as quais derivam, segundo os casos, para teorias geográficas, raciais, tecnológicas, no que respeita ao desenvolvimento histórico. Esta teoria, tal qual como as actuais teorias da personalidade, sem falarmos mesmo do seu carácter incoercivelmente fragmentário, em

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oposição _uias às outras, fracassam, de modo radical, relati­ vamente a uma tomada de consciência sobre o essencial no âmbito do desenvolvimento histórico concreto, porque não vêem que com as relações naturais ou técnicas da produção não esgotámos mais o estudo das relações fundamentais do que com a delimitação do puzzle, segundo as suas peças, nos não apercebemos, igualmente, da imagem a que servem de suporte. Pelo contrário, a partir do instante em que Marx terminou a elaboração, em todo o seu rigor, do conceito de relações de produção, isto é, não de relações naturais ou técnicas suplementares, mas sim de Telações em que os homens se encontram implicados por ocasião da pro­ dução, relações de uma ordem totalmente diferente, por con­ sequência, se bem que pertencentes à mesma formação social e articuladas com as precedentes (o que a comparação do puzzle não traduz), a dialéctica fundamental do desenvolvi­ mento social toma-se compreensível, e igualmente compreen­ sível a própria razão pela qual, antes desta descoberta, esta permanecia incompreensível. As coordenadas naturais e técni­ cas não são, de forma alguma, recusadas, mas sim antes situadas enquanto coordenadas que são, em relação às quais o pro­ cesso social do trabalho — logo, das relações de produção — ao mesmo tempo que é condicionado oor elas, desempenha o papel regulador, e de que elabora, cada vez com maior fre­ quência, o seu próprio resultado. Assim, a ciência das rela­ ções de produção não só é a única que permite compreender relações absolutamente indecifráveis no domínio natural ou técnico — como a relação entre trabalho e salário, capital e lucro, terra e renda de arrendamento—, mas também se toma, igualmente, na ciência-piloto com o fim de captar, no seu conjunto, todas as outras relações e as suas leis gerais de desenvolvimento. Confundir, por detrás da unidade falaciosa do termo ((psicologia)), ciência das condutas e ciência das relações sociais entre as condutas, seria um erro da mesma natureza que aquele que consiste em confundir, sob o vocábulo confuso de «ciência da produção», a tecnologia e a eco­ nomia política. E trata-se aqui de ter de ser numa posição homóloga à da economia política que deve edificar-se, para além de uma psicologia das condutas, a ciência da persona­ lidade articulada com o materialismo histórico.

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A PERSONALIDADE ENQUANTO SISTEMA VIVO DE RELA­ ÇÕES SOCIAIS ENTRE AS CONDUTAS

Mas talvez se considere que é uma forma demasiado apressada de extrair conclusões, para mais, das mais ambi­ ciosas, a partir da rápida análise da única relação, que é, sem dúvida, importante, mas mesmo assim muito limitada, entre o trabalho e o salário. Será realmente possível generalizar os ensinamentos que parecera dimanar de uma tal análise? A noção de relações sociais entre as condutas, consideradas enquanto estruturas fundamentais da vida individual, será pertinente, à escala de toda a personalidade ? Será permitido esperar, tracionalmente falando, que esta permita captar a sua economia de conjunto e as suas leis de desenvolvimento, e isto para personalidades das mais diversas, no seio de socie­ dades das mais diversas? É evidente que a consciência teó­ rica da definição desta nova ciência psicológica, a ciência da personalidade enquanto sistema vivo de relações sociais entre as condutas, e, muito mais obviamente, da sua preten­ são ao papel de ciência-piloto no vasto domínio do estudo do psiquismo humano, depende da demonstração de que é, efectivamente, possível generalizar os resultados obtidos no decurso da análise das relações entre trabalho e salário. E a única resposta decisiva a esta exigência legítima consistirá na elaboração pormenorizada de todo o conteúdo de uma tal ciência da personalidade, a respeito do qual tentaremos, no próximo capítulo, apresentar um conjunto de hipóteses con­ cretas. Mas no âmbito dos limites do presente capítulo, isto é, colocando-nos ainda ao nível da articulação entre a psico­ logia e o materialismo histórico, e do que esta implica rela­ tivamente à ciência da personalidade, é possível demonstrar que. o exemplo das relações entre trabalho e salário não é, de forma alguma, um caso especial, votado à excepcionalidade e à esterilidade teóricas, mas, bem pelo contrário, um caso modelo, que permite, de imediato, o desenvolvimento da pesquisa e a sua generalização. E, para começar, é fácil estabelecer que a análise da relação de essência social que liga o salário ao trabalho, e, por consequência, todo um aspecto da satisfação das neces­ sidades a todo um aspecto da actividade concreta, em indiví­ duos que se encontram em grande número em inúmeras

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sociedades: os assalariados de uma sociedade tipo capita­ lista— que esta análise permite levar muito mais além do estudo teórico da economia geral desta forma de persona­ lidade e, sem dúvida alguma, das suas leis de desenvolvi­ mento. Com efeito, se é essencial compreender que o salário não é, de forma alguma, o «preço do trabalho», o resultado natural e imediato da actividade produtiva concreta à qual este corresponde, aparentemente, na sociedade capitalista, é-o, da mesma forma, o ver que, por conseguinte, toda esta actividade concreta se encontra desprovida de um resultado natural imediato para o indivíduo que o efectúa, ou, mais exactamente, que entre o seu resultado natural imediato do ponto de vista do processo social de produção e o seu resul­ tado meramente mediato para o indivíduo, manifesta-se uma separação, uma oposição. Enquanto, numa actividade pri­ vada, trabalho e resultado do trabalho, actividade produ­ tiva e satisfação das necessidades, constituem um ciclo per­ feitamente fechado sobre si mesmo, no trabalho assalariado, no seio de uma economia capitalista, o ciclo é aberto, ou, melhor ainda, não existe um ciclo real por detrás das aparências: as necessidades às quais «corresponde» a acti­ vidade produtora não são as do indivíduo produtor, na mesma medida em que o salário que este recebe, meio social de aceder à satisfação das suas necessidades, não «corresponde» ao trabalho fornecido. Por meio da alienação do trabalho, no sentido científico que em O Capital é dado a este conceito, é a personalidade nos seus próprios fundamentos que se encontra habitada pelas contradições sociais objectivas. Não há nenhum outro ponto a respeito do qual Marx se tenha pronunciado com tamanha constância durante quarenta anos. Em A Ideologia Alemã, ao analisar a fragmen­ tação do trabalho, característica da produção capitalista, escreve: «Em nenhum outro período precedente as forças produtivas tinham adquirido esta forma indiferente para com as relações dos indivíduos enquanto indiví­ duos, porque essas relações eram ainda limitadas. Por outro lado, vemos erguer-se, perante essas forças produtivas, a maioria dos indivíduos de quem estas forças foram extorquidas, e que são, devido a este facto, frustrados do conteúdo real da sua vida, tendo-se transformado em indivíduos abstractos, mas que, pre18

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cisa^iente por isso e apenas nessa altura, se encontram em estado de entrarem em relação uns com os outros enquanto indivíduos. O trabalho, único laço que ainda os une às forças produtivas e à sua própria existência, perdeu, no que files respeita, toda a aparência de manifestação de si e só os mantém vivos na medida em que lhes vai estiolando a.vida. Nos períodos prece­ dentes, a manifestação de si e a produção da vida material encontravam-se separadas unicamente devido ao facto de que incumbiam a diferentes pessoas e de que a produção da vida material era ainda considerada como uma manifestação de si, uma actividade de ordem inferior, devido ao carácter limitado dos pró­ prios indivíduos; hoje em dia, manifestação de si e produção da vida material encontram-se separadas a um ponto tal que a vida material surge como sendo o fim último, e a produção da vida material, isto é, o trabalho, como sendo o meio para o alcançar (sendo agora este trabalho a única forma possível, mas, tal como o verificamos, negativa, da manifestação de si). Chegámos, hoje em dia, a um ponto em que os indi­ víduos são obrigados a apropriar-se da totalidade das forças produtivas existentes, não só para se conse­ guirem realizar enquanto pessoas, mas, antes do mais, para assegurarem a sua existência.» 16. Dez anos mais tarde, nos Grundrisse, Marx retoma a aná­ lise, no âmbito da conceptualização económica mais rigorosa que elaborou entrementes: «Para o operário, o trabalho não é valor de uso senão na medida em que é valor de troca, e não na medida em que produz valores de troca. Para o capital, possui um valor de troca, na medida em que possui um valor de uso. Para o operário, o seu valor de uso não se distingue, portanto, do seu valor de troca, con­ trariamente àquilo que se passa por parte do capital. O operário troca, portanto, o seu trabalho, como sendo um simples valor de troca determinado por um 16 L'idéotoffie allemande, pp. 102*103.

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processo anterior: troca o seu trabalho p ; trabalho objectivado, porque o seu trabalho anterior materia­ lizou já uma certa quantidade de valores: por outras palavras, o seu equivalente é antecipadamente medido e determinado. O capital recebe em troca o trabalho vivo, que é a força produtiva geral da riqueza, a actividade criadora de uma superabundância de rique­ zas. Com toda a evidência, o operário não pode enriquecerse a partir de uma tal troca: tal como Esaú cedia o seu direito de primogenitura por um prato de lentilhas, também o operário cede a sua força criadora por uma grandeza já existente a fim de ter a faculdade de trabalhar. Em muito maior medida, tal como o veremos, empobrece-se ao pôr a força criadora do seu trabalho à disposição do poder do capital, força estranha que acaba por se lhe opor. Alienase ao trabalhar, sendo o trabalho a força produtiva da riqueza, de que, dessa forma, o capital se .apropria.» 17 E ainda dez anos mais tarde, no livro i de O Capital, retoma esta questão fundamental, de uma forma particular­ mente sugestiva, do próprio ponto de vista do humanismo científico: «Por um lado, o processo de produção não cessa de transformar a riqueza material em capital e meios de usufruto para o capitalista; por outro, o operário sai dele tal como para ele entrou: fonte pessoal de riqueza, despojada dos seus próprios meios de reali­ zação. O seu trabalho, já alienado, é parte integrante da propriedade do capitalista e, incorporado no capital mesmo antes de o processo ter tido o seu início, não pode, evidentemente, durante o processo, realizar-se senão enquanto produtos que lhe fogem das mãos.» E mais adiante: «O consumo do trabalhador é duplo. No acto de produção, consome pelo seu trabalho os meios de 17 Fondements, t. I, pp. 254*255.

