Ciência e Técnica (antologia de textos históricos)
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IL'xtos rl'unidos neste volume referem-se à História da Ciência e à História da Técnica. Dão seguimento àqueles já publicados por esta editora sob o título História da Técnica e da Tecnologia, que teve boa acolhida do público leitor e que esgotou sua primeira edição, justificando uma reimpressão. Mas no presente volume os textos escolhidos pelo Prof. Ruy Gama referem-se especificamente à Ciência e à Técnica. O assunto é de inegável importância e oportunidade e vem sendo tema quase que obrigatório em congressos, seminários e cursos, principalmente de pós-graduação, em nossas universidades. Mas a bibliografia brasileira não é muito rica no que se refere à história da técnica. Avultam nela as obras relativas à história do açúcar, às técnicas construtivas, em partícular aquelas de interesse para a história da arquitetura e para a preservação e restauro do patrimônio histórico. Obras mais recentes têm-se voltado para a história da Engenharia, globalmente ou em alguns de seus ramos, e, mais parcimoniosamente, têm sido tratadas a história da construção naval e a das atividades da marinha, como a pesca e os setores industriais dela dependentes. A história do trabalho não tem sido em geral objeto de interesse maior por parte dos nossos historiadores. Os textos aqui reunidos são quase todos traduções do inglês, do francês e do espanhol ~ muito pouco conhecidos do público ledor de língua portuguesa. O que se espera é que sua divulgação contribua para o enriquecimento dos debates sobre a ciência e a técnica, sua história e sua importância na atualidade. A diversidade de origem dos textos promove o alargamento das discussões, não só em termos cronológicos como também em termos geográfico-culturais. Os mais antigos deles são do começo do século e os mais novos têm pouco mais de uma década. Não eram acessíveis aos leitores brasileiros pois a maioria deles não foi traduzida; aparecem freqüentemente em citações e seus autores são bastante conhecidos, pelo menos de nome. É o caso do texto de Boris Hessen sobre a física de Newton e o mercantilismo. Apresentado pelo autor em 1931, no Congresso de História da Ciência realizado em Londres, Os

teve apreciável fortuna crítica e exerceu grande influência na constituição desse ramo da historiografia e da corrente chamada, própria ou impropriamente, de externalista. Com este volume, portanto, zelosamente organizado pelo Prof. Ruy Gama, os leitores terão acesso a textos inéditos em português sobre a História da Ciência e a História da Técnica, traduzidos com competência e interesse por professores da USP, da UNICAMP e da Universidade de Brasília ligados à pesquisa histórica.

Capa: Gravura de Philipe Galle, baseada em desenho de Jan van der Straeten (Stradanus), reproduzida da coleção Nova Reperta, com o título "Orbis longitudines repertae e magnetis à polo declinatione".

CIÊNCIA E TÉCNICA

Capa Dept~ de Arte da T AQ

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Ciência e técnica : antologia de textos históricos / Ruy Gama (organizador). - São Paulo : T. A. Queiroz, 1992. - (Biblioteca universitária básica. Engenharia e tecnologia ; v. 8) ISBN 85-7182-033-3 1. Ciência - Filosofia 2. Ciência - História 3. Tecnologia - Filosofia 4. Tecnologia - His,ória 1. Gama, Ruy, 1928- II. Título: Antologia de textos históricos. III. Série.

92-2012

CDD-501

Índices para catálogo sistemático: 1. Ciência: Filosofia : História 501

Direitos desta edição reservados

T. A. QUEIROZ, EDITOR, LTDA. Rua Joaquim Floriano, 733 - 9~ 04534-904 São Paulo, SP 1993 Impresso no Brasil

Sumário

1. À guisa de contribuição (Ruy Gama)...............................

1

2. O valor educativo da história das ciências (Paul Langevin) . .

8

3. Epistemologia, história e sócio-política das ciências (Juan José Saldaíia) .. .... .. .. .... .. .......... .. .... ........ .... .. .......

17

4. As raízes sócio-econômicas dos Principia de Newton (Boris Hessen).............................................................

30

5. As regras de trc balho da Companhia de Carpinteiros da Cidade e Condado de Filadélfia (Charles E. Peterson) . . . .. .. .

90

6. Etnomatemática e seu lugar na história e na pedagogia da • Matemática (Ubiratan D' Ambrosio) ................................ 105 7. A cúpula de Santa Maria dei Fiore - Florença (William Barclay Parsons) ............................................. 117

l. À guisa de contribuição RUY GAMA

Esta coleção de textos versando sobre a História da Ciência e sobre a História da Técnica segue o caminho aberto por outra coletânea História da técnica e da tecnologia - publicada por T. A. Queiroz/EDUSP em 1985. A acolhida que teve aquela publicação, num mercado livreiro extremamente reticente quanto a obras do género, autoriza-me a prosseguir no esforço de difundir textos básicos sobre a matéria, visando não só a atividade universitária como também o interesse do público ledor em geral. O espectro te,nático abordado vai da visão epistemológica e histórica da ciência até questões relativas às técnicas. Reunir num único livro questões aparentemente díspares significa assumir desde o início posição interdisciplinar e optar por manter unidas em textos questões que na prática não são tão separadas quanto nos faz crer uma visão hierarquizada e classificatória do saber humano, mais vinculada à disciplina e ao formalismo separador e desagregador do trabalho e do saber. O primeiro dos textos aqui apresentados é de autoria de Paul Langevin (1872-1946), uma grande figura da física, na França, na primeira metade deste século. Tendo convivido com Pierre Curie e outros cientistas, na França, e com J. Townsend, E. Rutherford, C. T. A. Wilson e J. J. Thomson na Inglaterra, mereceu de A. Einstein referências altamente elogiosas num artigo publicado na revista La Pensée em 1947. Em outubro de 1940 Langevin foi aprisionado pelos alemães e depois colocado em prisão domiciliar em Troyes; recebeu então mensagem de simpatia de todo o mundo e um convite de Peter Kapitza para trabalhar na União Soviética. Em 1944 refugiou-se na Suíça e no fim daquele ano, juntamente com sua filha Hélene Solomon Langevin, que retornava do campo de concentração de Auschwitz, vinculou-se ao Partido Comunista. Teve papel político importante na criação do Centre National de Recherche Scientifique (CNRS). O texto aqui presente resulta da conferência proferida por Langevin no Museu Pedagógico e que, após revisão do autor, foi publicada na Revue de Synthése em abril de 1933. Deve-se reconhecer, de início, o papel pioneiro de Langevin na historiografia da ciência: ele foi um dos primeiros cientistas a se dedicar à história da ciência. Mas é reco-

nhecível em seu texto a postura comtiana, pois Augusto Comte apresentava dois caminhos para o estudo da ciência: um deles era o dogmático, pelo qual se iniciavam os estudos a partir dos dogmas de uma dada ciência e a seguir se desenrolava o estudo da estrutura sobre eles construída; o outro caminho era o histórico, pelo qual se ensinava a ciência a partir de sua gênese. O segundo texto aqui incluído é de autoria de Juan José Saldaiia, que tem longa folha de serviços no estudo e na divulgação da História da Ciência. Doutor em Filosofia e História da Ciência pela Universidade de Paris I, Sorbonne, membro do Comitê Internacional de iniciativa do movimento "Os cientistas e a paz", Saldaiia é professor da Universidade Autônoma do México (UAM) no curso de licenciatura de Filosofia das Ciências e Metodologia das Ciências Sociais, em ltztapalapa. É também professor da UNAM. Participou de diversos congressos internacionais promovidos pelo Comitê Internacional da História da Ciência (ICHS) realizados em Bucarest, Paris, Berkeley e na Alemanha (Hamburgo/Munique), além de outras participações em eventos internacionais na América Latina. É fundador e foi o primeiro presidente da Sociedade Latino-Americana de História da Ciência e da Tecnologia, sendo criador e até hoje editor da revista Quipu da SLAHCT. Tem várias obras publicadas no México e na Espanha. Sua presença nesta pequena antologia não carece de explicações e o título de seu texto é suficiente para defini-lo. Segue-se ao de Saldaiia um trabalho que já tem sessenta anos de existência, mas que é pouquíssimo conhecido no Brasil. Nunca foi traduzido para o português e sua publicação em inglês, incluída em Science at the Crossroads (1931, reedição em 1971), é quase desconhecida no Brasil. Sobre sua importância e a situação histórica em que foi escrito vale alinhar as informações abaixo. O II Congresso Internacional de História da Ciência e da Tecnologia realizou-se em Londres, na semana de 29 de junho a 3 de julho de 1931. Dele participou uma delegação da URSS, dirigida por Nicolau Bucárin, que incluía renomados cientistas como o agrônomo, geógrafo e geneticista Nicolau Vavilov, o engenheiro e economista M. Rubinstein, o matemático E. Colman e, além de outros, o físico Boris Hessen (que em russo se apresenta como Guessen), discípulo do físico A. F. Joffe, também presénte no Congresso e cujo aluno mais conhecido foi Peter Kapitza. De Hessen é o informe cuja tradução aqui se inclui, feita a partir da versão do doutor Pedro Pruna (Havana, 1985) por ele traduzida diretamente do russo e acompanhada da leitura do texto em inglês, incluído num livro que reúne todos os informes dos delegados da URSS. Trata-se do citado Science at the Crossroads, publicado em Londres dez dias apenas após o encerramento do Congresso, e republicado em 1971 (Londres, Frank Cass, 1971). Boris Hessen era en2

tão diretor do Instituto de Física de Moscou e membro do presidium do Conselho Científico de Estado. Não há notícias de Hessen depois desse Congresso: apenas algumas publicações esparsas e depois o silêncio possivelmente indicativo de ter sido vítima da repressão estalinista, tal como o foi Vavilov e, mais notoriamente, Nicolau Bucárin, o próprio chefe de delegação ao II Congresso, executado em 1938. Um dos poucos remanescentes ingleses dentre os participantes do Congresso era, em 1971, Joseph Needham, que prefacia a segunda edição em inglês e nos brinda com lembranças curiosas e esclarecedoras do ambiente em que se desenrolou o Congresso. A delegação da URSS chegou a Londres de avião, o que não era comum na época, e as sessões eram presididas por Charles Singer, conhecido por sua A History of Technology, obra monumental publicada pela Clarendon Press (Oxford) a expensas da I.C.I. (Imperial Chemical Industries). Singer havia colocado junto a si um grande sino - daqueles de barco - com o qual interrompia os oradores passados os 20 minutos de que cada um dispunha. Os delegados da URSS, particularmente, sofriam a restrição do sino, pois se lhes permitissem falariam horas a fio. A repercussão dos informes apresentados por essa delegação foi notável, particularmente entre os historiadores ingleses. Bernal, Lancelot Hogben, Haldane, Needham e outros sensibilizaram-se com as teses apresentadas, mas o rol pode ser ampliado se considerarmos historiadores não presentes ao evento mas também sensibilizados: Gordon Childe, Crowthes, Benjamin Farrington, Christopher Hill, Eric Hobsbawn, Sam Lilley. Sessenta anos se passaram desde o II Congresso e as opiniões sobre o informe de Hessen foram enriquecidas por diversas críticas. Mas não há dúvida de que o informe deu origem à corrente dita externalista da História da Ciência e que contribuiu enormemente para a superação das tendências encomiásticas e hagiológicas da História da Ciência então restrita à crônica dos gênios e de suas intuições puramente individuais e da lógica interna do desenvolvimento científico. Voltando à questão das críticas ao informe, a introdução escrita por P. G. Werskey para a edição inglesa de 1971 (acompanhando o novo prefácio de Joseph Needham) chama a atenção para o fato de que apenas em 1945 a história da ciência surge como disciplina acadêmica, sob a orientação de professores conscientes, de que os marxistas desprezaram a ciência como "Corpo de Idéias" (ver a respeito a crítica de S. R. Micúlinsqui à tese de Hessen, que ele não considera legitimamente marxista). E apenas depois de 1960 houve atenção sistemática no sentido de considerar a ciência e a técnica como agentes e produtos das próprias mudanças sociais. Pedro Pruna no prólogo de sua exceiente versão cita Micúlinsqui, que se abstém de considerar Hessen como representante de posições 3

marxistas, isto em tese apresentada no XV Congresso Internacional de História da Ciência (Edimburgo 1978). Para ele, Hessen contraria a teoria marxista que considera ser a ciência sobretudo uma forma da consciência, social, um sistema de conhecimento e de conceitos e um método de investigação. Em segundo lugar, Hessen se esquece de que esse sistema cognoscitivo tem personalidade própria, dada por uma tradição que também lhe é própria. Acrescenta a isto a adoção do ponto de vista segundo o qual a ciência se originou na idade moderna. E o mesmo Pedro Pruna chama a atenção para o fato de que apesar de todas as suas insuficiências, as "Raízes sócio-econômicas da mecânica de Newton" merecem ser estudadas como exposição clara de uma tendência extremada à luz da nova situação em que se encontra a teoria do desenvolvimento científico e tecnológico. Em seguida, nesta coletânea, apresenta-se um pequeno mas importante texto ligado à História da Técnica, de autoria do arquiteto Charles E. Peterson, atualmente professor adjunto da Universidade de Colúmbia (Nova York). Peterson trabalhou 34 anos no National Park Service (equivalente americano à SPHAN brasileira). Dirigiu trabalhos de Preservação do Patrimônio em todo o país, foi presidente da Society of Architectural Historians e destacou-se por várias outras atividades nesse terreno e pelos prêmios recebidos. Seu texto é de conhecimento necessário aos historiadores brasileiros, quando mais não seja para estudos comparativos. Peterson apresenta dados de sua pesquisa pessoal e direta, em fonte primária, na velha sede da Companhia de Carpinteiros da Cidade e Condado de Filadélfia (CCCCP), muito importante e uma das últimas corporações de ofício nos Estados Unidos. O texto seguinte é de autoria do professor Ubiratan D' Ambrosio e é o único escrito originalmente em português. Ubiratan D' Ambrosio é professor titular de Matemática do Instituto de Matemática, Estatística e Ciência da Computação da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) desde 1972. Membro do Conselho Estadual de Educação de São Paulo desde 1986. Coordenador dos Institutos de Pesquisa da Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo desde 1987. Bacharel, licenciado e doutor em Matemática pela Universidade de São Paulo. Lecionou na Escola de Engenharia de São Carlos da Universidade de São Paulo (1958-60) e na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Rio Claro (1961-63). Foi pesquisador no lstituto Matematico dell'Università di Genova, Itália (1961-62), e na Brown University (1964-65). Foi professor na University of Rhode Island (1966-68), na State University of New York at Buffalo (1968-72), na University of Iowa (1981) e na University of Illinois at Chicago (1987), todas nos Estados Unidos. Colabora, desde 1984, no Instituto de Ciências Exatas da Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" (UNESP). Na UNICAMP foi diretor do Instituto de Matemática, Es4

tatística e Ciência da Computação (1972-80), Coordenador Geral dos Institutos (1982-1986) e Pró-Reitor de Desenvolvimento Universitário (1986-1990). Foi também diretor de projetos de pós-graduação da UNESCO na África (de 1970 a 1977) e da Organização dos Estados Americanos no Brasil (de 1975 a 1984) e Chefe da Unidade de Melhoramentos de Sistemas Educacionais da Organização dos Estados Americanos, em Washington, D.C. (de 1980 a 1982). De 1983 a 1986 lecionou a disciplina História da Arte no Instituto de Artes da UNICAMP. Sua área de pesquisa em Matemática é a de Teoria Geométrica da Medida, tratando problemas de Cálculo das Variações, Teoria da Área e Sistemas Dinâmicos. Desde cedo seu interesse em pesquisa se diversificou, ampliando-se da Matemática para a Educação, em particular Educação Matemática e Ensino de Ciências, e a partir daí para História, Filosofia e Sociologia das Ciências e da Tecnologia. Nos últimos quinze anos encaminhou suas pesquisas para uma teoria das idéias, propondo uma visão holística sobre Arte, Religião, Filosofia, Ciências, História, Educação e Sociologia. Publicou cerca de 200 trabalhos e vários livros e orientou inúmeras teses de doutorado e mestrado. É membro do conselho editorial de várias revistas no país e no exterior e membro de diversas associações científicas. Atualmente é presidente da "Sociedade Latinoamericana de História das Ciências e da Tecnologia" e membro do Conselho da "Pugwash Conferences on Science and World Affairs", e signatário das Declarações de Veneza, de Dagomys e de Vancouver sobre Ciência, Tecnologia e Sociedade. No Terceiro Congresso Internacional de Educação Matemática, realizado em Karlsruhe, Alemanha, em 1976, introduziu considerações de natureza sócio-cultural como básicas na Educação Matemática e em 1984, no Quinto Congresso Internacional de Educação Matemática, realizado em Adelaide, Austrália, pronunciou a conferência plenária de inauguração do Congresso, tendo assim aberto definitivamente a área de raízes sócio-culturais da Educação Matemática como uma verdadeira linha disciplinar em educação matemática. Nessa linha situase a etnomatemática, que é hoje internacionalmente reconhecida como um programa de pesquisa e de ação pedagógica de fundamental importância. Muitos se referem a Ubiratan D' Ambrosio como o ''pai da etnomatemática". A coletânea se encerra com um texto do general William Barclay Parsons, engenheiro norte-americano estudioso da engenharia científica, como ele mesmo a denomina, e publicado originalmente em 1939. William Barclay Parsons (1859-1932), nascido em Nova York, cursou a Academia Militar de West Point, que foi a primeira escola de engenharia na América a adotar o modelo da Escola Politécnica de Paris. Trabalhou na estrada de ferro Eire e foi depois consultor da admi5

nistração da cidade de·Nova York para os estudos e projetos do sistema de transporte rápido. Nessa função projetou e supervisionou a construção da primeira parte do metrô da cidade. Vinculou-se profissionalmente à construção de estradas de ferro em vários países, bem como ao projeto e construção de hidroelétricas. Trabalhou em Londres na Comissão Real dos Transportes e foi consultor nas obras do canal do Panamá, assim como em outras obras do gênero e em várias cidades. Serviu na guerra hispano-americana como engenheiro chefe e na primeira guerra mundial inicialmente como major e no final da guerra como coronel. Após o conflito foi promovido a general e aposentado. De sua permanência na Europa durante o conflito e de seu regresso à Itália resultaram estudos e ensaios reunidos em Engineers and Engineering of the Renaissance, publicado pela M.I.T. Press em 1968, a partir de original de 1939, entre os quais está o texto aqui publicado, referente à cúpula da igreja de Santa Maria dei Fiore, catedral de Florença. É interessante notar que Parsons refere-se, no texto em questão, a engenharia científica ("scientific engineering") e não emprega o termo "technology". Parsons analisa, em profundidade, a estrutura da cúpula de Santa Maria dei Fiore. Apresenta cuidadoso levantamento das dimensões da cúpula e as hipóteses sobre o comportamento da estrutura erigida a partir de conhecimento exclusivamente empírico e, portanto, sem a sistematização científica da teoria ria resistência dos materiais proposta como uma nova ciência por Galileu, mais de dois séculos depois da construção da catedral de Florença. Não se espere, todavia, no texto desse autor, que é um clássico na historiografia americana, nada que exceda o estudo do "objeto técnico" de suas preocupações. Nada, ou quase nada, sobre a cidade de Florença e suas corporações, sobre a importância política e econômica das cidades italianas no período que é sabidamente o de implantação docapitalismo mercantil e o alvorecer do capitalismo manufatureiro, na própria Florença e em outras cidades italianas. E nem considerações de natureza estética. Isso é feito, entre outros, por Giulio Cario Argan em Storia dell'arte come storia dei/a città, onde se faz também uma leitura do espaço e do ambiente definido pela cúpula de Santa Maria. Para concluir, convém examinar a questão do relacionamento entre a ciência e a técnica, ou, para aqueles que se apóiam na historiografia e na ensaística anglo-americana, entre ciência e "technology". Tomemos como referências o que escreve Francesco Barone no vol. 10 - n? 1, de Fundamenta Scientiae (1989). "A raiz da tecnologia é mais antiga e original do que a da ciência. Não se trata aqui de apreender como se separam as coisas, mas sobretudo de fazer alguma coisa para resistir às condições desfavoráveis do meio em que vivemos. Sabe-se que em todas as formas iniciais de uma civilização, o momento técnico é anterior ao momento do conhecimento 6

científico. Mas, não se trata somente de fases sucessivas da evolução cultural do homo sapiens sapiens, pois a verdade é que conhecendo-nos conseguiremos fazer as coisas mais úteis para a sobrevivência; mas é também verdade que nosso conhecimento pode se enriquecer pelas possibilidades abertas pela ação técnica." E ainda: "As tradições histórico-culturais do ocidente produziram maneiras de pensar, que ainda persistem, onde as raízes comuns da ciência e da técnica não são reconhecidas. Creio que são essas maneiras de pensar que nos conduzem à situação esquizofrênica de que falei. ''Trata-se do paradoxo dos sábios que, empenhados na defesa da 'pureza' da ciência, tendem a condenar a tecnologia, que não seria 'pura'." Mais adiante escreve o autor citado: " ... ele [Aristóteles, na Ética a Nicomaco] caracteriza a ciência pelo seu objeto, quer dizer, as coisas 'necessárias', as coisas que não podem ser outras que não aquelas que são. A 'episteme', a aptidão demonstrativa, faz nascer a 'sofia' quando se une ao 'nous', a aptidão para apreender intuitivamente os princípios absolutos das demonstrações. E a sofia (sabedoria) é a aptidão para apreender as realidades que têm valor maior pela sua própria natureza, quer dizer, os seres divinos. É evidente que tal concepção da ciência em seus diversos níveis reserve um tratamento favorável à aptidão teórica e contemplativa. Ao contrário, a 'tecne' (técnica) visa somente as coisas que não são 'necessárias' e que podem então ser outras que não aquilo que já são, e que nós podemos produzir. Entre 'episteme' e 'tecne' existe, portanto, uma grande diferença de qualidade, porque há uma diferença antológica essencial entre seus 'objetos'." E ainda: "Quando consideramos a tecnologia somente como aplicação feita pelos engenheiros e pela indústria dos resultados 'teóricos' da ciência nós nos entregamos, sem perceber, à antiga diferenciação essencial entre 'episteme' e 'tecne'." E mais adiante: "Por que, então, tantos sábios estão ainda hoje convencidos de que a ciência tem dignidade maior do que a técnica? A resposta a esta questão é, talvez, que a ciência moderna e a ciência contemporânea mantiveram, ainda que sem querer, a crença na natureza divina, ou quase divina, da ciência. "Continua a crença de que a ciência é o reflexo de uma realidade transcendente mais do que um momento da evolução biológica e cultural do homem." Estes são alguns argumentos, que se emparelham com outros que já apresentei em textos meus, e que parecem adequados a uma reunião de escritos sobre História da Ciência e da Técnica. 7

2. O valor educativo da história das ciências PAUL LANGEVIN*

O tema desta conferência é um pouco abstrato. Peço desculpas, mas a sua escolha foi ditada pela vontade de comunicar-vos algumas reflexões pessoais e de estimular reflexões sobre o ensino da ciência (em especial das ciências experimentais, que são particularmente as que co'lheço ), sobre o papel que pode e deve desempenhar, neste ensino, o ponto de vista histórico e da sua importância no preparo daqueles que se dedicam a ensinar ciências. É necessário inicialmente reconhecer que neste ensino tem-se negligenciado quase que inteiramente o ponto de vista histórico, que em outros ramos do conhecimento, como a literatura e a filosofia, é considerado bastante importante. Mesmo o ensino da música, acaba de ter o seu programa aumentado nos estabelecimentos de segundo grau, introduzindo-se um resumo das grandes etapas e das grandes figuras da história dessa arte. Portanto, no ensino das ciências teríamos muito a ganhar introduzindo também o ponto de vista histórico. Aliás, o estudo das razões que levaram este ensino a esta situação especial e lamentável, permite um melhor aprofundamento da questão. Estas questões são ao mesmo tempo de ordem histórica (nós a trataremos no final desta conferência) e de ordem prática. O pouco tempo concedido pelos programas oficiais ao ensino científico sacrifica o aspecto histórico, tratando somente do seu aspecto utilitário. O exame dos programas dos liceus e colégios nos mostra uma orientação quase exclusivamente dirigida ao conhecimento dos fatos e das leis (chamemos a atenção, entretanto, neste caso, para a feliz introdução das alterações feitas com sucesso a partir de 1902). Os conhecimentos atuais são apresentados nestes programas sob uma forma dogmática: aprende-se as leis, as fórmulas que as traduzem e depois sua utilização. Tudo isto para posteriormente aplicá-las no exercício desta ou daquela profissão, tal como a do engenheiro. Esta tendência para (*) Esta conferência, proferida no Museu Pedagógico, foi anteriormente publicada pelo Boletim da Sociedade Francesa de Pedagogia (n~ 22, dezembro de 1926) a partir das anotações de M. Guibé. O texto foi posteriormente revisto por Paul Langevin e reeditado pela Revue de Synthése (tomo VI, n~ 1 - abril de 1933). Tradução de Regina Prosperi Meyer.

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a "deformação dogmática" manifesta-se toda vez que a finalidade fixada é claramente utilitária. Ela está longe de limitar-se ao nível secundário: o ensino primário que deve formar a criança entre oito e do-~ ze anos, prepará-Ia para a vida, é particularmente utilitário e conseqüentemente dogmático. Vamos nos propor, aqui, a evidenciar o quanto o ensino científico perde sendo unicamente dogmático e negligenciando o ponto de vista histórico. Perde-se, logo de saída, o interesse. O ensino dogmático é frio, estático e acaba dando a impressão, absolutamente falsa, de que a Ciência é uma coisa morta e definitiva. Pessoalmente, se tivesse permanecido com as primeiras lições de ciências de meus professores - de quem guardo, entretanto, gratas recordações - se não tivesse tomado contato posterior e diferente com a realidade, teria acreditado que a ciência estava pronta e que não restava mais nada a descobrir ... enquanto que, na verdade, estamos apenas diante dos primeiros estágios no conhecimento do mundo exterior. Acreditar que temos apenas conclusões a tirar de princípios definitivamente adquiridos é uma idéia absolutamente errada que põe em perigo o valor educativo do ensino científico. Este problema, geral em todos os países, é ainda mais sensível na França onde, devido a uma afetação deslocada, hesita-se em introduzir no ensino as novas noções que em maior ou menor grau estão ainda em desenvolvimento. Somente as teorias comprovadas, ao menos na aparência, têm o direito de ser citadas nos nossos livros clássicos. O que acaba ocorrendo na realidade é que aquelas que estão ultrapassadas são as únicas encontradas nestes textos, tendo em vista a rapidez das mudanças permanentes de nossas idéias fundamentais. Portanto, para contribuir à cultura geral e tirar do ensino de ciências tudo que ele oferece para a formação do espírito, nada substituiria a história dos esforços passados, tornada viva através do contato com a vida dos grandes sábios e da lenta evolução das idéias. Somente por este caminho pode-se preparar aqueles que continuarão a obra da Ciência e lhes oferecer o sentido de seu perpétuo movimento e de seu valor humano. Se esta necessidade é evidente para os que farão a Ciência, ela não será menor para os educadores, os iniciadores e maior ainda para o grande número daqueles que deverão se contentar com a cultura adquirida nos anos escolares. Permitam-me citar aqui, para ilustrar meu pensamento, uma lembrança pessoal. Quando era aluno da Escola Normal tive de fazer uma: lição, como faziam todos alternadamente, sobre a água oxigenada. Os manuais, admiráveis catecismos de ciência experimental, davam todas as reações que podem ocorrer com este produto, suas propriedades físicas, etc. 9

Mas eu tive o cuidado de investigar os relatos de Thénard, que havia descoberto a água oxigenada. Lendo estes textos admiráveis, de um século atrás, cuja linguagem em si já é um grande prazer, dei-me conta de que as coisas mais interessantes, em particular a maneira pela qual Thénard encaminhavase para sua descoberta e suas reflexões profundas e atuais sobre o mecanismo da oxidação, tinham sido cuidadosamente omitidas nas informações de segunda mão que geralmente possuímos. O que se filtrou através de várias gerações de autores de manuais é, certamente, o menos interessante. Infelizmente, com muita freqüência as coisas são assim: nada melhor do que ir às fontes, colocar-se em contato direto e freqüente com aqueles que fizeram ciência e que melhor representaram o seu aspecto mais vivo. Um segundo exemplo típico é dado por uma questão que atraiu muito a curiosidade do público: a Relatividade. Neste campo, a teoria e a experiência levam à conclusão de que a geometria comum ou euclidiana não é a única possível nem a mais adaptada à representação do mundo exterior, que existem outras geometrias, na realidade mais simples, apesar de sua aparência, e que são muito superiores àquela. Foi desta forma que os trabalhos de Lobatchev&ky, Bolyai, Riemann acabaram por estabelecer geometrias não-euclidianas, infinitamente mais ricas em possibilidades que a geometria clássica, embora tão rigorosas quanto ela. As traduções de Euclides não deixavam entrever que o principal fundador da geometria clássica pôde se dar conta, muito mais do que seus comentadores, das dificuldades apresentadas pelos fundamentos da geometria e o caráter arbitrário de seu famoso postulado, em virtude do qual pode-se sempre por um ponto traçar uma, e apenas uma, paralela a uma linha reta. Ter-se-iam evitado, se tivessem consultado seu texto original, muitas tentativas inúteis de demonstração de seu postulado. Para combater o dogmatismo, é muito instrutivo constatar o quanto, mais e melhor que seus continuadores e comentadores, os próprios fundadores de novas teorias se deram conta das fraquezas e insuficiências de seus sistemas. Suas reservas são logo esquecidas; aquilo que para eles era hipótese torna-se dogma, cada vez mais intangível à medida que nos afastamos das suas origens. Torna-se necessário um esforço violento para nos libertarmos deste dogma quando a experiência vem desmentir as conseqüências mais ou menos longínquas de idéias das quais havíamos esquecido o caráter provisório e precário. Um notável exemplo desta ossificação ou senilização das teorias por dogmatização é aquele da concepção newtoniana da gravitação que, depois de desfrutar durante dois séculos de um sucesso indiscutível na 10

magnífica criação da mecânica celeste clássica, deve hoje ser abandonada, com alguma resistência, por ser incompatível com os resultados experimentais cada vez mais precisos. Ao invés de explicar, como o fazia Newton, os movimentos complicados dos astros pela existência de atrações que se exercem a distância entre corpos móveis num espaço invariavelmente euclidiano, a nova teoria da relatividade admite que cada corpo modifica ao seu redor, pela sua simples presença, as propriedades do espaço e do tempo, que encurva o espaço-tempo, e que o movimento espontâneo dos corpos vizinhos altera-se como conseqüência desta deformação. Todavia, quando nos referimos às obras de Newton, ele nos parece muito mais hesitante do que poderíamos pensar através da leitura daqueles que acreditaram poder dar um caráter definitivo à sua doutrina. Newton apresentou a atração a distância como uma hipótese destinada a representar os fatos dos quais ele não dissimulava todas as dificuldades. Foram seus discípulos que, diante do sucesso da tentativa newtoniana, deram a ela um aspecto dogmático ultrapassando o pensamento do autor e tornando mais difícil uma reavaliação. Um ensino mais histórico, uma concepção mais dinâmica da adaptação ainda bastante incompleta do pensamento aos fatos, uma materialização do espírito pelo contato mais direto com o pensamento dos grandes homens, evitariam muitas hesitações e muitas prevenções diante das novas idéias. Em resumo, voltar às fontes é clarificar as idéias, ajudar a ciência, ao invés de paralisá-la. Os exemplos precedentes mostram muito bem como, tanto do ponto de vista do ensino como do ponto de vista da pesquisa científica, é indispensável não esquecer a história das idéias - e paralelamente a dos homens - pois é através deles que se clarificam as idéias. Nada melhor que ler as obras dos sábios, nada melhor que viver com seus contemporâneos, para penetrar o pensamento íntimo de ambos. É inútil insistir na necessidade de conhecer a história das aplicações científicas, tal a sua evidência. Quando se percorre a história da iluminação, por exemplo, e se assiste aos esforços repetidos, às vezes infrutíferos, outras vezes vitoriosos de tantos inventores, não podemos deixar de comungar com o lento esforço humano para adaptar-se e modificar o mundo, dominando-o através do pensamento. E ainda uma vez, evoco a lembrança de antigas leituras como as das velhas obras de Louis Figuier, As maravilhas das ciências, cujo valor científico não é talvez muito grande, mas cujo valor afetivo e educativo é incontestável. A história das invenções é bastante fácil de ser feita. A das idéias é mais delicada, embora mais fecunda ainda, do ponto de vista educativo. Gostaria de lembrá-los como esta história das idéias permite, percorrendo-se as grandes etapas da civilização, que se experimente simultaneamente um se:--timento de extrema modéstia pelo que nós so11

mos e sabemos, e simultaneamente uma confiança muito grande no futuro. A cada passo da evolução da humanidade encontramos a mesma tendência a exagerar o valor dos resultados obtidos e a acreditar que possuímos finalmente a "chave do mundo". No momento que os homens obtêm resultados, eles tentam legitimamente generalizá-los, aplicá-los em todos os domínios da Ciência, o que eles já sabiam procurando dominar a matéria. Eles criam desta maneira toda uma série de místicas sucessivas. Assim, quando os homens, no início da humanidade, constataram o poder da expressão verbal ou artística para comunicar-se entre si, e que podiam, através de palavras, de signos, de imagens, agir sobre o espírito de seus semelhantes, eles imaginaram que uma generalização seria possível; que eles poderiam através de meios análogos ter poder sobre todos os seres e sobre todas as coisas: tal foi a origem da magia que age através da palavra, da imagem, do encantamento e do enfeitiçamento. Em seu belo livro - recentemente traduzido para o francês - O ramo de ouro, James Prazer mostra de forma luminosa o poder da magia sobre as primeiras civilizações e sua influência profunda sobre o desenvolvimento primitivo da humanidade: era a Ciência de então. Muitos povos, ou mesmo indivíduos entre os povos mais evoluídos, ainda não ultrapassaram este estágio, não abandonaram esta mística primitiva profundamente enraizada no nosso instinto. Em seguida o homem descobriu o poder dos números e o poder que eles oferecem de prever. Da aritmética surgiram, por generalização prematura, místicas como o Pitagorismo e a Cabala judaica. Pelo número acredita-se ser possível compreender e dominar o mundo: o conhecimento das leis numéricas do universo permitiria o seu domínio. A um fundo incontestável de verdades acrescentam-se muitas ilusões. Ainda, o desenvolvimento na Caldéia de uma astronomia primitiva que prevê os eclipses, os movimentos das estrelas, dá nascimento à Astrologia - cujo papel nas decisões humanas e mesmo nos governos foi considerável até recentemente - ciência que acredita ser possível prever o futuro para os homens através das mesmas observações que permitiram a previsão do futuro dos astros. Esta era ainda uma mística que procedia de maneira legítima, fazendo mais uma tentativa para generalizar, para ir do conhecido ao desconhecido. Mais tarde, na Grécia, a descoberta do poder do raciocínio dedutivo nas suas formas lógica ou geométrica, faz nascer a esperança de penetrar o mundo unicamente através deste novo instrumento, pelo esforço da pura reflexão. 12

