Histórias mestiças: antologia de textos [1 ed.]
 9788560965571

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Antologia de textos '

Histórias Mestiças ISBN 971l-8S6o96Ss7·•

111111111111111111111��1111

cobogó

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.., IN!IIIUIO TIIIImW

organização

I

Adriano Pedrosa e Lilia Moritz Schwarcz

Antologia de

.extos

Histórias Mestiças organização Adriano Pedrosa e Lilia Moritz Schwarcz

(obogó

CIP-BRASIL. Catalogação na publicação Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

Histórias mestiças : antologia de textos I organização Li lia Schwarcz, Adriano Pedrosa.-

Capa

Contracapa

Adriana Varejão:

Artista desconhecido:

Autorretrato indígena II a partir

india Jurupixuna, Século XVIII

de Codina, 2012

Nanquim, p&b

Óleo sobre tela

2ox 15,5cm

68x6 o c m

Fundação Biblioteca Nacional/Coleção

Foto: Vicente d e Mello

Alexandre Rodrigues Ferreira

Orelhas

Versos das orelhas

Alberto Henschel:

Autor desconhecido:

Criança com ama de leite (Pernambuco),

Grafismo sobre tecido Kayapó, Século XXI

1870·1880

76x46cm

1. ed. -Rio de Janeiro : Cobogó; São Paulo, 2014. 376 p. : il. ; 23 em. Inclui bibliografia ISBN 978·8s-6o965-57-1 1. Antrop ologia

-

Brasil. I. Schwarcz, Lilia II. .

Pedrosa, Adriano.

14-14439

Carte de visite 10,6X6,3Cm

Autor desconhecido:

Acervo Fundação Joaquim Nabuco

Tecido Kuba (Congo), Século XX

Alberto Henschel:

63.5x 137, 28 em

CDD:306 CDU:316.7

Bordado em ráfia (raffia embroidery) Princesa Isabel e D. Antônio Gastão, 1882 Fotografia em preto branco formato c arte de visi te

.

5,7X9,3Cm Fundação Museu Mariano Procópio

A questão da mestiçagem na cultura brasileira vem sendo estudada

pelas academias, por muitos estudiosos independentes do país e estrangei­ ros, às vezes em parceria entre intelectuais daqui e de outros continentes. Contudo, não foi suficientemente debatida para que a sociedade tenha assi­ milado esta ampla produção de conhecimento acerca do tema. A exposição Histórias Mestiças, com grande número de obras icôni­

cas, é acompanhada de uma antologia rara, com 70 textos selecionados. Esta publicação - na forma de um reader- se apresenta como uma nova platafor­ ma para o projeto, que permite ao público refletir e aprofundar as questões sugeridas pela exposição. Com esta antologia, o Instituto Tomie Ohtake pretende difundir o tema da mestiçagem, caro à humanidade, a leitores que não têm acesso a uma produção, muitas vezes, restrita à academia. Daí a importância da

parceria com a Editora Cobogó, que fará com que a publicação tenha uma distribuição mais ampla. Adriano Pedrosa é o crítico de arte e curador que mais bem tem rea­ lizado trabalhos importantes no exterior, ainda jovem para essas incum­ bências. Lilia Schwarcz, historiadora e antropóloga, é autora de livros que desvendam importantes aspectos do Brasil, especialmente da história da arte do país, em acalentados textos que chegam a amplas camadas. Nessa primeira coautoria, artes visuais e antropologia se unem numa história em que ambos aceleram os caminhos inversos, um em direção ao outro. O Instituto Tomie Ohtake se enriquece com as parcerias dos cura­ dores Adriano Pedrosa e

L il ia

Schwarcz, da Cobogó e sua editora, Isabel

Diegues, do patrocínio do Grupo Segurador Banco do Brasil e Mapfre e com a colaboração de todos os que participaram deste projeto.

E

agradece ao

Ministério da Cultura pela utilização da Lei Rouanet, que, com seu meca­ nismo, durante mais de vinte anos tem possibilitado a real ização de tantos importantes projetos culturais no país. Instituto Tomíe Ohtake

S u mário

Li lia Moritz Schwarcz

Histórias mestiças são histórias de fronteiras

Adriano Pedrosa

Mestiçagem de histórias

21

Antologia de textos

1557

André Thcvet

Singularidades da França

29

Antártica, a que outros chamam

de América 1576

Pero de Magalhães Gandavo

Tratado da terra do Brasil

1578

JeandeLéry

História de uma viagem feita à terra do Brasil

1580

Michel Montaigne

Sobre os canibais

47

1587

Gabriel Soares de Sous a

Tratado descritivo do Brasil em 1587

54

1633

Padre Antônio Vieira

Sermões

55

1711

André João Anton 11

Cultura e opulência do Brasil

57

34 35

por suas drogas e minas 1730

Sebastião da Rocha Pita

História da América Portuguesa

59

1762

Jean-Jacques Rousseau

Emmo; ou Da educaçã o

6o

Documentos referentes a um grupo de escravos de uma fazenda no estado do Rio de Janeiro, que reclama a sua liberdade alegando seus motivos

63

Ofício do Marquês de Aguiar a Marcos de Noronha e Brito, oitavo conde dos Arcos, sobre as providências tomadas para evitar desordens causadas pelos negros, inclusive proibições de batuque após o toque da Ave Maria

66

Representação à Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil: sobre a escravidão

68

Karl Frie d rich Philipp von Martlus

Como se deve escrever a história do Brasil

74

185 1

Gonçalves Dias

1-Juca-Pirama

77

1857

José de Alencar

O Guarani

84

1859

Lu ís d a Ga ma

Quem sou eu? (Bodarrada)

1868

Castro Alves

1869

da Costa Franco c Almeida

1926

Mário de Andrade

Ernesto Nazareth

131

1928

Mário de Andrade

Ensaios sobre a música brasileira

132

1928

M ári o de And rade

O Aleijadinho e Alvares de Azevedo

134

1928

Mário de Andrade

Macunaíma

135

1928

Oswald de Andrade

Manifesto Antropófago

136

1928

Paulo Prado

Retrato do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira

140

1932

Oliveira Vianna

Raça e assimilação

143

1933

Gilberto Freyre

Casa grande & senzala

144

1936

Sérgio Bu arq ue de Holanda

Raízes do Brasil

148

1955

Claude Lévi

Tristes trópicos

150

19 59

Sérgio Bu arque de Holanda

Visão do paraíso

155

1964

Floresta n Fernandes

A integração do negro na sociedade de classes

156

89

1968

Torquato Neto

Geleia geral

164

O navio negreiro

90

1969

Jorge Amado

Tenda dos milagres

166

Joaquim Manuel d e Macedo

Vítimas-algozes

98

1972

Jorge Ben Jor

Zumbi

167

1882

Machado de Assis

O alienista

103

•976

Tabela PNAD

169

1894

Sílvio Romero

Doutrina contra doutrina

108

1976

Thomas F. Skidmore

172

1894

Nina Rodrigues

As raças humanas e a responsabilidade penal no Brasil

l09

Preto no branco: raça e nacionalidade no pensamento brasileiro (1870-1930)

197 7 Minha formação

O impacto da cultura africana no Brasil

175

Joaquim Nabuco

1 16

Clarival do Prado Valladares

1900 1902

Euclides da Cunha

Os sertões

122

1977

Roberto Sehwarz

181

1911

João Baptista de Lacerda

Sobre os mestiços no Brasil

127

Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro

1911

Lima Barreto

Maio

130

1983

Marianno Carneiro da Cunha

Arte afro-brasileira

182

1810

1814

Jozé

Fernando José de Portugal

e Castro

1823

1845

José Bonifácio

-

Strauss

Lilia Moritz Schwarcz

Histórias mestiças são h istórias d e fronteiras

Minha raça nasceu como nasceu o mar, sem nomes, sem horizonte, com seixos sob minha língua, com estrelas di ferentes sobre mim