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produção, a fim de os converter em produtos de um valor superior ao do capital avançado. Eis aqui o seu consumo produtivo, que é, ao mesmo tempo, consumo da sua força pelo capitalista, ao qual esta pertence. Mas o dinheiro despendido para a compra desta força é despendido pelo trabalhador em meios de subsis­ tência, e é isso que constitui o seu consumo individual. O consumo produtivo e o consumo individual do tra­ balhador são, portanto, perfeitamente distintos. No que respeita ao primeiro, ele age como força motriz do capital e pertence ao capitalista; no caso do segundo, ele pertence a si próprio e cumpre funções vitais para lá do processo de produção. O resultado de um é a vida do capital; o resultado do outro é a vida do - próprio operário.» Mas esta vida encontra-se totalmente dominada pelas relações capitalistas: «Q operário (é) obrigado a tornar o seu consumo individual num simples incidente do processo de pro­ dução. Neste caso, os víveres que lhe renovam a força desempenham o mesmo papel que a água e o carvão dados como alimento à máquina a vapor. Só lhe servem para produzir, ou melhor, o seu consumo indidual confunde-se com o seu consumo produtivo. O consumo individual do operário, quer tenha lugar dentro ou fora da oficina, constitui, portanto, um elemento da reprodução do capital, tal como a limpeza das máquinas, quer tenha lugar durante o processo de trabalho ou nos intervalos de descanso. É verdade que o trabalhador efectúa o seu consumo individual para sua própria satisfação, e não para a do capitalista. Mas também as bestas de carga gostam de comer, e quem é que alguma vez pretendeu que a sua alimen­ tação deixe, por. isso, de ser do interesse do fazen­ deiro?» 18 • Ora cá temos bem longas citações: mas eram necessárias. Porque, páginas como estas, escolhidas entre tantas outras, is Le Capital, I. 3. pp. 13 a 15.

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senão facto que foram escritas há cerca de um sáculo, parecem nunca ter sido lidast não, é certo, por psicólogos, mas sim pela psicologia. Estes textos que são para nós, homens do século xx, de uma verdade sempre acutilante, inexprimivel­ mente essenciais para a compreensão da nossa vida real, con­ têm, precisamente porque não provêm da ((psicologia», indi­ cações de uma importância incalculável no que respeita a uma real ciência psicológica* da personalidade, e que, con­ tudo, ainda nunca foram entendidas como tal, ou, em todo o caso, nunca foram postas em estado de funcionar teorica­ mente como tal. Demonstremos, portanto, de que forma elas o podem ser. A essência do trabalhador assalariado da sociedade capitalista consiste em que não possui, de modo algum, os meios para exercer a sua actividade produtiva — à parte um: a sua força de trabalho. E como «a apropriação» dos meios de produção, por outras palavras, as aprendizagens e as actividades por meio das quais os indivíduos tornam seus estes meios de produção, «não passa, em si memsa, senão do desenvolvimento das faculdades individuais correspondentes aos instru­ mentos materiais de produção» 19, daí resulta que os trabalhadores não são senhores do desen­ volvimento das suas faculdades individuais, do seu crescimneto enquanto personalidades, pelo menos enquanto a sua actividade se exercer ao nível do trabalho assalariado. A sua força de trabalho, logo, a sua «personalidade viva» 20, não pode, por consequência, manifestar-se espontaneamente em função das suas capacidades, das suas aspirações, das suas necessidades: não pode ser uma livre manifestação de si, tendo, .sim, de ser vendida ao capitalista. Ora, este acto de venda não significa apenas que o trabalhador se encontra desapossado da faculdade de a usar à sua vontade, como também que, de manifestação da personalidade viva, desce ao nível de mercadoria — que perde a sua existência con­ creta de força criadora de valores de uso para revestir a forma abstracta de um valor de troca, cuja grandeza é deter­ minada antes do processo concreto do trabalho, mdependen-13 13 L’idéologie allemande, p. 103. 20 Le Capital, I, 1, p. 170.

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temente dele, excepto no respeitante às formas fenomenais da sua dedução. Da mesma forma, é igualmente o consumo pessoal que se encontra desligado da actividade concreta e das necessidades reais, tomando-se ele próprio no simples meio de conservar à força de trabalho o seu valor de uso para o capitalista, isto é, o seu valor de troca para o traba­ lhador. Assim,, a personalidade viva acaba por- se encontrar no meio de uma alienação que lhe chega de todos os lados: é dominada pelo seu valor de troca que é a negação da individualidade concreta, habitada de uma ponta à outra pelas relações sociais dè dependência, cindida por uma oposi­ ção fundamental entre a vida pessoal, que só pode alojar-se nos poros intervalares da jornada de trabalho, e a vida social, que não passa senão do meio abstracto, estreitamente deter­ minado, de assegurar essa vida pessoal. É certo que - «toda a produção corresponde a uma objectivação do indivíduo» (mas) «no dinheiro (valor de troca) a objec­ tivação do indivíduo não é efectuada em função da sua natureza, mas sim adentro das condições (relações) sociais que lhe são externas» 21. A manifestação da vida — a actividade vital — surge como simples meio: o fenómeno, dissociado desta actividade, como fim em si.» 22 Vejamos o problema ainda mais de perto. Na sua vida pessoal o indivíduo pode, sem dúvida alguma, determinar, de facto, livremente a sua actividade e relacioná-la concre­ tamente com as suas necessidades reais, mas como não detém as forças de produção geradoras do desenvolvimento universal do indivíduo, como os limites desta vida pessoal são, a todos os níveis, fixados, da forma mais estrita, pelas relações sociais, como, no próprio seio desta actividade pessoal, a reprodução da força de trabalho se substitui a toda e qualquer necessidade, visto que condiciona a própria possibilidade de viver, esta vida real dó indivíduo encontra-se, em si mesma, transformada numa espécie de coordenada subalterna, numa simples diversão, num apêndice da forma abstracta da força 21 Fondements, t. I. p. 167. Of. igualmente p. 426. 22 Travail salarié et capital, Éd. Sociales, 1952, p. 46.

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de trabalho. Pelo contrário, no âmbito do trabalho social, о indivíduo encontra-se em presença das forças produtivas desenvolvidas: é aí que poderia, em princípio, desenvolver largamente as suas capacidades individuais. Mas aqui tudo se encontra invertido: não só este desenvolvimento não é o fim da aotividade, como também nem sequer se pode efectuar senão nos limites em que isso contribua para a criação de valor de troca para o capitalista, limites esses com os quais eie se encontra em constante contradição. O trabalho con­ creto, a manifestação da personalidade viva, condição para o seu próprio desenvolvimento, nunca pode, portanto, desa­ brochar liviemente: precisamente onde tal poderia acontecer é que esta não possui meios para isso, e onde possuiria seme­ lhantes meios tal lhe é interdito. É precisamente porque a actividade concreta se encontra, deste modo, totalmente sujeita às exigências da actividade abstracta que a satisfação das necessidades, enquanto coincidente, com a reprodução da força de trabalho, surge como sendo a base natural e o elemento motor da personalidade. A psicologia vulgar, para quem toda a actividade psíquica, quer humana quer animal, visa, em última instância, pura e simplesmente «satisfazer as necessidades», não passa, no seu fundo, senão da ingénua expressão ideológica da alienação fundamental induzida na personalidade dos trabalhadores, no seio de uma sociedade capitalista, devido à própria natureza das relações sociais. Onde é, na realidade, verdade que o homem trabalha para viver na própria medida em que vive para trabalhar — em vez de poder trabalhar para o próprio trabalho, enquanto livre manifestação de si, em vez de a vida ser o «desenvolvimento de todas as forças humanas enquanto tal, sem que sejam medidas segundo um escalão prees­ tabelecido» 23. Ё por isso que o esquema geral da conduta surge sob a forma do ciclo necessidade-actividade-necessidade, N-A-N, implicando, por consequência, uma visão homeoestática (reprodução simples) da personalidade — ilusão que constitui 23 Fondements; t. I, p. 460.

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o fundo de praticamente todas as teorias da motivação que têm vindo a ser elaboradas até aos nossos dias — quando um tal esquema não reflecte, de forma alguma, no homem, um dado natural, mas é, sim, pelo contrário, o efeito mais claro, sobre as personalidades, de relações sociais, elas próprias caracterizadas por uma tendência interna para a obstrução do impulso das forças produtivas. Vemos assim, consequentemente, que, a partir de uma análise como a das relações reais entre trabalho e salário, não só surge uma nova espécie de relações entre as condutas, como também ainda este tipo de relações permite aceder ao estudo científico das contradições de base da vida pessoal — contradições entre actividade social e actividade privada, personalidade abstracta e personalidade concreta, consumo pessoal e reprodução da força de trabalho, etc. — e abre imensas perspectivas para a reflexão sobre as leis de desenvoU vimento das personalidades. É precisamente sobre este ponto que nenhuma teoria clássica da aprendizagem está em estado de nos fornecer um contributo. As teorias da aprendizagem que se situam, no terreno da ciência dos comportamentos e das condutas podem, no melhor dos casos, explicar-nos de que forma se efectúa o desenvolvimento das actividades, feita a abstracção das relações sociais entre as condutas, feita a abstracção da estrutura social da personalidade, isto é, sem levar em linha de conta aquilo que determina o curso geral do desenvolvimento da personalidade. Elas estão para as leis de desenvolvimento da personalidade, cuja elaboração surge como possível, na base do estudo das relações sociais entre as condutas, na mesma medida em que as análises tecnológicas do desenvolvimento das forças produtivas estão para as aná­ lises económicas que se fundamentam no estudo das relações de produção. É por isso que encontram no séu terreno inúmeros factos aberrantes, de que não podem, de uma forma correcta, elaborar a teoria. E apenas os psicólogos que têm consciência dos limites da ciência das condutas, e que reflectem sobre o que se encontra para além desses limites, em particular se trabalham na base do marxismo, sabem ver nesses factos aberrantes algo que põe profundamente em causa a conceptualização psicológica habitual. É assim que, no seu estudo de conjunto da aprendizagem, J.-F. Le Ny, se bem que se mantenha, ao longo de todo o seu trabalho, aquém

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do limiar «em que as actividades psicológicas deixam de ser comuns ao homem e ao animal» 2\ faz notar justamente: «A psicologia de laboratório, interessada, sobre­ tudo, pelo aspecto analítico dos comportamentos, pouco ou nada tem insistido precisamente sobre o facto de que na vida psicológica concreta existe, no seio do .meio-ambiente, toda uma estrutura dialéctica de reforço*25. «No caso do homem, a importância do passado e do meio ambiente é, a este respeito, tal que, sob a enorme variedade e diversidade dos fins, é com extrema dificuldade que conseguimos reconhecer o fundo comum das motivações primitivas, transformadas pela historia pessoal. É neste ponto preciso que as condi­ ções sociais adquirem toda a sua importância. O ho­ mem não cessa de ser biologicamente determinado, mas a sua forma de o ser consiste em se autodeter­ minar socialmente; ao integrar em si mesmo tudo aquilo com que a sociedade em que vive o enriquece e empobrece, o indivíduo toma-se uma pessoa.» 2627 Mas o imenso programa de novas pesquisas que estas observações esboçam só pode ser levado a cabo, com êxito, se empreendermos, antes do mais, o estudo científico, não psicológico em si mesmo, da «estrutura do meio ambiente - social» 77. O mesmo problema pode ainda ser abordado sob um outro ângulo. Para toda a psicologia que se propõe contribuir, I na prática, para o desenvolvimento máximo de todas as perso; nalidades humanas uma questão decisiva é, evidentemente, a dos limites de crescimento psíquico, da sua natureza, da sua origem, e dos meios apropriados para os alargar. Uma tal pesquisa pode, bem entendido, basear-se em dados neurofisio1 lógicos, biológicos e médicos: uma gerontologia psicológica I deve ser articulada com a gerontologia biológica. Mas a и J.-P. Le Ny: Apprentissage et activités psychologiQues, P. U1967, p. 444. 25 ibidem, p. 142. 26 Obra citada, p. 441. 27 Ibidem, p. 34.