O sucesso deste método na análise das leis do discurso e na construção de uma geometria conduz à ilusão de que possuímos os meios de alcançar a sabedoria e o poder. A vida contemplativa da Ásia representa talvez uma parada neste estágio. A sistematização da ciência grega, feita por Aristóteles, que desenvolve a sua aplicação nas ciências naturais na sua primeira tentativa de classificação, dá origem a uma nova mística, a escolástica, que governou o mundo até o fim da Idade Média. O Renascimento descobre então claramente o papel necessário da experiência e a insuficiência da adaptação do nosso pensamento aos fatos. Disso resulta uma ação muito intensa tanto do ponto de vista científico quanto literário, artístico ou religioso. Descartes põe em questão a autoridade da escola, retoma a experiência interna, e Bacon a experiência externa. Newton é a conseqüência lógica da nova concepção, da qual deveria surgir ainda uma outra mística, a do mecanismo. É o extraordinário sucesso da mecânica celeste, construída por Newton, que criou a expectativa nos físicos do século XVIII - e até o começo do século XIX - de que se poderia, por vias análogas, interpretar todos os demais fenômenos. E eis aqui uma nova mística, resumida nas palavras de Laplace: ''Dêem-me as leis de ação entre os átomos e eu lhes direi o futuro do mundo." Ela intervém em todos os domínios, na filosofia, na biologia e até na física. Esta mística da mecânica deveria chocar-se novamente com o obstáculo da experiência. Na metade do século XIX assistimos a nova reação com Faraday no campo da eletricidade e com a fundação da termodinâmica e da energética na física geral. Esta energética que acaba de nascer constitui, por sua vez, e sempre por generalização prematura, uma nova mística que se manteve assim durante mais de 50 anos. Eu me lembro de ter lido, em torno de 1894, um artigo de Ostwald que era um verdadeiro hino, onde transbordava a fé na energética. O autor propagava uma espécie de religião, um monismo singular, fundado sobre os princípios da termodinâmica e acreditou poder colocar na base da moral um axioma fundamental: "não degrademos a energia". De Faraday partiu a teoria eletromagnética, desenvolvida por Maxwell e Hertz e, há uns vinte anos, pudemos acreditar, depois de vê-la conquistar a óptica através da teoria eletromagnética da luz, depois a mecânica pela teoria da relatividade, que ela representava uma síntese definitiva. Mas, as dificuldades surgidas da experiência que nós resumimos sob o termo de quanta vieram nos mostrar o quanto estávamos longe da meta que há muito havíamos almejado. Através destas dificuldades e destas hesitações, tem-se contudo uma impressão profunda de um progresso contínuo, pois cada síntese, antes de desaparecer diante de uma nova, consegue agrupar ou representar, juntando-as umas às 13

outras, um número sempre crescente de fatos. É nesta coordenação de realidades, na aparência profundamente diferentes, que consiste a nossa conquista verdadeira e provavelmente definitiva. Nós sabemos, por exemplo, que a óptica é um departamento do eletromagnetismo, que a luz é de natureza semelhante às ondas hertzianas, recentemente descobertas e tão largamente utilizadas hoje em dia. E, desta forma, compreendemos o que existe de vivo e também precário no nosso conhecimento e evitamos cair no dogmatismo, que é de certa maneira desencorajar, como todas as coisas definitivas ou mortas. A estes exemplos gostaria de acrescentar uma outra ordem de reflexões. Através destas etapas, onde passamos do conhecido ao desconhecido, não somente exagera-se a importância dos resultados já obtidos, mas nos enganamos sobre o que deve ser uma explicação verdadeira. Explicar um fenômeno é aproximá-lo de outros que consideramos como sendo mais simples. Assim, explicamos a luz pelas ondas hertzianas, porque as conhecemos melhor, sabemos regular todos os detalhes da sua produção, enquanto apenas começamos a penetrar o segredo do papel dos átomos nos fenômenos luminosos. Da mesma forma as propriedades dos gases (tais como são expressas pelas leis de Mariotte e Gay-Lussac) são melhor compreendidas quando as examinamos do ponto de vista da teoria cinética e as explicamos pelos movimentos das moléculas, quando se admite que o calor resulta do bombardeio molecular ... e que, assim sendo, em última análise as propriedades dos gases podem explicar-se a partir das leis da mecânica. O trabalho do físico é antes de tudo um trabalho de coordenação entre fenômenos de aparências diversas seguido de interpretação de alguns considerados complexos, feita a partir de outros considerados simples. Resta escolher os fenômenos que serão considerados como simples e que servirão para explicar os demais. Deste ponto de vista, somos tentados a confundir o que é simples com o que é familiar. São duas coisas muito diferentes e, infelizmente, em geral opostas. As noções mecânicas de "força" e de "massa" são seguramente familiares, mas são também de extrema complexidade. Um sentimento de antropomorfismo nos dá inconscientemente a noção do esforço, da força necessária para deslocar um corpo. Mas, o que é uma força? E, entretanto, a mística mecanística quis colocar estas duas noções na base da explicação do mundo, e dos fenômenos elétricos, por exemplo, concebidos como resultado de forças exercidas a distância entre fluidos específicos. Achamos mais simples, hoje em dia, reverter os termos do problema e explicar pelo menos uma parte dos fatos da mecânica através de noções elétricas consideradas como sendo mais simples, apesar de menos familiares porque mais desconhecidas. 14

O mesmo ocorre com nossos conhecimentos sobre o magnetismo, baseados inicialmente nos fatos experimentais relativos aos ímãs naturais ou artificiais. Tentou-se explicar estes fenômenos através dos "fluidos" magnéticos e de sua ação a distância. No entanto, hoje, o ímã se apresenta como algo muito complicado e somente uma análise mais aprofundada pode nos colocar em uma via melhor. Atualmente, as propriedades dos ímãs se explicam pela existência, no interior dos átomos, de elétrons em movimento que exercem entre eles e ao redor deles ações cujo aspecto mais simples, aquele manifestado pelo que chamamos de raios catódicos, só foi descoberto recentemente. Temos, em todos os domínios das ciências experimentais, a impressão de que a natureza esforça-se de forma maliciosa em nos apresentar a realidade na sua face mais complexa e que um grande esforço torna-se necessário para revelar os elementos simples a partir dos quais nos é possível reconstruir mentalmente o mundo; é talvez aqui que reside a nossa necessidade de adaptação. Tomemos mais uma vez o exemplo da luz. Nos tratados de física, a primeira característica que lhe atribuímos é aquela que nos impressiona imediatamente: a propagação em linha reta. É esta propriedade que embasava a antiga teoria da emissão, na qual a luz é considerada como sendo composta de projéteis infinitamente tênues lançados pela fonte e se propagando em linha reta até encontrar um obstáculo. A descoberta dos ·fenômenos de interferência e de difração nos quais a luz cessa a propagação em linha reta e passa a contornar os obstáculos, nos faz renunciar à concepção precedente. A teoria ondulatória da luz explica as anomalias constatadas anteriormente. Esta teoria ondulatória deu, como sempre, origem a uma mística defendida exacerbadamente, seja contra a teoria eletromagnética da luz, seja contra a nova concepção dos quanta. Hoje em dia, parece que a verdade não está inteiramente nem do lado da teoria ondulatória nem do lado da emissão, que cada uma das duas representa somente uma parte da realidade e que é preciso uni-las em uma nova síntese para que seja possível explicar o conjunto dos fatos. Ainda desta vez, é necessário proceder segundo o ritmo hegeliano, o qual, diante do conflito entre a tese e a antítese, esforça-se para alcançar uma síntese mais elevada do que cada uma das duas concepções opostas procurando ao mesmo tempo abrangê-las.* Estas são as constatações que se impõem quando se quer estudar ou ensinar as ciências. A impressão de hesitação e imperfeição que pode ocorrer não deve assustar, pois está na ordem natural das coisas, e, apesar de tudo, constata-se a marcha progressiva e a amplitude crescente da síntese. (*) É aqui que, pela primeira vez na obra de Langevin, encontra-se uma referência explí-

cita a Hegel.

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O estudo histórico das ciências apresenta do ponto de vista pedagógico, como do ponto de vista puramente científico, as vantagens que acabo de expor e ainda completa e esclarece os conhecimentos adjacentes. Sua influência sobre a filosofia é inegável, pois esta em grande parte toma a própria ciência como base. A história, por seu lado, deve levar em conta a influência exercida pelas concepções científicas sucessivas sobre a marcha da civilização e sobre a estrutura das sociedades ou governos. A civilização e a legislação gregas foram penetradas pelo mesmo espírito que a ciência grega tinha introduzido. No Renascimento, a liberação dos espíritos e a Reforma representaram uma reação contra os abusos da escolástica e da mística dedutiva. No século XVIII é incontestável que Newton desempenhou um papel muito importante na evolução social: os enciclopedistas, precursores da revolução francesa, buscam sua inspiração e seu modelo nas obras do sábio inglês. Como reconhecimento do papel desempenhado pela ciência na liberação dos espíritos e na afirmação dos direitos do homem, o movimento revolucionário faz um esforço considerável para introduzir o ensino científico na cultura geral e constituir estas disciplinas humanas, modernas, que ainda não conseguimos estal-iilizar. E a revolução que criou esta admirável instituição, as escolas centrais, que formaram a maior parte dos grandes sábios do início do século XIX. Paralelamente à reação política, o ensino científico sofre uma mutilação considerável durante o Consulado, o Império, a Restauração. Durante todo o século XIX, e ainda hoje, na França como em outros lugares, renuncia-se a ensinar a história das idéias ou não se lhe dá a importância merecida. Em 1852, as ciências experimentais foram novamente introduzidas nos programas, mas unicamente sob a forma utilitária. Parece que se temia o desenvolvimento do sentido crítico que deveria fazer nascer um ensino de ciências integrado e adaptado à cultura do espírito. É difícil dizer qual poderá ser no futuro a influência de uma cultura geral mais impregnada de espírito científico e na qual a história das idéias teria um papel mais importante do que tem hoje, mas devese ter confiança em tudo que possa dar à criança um sentido mais preciso do esforço coletivo e dos laços vivos que unem o presente ao passado.

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3. Epistemologia, história e sócio-política

das ciências (um ponto no temário dos anos 80) JUAN JOSÉ SALDANA*

1. Há cinqüenta anos reuniu-se em Londres o II Congresso Internacional de História da Ciência e da Tecnologia, no qual a delegação soviética, encabeçada por N. I. Bukharin, apresentou vários trabalhos que foram reunidos no volume Science at the Crossroads. 1 Esse volume exerceu uma influência considerável na história das ciências das últimas décadas. Em particular, a contribuição de Boris Hessen, "Social and Economic Roots of Newton's Principia" oferecia um enfoque promissor que um grupo de jovens cientistas desenvolveria na Inglaterra, até chegar a constituir a assim chamada escola externalista na história das ciências. Entre seus membros estavam J. B. S. Haldane, L. Hogben, J. D. Bernal e J. Needham. São conhecidos sobretudo os trabalhos de Bernal, que desenvolveu uma interpretação do progresso das ciências e das técnicas desde a comunidade primitiva até a época contemporânea, a partir da tese central do marxismo de que tem sido o grau de desenvolvimento das forças produtivas que comanda o progresso científico. 2 Igualmente pelos anos 30, Gaston Bachelard, na França, iniciava uma reflexão tendente a "adequar" a filosofia das ciências ao estado que já então haviam atingido as próprias ciências. 3 Identificaria as mecânicas relativista, quântica e ondulatória como "sciences sans aieux" e como um exemplo de "La rupture historique dans l'évolution des sciences modernes" .4 O empenho de Bachelard no sentido de pensar a ruptura ocorrida na física contemporânea colocou, ao longo de toda a sua obra, a necessidade de desenvolver uma epistemologia histórica e uma história das ciências com eficácia sobre a atualidade. 5 Tratavase, pois, de introduzir o tema da descontinuidade na epistemologia, e com esse fim estavam orientadas as noções de "obstáculo" e de "valor" epistemológicos. Entretanto, afirmaria também o papel da história das ciências sobre a atualidade, construindo os conceitos de "histoire sanctionée" e de "histoire périmée" que o conduziram, no segundo caso, a deixar a física cartesiana em sua "solitude historique" e, no primeiro, a reconhecer a verdade da reconstrução de Huyghens do raio luminoso refratado, como uma verdade "pour toujours". 6 (*) Tradução de Gilson Schwartz.

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Por outro lado, foram nJ.!merosas as considerações de Bachelard a respeito dos diversos condicionantes da atividade científica: sobre o papel da escola (que cria a imagem de uma "évolution routiniere") no ensino das ciências, sobre o caráter coletivo ("l'union des travailleurs de la preuve") do trabalho científico, sobre as comunidades científicas ("la cité physicienne"), etc., cuja descrição e análise excedem os limites do presente trabalho. Outro elemento da conjuntura filosófica dos anos 30 foi a constituição do movimento neopositivista. Na Áustria, em torno de Moritz Schlick, foi organizado o "Wiener Kreis" e em Berlim formou-se um grupo de simpatizantes animado por Hans Reichenbach ("Gesellschaft für Empiriche Philosophie). De convicções socialistas ou socialdemocratas, eles pretendiam levar a cabo um combate de resistência ao irracionalismo da ideologia fascista então no auge na Europa. O Círculo de Viena se propunha a uma luta decisiva contra a penetração de elementos místicos e metafísicos na ciência, usando as armas proporcionadas pela lógica nessa luta: "Continuando a obra de Mach, Poincaré, Frege, Russell, Wittgenstein e outros, o assim chamado Círculo de Viena para a Concepção Científica do Mundo trata de criar uma atmosfera livre de metafísica para promover os estudos científicos em todos os campos por meio da análise lógica. " 7 A epistemologia que os neo-positivistas faziam derivar dessa tese não veio sem efeitos ideológicos e políticos concomitantes. O nazismo e a guerra obrigaram esse movimento (que também tinha ecos na Polônia e Tchecoslováquia) a emigrar. Sua instalação em países anglo-saxões teve conseqüências muito importantes, assim como nos países escandinavos (em particular na Finlândia) e nos de fala espanhola. Até os anos 50 regressaria aos países de língua alemã. Na realidade, o neopositivismo ofereceu uma defesa débil contra a ascensão da "irracionalidade" e se, por outro lado, deu apoio a doutrinas e prática de submetimento social (como nas ciências sociais, por exemplo, com sua redução fisicalista ao modelo nomológico-dedutivo ao qual cedo ou tarde deveriam aquelas ciências submeter-se, passando por cima da intervenção, no pro,esso de formação de teorias, de um complexo heteróclito de fatores ideológicos e outros), no marco do sistema capitalista em plena expansão. O método de análise lógico esteve associado a um empirismo que tinha como missão a superação da metafísica por meio da análise lógica da linguagem da ciência. A epistemologia tornava-se em suas mãos "lógica aplicada" para "esclarecer o conteúdo cognoscitivo das proposições científicas e, por esse meio, o significado das palavras que aparecem em tais proposições" .8 Esta análise mostrava que as proposições metafísicas não são mais que pseudo-conceitos e, desta maneira, os cientistas disporiam por fim do instrumento que lhes permitiria con18

trolar a validade de seus resultados e assegurar a correção de seus procedimentos. A insistência no método lógico-dedutivo levou também à insistência sobre a diferença entre "contexto de justificação" e "contexto de descoberta", cuja formulação foi feita por Reichenbach 9 para estabelecer uma demarcação entre filosofia da ciência e sociologia e psicologia do conhecimento: os empiristas lógicos, interessados unicamente na justificação dos resultados científicos e no aniquilamento da metafísica, aniquilavam também a própria ciência ao desterrar a questão da origem das idéias científicas e da dinâmica do conhecimento. Nos mesmos anos, o convencionalista Karl Popper afirmava que a tese do empirismo lógico sobre o papel preponderante da indução na ciência é contestável, assim como sua utilidade como critério de demarcação entre teorias científicas e proposições pseudo-científicas. Criticava também a tese de que só as proposições "verificáveis" (ainda em sentido amplo) possuíssem uma significação cognitiva. Frente às análises sintático-estruturais, sustentava que os problemas mais tradicionais da epistemologia estavam vinculados à questão do avanço do conhecimento e que estes continuavam sendo cruciais. À pergunta se teria sido apenas a eliminação da metafísica o que conduziu à obra de Einstein, afirmava: "From Thales to Einstein, from ancient atomism to Descartes's speculations about matter, from speculations of Gilbert and Newton and Leibniz and Boscovic about forces to those of Faraday and Einstein about fields of forces, metaphysical ideas have shown the way.'' 10 O critério popperiano de demarcação restaurava a tradicional tese de "sózein tà phainómena", conduzindo a uma visão da história das ciências como uma "série" de conjecturas falsificações-conjecturas, o que significava que o instrumento teórico utilizado pelas ciências serve somente para calcular, prever e ordenar os fenômenos e não para descobrir as verdadeiras leis da natureza; instrumental que, por outro lado, e desde o ponto de vista de sua elaboração, é convencional. Com o aparecimento da edição inglesa de The Logic oj Scientijic Discovery (1959) a crítica ao empirismo lógico se intensificaria. Um dos pontos importantes em que Popper insiste é o de que não existem dados empíricos neutros, data, 11 mas esses sempre aparecem como dependentes da teoria. Os trabalhos de Hanson, Quine, Toulmin, Kuhn, Lakatos, Feyerabend e outros realizaram análises da ciência que giravam em torno a três pontos principais: o lugar da lógica e das matemáticas no conjunto das ciências, o papel da indução e a questão de saber se ela permite estabelecer uma demarcação entre teorias científicas e proposições pseudo-científicas; a controvérsia sobre as interpretações instrumentalista e realista das teorias científicas. A essas três questões o positivismo lógico havia dado respostas coerentes e completas: as proposições da lógica e da matemática são 19

analíticas (tautológicas), aquelas das ciências empíricas são sintéticas; as proposições científicas possuem um significado cognitivo porque são verificáveis pelos dados da experiência e, por último, as teorias científicas são concebidas como instrumentos para o estabelecimento de predições observáveis como explicações da realidade. Até os anos 60, a epistemologia anglo-saxônica se revitalizava pelo seu interese na história das ciências. O obra de Alexander Koyré exerceu aqui um papel importante. A publicação mais destacada nesse período é a de Thomas Kuhn, que vai contra a corrente popperiana ao afirmar o papel do conservadorismo intelectual contra o espírito crítico na evolução da história das ciências e ao insistir no papel dos fatores intelectuais e dos processos psicológico-sociais no processo de mudança científica. Kuhn rechaçou também a utilidade da distinção entre "contexto da descoberta" e "contexto de justificação" dos positivistas lógicos. Como reação às teses relativistas enfatizadas pelo enfoque kuhniano, novos trabalhos se desenvolveram (Scheffer, por exemplo) de caráter realista. Mas, em todo caso, a necessidade de uma dimensão histórica na análise da ciência está bem aceita (assim como sociológica) na epistemologia anglo-saxônica dos anos 60. A literatura nesse sentido é hoje abundante. 2. Uma vez abandonado o programa epister,:ológico do empirismo lógico, 12 nas duas últimas décadas uma viva atividade foi despertada em três áreas e do ponto de vista de seus pontos de contato: a epistemologia, a história das ciências e a sócio-política das ciências. No caso da história das ciências trata-se de um projeto pós-kuhniano; e póssociologia dos papéis no caso da sócio-política das ciências. Evidentemente, não foram alheios a esse impulso fatores de índole social e política do mundo contemporâneo: os programas espaciais, a mobilização universal contra a guerra do Vietnã e contra o genocídio, o escândalo da corrida armamentista e os esforços pelo desarmamento, o desenvolvimento industrial e tecnológico do pós-guerra, a crise energética o movimento ecologista, as lutas de libertação nacional nas antigas colônias e a chegada dessas ao mercado científico e tecnológico. A investigação sócio-política das ciências recebeu um crescimento considerável (Merton, D. S. J. Price, Ben-David, os Rose, etc.). Nos últimos anos, a "revolta" dos cientistas levou-os, e aos historiadores e epistemólogos, a discutir a produção social do conhecimento científico, mas também sua utilização com fins militares, sua exploração ideológica, seu ensino dogmático nas universidades, etc. (Cini, Rose, Zimmerman, Radinsky, Lévi-Leblond, Ciccoti, De Maria, Ravetz, Mendelsohn e muitos mais) e atualmente está em curso de realização um programa de pesquisa sobre o condicionamento social da atividade científica a fim de entender os fatores da prática social que põem em movimento esta

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forma particular da prática social que é a ciência, nos países capitalistas avançados. Lamentavelmente, ainda não se procedeu ao estudo da especificidade das ciências nos países subdesenvolvidos. Na perspectiva da História das Ciências, e como efeito do que se assinalou anteriormente, também houve muito progresso. Inicialmente foi o programa externalista, em cuja base estava a participação soviética no Congresso de 1931, a qual veio a revitalizar o interesse pela disciplina, até então reduzida ao entusiasmo "internalista". Para essa perspectiva era ''vain de vouloir déduire la science grecque de la structure sociale de la cité, ou même de l'agora. Athenes n'explique Eudoxe; ni Platon. Pas plus que Syracuse n' explique Archimede, ou Florence, Galilée", pois a ciência "a toujours eu une vie propre, une histoire immanente, et ( ... ) c'est seulement en fonction de ses propres problemes, desa propre histoire qu'elle peut être comprise par ses historiens. " 13 Essa declaração é devida a Alexandre Koyré, o mesmo a quem Kuhn reservara expressões de dívida e elogio. 14 O projeto presente em Science in History de Bernal é, em primeiro lugar, surpreendente por suas dimensões e por sua erudição. É suscetível, entretanto, de várias críticas que só a evolução ulterior do marxismo no ocidente permitiu precisar. De fato, foi fortemente influençiado pelo marxismo do pré-guerra, e ainda que tenha sido escrito nos anos do pós-guerra e publicado em 1954, Bernal não pôde integrar os progressos que a reflexão marxista do pós-guerra desenvolveu. O pensamento marxista orientou-se para questões epistemológicas e superestruturais, 15 que continuam sendo uma das mais importantes contribuições à reflexão filosófica atual. Assim, Bernal pôs em marcha uma concepção reducionista da ciência à estrutura econômica da sociedade, com as falhas de interpretação histórica que isso implica, já que a ciência torna-se então mais um dos produtos superestruturais da sociedade. Perde-se assim a especificidade do cientista, de sua problemática e métodos e, em conseqüência, de sua autonomia relativa, assim como da intervenção, às vezes decisiva, de outros fatores sociais, políticos, ideológicos e outros. Isso começa a ser explicitado pela pesquisa historiográfica recente, dentro de um interessante projeto de pesquisa histórica sobre as ciências na França nos séculos XVIII e XIX: por exemplo, o caso descrito por Maurice Crosland em "Society of Arcueil" sobre a profissionalização das ciências 16 e a "Kulturpolitik" de Napoleão, ou de Robert Fox sobre a ascensão e queda da física laplaciana, ou sobre o papel da política na revolução fresneliana, estudado por nós, 17 ou ainda em outros exemplos, como o magnífico trabalho de Joseph Needham sobre a ciência chinesa 18 e sua determinação pelas grandes burocracias. Sem que, por hipótese, deixem de ser os aspectos econômicos da estrutura social os que em última instância determinem o progresso em seu conjunto. 21

Por outro lado, a teoria da história das ciências se desenvolveu de maneira muito importante, abrindo novas perspectivas para essa disciplina. Nos últimos vinte anos a obra de Kuhn despertou polêmicas acesas, e apesar de suas limitações, apontadas por tantos críticos, constituiu um passo importante por suas tentativas de superar o dilema internalismo ou externalismo. Posteriormente, Lakatos e Feyerabend contribuíram com a perspectiva do pluralismo teórico frente à do ''paradigma". Agora se coloca de maneira muito clara a necessidade de uma nova história das ciências que, reconhecendo a autonomia relativa das ciências, tenha igualmente interesse pelos condicionantes externos, da prática social, de um ponto de vista que implique a noção de fusão, unidade ou componente único da atividade científica. Canguilhem, Wartofsky, mas também Mikulinsky ou Desanti, têm insistido nesse ponto. Assim, a história das ciências tem-se colocado não apenas novos enfoques para si, mas, ao mesmo tempo, para a sócio-política e a epistemologia das ciências. Finalmente, a epistemologia, a partir de diversas concepções filosóficas, tem seguido ess~s preocupações em seu próprio seio. Na realidade, e por mais de uma razão, é difícil separá-la dos trabalhos que antes mencionamos. Não só, por exemplo, a dinâmica do conhecimento científico, sua historicidade, passou a ser , ssunto da maior parte da literatura recente em epistemologia mas, sei 1 temor de exagero, converteu-se no tema central da pesquisa. A epistemologia que "recebemos" é atualmente um conjunto de disciplinas. Sem pretender esgotar o assunto, podemos assinalar as seguintes preocupações: a) A tradição: teorias gerais do conhecimento (Platão, Aristóteles, Descartes, Kant, etc.) b) O método científico: teorias normativas (Whewell, Duhem, Carnap, Popper, etc.) c) Sociologia do conhecimento: atividades sociais ligadas a outras atividades sociais em um contexto histórico (Marx, Mannheim, Weber, Lévy-Brull, etc.) d) Sociologia da Ciência: aplicação do anterior, mas aquilo que possa ser "mensurável" (Merton, Price, Ben-David, etc.) e) História das Ciências: ver acima. f) Psicologia das Ciências: busca de perfis psicológicos particulares ou epistemológicos (Simon, Kedrov, Piaget, etc.) g) Etnologia da população científica: "ritos de passagem" do investigador, processo de "deificação": Mestre-Doutor-Professor Acadêmico-Prêmio Nobel. Pouco desenvolvida (Schatzman, "Autocritique de la science"). Na realidade, trata-se de uma imbricação de temáticas que vêm assim a reconhecer que a ciência é um complexo onde às questões epis-

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temológicas aparecem conjuntamente com outras de caráter social e histórico. Isso não impede que essas disciplinas possuam uma problemática própria; por assim dizer, têm como pressuposto sua natureza epistemológica, histórica e social. Dessa perspectiva podemos ver o temário que estamos recebendo para essa década: uma nova colocação epistemológica da história das ciências e da sócio-política das ciências, que conduza à elaboração dos conceitos necessários para compreender a problemática epistemológica, histórica e sócio-política das ciências, tudo sendo, por sua vez, um resultado da própria transformação que sofreram essas disciplinas no novo contexto histórico das ciências e, claro, da própria atividade teórica dessas. Estamos assim corroborando um dos princípios explicativos dessa visão, a saber, que o desenvolvimento da atividade teórica, ainda que relativamente autônomo, está constrangido pelas mutações da prática social (aí incluídas as ciências) tomada em seu conjunto. 3. Sobre a relação história das ciências-epistemologia, conviria indagarse quanto a ser a história das ciências apenas uma história das verdades científicas. O processo de uma revolução científica, por exemplo, é algo complexo e compreende tanto conservação quanto inovação. Vista "apres coup" uma revolução científica comporta dois estágios, um de crítica e avaliação e outro de construção. E, efetivamente, a história das ciências não pode separar esses dois momentos de um processo que é único. O historiador não deve interpretar mal (por ter um enfoque retrospectivo) as ciências só como resultados (verdades). Uma teoria científica contém sempre muito mais que uma teoria logicamente formulada: ideologia, filosofia, etc. Elementos que formam parte também das teorias científicas (sem que por isso a ciência se torne pura ideologia, etc.). No processo histórico das ciências assistimos a uma depuração contínua até alcançar em cada ocasião representações cada vez mais objetivas. Assim, nessas condições, a história das ciências é a história dos processos de produção de conceitos cujas rupturas com as noções ideológicas (frente às quais, mas também a partir das quais) constituem suas próprias problemáticas. A história das ciências deve, conseqüentemente, dar a essas noções seu "peso epistemológico". Essa tarefas epistemológicas não são exclusivas e a história das ciências deve completar-se com as de ordem sócio-política, pois só em sua conjunção pode explicar-se o que aconteceu no caso, por exemplo, de uma revolução científica. Nesse sentido, e por serem pouco tratadas na literatura, as tarefas políticas dessa disciplina devem ser estudadas. No processo de conhecimento, a realidade externa ao sujeito marca o caráter mesmo do processo cognitivo, e um dos aspectos mais importantes destas é a prática social. Assim, uma ciência não pode nem constituir-se nem desenvolver-se a não ser na medida em que venha 23

permitir a satisfação de necessidades reais de uma prática social determinada. Mas a possibilidade técnica (a existência de um nível determinado de conhecimento) e a decisão social (que dá preferência a uma prática social e não a outra) estão determinadas pelo modo de produção e pelo estado da luta de classes (a política). Sem o "vetor" político, a ciência não se desenvolve. Isso é particularmente certo no caso das revoluções científicas, pois elas estão vinculadas ao desenvolvimento das novas forças produtivas. De fato, desde a Revolução Industrial, as ciências passaram a ser uma delas. Assim, pois, são fatores políticos os que determinam a direção que segue o processo científico e tecnológico. Mas a política intervém também em outros níveis. Primeiro, como ideologia na ciência. Carecemos de espaço para desenvolver esse ponto, mas pode-se pensar na ideologização que sofreu a física newtoniana durante o século XVIII e parte do XIX, sobre a qual Dijksterhuis disse: "With the appearance of the Newton's Principia ( ... ) natural scientists had been furnished with an aim which they were to pursue for two centuries as the only conceivable one." 19 As revoluções científicas se jogam em grande medida no campo da ideologia científica - que Canguilhem estudou - pela destruição dos elementos ideológicos da antiga teoria e sua substituição parcial por uma ideologia reestruturada. 20 Assim, por exemplo, no caso da introdução da óptica ondulatória por Fresnel, a oposição de Fresnel (e de Arago e outros partidários) ao ponto de vista dos emissionistas (partidários da teoria corpuscular na óptica) não podia ser, a princípio, mais que meramente ideológica. Fundava-se na analogia, tantas vezes afirmada na história da óptica, entre som e luz. Mas o mero reconhecimento do caráter ondulatório dos fenômenos não bastava. Newton, por exemplo, não cria nele, porque segundo suas observações (que foram criticadas por sua "falta" de imparcialidade), e diferentemente do som, a luz não contornava os obstáculos. Thomas Young (em 1801), ao contrário, acreditava, porque as ondas luminosas interferiam. Fresnel, por conselho de Arago, estudou as sombras (difractivas) e encontrou as trajetórias hiperbólicas que Newton não tinha podido observar. Suas experiências confirmaram o fato que já havia sido observado por Grimaldi (Phisicomathesis de Lumine, Bolonha, 1665). Quando em 1815 Fresnel procedeu à teorização do caráter ondulatório dos fenômenos luminosos, retoma a analogia do som: um movimento vibratório de ondas longitudinais. E poderia dizer-se que era natural que assim pensasse, pois toda uma tradição o sugeria. Entretanto, o fato de ter obtido provas experimentais sobre a ausência de propagação retilínea da luz nos fenômenos de difração havia também despertado grande inquietação entre os emissionistas (a ponto de se convocar um concurso sobre a difração 24

na Académie des Sciences, em 1817) e um grande entusiasmo entre Fresnel e seu partidários. Mas, então, os nossos conceitos não estavam mais que parcialmente definidos com relação aos problemas a resolver na teoria dominante. Apenas se encontravam certas incoerências no campo conceituai e experimental da teoria corpuscular, mas longe de derrubá-la. Sobretudo durante os anos em que consciente ou inconscientemente Fresnel continuava afirmando a analogia com o som. A destruição dos elementos ideológicos do ponto de vista corpuscular não pôde ser obtida até que noções ondulatórias foram reestruturadas (1821) por um movimento "de retour": a admissão de oscilações transversais nas ondas luminosas. Sem essa redefinição Fresnel havia levado a certas "suppositions compliquées et peu vraisemblables" 21 para conciliar seus descobrimentos experimentais. Assim, pois, a uma ideologia científica havia se oposto uma outra ideologia científica. Ao ponto de vista que considerava que na natureza só havia partículas submetidas à ação de forças, opunha-se a analogia simplista entre som e luz. A atividade de Fresnel (e de seus partidários) respondia (objetivamente) ao autoritarismo teórico e político (da "escola" de física laplaciana) na conjuntura da segunda restauração na França. A derrota político-militar do Império implicou a perda da sustentação de Laplace e um meio propício a Fresnel para fazer avançar suas idéias. A reação que provocaram no "partido" laplaciano correspondeu à formação do "partido" antilaplaciano na física e na política. 22 Por que um descobrimento experimental - num momento histórico preciso envolto em teorizações inconseqüentes - pode, entretanto, oferecer as armas para várias batalhas com o propósito de des• truir uma ideologia científica e as proposições políticas de seus adversários? Chegamos, assim, a outro nível em que a política intervém igualmente: o da exploração dos resultados da ciência pelos cientistas. Existem o que se pode chamar de "escolas" científicas - grupos possuindo pontos de vista teóricos diferentes que lutam durante um certo tempo quando há uma mudança científica. Esses grupos se identificam na história das ciências com etiquetas de "escolásticos", "peripatéticos", "copernicanos", "galileanos", "cartesianos", "newtonianos", "laplacianos", "fresnelianos" etc. São grupos que formam parte das comunidades científicas e no interior das quais defendem seus interesses "científicos" enquanto cientistas. Nesses "interesses" encontramos certamente a luta de classes e uma política especificamente "científica". Falaremos aqui dessa última enquanto fator atuante nas revoluções científicas. Existem diversos valores associados ao trabalho dos cientistas e que se manifestam tanto ao nível individual como de grupo, ainda que o primeiro tenha sempre uma incidência sobre o segundo. Valores como prestígio, prioridade no descobrimento, qualidade da produção 25

ou influência sobre a pesquisa (através do estabelecimento de um ponto de vista que acumula êxitos), o controle sobre instituições de pesquisas, de ensino, sobre periódicos científicos, academias e associações científicas ou, também, os benefícios de ordem financeira, as honras, recompensas, o apoio das classes dirigentes e em geral todo tipo de ambições vinculadas à atividade "científica". Nosso ponto de vista é que os grupos que lutam pela obtenção desses valores associados ao trabalho científico representam no seio da comunidade científica a luta de classes, a política. Na história das ciências encontramos diferentes "escolas" substituindo, na cena científica, os partidos políticos em luta. Isso quando não há, em regimes políticos sem uma vida política aberta, substituição da cena política pela cena científica. Esses interesses "científicos" exercem um papel particular quando se introduz uma nova teoria que, por definição, vem substituir aquela levada por outro grupo à posição de teoria oficial. "Oficial" aqui deve ser entendido em duplo sentido: no de teoria no "turno", normalmente aceita, e no sentido de uma teoria que recebe o apoio (algumas vezes mediante o desprezo voluntário de uma teoria rival) do grupo dirigente na comunidade científica. De fato, os partidários da nova teoria e seu autor estão obdgados a desenhar uma estratégia para baterse, como grupo dissidente, por seus "interesses científicos". A partir desse momento abre-se uma luta pelo poder onde as armas a utilizar são proporcionadas pelas teorias. Na verdade, não haveria progresso científico sem esse debate, pois é ele que traz as motivações mais profundas. Cada "escola" sente a necessidade de lograr êxitos teóricos e experimentais que venham justificar suas ambições de predominância e, por conseqüência, os privilégios que lhe estão associados. De fato, toda uma forma de verificação da teoria é posta em prática por esses confrontos com a ordem teórica estabelecida. 23 Esses confrontos fazem parte tanto do ponto de vista do grupo dirigente que quer negar toda mudança (pela asserção segundo a qual ''nada de substancialmente novo sucedeu" ou outra similar) como dos esforços para introduzir a nova teoria. Nessa direção podemos colocar os "Diálogos entre os dois sistemas do mundo", de Galileu, a correspondência ClarkLeibniz, as "Queries" da Optiks de Newton, os debates entre Fresnel e Biot e muitas outras querelas célebres na história da ciência. Inversamente, o trabalho do cientista isolado que não recebe o apoio de uma "escola", explorando-o mas também dando-lhe os meios e um marco para a confrontação, não conseguirá romper o circuito fechado de sua própria especulação. O exemplo de Thomas Young no princípio do século xrx é muito ilustrativo. Uma idéia correta não basta, é necessário igualmente demonstrar sua veracidade em um meio socializado e politizado, possuindo os meios para lográ-lo. Fresnel, ao contrário, em outro momento e outro meio, conseguiu sucesso, graças