Oerek Walcott

Histórias coloniais, como a nossa, são sempre histórias mestiças: hí­ bridas por definição e destino. Diferente das narrativas lineares ou da rigidez das estratégias co­ loniais - que estabelecem lugares sociais fixos e que dividem, de maneira binária, o dominador do dominado, o europeu do nativo, já as respostas ca­ luniais e pós-coloniais acabaram tomando, e com frequência, formas mais llc.:xíveis, articulando diferentes identidades discriminatórias. É exatamen­ te a partir dos racialismos, dos processos violentos (muitas vezes naturali-

7.ndos pelo cotidiano), dos sexismos, das políticas de exclusão social - e não da negação delas - que se produz esse outro tipo de discurso, que se constrói de maneira tensa, a partir do encontro - e do decorrente desencontro - de

t'lllturas, grupos e histórias. Esse mesmo processo, não raro, leva a uma rea­ vnllação de lugares, posições e dos próprios regimes de verdade. Ou seja, t'olocam-se em questão modelos consagrados que separam e hierarquizam fkção de não ficção; imaginação de realidade; a história positivista de uma história combinada que avança, recua e se volta sobre si. O fato é que nessas circunstâncias ocorre uma espécie de desliza­ n•cnLo de sentidos: de uma estratégia que delimita lugares estratificados, lliiSsa-se a estratégias de subversão e de negociação, construindo-se pensa­ ll lt:ntos híbridos, que tendem a borrar barreiras fechadas. Por conta dessa conformação particular, esse tipo de narrativa, que

se vale da fricção e do desencontro, acaba por se comportar não como re­

bridos, que agenciam diversas e variadas formas de memória. Por isso, tam­

flexo imediato da dominação política, mas, muitas vezes, toma a forma de

bém, mestiçagem ou hibridismo não se apresentam como um terceiro termo,

uma mímica que duplica, que critica e questiona as relações fixas e os este­

que tenderia a suavizar a tensão entre duas culturas consideradas estáveis.

reótipos produzidos pelas práticas de colonização.' Afinal, nos discursos coloniais e mesmo pós-coloniais é comum

Correspondem, antes, a um jogo dialético de reconhecimento, alimentado

identificar o nativo - seja ele sul-americano, africano ou asiático - ora

pela própria ambiguidade e pela violência. Construído na fronteira, esse discurso mestiço é, portanto, efeito de

como portador de uma "falta" fundamental, ora definido a partir de u m

práticas discriminatórias, mas leva à produção de novas perspectivas. Tra­

"excesso" derrogatório. De um lado, pareceu vingar um consenso, por

ta-se de uma forma de duplicação mímica; com certeza um lugar "entre". O

parte dos países metropolitanos, que entre esses povos nativos reinaria

antropólogo Michael Taussyg chama de

uma grande falta: de ordem, de lei e de civilização. De outro, é igualmente

da literatura e das artes capaz de registrar: "sameness and dijference, ojbeing

comum avaliar-se como excessivas as práticas desses locais: um excesso

like, and of beeing othe1·".4

de sexualidade, de lascívia, de luxúria. Os chineses seriam por demais fe­

teira, e que escapa aos dois lados opostos da moeda.

chados, os indianos muito circunspectos, os africanos ingovernáveis, já os americanos ... alegres. Tudo em seu devido lugar, na sua equilibrada e

assim modalidades próprias dessas narrativas "entre". Nesse caso, também,

Essa política de estereótipos faz parte de um discurso colonial bastan­

essa perspectiva própria

Em evidência está, portanto, esse espaço de fron­

Proximidade e distância, contato e alteridade, presente e passado são a

organizada ordem.

mímeses

arte, a literatura, o ensaio, o romance não resultam na mera coincidência

de termos, numa unidade do "eu", mas sim numa espécie de jogo espelhar,

te disseminado, o qual, por meio de livros, mapas, desenhos, pinturas, cen­

que identifica, mas também causa repugnância; que ao mesmo tempo que

sos, jornais e propagandas vai criando um mundo engessado enquanto re·

estabelece lugares, também os desloca.

presentação, feito cartografia com lugar previamente delimitado e definido.2

Esse novo espaço social é diferente da fórmula "virar branco ou de­

Quase como uma resposta a esse modelo construído e veiculado pe­

saparecer", para voltarmos aos termos do famoso ensaio de F. Fanon.s Exis­

las metrópoles coloniais, essas histórias mestiças aparecem como o outro

tiria uma terceira margem, lembrando do conto homônimo de Guimarães

lado do espelho, ou talvez como um outro espelho. Local de produção por

Rosa, uma terceira escolha, fazendo uso da definição do crítico literário

excelência, essas narrativas apresentam respostas múltiplas e ambivalen·

I lomi Bhabha, que prefere mencionar as peles negras com máscaras bran­

tes, frente a um tipo de d)scurso que prima por se mostrar assertivo e nor­

cas, que nesse caso se comportam sobretudo como camuflagem e criam no­

mativo. Os signos dessas histórias mestiças são também descontínuos, por

vos espaços de agência e interlocução.

oposição a uma história positiva - apoiada em datas e eventos previamente

Não é o caso de negar o domínio político,

a

discriminação e as po­

selecionados e cujo traçado se pretende objetivo e evolutivo. No caso dos

Hticas de racismo. Assim como é impossível olvidar que práticas coloniais

textos mestiços, sexualidade, gênero, etnicidade, práticas violentas, raça,

criem forças desiguais e irregulares de representação cultural. Também não

diferenças culturais e mesmo históricas emergem de maneira híbrida, in­

é o caso de imaginar que frente às desigualdades sociais e à violência política

certa, deslocada.3 Por isso, em vez de refletirem a nossa cronologia, essas

n

narrativas, não raro, driblam nossos regimes de tempo, sempre pautados

dução têm feito pane desses discursos pós-coloniais, e levado a processos de

por séries contínuas e progressivas. Carregam, dessa maneira, tempos hí-

construção de identidades culturais de maneira a Iterativa, política e mesmo

1 Interessante, nesse sentido, é lembrar do livro de V.S. Naipaul, autor premiado com o Nobel de Literatura em 2001, justam ente chamado Os mímicos [The Mimic Men]. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. 2 Vide Andersen, Benedict. Comunidades imaginadas. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 3

Vide Bhabha, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.