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mínima reflexão sobre os danos evidentes da observação quotidiana revela que os limites do desenvolvimento das personalidades não podem, de forma alguma, ser entendidos, em alguns dos seus aspectos essenciais, a partir da noção de limites biológicos. As discordâncias nos dois sentidos — petrificações precoces da personalidade ou, pelo contrário, reto­ madas tardias de crescimento— são, em si mesmas, provas eloquentes de que, para além de todos os determinismos biológicos, nos encontramos aqui a braços com um. fenómeno cuja essência é social. Também neste caso o materialismo histórico desempenha o seu papel de ciência-piloto. Marx observa, em O Capital, o carácter extremamente bizarro, a uma primeira análise, do limite de crescimento do desenvol­ vimento das forças produtivas que acaba por entrar em con­ tradição com a. tendência do capitalismo para as levar incessantemente por diante, e que surge, nomeadamente, sob a forma da baixa tendencial das taxas de lucro. Ora, este limite não é, de forma .nenhuma, inerente às próprias forças produtivas, que podem perfeitamente aumentar, para lá dele, tal cómo o prova, concretamente, a substituição das relações capitalistas pelas relações socialistas, «Esta limitação, muito específica, testemunha o carácter limitado e meramente histórico, transitório, do sistema de produção capitalista.» 28 Isto advém de que, no seio do capitalismo, «é o lucro e a relação entre esse lucro e o capital utilizado, logo, um certo nível das taxas de lucro, que decidem sobre a extensão ou a limitação da produção, em vez de ser a relação da produção com as necessi­ dades sociais, com as necessidades de seres humanos socialmente evoluídos. É por isso que surgem já limites para a produção, a um dado grau da sua extensão, os quais, caso contrário, na segunda hipó­ tese, surgiriam claramente como insuficientes, e de longe. Esta estagna, não quando a satisfação das neces28

Le Capital, Ш, 1, p. 256.

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sidades o impõe, mas sim quando a produção e a realização de lucro obrigam a essa estagnação.» 29 Hm suma, este limite histórico meramente relativo advém da inversão das relações entre fim e meios do desenvolvi­ mento da produção, entre actividade concreta e actividade abstracta. «O capital e a sua própria atribuição de valor surgem como sendo ponto de partida e ponto final, motor e fim da produção; a produção não passa de uma produção para o capital e não o inverso: os meios de produção não são simples meios de dar forma, alargando-o continuamente, ao processo da vida em benefício da sociedade dos produtores.» 30 Não se trata, evidentemente, de transpor mecanicamente as conclusões extraídas por Marx da lei da baixa tendencial das taxas de lucro, nó âmbito da economia capitalista, para a teoria da personalidade. Mas que se reflicta na razão pro­ funda pela qual, segundo a análise de Marx, o capitalismo encontra um limite no desenvolvimento das forças produtivas: este limite advém do facto de que a produção se encontra subordinada à busca do lucro, oíi seja, a actividade concreta à sua forma abstracta. Ora, esta alteração está na base não só da economia capitalista, mas também, como já vimos, da personalidade do trabalhador assalariado, no seio desta eco­ nomia. É por isso que se trata de algo totalmente diferente de uma simples analogia entre o fenómeno da tendência não natural para a estagnação das forças produtivas e o fenómeno da tendência não natural para a estagnação das capacidades da personalidade viva, no âmbito das condições destas rela­ ções sociais. Numa personalidade em que o desenvolvimento da actividade concreta se encontra totalmente subordinado ao valor da força de trabalho será caso para nos espantarmos se as capacidades correspondentes do indivíduo tendem para a estagnação, na mesma medida em que o valor da sua força de trabalho se encontra estagnado, inclusive depreciado, de 2Э Le Capital, p. 271. so Ibidem, p. 203.

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acordó com a lei da depauperação? Apercebemo-nos, por­ tanto, aqui, por detrás dos fenómenos biológicos e neurofisiológicos de envelhecimento, cuja incidência sobre a persona­ lidade nao é, bem entendido, de negar, de uma lei de essência social que se manifesta na estagnação de inúmeras perso­ nalidades, tal acontecendo, com frequência, logo desde a pri­ meira juventude, a um nível extremamente inferior ao daquele de que algumas personalidades excepcionais" demonstram a acessibilidade, numa determinada sociedade. Não seria, nesse caso, necessário reexaminar, de uma forma radicalmente crí­ tica, ao mesmo tempo que a ideologia burguesa dos «dons», a concepção enraizada, e, contudo, tão visivelmente coxa, segundo a qual os raros grandes homens de uma época seriam as excepções biológicas que as combinações cromossomáticas produziriam, com previsível parcimónia de um cálculo gené­ tico? Não será já tempo de pôr termo à vacuidade teórica flagrante de uma certa mitologia biológica do génio, interro­ gando-nos sobre se a existência dos grandes homens, das per­ sonalidades que se realizaram, não seria a prova de que o estádio de desenvolvimento alcançado pela sociedade torna, regra geral, possível esta auto-realização, e, se, por consequên­ cia, o facto de a enorme massa dos indivíduos permanecerem embotados não advirá de que estes são impedidos de se desen­ volverem, ao mesmo tempo que tal é permitido a outros, devido às relações sociais desumanas, no sentido histórico concreto do termo, que anulam, no que lhes respeita, as possi­ bilidades dé um desenvolvimento integral implicadas pelo nível geral das forças produtivas e da civilização? Os grandes homens, excepções de uma época na exacta medida em que a imensa maioria dos outros homens é embotada pelas condi­ ções sociais, não seriam, num certo sentido, os homens nor­ mais dessa época, e não seria, precisamente, a regra comum do embotamento a excepção que seria necessário explicar? O capítulo seguinte voltará a debruçar-se sobre estas interro­ gações, hoje em dia impossíveis já de ocultar31. Em todo o caso, partindo da análise das relações sociais entre trabalho e salário, vemos de que modo a reflexão vai, a pouco e pouco. » Cf. LHdéologie allemandè, p. 434, em particular a ideia de que «a concentração exclusiva do talento artístico em algumas individuali­ dades, e, correlativamente, a sua asfixia na grande massa das pessoas, é uma consequência da divisão do trabalho».

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e logicamente, destrinçando as grandes linhas possíveis ae uma teoria geral das estruturas de base da personalidade e das leis de desenvolvimento que a regem. Mas não se tratou até aqui senão do trabalhador assala­ riado da sociedade capitalista, considerado apenas do ponto de vista da sua actividade de trabalhador assalariado. Para ir mais além na demonstração de que é possível generalizar totalmente o estudo da personalidade considerada como sis­ tema vivo de relações sociais entre as condutas, é-nos agora necessário examinar outros aspectos da vida pessoal, outras personalidades para além da do assalariado, outras sociedades que não a capitalista, à luz da teorização já esboçada. I. — As análises precedentes relacionam-se com a activi­ dade social do indivíduo, com o seu trabalho enquanto objecto da economia política. Será possível conceber uma abordagem idêntica de problemas psicológicos bem diferen­ tes, como são os da vida pessoal no seio do casal, e, mais genericamente, das relações familiares? A questão é tanto mais importante quanto, no seu conjunto, a psicologia «huma­ nista», no sentido especulativo do termo, que ignora praticamente tudo no que respeita às relações de produção, concede, em contrapartida, um interesse excepcional aos «problemas do casal» e ao amor. Aliás, um serve de explicação ao outro, tal como Marx muito bem observara, a propósito de Feuer­ bach, em A Ideologia Alemã: não conseguindo captar os ho­ mens «no seio das suas condições de vida muito concretas que os tornaram naquilo que são», «atém-se a uma abstracção, !o homem’, e não consegue reconhecer o homem ’real, individual, em carne e osso’, senão no sentimento: por outras palavras, não conhece outras ’relaçõ es humanas’ ’do homem com o homem’ que não sejam o amor e a amizade, e, para mais, idealizados» 32. Assim entendida, a «dialéctica do casal» corresponde ao pseudoconcreto de uma psicologia essencialmente abstracta, para a qual as relações sociais reais se reduzem à relação especulativa do «Eu» com «o Outro». Mas mesmo quando estes problemas são abordados de uma forma muito mais concreta e científica, a tendência para os за L'iáéologie allemande, p. 56. Oí. Engels: Ludwig Feuerbach. 3.a parte.