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à sustentação ativa (militante) de Arago e de um grupo de cientistas

movidos por um interesse tanto científico como político: eram republicanos, bonapartistas que se recusaram a transformar-se em napoleônicos e que, com a queda do Primeiro Império, não titubearam em fazer aliança com os realistas. Sua meta era a transformação da ciência napoleônica com seu autoritarismo teórico e político. Conseguiramno até 1822, na mesma época em que a teoria ondulatória tomava o lugar dominante que sua rival ocupara dez anos antes. 24

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NOTAS

(1) N .1. Bukharin et ai. Science at the Crossroads: Papers presented to the International Congress of the History of Science and Technology held in London from June· 29 to July 3, 1931, by the delegates of the USSR, London-Kniga. Existe uma segunda edição publicada em Londres, Frank Cass, 1971. (2) Science in History, 4v., Harmondsworth, Penguin Books 1969 (!~ ed., Londres, C.A. Watts, 1954). Para uma consideração sobre a relevância da obra de Berna!, v. "Marxism and the History of Science" de Jerome Ravetz e Richard S. Westfall, em ISIS, Journal of the History of Science Society, vol, 72, n? 263, set. 1981. (3) La valeur inductive de la relativité, Paris, Vris, 1929; Le Nouvel Esprit Scientifique, Paris, PUF, 1934. · (4) L 'activité rationaliste de la physique contemporaine, Paris, Union Génerales d'Éditions, 1977, p.34-35. (5) "Pour comprendre !e sens de la mécanique ondulatoire ... il convient de parcourir un long préambule historique." lbid., p.32, igualmente em "L'actualité de l'histoire des sciences", conference au Palais de la Découverte, 20 de out. de 1951. · (6) lbid., p.50-51. Sendo, para Bachelard, o processo de matematização que constitui o aspecto contínuo e o núcleo da história das ciências. (7) Declaração-programa exposta na revista Erkentniss, órgão do grupo Ernst Mach; Otto Neurath, "Sociología en fisicalismo", in E/ positivismo lógico, compilado por A.J. Ayer, México, F.C.E., 1965, p.287. (8) lbid. v. o artigo de R. Carnap, p.66. (9) The Rise of Scientific Philosophy, University of California, 1958, p.231. (10) The Logic of Scientific Discovery, Londres, Hutchinson, 1975, p. 19. (li) "My point of view is, briefly, that our ordinary language is full of theories; that observation is always observation in the light of theories; that is only the inductivist prejudice which leads people to think that there could be a phenomenal language, free of theories and distinguishable from a 'theoretical language'." lbid., p.59. N .R. Hanson, Patterns of Discovery, Cambridge Univ. Press, 1958, insistiria nesse caráter "theory-laden" dos data e na inexistência de uma linguagem observacional. (12) V. Peter Achinstein e Stephen F. Barker, The Legacy of Logica/ Positivism: Studies in the Philosophy of Science, Baltimore, John Hopkins Press, 1969. (13) Alexandre Koyré, "Perspectives sur l'histoire des sciences", in Études d'histoire de la pensée scientijique, Paris, Éditions Gallimard, 1973, p.398-399. (14) The Structure of Scientific Revolutions, Univ. of Chicago Press, 1970, p.V. (15) A expressão é de Perry Anderson, Consideraciones sobre e/ marxismo ocidental, Madri, Siglo XXI, 1979, p.95-116. (16) The Society of Arcueil, Londres, Heinemann, 1967. (17) "The Rise and Fali of Laplacian Physics", Historical Studies in the Physica/ Sciences, IV, 1974, p.89-136. Cf. nossa tese doutoral sobre "L'introduction des conceptions ondulatoires dans l'optique du début du XIX' siecle", Paris, 1980 (Sorbonne, I 6644-4.) (18) La science chinoise et l'occident, Paris, Points, 1969. (19) Mechanization ofthe World Picture, Oxford, 1961, p.495. Uma descrição da natureza que utiliza os conceitos da mecânica newtoniana, a física dos imponderáveis, de substâncias ativas e do éter era uma especulação estabelecida a partir da existência de forças na matéria, atrativas ou repulsivas. O newtonismo foi uma ideologia de cientistas. Foi o caso de uma teoria cujo campo de aplicação se estendeu além de uma "região" precisa do conhecimento com o abandono de toda aplicação real e da perda do poder preditivo. Chegou a uma autonomia absoluta que fez dela uma

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teoria boa para tudo (eletricidade, magnetismo, química, calor, óptica) até converter-se em uma representação tão alheia aos verdadeiros conceitos da mecãnica e sua fundamentação quanto não correspondia a prática científica alguma. Com Laplace, jogará um papel ideológico-científico, expressão de seus compromissos políticos. Idéologie et Rationalité dans l'histoire des sciences de la vie, Paris, Vrin, 1977. Este conceito opera no duplo sentido, de obstáculo e de condição de possibilidade para a ciência que surgem de (com) sua ruptura, pois a ideologia científica tem em vista uma ciência e quer imitar desta o estilo. "Premier mémoir sur la double réfraction", apresentada à Academia em 19 de novembro de 1821, in Oeuvres d'Augustin Fresnel, Senarmont-Verdet-Fresnel, 3 vols., Paris, 1866-1870, p.276. Que reunia os republicanos que se haviam recusado a converter-se em napoleônicos. Cientistas egressos da Escola Politécnica que, ainda estudantes, negaram-se a assinar um texto de apoio à proclamação do imperador. No processo de verificação, a prática (experimental e social) intervém em vários níveis, pois na pesquisa fundamental, aplicada ou tecnológica, há ao menos as seguintes funções: a) sua própria validação por experiência; b) o emprego de instrumentos "socialmente" elaborados (Bachelard); c) a comunicação de resultados a outros especialistas; d) a estratégia adotada pelo cientista (e seus partidários) para vencer a resistência à novidade e fazer valer os seus interesses e de sua escola. Algumas das considerações que acabamos de fazer se aplicam melhor a uma comunidade científica profissionalizada como a da França no início do século XIX. Deveriam ser pesquisados aqui, além dos efeitos, a causa dessa profissionalização.

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4. As raízes sócio-econômicas dos Principia de Newton BORIS HESSEN*

1. Introdução: A teoria de Marx sobre o processo histórico O trabalho de Newton e sua personalidade têm atraído a atenção de cientistas de todas as épocas e nações. A extensão de suas descobertas científicas, o significado de seu trabalho para todos os desenvolvimentos posteriores da física e da tecnologia, a exatidão notável de suas leis, despertam o justificado respeito por seu gênio. O que colocou Newton no momento de transição do desenvolvimento da ciência e lhe permitiu indicar os novos caminhos deste movimento progressivo? Onde devemos procurar a fonte do gênio criativo de Newton? Que fatores determinaram o conteúdo e a direção de suas atividades? Estas são as perguntas que inevitavelmente confrontam o pesquisador que se propõe a penetrar na própria essência de seu trabalho criativo, sem se limitar à simples compilação de material acerca de Newton. "A natureza e suas leis estavam ocultas na noite. Deus disse: 'Faça-se Newton!' e tudo se tornou luz." Assim escreveu Pope, em seus conhecidos versos. "A nossa cultura" - declara o professor Whitehead, famoso matemático inglês, em seu recente livro, Ciência e civilização - ''deve seu desenvolvimento ao fato de Newton ter nascido no mesmo ano em que morreu Galileu. Imaginem só o que teria sido a história do desenvolvimento da humanidade caso estes dois homens não tivessem existido." F. S. Marvin, o conhecido historiador inglês da ciência e membro da presidência deste Congresso Internacional, expressa também esta opinião em seu artigo "O significado do século xvn", publicado há poucos meses na revista Nature. O fenômeno Newton, como se vê, é considerado um dom da providência divina e o enorme impulso que seu trabalho deu para o desenvolvimento da ciência e da técnica é interpretado como resultado de seu gênio pessoal. (*) Informe apresentado ao II Congresso Internacional de História da Ciência e da Tecnologia - Londres 1931. Tradução de Sylvia Ficher e Ruy Gama.

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No presente texto apresentamos uma concepção radicalmente diferente de Newton e de seu trabalho. Nossa tarefa consistirá na aplicação do método do materialismo dialético e da concepção do processo histórico criado por Marx para analisar a gênese e o desenvolvimento da obra de Newton, em relação com o período em que viveu e trabalhou. Inicialmente, damos uma breve exposição daqueles postulados básicos de Marx que orientaram nosso informe. Marx expôs sua concepção do processo histórico no prefácio da Crítica da economia política e na Ideologia alemã. Tentaremos dar a essência de suas idéias tanto quanto possível em suas próprias palavras. A sociedade existe e se desenvolve como um todo orgânico. Para garantir aquela existência e desenvolvimento, a sociedade precisa desenvolver a produção. Na produção social, as pessoas entram em determinadas inter-relações, as quais são independentes de sua própria vontade. A cada estágio dado, estas relações correspondem ao desenvolvimento das forças produtivas materiais. A somatória c'.estas forças produtivas forma a estrutura econômica, a base real sobre a qual são erigidas as superestruturas jurídicas e políticas. A esta base correspondem também formas determinadas da consciência social. "O modo de produção da existência material condiciona o processo social, político e intelectual da vida em sociedade." Não é a consciência dos seres humanos que determina sua existência mas, pelo contrário, a sua existência social é que determina a sua consciência. Em um dado nível de seu desenvolvimento, as forças produtivas materiais da sociedade entram em antagonismo com as relações de produção existentes ou com as relações de propriedade dentro das quais haviam até então se desenvolvido (o que é apenas a expressão jurídica da mesma coisa). De formas específicas das forças produtivas, estas relações se transformam em obstáculos ao desenvolvimento destas forças. Segue-se, então, um período de revoluções sociais. Com a mudança das bases, ocorre também uma transformação em toda a enorme superestrutura da sociedade. A consciência dominante nesses períodos deve ser explicada a partir dos antagonismos da vida material, e dos conflitos existentes entre as forças produtivas e as relações de produção. Lênin observa que esta concepção da interpretação materialista da história elimina dois defeitos principais das teorias anteriores da história, as quais consideravam apenas as idéias como únicos motivos da atividade histórica dos homens. Por esta razão, não podiam ser reveladas as verdadeiras raízes destes motivos. E a história era, assim, justificada pelos impulsos intelectuais isolados. Desta forma, ficava fechado o caminho para qualquer conhecimento das leis objetivas do pro31

cesso histórico. "As opiniões governavam o mundo." O curso da história dependia de talentos e dos impulsos pessoais dos homens. A personalidade criava a história. Um exemplo típico desta compreensão limitada do processo histórico está na opinião acima citada do professor Whitehead a respeito de Newton. O segundo defeito que a teoria de Marx elimina é a concepção de que o sujeito da história não é a massa da população mas as personalidades de gênio. O representante mais destacado desta tendência é Carlyle, para quem a história era a história dos grande homens. As realizações da história, segundo Carlyle, são apenas o resultado dos pensamentos de grandes homens. O gênio dos heróis não é o produto de condições materiais, mas, pelo contrário, a força criadora do gênio transforma aquelas condições, sem precisar de nenhum fator material extrínseco. Em contraposição a este enfoque, Marx examina o movimento das massas fazendo a história e estuda as condições sociais de sua vida e as modificações nestas condições. O marxismo, como enfatiza Lênin, mostrou o caminho para um estudo abrangente do processo de surgimento, desenvolvimento e declínio dos sistemas sociais. Este processo é explicado levando-se em consideração o conjunto de tendências contraditórias, reduzindo-as às condições exatamente determinadas da existência e da produção das diferentes classes. O marxismo elimina o subjetivismo e a arbitrariedade na seleção das várias idéias "dominantes" ou na sua interpretação, atribuindo as raízes de todas as idéias, sem exceção, às condições das forças produtivas materiais. Na sociedade de classes, a classe dominante submete as forças produtivas a si mesma e, através de sua dominação das forças produtivas materiais, submete todas as outras classes a seus próprios interesses.' As idéias da classe dominante em cada período histórico são as idéias dominantes, e a classe dominante distingue suas idéias de toda as idéias anteriores, apresentando-as como verdades eternas. Esta classe deseja reinar eternamente e a (suposta) eternidade de suas idéias serve para fundamentar a inviolabilidade de sua dominação. Na sociedade capitalista, as idéias dominantes parecem separadas das relações de produção, dando a impressão de que a estrutura material é determinada pelas idéias. A prática não tem que ser explicada a partir das idéias, mas, pelo contrário, é a formação das idéias que tem que ser explicada a partir da prática material. Apenas o proletariado, que tem como objetivo a criação de uma sociedade sem classes, é livre de limitações em sua concepção do processo histórico e cria uma história verdadeira e genuína da natureza e da sociedade. 32

O período em que a atividade de Newton alcança seu auge coincide com a época da guerra civil inglesa e do Reino Unido. A análise marxista da atividade de Newton, feita a partir dos pressupostos expostos, consistirá, antes de mais nada, na compreensão de Newton, de sua obra e de sua visão de mundo como produtos desta época. 2. A economia, a física e a técnica na época de Newton

A característica geral daquela parcela da história universal que veio a ser conhecida como história medieval e moderna é, mais que qualquer outra, o predomínio, naquele período, da propriedade privada. Todas as formações sócio-econômicas desse período conservam este sintoma fundamental. É por este motivo que Marx considerava este período da humanidade como a história do desenvolvimento das formas de propriedade privada, na qual distingue três etapas. A primeira et:ipa é aquela do predomínio do feudalismo. A segunda começa com a desintegração do sistema feudal e se caracteriza pelo surgimento e desenvolvimento do capital mercantil e da manufatura. A terceira etapa da história do desenvolvimento da propriedade privada é a da dominação do capitalismo industrial; com ela surge a indústria em larga escala, a aplicação das forças da natureza para fins industriais, a mecanização e uma divisão do trabalho mais detalhada. Os resultados brilhantes das ciências naturais nos séculos XVI e XVII foram determinados pela desintegração da economia feudal, pelo desenvolvimento do capital mercantil, das relações marítimas internacionais e da indústria pesada (mineração). Nos primeiros séculos da Idade Média, 2 a economia, não apenas feudal, mas também - em grande medida - a urbana, estava baseada no consumo individual. A produção para fins de troca estava apenas surgindo. Daí a natureza limitada das trocas e do mercado, as formas de produção estáticas e estanques, o isolamento de cada localidade do mundo exterior, as relações puramente locais entre os produtores: a propriedade feudal e a comuna no campo, as corporações nas cidades. Nas cidades, o capital era em espécie, vinculado de modo imediato ao trabalho do proprietário e inseparável dele; era um capital corporativo. Nas cidades medievais não havia uma divisão de trabalho entre as diferentes oficinas e tampouco em cada oficina, entre os diferentes trabalhadores. A insignificância das trocas, a reduzida população e o consumo limitado impediam qualquer expansão da divisão do trabalho. O passo seguinte na esfera da divisão do trabalho foi a separação entre a produção e as formas de comércio e a formação de uma classe especial de comerciantes. Os laços de comércio são ampliados, as cida33

des passam a ter relações entre si. Surge a necessidade de estradas seguras e a demanda de boas vias de comunicação e de meios de transporte. As relações então em desenvolvimento entre as cidades leva à distribuição da produção entre elas, cada uma desenvolve uma esfera própria da produção, que a caracteriza. Deste modo, a desintegração da economia feudal levou ao segundo período da história do desenvolvimento da propriedade privada, ao predomínio do capital mercantil e da manufatura. O surgimento da manufatura foi conseqüência imediata da divisão de trabalho entre diferentes cidades. Com a manufatura, as relações entre o trabalhador e seu empregador foram modificadas. Aparecem as relações monetárias entre o capitalista e o trabalhador; por fim, foram dissolvidas as relações patriarcais entre mestre e aprendizes. O comércio e a manufatura criaram a grande burguesia. A pequena burguesia estava concentrada nas corporações e foi obrigada, nas cidades, a ceder sua hegemonia aos comerciantes e aos manufaturadores. Este período data de meados do século xvn e continua até fins do XVIII. Tal foi, de maneira esquemática, o processo de transição do feudalismo para o capital mercantil e a manufatura. A atividade de Newton se inclui neste segundo período da história do desenvolvimento da propriedade privada. Por isso, investigaremos, antes e mais detalhadamente, as exigências históricas impostas pelo aparecimento e desenvolvimento do capital mercantil. Em seguida, consideraremos quais os problemas técnicos que a economia então em desenvolvimento colocava e examinaremos a que conjunto de problemas físicos e conhecimentos científicos necessários para sua solução estes problemas técnicos conduziram. Faremos o exame de três esferas de importância decisiva para o sistema social e econômico que estamos investigando: as vias e os meios de comunicação, a indústria e a atividade militar.

Vias de comunicação O comércio havia alcançado um desenvolvimento considerável, já no início da Idade Média. No entanto, as vias terrestres de comunicação estavam em condições lastimáveis. As estradas eram tão estreitas que dois cavalos não podiam passar ao mesmo tempo. O caminho ideal seria aquele no qual três cavalos pudessem passar lado a lado, onde - na expressão da época (século xrv) - "a noiva pudesse transitar sem tropeçar em um carro funerário". As mercadorias eram geralmente transportadas em fardo. A construção de estradas era praticamente inexistente. A natureza localmente limitada da economia feudal não impulsionou o desenvolvimento 34

da construção de estradas. Pelo contrário, tanto os senhores feudais quanto os habitantes dos lugares pelos quais passava o transporte comercial estavam interessados na manutenção das más condições das estradas, uma vez que tinham o direito de propriedade sobre qualquer coisa que caísse das carroças ou dos fardos em suas terras.3 A velocidade do transporte terrestre no século XIV não excedia cinco a sete milhas por dia. Naturalmente, o transporte marítimo e fluvial desempenhava um papel importante, devido à grande capacidade de carga das embarcações e sua maior velocidade: uma carroça de grandes dimensões, com duas rodas e puxada por dez a doze bois, dificilmente carregaria duas toneladas de mercadorias, ao passo que uma embarcação de tamanho médio poderia ter uma carga superior a 600 toneladas. Mesmo no século XIV, a viagem de Constantinopla a Veneza levava três vezes .mais tempo por terra do que por mar. Entretanto, o transporte marítimo neste período também era muito imperfeito: como ainda não haviam sido inventados métodos seguros de estabelecer a posição dos navios em mar aberto, a navegação era feita próxima do litoral, diminuindo grandemente a velocidade das embarcações. Ainda que a primeira menção à bússola, no livro árabe O tesouro dos mercadores, corresponda ao ano de 1242, este instrumento não veio a ter uso generalizado antes da segunda metade do século XVI; as cartas náuticas fizeram sua aparição mais ou menos nesta época. 4 Mas a bússola e os mapas só podem ser utilizados racionalmente quando existe o conhecimento dos métodos para estabelecer a posição dos navios, isto é, quando a latitude e a longitude podem ser determinadas. O desenvolvimento do capital mercantil rompeu o isolamento da cidade e da comuna, expandiu extraordinariamente o horizonte geográfico e acelerou consideravelmente o ritmo da existência. Exigia vias convenientes de comunicação, melhores meios de transporte, uma determinação mais exata do tempo, em especial devido à aceleração contínua das trocas, e à aplicação de procedimentos mais rigorosos de contabilidade e de medição. Atenção especial era dedicada ao transporte marítimo como meio de ligação entre diferentes países e ao transporte fluvial como vínculo interno dentro do país. O desenvolvimento do transporte fluvial foi também auxiliado pelo fato de, desde a antigüidade, os caminhos fluviais serem os mais convenientes e mais estudados, e o crescimento natural das cidades estava vinculado ao sistema de comunicações fluviais. O transporte de carga por rios era três vezes mais barato do que o transporte por terra. A construção de canais também se desenvolveu como um meio adicional de transporte interno e para unir o transporte marítimo ao sistema fluvial interior.

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Desta maneira, o desenvolvimento do capital mercantil enfrentou o transporte fluvial com os seguintes problemas técnicos para o transporte.

Na esfera do transporte por água: 1. aumento da capacidade dé carga e da velocidade dos navios; 2. melhoria das qualidades náuticas dos barcos e sua segurança, firmeza em mar aberto, menor tendência a oscilar, jogar, facilidade de direção e de manobra, que eram características especialmente importantes em navios de guerra; 3. meios convenientes e seguros de determinar a posição em alto mar, a latitude e a longitude, a declinação e as variações das marés; 4. o aperfeiçoamento do sistema fluvial interior e suas ligações com o mar; a construção de canais e eclusas. Vejamos que premissas físicas são necessárias para a resolução destes problemas técnicos: 1. para aumentar a capacidade de carga de um navio é necessário conhecer as leis fundamentais que governam a flutuação dos corpos em um líquido, uma vez que para calcular a capacidade de carga é preciso conhecer o método de cálculo do deslocamento de água pela embarcação - estes são problemas de hidrostática; 2. para melhorar as qualidades de flutuação de uma embarcação é necessário conhecer as leis que governam o movimento dos corpos nos líquidos - este é um caso particular das leis que governam o movimento de corpos em meio resistente - uma das tarefas principais da hidrodinâmica (o problema da estabilidade de uma embarcação que oscila, balança, é uma das tarefas básicas da mecânica dos pontos materiais); 3. o problema da determinação da latitude consiste na observação dos corpos celestes e sua solução depende da existência de instrumentos ópticos e de um conhecimento do mapa dos corpos e de seu movimento - ou seja, é uma questão de mecânica celeste. A maneira mais conveniente e simples de resolver o problema da longitude é a utilização de um cronômetro. Mas, como o cronômetro só foi inventado nos anos 30 do século XVIII, após o trabalho de Huygens,5 para determinar a longitude recorria-se à medida da distância entre a Lua e as estrelas fixas. Este método, desenvolvido em 1498 por Américo Vespuccio, exige um conhecimento exato das anomalias do movimento da Lua e constitui uma tarefa das mais complexas de mecânica celeste. 36

A determinação do ciclo das marés, em relação à localidade e à posição da Lua, exige um conhecimento da teoria da atração, a qual é também uma tarefa da mecânica. A importância desta tarefa fica evidente pelo fato de que, muito antes de Newton propor sua teoria geral das marés com base na teoria da gravitação, Stevin, em 1590, calculou tabelas nas quais dava o tempo das marés altas em qualquer localidade, em função da posição da Lua. 4. A construção de canais e eclusas exige o conhecimento das leis fundamentais da hidrostática - as leis que governam o fluxo dos líquidos - uma vez que é necessário saber como calcular a pressão da água e a velocidade de seu fluxo. Em 1598, Stevin se ocupou com o problema da pressão da água e observou que a água pode exercer, no fundo de uma embarcação, uma pressão superior a seu peso; em 1462, Castelli publicou um tratado especial sobre o movimento da água em canais de seções diferentes. Em 1646, Torricelli estava trabalhando na teoria do fluxo de líquidos. Como vemos, os problemas da construção de canais e eclusas também conduzem às tarefas da mecânica (hidrostática e hidrodinâmica).

A indústria Já em fins da Idade Média (séculos XIV e xv) a indústria de mineração estava se desenvolvendo em direção à grande indústria. A extração de ouro e prata, vinculada ao incremento da circulação do dinheiro, foi estimulada pelo crescimento do comércio. A descoberta da América deve-se principalmente à sede de ouro, 6 uma vez que a indústria européia - que tinha se desenvolvido intensamente durante os séculos XIV e xv - e o comércio europeu correspondente necessitariam suprimentos maiores de meios de trocas; por outro lado, a demanda de ouro exigiu uma atenção especial para a exploração das minas e outras fontes de ouro e prata. O poderoso desenvolvimento da indústria da guerra, que avançara enormemente com a invenção das armas de fogo e a introdução da artilharia pesada, estimulou a exploração extensiva de minas de ferro e de cobre. Por volta de 1350 as armas de fogo são comuns nos exércitos dos países da Europa oriental, central e do sul. No século xv, a artilharia pesada havia alcançado um alto nível de aperfeiçoamento. Nos séculos XVI e xvn, a indústria militar faria grandes demandas à indústria metalúrgica. Apenas nos meses de março e abril de 1652, Cromwell encomendou 335 canhões, e em dezembro, mais 1.500 armas leves, num total de 2.230 toneladas, afora 117 .000 projéteis e 5.000 bombas de mão. Compreende-se, assim, por que o problema da exploração mais efetiva das minas e jazidas se tornou uma questão de fundamental im37

portância. Antes de mais nada, surge o problema colocado pela extração em profundidade do minério. Quanto mais profundas as minas, maior a dificuldade e o perigo de sua exploração. Tornam-se necessários inúmeros equipamentos para o bombeamento da água, a ventilação das galerias e envio do minério para a superfície. Mais ainda, é preciso saber como escavar as galerias com segurança e como se orientar dentro delas. No começo do século XVI a mineração havia alcançado um desenvolvimento considerável. Agrícola havia deixado uma enciclopédia detalhada sobre a mineração, que permite avaliar a extensão do equipamento técnico utilizado nessa atividade. Para elevar o minério e água, eram construídos bombas e equipamentos de elevação (sarilhos e molinetes horizontais) empregando a energia de animais, do vento e de quedas d'água. Para a ventilação, construíram-se tubos exaustores e ventiladores. Para remover a água, foi preciso desenvolver um sistema completo de bombeamento, uma das tarefas técnicas mais importantes, devido ao aumento da profundidade das minas. Em seu livro, Agrícola descreve três tipos de instrumento para a extração da água, sete tipos de bombas e seis tipos de equipamento para a retirada de água por meio de pás ou de baldes; no total, dezesseis tipos de máquina para a elevação da água. O desenvolvimento da mineração requer equipamentos enormes para a preparação do minério: neste campo, encontramos fornos para fundição e maquinaria para moagem e separação do minério. Já no século XVI, a indústria da mineração havia-se tornado um organismo complexo, que exigia conhecimentos consideráveis em sua organização. Por esta razão desenvolveu-se como uma indústria em larga escala, livre do sistema corporativo e, portanto, sem estar sujeita à estagnação do artesanato. Foi a indústria tecnicamente mais progressista e deu origem aos elementos mais revolucionários da classe trabalhadora durante a Idade Média, ou seja, os mineiros. A abertura de galerias exige um conhecimento considerável de geometria e trigonometria. Já no século xv, engenheiros com formação científica estavam trabalhando nas minas. Assim, o desenvolvimento do comércio e da indústria militar colocou para a indústria da mineração os seguintes problemas técnicos: 1. a elevação do minério de profundidades consideráveis para a superfície; 2. meios para a ventilação das minas; 3. o bombeamento e os equipamentos para a condução da água, o problema da bomba d'água; 4. a substituição da produção de ferro com o emprego de foles de ar úmido, predominante até o século xv, pelos altos fornos, colo38

ca o problema da insuflação de ar, à semelhança do que ocorre na ventilação por meio da exaustão e de insufladores de ar; 5. a preparação do minério com a ajuda de bateria de pilões acionados por veios de ressaltos e de trituradores. Consideremos os problemas de física presentes na base dessas tarefas técnicas: 1. a elevação do minério para a superfície e a maquinaria para isso utilizada são questões de cálculo de guinchos e pesos, isto é, de combinação de máquinas mecânicas simples; 2. o equipamento de ventilação exige o estudo de correntes de ar, isto é, uma questão de aerostática, a qual, por sua vez, é um caso particular da estática; 3. o bombeamento da água das minas e a construção de bombas, especialmente bombas de pistão, demandam investigações consideráveis no campo de hidra e aerostática; é por este motivo que Torricelli, Guericke e Pascal se ocuparam com o problema da elevação dos líquidos em tubos e o da pressão atmosférica; 4. a mudança para a produção de ferro em altos-fornos provoca de imediato o aparecimento de fornos de grandes dimensões e de edifícios especiais com instalação de rodas d'água, foles, máquinas de trituração e martelos pesados; a construção de rodas d'água coloca problemas de hidrostática e hidrodinâmica; os foles de ar, assim como no caso da ventilação forçada, exigem o estudo do movimento do ar e de sua compressão; 5. como no caso de outros equipamentos, a construção de bateria de pilões e martelos pesados, movidos pela força de quedas d'água (ou pela força animal) exige um projeto complexo de engrenagens e mecanismo de transmissão que também são, em sua essência, uma tarefa da mecânica; para a construção de moinhos, é preciso desenvolver a teoria do assunto e o cálculo matemático da transmissão por meio de rodas denteadas. Assim, deixando de lado as grandes exigências que a indústria da mineração e da metalurgia fizeram, neste período, à química, o conjunto das tarefas de física encontra-se dentro dos limites da mecânica. A guerra e a indústria militar A história da atividade militar - escreveram Marx e Engels em 1857 - nos permite mais claramente confirmar a veracidade de nossas opiniões sobre o vínculo entre as forças produtivas e as relações de produção. O exército é, em termos gerais, muito importante para o desenvolvimento econômico. Foi na tropa que surgiu inicialmente a organi39

zação dos artesãos em oficinas. Do mesmo modo, é nesse contexto, também, que encontramos pela primeira vez máquinas de grandes dimensões. Mesmo o valor especial dos metais e seu papel como dinheiro, quando começou o desenvolvimento do intercâmbio monetário, partira - tudo indica - de sua importância militar. Do mesmo modo, a divisão do trabalho, nas diferentes esferas da indústria, foi introduzida primeiramente no exército. Nele se encontra sintetizada toda a história das formas burguesas de produção. Desde o momento em que a pólvora, empregada na China ainda antes de nossa era, foi conhecida na Europa, começa um rápido desenvolvimento das armas de fogo. A artilharia pesada aparece pela primeira vez em 1280, durante o cerco de Córdoba pelos árabes. No século XIV, as armas de fogo passam das mãos dos árabes para as dos espanhóis. Fernando IV tomou Gibraltar em 1308, empregando canhões. Outros povos passaram a empregar, como os espanhóis, a artilharia. Em meados do século XIV, as armas de fogo são utilizadas em todos os países da Europa oriental, meridional e central. As primeiras armas de fogo eram extremamente pesadas e difíceis de manejar e só podiam ser transportadas desmontadas. Mesmo as armas de pequeno calibre eram muito pesadas, uma vez que não seconheciam as proporções que deve haver entre o peso da arma e o projétil e entre este e a carga explosiva. Apesar destas dificuldades, estas armas foram usadas não apenas em cercos, mas também a bordo de navios de guerra. Em 1386, os ingleses capturaram dois navios de guerra armados com canhões. Um aperfeiçoamento considerável da artilharia teve lugar durante o século xv. As balas de pedra foram substituídas pelas de ferro; a fundição de canhões passa a empregar o ferro e o cobre. As carretas de artilharia foram aprimoradas e o transporte teve grandes avanços. Aumenta a velocidade de tiro. A estes fatores se devem os êxitos de Carlos VIII na Itália. Na batalha de Fornovo, os franceses deram mais tiros em uma hora do que os italianos em um dia. Maquiavel escreveu sua Arte da guerra com o propósito de mostrar os meios de resistir à artilharia pela disposição cuidadosa da infantaria e da cavalaria. Mas os italianos, sem dúvida, não se satisfizeram apenas com esta solução e desenvolveram sua própria indústria militar. Antes da época de Galileu, o Arsenal de Veneza já havia alcançado um desenvolvimento considerável. Francisco I formou com a artilharia um corpo à parte e com ele derrotou as até então invencíveis lanças suíças. Os primeiros trabalhos teóricos sobre balística e artilharia datam do século XVI. Em 1537, Tartaglia procurava determinar a trajetória de um projétil e estabeleceu que um ângulo de 45° permite um alcance maior de tiro; elaborou também tabelas de tiro. Vannocchio Biringuccio 40

estudou o processo de fundição e, em 1540, introduziu melhorias consideráveis na produção de armas. Hartmann inventou uma escala de calibres, por meio da qual cada parte da arma podia ser medida em relação ao diâmetro interno do tubo, o que permitiu uma certa padronização na produção de armamentos e abriu caminho para a introdução de princípios teóricos fundamentados e leis empíricas de tiro. Em 1690, na França, começa a funcionar a primeira escola de artilharia. Em 1697, Saint-Remy publicou o primeiro manual completo de artilharia. Em fins do século XVII, a artilharia já havia perdido seu caráter medieval e artesanal e sido incluída como parte componente do exército em todos os países. A diversidade de calibres e modelos, a pouca confiabilidade das regras empíricas de tiro, a quase absoluta ausência de princípios balísticos bem fundamentados se tornam insuportáveis já em meados do século XVII. Por este motivo, começa a ser realizada grande quantidade de experiências sobre as relações entre calibre e carga, entre calibre, peso e comprimento do tubo da arma e sobre o fenômeno do recuo das peças quando atiravam. O progresso da balística caminhou em paralelo com o trabalho dos mais preeminentes físicos. Galileu deu ao mundo a teoria da trajetória parabólica dos projéteis: Torricelli, Newton, Jean Bernoulli e Euler, preocupados com a trajetória de um projétil no ar, estudaram a resistência do ar e as causas da declinação do percurso. O desenvolvimento da artilharia provocou, por sua vez, uma revolução na construção de fortificações e fortalezas, apresentando enormes exigências à arte da engenharia. Um novo tipo de fortificação, com muralhas e terra, quase paralisou, em meados do século XVII, a ação da artilharia, o que, por sua vez, serviu de impulso para seu desenvolvimento posterior. O desenvolvimento da arte militar colocou os seguintes problemas técnicos: Balística interior: 1. o estudo e aperfeiçoamento dos processos que ocorrem em uma arma de fogo durante o disparo; 2. a solidez da arma combinada com o menor peso possível; 3. métodos cômodos e precisos para garantir a pontaria. Balística exterior: 4. a trajetória do projétil no vácuo; 5. a trajetória do projétil no ar; 6. como o alcance depende da resistência do ar e da velocidade do projétil; 7. o desvio do projétil da trajetória calculada.