IA

única reação seria a passividade. Deslocamentos culturais, esforços de tra­

•I roussyg, M. 1993, p. 129. Vide Carolina Sá Carvalho. "O aspecto do outro e o mesmo•, onde a autora faz urno excelente discussão sobre a literatura abolicionista em Cuba.

b Fonon. Frantz. 8/ack Skin Whito Mask. Nova York: Grove Press, 1967.

circunstancial: numa verdadeira estratégia de construção de diferenças.6

do e prospectivo, no famoso ensaio de Montaigne, escrito em 1580, e ime·

mais, não como um elemento essencial e fixo, mas antes como um marca·

diatamente transformado numa espécie de apresentação da América. Nesse caso, um relativismo fora de sua época destacava-se na leitura do texto, e de

dor de diferenças agenciadas "com aspas", como explica Manuela Carneiro

maneira quase dramática. Afinal, as desconfianças do filósofo francês de sua

da Cunha, ou uma "unidade entre aspas", como mostra Stuart Hall.7

sociedade eram tais, que em determinado momento ele quase confessa: "Ou

Talvez por esse motivo a cultura venha sendo utilizada, cada vez

Longe de ser um prato posto ou um cardápio fechado, a cultura apre·

eles o são (bárbaros) ou nós o somos."10

senta-se como um recurso, reinventado e agenciado; com frequência inves·

Buffon, j á no século XVIll, descreveria essa terra do Brasil na condi·

tido de novos significados contextuais. Agenciar e negociar podem levar, dessa maneira, à produção de novos discursos, distantes da sugestão da

ção de naturalista, mas de maneira igualmente projetiva. Buffon definiria os brasileiros como "povos infantis", 11 enquanto que seu declarado seguidor,

harmonia racial, até porque eles partem, justamente, do suposto da discri·

Cornelius de Pauw, preferiria caracterizá-los sob a designação de "degenera·

minação e da violência: partes constitutivas e quase naturalizadas dos re·

dos".12 O importante é que apesar de variados, tais termos designavam sem·

gimes coloniais e de suas realidades persistentes na contemporaneidade.

pre relações, e visavam definir, por oposição e contraste, ao outro como um

rência. A construção de estereótipos fez e faz parte da própria história do

essencial "menos". Menos adulto, menos maduro, porém mais degenerado. Outra imagem, de alguma maneira complementar, é a que desenvol·

Brasil. É possível dizer que, assim como o Oriente - que sempre representou

veu o filósofo iluminista Jean·Jacques Rousseau. Segundo ele, o conceito de

u m papel projetivo para o imaginário do Ocidente -,8 também essa colônia

"bom selvagem" era antes um modelo racional para definir, sempre por con·

No exemplo brasileiro, a situação, se não é idêntica, lembra a recor·

dos portugueses, que em princípios do XVI nem nome tinha - oscilando

traposição, o Ocidente, e não um recurso para avaliar o homem americano.

entre Terra de Santa Cruz, numa referência à primeira missa realizada no

O objetivo era antes criticar a degeneração da civilização ocidental, do que

território, e Brasil, por conta da árvore que tomava toda a costa e tinha em

definir empiricamente o nativo da América.

sua seiva uma tinta vermelha logo comercializada, mas também associada

Por sinal, e falando em degeneração, foi no século XIX que o ho·

ao diabo -, foi associada por vezes ao paraíso, por vezes ao inferno. Paradi· síaca era a natureza tropical, rapidamente identificada a um Éden terreal.

mem americano, a partir das teorias raciais em voga nesse momento, se transforma num homem sem futuro, vítima dos vícios que herdava da mis·

Infernais eram seus homens, de pronto observados sob suspeita, e como

cigenação entre as raças. O pressuposto de autores como o médico Nina

uma sub-humanidade. "Homens sem F, L, R: sem fé, sem lei, sem rei", escreveria Gandavo,

Rodrigues era de que o produto híbrido de espécies humanas diversas só po· deria resultar num homem decaído, com tendências "naturais" à criminali·

o viajante português seiscentista, como a referendar o estereótipo da "falta"

dade e à loucura. Mais ainda, se por parte da intelectualidade local pairava

que sempre se colou às populações coloniais. A diferença era transformada

uma espécie de ceticismo e melancolia, já nos Estados Unidos e na Europa

em sinal de lacuna, sendo que a referência silenciosa, e muitas vezes oculta,

o Brasil rapidamente se convertia num "laboratório de raças" mistas e dege·

era sempre o mundo ocidental e europeu.9

neradas. Uma espécie de espetáculo das raças.13 Por outro lado, e com a abolição da escravidão, temas até então si-

Também os tupinambás seriam retratados tais qual espelho inverti·

10 Montaigne, Michel. "Sobre os canibais". In: Os ensaios. São Paulo: Companhia das Letras, 2010 (1580). São Paulo: 6 Cunho. Manuela Carneiro do. Negros estrangeiros: os escravos libertos e sua volta à África. Companhia das Letras, 2012 (1985).

7 Cunha, Manuela Carneiro da. Cultura com aspas. São Paulo: Cosac & Naify, 2009.

Leclerc, Georges-Louis. Conde de Buffon. Histoire Naturelle, Chez George Jacques Decker, lmp du Roi, MDCCLXVIII, e vem assinada por "Mr de P......

11

8 Said, Edward. Orientalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2003 (1978).

12 De Pauw, Cornelius. Rechorches phílosophiques sur les a méricans ou Memoires interessants pour sorvir à l h i sloire de /'espece humaine, (par Mr de p·''). Berlim, 1768.

9 Gandavo, Pero de Magalhães. Trotado da terra do Brasil. [S.I.]: Fundação Biblioteca Nacional, s.a. {1576). Oisponfvel em: http://objdigital.bn.br/Acervo_Digitalllivros_eletronicos/tratado.pdf.

13 Nina Rodrigues, Raymundo. As raças humanas o a responsabilidade penal no Brasil. São Paulo; Rio de Joneiro: Companhia Editora Nacional, 1938 (1894).

,

'

17

lenciados - sobre novas formas de hierarquia e de cidadania - apareceriam de maneira ambivalente até mesmo nos discursos mais pretensamente in·

último país a abolir a escravidão, e não por acaso esse sistema afetou as estruturas sociais como um todo, e guarda muitos traços em nossa contem·

suspeitos. Nabuco, por exemplo, um abolicionista convicto, em seu texto

poraneidade. No lazer, nos números de trabalho, nos dados de nascimento

"Massangana" demonstraria de que maneira eram complicadas as relações

e morte, nas taxas de criminalização destacam-se faces teimosas desse país

de ex-senhores de escravos com os futuros libertos, na época chamados, não

que ainda apresenta marcas elevadas de discriminação. Não é a hora de

sem um pingo de ironia, de "Os treze de maio".'4 O conhecido estadista re·

pensar em resquícios e jogar tudo para o cesto j á lotado do passado. Uma

vela no ensaio como lhe foram marcantes os anos de meninice numa fazenda

história semelhante se escreve no presente e é guardada nos atos, nos cor·

de escravos e as relações que lá se travavam. O fato é que o passado do sis·

pos, nas memórias e no cotidiano que costuma naturalizar.

tema escravista não era passado, fazia parte do presente, condicionado por

Pesquisas nas áreas de etnologia, história e antropologia têm mostra·

novas formas de discriminação racial - pautadas no determinismo racial e

do como violência, processos de exclusão social e de discriminação sempre

científico - e nas novas práticas de exclusão social.

É quase paradoxal pensar que o país que estava a um passo do apar· theid social em finais do século XIX e inícios do XX - tão marcado por po·

fizeram parte dessa história que, se é mestiça como forma, é menos efeito de relações harmoniosas e tranquilas, e mais causada pelas diversas modali· dades de reação, negociação e agência dos indígenas, africanos e afro·brasi·

líricas de eugenia ou propostas que previam o branqueamento de sua po·

leiros, que sempre releram de forma ambivalente essa relação. Se faz tempo

pulação, como aquela apresentada por João Baptista de Lacerda em "Sur

perdemos a forma colonial, guardamos, ainda, a lembrança e os resquícios

le métis au Brésil" [Sobre os mestiços no J?rasil) (1911) - viraria, já nos anos

perversos dessa nossa origem.