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considerar enquanto problemas da afee, idade, no sentido mais lato do termo, e рата os valorizar a expensas dos pro­ blemas do trabalho sodal e das relações de produção, representa, quase sempre, o índice de uma deformação filosó­ fico-humanista: encontra-se aí uma verdadeira lei teórica33. Isto não quer dizer que a concepção aqui defendida da psicologia da personalidade como sistema vivo de relações sociais entre as condutas implique, no respeitante aos proble­ mas do amor, do casal e da família, uma atitude, por pouco que seja, depreciativa. Tal como o princípio do materialismo histórico, com o qual se encontra directamente articulado, o princípio de uma tal teoria da personalidade não é redutor. Para começar porque, não podendo, bem entendido, a psicologia da personalidade ser considerada como, pura e simplesmente, homóloga da teoria da sociedade, a base da actividade pessoal não pode ser reduzida unicamente à partici­ pação do indivíduo nas actividades de base da sociedade cor­ respondente. Se, tal como o demonstraremos no capítulo seguinte, a infra-estrutura de uma personalidade é constituída pelo conjunto das actividades que a produzem e a reprodu­ zem, nela: figuram, portanto, não só o trabalho social, mas também as actividades pessoais e as relações interpessoais que, à sua maneira, desenvolvem capacidades, satisfazem necessidades, engendram um produto psicológico. O amor, por exemplo, corresponde a estes critérios, e é, neste sentido, parte integrante da infra-estrutura da personalidade. Da mesma forma, se o rabalho social nos parece desempenhar, regra geral, o papel infra-estrutural mais decisivo na economia de conjunto da personalidade, tal não provém, de forma* alguma, de um misticismo ou de um fetichismo «marxistas» do trabalho, mas sim apenas do facto inegável de que o tra­ balho social é, regra geral, a actividade no seio da qual o indivíduo se encontra em contacto com as forças produtivas e as relações sociais mais decisivas, em última análise. Mas, precisamente devido à sua posição, de certa forma media33 Esta lei verifica*se, mais uma vez, na evolução teórica de K. Garaudy. Assim, em Marxisme du. X X siècle (La Palatine, 1066), pontos de vista sobre o casal, em sl meemos defensáveis, mas desligados de toda e qualquer análise social concreta, são utilizados como argumentos a favor da pseudo — VI Tese e da ideia de que «o amor revela a dimensão específicamente humana da história», isto é. «a transcendência do homem relativamente a cada uma das suas realizações provisórias» (p, 156). :

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neira, no âmbito da vidt pessoal, entre as actividades pro­ priamente sociais e as actividades meramente individuais, as relações interpessoais podem desempenhar um papel espe­ cífico de primordial importância. E sem dúvida que o mais precioso contributo do marxismo, a este respeito, consistiria, contrariamente a uma ideia largamente difundida, não em levar o amor a uma assimilação forçada por parte das relações sociais propriamente ditas, mas sim, pelo contrário, em sublinhar a sua especificidade extremamente profunda, e, concomitantemente, a sua ambiguidade, que é origem de uma inesgotável aptidão para se encarregar de funções e significações derivadas das mais diversas: pode mesmo, de muitas e variadas formas, vir a ocupar o lugar do trabalho social. É por isso que, aliás, a sua posição na infra-estrutura da personalidade não é, de forma alguma, uma coordenada natural invariável, mas sim uma característica ao mesmo tempo historicamente relativa e concretamente individual. Voltaremos a este ponto. Em segundo lugar, se as relações interpessoais, a vida do casal e da família, o amor e a amizade podem ser considera­ dos como pertencentes à base da personalidade, é necessário não esquecer que a base não é, naturalmente, em maior medida o todo da personalidade do que o é da sociedade, sendo sim o factor determinante, em última instância, segundo a fórmula de Engels, que, numa carta enviada a Joseph Bloch, acres­ centa: «Nem Marx nem eu próprio alguma vez afirmámos fosse o que fosse a mais. Se, em seguida, alguém tortura esta proposição para a levar a confessar que o factor •; • económico é o único determinante, transforma-a numa J frase oca, abstracta, absurda.» 34 Na vida de uma personalidade como na de uma socie­ dade, é evidente que há um grande número de actos que não pertencem à base, mas que desempenham, por exemplo, um papel de superstratum. Voltaremos, no próximo capítulo, a este problema, extremamente importante, das superstruturas da personalidade. Mas podemos, desde já, observar que os sentimentos em geral, dos quais os respeitantes ao amor não constituem excepção, são, sem dúvida, numa 34 Carta de 21 de Setembro de 1890, Etudes pliilosopMques, p. 238.

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larga medidr: de ordem supers trutural, segundo a visão profunda de * .erre Janet, que foi o primeiro a saber pôr em . evidência a sua natureza de actos secundários, reguladores das actividades primárias: esboçava, dessa forma, não obstante a medíocre ideologia filosófica que- lhe servia de meio de reflexão,, a teoria da personalidade como sistema de activi­ dades estruturado no tempo, isto é, aproximava-se o mais perto que lhe era possível da solução, para quem ignora tudo do marxismo35. Deste ponto de vista, não se avança, efecti­ vamente, muito se afirmarmos que o amor, na sua extraor­ dinária multiplicidade de aspectos, se encarrega, de uma forma complexa, de um grande número de funções superstruturais cujo emaranhado não é, de facto, fácil de deslindar, Na vida de uma personalidade existem igualmente, sem quais­ quer dúvidas, inúmeros actos que não podemos relacionar, directamente, nem com a base, nem com a superstrutura. Pretender elaborar uma verdadeira teoria da personalidade, imaginando, à partida, que cada acto será, necessariamente, passível de classificação em rubricas científicas perfeitamente claras, não passaria de mera infantilidade; é demasiada feli­ cidade se.se tomar, finalmente, possível captar, de uma forma racional, as principais estruturas e o seu movimento geral Há certamente muito desta «textura conjuntiva» da actividade no âmbito das relações do casal e da família, tal como as outras relações. Mas, por mais largamente autónomas que estas relações possam ser em relação ao que identificámos mais acima como sendo a base da personalidade, continuam a não passar de relações. E se levarmos realmente a sério esta noção de rela­ ção, .não podemos concebê-la como não passando de uma simples postura relacional, extema e contingente, de indiví­ duos em si mesmos definidos de forma meramente prévia .e independente; toda a relação contém, em si mesma, uma realidade essencial, por meio da qual se encontram determi& O uso das metáforas económicas na concepção da personalidade merecia, de facto, río caso de Janet, um estudo; teve a geníalidade de pressentir que estas estavam de paredes meias com o essencial, quando não conhecia, precisamente, outra economia política que não fosse a da sua forma burguesa vulgar. «Os psicólogos», escreve, «não concederam na rainha opinião, um lugar tão. vasto como seria devido à análise do trabalho, talvez porque não se colocam, suficientemente do ponto de vista da acçãa» (De Vangoisse à Vextase, -Alcan. 1962, t. I. p. 228.)

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nados os que nela estão implicados: é também niss^ que consiste todo o espírito da V I Tese sobre Feuerbach, e da dialéctica. Trata-se, portanto* de estudar, na sua realidade essencial, as relações do casal e da família. E o que é estudar cientificamente esta realidade essencial senão, e para come­ çar, estudar as trocas materiais em que consiste, ou, pelo menos, se baseia? Uma psicologia científica, materialista, das relações do casal e da família baseia-se no estudo atento da economia doméstica, ou, caso contrário, deixa de existir. Tal é, de facto, a diligência dos fundadores do marxismo, de todos os autênticos teóricos do socialismo. Assim, ao analisar em 1919, em A Grande Iniciativa, as condições de emancipação social das mulheres — que condiciona, por seu turno, a sua emancipação psicológica e das relações no seio do casal — Lenine escrevia que «a mulher continua a ser a escrava doméstica, a des­ peito de todas as leis emancipadoras, visto que as pequenas tarefas domésticas a esmagam, a asfixiam, a embrutecem, a humilhara, agrilhoando-a à cozinha e ao quarto das crianças, desperdiçando os seus esforços num trabalho absurdamente improdutivo, mesquinho, enervante, embrutecedor, esmagador» 3fi. Esta pequena economia doméstica não é só caracterizada pelo baixo nível dos instrumentos de trabalho, tal como o crê o ideólogo tecnicista para quem a generalização do aspirador e da máquina de lavar, dado constituírem um progresso em si, deveria bastar para libertar a mulher: o progresso das forças produtivas da indústria, que é, igualmente, positivo em si, não serve, contudo, para libertar, por si mesmo, o proletariado, e até bem pelo contrário, dentro do capitalismo. Mais ainda do que ó nível das forças produtivas, trata-se de um sistema de divisão do trabalho, de relações de actividade doméstica, apoiadas nas relações da produção social, que se encontra directamente em causa, e é da sua análise científica que depende a passagem para uma psicologia científica da personalidade no seio do casal e da família. Trata-se aqui de uma tarefa teórica, de enorme vastidão, a exigir uma и Lenine, CEuvres, t. 29, p. 433. 19

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execução prática, porque é ridente que, se dispomos, em matéria de economia política, graças a Marx, de uma teoria extraordinariamente rica e profunda, muitas questões con­ tinuara ainda sem resposta, mesmo no caso em que são colocadas, no terreno da economia doméstica, em que, por outro lado, em oposição ao que acontece no respeitante ao trabalho social estudado pela economia política, a extrema diversidade das condições toma, objectivamente, a generali­ zação extremamente difícil. E, no entanto,-este atraso da teoria da economia doméstica não será, precisamente, a origem mais directa da persistência do idealismo em toda uma «psicologia do casal»? O que é necessário examinar de mais perto, em particular, é a natureza exacta das trocas que estão em jogo no seio das relações familiares e do seu efeito sobre as actividades que orientam. Neste domínio, devemos, bem entendido, preser­ var-nos de toda e qualquer assimilação ingénua entre tra­ balho doméstico (o da dona de casa) e trabalho assalariado, prestação de serviços e venda de mercadorias, servidão domés­ tica e exploração capitalista: mesmo a família burguesa não é uma sociedade capitalista em miniatura. Mas, posto isto, surgem alguns problemas. Ё assim que o trabalho doméstico concreto da dona de casa se encontra, insistentemente, no seio da família, frente a frente ao trabalho social abstracto por­ tador de rendimentos, sob a forma da actividade profissional do marido, por exemplo; é constantemente susceptível de ser ele próprio substituído directamente por trabalho assalariado, e substituído de uma dupla forma: o mesmo tempo pode ser utilizado como sendo trabalho social remunerado, por exem­ plo, caso a dona de casa comece a exercer uma profissão, e as mesmas tarefas podem ser executadas como sendo trabalho doméstico assalariado, caso ela empregue uma mulher-a-dias. Desde logo, em que medida, no próprio âmbito de uma eco­ nomia doméstica que por si mesma a isso não conduz, é que o tempo de trabalho doméstico se liberta das formas concretas no seio das quais se encontra enredado, em que medida é que pode pôr-se a desempenhar um papel de regulador no seio das relações do casal? Não será verdade que tende a operar-se, também neste caso, um desenvolvimento, se bem que de uma forma específica, entre a actividade concreta, como manifesta­ ção de si e relação imediata com outrem, e uma forma pseudo-abstracta áQsta actividade, agravada por essa inferioridade

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constitutiva q: consiste em que, no seio das relações domés­ ticas, é incapaz enquanto tal de ser objecto de troca contra um rendimento? Apercebemo-nos imediatamente das pers­ pectivas que um tal estudo abriria, no respeitante às formas de individualidade que as relações de actividade doméstica comportam, no respeitante às contradições da personalidade que induzem e que acabam por vir inserir-se nas contradições de base evocadas mais atrás, no respeitante à origem de todas as espécies de representações ideológicas que encontramos, a todo o instante, assim que surge a questão de psicologia dos sexos e das suas relações, como, por exemplo, a respeito da raiz social de toda a ideologia que defende a inferioridade essencial da mulher. Na realidade, é impossível considerar seriamente este problema numa outra base que não seja a de um estudo sobre as relações práticas do casal — e, mais genericamente, da família, porque, no âmbito da lógica pro­ funda da relação entre o homem e a mulher há a criança, elemento capital da análise, nem que seja, por vezes, preci­ samente devido à sua ausência: se, tal como já alguém disse, a mulher é o futuro do homem, a criança é o futuro do casal. É assim que, sem forçar a nota, nos encontramos remetidos, caso estejamos animados pelo espírito da ciência materialista, das relações interpessoais para as trocas materiais e das trocas materiais para as relações sociais— da psicologia para a economia, na qual, tanto neste domínio como nos outros, se tem de fundamentar. Igualmente Marx, em O Capital, nomeadamente, colocou certas pedras*de-toque no respeitante à teoria científica família articulada com a economia política: «Por mais terrível e repugnante que pareça, no actual meio social, a dissolução dos antigos laços de :í família, escreve, a grande indústria, graças ao papel decisivo que consigna às mulheres e às crianças para além do círculo doméstico, em processos de produção socialmente organizados, não deixa, por isso, de criar • a nova base económica sobre a qual se irá erguer uma forma superior da família e das relações entre os sexos.» 37 37 Le Capital, I, 2, p. 168.