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As bases físicas destes problemas técnicos são as seguintes: 1. o estudo dos processos que ocorrem na arma de fogo exigem o conhecimento do processo de compressão e expansão dos gases, o qual, assim como o fenômeno do recuo (lei da ação e reação), é uma questão fundamentalmente mecânica; 2. a solidez da arma de fogo coloca o problema do estudo da resistência dos materiais e de como testá-la; este problema, que tem também grande importância para a construção - naquele momento - é resolvido por meios puramente mecânicos: Galileu deu atenção considerável ao problema em suas Demonstrações matemáticas; 3. a questão da trajetória do projétil no vácuo consiste na resolução do problema da queda livre dos corpos sob a influência da gravidade e a conjugação de seu movimento de translação com a queda livre. Portanto, não deve causar estranheza que Galileu tenha dedicado grande atenção ao problema da queda livre dos corpos. Até que ponto seu trabalho estava relacionado com os interesses da artilharia e da balística pode ser apreciado pelo fato de começar suas Demonstrações matemáticas com uma dedicatória aos venezianos, na qual elogia a atividade do arsenal de Veneza, cujo trabalho oferece um material valioso para o estudo científico;7 4. a trajetória de um projétil no ar é um caso particular do problema do movimento dos corpos em um meio resistente e da dependência entre a resistência do meio e a velocidade do movimento; 5. o desvio do projétil de sua trajetória calculada pode ocorrer em conseqüência de uma modificação na velocidade inicial, de uma mudança na densidade da atmosfera ou devido à influência da rotação da Terra: todos estes são problemas de tipo puramente mecânico; 6. tabelas de tiro podem ser traçadas, caso sejam resolvidos os problemas de balística exterior e conhecida a teoria geral da trajetória do projétil em um meio resistente. Vimos, assim, que se deixarmos de lado o processo mesmo de produção de armas de fogo e de munição, que é uma questão de metalurgia, os principais problemas colocados pela artilharia, nesse período, eram essencialmente de mecânica. Os temas da física da época e conteúdo dos Principia: Examinemos, agora, de modo sistemático, os problemas de física levantados pelo desenvolvimento do transporte, da indústria e da mineração. Deve-se notar, antes de tudo, que se trata de problemas de natureza puramente mecânica. Analisaremos, ainda que de modo muito genérico, a temática principal da física durante o período no qual o capital mercantil estava se 42

tornando a força econômica predominante e a manufatura começa a se desenvolver, isto é, o período que vai de princípios do século XVI até à segunda metade do século XVII. Não incluiremos os trabalhos de Newton no campo da física, uma vez que estes serão objeto de uma análise especial. Uma comparação dos temas fundamentais da física nos permite determinar a tendência principal dos interesses desta disciplina na época imediatamente anterior e na contemporânea a Newton. 1. O problema das máquinas simples, do plano inclinado e os problemas gerais da estática foram estudados por Leornado da Vinci (fins do século xv), Ubaldi (1577), Cardano (meados do século XVI), Stevin (1587) e Galileu (1589-1609). 2. A queda livre dos corpos e a trajetória de corpos lançados foram estudadas por Tartaglia (anos 30 do século XVI), Benedetti (1587), Piccolomini (1597), Galileu (1589-1609), Riccioli (1651), Gassendi (1646) e pela Accademia dei Cimento. (A palavra italiana cimento deve aqui ser traduzida por experiência.) 3. As leis da hidro e aerostática e da pressão atmosférica; a bomba de ar; o movimento dos corpos em um meio resistente: Stevin, em fins do século XVI e princípios do XVII, como engenheiro e inspetor das instalações terrestres e aquáticas da Holanda; Galileu; Torricelli (primeiro quarto do século XVII); Pascal (1647-1653); Guericke (1650-1663), engenheiro do exército de Gustavo Adolfo e construtor de pontes e canais; Roberto Boyle (anos 70 do século XVII); Accademia dei Cimento (1657-1667). 4. Problemas da mecânica celeste e da teoria das marés: Kepler (1609), Galileu (1609-1616), Gassedi (1647), Wren (anos 60 do século XVII), Halley nos anos 70 do século XVII, Robert Hooke. Os problemas acima mencionados abarcam quase toda a temática da física daquela época. Se compararrpos esta série básica de temas com os problemas físicos que encontramos ao analisar as demandas técnicas de transporte, vias de comunicação, indústria e guerra, fica bastante evidente que a temática fundamental da física estava determinada por estas demandas. De fato, o grupo de problemas colocados no primeiro parágrafo inclui os problemas físicos relacionados com a maquinaria de elevação e os mecanismos de transmissão, importantes para a indústria de mineração e para a arte da construção. O segundo grupo de problemas tem um significado fundamental para a artilharia e coloca as tarefas físicas básicas da balística. O terceiro grupo de problemas é de grande importância para o bombeamento da água e a ventilação das galerias das minas, para a fundição de minérios, para a construção de canais e eclusas, para a 43

balística interior e para o cálculo da forma dos navios. O quarto grupo é de enorme importância para a navegação. Todos estes são, por suas características, problemas de mecânica, o que não significa que, nessa época, outros aspectos do movimento da matéria não tenham sido objeto de estudo. É nesse período que a óptica começou a se desenvolver e que surgem as primeiras observações sobre a eletricidade estática e o magnetismo. Entre as inv,estigações estão as relativas ào magnetismo, que se desenvolveram sob a influência direta do estudo do desvio da bússola no campo magnético da Terra, o que foi observado pela primeira vez durante as viagens marítimas a grandes distâncias. Gilbert já se ocupara dos problemas do magnetismo terrestre, tanto por sua natureza quanto por sua importância específica, problemas de significado bastante secundário; a extensão das pesquisas e o desenvolvimento matemático destas questões (com exceção de certas leis da óptica geométrica, que tiveram considerável importância para a construção de instrumentos ópticos) estavam bem atrasados em relação à mecânica. No que se refere à óptica, esta ciência recebeu seu principal impulso daqueles problemas técnicos que eram relevantes para a navegação marítima. Nesse período, a óptica se desenvolveu através do estudo do problema do telescópio. Comparando os principais problemas técnicos e físicos da época com os das investigações que dominavam a física no período em estudo, chegamos à conclusão de que estes temas eram determinados, principalmente, pelas tarefas econômicas e técnicas que a burguesia em ascensão colocava em primeiro plano. 8 Durante a época do capital mercantil, o desenvolvimento das forças produtivas colocou para a ciência uma série de tarefas práticas, exigindo sua solução. A ciência oficial, concentrada nas universidades medievais, não apenas não fez tentativa alguma de solucionar estas tarefas, como se opôs ativamente ao desenvolvimento das ciências naturais. As universidades, do século xv ao XVII, eram os centros científicos do feudalismo, não apenas portadoras das tradições feudais como também suas ativas defensoras. Em 1655, durante a luta entre os mestres artesãos e os trabalhadores, a Sorbonne defendeu ativamente aqueles mestres e o sistema corporativo, dando respaldo aos mestres com "provas da ciência e das sagradas escrituras". Todo o sistema pedagógico das universidades medievais expressa o sistema fechado da escolástica. Nelas não havia lugar para as ciências naturais. Em Paris, em 1355, foi autorizado o ensino da geometria de Euclides apenas nos feriados. Os principais manuais de "ciências naturais" eram os livros de Aristóteles, dos quais todo o conteúdo vital havia sido expurgado. 9 Mesmo a medicina era ensinada como uma ciência de caráter lógico. Ninguém estava autorizado a estudar 44

medicina a não ser que houvesse previamente estudado lógica por três anos. É verdade que para a admissão aos exames de medicina o estudante deveria enfrentar uma questão que não era de caráter lógico: apresentar certificado de que era fruto de um casamento legal; mas é óbvio que este argumento ilógico não era o empecilho essencial para o conhecimento da medicina. O famoso cirurgião Arnaldo de Villanova, de Montpellier, reclamava que mesmo os professores da escola de medicina eram incapazes não apenas de curar as doenças mais comuns como até de aplicar clister num doente. Com a mesma força com que as relações feudais obsoletas lutavam contra os novos e progressistas meios de produção, as universidades feudais combatiam a ciência nova. Aquilo que não se encontrava em Aristóteles, para elas simplesmente não existia. Quando o padre Kircher (princípios do século XVII) sugeriu a um professor provincial jesuíta que observasse, através do telescópio, as recém-descobertas manchas solares, este respondeu: "É inútil, meu filho. Eu li Aristóteles duas vezes e não encontrei nada em suas obras sobre manchas no sol. Não existem tais manchas. Elas aparecem devido a imperfeições de seu telescópio ou a defeitos de seus próprios olhos." Quando Galileu inventou o telescópio e descobriu as fases de Vênus, as companhias mercantis interessaram-se por seu telescópio, que era superior àqueles feitos na Holanda; mas os filósofos escolásticos das universidades se recusavam a ouvir falar nas novas descobertas. "Nós devemos sorrir, meu caro Kepler" - escreveu com amargura Galileu, em 19 de agosto de 1610 - "diante da grande estupidez dos homens. O que se pode fazer a respeito dos filósofos mais importantes da escola daqui, que, com a teimosia de uma víbora, apesar de convites repetidos mais de mil vezes, não quiseram sequer olhar os planetas nem a Lua nem mesmo o próprio telescópio. Os olhos destes homens estão completamente fechados para a luz da verdade. É incrível, mas não me surpreende. Este tipo de gente pensa que a filosofia é como um livro ... e que a verdade deve ser procurada não no mundo, não na natureza, mas no confronto de textos." Quando Descartes resolutamente se declarou contra a física aristotélica das qualidades ocultas e contra a escolástica da universidade, encontrou uma oposição enfurecida de Roma e da Sorbonne. Em 1671, o~ teólogos e médicos da Universidade de Paris exigiram uma determinação governamental condenando os ensinamentos de Descartes. Em uma sátira mordaz, Boileau ridicularizou tais exigências dos eruditos escolásticos: num notável documento descreve excelentemente a situação nas universidades medievais. 10 Mesmo na segunda metade do século XVIII, os professores jesuítas na França não podiam aceitar as teorias de Copérnico. Em 1760, 45

na edição latina dos Principia de Newton, Lesser e Jacquier acharam necessário acrescentar a seguinte nota: "Neste terceiro livro, Newton aplica a hipótese do movimento da Terra. As suposições do autor não podem ser explicadas a não ser com base nesta hipótese. Por isso, somos compelidos a agir em nome de outro. Mas nós abertamente declaramos que aceitamos as determinações publicadas pelos chefes da Igreja contra o movimento da Terra." As universidades preparavam, quase exclusivamente, eclesiásticos e juristas. A Igreja era o centro internacional do feudalismo e ela própria grande proprietário feudal, uma vez que não menos de um terço das terras dos países católicos lhe pertenciam. As universidades medievais eram um instrumento poderoso da hegemonia da Igreja. Enquanto isso, os problemas técnicos que acima delineamos exigiam um enorme conhecimento técnico e estudos extensivos de matemática e física. O fim da Idade Média (meados do século xv) se caracteriza por um grau mais alto de desenvolvimento da indústria criada pela burguesia medieval. A produção agora se tornara mais perfeita, variada e em larga escala, uma escala de massa. As relações comerciais estavam mais desenvolvidas. Após a noite escura da Idade Média, observa Engels, a ciência começa novamente a se desenvolver com uma velocidade maravilhosa, graças ao desenvolvimento da indústria. Entretanto, os problemas técnicos que mencionamos requeriam ingentes conhecimentos técnicos e intensa aprendizagem das matemáticas e da física. Desde o tempo das cruzadas, a indústria havia avançado enormemente e tinha um volume de novos feitos a seu crédito (a metalurgia, a mineração, a indústria militar, a indústria de corantes) que supriam os estudiosos não apenas com material original mas também com novos meios de experimentações, permitindo a construção de novos instrumentos. Pode-se dizer que a ciência experimental sistemática setornou possível a partir dessa época. Mais ainda, as grandes descobertas geográficas, que, em última instância, também haviam sido determinadas pelos interesses da produção, ofereceram um material enorme até então inacessível à física (desvio magnético), à astronomia, à meteorologia e à botânica. Finalmente, nesse período aparece um instrumento poderoso para a difusão do conhecimento: a imprensa. 11 A construção de canais, eclusas e navios; a construção de poços e de minas, sua ventilação, o bombeamento de água; o projeto e construção de armas de fogo e de fortificações; os problemas de balística; a produção e projeto de instrumentos para a navegação; a descoberta de métodos para o estabelecimento de rotas marítimas - tudo isto exigia um tipo de homem totalmente diferente daquele que até então estava sendo preparado pelas universidades. 46

Já no terceiro quartel do século XVI, ao especificar o mínimo de conhecimentos requeridos de um topógrafo de minas, Johann Matesius mostrou que deveria dominar o método de triangulação, conhecer bem a geometria euclidiana, saber utilizar a bússola, necessária na construção das galerias; deveria poder calcular a direção correta de uma galeria, entender a construção de bombas d'água e equipamentos para ventilação. Mostrou, ainda mais, que as obras de escavação de galerias exigiam engenheiros com formação teórica, uma vez que este trabalho estava muito além da capacidade de um mineiro comum e sem instrução. Em vista disto, fica óbvio que não era possível obter este tipo de conhecimento nas universidades de então. A nova ciência cresceu em luta com as universidades, como uma ciência não-universitária. A luta entre a universidade e a ciência não-universitária, esta última a serviço das necessidades da burguesia em ascensão, era um reflexo, na esfera ideológica, da luta de classes entre a burguesia e o feudalismo. A ciência floresceu passo a passo com o desenvolvimento e florescimento da burguesia. Para desenvolver sua indústria, a burguesia necessitava de uma ciência que investigasse as propriedades materiais dos corpos e as formas de manifestação das forças da natureza. Até então, a ciência havia sido servidora humilde da Igreja e não estava autorizada a ultrapassar os limites estabelecidos pela fé. A burguesia precisava da ciência e a ciência cresceu rebelando-se contra a Igreja (Engels). Deste modo, a burguesia entrou em conflito com a Igreja feudal. Além das escolas profissionais (escolas para a formação de agrimensores e engenheiros de minas e para o treinamento de oficiais da artilharia), os centros da nova ciência natural são as sociedades científicas das universidades. Nos anos 50 do século XVII, foi fundada a famosa Accademia dei Cimento, em Florença, tendo como proposta o estudo da natureza por meio da experimentação. Entre seus membros estavam cientistas como Borelli e Viviani. A Academia era a herdeira intelectual de Galileu e Torricelli e continuou suas obras. Seu lema era "provare e riprovare" (provar e novamente provar.) Em 1645, surge em Londres um círculo de estudiosos da natureza que se reuniam semanalmente para discutir problemas científicos e novas descobertas. Destes encontros se formou, em 1661, a Royal Society, onde se reuniam os cientistas mais eminentes da Inglaterra e que, em oposição à escolástica universitária, adotou como seu lema: nul/ius in verba (não acreditar nas palavras). Robert Boyle, Bruncker, Brewster, Wren, Halley e Robert Hooke tomaram parte ativa na Sociedade. Um de seus membros mais notáveis foi Newton. Percebe-se, portanto, como a burguesia em ascensão colocou as ciências naturais a seu serviço, a serviço do desenvolvimento das forças produtivas. Naquele tempo a classe mais progressista, a burguesia

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exigia a ciência mais progressista. A revolução inglesa dá um estímulo poderoso ao desenvolvimento das forças produtivas. Surge a necessidade de resolver problemas não apenas empiricamente, mas de resumir'sinteticamente e estabelecer uma base teórica sólida para a solução por métodos gerais do conjunto de problemas da física, colocados para a solução imediata pelo desenvolvimento da nova técnica. Como já demonstramos, o complexo básico de problemas era aquele da mecânica. A óptica também começa a se desenvolver nesse período, mas as suas principais pesquisas estão subordinadas aos interesses da navegação e da mecânica celeste. É importante notar que Newton chegou ao estudo dos espectros a partir do fenômeno da aberração cromática no telescópio. Este resumo enciclopédico dos problemas físicos foi equivalente à criação de uma estrutura harmônica de mecânica teórica que suprisse os métodos gerais de resolução das tarefas da mecânica terrestre e celeste. A composição deste trabalho coube a Newton. A própria denominação de sua obra mais importante, Princípios matemáticos da filosofia natural (1687), indica que Newton se propôs esta tarefa de sistematização. Em sua introdução aos Principia, Newton explica que a mecânica aplicada e a teoria das máquinas simples já haviam sido elaboradas anteriormente e que sua tarefa consistia não em "discutir os vários ofícios e em resolver tarefas setoriais, mas em oferecer uma doutrina da natureza, mediante o estabelecimento das bases matemáticas da física". Os Princípios estão expostos numa linguagem matemática abstrata e em vão procuraremos, nessa obra, uma exposição do próprio Newton sobre a relação entre os problemas que coloca e resolve e as exigências técnicas a partir das quais tais problemas surgiram. Assim como o método geométrico de exposição não foi o meio pelo qual Newton fez suas descobertas, este servia, em sua opinião, como uma vestimenta valiosa para apresentar a solução por ele encontrada com outros meios; em trabalho tratando da "filosofia natural" não se devem incluir referências à fonte "inferior" da qual parte a criação científica. Tentaremos demonstrar que o "âmago terrestre" dos Principia está constituído, justamente, por aqueles problemas técnicos analisados acima e que determinaram fundamentalmente a temática da física na época. Apesar do caráter matemático abstrato de exposição adotado nos Principia, Newton não só não era um escolástico erudito, divorciado da vida, como, no sentido integral da palavra, estava no centro dos problemas e interesses técnicos e físicos de seu tempo. A conhecida carta de Newton a Francis Aston revela uma visão muito clara de seus amplos interesses técnicos. Esta carta foi escrita em 1669, após Newton ter sido investido em sua cátedra, justamente quando estava acabando o primeiro esboço de sua teoria da gravitação.

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O jovem Aston, amigo de Newton, estava para viajar por vários países da Europa e pediu-lhe instruções sobre como utilizar mais racionalmente sua viagem e informações sobre o que era especialmente digno de atenção e estudo nos países continentais. Resumindo, as instruções de Newton eram: estudar diligentemente os mecanismos de condução dos navios e os métodos de navegação; examinar atentamente todas as fortalezas que encontrasse, seu método de construção, sua resistência a ataques e suas vantagens na defesa e familiarizar-se com a organização militar em geral. Estudar as riquezas naturais do país, em especial os metais e minerais, e conhecer os métodos de sua extração e purificação. Estudar os métodos de obtenção de metais a partir de minérios. Averiguar se de fato na Hungria, Eslováquia e Boêmia, perto da cidade de Bila, ou nas montanhas da Boêmia, não longe da Silésia, havia rios cujas águas continham ouro. Certificar-se também se o método de obter ouro de rios auríferos mediante amálgama com mercúrio permanecia um segredo ou se já setornara um conhecimento geral. Na Holanda deveria visitar uma fábrica para o polimento de lentes que havia sido recentemente fundada. Deveria averiguar como os holandeses protegiam seus navios contra o ataque dos gusanos 12 em suas viagens para a Índia. Averiguar se os relógios tinham algum uso na determinação da longitude durante expedições marítimas a lugares distantes. Os métodos de transformação de um metal em outro, por exemplo ferro em cobre ou qualquer metal em mercúrio, eram especialmente dignos de atenção e estudo. Em Chemnitz e na Hungria, onde havia minas de ouro e prata, dizia-se que sabiam como transformar o ferro em cobre mediante a dissolução do f~rro em vitríolo, fervendo-se depois a solução, a qual ao esfriar liberava o cobre. Vinte anos antes, o ácido que possuía esta nobre propriedade havia sido importado pela Inglaterra, mas no momento não era mais p0ssível obtê-lo. Provavelmente, preferiam explorá-lo eles próprios na transformação do ferro em cobre ao invés de vendê-lo. Estas últimas instruções, tratando do problema de transformação dos metais, ocupam quase metade desta extensa carta. Isto não é surpreendente, pois a época de Newton era ainda muito rica em pesquisas alquímicas. Os alquimistas são, geralmente, representados como uma espécie de mágicos à procura da pedra filosofal. Na realidade, porém, a alquimia estava diretamente ligada à produção e o mistério que envolvia os alquimistas não deve ocultar a verdadeira natureza de suas pesquisas. A transformação dos metais{co~stituía um importante problema técnico, uma vez que as minas Õe cobre da época eram muito poucas e as atividades militares e a fundição de canhões exigiam muito cobre. O desenvolvimento comercial precisava muito de meios de troca e as minas de ouro européias não podiam satisfazer tal demanda. Jun-

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tamente com o impulso para o oriente em busca de ouro, houve uma intensificação de procedimentos para transformar metais comuns em cobre e ouro. Desde sua juventude, Newton sempre se interessara pelos processos metalúrgicos e mais tarde aplicou com grande sucesso seus conhecimentos em seu trabalho na Casa da Moeda. Estudou cuidadosamente os clássicos da alquimia e fez notas extensas em suas obras, o que mostra seu grande interesse pelos processos metalúrgicos. Durante o período imediatamente anterior a seu trabalho no Tesouro, de 1683 a 1689 estudou a obra de Agrícola sobre os metais; seu interesse principal era a transformação de metais. Newton, Boyle e Locke mantiveram uma correspondência extensa sobre a questão da transformação dos metais e trocaram fórmulas para a transformação de diferentes minerais em ouro. Em 1692, Boyle, que havia sido um dos diretores da Companhia das Índias Orientais, comunicou a Newton sua fórmula para a transformação de metal em ouro. Quando Charles Montagu convidou Newton para trabalhar no Tesouro, não o fez apenas por amizade mas porque tinha em alta estima os conhecimentos de Newton sobre metais e metalurgia. É interessante e importante notar que, conquanto tenha sido preservada uma documentação muito rica sobre as atividades puramente científicas de Newton, o mesmo não ocorreu no que se refere às suas atividades na esfera técnica. Nem mesmo os materiais que indicaram suas atividades no Tesouro foram salvos, ainda que se saiba que fez muito para aperfeiçoar o processo de fundição e cunhagem de moedas. Layman Newel, que estudou especificamente a questão das atividades técnicas de Newton, solicitou ao diretor do Tesouro, coronel Johnson, permissão para examinar os materiais referentes às atividades de Newton na esfera dos processos técnicos de fundição e cunhagem por ocasião do bicentenário de Newton. Em sua resposta, Johnson 13 informa que nenhum material foi preservado sobre este aspecto do trabalho de Newton. Tudo que se conhece é seu extenso memorando para o chanceler da Fazenda (1717) sobre a questão de um sistema bimetálico e sobre o valor relativo do ouro e da prata em diferentes países. Este memorando demonstra que os interesses de Newton não estavam restritos às questões técnicas de produção de moedas mas se estendiam também aos problemas econômicos da circulação monetária. Newton tomou parte ativa e foi assessor da comissão para a revisão do calendário e, em seus papéis, encontra-se um trabalho - "Observações sobre a revisão do Calendário Juliano" - no qual propõe uma reforma radical. 14 Citamos todos estes fatos para nos opormos à tradição que foi estabelecida na literatura, apresentando Newton como um ser olímpi50

co, pairando acima de todos os interesses "terrenos", técnicos e econômicos, de seu tempo, e que se movia apenas nas alturas do pensamento abstrato. No entanto, como já foi dito, os Principia justificam tal interpretação de Newton, ainda que este fato não corresponda à realidade. Se examinarmos o conjunto de interesses acima esquematizado, será fácil notar que abarca quase inteiramente o complexo de problemas derivados das necessidades de transportes, de comércio, de indústria e das atividades militares da época. Passemos agora à análise do conteúdo dos Principia de Newton e consideremos quais são suas inter-relações com a temática da pesquisa em física no período. Nas definições e axiomas ou leis do movimento estão expostos os fundamentos teóricos e metodológicos da mecânica. No primeiro livro há uma exposição detalhada das leis gerais do movimento sob a ação de forças centrais. Deste modo, Newton estabelece os princípios da mecânica, trabalho iniciado por Galileu. As leis de Newton oferecem um método geral para a resolução da grande maioria da tarefas de tipo mecânico. O segundo livro dos Principia, devotado ao problema do movimento dos corpos, interpreta uma série de questões relacionadas com o complexo de problemas já indicados. As primeiras três seções deste livro referem-se ao movimento dos corpos em um meio resistente e nos diferentes casos em que a resistência depende da velocidade (resistência linear, resistência proporcional ao quadrado da velocidade e resistência proporcional, em parte, à primeira potência e, em parte, à segunda). Nas lições da primeira seção, Newton indica que os casos lineares têm um interesse mais matemático, inerente aos fenômenos naturais, e se dirige para um exame detalhado dos casos que se observam no movimento real dos corpos no ar. 15 Como indicamos antes, quando analisamos os problemas físicos da balística, cujo desenvolvimento estava vinculado ao da artilharia pesada, as tarefas colocadas e resolvidas por Newton são de grande importância para a balística exterior. A quinta seção do segundo livro se refere aos fundamentos da hidrostática e da flutuação dos corpos. Nesta mesma seção se examinam a pressão dos gases e a compressão de gases e líquidos sob pressão. Ao analisarmos os problemas técnicos colocados pela construção de navios, canais, equipamentos para bombeamento de água e para ventilação, vimos que a temática física destes problemas se reduz aos fundamentos da hidrostática e da aerostática. A sexta seção trata do movimento de pêndulo em um meio resistente. As leis que governam a oscilação do pêndulo matemático e físi51

co no vácuo foram descobertas por Huygens, em 1673, e aplicadas à construção de relógios de pêndulo. Pela carta de Newton a Aston, depreende-se a importância que adquiriam os relógios de pêndulo na determinação da longitude. Esta aplicação dos relógios de pêndulo levou Huygens à descoberta da força centrífuga e de mudança na força de aceleração e de gravidade. Quando os relógios de pêndulo levados por Richer de Paris para Caiena, 16 em 1673, apresentaram um atraso. Huygens pôde explicar imediatamente o fenômeno como resultado da mudança na aceleração da força da gravidade. A denominação da obra principal de Huygens - Dos relógios de pêndulo - demonstra a importância que ele atribuía a estes instrumentos. Os trabalhos de Newton dão continuidade a esta orientação e, assim como com a resistência, em que passa de um caso matemático do movimento dos corpos em um meio resistente a um caso real de movimento, nessa ocasião, do exame de pêndulo matemático passa ao exame do movimento real de um pêndulo em um meio resistente. A sétima seção do segundo livro é dedicado ao problema do movimento dos líquidos e à resistência dos corpos empurrados. Nesta seção, são tratados problemas de hidrodinâmica, entre os quais o problema do fluxo dos líquidos e da água em tubos. Já se indicou anteriormente que todos estes problemas são de importância cardeal na construção e equipamento de canais e eclusas e no cálculo das instalações de bombeamento de água. Na mesma seção, são estudadas as leis que governam a queda de corpos em um meio resistente (água ou ar). Como sabemos, estes problemas são de considerável importância na determinação da trajetória de um corpo lançado, como os projéteis de artilharia. O terceiro livro dos Principia é dedicado ao "sistema do mundo" e trata dos problemas do movimento dos planetas e da Lua e das anomalias deste último. Também se refere à aceleração da força de gravidade e suas variações, em relação com o problema do movimento desigual dos cronômetros em viagens marítimas e com o problema das marés. Como mencionamos, até à invenção do cronômetro, o movimento da Lua tinha uma importância fundamental para a determinação da longitude. Newton retornou a este problema mais de uma vez (em 1691). O estudo das leis do movimento da Lua foi de grande importância para a confecção de tabelas exatas para a determinação da longitude e o "Conselho da Longitude", da Inglaterra, estabeleceu um alto prêmio para trabalhos relacionados ao movimento da Lua. Em 1713, o Parlamento aprovou uma resolução especial para estimular as investigações no campo da determinação da longitude. Newton foi um dos membros eminentes da comissão parlamentar então criada. Como indicamos ao analisar a sexta seção, o estudo do movimento do pêndulo, iniciado por Huygens, teve grande importância para 52

a navegação e, conseqüentemente, no terceiro livro Newton estuda o problema do pêndulo de segundos e analisa o movimento de relógios em uma série de expedições marítimas: a de Halley para Santa Helena, em 1677; a de Varenius e de Hais para a Martinica e Guadalupe, em 1682; a de Couplé para Lisboa e Paraíba, em 1697; a viagem de Hais para a América, em 1700. 17 Ao analisar as causas das marés, Newton relaciona a altura dos fluxos das marés em diferentes portos e desembocaduras de rios com as formas de fluxo. Este rápido resumo dos conteúdos dos Principia mostra a total correspondência das temáticas físicas da época, surgidas das necessidades da economia e da técnica, com estes que são, no sentido da palavra, um levantamento e resolução sistemática do conjunto principal de problemas físicos. E como, por seu caráter, todos estes problemas eram de mecânica, fica evidente que a principal obra de Newton foi uma fundamentação da mecânica terrestre e dos corpos celestes. 3. A luta de classes durante a Revolução Inglesa e a visão filosófica de Newton.

Seria, entretanto, uma grande simplificação, e mesmo vulgarização, de nosso objeto se deduzíssemos diretamente da economia e da técnica cada problema que tenha sido estudado por um físico, cada tarefa que tenha resolvido. De acordo com a concepção materialista da história, os momentos determinantes de um processo histórico são, em última instância, a produção da vida real. Mas isto não significa que o fator econômico seja o único determinante. Marx e Engels criticaram severamente Barth precisamente por estreitar o materialismo histórico a uma concepção tão primitiva. A situação econômica é a base, porém o desenvolvimento de teorias e o trabalho individual de um cientista são afetados por diferentes super-estruturas, tais como as formas políticas da luta de classes e seus resultados, o reflexo destas lutas nas mentes dos participantes, as teorias políticas, jurídicas, filosóficas, as crenças religiosas e seu desenvolvimento subseqüente em um sistema de dogmas. Portanto, ao analisar as temáticas da física, tomamos os problemas principais, cardeais, nos quais estava fixada a atenção dos cientistas na época. Mas, para compreender como prosseguiu e se desenvolveu o trabalho de Newton, para explicar todos os aspectos de sua criatividade na física e na filosofia, a análise geral feita acima dos problemas econômicos da época não é suficiente. Precisamos analisar mais em deta-

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lhe a época de Newton, as lutas de classe durante a Revolução Inglesa e as teorias políticas, filosóficas e religiosas, como reflexos, nas mentes de seus contemporâneos, destas lutas. Quaodo a Europa emergiu da Idade Média, a burguesia urbana em ascensão foi sua classe revolucionária. Sua posição na sociedade feudal torna-se muito restrita e seu desenvolvimento livre posterior resultara incompatível com a estrutura feudal. A grande luta da burguesia européia contra o feudalismo alcançou sua iotensidade mais alta em três batalhas importantes e decisivas: (1) a Reforma na Alemanha, com a rebelião política de Franz Zikkengen, e a Grande Guerra Camponesa que seguiu; (2) a Revolução de 1649-1688 na Inglaterra; (3) a grande Revolução Francesa. Há, entretanto, uma grande diferença entre a Revolução Francesa de 1789 e a Revolução Inglesa. O feudalismo na Inglaterra havia sido minado desde a época da Guerra das Rosas. A aristocracia inglesa, em princípios do século XVII, era de origem relativamente recente. De noventa pares com assento no Parlamento em 1621, quarenta e dois haviam recebido seus títulos de nobreza de James I, enquanto a linhagem dos outros datava apenas do século XVI. Isto explica a estreita relação entre a alta nobreza e os primeiros Stuart. Esta característica da nova aristocracia permitiu-lhe assumir com facilidade um compromisso com a burguesia. Foi a burguesia urbana que iniciou a Revolução Inglesa e os proprietários de terra (yeomen) das zonas centrais que a conduziram à vitória. O ano de 1688 foi o momento da aliança entre a burguesia em ascensão e os grandes proprietários de terras feudais do passado. Longe de se opor ao desenvolvimento da indústria, a aristocracia inglesa, desde a época de Henrique VII, não só não se colocou contra o desenvolvimento industrial como, pelo contrário, procurou extrair lucros dele. A bvrguesia estava se tornando um segmento reconhecido, ainda que modesto, da classe dominante da Inglaterra. Em 1648, a burguesia lutou ao lado da nova aristocracia contra a monarquia, a nobreza feudal e a Igreja dominante. Em ambas as revoluções a burguesia foi a classe que realmente encabeçou o movimento. O proletariado e as camadas urbanas que não pertenciam à burguesia, ou que não tinham nenhum interesse diferente daqueles dos burgueses, ainda não constituíam classes desenvolvidas independentes ou parte de uma classe. É por este rnotivo que, quando se opuseram à burguesia, como por exemplo em 1793-4, na França, lutaram apenas pela realização dos interesses da burguesia, ainda que não à maneira burguesa. Na grande Revolução Francesa de 1789, a burguesia, em aliança com O povo, lutou contra a monarquia, a nobreza e a Igreja dominante. o Terror Francês não é mais que a violência plebéia contra os inimigos da Revolução: o absolutismo e o feudalismo. O mesmo poderá 54

ser dito do movimento dos igualitários (levellers) durante a Revolução :ínglesa. As revoluções de 1648 e 1789 não foram somente inglesa ou francesa. Foram revoluções de dimensões européias; não apenas representavam a vitória de uma classe determinada sobre a velha estrutura política, como abriram as portas para a organização política da nova sociedade européia. "A burguesia triunfou. Mas a vitória da burguesia significou então a vitória de uma nova formação social, a vitória dos direitos de propriedade burgueses sobre os feudais, a vitória da nação sobre o provincianismo, da competição sobre as corporações de ofício, da divisão da propriedade sobre a primogenitura, do domínio do proprietário da terra sobre a escravidão à terra, a vitória da educação sobre a superstição, da família sobre o nome de família, da indústria sobre a indolência heróica, do direito burguês sobre os privilégios medievais" (Marx). A Revolução Inglesa de 1648-1688 foi uma revolução burguesa. Colocou no poder os "aproveitadores" que haviam despontado sobre os capitalistas e os proprietários de terras. A Restauração não significou, de modo algum, o restabelecimento da organização feudal. Pelo contrário, na Restauração, os proprietários agrícolas destruíram a estrutura feudal de propriedade da terra. Na verdade, Cromwell estava a serviço da burguesia em ascensão. O empobrecimento da população, como premissa da criação de um proletariado livre, ocorre - precisamente - após a revolução. É nesta mudança de classe dominante que se encontra o verdadeiro significado de uma revolução; o novo sistema sócio-econômico em formação produz uma nova classe dominante. Nisto está a principal diferença entre a interpretação de Marx e aquela dos historiadores ingleses tradicionais, em particular de Hume e Macaulay. Como um verdadeiro tory, Hume valoriza a importância da revolução de 1649 e da Restauração, e depois, da revolução de 1688, apenas sob o aspecto da destruição e do restabelecimento da ordem. Con- · dena severamente a rebelião ocorrida durante a primeira Revolução e saúda a Restauração como um meio de restabelecimento da ordem. Simpatiza com a revolução de 1688, que considera um ato constitucional, apesar de não achar que tenha sido um simples restabelecimento da velha liberdade; seria a abertura de uma nova época constitucional, em que há "predomínio do princípio popular". Para Macaulay, a revolução de 1688 está intimamente relacionada com a primeira revolução. Mas a revolução de 1688 é, para ele, "a revolução gloriosa" precisamente por ser constitucional. Macaulay escreveu sua história da revolução de 1688 imediatamente após os fatos de 1848 e revela seu medo do proletariado e de sua possível vitória. 55

