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Portuguese Pages [201]
Georges Snyders
Escola, Classe e Luta de Classes
MDM COPIADORA FCHF — UFG Livro Completo
c EDITORA
Capa: Paulo Gaia Editoração: Conexão Editorial Produção Editorial: Adalmir Caparrós Fagá Fotolitos de Capa: SM Fotolito Impressão e Acabamento: Bartira Gráfica e Editora S/A
SUMÁRIO
1º Edição — Abril de 2005 Título Original: École, Classe et Lutte des Classes O 1976 — by: Presses Universitaires de France Tradução: Leila Prado
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Introdução
Snyders, Georges Escola, classe e luta de classes / Georges Snyders ; (tradução Leila Prado). — São Paulo: Centauro, 2005.
Título original : École, classe et lutte des classes
Bibliografia.
1.
Baudelot, Christian 2. Boudieu, Pierre,
1930- 2002 3. Conflito social 4. Escolas -— Aspectos sociais 5. Establet. Roger 6. Iltich, Ivan 7. Passeron, Jean-Claude 8. Sociologia educacional I. Título.
05-2247
CDD-306.432 Índices para catálogo sistemático:
1.
- Escola e sociedade : Sociologia educional
306.432 O 2005 da Tradução: CENTAURO EDITORA Travessa Roberto Santa Rosa, 30 02804-010 — São Paulo — SP Tel. 11 — 3976-2399 — Tel./Fax 11 — 3975-2203 E-mail: editoracentauro O terra.com.br www. centauroeditora.com.br
Primeira Parte A escola e as suas separações
Aspectos positivos Primeiro tema: Não se pode entender hoje uma ideologia que não tome emconsideração a contribuição dos nossos cinco autores É Bourdieu-Passeron decifram as desigualdades H- Baudelot-Establet: A escola e os seus antagonismos H- Illich abre perspectivas mundiais Segundo tema: Reclamamos para o marxismo umdireito de prioridade A luta contra a diferenciação dos Ciclos Escolares confunde-se com a luta pelo socialismo H- Como conduzir a luta contra os ciclos diferenciados Primeiro tema: 4 escola divisionista I- As duas redes de Baudelot-Establet H- Os conteúdos do PP como sub-produtos HJ- Humilhação, Humildade Segundo tema: À escola reprodutora e conspiradora Terceiro tema: A burguesia não confia na escola I A crise da escola atinge também a burguesia H- A burguesia reconheceuaescola como sua cúmplice? HI- Descolarização
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Conclusão da Primeira Parte E Os ciclos, divisão da sociedade em classes
H- As forças positivas já presentes na escola HI- A escola como local de lutas
IV- Autonomia do ensino pedagógico? V- Voltando uma vez mais aos nossos autores
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Segunda Parte O Combate não principia porfalta de combatentes É TIlich - A escola prepara para o servilismo? Primeiro tema: Escola, não-escola, antiescola
I O que vem a ser uma escola? H- Da boa utilização possível de Illich e dos seus limites Segundo tema: Existirá o marxismo? Terceiro tema: Soube Illich interpretar a recusa dos jovens? Quarto tema: O alargamento do ensino: progresso ou condenação? H- Baudelot-Establet - A escola transformará os alunos em pobres pequenos seres privados da realidade? Primeiro tema: Criança modelo Segundo tema: À relação teoria-prática Terceiro tema: O que vem a ser a escola politécnica? I- O que foi realizado na China é prodigios Il- Regresso ao marxismo Hl- A escola politécnica na RDA I- Como se realiza a escolha dos estudos I Interiorização do destino estatístico IÉ- E, contudo... IV- Bourdieu-Passeron - A ideologia dos dotes Primeiro tema: Bourdieu-Passeron desmontam a ideologia das classes dominantes Segundo tema: Bourdieu-Passeron ajudam-nosa lutar contra as mistificações Terceiro tema: Subsistem graves problemas Conclusão da Segunda Parte
115 116 16 120 123 129 131 135 135 138 144 145 152 156 161 161 164 171 17 176 181 191
Terceira Parte Realidade e Irrealidade da Cultura
I- IHlich ou “Não conheço a Luta de Classes” Primeiro tema: A cultura do perito reduzirá a zero a cultura dó homemvulgar? I A convivência: recordação de alguns temas H- Antecipação ou nostalgia? HI- Uma luta impiedosa entre os especialistas e os homens vulgares IV- O sucesso de Illich provém de ele reunir experiências muito fregiientes V- A cultura dos especialistas já é uma realidade e conquistará terreno e eficácia numa sociedade transformada Segundo tema: Cortar com a escola? É Adquirimos os nossos conhecimentos pelo não-sistemático Il- Reflexões críticas sobre as redes Terceiro tema: A morte da escola para Hlich e para os pedagogos soviéticos da primeira geração I A escola definha H- O lado exato e o lado utópico HI- Para uns a escola morre em beleza, para outros apocalipticamente H- Gramsci como antídoto de Illich H- Bourdieu-Passeron ou A Luta de Classes Impossível I A seriedade prejudica, a desenvoltura compensa H- O ensino constitui o segundo grau dairrealidade HI- Apesar de tudo alguns momentos dialéticos IV- As diferentes utilizações da cultura Primeiro tema: Utilização conservadora da cultura Segundo tema: Restituir a cultura a si própria H O papel da alegria no combate político H- “Três exemplos das relações entre a ideologia dominante e a ideologia dominada V- Baudelot-Establet ou A Luta de Classes Inútil
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Primeiro tema: A ideologia proletária como manifestação repentina ou como conquista
I- Constituição da ideologia proletária I- Validade da existência proletária IM- A escola não é necessariamente inútil Segundo tema: Questões de linguagem E As duas linguagens servem uma recíproca incompreensão I- Os que viram a cara quando um popular abre a boca Nl- A contribuição dos lingiistas VI Duplo rosto das crianças do proletariado Primeiro tema: Os que vêem apenas, nos filhos da classe proletária, a positividade Segundo tema: Descobrir o duplo rosto do próprio proletariado Terceiro tema: Voltando às crianças do proletariado Conclusão - Para uma escola progressista E como não chego a uma conclusão Notas Bibliográficas
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INTRODUÇÃO
339 342 349 357 358 365 369 383 397 399
A falha evidente nos meus dois livros anteriores consistia no fato de eu quererrefletir acerca da pedagogia progressista a partir de contextos progressistas e de relações educativas progressistas, mas sem ressaltar os problemas das estruturas do ensino e das diversas clientelas privativas dos vários tipos de ensino. Daí a importância, neste momento, de um reencontro e de uma confrontação com a sociologia da educação. Novaleitura crítica de cinco autores: todavia, a minha
intenção não é de forma alguma medi-los todos pela mesma medida; espero que as diferenças surjam, saltando aos olhos, tanto pelo conteúdo do que será dito a seu respeito como pelo tom das observações ou da discussão. Para Bourdieu-Passeron!, todos quantos se ocupam da escola são devedores de contribuições absolutamente fundamentais, quer no domínio diretamente escolar, quer na refle-
xão sobre a cultura livre ou a ideologia dos dotes. Baudelot-Establet? têm a extraordinária virtude de haver aplicado à pedagogia uma análise marxista e, assim, trouxeram à luz do dia as ilusões é os logros que se geravam em redor do tema da escola única.
' Pierre Bourdieu e Jean-Claude Passeron, educadorese sociólogos franceses. .... a * Christian Baudelot e Roger Establet, educadores e sociólogos franceses. 2
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Com estes quatro autores, muito aprendemos, muito
fixamos, mesmo se tentamos interpretá-los diferentemente, inserindo num outro contexto aquilo que nos levaram a descobrir. Pelo contrário, a obra de Illich! surge-nos como essencialmente mistificadora: sem dúvida, que os perigos por ele denunciados tanto na nossa escola como na nossa sociedade estão longe de ser imaginários, mas sustentamos que, do princípio até o fim, ele opera um verdadeiro desvio intelectual que transforma as acusações em lugares-comuns, acaba por mascarar as causas e as responsabilidades e propõe soluções emprestadas pelo habitual arsenal da utopia — mas a utopia evidente remete para a realidade do conservantismo. . Por que, então, já que são diferentes, reunir num único estudo estes cinco autores? Parece-nos que, efetivamente, eles tendem a exercer
sobre os seus leitores uma influência muito mais homogênea do que nos permitiria supor o exame das suas obras. O que Julgamos observar nos nossos estudantes — e há vários anos — é que uns e outros, por vias diferentes, lhes transmitem a sensação de uma escola onde nada de válido se passa, a cul-
tura aí dispensada não conteria o mínimo valorreal e, desde logo, a escola deixaria de ser um local onde o combate pela democracia socialista é possível e necessário. Uma escola como puro e simples instrumento de reprodução social, manobrando para esmagar osfilhos do proletariado, ou, segundo Illich, para levar ao servilismo as
crianças de todas as classes. As matérias estudadas destinamse apenas a permitir aos jovens de boa família distinguir-se do vulgo, a fim de convencer os pequenos proletários da sua indignidade; para perverter todas as crianças arrastando-as a um consumo desenfreado, excitando desejos e necessidades i
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impossíveis de saciar. E deste modo se confirmaria que a escola não possui em si qualquer força capaz de a fazer progredir. Falta de esperança, fatalismo e responsabilização dos docentes. O que leva uns a abandonara luta, outros a se consagrar exclusivamente à política, renunciando à fachada pedagógica; se a escola se reduz a uma fraude total ou a um erro absoluto, a pedagogia é diversão, ilusão, e assim se manterá até que a sociedade seja abalada. Os meus estudantes interpretaram mal os autores, ou souberam tirar porsi conclusões que eles não dão explicitamente? Foi para lutar contra este derrotismo que quis escrever o presente livro. Não se trata de desculpar a escola, não se voltará ao âmbito das constatações fundamentais, não se apresentará a escola como libertadora, ou única, ou acolhendo
igualmente uns e outros, não repetiremos que há indistintamente tão bons alunos entre os ricos como entre os pobres. Mas, precisamente a partir destas acusações, e para que elas não se transformem num travão no preciso momento em que nos apontaram o caminho mais justo, em que contáva-
mos que fossem abrindo caminho à nossa ação — e até supomos que estão prestes a fazê-lo — surge uma tarefa» urgente: inserir a escola na luta de classes, compreender co- ;
mo participa a escola nessa luta de classes; porque é, em; última instância, o desconhecimento do que é a luta de clas- :
ses que, nos nossos cinco autores, nos parece arrastar, por ' processos evidentemente muito diversos, âquilo que ousamos considerar como os seus desvios. Para Illich todos são igualmente culpados e supõem poder lançar um apelo indistintamente a qualquer um para trabalhar a favor da convivência total; as reivindicações do
proletariado não passam de desejos de consumir mais, deseJos tão nefastos e insensatos como os dos burgueses.
e.
Ivan Hlich, teólogo e educadoraustríaco.
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Para Baudelot-Establet, a luta de classes parece desempenhar um papel de primeiro plano. Mas, na realidade, bastaria deixar o proletariado exprimir-se, viver a sua cultura, tal como ele já a constituiu, não reprimir as suas atitudes espon-
assalariado é a forma extrema da alienação e produz as condições plenas do desenvolvimento íntegro e universal das forças produtivas do indivíduo. Marx acrescenta que é “sob uma forma invertida, de pernaspara o ar” — e nisso se situa a resposta a BaudelotEstablet: o proletariado tem de contribuir com um esforço imenso para ultrapassar as suas próprias divisões, concentrar-se numa força única, escapar às mistificações das ideologias dominantes; de onde se deduz que a vanguarda da classe operária, os sindicatos e o partido desempenham um papel insubstituível: fazer jorrar das massas esta verdade combativa de que são portadoras, mas que tantos riscos corre de ser sufocada, dispersada, esmigalhada, contrariada. É o marxismo no seu conjunto que deveríamos evocar para respondera Illich, visto que é o marxismo no seu conjunto que é ignorado. Como repete Illich e com ele o grupo dos conservadores, eles estão sempre descontentes; quanto mais têm, mais lhes dão e mais querem. Mas a luta dos explorados como rompendo caminho até uma sociedade sem classe e constituindo, assim, a própria positividade da história. Tendo sido levado sem descanso a combater em duas frentes: contra o conservantismo, as ilusões lenificantes que ele quer difundir, para desarmar os trabalhadores e contra certas impaciências que se transformam em renúncias, espe-
tâneas; o proletariado e os filhos do proletariado são evoca-
dos como já havendo atingido, pela sua experiência própria e imediata, um tal ponto de realização, para não dizer de perfeição, que parece supérfluo um partido operário tendo como tarefa organizar as ações, coordená-las e adaptá-las a todo momento às possibilidades objetivas desse mesmo momento. Sob este aspecto diríamos que, comeles, a luta de classes se
revela inútil. À luta de classes parece impossível na perspectiva de Bourdieu-Passeron, porque as classes dominadas são a tal ponto cúmplices do patronato, convencidas da sua indignidade, que não se distingue verdadeiramente o que poderia constituir o elemento propulsor do seu combate. f Assume por isso uma extraordinária importância situar
com precisão o conceito marxista da luta de classes.| Não temos a pretensão de o conseguir em breves linhas, masgostaríamos simplesmente de responder a Bourdieu-Passeron que o proletariado encontra na sua experiência cotidiana os motivos e a força necessários à sua luta. O capitalismo é o mundo da exploração, mas esse mundo nunca é uma propriedade exclusiva, lugar seguro e aprazível da classe dominante; esta não deixa de esbarrar com as forças da oposição, pois ela própria as suscita. Dirá Marx que “todo o desenvolvimento do capitalismo se processa de maneira antagônica... sob uma forma contraditória”. E, que é “pelo desenvolvimento histórico dos antagonismos imanentes”, que a etapaulterior, a etapa superior, será atingida. A história como dialética significa que o proletariado é humilhado, aviltado, e, simultaneamente, forma-se, forja-se,
adquire podere lucidez. A relação do capital com o trabalho I4
ro não ter caído no meio termo, nem no compromisso, nem
no há algo de bom e algo de mau em cada posição e em cada autor. Tudo quanto posso afirmar é que me esforcei por tomara escola como local de contradições dialéticas”.
* Uma vez mais, cumpro o agradável dever de agradecer à Revista Enfunce e à sua Diretora, a senhora Gratiot-Alphandéry, que acolheu o meu artigo: Foi o mestre-escola quem perdeu a batalha dasdiferenças sociais? — primeiro esboço deste trabalho. -
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PRIMEIRA PARTE
A ESCOLAE AS SUAS SEPARAÇÕES
CAPÍTULOI ASPECTOS POSITIVOS
PRIMEIRO TEMA: Não se pode entender hoje uma pedagogia que não tome em consideração a contribuição dos nossos cinco autores
Mesmo que Baudelot-Establet só nos tivessem ensinado uma coisa: a escola favorece os socialmente privilegiados; desvaloriza os outros; é aos herdeiros de situações privilegiadas que cabe os sucessos escolares, a possibilidade de uma escolaridade prolongada, o acesso à Universidade, portanto, aos postos dirigentes, aos quais sob forma direta ou implícita são atribuídas as mais elevadas classificações, que vão em massa para aqueles cuja família já está instalada em posição dominante — eles assinalariam uma data decisiva na história da pedagogia. Mesmo que Baudelot-Establet só nos tivessem ensinado uma coisa: a escola única não é única, nãopode sê-lo numa sociedade dividida em classes; a cultura dispensada
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pela escola não é una; seus itinerários, seus fins, não são
zer recuar até a um inconsciente um tanto vergonhoso aquilo de que suspeitávamos, embora vagamente.
apenas diferentes, mas opostos, tudo quanto se passa na escola é atravessado pela divisão em classes antagonistas — a sua contribuição seria de uma importância decisiva. Mesmo que Illich só tivesse dado ao tema das disparidades escolares uma dimensão nova (e a que ponto dramática, interpretada à escala mundial), não apenas em relação às sociedades industriais e ricas mas também em relação aos países que consideramos em via de desenvolvimento, para não lhes chamarmos colonizados e explorados — levantaria uma questão irreversível.
Para o futuro, eis-nos constrangidos a olhar os fatos
frontalmente; o milagre que esperaríamos no íntimo do nosso coração: a escola como universo preservado, ilha de pureza — à porta da qual se deteriam as disparidades e as lutas soci-
ais — esse milagre não existe, a escola faz parte do mundo. Em algumas páginas muito breves, pois estes temas estão agora muito divulgados, lembraremos o que nos parece constituir, do ponto de vista da diferenciação dos destinos | escolares, a contribuição essencial dos nossos autores.:
É preciso dizer que nos ensinaram ou lembraram isso? “Pois, na realidade, tudo já constava dasanálises de Marx e de Lenin; mas nos tínhamos esquecido, por assim dizer, abandonado, tão difícil é enfrentar uma realidade que desmente ideais proclamados, e mais ainda, ideais pelos quais
efetivamente se luta, Era tão importante defender a escola, a escola laica contra a escola enfeudada a um dogma, a escola republicana contra a escola diretamente, abertamente reacionária, a esco-
la pública contra o embargo patronal — e sobretudo, a escola em si, a instrução face à ignorância e à utilização do trabalho de crianças de oito, dez, doze anos — que varremos do campo lúcido da consciência o caráter de classe do mundo escolar. Para os combates que íamos travar, seria necessário,
mesmo provisoriamente, pôr de lado esta terrível dependência da escola?
I — Bourdieu-Passeron decifram as desigualdades Doliceu ou dociclo I do CES! ao CET”, passando pelo CEG” (ou ciclo II do CES), não há simplesmente, como proclama a doutrina oficial, diferença, diversidade, mas sim uma
hierarquia. Significa isto em especial que é difícil a um aluno do CEG continuar a sua carreira escolar no liceu — muito mais difícil mesmo do que para quem já fez o primeiro ciclo do liceu. Pois o aluno do CEG vê-se constrangido a adaptarse a uma instituição diferente no seu corpo docente, no seu espírito e no seu recrutamento social. Em termos estatísticos, esta hierarquia revela-se pela percentagem de alunos do CEG que obterão o bacharelato” — percentagem muito mais fraca do que entre os que principiaram logo um sexto ano do ciclo nobre. Ainda muito mais
E depois, esta desigualdade fundamental e constante,
este prolongar incômodo da exploração social dentro das nossas classes, consideramos intoleráveis, quase fisicamente
intoleráveis, até na medida em que amamos a nossa escola e a nossa tarefa de educadores, portanto, a única saída era fa-
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'Collêge d' Enseignemt Secondaire. ,2 Collêge d'Enseignement Technique. ; Col lêge d'Enseignement Général. * ensino longo (liceus e liceus técnicos) é sancionado pelo bacharelato (filosofia, ciências experimentais, matemáticas elementares, matemáticas técnicas). Este bacharelato dá acesso ao ensino superior.
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desiguais são as oportunidades de acesso ao ensino superior
didatar: o exame tem por função dissimular a eliminação sem exame. Todos aqueles de que se dirá que desistiram por
a partir dos diferentes tipos de estabelecimentos secundários,
a partir das diferentes carreiras escolares. Ora, o recrutamento social de alunos e de professores não é o mesmo nos CEG e nosciclos I: naqueles a percentagem de alunos saídos de meios populares é muito mais elevada, ao passo que nestes os alunos vindos de meios favorecidos estão fortemente super-representados. Considerando os respectivos professores, quanto à sua origem social e ao tempo que puderam consagrar à sua formação profissional e atendendo ao vencimento que auferem, chega-se a constatações de igual natureza e as diferenciações orientam-se todas no mesmo sentido. É, portanto, a desi-
gualdade social que comanda a desigualdade escolar, que constitui a realidade da desigualdade escolar: a hierarquia dos estabelecimentos de acordo com o prestígio escolar e com o rendimento social dos títulos a que conduzem corresponde estritamente à hierarquia destes estabelecimentos segundo a composição social do seu público. Os alunos que se matricularam no ciclo CEG vão ser mais rapidamente eliminados do sistema escolar do que os do ciclo I; de fato, eles tiveram de sujeitar-se a uma conde-
nação por defeito ou por excesso. E são maciçamente ascrianças do povo que serão assim marginalizadas sem conseguirem alcançar os diplomas mais prestigiosos, escolarmente e socialmente — e os mais rentáveis. A escola não contrariará a reprodução das classes sociais.
livre vontade, porsua iniciativa (renúncia voluntária), não se candidatam ao ensino longo nem ao ensino superior; trata-se,
na realidade, dos que estavam presos nos ciclos onde eram tão reduzidas as possibilidades de chegar ao ponto terminal, Será necessário explicar com números e percentagens que estes últimos se recrutam essencialmente dentro de certas categorias sociais? Por que tantas discussões e controvérsias a respeito do bacharelato, quando esta exclusão lenta e retardada é praticamente ignorada ou em qualquer caso passada pudicamente em silêncio? É que os debates são conduzidos por representantes de classes sociais para quem o único risco de eliminação é o exame; o ponto de vista das classes sociais, condenadas à auto-eliminação não tem ensejo para se exprimir. À perspectiva ilusória que leva a supor que o cursus escolar depende do resultado do exame quando,na realidade,
é muitíssimo mais importante encarar o caso de todos aqueles que não teriam tido acesso à sala de exame, reflete, no
plano ideológico, um egocentrismo ingênuo, voluntariamente ingênuo, das classes privilegiadas.
Assim, para afastar as classes populares, já não se atua por exclusão, por oposição absoluta, aqueles que estão dentro do sistema escolar e os que ficam de fora, isto é, na fá-
brica ou no campo: procede-se por sábias gradações e sabiamente dissimuladas, que vão dos estabelecimentos,
Por conseguinte, a verdadeira clivagem não se joga entre admitidos e não-admitidos a exame (por exemplo, o bacharelato), mesmo que o exame seja efetuado em condições formalmente irrepreensíveis, mas sim entre os que se candidatam e os que não levam os estudos suficientemente longe, suficientemente na direção requerida, para se poderem can-
seções, disciplinas ligadas às melhores possibilidades de êxito posterior, tanto escolar como social, até aos diferentes graus de relegação. A discriminação das classes populares faz-se pouco a pouco, com brandura — e assim se consegue dissimulá-la melhor.
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Existe um determinado número de casos de mobilidade social — e todos os professores citam o exemplo de determinado aluno vindo de muito baixo, que graças ao seutrabalho, ao seu zelo e aos seus dotes, conseguiu tão brilhante situa-
fessores, é, em geral, mais favorável, mais estimulante; ou
ção. Mas, na realidade, a classe dominante conserva ciosa-
mente nas suas mãos o controle desta seleção, que não faz perigar de forma alguma o conjunto das hierarquias estabelecidas. Precisamente porse tratar de casos, esses poucos vão ser absorvidos pelo meio ambiente, modelar-se segundo regras instituídas, arriscam-se mesmo a ficar fortemente algemados a um sistema que lhes permitiu vencer, sair-se bem.
Decapita-se a classe operária, proporcionam-se à classe detentora do poder alguns elementos válidos que lhe prestarão serviço, muito mais do que se insuflam na sociedade possibilidades de renovação. Estas possibilidades de ascensão social denunciam-nas Bourdieu-Passeron como meio de tornar verossímil a ideologia de uma escola que a todos oferece iguais oportunidades; um meio de mascarar o peso da origem
ainda, a posição elevada do pai é acompanhada de posições destacadas de outros membros da família, que proporcionam deste modo à criança, diferentes modelos de identificação e de êxito, bem como apoios. As vantagens e desvantagens sociais atuam em cascata de efeitos cumulativos — e precisamente por isso é muito difícil introduzir, por reforma parcial, qualquer modificação durável. A ação da escola exerce-se sobre crianças cujo modo de vida, educação familiar, primeira educação são extremamente diversos: a cultura das classes privilegiadas aproximase da cultura escolar, os seus hábitos assemelham-se aos hábitos e aos ritos escolares — e preparam-nas, pois, direta-
mente, para as aprendizagens escolares. Os seus filhos vão assimilar a contribuição da escola à maneira de uma herança, é-lhes familiar, faz parte do seu elemento natural. Para os outros, trata-se de uma conquista muito cara,
social e, finalmente, de negar a existência de classes. Os mira-
têm de a conseguir laboriosamente, através de uma espécie
culados constituem a caução do sistema e apesar das aparên-
de conversão imensamente difícil. Resumindo, é um empre-
cias lisonjeiras, não passam, na realidade, de reféns.
endimento de adaptação a um grupo social, de certa maneira uma reeducação. A escola limita-se a confirmar e a reforçar um habitus de classe, que constitui o fundamento real de todos os progressos escolares. Porisso a escola só triunfa em relação àqueles que se beneficiaram para lá do recinto esco-
Resumindo, a organização e o funcionamento do sistema escolar retraduzem continuamente e segundo códigos múltiplos as desigualdades de nível social por desigualdades de nível escolar. Interrogando-se e forçando-nos a interrogarmo-nos sobre as razões das desigualdades sociais nos sucessos escolares, Bourdieu-Passeron mostrarão que não se trata de uma
casualidade simples e linear, que torna o sucesso dependente de um determinado fator particular, mas do equilíbrio de conjunto de um sistema: por exemplo, a posição elevada do pai implica vulgarmente a residência e a escolaridade numa
lar e bem antes de lá entrarem, no seio familiar, dos hábitos de família, de um certo estilo de vida.
E estes, na escola, procuram menos adquirir algo de novo do que legitimar escolarmente aquilo que em grande parte já adquiriram pelo modo de inculcação que, desde o nascimento, os envolveu e apoiou. É necessário explicar que este modo de ensinamento é o das classes favorecidas? As classes sociais são caracterizadas pordistâncias desiguais até
grande cidade, onde o meio, tanto dos alunos como dos pro-
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à cultura escolar e por disposições diferentes para a reconhecer e adquirir.
ele duplica-as na medida em que as consagra através de re-
Analisando a cultura extra-social, a cultura dita livre,
Bourdieu-Passeron levam-nos a reconhecer-lhe a importância no triunfo escolar e a extrema desigualdade nos modosde aquisição, nas oportunidades de a adquirir; é difícil interromper o círculo em que o capital cultural acorre ao capital cultural. Só as famílias material e culturalmente dominantes possuem um patrimônio próximo da cultura inculcada pela escola — e transmitem-no aos seus filhos como um hábito evidente: por exemplo, viajam com os filhos, acostumamnos pouco a pouco, nem que seja pelo exemplo, pela observação, por uma simples exclamação, a prestar atenção aos monumentos, à harmonia das paisagens; em breve saberão o
que é contemplar um quadro, distinguir as famosas cores da floresta no outono, e é este modo de sensibilidade que vai
firmar um acordo com as expectativas da escola. Sobre crianças diferentemente preparadas, diferentemente dispostas, a escola só pode triunfar de maneira também muito diferente. Na realidade, ela exige uma formação elaborada fora do seu âmbito, simultaneamente uma compe-
tência e uma determinação na maneira de abordar as coisas a que certas crianças se foram insensivelmente habituando com a família — e as desfavorecidas não. É um pressuposto implícito, a escola não o fornece, não o dispensa metodicamente; mas aqueles que não se beneficiaram dele bem cedo ficam desarmados, desamparados perante a cultura escolar. Daí a hipocrisia da ideologia igualitária, quando finge ignorar tudo que se passa fora da escola e como dentro dela as disparidades têm livre curso: omitindo proporcionar a todos o que alguns devem à sua família, o sistema escolar perpetua e sanciona as desigualdades iniciais. Ainda mais: 24
sultados escolares, pois estes depressa se transformam em
apreciação da pessoa em si: ele não é dotado, não é inteligente... visto que não triunfou na escola. Para chegar a semelhante efeito discriminatório e conservador, basta que o sistema escolar deixe agir os mecanis-
mos objetivos da difusão cultural, que dê livre curso à seleção natural — natural numa sociedade essencialmente desigual. Ele age por uma sutil abstenção, fingindo considerar cada criança como igual ao seu vizinho — e o filho do pedreiro como identicamente preparado, tão apto como o filho do engenheiro a saborear a ementa escolar. E estes silêncios cúmplices permaneceram durante bastante tempo difíceis de decifrar. Nesta diferença de resultados, a linguagem tem um papel de relevo: a escola impõe uma linguagem, uma norma lingiística, um certo tipo de domínio da língua; não há qualquer exercício escolar em que o estilo não acabe porser tomado em consideração. Ora, esta linguagem universitária está desigualmente repartida pelas diversas classes sociais, pois está muito diferentemente afastada das linguagens efetivamente faladas pelas várias classes sociais. Logo de início a distância que separa as exigênciaslingiisticas da escola e os hábitos lingiísticos peculiares aos diversos meios sociais ameaça seriamente avaliar o afastamento das crianças vindas das classes dominadas pela bitola do êxito escolar. Quisemos simplesmente resumir as análises que consideramos mais válidas, mais decisivas na imensa contribuição que Bourdieu-Passeron proporcionaram à inteligência do mundo das Universidades.
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IH — Baudelot-Establet: A escola e os seus antagonismos Baudelot-Establet são, quanto a nós, os que tiveram a coragem e a lucidez de desvendara ilusão ideológica da unidade da escola, ilusão de que existiria um tipo único de escolaridade e que os diferentes ciclos só diferem entre si em extensão e duração; resumindo, o grande mito da escola única
e unificadora. Ilusão de que as crianças seriam desigualmente instruídas numa só e mesma escola, que seria simplesmente abandonada poralguns, na realidade, a maioria, a meio cami-
nho — e levada até o fim pelos restantes. Para já, proibimo-nos de empregar o termo redes que retomaremos para submeter a um exame crítico mais à frente. O que fixamos como contribuição capital de BaudelotEstablet, é o tema da divisão, da segregação, dos antagonismos dentro da escola, pois consideramos por um lado os ciclos longos dos CES, o segundo ciclo liceal, o ensino superior; por outro os ciclos III (classes de transição, classes
práticas) e os CET. Esta oposição põe em jogo a origem social dos alunos e os resultados finais da escolaridade e as práticas ou conteúdos escolares. O recrutamento diz respeito maciçamente a classes sociais antagonistas. A partir de estatísticas oficialmente organizadas, os autores estabelecem que os filhos da burguesia têm, na sua totalidade, tantos ensejos de se instruí-
rem no ensino secundário prolongado e no superior como os filhos da classe operária nas escolas de transição e nos CET. O que significa, sobretudo, que os filhos da classe operária têm tão fracas oportunidades de ingresso no ensino secundário longo e no ensino superior como os filhos da burguesia de se matricular em escolas de transição e nos CET. Paralelamente, o sistema vai conduzir as duas populações a duas vias fundamentalmente divergentes: trata-se de 26
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repartir os indivíduos por postos antagonistas na divisão social do trabalho, quer do lado dos explorados, quer do lado
da exploração. Todos os mecanismos escolares são comandados, de início, por aquilo que constituirá o seu objetivo, que parece o resultado esperado: a divisão social do trabalho — e não se trata de uma divisão puramente técnica de competências, deve, na realidade, ser descrita como divisão da
sociedade em classes antagonistas e a relação entre ambas é, na verdade, a exploração de uma pela outra. As diferentes direções em relação às quais a escola orienta os alunos não corresponde a talentos, capacidades, dotes, mas sim à proporção de mão-de-obra, de funcionários
qualificados, de dirigentes que a sociedade estabelecida calcula como necessária ao seu funcionamento e reprodução. Portanto, os conceitos de inadaptação, com o seu fundo médico, patológico, essencialmente individualista, são absolutamente incapazes de descrever, de explicar os insucessos escolares — insucessos em massa, fracassos da dimensão da
sociedade, fracassos pretendidos e fabricados por essa sociedade por serem indispensáveis à sua conservação. A escola permanecerá, pois, completamente incompreensível, ou antes, completamente mistificada, se não se rela-
cionarem todas as modalidades da sua ação com a oposição de classes na sociedade capitalista, com a divisão da socie-
dade em classes em proveito da classe dominante; porque é a partir deste antagonismo que os autores vão inteirar-se não só da existência de duas ramificações (não consegui evitar o termo) mas também dos mecanismos do seu funcionamento.
Agora nada mais diremos a propósito de BaudelotEstablet; basta-nos, de momento, ter levado ao seuativo O
fato de ser impossível ignorar doravante, desconhecer que a escola está dividida.
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GEORGES SNYDERS UI — Wlich abre perspectivas mundiais Sente-se uma espécie de vertigem ao avaliar os problemas da escola e das desigualdades escolares à escala mundial. Illich força-nos a tomar consciência de que a escola é um local onde metade dos homens nunca entrou. Na Bolívia, por exemplo, 2% da população rural conseguem seguir cinco anos de escola primária. Metade do dinheiro consagrado à escola é gasto em proveito de um centésimo da população em idade escolar. Atualmente, os países da América Latina estão em condições de assegurar a cada cidadão oito a quarenta meses de escolaridade. Pode dizer-se o mesmo, invertendo o ponto de vista, que eles não podem assegurar cinco anos completos de ensino a mais de um terço da população. Há, portanto, uma desproporção simultaneamente dramática e irrisória entre os fatos e a promessa de garantir a todos iguais oportunidades de ensino, a todas as categorias da população. E quando uma fração de tal forma ínfima da população tem escolaridade, o esforço e o dinheiro despendidos só beneficiam, na verdade, um punhado dos já privilegiados. É exatamente com o dinheiro das massas populares, com o dinheiro de todos aqueles que nunca entrarão numa universidade, que as universidades funcionam — que asseguram, confirmam, as prerrogativas dos diplomados. Illich oferece dados assombrosos acerca dos desvios entre as categorias extremas: a educação de um estudante latinoamericano custa 350 vezes mais ao Estado do que a dos seus patrícios de proventos médios. Os números tornam-se ainda mais insuportáveis se se compararem nações ricas e nações pobres: o que custa anualmente um aluno da instrução primária ou um estudante da América Latina entre os 12 e os 24 anos é igual ao rendimento de muitos latino-americanos em dois outrês anos; ou ainda o diplomado de uma universidade americana se beneficia de uma educação cujo custo represen28
ESCOLA, CLASSE E LUTA DE CLASSES
ta cinco vezes o rendimento médio de toda uma existência no seio da metade deserdada da humanidade. De fato, o sistema, o jogo escolar, funcionam em cir-
cuito fechado: quanto mais horas se passa na escola, mais se é valorizado no mercado, nesse mercado de trabalho onde
são oferecidos lugares vantajosos. O que vai ser engenheiro tem o direito, atribui-se o direito, de receber uma parcela enorme dos fundos públicos destinados à educação; não é, pois, legítimo, que vá em breve alinhar com os indivíduos
mais produtivos? Mas, na realidade, a produtividade de que ele se orgulha não é mais do que o investimento educativo de que foi objeto. Os que se conservam no sistema escolar vão tirar vantagem do fato, mas para aí se manterem já foi necessário pertencerem ao número dos beneficiados. Nas sociedades industrializadas e ricas, os pobres deixam-se constantemente atrasar: os excluídos do ensino, os
que são recusados pela escola, pouca esperança têm de acesso a situações de interesse; em breve terão dificuldade em encontrar trabalho, a não ser que se alistem no exército da reserva de mão-de-obra ocasional e precária. Foi, na verdade, a imensa máquina das hierarquias so-
ciais, dos privilégios sociais, que afastou do sistema escolar e das vantagens que ele implica, aqui a fração desfavorecida e nos países desfavorecidos, a enorme maioria: as escolas justificam cruelmente no plano racional a hierarquia social. Mais um passo: Illich constrange-nos a admitir que a instituição escola, não apenas a escola de determinada sociedade, de determinada época, mas verdadeiramente a escola, a escola em si, pode, e deve, ser questionada: não é assim tão evidente
que ela constitui o melhor, o único meio de educação. Tema que retomaremos detalhadamente mais tarde e seremos levados, por nossa parte, a nos interrogar sobre se
há, e pode existir um tipo de escola que escape às reprovações que Illich supõe estar no direito de dirigir a qualquer 29
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ESCOLA, CLASSE E LUTA DE CLASSES
escola. O que há de bom em Illich é que ele ecoa como um aviso de que a escola seria forçada a desaparecer ou, se quiser, se pretender continuar escola, a renovar-se.
escolha do público, a seleção dos alunos; a escola só ministrava conhecimentos aos filhos da burguesia, e ainda os conteú-
SEGUNDO TEMA: Reclamamos para o marxismo um direito de prioridade Reclamamos um direito de prioridade para o marxismo que, sem naturalmente dispor de instrumentos, modelos, mé-
todos contemporâneos, soube desde a sua criação proclamar que, numa sociedade dividida em classes, a escola era uma
escola de classe, só podia ser uma escola de classe. Escola de classe pela quantidade de ensino que concede aos proletários: a burguesia proporciona exatamente aos trabalhadores tanta cultura quanto o seu próprio interesse exige. E não é muita. Escola de classe porque as lutas sociais não se detêm respeitosamente no limiar do recinto escolar. Não é a educação também determinada pela sociedade? Escola que não deixará de ser escola de classe senão pela revolução social, condição da revolução escolar: os comunistas não in-
ventam a ação da sociedade sobre a escola; somente lhe mudam o caráter e arrancam a educação à influência da classe dominante. Lenin definiu a escola como instrumento de predomínio de classe nas mãos da burguesia e precisamente porisso se trata de a transformar em instrumento de destruição deste predomínio. A burguesia esforça-se, na medida do possível, por submeter a escola aos seus próprios objetivos de classe, por impedir acima de tudo que ela possa contribuir para a emancipação do proletariado: “Reconduzir o ensino do povo ao nível de lacaios submissos e desinibidos... conseguir cria-
dos inculcados: “Cada palavra estava adaptada aos interesses da burguesia”. A burguesia esforça-se por educar a jovem geração de operários e de camponeses na esperança de formar simultaneamente servidores úteis, suscetíveis de lhe proporcionar benefícios e lacaios obedientes que não perturbem a sua quietude e a sua ociosidade; pode conciliar realmente estes dois intentos? Teremos de insistir demoradamente na força revolucionária incluída nesta contradição. No momento, basta-nos fixar que tal orientação é, pelo menos, a que a burguesia imprime à escola enquanto tiver poder sobre ela. A proclamação de uma escola apolítica, acima de classes, alheia à luta de classes, que estaria a servi-
ço da sociedade no seu conjunto e visaria em relação a qualquer criança o desenvolvimento, o desabrochamento da sua personalidade, não passa de uma hipocrisia burguesa destinadaa iludir as massas. É precisamente por causa da extrema importância da instituição escolar nos Estados modernos que a ligação entre o aparelho político e o ensino é imensamente forte. Uma das contradições da burguesia é não poder concordar abertamente com isso. Krupskaia, em 1926, analisa o caráter político da escola
segundo uma dupla perspectiva: de um lado, a fim de reforçar os privilégios da sua classe, de eternizar o seu domínio de classe, a burguesia esforça-se por fazer da escola um local onde as crianças se habituem, aprendam a estar separadas de acordo com a sua origem social. As crianças do povo amoldam-se aí a um certo tipo de obediência, ao mesmo tempo
em que se imbuem de preconceitos nacionalistas e religiosos. Mas para os seus filhos, a burguesia tem outras escolas onde os educar.
dos dóceis e operários hábeis”. Para atingir esta finalidade,
Por outro lado, a escola, a pretexto de ser neutra, não
uma ação que se desenrola em dois planos: de um lado a
aborda as questões que estão na base da existência das crian-
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ças, acima de tudo das crianças proletárias: os salários, as greves, o desemprego, as guerras coloniais. Tal escola transforma-se numa escola do silêncio para a criança, uma escola de morte: a escola torna-se estranha e distante, e são os filhos
do proletariado que mais duramente o sentirão, isto é, os que mais se expõem à reprovação e ao insucesso. Enquanto existir uma sociedade de classes, a escola será inevitavelmente escola de classes. A burguesia tenta transformar a escola de massas em instrumento capaz de subjugar os trabalhadores. As análises estatísticas, certas afirmações dos nossos cinco autores, precisamente as mesmas que fixamos e apre-
CAPÍTULO II A LUTA CONTRA A DIFERENCIAÇÃO DOS CICLOS ESCOLARES CONFUNDE-SE COM A LUTA PELO SOCIALISMO
sentamos até agora, embora isoladas, convergem, contudo,
para as teses marxistas anteriores. Na segiiência deste trabalho tentaremos, no entanto, explicar como são evidentes, em graus certamente muito diferentes, as divergências, as con-
tradições, as oposições entre os nossos autores e o marxismo. Agora, visto estarmos ainda no momento feliz da convergência, a questão que se põe — e que, sem dúvida, para muitos de nós, se impõe, preocupa, é a seguinte: como se pode acreditar, como pudemosacreditar durante tanto tempo que, numa sociedade dividida em classes, a escola iria ofere-
cer a todos iguais oportunidades de promoção social e de afirmação pessoal? A isto retorquiremos evocando por um lado a resistência encarniçada, ora pelo silêncio, ora pelas deformações, que a burguesia durante tanto tempo manteve contra a difusão do marxismo; e, por outro, como ela soube
espalhar profusamente um grande número de ideologias mistificadoras a propósito da escola. Não ignoraremos que os trabalhos dos nossos cinco autores proporcionaram a estes temas as provas, a precisão que até então eles nem sonhavam. Deixamo-nos repetidamente enganar e a primeira vantagem dos nossos cinco autores consiste, sem sombra de dúvida, na sua ajuda contra a mistificação. 32
Ilich insiste em declarar que o projeto de uma escolaridade igual para todos representa um absurdo; a desigualdade seria inerente à escola, à qualquer escola, independentemente do sistema escolar, do regime social. Entre cem argumentos recordemos este: “Os créditos escolares, as possibilidades de
escolaridade a um nível elevado serão sempre inferiores à procura, porque o pedido de escolaridade aumenta precisamente com a escolaridade já começada e por sua causa; ora, se Os recursos são insuficientes para satisfazer a todos, serão fatalmente reservados aos poderosos”. A prova de que as desigualdades escolares não são segregadas pelo próprio funcionamento da escola, mas que estão ligadas às desigualdades sociais do sistema em que esta escola se insere, são as realizações dos países socialistas. Quanto mais as estudarmos mais nos convenceremos de que a escola não é uma estrutura eterna, funcionando da mesma forma sob
qualquer regime: é moldada pelo todo de que participa. Os números têm todavia a sua elogiiência. Percentagem de estudantes do ensino superior provenientes de famílias 33
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ESCOLA, CLASSE E LUTA DE CLASSES
operárias (1965): França, 9,5%; Itália, 15,3%; Alemanha do Oeste, 16,5%. Em comparação com 32% para a Romênia; 35% para a Polônia e 38% para a Checoslováquia. Encaremos o caso da Hungria e o estudo feito por Suzanne Farge. Por certo, ela acentua a persistência de determinadas desigualdades culturais relacionada com a distância entre os grupos sociais; e considera mesmo que a desigualdade cultural é maior do que a verificada entre os rendimentos. O problema das diferenciações escolares não se
loga que nos faz sentir como a escola, na construção do soci-
dissipou; as situações estabelecidas ainda exercem a sua in-
fluência sobre as possibilidades de acesso aos estudos prolongados. E, todavia, que progresso: por volta de 1930, entre os camponeses pobres, 1 criança em 478 entrava no liceu, e em relação aos operários fabris, | em 76. Em 1963, as possibilidades objetivas de frequentar uma escola secundária vão de la 5 ou 6 entre os grupos menos favorecidos e os grupos melhor instalados. Ou, empregando outra linguagem, na Hungria de antes da guerra, as crianças de origem operária e camponesa apenas representavam 5 a 6% do efetivo dos liceus, quando os pais constituíam 56% da população ativa; hoje, 60% e os pais formam 78% da população ativa. Lembraremos alguns aspectos do livro complexo de Mme. Markiewicz-Lagneau. Considera ela que em se tratando do ensino superior e, portanto, dos postos dirigentes a que ele dá acesso, ainda se mantém uma garganta de estrangulamento e uma seleção que atua diferentemente segundo os diversos grupos sociais concorrentes: os filhos de pais instruídos têm maiores oportunidades objetivas de freqiientar os bancosuniversitários do que os outros. Além disso, a Polônia, a Checoslováquia, estão atrasa-
das em relação à URSS: a distinção entre primário e secun-
alismo, assumiu um rosto novo. O que caracteriza aqui a
revolução socialista é a tônica que ela põe na promoção coletiva das classes operárias e camponesas, da qual nos traz alguns exemplos: Em 1962, nas indústrias de Sverdlosk, 65 a 75% dos
engenheiros ou são antigos camponeses, ou filhos de camponeses... calcula-se em cerca de 90% os jornalistas atualmente em exercício na URSS e que são de origem proletária. Em todas as democracias populares, este esforço de promoção maciça também é espetacular. Assim, na RDA, 55% dos trabalhadores não-manuais vieram da classe operária ou camponesa, 47% na Checoslováquia. Isto significa até que ponto a promoção profissional das classes desfavorecidas conquistou sob os regimes socialistas importantes resultados. Portanto, a generalização rápida da educação primária e mesmo secundária é em larga medida um dos triunfos mais convincentes dos novos regimes. Este esforço espetacular surge paralelamente como o símbolo e a vitória de uma vontade de difusão universal da cultura, de harmonia
com a idéia democrática e igualitária que a si própria a sociedade se impôs. A partir daí, as dificuldades incontestáveis que estão em jogo no ensino superior, não podem ser consideradas como um bloqueio, ainda menos como um insucesso: na dinâmica geral do esforço educativo, era preciso primeiro assegurar ao conjunto da população o nível cultural simultaneamente indispensável a uma tomada de consciência democrática e ao progresso das qualificações técnicas. O objetivo primordial do novo regime consistiu, tanto na URSS como nas democracias populares, em generalizar e elevar ao máximo um ensino de base. Durante anos, foram-se concen-
dário continua vincada, os dois graus ainda não realizaram a sua fusão. De uma maneira geral, a clivagem cidades-aldeias continua a levantar problemas. E, contudo, é a mesma sociéó-
trando as energias na construção dos meios que proporcionassem ao maior número de cidadãos a possibilidade de
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ESCOLA, CLASSE E LUTA DE CLASSES
adquirir uma cultura correspondente a um contínuo primáriosecundário. Nesta perspectiva, os problemas específicos do ensino superior foram relativamente negligenciados. Pelo que nos diz respeito, concluiremos que nem tudo está solucionado, mas que foi criada uma situação absolutamente nova: a extraordinária difusão da educação primária e secundária constitui a base a partir da qual os problemas do ensino superior podem ser solucionados — não automaticamente, mas porque o Estado Socialista não renuncia, nem pode renunciar, a uma ação vigorosa que tende a favorecer sistemática e abertamente as crianças social e culturalmente desprotegidas. Recorre-se a meios poderosos que contrabalancem o jogo dos critérios universitários de seleção da parte de privilegiados que vão desde a obrigatoriedade de cotas ao sistema de pontos suplementares; tanto se reserva uma percentagem de admissões à universidade para ao que não provêm da intelligentsia como se concedem vantagens, quando dos concursos de ingresso na universidade, âqueles que já participaram na produção. Devemos admitir que este esforço não permitiu ainda ultrapassar disparidades ao mais alto nível do ensino. Mas podemos ao mesmo tempo afirmar que tal política da educação não tem qualquer equivalente nos países capitalistas, que já obteve sucessos consideráveis, incluindo um planeamento da universidade — e que ela não poderia apresentar resultados definitivos sem antes as massas operárias e camponesas se beneficiarem de uma promoção cultural generalizada e maciça; e não se trata de um resultado a ser atingido em alguns anos.
das desigualdades na Europa do Leste, por consegiiência da mudança de regime que se seguiu à Segunda Guerra Mundial, foi alcançada, pelo menos em parte, por dispositivos de regulação direta. Uma portaria ministerial polaca de 1959 impõe às universidades uma proporção mínima de 60% de estudantes provenientes de famílias operárias e camponesas. Medidas semelhantes foram tomadas na maioria das democracias populares como na URSS”. E elas tiveram efeito positivo: entre 1931 e 1963, na Hungria, a taxa de disparidade classe superior-operários baixou de 17 para 5. E R. Boudon demonstra principalmente que se trata de um esforço ligado à própria natureza do socialismo: em regime socialista, a oferta de educação é tratada como um meio de regulamentar a procura e assim é mais fácil acelerar a atenuação da desigualdade de oportunidades perante o ensino ou aumentar a mobilidade. Pelos seus próprios alicerces, um sistema social que autorize a intervenção do Estado em relação à procura de educação pode provocar uma diminuição mais rápida da desigualdade de oportunidades perante o ensino do que um sistema em que esta procura obedece à lei do mercado; e acrescentaremos que, num país capitalista, o
mercado do ensino sofre os mesmos imperativos que o mercado dos produtos, faz parte do mesmo conjunto do mercado de produtos — e a soberania do conjunto está nas mãos das classes privilegiadas. Illich repete que entre o grupo dos privilegiados instruídos e os outros, constituindo, aliás, esses outros a imensa maioria, a distância não cessa de se acentuar — e tanto mais
evidentemente mais fracas do que na Europa Ocidental. Ele destaca a ação sistemática do Estado Socialista e o caráter considerável dos êxitos já obtidos: “A importante atenuação
quanto a escolaridade aumenta. Afirmaremos, o exemplo dos países socialistas a isso nos obriga, que não se trata de um caráter fatal ligado ao ensino, a qualquersistema de ensino — € que existem regimes onde esse afastamento está em vias de reabsorção, precisamente na medida em que a expansão da cultura vai sendo uma realidade.