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Esta breve análise, que não se propunha, natural m* .e, ^solver os problemas apresentados como exemplo, basta, sem dúvida, para demonstrar que a concepção da personali­ dade, como sistema de relações sociais entre as condutas, não é uma extrapolação abusiva e estéril daquilo que nos revela a análise do trabalho social. É, bem pelo contrário, a base geral mais rica para a reflexão sobre os diversos aspectos fundamentais da vida pessoal. O inconsciente, diz-nos hoje a psicanálise, na sua forma mais viva, encontra-se estruturado à maneira de uma linguagem; melhor, é linguagem. No ponto em que nos encontramos, não seria ainda mais fundamentado afirmar que a personalidade se encontra estruturada à maneira de uma troca; melhor, que é, na sua base, um complexo sistema de trocas? ■2. — As análises de que tínhamos partido incidem sobre as relações entre o salário e o trabalho. Será possível analisar, segundo o mesmo princípio, as estruturas de base da persona­ lidade, se encararmos o caso, já não de um trabalhador assalariado, mas sim de um homem que ocupa na sociedade capitalista uma posição totalmente diferente, beneficiando de rendimentos.de uma outra espécie, oriundos de uma actividade efectuada em condições muito diferentes? Sem dúvida alguma. Assim, o- que é válido para as relações entre trabalho e salário é igualmente válido, pondo de parte todas as desi­ gualdades, para as relações entre actividades capitalistas e lucro: o lucro do capitalista não é mais o resultado natural imediato dá actividade concreta do capitalista, seja ela qual for, do que o salário é o resultado natural imediato do tra­ balho concreto do assalariado38. E julgar o contrário advém, nos dois casos, do mesmo tipo de ilusão ideológica. Tal como o salário não é o preço do trabalho, também o lucro não é o preço das responsabilidades de direcção; é, sim, o prévio levantamento, que o estatuto de capitalista cauciona, sobre as riquezas criadas pelo trabalho vivo. A relação entre lucro e actividade capitalista não é, portanto, mediatizada em menor grau pelas relações sociais do que a que se estabelece entre trabalho e salário, se bem que esta o seja de uma outra w Of. nomeadamente Le Capital, III, 3, cap. XLVlli: «La formule trini taire».

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forma. Podemos mesmo ir mais longe: a busca do lucro nem sequer pode ser considerada como sendo a actividade pessoal concreta do capitalista, visando a satisfação das suas necessi­ dades como individuo: «Nunca se deve esquecer que a produção (da) mais-valia [...] é o fim imediato e o motivo determi­ nante da produção capitalista. Nunca se deve, por­ tanto, apresentá-la como sendo o que não é, ou seja, uma produção que tem por fim imediato o usufruto ou a criação de meios de fruição para o capitalista. Isto equivaleria a urna total abstracção do seu carácter específico, que se manisfesta em toda a sua estrutura interna.» 39 Ai reside, precisamente, a origem de uma contradição característica da forma de individualidade do capitalista, con­ tradição essa não «psicológica», no sentido vulgar do termo, mas sim social e objectiva, e, nesta medida, determinante para a personalidade. É o «conflito à moda de Fausto» que Marx analisa ao longo de toda a sua obra, dos Manuscritos de 1844 a O Capital, conflito que surge no espirito do capita­ lista entre a «tendência para a acumulação» e a «tendência para a fruição» 40: acumular, é conformar-se com a exigência do «contínuo engrandecimento do capital» que a concorrência impõe, como uma «lei coercitiva externa, a cada capitalista considerado individualmente» 4\ mas, por outro lado, o capi­ talista, que não passa de capital, mas que é também um individuo concreto, «ressente uma ’emoção humana’ pelo seu próprio Adão, a sua саше» 42, tanto mais quanto, sendo a prodigalidade um importante meio para a obtenção do crédito, «o luxo torna-se uma necessidade de profissão e parti­ cipa nas despesas de representação do captial» 4\ Mas tal equivale a afirmar [que mesmo a satisfação da tendência pessoal para a fruição tende a tornar-se, no caso do capitalista, num aspecto do processo da reprodução alargada do capital. 39 Le Capital, Ш, 1, d. 267. « Ibidem, I, 1, p. 34. 41 Ibidem, p. 32. 43 ibidem, p. 33. *3 Ibidem, p. 34,-

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«Deste ponto de vista, conclui Marx, se o prole­ tário não passa de uma máquina para a produção da inais-valia, o capitalista não passa de uma máquina para a capitalização dessa mais-valia.» 44 . Este exemplo mostra bem que as relações entre actividade social e satisfação das necessidades, e, mais genericamente, que as relações fundamentais da personalidade consigo pró­ pria, são, da mesma forma, relações sociais, quer no caso do capitalista, quer no caso do proletário, o que quer dizer que a concepção da personalidade definida mais atrás é tão válida para um como para outro. A este respeito, é perfeitamente justo considerar o processo de vida do capitalista como não sendo menos alienado do que o do proletário, se bem que de uma outra forma: tal como o proletário, o capitalista rv - ((permanece como sendo socialmente a criatura (das relações sociais), faça ele o que fizer para disso se libertar» 45, e tanto para um como para outro estas relações capitalistas tomam contraditórias as relações entre aspecto social e aspecto pessoal da individualidade, forma concreta e. forma abstracta da actividade e das trocas; mais genericamente falando, subor­ dinam o conjunto da vida individual à sociedade como a uma potência estranha e inumana. Numa sociedade de classes, regra geral. «o progresso não se encontra unicamente limitado pelo facto de uma classe dele estar excluída, mas também devido ao factó de que a classe que é agente da exclusão se encontra, também ela, encerrada num acanhado âmbito de movimentação, e que o ’inumano* se encontra igualmente no seio da classe dominante))46. Isto confirma, aliás, de uma forma perfeitamente clara, a falsidade da assimilação humanista-especulativa entre a*16 « Le Capital, p. 36. Ibidem, I, l f p, 20. 16 Vidéologie allemande, pp. 474-476. Cf. p. 460, nota.

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teoria da alienação de 1844 e a teoria da depauperação de 0 Capital. Na realidade, o carácter ainda parcialmente espe­ culativo da noção de alienação em Marx, em 1844, consiste precisamente em que nela se encontram misturados fenómenos extremamente díspares: o da depauperação da classe operária (será necessário sublinhar que a economia capitalista não comporta nenhuma lei de depauperação da classe capitalista?) e o da alienação geral das relações dos indivíduos da socie­ dade capitalista entre si, entre as suas condições de vida e eles próprios, alienação essa que é, de resto, concebida de uma forma intrinsecamente nova em 1857 ou em 1867 relativa­ mente a 1844, as formas específicas de alienação de cada classe não as impedindo de possuírem uma essência comum. 1 Vé-se, portanto, que, também aqui, a ideia de relações sociais entre as condutas como base da personalidade surge como sendo perfeitamente passível de generalização. Para abordar cientificamente o estudo de uma personalidade é necessário partir da teoria das correspondentes formas his­ tóricas de individualidade. Ora, esta teoria baseia-se sempre, em si mesma, na ciência das relações sociais, seja qual for a classe à qual pertence a individualidade de que nos ocupe­ mos. Pode, naturalmente, dar-se o caso de que os materiais concretos para um tal estado não se encontrem ainda suficien­ temente elaborados: é evidente, por exemplo, que a análise pormenorizada das formas e das funções do trabalho dos intelectuais na França contemporânea está longe de estar tão avançada como a do trabalho do proletariado industrial, de forma que a teoria das formas de individualidade e, por con­ seguinte, a psicologia da personalidade se encontram num estado de avanço objectivo muito diferente nestes dois casos. Mas isto não quer dizer, bem entendido, de forma alguma, que a psicologia da personalidade de um trabalhador inte­ lectual não possa ser desenvolvida de acordo com os mesmos princípios gerais que а/de um proletário; bem pelo contrário, isso prova que a psicologia da personalidade, tal como aqui é esboçada, leva a que surja, de uma forma que já nada tem de nebuloso, a imensidade das pesquisas positivas que se trata de desenvolver. 3 . ~ E é justamente a mesma conclusão que se impõe se examinarmos o problema da generalização destes princípios ao estudo de personalidades que se desenvolvem no seio de

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outras sociedades que não a sor-'^dade capitalista: não só esta generalização surge, de imedia como possível, como tam­ bém é a base a partir da qual podem, finalmente, ser abor­ dados os problemas capitais da transformação histórica das estruturas das personalidades humanas. Neste dominio, encon­ tramos em Marx indicações excepcionalmente preciosas, e das quais parece, contudo, que nenhum partido, de índole científica, foi extraído no respeitante ao dominio psicológico. De A Ideologia Alemã а. O Capital, Marx .retorna regular­ mente, em análises que, é certo, são breves e, por vezes, abstractas, mas sempre admiravelmente penetrantes e suges­ tivas, ao problema que foi ele o primeiro a ter vislumbrado e colocado, de urna forma perfeitamente clara, problema esse que é o do desenvolvimento das formas de individualidade na comuna primitiva, no modo de produção asiático, ñas sociedades escravistas, no mundo feudal com, aqui e ali, visões de perspectiva sobre a futura sociedade socialista e comunista. É assim que em A Ideologia Alemã procura já comparar as formas de relações e os -tipos de individuos que correspondem aos instrumentos de produção ainda «naturais», tal como o campo cultivado, e aos instrumentos de produção «criados pela civilização», tais como utensilios e máquinas aperfeiçoados. «No primeiro caso, no que respeita ao instrumento natural, os indivíduos encontram-se subordinados à Natureza; no segundo caso, estão-no a um produto do trabalho. No primeiro caso, a propriedade, neste caso a propriedade rural, surge, portanto, também como uma forma de domínio imediato e natural; no segundo caso, esta propriedade surge como um domínio por prate do trabalho e, na ocorrência, por parte do tra­ balho acumulado, do capital. O primeiro caso pres­ supõe que os indivíduos se encontram unidos por um laço determinado, quer se trate da família, da tribo, do próprio solo, etc. O segundo caso pressupõe que os indivíduos são independentes uns dos outros e que é apenas a troca que os leva a manterem-se unidos. No primeiro caso, a troca é essencialmente uma troca entre os homens e a Natureza, uma troca em que o trabalho de uns é troçado contra o produto da outra; no segundo caso, é, de forma predominante, uma