Relata com alegria e orgulho que o Parlamento, ao depor James II, truncou, observou detalhadamente todos os precedentes e chegou mesmo a reunir-se nos antigos salões, vestindo os trajes prescritos pelo ritual. A lei e a constituição eram vistas como verdades não-históricas, sem relação com a classe dominante; deste modo, fica fechado o caminho para a ~ompreensão da verdadeira essência da revolução. Tal era a distribuição das forças classistas após a revolução inglesa. As principais tendências filosóficas da época, imediatamente precedendo e seguindo a revolução, eram: O materialismo, que se originara em Bacon e que estava representado na época de Newton por Hobbes, Tolland, Overton e, em parte, por Locke. O sensualismo idealista, representado por Berkeley. H. Moore tinha uma posição próxima. Ainda mais, havia uma tendência bastante forte de filosofia moral e deísmo, representada por Shaftesbury e Bolingbroke. Estas tendências filosóficas existiam e se desenvolveram nas condições complexas da luta de classes, cujas principais características foram esquematizadas acima. Desde a época da Reforma, a Igreja se tornara um dos principais baluartes do poder da monarquia. A organização eclesiástica era dos componentes do sistema do Estado e o rei era o chefe desta Igreja estatal. James I gostava de dizer: "Se não há bispo, não há rei." Todo súdito de um rei inglês devia pertencer à Igreja do Estado; quem não pertencia era considerado autor de um crime contra o Estado. A luta contra o poder absoluto do rei era, ao mesmo tempo, uma luta contra o centrafüino e o absolutismo da Igreja estatal dominante; portanto, a luta política da burguesia em ascensão contra o absolutismo e o feudalismo era conduzida sob a bandeira da democracia religiosa e da tolerância em matéria de fé. O nome coletivo de "puritanos" se aplica a todos os partidários da purificação e democratização da Igreja dominante. É preciso distinguir entre os puritanos, entretanto, a tendência mais radical dos independentes daquela facção mais conservadora dos presbiterianos. Estas duas tendências formavam a base de partidos políticos. Os partidários dos presbiterianos representavam os comerciantes abastados da burguesia urbana. Os independentes tinham como suporte os estratos mais democráticos rurais e urbanos. Deste modo, tanto a luta de classes da burguesia contra o absolutismo como a luta das tendências dentro dos quadros da própria burguesia e do campesinato foram disputados sob o manto da religião. As tendências religiosas da burguesia foram fortalecidas ainda mais pelo desenvolvimento na Inglaterra de doutrinas materialistas. 56

Revisemos rapidamente as principais etapas do desenvolvimento do materialismo nessa época e seus representantes mais importantes. Bacon foi o criador do materialismo, que se formou na luta contra os escolásticos medievais. Ele queria libertar a humanidade dos velhos preconceitos tradicionais e criar um método para controlar as forças da natureza. Em sua doutrina, estavam ocultos os embriões do desenvolvimento multilateral do materialismo. "A matéria, com seu brilho prático e sensível, sorria para toda a humanidade" (Marx). Nas mãos de Hobbes, o materialismo se converte em algo abstrato e unilateral. Hobbes não desenvolve o materialismo de Bacon, apenas o sistematiza. A sensibilidade perde suas cores vivas e se transforma em uma sensibilidade abstrata de geômetra. Toda a variedade de movimentos é sacrificada pelo movimento mecânico, a geometria é proclamada a ciência dominante (Marx). A alma viva do materialismo abstrato, calculista e formalmente matemático, não podia estimular a ação revolucionária. É por esta razão que a concepção materialista de Hobbes não interfere com sua visão monarquista e com sua defesa do absolutismo. Após a vitória da revolução de 1649, Hobbes foi para o exílio. Mas, contemporânea ao materialismo de Hobbes, existe uma outra tendência materialista, indissoluvelmente ligada ao verdadeiro movimento revolucionário dos igualitários. Encabeçava esta tendência Richard Overton, um leal colaborador do líder dos igualitários - John Lilburne, o propagandista fogoso das idéias revolucionárias e brilhante panfletista político. Em contraste com Hobbes, era um materialista prático, um revolucionário. É curioso o destino desse lutador e filósofo. Enquanto o nome de Hobbes é amplamente conhecido e se encontra em todos os textos de filosofia, não se encontra uma palavra sequer sobre Overton, não só nos mais detalhados manuais burgueses de filosofia, como mesmo nos mais completos dicionários bibliográficos. Assim se vinga a burguesia de seus oponentes políticos. Richard Overton escreveu pouco. Trocava constantemente a pena pela espada e a filosofia pela política. Sua obra O homem mortal em todos os sentidos foi publicada em primeira edição em 1643 e, em segunda edição, em 1655. É uma composição notavelmente materialista e ateísta. Imediatamente após sua aparição, foi condenada e proibida pela igreja presbiteriana. O manifesto do conclave presbiteriano, dirigido "contra a incredulidade e a falsa fé'', clama por todo tipo de castigo para que recaia sobre a cabeça de Richard Overton. "O principal representante da terrível doutrina do materialismo" - declara o manifesto - "que rejeita a imortalidade da alma, é Richard Overton, autor de um livro sobre a mortalidade do homem". 57

Não entraremos nos detalhes da doutrina de Overton e de seu destino - uma das páginas mais interessantes da história do materialismo inglês. Mencionaremos apenas uma parte da publicação mencionada, na qual Overton formulou, de maneira clara, os princípios básicos de sua concepção materialista do mundo. Ao criticar o contraste entre o corpo como matéria inerte e a alma como princípio formador ativo, Overton escreve: '' A forma é sempre a forma da matéria, e a matéria é o material da forma. Cada uma delas não pode existir em separado, por si só, mas apenas em unidade com a outra, e apenas nesta unidade formam uma coisa. "Tudo que surge é criado a partir de elementos naturais [Overton usa o termo "elementos" no sentido dos gregos antigos: a água, o ar, a terra]. Mas tudo que surgiu é material, porque o que não é material não existe." Diferentemente da Inglaterra, no materialismo em solo francês a bandeira teórica dos republicanos e terroristas formava a base para a "Declaração dos Direitos do Homem". Na Inglaterra, o materialismo revolucionário de Overton foi apenas a doutrina de um grupo marginal, enquanto a principal luta se desenvolveu sob lemas religiosos. O materialismo inglês, como apresentado por Hobbes, proclamavase uma filosofia mais adequada para os cientistas e as pessoas educadas, em contraste com a religião que era considerada suficiente para a massa inculta, incluindo mesmo a burguesia. Com Hobbes o materialismo, expurgado de seu revolucionarismo ativo, voltou-se para a defesa do poder da monarquia e do absolutismo, encorajando a repressão do povo. Mesmo a nova forma deísta do materialismo de Bolingbroke e Shaftesbury, permaneceu uma ciência esotérica e aristocrática. O materialismo "misantrópico" de Hobbes era odioso para a burguesia, não apenas por uma heresia religiosa como também por seus vínculos aristocráticos. Foi por esta razão que, em oposição ao materialismo e ao deísmo da aristocracia, as seitas protestantes se colocaram em luta contra os Stuart e forneceram as principais forças da classe média progressiva (Engels). Porém, ainda mais odioso para a burguesia do que o materialismo esotérico de Hobbes era o materialismo de Overton, um materialismo que servia de bandeira para a luta política contra a burguesia, um materialismo que se aproximava de um ateísmo militante e que, destemidamente, se opunha às próprias bases da religião. Foi nestas condições que se formou e se desenvolveu a concepção de mundo sustentada por Newton.

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Newton é um representante típico da burguesia em ascensão, e em sua filosofia reflete os traços característicos de sua classe. Podemos, com toda justiça, aplicar a ele aquela caracterização que Engels faz de Locke, pois era também um filho típico do compromisso entre as classes alcançado em 1688. Newton era filho de um pequeno fazendeiro. Sua posição na universidade e na sociedade, até sua nomeação como diretor da Casa da Moeda (1699), era muito modesta. Devido às suas relações, pertencia também à classe média. Suas relações filosóficas estavam mais próximas de Locke, Samuel Clarke e Bentley. Em suas crenças religiosas Newton era protestante, podendo-se supor que pertencia à seita dos socinianos. 18 Era um ardente partidário da democracia e da tolerância religiosa. Veremos mais adiante que as crenças religiosas de Newton formavam parte de sua concepção de mundo. Em suas posições políticas, Newton pertencia ao partido Whig. Durante a segunda revolução, foi membro do Parlamento por Cambridge, de 1689 a 1690. Quando surgiu o conflito sobre a questão de se prestar juramento ao "monarca ilegítimo", Guilherme de Orange, o que chegou a causar desordens públicas em Cambridge, Newton, que como membro do Parlamento tinha que tomar o juramento da Universidade, estava a favor do juramento de fidelidade e do reconhecimento de Guilherme de Orange como rei. Em sua carta ao doutor Cowell, Newton expõe três argumentos a favor do juramento de fidelidade a Guilherme de Orange. Estas razões serviram para remover quaisquer dúvidas dos membros da Universidade que já haviam prestado juramento ao rei deposto. O raciocínio e argumento de Newton lembram fortemente as opiniões de Macaulay e de Hume, já mencionadas. Este perfil ideológico de Newton, como produto de sua classe, explica por que aqueles embriões de materialismo ocultos nos Principia não se transformaram até a construção coerente do materialismo mecanicista, similar à física de Descartes, mas se misturaram com suas crenças idealistas e teológicas que, em questões filosóficas, chegavam mesmo a subordinar os elementos materialistas da física newtoniana. O significado dos Principia não se limita à sua importância para a técnica. Seu próprio título indica que se trata de um sistema, de uma concepção do universo. Portanto, seria incorreto restringir a análise dos conteúdos dos Principia à determinação da relação intrínseca com a economia e a técnica da época, que serviram às necessidades da burguesia em ascensão. As ciências naturais modernas devem sua independência ao fato de se terem libertado da teologia, só reconhecendo o estudo causal da natureza. 19 Um dos lemas de luta da Renascença era: "O saber verdadeiro só é possível pelo conhecimento das causas" ("vere acire per 59

causas scire''). Bacon enfatizou que o enfoque teleológico é o mais perigoso de seus ido/a. 20 As relações reais entre as coisas se encontraram na causalidade mecânica. "A natureza conhece apenas a causalidade mecânica; todos os nossos esforços devem ser dirigidos para o seu estudo." A concepção mecanicista do universo leva necessariamente a uma concepção mecanicista da causalidade. Descartes estabelecia o princípio da causalidade como "uma verdade eterna". Na Inglaterra, o determinismo mecanicista veio a ser geralmente aceito, ainda que entremeado, muitas vezes, com dogmas religiosos (a seita "Christian Necessarians", à qual pertencia Priestley). Esta combinação peculiar tão caractetística dos pensadores ingleses - também se encontra em Newton. A aceitação universal do princípio da causalidade mecânica como princípio único e fundamental para a investigação científica da natureza se deve ao poderoso desenvolvimento da própria mecânica. Os Principia de Newton são uma aplicação grandiosa deste princípio ao nosso sistefl}a planetário. "A velha teleologia foi para o inferno", mas apenas no que se refere à natureza inorgânica e à mecânica terrestre e celeste. A idéi.:t fundamental dos Principia consiste em representar o movimento dos planetas como conseqüência da soma de duas forças: uma em direção ao Sol e, a outra, o impulso original. Newton deixou este impulso inicial para Deus, porém "proibiu-lhe qualquer intervenção posterior no sistema solar" (Engels). Esta "divisão do trabalho" única na direção do universo entre Deus e causalidade era característica do enlace feito pelos filósofos ingleses entre o dogma religioso e os princípios materialistas da causalidade mecânica. O reconhecimento do caráter modal do movimento e a negação da matéria em movimento como causa sui iriam conduzir Newton, inevitavelmente, à concepção do impulso original. Deste ponto de vista, a idéia da clivindade no sistema de Newton não é causal, mas está organicamente vinculada a suas opiniões sobre a matéria e o movimento, assim C()mo a sua opinião sobre o espaço, em cujo desenvolvimento sofreu uma grande influência de Henri Moore. E neste ponto que se observa toda a debilidade da concepção filosófica geral de Newton acerca do universo. O princípio da causalidade puramente mecânica conduz ao conceito de início divino. "O infinito absurdo" eia cadeia universal do determinismo mecânico culmina no impulso inicial, abrindo as portas para a teleologia. Assim , o significado dos Principia não se limita aos problemas de física, uma. vez que tem grande interesse metodológico. No terceiro livro dos Principia, Newton expõe o "sistema do mundo". Na "obser-

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vação" geral do terceiro livro (na terceira edição), demonstra a necessidade de Deus, como construtor, motor e dirigente nos inícios do universo. Não entraremos na questão da autoria desta "observação", nem no papel de Cotes e Bentley na publicação dessa edição dos Principia. Existe muita literatura sobre a questão, mas as cartas de Newton citadas adiante provam, de maneira inegável, que as posições teológicas de Newton não eram um acréscimo a seu sistema e nem lhe foram impostas por Cotes ou Bentley. Quando Robert Boyle morreu, em 1692, deixou um capital que rendia 50 libras por ano com a finalidade de que fossem lidas todos os anos oito conferências, em uma igreja inglesa, nas quais "se expusessem provas da irrefutabilidade do cristianismo e se repudiasse a descrença". A Bentley, capelão do bispo de Worcester, coube a leitura da primeira série destas palestras; dedicou a sétima e a oitava às provas da necessidade da existência da divina providência. Decidiu também tomar estas provas do exame dos princípios físicos da estrutura do mundo, tal como aparecem nos Principia de Newton. Ao preparar suas conferências encontrou uma série de dificuldades de ordem física e filosófica, para cuja explicação se dirigiu ao próprio autor dos Principia. Em quatro cartas, em resposta. Newton analisou detalhadamente as questões colocadas por Bentley. Estas cartas são uma fonte valiosa de informação sobre as opiniões de Newton sobre o problema cosmológico. A principal dificuldade exposta por Bentley consistia em saber como repudiar o argumento materialista, já colocado por Lucrécio, segundo o qual a criação do mundo podia ser explicada através de princípios puramente mecânicos, se assumisse que a matéria possui a propriedade imanente da gravitação e está distribuída de maneira uniforme no espaço. Em suas cartas. Newton indicou em detalhes a Bentley como superar esta argumentação materialista. Não é difícil verificar que aqui está em questão a teoria da evolução do universo na qual Newton também se opõe resolutamente a uma concepção materialista da evolução. "Quando escrevi o terceiro livro dos Principia - escreve Newton a Bentley - "dei especial atenção àqueles princípios que para as pessoas cultas poderia servir como prova da existência do poder divino. "Se a matéria estivesse uniformemente distribuída em um espaço finito, então, devido à sua força de gravidade, ela se reuniria em uma única e grande massa esférica. Mas, se a matéria estivesse distribuída em um espaço infinito, então poderia, submetendo-se à força de gravidade, formar massa de diferentes magnitudes. "Entretanto, em nenhum caso é possível explicar por meio da causas naturais como a massa luminosa - o Sol - está no centro do sistema e na posição em que de fato se encontra.'' 61

"Por isso, a única explicação possível consiste em admitir um criador divino do universo, que sabiamente distribui os planetas, de tal modo que recebam a luz e o calor necessários." Mais adiante, ao analisar a questão de por que os planetas, como resultado de causas naturais, podem se pôr em movimento, Newton mostra a Bentley que como conseqüência da força de gravidade, que é uma causa natural, os planetas podem se mover, mas não podem nunca se transladar periodicamente em órbitas fechadas, pois para isto seria necessário um componente tangencial. Portanto, conclui Newton, em nenhum caso é possível explicar, pelas causas naturais, as trajetórias reais dos planetas e nem a estrutura do universo; portanto, ao examinar a estrutura do universo fica evidente a presença de um elemento divino e racional. Mais adiante, examinando a questão da estabilidade do sistema solar, Newton aponta que um sistema tão maravilhosamente construído, no qual a velocidade e a massa dos corpos estão reunidos de tal modo que se encontram em equilíbrio estável, só poderia ser criado pela razão divina. Esta concepção de Newton, com seu recurso à razão divina como princípio superior, criador e primeira força motriz do universo, não é acidental, mas é conseqüência necessária de sua concepção dos fundamentos da mecânica. A primeira lei de Newton sobre o movimento atribui à matéria a propriedade de conservar aquele estado em que se encontra. Porém, como Newton considerava apenas a forma mecânica do movimento, seu conceito de "estado da matéria" é equivalente ao estado de inércia ou à translação mecânica. A matéria, sobre a qual não atuem forças externas, influência, pode se encontrar em um estado de repouso ou em um estado de movimento retilíneo e uniforme. Se um corpo material se encontra em repouso, apenas uma força externa pode tirá-lo desse estado. Se um corpo está em movimento, apenas uma força externa pode mudar esse movimento. Portanto, o movimento não é um atributo imanente a um corpo, mas um modo que a matéria pode não possuir. Neste sentido, a matéria, segundo Newton, é inerte no sentido completo da palavra. É sempre necessário um impulso externo para colocá-la em movimento ou para alterar ou deter este movimento. Mais ainda: como Newton aceita a existência de um espaço absoluto e imóvel, para ele inércia é possível também como inércia absoluta; desta maneira, é possível do ponto de vista físico a existência de matéria absolutamente imóvel e não meramente imóvel em um determinado sistema de referência. É claro que tal concepção modal do movimento deve conduzir inevitavelmente à introdução de uma força mo-

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tora externa, e este é, precisamente, segundo Newton, o papel desempenhado por Deus. É importante notar que Newton não só não se opõe, em princípio, à idéía de dar à matéria determinados atributos, mas, ao contrário de Descartes, reconhece que a densidade e a inércia são "propriedades imanentes da matéria". Assim, negando ao movimento seu caráter de atributo da matéria e aceitando-o apenas como um todo, Newton conscientemente despoja a matéria daquela propriedade inalienável sem a qual a estrutura e a criação do mundo não podem ser explicadas por meio de causas naturais. Se compararmos o critério de Newton com aquele de Descartes, a diferença entre suas teorias fica imediatamente evidente. "Eu digo abertamente [declara Descartes em seus Princípios] que na natureza das substâncias corporais não reconheço outra matéria senão aquela que pode ser dividida de diversas maneiras, que pode tomar forma e movimento, que os matemáticos chamam de quantidade e que é o objeto de suas demonstrações; que no que se refere a esta matéria, considero apenas sua separação, suas formas e seu movimento e reconheço como verdadeiro apenas aquilo que deriva destes princípios com a mesma, como clareza dos postulados matemáticos. Por este caminho, todos os fenômenos da Natureza podem ser explicados. Por isto, mantenho o critério de que em física são desnecessários e inaceitáveis outros princípios que não estes aqui expostos." Em sua física, Descartes não admite causa sobrenatural alguma. Por este motivo, Marx aponta que o materialismo mecanicista francês se associou à física de Descartes, em oposição à sua metafísica: "A física de Descartes pode desempenhar esre papel pelo fato de que nos limites desta física a matéria representa a única substância, o único fundamento para a existência do ser do conhecimento." Na terceira parte de seus "Princípios de Filosofia", Descartes dá um quadro do desenvolvimento do universo. A diferença de posição cartesiana consiste em Descartes considerar em detalhe a gênese histórica do universo e do sistema solar, de acordo com os princípios antes mencionados. É verdade que Descartes também considera o movimento como um modo de matéria, ainda que, ao contrário de Newton, para ele a lei suprema é a da conservação da quantidade de movimento. Corpos materiais podem adquirir e perder movimentos, porém a quantidade total de movimento no universo é constante. Em Descartes, a lei da conservação da quantidade de movimento está contida no postulado da indestrutibilidade do movimento. É verdade que Descartes compreendia a indestrutibilidade em um sentido puramente quantitativo; uma tal formulação mecanicista da lei 63

da conservação da quantidade de movimento não é acidental, mas surge do fato de tanto Descartes como Newton serem partidários da redução de todas as formas de movimento à translação mecânica e não considerarem o problema da transição de uma forma de movimento para outra, o que, como veremos na segunda parte deste trabalho, se deve a razões profundas. Engels tem o grande mérito de considerar o processo de movimento da matéria uma transição de uma forma de movimento para outra. Isto lhe permitiu não apenas estabelecer um dos postulados básicos do materialismo dialético - o de que a matéria e o movimento são inseparáveis - como também levar a nível mais alto a compreensão da lei da conservação da energia e da quantidade de movimento. Descartes, assim como Newton, introduziu Deus, mas o seu Deus é necessário unicamente para demonstrar que a quantidade de movimento no universo é constante. Não apenas não admite o impulso externo de Deus sobre a matéria, como, pelo contrário, considera que a distância é uma das propriedades fundamentais da divindade e, portanto, em suas criações não podemos pressupor inconstância alguma, pois com està suposição estaríamos admitindo a inconstância do próprio Deus. 21 Desta maneira, a razão pela qual Descartes introduz Deus é diferente da de Newton, ainda que a divinidade também seja necessária em sua concepção, pois Descartes não tem um critério totalmente conseqüente acerca do auto-movimento da matéria. Durante este período em que Descartes e Newton estavam criando as suas concepções sobre a matéria e o movimento, embora algo mais tarde (anos 90 do século XVII), encontramos em John Tolland uma concepção materialista, muito mais conseqüente, da correlação entre matéria e movimento. Ao criticar as opiniões de Spinoza, Descartes e Newton, Tolland dirige seu ataque principal contra a c0,1cepção do caráter modal do movimento. "O movimento" - argumentava Tolland em sua quarta carta a Sirene - "é a propriedade mais essencial da matéria, tão inseparável dela como a gravidade, à impenetrabilidade e a dimensão. Deve entrar como parte de sua definição". "Esta é a única concepção" - Tolland muito justamente afirma - "que oferece uma explicação racional da lei da conservação da quantidade de movimento, pois resolve todas as dificuldades sobre a existência de uma força motriz". No materialismo dialético de Marx, Engels e Lênin, a doutrina do automovimento da matéria teve seu desenvolvimento pleno. O transcurso completo da física contemporânea demonstra a justeza desta doutrina. Na física contemporânea vem sendo mais e mais aceito o critério de que matéria e movimento são inseparáveis. A física contemporânea rejeita o repouso absoluto.

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Como resultado da significação universal da lei da conservação e transformação da energia, cada vez mais se reafirma a concepção da correlação entre matéria e energia desenvolvida por Engels. Esta é a única que oferece uma compreensão real da lei de transformação da energia, e que sintetiza os aspectos quantitativos e qualitativos desta lei, unindo-a organicamente com o automovimento da matéria. Indicamos anteriormente a relação existente entre a lei da inércia e o conceito de matéria inerte, e o espaço absoluto de Newton. Mas Newton não se restringiu apenas à concepção física do espaço, e deulhe também uma concepção filosófico-teológica. O materialismo dialético considera o espaço uma forma de existência da matéria. O espaço e o tempo são as condições originais da existência de todos os seres, e, portanto, o espaço é inseparável da matéria. Toda matéria existe no espaço, mas o espaço existe apenas na matéria. O espaço vazio, divorciado da matéria, é mera abstração lógica ou matemática, fruto da atividade do nosso pensamento, à qual não corresponde coisa real alguma. Segundo a test: de Newton, o espaço pode ser separado da matéria e o espaço absoluto conserva suas propriedades absolutas precisamente porque existe independentemente da matéria. Os corpos materiais estão no espaço como que num recipiente. O espaço newtoniano não é apenas uma forma da existência da matéria, mas apenas um receptáculo, independente destes corpos e com existência autônoma. Tal é a concepção de espaço exposta nos Principia. Infelizmente, não podemos entrar aqui em uma análise detalhada desta concepção. Observaremos apenas que ela está intimamente relacionada com a primeira lei do movimento. Após ter definido o espaço como um recipiente, separado da matéria, Newton naturalmente se pergunta qual é a essência desse recipiente. Ao resolver esta questão, Newton concorda com H. Moore, que sustenta o critério de que o espaço é "o sensório de Deus" (sensorium dei).

Nesta questão, Newton também difere, ·radicalmente, de Descartes, o qual desenvolvera uma concepção do espaço como um corpo físico. A concepção de Descartes não é satisfatória porque identifica a matéria com um objeto geométrico. Enquanto Newton separa espaço e matéria, Descartes - ao materializar as formas geométricas - despoja a matéria de todas as suas qualidades, com exceção da extensão. Isto, é claro, também é incorreto, mas esta concepção não levou Descartes, em sua física, às mesmas conclusões a que chegara Newton. O que existe no espaço desprovido de matéria? pergunta Newton na questão 28 da Óptica. Como pode ser que na natureza tudo responda a uma ordem e de onde provém a harmonia do mundo? Por acaso não decorre dos próprios fenômenos da natureza a existência de 65

um ser imaterial, racional e onipresente, para quem o espaço é um sensório por meio do qual percebe as coisas e as concebe em sua própria essência? Vemos assim que, também nesta questão, Newton aceita decididamente o ponto de vista do idealismo teológico. Deste modo, as posições idealistas de Newton não são acidentais, mas organicamente unidas à sua concepção de mundo. Enquanto em Descartes encontramos o dualismo agudo de sua física e metafísica, em Newton, particularmente em seu último período, não apenas não encontramos desejo algum de separar sua concepção física da filosófica, como, pelo contrário, em seus Principia tenta fundamentar suas opiniões religiosas-teológicas. Como os Principia são resultado das exigências da economia e da técnica da época e estudam as leis do movimento dos corpos materiais, neles se encontram, indubitavelmente, elementos de um materialismo saudável. Mas os defeitos gerais das concepções filosóficas de Newton, indicados acima, e seu estreito determinismo mecânico, não só não lhe permitem desenvolver estes elementos como, pelo contrário, os coloca em segundo plano dentro da concepção geral religiosa-teológica do universo de que Newton compartilha. Newton era, tanto em suas opiniões filosóficas como nas religiosas e políticas, filho de sua classe. Ele se opunha ardentemente ao materialismo e à incredulidade. Em 1692, após a morte de sua mãe e o incêndio que destruiu seus manuscritos, Newton estava em estado de depressão. Naquela ocasião escreveu a Locke, com quem manteve uma correspondência sobre diferentes questões teológicas, uma carta áspera a respeito de seu sistema filosófico. Em carta de 16 de setembro de 1693, pede a Locke que o desculpe por essa carta e por ter pensado que o sistema de Locke afetava os princípios de moral. Em especial, Newton pede desculpas por ter considerado Locke um seguidor de Hobbes. 22 Aqui se encontra a confirmação da afirmação de Engels de que o materialismo de Hobbes era odioso para a burguesia. Não há sequer necessidade de falar do materialismo de Overton - afinal ele era quase um bolchevique. 23 Quando Leibniz, em suas cartas à princesa de Gales, acusava Newton de materialismo - precisamente porque este considerava o espaço um sensório de Deus, graças ao qual concebe as coisas, as quais conseqüentemente não dependem completamente dele e não foram criadas por ele - Newton protestou incisivamente contra tais acusações. Em sua polêmica com Leibniz, Clarke tinha como propósito a reabilitação de Newton dessas acusações. 24 No campo da física, as pesquisas de Newton se mantêm, em sua maior parte, dentro dos limites de uma forma determinada de movi66

mento - o deslocamento mecânico - e, portanto, não contêm concepção alguma sobre o desenvolvimento e a transição de uma forma de movimento para outra. No campo das concepções sobre a natureza como um todo, a idéia de desenvolvimento está completamente ausente. Newton encerra o primeiro período das novas ciências naturais no que se refere ao mundo inorgânico. Este é um período de assimilação do material disponível. No campo da matemática, da astronomia e da mecânica, ele alcançou grandes resultados, em especial graças à obra de Kepler e Galileu, que Newton completou. Mas faltava um critério histórico da natureza. Como um sistema, está ausente em Newton. As ciências naturais, revolucionárias em suas origens, se detêm na natureza conservadora, a qual permanece, de século para século, no mesmo estado em que foi criada. Não apenas faltava uma visão histórica da natureza na obra de Newton, como, em seu sistema de mecânica, também não se encontra a lei da conservação da energia. Isto é ainda mais incompreensível, à primeira vista, diante do fato de a lei da conservação da energia ser uma simples conseqüência matemática das forças centrais de que trata Newton. Mais ainda, Newton considera, por exemplo, casos de oscilação, para cuja explicação Huygens - estudando a questão dos centros das oscilações - deu uma enunciação tácita da lei da conservação da energia. Fica evidente que não foi a falta de gênio matemático, nem uma limitação em seu horizonte físico, que impediram Newton de enunciar esta lei, mesmo que sob a forma de uma integral de forças vitais. 25 Para explicar este fato precisamos analisar a questão do ponto de vista de nossa concepção marxista do processo histórico. Tal análise irá nos permitir discutir esta questão no que diz respeito ao problema da transformação de uma forma de movimento para outra, cuja solução foi dada por Engels. 4. A concepção de energia segundo Engels e a ausência da

Lei da Conservação da Energia em Newton. Ao analisar os problemas das inter-relações entre matéria e movimento na obra de Newton, vimos que Tolland sustenta o critério de que matéria e movimento são inseparáveis. Entretanto, este simples reconhecimento está longe de resolver o problema do estudo das formas de movimento da matéria. Na natureza, observamos uma variedade sem fim de formas de movimento da matéria. Se nos detemos para considerar aquelas estudadas pela física, encontramos uma série de formas diferentes de movimento (mecânico, térmico, eletromagnético).

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A mecânica estuda aquela forma de movimento que consiste no simples deslocamento de corpos no espaço. Entretanto, além desta forma de movimento existem outras, nas quais o deslocamento mecânico passa para um segundo plano em comparação com as novas formas específicas de movimento. As leis do movimento de elétrons, ainda que estejam relacionadas com a translação mecânica, não se reduzem a ela. Conseqüentemente, de modo distinto da concepção mecanicista, que considera sua principal tarefa a redução de todo o complexo conjunto de movimentos da matéria a uma única forma - o deslocamento mecânico - o materialismo dialético considera o estudo das formas de movimento da matéria em suas interconexões, inter-relações e desenvolvimento, como a principal tarefa das ciências naturais. O materialismo dialético entende o movimento como mudança em geral. O deslocamento mecânico é apenas uma forma parcial de movimento. Na matéria real, na natureza, nunca encontramos formas absolutamente isoladas e puras de movimento. Cada forma real de movimento, incluindo, é claro, o deslocamento mecânico, está sempre vinculado à transição de uma forma de movimento para outra. Enquanto a física permaneceu dentro dos limites de uma forma única de movimento, o mecânico (o qual, como vimos, constitui uma peculiaridade da física da época de Newton) não podia colocar o problema da correspondência desta com outras formas de movimento. Quando se colocava tal problema, existia sempre uma tendência a hipostasiar justamente esta forma mais simples e melhor estudada de movimento e apresentá-lo como o tipo único e universal de movimento. Esta era a posição de Descartes e Huygens, e Newton se associou, no essencial, a ela. Na introdução dos Principia, Newton chama atenção para a circunstância de que "seria desejável deduzir dos princípios da mecânica o resto dos fenômenos da natureza" (Newton deduziu, no terceiro livro, a rotação dos planetas destas leis). "Muitos fatos me obrigam a assumir" - continua ele - "que todos estes fenômenos [da natureza] são determinados pelas forças com as quais as partículas dos corpos, em conseqüência de causas até aqui desconhecidas, são atraídas umas para as outras ou se entrelaçam formando figuras regulares, ou são mutuamente repelidas entre si e se separam umas das outras." Como desenvolvimento da grande indústria, ganhou relevância o estudo das novas formas de movimento da matéria e sua exploração para as necessidades da produção. A máquina a vapor deu um forte impulso ao estudo de uma nova forma de movimento, a térmica. O estudo da história do desenvolvimento da máquina a vapor tem para nós um duplo significado.

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Em primeiro lugar, estudamos a questão de ter sido o desenvolvimento do capitalismo industrial, e não o do capitalismo mercantil, que colocou o problema da máquina a vapor. Isto irá explicar por que a máquina a vapor se converteu no objeto central de investigação, não na época de Newton, mas no período imediatamente posterior, ainda que a invenção da máquina a vapor date do tempo de Newton (a patente é de Ramsay, de 1630). Veremos que a relação entre o desenvolvimento da termodinâmica e o da máquina a vapor é a mesma que aquela entre os problemas técnicos da época de Newton e sua mecânica. Mas o desenvolvimento da máquina a vapor tem, para nós, um interesse a mais. Diferentemente das máquinas mecânicas (a polia, o parafuso e a alavanca), nas quais um tipo de movimento mecânico é transformado em outro tipo de deslocamento mecânico, a máquina a vapor, por sua própria essência, se baseia na transformação de um tipo de movimento (térmico) em outro (mecânico). Assim, junto com o desenvolvimento da máquina a vapor deveria surgir, inevitavelmente, o problema da transição de uma forma de movimento para outra - o qual não se encontra em Newton - que está intimamente relacionado com o problema da energia e sua transformação. Em primeiro lugar, tratemos do estudo das principais etapas do desenvolvimento da máquina a vapor em relação com o desenvolvimento das forças produtivas. Marx apontou que, no comércio medieval, as primeiras cidades comerciais tinham o caráter de intermediárias. Este comércio se baseava no estado de barbárie dos povos produtores, para quem as cidades comerciais e os comerciantes desempenhavam o papel de intermediários. Enquanto o capital mercantil desempenhou o papel de intermediário na troca de produtos com os países não desenvolvidos, o lucro mercantil não só era o resultado de fraude e falsidade, mas se originava diretamente. Mais tarde, o capital mercantil explorou a diferença entre os preços de produção de diferentes países. Ainda mais, como já enfatizava Adam Smith, durante o primeiro estágio de seu desenvolvimento o capital mercantil é principalmente um contratante e supre as necessidades do proprietário feudal de terra ou déspota oriental, os quais concentram em suas mãos a principal massa de excedentes de produtos e se interessam relativamente pouco pelos preços das mercadorias. Estas são as razões que explicam os enormes lucros do comércio medieval. A expedição portuguesa de 1521 adquiria cravo nas Ilhas Molucas por 2/3 de ducado e o vendia na Europa por 336 ducados. 26 O custo total da expedição chegou a 22.000 ducados; os ingressos foram de 150.000 ducados e os lucros de 130.000, ou seja, de cerca de 600 por cento.