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R. Boudon confirma que, nos países socialistas, as taxas de disparidades (sociais, perante o ensino superior) são
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ESCOLA, CLASSE E LUTA DE CLASSES
Esta luta efetiva contra as desigualdades escolares está indissoluvelmente ligada à luta pelo socialismo e é, sem dúvida, a razão pela qual ela é inconcebível para Illich. Implica uma sociedade onde a disparidade dos rendimentos e das condições de vida só atinge fracas proporções, onde o afastamento entre os privilegiados e os outros se processa dentro
URSS como uma sociedade aonde, por via de regra, os diri-
Há cada vez menos oposição nos atos e, portanto, na consci-
de limites restritos. Sem dissimular que, também neste do-
ência popular entre trabalhadores manuais e intelectuais.
mínio, subsistem muitos problemas e dificuldades reais, particularmente no que diz respeito a determinadas categorias, como a dos reformados e por vezes a das mulheres, é essencial considerar não apenas o que já se conseguiu, mas sobretudo a dinâmica da evolução. Por exemplo, a diferenciação dos proventos nos assalariados da Checoslováquia é um quarto da que existe na Alemanha Federal, apesar de esta ser uma das menos elevadas da Europa Ocidental. Na Checoslováquia, a relação entre os salários dos operários e os dos técnicos e engenheiros é de 100 a 130 ao passo que na França, em 1964, ia de 10 a 337. Na Polônia socialista, o leque salarial entre trabalhado-
res manuais e não-manuais vai de 1 a 3,5 — enquanto na Polônia de 1928, 18% da população monopolizava 50% do rendimento nacional. O esforço da URSS nesta direção é incontestável: a mobilidade social é superior e a distância social entre as classes e os grupos é menor. À mobilidade social exclui a cristalização de barreiras cavadas entre grupos. As intervenções estatais visam reduzir os riscos sociais e a desigualdade. A partir de perspectivas marxistas explicitamente afirmadas, Francis Cohen descreve como a política dos governos socialistas aspira simultaneamente criar uma ampla base niveladora pela gratuitidade de grande número de serviços sociais (assistência médica, atividades desportivas e culturais), pelo
baixíssimo preço de muitos outros (aluguel, casas de repouso), deixando ao salário um certo papel estimulante. Evoca a 38
gentes vivem entre trabalhadores, alojados como eles, parti-
lhando o mesmotipo de vida que levam os mais qualificados e mais ativos social e culturalmente. O salário médio dos membros dos serviços é inferior ao dos operários industriais.
A luta contra as desigualdades escolares articula-se num outro painel, o da luta contra as desigualdades dentro das próprias estruturas escolares: trata-se antes de mais nada do lugar ocupado pelo ensino técnico. O que pouco mais é do que um tema de elogiiência em país capitalista pode tornar-se real em regime socialista e, pensamos mesmo que só se pode tornar real num país socialista: o ensino técnico consegue nivelar-se ao ensino geral numa sociedade onde o trabalho técnico, as profissões técnicas estão valorizados, isto é,
onde a ação da classe operária for valorizada, o quesignifica que deixa de ser uma classe explorada, vivendo na obscuridade e na humilhação, e finalmente, que deixa de ser uma classe frente a outra classe. Sem pretenderafirmarque todos os países socialistas já tenham atingido este ponto, devemos assinalar como um estágio essencial da sua evolução a atração exercida pelo técnico e pela técnica — e isto em todos os meios. Enquanto entre nós o ensino técnico se apresenta como um apêndice desvalorizado do secundário nobre, na URSS ele goza de um estatuto e de um prestígio sensivelmente equivalente aos do ensino politécnico, ou seja, o ensino geral. Este prestígio confunde-se, e aí reside todo o problema, com o do trabalho
operário e o da classe que o executa. Um inquérito efetuado na Polônia demonstrou que, na escala da consideração social e na escolha de carreiras pelos
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jovens, as profissões manuais alternam com as não-manuais sem discriminação significativa. A dignidade conquistada pelo ensino técnico não é independente da redução do leque salarial e da elevação dos salários dos operários, do desaparecimento do desemprego que atingia em cheio a classe operária; e também de uma industrialização criadora das fábricas modernas onde o ope-
Ora, encontramo-nos hoje num momento apaixonante da história em que se pode começar a distinguir uma mudan-
rário se aproxima do técnico; da importância assumida, entre
os próprios operários, pelos movimentos dos inventores e pelas possibilidades de iniciativa, de criação assim abertas: não se trata de uma atividade individual passageira, eles têm à disposição verdadeiros laboratórios e conselhos científicos; resumindo, trata-se do papel político de vanguarda desempenhado pela classe operária. Numa sociedade em que desaparece a desigualdade inata que opunha exploradores e explorados, desaparece a desigualdade entre as categorias escolares — o que não significa absolutamente que a escola esteja em vias de desaparecer. A propósito deste inquérito polaco, J. MarkiewiczLagneau nota: “As conclusões devem ser acolhidas com certa prudência: a escolha de profissões manuais visa de preferência fábricas muito modernas e muito automatizadas, onde a noção tradicional de operários se apaga perante uma articulação de elevadas qualificações”. Queremos sustentar que não se trata aqui de prudência mas de uma afirmação essencial: a luta entre as desigualdades escolares só é possível, só
pode ser levada a cabo na medida em que os trabalhadores sintam globalmente necessidade de uma elevada qualificação; é então que o ensino técnico se torna ao mesmo tempo indispensável e adquire a mesma nobreza do ensino geral: ele é, aliás, forçado a abordar matérias cada vez mais seme-
lhantes, e a questão da sua unificação pode vir a ser um objetivo real. 40
ça na divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual; o que significa que as tarefas das massas trabalhadoras podem deixar de constituir um obstáculo ao desenvolvimento das personalidades — e de um só lance se torna possível e necessário desenvolver um ensino de massa a alto nível. Numa frase que ficou famosa, teria dito Aristóteles que a escravatura permaneceria incombatível enquanto as lançadeiras não andassem sozinhas. Tradução muito livre: numa sociedade que comporta um número imenso de postos de trabalho embrutecedores, exatamente trabalho escravo, a escola é
constrangida a preparar uma parte dos alunos para esta situação humilhante — e cria vias de acesso para os humilhados. A nossa época deixa vislumbrar, e pela primeira vez, uma possibilidade de sair do túnel: nas suas formas mais modernas, em primeiro lugar aquilo que se designa pelo termo genérico de automatização, o trabalho operário apela cada vez menos para a força física ou para a precisão muscular; e o mesmo no que diz respeito à famosa destreza ou golpe de vista pouco a pouco saídos da experiência — de uma experiência não teorizada, nem teorizável, e que, por conse-
guência, se adquiria fora do ensino propriamente dito; ficariam de uma vez excluídos e não atingidos pelo progresso, pela penetração teórica. Agora, trata-se de funções de vigilância e de controle: ler e interpretar os mostradores, permanecer vigilante, ser capaz de decifrar rapidamente e sem erro um elevado número de sinais; reagir eficazmente em caso de incidente, execu-
tar sem demora, em função das informações assim recolhidas, as ações necessárias. Deste modo o operário passa a ser essencialmente alguém com quem se pode contar; a sua tarefa exige que tenha desenvolvido qualidades de raciocínio e de sistematização. É uma nova noção de qualificação, 41
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a nível profissional: codificação e descodificação da mensagem recebida pelo operário, emitida depois sob a forma de ações atuando na máquina ou de comunicações. Certamente que as instruções só exigem reações elementares. Mas na maior parte das circunstâncias será necessário saber reagir a estímulos numerosos, complexos, que comportam algo de imprevisto. Sob outro ângulo, quanto mais a produção se moderniza mais a complexidade das máquinas multiplica funções muito qualificadas de regulação, de manutenção e de reparação. Ainda aqui os operários encarregados são obrigados a preocupar-se com conhecimentos e aptidões técnicas genéricas no que diz respeito à mecânica e à eletricidade. Enfim, cresce o número daqueles que terão a seu cargo preparar o trabalho, elaborar o programa, prever o desenvolvimento harmônico das operações. Pode-se antever o momento em que o operário seja menos o que chama a si a responsabilidade do processo de produção, a cargo da máquina automática, do que o homem que, em formas diversificadas de intervenção aplica, propõe até, soluções técnicas elaboradas.
Na realidade, o capitalismo não pode ter por objetivo forçar ao máximo os recursos proporcionados pela técnica, constantemente refreado pelo triplo receio das crises periódicas, ditas de superprodução, pelo medo de que as inovações diminuam o lucro, não sejam o melhor meio de o aumentar,
enfim, pelo temor de que os operários melhor inteirados de como e do porquê da produção, alcancem também o como e o porquê de todo o sistema da produção — e se revelem capazes de se lhe opor de forma ainda mais enérgica. Unicamente uma sociedade que engrene harmonicamente as suas forças produtivas segundo as linhas grandiosas de um plano único, uma sociedade socialista em que os grandes meios de produção cessem de ser propriedade privada, pode ter como objetivo a utilização de todas as possibilidades da técnica e utilizá-las para o progresso dos homens, para o bem estar dos produtores; e não apenas empenhada na produção em si, ou antes, na produção relacionada com o lucro. E é a este preço que o ensino pode conquistar a sua unificação real.
Assim, existe hoje a possibilidade de enriquecer consideravelmente as tarefas operárias — talvez fosse mesmo preciso falar de necessidade: e isso teria sobre o ensino, sobre a diferenciação do ensino em ciclos separados, consegiiências que pressentimos como capitais. Falta compreender porque são estas possibilidades tão pouco, tão lentamente aplicadas nos nossos países, a tal ponto que é por vezes a evolução inversa que se produz: entre 1954 e 1968, o número de operários especializados foi acrescido de 850.000. Representam atualmente cerca de um terço da classe operária. Os profissionais especializados, que reúnem aotrabalho manual uma parte de trabalho intelectual, não ultrapassam o quarto.
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CAPÍTULO HI COMO CONDUZIR A LUTA CONTRA OS CICLOS DIFERENCIADOS
Voltemos agora à nossa sociedade — e igualmente aos nossos cinco autores. A impressão dominante que ressalta, mal eles abordam as estruturas diferenciadas, queremos referir-nos a todas as estruturas diferenciadas do ciclo nobre dos liceus, é que elas se equivalem, representam um só e mesmo fracasso. PRIMEIRO TEMA: A escola divisionista 1 — As duas redes de Baudelot-Establet
Lembremos que Baudelot-Establet insistem em demonstrar que existem duas redes de escolaridade: uma rede secundária-superior a que chamam SS e que vai do 6º clássico e moderno, ciclo I, ao segundo ciclo secundário, depois ao ensino superior; e uma rede primária profissional, dita PP,
comportando classes de termo dos estudos, de transição e classes práticas (ciclo ID, os CET, aprendizagem in loco, o contato com o trabalho fora do circuito escolar.
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ESCOLA, CLASSE E LUTA DE CLASSES
Estas duas redes são descritas não somente em separado, mas como heterogêneas... opostas... antagonistas; entre ambas, há impermeabilidade... divisão intransponível. Se há entre elas alguns acessos, não passam de passadiços, de acanhados e frágeis passadiços; isto só interessa a um reduzidíssimo número de indivíduos: à escala sociológica, estas transferências não têm significado — não passam da esperança das classes dirigentes em dar crédito à idéia de que a fina-flor do PP chega ao SS, dissimulando deste modo a realidade do conflito. Estas duas redes correspondem estrita-
A partir disso, Baudelot-Establet chegam aquilo a que nós chamaremos uma série de negações explícitas: nenhuma espécie de valor, nenhum esboço de valor é concedido à laicidade, logo remetida à ilusão laica, à ilusão de que pode existir um ensino neutro acima das classes. A luta para fazer viver uma escola pública independente do dogma e do catecismo não passaria de um logro puro e simples.
existência material de duas ramificações. Fazem remontar a 1880 os primeiros esforços para criar um tronco comum; mas a partir de então o seu único efeito foi camuflar, salvo precisamente aos olhos de sociólogos experimentados, a existência e a oposição das redes. Deste modo, é o conjunto das reformas escolares de há um século para cá que se apresenta como um puro e total fracasso, em relação aos objetivos sempre proclamados pela democracia, nada mais nada menos do que uma gigantesca mistificação. Muito mais graves ainda são as negações implícitas veiculadas pela própria noção de rede: as redes (teremos ocasião de insistir no assunto a propósito do M2) só merecem tal nome se forem homogêneas nas carreiras possibilitadas; a rede PP só existe se forinterdito estabelecer qualquer diferença entre os CET e a eliminação escolar, entre os CET e as classes práticas, entre o aluno que obteve um diploma de eletricista e aquele a quem a Lei Royer permite ser arrancado da escola aos 14 anos e que ficará integrado, portanto, na mãode-obra desprovida de qualquer qualificação profissional. A ramificação PP só existe desde que se considere como evidente a possibilidade de reunir os alunos do 4º ano prático, os do primeiro ano do CET e os que já participam da vida ativa. Por outras palavras, a própria noção de rede PP implica
O prolongamento da escolaridade, tanto a voluntária
em certeza, uma certeza que nem necessitará de análise, de
como a obrigatória, não é de forma alguma creditado por qualquersignificação positiva: não só subsiste a divisão das
que os CET nada oferecem de válido às crianças da classe operária, nem quanto à preparação técnica, nem quanto à formação pessoal, à capacidade de resistência à exploração
mente às origens sociais; a rede PP escolariza em massa as
crianças vindas das classes operárias e camponesas, a rede SS reúne as crianças da burguesia. A massa de crianças originárias das classes sociais antagonistas é, e continua, escolarizada em redes opostas e é assim conduzida, ou antes, reconduzida, a situações sociais opostas.
massas escolares, como também o prolongamento da esco-
laridade mínima não a transforma em escolaridade longa, mas afirmam-nos que o aumento do tempo de escola agravaria mais a divisão levando ao reforço da oposição entre as ramificações. O tronco comum é qualificado de absolutamente irrisório pelos autores: não passa de umatentativa para camuflara
— visto que se colocam exatamente no mesmo plano os alu-
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nos do CET e os jovens que já trabalham. E isto não apenas hoje, mas igualmente em relação a qualquer esforço de progresso que se vier a empreender. Lutarmos contra a Lei Royer, pela extensão dos CET, sermos contra a que a formação
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ESCOLA, CLASSE E LUTA DE CLASSES
dos aprendizes caia nas garras do patronato não conduziria, portanto, a nada. Por seu turno, a rede SS só surge como tal se a encararmos na sua especificidade, na semelhança dos seus resul-
— e que estes correspondem sempre docilmente àquilo que deles se espera.
que comanda sozinha o número e a qualidade dos docentes
todos amalgamados, são considerados praticamente explora-
Dizem-nos que o ensino técnico não constitui uma rede, em primeiro lugar porque não possui recrutamento próprio: por exemplo, chega-se ao liceu técnico não a partir desse primeiro grau de tecnicidade que são os CET, mas essencialmente a partir dos terceiros anos de ensino geral. As formas de ingresso no ensino superior técnico são, também elas, muitíssimo heterogêneas: para ele vão inúmeros estudan-
dores ou seus cúmplices diretos; alinham-se todos no mesmo
tes que não provêm de terminais técnicos e, inversamente,
setor, que é simultaneamente o abençoado e favorecido pelo ensino e o amaldiçoado pelos coletores de mais-valia: é que
muitos estudantes de terminais técnicos se matriculam em estabelecimentos alheios ao superior técnico. Além disso, é sabido que, em muitos casos, a orientação de um aluno para o ensino secundário técnico não resulta de uma escolha apetecida, mas apenas de um meio de segunda ordem de continuarna rede SS quando já não precisam dele nas outras seções. Daí quererem os nossos autores concluir que os CET estão ligados ao PP, que os estabelecimentos técnicos de ensino dependem realmente do SS. Assim, nunca o técnico possui unidade e
tados; isto é, deve-se admitir que todos os que terminaram o
liceu, por exemplo os futuros empregados qualificados ou colaboradores secundários de um banco, permaneçam do mesmo lado dos poderosos PDG! de monopólios. Todos os habilitados com o curso do liceu ascenderiam ao mesmo futuro, o mais brilhante e também o mais ávido. Eles estão
não se pode estar, no sistema das redes, do lado bom do en-
sino sem se cair no lado mau da sociedade. A rede SS forma um bloco tão monolítico como o outro — e isto surge como o destino definitivo, irrevogável dos que vêm do liceu, de todos eles, pois afiançam-nos que constituem um só setor. Na realidade, na prática política, não significa isto que se considera impossível e, portanto, votado ao abandono, qualquer esforço de ação progressista sobre a população liceal? O liceu vai ser abandonado aos futuros PDG, é a sua reserva de caça. Enfim, não oferece qualquer dúvida que os docentes são, todos eles, servidores da classe dominante. É bem claro que se a burguesia, a partir de J. Ferry”, se deu ao incômodo de recrutar tantos professores e de lhes confiar todas as crianças, incluindo as suas, não foi para os levar a exercer um
sacerdócio superior às classes. Assim se sugere, na sutileza de uma frase, que a burguesia é a única soberana na escola, 1
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,
20.4
Président Directeur Général. “ Jules Ferry: estadista francês que contribuiu para a organização do ensino primário, bem como para a expansão colonial da França. a
.
n
A
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ma
.
.
especificidade; não forma, portanto, uma rede. Além disso, lembram-nos que os alunos do primeiro
ciclo secundário se repartem por três vias, reunindo cada uma mais ou menos o terço dos efetivos: clássico e moderno, longos ou ciclo I dito MI; transição, CET e outros, ou seja, o PP ou o ciclo HI, e entre ambos, o moderno curto, esse fa-
moso M2, o ciclo II, que equivale mais ou menos aos antigos CEG. Daqui a impressão de existirem três redes e do M2 também constituir uma, que corresponderia à escolaridade das classes médias: empregados, artífices, pequenos comerciantes etc. Baudelot-Establet quiseram demonstrar que não é nada disso. Se se começar por considerar a média da idade de en49
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trada na 6º classe, as crianças encaminhadas para o MI têm entre 11 anos e 11 anos e meio; as que são orientadas para o PP 12 anos e dois ou três meses. Ora, as que encontramos no M2 não estão longe dos 12 anos. Estão praticamente no
segiiência, que a sua composição social seja homogênea, que uma percentagem elevada dos que pertencem a certa classe
com os estudantes do PP, não formam uma categoria à parte. E, sobretudo, se for considerado o que é o destino escolar, as probabilidades de escolaridade das crianças das classes ditas
social permaneça inteiramente em determinado ciclo. E preciso ainda que as carreiras possibilitadas pelo ciclo sejam nitidamente diferenciadas e heterogêneas em relação às carreiras a que dão acesso os outros ciclos. Adiantando-se na resposta às objeções que lhes irão levantar, Baudelot-Establet declaram: “Acentuando com tanto
médias no SS e no PP aproximam-se muito. Parece, pois,
vigor a divisão em duas redes, seremos censurados de todos
que as classes médias não têm escolaridade específica, não corresponde às classes médias uma escolaridade que lhe seja
Na realidade, não se trata de tonalidades, mas sim de uma
mesmo caso dos alunos do PP, devem contá-los juntamente
própria — e, portanto, o M2 não pode ser considerado como
a ramificação das classes médias. Pode afirmar-se outro tanto a partir da perspectiva inversa, examinando o recrutamento do M2: constata-se então que
não existe qualquer classe social que se sinta nitidamente atraída poreste ciclo e para a qual a probabilidade de escolaridade no M2 esteja absolutamente garantida; nomeadamente para os empregados, a possibilidade da rede SS é intermediária entre a das profissões liberais, quadros formados por funcionários administrativos e operários. O que Baudelot-Establet nada confirmam com a sua convicção é de que o M2 não constitui
os lados por não termos dado importância às tonalidades”. concepção muito nítida, muito coerente, e igualmente muito parcial do que vem a ser uma rede, isto é, finalmente, daquilo que é o ensino. A definição da rede PP ia negar o CET assimilando-o à passagem imediata ao trabalho; a definição da rede SS ia excluir qualquer possibilidade de desviar os alunos liceais do fascínio exercido pelos monopólios; a recusa em considerar como redes o ensino técnico e o M2 traduz-se, de fato, pela
recusa em atribuir um lugar real à escolaridade das classes médias e, por fim, em não atribuir qualquer papel positivo às classes médias.
um ciclo original em relação às duas redes, e ainda menos
uma terceira rede. A conclusão a que pretendem levar-nos é a de que existem duas e apenas duas redes antagônicas.
O leitor pode recear perder-se em discussões supérfluas e em querelas de palavras: trata-se de rede ou não? São, na verdade, questões fundamentais postas a partir quer da descrição das suas redes, quer da rejeição do M2 e do técnico como redes. Para merecer a designação de rede, é indispensável que um curso atraia com uma probabilidade característica tal classe social, que constitua o modo de escolaridade
A rede PP surge como um terreno maldito, deserto, de-
solado; a definição de rede significa um remeter do indivíduo não apenas à sua classe social, mas propriamente à sua casta.
Às consegiiências disto são de extrema gravidade, pois o prolongamento da escolaridade não é para muitos senão o prolongamento da escolaridade curta. Baudelot-Establet pretendem persuadir-nos de que esse não é um objetivo pelo qual valha a pena lutar. Portanto, quando o leitor percebe que
nitidamente preferencial dessatal classe; é preciso, por con-
dentro desta escolaridade curta, os CET estão em estagnação relativa, o que é verdade, o que é escandaloso, tratam de o
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pôr em condições de não conseguir pensar que a proibição dos CET representa uma cartada efetiva, importante. Lutar contra a Lei Royer com a qual o poderviola a própria legalidade (permite-se que trabalhem, pelo menos em alternância,
não têm estabilidade e arriscam-se sempre a ser encaminhados para o PP. Cada classe de M2 é uma plataforma de sele-
Jovens de 15, até mesmo de 14 anos, quando a escolaridade
obrigatória está fixada até os 16 anos) não passa, na perspectiva de Baudelot-Establet, de irrisória. Na realidade, existe mesmo um combate a ser travado,
não para que toda a escolaridade curta seja de imediato transformada em escolaridade longa, o que é puramente utópico dentro da nossa sociedade dividida em classes, mas para reti-
rar da escolaridade curta tudo quanto ela for capaz de dar. O meio mais seguro de não o conseguiré lançar indistintamente no bloco indiferenciado do PP aqueles que o Cet prepara para a eletrônica e os que, aos 14 anos, varrem as oficinas.
Baudelot-Establet descrevem muito claramente as funções do M2: ao mesmo tempo que pesca os alunos mais fracos do SS, praticamente alunos frustrados da burguesia,
escolariza os alunos médios da pequena burguesia e até os melhores elementos do proletariado. Deste modo, procura
ser um meio de compensar um pouco as desigualdades demasiado gritantes que resultariam da existência única de seções clássicas e MI; constitui a forma de realização da
promoção social no SS. Para nós, o M2 representa o setor em que atuou um certo progresso, um esboço de progresso na democratização do ensino, uma certa possibilidade arrancada das entranhas
da nossa sociedade, conquistada simultaneamente pela ação das forças progressistas e pelas exigências do desenvolvimento científico e técnico. De qualquer forma começaa despontar uma certa abertura. Sem dúvida, isto é na nossa sociedade, um empreendi-
ção entre as duas redes; é verdade que são, em geral, mais
velhos do que seus camaradas do MI, estão atrasados e muitas vezes os consideram menos dotados; é também verdade
que um dos escândalos do nosso sistema é destinar-lhes, como sempre que se trata de alunos em dificuldades, professores possivelmente menos qualificados, certamente formados às pressas e pior remunerados. Não é de espantar que no M2 as reprovações e Os insucessos sejam mais numerosos; finalmente, uma escassa metade de alunos do M2 chega ao segundo ano do liceu — e esses pertencem muito mais às camadas médias do que à classe operária. É o setor mais frágil, o que funciona em condições mais difíceis. Apenasrealizou um progresso muito parcial, absolutamente insuficiente, e que não jogou a favor de uma promoção coletiva da classe operária. Progresso, todavia, em que nos devemos apoiara fim de o promover de modo revolucionário. Não é de forma alguma o que é proposto aqui. Baudelot-Establet não desejam tão cedo reconhecer no M2 “classes da rede SS desvalorizadas... uma escolaridade de má qualidade... um estatuto equívoco... uma seção bizarra”, e o secundário técnico vê-se reduzido a “uma fração inferior... a ser parente pobre da rede SS”. Eles só levam em conta os fracassos e os aspectos negativos. É demasiado fácil, mas pouco concludente, resumirto-
da a escola ao choque de duas classes antagonistas depois de ter recusado tomar em consideração o que se passa no meiotermo, considerando o M2 e o técnico indignos de se verem
elevados à categoria de redes. Não mereceria o ensino técni-. co ser tomado mais seriamente em consideração, se consta-
tarmos que 30% dos quadros médios, 15% dos engenheiros,
mento extremamente difícil: é verdade que os alunos de M2
11% dos funcionários administrativos têm diplomas do ensino técnico?
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Vitalizar o M2 e o técnico, é um dos modos de partici-
definidos, mais ou menos disfarçados, da classe dominante.
pação da escola na luta de classes. Pois é também aí que se Joga a luta de classes no plano escolar, luta constante, cotidi-
Quando os seus filhos se introduzem no SS, até na Faculdade, isso não implica qualquer relação com a democratização; são os cúmplices dos exploradores que se insinuam. Esta recusa em conceder qualquer validade às classes médias é particularmente grave na nossa época em que gran-
ana, por vezes surda, por vezes ruidosa, onde um importante
contingente de estudantes vindos das classes não-dominantes reclama o direito à educação. A tarefa dos professores progressistas consiste em apoiar com toda a sua força combativa a luta aqui traçada: preservar, desenvolvereste setor — e há também espaço para uma investigação propriamente pedagógica de originalidade nos métodos e nos conteúdos. É por estas vias de promoção serem já reais e ao mesmo tempo tragicamente insuficientes, e até desfiguradas, que se pode e deve lutar para lhes dar amplidão, força nova, forma nova; sabendo perfeitamente que só numa sociedade renovada o proletariado poderá lançar-se através da brecha assim aberta.
A análise sociológica e a análise escolar efetuadas por Baudelot-Establet estão evidentemente em íntima dependência. De fato, as duas redes são esquematicamente decalcadas de uma definição muito esquemática das classes sociais: de
de número de professores, muitas vezes vindos da classe
média, ou mesmo tipicamente ligados à classe média pelos seus hábitos e gostos, vêem degradar-se o seuestatuto social,
as suas condições de vida bem como as perspectivas, o sentido do seutrabalho; e é à altura em que as idéias progressistas os atingem a partir de uma tomada de consciência da sua verdadeira situação: organizam-se, sindicalizam-se, condu-
zem lutas maciças e fornecem elevado número de militantes aos partidos da esquerda. É igualmente a época em que a penetração e o papel das classes médias na universidade passam a serfatores essenciais. Boudon calcula que, entre 1950 e 1965, a relação do número de estudantes saídos das camadas médias (arte-
proletariado. A verdadeira razão pela qual não existe uma
sãos, pequenos comerciantes, empregados) e do número de estudantes saídos das camadas elevadas (chefes de empresas, profissionais liberais) quadruplicou. Na realidade, no século
terceira rede, é o fato de o mundo de Baudelot-Establet não
XIX e até cerca de 1920, as classes médias não sentiam uma
destinar nenhum local apropriado, nenhumavia autônoma às classes médias; nada do que se passa parece merecer-lhes o mínimo interesse: “A ditadura da burguesia supõe alianças com a pequena burguesia”. Mas será da aliança sempre mais importante, mais real da pequena burguesia com a classe operária? A rede SS é um dos pontos mais segurosdaaliança entre a burguesia e a pequena burguesia é o sentido daquilo a que chamam democratização do ensino. A pequena burguesia, nunca mantendo relações com a classe operária, nunca Juntando os seusinteresses e as suas lutas aos da classe operária, só aparece como um bando de sequazes mais ou menos
necessidade absoluta de educação superior; o patrimônio
um lado o proletariado, e do outro, o que não constitua o
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transmitia-se sob a forma de terra, de armazém, de pequena
empresa — o que bastava para assegurar a situação profissional. Mas de um modo cada vez mais violento, o monopó-
lio conseguiu a expropriação ou a avassalação dos pequenos produtores. Desde então é com a universidade e com a formação aí recebida que as classes médias passam a contar para adquirir, para conquistar um estatuto profissional. Perante este duplo ponto de vista, assumindo as classes médias tal lugar no sistema de ensino, torna-se essencial fa-
vorecer todos os elementos objetivos e subjetivos suscetíveis 55
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de promovera sua aliança com o proletariado e afastá-las das classes dominantes. O menos que se poderá afirmar é que o livro de Baudelot-Establet não contribui para isso. Será preciso, mais uma vez, recordar a frase de Marx convidando o proletariado a formar um “coro, sem o qual... o seu solo se transformará num canto fúnebre”? As classes médias vivem, evidentemente, na confusão das situações
contraditórias: ora se ligarn à grande burguesia, ora lhe resistem, mas por vezes sob um aspecto reacionário, esforçandose desesperadamente portravar as inevitáveis evoluções econômicas. Imaginam frequentemente escapar à luta de classes, e até constituir o local onde a luta de classes possa ser ultrapassada — ou diluir-se numa generalização da mediocridade mais ou menos dourada. Mas Marx demonstra que se “o proletariado sozinho
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a rever, aprofundar, consolidar, repetir, repisar os conheci-
mentos adquiridos na escola primária — e graças a isso os alunos conservam-se submetidos à disciplina, às práticas escolares características da primária. É assim que em matemática se contentam com uma perícia condicionada a limites restritos e que o ensino do francês nos CET continua a centrar-se na ortografia e no ditado. O PP não passa de uma
primária alongada. Mas, sobretudo, o universo que se manifesta em volta das crianças é um pseudoconcreto, representado por temas do artesanato, do campo, da avó tradicional ou do pormenor ocioso. Um discurso edificante que tem por tema a gentileza e a honestidade dos pobres, sempre recompensados da sua miséria acidental pela generosidade dos ricos — um discurso que não corresponde nada às condições de vida da classe
forma uma classe revolucionária”, as classes médias podem
operária; é a ela completamente estranho e não pode, portan-
pelo menos aderir às posições da classe operária, na medida em que (e é ainda hoje mais verdadeiro do que no tempo do Manifesto) elas se sintam “expostas a cair na condição de proletários. Defendem então não os seus interesses presentes, mas os futuros”. Daí a extrema importância de as ajudar a aperceber-se da realidade desses interesses futuros através da aparência dos seus problemas presentes. Retomando expressamente esta passagem do Manifesto, Marx insiste: “É absurdo fazer das classes médias, conjuntamente com a burguesia, uma mesma massa reacionária face à classe operária”, Deve-se atribuir a Marx o pressentimento e a denúncia antecipada do que viria a ser para Baudelot-Establet a rejeição do M2?
Já se não trata agora de estruturas, mas de conteúdos inculcados e de formas de ensinamento. No PP se limitariam
to, relacionar-se com os seus interesses: não se refere aos alojamentos superlotados, à vida familiar deslocada pelos horários de trabalho, às crianças privadas das possibilidades afetivas de partir para férias. Passam-se em silêncio a realidade do trabalho penoso, a realidade dos conflitos sociais. É uma imagem trangiilizante e idílica da família pequenoburguesa; a solidariedade simplista de todos e de todas as profissões brilha como valor primordial, em perfeita harmonia com as ambições de engrandecimento, de promoção individual, mas precisamente sob a condição de que tal promoção continue individual. Mas, na realidade, nada prova que o jardim ou o rouxinol representem temas mais concretos, mais facilmente acessíveis a estes jovens do que a exploração ou o capitalismo; o certo é que constituem assuntos menos perigosos para propor aos alunos do CET e que estas descrições equivalem a outros tantos meios de pôr de lado os temas em -ismo, -dade, -ição, numa palavra, os conceitos que permitiram aos filhos de pro-
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II — Os conteúdos do PP como Subprodutos
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letários ultrapassar as aparências mistificadoras. Apresentar deste modo um universo que valoriza as condições de exis-
testáveis; nenhum instrumento é dado ao aluno para saber
tência da família burguesa, é ao- mesmo tempo considerar
como anormal a vida da família operária — e isto pelos próprios filhos da classe operária; é fazer com que se envergonhem de si e dos seus pais.
como (sublinhado pelos autores) o texto foi elaborado... nada convida nem autoriza o aluno a discutir o texto. No meio de uma multidão de anedotas, só se apresenta um corpo com-
pacto de idéias burguesas simples”.
Os autores estudados são do tipo Daudet, Bazin, Fom-
Defato, as duas redes não transmitem duas culturas di-
beure, Thiriet. Se se evocam os autenticamente grandes, é só depois de os haverem reduzido a simples matéria de ditados
ferentes: é, em um e no outro lado, a mesma ideologia que é inculcada, a ideologia burguesa, embora não seja propagada da mesma maneira aos futuros exploradores e aos futuros explorados. É preciso que ela seja ensinada sob duas formas opostas, características de cada rede de escolaridade. A rede SS visa formar um intérprete ativo da ideologia burguesa, preparado para manobrar todos os instrumentos de domínio da ideologia burguesa. Da rede PP sairão proletários passivamente submissos à ideologia dominante, estritamente preparados para suportar a ideologia burguesa dominante. Daí chegarem os nossos autores à conclusão de que a cultura dos CET e em geral da rede PP é fabricada a partir de
— fragmentando-os, portanto, de maneira a torná-los inofen-
sivos. Na idade em que os alunos do SS fazem dissertações e enfrentam as obras fundamentais, as crianças do CET estão reduzidas aos temas mais convencionais; devem utilizar um
vocabulário que nem é o falar cotidiano, nem a língua dos autores, mas vocabulário irreal, discurso monótono e pobre,
sem ressonância nem de personalidade nem deliberdade. Em história, a classe operária, a ação específica, autônoma da classe operária são sempre recalcadas, negadas. A história é constituída por um punhado de grandes homens, evocados como unificadores da Pátria, e o seu papel consistiu em apaziguar todos os conflitos. Mais do que em qualquer outro lugar, o operário é convidado a assumir a sua condição dentro das categorias da ideologia burguesa. Baudelot-Establet vão comparar, a propósito de Luís XIV, um manual de fim de curso redigido por Lavisse e um volume da História da França, também de Lavisse, para uso dos liceus! — e concluem: aos alunos do SS “submetem-se diretamente os testemunhos da época, os testemunhos autênticos, discutem-se esses testemunhos; são reveladas, quando vierem a
propósito, as lacunas da informação”. Ao contrário, o manual do curso superior “agita dogmaticamente verdades incon1 M. Testaniêre a faz notar os . que se trata da História da França em mais de 30 vo-
subprodutos empobrecidos, monótonos, vulgarizados, da
cultura inculcada no SS. São formas degradadas, que só podem constituir uma subcultura. E é precisamente esta subcultura que representa a finalidade e a significação de toda a rede PP: “não se trata de educar e de instruir crianças, mas sim de infantilizar os proletários”; e por essa razão se esforçam por manter, tanto quanto possível, os alunos do PP dentro dos moldes de disciplina, das práticas escolares características da juventude e igualmente das matérias destinadas a prolongar-lhes a ignorância infantil. De nossa parte, manteremos que o CET, por exemplo, é o que está em jogo numa luta infinitamente mais complexa: a cada instante o espreita o risco de vir a confundir-se com
lumes, portanto, muito além dos estudos do segundo grau.
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essa subcultura. As análises de Baudelot-Establet acabadas
procura impor formações limitadas e imediatamente utilizá-
de resumir, talvez um pouco demoradamente, parecem-nos irrefutáveis como evocação de um risco. Porém, o CET não
veis, à custa de uma abertura ao mundo; e como presente-
se reduz a esse risco nem se identifica com ele porque, também a todo instante, entram em jogo forças antagônicas. São
multiplicidade de refúgios, aliás inconsistentes, tanto do lado
elas a resistência dos docentes, a dos pais operários através
das associações de pais, enfim, as reações dos alunos. São todas uma realidade, pois têm por suporte a resistência dos fatos: a escola capitalista, e muito especialmente do lado do CET, está marcada por uma contradição fundamental, isto é, a de que as classes dominantes se procuram
servir dele para formar uma mão-de-obra dócil e submissa, sem grande preparação e, portanto, pouco exigente; esforçam-se ainda por selecionar um escalão médio, dotado de uma pequena qualificação — e todas as precauções serão tomadas a fim de que não alimentem ambições exageradas € não se sintam tentados a entrar em concorrência com os descendentes do patronato; mas ao mesmo tempo os progressos técnicos, tanto nos meios de produção como na sua organização, exigem homens capazes de iniciativa e de decisão, capazes de assumir responsabilidades. É por isso que a subcultura do CET, se representa um perigo sempre ameaçador, não constitui de forma alguma um fatorirreversível — e fatal. O CET está eivado de exigências contraditórias, onde estão implantados, por consegiiência, os alicerces necessários aos esforços progressistas. Sob pena de se privar a classe dominante da mão-de-obra qualificada de que ela carece, o CET não pode abster-se de ensinar a verda-
mente isso já não é uma proteção suficiente, ela buscará uma de um irracionalismo que declara inútil qualquer noção da verdade, como do lado da não-escolaridade, e aqui voltaremos à Lei Royer. Mas o que dá vida ao CET é uma luta constante: o que é inculcado constitui um amálgama que engloba quer o mais reacionário quer o meio de o ultrapassar. Não iremos além do que Baudelot-Establet nos ensinaram: o CET é por certo, no plano escolar, a expressão do domínio de classes. Mas ao mesmo tempo surge-nos, contrariamente ao que eles dão a entender, como a expressão da luta das classes.
espírito de verdade, uma formação na verdade, o senso do
Sob certos aspectos, o CET é pior do que eles dizem, e quanto a este ponto nos referiremos a determinadas análises de Grignon. Mas é também infinitamente mais rico, já na situação atual, e sobretudo pelas promessas que contém, pelas possibilidades de que é portador; e da nossa luta depende que seja esmagado o que assim é anunciado ou que consiga impor-se. Não é exato que o CET se limite a repisar os elementos da escola primária. Estuda-se aí álgebra, ciências e a tecnologia tem lugar de relevo: de contrário, a mão-de-obra que ele forma seria incapaz de desempenhar o seu papel na indústria moderna. Alunos preparados para o embrutecimento e apenas alimentados de falsidades: isso forneceria mais ou menos escravos para a colheita manual do algodão. Entre o sonho das classes dominantes de infantilizar os proletários e a necessidade de lhes proporcionar elementos válidos para o trabalho que deles esperam, entre a pressão das classes
verificável, a distinção entre o verdadeiro e o falso, o apro-
dominantes e as reivindicações das classes exploradas, luta-
ximativo e 0 exato,
se; e desde que se lute, surge uma possibilidade e uma esperança razoável de progresso. É natural que a qualquer mo-
de sobre as técnicas, e também sobre as ciências, ou seja, um
A ideologia burguesa esforça-se naturalmente por baralhar as cartas, quer isolar o técnico dentro da sua técnica,
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mento da história o destino desta luta escolarseja inseparável do destino do movimento operário no seutodo.
força de união podem sequer ser evocados nesta solidão desesperada.
Toda a teoria das duas redes leva, obriga a apresentar
A dicotomia entre as duas redes, remete explicitamente
como um fato inegável, absoluto, a oposição entre elas. Não
para a divisão do trabalho manual e do trabalho intelectual,
pode haver entre o PPe o SS nada que se assemelhe a uma complementaridade, mas unicamente uma exclusão recíproca. Os conteúdos ideológicos inculcados na rede PP não constituem a base elementar na qual se apoiaria essa ciência mais complexa dispensada na rede SS: são, muito pelo contrário, um obstáculo à sua aquisição; a assimilação dos conhecimentos da rede SS implica a sua destruição. E este antagonismo faz parte integrante do domínio da burguesia sobre o proletariado e dos meios de assegurar a sua reprodução. Porém, esta incompatibilidade não tem outra base que não seja a afirmação de que o PP apresenta um grande número de subprodutos residuais da cultura. E é, a partir dela, que nos apresentarão a escola como
que constitui um dos impulsos principais da exploração do trabalho.
um instrumento passivo nas mãos das classes dominantes,
que brincam de managers, mas continuam, todavia, subordi-
um local onde nenhum progresso é viável — até o presente nada de eficaz se teria realizado, exige-se que qualquer avançada seja só aparente e que em breve se transforme numa mistificação habilmente dissimulada. Supõe-se, por exemplo, que a burguesia, a ideologia burguesa, sofreram, tanto na escola como no mundo, algumas derrotas clamorosas: nomeadamente é hoje impossível justificar pura e simplesmente a
nados ao poder e às ordens do grande capital. E a burguesia dominante que se esforça para lançar os trabalhadores uns contra os outros, para opor os trabalhadores manuais aos trabalhadores intelectuais. Parece-nos que Baudelot-Establet se deixaram cair na armadilha. Deve-se travar uma luta contra a segregação social dos
colonização, difundir um racismo sumário. Mas os autores
entregues a posições reacionárias. Mais do que nunca é hoje possível esta luta visto que uma das características do capita-
querem persuadir-nos de que, na realidade, a burguesia é justamente constrangida a apresentar a sua ideologia com omissões, reticências, compromissos. A escolaridade prolongada da classe operária não corresponderia tampouco a qualquer melhoria real, a partir. do momento em que as práticas da rede PP fossem apresentadas como um bloco inteiriço, na
Encontramos aqui, em Baudelot-Establet, um suave
perfume do século XIX: os intelectuais evocados seriam, por exemplo, magistrados, levando à sua maneira uma vida tranquila, independente, livre de qualquer preocupação material; os alunos do liceu se resumiriam a alguns herdeiros.
Na realidade, hoje uma grande parte do trabalho intelectual, por exemplo o dos técnicos, está submetido à repartição das tarefas, à especialização, à hierarquia, numa palavra, à
exploração. Os responsáveis pelos nossos males não são os intelectuais, não são os executivos, certamente, nem tampouco os
trabalhadores intelectuais que, isolando-os, ameaça deixá-los
lismo monopolista de Estado, é a de reduzir os intelectuais,
verdade, impecável, inatacável. E nenhum aliado, nenhuma
por exemplo, uma maioria de engenheiros, a um papel de executantes subordinados, que suportam cada vez pior essa subordinação. Negar o progresso parcial, é negar a história, não o querersituar no interior de uma evolução histórica. Os nos-
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sos autores instalam-nos num universo imóvel, sem referên-
Sem dúvida que nenhuma democratização do ensino resultará numa sociedade sem classes, pela boa razão de que nenhuma democratização dará lugar a uma sociedade de classes. Porém, qualquer passo em frente para a democratização do ensino faz parte de um todo econômico e social, que prova ter-se atingido uma fase progressista — ouantes, que se participa numafase, apesar de tudo, progressista.
cias ao passado — e paralelamente, sem perspectivas de futuro. Dirão, por exemplo: “Esta divisão dos efetivos em dois tipos de escolaridade é um traço constitutivo do aparelho escolar capitalista; esta divisão é consubstancial a ele; existe
desde a sua constituição. Apenas variaram as suas formas históricas e institucionais”; o que de fato significa que esta variação das formas nada muda. Consegiientemente, já não se trata de prosseguir uma luta, de se garantir o que já se obteve graças a ela, a fim de se avançar até à sua fase revolucionária. Se nada de válido foi conquistado até o presente, como organizar a sequência da ação? Que esperança justificável de que novos esforços revelem-se eficientes? Acaba-se por se desesperar da escola, por ir ao encontro de Illich. Baudelot-Establet aparecem-nos como dois illichianos anteriores à revolução, illichianos até à revolução. E só após uma revolução a escola poderá começar a desempenhar um papel progressista. Mas é preciso imaginar uma revolução surgida do nada, sem ter sido preparada por qualquer progresso, sem que tivesse sido efetuada, assentando em objetivos parciais, larga união de camadas evidentemente heterogêneas, mas todas elas ameaçadas pelo capitalismo monopolista. Ao contrário, Lenin mostrará que uma das tarefas essen-
clais consiste em desenvolver a democracia até o fim e isto sob todos os aspectos. Não na ingênuailusão de que a revolução social brotará muito simplesmente da democracia, ainda menos na convicção de que o socialismo se confunde com a
Por outras palavras, a tentação que ameaça sem cessar Baudelot-Establet é recusar as reformas em nome da revolução, é a de nos encerrarem no dilema: ou reformas ou revolução; ou para realizar reformas se seria levado a renunciar à
revolução, ou então as pessoas se preparam para uma revolução que anula quaisquer reformas, que as tornam irrisórias. Lenin soube eliminar o dilema apelando para toda experiência da história mundial que mostra em que consiste a verdadeira alternativa: Oua luta de classes revolucionária que tem sempre por produto acessório as reformas, no caso de sucesso incompleto da revolução; ou nenhuma reforma. O postulado tácito que nos parece animar o livro, é a regra do tudo ou nada: enquanto subsistir a oposição classe dominada-classe dominante, as possibilidades de realização reduzem-se a zero. Desde que Baudelot-Establet constatam que os filhos do proletariado não entram para a universidade na mesma proporção dos filhos da burguesia, concluem que nada se avançouaté o presente e que nenhum avanço é praticável no sistema. A partir daí torna-se impossível discernir entre o que já foi obtido e tudo quanto falta conseguir.
democracia. “Mas, na vida, o democratismo nunca será con-
Por isso se introduz um aspecto, que ousaremos quali-
seguido em parte; o será no seu todo; exercerá também influência sobre a economia da. qual estimulará a transformação: sofrerá a influência do desenvolvimento econômico etc.”.
ficar de aristocrático, nas análises de Baudelot-Establet: experimentamos, lendo-as, a sensação de que só existe uma
escolaridade digna desse nome, o SS, os que vão entrar para a Politécnica. Os nossos autores só têm olhos para esses, e os
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esforços que fazem para se debruçar sobre outras formas de escolaridade revelam algo deartificial e de forçado. Tudo o
procura cada vez mais violentamente maltratar, esmagar,
mais, comparado efetivamente com os gloriosos alunos da
Escola Politécnica, só colhe qualificações pejorativas, tudo o mais tem o cariz da equivalência, da equivalência no insucesso. E eis porque, entre as inúmeras críticas que desabam de todos os lados sobre a escola, as de Baudelot-Establet aca-
bam porse juntar estranhamente com as da burguesia dominante: sentindo a concorrência que lhe fazem no mercado de trabalho, mercado do qual, apesar de tudo, deixou de dispor
exclusivamente, ela procura desvalorizar tudo que não corresponda à forma mais tradicional e mais repudiada de ensino; por sua vez também ela dirá que a técnica dos IUT não é um verdadeiro ciclo de carreira escolar — e se recusará a reconhecer-lhe o diploma nas convenções coletivas.
expropriar. A revolução se tornará eternamente impossível se, em decorrência de progressos evidentemente fragmentários, condenados a permanecer ainda muito tempo fragmentários, a classe operária não consolidar as suas possibilidades de coerência e de austeridade, de maneira a manter até o fim
o seu papel de força revolucionária. A menos que só se considerem revolucionários autênticos os desclassificados e os marginais. A escola, desde que não seja o recinto idílico da unidade, não passa de um local de divisão; é também o lugar em
que esta necessidade de união das massas operárias e igualmente das classes médias contra o poder dos monopólios (necessidade inscrita nas ações da nossa época), se pode transformar numa convicção mobilizadora. É precisamente por isso que as classes dominantes sempre foram hostis ao tronco comum, ao prolongamento da escolaridade, a um en-
Numa sociedade dividida em classes, é impossível que a escola consiga contrabalançar o conjunto das condições de vida e as regras de funcionamento social, as regras de exploração social, a ponto de interessar, em massa, os filhos da classe operária na rede SS. Cabe a Baudelot-Establet o mérito de nos terem recordado vigorosamente que a escola, em si,
sino técnico público — e infelizmente tão determinadas, tão desejosas de tomar a dianteira que destruiriam simultaneamente um dos instrumentos indispensáveis a ela...