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troca ег. ; os próprios homens. No primeiro caso, uma inteligência mediana é quanto basta ao homem, não se encontrando ainda, de forma alguma, a actividade corporal e a actividade intelectual separadas; no segundo caso, a divisão entre o trabalho corporal e o trabalho intelectual deve encontrar-se já praticamente executada. No primeiro caso, o domínio do proprietário sobre os não possidentes pode basear-se em relações pessoais, numa espécie de comunidade; no segundo caso, deve ter adoptado uma forma mate­ rial, encarnar-se num terceiro termo, o dinheiro. No primeiro caso, a pequena indústria existe, mas subor­ dinada ao uso do instrumento natural de produção e, desta forma, sem haver uma repartição do trabalho entre os diferentes indivíduos; no segundo caso, a indústria só existe na medida em que existe a divisão do trabalho e por meio dessa divisão.» 47* Um tal texto, mesmo que o devamos aceitar apenas a título de benefício inventariai, abre apaixonantes perspectivas para a criação de uma paleontologia psicológica, cuja impor­ tância teórica surge, em inúmeros aspectos, como capital. Além disso, Marx não se ficou por aí. Em particular, a longa passagem dos Grundrisse, conhecida sob o título de Formas anteriores à produção capitalista48, contém análises do mais elevado interesse psicológico, bem como histórico e económico, em tomo da tese central segundo a qual o homem só se indi­ vidualiza através do processo histórico: «Ele surge, inicialmente, como sendo um membro da espécie, um ser tribal, um animal de rebanho, e não, de forma alguma, como um animal político. A troca é um dos principais agentes desta individua­ lização. Torna supérfluo o rebanho, e dissolve-o. • A partir, do instante em que as coisas sofreram esta viragem, ó indivíduo passa a só se reportar a si mesmo, tendo-se os meios para se apresentar como indi­ víduo tomado no seu passaporte geral de valor.» 49 47 L'idéologie alleman.de, pp. 79-80. « Fondements, I, pp. 436 e seguintes. Certos aspectos destas análises são retomados em Le Capital, a propósito do fetichismo da mercadoria, nomeadamente (I, 1, pp. 83 e seguintes). *» ibidem, p. 469.

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Esta visão sintética, onde, diga-se de passagem, é impos­ sível não reconhecer o aspecto antropológico fundamental do materialismo histórico, permite, de uma forma admirável, a compreensão da base em que é conveniente abordar os problemas de estrutura da personalidade, no respeitante a cada época do desenvolvimento da vida social. E isso não importa apenas a quem pretenda estudar o passado da Huma­ nidade: é, em muito maior medida ainda, o problema vital do futuro da personalidade que pode encontrar aqui um modo de tratamento científico. Voltamos a encontrar, neste ponto da investigação, as observações apresentadas no primeiro capítulo sobre a extrema importância da psicologia da per­ sonalidade para a construção do socialismo e do comunismo. Ora, com demasiada frequência, na minha opinião, a reflexão teórica sobre os problemas da personalidade na sociedade socialista, mesmo quando se pretende marxista, pouco êxito \ tem conseguido obter, no respeitante. a ir, realmente, ao fundo dos problemas, precisamente porque não parte de um estudo auténticamente marxista das bases reais da vida pes­ soal huma tal sociedade, isto é, de uma verdadeira ciência económica do socialismo e das formas de individualidade nela criadas, bem como das suas contradições características, por este novo tipo de relações sociais50. É talvez nisso que consiste o carácter mais actual e mais precioso da lição teó­ rica, aparentemente inteiramente retrospectiva, que Marx nos dá quando se dedica a procurar compreender a lenta indivi­ dualização do homem ao longo das primeiras fases do desen­ volvimento social: mostra-nos como devem ser pensadas as fases presentes e futuras do processo. Resumamos. O problema de que tínhamos partido era o da definição da personalidade humana — e, portanto, da ciência que dela se pretende constituir — entendida à luz do materialismo histórico è sob o ângulo das suas relações com as ciências psicobiológicas; tratava-se de traçar de uma forma rigorosa a fronteira entre as ciências do comportamento e da conduta e a ciência da personalidade capaz de se articular com o marxismo. Ora, o exame deste problema levou a que se tornasse claro que se, partindo do reconhecimento geral. 50 ê nisBo que consiste, na nossa opinião, uma das principais fraquezas do livro, aliás interessante, de Adam Schaíí: Le marxisme et Vindividu. Mas. esta fraqueza dificilmente pode ser considerada como um simples fenómeno individual.

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este não fora até aqui resolvido de forma verdadeiramente concludente, tal era devido ao facto de que são, incessan­ temente, confundidas duas ordens de factos, na realidade, completamente heterogéneos: as relações naturais e as rela­ ções sociais entre as condutas. É verdade que afirmar^ que a ciência da personalidade é, muito concretamente, a ciência das relações sociais entre as condutas, e não a das suas simples relações naturais, pode, a uma primeira análise, passar por uma inútil subtileza verbal, tal como a distinção capital, estabelecida por Marx, entre a definição do salário como sendo o preço do trabalho e a sua definição como sendo o preço da força de trabalho, pode, de início, ter parecido não passar de tima inútil subtileza verbal. De facto, é precisamente porque deixa escapar esta «subtileza» que a teoria da perso­ nalidade não conseguiu, até agora, captar a verdadeira natu­ reza das relações psicológicas que constituem a base da individualidade humana, quando não lhe acontece mesmo perder-se ao procurá-la no terreno da biologia. Pelo contrário, se partirmos do ponto de vista de que a personalidade desen­ volvida é o sistema vivo das relações sociais entre as condutas, a começar pelas relações de base, as relações infra-estruturais que se estabelecem por ocasião do trabalho social, surge uma fronteira entre psicologia da personalidade e ciências psicobiológicas das condutas, segundo uma delimitação racionalmente fundamentada e o dilema aparentemente intransponível do seu traçado encontra-se, assim, resolvido da fornia mais clara e nítida. Esta fronteira não segue uma linha imaginária de demarcação entre o objectivo e o subjectivo, o fisiológico «simples» e o mental «complexo», ou seja lá o que for de análogo. A ciência das condutas tem por objecto a totalidade do psiquismo, e a psicologia da personalidade não baseia a sua especificidade numa parcela de psiquismo que lhe pre­ tenderia subtrair, mas sim numa ordem de relações que não advém das condutas, mas que, bem pelo contrário, nela é induzida vinda do exterior, partindo do facto da inserção da actividade individual no mundo social, ordem de relações essa que tende a subordinar a si todo o psiquismo, e que desem­ penha, por consequência, o papel-piloto, no respeitante à compreensão da personalidade. Marx escrevia nos Manuscritos de 1844: j

«O exame da^divisão do trabalho e da troca é do maior interesse, porque é a expressãò visivelmente

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alienada da ividade e da força essencial do homem enquanto actividade e força essencial genéricas.» 51 A conceptualização é ainda aqui marcada pelo humanismo especulativo. E -preciso alterar a relação: não são a divisão do trabalho e a troca que constituem a expressão da actividade do homem, mas sim a actividade do homem que é a expressão da troca e da divisão do trabalho. Mas, uma vez alterada, a ideia é capital. Ё, com efeito, o estudo mais atento e objectivo da divisão social do trabalho e das trocas, no sentido económico geral do termo, que fornece a chave para a ciência da personalidade. Que a chave para este estudo esteja fora do domínio da psicologia, eis o que a psicologia vulgar nunca conseguiu encarar de frente, e eis, contudo, o que não pode deixar de ser, se é, de facto, verdade que a essência humana não.é inerente ao indivíduo isolado, mas sim ao conjunto das relações sociais — e se, no caso do homem, por conse­ quência, não são apenas as faculdades psíquicas que se desen­ volvem na base da hominização, da apropriação do património social, mas também, ao mesmo tempo, as formas da indivi­ dualidade, as estruturas da personalidade. Vemos, da mestóa forma, em que é que consiste a articulação entre ciências psicobiológicas e psicologia da personalidade. Toda a conduta pode ser considerada como uma actividade material concreta de um sujeito, e, neste plano, ela encontra-se necessariamente em relação com as outras condutas. Deste ponto de vista, as condutas são biológicas, no seu conteúdo, e socializadas, na sua forma: nisso consiste o objecto das ciências psicobiológi­ cas. Mas, ao mesmo tempo, assim que as condutas se inserem no mundo das relações sociais, e, para começar, a título de trabalho social, tomam-se igualmente em algo. que produz essas relações sociais, e, deste ponto de vista, deixam de ser as condutas de um sujeito para passarem a ser as condutas de uma formação social determinada. São, então* sociais, no seu conteúdo, e biológicas, na sua forma: aí principia o domínio da ciência da personalidade. É evidente que entre estes dois pontos de vista, e, por consequência, entre estesdois campos científicos, existe uma determinação recíproca. A psicologia da personalidade é necessariamente levada a apoiar-se nos resultados das ciências psicobiológicas. Mas si Manuscrita de 1844, p. 117.

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não sta afirmar que a recíproca é verdadeira. Porque, na medida em que, no homem, a forma de relações entre o ser e o meio, que caracteriza o animal, é alterada, e em que os processos de vida social se tomam determinantes, é a própria ciência das relações sociais entre as condutas que deve desem­ penhar o papel teórico determinante. Voltaremos, à guisa de conclusão deste capítulo, aos problemas que agora nos surgem aqui. Mas esta conclusão é a única que permite dar, no dominio das- ciências psicológicas, o seu pleno alcance teórico à fórmula profética de Marx nos Manuscritos de 1844: «A história é a verdadeira história natural do homem.))52 3.