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No início do século XVII os holandeses compraram, no mesmo lugar, 625 libras de cravo a 180 guilders e o venderam nos Países Baixos por 1.200 guilders. As maiores porcentagens de lucros se obtiam naqueles países que estavam completamente submetidos aos europeus; mas, mesmo no comércio com a China, que havia perdido sua independência, os lucros alcançavam de 75 a lOOOJo. O capital mercantil, quando prevalece como hegemônico é, em toda parte, um sistema de expoliação. Os altos índices de lucros se mantiveram no século XVII e nos começos do XVIII, o que é explicado pela circunstância de o comércio extensivo da baixa Idade Média e dos inícios da idade moderna ter sido, principalmente, um comércio monopolista. A Companhia inglesa das Índias Orientais estava intimamente unida ao poder estatal. A Lei de Navegação, promulgada por Cromwell, fortaleceu o monopólio do comércio britânico. O declínio gradual da Holanda, como potência naval, data daquela época e alicerça a hegemonia naval da Inglaterra. Portanto, enquanto a forma dominante do capital era mercantil, a atenção estava dirigida não tanto para a melhoria do próprio processo de troca, mas para a consolidação da posição monopolista e do domínio sobre as colônias. O capitalismo industrial em desenvolvimento volta sua atenção imediatamente para o processo de produção. A livre concorrência interna, conquistada pela burguesia inglesa em 1688, forçou uma imediata consideração do problema dos custos de produção. Como observou Marx, a grande indústria universalizou a competição e transformou as tarifas protecionistas em mero paliativo. Tornou-se necessário não apenas produzir mercadorias de boa qualidade e em quantidades suficientes, mas produzi-las ao menor custo possível. O processo de barateamento dos custos de produção se desenvolve em dois sentidos diferentes: o aumento constante da exploração da força de trabalho (produção de mais-valia absoluta) e o aperfeiçoamento do próprio processo de produção (mais valia relativa). A invenção de máquinas não apenas não levou à redução da jornada de trabalho como, pelo contrário, sendo um recurso poderoso para o aumento da produtividade do trabalho como instrumento do capital, se converteu em um meio para o prolongamento ilimitado da jornada de trabalho. Podemos seguir este processo no que diz respeito à máquina a vapor. Mas antes de entrarmos na análise da história de seu desenvolvimento, devemos esclarecer o que compreendemos pelo termo "máquina", uma vez que existe uma diferença radical, nesta questão, entre o ponto de vista do marxismo e o de outros pesquisadores. Ao mesmo tempo, para elucidar a essência da revolução industrial que elevou a máquina a vapor a um lugar de destaque, é necessário ter uma clara compreensão do papel desempenhado por essa máquina nessa revolução. 70

Há uma opinião muito difundida de que a máquina a vapor criou a revolução industrial. Esta opinião é errônea. A manufatura surge da produção artesanal por um caminho duplo. Por um lado, parte da combinação de artesãos independentes, de tipos diversos, que perdem sua independência; por outro, surge da cooperação entre artesãos de um mesmo ofício, mediante a separação de um único processo em suas partes componentes e a divisão de trabalho dentro da manufatura. O ponto de partida na manufatura é a força de trabalho. O ponto de partida da grande indústria é o meio de trabalho. Sem dúvida, o problema da força motriz também é importante na manufatura, mas a revolução de todo o processo de produção, que foi preparada por uma detalhada divisão dentro dos limites da manufatura, não veio da força motriz do mecanismo de execução. Qualquer máquina compreende três partes básicas: o motor, o mecanismo de transmissão e os órgãos de execução.· A essência do ponto de vista histórico na definição de "máquina" consiste, precisamente, em que em diferentes períodos a máquina tem diferentes propósitos. A definição de máquina dada por Vitrúvio foi preservada até a revolução industrial: "a máquina é um instrumento de madeira, da maior utilidade na elevação e transporte de cargas". É por isso que os instrumentos básicos que serviam a estes fins - o plano inclinado, o parafuso, as polias e a alavanca - receberam o nome de máquinas simples. Ao analisar, na introdução dos Principia, a natureza da mecânica aplicada desenvolvida pelos antigos, Newton atribui a eles a doutrina das cinco máquinas simples: a alavanca, o parafuso, a polia, o torno e a cunha. Daí surge a opinião encontrada na literatura inglesa de que um instrumento é uma máquina simples e de que uma máquina é um instrumento complexo. , Mas a questão não está, de modo algum, na simplicidade ou na complexidade. A essência está em que a introdução do mecanismo de execução, cuja função é tomar e modificar adequadamente o objeto de trabalho, provoca uma revolução no próprio processo de produção. As outras duas partes da máquina existem para colocar o mecanismo de execução em movimento. Fica evidente, assim, o abismo que separa as máquinas conhecidas por Vitrúvio, que apenas realizam o deslocamento mecânico do produto acabado, das máquinas da grande indústria cuja função é a transformação completa do material do qual se obtém o produto. A fecundidade da definição de máquina dada por Marx é ressaltada quando a compararmos com as definições difundidas na literatura. Em sua Cinemática teórica, F. Reuleaux define a máquina como uma combinação de corpos resistentes, construídos de maneira tal que, por meio de sua força mecânica, as forças da natureza são obrigadas, mediante certos movimentos, a realizar uma ação. 71

Esta definição é igualmente aplicável à máquina de Vitrúvio e à máquina a vapor, ainda que sua aplicação à máquina a vapor enfrente dificuldades. A mesma deficiência caracteriza a definição de máquina dada por Sombart, que chama de máquina ao meio de trabalho, o conjunto de meios conduzido pelo homem cuja finalidade é a racionalização mecânica do trabalho. A máquina, como meio de trabalho, se diferencia do instrumento de trabalho precisamente porque é servida pelo homem, ao passo que o instrumento de trabalho serve ao homem. Esta definição é insatisfatória porque baseia a distinção entre instrumento e máquina na circunstância de que a primeira serve ao homem e a outra é servida pelo homem. Esta definição, fundada à primeira vista numa característica sócio-econômica, não apenas dá a idéia de que não existem diferenças entre o período no qual predomina o instrumento simples e aquele em que predomina o modo maquinista de produção, como cria uma imagem, totalmente absurda, de que a essência da máquina está em ser servida pelo homem. Disto resulta que uma máquina a vapor imperfeita, exigindo o serviço constante do homem (nas primeiras máquinas de Newcomen um menino tinha de abrir e fechar continuamente uma válvula), será uma máquina, enquanto que um complexo autômato que produz garrafas ou lâmpadas elétricas será um instrumento, uma vez que esse quase não requer o serviço de um homem. A definição de máquina dada por Marx dirige a atenção para o fator que cria uma revolução no próprio modo de produção. A força motriz é um componente necessário e muito importante da maquinaria do capitalismo industrial, mas não determina sua característica fundamental. Quando John Wyatt inventou a primeira máquina de fiar, não mencionou como era posta em movimento. "Uma máquina para fiar sem o uso dos dedos", tal foi seu programa. Não foram o desenvolvimento do motor e a invenção da máquina a vapor que criaram a revolução industrial do século XVIII, mas - pelo contrário - a máquina a vapor ganhou tal enorme importância porque a divisão do trabalho, desenvolvida na manufatura, e o aumento da produtividade tornaram possível e necessário inventar um instrumento de execução. A máquina a vapor, que havia nascido na indústria da mineração, encontrou um campo já preparado para sua aplicação como motor. A máquina de fiar de Arkwright era movida inicialmente por meio da força da água. Mas o emprego da água como força motriz predominante implicava grandes dificuldades, uma vez que a água não podia ser elevada a qualquer altura e sua carência não podia ser compensada, quando às vezes se esgotava seu suprimento, sempre exclusivamente local. 72

Apenas com a invenção da máquina de Watt pôde a indústria têxtil mecanizada, já suficientemente desenvolvida, receber o motor que lhe era imprescindível no estágio que havia alcançado. Portanto, a indústria têxtil mecanizada não é, de modo algum, uma conseqüência da invenção da máquina a vapor. A máquina a vapor surgiu na mineração. Já em 1630, na Inglaterra, foi dada uma patente para Ramsay pela ''elevação da água com a ajuda do fogo em obras de mineração profunda''. Em 1711, foi formada na Inglaterra uma "Sociedade para a elevação da água com a ajuda do fogo" para explorar a máquina de Newcomen. O maior serviço prestado pela máquina térmica (a vapor) à Inglaterra - escreve Sadi Carnot em seu trabalho Daforça motriz do fogo (1824)- foi indubitavelmente o ressurgimento da atividade nas minas de carvão, que estavam ameaçadas de ser fechadas devido às crescentes dificuldades na extração da água e na elevação dos minerais. A máquina a vapor tornou-se gradualmente um fator importante da produção. Então, passou-se a prestar atenção no que poderia torná-la mais econômica, reduzindo o gasto de vapor e, conseqüentemente, o de água e de combustível. Mesmo antes dos trabalhos de Watt, Smeaton havia-se dedicado à investigação do gasto do vapor em diferentes máquinas, fundando um laboratório especial para isso, em 1769. Descobriu que o consumo de vapor variava, em diferentes máquinas, de 176 a 76 kg por cavalohora. 27 Savery conseguiu construir uma máquina do tipo Newcomen com um gasto de 60 kg por cavalo-hora. Por volta de 1767, apenas em torno de Newcastle, havia cinqüenta e sete máquinas a vapor, com capacidade total de 1.200 cavalos de força. É óbvio que a questão da economia da máquina foi um dos problemas principais enfrentados por Watt. A patente que obteve em 1769 começa assim: "Meu método para diminuir o consumo de vapor em máquinas de fogo e, portanto, para diminuir o gasto de material combustível, consiste nas seguintes proposições básicas." O acordo feito por Watt e Boulton com os proprietários de minas de carvão consiste no recebimento, em dinheiro, da terça parte da soma obtida com a poupança de combustível. Sob estas condições, receberam, apenas de uma mina, duas mil libras em um ano. 28 As principais invenções na indústria têxtil foram feitas a partir de 1735 e por isto ocorreu de imediato uma demanda desse motor. Em sua patente, recebida em 1784, Watt descreve a máquina a vapor como um motor universal para a grande indústria. A racionalização técnica da máquina a vapor se converteu no problema central. A realização desta tarefa na prática tornou imprescindível o estudo detalhado dos processos físicos que ocorrem na máquina. 73

No laboratório da Universidade de Glasgow, Watt estudou em detalhe, diferentemente de Newcomen, as propriedades termodinâmicas do vapor e, deste modo, assentou as bases da termodinâmica como uma parte da física. Desenvolveu uma série de experiências sobre a temperatura de ebulição da água sob diferentes pressões em relação às mudanças na compressibilidade do vapor. Também estudou a temperatura latente durante a formação do vapor e desenvolveu e submeteu à comprovação a teoria de Black. 29 Deste modo, os problemas básicos da termodinâmica - ou seja, a teoria da temperatura latente durante a formação do vapor, a relação entre o ponto de ebulição, a pressão e a magnitude da temperatura latente de formação do vapor - começaram a ser resolvidos cientificamente por Watt. Foi este estudo detalhado dos processos físicos que ocorrem na máquina a vapor que permitiu a Watt ir mais longe que Smeaton, o qual - ainda que tenha proposto o estudo da máquina a vapor no laboratório - não foi além do aperfeiçoamento externo e puramente empírico da máquina de Newcomen, uma vez que se conheciam as qualidades físicas do vapor d'água. A termodinâmica não apenas recebeu um impulso da máquina a vapor para o seu desenvolvimento como, de fato, foi desenvolvida a partir do seu estudo. Surgiu a necessidade de estudar não só os processos físicos isolados da máquina a vapor como uma teoria geral destas máquinas, a teoria geral do rendimento das máquinas a vapor. Este trabalho foi desenvolvido por Sadi Carnot. A teoria geral da máquina a vapor e a teoria do coeficiente de rendimento levaram Carnot a investigar os processos gerais térmicos e à descoberta da segunda lei da termodinâmica. O estudo das máquinas a vapor - diz Carnot em seu trabalho Da força motriz do fogo - é extraordinariamente interessante, uma vez que sua importância é muito grande e seu emprego aumenta a cada dia. Claramente, irão causar uma grande revolução no mundo civilizado. Carnot observa que, apesar dos vários aperfeiçoamentos, ateoria da máquina a vapor havia avançado pouco. Formula sua meta de encontrar uma teoria destas máquinas, de tal modo que ficam evidentes as tarefas práticas que propõe para descobrir uma teoria geral do rendimento. Freqüentemente surge a questão - diz Carnot - de ser a potência motriz do fogo limitada ou infinita; por "potência motriz" designamos o rendimento que um motor pode ter. Existe algum limite para os aperfeiçoamentos possíveis, um limite que a natureza das coisas não permite ser superado de nenhum modo, ou, pelo contrário, são possíveis aperfeiçoamentos ilimitados? As máquinas que derivam seu movimento do calor, mas que têm como motor a força do homem, dos animais, da queda d'água ou do vento, podem ser estudadas - observa Carnot - por meio da mecâni-

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ca teórica. Nesta, todas os casos foram previstos - todos os movimentos possíveis reduzidos a princípios gerais (o que se fez graças ao trabalho de Newton em mecânica) estabelecidos, e que são aplicáveis a todas as circunstâncias. Não existem teorias equivalentes no caso das máquinas térmicas. Será impossível estabelecê-las - afirma Carnot até que as leis da física tenham sido suficientemente expandidas e generalizadas, para que se possam prever os resultados de uma determinada influência de calor sobre um corpo qualquer. Está estabelecido, aqui, com extraordinária clareza, o vínculo entre a técnica e a ciência, entre a investigação das leis gerais da física e os problemas técnicos colocados pelo desenvolvimento econômico. Mas a história da máquina a vapor é importante para nós também em outro contexto. A sucessão histórica do estudo das diferentes formas de movimento físico da matéria é a seguinte: mecânica, calor e eletricidade. Vimos que o desenvolvimento do capitalismo colocou, para a técnica, a demanda pela criação de um motor universal. Esta demanda foi inicialmente suprida pela máquina a vapor, a qual não teve competidores até à invenção do motor elétrico. O problema da teoria do rendimento das máquinas a vapor levou ao desenvolvimento da termodinâmica, ou seja, ao estudo da forma térmica de movimento. Este fato, conseqüentemente, explica a sucessão histórica do estudo das formas de movimento: após a mecânica, segue-se o desenvolvimento do estudo da forma térmica de movimento - a termodinâmica. Passaremos agora a um exame do significado que teve a máquina a vapor, do ponto de vista da transformação de uma forma de movimento em outra. Conquanto Newton sequer tenha considerado o problema da lei da conservação e transformação de energia, Carnot foi obrigado, ainda que de modo não muito claro, a considerá-lo. Isto se deu justamente porque Carnot se ocupou com o estudo da máquina a vapor do ponto de vista da transformação da energia térmica em mecânica. A categoria "energia", como uma das categorias básicas da física, aparece quando fica em primeiro plano o problema da correlação entre diferentes formas de movimento. E quanto maior a riqueza de formas de movimento em estudo na física, maior o significado que adquire a categoria energia. Assim, o estudo das formas físicas do movimento da matéria em seu desenvolvimento histórico deve oferecer a chave para a compreensão da origem, do significado e da relação das categorias da física. O estudo histórico das formas de movimento deve ser feito a partir de dois aspectos: devemos estudar a sucessão em que surgem historicamente as formas de movimento conforme aparecem no desenvolvimento da ciência física na sociedade humana. Já mostramos a relação entre a forma mecânica e a térmica do ponto de vista de sua gênese 75

histórica na sociedade humana. O estudo destas formas segue a mesma seqüência em que foram levantadas pela prática humana. O segundo aspecto é o estudo da "história natural do desenvolvimento da matéria". O processo de estudo do desenvolvimento da matéria inorgânica no microcosmo e no macrocosmo deve oferecer achave para a compreensão das relações mútuas de uma forma de movimento da matéria inorgânica com outra, e estabelecer uma base segura para a classificação natural das formas de movimento da matéria. Este princípio deve estar na própria base da classificação marxista das ciências. Cada ciência analisa uma determinada forma de movimento, ou uma série de formas de movimento relacionadas, que se transformam umas nas outras. A classificação das ciências não é outra coisa senão uma hierarquia das formas de movimento da matéria de acordo com a ordem que lhe é inerente, ou, em outras palavras, de acordo com seu desenvolvimento natural e com a transição de umas formas de movimento em outras, conforme ocorre na natureza. Portanto, o princípio marxista de classificação das ciências coloca como base desta classificação a grande idéia do desenvolvimento e da transição de uma forma de movimento da matéria em outra forma (Engels). Nisto consiste a notável concepção de Engels sobre a interrelação e a hierarquia das formas de movimento da matéria. O conceito de energia está indissoluvelmente unido à transformação de uma forma de movimento e a medição desta transformação. A física contemporânea enfatiza, justamente, o aspecto quantitativo e postula a constância da energia ao longo destas transformações. Relembramos, conforme foi mostrado no capítulo anterior, que a constância quantitativa e a invariabilidade da quantidade de movimento foram anunciadas por Descartes. Porém, os trabalhos de Mayer e Helmholtz introduziram na física uma nova descoberta, a de que nas transformações das formas de movimento a energia se mantém constante. Foi precisamente isto, e não a simples constatação geral da constância, que constituiu o elemento novo. Graças a esta descoberta, as diferentes forças isoladas da física (o calor, a eletricidade, a energia mecânica), que até então eram consideradas imutáveis - como as formas invariáveis da biologia - passaram a ser concebidas como formas de movimento inter-relacionadas, capazes de se transformar umas nas outras, segundo leis determinadas. Assim como a astronomia, a física chegou à conclusão inevitável de que o resultado último é o eterno ciclo da matéria em movimento. A época de Newton, que só conhecia uma forma determinada de movimento - a mecânica - e que, por isso, colocou em primeiro plano não a transformação de uma forma em outra, mas apenas a trans76

formação e mudança de aparência de uma única forma de movimento - o deslocamento mecânico (recordemos a definição de máquina dada por Vitrúvio e as observações de Carnot) - não considerou e não poderia ter considerado o problema da energia. Assim que a forma térmica de movimento entra em cena (ligada de maneira indissolúvel ao problema de sua conservação em movimento mecânico), o problema da energia passa para um primeiro plano. A própria colocação do problema da máquina a vapor ("elevar a água pelo emprego do fogo") mostra claramente a sua relação com a conservação de uma forma de movimento em outra. Não é por acaso que a obra clássica de Carnot se denomina Da força motriz do fogo. 30 ,. Esta interpretação da lei de conservação da energia, dada por Engels, coloca em primeiro plano o aspecto qualitativo desta lei, em contraposição à interpretação predominante na física contemporânea, que reduz esta lei à sua forma puramente quantitativa, ou seja, à constância da quantidade de energia durante suas transformações. A lei da conservação da energia, a doutrina da indestrutibilidade do movimento, tem de ser entendida num sentido não apenas quantitativo, mas também qualitativo. Deve conter não só a constatação da indestrutibilidade da energia, que é uma das premissas da concepção materialista da natureza, como também um tratamento dialético do problema do movimento da matéria. Do ponto de vista do materialismo dialético, a indestrutibilidade do movimento consiste não só em que a matéria se move dentro dos limites de uma forma determinada de movimento, como também em que a matéria em si é capaz de originar toda a interminável riqueza de formas de movimento, em suas transições espontâneas de uma para outra, em seu automovimento e desenvolvimento. Percebemos que apenas a concepção de Marx, Engels e Lênin oferece a chave para uma compreensão da sucessão histórica do desenvolvimento e do estudo das formas de movimento da matéria. Newton não chegou a colocar e, pois, tampouco resolver o problema da conservação da energia. Não que seu gênio fosse insuficiente. Os grandes homens, apesar de sua genialidade, só formulam e resolvem, em qualquer campo, aquelas tarefas colocadas pelo desenvolvimento histórico das forças e das relações de produção de sua época. 5. Os destruidores de máquinas da época de Newton e os destruidores atuais

Chegamos ao fim de nossa análise dos Principia. Mostramos como seu conteúdo físico prov'ém das tarefas da época, as quais, por sua vez, foram formuladas pela classe que avançou para o poder. A transição historicamente inevitável do feudalismo para o capitalismo mercantilista e a manufatura, e da manufatura para o capita77

lismo industrial, estimulou, como nunca antes, o desenvolvimento das forças produtivas. Isto por sua vez, deu um ímpeto poderoso ao desenvolvimento da investigação científica em todas as esferas do conhecimento humano. Newton viveu precisamente nessa época, quando novas formas de relações sociais, quando novas formas de produção, estavam sendo criadas. Em sua mecânica, conseguiu resolver aquele complexo de problemas físico-técnicos que a burguesia em ascensão colocava. Mas se deteve, impotente, diante da natureza como um todo. Newton conhecia o deslocamento mecânico dos corpos, mas chegou mesmo a rejeitar a concepção de um desenvolvimento ininterrupto da natureza. Tampouco podemos esperar encontrar, em sua obra, critério sobre a sociedade como um todo em desenvolvimento, ainda que o caráter revolucionário da época tenha influído em seus principais trabalhos. Estacionou o processo histórico desde a época de Newton? Claro que não, uma vez que nada pode deter o movimento de avanço da história. Depois de Newton, Kant e Laplace foram os primeiros a abrir brechas na concepção da natureza como algo eterno e imutável desde seus começos. Eles mostravam, ainda que de modo incompleto, que o sistema solar é o resultado de um desenvolvimento histórico. Com suas obras, introduz-se, pela primeira vez nas ciências naturais, a concepção do desenvolvimento, que se converterá, subseqüentemente, no princípio fundamental e diretriz de toda a teoria sobre a natureza. O sistema solar não foi criado por Deus, o movimento dos planetas não é resultado de um impulso divino. Este sistema não só preserva seu estado como conseqüência exclusiva de causas naturais, como surgiu sob a influência destas causas. Não há lugar para Deus, não apenas no sistema que existe com base nas leis da mecânica, como para explicar sua origem. "Não achei necessário incluir a hipótese da existência de uma divindade em meu sistema", teria respondido Laplace à pergunta de Napoleão sobre as razões da omissão, em seu Sistema do mundo, de referência ao papel de Deus. O desenvolvimento progressivo das forças produtivas criou uma ciência progressista. A transição da indústria artersanal doméstica para a manufatura, para a indústria mecanizada em larga escala, apenas iniciada na época de Newton, foi grandemente acelerada no século seguinte. Este processo culmina com a fase monopolista e imperialista do capitalismo que é, por sua vez, o umbral das novas formas socialistas de desenvolvimento. Assim como uma fase do modo capitalista de produção é substituída por outra, também muda a visão da classe dominante na sociedade capitalista acerca da técnica e da ciência. Ao chegar ao poder, a burguesia luta sem tréguas contra as formas antigas, artesanais, de produção. Com mão de ferro, impõe a in-

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dústria mecanizada em larga escala, eliminando em seu percurso a resistência da classe feudal decadente e o projeto ainda espontâneo do proletariado em surgimento. Para a burguesia, a ciência e a técnica são armas poderosas de luta, e ela está interessada no desenvolvimento e aperfeiçoamento destas armas. O apologista do capitalismo industrial desse período, Andrew Ure, descreve a luta da burguesia por novas formas de produção nos seguintes termos: "A horda de descontentes, que se considerava invencível, protegida atrás da fortaleza de aço que representavam os velhos métodos de divisão do trabalho, viu-se atacada pelos flancos e com seus meios de defesa destruídos pela técnica mecânica contemporânea. Foi forçada a render-se à piedade e à cólera dos vencedores." Mais adiante, ao examinar o significado da invenção da máquina de fiar, diz: "Esta máquina estava destinada a restaurar a ordem entre as classes industriais. Esta invenção confirma a doutrina que já havíamos desenvolvido, segundo a qual o capital, ao obrigar continuamente a ciência a servi-lo, obriga as mãos rebeldes de trabalho à submissão." A burguesia no poder falava pela boca de Ure, construindo uma nova forma de produção com a carne e o sangue das "mãos rebeldes do trabalho". Ao chegar ao poder, a burguesia revoluciona todas as formas de produção, destroça as velhas relações feudais e destrói as arcaicas relações sociais que impediam o avanço do desenvolvimento das forças produtivas. Durante aquele período, foi revolucionária, porque trouxe consigo uma nova forma, mais aperfeiçoada, de produção. No transcurso de pouco mais de um século, mudou a face da Terra e provocou o aparecimento de novas e poderosas forças produtivas. Novas formas de movimento da matéria, até então desconhecidas, foram descobertas. O desenvolvimento gigantesco da técnica estimulou tremendamente a ciência, e o gigantesco desenvolvimento desta, por sua vez, fecundou a nova técnica. E com base no florescimento sem precedentes das forças produtivas, com base no crescimento tremendo da cultura material, ocorreu um empobrecimento também sem precedentes das massas populares e um aumento terrível do desemprego. Não é de estranhar que essas contradições na forma predominante de produção tenham chamado a atenção não só dos dirigentes governamentais dos países capitalistas, como também dos cientistas. Na época de Newton, a burguesia clamava por novas formas de produção. Em seu memorando sobre a reforma da Royal Society, Newton pedia às autoridades estatais que apoiassem a ciência, a qual tanto havia feito pelo estudo da natureza e pela criação das novas forças produtivas. Hoje em dia, a situação é muito diferente.

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Em 1930 e 1931, a revista Nature publicou uma série de editoriais tratando destas questões. Estes artigos falavam de problemas que estão, atualmente, preocupando todo o mundo. Vamos nos referir a dois deles, que melhor expressam o ponto de vista dos cientistas ingleses. Um se intitula "Desemprego e esperança", e o outro "Ciência e sociedade". Vejamos como estes artigos descrevem as tarefas da indústria, seus objetivos e meios de desenvolvimento. Ao discutir a questão do desemprego, que afetava gravemente a sociedade capitalista, Nature assim define o papel das massas: "Na si-) tuação atual, pode-se dizer que os habitantes de Erewhon foram mais inteligentes do que nós ao discutir as máquinas, já que fizeram isto para que, como previu Marx, não transformassem a ordem que existia previamente e o trabalhador não se convertesse em instrumento e apêndice de uma máquina sem vida." A ciência e a técnica contemporâneas criam máquinas maravilhosas por sua exatidão e produtividade, por sua organização extraordinariamente complexa e delicada. E, no entanto, parece que os destruidores de máquinas da época de Newton eram mais inteligentes do que nós, que criamos máquinas de extraordinária potência e complexidade. Nas afirmações anteriores, não só existe uma distorção das idéias de Marx, como também uma interpretação incorreta do movimento dos destruidores de máquinas. Vamos, antes de tudo, restabelecer as verdadeiras condições e as causas reais que provocaram a destruição das máquinas pelos trabalhadores. , A luta dos trabalhadores contra as máquinas é apenas o reflexo da luta entre os trabalhadores assalariados e os capitalistas. Não era propriamente contra as máquinas que a classe trabalhadora daquela época lutava, mas contra a posição a que estava sendo relegada pela ordem capitalista em desenvolvimento na nova sociedade. No século XVII, quase toda a Europa sofreu a indignação dos trabalhadores para com as máquinas de cardar. Em fins dos anos 70 do século XVII, em Londres, foi destruída a primeira serra de madeira movida pela energia do vento. A primeira década do século XIX foi marcada pelo movimento de massas dos "ludditas" 31 contra o tear movido a vapor; à medida que se desenvolvia, o capitalismo industrial transformava a força de trabalho em mercadoria. Expulso da indústria pela maquinaria, o trabalhador não podia encontrar um comprador para seu trabalho e se comparava a papel-moeda colocado fora de circulação. A crescente classe trabalhadora, ainda sem uma consciência de classe, dirigia o seu ódio contra as formas externas de manifestação das relações capitalistas: as máquinas. Mas este protesto, reacionário em sua forma, era a expressão de um protesto revolucionário contra o sistema de trabalho assalariado e a propriedade privada dos meios de produção.

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Na verdade, o trabalhador tornou-se de fato um acessório da máquina, não porque as máquinas haviam sido inventadas, mas porque essas máquinas serviam aos interesses da classe proprietária dos meios de produção. A chamada para a destruição das máquinas será sempre um lema reacionário, e a inteligência dos habitantes de Erewhon estava não na destruição das máquinas, mas em seu protesto contra a escravidão do trabalho assalariado. "O conforto de bem-estar de poucos" - continua o editorial "tem um preço muito alto, quando se considera o destino dos trabalhadores que são expulsos e, talvez ainda mais, a repressão da individualidade, a qual, como havia previsto Marx, tem quase sempre acompanhado a produção em massa.'' De acordo com Nature, o aperfeiçoamento dos meios de produção leva, inevitavelmente, à destruição da individualidade e ao sofrimento das massas populares. Aqui é permitido perguntar: por que motivo na época de Newton, quando se desenvolveram enormemente os meios de produção, os círculos científicos não apenas não pediram o retardamento desse desenvolvimento, como, pelo contrário, encorajaram de todos os modos possíveis cada nova descoberta e invenção? E por que o órgão dos cientistas progressistas mais importantes da época de Newton, o Philosophical Transactions, estava repleto de descrições dessas novas invenções? Antes de responder a estas questões, examinemos quais os métodos que esta revista dos cientistas britânicos propõe para resolver a crise da produção e do desemprego, a qual, em sua opinião, é o resultado de um desenvolvimento excessivo das forças produtivas. Estes métodos estão esboçados no editorial "Desemprego e esperança''. Citamos por inteiro o trecho correspondente. Os objetivos da indústria são, ou deveriam ser, dois: 1. prover um campo para o crescimento da capacidade e do caráter dos homens; 2. produzir mercadorias para satisfazer as diferentes necessidades do homem, principalmente aquelas de natureza material, ainda que, sem dúvida, existam grandes exceções fora da categoria puramente material. A atenção se tem voltado, em especial, para o item 2 e o primeiro objetivo da indústria tem sido ignorado, embora seja o mais importante. Esta visão unilateral da indústria, somada ao uso muito restrito da palavra "evolução", da qual se abusa atualmente, conduziu à concentração maior na quantidade e na qualidade da produção e a uma negligência ridícula do elemento humano; não há dúvida de que se um pouco de atenção houvesse sido dada ao primeiro objetivo, o segundo

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teria sido mais completa e satisfatoriamente alcançado; também não ouviríamos falar em desemprego ... A idéia dominante parece ser a de que a indústria está evoluindo e deve evoluir em direção a um tipo fixo, por exemplo, o da produção em larga escala ... A melhor forma ou tipo de indústria ... pode consistir em muitas formas diferentes e em constante mudança, caracterizada acima de tudo pela adaptabilidade e elasticidade - um organismo vivo. A estreiteza (deste ponto de vista) consiste em desenvolver somente a grande indústria. É preciso fazer com que as formas de desenvolvimento da indústria sejam mais flexíveis. Deve-se lembrar como surgiu e se desenvolveu a grande indústria e retornar à indústria doméstica, artesanal, e às uniões cooperativas da pequena indústria. A causa do desemprego está, precisamente, no Jato de se romper o vínculo com as vias anteriores de desenvolvimento da indústria. 32 O restabelecimento destes dois princípios de uma ordem industrial mais antiga, tão essencial e caracteristicamente ingleses, sob formas aperfeiçoadas e possível graças aos avanços científicos contemporâneos incluindo em especial a distribuição de energia elétrica, iria Jornecer, em primeiro lugar, um campo novo e quase ilimitado para o emprego do homem, absorvendo todos ou quase todos os desempregados do presente... Por desemprego, queremos dizer, em especial, os desempregas na Grã-Bretanha, mas seria imensamente melhor estender nossa preocupação ao desemprego em todo o mundo ... A aplicação destes dois princípios ao desemprego é, sem dúvida, apenas uma parte de seu escopo, pois eles possuem um espectro mais amplo, especialmente para contra-atacar um dos maiores males da indústria moderna, a saber, a especialização extremada, o trabalho monótono e a falta de abrangência que impede o desenvolvimento de habilidades, com tudo que isto implica ... É provável que, numa atmosfera mais envolvente de trabalho variado, e interesses e habilidades assim possibilitados, as f acuidades inventivas da humanidade venham a ser grandemente estimuladas e um apoio, que se fez muito necessário, venha a ser dado à criatividade. Assim, de acordo com Nature, o remédio para curar os males da sociedade capitalista, o método que deve ser usado para remover todas as contradições de um sistema baseado no trabalho assalariado e na propriedade privada dos meios de produção, é o retorno àquelas formas de indústria que precedem imediatamente a época do capitalismo industrial. Já indicamos como, a partir destas formas de produção, se iniciaram na época de Newton os avanços. Em comparação com o modo feudal de produção, a manufatura e a pequena indústria artesanal fo-

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ram um passo à frente; no presente momento, o lema - "de volta à pequena produção artesanal" - é profundamente reacionário. O fetichismo do sistema mercantilista, revelado pelo gênio de Marx, consiste em que a relação entre as coisas materiais, criadas pela sociedade humana, estão isoladas das relações humanas e são vistas como a própria essência das coisas. O desmascaramento e a denúncia de tal fetichismo se baseia em que as 'coisas não existem, nem criam relações por si mesmas, mas que as relações entre as coisas, criadas no processo de produção social, refletem determinadas relações sociais entre os seres humanos, as quais, do ponto de vista destes, toma o aspecto fantástico de relações entre coisas. As opiniões antes citadas são também uma expressão particular desse fetichismo. A maquinaria, os meios de produção e a organização da produção mecânica em larga escala são considerados isoladamente, sem referência às relações .sociais daquele sistema econômico particular, graças ao qual surgiu e e'in cujo contexto existe o modo de produção dado. Elas nos dizem que o aperfeiçoamento dos instrumentos de trabalho traz a pobreza para uma grande massa da população, que ele destrói a individualidade, e que devemos regressar aos bons ve- · lhos instrumentos do passado. Porém, respondemos que não é o aperfeiçoamento dos meiÕs de produção que causa o empobrecimento e os sofrimentos sem precedentes das massas. Não são as máquinas que transformam o trabalho em uma ferramenta cega do mecanismo, mas aquelas relações sociais que permitem a exploração da máquina de maneira a tornar o trabalhador seu mero acessório. A saída está não no retorno aos meios de produção antigos, há muito superados, mas na transformação de todo o sistema de relações sociais, de maneira tão radical como foi, no passado, a transição dos modos de produção feudal e artesanal para o capitalismo industrial. A propriedade privada passa por três períodos em seu desenvolvimento: o feudalismo, o capitalismo mercantilista e a manufatura, e o capitalismo industrial. A cada estágio do desenvolvimento do processo de produção de sua própria vida, os homens, independente de suas vontades, entram em determinadas relações de produção que correspondem ao grau de desenvolvimento das forças produtivas. Em um dado nível de seu desenvolvimento, as forças produtivas entram em contradição com as relações de produção existentes ou, em termos jurídicos, com as relações de propriedade dentro das quais se desenvolveram: de formas de desenvolvimento, esias se convertem em obstáculos para tal. O desenvolvimento posterior das forças produtivas só é possível através da reestruturação radical de todas as relações de produção. A transição de uma forma de produção para outra é caracterizada, em primeiro lugar, por uma tal reestruturação. 83

Em cada nova etapa, a mudança nas relações sociais provoca um novo crescimento acelerado das forças produtivas. Pelo contrário, uma crise neste crescimento indica que seu desenvolvimento futuro, no quadro deste sistema social, é impossível. Aquela solução sugerida acima, cuja essência consiste em frear as forças produtivas mediante o retorno às velhas formas de produção, é apenas uma expressão da contradição entre as forças produtivas da sociedade capitalista e as relações de produção baseadas na propriedade privada dos meios de produção. A ciência se desenvolve a partir da produção, e estas formas sociais que aprisionam as forças produtivas também se tornam obstáculos para a ciência. Os meios genuínos para transformação da sociedade não são encontrados por meio de inspiração e de intuição genial brilhantes, e nem através do regresso aos "bons tempos de ontem", que de uma perspectiva histórica distante parecem ser um idílio pacífico, mas que, na realidade, eram uma luta amarga pelo predomínio de uma classe sobre outra. Assim foi sempre, e assim foi na época em que Newton vivia e criava sua obra, na época a cujas formas produtivas somos convidados a retornar. As formas desgastadas de relações sociais daquela época também propunham, através das palavras dos representantes de sua universidade, a supressão da ciência, a qual estava destruindo as formas, já estagnadas, da ideologia feudal, ficando a serviço do novo modo de produção. Hoje, o que presenciamos é a repetição, em novas bases, da contradição fundamental entre as forças produtivas e as relações de produção que Marx, com perspicácia genial, relevou e explicou. Se o proletariado nascente, em seu protesto espontâneo, destruía máquinas e resistia às invenções e à ciência, hoje em dia, armado com o método de materialismo dialético de Marx, Engels e Lênin, o proletariado conhece com certeza seu caminho para libertar o mundo da exploração do homem pelo homem. O proletariado sabe que o conhecimento verdadeiramente científico das leis do processo histórico leva, com necessidade férrea irrefreável, à conclusão de que é inevitável a substituição de um sistema social por outro, do capitalismo pelo socialismo. Ao desmascarar os fetiches da sociedade de classes, por trás das relações entre coisas, o proletariado vê as relações entre os homens que criam estas coisas. Ao conhecer a essência real do processo histórico, o proletariado não se mantém como mero espectador, não é só objeto desse processo. O grande significado histórico do método criado por Marx está em que o conhecimento é considerado não uma percepção passiva e contemplativa da realidade, mas um meio para a sua reconstrução ativa. Para o proletariado, a ciência é o meio e o instrumento de reestruturação. Por isso, não tememos expor a "origem terrestre" da ciência 84

e suas relações estreitas com os meios de produção da existência material. Apenas tal compreensão da ciência contribui para a libertação total desta, daqueles caminhos pelos quais foi conduzida pela sociedade burguesa de classes. O proletariado não só não teme o desenvolvimento das forças produtivas como apenas ele pode criar as condições para seu florescimento sem precedentes e para o florescimento da ciência. As teorias de Marx e Lênin tomaram vida. A reconstrução socialista da sociedade não é um prospecto distante, nem uma teoria abstrata, mas um plano concreto para o grande trabalho da população de um sexto do planeta. E como em todas as épocas, ao reconstruir as relações sociais estamos também reconstruindo a ciência. O novo método de pesquisa que, nas figuras de Bacon, Descartes e Newton, triunfou sobre os escolásticos e levou à criação de uma nova ciência, foi o resultado da vitória dos novos meios de produção so" bre o feudalismo. A construção do socialismo não apenas utiliza todos os resultados do pensamento humano como, ao colocar novas e até então desconhecidas tarefas para a ciência, indica novos caminhos para o seu desenvolvimento e enriquece o tesouro do conhecimento humano com novos valores. Apenas na sociedade socialista a ciência se tornará patrimônio de toda a humanidade. Novos caminhos para seu desenvolvimento estão se abrindo e não há limites para seu avanço vitorioso, seja no espaço ilimitado, seja no tempo infinito.