é incapaz de ultrapassar a divisão da sociedade, da nossa
equivalentes. Não é indiferente às classes exploradas que a
Manteremos, pois, que todas as estruturas escolares, e mesmo as estruturas diferenciadas, segregativas, não são
sociedade, em classes antagônicas. Isto não é mais do que o capitalismo secreto das estruturas escolares segregativas — e elas não conseguem ser abolidas num regime capitalista; que não há complementaridade simples e harmoniosa entre as formas da escolaridade reduzida e as da escolaridade prolongada. Por isso é que a perspectiva revolucionária só pode ser a unificação da escolaridade numa sociedade que tiver vencido os antagonismos de classes. Mas não se conseguirá destruir o regime capitalista sem se reunirem contra ele todas as camadas sociais que ele
elementares ligadas ao liceu, pagas, providas de professores cuidadosamente selecionados — ou que os seis primeiros anos de escolaridade se façam em comum. Pertence a Baudelot-Establet o mérito de acabarem com as ilusões afirmando que a escola primária divide e separa aqueles que estão em dificuldade e que, em massa, pertencem à classe explorada. Mas será só a partir do momento em que estiverem reunidos
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escola municipal esteja ali, de um lado, e do outro, as classes
numa mesma escola que rebentará o escândalo; e contudo, há
uma abertura ao progresso, a um progresso que consiste nu-
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ma possibilidade de luta, numa procura das causas e do mesmo modo um esforço de ultrapassagem, inconcebíveis nos sistemas precedentes. Não é indiferente às classes exploradas que o CEG seja uma instituição à parte ou que comece a ser integrado no conjunto do primeiro ciclo. Pois é só então que podemos lutar para que uns e outros se beneficiem de mestres formados de forma igualmente válida. E menos ainda é indiferente que o técnico curto se pratique no CET ou sob controle patronal direto. Pois neste segundo caso, que oportunidades teremos de conseguir impor conteúdosreais de história ou de economia? Bem sabemos que as estruturas segregativas permanecem segregativas; a unificação, a revolução escolar, a revolução, não será assim tão simples. Mas o conjunto das estruturas segregativas não pode ser considerado como um. setor uniformemente reprovado; não se trata de esquecer, de
minimizar, de adoçar o seu caráter segregativo, mas sim de procurar caso a caso os meios que elas proporcionam para fazer avançar o combate. UI — Humilhação, humildade
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reduzida são controlados pelos assistentes sociais que decidem, por eles, como lhes compete viver. Aqui ocorrem-se as descrições em que Freire nos mostra os pobres simultaneamente convencidos de que lhes cabe a responsabilidade da própria miséria e de que essa miséria é natural, fatal; chegam deste modo ao ponto de aceitar, de assimilar o ponto de vista, os valores dos ricos, a assumir
como seus os valores impostos pelos seus patrões — e que os condenam; resumindo, o dominado, na sua impotência,
identifica-se com o poderoso. A tal ponto que perde a sua linguagem peculiar e original para balbuciar desajeitadamente a linguagem da classe dominante.
Mas é característico de Illich (e na nossa opinião ele atraiçoa assim um dos temas mais válidos de Freire) imputar essencialmente à escola este desencorajamento — a partir das diferenciações que introduz nos cursos escolares e do fiasco total que constituem, nas suas descrições, os ciclos de carreira escolar não-nobres. O que converge com certas análises de BourdieuPasseron afirmando que as crianças matriculadas no CEG só colherão, de todos esses anos passados no colégio, a convic-
llich afirma que os que vêm de ciclos não-nobres, que poucos anos permanecem na escola, acabarão persuadidos da sua inferioridade pessoal em relação aos alunos brilhantes; sentem-se culpados, perdem o respeito por si próprios. E eis os pobres dispostos, toda a sua vida, a aceitar, resignadamente, as frustrações e as chacotas. É preciso dizer-se muito mais; o papel da escola, a função real e oculta que lhe é destinada, é precisamente esta: a partir dos fracassos escolares dos desfavorecidos, mergulhálos na humilhação para que não renunciem a uma atitude de humildade. Em Nova Iorque, os que têm uma escolaridade
ção da sua inaptidão, da sua indignidade; pois a exclusão não se opera por medidas legislativas, brutais, abertamente antidemocráticas, mas continuamente, gradualmente, a partir de insucessos lentamente acumulados, não podendo os interessados compreender as engrenagens do sistema que funciona com uma espécie de habilidade diabólica. Não serão excluídas de imediato as crianças vindas do povo, isto é, só o farão depois de lhes terem inculcado o respeito pela escola e pelos seus veredictos, o respeito pelas instituições educativas, e a partir daí, pelas instituições estabelecidas na sua generalidade. O que é igualmente vantajoso para o conservantismo. A cumplicidade dos próprios interessados ficará assegurada e
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eles poderão ser convencidos, pouco a pouco, de que é preferível desistir de ambições que ultrapassem as suas possibilidades; os resultados escolares comprovam. E nem eles se sentem capazes de..., destinados a... Em todas as suas interpretações, Bourdieu-Passeron vão apresentar como inteiramente ilusórios os conhecimentos dos ciclos diferenciados: no CES, continua a antiga clivagem entre liceu e primário superior, simplesmente sob formas mais sutis e mais fáceis de esconder aos olhos dos
último ano escolar e o respectivo diploma tinham lugar aos
interessados. De fato, abriram-se simplesmente ciclos sem
rancado pela pressão democrática — e nunca concedido espontaneamente pelo poder. Sugerimos que as ideologias educativas são mais complexas, desempenham um papel mais complexo do que se
compromisso onde tudo é encadeado de forma a levar os alunos a uma demissão progressiva. E, de maneira mais genérica, os alunos vindos das classes populares, ao ingressar na seção II (ou CEG) pagam a sua entrada para o liceu à custa de se verem relegados para instituições e carreiras escolares que, como ratoeiras, os atraem com aparências ilusórias de uma homogeneidade de fachada, para os encerrar num destino escolar truncado. Assim se recusam os nossos autores — e com que energia — a considerar como um progresso real o prolongamento da escolaridade, bem como esse começo, esse arremedo de unificação das estruturas escolares. Por certo, a sua
posição é de extrema importância como advertência aos que pretendem levar-nos a interpretar tal começo como um sucesso definitivo, que insistem em nos fazer crer que só falta avançar serenamente por uma estrada uniforme — e que to-
das as crianças já se beneficiam de iguais oportunidades. Mesmo assim é preciso levantara este respeito certo número de problemas.
12 anos; em 1900 nem 2% de jovens de 16 anos fregiientavam a escola; em 1960, 30%. Em 1900, nem 1% de alunos de uma classe com a mesma idade concluía o liceu; em 1960,
chegou-se a 11,5%. As mistificações denunciadas por Bourdieu-Passeron, apesar de tudo, só existem em relação a um certo esboço de democratização. Ou melhor, o problema só adquire clareza e acuidade sobre um fundo de unificação e que, aliás, foi ar-
depreende de Bourdieu-Passeron: são, sem dúvida, larga-
mente mistificadoras e as proclamações igualitárias servem incessantemente para dissimular as desigualdades reais. Mas um progresso que não se deve desfazer é mesmo assim uma realidade quando se passa das ideologias explicitamente desiguais às teorias que se reclamam de igualdade: é a prova de que a classe dominante foi constrangida a recuar e de que novas possibilidades de luta surgiram. O principal mérito de Bourdieu-Passeron, consiste em terem desvendado as aparências enganosas, denunciado a relação entre a origem social e os resultados escolares, estabelecerem que, por exemplo, entre os CEG (ou ciclo III) e o liceu não havia apenas uma mera diversidade de vias, mas uma oposição no recrutamento social; e é, portanto, a partir
desta oposição, que é preciso compreender as desigualdades de resultados escolares e, sobretudo, as desigualdades de
Para começar, parece-nos indispensável comparar este pequeno começo de escola comum que é o CES, através de todas as mistificações que ele comporta, não o ignoramos, com a época, e não decorreu assim tanto tempo, em que o
perspectivas escolares e de inserção profissional: “A probabilidade de concluir o curso do liceu é apenas de 1 para 4 em relação aos alunos inicialmente orientados para o CEG, ao passo que contempla quase 5 em cada 10 dos que entram no liceu”.
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Somos nós, portanto, obrigados a aceitar a identifica-
Preparando uma sociedade em que as crianças deixam
ção do CEG como uma armadilha? O CEG é indubitavel-
de estar submetidas a semelhantes desigualdades na sua vida,
mente um meio de dissimulação, mas não passará disso,
nos seus hábitos e nas suas disponibilidades em relação à escola, temos de lutar continuamente para que o CEG reabsorva o que contém de relegação, desenvolva as suas potencialidades de apoio, impeça o poder de utilizar as diferenças entre seções para bloquear definitivamente todo um conjunto de alunos; procurar graças a que adaptação de métodos e de conteúdos o CEG conseguirá conduzir os seus efetivos ao mesmo estágio do primeiro ciclo liceal, particularmente por-
estará condenado a ser sempre assim? No estado atual da nossa sociedade e das desigualdades culturais, parece-nos
que uma criança do povo teria muito menos probabilidades de completar o curso do liceu começando logo pelo liceu do que se passasse pelo CEG. Neste sentido o CEG pode, num dado momento, proporcionar a ajuda de que ela necessita: professores menos assoberbados que não hesitam em rodear os alunos de mais cuidados, até de solicitude, não apenas
durante as horas de aula mas igualmente nos momentos em que o próprio aluno fica sozinho entregue aos seus deveres e às suas lições. Bourdieu-Passeron reprovam a escola por consagrar e tornar definitivas as desigualdades iniciais ignorando-as pura e simplesmente. Demonstrarão de forma convincente que o sistema de ensino contradiz a justiça real submetendo às mesmas provas e aos mesmos critérios assuntos fundamentalmente desiguais. E esta ação defeituosa só pode resultar em benefício dos que já estão instalados entre os favorecidos. Não introduzirão deste modo, e num sentido positivo, a
noção de ciclos diferenciados, a noção de que, no estado social atual, os ciclos diferenciados podem desempenhar um
papel progressista? As crianças colocadas de início em condições muito diferentes podem necessitar, a fim de chegar ao mesmo ponto, de itinerários diferentes. Chegar ao mesmo ponto, tudo reside nisto, é esse o objetivo da luta — e trata-se, na verdade,
de uma luta revolucionária. Umaluta para instituir um ensino único quanto ao ponto de chegada, mesmo se os meios utilizados para esse fim forem diversificados; um ensino em que a partilha não seja relegação, mas efetivamente apoio e ajuda temporários. 12
que se trata muitas vezes de alunos mais velhos, fator que é em geral considerado um defeito, e que nós devemos trans-
formar numa oportunidade para se estabelecerem outras relações, se utilizarem outros procedimentos. Estes alunos
prosseguem os seus estudos em condições precárias — e que ameaçam entravá-los; mas também são suscetíveis, na medi-
da em que trabalhemos para tal, de favorecer uma tomada de consciência dessas realidades duramente impostas. É especialmente neste sentido que o plano de Langevin-Wallon conserva a sua validade e nos mostra o caminho a ser seguido, naturalmente com as necessárias adaptações, pois, entretanto, o tempo passou, novas perspectivas surgiram e, sobretudo, a concentração que havia permitido a elaboração comum deixou de corresponder ao reajustamento atual. Permanece, porém, essencial, a noção de opções que vão surgindo, sem, todavia, introduzir diferenças de nível entre as
diversas seções; trata-se de opções de ensaio e que nunca são irreversíveis, de tal forma que se adaptam àssituações existentes, não para as congelar, mas pelo contrário, para extrair de cada uma delas as suas possibilidades de evolução. Os reformistas ingênuos não se satisfazem em acreditar que uma vez criado o tronco comum, cada um, ou antes, ca-
da classe social avançará ao mesmo ritmo; bastaria deixa73
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rem-se levar pela maré do progresso contínuo. A classe dominante esforça-se por votar as crianças do povo à segregação, ao gueto; quer conservar as estratificações existentes apontando a cadaclasse o seu tipo de ensino — e então unicamente os privilegiados terão direito à plena formação, a que conduz aos escalões superiores. O sistema estabelecido, estabelecido pela classe dominante, tende a utilizar o CEG como ratoeira. Os docentes progressistas se apoiarão precisamente naquilo que Bourdieu-Passeron nos deram a entender, com a condição de transformar a atmosfera desolada que lhe é inerente numa determinação de luta. Não mais uma descrição estática, impotente: o CEG é uma armadilha; mas apreender, já na nossa sociedade, os aspectos contraditórios do CEG e,
precisamente por isso, os recursos que ele pode proporcionar à nossa intervenção. Se o CEG não passa de uma via de relegação, só nos resta verificar o fato e nos desesperarmos: enquanto se aguarda a revolução nada é real. Se, como a propaganda oficial declara, o CEG constitui uma via semelhante à do liceu,
em que os resultados são piores pela simples razão dos alunos serem menos dotados, que outra atitude senão a de constatarmos e nos desesperarmos? Na realidade, é por o CEG ser simultaneamente relegação e ajuda efetiva que a ação dos docentes progressistas é possível e necessária. Esta luta não é um voto piedoso, utiliza como meios de ação as forças já realmente desencadeadas, precisamente para lhes imprimir um prolongamento revolucionário: de um lado a elevação do grau de cultura e de qualificação dos alunos saídos dos CEG; do outro a ascensão, a
coerência acrescida da ação progressista favorecem, e sobretudo aos jovens das camadas populares, uma aspiração combativa, desde que não sejam abandonados, nem às mistificações ambientais, nem a uma nova forma de fatalismo.
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Que se consiga triunfar parcialmente, muito parcialmente nas condições presentes, só mostra que se tem de travar uma luta autêntica, luta que está bastante longe da vitória — e, todavia, algo começoue há muito tempo; desencadeou-
se um movimento; o que até agora se passou não é um mero logro, um puro zero; teriam deixado envolver-se alunos, professores e pais como simplórios sem defesa. SEGUNDO TEMA: A escola reprodutora e conspiradora Pode-se afirmar que todas as análises anteriores convergem para a noção de escola reprodutora e que os nossos cinco autores, apesar da extrema diferença dos seus pontos de vista, são unânimes nesta afirmação. Segundo Bourdieu-Passeron, dizer que a escola serve a classe dominante não basta; ela não está apenas a serviço da classe dominante, entrega-se de alma e coração a esse serviço, isto é, ao conservantismo: “O sistema de ensino contribui
de maneira insubstituível para perpetuar a estrutura das relações de classe e ao mesmo tempo para a legitimar”. A escola confunde-se com uma instituição de reprodução da cultura legítima e, desta forma, para a ordem estabelecida.
O que mais fregiientemente é apresentado como fracasso do sistema ou pelo menos a sua fraqueza, esses ciclos dos quais se diz que não passam de impasses, esses alunos que recolherão magro proveito de tantas horas de escolaridade, constituem o real significado, definem o papel decisivo da escola: “o preço a pagar para continuar mascarada a relação entre a origem social e os resultados escolares”. Baudelot-Establet empregam naturalmente o mesmo termo quando declaram: “O aparelho escolar contribui para a reprodução das relações de produção capitalista”. A escola é um “aparelho de luta a serviço da burguesia, um instrumento 15
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da ditadura da burguesia”. A sua função efetiva consiste em provocar o fracasso das crianças proletárias para finalmente as sujeitar aos seus postos de exploradas. O papel que a nossa sociedade, as classes dirigentes da
po, mas sim de uma exclusão exterior ao grupo: “É por intermédio da escola que uma maioria é mantida à margem da sociedade”. Resumindo, a escolaridade criou uma nova espécie de pobres, os não-escolarizados, e uma nova espécie de segregação social, a discriminação entre aqueles a quem falta educação e os que se orgulham de a ter recebido. Seríamos levados a afirmar de novo esta verdade evidente: num mundo
nossa sociedade, reservam à escola e a que ela se presta com
perfeita docilidade, é o de eliminar o mais rapidamente possível de todos os ciclos válidos as crianças do povo. Para pôr de pé semelhante projeto, irá pô-las logo de início em situação de desfavor: O ensino da leitura e da escrita no ensino primário desempenha uma função objetiva de divisão visto separar a população escolar em duas partes: a dos que sabem ler e escrever e a dos que não sabem. Isto pode parecer uma verdade de La Palisse, mas é preciso o sentido real desta afirmação: é a escola que transforma esta primeira aprendizagem num obstáculo, que dela se serve para a transformar em obstáculo. E o mais grave é que a escola é igualmente preparada para que estes maus resultados pesem fortemente na escolaridade posterior; eles serão o ponto de partida, a causa principal e sempre presente da grande dicotomia: é sobre esta divisão inicial que se edificará todo o sistema das divisões posteriores. Resumindo, a escola transforma as diferenças dos resultados escolares em divisão de classes. Daí a neces-
sidade de se afirmar que a escola primária divide e divide para sempre; ela gera a divisão, é a principal sede da divisão, divisão entre as redes, entre as classes sociais.
Enfim, Illich salienta que é evidente que a escolaridade é a responsável pela reprodução social e pelas desigualdades: “O sistema da escolaridade obrigatória conduz inevitavelmente a uma segregação no seio da sociedade”. A escola é evocada como a própria causa: “Nos países pobres, a escola gera a inferioridade social”; e a sua responsabilidade é tanto mais dramática quanto é exato que nestes setores não se trata de uma subordinação no seio de um gru76
em que não houvesse escola, não existiriam barreiras entre
os que a fregiientaram e os que a ela não tiveram acesso. Mas o significado real, é que a divisão essencial, nas sociedades modernas, é aquela que separa os homens de acordo com o nível de escolaridade — e, portanto, é a escola o agente dessa separação. Por consegiiência, a escola que se proclama única e unificante constitui uma mistificação, um conluio permanen-
te, faz um duplo jogo: não há qualquer relação entre o que ela afirma fazer e o que realmente faz, a sua ideologia democrática é o oposto da sua existência reprodutora. A sua proclamada função de ensinar a leitura e a escrita é, na prática,
dominada pela sua função social de divisão. O sistema escolar e universitário tem um rendimento fraquíssimo, parece falhar no seu objetivo, muitos o classificam de absurdo. Porém, na realidade, o seu objetivo, para
quem descobrir a maquinação, consiste precisamente em ser absurdo, apresentar um rendimento baixíssimo, precipitar no insucesso grande número de jovens — pois, na realidade, os reprovados situam-se maciçamente no mesmo lado da barreira social: a dos desfavorecidos, segundo a maneira de dizer
de uns, a do proletariado, para os que põem os pontos nosis. E como em todos os conluios, o silêncio, a dissimula-
ção, desempenham um papel capital: manter o mistério sobre as infra-estruturas, só prestar atenção aos resultados obtidos, 17
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ocultar aos olhos dos interessados a relação entre dificuldades escolares e condições de vida. Portanto, como poderiam
se atribui a missão primordial a um fator puramente espiritual, ideal: a educação — outrora apresentada como capaz
eles mobilizar-se contra o silêncio, o nada, o não-ser? À es-
de unificar para além das barreiras declasse, acusada agora de suscitar divisões. É exato, a escola reproduz as classes sociais, divide segundo as classes sociais; mas não se deve
cola persuade da legitimidade da sua exclusão as classes que exclui, impedindo-as de perceber e contestar os princípios em nome dos quais ela as exclui; os veredictos do tribunal
escolar são assim decisivos pelo fato de imporem simultaneamente a condenação e o esquecimento dos considerandos sociais da condenação.
afirmar que toda instituição está incluída — ou a revolução seria inútil. Parece-nos ler nos nossos autores, como primeira esperança, que a escola poderia, só por si, pelo vigor das idéias que difunde, opor-se a todas as outras forças estabelecidas,
O que os nossos autores nos ensinaram, e de forma lancinante, foi a existência de divisões dentro da escola,
divisões que reproduzem divisões sociais — e isto a despeito de todas as esperanças que havíamos sido levados a depositar na escolaridade, que tínhamos por hábito depositar na escolaridade. Como o afirma e muito justamente Hameline, não queremos nem podemos “regressar a uma ingenuidade présociológica”. Compreendemos definitivamente que o poder dos pedagogos não está à altura dos seus projetos ou dos seus sonhos, nem quanto ao curso da história, nem sequer no campo pedagógico. Não existe local preservado e puro, onde se escaparia dos poderes estabelecidos e da luta de classes — a universidade não é esse retiro. Resta ainda assim averiguar qual a responsabilidade que incumbe aqui à própria ação da escola e acreditando nos nossos autores temos repetidamente a impressão de que a escola desempenharia um papel determinante, ou mesmo um papel decisivo na divisão em classes. As classes sociais seriam definidas pela posse ou não de um capital cultural, seriam classes escolares, castas escolares — e esquece-se em parte, ou totalmente, a posse dos meios de produção. De fato, é repisar simplesmente o tema da escola libertadora, mas permanecendo no mesmo idealismo, porque 78
que poderia só por si resgatar a sociedade da exploração e tornar igualitária uma sociedade dividida em classes. E depois esta esperança é frustrada. Mas sabemos que a atmosfera de uma esperança frustrada continua a envolver todos os argumentos pelos quais se procura escapar-lhe. Então o que se faz é inverter a ordem dos fatores, imputando à escola as desigualdades que, sem dúvida, também se processam nela,
mas pelo menos outro tanto fora dela e que de forma alguma lá nasceram. Na verdade, a escola é tanto um efeito como uma cau-
sa. É certo que há nela uma margem de iniciativa e é possível, sobretudo necessário, aumentar essa margem. Mas é
ilusório atribuir-lhe propriamente um desmedido poder de criação, não é a escola que gera as desigualdades, os ciclos diferenciados, malgrado as aparências; não é ela que transforma em incapacidades as situações desfavorecidas, ela registra, e não pode em princípio deixar de registrar, que as situações de exploração em que vivem determinadas classes de crianças implicam para elas dificuldades especiais a suportar, a suportar especialmente na escola. Retomando os exemplos mostrados por Illich: se na Bolívia só 2% da população rural consegue cumprir cinco anos de escola primária, isso significa acima de tudo que a 19
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escola só pode desenvolver-se na medida em que se desen-
gualdades, na reprodução social e nem tampouco, apesar das aparências, na reprodução da ideologia burguesa; esta é sempre alimentada pelas divisões sociais existentes: de outro modo cai-se de novo no idealismo segundo o qual as ideologias são apoiadas e mantidas unicamente com ideologias e não com a materialidade dos fatos da existência coletiva.
volva o conjunto da vida econômica; num país muito pobre,
reduzido à pobreza, mantido na pobreza pela pressão dos imperialismos, a escola não consegue arrancar. A escola é uma superestrutura e não o princípio motor da sociedade. E nos ricos Estados Unidos industrializados, as desigualdades
escolares não saíram da escola, mas da extrema desigualdade salarial e dos modos de vida das etnias. Que os pobres não possam se beneficiar da escola é antes de mais nada um problema de miséria. Quando Illich nos diz: “Na América Latina, as classes dirigentes representam uma minoria inferior a 3% de diplomados com a escola secundária”, tem-se a impressão de que estes privilegiados são dirigentes por terem vindo do liceu, que foi o liceu quem deles fez dirigentes. Na realidade, eles começaram por ser privilegiados, já pertenciam ao grupo dos privilegiados — e foi isso que lhes permitiu fregiientar o liceu e triunfar. Aqui a escola confirma mais privilégios do que os institui, e esses privilégios, na sua incontestável realidade, têm uma relação direta com a posse dos meios de produção — e de exploração. Pode ser desanimador que a escola não seja capaz de suprir os privilégios. Não é o mesmo que acusá-la de os ter provocado.
Deste modo, está, portanto, em jogo, muito menos a
responsabilidade da escola do que a da sociedade — ou antes, é essencial reintegrar a responsabilidade da escola no seu seio e como uma parte das responsabilidades da sociedade. E o mais grave risco que nos fazem correr os nossos autores, é (queiram-no eles ou não) relegar para último plano os mecanismos da exploração capitalista — na medida em que a denúncia da escola tende a atribuir-lhe todas as culpas. Acabase por imputar à escola uma culpa global, geral, a culpa por excelência, que não é a sua — e devido a isso se obscurece, se dissimula, o funcionamento da sociedade no seu todo.
cabe à escola um papel determinante na reprodução de desi-
Separando a contribuição da escola da contribuição da sociedade global, os nossos autores ampliam em proporções fantásticas o papel da escola: fazem surgir a escola como o Inimigo. Um inimigo, portanto, a abater: nenhuma ação parece suscetível de ser conduzida no seio de uma instituição que é apresentada como fundamentalmente viciada. Há, sem dúvida, um caminho que liga Bourdieu-Passeron e BaudelotEstablet a Illich; e a tentação já perceptível em BourdieuPasseron de dar ao termo classes um sentido muito lato e fluido em que a posse do capital cultural substituiria a do capital propriamente dito, essa tentação atinge o seu ponto culminante com Illich quando ele escreve: “Na hierarquia dos capitalistas do ensino, a educação define uma nova pirâmide de classes”. Por isso espanta um pouco ler sob a pena sutil de M. Le Thanh Khoi as seguintes linhas: “O desenvolvimento do en-
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Certamente que a nós mesmos perguntamos sem cessar
que esforço deve empregar a escola para não agravar as dificuldades das crianças exploradas, talvez para as atenuar e as remediar. Mas primeiro é preciso tomar consciência disso e das suas causas; pois negar que as crianças das classes exploradas têm maiores dificuldades do que as outras, sem qualquer comparação com estas, seria pura e simplesmente negar que seja necessária a revolução, negar a luta de classes. Antes de tudo, a escola é constrangida a constatar fracassos cuja
responsabilidade não lhe cabe — e eles foram se desenvolvendo essencialmente fora dela, por vezes antes dela. Não
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sino, longe de contribuir para a democratização, acentua, pelo contrário, as desigualdades sociais. Nos Estados Unidos não existe para os não-brancos qualquer relação significativa entre os anos de estudos suplementares e o rendimento obtido. Com efeito, a discriminação que lhes cria barreiras vai aumentando à medida que o seu nível de instrução sobe”. Tudo se espera do ensino, incluindo que ele leve a sociedade a aceitar os não-brancos em pé de igualdade; ora ela será muito mais reticente em acolher um profissional qualificado do que um operário, pois sente-se mais ameaçada pela concorrência do primeiro do que pela utilização do segundo. Uma vez constatada esta discriminação previsível, dela se conclui que é o desenvolvimento do ensino que acentua as desigualdades sociais. Mas apontou-se verdadeiramente o elo principal? Na realidade, se os nossos autores, e tantos outros, fa-
zem incidir sobre a escola o maior peso de uma crítica que, contudo, se acha integrada numa causa social, somos mesmo
assim induzidos a nos interrogarmos se não seria muito mais fácil e muito menos perigoso, mesmo para o pensamento, verificar as disparidades escolares em vez de atacar as origens da mais-valia. Ilich faz, aliás, uma confidência bem curiosa: “Sem dúvida, este número (que avalia as desigual-
dades na escola) não deixa de estar em relação com odo produto nacional bruto per capita; mas se este último permanece, para a maior parte dos cidadãos de um país, relativamente abstrato, o primeiro suscita, pelo contrário, uma
reação efetiva muito mais profunda, até dolorosa”. Estava-se prestes a reconhecer que a escolarização não é a causa primordial das desigualdades, mas confessa-se quase ingenuamente que a escola constitui um terreno de ataque mais cômodo; é mais fácil daí retirar efeitos imediatos e co-
- movedores. 82
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A escola é um dos momentos, causa e efeito, do pro-
cesso social no seu conjunto. Não queremos de forma alguma subestimar o que os nossos autores nos ensinaram sobre os ciclos diferenciados e as desigualdades escolares, nem,
tampouco, inocentar a nossa escola. Mas precisamente para a revolucionar, é importante situar com precisão a extensão do seu império, avaliar as suas possibilidades positivas ao mesmo tempo que as suas carências: não se dispondo de tais pontos de apoio, a luta para a transformação da escola tornase impossível. Nem é exato que a escola constitua a causa, a causa por excelência que canaliza as crianças do povo para os postos dos explorados, nem se dirá que ela se tenha empenhado até aqui em solucionar os problemas dessas crianças, que tenha desenvolvido toda a sua energia a favor da promoção coletiva dessas mesmas crianças. O que implicaria que ela põe em questão a própria posição dos filhos do proletariado, a posição do proletariado na sociedade capitalista. O nosso problema consiste em levar a escola a participar no combate que trava o proletariado, e nele participar com os seus próprios meios, como ela já o fez, como já começoua fazê-lo; mas trata-se de nele aplicar tanto mais lucidez, tanto mais firmeza quanto necessárias
para que o aumento quantitativo se torne uma revolução qualitativa; e não renunciar, deixar-se afundar apagando tudo quanto ela foi até agora. A escola é, portanto, uma maquinação e uma maquinação só triunfará se permanecer secreta e tramada na sombra. A escola consegue dissimular a função que desempenha. Por isso, o sociólogo é dito revolucionário só pela virtude da sua lucidez, num mundo em que todos mentem e se enganam. Mas o que nos importa aqui é que, não sendo a maquinação descoberta pelas suas vítimas, alunos e professores são joguetes de um sistema que é precisamente o contrário daquilo
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que pretende ser, do que parece ser. A partir daí os nossos autores não confiarão mais nos alunos do que se fiarão nos professores ou na cultura. Os alunos não vivem com uma consciência embrionária, confusa da sua situação — e poderiam então recorrer a este princípio para ir mais longe, rumo a uma ultrapassagem em que, todavia, se reconheceriam; tratariam então de encontrar a verdadeira palavra de ordem das suas lutas já reais, de compreenderem plenamente o que só percebiam em parte — e que, no entanto, pressentiam.
os impeça de situar exatamente aquilo a que chamaremos também a crise da escola: de fato, este mundo arcaico e convencional que eles tão justamente descreveram parece tão irreal às crianças da burguesia como às do proletariado. Sem dúvida, que as primeiras triunfam na escola melhor do que as segundas, particularmente porque estão mais apoiadas pela disciplina familiar e pelas ambições do seu meio. Nota-se, contudo, que as estatísticas habituais têm uma lastimável tendência para calar os fracassos dos socialmente favorecidos: pouco mais da metade das crianças cujos pais exercem profissões liberais consegue o bacharelato.
Aqui é uma consciência inteiramente mistificada, intei-
ramente falseada que lhes é atribuída. Os filhos do proletariado não vêem absolutamente que os enganaram, não têm qualquer perspectiva precisa sobre o sistema escolar a que estão submetidos; os não-privilegiados não têm nenhum privilégio de lucidez, os explorados nem sequer dão conta da exploração. Resumindo, para negar a escola, reduzi-la a um mero papel de reprodução social, foi preciso não apenas esquecerem de averiguar que papel desempenha, na segregação escolar, a estrutura de conjunto da nossa sociedade como, além disso, de negar clarividência, coerência e, finalmente, tanto valor à vida dos alunos como à dos mestres. O que, feitas as
contas, é suficientemente tranqiiilizador em relação ao papel real que a escola interpreta e pode interpretar. TERCEIRO TEMA: A burguesia não confia na escola
Mas estamos, sobretudo, perante uma crise global da
nossa sociedade: sendo os seus atos incessantemente contrários àquilo que ela proclama, já não lhe é possível dizer, e antes de tudo aos alunos, a verdade sobre si mesma, apresentar modelos insinuantes, deixar em aberto possibilidades de
ação. Por isso se refugia, quer numa multiplicidade de exercícios, quer em evocações cujo caráter artificial é notado pelos alunos de todas as categorias. Não são apenas as crianças do proletariado que se aborrecem na escola. Baudelot-Establet sustentam que o universo escolar parece estranho e alheio aos filhos dos operários porque repete, reforça, prolonga e valoriza as condições de existência da família burguesa. Eles imaginam assim uma correspondência entre o universo escolar e o universo dos filhos da burguesia; uma escola montada, maquinada para confortar, fortalecer os filhos da burguesia — e que o conseguirá sem resistência. A realidade parece-nos muito diferente. Por exemplo, os inú-
I— crise da escola atinge também a burguesia A denúncia por Baudelot-Establet desse universo em que o rouxinol ocupa lugar destacado, onde em contrapartida a Frente Popular apenas é mencionada, parece-nos em si irrefutável. Receamos, todavia, que um erro de perspectiva
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meros estudos efetuados em manuais de leitura em uso no primeiro grau demonstram que eles proporcionam às crianças um conjunto de artifícios, onde os burgueses se reconhecem tão mal como os proletários. Seria bom chamar aqui a CF. o nosso livro Pédagogie Progressiste.
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atenção para determinados aspectos e conclusões do livro de Suzanne Mollo: Nas histórias propostas, pouco espaço 0CUpam as grandes cidades; ao evocar-se Paris, é mais uma Paris histórica, uma Paris museu, do que a capital contemporânea e palpitante — e os seus belos bairros não estão melhor representados do que os seus arredores; trata-se, sem dúvida,
otismo, abandonaram a cena sem serem substituídas; a não
de um mundo onde a mãe permanece no lar, onde não cabe a
operária, mas onde, tampouco, há espaço para a engenheira ou para a médica. A máquina está ausente ou torna-se suspeita, mas tanto do ponto de vista do operário como do engenheiro. As compras não se efetuam nem nos supermercados nem nos self-services, mas na mercearia ou na loja, a que os ricos não estão mais habituados do que os pobres. Os edifícios, os bairros residenciais são banidos em proveito da casa individual — o que é evidentemente contrário aos hábitos de todos os cidadãos. O notável estudo de M. Dandurand nos permitirá entender melhor o que está em jogo. Ele comparou os manuais da escola elementar de 1932 aos de 1961: o universo social apresentado às crianças está consideravelmente enfraquecido, tende cada vez mais a reduzir-se à dimensão do lar e do universo da infância. Em 1932, a caridade, a indulgência estendia-se aos pobres e aos deserdados; em 1961, trata-se,
sobretudo, de ser gentil para com os pais, os irmãos, agradarlhes, ajudar na boa harmonia entre os membros da família. Os adultos são essencialmente apresentados num papel familiar e muito menos nas suas tarefas profissionais. Na segiência das descrições, as crianças entretêm-se muito mais frequentemente com jogos, isto é, confinadas numaatividade gratuita, que, apesar de tudo, as marginaliza ou as isola; participam muito menos nas atividades dos adultos. Representam-lhes a sociedade de forma muito mais simples e esquemática; os múltiplos papéis sociais quase não são evo-
ser recorrendo à fantasia: de 1932 a 1961, o espaço destinado às narrativas duplicou, narrativas estas que não comportam moral, que não constituem uma transposição do nosso mundo, nem mantêm uma profunda relação com ele. Ainda aqui, a evasão para um passado idílico e para um mundo rural arcaico constitui um dos componentes essenciais destes livros. Em suma, os modelos degradam-se, inferiorizam-se,
tornam-se insípidos. A ideologia oficial confia muito mais no silêncio quanto ao mundo de hoje do que na proclamação triunfal do que nele se realiza; demite-se perante a exigência primordial de apresentar aos alunos uma imagem coerente da sua vida. Por isso desilude tanto as crianças da burguesia como as do proletariado, não correspondendo melhor às aspirações de umas do que às de outras; e sobre a questão da linguagem, não se encontram nela representadas melhor umas do que outras. E em relação ao conjunto do seu público que a ideologia escolar abre falência. Deste modo a escola não é um objeto da burguesia, o domínio em que a burguesia reinaria gloriosamente; não basta afirmar que ela esbarra com o proletariado, com a resistência proletária; está minada tanto pela
ausência de si própria como das aspirações contemporâneas no seu conjunto. Se o mal atinge, sob formas evidentemente diferentes,
todos os alunos, é desses mesmos alunos que se deve esperar uma tomada de consciência e ações renovadoras; as esperanças de mudança escolar não estão todas concentradas em redor dos ciclos II — o que eliminaria precisamente toda a sua viabilidade. Se a escola satisfizesse a expectativa dos burgueses esmagando com o seu peso os filhos dos proletários, não existiria a mínima possibilidade de melhoria antes do triunfo definitivo do proletariado sobre a burguesia.
cados; as noções de dever, de coragem, de civismo, de patri-
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Ao mesmo tempo, e isto não é de forma alguma contraditório, os melhores aliados dos que pretendem uma revo-
W — A burguesia reconheceu a escola como sua cúmplice?
lução escolar, são os alunos mais agarrados ao atual, os mais
sensíveis e lúcidos ao atual, porque o atual já se lhes impõe como local de combate: as crianças proletárias, incluindo as do ciclo HI.
A escola está a serviço das classes dominantes? E só a seu serviço? Ouvendo de outra maneira: as classes dominantes a consideram como um instrumento a seu serviço? Consideremos o século XIX, o momento em que a burguesia
Um exemplo do papel que desempenha a escola, em atitudes que ela não ditou expressamente, exemplo que ainda nos parece mais característico por respeitar um domínio nitidamente delimitado e que foi inspirado por um autor pouco suspeito de ternura em relação ao mundo escolar. Boltanski demonstra de forma muito clara, a propósito de certas regras de puericultura, como a higiene da mamadeira ou a esterilização da água adicionada ao leite, que o prolongamento da escolaridade implica uma mudança global de atitude. Deixar de regular a nossa conduta pelo hábito, pela tradição, pela familiaridade, pelos diz-se que ou faz-se assim; a escola desenvolveu a noção da existência de regras baseadas no saber e que foram objeto de umaverificação. É assim que se afirma uma atitude crítica: em face das regras,
começa a pôr-se a questão da sua verdade, a questioná-la. O conhecimento racionalizado é uma abertura ao progresso do conhecimento e ao mesmo tempo um encorajamento desse progresso; progresso a que não têm acesso as mães que freguentaram a escola corrida e que se apegam a fórmulas desligadas, entre as quais nem vêem nem procuram ligação, cujos fundamentos desconhecem; interpretam-na no jeito fantasista da analogia sem compreender o porquê, aplicamnas fatalmente à toa. É a escola, quando exerceu a sua ação durante tempo suficiente, que incita a adquirir, com o tempo, conhecimentos que não transmitiu.
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ainda ousava mostrar cruamente o seu jogo. É bem verdade que encontram-se alguns autores que contam com a extensão do ensino para fortalecer as forças conservadoras: por exemplo, Victor Duruy sustenta que as nossas misérias de 1848 provêm, em parte, da ignorância — e, sobretudo, da ignorância dos fatos sociais, da história social; sendo a história simultaneamente pouco conhecida e
resumindo-se ao estudo das batalhas e das intrigas diplomáticas. A Inglaterra, surgia-lhe como um modelo — modelo de estabilidade, e, sobretudo, a instrução dispensada na In-
glaterra, ao mesmo tempo pela sua extensão e pelas direções que tomou: “A Inglaterra conseguiu atravessar calmamente uma crise pavorosa porque os seus operários conheciam tudo quanto os nossos jovens ainda ignoram: os meios tão delicados da produção e da vida econômica”. Mas, incomparavelmente mais numerosos, são os que representam a escola como uma ameaça à sociedade estabelecida e uma aliada das manobras revolucionárias. Entre tantos outros, Jules Simon afirma que, salvo uma pequena elite profissional que será formada em estabelecimentos técnicos, é necessário que a criança do povo entre muito cedo para a oficina: a escola não é o meio que lhe convém, o meio em
que pode formar-se dentro das convicções essenciais, como saber que “a vida é um conjunto de sofrimentos e de prazeres, onde os sofrimentos têm a maior parte” e que a tarefa que lhe caberá, que já cumpre, é “seguramente dolorosa, porque ele é um homem”.
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P. Bourget vê a escola como o local onde se despertam apetites nos jovens que a realidade não permite satisfazer. O que explica esse tema tantas vezes repisado de que acima de tudo a escola ensina a “condenar em bloco o estado social” — e entende o autorser urgente dar o alarme: “é ao sair do liceu que aparece primeiro o deslocado, depois o revolucionário”. Quanto a Gustave Le Bom, cujos livros tiveram grande repercussão, e sobretudo, La Psychologie des Foules, os que concluem o curso dos liceus são na sua essência os recrutas para “o exército da anarquia, da revolução e da desordem, dispostos a todas as destruições e apenas a isso”. E, naturalmente, que todos pensam em Thiers, mas tal-
vez seja vantajoso ler de novo algumas das frases que obtiveram merecida glória — ou uma contra-glória. Sustenta ele que as doutrinas sociais, isto é, a teoria da sociedade estabe-
lecida, são grandes verdades, mas que é impossível fazê-las serem aceitas pelo raciocínio. A única solução é impô-las às massas. Pelo que a escola primária não deve ficar ao alcance de todos, não será obrigatória; paralelamente, os seus programas e as suas ambições devem ser estritamente limitados. E Thiers explica, sobretudo, porque vê nos professores primários não apenas uma ajuda para que se mantenha a ordem social, mas, muito pelo contrário, uma ameaça à ordem soci-
al: socialistas e comunistas igualmente. A virtude de que mais carecem é a da resignação — e é, portanto, essa nãoresignação, para não lhe chamarmos revolta, que se corre o risco de eles inculcarem nos alunos. Da mesma forma Thiers se mostra desolado constatando que “na generalidade, são os operários mais instruídos e que mais ganham os que ao mesmo tempo se mostram mais desregrados nos seus costumes e mais perigosos para a paz pública”. 1
Para sustentar que a escola é o órgão essencial da reprodução social e que trabalha em exclusivo proveito da classe dominante é necessário pensar que a dita classe dominante não deixou de menosprezar os seus próprios interesses, visto não ter cessado de desconfiar da escola e de tudo fazer para lhe diminuir a importância e o papel. Deveria ter tomado a iniciativa de semear o país de numerosos edifícios escolares e esforçar-se por lá conservar o mais prolongadamente que pudesse o maior número possível de ovelhas. Aliás, o movimento operário teria vivido no mais completo erro, que sem interrupção reclamou a escola como um dos instrumentos da sua emancipação; e da Comuna à Frente Popular, o desenvolvimento da escolaridade sempre foi conquistado pelas vitórias da classe operária. O prolongamento do tempo da escolaridade mínima, os começos de um tronco comum foram conseguidos, até arrancados, pela pressão das classes populares, nos momentos em que a sua situação lhes permitia exercerintensa pressão sobre o poder. Os teóricos marxistas não se teriam enganado menos, desde Engels, que declara: “A burguesia pouco tem a esperar e muito a temer da formação intelectual dos operários, até Lenin ao proclamar que de uma vez para sempre concorda com o ministro quando este considera os operários como a pólvora, a sabedoria e a instrução comoa faísca. O ministro está convencido de que se a faísca salta sobre a pólvora, a explosão atingirá acima de tudo o governo”. HI — Descolarização No período contemporâneo, à classe dominante, quando se esforça por conservar a sociedadetal e qual, reproduzir a sociedade, concentra todos os seus esforços a fim de que as
! Intervenção de Thiers na 3º sessão (10/1/1849) da discussão preliminar da Lei Falloux.
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crianças vindas do proletariado fiquem limitadas a uma escolaridade reduzida, a menos escolaridade do que as- outras;
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bem longe de ter em vista o efeito, para ela vantajoso, da escolaridade, esforça-se, na medida do possível, para transformar em não-escola a escola das classes exploradas. É nas zonas pobres, nos bairros pobres, nos arredores operários pobres que as escolas primárias estão mais superlotadas, que os professores têm menor formação, são menos
princípio nega-se a estas classes o direito a professores espe-
estáveis; aí o material é o mais escasso; a influência escolari-
zante sobre a criança encontra-se igualmente diminuída. É aí que são raros os estabelecimentos do segundo grau, muito distanciados, portanto, de vários locais de habitação. Seria
preciso que prosseguissem estudos em internatos as crianças que menos podem suportar essa despesa e que são, aliás, as menos preparadas para enfrentar tal prova; assim aumentam as suas probabilidades de desistência. As instâncias de relegação escolar, os ciclos específicos para a formação da categoria mais explorada do proletariado, são, segundo nos dizem, os ciclos de descolarização, reto-
mando o termo de Illich, mas imprimindo-lhe uma tonalidade contrastante: a descolarização não significa de modo algum o alvo a ser atingido para libertar a juventude, mas sim a realidade das manobras conduzidas pela classe dominante, que espera ter controle sobre os filhos do proletariado diminuindo a influência da escola, e não submetendo-os à sua ação.