1930, um exemplo de "democracia racial". De mácula e de veneno, o país

Esta antologia de textos tenta, assim, ser ambivalente e plural, a exem·

transformava-se em antídoto, quando Gilberto Freyre e outros colegas de·

pio dessas histórias mestiças que vimos tentando descrever. Se é certo que

fenderiam a tese de que o Brasil representava um exemplo de democracia e

escravos e ex-escravos deixaram poucos relatos escritos - até porque a alfabeti·

de mistura harmoniosa entre as raças e os diversos grupos humanos espa·

zação desses grupos era muito dificultada nesse momento -, se indígenas lega·

lhados em seu território. Na verdade, a despeito de destacar como esse era um sistema violento, marcado por uma divisão hierárquica estrita, Freyre

raro outras escritas que não a ágrafa, já neste livro buscamos coletar posições díspares. Algumas com certeza inspirarão o leitor a imaginar e sonhar com

recuperava uma visão nostálgica desse país que poderia e "deveria" ser go·

este país, outras causarão um grande estranhamente, quando não repulsa.

vernado a partir da "Casa-grande". Mais uma vez o espelho, que ora inverte

Resta explicar que esta antologia foi produzida conjuntamente e em

a imagem, ora devolve aquilo que se pretende ver e encontrar, passava a

diálogo com a exposição Histórias Mestiças (Instituto Tomie Ohtake, 16 de

funcionar.•s Esse modelo seria exportado e viraria inclusive ideologia na·

agosto a 5 de outubro de 2014). Se é fato que o livro pode ser lido separada·

cional, e só começaria a fazer água quando, nos anos 1960-70, a partir dos

mente, uma vez que os textos reunidos constroem uma espécie de panora·

dados retirados do censo, mas também da luta dos nascentes movimentos

ma sobre essa história de projeções de lado a lado, é na exposição que esta·

sociais - dentre eles o movimento negro -, foram ficando claros os processos

rão expostos trabalhos de grupos indígenas contemporâneos e de artistas afro--brasileiros; documentos africanos e de diferentes nações ameríndias,

discriminatórios expressos em áreas variadas de nossa sociedade. De lá para cá, esse tipo de movimento tomou força e ganhou a ima· ginação nacional, bem como as críticas a essa visão pacífica e pacificadora

tudo junto com a produção mais propriamente ocidental. Todos eles devida· mente friccionados e ambivalentes em sua relação. Além do mais, enquanto na exposição cinco núcleos temáticos organi·

acerca do Brasil e dos brasileiros. Não se passa imune pelo fato de ser o

zum a amarra e o diálogo entre as obras - grafismos, mapas e trilhas, máscaras c

14

Machado, Maria Helena. "Os caminhos da Abolição: os movimentos sociais e a atuação dos escravos".

15

Freyre, Gilberto. Casa grande & senzala. Rio de Janeiro: Record, 1990 {1933).

In: lasa 2012, 2012, San Francisco.

retratos, emblemas nacionais e cosmologias, rituais -, neste livro é a cronologia n

primeira edição dos diferentes textos aqui incluídos - quem conduz a leitura,

sem, é claro, condicioná-la. O intuito é facultar uma compreensão não evolutiva, mas antes dialogada dessa que é e se desenvolveu como uma história mestiça. lQ

Adriano Pedrosa

Mestiçagem de h istórias

Histórias mestiças não é tanto uma história da

mestiçagem, mas uma

mestiçagem de muitas histórias. Afinal, a própria noção de mestiçagem, de­ l'tnida como o cruzamento de raças e culturas, pode transformar-se numa perigosa ideologia ao nomear todos os indivíduos como mestiços, apagando diferenças e mascarando, assim, preconceitos de raça, sobretudo num país ainda tão marcado por discriminações de cor como o Brasil.1 Não devemos avançar na trama dessas histórias mestiças sem estar atentos às armadilhas. Por outro lado, a noção de histórias aqui é aberta, plural, inconstante (como a alma selvagem, para usar uma expressão de Eduardo Viveiros de Castro);2 no português, ela identifica tanto os relatos históricos quanto os pessoais, os factuais e os ficcionais.3 É nesse território que tecemos nossas mestiças,

histórias

seus fios, tramas e leituras.

Trata-se de fato de um tecido. Uma exposição é sempre o resultado de anos a fio de pesquisa e vivência, e como curadores estamos limitados, por um lado, a nosso acervo de imagens, leituras, livros, viagens, arquivos, exposições, memórias, e, por outro, à nossa rede de colegas, artistas, cura­ dores, intelectuais, acadêmicos, interlocutores. O início dessas histórias mes­ tiças,

a conexão entre seus curadores, é feita por Adriana Varejão, tanto a

1 Com Darcy Ribeiro: "A caracterfstica distintiva do racismo brasileiro é que ele não incide sobre a origem

racial das pessoas, mas sobre a cor de sua pe le." Ribeiro, Darcy. O povo brasileiro: A formação e o sentido do

Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 225. 2 Castro, Eduardo Viveiros de.

Paulo: Cosac & Naily, 2002.

A inconstância da alma selvagem e outros ensaios de antropologia. São

3 Diferenteme nte do i n glês, com seu history e story, o segundo é equivalente a nosso antigo estória, não

mais recomendado pelo Dicionário Aurél io.

21

artista quanto sua obra. Cada um a seu modo, Lilia Schwarcz e eu, a partir de pontos de vista e com formações diferentes, tem interesse especial e es­ creveu sobre a obra de Varejão, tão cheia de temas mestiços - dos autorre­

Há múltiplos possíveis pontos de partida para nossas

hist6rias mes­

tiças, porém dois deles são tanto profundos quanto traumáticos: a invasão portuguesa e a colonização africana.6 O número da população aborígene em

tratos com grafismos indígenas ao autorretrato chinês, do negro de Albert

1492 é um assunto controverso, como escreve Manuela Carneiro da Cunha,

Eckhout a lemanjá, da pintura de castas aos temas coloniais, do canibalis­ mo à antropofagia, da catequese à contracatequese.4

variando entre 1 a 8 milhões segundo diferentes autores.7 Tais autores afir­

Ainda como antecedente, menciono F[r)icciones, exposição que co­

local em números que variam entre 25% e 95%. O que é de fato incontestável

mam que o malfadado "encontro" com os europeus dizimou a população

curei com Ivo Mesquita no Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, em

é que a América não foi descoberta, mas invadida. O desafio hoje é conhecer

Madri, em 1999. Ali também construíamos uma procissão de imagens e tex­

c

tos, tecendo uma trama, uma rede, um labirinto, onde também [vivia] algo

ou desfazer preconceitos e epistemologias eurocêntricas.

da paisagem, da gente e das histórias da América Latina.s Hist6riasmestiças

aprender com as culturas ameríndias, o que talvez implique desaprender O segundo momento profundo e traumático é a escravidão africana.

é um projeto mais profundo e focado - em torno do Brasil - que espera abrir

Recebemos 40% dos africanos que vieram para as Américas durante mais

caminhos mais do que encerrá-los. Nesse sentido, trata-se de um projeto

de três séculos de tráfico negreiro, o maior deslocamento humano da his­ tória moderna, num total de cerca de 3.8oo.ooo africanos,8 o que corres­

incompleto, inconstante, não definitivo, a ser criticado e revisado. Logo de início nos demos conta de que, em complementação a uma

pende a mais de dez vezes o que os Estados Unidos receberam e, de fato,

exposição que reunisse objetos de diferentes origens, tempos e territórios,

n um número maior de imigrantes forçados africanos do que portugueses

era importante oferecer uma seleção de textos que tivessem sido referência

(2.256.ooo, de acordo com o IBGE [Instituto Brasileiro de Geografia e Esta­

e leitura fundamentais para os curadores durante o processo de pesquisa e

l

reflexão, e esse é o sentido desta antologia de textos: um rias diversas, que foram lidas,

reader.