O ERRO DO FISIQLOGISMO

Se a ciência da personalidade deve, portanto, ser consi­ derada como a ciencia das estruturas sociais da personalidade, e das suas formas de desenvolvimento, compreende-se o carác­ ter radical do erro que consiste em biologizar, seja lá sob que forma for, a personalidade, o erro do fisiologismo, o qual, a partir da concepção da personalidade, tende a contaminar toda a psicologia. O erro não consiste, evidentemente, em afirmar que tudo, no que respeita à actividade psíquica con­ creta da personalidade, consiste em processos fisiológicamente analisáveis. Trata-se aqui, pelo contrário, como já o dissemos, de uma verdade inatacável. Não consiste, igualmente, por consequência, numa preocupação com as relações fisiológicas existentes entre as condutas, e, nomeadamente, com as rela­ ções mais ou menos estáveis, características do psiquismo de tal ou tal indivíduo, que imprimem um perfil típico à sua actividade. Se bem que, neste domínio, a extrema confusão que persiste no vocabulário usado seja já, em si mesma, o índice de que há problemas teóricos fundamentais que não foram correctamente resolvidos, é certo que a questão não está em negar que a busca de uma estrutura de essência fisio­ lógica do psiquismo individual — quer se fale de carácter, de temperamento ou de tipo nervoso — é uma busca perfei­ tamente aceitável, e de uma evidente utilidade. Nada, na concepção aqui proposta de psicologia da personalidade, implica que se recuse o correcto fundamento do princípio de S2 ibidem, p. 13B.

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\ uma tipología psicobiológica dos indivíduos humanos. Mas \ quanto mais a caracterização biológica das personalidades é Ilegítima na sua ordem, isto é, na ordem das relações naturais entre as condutas, e, em particular, das estruturas precoces destas relações, tanto mais a confusão, tão frequente, entre os domínios, o desconhecimento dos estreitos limites de vali­ dade de uma tal tipología, e, para acabar, a tentativa de tomar consciência nestes termos, nem que seja «parcialmente», da /personalidade desenvolvida — «da sua base biológica», por I exemplo, de acordo com a ideologia mais difundida — cons­ titui um equívoco decisivo. / ' " ' Em primeiro lugar porque, como já o observámos mais I atrás, o ponto de partida natural, tanto na vida dos indivíduos Г como na das formações sociais, é algo de totalmente diferente da base real da totalidade desenvolvida, consistindo, precisa­ mente, a formação da totalidade na radical alteração das relações entre o natural e o social, na transformação progres­ siva dos dados naturais em resultados históricos: no caso de um indivíduo desenvolvido, até o organismo se tornou, numa larga medida, no produto da personalidade, no sentido materia­ lista histórico. deste conceito. A este respeito, o genitismo oriundo, nomeadamente, da psicologia da criança, se não é suficientemente meditado à luz da dialéctica marxista e dos ensinamentos da V I Tese sobre Feuerbach, tem todas as hipó­ teses de nos levar a erros radicais. Porque o paradoxo domi­ nante da génese da personalidade consiste em que se o adulto sai da criança (e, nesta medida, é verdade que a psicologia da criança contribui para esclarecer a do adulto) não é, contudo, engendrado por esta, mas sim pelo mundo das relações sociais, ' de forma que a psicologia da personalidade desenvolvida não pode dever o essencial à psicologia da criançá, e talvez mesmo acabe, por seu turno, por se revelar como sendo uma base essencial para a psicologia da criança, ou seja, de: um ser que se hominiza, logo à partida, através das suas relações com os adultos. A sua prova prática é, aliás, bem visível no facto de que a psicologia da criança, não obstante a sua relativa anti-. guidade científica, não conseguiu, de forma alguma, vir por si mesma a prolongar-se numa psicologia válida da personali­ dade adulta. A ideia de que a criança seria, psicologica­ mente falando, o pai do adulto não passa, portanto, no seu fundo, de uma ilusão, fruto de um genitismo insuficientemente crítico; e a fatal curva descendente de um tal genitismo é a

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recaída no naturalismo, ..losoficamente subtendido pelo huma­ nismo especulativo. Mas se urna biotopologia, por mais legítima que possa ser, na sua ordem, o seu principio, é incapaz de fundar a teoria da personalidade, tal acontece, em muito maior medida ainda, devido ao facto de que as estruturas essenciais da persona­ lidade não são de essência biológica, de forma que a tentativa para as captar neste terreno baseia-se numa perversão total da concepção do homem, e não possui,, bem entendido, nenhuma hipótese de vir a ser bem sucedida. O esforço para dar da personalidade, enquanto formação histórico-social, uma teoria de base biológica representa mesmo uma destas aberra­ ções cuja persistência, melhor, cuja relativa impunidade crí­ tica, bastaria para demonstrar que a psicologia ainda não conseguiu atingir a sua total maturidade. Esta aberração é, contudo, da mesma ordem, e vem a dar no mesmo tipo de altas proezas teóricas, que a tentativa para fundamentar a ciência histórica e política numa caracterização geográfica das formações sociais, por exemplo, na oposição entre pretensas «civilizações continentais» e pretensas «civilizações costeiras». Este género de frivolidades geopolíticas, que incluem alguns factos reais ao serviço de uma profunda incompreensão daquilo em que consiste essencialmente uma sociedade humana, tem o seu correspondente numa tentativa como a de W.-H. Sheldon, que pretende «descrever os seres humanos em termos que informem sobre as suas semelhanças e as suas diferenças mais profundas» 53, fundamentando-se em considerações de morfologia física. Por outras palavras, ao preço de sofismas metodológicos e de inge­ nuidades epistemológicas de primeira grandeza, Sheldon mete ombros à tarefa de provar às matemáticas que «a tradição (que) pretende que os gordos são alegres e generosos» 54 é, em suma, perfeitamente fundamentada. Como é sabido, Shel­ don julga poder identificar três «componentes primárias do temperamento», as quais se encontrariam todas em muito estreita correlação com determinados tipos morfológicos: a ьз W.-H. Sheldon: Les variétés du tempérament, F. U. F., 1951. p. VII. Ibidem, p. 1 . • • •• •; •

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viscerotonia, a somatotonia, a cerebrotonia. «A vida do viscerotónico parece estar, para começar, organizada com o fim de servir o intestino», a do somatotónico para «a experiencia da aventura física e do combate» e a do cerebrotónico para «a atenção consciente, o que implica uma inibição, um silencio imposto às outras actividades do corpo» 5S. E eis aqui a que tipo de considerações gerais chega o autor, na base de uma tal conceptualização: «Se é permitido lançarmo-nos em especulações sobre a origem das coisas, parece que a vida, nos seus inicios, deve ter sido viscerotónica por excelência. Quando o grande livro da evolução estiver, finalmente, redigido, poderia ser evidente que, mesmo cronologica­ mente, a viscerotonia tenha sido a primeira componente; podem cònceber-se as outras componentes como desen­ volvimentos evolutivos que surgiram enquanto especiali‘ zações destinadas a servir de escora à primeira das funções orgânicas, mas que, no decurso dos tempos, se - tomaram, até certo ponto, autónomas em si mesmas56. Na nossa própria história, marcada pelo cristia­ nismo, as virtudes cerebrotónicas de constrangimento e a virtude viscerotónica de amor fraternal constituíram as pedras angulares do pensamento religioso e da racio­ nalização teológica da existência (praticámos, contudo, um modo de vida principalmente repleto de agressi­ vidade somatotónica), e é talvez nesta incompatibilidade que residem algumas das razões da actual confusão das orientações [...] Até à época da ’revolução somatonica’, que se toma bastante manifesta aquando do eclodir da primeira guerra mundial, procurámos, no que respeitava às racionalizações conscientes e comuns, pôr em prática um ideal religioso baseado essencial­ mente na cerebrotonia, se bera que tomado mais com­ plexo pela intromissão de uma corrente subterrânea de viscerotonia sublimada (amor pelo homem). Mas, desde há algum tempo, tal como surgiu especialmente na Alemanha57, tem-se vindo a desenhar um vigoroso «s Obra citada, p. 25. - se Ibidem, p. 281. 3" O livro de Sheldon foi publicado em Nova Iorque, em 1942.

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movimento religioso que se baseia claramente mima somatotonia nada sublimada58. A contra-revolução instalou-se; foi levantada a proscrição de que era vítima a somatotonia, e se as nossas criancinhas vão à catequese, talvez já não lhes seja apresentado o quadro do cristo sofrendo na cruz, de lábios cerrados, à maneira cerebrotónica, mas sim um cristo executanto feitos heroicos de ordem atlé­ tica.» 59 «O cristianismo constituiu, num certo sentido, uma supressão religiosa da somatotonia; mas parece ter­ mos chegado a uma época de contra-revolução, com uma tendência marcada para levar as buzinas dos automóveis a mugirem e a amplificarem todo o tipo de ruídos, em sinal de júbilo geral; entregámo-nos a uma orgia de ordem somatotónica, É possível que tenhamos sido uma raça em degenerescência, que só veio a dar em cérebro: o longo periodo de racionalização cerebro­ tónica a que chamámos a era cristã pode ter constituído um sinal de tal facto. De um tal ponto de vista, a recente revolução somatotónica, se, de facto, houve efectivamente uma, é talvez um sinal de saúde, mesmo no caso de levar a um retomo à barbaria. Sob um outro ângulo, o desenvolvimento da somatotonia pode vir a ser catastrófico. Em todo o caso, podemos estar certos de uma coisa: a apreciação que se fizer sobre a história dependerá sempre da componente, que é quem pro­ nuncia, em última análise, o julgamento.» 60 Julgamo-nos a sonhar quando lemos semelhante tipo de imbecilidades, e . numa volumosa obra recheada de uma aparente matematização — o que, diga-se de passagem, con­ firma a que ponto a matematização da psicologia, como de toda a ciência, se é, sem quaisquer dúvidas, a partir de um certo nível de formação das suas bases, uma necessidade e como que o coroamento da sua passagem à maturidade, não é, em contrapartida, abaixo desse nível, senão o vulgar álibi. se Obra citada, pp. 279*280. 59 Ibidem, p. 294. w Ibidem, p. 298. 20