Sabe-se que em 1959 a escolaridade obrigatória ia até os 16 anos. Numaprimeira etapa foi então instituído o ciclo HI (classes de transição, classes práticas) cuja característica mais impressionante é o fato de constituir, no interior da escola, um sistema de subescolaridade: as horas de presença são menos numerosas do que nas outras seções, a qualidade do trabalho exigido destes alunos é consideravelmente inferior, tendo o trabalho de casa um lugar absolutamente restrito . — e de nenhuma forma se encarou a possibilidade de o compensar com estudos ou qualquer modo de apoio; em 92
cializados em desenho e em educação física; estas disciplinas
não são, pois, ensinadas — ou o são em condições duvidosas e precárias. Descolarização também em relação aos conhecimentos propostos que muitas vezes se reduzem a noções elementares executadas com materiais e instrumentos escolhidos à sorte. Na idade em que a escola espera, exige bastante dos alunos das seções modernas e quer exercer sobre eles uma influência formadora, o ciclo III é aquele em que a escola abdica, abandona — e logo de início — a sua preparação para um futuro profissional. Espera-se, eles esperam. E isto apesar da dedicação dos professores e de alguns êxitos excepcionais, apesar de terem surgido nessas classes, já o afirmamos, perspectivas pedagógicas fundamentalmente válidas mas que estão bloqueadas pela subescolaridade geral a que estão circunscritas. Depois, à medida que os governos se tornam cada vez mais reacionários, isso mesmo lhes parece insuficiente — e a subescolarização transforma-se em descolarização oficial: a partir de 1973 a Lei Royer organiza a saída da escola para alunos de 15 e por vezes de 14 anos; o ensino dito alternado
os mantém metade do tempo mínimo ligados as classes preparatórias de aprendizagem são dos centros de formação de aprendizes, onde tronal é preponderante. E não se trata de uma
a uma empresa, parte integrante a influência painfluência esco-
larizante, correspondendo a normas e ahábitos escolares; para
estes jovens, são mínimas as possibilidades de adquirir uma qualificação profissional, pois em breve são utilizados dentro dos limites apertados de um trabalho parcelar. Assim, o poder não conta com o aperfeiçoamento proporcionado pela escola, mas sim com a não-admissão nessa mesma escola para obrigar a permanecer na mesma posição a
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fração mais explorada do proletariado: nada é mais evidente em relação ao papel efetivo que desempenha a escolaridade.
igualdade. Mas se a escola ignorasse que constitui um dos locais em que a consciência de classe tem possibilidades de se formar, tomaria tais medidas, tais precauções para limitar esse efeito? A escola não pode pretender-se inocente quanto ao es-
É destacando-a para esse movimento que vai da nãoescolaridade à descolarização que se poderá compreender a reforma Haby e os seus intentos cuidadosamente dissimulados. Com o vocabulário prudente e compassado que a caracteriza, ela avança com a ruína organizando e ampliando as formas de perda escolar: entre as opções figuram os “bancos de ensaio, com características pré-profissionais, a que se juntarão estágios de iniciação no 3º ano, de pré-aprendizagem no 4º ano e comunicam-nos que eles serão realizados em liceus de ensino profissional, em centros de formação de aprendizes, em empresas etc.” E principalmente: “Certos alunos, decididos muito ce-
do a seguir determinada profissão, poderão escolher apenas um único tipo de bancos de ensaio e receber uma formação complementar fora do estabelecimento de ensino sob a forma de estágios prolongados. O esquema de organização poderá ser o de uma formação alternada, organizada por convenção entre o estabelecimento de ensino e as empresas interessadas”. Enfim, o CAP podeser igualmente conseguido pela via da aprendizagem,isto é, em contato direto com as realidades
da profissão. Visivelmente, o ministro prefere que toda uma categoria de crianças — e não é difícil adivinhar qual — permaneça o menos tempo que puder na instituição escolar. Quanto à educação que receberão nessas famosas empresas, nada de utopias: previnem-nos de que a formação que conduz ao CAP não se afastaria muito das necessidades, dos
métodos e dificuldades imediatas da profissão. Assim se justificaria que a escola se ocupasse o mínimo com elas e as entregasse o mais possível ao patronato. Sem dúvida, não é a escola a casa fraterna onde crian-
cândalo dos ciclos HI: são estes, ousamos afirmar, os forne-
cedores de profissionais especializados e de desempregados, recrutados de forma quase exclusiva entre os filhos de profissionais especializados e de desempregados — e o plano estabeleceu que eram necessários 20 a 25% por ano. É a uma distribuição deste gênero que a escola está acorrentada. Mas em relação a estes alunos, a responsabilidade da escola, e por
que não empregar este termo? a culpa da escola, consiste em haver consentido que a demitissem do seu papel, em ter renunciado à sua ação, em os deixar fora da sua esfera de ação,
em ter consentido que lhe impusessem formas de descolarização; peca por deficiência, por falta, por ausência mais ou menos acentuada. O que não autoriza seja como for a apresentá-la como uma instância que conduz, pela própria força, pela própria iniciativa específica, os filhos do proletariado a uma resignação humilhadae servil. CONCLUSÃO DA PRIMEIRA PARTE Depois de termos acompanhado os nossos autores nas suas diligências, não resistimos ao desejo de reunir numa
perspectiva de conjunto as idéias assim avocadas. Sentimos perfeitamente que iremos repetir-nos — mas são hoje tantos os que repetem o contrário... I — Os ciclos, divisão da sociedade em classes Na nossa sociedade, os ciclos diferenciados da carreira
ças de todas as esferas sociais se encontrariam em pé de
escolar são a projeção, no plano escolar, da divisão da socie-
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dade em classes. A burguesia nega a existência dos ciclos como instrumento de segregação — da mesma maneira que sempre negou a existência de classes e da luta de classes. Os ciclos diferenciados e segregativos da escola, já não serão suprimidos com boas palavras, proclamações solenes, algumas disposições regulamentares que não acabarão com as classes. Se pretendem suprimir os ciclos sem abolir a divisão da sociedade em classes, a verdade é que eles se reconstrurrão de forma mais encoberta: seções fortes e seções fracas, seções apuradas etc. O que há de negativo na escola culmina na separação em ciclos, isto é, o ensino como segregação. Os ciclos não correspondem ao insucesso de alguns indivíduos, mas sim a estruturas destinadas a eliminar os alunos vindos do povo. É bem verdade que o ciclo II reproduz os proletários, constitui o sistema que lhes é peculiar e reservado. A promoção individual, um ou outro que escapa, que se defende, não é nisto por certo que está a solução. O ensino da presente sociedade é malthusiano e segregativo, não apenas pelas desigualdades do destino escolar em que tanto insistimos, não apenas porque um terço de uma classe de alunos da mesma idade deixa todos os anos a escola sem profissão real, mas, mais fundamentalmente ainda, porque ele constitui uma adaptação às necessidades imediatas do patronato, dos monopólios, ao mesmo tempo que não cessam de proclamar que ele visa o desabrochar do indivíduo. Lembremos uma vez mais que a Comissão da Mão-deObra do VI Plano reclama comoreserva de população ativa: 24% de profissionais especializados e de mão-de-obra nãoqualificada; 43% de operários qualificados e de empregados; 33% de técnicos. Ao que a Comissão Escolar responde em unissono prevendo que 25% dos alunos deixarão a escola aos 16 anos, o mais tardar; 40% no fim do segundociclo, isto é, pelos 18 anos — e queficarão, portanto, 35% para alimentar
o ciclo completo e o superior. Efetivamente, em 1970-1971, o ciclo HI e a conclusão de estudos reuniram 25% dos efetiNuma sociedade dividida em classes, em que tudo depende do lucro, numa sociedade cada vez mais dominada por alguns grandes monopólios rotulados pudicamente de multinacionais para indicar que, na realidade, não pertencem a qualquer nação, o ensino envereda por formações utilitárias, curtas, diretamente utilizáveis e rentáveis na empresa — e baratas; o patronato pondera sempre a fm de diminuir as despesas da educação. Uma especialização restrita, uma força de trabalho parcelar, reduzida à perícia indispensável. A escola transforma-se numa máquina fornecedora de profissionais especializados, de empregados subalternos. O capitalismo exige que a escola lhe forme trabalhadores que se saibam vulneráveis; espera-se, devido à sua formação restrita, que não venham a revelar-se demasiado exigentes em matéria de salários, proporcionam-lhes o mínimo possível de instrumentos intelectuais que os ajudem a questionar o sistema — a começar pelos que nascem diretamente da qualificação dentro do trabalho. Resumindo, tanto a quantidade como a qualidade da mão-de-obra formada são determinadas pelos interesses a curto prazo dos monopólios. Evidentemente que os filhos do proletariado é que são reprovados, porém, o capitalismo torna de fato estas reprovações necessárias: se está prevista tal percentagem de mãode-obra sem qualificação, torna-se indispensável que as classes do ciclo III recrutem essa percentagem. Portanto, a escola primária deve segregar essa percentagem de alunos suficientemente fracos e suficientemente atrasados para justificar a sua passagem para estas classes. Papel seletivo, papel segregativo da nossa escola, seleção numa base social, seleção que vai eliminar a imensa maioria dos filhos de operários e de camponeses.
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vos e o ciclo II, 37%.
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Assim, sob a pressão do capitalismo monopolista de Estado, na medida em que ela não pode escapar à pressão do capitalismo monopolista de Estado, a escola acaba por participar na manutenção das relações de classe; reflete as divisões sociais existentes, tende a perpetuá-las, até a acentuálas; da mesma forma como tende a perpetuar o poderda classe dominante. A escola não é capaz, só com o seu esforço, de
separar a orientação que impõe aos alunos das forças que não param de provocar a segregação. Porisso as fórmulas frequentemente citadas e que condensam o peso da classe dominante sobre a escola: “para tal sociedade, tal escola; para uma sociedade não-igualitária,
uma escola não-igualitária; para uma sociedade em crise, uma escola em crise; em suma, a sociedade de classe gera
uma escola de classe”. Semelhante escola visa a simples reprodução da força de trabalho. É uma esperança para o poder, um sonho de imobilismo.
Não se negará todos os casos em que a escola difunde a ideologia burguesa ou propõe uma cultura de diversão, uma cultura empobrecida — e também o caso mais insidioso em que, sob a influência da ideologia burguesa, a escola opera escolhas, institui critérios que só podem desfavorecer os desfavorecidos, por exemplo no quese refere à bela linguagem. E é ainda deixando-se arrastar pela ideologia oficial que a “escola tende a excluir dos seus limites a experiência da criança em geral, a riqueza da experiência das crianças do povo em especial. Na medida em que não resiste à pressão da ideologia dominante, a escola desliza para o autoritarismo; a palavra do professor não aceita discussão, o bom aluno é o aluno submisso — e deste modo o preparam para a passividade e para a dependência. O mestre converte-se na prefiguração do contramestre.
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II — Asforças positivas já presentes na escola
Mas a escola é também, e ao mesmo tempo, outra coisa — e precisamente o contrário: para começaré a necessidade de uma qualificação capaz de responder ao progresso técnico, à revolução técnica, às constantes modificações técnicas. Tarefas mais intelectuais de regulamentação, controle, manutenção, programação; e para muitos outros trabalhos, complexidade do funcionamento das máquinas, precisão indispensável, responsabilidade maior.
Daqui se conclui que o mundo atual não só proporciona apoio a um aumento da escolaridade, como o exige. Para fazer face às atuais exigências, impõe-se uma formação de nível sempre mais elevado, uma formação geral polivalente dirigida a um conjunto cada vez mais vasto de trabalhadores. E aí assenta a base objetiva das forças progressistas que se exercem sobre a escola. As reivindicações dos alunos transformaram-se numa das forças motoras da escola — e igualmente as reivindicações dos pais: umas e outras têm de ultrapassar o estágio de utopia anarquizante para tomarem forma em organizações conscientes e responsáveis. É, na verdade, o que está a ponto
de se operar — e o acesso dascrianças de origem mais popular ao ensino secundário e ao técnico desempenhou aqui um papel decisivo. O acordo entre as organizações de pais, de mestres, de alunos e os reagrupamentos progressistas, sem-
pre foi considerado impossível pelos nossos autores, mas, na realidade, já começa a tomar corpo e constitui um dos nossos motivos de esperança. No projeto Haby, nota-se que o capítulo consagrado à regulamentação não menciona nem sindicatos, nem qualquer organização representativa. O objeto da regulamentação, é o indivíduo isolado, desarmado: sonho do poder, mas que já não corresponde ao estado atual das forças.
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Enfim, a própria cultura, a cultura dispensada pela escola, está relacionada com a verdade e a luta por um mundo
livre expressão pelos alunos do que lhes diz respeito e lhes interessa, instituição de assembléias gerais em que todos os participantes possam exporo seu ponto de vista e assumiras suas responsabilidades. Ão mesmo tempo tudo isto é falseado e muitas vezes anulado pela segregação que lhes impõem, pela ausência de perspectivas e de escolha de carreiras — aquilo que designamos como descolarização.
mais verdadeiro; sabedoria, métodos de pensamento: a cultu-
ra é um dos fatores que pode impedir a escola de pender para as classes dominantes — com a condição de que a pressão e a experiência vivida pelas massas sejam um obstáculo ao disfarce ou à insignificância do que for proposto. É a pressão destas forças sobre a escola quea tira da ação da classe dominante; é por ela que os mestres se sentirão apoiados, escorados, que ganharão confiança — numa profissão em que o risco constante é um certo tipo de solidão, e, portanto, a tentação de se refugiar na abstenção ou na amizade exclusiva com os notáveis. São as reivindicações das massas que ajudarão os docentes, simultaneamente, a contestar este funcionamento da escola e a manter a sua confiança nela. Em decorrência delas tomarão consciência do laço entre as condições do progresso escolar e a exigência do progresso social. Não é o professor que assume o papel do patrão, mas sim o poder e por conseguinte as estruturas sociais impostas pelo poder. O mestre pode manter-se a uma distância maior ou menor do poder. Portanto, para se imprimir à escola um sentido progressista — e a tarefa primordial é aqui a oposição à compartimentação — temos pontos de apoio reais, pontos de apoio em condições de sustentar a nossa luta, desde que esta seja suficientemente intensa para neles se escorar. Aqui, como na luta social, são os desfavorecidos que
precipitam a situação — com a condição de prolongarmos, intensificarmos, organizarmos os antagonismos: são os alunos do ciclo WI que destroem o sistema; o seu fracasso arrasta o fracasso, o malogro da nossa escola; e a organização que
É pelo mesmo movimento que os trabalhadores avançam e fazem a escola avançar. São os trabalhadores que reivindicam, para os seus filhos, uma escola realmente aberta a
todos; a sensibilidade às injustiças da escola torna-se mais aguda paralelamente com a convicção de que é possível uma outra sociedade. São os trabalhadores que reivindicam a compreensão e o domínio daquilo que executam. Aspiram dominara técnica em lugarde se deixar escravizar por ela — e pressentem que uma formação mais avançada os ajudará: a educação como meio de defesa contra o trabalho parcelar e desqualificado, visto que presentemente a ciência passou a ser força produtiva direta. Os trabalhadores não ignoram que um aumento cultural, e também um maior domínio dos instrumentos e técnicas
da cultura, lhes permitirão compreender melhor o mundo e lutar com maioreficácia: é preciso saberler muito bem a fim de poder explicar aos companheiros o que se leu, e atraí-los, convencê-los. NI — A escola como local de lutas
se procura criar para eles no meio de múltiplas tentativas, abre assim mesmo uma via autêntica: trabalho de grupo, papel representado pela atualidade, esforço para dar lugar à
Nenhum esforço pedagógico pode, na nossa sociedade, suprimir os ciclos e instaurar a igualdade. Mas, paralelamente, pode-se dizer que nenhuma das reivindicações operárias fundamentais pode triunfar dentro do capitalismo. No entan-
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to, em um como em outro caso, é essencial lutar: a luta é
ção e a luta contra a exploração. A escola é, simultaneamen-
real, possível, necessária; lutar para dispor de professores
te, reprodução das estruturas existentes, correia de transmissão da ideologia oficial, domesticação — mas também ameaça à ordem estabelecida e possibilidade de libertação. O seu aspecto reprodutivo não a reduz a zero: pelo contrário,
formados, classes pouco numerosas, não mais do que... alu-
nos porclasse, lutar para desmistificar as matérias transmitidas, é ao mesmo tempo denunciar a incompatibilidade destes objetivos com o poder atual e obter de imediato, sem qualquer dúvida, alguns êxitos. Na escola como no mundo operá-
combate que já foi desencadeado e que é preciso continuar. É
rio, os êxitos parciais são condições revolucionárias do
esta dualidade, característica da luta de classes, queinstitui a
êxito, pois são elas que consolidam a combatividade. E se deixassem delutar...
possibilidade objetiva de luta. A fórmula utilizada por Brossard parece-nos justíssima
marca o tipo de combate a sertravado, a possibilidade desse
A escola é um local de luta, a arena em que se defron-
quando ele declara que a escola transmite uma competência,
tam forças contraditórias — e isto porque já faz parte da es-
mas dentro de limites. De limites, e não de um caminho to-
sência do capitalismo ser contraditório, agir contra ele
talmente aberrante, totalmente desviado; o que prevê a ma-
próprio, criar os seus próprios coveiros. O patronato prefere sacrificar a qualificação a assumir as despesas inerentes e, sobretudo, os riscos sociais; o patronato prefere moderar a ciência. A partir do que a seleção escolar assim instituída não só é injusta como é até contrária às necessidades da produção e trava ao mesmo tempo a extensão e a satisfação das neces-
neira de agir para acabar com eles. Entende-se pordialética que cada contrário é penetrado pelo seu contrário, correndo, portanto, o risco constante de se perder arrastado por ele, mas podendo igualmente encontrar nesse contrário o estímulo para a luta. A escola nem é um local de vitória, de libertação já assegurada, nem o órgão votado à repressão, o instrumento essencial da reprodução; segundo as relações de
sidades, portanto, da escolha de carreiras.
Segundo os trabalhos do Centro de Estudos e de Investigações sobre as qualificações, há, para o período de 1969 a 1975, excedentes de mão-de-obra nos dois níveis de mais baixa formação e déficit, em relação à procura, no nível do curso liceal e acima dele. O que significa que a política escolar do capital está em contradição com as próprias necessidades da produção capitalista — e esta contradição é essencial, pois reflete o receio constante de uma sociedade pouco segura de si enfrentar indivíduos demasiado formados, demasiado
lúcidos. À escola não é o feudo da classe dominante; ela é ter-
força, acompanhando o momento histórico, ela é uma insta-
bilidade mais ou menos aberta à nossa ação.
Um exemplo bem simples de uma ação serrealizada. Baudelot-Establet constatam: “A definição de uma idade teórica ou normal é um meio (sublinhado no texto) para res-
saltar o fator do atraso, para organizar institucionalmente as suas consegiiências práticas: a eliminação das crianças vindas do povo”. Em um sentido, estamos de acordo com os autores: o critério de idade desfavorece as crianças desfavorecidas, e de
reno de luta entre a classe dominante e a classe explorada; ela é o terreno em que se defrontam as forças do progresso e as forças conservadoras. O que lá se passa reflete a explora-
maneira bem mais incisiva ainda as que são de origem estrangeira; a decisiva importância prestada à idade é um meio de que a escola burguesa pode servir-se, de que efeti-
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vamente se serve, para excluir dos ciclos nobres as crianças
tal, da luta contra a divisão em classes. Certamente, não cabe
do proletariado. Não basta afirmar que a escolha deste critério encerra grande parte de arbitrariedade e que seria absolutamente possível admitir no 6º moderno alunos com dois anos de atraso, em lugar de os encaminhar de forma quase automática para os ciclos de transição. Baudelot-Establet têm razão ao denunciar nessa arbitrariedade, naquilo que se afigura técnica e pedagogicamente arbitrário, um alcance político. Foi a escola que escolheu esse critério. cabe-lhe responsabilidade e neste sentido é legitimamente acusada de aparar o jogo das classes dirigentes. Mas a escola também comporta forças contrárias e seria usar de parcialidade não as tomar em conta: já são numerosos os professores que chegaram à conclusão de que determinado tipo de alunos levava mais anos do que os outros a chegar ao fim (não por estar marcado por um ritmo diferente, mas porque vive em condições diferentes e desfavoráveis) embora fosse suficientemente capaz de o atingir. E mesmo que a presença de crianças mais velhas na classe, ao
à pedagogia fazer a Revolução; com toda certeza só haverá uma sã pedagogia numa sociedade sã — e a nossa não o é. Não apenas por esta razão evidente de que um poder conservador sempre se oporá a uma escola progressista e de que não é a escola quefará recuar o poder. Mas também porque o nível de democratização do ensino não pode notoriamente ultrapassar o nível de democracia do Estado: uma escola progressista tem necessidade de ser apoiada pelo conjunto de uma sociedade progressista. É na medida em que as idéias progressistas vão conquistando largas camadas da população, em que as forças progressistas se vão afirmando e impondo, que a escola pode, efetivamente, renovar-se sem chocar a imensa maioria dos pais. Uma escola progressista apoiada por pais progressistas, isso não só significa que as condições de existência e de tra-
lado de determinadas dificuldades evidentes, se tornasse fon-
te de diversificações e constituísse uma espécie de teclado mais extenso. Também os pais destes alunos perceberam que havia algo de fictício na barreira de idades que lhes impunham. Existe, pois, todo um somatório de forças em que podemos basear uma ação positiva — e que se tornariam imensamente mais poderosas se enquadradas num regime de democracia avançada em que a gestão escolar fosse tripartida (poder público, pais e alunos) e em que a expansão econômica exigisse o desenvolvimento da qualificação de cada um, mesmo dos que demoram um pouco mais para aprender a ler.
balho desses pais mudaram, como também que eles têm
acesso a novos papéis, que participam realmente na gestão das suas empresas; pois aí reside uma das “fontes da educação”, como muito acertadamente diz Juquin. E acrescentaremos que os pais assim formados estarão mais aptos a educar os seus filhos e a apoiar os esforços de uma escola reconstruída para educar os seus filhos. Há, todavia, uma
relação entre a margem de autonomia de um operário dentro da sua empresa, a margem de autonomia que ele supõe ter de conceder aofilho e a margem de autonomia de que esse filho dispõe perante o professor. IV — Autonomia do ensino pedagógico?
sociais no seu conjunto, da luta das classes na sociedade to-
Só o socialismo resolverá o problema — e como etapa transitória de um conjunto de medidas simultaneamente escolares e sociais que já caminham para uma democracia avançada.
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A luta pela escola nunca pode estar separada das lutas
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Mas, mesmo no capitalismo, nem tudo é equivalente,
várias políticas são possíveis em relação à universidade — e
seria insensato considerar as diferenças como desprezíveis: uma política reacionária pode agravar, endurecer a diferenciação entre os ciclos, tornar cada vez mais estéreis os ciclos
em desvantagem; ou, ao contrário, embora a luta progressista não consiga tornar a escola única e unida — e isto é uma utopia na nossa sociedade — pode, pelo menos, diminuir a distância entre os ciclos, valorizar e até vivificar os ciclos diferenciados e permitir aos alunos de cada ciclo o acesso,
apesar de tudo, a mais lucidez e combatividade. As modalidades segundo as quais funciona a escola são o que está em evidência numa batalha política constante. Repetiremos que a solução da crise da pedagogia não virá da pedagogia; mas acrescentaremos que também não há avanço pedagógico sem progresso no próprio seio da escola, lutas pedagógicas, sindicais e, finalmente, também políticas.
Depois de termos apreendido o entremear do pedagógico no social, falta-nos agora encontrar a autonomia relativa do pedagógico às determinações sócio-econômicas, frisando bem que esta autonomia é muito menos um dado a ser constatado do que uma conquista a ser realizada. Diz Hameline que a educação é um empreendimento precário, um compromisso entre a função crítica e a função conformante, para não dizer conformista. Isto é certo desde que se repita incessantemente que esta autonomia relativa tem de ser mantida pela luta — e que esta luta pela autonomia do ensino pedagógico só pode tornar-se realidade se participar no conjunto das lutas das classes exploradas. Afirmar que a escola em relação à sociedade tem margem de autonomia, é de certo modo inocentar os docentes e pô-los ao mesmo tempo perante as suas responsabilidades: se o ensino é um ensino de inaptos, é porque não se soube 106
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aproveitar as possibilidades de progresso que apesar de tudo existem, e já no seio do capitalismo. A escola tem também a sua luta, não está inteiramente
entravada pela necessidade social; não lhe assiste o direito nem de se submeter, nem de se desculpar inteiramente invo-
cando a necessidade social. Há uma frente pedagógica que tem a sua especificidade. Se não a mantivermos, quem o fará? Existe o risco, dos docentes descambarem na política, de menosprezarem o ensino pedagógico em proveito do compromisso unicamente político. Para preparar uma pedagogia individualizada, preocupada com o progresso de cada um e, sobretudo, dos que têm dificuldade em progredir, é necessário, sem dúvida, contar
com o apoio de uma configuração social favorável; mas é preciso organizar os princípios pedagógicos da individualização. O docente dispõe ainda assim de uma margem de manobra, pode ou não concentrar a sua atenção nos bons e deixar os outros de lado, pode ou não valorizar mais certos tipos de sutilezas em que pressente perfeitamente que interessarão, que favorecerão. Esta margem de manobra realmente utilizada, paralelamente com os limites que cedo a restringem, é uma das vias mais seguras de facultar aos docentes uma tomada de posição global. À instituição escolar não está povoada de fantasmas inconscientes, não é apenas a máscara dos mecanismos sócioeconômicos, tem também a sua vida própria. A autonomia do ensino pedagógico não é o ajustamento de tal processo, de tal objetivo parcial, mas a busca de uma pedagogia progressista e o esforço para deixar avançar, num dado momento, tendo em conta as forças em presença, tudo quanto possa avançar de pedagogia progressista. Não podemoslargar os dois extremos da cadeia: revolucionar o ensino, o que implica revolução social — e dar 107
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aulas todas as manhãs, tentando apesar de tudo melhorá-las e
Pode-se hoje fazer mais do que denunciar, recusar? Por um lado, o Estado não deixará desenvolver uma escola que possa ameaçá-lo diretamente; e por outro, comandos que iriam dizer aos alunos — a começar pelos do ciclo HI —
que elas apóiem melhor os mais necessitados. É esta dualidade que caracteriza o ensino e que, em relação a cada professor, psicologicamente falando, cria uma situação tão difícil de agiientar. Por exemplo, os esforços de uma pedagogia de apoio, de compensação a favor das crianças em dificuldade — e sabemos agora perfeitamente em que lado da sociedade, e maciçamente, elas se recrutam. Se a pedagogia de compensação não se unir a um movimento capaz de também compensar, modificar as condições de vida destas crianças, as carreiras ao seu alcance,a situação e as perspectivas familiares, é evidente que essa pedagogia não passará de letra morta ou até nem chegará a existir. Torna-se suspeita de má fé a prática de certas pedagogias de compensação, nomeadamente nos Estados Unidos; os insucessos do que foi assim empreendido limitando-se ao simples escolar e limitando, aliás, o esforço escolar a medidas parciais, que nem sequer igualava as escolas dos pobres e as dos ricos. Esses insucessos servem, portanto, aos que pretendem negar à escola qualquer
possibilidade de realizar, antes da Revolução, qualquer pro-. gresso. O problema dos ciclos III é o problema dos profissionais especializados: o seu número, a sua sorte, o seu futuro, o seu desaparecimento. Mas ao mesmo tempo essas crianças são umarealidade, aguardam, e aguardam também alguma coisa de nós.
Vamos dizer-lhes que aos 15 anos a sua vida e as suas esperanças já estão mortas? Vamos aconselhá-las a atear fogo às estruturas? Mesmo assim, dentro da escola, dia a dia, obstinadamen-
te, alguma coisa se passa — e que pode aumentar a confusão destes alunos, que pode também lhes abrir uma perspectiva.
“vocês são explorados, revoltem-se, não aceitem mais este
trabalho”, redundariam num bloqueio em que até aquilo que os alunos poderiam esperar da escola se transformaria em fumaça. Tampouco no mundo do trabalho a atitude revolucionária consiste em impedir o funcionamento da fábrica. A única solução válida, o devido equilíbrio das forças, é a união, a ação comum de todos que concordem em ultrapassar uma primeira etapa e chegar a um estágio intermediário da democracia avançada; e é a própria expressão desta democracia avançada que convencerá a grande maioria dos franceses da necessidade de ir mais longe, mais longe rumo ao socialismo. Em relação à escola, significa isto que a luta contra a segregação social é a questão prioritária. Exigirá medidas imediatas, decisivas, simultaneamente com um esforço prolongado. O que significa que esta luta já está travada, embora o resultado final só seja atingido à custa das transformações sociais essenciais. V — Voltando uma vez mais aos nossos autores
Os nossos autores tiveram o mérito essencial de denunciar a função reprodutora da escola. O seu êxito prova como a escola é classificada de opressiva tanto pelos alunos quanto pelos professores, mas fizeram-no numa tal perspectiva que vedam a possibilidade de luta pelo avanço da escola; Illich de forma definitiva; Baudelot-Establet, e também, embora menos abertamente, Bourdieu-Passeron, até à revolução. Há
muito de justo, e num sentido tudo é justo no que afirmam os nossos autores acerca do papel segregativo da escola; mas 108
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tudo é falso, tudo é falseado pela atmosfera de impotência, de abandono que envolve as análises; tendo aprendido bas-
A burguesia pode muitíssimo bem recuperar alguns fragmentos marxistas e até a noção de que a escola é uma escola de classes, com a condição de deformar o marxismo num senso fatalista e numa visão apocalíptica: “até agora nada serviu para nada, até agora a escola fez mais mal do que bem”. Por certo, um dia virá a revolução e tudo sofrerá uma
tante com os nossos autores, estamos, todavia, insatisfeitos
com aquilo que nos ensinaram. Descrevem a escola inteiramente nas mãos da burguesia. Os professores se reduziriam a meros agentes de execução de uma gigantesca manobra de divisa, de exploração: eles são nada mais nada menos — o seu papel não admitiria outra dimensão — do que cães de guarda da burguesia. A classe operária aparece como se nuncativesse tido a mínima força de resistência, sem nunca ter conseguido pesar no sistema, sem nuncater obtido qualquer coisa de real. To-
das as ações precedentes se reduzem a zero. Quando a luta de classes é desprezada, desaparece a confiança nas massas. Desmobilização, desmoralização, culpabilização dos docentes: “sou um inapto, não passo de um inapto”. A escola fica presa na irrevogabilidade das determinações sociológicas. Fazem-nos depender de uma espécie de predestinação pelo social: o insucesso do pobre parece normal, garantido, evidente; e todos os filhos da burguesia são votados ao êxito,
pois todos eles têm pais que os levam ao museu, que se interessam pelo trabalho escolar, que sabem comunicar à sua progenitura esse interesse que eles próprios sentem. A criança burguesa não tem nenhum problema. É a biblioteca corde-rosa e a Condessa de Ségur, sem dúvida, invertidas, visto
que o bom aluno só triunfará para melhor explorar os seus semelhantes. Mas continua a ser uma biblioteca cor-de-rosa. Declarando nulo tudo quanto se passa nas escolas e inteiramente ineficazes as reformas escolares operadas, atribuise ao patronato uma perfeita e boa consciência: por que seriam as instituições patronais ou a aprendizagem direta ou a entrada imediata para o trabalho piores do que a escola assim evocada?
HO
"metamorfose. Entretanto, o marxismo pode estar em moda
na alta sociedade com a condição de ser apresentado como impossível, apenas propondo o impossível: tudo isso seria muitíssimo belo, mas tão improvável, tão remoto, tão pouco
relacionado com a vida tal como ela se apresenta no dia a dia! Isto não é mais do que tentar separar o marxismo da luta de classes. Aliás, Marx havia explicado perfeitamente que não descobrira a existência de classes, já afirmada por vários historiadores burgueses, mas sim a luta de classes e como ela
abre caminho para uma sociedade sem classes. Há necessidade de se revolucionar a sociedade atual, a
escola atual; o que não significa que tudo nelas seja destruído. A revolução não significa voltar ao zero, como se fosse possível começar por criar uma nova raça de homens puros; é levar até ao paroxismo os elementos positivos hoje em ação. Chamamos comunismo ao movimento real que anule o Estado atual; as condições deste movimento resultam de premissas presentemente existentes. E é por este movimento já ter marcado pontos que se pode incrementá-lo até sucessos decisivos. De nossa parte, apelamos para uma luta em duas frentes: contra os que pensam e, sobretudo, proclamam, que a
democratização do ensino está em vias de se realizar de maneira simples e lisa, sem esforço e sem choque, dos que não percebem de quanto as melhorias são parciais, fragmentárias,
incompletas, constantemente postas em questão pelas condições de vida globais e pelas regras de funcionamento da nossa 11
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sociedade. Não cairemos na ilusão reformista confiante em que uma série insensível de modificações pode conduzir ao alvo. Tem razão Juquin ao afirmar que a escola não se modificará com pequenas reformas parciais: trata-se de operar “uma ruptura e de tornar assim possível uma outra lógica”. Mas, igualmente contra aqueles que afirmam a inexistência de qualquer progresso, visto evidentemente, não se ter suprimido a situação oposta das classes exploradas das classes dominantes, contra os que negam toda validade à escola enquanto subsistirem as estruturas da sociedade atual, Nem sequer se porá a questão de saber como, em que condições, através de que modalidades, podem as vanguardas, evidentemente limitadas e comportando até planos mistificativos
Aí reside a base objetiva da nossa luta, com a condição de
(pensamos no embrião do tronco comum), contribuir, toda-
via, para uma tomada de consciência progressista. Desprezando-se o lado positivo da escola, os meios de luta serão
ignorados; não se pode pensar em desenvolver forças libertadoras que, de antemão, se declara estarem totalmente au-
sentes da escola. Nos dois casos, a luta pela escola, a luta de classes na escola, é excluída.
sabermos organizar essas forças e uni-las a todas as outras. É raro, atualmente, encontrar um autor que pregue abertamente uma escola não-unificadora e que justifique a divisão do sistema escolar em seções logo de início diferenciadas de acordo com o público a que se destinam. Vermot-Gauchy (L'Education Nationale dans la France de Demain) exige que se mantenham as vias de ensino oficial, estruturalmente distintas. Não estamos longe de Maurras. O ensino deve ter em conta o meio social e familiar dos alunos, as aptidões adquiridas por uma criança pelo fato de pertencer a um dado meio; o ensino deve corresponder às características médias que as crianças adquiriram pelo fato de pertencerem a um meio geográfico, social e familiar. O primeiro imperativo da escola é não desenraizar a criança. Tudo isto para afirmar que há tipos de ensino melhor adaptados às características e aos desejos das crianças vindas de meios modestos ou pouco cultivados. E se tais crianças têm dificuldade em triunfar no liceu, isso só prova que de-
ras, a permitir que a classe dominante a abafe cada vez mais a ponto de reduzi-la às suas taras e só a elas. E um perigo constante, mas que esbarra em resistências constantes — e por isso mesmo não se deve recusar em conjunto toda a escola por ela conter ciclos e segregação. As forças de renovação da escola, de revolução da escola, já existem, elas agem dentro e fora do recinto escolar. Aqui como em qualquer outro lado estas forças não são forças
vem deixar o liceu âqueles que lá se sentem à vontade, precisamente a clientela saída de meios abastados e cultivados. O desejo intenso do tradicionalismo de conservar as coisas como estão, de não ofender de forma alguma a sociedade tal como ela se apresenta, procura apoio num duplo imobilismo: fixidez das estruturas sociais, das quais nos dizem tratar-se de realidades principais, o que significa que não se pode nem pretender tocá-las: elas não se amoldam ao sabor dos sistemas que se podem conceber; fixidez das aptidões inerentes a cada categoria de crianças, que foram marcadas pelos seus estilos respectivos — e isso desde a mais tenra idade. O nosso autor bem reconhece que as aptidões são re-
triunfantes, mas forças exploradas, a força dos explorados.
sultantes de um meio de vida, mas conclui daí a necessida-
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Não se trata de dizer que a escola não vai tão mal assim; que devemos conservá-la com algumas modificações. A escola é um escândalo, o ciclo III é um escândalo — e a todo instante se expõe a escola a ser apenas o que são as suas ta-
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de de admitir e de conservar estas aptidões como se apresentam, precisamente a fim de manter os meios tal como eles são constituídos. Traduzindo: as classes sociais como elas existem.
SEGUNDA PARTE
O COMBATE NÃO PRINCIPIA POR FALTA DE COMBATENTES Gostaríamos agora de interrogar os nossos autores segundo outra perspectiva: não a escola já compartimentada, diferenciada e diferenciante, mas considerando-a no seu to-
do, será verdade que apenas conduz ao servilismo? Será verdade que não fornece nenhum combatente à luta de classes?
CAPÍTULOI ILLICH — A ESCOLA PREPARA PARA O SERVILISMO?
Para não nos perdermos em discussões, principalmente para estarmos em condições de distinguir entre o sistema escolar e as ramificações propostas por Illich em sua substituição, é essencial discernir por que caracteres define Illich a escola.
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PRIMEIRO TEMA: Escola, não-escola, antiescola I— O que vem a ser uma escola? A escola é um lugar especial, nitidamente circunscrito, onde se reúnem os jovens agrupando-os — ou antes, separando-os por categorias etárias, e também segundo o seu passado, os estudos que já fizeram; são submetidos à autori-
dade dos professores, a partida não se joga entre parceiros iguais; é obrigatória a presença e trata-se da presença em tempo integral, numerosas horas por dia durante numerosos anos. É necessário seguir programas pré-estabelecidos, devese aprender o que consta do programa, não aquilo que se deseja; é em relação a esse programa que serão avaliados, medidos os resultados atingidos. Assim uma planificação de conjunto rege a marcha do sistema. Enfim, o período de ensino na escola deve processar-se antes do trabalho produtivo, independentemente deste e de um modo absolutamente diferente. Equivale a dizer que a escola representa um recinto muito especial, em que deixam de ter cabimento as regras da vida vulgar. A partir disto Illich vai desenvolver umacrítica que ele considera radical. Desde que a escola exista, exige o monopólio; obstina-
se em conservar os jovens afastados tanto do mundo da produção como pura e simplesmente do mundo: um único lugar recebe todos os privilégios e nesse lugar aprende-se. O que significa que tudo quanto se passa fora dele, desde as experiências vividas na rua até às emissões da televisão, passando
pelos elementos da vida familiar, é considerado indigno de contribuir para o ensino — e seria de natureza inferior. E tudo quanto as crianças poderiam adquirir pela experiência
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do trabalho, tudo que os adultos conquistam pela experiência do trabalho, é excluído da educação.
Os autodidatas são os que não respeitaram a regra do jogo, a regra da escola: aliás, são duramente punidos e postos de lado. Assim, a escola mostra a mais paradoxal das pretensões: preparar para o mundo cortando os contatos com o
mundo, contendo, mantendo o mundo à distância. Ela não pode, pois, ir além de uma detenção dos jovens, com tudo
quanto este termo implica de tristemente penoso, de enfadonho — inevitável desde que a escola afaste a educação da realidade; desde que o sistema funcione em circuito fechado, só para si, sem conseguir, sem querer tentar, estar de acordo com o conjunto dos comportamentos. A escola exige, portanto, que estes súditos trabalhem diferentemente de todos os outros indivíduos, vivam diferentemente, sejam tratados diferentemente; como consegiiência,
vão formar uma espécie à parte, à qual será imposto um estatuto especial, o estatuto de ser criança. A escola só consegue existir transformando em crianças aqueles a quem se dirige; o modo de existência inerente à escola só pode ser imposto a criaturas encaradas particularmente: elas constituirão a categoria das crianças. Ou seja, a infância, tal como hoje a conhecemos, como a qualificamos, é uma consegiiência da escolaridade e mais ainda da escolaridade obrigatória e prolongada. Porém, esta infância assim estabelecida, é uma criação
artificial visto que durante séculos a criança viveu entre adultos, partilhando a sua experiência, os seus trabalhos e as suas alegrias; ela formava-se insensivelmente, com muito menos despesa, muito menos dificuldades, em contato com a vida
cotidiana. É uma criação que empobrece, visto se pretender que a criança só tenha relações, pelo menos relações seguidas 117
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e consideradas como educativas, com um gênero tão insólito
segredos da vida privada dos alunos; entende ser seu dever influir em toda a sua existência; diante desta força investigadora, o aluno não pode contar com nenhuma proteção. A
de adultos: o dos que foram consagrados como docentes. E uma criação perigosa, pois essa criança, que deste modo se quis isolar dos conflitos do mundo, paga esses poucos anos de segurança, ou pelo menos de tranquilidade relativa, com a sua inexperiência e a sua imaturidade. A ponto de os estudantes acabarem por comportar-se como crianças pequenas. Na realidade, o que se pretende com este método, é O
meio de subjugara criança. Subordinação do aluno, fraqueza suscitada simultaneamente pelo seu estatuto discriminatório e pelo funcionamento inerente ao sistema escolar. O ser de que a escola necessita não possui nem independência nem motivos para crescer porsi próprio. É submetido ao julgamento de um outro, é esse outro quem irá determinaro que ele deve aprender, em que altura o fará — e que se julga habilitado a avaliar se ele o conseguiu aprender. É outro a elaborar o programa; só lhe resta absorver o que lhe prepararam, e precisamente da forma como o fizeram, só lhe resta o papel de consumidor, com toda a passividade e inércia que o tempo implica. O professor ordena, os alunos obedecem e assim aprendem a hierarquia, o respeito e a ordem, em toda a acepção da palavra. A escola é o local onde serão moldados para suportar as coisas desagradáveis sem queixas e sem críticas.
escola sonha com uma modelagem totalitária, é no sentido de
uma escola totalitária que ela, como pelo seu próprio peso, é arrastada. Deste modo, a escola escraviza mais o espírito do que a família, precisamente pelo seu caráter sistemático e organizado; pois que ainda é uma escravatura em que nada foi deixado ao acaso. A iniciativa pessoal, a capacidade e a alegria de assumir responsabilidades, de agir e de pensar porsi próprio, de crescere de dirigir o seu crescimento são incompatíveis com o sistema escolar. Resumindo, a fregiiência à escola e o hábito da disciplina escolar só podem conduzir a uma atitude servil. Porque é um só e único treino que verga o indivíduo à deferência silenciosa face à rotina da escolaridade, à monotonia da se-
cretaria, ao respeito pelo relógio e pelos horários. Ter estado submetido durante anos ao modo de vida escolar, ter apren-
dido a manter-se calado na escola, ter o hábito de disputaros favores do burocrata que preside, é a melhor garantia, para os futuros patrões, de abstenção de qualquer tentativa de subversão contra a ordem estabelecida. Logo, objetam a Illich que as universidades representam precisamente os locais onde o questionar da sociedade
O mestre sente-se investido de um poder ilimitado;
assume mais vivacidade, por vezes mesmo maior violência.
menos como direito material do que como domínio espiritual. O drama, é que quanto mais a sério leva a sua tarefa, mais
Hlich sustenta que elas não constituem adversários verdadeiramente perigosos, em relação à ordem estabelecida, porque
se considera encarregado de uma verdadeira missão; persua-
a universidade só concede essa liberdade, da contestação, aos que anteriormente iniciou, aos que formou, isto é, despoja-
de-se de que não só lhe compete desempenhar um papel de professor, como ainda uma função de ajuda, de conselho, de diretor de consciência — e finalmente arvora-se em terapeuta. À partir de então atribui-se o direito de penetrar até nos 118
dos de fato de iniciativa e de responsabilidade. Representam uma comédia, aliviam as suas consciências dilaceradas, mas
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são perfeitamente incapazes de levara sua crítica até o ponto de ela se transformar em ação revolucionária.
verdadeiro atentado à sua legitimidade. De fato, para mais
II — Da boautilização possível de Hlich e dos seus limites
facilmente triunfar, Illich imobiliza a escola na fase em que
se encontrava antes do grande impulso da educação permanente — e que já não é o atual. É exato, e seria esse o lado verdadeiro de Illich, que a
A escola, tal como nos é apresentada por Illich, é sempre a escola tal como é ou comose arrisca a ser quando se deixa engolir totalmente pelas tendências mais conservadoras que efetivamente encerra. É a escola bloqueada no seu estágio mais reacionário: uma escola que ignora, quer igno-
educação permanente conduz a escola a uma profunda mudança — e Illich pode ser interpretado como um aviso de que essa mudança deve avançar até onde um mesmo conjunto venha a integrar igualmente a educação dos que não estão ou já não estão escolarizados. Esta renovação não passa ainda de um esboço, mas é falso negar-lhe a existên-
rar, tem necessidade de ignorar, sob vários pontos de vista, a
cia, ainda mais falso considerá-la, de antemão, inconciliável
contribuição progressista do século XIX e do XX, desde Madame Montessori até Oury — e muito mais ainda os rumos tomados pela pedagogia socialista. O interesse que para nós apresenta Illich é o fato de nos advertir dos perigos que
com a escolaridade.
corre a nossa escola, abandonando-se a interesses conserva-
dores, entregando-se à ideologia dominante. A nossa escola deve transformar-se fundamentalmente a fim de escapar a perigos que Illich denuncia com razão. Mas o terrível limite de Hlich é ele proibir a escola de operar esta mesma mudança que ele exige; e isto porque, na própria escola, ele não vê os elementos de renovação agindo efetivamente — e fora dela, distingue ainda menos forças capazes de conduzir a uma revolução da nossa sociedade e da nossa pedagogia.
Desta forma,Illich participa em certas mistificações em moda, e das mais reacionárias: diz-se que a educação dos adultos se desenvolve com muito mais eficácia quanto melhortiver sido o desempenhado da escola e os interessados nela adquirido mais cedo o domínio das complexas estruturas de pensamento. A formação permanente não se contrapõe à formação inicial, não a exclui; muito pelo contrário, ela até vai
avançando à medida que melhor se apóia na formação inicial. Caso contrário, torna-se um logro: pretenderá simplesmente dissimular dos pobres que excluíram da escola os seus filhos — em troca da promessa de que amanhã será gratuita e que os formarão realmente mais tarde, quando crescerem...
e torna impossível, desvaloriza, qualquer esforço de instrução que aspire processar-sé fora dela, tanto a educação dos autodidatas como a dos adultos. A escola tende a transformar toda a educação extra-escolar num acidente, ou mesmo num
Illich apresenta-nos a escola como universo fechado, recinto desligado do mundo, isolado na sua pureza fictícia e nessa base pode perfeitamente indignar-se por ela pretender formar alunos dentro da realidade isolando-os dessa mesma realidade. Apresenta-nos como intrínseco da escola que os alunos não disponham de qualquerdireito, não possam tomar qualquer iniciativa e que nunca ponham à prova a sua res-
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Nlich considera evidente que a escola esteja em radical incompatibilidade com a educação permanente. Afirma que a escola, desde a sua existência, exige um monopólio absoluto
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ponsabilidade. Poder ilimitado do professor e dependência humilhante dos alunos. A escola seria o local onde necessária e eternamente a criança é o oposto do adulto, só é definida pela sua oposição ao adulto — só lhe cabendo em quinhão defeitos, coisas inacabadas, uma vez que todas as perfeições cabem aos adultos. Ainda aqui, para assegurar um sucesso fácil, Ilich pe-
trifica a escola na sua forma caricatural. Ao constatar — o que é autêntico, que uma tal escola não consegue hoje funcionar validamente, isto é, favorecer a evolução pessoal e
coletiva dos alunos, ele pretende concluir pelo fim da escola, de uma escola eterna, imutável, quando afinal é ele que a põe nesse pé. Passa em silêncio a ação de todos aqueles que começaram a fomentar a comunicação entre o universo escolar e o universo do cotidiano; inquéritos conduzidos no exterior,
redações livres em que o aluno refere o que viu, diário escolar redigido pelos alunos para ser divulgado fora da escola, cooperativa escolar. E também os que introduzem na escola instituições que asseguram autonomia e responsabilidade aos alunos: assembléias gerais onde ao mesmo tempo os jovens se exprimem e tomam decisões, com o professor em busca de um papel de renovação, em que surja como um ponto de apoio sólido — e jamais como um ditador. Já tivemos ocasião de explicar aquilo em que estes esforços nos parecem relevantes — e não obstante, as insatisfações que persistem; não voltaremos ao assunto. Mas é preciso dizer de que maneira, até que ponto, a reflexão de
Hlich sobre a escola põe de lado tudo isso que causaria engulhos às descrições unilaterais, até que ponto ela é metafísica, por oposição a toda consideração de ordem histórica. Nunca a si próprio ele pergunta porque é hoje tão difícil o diálogo entre professores e alunos, quando precisamente o que define a escola, contrariamente à televisão ou a outras formas ditas
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ESCOLA, CLASSE E LUTA DE CLASSES
de escola paralela, é a possibilidade constante de o professor responder ao aluno e de retorquir à sua resposta e assim por diante. Na realidade, na nossa época, a sociedade em crise já
não pode apresentar aos jovens uma imagem suficientemente coerente, suficientemente firme para suscitar uma comunica-
ção viva. Não o fim da escola, mas sim o desta escola que esta sociedade já não consegue manter. Mesmo deixando de considerar os ciclos diferenciados, encarando a escola no seu todo, há certa ingenuidade em pensar que ela será, porsi só, libertadora. É essencial tomarse consciência da modelagem ideológica e constante que ela exerce e das tensões que percorrem as relações entre mestres e alunos. Mas não é menos ingênuo, ou antes, obedece à mesma ingenuidade, simplesmente em sentido inverso, recu-
sar-se a ver o que há de específico e de original na ação da escola e, lá porque é preciso chegar à hora certa, assimilá-la sem mais nem menos à fábrica, por também marcarfaltas. SEGUNDO TEMA: Existirá o marxismo?