São

hist6-

relidas, recortadas, tecidas e intercambiadas:

do século XVI ao XXI, da história à sociologia, da literatura à poesia, dos sermões às crônicas. Hist6rias mestiças é, desse modo, cheio de autores, per­

ística]). Não é à toa que apenas 10% dos portugueses que aqui chegavam

eram mulheres, e por isso os colonizadores europeus violentavam mulheres africanas e ameríndias, deflagrando violentamente nossas

hist6rias mes­

tiças desde o século XVI. Hoje, com 6o% de sua população composta de pardos e negros, o Brasil é o segundo mais populoso país africano, depois

sonagens, tramas, clímaxes, teorias, poesias, contos, enredos, narrativas.

da Nigéria. Com profundas raízes, a presença africana no Brasil é imensa

O resultado não é tanto linear (embora os textos tenham, aqui, sido organi­

c

zados cronologicamente de acordo com o ano de sua primeira publicação),

C:omo afirma Alberto da Costa e Silva: "O Brasil é um país extraordinaria­

mas se desenrola em camadas. Esta antologia será complementada por um

mente africanizado. (...) O escravo ficou dentro de nós, qualquer que seja

polifônica, ainda que o preconceito subsista inclusive nas artes visuais.9

catálogo, a ser editado após a abertura da exposição, para assim incluir sua

11ossa origem. (...) Com ou sem remorsos, a escravidão é o processo mais

documentação fotográfica. O que resta das exposições são suas memórias,

Irnportante de nossa história.''10 E com Darcy Ribeiro: "O enorme contingente

daí a importância de suas publicações documentá-las bem. 11 C'luorin o, Manuel. O african o como colonizador. Salvador: Livraria Progresso, 1954.

4 Podrosa, Adriano. Adriana Varejão, histórias às margens. São Paulo: Museu de Arte Moderna de São Paulo, 2013. Schwarcz, Lilia e Varejão, Adriana. Pérola imperfeita: a história e as histórias no obro de Adriana Varejão. Rio de Janeiro; São Paulo: Editora Cobogó/Companhia das Letras, 2014. Por outro lad o, minha contr ibuição ao Núcleo Histórico da 24° Bienal de São Paulo, em 1998, em que trabalhei como curador adjunto ao lado de Paulo Herkenhoff, foi justamente o "s" notítulo do segmento da exposição: Antropofag i a e Históri as de Canibalismos. Herk e nhoff, Paulo e Pedrosa, Adriano. XXIV Bien al do São Paulo, Núcleo h istórico, Antropofagia e história de canibalismos, v. 1. São Paulo: Fundação Bienal de São Paulo, 1998. 5 Ivo Mesquita, Adriano Pedrosa. F[rlicciones. Madri, Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofra, 1999. Uma das salas da exp osição era uma sala de retratos me s tiços .

.,.,

Cunha, Manuela Carneiro d a. ln troduçiio a uma história indfgene. São Paulo: Companhia das Letras, 11

1992.

!:logundo a mais atualizada pesquisa em salvevoyages.org, acessada em junho de 2014.

11 Com Robert? Conduru: "Tendo em vista a grande aversão, para não dizer ojeriza, por quase tudo que

cllnttrospeito à Africano Brasil, é compreensfvcl as artes da África não terem sido valorizadas como uma das ur•utlrites da produção artística brasileira (...)." Conduru, Roberto. Coleção Gilberto Chateaubriand: 1920 a

111!>0. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2011. 1!1 Costa e Silva, Alberto da. "O Brasil, a África e o Atlântico no século XIX" {1989). In: Um rio chamado 1\llflrrtico, a África n o Brasil e o Brasil no Áfrico. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2003, p. 72.

negro e mulato é, talvez, o mais brasileiro dos componentes de nosso povo."11 O Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão, só o fazendo em

188S. Mas o preconceito e a discriminação persistem - à medida que sobem

os índices de violência, criminali.dade, pobreza, exclusão e invisibilidade na mídia e no governo, nossas peles mestiças se tornam mais escuras. Nossas

hist6tias mestiças

são centradas nesses dois processos - a in­

vasão e a escravidão -, portanto dão enfoque especial às matrizes amerín­ dias e africanas. Nossa história da arte tem sido escrita e contada a partir

gia do Sul, nos termos de Boaventura de Sousa Santos,'3 ou num processo de desocidentalização, nos termos de Walter Mignolo.'4 Nas últimas déca­

dns, vemos uma crescente descolonização da arte contemporânea na cena internacional. O mundo da arte se expandiu para além da Euroamérica e do eixo norte-atlântico. Não há mais uma única narrativa eurocêntrica na

arte, mas muitas histórias pluriversais e polifônicas. Nesse sentido, é pre­ ciso prosseguir buscando outros modelos e teorias além dos eurocêntricos não descartando-os completamente, mas mesclando-os com outros - rumo .

de perspectivas eurocêntricas. Se um projeto grandioso como a Mostra do

a uma caixa de ferramentas mestiça, antropofágica. Tal caixa de ferramen­

Redescobrimento, em zooo, expôs, de forma extensa, séculos de arqueo­

tas pode canibalizar a história e a cronologia, as distinções entre ane-popu­

logia, arte indígena, afro-brasileira, barroca, popular, do inconsciente, dos

lar'5 e erudita, o africano e o ameríndio, o moderno e o contemporâneo. O

viajantes, do século XIX, moderna e contemporânea em módulos distintos,

desafio é complexificar a caixa de ferramentas mestiça, antropofágica, não

a exposição Histórias Mestiças busca miscigenar essas histórias, de manei­

apenas em relação a temas e imagens, mas também em termos de conceitos

ra não acadêmica e não hierárquica, ignorando ordenamentos cronológi­

c linguagens.

cos, reunindo, cruzando, justapondo e friccionando objetos de diferentes origens, tempos e territórios.

Hist6riasmestiças são histórias

marginais e subalternas, antropofági­

cas e pós-coloniais, múltiplas e inconstantes, fraturadas e transversais, his­

Outro momento importante em nossas hisc6tiasmesciças é a antropo­

tórias de fluxo e refluxo, cheias de segregação, preconceito e discriminação.

fagia, bastante reverenciada na história da arte. E nesse caso, também com

À medida que restabelecemos conexões com outras matrizes, reescrevemos

inflexões ameríndias e africanas. A antropofagia de Oswald de Andrade

histórias do passado e propomos novas histórias para o futuro.

resgatou a prática do canibalismo dos índios tupinambás, apropriacionistas pós-modernos avant la lew·e, que devoravam a carne de seus inimigos para adquirir suas virtudes e forças. Para o intelectual moderno, a antropofagia tornou-se uma ferramenta epistemológica libertadora, fiel a nossas origens mestiças. Entretanto, os limites da antropofagia residiam precisamente na sua orientação excessivamente europeia em relação à matrizes daquele con­ tinente - das modernas às construtivas. A antropofagia, assim, pode ainda fazer jus a suas vocações mestiças, devorando histórias africanas e amerín­ dias e as repotencializando. É nesse sentido que a antropofagia é um projeto incompleto. '2 Aprender com o ameríndio e o africano implica desaprender histó­ rias eurocêntricas. Pode-se pensar na antropofagia como uma epistemolo-

13 Santos, Boaventura de Sousa. "Spaces of Transformation: Epistemologies of the South at Tate Modern", palestra proferida na Tate Modern, Londres, em 28 de abril de 2012, http://www.youtube.com/ wotch?v=UzecpSzXZOY. 11 Darcy Ribeiro, op. cit p. 223. 12 Castro. Eduardo Viveiros de. ·o perspectivismo é a retomada da antropofagia oswaldiana em novos termos". In: Sltutman, Renato. Encontros com Eduardo Viveiros do Castro. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008.