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a poeira lançada aos olhos de uma disciplina que nem sequer consegue elaborar, de uma forma aceitável, os seus órgãos fundamentais. O que é particularmente instrutivo no trabalho de Sheldon é o facto de que estas vastas conclusões de ordem político-histórica, de um nível confrangedor, não são, de forma alguma, na realidade, conclusões (de que a cretinice não macularia, portanto, necessariamente, o ponto de partida da teoria dos temperamentos), mas sim, em si mesmas, o verda­ deiro ponto de partida. A psicologia de Sheldon retoma, muito naturalmente, nas suas «conclusões)) à ideologia biopolítica de que não passa, de facto, no respeitante ao essencial, senão da projecção sobre o problema da personalidade: não é, por exemplo, nada difícil ver em que é que, para um ameri­ cano, a noção de somatotonia é a imagem ideológica. Do ponto de vista metodológico, este jogo de espelhos que leva a tomar os pressupostos ideológicos por conclusões objectivas de «dados empíricos», na realidade inteiramente pré-delimitados pela ideologia de base, é visível a cada instante, e, por vezes, até quase que confessado, no livro de Sheldon. Ê particularmente evidente na incrível «escala do Wisconsin, no que respeita às opiniões conservadoras e radicais» 01 utilizada pelo autor com o fim de «quebrar o gelo» com os assuntos estudados e pre­ parar o «inventário da personalidade»: uma tal «preparação» consiste, positivamente, em introduzir no chapéu o coelho que, de seguida, nos propomos de lá tirar. Nem sequer nos surpreen­ demos em encontrar o racismo puro e simples estreitamente incorporado nos conceitos de base. É assim que Sheldon adopta, para o estudo dos tipos morfológicos, um sistema de quatro termos raciais: predominancia «nórdica», «alpina», «mediterránica» — e «judaica com características ’armenóides’ preponderantes» *62: precisamente onde floresce o biolo gismo, o racismo nunca está muito longe. Mas como evitar o biologismo quanto se desconhece, de urna forma tão total, a essência social da personalidade humana desenvolvida? Um tal desconhecimento, mesmo no caso de um autor que estivesse isento da vulgaridade de pensamento de um Sheldon, não per­ mite captar no homem o que há de essencial concemente à sua psíquica. я Dado -em anexo, pp. 534 e seguintes. 62 Obra citada, p. 310. Cí. pp. 483 e'seguintes. Sou eu que sublinbo. Sabe-se que os Judeus náo s&o e nunca íoram. tuna raça. Of. H. Vallols, Les races humaines, P. U. F„ «Que sals-je?», 1944, p. 44.

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Ё о que se toma manifesto, de forma flagrante, nesta declaração verdadeiramente desarmante do autor: «O cerebrotónico pode ser culto ou iletrado, inte­ grado ou não no ámbito dos exercícios intelectuais con­ vencionais do seu meio, pode ser um leitor ávido ou nunca ter aberto um livro, pode ser um génio universi­ tário ou tef fracassado em todo o tipo de exercícios escolares. Pode ser um sonhador, um poeta, um filósofo, um eremita, ou um construtor de utopias e de sistemas psicológicos abstractos; pode ser uma personalidade esquizóide, um fanático religioso, um asceta, um mártir ou um cruzado pleno de combatividade; tudo isso depende da forma como se misturam os outros compo­ nentes, as outras variáveis do coração sinfónico, e igualmente das pressões ambientes a que a personali­ dade foi exposta. A característica essencial do cerebro­ tónico é a acuidade da sua atenção; as dúas outras principais funções* a função visceral directa e a função somatotónica directa encontram-se subjugadas, man­ tidas em paralisação e tomadas secundárias. O cerebro­ tónico come e age para servir a sua atenção...»63 Admitamos mesmo que esta última afirmação não esteja desprovida de toda e qualquer consistência científica; o que salta à vista, em todo o caso, é que a noção de cerebrotonia, tal como é aqui apresentada, longe de alcançar as caracterís­ ticas «mais profundas» da personalidade, dé que o autor se vangloria, é, bem pelo contrário, das mais superficiais e das mais pobres de espírito, se nos colocarmos no ponto de vista de toda a riqueza efectiva do conteúdo da vida dos homens. Uma tal noção efectúa, por princípio, uma abstracção do que há de mais importante para podermos compreender, da forma mais profunda, o que define concretamente uma personalidade. Noutros termos, mesmo se admitíssemos que, através de tra­ balhos como os de Sheldon, é possível conseguir atingir uma certa compreensão da forma, do estilo individual de certos aspectos da conduta — o que exigiria, de qualquer maneira, um outro rigor teórico do que aquele que as fracas capacidades de Sheldon lhe permitem— é perfeitamente evidente que 63 Obra citada, p. 303.

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nunca conseguiriam dizer-nos fosse o que fosse acerca do conteúdo real da vida pessoal, nem por consequência, das suas estruturas essenciais e da sua lógica intrínseca de desenvolvi­ mento. O que um homem faz da sua vida, e, ao mesmo tempo, o que a vida faz dele, eis o que eu pretendo poder compreender na base de uma psicologia da personalidade digna desse nome, isto é, que se situe resolutamente num outro plano que não o da psicologia de semanários ilustrados. Que Um liomem sinta prazer em defecar — traço importante da viscerotonia, segundo Sheldon— ou que esteja frequentemente em movi­ mento— «gesticular, saltar facilmente da cadeira, andar de um lado para o outro no aposento) 64, em vez de permanecer . sentado e calmo, traço importante do «activo» segundo a caracterología de Heymans —, a esse respeito ser-nos-á permi­ tido afirmar que isso nos parece de uma importância, digamos, pouco mais ou menos ínfima, relativamente à questão decisiva do que ele faz em todos os domínios da vida humana real, económica, social, política, cultural, familiar, etc.: se é um trabalhador produtivo ou um parasita social, se as suas relações com os outros homens são ou não dominadas por formas sociais alienadas de relações, se é um usufrutuário egoísta ou um artesão de transformações nas condições sociopolíticas existentes, se a sua personalidade se encontra estagnada e esclerosada ou em vias de um desenvolvimento muítiforme, se tem consciência da base real desta personalidade e da natureza das suas relações com o mundo em que vive ou se tudo isso continua a estar para ele envolto nas brumas de uma ideologia mistificadora — é isso, juntamente com muitas outras coisas da mesma ordem, que para nós mergulha fundo no sentido objectivo da vida de um homem: o seu conteúdo de actividade, não a sua «forma tipológica», o que faz, e não só a maneira como age, sobretudo quando esta «maneira» é descrita na base de critérios dos mais fúteis que se possam imaginar. E isso não mergulha fundo apenas do ponto de vista teórico, mas simultaneamente também do ponto de vista prá­ tico; porque a psicologia da personalidade, voltemos a afir­ má-lo, não merecerá verdadeiramente o seu nome senão quando for, na medida em que tal dela depende, o instrumento para o 64 Le Senne: Traité de caractérologie, P. U-F., 1949, p. 637: 1.» qurotão do questionário do inquérito estatístico de Heymans e Wiersma.

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desenvolvimento integral e total de todas as personalidades — total, na medida em que um determinado estádio de desenvol­ vimento das torças produtivas, das relações sociais e da cultura o permitam, efectivamente, para cada indivíduo. Se é exacto que toda a concepção da ciência da personalidade, ao mesmo tempo que traduz visões teóricas e epistemológicas sobre a ciência e sobre o homem, envolve necessariamente também, quer disso tenha consciência quer não, um projecto fundador de ordem prática,'política, no sentido mais lato do termo, de que é a execução concreta ao nível do saber, a concepção da psicologia da personalidade que nos propomos elaborar apresentamo-la aqui de um modo inequívoco: o projecto prático que visa erguer e no qual se articula não é outro senão o socialismo científico, que é igualmente o humanismo cientí­ fico. Pelo contrário, o projecto fundador de uma psicoiogia do temperamento como a de Sheldon é abertamente conser­ vador, relativamente à sociedade capitalista, exploradora e alienante. Sheldon afirma-o, de consciência tranquila, logo desde o prefácio: o seu fim. é o de fundamentar «uma distinção entre os efeitos da hereditariedade e os do meio», distinção essa apropriada a fornecer «a alavanca necessária para a abor­ dagem de inúmeros problemas sociais, indo desde a orientação profissional e a especialização militar até ao isolamento e a eliminação do cancro» 65. Ponhamos de parte o cancro; o que aqui surge, sem falsos ornatos, é o facto de que o objectivo supremo de Sheldon consiste, pura e simplesmente, em me­ lhorar a subordinação dos indivíduos a relações socais, que é evidente não serem postas em causa, e que se trata mesmo de consolidar, a estas subordinando, da melhor forma possível, os indivíduos («esse papel socialmente útil que durante tanto tempo se esperou por parte da psicologia» “ J, por exemplo, na sua afectação ao serviço militar. Trata-se, propriamente falando, de uma psicologia de sargento recrutador. Ora, nada revela melhor o sentido real da dicotomia hereditariedade-meio, tomada como base da conceptualização do indivíduo humano: o que é aqui chamado hereditariedade, por detrás da cortina de fumo das pretensas provas experimentais e do pretenso veredicto do cálculo estatístico, o que é maquilhado, desde o início, como sendo dados biológicos, é, na verdade, o conjunto dos efeitos sobre os indivíduos de um sistema social 65 Les variétés du temperament, 6s ibidem , p . VH.

p . VII.

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idèntijicado com uma natureza imutável. Reportar a persona­ lidade a um temperamento concebido como a sua «base bioló­ gica» significa, nesse caso, que ou não se sabe ou não se quer empreender o estudo crítico da sua base histórico-social real. E os conceitos admitidos como ponto de partida para uma tal ciência são, directamente, parte integrante da ideologia con­ servadora ambiente. í É por isso que, aliás, nada seria mais profundamente erróneo do que considerar, de uma certa forma, todas as teorias ! da personalidade em pé de igualdade, como sendo igualmente falsas, em nome de um pragmatismo céptico, não querendo I ver em todas elas senão uma racionalização, mais ou menos j bem sucedida e sem valor intrínseco, a partir de uma escolha política subjectiva e arbitrária, não passível de demonstração, por consequência. Na realidade, o alcance humano objectivo de cada teoria da personalidade julga o processo político de que parte, porque cada projecto político possui a concepção da personalidade que merece. Se a maioria das teorias exis­ tentes são notáveis pela extrema estreiteza do campo de visão no seio do qual apreendem a personalidade, só dela aperce­ bendo certas forças, e mesmo, por vezes, as mais mesquinhas, é precisamente porque preconceitos de classe, facto quase inconcebível para um certo tipo de sábios e, não obstante, claramente flagrante, subtraem, logo à partida, à vigilância identifica as bases essenciais da personalidade, ou seja, o con­ junto das relações sociais, que permanecem, em si mesmas, invisíveis enquanto não entrarmos em conflito aberto com elas, e enquanto não formos obrigados a voltar a pô-las em causa. Neste sentido, existe um laço, aliás empiricamente observável, entre o avanço da psicologia e uma atitude politi­ camente avançada. E se. só o socialism o científico, como aqui é defendido, permite fundar uma psicologia da personaildade auténticamente rica de conteúdo, científica e adulta — verdade iramente, para dizer tudo — , tal acontece porque este não é uma «opinião política» entre tantas outras, um estreito pre­ conceito de classe, mas. sim, na realidade, a reflexão científica do movimento histórico real e o seu prolongamento consciente projectado no futuro, movimento de que só nos podemos abstrair em imaginação, e que pertence, em alto grau, à