Nãose pode deixar de notar que Jllich trata a pedagogia marxista com desprezo. Não leva o ensino politécnico em consideração, nem para o criticar; mesmo que a ele caiba o objetivo de unir o modo de vida escolar e o modo de vida produtivo, ligando-se a produção dos jovens à produção das massas: por consequência temos a escola e a ligação ao mundo; ou antes, é precisamente pela escola que se constitui a ligação ao mundo. Silencia em relação a Makarenko que procura tornar realidade o acordo entre a orientação do professor e a iniciativa dos alunos; Illich prefere declarar os dois termos irremediavelmente contraditórios. A escola é um mundo em que a hierarquia e a autoridade têm lugar assegurado. Makarenko pergunta a si mesmo em que condições esta 123
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ESCOLA, CLASSE E LUTA DE CLASSES
autoridade pode deixar de ser opressiva — e os fatores pedagógicos postos em jogo remetem para o sentido e para a fun-
valor, o que implica uma sociedade que ponha em pé de igualdade trabalho manual e trabalho intelectual — e que dispense ainda plena consideração às atividades de cidadão.
ção que assume, em tal sociedade, a autoridade nos seus
diversos estágios. Illich põe em cena um bloco enorme e impossível de trinchar, a autoridade do professor, destinada através da eternidade a esmagar a menor veleidade libertadora por parte dos alunos. Hlich obriga-nos a formular duas espécies de perguntas: a escola conduz à passividade servil? Toda escola conduzirá à passividade servil? Na nossa sociedade a escola já contém forças positivas e há luta de classes visto que elas se chocam com o seu oposto, quer no interior, quer no exterior da escola. A escola soviética contemporânea, tal como surge através das descrições de Urie Bronfenbrenner, o tão conhecido sociólogo americano, poderia mesmo assim ter proporcionado ao nosso autor elementos capazes de subverter a representação que ele nos propõe da escola. Certamente, a escola continua a ser um local de competição, e a avaliação dos resultados existe. Mas a competição implica todos os aspectos da atividade e da conduta, e não apenas aquilo a que habitualmente se chamam resultados escolares, mas igualmente o esporte, o trabalho manual e ainda a forma como o aluno sabe tomar iniciativas na vida corrente e assume as suas responsabilidades cívicas, por exemplo em relação aos mais jovens da sua escola: brinca com eles, ensi-
na-lhes novos jogos, ajuda-os nos seus trabalhosetc. A própria extensão da competição suprime o inconveniente essencial: nenhuma criança é posta de lado, cada uma descobre o campo em que se pode afirmar. Tínhamos encontrado um esforço semelhante na pedagogia institucional de Oury. Mas, para que tal intenção alcance o seu fim, é necessário que o professor pense e convença os alunos que os diferentes setores da atividade possuem efetivamente o mesmo 124
O fato de se tratar de uma escola não significa que esteja fechada ao mundo exterior: tal escola está adaptada a tal fábrica, a tal escritório; os empregados ou os operários pas-
sam parte do seu tempo livre com a sua classe ou preparando atividades destinadas à sua classe. E assim não apenas tais adultos, a título individual, como as instituições adultas, par-
ticipam cotidianamente na vida da instituição escolar. O professor interpreta um papel de guia, o que não significa servilismo da parte dos que aprendem. Pois entre ele e os outros intercala-se o grupo: o coletivo dos alunos, a classe, a escola, os coletivos extra-escolares. Em princípio é a coordenação dos desejos e das atividades — e pouco à pouco o grupo começa a viver a sua própria vida, torna-se senhor de si; sem que isto exija que a experiência dos mais velhos seja desperdiçada. O trabalho toma a forma de um empreendimento elaborado por toda a classe. Os alunos acabam responsáveis pela apreciação dos resultados, são eles que procuram solucionar as dificuldades de trabalho ou de conduta quando elas surgem na vida da classe. É existindo umavida intensa e autônoma no grupo que o adulto pode traçar as linhas diretivas da ação sem constranger os alunos a uma obediência passiva — e é por o grupo ter sido progressivamente formado que é capaz de tais efeitos. Do que Bronfenbrenner dá um exemplo característico: um aluno desleixa-se na matemática. Instigada pelos alunos-monitores, toda a classe se reúne para discutir o seu
caso. O próprio aluno não vê nada de especial, mas o grupo é de opinião diferente. Dois colegas oferecem-se e serão encarregados de o vigiar a fim de que ele não esqueça os seus de-
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veres e as suas lições. E o chefe da turma conclui: “Eles nos dirão quanto você for capaz de trabalhar sozinho”,
pes: as honras cabem ao grupo. Quando é concedida uma recompensa a um indivíduo, o que sucede bastante fregiien-
Há nisto uma síntese muito importante de ajuda, de
temente, o motivo é indicado da seguinte maneira: “Tal alu-
trabalho em comum e de vigilância que, pelo menos de início, está longe de corresponder ao desejo do interessado — e, contudo, ela é necessária ao seu progresso. A conciliação é possível numa sociedade em que o grupo não for encarado como o contrário do indivíduo, que ameaça esmagar o indivíduo, mas como um meio defensor e aberto; o grupo escolar só pode adquirir semelhantes virtudes pela formação que ele mesmo recebeu do conjunto de grupos que se desenvolvem no país — e aí se justifica a intervenção do professor.
no ajudou este outro, e graças a esse auxílio mútuo a equipe não se atrasou”. Assim cada criança aprende a fazer coincidir o seu interesse com o da coletividade em que se integra, ao mesmo tempo que aprende a fazer parte de coletividades cada vez mais complexas: os resultados a que pode aspirar dependem do nível alcançado pelo conjunto. E é a coletividade dos seus companheiros que a educa, a critica, a recompensa e, sobretudo, a apóia em caso de fracasso. Se o quadro de honra citar efetivamente o melhor grupo, cada um passará a preocupar-se com os que ameaçam comprometer o êxito comum. Ao professor compete ampliar as dimensões desta solidariedade fazendo que dela se adquira
A intensificação da vida do grupo reside simultaneamente na progressiva aquisição da autonomia dos alunos em relação ao professor e no exercício da solidariedade: é o próprio sentido da coletividade, do coletivismo, do comunismo
que é posto em jogo no desenrolar cotidiano da vida escolar. É pela vida do grupo que a competição escolar (de que acabamos de explicar como e por quê pode estender-se a todos os domínios) perde o seu caráter egoísta, conservando o seu papel estimulante e preventivo frente aos resultados atingidos: a competição processa-se entre os diversos coletivos (equipe, classe, escola, cidade, região) e não entre indivíduos: pelo que se pode manifestar em união, em vez de cair no orgulho do individualismo. Bronfenbrenner ilustra com numerosíssimos exemplos como os valores de grupo passam ao primeiro plano: desde a creche que se habituam as crianças não só a entreajudarem-se como a inscreverem-se em atividades coletivas; e igualmente em divertimentos que aludam sem cessar à propriedade comum: “O meu é o nosso, o nosso é o meu”. O quadro de honra deixa de ostentar o nome de certos alunos como indivíduos, mas o das patrulhas ou o das equi126
uma consciência mais nítida, de forma a estabelecer-se um
laço entre os alvos da classe e os de um país a caminho do socialismo. E, contudo, não se trata de dinâmica de grupo,
pois o mestre contribuiu para formar o grupo e os critérios do grupo dos alunos são, no seu todo, os do adulto. Para Bronfenbrenner, é nisso que reside a dificuldade e
ele se interroga sobre que solução existe no caso em que o caminho escolhido pelo grupo se afaste ou se oponha ao que preconiza o professor; quase se sentiria decepcionado se tais divergências não surgissem e ao mesmo tempo não vê como podem ser, neste caso, neutralizadas. Nem tudo está resolvido, longe disso; pelo menos vis-
lumbramos um caminho que nada tem de comum com a estrutura artificial e subserviente que Illich se compraz em descrever sob o nome de escola. Esta unidade da criança com o seu grupo, esta unidade sucessiva e cada vez mais ampla dos grupos entre si, esta 127
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unidade das esperanças da sociedade adulta e dos projetos elaborados pelos jovens, mesmo que ainda surjam confrontos e contradições e, até, se não for possível admitir que estes acabem por completo, só serão possíveis numa sociedade em que o motivo fundamental das oposições for ultrapassado — oposição dos indivíduos entre si como oposição das classes entre elas. E eis por certo a razão que leva Illich a preferir não encarar este ângulo. Illich não vê, não quer ver, senão indivíduos e então o indivíduo-mestre esmaga o indivíduoaluno. Percebemos aqui que, pela via do grupo coletivo, o aluno escapa ao servilismo sem tombarno anarquismo. Quanto mais a escola é penetrada pelas influências socialistas, mais vai rompendo com as taras que Illich denuncia. Nem por isso ela deixa de ser escola. Será possível confrontar as descrições precedentes com o que Huteau e Lautrey nos ensinam da vida escolar em Cuba: em cadaclasse, cada
semana, uma assembléia de alunos estabelece decisões que dizem respeito à vida da classe; e conta-se com a ação da coletividade para cada um tomar a peito as regras assim elaboradas em comum; se uma criança tem dificuldades em
especial, vai esforçar-se por explicar ao grupo os motivos do seu comportamento a fim de que em conjunto procurem uma solução. Ao mesmo tempo intervêm os professores que tratam de orientar a discussão generalizando o caso. Levar os alunos a exprimir-se evitando que um deles se torne vedete,
ESCOLA, CLASSE E LUTA DE CLASSES
Na realidade, para nos referirmos apenas ao caso da
França, choca a extrema modéstia — é o menos que se pode dizer — que caracteriza a cobertura escolar, até mesmo a
famosa explosão escolar. De acordo com os dados estatísticos elaborados sobre o contingente de 1965, 1,5% dos recrutas não sabem ler nem escrever; 25% sabem ler e escrever mas não têm certificado de estudos; 51% apresentam certifi-
cado de estudos como único diploma; 11% são titulares do BEPC! ou de um equivalente; 11% chegaram ao curso dos liceus ou foram mais além. Como se pode afirmar a sério que o maior risco vem da saturação? TERCEIRO TEMA: Soube Illich interpretar a recusa dos jovens? É exato que o sucesso de Illich, o enorme sucesso que alcançaram Illich e os seus seguidores, principalmente na França, mostra uma convergência entre as críticas que ele dirige à escola e as acusações correntemente formuladas pelos interessados e ainda outros, contra o sistema escolar. Por isso a necessidade de desvendar, de decifrar as for-
mas que assumem as rejeições dos jovens e de procurar a sua significação profunda: nem as considerar como desprezíveis, nem as tomar ao pé da letra como se fosse evidente que conteúdo manifesto e conteúdo latente coincidissem.
evitar que o grupo tome como centro, como alvo, um aluno
A recusa da escola por alunos do liceu e outros não de-
em particular; isto implica uma maneira inédita de intervenção dos professores.
ve ser apenas vista como recusa da escola, mas como recusa de inserção social: ela volta-se, muito naturalmente, contra a
instituição que os jovens conhecem, de que eles experimenAo ler Illich tem-se a sensação de que a mais grave ameaça, pelo menos nos países ricos e industrializados, é o crescimento da escola, o superdesenvolvimento da instrução:
tam diretamente o peso e os vícios. Porém, na realidade, o
que está em questão é muito mais vasto: a juventude interroga-se, interroga-nos, sobre se, por intermédio da escola, se
haveria um excesso de alunos, como haveria um excesso de
automóveis.
' Brevet d'Etudes du Premier Cycle.
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prepara para se instalar numa sociedade que dela terá necessidade, que saberá apelar para ela, que lhe proporcionará o ensejo de manifestar as potencialidades de que se sente portadora. Tal recusa presta-se gravemente à mistificação, e especialmente à mistificação illichiana, ao apresentar-se como uma oposição de gerações, sem relação com a oposição de classes e mesmo inconciliável com ela: no momento em que os jovens tomam consciência de que existem conflitos, é facilmente compreensível que interpretem como conflito fundamental o que os opõe aos pais, aos mestres, aos adultos. São numerosos os que se entretêm a imobilizá-los nesta primeira ilusão. É, pois, extremamente importante levá-los a se cons-
cientizar de que, de fato, a juventude não constitui de forma alguma uma classe homogênea e que mesmo a sua resistência à sociedade estabelecida não basta para unificar. Isto implica a capacidade de se demonstrar que esta resistência reveste, na realidade, formas muito diferentes, segundo
as classes sociais a que o jovem pertence. Daremos dois exemplos. Facilmente nos deixamos levar pelas aparências e os Jovens parecem uniformizar-se porque, em todos os meios, seguem os mesmos modelos e modas semelhantes: quanto a vestuário, e também quanto aos discos ouvidos, às revistas
que lêem. Explica Chamboredon comoeste primeiro aspecto é fictício: de fato, para os jovens das classes superiores, esta cultura, que se comprazem em rotular de adolescente, sofre a concorrência da cultura erudita; aceitam-na como um entrea-
to, por um tempo — e sabemos que se trata de uma moda transitória — sem a levar demasiado a sério. Os outros, pelo
contrário, só contam com ela e entregam-se profundamente. 130
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No seu inquérito sobre os liceais, G. Vincent mostra com muita pertinência que se destacam duas direções ao analisar estas reações de recusa: os jovens saídos dos meios favorecidos têm tendência para declarar a sociedade absurda ao passo que os vindos de meios mais modestos a qualificam de injusta. Onde ressalta não só uma diferença de visão, mas,
sobretudo, que os desfavorecidos é que são chamadosa assumir a direção da luta visto pelo menos vislumbrarem possibilidades de combater contra 6 que constitui a injustiça; os outros correm o risco de se deleitar, mesmo que provisoriamente, num mundo em que nenhuma força seria capaz de ultrapassar o contra-senso. Parece, deste modo, que existe um grande desentendimento entre a convergência, de que se felicitam alguns, entre os temas illichianos e as atitudes contestadoras da juventude: os jovens mais lúcidos — e não é por acaso que pertencem em maioria aos meios não-favorecidos socialmente — não se deixam levar, nem pela propaganda que apresenta a sociedade como inacessível a todo progresso, nem pela miragem de que serem jovens no mesmo momento basta para apagar diferenças e discriminações.
QUARTO TEMA: O alargamento do ensino; progresso ou condenação? Nlich nos explica que quanto maior for o aperfeiçoamento do ensino e mais se espere dele, mais lhe exigirão um aperfeiçoamento ainda suplementar; um ensino breve suscita o pedido de mais e mais. À medida que um jovem fregiienta a escola vai se tornando mais consciente da necessidade de prosseguir os seus estudos: toma gosto por eles — e o seu rancor aumentará se os tiver de abandonar antes da sua conclusão. A escola desperta assim ambições. Antes de tudo a 131
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própria ambição da escolaridade: Quanto mais um ser toma O gosto por essa droga da escolaridade, mais sofre ao ter de renunciara ela. Hlich nem por momentos imagina que essa ambição possa receber meios de se satisfazer, nunca repara nos países que se esforçam nesse sentido. Afirma obstinadamente que ela será obrigatoriamente gorada; Illich teima em repetir que,
Pode parecer espantosamente contraditório que a escola seja apresentada como o local de aprendizagem da obediência servil e paralelamente como o melhor meio de impelir à revolta. É que, tanto para Illich como para todos os que des-
em todos os casos e de todas as maneiras, subsistirá a mesma
do esperado da luta de classes, quando ela se alastra, é o
desproporção entre os que ambicionam entrar para a universidade e os que a universidade poderá acolher; o desejo de aumentar a instrução é dado como insensato, torna-se até o modelo dos desejos insensatos porque não conhece limites; lança os homens numa escalada sem fim. Que esta busca,
fascismo, a contra-violência, a violência repressiva, que se erguem diante da violência das reivindicações e não vê qualquer outra saída: “Só a força permitirá controlaras rebeliões nascidas desta esperança gorada”. É essencial compreender que este mesmo homem declara que a esperança do proletariado estará sempre votada ao fracasso e por isso O exorta a cessar a sua ação, deprecia o elemento criador incluído nessa ação — e quer o desaparecimento da escola. Quando os excluídos do ensino se sentem dominados pela minoria privilegiada que se mantém no sistema escolar — e mais diretamente quando têm dificuldade em encontrar trabalho — nunca se admite que tais provações possam representar um papel positivo no combate político de conjunto. Segundo a mais pura tradição conservadora, o descontentamento dos pobres é visto apenas como ressentimento por parte de quem já precisa ter um emprego quando tantos outros da sua idade ainda frequentam as escolas; ou amargura de quem se vê afastado da escola depois de lhe ter saboreado
esta inquietude, este ultrapassar incessante dos limites ante-
riormente marcados possam ter um valor criador, eis um tema que não cabe no mundo de Illich: seria necessário reconhecer positividade o desejo de saber mais, de compreender melhor, de agir com mais lucidez.
Há uma passagem notória em que Illich declara que a importância conferida ao ensino exacerbou a luta de classes. Desta vez estamos inteiramente de acordo com o nosso autor — com a mera condição de dar à sua frase um significado mais justo oposto ao que toma no contexto dele: para nós trata-se do mais belo elogio que se pode dirigir à escola, pois equivale a afirmar que os proletários instruídos estão melhor armados para o combate e adquiriram uma combatividade mais firme. Hlich considera como evidente que isto condena a escola, mal se apercebe de que o ensino, e precisamente o que é atualmente ministrado nas nossas escolas, contribui para
intensificar a luta de classes. Conclui ele que é necessário renunciar a este tipo de ensino que pretende que os explorados renunciem à réplica. 132
prezam a luta de classes, a revolta é tão inútil, tão estéril, como a passividade resignada, mal se distingue da passividade resignada. Illich não receia afirmar que o único resulta-
o encanto; ou ainda a sensação da sua inferioridade, que nos
garantem ser ainda mais pungente para os que têm de desistir depois de sete anos de escolaridade e não de três. Sob uma aparência de modernidade, Illich incorpora-se ao longo cortejo dos que nunca deixaram de lamentar que, proporcionando ao povo uma pequena dose de instrução, apenas se
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conseguiu excitar-lhes os desejos, despertar-lhes os rancores, inflamar-lhes as reivindicações. E já em 1850, Montalembert prevenia os seus amigos: a instrução pública “desenvolve necessidades fictícias impossíveis de satisfazer; fomenta uma indescritível multidão de vai-
dades e de ambições cuja pressão esmaga a sociedade”. Esta reincidência de Illich a favor do conservantismo secular, é para nós a prova de que quem não compreende a luta de classes se torna incapaz de compreender o papel, o valor da escola — e ainda bem menos qual metamorfose ela tem de enfrentar.
CAPÍTULO HI BAUDELOT-ESTABLET — A ESCOLA TRANSFORMARA OS ALUNOS EM POBRES PEQUENOS SERES PRIVADOS DA REALIDADE?
PRIMEIRO TEMA: Criança modelo Baudelot-Establet denunciam o mito da infância, o mito burguês em que sendo a criança o inverso do adulto, é um ser inacabado, apolítico, assexuado, irresponsável. Este mito leva a criar, consiste mesmo em criar, um ser
batizado com o nome de criança, caracterizado pelo fato de se recusarem a tomá-lo a sério, a atribuir-lhe direitos e res-
ponsabilidades. O que se visa aqui é, muito evidentemente, a psicologia da criança, a psicologia genética, tal como está constituída, digamos, a partir de Claparêde. Sem dúvida, a criança de Claparêde está encerrada dentro de limites reduzidos, bloqueada num modo de vida simul-
taneamente preservado e inconsistente — transposição nítida do mundo das crianças burguesas. Para melhor a distinguir do adulto, Claparêde faz dela um ser à parte, fora da realidade, fora do mundo. Para melhor a opor ao mundo dos adul-
tos, a apresenta como um ente completamente votado à brincadeira. “Diria, por definição, que a criança é um ente 134
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que só se interessa pela brincadeira”; e muito mais ainda, a
Mas nós receamos que os nossos autores, bem longe de ultrapassar Claparêde nos deixem aquém dele. As insuficiências da criança tal como ela é descrita pela psicologia burguesa teriam uma única causa: a criança não produz, poupam-lhe o trabalho produtivo. E por isso BaudelotEstablet sustentam que “a única condição para tirar as crianças da infância consistiria em associar o mais rapidamente o trabalho produtivo e a educação”. Não é isto nivelar a juventude pela idade adulta e de uma forma tão mecânica que as
brincadeira se destinaria a compensar a incapacidade de a criança “se interessar pelas realidades da vida”. E contudo, em dado momento da história da sociedade e da educação, constituiu um progresso essencial situar a criança na sua singularidade; apreendê-la com a sua fisionomia própria a fim de que não fosse avaliada em constante relação com a idade adulta, assimilada, ou antes, confundida
com a idade adulta. Assim, as suas qualidades específicas poderiam finalmente aparecer, a psicologia genética tornava público o que a criança possui de original e de inimitável — em lugar de se entregar a comparações com as pessoas crescidas, em que os jovens só aparecem em termos de insuficiência, de déficit. Há certamente algo de afetado, de burguesmente afetado na criança vista por Claparêde. Importa, no entanto, avaliar que progresso este mito da infância representa em relação à concepção tradicional da infância, tal como ela se exprime. Entre cem exemplos, citamos Le Play: “A persistente tendência para o mal é habitual mesmo em crianças vindas dos mais virtuosos dos pais”; daí as consegiiências educativas: “O primeiro fim da educação consiste em dominar estas viciosas inclinações da infância... a juventude deve aceitar docilmente a educação que domina o pecado original da ignorância”, O verdadeiro problema de uma psicologia progressista consiste hoje em manter estas aquisições da genética, acima de tudo a afirmação de uma coerência, de um equilíbrio peculiares da juventude, restabelecendo a ligação entre o universo da criança e o domínio dos adultos, o domínio em que os adultos se esforçam em-atos capazes de modelar, de transformaros dados, incluindo o modo de vida da criança.
termo a termo os problemas da fábrica para a escola, a decalcar o trabalho da criança pelo da fábrica, isto é, a absorção da escola pela fábrica. Negam a psicologia infantil para poderem negar a escola comolocal específico de formação. H. Wallon descobriu uma via imensamente mais real mostrando a existência de uma força de afirmação inerente à Juventude, que embora sem estar separada do mundo adulto se ocupa do seu acesso e ao mesmo tempo dele difere. Simultaneamente, “cada etapa funcional da infância deve ser descrita por ela mesma, no conjunto total das suas condições atuais” e não deve perder de vista que ela é um elo inseparável de um conjunto que anuncia.
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particularidades características da juventude são, na realida-
de, negadas? É justo reclamar para a criança direitos que Claparêde ignorava. Mas o que nos inquieta aqui, é que só existiria um tipo de direitos, exatamente igual para jovens e adultos — e uma única via de os afirmar: se as crianças são privadas de direitos, é por se verem subtraídas às tarefas de produção — e os direitos em questão, são direitos conquistados pelos trabalhadores. Os nossos autores chegam a esquecer tudo o que a psicologia mesmo assim nos ensinou de válido sobre a especificidade das idades; a infância é despojada da sua personalidade; e a partir daí sentem-se autorizados a transportar
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SEGUNDO TEMA: A relação teoria-prática Estamos agora em melhores condições de compreender como são vistas por Baudelot-Establet as relações da teoria com a prática e o que, para ambos, constitui o fracasso da nossa escola, não apenas no que diz respeito à diferença das seções, mas na sua integralidade. Que a escola, tanto nas suas estruturas como nos conteúdos inculcados, esteja marcada pela ideologia dominante, pelo embargo da classe dominante, é fato incontestável. Mas,
por outro lado, não será evidente que ela se justifica como local onde se transmitem conhecimentos exatos, onde se ela-
bora uma sabedoria objetiva, precisamente a que será adaptada às exigências técnicas? Contra isto Baudelot-Establet defendem que todas (sublinhado no texto) as práticas escolares são práticas de ensinamento ideológico; recusam-se a traçar qualquer linha de demarcação entre a instrução cívica, por exemplo, onde se refletem diretamente os interesses da classe privilegiada, e a física, que parece, todavia, referir-se à realidade do mundo
ou o delineamento industrial que parece diretamente vinculado ao funcionamento das nossas máquinas. Encaram todas as aquisições escolares em oposição absoluta com as possibilidades efetivas: estas últimas, realmente, definem eles como umautilização produtiva que consiste na aplicação de produção material, na procura de novos conhecimentos e na produtividade intelectual, como elaborar um livro em que os alunos exprimiriam as suas tomadas de posição. Pelo contrário, a escola é apresentada como o local em que os conhecimentos inculcados nunca desembocam na elaboração de uma sabedoria autêntica, pois apenas são utili-
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da prática escolare à vista dos seus objetivos: notar, classificar, sancionar os indivíduos.
As crianças não podem enraizar-se, na realidade, de um trabalho produtivo, pois a escola não mantém ligações orgánicas com a produção, as crianças não vão trabalhar em tempo parcial numa fábrica vizinha, uma escola não monta uma
pequena unidade de produção que mantenha relações com outras unidades de produção. Nossos autores consideram total esta separação entre as modalidades escolares e a prática, marcando todos os momentos da vida escolar, constituindo a própria essência da nossa escola; afirmam eles que ela aniquila tudo que há de objetividade nos conhecimentos que a escola permite adquirir, reduz a zero toda a positividade que se poderia esperar da escola: “Todos os conteúdos de escolarização são ensinados do mesmo modo que as habilidades escolares — e a partir daí tudo quanto se passa na escola faz parte do imaginário”. É certo que existe uma constante ameaça para a instituição escolar de se colocar como que separada do mundo exterior, um recinto fechado, preservado. Tentação de se arvorar numa fortaleza de pureza e de regularidade, esforçando-se por deter qualquer infiltração de acontecimentos caóticos e corruptos. À escola teria prazer então em funcionar segundo as próprias leis — e pretende que sejam o mais diferentes possível do que acontece no dia-a-dia. É modelo o Colégio dos Jesuítas do século XVIII, construído peça a peça como teatro da latinidade, precisamente numa sociedade que não era a da latinidade; e exortam-se os jovens contemporâ-
zados no âmbito de problemas fictícios, fabricados no seio
neos de Luís XIV a reinterpretar indefinidamente a rivalidade entre Romanos e Cartagineses. É inegável que este passado continua a pesar fortemente na nossa escola: daí uma tendência para preferir os conhe-
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cimentos que deixam mais facilmente funcionar a maquinaria escolar, ou seja, os que permitem com menos dificuldade notar, classificar, sancionar; antes dividir a partir dos conhecimentos do que nos interrogarmos sobre o peso real destes conhecimentos. Por exemplo, o ditado tem um lugar considerável no nosso ciclo primário; a expressão criadora é reduzi-
E eis porque eles se foram revelando literalmente absurdos à medida que lá penetrava uma burguesia preocupada em se afirmar pelo exercício de profissões. Atualmente, as exclusões e o espírito fechado que ca-
da ao indispensável. O que, certamente, não deixa de estar
relacionado com a facilidade, pelo menos aparente, de contar os erros de um ditado, frente à dificuldade de justificar uma nota atribuída a um texto livre. E, por estranha coincidência,
é precisamente o ditado que constitui um dos exercícios mais discriminativos do ponto de vista da origem social dos alunos. O sistema das classificações escolares, privilegiando os exercícios formais, redunda efetivamente em prejuízo das classes desfavorecidas. Quanto ao trabalho manual e à tecnologia, é bem certo que o espaço que lhes são reservados permanece extremamente restrito — e que a maioria das vezes se processam de maneira abstrata; são moldados por exercícios escolares tradicionais, absorvidos pelos hábitos escolares, em lugar de
racterizavam a escola mais tradicional, tornam-se cada vez
mais impossíveis: o progresso das ciências e das profissões, as necessidades da industrialização, a circunstância de, apesar de tudo, a escola já não ser o exclusivo monopólio da classe privilegiada — e também o progresso da consciência política tanto nos docentes como nos alunos — levam a escola, obrigam-na a estabelecer um laço entre aquilo que ensina e os problemas que atravessam a nossa existência. Por bem ou por mal, resignando-se ou opondo-se a classe dominante ou combatendo ainda na retaguarda a favor do ceticismo ou
do
silêncio,
a
escola
tem
mesmo
de
acolher
os
conhecimentos técnicos e gerais que atingem a realidade contemporânea; e que de um só golpe lançam um apeloa esta realidade, exigem uma opinião, uma atenção para esta realidade; o quetanto se verifica na física como na geografia. Que este movimento para se estabelecer um laço entre
constituírem elementos de renovação da escola.
a teoria e a prática seja bastante insuficiente, radicalmente insuficiente, estamos plenamente de acordo; e igualmente
Mas o Colégio dos Jesuítas do século XVII só podia funcionar sob a condição de se banirem os conhecimentos
que ele não conseguirá terminar bem sem abalar as estruturas
relacionados com o mundo exterior, que se aplicavam ao mundo exterior, e exigiam, portanto, a elaboração de técnicas de adaptação. Daí que a matemática, as ciências, a geografia, a história contemporânea,a literatura contemporânea, fossem
postas entre parêntesis — e dado extremo destaque à Antigiidade, às línguas antigas e à incitação constante das instituições romanas. Os colégios dos jesuítas eram criados para uma determinada clientela, que não necessitava ser preparada para exercer profissões.
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sociais, pois cada vez mais se vai revelando inconciliável com a divisão da sociedade em classes, isto é, com a desva-
lorização dos práticos. Mas, Baudelot-Establet apresentam a separação da escola e do mundo, a não-aplicação dos conhecimentos ao mundo — e, portanto, o aluno desarmado perante o mundo — como a definição incômoda e inadmissível da escola. Desta maneira, no domínio escolar, nadateria sido realizado,
nada seria possível antes da revolução e a revolução deveria eclodir repentinamente, sem relação e sem compromisso com tudo quanto até então existisse. 141
GEORGES SNYDERS
ESCOLA, CLASSE E LUTA DE CLASSES
Uma vez mais receamos que se torne impossível qualquer compromisso efetivo, que só pode consistir no apoio do movimento real da escola, aos esforços reais das escolas — precisamente para lhes imprimir uma sequência revolucionária. Mais uma vez é considerado como um destino desespera-
Baudelot-Establet apresentam-nos uma escola pervertida que se reduz à sua perversão, empenhada numa via que a afastaria tanto mais do fim a ser atingido quanto mais ela tentasse avançar. A escola tradicional é um zero; a contribuição das pedagogias novas é um zero. Entendemos que na nossa escola tudo deve ser trans-
do e desesperante, o que é um risco da escola, risco contra O
qual é certamente difícil lutar, mas não impossível: pois esta luta para abrir a escola ao mundo,articula-se, na prática, numa arrancada já desencadeada no domínio escolar — consequência, reflexo dos progressos realizados pelo proletariado na sua presença no mundo,isto é, finalmente, na luta de classes. Nãosó a produção no sentido industrial, como também
a produção intelectual estariam inteiramente ausentes da nossa escola. Baudelot-Establet afirmam que procurar novos conhecimentos, produzir qualquer coisa que seria da natureza de um livro constituem fins absolutamente incompatíveis com o nosso sistema escolar, cuja única preocupação reside nas notas e nas classificações. O conjunto dos ensaios da pedagogia contemporânea, apesar das suas fraquezas e até dos seus desvios, malgrado os desvios que a nossa sociedade necessariamente lá introduziria, não mereceria ser tomado em consideração? Por certo é ingênuo pensar-se que qualquer exercício de matemática desenvolve o espírito crítico, que qualquer experiência física liberta da superstição, que cada redação representa imediatamente para o aluno um meio de melhor compreender a si e ao mundo. Mas não se sai desta ingenuidade, ela é simples-
mente substituída pela ingenuidade inversa quando se afirma que todos estes exercícios são irreais e não-suscetíveis de melhoria. Em ambos os casos se ilude o problema pedagógico: como recorrer ao apoio da realidade do ensino a fim de a transformar? Em que condições o ensino das ciências se transforma em antídoto da magia? Eis o problema colocado por Gramsci. 142
formado mas nem tudo rejeitado; ou antes, a única forma de
transformar é nem tudo rejeitar, mas encontrar apoio no movimento já existente; o imobilismo não tem melhor aliado do
que a expectativa de uma inversão total. No âmbito do escandaloso, intimamente disposto no escandaloso, já existem
realizações; e é, portanto, possível uma luta para as desenvolver. Luta revolucionária, o que não significa que nada de válido ainda tenha sido efetuado. Segundo a fórmula de Marx, a ação revolucionária só pode existir desde que seja a expressão, enfim clara, da seção já desencadeada, já efetiva. Mostramos simplesmente ao mundo por que, na realidade,
ele luta. Baudelot-Establet afirmam que esta separação material das práticas escolares e das práticas produtivas é um dos efeitos da divisão do trabalho manual e do trabalho intelectual. Parecem colocar assim frente a frente duas formas completamente heterogêneas de trabalho, sem comunicação entre si, sem possibilidade de uma agir sobre a outra. Diríamos antes, que a extrema dificuldade em que a escola se debate para juntar a teoria à prática remete paraa situação explorada do proletariado, a classe que se encarrega da prática, para o gueto em que a nossa sociedade se esforça por encerrá-lo — mas igualmente para todas as lutas do proletariado para que lhe reconheçam o direito de existir. O que não se concluirá na nossa sociedade, mas cujo saldo não é nulo, mesmo nela. Resumindo, sob este ponto de vista a escola reserva,
sem dúvida, um papel às forças progressistas: proporcionar 143
GEORGES SNYDERS
aos professores que visam o contemporâneo, que admitem uma ligação direta com a prática e a produção (pensamos na química), valor, vastidão, significação; paralelamente, vincar a sua incapacidade para a escola atual, e dizer por quê; mostrar o vínculo destes problemas com a entrada e o êxito na escola de alunos proletários. E, naturalmente, agir em consegiiência. É importante, pelo menos, declarar a impossibilidade de um tal papel, que pretende colar a história da pedagogia à época de Luís XIV. TERCEIRO TEMA: O que vem a ser a escola politécnica? Afinal de contas, o que importa é a natureza da escola politécnica. Para Baudelot-Establet o fato de a nossa escola não estar diretamente ligada à produção, o fato de a criança ter esse estatuto especial de um ser que ainda não produz, basta para acentuar a nulidade até dos conhecimentos objetivamente válidos que aí se ensinam. É afirmar que a escola politécnica é aqui considerada o contrário absoluto da escola burguesa — e não o seu prolongamento dialético e revolucionário. Eles só insistem na ruptura, silenciam sobre qual-
ESCOLA, CLASSE E LUTA DE CLASSES
I — O quefoi realizado na China é prodigioso
Sem a mínima dúvida, o que já foi realizado na China é prodigioso: um povotriunfou da fome, das doenças epidêmicas, ao mesmo tempo que da insegurança e da resignação à desgraça; um gigantesco esforço virado para a instrução e para a cultura. Tentou-se criar a unidade de uma sociedade abolindo a oposição entre trabalho manual e trabalho intelectual, ultrapassando o desprezo do intelectual pelo trabalho operário e finalmente pelos operários em si. Os funcionários graduados, os dirigentes, participaram pessoalmente na gestão, a fim de adquirirem gosto pelo trabalho manual e interesse pelos trabalhadores. Acabaram com o intelectual submerso nas suas abstrações, elaborando planos que não foram submetidos aos interessados, que corriam seriamente o risco de não corresponder ao seu desejo — e, na realidade, os interessados sentiam-se marginalizados, sabiam-se excluídos. A tentação sempre renovada e que era sempre preciso destruir, era a arrogância do dirigente que se atribuía uma essência superior à dos dirigidos. Tratava-se de fomentar um tipo novo deintelectual, cujo destino coincida com o da clas-
escolares do maoísmo. Confessamos que nos baseamos no estudo de M. A. Macciocchi e em alguns textos vindos diretamente de Pequim. M. A. Macciocchi não esconde o seu entusiasmo pelo regime e a sua revolução cultural.
se operária, que vívia nas mesmas condições dos trabalhadores, em comunidade com eles, mergulhado no ambiente operário; que saberia trabalhar, pensar, sentir em uníssono com as massas. Fazer parte das massas, sem que isso fosse uma sanção; pelo contrário. O trabalho manual deixou de constituir um castigo, uma desonra, ou então o povo poderia considerar-se maciçamente punido. Assim rezava O juramento dos estudantes: “Jamais nos deixaremos corromperpelo interesse ou pela busca de glória... mudando de posto, a nossa consciência revolucionária permanece e permanecerá a mesma; mudando de meio, a nossa condição de trabalhadores do povo mantém-se imutável”.
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quer continuidade; daí, ao lê-los, esse sentimento de que não
haveria qualquerligação entre a nossa escola e a escola vinculada à produção, o sentimento de que a confrontação com a escola politécnica pulveriza, literalmente, a nossa escola.
É em nome da escola politécnica chinesa que eles julgam assim a escola capitalista da França — e não poderemos, portanto, entendê-los, sem evocarmos as realizações
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ESCOLA, CLASSE E LUTA DE CLASSES
Não pode de qualquer modo deixar de se afirmar que o estágio atual corresponde, na realidade, a um momento do desenvolvimento em que se encontra a técnica e que, na sua maioria, é ainda rudimentar. Naturalmente, o progresso verificado já é imenso e, por outro lado, o atraso tecnológico da China é o resultado do estatuto quase colonial a que os poderes imperialistas a haviam reduzido. O que não impede que nos sintamos muitíssimo inquietos perante um subestimar, uma desvalorização do conhecimento científico, da metodologia científica na produção — que é solidária, parece-nos, com o subestimar do papel teórico reservado ao Partido na elaboração do movimento revolucionário das massas. Contam-nos, por exemplo, que os operários chineses souberam reinventar máquinas e cita-se o exemplo de um
numa espécie de atmosfera de não-diretividade. As mais importantes inovações de fabrico foram introduzidas no decurso da revolução cultural logo que o espírito inventivo dos operários se pôde exprimir livremente. Não se correrá o risco de procurar a supressão das categorias e das oposições entre categorias negando simplesmente as qualificações?
operário que, em quatro anos e meio, depois de três mil insu-
cessos construiu ele próprio uma máquina de amolar de alta precisão. Tudo é reinventado pela base. Não se irá ao ponto de considerar inúteis quer a ciência quer a tecnologia”? Bastaria uma série de tentativas para se atingir um fim, sem sequer se haver vislumbrado o que é a estrutura de um pensamento-científico. Umasérie de ensaios e de resultados aproximados substituiria, e muito vantajosamente, toda a
formulação teórica. Para preencher o fosso entre os que concebem um projeto e os que o executam, para vencer a distinção entre engenheiro, técnico e operário, temos a sensação de que se confia na espontaneidade das massas, diretamente capazes, poraí,
de descobrir tudo O que é necessário. Isolando a espontaneidade das massas do que lhe é complementar — a formação científica e técnica —, isolando a prática do que lhe é complementar — o enriquecimento teórico —, consegue-se apre-
Por isso que esta permuta entre operários-camponesese possuidores de uma formação teórica demonstra um aspecto estranhamente unilateral: aos primeiros parecem não ter grande coisa a aprender com os outros, a esperar deles. Todos os intelectuais lucram trabalhando ao lado dos operários. E semelhantemente no trabalho manual, os nossos intelectu-
ais frequentam modestamente a escola dos operários e dos camponeses a fim de adquirir as suas boas qualidades. Bastará, portanto, que a comunicação se efetue assim num único sentido? Sem dúvida, que a formação dos intelectuais pela contribuição das massas — aprender com as massas — é um dos dados constitutivos do marxismo, mas
arrisca-se a ser inteiramente falseada se separada do seu oposto dialético, a elevação do nível de organização das massas, a elaboração teórica da sua ação, o poder de síntese adquirido pouco a pouco. Aqui tudo se passa, tudo nos é apresentado como se os operários-camponeses possuíssem espontaneamente, pela sua própria existência, todas as qualidades, conhecimentos e virtudes necessários à construção do socialismo. O intelectual é reeducado, para não dizer regenerado, pelo seu contato com o povo; mas não terá ele nada a lhe oferecer em troca?
qualificado, com a única condição de que fique envolvido
Evidentemente que nos objetarão com o estudo assíduo, por todo um povo, do pensamento de Mao Ze Dons. Admiramos, sem dúvida, aquilo que representa um formidável avanço cultural em relação a milhões de pessoas que, até
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sentar como modelo, modelo suficiente e até único, o não-
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ESCOLA, CLASSE E LUTA DE CLASSES
então, não tinham praticamente o mínimo acesso à leitura. Contudo, nos atreveremos a afirmar que os princípios extremamente genéricos postos em evidência, tanto na pedagogia das massas como nas escolas, não parecem suscetíveis de constituir guia muito seguro para a ação. Para só citar um exemplo, um artigo sobre a recuperação dos resíduos industriais explica-nos como as empresas chinesas conseguiram extrair importantes produtos de sucessivos resíduos. Foi ao estudar a dialética materialista e apoiando-se muito especialmente no princípio querido de Mao: “um divide-se em dois”, que os operários chegaram à conclusão de que não há resíduo absoluto, que qualquer resíduo pode ser revalorizado, e daí passaram à prática. Disto se de-
“Pouco importa que os operários ou os camponeses instalados nas escolas sejam incultos; é a eles pedido que aceitem o
duz que uma fábrica se desdobrará em várias, uma matéria-
prima será utilizada de diversas formas, uma peça de máquina serve a inúmeros fins. Não podemoslibertar-nos da sensação de que a uma prática industrial, evidentemente vulgar em todos os países e em todos os regimes, colou uma palavra de ordem chave, que de acordo com utilização aquireferi-
valor da visão do mundo socialista, não por sábios racioci-
nios, mas pela sinceridade do seu testemunho, tanto mais persuasivo quanto mais ingênuo”. O trabalho manual é apresentado como possuindo, só por si, virtudes educativas, a virtude educativa: “Através do trabalho manual, desenvolveram a ideologia do amor ao trabalhador, de servir o povo. Participar no trabalho manual, é formar sentimentos proletários”. Nãose trata da união da prática à teoria; uma certa prática, quase instintiva, é admitida como correspondendo a todas as exigências e vai suplantar a teoria. Aproximamo-nos mais de Dewey do que de Marx. Este americano liberal comprazia-se a repetir que “o ensino desenvolve sem esforço, naturalmente, o senso social”.
me que escreve estas linhas, a nosso ver, bem inquietantes:
Parece-nos importante recordar que, logo a seguir à revolução de 1917, vários pedagogos soviéticos acreditaram que bastava introduzir uma boa dose de Dewey para pôr de pé uma pedagogia marxista. O restabelecimento foi rude. Temos a impressão de que os chineses, longe de se aproveitarem dos erros cometidos pelos soviéticos e das suas retificações, se precipitaram nas mesmas armadilhas. A consegiiência disto é um nível muito rudimentar de pensamento teórico, de pensamento político; e não basta dizer que a escola se satisfaz com isso, ela o apresenta como a própria finalidade a ser atingida. Eis um exemplo significativo: um professor pergunta qual é o metal mais leve, se o cobre, se o alumínio. Suponhamos que o aluno nada sabe, mas que responde: “Sei que a pátria necessita de cobre para se defender do perigo de uma eventual agressão”; mesmo que não tenha respondido exatamente à pergunta, pode ser aprovado. O nosso autor vê e louva aí o primado dado à política e até a prova de um elevado grau deiniciativa política.
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da, deixa de ter qualquer característica, quer dialética, quer
marxista. Trata-se, ou de uma espécie de espontaneísmo, ou de preceitos de Mao, que à força de usados, manipulados e, por
assim dizer, esticados, servem seja para o que for e até como sentenças. Entre as duas hipóteses, um vazio assustador. Onde, em relação aos adultos, for recusado o empenho na formação e na investigação sistemáticas, irá a escola necessariamente descurar o papel da elaboração teórica e do esforço de abstração. Dizem-nos que a escola visa, acima de tudo, inculcar nas crianças as boas qualidades dos operários sem que se mencione nenhum risco inerente a essa instalação ao nível da existência espontânea. É um admirador do regi-
GEORGES SNYDERS
ESCOLA, CLASSE E LUTA DE CLASSES
Não se trata de nenhum modo decriticar a presença diretamente proclamada da política na escola e de escapar à neutralidade burguesa, da qual sabemos muito bem como dissimula os interesses da burguesia. O que nos preocupa, é o simbolismo desta visão política, o simplismo desta incursão da política no conhecimento objetivo, e isto é fácil de prever desde que a escola reserve tão pouco espaço à análise científica; ora a escola não faz mais do que seguir o exemplo de todas as instituições de um regime convencido de que só minimizando a elaboração teórica pode participar da vida das massas, tanto nas relações entre as diferentes categorias sociais como no contato com a realidade.
a bons conselhos morais, de uma moral muitíssimo tradicio-
Em troca desta desvalorização do pensamento científico e desta formade se instalar, confortavelmente, ao nível do
imediato, um tipo de educação que nos parece por vezes conter mais da boa ação querida dos escoteiros do que de intuitos socialistas, M. A. Macciocchi descobre aí os princípios dialéticos da política, ela sente-se em presença de uma nova moral, anuncia atitudes inteiramente novas dos alunos em relação a si e à sociedade. Não será oportuno confessarmos que vemos nisso, embora animado de excelentes intenções, um moralismo ingênuo? “Agora, declara um aluno, quando partimos um banco, nós mesmos o consertamosna oficina de
marcenaria, e se rasgamos a roupa, aprendemos uns com os outros a cosê-la... Cortamos os cabelos mutuamente... cuidamos uns dos outros nas doençasligeiras”. Um aluno é apontado como modelo, aquele que, findas as aulas, vai varrer o pátio e soubee persuadir alguns camaradas a se juntarem a ele. Não conseguimos fazer coincidir com uma perspectiva socialista os pensamentos do Livrinho Vermelho, que são evidentemente escritos no quadro, e que parecem resumir-se 150
nal para não lhe chamarmos burguesa, frequentemente uma exortação bastante estóica à abstinência. “O malogro está na origem do sucesso. Da infelicidade nasce a felicidade. A miséria é também um impulso para transformar o mundo. Da preguiça pode nascer a ação. Do medo pode brotar a coragem e o desprezo pela morte”. Conseguiu-se, na realidade, como sustenta M. A. Macciocchi, refutar o ponto de vista
metafísico e atuar audaciosamente em relação aos erros da burguesia quando se proclama, quando se invoca o marxismo para proclamar que não existem doenças incuráveis ou que nenhum escrito científico alcançou uma verdade absoluta e imutável? É tal e qual como descobrir que nos estabelecimentos industriais, os resíduos podem ser utilizados de novo depois de adequada transformação. Suzanne Citron evoca com enlevo um mundo onde se luta contra o sucesso individual, a vaidade, a preocupação de carreira; contra o afastamento social entre trabalhadores manuais e trabalhadores intelectuais, contra a existência de uma
camada tecnocrática de trabalhadores e de intelectuais separados do povo. Desgraçadamente, mal chega aos exemplos concretos, mostra-nos ela professores e alunos limpando em conjunto as instalações da escola, crianças de 9 e 10 anos que fazem canetas e jovens que vendem a sua produção ao Estado Socialista. Vai uma grande distância das palavras à ação, das grandes proclamações à realidade observada. L. Lurçat, como boa maoísta, leva ao extremo esta es-
quematização das relações teoria-prática a ponto de pedir que se desloque a escola infantil para a cozinha: ela considera burguês ensinar gestos às crianças que conservam um ar brincalhão e gratuito e que tudo isso se remediará a partir do momento em que as coisas se passem na cozinha da escola,
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onde são as próprias cozinheiras a mostrar às crianças a forma de utilizar os utensílios. Umaescola que visava integrar no ensino a prática e a
des naturais ou adquiridas”. O fim a se atingir é a “supressão da velha divisão do trabalho”. Tal formação está, portanto, em flagrante contradição com o modo de produção capitalista, que exige a oposição entre proletariado executante e pessoal dirigente — e surge por isso como um dos meios mais poderosos de transforma-
vida das massas, mas que não acredita, pelo menos nesta
fase, nesta primeira fase, poder chegar lá sem negar o enriquecimento da prática pela teoria, sem acabar com as qualificações para se persuadir da igual classificação de todos. Paralelamente, ela remete o pensamento do socialismo para
um catecismo moralizador e um bom senso ingênuo. É, efetivamente, em comparação com esta escola, enca-
rada como solução modelo, que Baudelot-Establet não reconhecem a mínima validade na formação dispensada pela nossa escola; na realidade, se a escola politécnica é isso, a
crítica da nossa escola feita por Baudelot-Establet, a separação absoluta que eles pretendem estabelecer entre uma e outra se justificariam. H — Regresso ao marxismo Mas, na realidade, a escolha não reside de forma alguma entre a escola capitalista — da qual é exato dizer-se que está separada da prática, da prática social, da prática das massas e que está fundamentalmente mutilada por essa amputação — e essa escola da revolução cultural chinesa em que a conexão com a prática parece realizar-se em detrimento da teoria. É neste ponto queinteressa investigar as idéias de Marx e de Lenin sobre a escola politécnica. Marx exige que a educação socialista reúna o trabalho socialmente produtivo à instrução e à ginástica. É “o único método possível para produzir homens totalmente evoluídos”, atingir, enfim, o “indivíduo íntegro que sabe enfrentar as mais diversificadas exigências do trabalho e dá, em funções alternadas, livre curso à diversidade das suas capacida-
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ção da sociedade atual. Tal ensino politécnico constituirá uma ruptura propriamente revolucionária em relação a escolas, onde só tinha direito de cidadania a intelectualidade pura, em contraste com locais em que se operava uma aprendizagem limitada; e contudo, as escolas agronômicas, criadas pela burguesia para seu uso, por se haverem tornado necessárias às tendências íntimas da produção moderna. Aliás, a dita burguesia evita que ingressem nessas escolas os filhos do proletariado. À escola politécnica tomará por base a compreensão e o funcionamento da tecnologia prática e teórica. A tecnologia descobriu o pequeno número de grandes formas fundamentais do movimento, em que toda atividade produtiva do corpo humano necessariamente se processa, malgrado a diversidade dos instrumentos empregados. A partir daí o esforço educativo vai prosseguir com um duplo objetivo: anotar os princípios gerais e científicos de qualquer modo de produção e iniciar as crianças e os adolescentes no manejo dos instrumentos elementares de toda indústria. Semelhante escola realiza uma renovação porque nela teoria e prática se tornam inseparáveis: os princípios dos modos de produção só são, na realidade, compreendidos,
através do manejo dos instrumentos e, reciprocamente, os instrumentos só serão manejados de forma válida e enriquecedora por quem tiver compreendido como a multiplicidade dos movimentos e dos processos se concentra, cientificamente, em alguns princípios sintetizados. Renovação revolucio153
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nária, pois deixa de existir uma classe que compreende e uma outra que maneja e, simultaneamente, persistência no que é essencial à escola. A tecnologia tal como é interpretada por Marx situa-se a um nível de generalidade e de abstração semelhante ao das disciplinas escolares, exigindo, no melhor sentido do termo, um esforço de tipo escolar: nada de tentativas, de ensaios sucessivos às cegas, nada de nos deixarmos
levar pela rotina da ferramenta; a tecnologia é aquilo que permite ultrapassar as configurações variadas e aparentemente desgarradas da vida industrial para aí descobrir os efeitos das forças mecânicas simples. E a tecnologia permite mesmo ir mais longe: abre caminho ao materialismo dialético. “Pondo a nu o processo de produção da vida material, ela desvenda a origem das relações sociais e das idéias ou concepções intelectuais a elas inerentes”. Mas tal resultado não será evidentemente obtido pela simples aplicação de técnicas, senão todos os operários e desde sempre, teriam sido marxistas; é indispensável que, a
partir da referida aplicação, os proletários compreendam primeiramente as leis que levam à unificação das técnicas e depois os laços dialéticos que unem infra-estruturas e superestruturas. Este árduo itinerário só será cumprido com uma orientação no sentido do abstrato, que de certo modo retoma a segiiência da orientação escolar, metamorfoseando-a pela sua constante inserção na prática. O ensino politécnico tem porfinalidade a união consci-
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é simultaneamente aquilo que adapta a natureza às nossas necessidades e aquilo que estimula, enriquece a inteligência, até o ponto em queela se irá opor às próprias condições em que, até o momento, se desenrola esse trabalho.