14 Mignolo, Walter. The Darker Side ofWestern Modernity: Global Futures, Decolonial Options. Durham & Londres: Dukc University Prcss, 2011. L5

Denominações como e r te pop u l e r, e rteP ' i n liti•e, ette-netf, ou erteingênttasão absolutamente superadas, terríveis.

u olna mesmas ronctem preconceitos e discriminações

Antologia de textos

Histórias Mestiças

Os t ex tos encontram-se ordenados cronologicamente pelo ano de sua primeira publicação, data indicada no topo de cada página. Optamos por respeitar a estrutura das publicações originais, assim, para maiores informações, sugerimos recorrer aos livros originais, cujas referências completas encontram-se ao final de cada texto.

1557 André Thevet

I n : S i n g u l a ridades da França Antártica, a que outros chamam de América A monsenhor, o reverendíssimo cardeal reais, fr. André Thevet deseja paz e felicidade.

de Sens, guarda dos selos

Aos leitores

Considerando que a longa experiência dos fi:ttos e a fiel observação de numerosos países ou nações,

com os respectivos costumes e hábitos, só pode

é trazer perfeição ao homem, pois é essa louvável atividade uma das maneiras

de

enriquecer

o espírito, dotando-o de heroicas virtudes e de sólida ciência,

em reguei-me à proteção e governo do grande Senhor do universo (caso fora eu

merecedor de sua graça), abandonando-me, em pequenos barcos de madeira, frá geis e já gastos, nos quais era mais de esperar a morte do que a vida, à discri­ ção e à mercê de um elemento essencialmente inconstante e impiedoso. E tudo

isso pelo só desígnio de rumar ao polo antártico, que, anteriormente, jamais fora descoberto pelos antigos, ou deles conhecido, como se pode verificar dos useritos de Ptolomeu e de outros cosmógrafos (estes, como se sabe,

nem sequer

conheciam bem o nosso hemisfério, cujo equinocial não ultrapassaram, de vez que julgavam essa região inabitável). Antes já eu fizera uma viagem ao Levan­ tu, aliás, a primeira, visitando a Grécia, a Turquia, o Egito e a Arábia, da qual

cheguei até a publicar uma relação.1

I N.T.: Thevet refer e -se à sua Cosmographie du Levant, publicada em Lyon, no ano de 1554. O francisca no, uuuloso por conhecer a Itália, obteve permissão para visitar esse país. Em Placência, graças ao amparo do generoso e principesco cardeal de Lorena, pôde Thevet visitar o seu a mbici o nado Oriente, isto é, Quio, Conotantinopla, a Calcedônia, Rodes, Alexandria. a Arábia, a Palestina etc. A história de sua pe regrinação aos pnísos orientais também é repr oduzida na Cosmographie Universelle.

29

Tanto naveguei que fui ter às Índias Americanas, perto do Capricór­

mente, que todos a acharão agradável, tendo em vista a minha longa e pe­

nio, terra continental, habitada e de clima agradável, como adiante des­

nosa peregrinação, realizada com o desígnio de ver e em seguida deixar, por

crevo mais longa e particularmente, ousadia que tomei imitando vários

escrito, as mais memoráveis coisas, como se poderá verificar mais adiante.

ilustres personagens, cujos heroicos feitos e grandes empresas, tendo sido celebrados pela história, tornam as mesmas ainda hoje objeto de perpétua honra e glória imortal. Qual foi o argumento do poeta Homero, que tão ha­

Aviso ao leitor

bilmente celebrou, em versos, Ulysses, senão a longa peregrinação por ele

(La Porte)

feita, depois da destruição de Troia, através de mares e terras, a diversos países e, igualmente, seus discursos e observações? E por que louva Virgílio

A presente história, leitor, não duvido vos deixe um pouco admirado,

a Enéas (a quem alguns historiógrafos, todavia, acusam de ter deixado a sua pátria cair, infelizmente, em mãos dos inimigos), senão por haver, o troiano,

lendo em vista a variedade das coisas apresentadas aos vossos olhos, mui­

resistido ao furor das vagas impetuosas e às demais vicissitudes do mar,

rais. Mas, considerando, maduramente, quanto são grandes os poderes da

passando por inúmeras experiências antes de alcançar, finalmente, a Itália?

natureza-mãe, estou seguro de que modificareis essa ideia.

Ora, assim como o soberano Criador fez o homem de dois elementos

las das quais parecerão, à primeira vista, mais monstruosas do que natu­

Convém ainda, leitor, não estranhardes o aspecto de várias árvores

totalmente diversos, um rudimentar e corruptível e outro divino e imortal, de

(Lais como as palmeiras), feras e aves, diversas, em tudo, das que são descritas

igual modo pôs todas as coisas que estão abaixo do firmamento em seu poder

pelos nossos modernos naturalistas. Estes pouco merecem fé, porquanto não

e para uso dele. A fim de alcançá-los, todavia, é preciso vencer certas dificul­ dades, pois, de outro modo, cairia o homem na ociosidade e na indolência.

possuem uma sólida experiência e cultura. Consultai, peço-vos, as pessoas

É o homem uma criatura maravilhosamente benfeita, reservada, de

dessas regiões ou países, que estão vivendo entre nós; ou recorrei aos que já

acordo com a vontade de Deus, à prática de atos virtuosos, podendo, assim,

só jamais viram as regiões, de que fala a presente obra, como, também, não

realizaram a mesma viagem. Uns e outros vos informarão da verdade.

escolher, no mar ou em terra, o que melhor lhe agrade para alcançar o seu desígnio. Mas é possível, como acontece frequentemente, que algumas pes­ soas, sob tal pretexto, acabem por abusar dessa liberdade. O mercador, por exemplo, que, levado por avareza, ou por insaciável cobiça dos bens terres­

Capítulo 1 Embarque do autor

tres e transitórios, arrisca imprudentemente a sua vida é (conforme o diz Horácio nas Epístolas) tão digno de censura quanto é digno de louvor aquele

Todas as coisas foram feitas para o homem

que se expõe, livremente, aos mesmos riscos para enriquecer o seu espírito e, com isso, servir melhor à coletividade. Assim o fizeram o sábio Sócrates e, depois dele, Platão, seu discfpulo, ambos percorrendo estranhos países (...) (...) tomei a resolução de descrever os fatos ou coisas mais notáveis, que cuidadosamente observei em minha viagem às regiões do meio-dia e do

Todos os elementos e bens existentes no universo, desde a lua2 até o n mago da terra, parece que foram feitos para o homem. E, na realidade, as­

nlm é. Porquanto a natureza, mãe de todas as coisas, sempre refez ou guar­ dou em si mesma os mais preciosos e excelentes dons de sua obra.

poente - localização e disposição dos lugares (quer ilhas, quer continentes, com os seus correspondentes climas, zonas ou paralelos), temperatura do ar, costumes e maneiras de viver dos habitantes, feições e características dos animais terrestres ou aquáticos, árvores e frutas, minerais e pedrarias etc. -, tudo explicado o mais flagrante e naturalmente que me foi possível. Quanto ao mais, sentir-me-ei bastante feliz se quiserdes acolher a minha obra com a mesma boa vontade com que eu vo-la apresento. Espero, final?f'\

!' N.r.: A lrose denota uma concepção cosmográfica antiga que vem de Eudóxio (409-356 a.C.), a das 1111loros ou céus concêntricos, cujoesquema ainda se vê na Margarita Philosophica {Ruisch, 1508). O céu da lun ó o quo ostá mais ligado à torra. ,