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NOTAS*

(!) Na teoria marxista, a categoria "classe" refere-se às relações de produção, não pro-

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priamente às forças produtivas; mas, de início, a classe proprietária dos meios de produção não pode, em nenhum caso, ser a "força produtiva material predominante", pois não participa diretamente - como força de trabalho - do processo produtivo. Hessen utiliza uma periodização na qual a Idade Média começa por volta dos séculos XII ou XIII. Na historiografia marxista se considera, em termos gerais, que a Idade Média européia coincide com a formação sócio-econômica feudal que alguns admitem tenha começado a se instaurar desde o século IV e, outros, desde o IX século. Há consenso relativo quanto ao término dessa Idade no século XV, mas alguns prologam-na até o XVII. Merece atenção o critério de Kuczinski, segundo o qual, começando a Idade Média no século V, o que ocorre na Europa desde então é um "período de transição" que se estende até o século IX e abre caminho ao feudalismo como força prevalente de produção. Os séculos XII e XIII são, pois, o auge do regime feudal na Europa, e, a partir do século XIV, aparecem formas embrionárias do capitalismo, que vêm ser o sistema predominante na Holanda e na Inglaterra desde o século XVI. (Ver N. Sídorava, e E. Gtnova. "Como a historiografia soviética concebe e explica a Idade Média ocidental", Cuaderno de Historia número 1 e 2, Universidade de Havana, 1965. J. Kuczinski, Breve Historia de la Economia, Editorial de Ciências Sociales, Havana, 1974.) Quer dizer, o "direito das terras", a propriedade sobre tudo aquilo que se poderia encontrar - em repouso - sobre a superfície dl solo. As primeiras cartas náuticas, como mostra a história da cartografia, datam de fins do século XIII. São as chamadas "cartas de portolano" (diferente de simplesmente portolanos, que eram apenas rumo de navegação). Desde o grande atlas catalão de 1375, estas cartas incluem "rosas náuticas" para serem usadas com um compasso náutico (ver G. H. Crone, Historia de los mapas, Fondo de Cultura Exonómica, México, 1956). Ainda que Huygens tenha, de fato, projetado o primeiro cronômetro, esse instrumento - como assinala Hessen corretamente - só chegou a condições adequadas ao uso da navegação em meados do século XVIII. Foi o cronômetro de John Harrison que, a partir de 1765, foi utilizado na armada inglesa para determinar a longitude. (Para uma história pormenorizada, ver V. N. Pipunírov, História dos relógios. Náuka, Moscou, 1982 - em russo.) O descobrimento da América resultou, em primeiro lugar, da procura de uma rota comercial que permitisse eliminar os árabes como intermediários no comércio de especiarias e outros produtos procedentes da Índia, China, Filipinas e da atual Indonésia. Os portugueses procuraram essa rota bordejando o continente africano e desprezando a rota atlântica, logo adotada pelos espanhóis. Desde o começo, a procura de ouro não era de se desprezar, como se depreende do Diário de Cristóvão Colombo, e a América alimentou a Europa, através da Espanha, de grandes quantidades de ouro e sobretudo de prata, que contribuíram de modo notável para o desenvolvimento do capitalismo mercantil. O primeiro apêndice a que Hessen nos remete (na presente edição são omitidas 6 páginas de apêndices da edição em russo, que tampouco aparecem na edição inglesa) é um extrato do Diálogo de Galileu no qual chama a atenção - de fato - sobre

(*) Da edição Pedro Pruna - Havana, Cuba, 1985.

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a grande importância do estudo das máquinas fabricadas pelos técnicos do Arsenal de Veneza. Esta é uma das teses mais importantes de Hessen: a temática científica está determinada, em última instância, pelas tarefas que definem, em linhas gerais, a categoria de problemas principais abrangidos pela ciência em um dado período, ainda que não seja tudo o que define - ao menos Hessen assim não o indica - nem os métodos, nem os instrumentos teóricos a serem utilizados, que procedem da herança científica anterior e se elaboram de acordo com as necessidades que os próprios problemas científicos suscitam. As universidades medievais formaram-se no século XIII. Na obscuridade geral reinante, a introdução do estudo de Aristóteles teve seus efeitos. O predominante foi a dogmatizaçâo de suas doutrinas; e um outro, subordinado, mas que abriu os caminhos para as novas ciências; o desenvolvimento dos aspectos científicos dessa doutrina e a ênfase nas coisas particulares, o nominalismo, que conduziu, definitivamente, ao materialismo empirista inglês de Bacon; e, por outro lado, a ênfase na razão separada dafé, que caracterizava o pensamento de Averrois, expulso de Paris e logo refugiado em Pádua (com influência evidente sobre Copérnico, Galileu e Harvey, que estudaram naquela universidade). No século XIV, na Universidade de Paris, sobretudo, teve lugar uma tentativa de oposição à escolástica oficial que, ainda que notável, resultou em fracasso, e que alguns autores, exageradamente, consideraram uma "revolução científica". A sátira de Boileau - que não foi transcrita nesta edição - intitula-se "A cômica decisão do alto tribunal do Parnaso sobre a queixa dos mestres, médicos e professores da Universidade Estagirita, no país das Quimeras, acerca da conservação da doutrina de Aristóteles". O texto refere-se, literalmente, à "prensa de impressão"; mas a pesquisa sobre as origens da imprensa mostrou que a prensa, como tal, existia anteriormente e que a verdadeira inovação introduzida por Gutenberg foi o "chumbo de imprensa" (uma liga de chumbo, estanho e antimônio) e o sistema de produção em série dos tipos metálicos, mediante o enchimento de moldes com essa liga em fusão. Na tradução inglesa se diz erroneamente rot - apodrecimento; Hessen, todavia, refere-se adequadamente a gusanos perfuradores os quais, ainda que sendo vermiformes, são na realidade moluscos lamelibrânquios capazes de abrir minúsculas galerias na madeira dos barcos. Não eram poucos os navios que naufragavam, no século XVII, pela ação desse pequeno invertebrado do gênero Teredo. Na tradução inglesa o posto de Johnson é o de capitão, não de coronel. À época de Newton estava ainda em vigor, na Inglaterra, o calendário Juliano. Devido à disputa religiosa com Roma, os ingleses somente em 1752 começaram a utilizar o calendário gregoriano, que havia sido estabelecido em 1582. A reforma idealizada por Newton levava em conta o fenômeno da precessão e propunha, entre outras coisas, o estabelecimento de uma nova cronologia de fatos históricos ou míticos da antigüidade. Todo o começo deste parágrafo, até a palavra "ar", está ausente da edição inglesa. Na edição inglesa se lê: transportados por Riche e Paris a Caen em 1673. Na verdade, trata-se de expedição de Richer a Caiena (Guiana Francesa). A explicação do atraso do relógio de pêndulo a que se refere Hessen em seguida, baseou-se no fato de que, estando a Terra em rotação, há uma força centrífuga cuja magnitude máxima ocorre no Equador e que diminui a aceleração da queda dos corpos. Como se sabe, os estudos de Huygens acerca da força centrífuga foram de grande importância para a elaboração da mecânica newtoniana. Por esta e por outras razões Huygens se situa justamente com Galileu e Kepler entre os "gigantes" sobre cujos ombros, segundo expressão de Newton, ele se apoiou para criar sua obra. A edição inglesa não menciona a expedição ao litoral da Paraíba, no Brasil.

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(18) Na sétima de suas cartas sobre os ingleses, que trata "dos socinianos, ou arrianos, ou antitrinitárias", Voltaire diz textualmente: "Os princípios de Arrio começam a reviver não apenas na Inglaterra como na Holanda e na Polônia. O célebre Isaac Newton favorecia essa opinião a ponto de aprová-la." Esse filósofo pensava que os unitários argumentavam de maneira mais matemática que a nossa (Voltaire, Letters on the English, Harvard Classics, vol. 34, p. 84, P. F. Collier & Son, Nova York, 1910). Esta seita deve seu nome ao de seu fundador, o italiano Fausto Socino (1539-1604), que negava o dogma cristão da Trindade, sustentava idéias semelhantes, às de Miguel Servet e deu origem à seita unitária, que ainda tem alguma difusão na Inglaterra e nos Estados Unidos. Além dessa inclinação heterodóxica, sabe-se que Newton - como Leibniz - se relacionava com outra seita semiclandestina : a dos rosacruz, ou a dos maçons. (19) Também Aristóteles concebia o conhecimento como conhecimento das causas, só que punha em primeiro lugar a "causa final", daí o caráter teleológico de sua doutrina. No século XVII, dá-se ênfase ao conhecimento das "causas eficientes", aquelas que provocam diretamente o movimento e, no tratamento dos temas científicos, se começa a omitir a "causa final"; esta tendência será mais marcante ainda no século XVIII e está relacionada com o "deísmo", com a aceitação de "Deus ocioso". (20) Trata-se de um dos quatro tipos de "ídolo" (pré-conceitos) que Bacon distingue em seu Novum Organum. O enfoque teleológico, como parte da doutrina aristotélica, situa-se entre os "ídolos do teatro", quer dizer, aqueles que derivam de "sistemas filosóficos". (21) Descartes concebe a "imutabilidade" como uma propriedade divina, pelo que toda "constância" que se encontra na natureza tem que ser um reflexo da presença divina. Hessen não atenta para esta faceta da doutrina cartesiana, que abriu as portas ao ocasionalismo. (22) No final do parágrafo, Hessen nos remete ao apêndice IV - não incluído em nossa edição - mas da carta de Newton a Locke que aparece em apêndice deduz-se que entre eles havia divergências pessoais. A carta começa assim: "Senhor, estando eu convencido de que V. Sa. me envolveu numa história com uma mulher e de que tentou causar-me danos por outros meios, senti-me tão atingido que, ao saber que V. Sa. estava enfermo e poderia não sobreviver, respondi: Será melhor assim, se morrer." Newton se desculpa por esse pensamento, pouco depois, por tê-lo confundido com um partidário de Hobbes. (23) Richard Overton não pertencia à ala mais progressista da esquerda inglesa da época, os diggers (escavadores, ou melhor, solapadores), que era a única a propugnar pela extinção da propriedade privada da terra, mas sim aos levellers (niveladores). Dificilmente se pode compará-los, mesmo considerando o tempo e as circunstâncias, com um bolchevista. (24) O doutor Samuel Clarke (1675-1729), outro sociniano, foi o porta-voz de Newton em sua polêmica epistolar com Leibniz. A disputa (1715-1716) foi certamente transcendental. Tem como centro o problema (surgido na escolástica) sobre se Deus podia atuar com total liberdade (pelo que podia criar algo melhor do que já existia, e neste caso caberia perguntar: por que não havia atuado da melhor maneira possível?) ou se atuava de acordo com uma lógica- razão suficiente leibniziana - racionalmente exeqüível e não suceptível de ser melhorada. Esta discussão, tão próxima ainda dos debates escolásticos, tinha a ver com fato de Leibniz não aceitar a existência do vácuo (do espaço sem matéria), enquanto Newton admitia que o espaço (desprovido de matéria, mas que constituía evidentemente uma entidade física; por exemplo, as regiões interplanetárias) podia ser a "sensibilidade de Deus", quer dizer, parte da mente divina. Com tal afirmação Newton se aproximava do panteísmo e podia ser atacado como materialista, como efetivamente o fez Leibniz.

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Assim (força viva, vis viva) se denominava a energia cinética. Na edição inglesa o preço que se indica é de 2 ou 3 ducados. Na edição inglesa o nome aparece, mal escrito, como Savory. Na edição inglesa a quantia se expressa em libras esterlinas: 2.000 libras esterlinas em um ano. As relações entre Watt e Joseph Blake não se limitaram a essa comprovação experimental. Blake, que estabelecera a distinção entre calor específico e calor latente, foi consultado por Watt sobre o fenômeno da condensação que resultava num gasto notável de vapor em sua máquina. Blake pôde explicar-lhe esse fenômeno em termos do calor latente da água, o que levou Watt à idéia de construir um "condensador separado", que foi um dos seus inventos principais. Esta relação clara entre os estudos experimentais de Blake, com fins teóricos, e os de Watt, com fins práticos evidentes, constitui um dos momentos do desenvolvimento das invenções, característica da revolução industrial, que revelam, já no século XVIII, uma inter-relação entre as ciências naturais e a tecnologia. As influências do pensamento e das problemáticas das ciências naturais sobre os técnicos inovadores ingleses (predecessores dos engenheiros) foram estudadas, entre outros, por A. E. Musson e Eric Robinson (Science and Technology in the Industrial Revolution, Manchester University Press, Manchester, 1969). O título completo é "Reflexões sobre a potência motriz do fogo". Tomam o nome do indicador desse movimento (no século XVIII), o operário inglês Ned Ludd. Na edição inglesa a citação é mais extensa e argumenta a favor da existência de produções na indústria com diferentes níveis de desenvolvimento (desde o artesanal, passando pela manufatura, até a indústria mecanizada).

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5. As regras de trabalho da Companhia de Carpinteiros da Cidade e Condado de Filadélfia (1786) CHARLES E. PETERSON*

Introdução a uma introdução Uma das primeiras manifestações do interesse pela arquitetura da Renascença italiana na Inglaterra foi a publicação, em 1563, de The First and Chiefe Groundes of Architecture, de John Shute, livro incluindo ilustrações das cinco ordens inspiradas em Serlio e que chegou a ter quatro edições até 1587. Ainda no período elizabetano, esta arquitetura clássica renascentista começa a ser adotada pela realeza, nos projetos de seu arquiteto oficial lnigo Jones que, assim como Shute, passara alguns anos na Itália para se aprimorar nas "artes do desenho". Com o prestígio crescente do classicismo, paralelamente à tradução dos mais importantes tratados italianos, surge uma literatura arquitetônica propriamente inglesa de cunho erudito: uma literatura quase sempre orientada, devido à influência da obra de Palladio, para a defesa da precisão arqueológica que contribuiu para o surgimento do neopaladianismo preponderante no século XVIII. Porém, as contribuições originais da Inglaterra para a literatura da Arquitetura foram o pattern book ou "livro de modelos", The City and Country Builder's and Workman 's Treasury of Designs, Londres, 1740, de Batty Langley, e o handbook ou "manual técnico", The British Carpenter ora Treatise on Carpentry, Londres, 1733, de Francis Price. Ao contrário dos tratados tradicionais, contendo informações de ordem teórica, o livro de modelos é composto por diversos exemplos de motivos arquitetônicos e até mesmo por projetos completos para residências. Devido às suas pequenas dimensões, este tipo de livro era um guia de consulta fácil para proprietários e construtores, através do qual modas e gostos foram rapidamente divulgados. O manual técnico, dedicado em geral a um ofício específico, também é um livro de formato pequeno para ser carregado e empregado pelos construtores no próprio canteiro ou para fazer orçamentos e estimativas. As ilustrações não só aparecem em menor número, como fazem parte destes (*) Reprodução da "Introdução" e notas do livro The Rufes and Work of the Carpenters' Company of the City and County of Philadelphia (Bell Publishing Co., N. York, 1971). Introdução e tradução de Sylvia Ficher.

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manuais diversas tabelas para cálculo e conversões. Obviamente, tanto livros de modelos quanto manuais custavam menos do que os fólios de luxo fartamente ilustrados, como a famosa tradução de Palladio feita por Leoni e publicada em 1715. Tais distinções entre diferentes tipos de literatura não são precisas e vários títulos correspondem a mais de uma classificação; importante é notar que tratados, livros de modelos e manuais técnicos eram dirigidos a públicos diferentes. E, ainda que a arquitetura inglesa de alto estilo tenha se desenvolvido no quadro do paladianismo preconizado pelos tratados, cujo ideal arqueológico faz com que a transição para o neoclassicismo na Inglaterra seja difícil de ser apreciada, forma os modelos, informando e influindo os práticos, os diletantes e os proprietários, o veículo decisivo para a difusão do rococó, do neogótico e de uma série de gostos exóticos como o chinês e o hindu. Enfim, para a difusão do vocabulário arquitetônico associado ao movimento romântico da segunda metade do século xvm, que não teve maior expressão na literatura erudita. Ao longo do século XVIII, os livros ingleses de arquitetura, em suas edições originais, alcançaram as colônias do império, inclusive os Estados Unidos. O levantamento de Helen Park, A List of Architectural Books A vailable in America Before The Revolution (1973), permite perceber que eram poucos os livros não em língua inglesa disponíveis nos Estados Unidos até 1776: apenas seis dentre os 106 títulos encontrados. Ainda mais, assim como na Inglaterra, o tipo de literatura mais comum é o livro de modelos. Entre os dez títulos que foram mais freqüentemente encontrados, apenas The Four Books of Andrea Pai/adio 's Architecture, Londres, 1738, de Isaac Ware, é um tratado no sentido estrito (no caso, uma tradução) e A Book of Architecture, Londres, 1728, de James Gibbs, um caso ambíguo, entre o tratado e o manual de construção. Em termos estilísticos, estes livros são em sua maior parte exemplos de paladianismo, ainda que outros estilos também apareçam. The British Architect or The Builder's Treasury of Staircases, Londres, 1745, de Abraham Swan, é considerado o introdutor do rococó nas colônias; New Designsfor Chinese Temples, Londres, 1750-52, de William e John Halfpenny, é um exemplo famoso do apreço pela chinoiserie e Gothic Architecture, Londres, 1742, de Batty e Thomas Langley, da moda gótica. Em 1775, com a publicação em Filadélfia de dois livros de Abraham Swan, o citado The British Architect e A Collection of Designs in Architecture (edição original: Londres, 1757), inaugurou-se a indústria editorial de arquitetura nos Estados Unidos, caracterizada inicialmente pela reedição de títulos ingleses. Conforme é possível inferir do levantamento apresentado por Henry-Russel Hitchcock em American Architectural Books (1976), dos trinta e dois livros publicados en91

tre 1775 e 1830, a grande maioria é formada por livros de modelos ingleses. Mesmo quando o autor é americano, a publicação típica é uma compilação de fontes inglesas; este é o caso do terceiro livro editado, The Town and Country Builder's Assistant, Boston, 1786, de John Norman, cujo frontispício reproduz aquele de The Complete Body of Architecture, Londres, 1752, de Isaac Ware. Livros de modelos propriamente americanos irão surgir mais tarde, após 1840, mas já em um quadro econômico completamente alterado em função de uma organização do trabalho independente das corporações de ofícios e da introdução de novas técnicas construtivas. É destas questões que trata, pioneiramente, o texto de Charles E. Peterson, cuja tradução aqui se introduz. Seu texto, por sua vez, constitui a introdução ao fac-símile de um livro de preços, o Articles of the Carpenters Company of Philade/phia: and Their Rufes for Measuring and Va/uing House Carpenters Work, Filadélfia, 1786, publicada em 1971. Segundo as pesquisas deste autor, o Artic/es and Rufes pode ser considerado, até o momento, não apenas um dos primeiros produtos editoriais integralmente americanos na área da arquitetura, na medida em que texto e ilustrações foram feitos por americanos, mas também o primeiro livro de modelos americano na medida em que inclui ilustrações de motivos arquitetônicos e das cinco ordens. Na historiografia corrente, aquele que tem sido apontado como o primeiro livro contendo material original publicado nos Estados Unidos é The Country Builder Assistant, Greenfield, 1797, de Asher Benjamin, ainda que o autor também tenha utilizado fontes inglesas, entre as quais William Chambers. Para Hitchcock, o primeiro autor a não recorrer a compilação alguma é Owen Biddle, em The Young Carpenter's Assistant or A System of Architecture, Filadélfia, 1805. Esta controvérsia, entretanto, não diminui o significado do Artic/es and Rufes, sem dúvida um produto complexo que desempenhou tanto as funções de livro de preços como as de livro de modelos, revelando assim o alcance da carpintaria na arquitetura urbana americana. Além da importância dos livros técnicos para o estudo da produção da arquitetura, outra questão original levantada por Peterson merece destaque: a da medição. A medição do trabalho realizado está diretamente vinculada às diferentes formas de pagamento do trabalho e, como tal, ao modo mesmo de produção. A análise de Peterson permite perceber como, no caso específico da construção, as diferenças entre os modos de produção pré-capitalista e capitalista não são de ordem semelhante àquelas que se verificam em outras esferas da economia. A distinção clássica adotada pelos teóricos materialistas entre trabalho corporativo e trabalho assalariado não pode ser aplicada à construção, a qual prefigura, já nas sociedades pré-capitalistas, o modo de 92

produção capitalista e, em sentido inverso, ainda hoje preserva características do modo da produção pré-capitalista. A descrição feita por sir Christopher Wren, em 1681, das diferentes alternativas para controlar trabalhos de construção conforme citada por Peterson pode ser transposta para as práticas correntes atualmente: "Existem três maneiras de trabalhar: por Dia, por Medição, ou pelo Todo. Se por Dia, o andamento me diz quando estão sendo preguiçosos. Se por medida, fornece-me informação sobre cada particular, e me diz o que devo providenciar. Se pelo todo, posso fazer um bom negócio em que não devo tirar vantagens excessivas e que não deve ferir o empreiteiro: porque em coisas que eles não estão acostumados a fazer todos os dias, muitas vezes têm prejuízos e quando começam a descobrir tal fato arrastam e negligenciam o serviço para não se prejudicar. Eu acho que a melhor maneira de trabalhar neste negócio é por medida: de acordo com os preços na Estimativa, ou mais barato se for possível, e medindo o trabalho em 3 ou 4 medições, conforme a obra for subindo. Mas você precisa de um medidor com discernimento e de confiança( ... )." Ainda hoje são três as maneiras de contratar uma obra e o paralelo com a situação no século XVII é transparente. "Por dia" é o que hoje se designa como contrato "por jornada", pouco utilizada atualmente, assim como então, pelas razão apontada por Wren; "por medida" seria.a "empreitada" convencional, também considerada hoje a alternativa mais conveniente (por preço unitário); finalmente, "pelo todo" é a obra com "preço contratado" ou "preço fixo" (por preço global), alternativa que pressupõe a despreocupação com o dispêndio de recursos, atualmente desaconselhável pelo motivo oposto ao dado por Wren e que, curiosamente, é a que se emprega em geral nas obras públicas. Como se vê, não só o Articles and Rufes como a leitura da introdução de Peterson são de grande valor para o historiador contemporâneo, abrindo campos de especulação pouco explorados, como a dos mecanismos de difusão das linguagens arquitetônicas e o da organização do trabalho na indústria da construção. Além da introdução, adescrição das diversas partes do Articles and Rufes e as legendas das ilustrações aqui publicadas, também são do autor. Charles E. Peterson é arquiteto, historiador, restaurador e planejador. Em trinta e quatro anos de trabalho no National Park Service (equivalente americano da Secretaria do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, SPHAN), dirigiu importantes programas de preservação em todo o país. Foi presidente da Society of Architectural Historians; é membro fundador e foi presidente da Association for Preservation Technology; é membro especial e recebeu em 1965 sua mais alta 93

honraria, o prêmio Louise du Pont Crowninshield, por trabalhos de alto mérito no campo da preservação. Atualmente é professor adjunto de Arquitetura da Universidade de Colúmbia e membro e historiador oficial da Companhia dos Carpinteiros de Filadélfia, cuja sede, Carpenter's Hall, restaurou. Sylvia Fischer Setembro 1987.

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Introdução Quase vinte anos atrás, esmiuçando o sótão da sede da Companhia dos Carpinteiros da Cidade e do Condado de Filadélfia (Carpenters' Company of the City and County of Philadelphia, CCCCP), encontrei um velho baú de madeira contendo algumas cópias do livro de preços da corporação, intitulado Articles and Rufes ("Estatutos e Regras"). Por ser quase desconhecido e, no entanto, de valor potencial para os historiadores contemporâneos, está sendo publicado outra vez. 1 Não há mistério a respeito de sua raridade: este pequeno volume teve, em sua época, circulação restrita por ser um segredo de ofício. Qualquer membro que o mostrasse a pessoa estranha estava sujeito a ser expulso da Companhia. Quando de sua morte, a Companhia prontamente recolhia o exemplar em poder da viúva. Mesmo Thomas Jefferson, escrevendo de Charlottesville, em 1817, não foi capaz de obter uma cópia, tantos anos depois. 2 Espera-se que e8ta obra rara seja de interesse para os estudiosos da indústria da construção americana, sobre a qual é pouco comum encontrar-se literatura antiga de qualquer tipo. Tanto quanto se saiba, este é o primeiro livro de preços ilustrado exclusivamente sobre carpintaria. Os historiadores da arquitetura podem, com razão, perguntar: é esta a primeira obra ilustrada americana de arquitetura? A resposta não é simples. Os primeiros livros aqui publicados sobre o assunto foram The British Architect e A Collection of Designs in Architecture, ambos de Abraham Swan e ambos produzidos em Filadélfia pelo arquiteto e gravador John Norman, em 1775. 3 Mas estes eram apenas novas edições de obras publicadas anteriormente em Londres. 4 O livro de preços dedicado somente ao trabalho de carpinteiros parece ser uma instituição peculiarmente americana e o presente livro ilustrado é, tudo indica, único no século XVIII. As práticas de construção nas colônias inglesas se desenvolveram em conformidade com aquelas da mãe-pátria, mas a questão dos livros de preços ainda não foi, aparentemente, investigada de modo definitivo e não se tornou objeto de estudos escritos na Inglaterra. 5 A grande biblioteca do Instituto Real dos Arquitetos Britânicos (Royal Institute of British Architects, RIBA), em Londres, possui a melhor coleção de livros técnicos antigos. Pesquisas lá realizadas no verão passado parecem mostrar que a biblioteca da RIBA tem apenas um livro de preços dedicado exclusivamente à carpintaria: The Carpenters' and Joiners' Price Book (Liverpool, 1811), de Isaac Harrison, Robert Jackson, Matthew Nelson e William Potts. 6 Este fato reflete a situação da carpintaria, a qual não era o ofício dominante na Inglaterra, onde os edifícios de estrutura de madeira não eram mais construídos nas cidades. 95

O primeiro livro de projetos especificamente dirigido para o construtor do Novo Mundo pode muito bem ter sido aquele de M. D' Albaret, um arquiteto de Paris, intitulado Dijférents projets relatijs au climat et à la maniere la plus convenable de bâtir dans les pays chauds et plus particulierement dans les Indes Occidentales lançado em 1776. Trata-se, essencialmente, de um álbum com vinte estampas de grande formato, ilustrando nove ambiciosos projetos residenciais feitos pelo autor. D' Albaret acreditava que ''um livro expondo um método de construção adaptado às condições locais será bem recebido pelas pessoas atualmente vivendo nas Índias Ocidentais e por aquelas que pretendem lá se estabelecer". Parece difícil que esta coleção pretensiosa de projetos tenha tido muita influência nas Índias Ocidentais francesas onde (certamente sem que M. D' Albaret soubesse) um estilo nativo se desenvolveu, um estilo adequado ao Caribe e a seus problemas próprios. 7 Livros publicados especialmente para serem utilizados pelos trabalhadores americanos da construção demoraram a aparecer. Apenas quando as técnicas da construção se tornaram mais variadas e complicadas, no século XIX, é que este tipo de livro passa a ser encontrado. O livro Articles and Rufes de Filadélfia foi um produto completamente americano, ilustrado com desenhos de elementos estruturais e decorativos usados em Filadélfia, feitos por Thomas Nevell, 8 membro da Companhia. Ainda que modesto em formato, se comparado aos grandes volumes in folio de Londres e do continente, pode ser considerado o primeiro trabalho realmente americano. Ele é mais que um livro de preços. O fato de ser ilustrado com gravuras em talho-doce, mostrando tanto as ordens clássicas como projetos para elementos de edifícios, tais como lareiras, lumieiras, janelas de lucarnas e grades decoradas (no caso, com motivos chineses), justifica considerá-lo, em parte, um livro de modelo (pattern book). As ilustrações eram, talvez, mostradas aos prováveis clientes (ou suas esposas) que seriam assim levados a escolher algo mais ambicioso arquitetonicamente do que o simples trabalho quaker que havia predominado até então. Estes sóbrios cavalheiros podem ter examinado obras inglesas mais antigas, tais como o Pai/adio Londinensis: of the London Art of Building (Londres, 1734), de William Salmon Jr., que continha algumas ilustrações de portas e janelas e uma pequena seção sobre o preço de trabalhos de carpintaria. A obra foi evidentemente popular na Inglaterra, pois em 1762 já estava em sua sexta edição, e havia uma cópia da edição de 1752 em Filadélfia. 9 No entanto, este livro não poderia ter servido aos fins do Articles and Rufes de Filadélfia. Ao longo dos séculos, diferentes categorias de obras sobre arquitetura foram produzidas. Inicialmente, vieram os livros da Renascen-

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ça. Os primeiros foram escritos em latim, publicados na Itália e impressos por alemães, em pequenas edições. 10 John Shute, um obscuro estampador de papel de Londres, que havia, sob o patrocínio do duque de Northumberland, visitado a Itália para conhecer seus mestres, produziu o primeiro em língua inglesa. Foi dedicado à rainha Elizabeth, ilustrado com algumas gravuras em talho-doce das "ordens", extravagantemente desenhadas, e lançado em 1563. Ao se dirigir ao leitor adota um tom, sem dúvida, pernóstico. Pode-se imaginar um nobre inglês, influenciado pelo relato de Shute sobre a arquitetura de Roma antiga, sair correndo de seu escritório para discutir alterações com o velho mestre-de-obras que está lutando para concluir a nova ala da mansão. E foi através de livros como o de Shute que a Renascença se tornou um tema persistente na Inglaterra e em outros lugares, ocupando o mercado editorial até hoje. Através dos anos, os livros sobre Arquitetura (com A maiúsculo) se multiplicaram. O eterno preferido dos editores é Vitrúvio, um obscuro arquiteto romano cujos ensaios sobre projeto e construção conseguiram sobreviver à Idade Média em forma de manuscrito. Seu famoso aforismo, "Firmeza, Comodidade e Beleza", tem sido útil agerações de escritores, principalmente depois que os desenhistas renascentistas passaram (pela primeira vez) a suprir suas edições com ilustrações. Mesmo os conselhos de Vitrúvio sobre a construção em alvenaria, tão irrelevantes para as práticas modernas como as descrições incompreensíveis de Júlio César de sua ponte sobre o Reno, têm sido solene e repetidamente traduzidos e comentados por eruditos de todos os lugares. Com exceção das ordens clássicas usadas nas construções de alto estilo e que foram bem cedo prensadas e congeladas por Sebastiano Serlio e Giacomo Barozzi da Vignola em seus moldes pessoais de "correção" - esses livros tinham pouco a oferecer ao construtor prático, o qual não era um literato, ainda que fosse, presumivelmente, tão inteligente quanto qualquer outra pessoa. 11 O pequeno e envolvente livro de Sir Henry Wotten, intitulado The Elements of Architecture (1624), lamentava o fato (e isto é muitas vezes verdade hoje em dia) de que aqueles que tinham o conhecimento técnico não tinham "Gramática" ("Gramer") e que aqueles que estavam publicando livros não tinham conhecimentos. Entretanto, estava sinceramente inclinado a acreditar que Leon Battista Alberti, "o primeiro arquiteto erudito para além dos Alpes", havia tido qualificações em ambos os campos, apesar de que já estivesse morto havia um século e meio. 12 Logo após o Grande Incêndio de Londres apareceu o pequeno volume de Stephen Primatt, The City and the Country Purchaser and Builder (1667), oferecendo inúmeros conselhos práticos para o proprietário de lotes urbanos e o empresário da construção. A questão da men-