Althusser mostra com lucidez que “não existe de um lado a teoria que seria apenas pura visão intelectual, sem corpo nem materialidade; e do outro, uma prática toda material, do tipo experimentar sozinho”. Na realidade, está sem-
pre patente um elemento do conhecimento nos primeiros degraus da prática, apesar de ser percebido sob formas rudimentares e ainda impregnadas de ideologia. E é seguramente por isso que o ensino politécnico não se situa no domínio da utopia: realiza um dos mais surpreendentes exemplos daquilo a que anteriormente chamamos continuidade-ruptura. Para que a escola seja arrancada do domínio burguês, se torne um instrumento da ditadura do proletariado, Lenin quer a instrução não somente gratuita e obrigatória, mas logo à primeira vista politécnica. Ao mesmo tempo, previne a escola politécnica contra o perigo principal que a ameaça e que consistiria em se reduzir à aprendizagem precoce de determinada profissão; trata-se, sem dúvida, de ensinar a teoria
e a prática dos principais ramos da produção. Ainda aqui este ensino é, num certo sentido, o contrário
damento do pensamento. A atividade do homem, o trabalho,
da nossa escola, visto implicar uma participação no trabalho socialmente produtivo que não tem qualquer equivalente na escola, e nunca se deve esquecer que este trabalho tem uma finalidade revolucionária, faz parte de um projeto revolucionário: o homem que se pretende formar só pode existir negando a divisão do trabalho, a divisão da sociedade em classes. Mas este ensino é igualmente a resposta finalmente dada àquilo que tantos pedagogos inovadores (e entre eles, pouco numerosos são os que conseguiram ultrapassar as fronteiras do seu mundo burguês) procuraram confusamente
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ente e elaborada, da prática e da teoria, o que de fato só é
possível, quer se queira ou não, por a teoria e a prática estarem já unidas. Como sempre o marxismo pretende impelir até o seu termo revolucionário um movimento já existente. É na transformação da natureza pelo homem que reside o fun-
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quando sonhavam ligar a escola à vida. Ele conserva da nossa escola a exigência de conduzir os alunos até um grau elevado de conceitualização e de rigor. Mesmo a atuação na fábrica, abalando de ponta a ponta a escola, inscreve-se de
certo modo no que é escolar, pois se trata de uma instrução metódica, uma progressão pedagogicamente pensada: a tecnologia visa atingir o ponto em que surgirá a unidade sintética de uma multiplicidade de comportamentos e de movimentos, desde os movimentos das máquinas até os movimentos sociais. Em 1931, Krupskaia, ao mesmo tempo que organiza o
trabalho prático e efetivo das crianças com os operários e camponeses, empenha-se precisamente em constituir um programa, ou seja, uma concepção orgânica do mundo,inteiramente pensada; exige que cada etapa do trabalho esteja vinculada da forma mais estrita à aquisição de conceitos e de competências. É unicamente na medida em que tal sistematização for instituída que a teoria se juntará à prática sem pretender confundir-se com ela, sem pretender jorrar dela devido a circunstâncias fortuitas — e que o trabalho se tornará para os alunos um alargamento do seu horizonte cultural.
ESCOLA, CLASSE E LUTA DE CLASSES
mento dos princípios reúne os fundamentos tecnológicos e as
regras da economia planificada. Nestes termos, por exemplo, a organização de conjunto numa planificação socialista é simultaneamente vivida pelos alunos como realidade através do seu trabalho produtivo e constitui um objeto de estudo a ser interpretado e discutido. Semelhantemente, a tecnologia, como fundamento geral das
profissões, implica um intercâmbio entre os gestos profissionais e Os princípios gerais abstratos, cujos maquinismos múltiplos representam outras tantas exemplificações. Assim, os conhecimentos adquirem presença, significado, em relação às necessidades humanas e à energia necessária para os pôr em execução e, portanto, em relação à vida das massas operárias que os executam; conhecimentos que nem por isso deixarão de ser conhecimentos. Um exemplo simples demonstra perfeitamente o que está em jogo no plano propriamente pedagógico. De um lado, um professorde física que dirige um curso sobre indução eletromagnética, a partir do esquema clássico: uma espira retangular girando num campo magnético. De outro, o aluno em presença do gerador de corrente: ele já não enfrenta o fenômeno físico puro, estilizado, reduzido aos seus elemen-
HI — A escola politécnica na RDA A escola na URSS e na RDA permite-nos distinguir o que pode ser uma escola socialista politécnica. Na RDA o esforço pedagógico visa manter os dois extremos da cadeia, de um lado a familiaridade com as técnicas
até as dominar; um trabalho real — o que os alunos fabricam faz parte da produção da fábrica — um trabalho útil e cuja utilidade eles percebem. Mas ainda, um ensino que lhes inculca as bases científicas, técnicas, políticas e econômicas da
produção. Como essencial, destacaremos que este conheci-
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tos necessários e suficientes. À complexidade, a situação excessivamente real, as sobreposições e combinações de fenômenos físicos em jogo fazem com que, no primeiro momento, ele não reconheça o que, no entanto, percebera, sente-se confundido. Por isso a
importância do ensino constituir um conjunto que engloba a explicação que simplifica, que isola, e a atividade prática onde o princípio científico se encontra inserido entre múltiplas circunstâncias -— antes perdido no meio delas. E porvia interna, intrínseca, que se efetua o trajeto entre o funcionamento prático e a perspectiva global: um aluno se indaga sobre o modo de funcionamento de uma perfurado157
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ra, daí se porá num dado momento a questão: funcionará com o máximo das suas capacidades? O que o leva a querer saber comoestá organizada a produção. Esta questão abstra-
rem-se nela, quer no seu aspecto técnico, quer no político: será possível dizer-se deles que são educados, até reeducados, por operários e camponeses, o que não significa de forma alguma que a sua educação se reduza a imitar, a arremedar a vida de um determinado operário ou de qualquer camponês, seja ele o mais convicto dos militantes. Enfim, esta atividade produtora, não é separável da iniciativa assumida pelos alunos; ela só possuirá valor formativo se puser ao mesmo tempo em jogo a iniciativa e constituir um campo particularmente favorável à tomada de iniciativa. O trabalho prático efetuado pelos alunos realiza-se sob a responsabilidade dos alunos, seguros do grupo que constituem; e primeiro participaram na preparação do trabalho, for-
ta, complexa, assume todo o seu significado, torna-se um
problema real porque os alunos participam na produção e podem, desta maneira, perceber como o seu trabalho está incorporado no conjunto das realizações previstas; pouco a pouco irão distinguindo como esse trabalho, o seu trabalho, e finalmente o trabalho, contribui para o progresso da sociedade socialista, ao mesmo tempo que para a formação do próprio trabalhador. Para isso são indispensáveis duas condições: de um lado, que à experiência da produção venha juntar-se uma teorização metódica, porque a significação do trabalho, a possibilidade de melhorar o trabalho não estão de imediato contidas, nem se lêem de imediato nos gestos relativos a uma profissão. De outro, que a atividade produtora dos alunos em nada se assemelhe ao amadorismo, mas que se situe num elevado nível do progresso técnico, econômico e social. Máquinas modernas, métodos modernos de produção. Deste modo o trabalho produtivo dos alunos constitui umasíntese do trabalho operário e de certos processos adequados à escolarização: em particular são os monitores qualificados que preparam tarefas simultaneamente reais e educativas. Pode acontecer que se institua uma rotação de funções a fim de os jovens se familiarizarem rapidamente com uma multiplicidade de operações, mesmose, de imediato, isso for desfavorável ao rendimento e não corresponder à organização do trabalho dos adultos. Pode ainda acontecer que em inúmeras circunstâncias os salários inerentes ao trabalho dos jovens sejam, para a fábrica, superiores ao valor daquilo que eles produzem. Os alunos podem, portanto, participar de maneira válida na experiência da classe operária, aproveitarem-na,inseri-
classe operária se erguer como força dirigente, onde a oposição entre classes for ultrapassada. É numa sociedade que recupera a sua unidade que o homem pode recuperar a sua integralidade. Ninguém sustentará que a escola na RDA ou na URSS tenha ultrapassado todas as dificuldades. Seria arriscado afirmar que o politecnismo tenha conseguido vencer todas as
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maram-se contratos entre a escola e a empresa, que foram
debatidos pela escola e pela empresa. A escola politécnica exige uma sociedade em que a fábrica deixe de ser propriedade privada e fonte de mais-valia para alguns, local de exploração para outros, podendo, na realidade, ser designada como coletividade, esforço comum; os trabalhadores estão efetivamente associados a todas as medidas tomadas, e as discussões com os alunos, as decisões
adotadas por estes sofrem intervenção dos trabalhadores proporcionando um dos momentos da gestão da fábrica realizada por todos os interessados. A união dos alunos com os operários, o papel desempenhado pelos operários junto aos alunos, só podem assumir realidade onde o trabalho operário for valorizado, onde a
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reticências da intelligentsia face ao trabalho operário; nem
que a margem de autonomia própria da juventude tenha sido sempre salvaguardada. O problema foi inúmeras vezes examinado pela imprensa destes países, o que ao mesmo tempo comprova que não foi resolvido e que se procura atentamente solucioná-lo. A escola politécnica nos faz perceber até que ponto o nosso sistema escolar é mistificante; é certo que esta só poderá ser estabelecida numa sociedade socialista, mas pode e
deve ser, a partir de hoje, um incitamento para que o nosso ensino lute contra os privilégios a que pretende atribuir-se um espiritual desencarnado; contra a ignorância e correlativamente o desprezo em que são tidos a vida, o pensamento, as realizações operárias; contra a separação entre a burguesia pensante e dirigente e o proletariado reduzido à execução submissa. Isto não significa que tudo quanto a nossa escola conseguiu até o momento deva ser varrido, porque a escola politécnica, se é o oposto da escola capitalista, defende, integra,
prolonga as conquistas reais — reinterpretando-as, transfigurando-as. Quando se confronta a escola capitalista da França, não com a experiência chinesa da revolução cultural, mas com as realizações da RDA, pode compreender-se ao mesmo tempo que revolução a nossa escola — e, portanto, a nossa sociedade — deve levar a cabo; e que, apesar de tudo, ela agora já mantém elementos válidos e forças de oposição, de progresso; na medida em que formos capazes de lhe proporcionar um papel real, ela deixa de estar implacavelmente condena-
CAPÍTULO HI COMO SE REALIZA A ESCOLHA DOS ESTUDOS
I — Interiorização do destino estatístico Um simples cálculo permite averiguar, por exemplo, as probabilidades que se proporcionam à filha de um operário de entrar para a faculdade de medicina. Generalizando, para cada categoria social existe um futuro objetivamente inscrito em condições objetivas, um sistema de oportunidades que a estatística consegue determinar. A partir do que, Bourdieu-Passeron manterão que mesmo sem o interessado possuir qualquer conhecimento científico destes dados, escolherá o seu futuro escolar: com efeito,
ele encontra à sua volta, entre os que lhe são próximos, seus iguais, certo número de êxitos, certo tipo de fracassos escolares, tal nível de instrução; ele pensará que é esta uma amos-
da, aguardando o Grande Dia, a fazer de todos os seus alunos seres fracos, desarmados, artificiais — escravos.
tragem do que logicamente pode esperar; é a partir dessa avaliação difusa que regulará as suas ambições e a sua conduta. Assim vai nascendo pouco a pouco nele um cálculo empírico, uma estatística implícita que lhe revela quais as oportunidades de sucesso em determinado ciclo de carreira escolar para um indivíduo do seu status social. Bourdieu-Passeron chamam hábitos de classe a este conjunto sistemático de disposições inconscientes e duráveis
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que se constituiu a partir de sanções convergentes e repetidas
viver-se no melhor dos mundos, o mundo da harmonia préestabelecida, aquele em que os indivíduos realizam os seus
do universo econômico e social. É, portanto, este hábito de
classe que leva determinado indivíduo a julgar possível, conveniente, ou inverossímil, certa opção escolar e profissional. Disto os nossos autores deduzem que é um só e único movimento que comanda a escolha em si e as possibilidades de êxito na direção escolhida. Por exemplo, uma criança vinda das classes populares será de opinião de que o secundário clássico não é feito para pessoas como ela (e poderemos dizer que esta opinião, por definição, é a da sua família), que é improvável, presunçoso da sua parte querer chegar lá; o que vai inspirar-lhe um conjunto de atitudes e de disposições, de reticências e de receios que ameaçam seriamente levá-lo ao insu-
desejos: mas, na realidade, esses desejos foram-lhes ditados
pelas possibilidades de realização efetiva que lhes eram abertas e, naturalmente, para as classes exploradas, desejos e oportunidades de execução só podem ser extremamente limitadas. Assim os indivíduos não esperaram nada que não obtivessem e não obtiveram nada que não esperassem. As pessoas vivem na ilusão bem fundada do imprevisível e, contudo,
nada mais fazem do que repetir o seu passado, o passado da sua classe. Na verdade, agem de maneira a que subsistam as desigualdades estabelecidas: basta-lhes confiar nos diferentes
ciclos escolares que lhes oferecem com umacandura duvidosa — e continuam a seguir o exemplo dos seus semelhantes.
cesso, confirmando, portanto, as suas apreensões iniciais. Ao
passo que uma criança de meio favorecido abordará os mes-
Num
sentido,
poucas
passagens,
em
Bourdieu-
mos estudos como um futuro que lhe é natural, banal, a via
Passeron, soam de forma tão próxima do marxismo como
que normalmente lhe estava destinada; e persuadido de que
preocupa com a reprodução de situações estabelecidas, visto cada um, na sua opção, nas suas ambições, e logo a seguir, na realização dessa opção, se limitar a assumir por sua conta o destino da sua categoria e da sua classe. Mas ao mesmo tempo — e é este ponto em que quere-
esta célebre análise cujas grandes linhas acabamos de resumir. A consciência imediata é uma consciência mistificada, sofre determinismos de classe que se impõem a ela tanto mais imperiosamente quanto ela não consegue dominá-los, nem sequer compreendê-los claramente. Certo tipo de contentamento sentido pelo proletário não passa da sua alienação ainda não descoberta, diante de um sistema que é sutilmente ajustado para funcionar em proveito das classes dominantes. É, pois, de má fé nos contentarmos com a satisfação dos interessados, a qual encobre em inúmeros casos umareal impotência, o futuro amordaçado que só consegue recomeçar o passado. Bourdieu-Passeron ajudam-nos a perceber que a atitude explícita do aluno — o queele diz e supõe sentir e o
mos agora insistir — não há descontentes, nem pode haver,
que ele chega a sentir — não constitui um elemento novo,
pois as condições objetivas determinam simultaneamente as aspirações e até que grau elas podem ser satisfeitas. Parece
auto-suficiente: é indispensável ultrapassá-lo,ir até à percepção das condições que o suscitaram. Eis porque, consideran-
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deve lá estar à vontade, saberá mover-se com desembaraço.
Assim, existe em princípio um processo de interiorização do destino objetivo da categoria — e é esse precisamente um dos mecanismos pelos quais se realiza esse destino objetivo. A conclusão de Bourdieu-Passeron é dupla: o sistema escolar funciona de forma extremamente conservadora, só se
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ESCOLA, CLASSE E LUTA DE CLASSES
do um só exemplo, os múltiplos questionários de interesses e de aspirações, malgrado o seu aparelho estatístico sabiamente
conta do seu papel de vítimas. Como poderiam elas opor qualquer resistência? A classe operária é escrava de um sistema de pressões de que nem desconfia. A classe operária re-
sofisticado, não nos satisfazem normalmente: os alunos não
nos confiam, como deveriam, senão o que penetrou até à sua consciência, mas as motivações profundas da sua escolha não se inscrevem com a mesmafacilidade com que uma cruz assinala uma resposta sugerida. Mesmo se a aspiração a uma escolaridade curta é sentida por um aluno de meio popular como elemento original e determinante, nem porisso deixa de
ser uma resultante, o resumo das experiências que se processaram em torno dele e em que ele participou — o que não significa automaticamente que consiga atingir a sua plena significação. Sobre estes pontos realizam os nossos autores um progresso decisivo: dirigem-nos avisos que não esqueceremos. H — E, contudo... Contudo, o tema global desta análise não nos parece
convincente. A escolha de determinado ciclo não passaria de uma opinião, suscitada por uma espécie de rumor coletivo e confuso; a idéia, a idéia pura e simples que o jovem e a sua família têm das suas possibilidades de êxito. A classe operária move-se num mundo de sombras, de fantasmas, de diz-se.
As suas atitudes carecem de base real, de causa objetiva. Estamos em pleno idealismo. Resulta que a consciência operária corresponderia não a um começo de compreensão que convidaria ao esclarecimento, que se abriria ao esclarecimento, mas a um erro total: o indivíduo torna-se uma espécie de autômato, que não dis-
corre sobre o que lhe sucede; interpreta de maneira absolutamente falsa as causas que o levam a agir e mascara completamente o sentido das suas ações. A junção dos dois temas, nas classes dominadas, é um conservantismo sem história: vítimas que nem sequer se dão 164
duz-se a uma imensa passividade. Não há descontentes, não
há lutas. Como lutar contra o que não oferece resistência? A sociologia escolar de Bourdieu-Passeron insiste no escolar, isola os fatores escolares, esforça-se por explicar o escolar com o escolar; e chega a pôr de lado o conjunto das determinações sociais. A escola surge como isolada das instituições e dos mecanismos globais. Talvez seja o preço de quase ter criado essa sociologia escolar: deixam-se prender pela sedução do seu próprio fruto. Mas chegam a estas fases assombrosas: “Esses mecanismos que asseguram a eliminação das crianças das classes inferiores e médias agiriam quase com a mesma eficácia... nos casos em que uma política sistemática de bolsas ou de subsídios de estudo tornasse formalmente iguais perante a escola os indivíduos de todas as classes sociais... À igualização dos meios econômicos poderia ser realizada sem que o sistema universitário cessasse porisso de consagrar as desigualdades”. Vê-se o que está em jogo: as condições de vida dos alunos são remetidas às suas condições de vida escolar e finalmente ao problema das bolsas; a igualização dos meios econômicos seria obtida graças a um subsídio de estudo. Esqueceu-se que a desigualdade dos alunosé, na realidade, a desigualdade global dos seus modos de existência? A extensão das bolsas pouco modificaria a seleção, não porque a estrutura escolar seja intocável, determinada pelas suas próprias forças, ou antes, pela sua própria inércia, mas porque não bastará evidentemente para preencher os fossos, os abis-
mos existentes entre as famílias.
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Igualmente, ao considerar a escolha dos ciclos de carreira escolar, os nossos autores só tomam em conta uma im-
objetiva na opção escolar, no destino escolar, ou seja, a situação desfavorecida das classes desfavorecidas, que o comba-
pregnação dos interessados pelos resultados escolares habituais no seu grupo, considerados como causa principal, desligados das condições que os suscitaram. Por isso as condições objetivas se diluem em convicções. Quando se trata de um aluno do CEG que tem de escolher entre continuar no ensino técnico ou enveredar pelo CET e que hesita entre ambos, as explicações que nos são propostas contêm porcerto o seu quê de verdade. Mas já será
te é real, constitui a realidade da história.
diferente, por exemplo, se encararmos o problema de entrar ou não para o segundo €, a via científica, a via real: tais alu-
Nas suas opções escolares como nas suas outras ações, a consciência operária não consegue de imediato uma percepção inteiramente lúcida da realidade social, mas não se julga condenada a ser o joguete passivo de mistificações que a fariam tomar o negro pelo branco e optar livremente pela resignação ao conformismo. A classe operária tem uma compreensão ao mesmo tempo real e parcial da sua situação; e por isso é que um partido da classe operária, esse partido que falta tão cruelmente nas análises de Bourdieu-Passeron,
nos, e que não estão repartidos ao acaso pela população, ficarão bloqueados por um fator bem autêntico, irrefutável, pelo
é simultaneamente possível e necessário, possível porque
menos no mundo da orientação escolar, e que não é de forma
bate operário e necessário para proporcionara essa experiência a vastidão e a coerência que ela não atingiria só porsi. Isto significa em relação à escola, que existem — digam o que disserem Bourdieu-Passeron — descontentes e lutas, lutas de classe: não é só este ou aquele indivíduo re-
alguma apenas um rumor: os seus resultados em matemática, a insuficiência desses resultados. E estas dificuldades remetem para o modo de vida, para as dificuldades de vida que tiveram de enfrentar os jovens das classes dominadas. Se são tão poucos os filhos dos operários que se matriculam na Politécnica, não é pela circunstância de se impressionarem pela raridade de alunos da escola Politécnica que encontram no seu meio. De fato, a exploração que pesa sobre eles e a família não lhes permite desenvolver à vontade as suas qualidades científicas.
nasce das realidades da experiência operária, isto é, do com-
clamando contra a sua sorte, mas também a classe operária,
futável que as classes dominadas, bem longe de se mostrarem satisfeitas com a ordem estabelecida, travam uma
no seu todo, sempre protestando contra o sistema que pretende afastá-la ou encurralá-la em formas exangues de escolaridade. As reivindicações escolares sempre constaram do programa das forças progressistas; resultados ao mesmo tempo reais e parciais foram obtidos sempre que estas forças estiveram em situação de influenciar o poder — ao passo que Bourdieu-Passeron descrevem um sistema escolar onde não há mudança, onde ela é impossível e a opção dos estudantes não passaria da oportunidade perpetuamente renovada de um não-mudar.
luta sem tréguas simultaneamente contra a exploração em geral de que são vítimas numa sociedade dividida em classes e contra as consequências desta exploração sobre a escolaridade dos seus filhos. É precisamente por haver uma base
E em grande parte a escola que gera o descontentamento contra a escola; uma escolaridade reduzida desperta o gosto por uma escolaridade mais avançada. Isto dizia Illich, e
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E desde que se relacione o destino escolar com as condições de existência no seu conjunto, deduz-se de formairre-
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com razão, apenas com a diferença de que ele interpreta isso como uma catástrofe, ao passo que nós vemos aí um motivo de esperança. Do mesmo modo, são frequentemente os docentes que
levam a criança além dos limites a que ia confinar-se, a ultrapassar o grau de aspiração do seu meio. M. Reuchlin observa que, no fim do 3º, os professores mostram em geral
tendência para exercer uma influência moderadora sobre as ambições educativas das famílias, mas que a sua atitude é sensivelmente diferente em relação às famílias socialmente desfavorecidas. Concordamos com os docentes que contribuem para este descontentamento criador. Não se trata de operar alguns salvamentos individuais, mas de uma ação de conjunto ao nível das classes exploradas. Que este movimento pelo qual a classe operária se opõe aos aspectos conservadores da escola, ao seu encerramento em determinado ciclo truncado não basta, que a cooperação com os docentes nem sempre lhes seja garantida, é fato mais do que indiscutível; os riscos de automatismo re-
produtivo e de contentamento passivo das próprias vítimas, riscos denunciados por Bourdieu-Passeron, existem. Mas
existe igualmente um movimento oposto e que não cabe no universo de Bourdieu-Passeron. A partida não se Joga unicamente entre alunos ludibriados e professores cúmplices do sistema. À luta contra opções escolares de refugo faz parte da grande luta contra condições de vida de refugo; ela existe porque lhe assistem razões objetivas e por isso o movimento operário organizado sempre a reivindicou. Temos, pois, de nos apoiarmos nela uma vez mais para a forçarmos a atingir o seu auge.
São numerosas as passagens em que BourdieuPasseron são reticentes a respeito das pedagogias nãodiretivas. Começam demonstrando que as experiências até
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agora tentadas neste sentido se adaptam muito melhor aos desejos dos jovens vindos da burguesia do que às crianças da classe operária: “O mito da auto-educação, utopia aristocrática própria de pequenos grupos de alunos”. Igualmente, a
tendência do professor para a elite é um risco constante: não fiscalizar, não vigiar ou pelo menos não abrandar à vigilância, é um meio de assumir umaatitude docente de qualidade para discentes de qualidade. Analogamente, Monique de Saint-Martin, discípula de Bourdieu-Passeron, explica que, na faculdade de ciências, são os estudantes dos meios favorecidos que reivindicam poder trabalhar à sua maneira, organizar o trabalho sozinhos,
a ponto de serem os únicos juízes do seu trabalho: os estudantes vindos das camadas populares preferem exames parciais, perguntas de algibeira, modalidades organizadas por uma aprendizagem de conhecimentos sistemáticos. Bourdieu-Passeron receiam que semelhantes tentativas
acabem por diminuir a extensão das matérias, impedindo,
portanto, o avanço do aluno em vez de lhe proporcionar o meio de ultrapassar a sua situação: “Certo ensino nãodiretivo podetirar partido de uma elevada taxa de assimilação, mas à custa de uma considerável diminuição da qualidade de informação assimilada... o nível de emissão é regulado definitivamente por um dado estado do nível de recepção”. A partir daqui será receoso que o grupo nãodiretivo caminhe ao lado do movimento das liberdades que procura a integração; a sua atividade essencial acabaria então por se expor a críticas como grupointegrado. Bourdieu-Passeron dão mostras de uma extrema lucidez ao recusar a alternativa entre a ingurgitação e a criação. Para o estudante a escolha real não terá de ser feita entre à passividade receptiva e a imagem romântica do trabalho intelectual como criação livre e inspirada. A participação original na cultura e a assimilação pessoal da cultura existente
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serão atingidas através do entusiasmo, do exercício, das téc-
nicas metódicas de definição e de classificações; de forma alguma pelo sonho de se cair de improviso na efusão mútua ou na audição em grupo. Será necessário acentuar a nossa alegria por depararmos com tais temas, em convergência tão direta com os que tentamos sustentar? Todavia, não estamos inteiramente tran-
quilos, pois a figura do professor, em Bourdieu-Passeron, provoca-nos inquietação: aparece como que desprovido de iniciativa real, um funcionário perfeitamente dócil, mola real
de um sistema bem lubrificado. Também é inconcebível que, para os nossos autores, ele não tenha, nem vontade, nem poder de desmistificar aos olhos dos alunos a sua própria escolha; ainda menos os ajude a ultrapassar-se. Portanto, um professor que, quanto aos pontos essenciais, não pode, nem sequer sonha, assumir um papel eficiente. Daí recearmos que ele apenas escape à não-diretividade para endossar atitudes muito tradicionais em que o ensino não se preocupe sem estabelecer um elo, uma continuidade, entre a vida dos alu-
nos e as vias que lhes propõem. Para evitar os perigos da não-diretividade, arriscam-se os nossos autores a ficar ainda
aquém daquilo que essa não-diretividade nos deixará pressentir, em lugar de avançar ou de a integrar numa pedagogia renovada, cuja noção continua ausente e talvez, aqui, ainda não compreendida.
CAPÍTULO IV BOURDIEU-PASSERON A IDEOLOGIA DOS DOTES
PRIMEIRO TEMA: Bourdieu-Passeron desmontam a ideologia das classes dominantes As classes privilegiadas não vêem, não querem ver, talvez se deva dizer que não podem ver, a conexão entre as desigualdades sociais e as desigualdades de êxito escolar. Por uma mistificação basilar, elas vão explicar as desigualdades de sucesso escolar como desigualdades naturais, desigualdades de dotes — e, naturalmente, falta de dote nas
crianças que sofrem ou são reprovadas na escola, portanto, nas crianças das classes populares. O êxito remeteria para as qualidades inerentes ao indivíduo, desde o seu nascimento,
até pelo seu nascimento, e que se designam de mil maneiras: aptidões, talentos, dotes etc.
Noélle Bisseret afirma com razão que “na linguagem corrente, a palavra aptidão designa um caráter inato, uma realidade natural, substancial, causal, marcando as condutas
com o sinete da irreversibilidade”. Nem de longe nem de perto se pensa em investigar o fundamento desses dotes: trata-se dos insondáveis desígnios da graça. A Providência, ou a sua sósia, a Natureza, escolheu este para dotar para as ar-
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tes, para o êxito escolar; aquele outro não foi visitado pelo Espírito. Uns emocionam-se ouvindo Debussy enquanto outros se enfastiam. De onde se conclui a existência de uma desigualdade, também ela natural, e justificada, de necessi-
são as suas vítimas: os desfavorecidos, que vão persuadir-se de que o seufracasso escolar advém da falta de dotes.
dades culturais; certos indivíduos são de tal forma constituí-
dos que sentem necessidade de uma vida que lhes possibilite vagar e disponibilidade para se alimentar de música. Outros são alheios a ela. Assim conseguem as classes privilegiadas legitimar — e, portanto, perpetuar — os seus privilégios culturais e simultaneamente, os sociais; negando, nem sequer
querendo admitir, que se trata de uma herança social, proclamam-se portadores do mérito pessoal. A escola não consegue, nem sequer tenta romper com
esta doutrina pela qual as classes privilegiadas querem justificar e impora sua existência. Pelo contrário, participa nesse grande logro: ela decreta uma sanção pretensamente neutra, mas que, na realidade, aponta para aptidões socialmente condicionadas, que correspondem diretamente às perspectivas e hábitos das classes favorecidas. Ignorando-o, tomando todas as precauções para o ignorar, continuando a incensar de louvores os favorecidos, de censuras e de interdições de
avançar as crianças vindas das classes não-privilegiadas, ela assegura ao sistema existente a consagração de que necessita para se defender: Ela transforma as desigualdades de fato em desigualdades de direito... as diferenças econômicas e escolares em distinções de qualidade. Resumindo, as classes privilegiadas, com a cumplicidade da escola, impõem uma visão do mundoem que haveria como que uma diferença de essência entre duas naturezas e que autoriza, a partir daí, uma sociedade em que duas classes auferem situações, vantagens, modos de vida totalmente diversos. O drama é que estas interpretações, esta ideologia dos dotes, vão ser consideradas à risca, mesmo por aqueles que
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Daqui o valor propriamente revolucionário da sociologia da educação, e mais genericamente, da sociologia da cultura: a simples descrição das diferenças sociais e das desigualdades escolares que elas instituem constitui por si um questionar do princípio em que assenta o sistema atual. Ela desvendará a ligação maciça entre o triunfo cultural e as situações sociais privilegiadas, obrigará a aceitar que são as desigualdades socialmente condicionadas perante a cultura,
que prestam contas das desigualdades nos êxitos escolares e universitários. Há um segredo que as classes exploradas não desvendaram — e os dominantes esforçam-se, o mais possível, para que ele permaneça um mistério —: esses famosos dotes são simplesmente o resultado das condições favoráveis que envolveram os privilegiados, e absolutamente em nada a auréola que os predestinava a figurar no número dos privilegiados. Desmascarando-a, o sociólogo dá um golpe decisivo em toda a constituição ideológica pela qual os eleitos pretendem provar o bom fundamento das suas prerrogativas. Mesmo se a sociologia escolar não puder ainda ser considerada uma ciência constituída, que apresente um conjunto de trabalhos definitivamente estabelecidos, o impulso que provoca possui como que um valor de choque, segundo explicam os autores numa passagem capital: “A investigação sociológica é obrigada a suspeitar ou a denunciar metodicamente a desigualdade cultural socialmente condicionada sob a capa de desigualdades naturais aparentes, visto que só em desespero de causa deve pronunciar-se pela natureza. É uma espécie de ceticismo metódico, um gênero de aposta, de con-
jectura favorável por hipótese à causa dos desfavorecidos. Enquanto não se explorarem todas as vias por onde atuam os 173
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fatores sociais da desigualdade e que não se tenham esgotado todos os meios pedagógicos de a vencer eficazmente, melhor duvidar demais do que pouquíssimo”. Trata-se, em princípio, de reagir violentamente contra a boa consciência trangúila e a ideologia dos dotes que ela segrega. Dois domínios bradam por um esforço particular de desmistificação: a primeira educação familiar e o domínio da cultura dita livre, em especial a artística, desde o fregientar concertos e exposições até o conhecimento de obras literárias de vanguarda, aquelas que não constam nos programas. Trata-se, em ambos os casos, daquilo que não se ensina na escola e que constitui, contudo, um auxílio considerável, até uma
condição do êxito escolar. Há necessidade de uma investigação sociológica que revele a que ponto as influências exercidas sobre a criança variam segundo as condições de vida das famílias e também para denunciar, decifrar essas influências, porque elas não resultam de um esforço deliberado; são aprendizagens imperceptíveis e inconscientes, uma impregnação ao mesmo tempo difusa e total. Fregientar os museus desde muito jovem, viver num meio em que se ama a pintura, escutar aqui e ali palavras que constituam uma iniciação no mundo pictórico, mergulhar na experiência pictórica, como numa espécie de evidência, são outras tantas condições desse famoso dote estético. A partir disto, o sociólogo demonstrará que só as famílias já cultivadas, já privilegiadas, são suscetíveis de assegurar aos seus filhos tal familiaridade com a cultura. E são precisamente esses os alunos que enfeitarão as suas redações com um toque que a escola enaltecerá com a designação de original, de pessoal. Enquanto a sociologia da educação não obrigar a projeção destes dados em plena luz, as classes dominantes ficam perfeitamente à vontade deixando-os num esquecimento cúmplice. 174
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E de maneira realmente magistral, Bourdieu-Passeron mostraram como é falsa, e de uma falsidade interesseira, a
assimilação que apresenta como evidente entre necessidades culturais e necessidades propriamente pessoais, por exemplo, a fome. Gostariam que pensassem que existe certa falta de apetite cultural — e, portanto, os que nela participam teriam por destino uma vida privada de cultura — só lhes compete deixar aos outros, aos que as desejam, tais satisfações, bem como os privilégios que lhes são inerentes. Porém, as necessidades culturais só são reivindicadas pelos que conseguem satisfazê-las, a necessidade cultural aumenta à medida que
for saciada, a consciência da privação decresce à medida que a privação cresce. O sociólogo descobrirá que mesmo as formas mais largamente difundidas da cultura não têm, de nenhum modo,
sobre todas as classes sociais, igual efeito educativo porque não as atingem de forma homogênea. Nunca se pode, pois, afirmar que as oportunidades culturais são idênticas, aproveitando-as cada um segundo a sua natureza. Por exemplo, é extremamente falso supor que a televisão se dirige a todos da mesma maneira: na realidade, a escolha das emissões, a for-
ma de as acolher, o tipo de atenção que lhes é prestada e, finalmente, a formação assim obtida, são outros tantos ele-
mentos dependentes da educação já adquirida e, portanto, situações diferentes logo de início. Os privilégios ou as desvantagens são fortemente cumulativos, o que vem acrescentar a desigualdade das distribuições. É na medida em que pertence a uma família que viaja, que consagra tempo às viagens, que organiza as suas viagens pensando nos recursosartísticos dos países visitados, que dispõe, portanto, de um capital cultural e social importante, que uma criança tem oportunidades de ser encaminhada, muito jovem, para os museus.
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A sociologia de Bourdieu-Passeron sabe opor-se às interpretações espontaneístas do prazer estético, como soube resistir ao espontaneísmo da não-diretividade: queriam nos fazer acreditar que basta nos entregarmos à obra de arte, sem juízos antecipados nem comentários interpretativos. Uma confrontação direta da qual brotaria o prazer instantâneo: um olhar não precavido, ingênuo e inocente. Assim só estaria em questão uma aptidão para o gosto artístico, aptidão constitutiva do indivíduo, inscrita no coração do indivíduo. Contra isto concluirão os nossos autores que o prazer estético que se vive ou se supõe viver como natural é, na
nos assim um instrumento, uma arma essencial para combater mistificações perigosas, não apenas as do passado, mas também as de determinadas correntes contemporâneas.
realidade, um prazer cultivado. É necessária muita cultura para poder, de certa maneira, renunciar à cultura, ou antes,
renunciar a mobilizar de maneira deliberada todos os elementos fornecidos pela cultura e nos colocarmos simplesmente perante a obra numa atitude de receptividade aparentemente simples. É indispensável uma aprendizagem longa e paciente, uma habituação tão constante que os exercícios interpretativos, constituindo a própria trama da existência, deixem de ser considerados de forma distinta.
Mas de que lado da sociedade estão os que conseguiram formar-se deste modo? SEGUNDO TEMA: Bourdieu-Passeron ajudam-nos a lutar contra as mistificações Estamos perante um dos momentos mais fecundos e mais reais da obra de Bourdieu-Passeron. Abordam aqui, si-
multaneamente, um método de investigação e resultados para os quais, sem exceção, devemos todos apelar futuramente.
Devemos aproveitar todo o seu alcance no que concerne à
A sociedade anterior a 1789 assenta ideologicamente na convicção de que cada grupo social está, pela sua natureza, destinado a uma função, predestinado tal tarefa e seria uma espécie de sacrilégio pretender modificar, abalaras situações assim estabelecidas. Deus distribuiu diferentes talentos entre os homens assim como plantou diferentes árvores na natureza; por isso cada talento, bem como cada árvore, pos-
sui a sua propriedade e o seu efeito peculiares. Neste sentido, a realidade feudal-nobiliária reconhece-se, projeta-se numa espécie de teoria das aptidões. Ao que se opõem os esforços progressistas da burguesia pré-revolucionária. Através do século XIX, todos que sonharam com o regresso à sociedade do Antigo Regime reclamaram, com energia ou desespero, essa mesma teoria. Assim afirma Le Play: “A desigualdade das inteligências e a raridade dos espíritos superiores constituem uma lei natural e uma das condições manifestas da harmonia social”. Mas gera-se uma situação aparentemente paradoxal: pouco a poucoa teoria das aptidões vai revestindo-se de uma forma secularizada e assumindo uma aparência republicana, até democrática. O que culminará na psicologia com uma determinada orientação profissional: sendo cada um caracterizado portal capacidade, tal conjunto de capacidades particulares, é necessário e suficiente colocá-lo no lugar preciso em que estas possam ter livre curso; a partir daí o conjunto social obterá o melhor rendimento possível e, paralelamente, cada um, visto trabalhar no sentido das suas inclinações, usufruíria o máximo de satisfação pessoal; naturalmente, esta
seret num artigo célebre, e depois no seu livro. Proporcionam-
distribuição estaria indicada a partir do tempo da escolaridade. Exemplo característico entre tantos outros, o Decreto-Lei
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história das teorias da aptidão, tal como a evocou Noélle Bis-
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de 6 de janeiro de 1959 (Reforma Berthoin): “Por uma exata procura destas diversas aptidões, os diferentes tipos de ensino devem receber todos os alunos que estejam mais especialmente aptos para uma ou outra delas. Propõem-se substituir a orientação baseada na plena observância das ap-
conhecer a existência de diferenças biológicas hereditárias entre os indivíduos”. Agiriam não sobre determinada capacidade em especial, mas a nível global da inteligência que um indivíduo pode atingir; esta herança genética não é encarada como anulando a ação do meio, mas a sua influência consiste em “delimitar a margem das possibilidades entre as quais as condições do meio vão proceder a uma escolha”. E Reuchlin acusa de má fé aqueles que não partilham o seu ponto de
tidões dos alunos”. De forma muito semelhante, Fouchet
declarará em junho de 1963 que o CES tem por finalidade “substituir uma clivagem fundada na situação social, na fortuna, na geografia ou simplesmente no acaso, por uma verdadeira orientação que coloque cada criança, rica ou pobre, urbana ou rural, no caminho para que a solicitam as suas aptidões intelectuais e os seus dotes”. Na verdade, já a mera leitura da exposição dos motivos deixava entender que se trata essencialmente de diminuir o número de estudantes do segundo grau — onde havia penetrado grande parte dos alunos desconhecendo as suas verdadeiras aptidões — e é bem certo que estes extraviados se concentram num certo setor da sociedade. Trata-se ainda de assegurar o recrutamento do ensino terminal em relação ao qual não se esconde que se destina a fornecer à empresas operários não-qualificados que lhes são necessários; isto enquanto se afirma que o problemanão é a hierarquização, mas a repartição, enquanto se preparam de um lado funcionários superiores e do outro os profissionais especializados O mérito de Bourdieu-Passeron não peca porter tornado inaceitável estas invocações das aptidões como fundamento imparcial da segregação escolar, depois social.
vista: eles abafariam a verdade biológica, considerariam seu
Hoje a teoria dos dotes e aptidões tem adeptos que declaram levar em conta as recentes descobertas genéticas. Assim, sustenta Reuchlin que “fatores biológicos hereditários desempenham determinada função nas diferenças constatadas entre os indivíduos, nomeadamente do ponto de vista da sua educabilidade”. Porisso lhe parece indispensável “re-
dever ignorar as diferentes possibilidades dos diferentes genótipos, com medo de serem acusados de perfilhar opiniões antidemocráticas. De qualquer modo, impressiona verificar que os próprios biologistas são muito mais prudentes. Segundo Larmat: “Nem sequer há a certeza de não nos enganarmos considerando provável que no seio da nossa sociedade o patrimônio genético atinja uma proporção compreendida entre um terço e dois terços na aquisição do nível intelectual”, Conclui que a genética, no seu estado atual, não pode vir a ser o monopólio de qualquerdas partes em questão: “Há algo de inato que não se pode desprezar nas nossas aptidões. Não é possível avaliá-lo com precisão, mas pode-se afirmar que é suficientemente grande para condenar qualquer dogmatismo fechado e não o bastante para constranger, por muito pouco que seja, os defensores de conceitos mais avançados”. É numasituação destas, face às incertezas dos cientistas, que a dúvida metódica preconizada por Bourdieu-Passeron nos surge como a via mais fecunda. O mesmo autor mostra, aliás, como esta oposição entre genótipo e meio é falaciosa: não só um mesmo genótipo não se exprime da mesma forma nos diversos meios, como ainda é num meio rico que as desigualdades de origem genética assumem maior vastidão. Por exemplo, é quando são educados em famílias favorecidas que as diferenças de Q.I. entre
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gêmeos bivitelinos são nitidamente mais fortes do que entre gêmeos univitelinos. Deste modo, a participação que cabe ao inato e ao ambiente no desenvolvimento intelectual variam segundo o próprio meio. Portanto, o meio não é dado inteiramente a cada indivíduo, ele não é absolutamente separável do inato. É em parte escolhido ou mesmo criado por cada sujeito. É importante observar que na citada passagem, prolonga Reuchlin as suas interpretações tiradas da biologia com considerações sociológicas: “Parece plausível que as crianças mais inteligentes de uma certa classe sócio-profissional tenham mais oportunidades de acesso a uma classe mais elevada do que as outras”. Haveria, sem dúvida, aqui, uma frase reticente: “o que nãosignifica, de qualquer forma, que a inteligência seja o único fator interveniente na promoção social”. Todavia, somos levados a nos interrogarmos com inquietação sobre se o autor não está a ponto de imaginar, não sente necessidade de imaginar, uma sociedade em que nível social
e nível de inteligência andassem lado a lado; neste caso o conjunto das suas afirmações muito dificilmente se aplicaria à nossa realidade.