31

Causa da navegação do autor às Américas A principal causa de minha viagem às Índias Americanas3 deve-se

tros, sem quaisquer cerimônia.s O primo com a prima; o tio com a sobrinha, indistintamente e sem reprovação, mas não o irmão com a irmã.6

ao seguinte fato: o generoso Senhor de Villegagnon, Cavaleiro de Malta4 (louvores ao senhor de Villegagnon), homem tão consumado quanto é possí­

vel sê-lo em assuntos da marinha e em outras virtudes, assim que recebeu, após madura deliberação, as ordens reais, solicitou-me insistentemente au­ xílio para a execução de sua empresa, estando, para isso, autorizado pelo rei meu senhor e príncipe (a quem devo inteira honra e obediência), visto estar bem-informado de minha viagem ao Levante e do concurso que eu poderia dar ao empreendimento. Pelo que, de bom grado, acordei em tomar parte na viagem, tanto por desejar satisfazer, dentro de minhas possibilidades, à vontade real, como por causa da empresa, embora laboriosa, mas honesta. Como os selvagens são extraordinariamente vingativos Não é de admirar que essa gente, vivendo por desconhecer a verdade nas trevas, não só apeteça a vingança como, também, empregue os maiores esforços em executá-la; (...) (...) não se deve esperar que os selvagens sejam mais avisados nos seus casamentos do que nas demais coisas. Assim se unem uns com os ou-

N.T.:Léry(p.301} confirma a ausência decerimônias ou ritos matrimoniais entre ostu pinambás. Do mesmo modo Staden (p. 152}, Anchieta (p. 329}, G. Soares de Sousa (p. 367), Gandavo (p. 128}, Abbeville (pp. 324325), Teschauer(p. 197}, A.M. Gonçalves Tocantins (p. 113}. Cardim, todavia, informa que nenhum mancebo c ont�ía ma trimônio antes de aprisionar um inimigo (p. 164). Algumas vezes, a façanha guerreira podia ser _ a s�bstitUid por qualquer outro esforço: prestar, por exemplo, serviços aos pais da donzela (Diálogos, p. 269}. Sao a onda de Card1m as Informações de que os casamentos eram acompanhadosde libações.Aos nubentes ofereciam, então, os velhos da tribo a primeira cuia de vinho e, nesse momento, amparavam-lhes a cabeça "para que não a rrevesasse". A prestação de serviços era muito comum entre os aborígenes da América Antártica. Max Schmidt (p. 243) nota que tal costume não tinha, primitivamente, caráter de uma prestação econômica, mas constituía a prova de o pretendente achar-se pronto para preencher seus deveres de chefe de família. Com o decorrer dos tempos, porém, os serviços tomaram forma de prestação econômica.

5

6 N.T.: Entreos i�dígen asobservad�s porThevet encontramos vestígios do sistema familiar de classificação, estudado por Levy-Bruhl. Nos tup1nambás, o sistema está complicado pela distinção dos dois ramos

parentais, o agnáticoe o uterino. Ostupinambás(dizAnchícta, p. 329), "todos os filhos e filhas de irmãos têm por filhos e assim os chamam; e desta maneira um homem de cinquenta anos chama pai a um menino de um dia, po; ser irmão de seu pai'', A base d sistema classificador pode variar de tribo para tribo. Um exemplo � tfp1co e o dos tap�rapés, que se subd1v1d1am em agru pamentos chamados por Baldus de "clãs ou grupos de comer" (Ensaios, p. 86 sq.). O trecho de Thevet precisa de uma explicação: o irmão mais velho do morto é obrigado a casar com a cunhada viúva e o irmão da viúvo é obri gado a casar com a sobrinha, filha daquele, se o houver. Por outras palavras, o tio paterno casa com a cunhada. mas não com a sobrinha (G. Soares de Sousa, pp. 374-375; também Anchieta, p. 330). Em suma, era incestuosa a filiação agnática e permitida o uterina. visto a ideia que tinham os lndios da primazia do homem na concepção (nota de A. Peixoto, à p. 335 das Cartas avulsas; cf. também a p. 328}. Esse assunto, como se vê, estava ligado ao problema do

ovunculado (cf. Baldus Willems, p. 29 sq.).

3 NI: Observe-se a persistência com que, ainda aotempo de Thevet. sedava à América o nome de Índias, mesmo depois da concepção da terra quatripartita, adotada por Stobnicza, Appiano, Schi:iner, Münster e

outros. Em Espanha, aliás, conservou-se por muito tempo a designação de Índias Ocidentais, oplicada ao Novo Mundo; só em meados do séc. XVIII os autores castelhanos. cedenJo ao impulso geral e à termin.ologia

adotada pelos ingleses, valeram-se do nomedeAmérica, reservando o de Índias Ocidentais para as Antilhas.

(Luis Ulloa Cisneiros, pp. 232-233). Note-se que Thevet ora escreve lndes Amériques (11. 1), ora, no singular, lnde Amérique (11. 5). À 11. 22, todavia, emprega a denominação de Índias Ocidentais, com referência à Amórica.

4 N.T.: Um estud o mais demorado da personalidade de Villegagnon (outros acham melhor escrever Villegaignon} ai nda está po r ser feito. Algumas fontes: J. Crispin (ou Crespin), Histoire dcs martyres persccutes et mis à mort pour la vérité de I'Évangile, Gênova, 1• ed., de 1560 (a parte relativa à estada dos franceses na bala de Guanabara é atribuída a Léry); J. de Léry, Histoire d'un Voyage faict cn terre du Brésil, antrement dito Amériquc, La Rochelle (1578); J.C. Fernandes Pinheiro, "França Antártica", em Rev. do lnst. Hist. Bras., t. XXII. Rio, 1859. 1° parte; H. de Grammont, Relation de l'expédition de Charles-Quint contre Algcr, Paris e Argel, 1874; Paul Garfarei, Histoire du Brésil Français au Seizieme Siecle, Paris, 1878; MI Alves Nogueira, Der Méinchrittcr Nikolaus Durand von Villegaignon, Leipzi g. 1887; A. Heulhard. Grande bibliothàquc de géographic historique - Vil/egagnon, roi d'Amérique etc., Paris, 1897; A. Morales de los Rios, "Subsídios para a história da cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro", em Rev. do lnsl. Hist. Bras., t. esp., parte 1•. Rio, 1915; Vise. de Porto Seguro, História Geraldo Brasil, I, 4°ed.da Comp. Melh. de São Paulo, s/d. Notas dispersas, ainda, em J. de Anchieta, Cartas, Informações, Fragmentos Históricos o Sermões (15541594), Rio, 1933, e Seraphim Leite, História da Companhia de Jesus no Brasil, I, Lisboa, 1938.

Thevet, André. Singularidades da França Antártica, a que outros chamam de América.

São Paulo; Rio de Janeiro: Companhia Editora

Nacional, 1944 (1557), pp. 45, 47-49, 248, 252. Dis­

ponível em: http://www.brasiliana.com.br/obras/ singularidades-da-franca-antartica/pagina/1

33

Pera de Magalhães Gandavo

Jean de Léry

I n : Tratado da terra do Brasil

I n : História de uma viagem feita à terra do Bras i I

Tratado Segundo

Capítulo 13 Das árvores, ervas, raízes e frutos deliciosos

(...) A língua deste gentio toda pela costa é uma: carece de três letras -

que a terra do Brasil produz

scilicet, não se acha nela F, nem L, nem R, coisa digna de espanto, porque

assim não tem Fé, nem Lei, nem Rei; e desta maneira vivem sem Justiça e desordenadamente.