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suration, ou medição, é discutida no livro juntamente com os ofícios do carpinteiro, do pedreiro, do estucador, do marceneiro, do pintor, do vidraceiro e do canteiro. Primatt oferecia apenas duas plantas e uma fachada principal para uma residência urbana e um projeto de lareira decorada com painéis (como faz, secundariamente, o pequeno livro que aqui está sendo apresentado). Em 1677, uma década após Primatt, é lançado em Londres Mechanics Exercises, ar the Doctrine of Handy-Works, de Joseph Moxon, um trabalho de caráter completamente diferente. 13 Ao se desculpar por escrever sobre assunto tão baixo, o autor admite que, conquanto se possam encontrar algumas personagens sórdidas ou ignóbeis entre os carpinteiros de residências, "sabe-se bem que muitos Cavalheiros da Nação, de boa posição social e alta qualidade, são versados em trabalhos manuais (leia-se oficinas de passatempo) ... Quão agradável e saudável é para suas mentes e corpos este seu divertimento; e quão inofensivo e honesto todos os homens sóbrios devem julgá-lo." 14 Estas pessoas de fino trato que se dedicam a tais passatempos eram, obviamente, a clientela que, esperava-se, viria a comprar o livro. É difícil imaginar um aprendiz de ofício em Londres, sob a supervisão da Venerável Companhia de Carpinteiros (Worshipful Company of Carpenters, que havia recebido sua carta-patente no século XIV), 15 aprendendo sua profissão em um livro. O texto de Moxon, no entanto, contém uma grande quantidade de conselhos práticos feitos a partir da observação direta e as ferramentas mencionadas estão bem ilustradas. Mas o livro não entra no assunto da medição. Os livros franceses, pelas suas características, não negligenciavam a tecnologia. Philibert de L'Orme (c.1515-1570), o mais importante teórico francês da Renascença, publicou um volume sobre detalhes de estruturas para coberturas em 1561, copiosamente ilustrado com xilogravuras e intitulado Nouvelles inventions pour bien bâtir, antes mesmo de seu primeiro livro de projetos. Outro escritor francês, Mathurin Jousse, comerciante e serralheiro, fala bem da "excelente arte da carpintaria" em seu Le Théâtre de l'Art de Charpentier enriché de divers figures (La Fleche, 1627). Ainda que Jousse tenha dedicado o volume ao "Alto e Poderoso" marquês de la Varenne - e consiga referir-se a Vitrúvio - a maior parte do trabalho é dedicada ao projeto de elaboradas armações para cobertura e domos de madeira no estilo francês. De volta à Inglaterra, o título do livro de Primatt é utilizado outra vez em 1703, por Richard Neve, que apresenta 283 páginas sobre diversos assuntos organizados alfabeticamente de Ábaco a Zócolo. 16 Conquanto o autor se demore cultivando interesses antiquários, tais como acrotérios, métopas e xilos, faz também muitas observações práticas sobre os métodos correntes de construção, juntamente com algumas cotações de preços unitários. Porém, trata-se ainda de um livro 98

mais para proprietários do que para construtores ou seus operários e aprendizes. O negócio dos livros de modelos começa então a florescer. Projetos completos para edifícios eram apresentados por arquitetos britânicos - autores como Colin Campbell (1715), William Halfpenny (1724), William Kent (1727), Robert Morris (1728), James Gibbs (1728), Abraham Swan (1745), William Chambers (1757), William Paio (1758), James Stuart (1762) e Robert Adam (1764), 17 para citar os mais importantes. Muitos destes livros logo apareceram nos Estados Unidos e tiveram uso razoavelmente amplo. A biblioteca da Companhia de Filadélfia possuía cerca de vinte e duas obras sobre "Arquitetura Civil" em suas prateleiras, em 1789, quando sua nova e bela sede, projetada pelo diletante William Thorton, foi erigida na Fifth Street. Dezessete carpinteiros de residências (na sua maioria membros da CCCCP), oito pedreiros e um canteiro, um estucador e um pintor de residências ficaram com quotas da Companhia da Biblioteca (Library Company) ao invés de receber salários, 18 testemunhando a ânsia geral pelos conhecimentos transmitidos nas publicações originárias da velha pátria. A Companhia dos Carpinteiros tinha sua própria biblioteca, mas pouco se sabe a seu respeito durante o século XVIII. 19 Para se examinar a questão da medição, alguns aspectos da prática da construção, comuns à Inglaterra e suas colônias americanas, devem ser considerados. Ninguém explicou melhor os procedimentos correntes do que Sir Christopher Wren que, em uma carta datada de 1681 para o bispo de Oxford, discute os regimes para contratar uma construção: "Existem três maneiras de trabalhar: por Dia, por Medição, ou pelo Todo; se por dia, o andamento me diz quando estão sendo preguiçosos. Se por Medida, fornece-me informação sobre cada particular, e me diz o que devo providenciar. Se pelo Todo, posso fazer um bom negócio em que não devo tirar vantagens excessivas e que não deve ferir o empreiteiro: porque em coisas que eles não estão acostumados a fazer todos os dias, muitas vezes têm prejuízos e quando começam a descobrir tal fato arrastam e negligenciam o serviço para não se prejudicar. Eu acho que a melhor maneira de trabalhar neste negócio é por medida: de acordo com os preços na Estimativa, ou mais barato se for possível, e medindo o trabalho em 3 ou 4 medições, conforme a obra for subindo. Mas você precisa de um Medidor com discernimento e de confiança ( ... )." 2º É dos acordos necessários para estabelecer o valor, por medida, do trabalho concluído que trata o livro de Filadélfia. Livros de preços podiam ser usados também para estimar o custo de um trabalho proposto a partir de quantidades calculadas em desenhos; isto é exatamente o que é feito hoje em dia pelos orçamentadores usando "preços unitá99

rios". Neste meio tempo, o método de estabelecer o custo de um trabalho após a construção, como praticado pelos membros da CCCCP usando este livro, saiu de moda. Quanto a livros de preços de carpinteiros americanos anteriores a 1786, havia um em Providence, Rhode Island (provavelmente apenas um manuscrito), iniciado em 1750. 21 O primeiro exemplo impresso parece ser The Carpenters' Rufes of Work in the Town of Boston, editado por Mills e Hicks, Schoolstreet, 177 4, um panfleto com onze páginas. Esse "livro" talvez tenha sido o segundo a ser impresso, mas, como já ressaltado, o primeiro a incluir projetos. Após 1786 muitos foram lançados, e em lugares tão distantes em direção ao oeste quanto Peoria (Illinois) e St. Louis. Isto nos traz de volta ao presente volume. Segundo a tradição, uma das primeiras providências da CCCCP após a sua fundação foi fixar "uma escala uniforme de preços para o seu trabalho, de modo que o trabalhador receba uma compensação justa por seu trabalho e o empregador obtenha um valor justo por seu dinheiro". 22 Como a documentação mais antiga da Companhia se perdeu, não é mais possível traçar a origem e as primeiras etapas dessa importante função. Em 1763, os investimentos na obra em Chestnut Street exigiram que os negócios da CCCCP fossem conduzidos com maior rigor fiscal. Por esse motivo, dessa época em diante passaram a ser mantidas atas minuciosas que sobreviveram sob os cuidados da biblioteca da Sociedade Americana de Filosofia (American Philosophical Society). Uma das primeiras ações da Companhia a ser anotada nestas atas foi a indicação de doze de seus membros para o Comitê de Preços de Trabalhos. Entre eles estavam Robert Smith, Gunning Bedford, Thomas Nevell e Benjamin Loxley, que viriam a desempenhar um papel de liderança nos assuntos da Companhia, em especial durante a construção de sua nova sede. Está documentado que, na reunião de 25 de abril de 1774, o Comitê preparou uma lista de preços revisados, a qual foi em seguida reexaminada e adotada. O manuscrito do livro deveria ser mantido na nova sede sob a responsabilidade do comitê especial. Os membros que desejassem possuir uma cópia tinham que ir à sede e fazê-la pessoalmente. Nesse intervalo (1769), a Companhia de Assistência dos Carpinteiros (Friendship Carpenters' Company) de Filadélfia havia sido organizada. 23 Funcionando na casa de Samuel Clark (uma sala, fogo e velas a dois xelins por noite), logo produziu seu próprio livro de preços, do qual uma cópia foi preservada em manuscrito. Mas surgiu um conflito a respeito do sistema de preços da corporação mais antiga e os membros da Companhia de Assistência tentaram encontrar uma solução conciliatória. Em uma carta extremamente obsequiosa, datada de 15 de janeiro de 1770, saúdam "seus irmãos mais velhos" ("their 100

Elder Brethren") e se referem à "reprovação que se faz à profissão de uma maneira muito geral há já algum tempo, que se deve ao modo em que são entendidos os Diferentes Métodos empregados na Medição e Avaliação dos trabalhos que pertencem à profissão, não podendo senão desejar ver alguns meios efetivos para remover tal escândalo ( ... )".24

Esta tentativa de compartilhar as técnicas de medição da corporação mais antiga deu em nada. Três meses mais tarde, recebem uma proposta condescendente, assinada por Robert Smith, que deve tê-los enfurecido: "Quanto a escândalo ou reprovação, nós (a CCCCP) por nós mesmos não estamos inteirados de nenhuma causa justa para ambos, estando conscientes de que os Métodos de medição e avaliação que seguimos é mais imparcial, expressivo e satisfatório do que qualquer outro método que já tenha sido praticado antes nesta Cidade e muitos de nós estamos inteirados de que não é inferior aos melhores métodos praticados em qurlquer Cidade nos Domínios do Rei ( ... ). " 25 Esta repercussão negativa retardou os esforços de conciliação por muitos anos. Neste meio tempo, a Guerra de Independência - na qual membros da CCCCP e sua própria sede desempenharam papel de destaque - começou e terminou. No ano de 1785, dois anos após a assinatura do Tratado de Paris, a Companhia de Assistência foi finalmente absorvida pela corporação mais antiga. Outro comitê de doze membros foi indicado para preparar um novo livro de preços e cuidar, pela primeira vez, de sua impressão. Isto foi feito na esperança de responder às reclamações dos prováveis clientes proprietários de obras, na ocasião relutantes em pagar preços mais altos pelos trabalhos. Os custos em Filadélfia (esta era a explicação dada) haviam subido devido ao crescente refinamento dos próprios edifícios, assim como à elevação dos custos de materiais e mão-de-obra. O avanço dos procedimentos pode ser seguido nas atas do comitê especial de preços e no Livro de Contabilidade (Account Book) geral de 1763-1834. Em 18 de julho de 1785, Thomas Nevell ofereceu um conjunto de "Pranchas representando as diferentes partes do trabalho dos Carpinteiros( ... ) desenhos necessários para o Gravador" por trinta e dois dólares, seu preço de custo (jirst cost), que foi unanimemente aceito. Em 12 de dezembro, foi aprovada por votação a publicação e as despesas foram anotadas nos livros da Companhia. 26 William Young recebeu f34-7-6 pelo papel de Hall & Sellers, editores de The Pennsylvania Gazette, f15 pela impressão do texto. Thomas Bedwell, "impressor em placas de cobre" e um ex-sócio de John Norman, 27 recebeu B0-5-10, em várias prestações, pela gravação e impressão das ilustrações, e Benjamin January recebeu f?-10-0 pela encadernação das 101

folhas. Pelo texto, o membro Joseph Thornhill, provavelmente atuando como um escriba para o comitê, recebeu El-15-0. Sem dúvida alguma cada um dos mais de oitenta membros vivos da Companhia recebeu um exemplar do novo livro, ainda que hoje menos de uma meia dúzia de volumes completos sejam conhecidos. A edição de 1786 foi superada por outras de 1805, 1831 e 1852. Alguns anos mais tarde, um outro grupo de Filadélfia, em protesto contra a "exclusão discriminatória de pessoas" pela CCCCP, organizou a Sociedade dos Carpinteiros Práticos de Residências (Practical House Carpenters' Society) e publicou em 1811 um livro de preços dedicados aos cidadãos da Pensilvânia. Possuía cinqüenta e oito páginas de texto, mais índice e oito pranchas de gravuras feitas por Strickland. Uma produção de dimensões significativas - mas não de demonstrada originalidade - foi o trabalho em três volumes intitulado The Builders' Assistant, de John Haviland (1792-1852), imigrante inglês, Haviland projetou alguns dos melhores edifícios de começos do século XIX em Filadélfia. Seu livro é embelezado por sessenta projetos originais, em cento e cinqüenta estampas a talho-doce por High Bridport. Juntamente com o terceiro volume (1821), foi encadernado um opúsculo separado, intitulado House Carpenters' Book of Prices and Rufes for Measuring and Valuing Ali Their Different Kinds of Work, datado de 1819 e com trinta e uma páginas de preços. Também está incluída uma "List of Prices of the Stone Masons & Bricklayers in Philadelphia" (com onze páginas) e uma "List of Prices of Master Plasterers in Philadelphia" (com três páginas). Talvez a obra americana mais completa do gênero, publicada, seja aquela do arquiteto James Gallier (1798-1868), The American Builders' General Price Book and Estimafor ... to Elucidate the Principies of Ascertaining the Carreei Value of Every Description of Artificers Work Required in Buildingfrom the Prime Cosi of Materiais and Labour in Any Pari of the United States. A primeira edição, publicada em Nova York em 1833, tem cento e vinte e oito páginas de texto geral, setenta e duas de Tabelas e Memorandos e dezessete páginas reproduzindo as "Leis que Regulam os Edifícios" ("Laws Regulating Buildings") na cidade de Nova York. A esta seguiram-se novas edições feitas em Boston, em 1834 e 1835. Em 1836, Burns e Huddleston, livreiros e negociantes de papel em Boston, anunciavam que tinham sempre disponíveis "todos os tipos de livros de Preços para Carpinteiros, Canteiros, Arquitetos e Construtores". Seu Rufes and Prices de Boston custava cinqüenta centavos cada ou quatro dólares a dúzia. Uma grande diferença da obra, mantida sempre secreta, que estamos publicando!

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NOTAS

(1) Para maiores discussões, veja Charles E. Peterson, "Carpenters' Hall", Transactions of the American Philosophical Society, vol. 43, parte I (Filadélfia, Pen., I 953), p.105. (2) Talbot Hamlin, Benjamin Henry Latrobe (Nova York, 1955), p.147, nota I. (3) Norman e Hall anunciam em The Pennsylvania Gazette, de 17 de agosto de 1774, como "Gravadores e Mestres Desenhistas" de Londres, listando entre seus serviços arquitetura e impressão em chapas de cobre. Em 11 de maio de 1775, Norrnan separadamente anuncia subscrições para um trabalho sobre táticas militares prussianas; Thomas Nevell e Benjamin Loxley, da Companhia dos Carpinteiros (entre outros), fazem a assinatura. Em 28 de dezembro de 1779, Norman está trabalhando com Thomas Bedwell, vendendo caixões de defunto e enfeites de papel, assim corno gravando e imprimindo. Em 1783, estava estabelecido em Boston. (4) Henry Russel Hitchcock, American Architectural Books, 3~ edição (Minneapolis, Min., 1946), pp.iii, 103. David McNealy Stauffer, American Engravers upon Copper and Steel (Nova York, 1907), I, p.191. (5) John Harris, bibliotecário da RIBA, confirmou que nenhum trabalho tem sido feito sobre estes livros de preços. A mesma situação prevalece nos Estados Unidos, com exceção da pesquisa pioneira da professora Louise Hall. (6) Mas é mencionado no exemplar de 1811 que o trabalho havia sido "revisado e regularizado" em 1799, indicando uma versão anterior. (7) Reeditado em fac-símile por Leonce Laget (Paris, I 967). (8) A vida e obras de Nevell estão descritas em Hannah Benner Roach, "Thomas Nevell (1721-1797), Carpenter, Educator, Patriot", Journal of the Society of Architectural Historians (maio, I 965), vol. XXIV, n? 2, pp. 153-164. (9) Charles E. Peterson, "Library Hall", Historie Philadelphia (Filadélfia, 1953), p.146. (10) Ernest Allen Connally, Printed Books on Architecture, 1485-1805, University of Illinois, 1960, p.9. (11) Sir John Summerson, falando na rede BBC de televisão, tentou esclarecer as diferenças entre as diversas autoridades. Veja John Summerson, The Classic Language of Architecture (Cambridge, Mass., 1961), em especial pp.7-10. Desconfio que alguns desses arquitetos antigos estavam colocando armadilhas para os historiadores da arte. (12) O trabalho pioneiro de Alberti, De re Aedificatoria, foi publicado em Florença, em 1485. (13) A edição de 1703 de Moxon acaba de ser republicada por Praeger (Nova York, 1970), tendo Charles F. Montgomery e Benno M. Forman como editores. O livro tem mais de cem páginas sobre marcenaria e carpintaria, dois ofícios relacionados, que se sobrepõem e que nunca foram claramente separados quanto à jurisdição das guildas, apesar das longas audiências perante o prefeito de Londres, no século XVII. No entanto, os dois ofícios foram unidos, em 1670, para evitar que os serradores se organizassem. Veja Edward Basil Jupp e William Willmer Pocock, An Historical Account of the Worshipful Company of Carpenters of the City of London (Londres, 1887), pp.295-310. (14) Prefácio para a edição de 1677 de Moxon. (15) Os primórdios de tais organizações na Inglaterra são obscuros. Em 1333, a Irmandade dos Carpinteiros (Brotherhood of Carpenters) de Londres preparou um livro de estatutos, o qual revela que se tratava, principalmente, de uma sociedade de assistência mútua e funerária: Por volta de 1428-29, a Irmandade havia adquirido um terreno para sua sede e, por volta de I 455, estava claramente tentando regulamen-

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tar, o ofício na capital. No século XVI, seus membros estavam tomando parte ativa na vida cívica e social das Companhias Fardadas (Livery Companies) de Londres e participavam de coroações, enterros reais e outros assuntos de Estado. Veja B.W.E. Alford e T.C. Barcker, A History of the Carpenters' Company (Londres, 1968), pp.16-19. Publicado sob o pseudônimo de T.N. Philomath. A segunda edição, de 1726, foi publicada em fac-símile por Augustus M. Kelley (Nova York, 1969). Lista preparada a partir de Fiske Kimball, Domestic Architecture of the American Co/onies and of the Early Repub/ic (Nova York, 1922), pp.58-60, e Connally, pp.36 e 37. Peterson, "Library Hall", pp.134, 135 e 146. Algo desta impressionante cooperação pode ter se devido à associação dos mecânicos com Benjamin Franklin, fundador da Companhia da Biblioteca e aliado político durante a Revolução. Existe uma antiga tradição segundo a qual James Portues, que morreu na década de 1730, teria legado seus livros para a Companhia e que a primeira aquisição foi em 1737. Frank Jenkins, Architect and Patron (Londres, Nova York e Toronto, 1961), pp.128 e 129. O professor Jenkins discute esta questão nas páginas 143-145 e cita o pequeno e sarcástico volume de James MacPacke, "Bricklayer's Labourer", Oikidia; or Nutshel/s. Este foi publicado em Londres em 1785, ano anterior ao do volume em questão; um exemplar estava listado nas prateleiras da Companhia da Biblioteca de Filadélfia quatro anos mais tarde. Rufes for House Carpenters Work in the Town of Providence (Providence, R.I., 1796), p.2. 1866, p.128. Em uma reunião na Biblioteca da União ("Union Library") em 18 de novembro de 1769. lbid., 28 de maio de 1770. lbid., 20 de agosto de 1770. Esta troca de correspondência certamente revela a alta estima pelo livro de preços. Manuscritos encadernados para o período de 1763-1834. Os registros aqui mencionados vão do dia 3 de julho de 1786 ao dia 16 de junho de 1787. As chapas de cobre, a partir das quais as ilustrações foram impressas, estão preservadas na sede da Companhia. No verso de algumas existem gravações que foram usadas por John Norman para ilustrar trabalhos anteriores. Bedwell aparece na relação de endereços de Biddle para o ano de 1791 como um "produtor de papel de parede" no endereço 234 North Front Street na relação de endereços de Hardie para o ano de 1794 como um "produtor de extrato de casca de árvore", no mesmo encJereço.

6. Etnomatemática e seu lugar na história e na pedagogia da Matemática* UBIRATAN D' AMBROSIO

"As I proceeded with the study of Faraday, I perceived that his method of conceiving the phenomena was also a mathematical one, though not exhibited in the conventional form of mathematical symbols." (J.C. Maxwell, Treatise on Electricity and Magnetism, 1892).

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Comentários introdutórios

Neste trabalho discutimos algumas questões básicas que podem estabelecer as bases para uma abordagem histórica no ensino da Matemática, de uma nova maneira. Nosso projeto repousa principalmente no desenvolvimento do conceito de etnomatemática. Nosso tema situa-se na fronteira entre a História da Matemática e a Antropologia Cultural. Podemos conceituar etnociência como o estudo dos fenômenos científicos e, por extensão, tecnológicos, em relação direta com suas origens sociais, econômicas e culturais. Tem havido muita pesquisa em etnoastronomia, etnobotânica, etnoquímica, etnoculinária e assim por diante. Não muita coisa tem sido feita em etnomatemática, talvez porque as pessoas acreditem na universalidade da Matemática. Esta crença parece ser cada vez mais difícil de sustentar. Pesquisa recente, principalmente levada avante pelos antropólogos, mostra evidência de práticas que são tipicamente matemáticas, tais como a contagem, a ordenação, a classificação, a medição e a pesagem, feitas de maneiras radicalmente diferentes daquelas que são comumente ensinadas no sistema escolar 1• Tais práticas obedecem a uma lógica que difere essencialmente da lógica inerente à Matemática, que poderíamos chamar de origem ocidental, mas que neste trabalho chamaremos simplesmente Matemática. (*) Este texto é uma reelaboração do artigo "Ethnomathematics and its place in the History and Pedagogy of Mathematics", publicado em For the Learning of Mathematics (Montreal), vol.5, n?l, fev. de 1985, p.44-48: agradecemos a Ocsana Danyluk pela tradução do texto original.

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Isto tem encorajado alguns estudos a respeito da evolução dos conceitos de Matemática dentro de uma estrutura cultural e antropológica. Porém, consideramos que esta direção foi perseguida somente até um grau muito limitado e, poderiamos dizer, tímido. Um livro relativamente recente escrito por R. L. Wilder que assume esta abordagem e um comentário recente sobre a abordagem de Wilder feito por C. Smorinski2 parecem ser as tentativas mais importantes feitas por matemáticos. Destaca-se também o recente tratamento epistemológico de Philip Kitcher, que recupera uma forma de empiricismo psicológico. 3 Por outro lado, existe uma quantidade razoável de literatura a este respeito feita por antropólogos. Fazer uma ligação entre antropólogos, historiadores da cultura e matemáticos é um passo importante na direção do reconhecimento de que diferentes modos de pensar podem conduzir a diferentes formas de Matemática; este é o campo que denominamos etnomatemática. A extensa história da lógica feita por Anton Dimitriu4 descreve de maneira breve as lógicas indianas e chinesas, meramente como um pano de fundo para seu estudo geral, histórico, da lógica que se originou do pensamento grego. Sabemos, a partir de outras fontes, que, por exemplo, o conceito de "o número l" é um conceito bastante diferente na epistemologia Nyaya-Vaisesika: "O número 1 é eterno nas substâncias eternas, ao passo que 2, etc ... são sempre não eternos'', e a partir deste ponto prossegue uma teorização da aritmética5 que coincidentemente apresenta resultados que se assemelham àqueles obtidos a partir da aritmética de Diofante. Daí a relativamente fácil assimilação da mesma pelos hindus. Mas que conceitualmente nada tem a ver uma com a outra. Do mesmo modo, praticamente nada se conhece a respeito da lógica que subjaz como base ao tratamento inca dos números, embora o que conhecemos através do estudo dos quipus sugira que eles usavam uma linguagem mista, qualitativo-quantitativa. 6 A História da Matemática vem procurando identificar nessas culturas conceitos e resultados que coincidem com conceitos e resultados da Matemática Ocidental e, daí, inferir, erroneamente, que essas matemática:; equivalem a estágios primitivos da Matemática Ocidental e que, se se dessem às mesmas alguns séculos a mais atingiriam um estágio mais avançado, comparável ao ocidental. Esta é uma das grandes falácias da História da Ciência focalizada a partir das epistemologias correntes. Estes comentários convidam-nos a examinar a História da Matemática num contexto mais amplo, de maneira a incorporar-lhe outras possíveis formas de Matemática. Iremos além dessas considerações. Isto não é meramente um exercício acadêmico, uma vez que suas implicações para a pedagogia da Matemática são claras. Referimo-nos a avanços recentes nas teorias de cognição que mostram quão intensamente a cultura e cognição estão relacionados. Muito embora durante um lon106

go tempo tenha havido uma estreita ligação entre os mecanismos cognitivos e o meio ambiente cultural, uma tendência reducionista, que remonta a Descartes e tem-se desenvolvido até certo ponto em paralelo com o desenvolvimento da Matemática, tendeu a dominar a educação até recentemente, implicando uma e cognição isenta de cultura. Recentemente, um reconhecimento holístico da interpenetração da biologia e da cultura abriu um campo fértil de pesquisas a respeito de cultura e cognição matemática (ver, por exemplo, David F. Lancy7). Isto tem implicações claras para a Educação Matemática, conforme amplamente discutido. 8 •9 •10 •11 2. Uma visão generalizada e História da Educação Matemática. Examinemos brevemente alguns aspectos da educação matemática através da história. Necessitamos de algum tipo de periodização para esta visão generalizada que corresponda, até certo ponto, a mudanças principais na composição sócio-cultural da história ocidental. Desconsideramos, nesse breve apanhado, outras civilizações. Até a época de Platão, nossa referência é o início e o desenvolvimento da Matemática em dois ramos claramente distintos: o que poderíamos chamar de Matemática "erudita", que estava incorporada na educação ideal dos gregos, e um outro que poderíamos chamar de Matemática "prática", reservado principalmente aos trabalhadores manuais. Nas origens egípcias da Matemática houve o espaço reservado para a Matemática "prática", ensinada aos trabalhadores. Esta distinção foi mantida até os tempos gregos e Platão diz claramente que "todos os estudos (cálculo e aritmética, medições, relações das órbitas planetárias) em seus mínimos detalhes não são para as massas, mas para uns poucos selecionados" 12 e que "deveríamos induzir aqueles que devem compartilhar das mais altas funções de Estado a entrarem no estudo de cálculos e se agarrar a ele ( ... ) não para fins de compra e venda, como se estivessem se preparando para ser mercadores ou mascates." 12 Esta distinção entre Matemática erudita e Matemática prática, reservadas às diferentes classes sociais, é levada adiante pelos romanos com o trivium e quadrivium e em paralelo um treinamento prático para os operários. Na Idade Média começamos a ver a convergência de ambas em uma direção: isto é, a Matemática prática começa a usar algumas idéias da Matemática erudita, no campo da geometria. A geometria prática assume um valor por seu próprio mérito na Idade Média. Esta aproximação da geometria prática para a teoria segue à tradução do árabe dos elementos de Euclides feita por Adelard de Bath (início do século XII). Dominicus Grandissalinus em sua classificação de ciência diz que "seria vergonhoso para alguém exercer qualquer ar107

te e não saber o que ela é, de qual assunto ela trata e as outras coisas que dela são prometidas" . 13 Com respeito ao cálculo e à contagem, as mudanças começam a ocorrer com a introdução dos numerais arábicos e o tratado de Fibbonaci 14 é provavelmente o primeiro a começar a mesclar aspectos práticos e teoréticos da aritmética. A próxima etapa de nossa periodização é a Renascença, quando surge uma nova estrutura obreira: mudanças ocorrem no domínio da arquitetura, desde que o desenho permite fazer planos acessíveis aos pedreiros e um maquinário pode ser desenhado e então reproduzido por outros além dos inventores. Na pintura descobre-se que as escolas são mais eficientes e os tratados tornam-se disponíveis. A aproximação é sentida pelos eruditos, que começam a usar o vernáculo em seus trabalhos, algumas vezes escrevendo em sua linguagem não técnica e em estilo acessível aos não eruditos. Os exemplos melhores conhecidos são Galileu e Newton com sua Optiks. A aproximação da Matemática prática à Matemática erudita aumenta rapidamente na era industrial, não apenas por razões e necessidades de trabalhar com maquinário e manuais de instrução cada vez mais complexos como também por motivos sociais. O aprendizado exclusivamente erudito não bastaria para os filhos de uma aristocracia que tinha de estar preparada para conservar seu predomínio social e econômico em uma nova ordem. 14 A aproxin ação da Matemática erudita e da Matemática prática começava então a penetrar no sistema escolar, se assim podemos chamar a educação naquela época. Finalmente, alcançamos a última etapa nesta periodização difícil ao chegarmos ao século xx, e a difusão do conceito de educação de massa torna mais premente do que para Platão a questão de qual Matemática deveria ser ensinada nos sistemas educacionais. A resposta proposta foi que deveria ser uma Matemática que mantivesse a estrutura econômica e social, remanescente daquela dada para a aristocracia quando uma boa aprendizagem em Matemática era essencial para o progresso da elite (conforme advogado por Platão), e ao mesmo tempo permitir a esta elite assumir um controle efetivo do setor produtivo. 15 A Matemática é adaptada e recebe um lugar como Matemática prática-erudita, que será denominada daqui para diante Matemática Acadêmica, isto é, a Matemática que é ensinada e aprendida nas escolas. Em contraste com isto denominaremos de etnomatemática a Matemática encontrada entre os grupos culturais identificáveis, tais como sociedades tribais nacionais, grupos obreiros, crianças de uma certa faixa etária, classes profissionais, etc. Sua identidade depende amplamente dos focos de interesse, da motivação e de certos códigos e jargões que não pertencem ao domínio da Matemática Acadêmica. Podemos ir ainda além neste conceito de etnomatemática para incluir grande parte da Matemática que é corretamente praticada por engenheiros, princi108

paimente o cálculo, e que não responde ao conceito de rigor e de formalismo desenvolvidos nos cursos acadêmicos de cálculo. Como exemplo, a abordagem de Sylvanus Thompson do cálculo pode ajustar-se bem a esta categoria de etnomatemática. E os construtores, os perfuradores de poços, os construtores de barracos nas favelas, os físicos e engenheiros, também utilizam formas de etnomatemática. Naturalmente, este conceito pede uma interpretação mais ampla do que seja Matemática. Agora, incluímos na Matemática a parte do cálculo aritmético e da aritmética platônica, a medição e as relações das órbitas planetárias, as capacidades de classificar, ordenar, inferir e modelar. Esta é uma gama muito ampla de atividades humanas às quais, por toda a história, tem sido expropriadas pela instituição erudita, formalizada, codificada e incorporada no que denominamos Matemática acadêmica, mas que permanece viva nos grupos culturalmente identificáveis e que constituem rotinas em suas práticas. 3. Etnomatemática na História e na Pedagogia e as relações entre elas Gostaríamos de insistir na ampla conceitualização da Matemática que nos permite identificar várias práticas que são essencialmente matemáticas quanto à sua natureza. E também pressupomos um amplo conceito de etno - para incluir todos os grupos culturalmente identificáveis com seus jargões, códigos, símbolos, mitos e até mesmo maneiras específicas de raciocínio e de inferência. Naturalmente, isso vem de um conceito de cultura como o resultado de uma hierarquização de comportamento individual, através do comportamento social, até o comportamento cultural. O conceito repousa em um modelo de comportamento individual, baseado' no ciclo realidade--+ indivíduo--+ ação--+ realidade esquematicamente mostrado como

e~ Fatos~(! a~

Informação

11

Reifieação

- - - - - - - - - - - - Estratégia 109

Neste modelo holístico não entraremos em uma discussão do que seja realidade, ou do que seja um indivíduo, ou do que que seja a ação (v. Lumsden e Wilson 16). Simplesmente supomos a realidade em um senso amplo, tanto natural, material, social como psico-emocional. Observamos que as ligações são possíveis através de mecanismos de informação (que incluem sistemas tanto sensoriais como de memória e tanto genéticos quanto adquiridos) e que produzem estímulos ao indivíduo. Através de um mecanismo de reificação, estes estímulos dão origem a estratégias, baseadas em códigos e modelos, que levam em conta a ação. Os impactos da ação sobre a realidade através da introdução de fatos na realidade, tanto artefatos como mentefatos. Introduzimos este neologismo para indicar todos os resultados da ação intelectual que não se materializam, tais como idéias, conceitos, teorias, reflexões e pensamentos. . Estes são acrescentados à realidade no sentido amplo mencionado acima e a modificam de maneira clara. O conceito de reificação tem sido usado pelos sócio-biólogos como "atividade mental na qual os fenômenos vagamente percebidos e relativamente intangíveis, tais como arranjos complexos de objetos ou atividades, recebem uma forma artificialmente concreta, simplificada e identificada com palavras ou outros símbolos" (Lumsden e Wilson, 16 pág. 380). Admitimos que este seja o mecanismo básico através do qual as estratégias para a ação são defiqidas. Esta ação se manifesta através de artefatos ou de mentefatos e modifica a realidade, a qual, em troca, produz informação adicional, a qual, através deste processo reificativo, modifica ou gera novas estratégias para a ação, e assim por diante. Este ciclo incessante é a base para a estrutura teórica na qual baseamos nossos conceitos matemáticos. Comportamentos individuais são de certa maneira homogeneizados ou compatibilizados através de mecanismos como educação, vindo a constituir o comportamento social, o qual em troca gera o que denominamos cultura. Novamente, um esquema como História

n

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v~Eventos

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---Comunicação Cultura

leva em conta o conceito de cultura como a estratégia para a ação exercida pela sociedade. Agora, o mecanismo de reificação, que é característico do comportamento individual, é substituído pela comunicação, enquanto a informação, que causa impacto sobre um indivíduo, é substituída pela história, que tem seu efeito sobre a sociedade como um todo. Não nos aprofundaremos mais nesta estruturação teórica, deixando isto para outra oportunidade. A própria conceituação de história que acabamos de faz~r será detalhada em outra oportunidade. Conforme mencionàmos acima, a cultura se manifesta através de jargões, códigos, mitos, símbolos, utopias e maneiras de raciocinar e inferir. Associados a estas temos práticas como cálculo e contagem, medição, classificação, ordenação, inferição, modelação, etc., que constituem a etnomatemática. A questão básica que então enfrentamos é a seguinte: quão "teorética" pode ser a etnomatemática? Tem sido reconhecido desde há muito tempo que as práticas matemáticas, tais como aquelas mencionadas no final do parágrafo anterior, são conhecidas por vários grupos culturalmente diferenciados. Observe-se que quando dizemos "conhecidas" queremos dizer de uma maneira que é essencialmente equivalente à maneira ocidental, ou acadêmica, de conhecê-las, inclusive institucionalizada e hierarquizada. Isto é, freqüentemente visto nas pesquisas dos antropólogos e, mesmo antes que a etnografia fosse reconhecida como ciência, nos relatos dos viajantes por todo o mundo. O interesse P.estes relatos tem sido principalmente a curiosidade ou a fonte de interesse antropológicos a respeito da aprendizagem de como pensam os nativos. Damos um passo à frente ao tentar encontrar uma estrutura subjacente de indagação nestas práticas ad hoc. Em outros termos, temos que fazer a nós mesmos as seguintes perguntas: 1) Como as práticas ad-hoc e a solução dos problemas se transformam em métodos? 2) Como são os métodos transformados em teorias? 3) Como são as teorias transformadas em invenção científica? Parece, a partir de um estudo da história da ciência, que estas são as etapas na formação de teorias científicas. Em particular, a História da Matemática dá uma boa ilustração das etapas l, 2 e 3 e os programas de pesquisa na História da Ciência estão, em essência, baseados nestas perguntas. A questão principal é, então, metodológica e ela se situa no conceito da própria História, em particular da história da ciência. Temos que concordar com a sentença inicial num excelente livro escrito por Bellone, a respeito da segunda revolução científica: "Existe uma tentação oculta nas páginas da história da ciência - a tentação de derivar o nascimento e a morte das teorias, a formalização e o crescimento de conceitos, a partir de um esquema (ou lógico, ou filosófico) sempre 111

sólido e aplicável em toda parte. Ao invés de tratar de problemas reais, a história se tornaria então uma revisão aprendida de contos e edificadores para o benefício de uma escola filosófica ou outra. " 17 Esta tendência permeia a análise de práticas populares como a etnociência e, em particular, a etnomatemática, privando-se de qualquer história. Como conseqüência, essa tendência se priva do status de conhecimentos. É apropriado neste momento fazer alguns comentários a respeito da natureza da ciência hoje em dia, considerada como uma atividade profissional de grande escala. Conforme já tnencionamos, ela atingiu esta posição apenas a partir do início do século XIX. Muito embora os cientistas se comunicassem entre si e os periódicos científicos, assembléias e associações fossem conhecidas, a atividade dos cientistas nos séculos anteriores não recebia qualquer rec 0 rnpensa como tal. Qualquer recompensa que houvesse vinha mais c0 n10 um resultado de patrocínio. As universidades estavam pouco Pteocupadas com a preparação de cientistas ou treinamento de indivíctuos para o trabalho científico. Somente no século XIX o tornar-se utn cientista começou a ser considerado uma atividade profissional. E