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TERCEIRO TEMA: Subsistem graves problemas E, contudo, não podemos deixar de pôr algumas dificuldades essenciais. Antes de mais nada, queremos dizer que a sociologia não tem o monopólio desta desmistificação: a psicologia também dá a sua contribuição, e sobretudo nos seus comportamentos efetivos, quando é arrastada, malgrado os seus postulados, para situações reais que tem de enfrentar. A prática da orientação profissional levou os psicólogos a atribuir um papel cada vez mais importante aos fatores afetivos, aos fatores relacionais, ou seja, às condições existenciais e educacio-
nais, às diferenças entre as situações vividas, e vividas desde a primeira infância, segundo as classes sociais. As contradições entre os casos tangíveis para os quais ela tenta achar uma solução e a teoria das aptidões é, sem dúvida, uma das fontes do mal-estar da psicologia contemporânea — um aspecto da dificuldade global em queela se debate para operar a síntese entre os seus pressupostos ideológicos e as exigências nascidas da sua prática. Mas é assim que ela vai evoluindo para atitudes de acolhimento e de compreensão profunda, onde as noções de dote e de aptidão, tal como eram designadas por Noélle Bisseret, são cada
É tempo de voltarmos a Bourdieu-Passeron. Num aspecto estamos muito próximos da denúncia desta mesma ideologia dos dotes feita por Sêve ao gritar, sob risco de provocar escândalo que “os dotes não existem”; parece que caímos numa perspectiva marxista, pois Marx já havia chamado a atenção para dois pontos: de um lado a diferença entre as disposições individuais é bem menor do que o supomos e sobretudo daquilo de que as classes dominantes querem nos convencer; de onde a fórmula metafórica: um carregador difere menos de um filósofo do que um mastim de um galgo; e sobretudo esta diferença não é inata, dada, não constitui tanto a causa como o efeito da divisão do trabalho.
exemplo, Reuchlin, cujas concepções teóricas nem sempre partilhamos, parece-nos adotar atitudes tanto mais justas quanto se referem mais diretamente à atividade autêntica do psicólogo. Nomeadamente, soube ele denunciar com muita penetração certas evasivas invocadas em apoio dos ciclos segregativos: as formações concretas, isto é, que pouco apelam para o verbal, parecem à primeira vista, as melhor adaptadas às crianças saídas de meios populares; mas ameaçam encerrálas dentro de limites tacanhos e criar guetos. Por isso esta re-
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vez mais abaladas na sua teoria, afastadas da prática. Por
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comendação profundamente válida: “Esses métodos devem sertransitórios e ter por objetivo proporcionar ao maior número possível os meios e as oportunidades de que usufruem mais fregiientemente as crianças socialmente favorecidas”. E é o mesmo que advogara favor da hereditariedade...
os confrontar, ele pode ler aí que não existe um “hiato entre os dois grupos extremos que se oporiam totalmente, mas sim uma progressão muito regular de possibilidades de acesso ao ensino prolongado, de um grupo a outro, à medida que se vão elevando na hierarquia sócio-profissional”. Por exemplo, a mesma estatística pode ser encarada de duas formas distintas. A primeira visão nos leva a concluir que, ao término da escola primária, 76% dos filhos dos empregados qualificados
Bourdieu-Passeron têm tendência a apresentar-nos os sociólogos, e mais precisamente os sociólogos da educação, como detentores, mesmo por imperativo profissional, de um potencial revolucionário. Voltemos a ler esta passagem dos Héritiers: “A simples descrição das diferenças sociais e das desigualdades escolares que elas instituem é por si só a contestação do princípio em que se baseia o sistema atual”. Não necessitam, pois, para ser revolucionários, nem de participar nos movimentos de luta contra o sistema atual, nem de inserir o seu pensamento numa concepção teórica global da revolução; bastaria constatar os resultados dos seus próprios trabalhos. A sociologia escolar constituiria uma arma revolucionária autônoma, bastando-se a si mesma; daí sugerir-se que ela pode ser a arma essencial da revolução... Porém, o exemplo de Alain Girard vai moderar singularmente tais esperanças. Não se pode negar-lhe conhecimento dos dados em que se apóiam Bourdieu-Passeron, em particular dos que dizem respeito à desigualdade das oportunidades iniciais, visto que, na sua maioria, foi ele quem os elaborou; aliás, são eles os primeiros a reconhecê-lo.
Mas as suas conclusões são de um conservantismo prudente. Começa por se regozijar por a nossa sociedade não ser uma sociedade de castas; é inegável uma certa instabilidade;
existe, apesar de tudo, um terço de alunos das grandes escolas que vieram de meios intermediários, que incluem, entre outros, funcionários médios e subalternos. Por outro lado, quando ele introduz nas estatísticas o conjunto das
estão em dia com os estudos, ou até adiantados, ao passo que
74% dos filhos dos operários estão atrasados. De acordo com a segunda forma de ver, estão em dia ou adiantados: 27% dos filhos de trabalhadores agrícolas, 36% dos filhos de operários, 41% dos filhos de agricultores, 48% dos filhos de
empregados, 51% dos filhos de comerciantes e de artífices, 71% das crianças provenientes dos quadros médios, 69% de crianças de industriais e de profissionais liberais, e 76% das crianças cujos pais são empregados qualificados. Deste modo, as estatísticas indicam um aumento encorajador, pois
representam a maioria progressiva das oportunidades no conjunto das situações sociais. A. Girard traça, deste modo, o quadro agradável de
uma promoção social que, em inúmeros casos, se processa lentamente, mas sem choques nem revoltas, através de várias
gerações; é preciso ter paciência para sofrer certas pausas, ocupar alguns escalões intermediários. Mas aqui o sociólogo persuade-se de que basta confiar neste movimento, deixá-lo agir e agiientar as suas conseqiiências; e a fim de que não subsista qualquer dúvida acerca das suas posições, afirmará ele: “A noção de luta entre classes antagônicas não parece reparar nos mecanismos de seleção que se observam no decurso da escolaridade”. Ou ainda: “Não há ruptura entre dois meios antagônicos, mas uma progressão contínua dos menos bem aos melhorcolocados”.
classes médias em lugar de se ocupar dos dois extremos e de 182
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Neste caso é o sociólogo quem vai evocar as aptidões individuais para logo as classificar de desigualdades individuais: há, e isso parece vir de nascença, sem que seja possível compreendê-lo ou modificá-lo, melhores. E são estes melhores que devem ser selecionados. E quando o sociólogo reintegra o seu domínio próprio, é para citar a permanência, a inércia, a força de inércia do social: “As estruturas sociais, tanto como as mentalidades, não podem ser brutalmente transformadas para se adaptar, de repente, a um pedido crescente de instrução”. Por consegiência, sociólogos de primeiro plano e de uma extrema lucidez podem permanecer conservadores quando as suas investigações, necessariamente especializadas e, portanto, parcelares, a tal ponto se apegam mais à constância, à estabilidade das estruturas sociais do que às contradições e às forças renovadoras que elas contêm. É com tranquila satisfação que um outro sociólogo examina a ascendência de antigos alunos da Politécnica: constata que 50% dos seus avós não ultrapassara o diploma
ca por si só, isolada de qualquer contexto político, se o sociólogo não se apoiar em forças de resistência sociais e teóricas, não chegará a romper com a ideologia ambiente.
fora de uma teoria da realidade social, capaz de romper com as habituais noções de ambiente, de uma determinação externa que enfrente, que se exerça sobre um indivíduo pré-
primário e que, em 56% dos casos, a ascensão do neto conti-
existente; e sem uma teoria da personalidade, essa de que
nua uma promoção que transitou do avô para o pai e deste para o filho. Aliás, ele não procura averiguar o porquê desta
humanidade, do ser homem, não é de modo algum primordi-
escalada miraculosa de determinadas famílias, nem do desti-
al como espontaneamente a si própria se apresenta, mas bem
no dos netos da imensa massa de trabalhadores, que ficam bloqueados logo na instrução primária. Isto leva-nos a moderar muito seriamente a segurança de Bourdieu-Passeron e a confiança que depositam na sua especialidade: as perspectivas sociológicas podem perfeitamente ser interpretadas num sentido reformista e mesmo conservador, enquanto não forem integradas, como um dos elementos a unir os outros, numa síntese resolutamente pro-
gressista. A sociologia da educação não permite a fuga a uma posição revolucionária, mesmo que ela possa trazer-lhe argumentos novos e de grande valor. A constatação sociológi184
Mesmo no caso de sociólogos incontestavelmente progressistas como Bourdieu-Passeron, a denúncia da ideologia dos dotes, por mais importante que seja, não nos parece ir além de contrapropostas realmente persuasivas porque não participa de uma visão revolucionária da sociedade. Para triunfar no conceito dos dotes (não se trata da evidente diversidade dos dotes, mas do dote como inerente à pessoa, inde-
pendentemente da sua história e da sua dependência de tal grupo), é preciso, pensamos nós, ultrapassar de maneira decisiva a oposição indivíduo-meio, a oposição entre um patrimônio hereditário, biológico ou psicológico do indivíduo e a ação, dita socializante, do meio. Isto não parece possível
Seve anuncia assim a linha diretiva: “A forma individual da
secundária, sendo a sua base real constituída fora dos indiví-
duos, pelo conjunto objetivo e historicamente móvel das relações sociais”. O marxismo quer dizer-nos que o indivíduo isolado não é de forma alguma um elemento natural, não constitui, absolutamente, o ponto de partida da história. É o tema em que Séve soube centrar a sua reflexão, a nossa reflexão. Marx destrói “a crença numa ilusória essência humana abstrata, inerente ao indivíduo isolado, porque descobre a realidade da essência humana concreta no conjunto das relações sociais”.
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Bourdieu-Passeron tiveram o mérito de denunciar o uso mistificador da ideologia dos dotes com que a burguesia se deleitava, Para minaresta teoria em si, é preciso chegar a um conjunto sistemático de proposições revolucionárias pelas quais o indivíduo deixa de ser separável do destino da sua
aceitam, ou antes, aplaudem as condenações que os atingem assim tão incisivamente, não nos parece apontar para uma tomada de consciência, mas antes, para uma fuga; há angústias e sentimentos de culpabilidade tais que servem apenas à inação. Esta proclamação dos dotes serve de meio de defesa a professores entre a espada e a parede que se precipitam sobre este derradeiro recurso. Mas se os professores conseguissem ser tomados a sério pelo interesse do que oferecem aos alu-
classe, da história da sua classe — e existe tanto mais como
indivíduo quanto mais viver como militante da luta histórica. Enfim, lendo as divagações de Bourdieu-Passeron
acerca da ideologia dos dotes, uma conclusão parece impor-
nos, ou seja, o laço efetivo entre a experiência vivida e o
se: excetuando o sociólogo, todos aceitam, todos são cúmpli-
esclarecimento que dela propõem... Trata-se então de um
ces, não há antagonistas. Depararemos aqui com a mesma dificuldade surgida nas páginas anteriores, dedicadas à seleção de estudos. Eis os primeiros destinados a ser coniventes da ideologia dos dotes: os professores. Os nossos autores vão evocar uma espécie de psicanálise dos professores: alvo de muitas críticas que desabam de todos os lados, vindas cada vez com
mais fregiiência de uma pequena burguesia pouco prestigiosa, eles andam à procura da sua própria justificação — e o seu único título de glória é o título universitário, é haverem
triunfado em um certo número de exames, transposto uma série de barreiras; perante os alunos, e também perante os
pais, o seu supremo recurso consiste em se apresentar como dotados, possuidores dessas aptidões pessoais que os distinguem dos que os rodeiam e tão alto os erguem acima deles. Na realidade, eles querem esquecer, necessitam esquecer que se trata de formas de viver e de pensar que eles próprios adquiriram mais ou menos laboriosamente. Naturalmente que não estamos absolutamente persuadidos por estas análises; pensamos, como sempre, que elas denunciam com justiça uma tentação que ameaça os profes-
caso irreal, e mesmo irrealizável?
A descrição de Bourdieu-Passeron é válida na medida em que os professores são, do ponto de vista pedagógico, desesperadamente reacionários, ou antes, reacionários e desesperados, reacionários e, portanto, desesperados, pois é
nesta mesma medida que eles são obrigados a restringir-se à ideologia dos dotes. Mas será isto um retrato de todo o do corpo professoral? Mais uma vez nos garantirão que as classes exploradas se deixam penetrar inteiramente pela ideologia do adversário; não basta afirmar que elas são incapazes de lhe opor a mínima resistência e que se deixam cair na armadilha; até no seu foro íntimo se conformariam com os votos da classe dominante: vivem a sua desvantagem como destino pessoal. Não contentes por aceitar, assimilar a teoria dos dotes, parecem unânimes em abandonar aos outros a sua posse exclusiva. Portanto, apenas os sociólogos constatam a verdade, mas
nição total. E o masoquismo com que tantos professores
afinal, eles estão isolados, sem aliados. Com que força poderão contar para tornar eficazes as suas descobertas? Professores e escola manobram de forma a não causar o mínimo incômodo à ideologia e aos interesses das classes dominantes; os explorados são cúmplices passivos. A socio-
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sores, embora elas a transformem indevidamente numa defi-
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logia da educação, pelo menos a de Bourdieu-Passeron, pre-
dominadas se precipitem assim ao encontro de teorias que as condenam e desprezam. A história da classe operária — quer se evoque a Comuna, a Frente Popular, a Resistência — mostra que ela adquiriu uma justa consciência, um justificado orgulho do seu valor, e sempre a sua ação lhe fornece motivos legítimos para o confirmar. A difusão do marxismo a faz perceber cada vez melhor que são as classes exploradas que, com as suas lutas, ora
dotado. O que executa não é capaz de melhorar o seu trabalho; os processos que utiliza, ou mesmo que elabora a partir da sua própria experiência, não têm qualquer relação com os que permitem uma melhoria autêntica; é mais evidente que se trata de um não-dotado. Há mais: de oito homens que constituem uma equipe encarregada de carregar gusa, afirma Taylor que só um deles foi feito para a tarefa — e os outros sete serão eliminados. A seleção dos operários consiste em escolher os indivíduos adequados a um determinado gênero de trabalho. O nosso autor julga as aptidões simultaneamente específicas em relação a tal tarefa e coladas em definitivo à pessoa. Certos indivíduos nasceram com faculdades de percepção e de ação reflexa e, por exemplo, essas faculdades habilitam-nos a ve-
surdas, ora clamorosas, abrem caminho à história; são elas
rificar as esferas das bicicletas; é preciso excluir da oficina
tende-se revolucionária, mas como ela é a única força revo-
lucionária, seria preciso que ela fosse, que ela fizesse sozinha a revolução; isto equivale à sua impotência. Felizmente, não é absolutamente exato que as classes
que têm a coragem e a clarividência necessárias para fazer brotar uma nova sociedade. É este aspecto da realidade que parece inacessível a Bourdieu-Passeron bem comoo fato de não repararem no número sempre crescente de intelectuais que se tornam solidários à classe operária; entre eles, os pro-
de bicicletas todos que não estejam marcados por tal prédisposição. Esta dicotomia será confrontada com a proposta por Henry Ford numa frase famosa e que, na verdade, chega aos
fessores são cada vez em maior número; e mesmo os seus
com pena, procura ocupações que não lhes imponham um
colegas menos avançados têm por única ambição colar-se à classe dominante.
excessivo esforço muscular, mas interessa-se, sobretudo, por
Para uma melhor compreensão dos problemas postos pela escola, é, pois, indispensável, sair da escola, avaliar o
mesmos resultados: “A maioria dos trabalhadores, digo-o
aquelas que não os obrigam a pensar”. Ford encontrou poucas pessoas que desejassem pensar por ele, com ele, e concluiu que havia poucas pessoas dotadas para pensar. Voltemos a Taylor: jamais a ideologia dos dotes se afirmara com tanta severidade, tendo como corolário o evi-
que se passa nas fábricas: nelas, uma das formas mais concretas e mais violentas que assumiu a ideologia dos dotes, foi o taylorismo. Taylor apresenta de um lado um tipo técnico, prático, entregue a tarefas de execução — e ele se limitará a cumprir cada gesto que lhe foi determinado, exatamente como lhe foi determinado, no tempo que lhe determinaram. E do outro, um tipo teórico, que prepara, que dirige o trabalho; ele pensa, é pago para isso; e todos deduzem que ele sim, é
dente desprezo por toda a classe operária. Mas foi precisamente a classe operária que lutou com todas as suas forças contra o taylorismo. Sem dúvida que não conseguiu facilmente tirar as suas conclusões — e a transposição dessa luta para a ideologia escolar dos dotes é difícil — mas o impulso de luta, a primeira tomada de consciência, nasceram das próprias massas,
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e coube aos partidos operários prolongá-los e organizá-los. Nada de comparável à passividade cúmplice e autodesvalorizante pintada por Bourdieu-Passeron. A luta da classe operária contra os métodos de trabalho, uma concepção de trabalho que tão rudemente opõe dotados e não-dotados, prova a lucidez combativa da classe operária.
rio. Caso contrário, constatará que, reduzida só às suas forças, permanecerá ineficaz; e será tentada a daí concluir que tudo é ineficaz e que as estruturas escolares não podem funcionar a não ser esmagando ainda mais os que já estão humilhados. A sociologia não pode reivindicar que é o principal
É com o desenvolvimento deste movimento, saído das
próprias fábricas, que será desmistificada a ideologia escolar. Mais uma vez a tarefa dos intelectuais, sejam professores ou sociólogos, é a de se basear na luta existente dos explorados. Há, sem dúvida, um papel a ser desempenhado pelos professores progressistas, e no interior da escola: levar a classe operária a estabelecer laços (o que de forma algumasignifica que ambas sejam idênticas) entre a fábrica e a escola, entre a teoria das aptidões proposta na fábrica e a que reina com demasiada freqiiência na escola; é assim que o fracasso escolar ou o dote escolar aparecerão aos explorados não como um setor à parte, mas como parte integrante da exploração. À crítica da ideologia dos dotes feita por BourdieuPasseron inclui perspectivas fundamentalmente justas e, contudo, está desviada a ponto de levar à renúncia, de favorecer
motor da revolução, mesmo escolar; tampouco está conde-
nada a ser um elemento solitário pregando no deserto. Juntando-se à oposição real das massas, ela encontrará vigor porque, de fato, terá mantido as suas descobertas, aproveitando-as como momentos de uma unidade complexa e não conservando-as como uma tentativa, umatentativa isolada.
CONCLUSÃO DA SEGUNDA PARTE Corremos o risco de sermos acusados de má fé pelo leitor atento, pois não chamamos a atenção para certas passagens em que Bourdieu-Passeron por um lado e BaudelotEstablet por outro, se esforçam por demonstrar que a escola não é um bloco único e totalmente a serviço da classe dominante, se esforçam por não perder as esperanças na escola, numa palavra, para não ser illichianos. Em particular as últimas folhas de Héritiers em que são traçadas as linhas mestras da luta por uma pedagogia racional e por um ensino democrático.
a própria atitude derrotista que descrevem como característica das classes dominadas. Sentem-se autorizados a pintar a classe operária como inerte, fazendo da escola um mundo fechado e desviando os seus olhares do domínio em que os trabalhadores situam o seu principal posto de combate. A sociologia da educação pode proporcionar à emancipação da classe operária uma contribuição real, pode e deve encontrar o seu lugar na luta de classes, com a condição de saber evitar dois perigos maiores: ignorar os recursos de que as massas são portadoras e acreditar que se baste ideologicamente a si própria e, portanto, que nada terá a aprender, nem com a história nem com a teoria do movimento operá-
esperar da escola iniciativas, um sobressalto, se a submetem
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Sustentaremos, todavia, que esse último apelo não é
compatível com o que estes autores têm afirmado insistentemente: eles apresentaram-nos a escola, a escola inteira,
tanto a de hoje como a de ontem, como que compactuando com os interesses dos dirigentes, a tal ponto que os fracassos das crianças vindas do povo parecem normais, necessários, inevitáveis, pelo menos enquanto subsistir a nossa sociedade; sobretudo a um ponto em que qualquer ação progressista da escola é assim negada, e quase parece inconcebível. Como
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a um fatalismo sociológico, preço provisório de descobertas reais? Baudelot-Establet tomam em conta o antagonismo e as lutas peculiares à escola: a escola é “local de múltiplas contradições... O aparelho escolar francês não deve ser considerado como um sistema, como uma máquina bem lubrificada e que, faça-se o que se fizer, sempre funcionará para máximo benefício da burguesia”. Consegiientemente, importância concedida às lutas que se processam no interior da escola, possibilidade destas lutas,
porque a escola depende de uma relação de força política, portanto, precária; realidade atual destas lutas: “Os professores progressistas já deram e podem dar uma contribuição decisiva”. Daí duas exortações que parecem responder às objeções que não deixamos de lhes dirigir: “Em lugar de aguardar passivamente (ou de profetizar, o que irá dar no mesmo) o grande milagre revolucionário que fará ir pelos ares O sistema, que se analisem as contradições, que as explorem uma a uma”. E esta, que toca o mais justo e mais profundo: “Não se trata tanto de preparar uma nova luta que seria preciso criar a partir do nada, como de entender o caráter de classe das lutas em curso”. Eles evocarão a fusão da concepção científica da história e da experiência concreta da luta de classes. Mas estas perspectivas realmente marxistas não podem estar de acordo com o livro no seu conjunto — e esta luta a partir de dados reais preconizados por eles, é tornada, de
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texto escolar, se não tem qualquer ligação com a pedagogia restante — considerada de ponta a ponta como conservadora e embrutecedora — é por demais evidente que não terá a mínima oportunidade de criar raízes na escola. De nada vale aos nossos autores afirmar que tal tentativa é parcialmente eficaz, eles se limitarão a chamar-nos a
atenção para o risco que corre esta pedagogia de ser simultaneamente reprimida e recuperada. Apenas uma abertura, uma possibilidade de luta no interior da escola já apontada como completamente bloqueada. De onde a atmosfera de desespero, de fatalidade; parece irrisório pretender conduzir uma ação válida na escola, pelo menos enquanto uma revolução, cultural — maoísta para Baudelot-Establet, muito mais indiferenciada para Bourdieu-
Passeron — não tiver agitado todos os horizontes. Resta adivinhar o que iremos fazer amanhã nas nossas classes; resta
ainda saber como serão reunidas e conscientizadas as forças capazes de operar essa revolução.
fato, impossível.
O exemplo essencial que nos é dado de uma pedagogia capaz de proporcionar material a estas lutas, está em Freinet: “Um esforço... para virar a escola, pouco que seja, mas desde Já, contra as suas funções oficiais”. O que implica que todas as funções oficiais da escola são igualmente negativas. Mas se a pedagogia de Freinet está inteiramente isolada do con192
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TERCEIRA PARTE
REALIDADE E IRREALIDADE DA CULTURA
Parece-nos que, de modos diferentes, os nossos autores nos envolvem no sentimento da irrealidade da cultura, o que
só pode ter como consegiiência a irrealidade da escola; e isto por desconhecimento da luta de classes. Perante isto um Gramsci abre o acesso a uma escola possível, um Brecht a
uma cultura efetiva.
CAPÍTULOI
. ILLICH OU “NÃO CONHEÇO A LUTA DE CLASSES” Hlich ou não conheço a luta de classes ou ainda a luta de classes, é a luta dos competentes contra os incompeten-
tes, sendo os competentes comparados aos exploradores e os incompetentes aos explorados...
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PRIMEIRO TEMA: A cultura do perito reduzirá a zero a cultura do homem vulgar? I— A Convivência: Recordações de alguns temas
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E, em breve, os produtos saídos da megamáquina se
voltam contra si mesmos, contra nós mesmos: em princípio o automóvel surgiu como um meio de poupar tempo, mas agora o americano deve trabalhar muito mais horas a fim de pagar a sua viatura e todas as despesas inerentes. Quanto mais rapidamente estes automóveis são fabricados, mais conso-
A — Necessidadesfictícias
finido e de criação ilimitada de novas necessidades. Hoje em dia ter sede, é precisar de coca-cola: as exigências naturais transformaram-se na procura de produtos manufaturados. Há dez anos um mexicano morria em casa e os amigos encarre-
mem o nosso tempo nos engarrafamentos e o nosso dinheiro, e, portanto, ainda o nosso tempo, na construção de autoestradas; e a nossa saúde, com a poluição pelas emanações da gasolina. O progresso da medicina começou por significar uma redução importante da mortalidade e da doença, mas acabou porcriar por si novos tipos de doenças: doenças infecciosas nos hospitais, doenças causadas pelos próprios medicamen-
gavam-se do enterro; só a Igreja intervinha. Atualmente, a
tos. E, sobretudo, os hospitais ultramodernos só são constru-
doença e a morte pôem em movimento o corpo médico, o hospital, as empresas funerárias, em suma, as instituições efetivamente industrializadas, segregadas pelo mundo industrial.
é, compartilhando a sua insalubridade.
A sociedade industrial moderna, a sociedade da megamáquina, só pode funcionar em moldes de crescimento inde-
Em todos os domínios, desde beber até morrer, se cri-
am normas de consumo obrigatórias e, contudo, fictícias.
ídos em correspondência direta com a cidade moderna, isto
Daí as múltiplas formas da nossa dependência: o consumidor não tem possibilidades de escolher, de fiscalizar o que recebe; um consumo de rebanho, ditado de fora, a opressão constante, exercida pelo vendedor, ou antes, pelas mer-
As necessidades geradas pela produção em massa são fictícias numa segunda acepção: não dão satisfação ao nosso pedido. Por exemplo, o agricultor necessitaria de um veículo
cadorias. Quanto aos produtores, esses estão subjugados por um trabalho que deixou de ter sentido para eles; a alegria do
à prova de terrenos, sólido, fácil de consertar, não muito ca-
trabalho não existe. Para todos, a liberdade de escolha indi-
ro; propõem a ele e o persuadem a comprar uma máquina
vidual, a capacidade inata de as pessoas agirem como querem são sacrificadas, pois as pessoas passam a desejar tipos de objetos ou de condutas que só podem advir-lhe de máguinas: o automóvel destrói a mobilidade natural do homem. Por isso há um enfraquecimento das iniciativas próprias, um definhamento, que só pode acabar na passividade e na negação da felicidade.
munida de todos os aperfeiçoamentos e futilidades em moda,
que são caros, frágeis e na maioria dos casos, completamente inúteis. Porém, a constante pressão da publicidade — doutrinamento a serviço da máquina industrial — conduz a uma produção a toda a velocidade e à venda cada vez mais cara de máquinas sempre mais sofisticadas.
A máquina fez do homem seu escravo; o homem trans-
formou-se na matéria-prima da máquina, a mais maleável
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das matérias-primas. Um mundo propriamente absurdo em que os resultados não cessam de contradizer e de ridicularizar, as intenções e as esperanças. Todas as instituições com as quais o homem pretendia exorcizar os males originais se transformaram em túmulos cuja laje se abateu sobre ele.
monopólio radical em proveito de um pequeno grupo de privilegiados — convidados porisso para nossos amos e senhores: por exemplo, as redes elétricas concentram nas mãos de alguns o controle da energia; portanto, o poder de decidir sobre o destino de todos.
Em semelhante mundo, as desigualdades não cessam
E, principalmente, é a megamáguina que lança os homens na insaciabilidade e na instabilidade: os objetos que cobiçamos, que estamos certos de ambicionar visto terem conseguido persuadir-nos disso, não deixam de se suceder, depressa se desatualizam, se desvalorizam, e nós mesmos nos sentimos desvalorizados por os possuirmos, é preciso substituí-los a curto prazo, há sempre necessidade de outra coisa que apresente, pelo menos, o mais aperfeiçoado dos aspectos, o mais complicado; é sempre necessário mais e mais. Jamais alcançaremos algo que nos contente, algo de repousante: cada nova unidade lançada no mercado cria mais necessidades e às quais não corresponde. Este consumo efêmero de coisas irá comunicar-se às instituições, às relações humanas, que perdem tudo que continham de duradouro e de sólido: isto é chamado por Ilich de o desgaste irritante do tecido social.
de se tornar gritantes e mais cruéis. Desigualdade entre nações ricas e nações pobres: menos de 10% dos homens consomem mais da metade dos recursos do mundo. Desigualdade também dentro das nações mais ricas: nos Estados Unidos, nas classes pobres, a mortalidade infantil con-
tinua a comparar-se à de certos países tropicais, enquanto uma pequena elite se beneficia de cuidados extraordinários e extraordinariamente dispendiosos. Resumindo, os subprivilegiados crescem em número, enquanto os privilegiados consomem mais; consegientemente, a fome aumenta em relação aos pobres e o medo em relação aosricos. É que a importância da evolução das técnicas ultramodernas é vã, ela não converge com as necessidades que se impõem e continuam a impor-se às massas. Por exemplo, cirurgiões da América Latina vão a Nova Iorque iniciar-se em processos cirúrgicos de última geração; entretanto, a disenteria amebiana obstina-se em molestar 90% da população. Onde se necessitaria de grande assistência médica simples, sem pretensões e eficaz na maior parte dos casos, o mundo industrial sente prazer em criar uma elite restrita de especialistas ultraqualificados, pois eles é que estão credenciados como representantes do progresso, é deles que os dominantes aguardam soluções miraculosas. Assim, a megamáguina e o conjunto das instituições das burocracias que ela desencadeia, são denunciados. Pare-
As necessidades aumentam mais depressa do que as possibilidades de as satisfazer, ou antes, sem haver qualquer esperança de as satisfazer, pois é a satisfação parcial que desperta uma nova procura é ainda mais importante: é precisamente quando os hospitais, os serviços sociais, bem como as escolas, começam a estar bem equipados que as pessoas ainda mais exigem. Por isso o mundo da megamáquina só pode ser um mundo de frustrações, de reivindicações e de exigências
cem predominar dois temas: primeiro, é a megamáguina que, pelo seu próprio e fatal funcionamento, cria situações de
hospitalização gratuita; mas como, apesar de tudo, são exclu-
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crescentes. Os pobres se beneficiam, nos Estados Unidos, de
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ídos dos cuidados médicos mais aperfeiçoados, só dispensados em algumas clínicas particulares, acabam formando uma nova categoria de deserdados — portanto, de pessoas que se
É abolir o projeto do homem prometeano! que só vive para afrontar o destino e modelar o mundo de acordo com o plano por ele arquitetado. Illich chama epimeteano? aquele que, pelo contrário, deposita suficiente confiança na bondade da natureza para respeitar a ordem que nela está inscrita; conforma-se com a terra maternal. Ele instala-se no mundo da aceitação que é simultaneamente o da renúncia: “Responder com um sim, sem pensamento reservado à experiência da
lamentam. Voracidade sem limite, desmedida. Em suma, a
taxa de crescimento da frustração excede largamente a da produção. Seria possível encarar uma produção de bens de consumo em tal abundância que cada um tivesse a sua parte, a sua justa parte? Illich garante que tal anseio é mera utopia: poluição, erosão dos solos, diminuição da sua fertilidade e, por outro lado, pressão demográfica: “Os limites dos recursos terrestres começam a mostrar-se”. E para proporcionar a todos os homens dos países deserdados simplesmente os bens e serviços de que dispõem os pobres dos países ricos, seria preciso multiplicar por cem a extração das matériasprimas — o que é absolutamente inconcebível. O impasse quantitativo é, afinal, o indício de um erro
propriamente qualitativo: as necessidades geradas pela civilização industrial a leva a viver de forma artificial, e o interesse pelo artificial cria aspirações ainda mais violentas de cevar, ainda mais desejos artificiais — e também o despeito por uns poderem saciar melhor e mais desejos do que outros. B — As soluções em perspectiva Tendo o mundo enveredado por uma solução radicalmente falsa, torna-se necessário realizar uma série de mu-
danças de direção, de inverter o movimento. O ponto fundamental é a redução das aspirações, a limitação das necessidades: tomar consciência da inutilidade do artifício daquilo que nós consideramos necessidades.
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vida”. Começar, portanto, a elaborar um programa de limita-
ções racionais, determinar os limites a impor ao crescimento, restringir a taxa de inovação — e assim reduzir a produção é o consumo. A diminuição das aspirações exigirá a destruição da megamáquina e inversamente, a destruição da megamáquina é a mais segura garantia da redução dasaspirações. Por exemplo, no que diz respeito a transportes, serão excluídos todos os veículos de velocidade superior à da bicicleta, promovendo por um lado os velocípedes, por outro um tipo de carros motorizados de duas rodas, simples e resistentes: as pessoas depressa tomarão consciência de que esta velocidade moderada, mas real, é bem mais rápida do que a velocidade fictícia dos bólides. E irão, sobretudo, reencontrar
a alegria de um instrumento que tanto dá lugar à autonomia como à iniciativa: eu próprio consigo consertar o carro de duas rodas, pois o motor não é sofisticado — e na bicicleta a minha força não é substituída pela da máquina. As próprias pessoas construirão as suas casas: não se trata, aliás, de inutilizar às cegas todas as máquinas, pois é precisamente graças aos elementos pré-fabricados, fornecidos em grandes séries, que a montagem por pequenas equipes será possível. Quanto a estas casas edificadas pelo seu usuário, primeiro o preço de custo descerá bastante e deixará ' De Prometeu. 2 . . me . “* De Epimeteu, irmão de Prometeu e companheiro de Pandora.
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de ser preciso que uma pessoa se embruteça trabalhando para pagar a renda; depois, as habitações poderiam corresponder ao modo de vida de cada um: o camponês acabado de chegar à cidade já não seria alojado no 11º andar de um arranha-céu, constrangido assim a submeter-se a hábitos que na sua vida a nada correspondem. E as pessoas vão, principalmente, redescobrir uma satisfação fundamental: a de se sentir em casa o que, pelo menos em parte, só acontece desde que isso represente o fruto do próprio trabalho; e resulte das iniciativas pessoais. Cuidarão uns dos outros: a avó, a tia ou uma vizinha assistirão a mulher grávida, o doente ou o moribundo — em
vez de eles serem transferidos, engolidos por instituições gigantescas e impessoais. O mundo da megamáquina é um mundo desumano;
mas Illich está persuadido da existência de um limiar aquém do qual o sistema é benéfico: as forças produtivas e os processos de produção mantêm-se compreensíveis e controláveis; o indivíduo aumenta o seu poder sem perder nem o domínio nem a responsabilidade daquilo que executa; ele tem voto na matéria, pode fazer valer os seus direitos, é, na
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Trata-se, portanto, de determinar, de referenciar os li-
miares críticos e de manter dentro desses limites o desenvolvimento dos nossos aprestos e das nossas aspirações. Ora, é a natureza quem fornece o critério da ferramenta que não é nociva: não cabe ao homem fixar-lhe os limites, eles são naturais, ou seja, ao mesmo tempo inexoráveis, o que signi-
fica efeito de necessidade e esta necessidade é infinitamente boa e providencial, assegura o equilíbrio e instala a alegria. A história é então suprimida, o que no mundo é essencial foi fixado de uma vez para sempre: “Os limiares configuram o direito constitutivo de qualquer sociedade... a necessidade de determinar os limiares sem lhes franquear os limites é igual para todas as sociedades”. A ferramenta familiar é comunitária, é em torno dela que se forma a comunidade; será exagerado afirmar que ela cria a comunidade? Não apenas o uso que cada um faz dela não usurpa a liberdade de outrem agir de igual forma, como suscita também relações pessoais, convida às relações amigáveis. Nada de cidades gigantescas exigindo industrialização, mas reagrupamentos à escala humana. O indivíduoligase harmoniosamente a tais conjuntos visto que a ferramenta está a serviço do indivíduo integrado na coletividade.
verdade, ele quem conduz a sua vida. A ferramenta familiar é simples, pobre, transparente. O homem conserva a sua Jiberdade, pois a ferramenta familiar pode ser utilizada por cada um sem dificuldade, tão regular ou raramente quanto o deseje, para fins que ele determine. O trabalho autônomo passa a trabalho criador, expressivo, aberto à surpresa das ações pessoais — valores que no dizer de Illich estão do lado do existir em lugar de só tomar em conta o ter, e que irão permitir ao homem a realização da sua face espiritual. Cada um pode levaradiante os seus fins à sua maneira, com originalidade. É uma expansão e não uma acumulação.
Num mundo que é familiar, o homem só busca satisfazer as suas verdadeiras necessidades e é precisamente nessa renúncia que encontra a sua felicidade: “alegria da sobriedade... austeridade libertadora... pobreza voluntária... renúncia alegre e equilibrada”, e isto é indissociável de uma inversão das técnicas: “Escolher uma via austera com ferramentas familiares”. O alvo consistirá em viver dentro de determinados limites; a insatisfação que a sociedade industrial guarda em si, O inimigo a ser combatido.
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Esse mundo da frugalidade será um mundo igualitário: nunca mais alguns dentro de carros luxuosos e milhões a pé, mas que cada um tenha acesso a veículos simples; portanto, uma sociedade sem conflitos nem rivalidades: o desejo frenético de enriquecer acabará desaparecendo e com ele o cortejo de ansiedades, de desapontamentos e de rancores.
do começo do século XIX. Depois, os pequenos empresários foram devorados pelos grandes, e nunca mais se recompuseram — e procuram-se mutuamente ao abrigo do illichismo, na medida em que ignoram que o imperialismo monopolista é o estágio supremo do capitalismo. De outro lado, a desconfiança indiferenciada de Illich a respeito de todas as instituições, consideradas como igual-
Desde que se ultrapasse o limiar, a ferramenta (famílias) transforma-se em máquinas (indústrias) — e esta exerce
mente corruptoras, assemelha-se estranhamente à saudade do capitalismo liberal; o sonho de restaurar a bela época do ca-
os seus efeitos destruidores sobre a sociedadeinteira. Ela é elaborada, complexa; ao mesmo tempo só pode ser secreta; transita para o serviço de um corpo de especialis-
pitalismo liberal: os teorizadores do sistema afirmavam en-
tas, só beneficia a casta dos técnicos e dos seus aliados, ou
capitalistas, com a condição de que nem uma intervenção
antes, dos seus cúmplices: unicamente eles são capazes de a utilizar, só eles experimentam um prazer tirânico em fazê-lo; de lá apenas sairão objetos padronizados, embalados pela instituição — e ao recebê-los passivamente, as pessoas reduzem-se a ser bons consumidores e bons usuários. Tudo quanto podem fazer a partir de então, é ingerir instruções maciças, observar modos de emprego, utilizar maquinismos sem lhe perceber a razão de existir: é o homem ajustando-se às exigências da máquina. As pessoas deixam de saber, de poder fazer as coisas por si mesmas.
sacrílega das instituições e, sobretudo, do Estado instituído,
tão que a Providência assegura o acordo, tanto entre a oferta e a procura, como entre os interesses dos proletários e os dos
venha a contrariar o seu desenvolvimento harmonioso e espontâneo. O que resultava em que se indignassem, em nome dessa liberdade, por uma lei proibir o trabalho fabril a crianças de 8 anos. As duas virtudes aqui requeridas são a moderação e a obediência, precisamente duas virtudes cuja ausência as classes dirigentes não deixam de deplorar... em relação aos outros.
IH — Antecipação ou nostalgia? Mencionaremos rapidamente determinadas críticas que os especialistas desenvolveram muito mais detalhadamente do que nós.
Pregando a pobreza voluntária aos pobres, Illich se iguala perigosamente com os conservadores mais clássicos que sempre se queixaram de que se excitam artificialmente os humildes, de que se desperta neles necessidades, ambi-
ções, que os vão tornar infelizes, pois não conseguirão satisfazê-las; pelo menos neste mundo. Sem os políticos, os maus
R. Gentis definiu claramente a nostalgia sócioeconômica peculiar a Illich: “um capitalismo de pequenos empresários”. O mundo familiar não está assim tão distante das empresas de âmbito restrito e de estilo um tanto artesanal
pastores — e Illich acrescenta, sem a escola e a megamáquina — todo mundo estaria satisfeito com a sua sorte e igualmente mais tranqúilo. A limitação das necessidades é ainda,
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e acima de tudo, a limitação da necessidade de combater.
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E quando se constata como os grupos privilegiados são hostis ao crescimento econômico, é possível que se queira saber o que a sua atitude encobre de autêntico egoísmo: não recearão eles uma espécie de concorrência, quando outros
de duas rodas, mas simples e lentos, em que a iniciativa e a personalidade terão um papel essencial a desempenhar, ou
tiverem um standing idêntico ao seu, como sucedia na época
da Frente Popular, com essa gente que se recusava a freqiientar a praia receosa de lá encontrar os que estavam gozando férias pagas? Hlich apresenta semelhantemente a pobres e a ricos as alegrias da pobreza. Mas irá dar ou mesmo propor aos opulentos a renúncia a algumas necessidades supérfluas e confirmar aos mais desprovidos a sua sorte, minando-lhes assim, irremediavelmente, a força de resistência” HI — Umaluta impiedosa entre os especialistas e os homens vulgares Porém, o ponto sobre o qual nos propomosinsistir por nos parecer crucial na discussão sobre a realidade ou a irrealidade da cultura, é o traço comum a todas as soluções propostas por Illich: elas nascem de uma incompatibilidade entre a cultura e as realizações dos especialistas e a cultura e as realizações daqueles a quem chamaremos homens vulgares; uma incompatibilidade que nos é apresentada como definitiva e irremediável, pois tem origem na própria técnica,
técnica das máquinas e das instituições; e nenhuma modificação na sua estrutura ou na sua preparação seria, portanto, suscetível de provocar qualqueralteração; e poristo nos garantem que se os homens vulgares não quiserem renunciar aos seus recursos e aos seus poderes próprios, devem então destruir as contribuições dos especialistas.
recorrem a veículos modernos, e os seus usuários estão con-
denados a manter-se receptivos, passivos: a serem transportados. Ao menor contratempo mecânico, o seu único recurso é correr a um mecânico especializado, o representante dessa marca, O único a conhecer-lhe os mistérios.
Se não forem as próprias pessoas construindo as suas casas, as suas casinhas, não passarão, dentro dos grandes blocos habitacionais, de escravas dos regulamentos e dos assistentes sociais que devem, daí em diante, ensinar-lhes
aquilo que se tem o direito de fazer e, sobretudo, o que é proibido fazer. Perde-se, então, quer a aptidão inata das pessoas para criar o seu próprio ambiente, quer a sua habilidade para investir o seu tempo pessoal na criação de valores de utilização, ao mesmo tempo desaparece a possibilidade de aprender construindo, visto as pessoas não trabalharem umas com as outras, já não evoluírem pelo conselho mútuo.
Desde que não se ajudem mutuamente, gera-se uma população submissa e dependente, subjugada ao monopólio médico e aos tabus dos especialistas. Só conta a salvação vinda de fora, confiando beatamente na operação-milagre. A velha sabedoria em matéria de saúde e de cura desmorona-se. E como último exemplo em que não intervêm nem máquinas, nem técnicas, mas sim instituições mecanizadas e tecnicizadas: basta os pobres se beneficiarem do auxílio social, da hospitalização gratuita e acabam se tornando incapazes de organizar sozinhos as suas vidas. Torna-se impossível a eles tirar proveito da sua experiência e das suas práticas pessoais, deixam de conseguir inserir-se no âmbito da sua comunidade: a assistência social deverá guiá-los passo a passo.
Esta dicotomia é descoberta por Illich em todos os domínios: ou se servem de bicicletas e de carros motorizados
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Não só as realizações de que acabamos de citar quatro exemplos, como a cultura naquilo que ela tem de específico; é mesmo a nível da sabedoria que os efeitos desta distorção se manifestam em toda a sua rudeza. Ou uma sabedoria objetiva, definida pela ciência e divulgada por porta-vozes peritos e o efeito do querer e do poder de outros; ou o poder imediato de apreender o real, a sabedoria que provém de
pecialidades descobrem, em operações espetaculares, oportunidades para se colocar em primeiro plano. Na medida em que o perito detém a sabedoria, priva
relações criadoras entre o homem e o seu ambiente; é o efei-
to de relações que se estabelecem espontaneamente entre as pessoas pela utilização de ferramentas familiares. Por exemplo, os camponeses aprendem o folclore e esta aquisição de sabedoria opera-se pela interação no meio circunscrito por uma tradição. Ou o racional, que não é mais do que o previsto e que cala a espontaneidade, a expressão criadora, a solução inventiva, que só nos aprisiona dentro de entraves ideológicos; ou nós coincidimos com a realidade viva e sem peias, tornandose o mundo simultaneamente atraente e próximo, sentindonos tomados por uma espantosa surpresa que ultrapassa e
confunde a razão. O primeiro tipo de sabedoria só conduz à catástrofe, e sobretudo, Illich obstina-se a repetir que só pode existir abolindo-se o segundo, fazendo todo o possível para abolir o segundo; na medida em que se acredite que o mundo ultrapassa o alcance de qualquer um, apenas têm direito à palavra aqueles a quem, ironicamente, Illich chama “os grandes iniciados e os seus discípulos”. O perito, não satisfeito em acumular desaires e em tor-
dela todos os outros: o médico transforma-se em mago, o
único com o poder de fazer milagres. Sobre esta sabedoria ele exerce um domínio exclusivo; esta sabedoria é funda-
mentalmente não-transmissível e o perito sente prazer em aumentar-lhe a opacidade. Com este corolário fatal: diante do perito, os indivíduos
abdicam de todo o poder, despem-se da sua competência, perdem confiança na sua capacidade de agir. Deixam de confiar no seujuízo. Acaba a curiosidade pessoal, o homem sente-se desenraizado, atado de pés e mãos, decai.
Estes resultados catastróficos são considerados inerentes à existência do perito. O perito priva-nos das qualidades e virtudes inerentes ao nosso ser, daquelas a que teríamos acesso espontaneamente, bastando que nos deixássemos ir, que nos deixássemos levar: a sua intromissão estragou tudo. Sem ele nos teríamos deixado conduzir pela nossa boa mãe, a Natureza; ela nos
tomaria pela mão mantendo-nos dentro dos limites das nossas verdadeiras necessidades, que são essencialmente necessidades limitadas; ela nos conduziria até à felicidade, com a única
condição de sermos dóceis e desistirmos de a desnaturar. No universo de Illich, a luta entre os homens vulgares e
o perito é inexorável, estando todos os peritos colocados no mesmo plano, de Lenin aos tecnocratas: eles representam o outro, o inimigo...
nar inextricável qualquer situação, funda um imperialismo intelectual que, como todos os imperialismos, se alimenta das suas conquistas; o perito vai buscar a sua satisfação no seu podere na sua habilidade, que em breve passam a ser os únicos motivos reais da sua ação: os virtuosos de novas es208
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IV — O sucesso de Illich provém de ele reunir experiências muito freqiientes Devemos dizer quanto a exortação de Illich e o sucesso que alcançou, quer diretamente, quer por interpostas pessoas, que nos advertem da profunda insatisfação que suscita o modo de vida atual; daí, por um retrocesso, uma espécie de tentação generalizada de illichismo. Reconhecemos ao lê-lo alguns sentimentos simples, algumas experiências frequentes e que aparentam conter uma verdade indubitável: em primeiro lugar, que a riqueza ou a produção não fazem a felicidade, que as pessoas não são mais felizes podendo mudar constan-
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neira absolutamente idêntica, as multidões passivas deixam-
se impressionar por golpes publicitários, por maquinismos enormes e anônimos. Comportamentos de rebanho, produção padronizada. Os objetos que nos oferecem não são aqueles de que necessitamos: frágeis, irreparáveis, custosos, tantas vezes supérfluos; mas a sedução da moda, e mais ainda, das modas, o receio ciumento de se ser ultrapassado pelos outros... Em contrapartida, a sensação de que determinadas alegrias singelas e autônomas se perderam; o sonho de regresso a uma existência mais calma, de pequenas comunidades, unidas, calorosas, acolhedoras; a alegria de aprendermos por
temente de automóvel em troca de outro mais luxuoso; e,
nós mesmos e de acordo com as nossas intenções; então seria
contudo, é precisamente a isso que a nossa sociedade de con-
reanimado o contentamento que atribuímos ao artista ou ao agricultor, que projetamos no artista ou no agricultor.
sumo nos incita constantemente; melhor — ou pior — a so-
ciedade não pode funcionar, os operários em breve ficam reduzidos ao desemprego, se por momentos esta escalada for interrompida. É todos nós experimentamos os engarrafamentos: a partir do instante em que cada um possua um automóvel, ninguém avança; o aumento das ambições conduz a uma situação em que elas se contradizem e se opõem mutuamente.