(. ..) Os nossos tupinambás ficam pasmos de ver os franceses e, ou­ tros estrangeiros ter o trabalho de ir buscar o seu ambutan, isto é, pau-bra­

Estes índios andam nus, sem cobertura alguma, assim machos e fê­

sil. Uma vez u m velho fez-me esta pergunta:1 "O que quer dizer virdes vós

meas; não cobrem parte nenhuma de seu corpo e trazem descoberto quanto

outros, maíres e peras, isto é, franceses e portugueses, de tão longe buscar

a natureza lhes deu.

lenha para vos aquecer? Não tendes madeira na vossa terra?" E respondi

(. ..) Finalmente estes índios são muito desumanos e cruéis, não se mo­

que tínhamos, e em grande quantidade, mas não da qualidade dos seus,

vem a nenhuma piedade: vivem como brutos animais sem ordem nem concer­

nem tínhamos pau-brasil, que nós não queimávamos, como ele supunha; o

to de homens, são muito desonestos e dados à sensualidade e entregam-se aos

queríamos para fazer tinta, e empregar como eles faziam, usando dela para

vícios como se neles não houvera razão de humanos (...) Todos comem carne

tingir os seus cordões de algodão, plumas e outras coisas.

humana e têm-na pela melhor iguaria de quantas pode haver (. .) .

(. ..) Estes índios vivem muito descansados, não têm cuidado de coisa

Replicou o velho imediatamente: "E porventura precisais de mui­ to?" Sim (disse-lhe eu no intuito de interessá-lo); pois no nosso país existem

alguma senão de comer e beber e matar gente; e por isso são muito gordos

negociantes, que têm mais frisas, panos vermelhos e até (procurando sem­

em extremo; e assim também com qualquer desgosto emagrecem muito; e

pre falar-lhe de coisas suas conhecidas) facas, tesouras, espelhos e outras

como se agastam de qualquer coisa, comem terra e desta maneira morrem

mercadorias, do que nunca vistes por cá; e tal negociante por si só comprará

muitos deles bestialmente. (. ..) Desta maneira vivem todos esses índios sem mais terem outras fazendas entre si, nem granjearias em que se desvelem, nem tampouco esta­ dos nem opiniões de honra, nem pompas para que as hajam mister; porque todos (como digo) são iguais e em tudo tão conformes nas condições que ainda nesta parte vivem justamente e conforme a lei da natureza.

I rolvcz tenha a leitura deste trecho inspirado a Montaigne as curiosas reflexões de seu capítulo sobre os cnnlbais (Essais,§30): Sou de parecer que nada há de bárbaro e selvagem nessa gente; cada qual chama bnrbórie ao que não está nos seus costumes.. São selvagens assim como os frutos a que chamamos tlolvogens por tê-los a natureza produzido sozinha e na sua evolução natural; no entanto os que deverfamos tlllltlm denominar são os que alteramos por meio de artifícios e os que desviamos de seu caminho normal. N11quolos se acham vivas e vigorosas as verdadeiras úteis e naturais virtudes." Poder-se·ia ainda comparar r.on1 o trecho em questão aquele em que Ronsard elogia a virtude inocente dos brasileiros (Les poemes, liv. 11. Dlscours centre fortuna, ed. elziviriana, t. VI, p. 166). Imaginava ele, erroneamente, que nunca haviam os homons estado mais próximos da perfeição do que quando viviam nessa época denominada idade de ouro. A uuu vor os brasileiros ainda se encontravam nessa época feliz de paz e inocência e Ronsard censurava a Vlllugognon ter-lhes retirado todas as ilusões, iniciando-os na civilização europeia. "

.

,

Gandavo, Pero de Magalhães. Tratado da terra do Brasil. [S.I.]: Fundação Biblioteca Nacional, s.a. (1576). Disponível em: http://objdigital.bn.br/ Acervo_Oigital/livros_eletronicos/tratado.pdf.

,

todo o pau-brasil, com que muitos navios voltam carregados do teu país. E

Capítulo 14

o meu selvagem disse: "Ah! Ah! Tu me contas maravilha!" E depois tendo

Da guerra, combate e bravura dos selvagens

compreendido bem o que eu acabava de dizer, interrogou-me de novo e disse: "Mas esse homem tão rico, de que me falas, não morre?" "Sim, sim" (disse­ -lhe eu); "morre como os outros."

Os nossos tupinambás seguem o costume de todos os outros selvagens que habitam esta quarta parte do mundo, a qual estende-se por mais de duas

E como são grandes discursadores os selvagens e prosseguem muito

mil léguas em latitude, desde o estreito de Magalhães, que fica aos 50 graus, na

bem em qualquer assunto até o fim, de novo perguntou-me: "E quando ele morre, para quem fica o que ele deixa?" Respondi : "Para seus filhos, se os

direção do Polo Antártico, até as terras novas, que jazem quase 6o graus aquém do nosso Polo Ártico; por isso sustentam guerra mortal com várias nações desse

tem; na falta destes para seus irmãos ou mais próximos parentes." "Na ver­

país; todavia os seus mais próximos e mais encarniçados inimigos são os indí­

dade (disse então o velho, que, como julgareis não era nenhum tolo) agora

p,cnas chamados margaiá,2 e os portugueses, aos quais chamam peros, e dão o

conheço, que vós outros maíres, isto é, franceses, sois grandes loucos; pois

título de aliados dos seus adversários. Os Maracajás, retribuindo este sentimen­

é preciso trabalhar tanto em passar o mar, onde sofreis tantos incômodos,

to, não odeiam somente os tupinambás, mas também os franceses, confedera­

como nos dizeis, quando aqui chegais, para amontoar riquezas. Dar a vos­

dos destes últimos. Estes bárbaros não fazem guerra entre si para conquistar

sos filhos ou para aqueles que, vos sobrevivem? A terra, que vos nutriu, não

jlaíses e terras uns dos outros, pois cada um deles tem mais terreno do que pre­

é também suficiente para nutri-los?" "Temos (acrescentou ele) pais, mães

dsu;

ainda menos pretendem os vencedores enriquecer com despojos, resgates

e filhos, aos quais amamos e prezamos; mas como estamos certos de que,

t '

depois da nossa morte, a terra que nos nutriu, também os nutrirá, por isso

t:onfessam não serem impelidos por outro incentivo senão o de vingar pais e

descansamos sem o mínimo cuidado.

11 migos, que no tempo pretérito foram presos e comidos (...); e são tão encarniça­

Eis aqui sumariamente o discurso, que ouvi da boca de um pobre sel­

c

armas dos vencidos; não é nada disso, digo ell, que os move. Eles mesmos

los uns contra os outros, que quem cai em poder do inimigo deve esperar sem

vagem americano. Assim esta nação, que reputamos bárbara, zomba desde­

1cmissão3 alguma ser tratado da mesma forma, isto é, morto e comido.

nhosamente daqueles que com perigo de vida passam os mares para ir buscar

Declarada a guerra entre quaisquer dessas nações, alegam todos que, visto dever o inimigo, paciente da injúria, senti-la para sempre, é covardia dei­

pau-brasil a fim de enriquecer-se; e por mais obtusa que seja, atribuindo maior importância à natureza e à fertilidade da terra do que nós damos ao poder e providência de Deus, insurge-se contra esses rapinadores denominados cris­ tãos, de que a terra cá pela Europa está tão repleta, quanto vazia está lá na região dos selvícolas. Os tupinambás, como já disse, odeiam mortalmente os

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