E é exato que notamos fregiientemente o contraste entre os peritos e o comum dos mortais; não se percebe o que eles dizem, o que eles querem: o médico nos fala uma linguagem incompreensível ou quase não nos fala, nada nos explica; os especialistas organizam os transportes ou a Segurança Social de uma maneira tão estranha, tão desenvolta,
fazer ouvir a sua voz no meio de tal alarido, assumindo este
que não atamos nem desatamos e depois, incansavelmente, mandam-nos de guichê em guichê, e agora tendo todos nós a consciência de que esse é o chamado mundo de Kafka. Estamos perdidos perante o burocrata que nos parece representar a onipotência e ser, ao mesmo tempo, o emissário do mais gélido de todos os monstros gélidos. Ele reina, nós nos sentimos perdidos, absorvidos pelo imenso anonimato.
termo um sentido ao mesmo tempo material e espiritual. Mas, no grande conjunto da grande cidade, deixa de ser possível agir sobre a própria existência, e até esse desejo se perde: o enquadramento da vida é imposto como é, nada pode ser modificado, não pedem a nossa participação; e de ma-
O que escandaliza em Illich, é ele instalar-se ao nível destas experiências sem as criticar; tomá-las tal como elas se apresentam a cada um de nós. A partir daí, a si mesmoproíbe aperceber-se do papel do capitalismo nas dificuldades que
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O sentimento de que, na civilização industrial, as tare-
fas já não conseguem tornar-se atraentes, simultaneamente porque o seu conteúdo, devido a uma mecanização parcelizante, fica vazio de qualquerinteresse e porque, dado o gigantismo das organizações, os interessados são conduzidos passivamente, deixam-se conduzir passivamente; não podem
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denuncia, que tem razão em denunciar: pretende considerá-
víduo pode libertar-se por si; nada de ações coletivas condu-
las como inerentes a toda sociedade industrializada — e no interior da nossa sociedade não distingue nenhuma força organizada capaz de lutar contra elas. O problema capital que Illich nos propõe consiste em saber se os males da nossa sociedade industrial provêm da industrialização em si ou de uma certa direção que o capitalismo lhe impõe. E, correlativamente, o que se passa numa sociedade onde os grandes meios de produção pertencem à coletividade, são dirigidos para e pela coletividade? Será que se passa algo de novo, de revolucionário ou a megamáquina impõe ao socialismo que ele seja a repetição do capitalismo? De fato, não se trata dos mesmos privilégios, simplesmente transferidos de um grupo para outro, mas sim da abo-
zindo, organizando.
Isto quer dizer que basta de profetas e de prédicas. Aliás, Illich não tem grandes dificuldades em acreditar no poder da sua palavra, visto que se move num mundo idealista, em que os monopólios são poderosos porque, despertando necessidades artificiais, dominam a imaginação dos consumi-
dores. O que a fantasia criou, pode desfazer um escrito. Mas estamos no reino das sombras. E as sombras não são suscetíveis nem de consistência, nem de espessura, que precisassem ser investigadas por uma cultura elaborada. Existe, para Illich, um equilíbrio e um só, definido para
sempre. O Bem foi determinado de uma vez para sempre e ficou para trás; o homem deve reencontrar o antigo meio em
lição da lei do lucro, da lei da selva. O homem não está dominado pelo mercado, pela rentabilidade; ele chamareal-
que se formou. O mundo é imutável e proclama, pois, pela
mente a si a máquina, a produção, adquire o domínio da sua vida social.
voz de Illich, a vaidade de tudo quanto havia sido considerado um progresso, a vaidade de toda a evolução social. Se a história inteira se confunde na mesma aberração,
Visto tratar-se de levar os homens à moderação, à frugalidade, não há necessidade da cultura do especialista: a cultura cotidiana dos homens vulgares basta-se a si própria, não precisa ser elaborada pela dos peritos. Para o homem se reconciliar com as suas verdadeiras necessidades e com os seus verdadeiros valores, para ele se conformar com a sua natureza, e para reencontrar em si a voz imediata da natureza, bastaria que ultrapassasse algumas ilusões — e antes de tudc, a ilusão produtivista —, bastaria
que as instituições, desde a publicidade até à escola, deixassem de o manipular e de o intoxicar; e então, cada um,refletindo, consentindo em se assumir, adquiriria a consciência
não há lugar para estudá-la, não há nela nada a ser compreendido e, sobretudo, nada que se possa esperar — e sob este
segundo aspecto, de novo a cultura dos especialistas parece, evidentemente, inútil.
Todos, tal como somos — chefe de partido, contestador, homem de negócios ou trabalhador, professor ou aluno
— partilhamos uma culpa comum. Já que todos somos culpados e que a luta de classes é inteiramente ignorada, Illich não vê a mínima dificuldade em apelar para a união sagrada de todos: trata-se de conscientizar indivíduos ou grupos até aqui divididos, de que as mesmas ameaças pesam sobre as
lúcida e infalível daquilo de que carece para ser feliz. Desde que se varram as construções parasitárias, o lugar ficará livre para se desfrutarem as harmonias providenciais. Cada indi-
que toda exigência de liberdade real, formulada seja por quem for, serve sempre o interesse de grande número.
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suas liberdades fundamentais. E inversamente, mostra ele
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É um amontoar de todas as boas vontades, sem que de
modo algum seja preciso discernir como elas se situam socialmente, a que tipo de interesse se ligam. É assim dispensado um terceiro componente da cultura dos especialistas: o que incide sobre as estratificações sociais. Enfim, é um fundo de falência integral: o mundo inteiro
tomou uma má direção, a má direção. É um local de perversão, e nada mais. Trata-se de inverter o seu funcionamento, de operar uma mudança radical. Quando tudo é negado, para quê tentar compreender? Que necessidade há disso? Para que se esforçariam as pessoas? A frugalidade satisfeita: este é o remédio que as classes favorecidas recomendam aos que nada possuem além da sua força de trabalho. A conversão de cada um no seu foro íntimo: a ação política global da classe operária seria assim posta fora de jogo; identificam-se um a um os grandes sonhos conservadores da burguesia. Se todos somos culpados, não existe qualquer força organizada que tenha dado provas, que seja capaz de resistir, de progredir: o movimento operário não existe. Uma revolução essencialmente moral; não nos preocu-
pemos tanto com as estruturas globais da sociedade e confiemos na exortação do homem providencial: afirma a burguesia outra coisa? O apelo à união sagrada de todos, é a negação do conflito social. Raramente se tem ido assim tão longe na recusa de tomar em consideração não apenas a luta de classes, mas sim, genericamente, as contradições dos interesses e das aspirações no interior da sociedade.
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persuadi-lo de que até o momento nenhum resultado válido foi obtido, para o convencer de que é impossível contar com qualquer conquista válida. A burguesia conquistadora afirmava ao proletariado que as suas reivindicações eram inúteis visto que, graças ao progresso (isto passa-se em 1789), tudo quanto ele tinha a pedir já fora conquistado. A burguesia decadente diz ao proletariado que as suas reivindicações são inúteis, pois que tudo quanto se fez até então só conseguiu aumentar a desventura comum. Sem dúvida que não se deve ver nisto simples tática e maquiavelismo consciente: o burguês treme e benze-se perante tudo que signifique verdadeiramente o ponto de partida de um progresso; não pode reagir de outro modo, pois daí em diante o progresso anunciará o fim de um mundo emqueele estabelecera o seu domínio; o que ele só pode interpretar como o fim do mundo, o apocalipse. Onde não existe a mínima confiança nos homens, nas massas, não é possível a mínima perspectiva de progresso. A convivência familiar, como todas as doutrinas de catástrofe,
as doutrinas que querem condenar indistintamente o passado e romper em bloco com ele, cai no misticismo: é apenas num
outro mundo que podemos depositar esperanças, quer dizer, exatamente no outro mundo. De fato, a burguesia tem uma cartada para jogar: decla-
rar que o seu mundo é bom e a sua escola libertadora; e
quando isso deixar de lhe parecer provável, garantir que o
mundo é absurdo, inteiramente absurdo, e que toda a escola é nefasta.
homens no seu conjunto caminharam pela estrada errada séculos e séculos, por que milagre gozar antecipadamente os sucessos do futuro? É este o último método utilizado pela classe dominante a fim de tentar deter a luta do proletariado:
Quanto à cultura dos peritos, é evidente, visto que Illich a caracteriza por um conjunto de defeitos, que deva ser abandonada. Notemos que todas as ideologias são assim colocadas num mesmo plano, sendo igualmente vãs, igualmente opressivas. Nada serve melhor aos interesses estabelecidos do que
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Se nada de real se conseguiu durante séculos, se os
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este ceticismo, esta renúncia à compreensão que desarma a classe operária; e, a partir daí, ela se deixará impregnarpelas ideologias dominantes, sem conseguir opor resistência.
resgatar e expandir, não ficará, na realidade, melhorreparti-
Sem o citar, R. Leroy parece verdadeiramente descre-
ver o autor de La Convivialité ao fazer esta acusação: “Hoje, o grande capital repudia completamente o racionalismo e o otimismo... senilidade e tendências seculares, regresso ao
passado e à utopia, fuga medrosa diante de um universo em que se erguem as acusações dos revolucionários... A grande burguesia já não pode edificar grandes sistemas ideológicos, reduzida à defensiva, esforça-se por desviar e retardar a tomada de consciência da crise semeando em seu redor a dúvida e o sentimento de culpa”! Não é por acaso que o representante por excelência da classe no poder volta a encontrar reflexos do apocalipse ilichiano: “O mundoé infeliz porque não sabe para onde caminha e adivinha que se o soubesse, seria para descobrir que marcha para a catástrofe”2. A burguesia, incapaz de propor uma explicação do mundo, uma teoria geral, preferiu lançar suspeitas sobre todo esforço teórico; refugia-se no irracionalismo. Prefere renunciar à cultura e mesmo à sua cultura do que enfrentar as terríveis verdades que os seus pensadores lhe lançam ao rosto. Lucien Febvre notou perfeitamente que a burguesia voltou as costas e jogou fora a razão, que proclamou a falência da ciência e do progresso a partir do momento em que as dificuldades na partilha do mundo se anunciavam e em que, simultaneamente, as massas se organizavam.
Porém, a cultura dos homens vulgares que se pretende da: o sucesso de Illich demonstra quanto os homens aspiram a certas alegrias que ele evoca. Mas só sabe introduzi-las empobrecendo. Trata-se de despedir o perito, de dispensar os seus conhecimentos: a partir daí a atividade se irá degradando até cair no improviso, no biscate, com tudo quanto isso comporta de impreciso; os limites, a exigiiidade e, em breve,
a rotina do biscate, condenarão à estagnação. A originalidade pessoal, está, asseguram-nos, dentro de cada indivíduo (não será, na verdade, apenas a sua alma?),
pronta a manifestar-se — e teria estado pura e simplesmente bloqueada até agora pelas instituições estabelecidas. Tllich leva ao paroxismo o contraste entre o indivíduo e a sociedade, pondo de um lado o social, o conjunto das instituições desde a medicina até à construção civil monumental, o perito com os seus conhecimentos; e mantendo no outro o indivíduo reduzi-
do a uma espécie de artesanato, à participação calorosa em pequenos grupos e à convicção da sua originalidade. Em que pode consistir, na verdade, o conteúdo desta originalidade e, finalmente, desta cultura? Só está de pé a
presunção de se tratar de um caso único. Voltamos a essa atitude de que Gorki fez uma descrição famosa. O pequenoburguês exclama com arrebatamento: “A minha personalidade, todo o caminho da minha vida é individual, incompará-
vel, inimitável, ninguém mais percorrerá estas etapas e ninguém antes de mim as transpôs”. Não ser como os outros parece a ele motivo largamente suficiente para se sentir admirado consigo mesmo e com as suas palavras; o direito de manifestar o seu eu transforma-se na sua razão de existir. Na realidade, esta originalidade é uma fuga: entrincheirar-se no seu foro interior, numa tentativa desesperada para
!R. Leroy, discurso no 25º aniversário de La Nouvelle Critique em La Nouvelle Critique, janeiro de 1974.
2 v, Giscard d'Estaing, 2º Conferência de Imprensa, 25 de outubro de 1974.
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se proteger contra as agressões de uma sociedade em que só pode representar o papel de agressor ou de oprimido; a me217
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nos que alguém se deixe embalar pela esperança impossível de assumir uma atitude conciliadora entre os que devoram e os que se deixam devorar. Disse Gorki, de forma impressionante, que a sociedade capitalista é constituída à semelhança dos jardins zoológicos, em que os animais são encerrados em jaulas de ferro. As jaulas reservadas aos privilegiados são,
der, em dado momento, que são esses os objetivos prioritários a serem alcançados.
naturalmente, mais cômodas e mais confortáveis do que as
destinadas aos explorados; mas está cada um numa jaula. A originalidade com que nos acenam aqui é a originalidade da jaula; encolhido, isolado dentro de si, um reino de propriedade privada, disfarçado de propriedade espiritual. Não é, certamente, por esta via que se atingirá uma originalidade criadora, a união dos homens numa obra que os ajude a progredir.
V— A cultura dos especialistas já é uma realidade e conquistará terreno e eficácia numa sociedade transformada Deste modo, para voltarmos ao nosso tema central,
conclui-se que o especialista não está condenado desde sempre e eternamente, a opor-se às necessidades dos homens. Ilich tem razão quando se indigna por se construírem tantas geladeiras para uso privado e tão poucas câmaras frigoríficas coletivas, que se pense tanto nos automóveis particulares e tão pouco nos transportes públicos. Mas a causa disto não reside absolutamente nada na megamáquina em si, nem na intervenção do perito. Os proprietários privados da megamáquina supõem — e do seu ponto de vista assiste-lhes razão — que é mais rentável fabricar e vender geladeiras a quem pode pagá-las do que fornecer câmaras frigoríficas a quem não tem dinheiro. Uma produção coletivizada pode fugir a
Deste modo, o perito trabalhará para os homens no seu
conjunto com a condição de que não fique ele próprio prisioneiro de um sistema que o submeta aos interesses privados. Outro exemplo: se a luta contra a poluição continua ainda tão embrionária, não é por os peritos estarem desarmados perante os prejuízos. De fato, eles podem perfeitamente assumir essa tarefa de maneira frutífera, com a condição de
que a sociedade os encarregue dela. E a sua perícia irá enriquecendo de acordo com a procura. O problema reside em que a fiscalização social seja autenticamente eficiente, isto é, que não sejam os senhores das indústrias vergando a sociedade à sua lei, à lei do lucro privado, portanto, imediato — mas sim, a sociedade impondo a sua lei aos industriais, a lei
do bem estar, tomando por base uma planificação global e a longo prazo; ora a planificação não pode ser real e realmente pensada pela coletividade senão a partir do momento em que a coletividade seja senhora de si, e, portanto, da sua produção, dos seus meios de produção. Não só o especialista não está condenado a interromper a iniciativa dos homens, como é graças a ele que essa iniciativa pode desenvolver-se. Illich tem razão ao declarar que, sem iniciativa, nenhuma tarefa é interessante ou válida para o tra-
tivos a preços extremamente baixos se a coletividade enten-
balhador; ele tem razão quando afirma que a industrialização capitalista tende a despojar o trabalhador da sua iniciativa.. Mas ela só lhe parece possível no artesão — e, portanto, absolutamente incompatível com a produção industrial. Isto evoca um passado idílico; não nos deixaremos atrair por esses bucolismos. E importante, acima de tudo, nunca esquecer que o nosso mundo é o da penúria — e nunca o da superabundância. E certo que há uns tantos que satisfazem gostos supér-
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este critério, oferecer câmaras frigoríficas e transportes cole-
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fluos, mas no seu conjunto os homens não possuem o indispensável; uma imensa parte da humanidade padece de fome. A idéia de renunciar à técnica, de limitar a técnica, é obra de ricos, de abastados. Pela primeira vez na história, o
deiras cegas aos quinze anos; não mais se verá a bela carne de outrora sem hormônios nem suplementos, que metade da população comia uma vez por ano”. Iniciativa e instituição. — Efetivamente, na nossa sociedade, é mais do que falso rotular igualmente toda instituição, como destruidora da individualidade. Mal se consegueir além das aparências, logo se repara quea instituição sindical, por exemplo, proporciona ao indivíduo um aumento de personalização.
desenvolvimento da técnica oferece à humanidade uma pos-
sibilidade de sair da privação. Eis o verdadeiro problema: comoutilizar os conhecimentos adquiridos, o domínio adquirido, em proveito do bem estar dos homens? Não se pode pensar em destruir a capacidade, finalmente vislumbrada, de
abrandar a existência endêmica da subnutrição, dos pardieiros e do analfabetismo à escala mundial. O doce passado. — Um mundo de técnicas limitadas, onde os especialistas pouco sabem e pouco intervêm, não é novidade, a humanidade já passou por essa experiência histórica que esteve bem longe de ser sedutora; pois nesse famoso mundo do artesanato, há o cuidado de nos ocultarem
que lado a lado com um pequeno punhado de artesãos reais, a imensa maioria de homens e de mulheres se fazem de animais de carga, puxam, arrastam, empurram um material rudimentar. Onde estão as suas possibilidades de iniciativa? E a sua alegria criadora? Não resistimos ao desejo de transcrever a página seguinte, pela sua importância como tema derefutação de Illich: “Esta natureza que é hoje de bom tom descrever como infinitamente benéfica, como a mãe aleitadora que os seus
filhos ingratos magoam e desfiguram é a mesma, temos tendência a esquecê-lo, que tantos rigores e terrores inflige ao homem até ele conseguir aprender a decifrar-lhe os segredos... De qualquer maneira, não se voltará atrás. Não se verá mais o bom lavrador caminhar a passos lentosatrás dos bois brancos com malhas ruças, catorze horas por dia; nem, constantemente lavando no ribeirão, Janneton a mulher com
O capitalismo, e sobretudo o capitalismo em crise, tem
como consegiiência fatal a diversidade das formas de exploração e a acentuação dos contrastes: os operários franceses face aos operários imigrados, os profissionais especializados face aos operários qualificados — e ainda os operários face aos funcionários qualificados. Se o operário se deixa entusiasmar pelas primeiras idéias, por reflexos imediatos, expõese a perder paralelamente a sua força e a sua autonomia; é grande o risco de mil tensões contraditórias e votadas rapidamente ao fracasso — e também o risco de cair na escravatura de comportamentos instintivos. O objetivo comum, a unidade de luta, não é prova evi-
dente de que cadatrabalhadorestaria penetrado por uma espécie de graça: ela só seria alcançada pouco a pouco, por via da organização sindical, da instituição sindical, só possível desde que as competências viessem a elucidar e ordenar a agitação confusa dos antagonismos. A instituição será vigorosa, e não hostil à vida, na medida em que se apóie no que Já tor consciência de classe e nas reivindicações em que essa mesma instituição se exprime — e ela tem por tarefa clarificar, alargando assim as experiências comuns. É precisamente neste ponto que cabe um papel aos peritos.
Sem dúvida que as instituições estão ameaçadas de es-
quem ele teve doze garotos, dos quais morreram dez em tenra idade; não mais se verão as belas rendas do Puy e as ren-
corre o risco de se transformar num simples técnico, afastado
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clerose, que se arriscam a soçobrar na burocracia; o perito
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daqueles de cujos problemas lhe cabe ocupar-se. O remédio não é acabar com as instituições para assim dar lugar à dispersão de pequenos grupos autônomos e que convivem familiarmente. É única e simplesmente com a ajuda da massa popular que se consegue evitar o afundamento das instituições, o que exige um povo politicamente educado e, portanto, um impulso geral da cultura. As massas a nível da competência, e não a competência rejeitada como maldita: é esse o preço do progresso das instituições e também de uma
uniformização e ausência de relações autênticas. Não é a pequena comunidade artesanal, rústica, que está encarregada de desenvolver a originalidade de cada um e de criar entre os seres o calor humano que nós tanto desejamos. Na cidade como no campo, o que padroniza, é o que empobrece; a minha originalidade é a minha contribuição pessoal, autêntica, para a luta comum e não o absorver-me na descoberta extasiada das diferenças que me isolam, me bloqueiam dentro de mim. Os homens tornam-se originais, conquistam pouco a pouco a sua originalidade, na medida em
conexão sempre mais íntima, mais rica, entre a cultura dos
especialistas e a das massas. As possibilidades de iniciativa numa sociedade capitalista. — Narealidade, a condição preliminar para o fomento da força da iniciativa, reside na circunstância de o progresso técnico ser capaz de libertar as massas dos trabalhos mais
que cooperam, cada um a seu modo, de acordo com a sua
rudes, mais monótonos, o que equivale a um incremento dos
nossos conhecimentos e a um aperfeiçoamento das nossas técnicas; depois se tratará de aplicareste acréscimo de poder
mos entregando-nos passivamente às decisões dos peritos, nem tampouco os dispersando na esperança de descobrirmos no fundo de cada um de nós uma sabedoria espontânea, ime-
não em benefício do lucro, mas à vontade constante de coor-
diata e, de certa maneira, rústica.
denartarefas. Portanto, peritos que sejam igualmente peritos em utilizar os seus conhecimentos para aliviar o esforço do homem e uma sociedade que apele para eles neste sentido: melhorar de acordo com osinteressados as suas condições de vida e de trabalho, até o ponto de elas permitirem, espera-
rem, exigirem deles uma resposta pessoal. E só então se conseguirá desenvolver uma iniciativa de um tipo novo: a participação na elaboração, na modificação, no progresso e na execução de um plano de conjunto, a partir do momento em que o trabalhador se convença, pela sua experiência real, de que o plano que ele traça não servirá para enriquecer alguns, para reforçar o poder de alguns, mas que participará numa construção destinada a todos. A cidade. — Não é a grande cidade que, porela e por fatalidade, caminha para a perda da individualidade, para a 222
experiência pessoal, numa obra capaz de mobilizar a todos por eles sentirem que ela é de todos; é assim que se complementam mutuamente e se estreitam as amizades. Esta tarefa a ser cumprida em comum, não a realizare-
Do mesmo modo como é um determinado tipo de sociedade, uma sociedade baseada no lucro, que desvia a técnica
para as produções consideradas mais rentáveis pelos proprietários dos meios de produção, em lugar de a pôr a serviço da comunidade, igualmente é um certo tipo de sociedade, por assim dizer a mesma, querepete aos operários: “Vocês não precisam pensar, já há quem o faça, que para isso é pago”. Assim se tenta persuadir as massas de que a sua experiência, a soma das suas reflexões e do seu saber, não estão relacio-
nados com o verdadeiro conhecimento, detido só por alguns. E isto porque a classe dominante tem medo do que pensam os explorados e não está interessada na evolução dos seus pensamentos. Jamais irá pedir aos seus especialistas que tornem mais claros aos operários os processos de produção, 223
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inseparáveis das formas de organização dentro e fora da fábrica. Nem tampouco que expliquem aos usuários o objeto fabricado: operários e usuários são demasiado parecidos. Isto nada tem de fatalista: se o regime incitar os homens vulgares a aumentar a sua cultura, e particularmente a
tomóveis para utilizarmos a bicicleta, e renunciar a tudo que seja mais complexo do que esta. Mas, se o perito utilizar a sua cultura para que os desejJosos explicitem os seus desejos, surgem mais aberturas: por exemplo, esta famosa ambição de possuir um automóvel, de
cultura técnica, e se, correlativamente, a fábrica inscrever
andar de automóvel, pode ultrapassar as suas formas imedia-
entre os seus objetivos o apelo à intervenção dos operários em lugar de os temer, será levada a incrementar ao máximo a compreensão do que lá se executa; o perito poderá dirigir-se às pessoas, comunicar-se com elas, intervir, quer para lhes aumentar os conhecimentos, quer para levar em conta as suas necessidades: uma cultura progressista é a mútua fecundação da cultura erudita e da cultura popular. Não deixaremos de dizer que a cultura do especialista não é, afinal, mais do que a cultura dos homens vulgares, que conseguiram a explicação que a própria cultura reclamava. Não há outra força motriz da história senão a imensa combatividade das massas
tas e revelar-se como desejo de conhecer outras pessoas, de participar em outros modos de vida ou de dominar um mecanismo poderoso que aumente o próprio poder, ou pode se tratar ainda da necessidade de abandonar uma habitação desconfortável. Semelhante dissecação deste desejo isenta-o da acusação
oprimidas; e por isso a fonte de toda cultura é a vida, as es-
peranças e as lutas do povo; perito, intelectual, especialista é todo aquele que, tendo capacidade para se inquietar com as mesmas coisas que inquietam as massas, contribui para que as aspirações globalmente vividas pelas massas dêem um passo em frente — como na Resistência, em que Aragon e Eluard, proclamavam em voz mais alta, mais cheia, as razões de lutar, o drama delutar, as razões de ter esperança. O sábio
de esnobismo e de vaidade; nesse sentido, as ambições dei-
xam de se apresentar como antagônicas e inconciliáveis: em lugar de se repetir que é impossível todo mundo possuir um automóvel, sob pena de engarrafamento e de acidente, será possível concluir que alguns encontram nas formas de turismo coletivo uma resposta mais adaptada à sua ânsia de entrar em contato com diferentes modos de vida; ou que nos clubes ou
nos centros culturais deparam com possibilidades mais amplas de pôr em execução uma gama de realizações técnicas. Menos pessoas se precipitariam para os automóveis se as habitações fossem salubres e confortáveis. Mas por que raramente elas o são? E, por outro lado, que condições determinam que uma sociedade favoreça ou não a existência e o desabrochar de centros culturais e inculque nas pessoas uma preparação que lhes possa ser proveitosa? A cultura do perito é indispensável para explicitar os desejos do proletariado. — O doente poderia escapar da
ocupa os tempos livres do técnico, que é um prolongamento do operário. A cultura do perito é indispensável para esclarecer as aspirações. — Nlich considera as aspirações tal e qual, como surgem à primeira vista; depois se rende à constatação da sua fragilidade e das suas contradições e é levado a concluir que só há uma solução: limitá-las. Da mesma forma como pretende que renunciemos ao conhecimento em prol do bom senso cotidiano, igualmente nos exorta a renunciar aos au-
Junto do médico a compreensão de que necessita: seria preciso, para começar, que lhe tivessem posto à disposição meios de elevar o seu nível cultural, a fim de compreender as explicações que o médico lhe presta. E a fim de que o médico pres-
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dependência em relação ao médico, ainda mais, encontrar
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te de fato estas explicações, é necessário que ele tenha se for-
rém, a luta do proletariado é diferente. Hlich tem prazer em
mado, não só no manejo dos instrumentos terapêuticos, como também no diálogo em profundidade com o seucliente. O que leva muito longe: por exemplo, um operário queixa-se de fadiga, termo infinitamente complexo que remete para um conjunto de doenças, de sofrimentos confusos; para que o diálogo represente mais do que uma série de boas palavras banais ou uma simples disponibilidade indiferenciada, é indispensável que o médico tenha, de certo modo, participado nas experiências de vida do seucliente; isto é, que o perito não tenha perdido o contato com a vida das massas; finalmente, que a sociedade não esteja fragmentada em castas que se ignoram, se desprezam. A oposição entre o perito e o vulgo, não é absolutamente um elemento fatal na competência do perito, é a proJeção, neste plano especial, da divisão da sociedade em classes antagônicas, em níveis de instrução e em modos de vida
separados, compartimentados e sem comunicação ativa. É mais fácil suprimir a medicina e voltar aos cuidados da avozinha do que procurar em que condições médico e doente podem entrar em contato — mais fácil e infinitamente mais conservador. A cultura do perito é indispensável para isolar o lado positivo da luta de classes. — Illich quer manter-nos na idéia mais simples, mais simplista, mais burguesmente simplista: a felicidade consiste em nos contentarmos com o que temos, com o que somos. À partir disso, qualquer desejo de mais — ter mais, produzir mais, procurar mais longe — é perigoso e nocivo. Em particular, assimilam-se grosseiramente as reivindicações das massas com a inveja, a insatisfação sem limites e sem finalidade, e que se volta, por uma espécie de
confundir o desejo de possuir um automóvel como o vizinho, e um tanto mais bonito, com a luta do proletariado contra a opressão.
Pondo de lado a cultura dos peritos, pretende ele suprimir os que entendem e dão a entender que, em qualquer revolução do proletariado, a reivindicação de um bem material, e a da dignidade, andam de mãos dadas: mal o operário
exige um automóvel também parasi, exige o direito de participar, de ter a sua parte no que produz, de ser reconhecido como merecedor de ter e de conduzir um automóvel, visto o
haver fabricado — e capaz de ser um condutor responsável, aliás, não só de um automóvel.
Torna-se aqui indispensável a cultura do perito queultrapassará as contradições imediatas e fáceis entre a exigência dita espiritual e a dita material, entre a riqueza da vida pessoal e as necessidades prosaicas; as contradições imediatas e fáceis entre a imobilidade da felicidade e o ardor das reivindicações. O perito compreenderá e fará com que compreendam que é precisamente nestas reivindicações que se gera o que há de mais precioso: a força capaz de fundar uma sociedade nova, a classe que só pode emancipar-se emancipando todas as classes, ou seja, suprimindo a divisão em classes... Em
suma, que este impulso reivindicativo sempre mais enérgico, ligado a um acréscimo das necessidades, tem valor criativo € não remete de forma alguma para uma sucessão de caprichos nem acentua a direção nefasta que seria necessário inverter por um movimento contrário e unânime rumo à pobreza, pois as solicitações aumentam, atingem um nível sempre crescente: a fome do escravo, o desejo do proletário de manobrar as
É bem certo que determinado tipo de desejo, de ambição, de cupidez, é vão e testemunha uma febre doentia. Po-
máquinas mais aperfeiçoadas, a pretensão do homem socialista de se tornar capaz de participar no governo da empresa a que pertence e, em breve, do seu país.
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fatalidade, contra si.
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Hlich, ao eliminar o papel do perito, vai manter-nos ao nível da mais superficial das aparências — e das mais enganadoras, e a sua sabedoria será do tipo: “Quanto mais têm mais querem”, “Para se viverfeliz, viva-se com pouco”. | A cultura do perito é indispensável para se conseguir uma leitura da história em profundidade. — Eliminando a cultura do especialista, Illich nos bloqueia com visões simplistas da história: outrora, o simplismo era ver nada mais do
guesia que desempenham um papel progressista ou reacionário na história”. Mesmo assim, foi o capitalismo que eliminou as formas de dependência pessoal inerentes aos velhos sistemas econômicos e nenhuma reflexão tem aqui cabimento — desde que não seja capaz de confrontar o capitalismo com as estruturas escravagistas e com as estruturas feudais — de explicar que a persistência da exploração (o proletário é freqtentemente apelidado de escravo) quer o abismo que separa as diferentes formas de exploração (nenhum proletário pode ser equiparado a um escravo). As liberdades formais, outorgadas pela burguesia, arrancadas à burguesia, comportam algo de enganador que é a liberdade de expressão: cada um tem o direito de comunicar as suas opiniões e de fundar um jornal. Mas, na prática, quem poderá fundar e divulgar um jornal? Contudo, Lenin adverte-nos de que essa república democrática e burguesa é um progresso em relação à aristocracia feudal, e incita-nos a não abandonarmosa luta pela liberdade política a pretexto de ela ser uma liberdade política burguesa. Não porque ela represente um ponto de chegada onde se possa descansarsatisfeito; ela vale precisamente na medida em que constitui o terreno mais favorável à luta do proletariado.
que progresso e triunfo; hoje, o mesmo critério invertido, é
denunciar por todo lado o fracasso e o absurdo. A cultura do especialista é indispensável para se distinguirem as premissas de uma existência não-opressora já em ação na sociedade atual; e é porque algo de positivo já começou que se deve procurar avançar. A idéia, hoje cômoda, é condenar em bloco todas as realizações do capitalismo, de considerar como equivalentes todas as realidades do capitalismo e confundir capitalismo, socialismo e sociedade industrializada. Excluindo a cultura do perito, Illich cai neste duplo erro; talvez seja preciso dizer que foi para nos arrastar nesse duplo erro que ele excluiu a cultura do perito. O capitalismo é o inimigo a ser abatido, o que de modo algum significa a negação das conquistas positivas que ele permitiu e, sobretudo, das possibilidades que abre. O capitalismo é regime de exploração e foi, contudo, ele que proporcionou uma cultura e uma organização democrática a todos os homens. Lenin inscreve no ativo do capitalismo que os camponeses nos quais o capitalismo mal aflorou vivem muito menos decentemente do que aqueles em que ele penetrou. A classe burguesa é a classe exploradora, o que não significa que tudo quanto ela instituiu constitua uma forma equivalente e unívoca: “O proletariado é hostil a toda a burguesia, mas é necessário distinguir os representantes da bur-
de lutas de classes e de opressão de classes o arrebatam porque facilitam consideravelmente a luta do proletariado pela supressão das classes. Nem as realizações da burguesia podem ser encaradas como um único bloco, a serrejeitado de um só golpe, nem a própria burguesia será tratada como um corpo único: na nos-
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Do mesmo modo, nem todo Estado é equivalente. É
necessário começar por denunciar em qualquer Estado a opressão de uma classe por outra, mas isso em nada significa que a forma de opressão deva serindiferente ao proletariado. Ainda aqui, determinadas formas mais amplas, mais livres,
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sa época, mais do que nunca, se desenrola uma luta pelo poder entre os diferentes partidos burgueses e pequenoburgueses. O proletariado progride aproveitando-se destas dissensões. O capitalismo marca um avanço, não por ter instaurado um mundo pacífico e justificado, mas porque estabelece condições que possibilitam a sua própria abolição em proveito do socialismo. Suscitando uma produção concentrada e um grande mercado nacional, ele acabou com as estreitas uniões corporativas locais a favor de associações amplas, fortes, suscetíveis de assumir um papel dirigente; é assim que ele cria as bases necessárias a uma unidade e a uma tomada de consciência dos trabalhadores. Só o grande capitalismo, baseado na produção racional, coloca o produtor em | situações que lhe permitem refletir, ganhar coragem. Enfim, o capitalismo possibilitou um enorme crescimento das forças produtivas: é a etapa indispensável para que os homens saiam da penúria e da fome que ainda pesam sobre os países que mantêm estruturas mais ou menos feudais e que
do por elas, mas não conseguirão decifrá-lo distintamente sem juntar a sua experiência vivida a uma elaboração teórica: é aqui que a contribuição do perito — e queé, afinal, o conjunto dos dirigentes do movimento operário — passa a ser indispensável; de contrário, teremos tendência a tudo rejeitar
ou a tudo aceitar, o que torna o esforço impossível, tanto num caso como no outro: tal é a consegiiência do illichismo. Na verdade, a expansão industrial é, no mundo contem-
porâneo, um acontecimento propriamente vertiginoso e sem precedentes. Se tomarmos o índice 100 em 1920 para o volume da produção industrial francesa, o número será somente de 105 em 1939; mas em 1960 é de 230. Cabe à nossa época
lonizadores; torna-se então viável às massas regatar momentos
dominaresta subida. Não é de espantar que quem não a compreenda, se recuse a compreendê-la, rejeite a cultura capaz de a explicar, que tenha medo: Tllich é o símbolo deste medo. Em particular, eles não ficarão em condições de explicar porque se manifestam os progressos de forma tão irregular segundo os setores: a medicina permitiu prolongara vida, porém, a preocupação de criar uma existência agradável às pessoas idosas não acompanhou, nem de longe e nem de
de liberdade; a sociedade pode sair da escravatura, entenden-
perto, o mesmo ritmo. É que, na nossa sociedade, os mais
do-se por escravo aquele que não vive um minuto fora do seu se torna efetivo na medida em que for arrancado pela ação e pela revolta dos próprios interessados. Explica Engels que só no capitalismo, e pelo capitalismo, é que toda a classe dominante não apenas se tornou inútil como passou a constituir um obstáculo ao desenvolvimento social. Daí a consegiência: “E é só então que ela será impiedosamente eliminada”. Este misto de exploração desumana e malgrado as perspectivas abertas pelo capitalismo, ou pelo menos sob o reinado do capitalismo, é sentido pelas massas, experimenta-
notáveis avanços nunca deixam de relacionar-se com os lucros dos que detêm os meios de produção: a criação de lares acolhedores para a chamada terceira idade não dá a mesma rentabilidade da indústria médico-farmacêutica, a qual lhe permitiu, precisamente, chegarà terceira idade — e porisso a sua Situação de impasse. Uma interpretação superficial deixa supor que sofremos de uma superabundância de progresso, quando afinal é o déficit e as deslocações egoístas do progresso que provocam os nossos problemas. Em suma, a cultura do perito pode e deve juntar-se à das massas, enriquecê-la e ser porela enriquecida. Obstinan-
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foram reduzidos, aliás, a este estado, pelos imperialismos co-
trabalho. Este salto em frente, que o capitalismo autorizou, só
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do-se em opô-las, Illich nos condena a ficarmos prisioneiros de falsas aparências, que se intitulam revolucionárias e que, com efeito, alimentam os rancores da decadência burguesa. Efetivamente, o socialismo nunca é levado a sério, ob-
jeto de um exame real, mas imediatamente assimilado ao capitalismo, manifestadamente ao capitalismo americano. Dado que a sociedade socialista é uma sociedade industrial,
não pode haver lugar para diferenças entre sociedade socialista e sociedade capitalista: o socialismo envolve a noção de que os pobres se beneficiarão dos privilégios até então reservados aos ricos e que invejavam. Por que ignorar as relações de produção? Por que llich se recusa a averiguar se existe outro meio, que não o capitalismo, de pôr em prática os recursos da máquina? É que tais questões ultrapassam o que se vê, o que se aborda nas práticas cotidianas, remete para essa cultura sistemática que Illich se esforça por abolir. A partir daí, entra em cena o mais evidente, mas que é, na realidade, o mais enganador: os modos
de consumo, essencialmente a frugalidade no consumo e o gênero de ferramenta utilizada. E querem encurralar-nos na alternativa: ou o fabrico industrial — e eles são todos idênticos — ou uma espécie de artesanato: “O que me interessa não é o antagonismo entre uma classe de homens explorados e uma outra classe que detém a ferramenta; é a oposição entre o homem e a estrutura técnica do instrumento”. Por não relacionar a luta das classes com a utilização a que a nossa sociedade condena a técnica, Illich nega-se a
aceitar, mesmo hipoteticamente, que ela possa ter outro emprego; por conseguinte, só resta transformá-la numa força
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vamente os seus caracteres: a velocidade da bicicleta é sempre e eternamente boa, a do automóvel é irremediavelmente
nefasta. E por ignorara luta de classes queele imputa toda a opressão à técnica e nunca a uma estrutura social que permite a uns posições de exploradores, a outros o destino de explorados; e é por ignorara luta das classes que ele representa os operários como passivamente submetidos à máquina, sem qualquer poder para a forçar a outra serventia. Assim Illich vai arrastar, desviar, este descontentamento tão justificado em face da nossa sociedade, para uma série de confusões,
sendo a primeira, evidentemente, aquela pela qual ele acusa a máquina, a própria técnica, dos malefícios cuja responsabilidade atribui a um certo modo de utilização dessa máquina por determinado regime social. Ninguém mais do que Illich é escravo da ilusão que ele pretende denunciar, que ele julga denunciar: a sujeição do homem à máquina. Ou, por outras palavras, Illich surge-nos como o tipo de tecnocrata, ou seja, do homem que não vê nada além da técnica. Simplesmente ele inverte os termos; a técnica, em vez de trazer felicidade, só é evocada como ca-
tástrofe e perdição e é de uma outra técnica, que é renúncia ao progresso técnico, que brotará a salvação da convivência familiar. Os coeficientes de valor ligados aos termos mudaram, mas mantiveram-se no mesmo plano. Recusando, repudiando o conhecimento elaborado, Illich contenta-se com as aparências evidenciadas pelos objetos padronizados ou pelos engarrafamentos, mas que escondem os mecanismos da maisvalia, da circulação do capital, da luta das classes.
autônoma, num elemento último e dominante.
É a estrutura inerente à ferramenta que comanda tudo o mais, é a ferramenta que dirige o homem e impõe definiti232
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SEGUNDO TEMA: Cortar com a escola?
Diante de um sistema escolar que lhe parece sinônimo de rotina, de servilismo e de desigualdade social, Illich visa
promover uma espécie de não-escola. Sem dúvida deveria falar-se de antiescola, comose fala de antipsiquiatria. I — Adquirimos os nossos conhecimentos pelo nãosistemático O essencial da nossa cultura, sustenta Illich, adveio de
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então considerados não-escolares serão integrados na rede educativa. Consegiientemente, outras redes permitirão trocar conhecimentos, partilhar interesses em determinado domínio especial: discutir um livro com quem o aprecie, falar uma língua estrangeira com quem a tiver por língua materna. Cada jovem, e também cada adulto, poderá entrar em contato não apenas com um ou outro condiscípulo, mas com todos os que a ele se sintam ligados por comunhão de gostos. E Illich está persuadido de que, por este processo, tomarão forma as comunidade já em estado latente, mas que permanecem incoerentes no meio do atual desmoronamento da nossa sociedade.
experiências realizadas fora da escola, que surgiram como uma aventura: não por procura sistemática, mas como fruto
Estas redes não são escolas; todas as suas característi-
do acaso. Mesmo para as crianças escolarizadas, o mais importante daquilo que aprendem vem do exterior da escola, sem a ajuda do mestre; adquirem a sua formação a partir da maneira de brincar do seu grupo de jovens ou aproveitando as observações tiradas do seu dia a dia ou ainda pelas informações tiradas de revistas e do que viram na televisão.
cas se opõem a isso, são feitas para se oporem à escola. Para começar, são admitidos todos os que se mostrem empenhados em determinada investigação, sem que seja imposta a mínima separação relativa a idades, nem qualquer grupo regulamentar. Nenhum atestado deste ou daquele ciclo de estudos é exigido a troco de uma autorização para o início. O passado do indivíduo não conta. Depois, nada de programa pré-estabelecido; ninguém será obrigado a aprender aquilo que não deseja; será possível que cada um faça a sua escolha, o traçado do seuitinerário educativo. A formação se dará a partir de uma escolha pessoal, nunca de disposições administrativas.
É nesta extra-escola que Illich quer, essencialmente, inspirar-se: a criação de estruturas de um tipo novo, a que ele chama redes de comunicações culturais. A rede é o meio de ligação graças ao qual os que se interessam por determinado assunto, que pretendem enveredar por determinada atividade, estarão à altura de entrar em contato com outras pessoas com o mesmo interesse; a rede é o que permite a cada um descobrir um parceiro, ou parceiros, com quem cooperar num mesmo domínio. Umaprimeira rede põe à disposição dos interessados o máximo de objetos educativos, desde bibliotecas até laboratórios, passando igualmente por oficinas e fábricas, onde todos nós temos o que aprender. Desta maneira, setores até 234
E, sobretudo, todas as precauções serão tomadas para
não se reconstituir a figura de um professor, para não se destacar do conjunto qualquer personalidade que se evidencie nos debates. Só ao participante, e apenas a ele, competirá a iniciativa de fixar o momento, a duração, a forma e o local dos en-
contros; aliás, esse local pode perfeitamente ser a sala do café. Apenas, trocas, uma ajuda entre camaradas livres e iguais.
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Alguns dispõem de educadores, de instrutores profissionais. O interessado será levado a procurar o conselho de uma pessoa qualificada, uma ajuda para executar um novo projeto, um aviso sobre as dificuldades que irá encarar. Mas esses educadores não serão representados à imagem dos professores; serão muito mais bibliotecários ou guias, até guardas de um museu, como todos cujo papel consista em indicar o que há para ver aos que pretendem ver. Cabe-lhes, essencialmente, proporcionar encontros entre pessoas adequadas. Desta maneira, cada um compreenderá qual o caminho mais apropriado à conduta ou finalidade que a si mesmo se impôs. Por exemplo, um quer aprender chinês com o seu vizinho chinês: o educador conversará com eles sobre o método mais apropriado às suas respectivas personalidades e ao tempo de que dispõem. Hlich estabelece como princípio que, seja quem for que deseje instruir-se, saiba daquilo de que precisa; porque um verdadeiro sistema educativo nada impõe a quem se instruir. Haverá simplesmente a probabilidade de recorrer a certos apoios: reparos e observações vindos de um companheiro, um mais velho que ofereça a vantagem de uma experiência mais vasta mas, de forma nenhuma para influir na solução, apenas para orientar as verdadeiras questões que se devem pôr de igual para igual.
ensinar — ou, mais exatamente, que favoreça com as suas experiências outros que nem por isso deixam de ser seus iguais. Cada um terá direito a receber uma parte igual do
No seio desta estrutura igualitária, não basta dizer que cada um contribui para a aprendizagem do outro: Illich exige que aprender não se diferencie de ensinar. Todos conquistarão a sua educação, partilhando-a. Ilich está convencido de que as redes serão uma solução para as desigualdades da escolaridade: todo cidadão terá direito a um primeiro crédito educativo, que lhe permitirá adquirir conhecimentos de base. Em seguida, para se beneficiar de novos avanços, será pedido a ele que se dedique a
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orçamento da educação e utilizá-la cedo ou tarde. Assim, um
rapaz de 13 anos que só ganhou quatro anos de formaçãoterá à sua disposição um montante superior ao que resta a quem Já gastou oito anos. Em nenhuma parte a descolarização surgia mais nitidamente do que nas escolas técnicas: Illich quer realizar uma transformação das explorações industriais que converta as fábricas em centros educativos. Por um lado, depois do ex-
pediente da fábrica, se asseguraria uma formação, a cargo do próprio pessoal, a quem a pretendesse. Por outro lado, e acima de tudo, o processo de fabrico seria de tal maneira transformado que assumiria valor educativo, e assim, no trabalho,
pelo trabalho, se conseguiria adquirir um aperfeiçoamento simultaneamente profissional e geral. Estas vantagens serão proporcionadas a quem as solicitar, sem limite de idade, sem qualquer exigência de estudos ou de diplomas anteriores. Deste modo, o mundo profissio-
nal assumiria o papel que a escola reclama como exclusivo. Por isso, Illich se convenceu de ter libertado a educa-
ção: cada um pode da mesma formaparticipar no seu próprio crescimento, aumentar a sua autonomia e a sua responsabilidade, pois é ele que, a cada instante, será mestre e senhor do que quiser aprender e de como o aprender. II — Reflexões críticas sobre as redes
Sem dúvida alguma, Illich tratou de questões que são reais, prementes, daí a sua audiência. A nossa escola não
proporciona um lugar que satisfaça a originalidade do aluno, nem a sua necessidade de iniciativa, de realização pessoal. 237
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Muito raramente lhe oferece meios de exprimir aquilo que sente para ele sair do seu aparente conformismo. Daí o apelo a um ensino que ofereça aos educandos uma multiplicidade de contatos com o mundo, englobando encontros e viagens, que facilite a conexão entre locais e métodos de produção por um lado, locais e métodos de formação poroutro: criar novas relações entre o homem e o que o rodeia, que venham a ser fonte de educação. E também o prazer e as vantagens do diálogo, e o sentimento de que o
diálogo só é possível mediante a abolição de determinado tipo de desigualdade entre os participantes. O tema, enfim,
de uma sociedade globalmente educativa onde seria possível e natural partilhar a sabedoria. Nlich tem boa percepção das necessidades justificadas de transformação da nossa escola, mas pensamos que a solução porele proposta as desnatura cruelmente. Um dos argumentos mais peculiares a Illich para recusar a escola, a sua própria estrutura, consiste em afirmar que
o mundo atual atravessa uma situação tão nova que tudo quanto já foi estabelecido e constituído deixou de ter utilidade: as verdades de hoje tornaram-se caducas, a continuidade da história está suspensa, a herança tornou-se bruscamente inútil e incômoda. Ora, isto não passa de uma ilusão que, por seu turno, cada geração alimentou. Apontaremos três citações. Em 1835, Tocqueville concluía assim a sua obra dedicada à
América: “Não se conseguiria comparar o estado atual nascido da Revolução (de 1789) com algo que o mundo já tenha observado. Recuo século a século até à antiguidade mais remota, não distingo nada de comparável ao que está sob os meus olhos. Se o passado não iluminar o futuro, o espírito avançará para as trevas”.
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Em 1856, estas linhas tantas vezes lidas em transcri-
ções contemporâneas e que eram consideradas inovadoras: “É tal a rapidez do progresso dos conhecimentos que no segundo terço da sua existência o pai de família já não está a par do que é preciso saber; já não é ele quem ensina os seus filhos, são os seus filhos que refazem a sua educação; ele representa para eles a velha rotina, a prática gasta, a resistência que é preciso vencer”. Enfim, Taine faz com que os estudantes da sua época digam: “Amaldiçoamos e injuriamos o vosso mundo inteiro e rejeitamos as vossas pretendidas verdades que, para nós, são mentiras... Eis o que a nossa juventude contemporânea nos grita bem alto há quinze anos”. Cada época se julgava perdida num universo em que tudo lhe parecia necessário ser reinventado. E aqueles que não se deixavam arrastar pelas aparências sempre conseguiram descobrir a perspectiva histórica, síntese de rupturas e de continuidades. E as rupturas só são eficientes desde que tenham sido estudadas e as continuidades garantidas. Sem dúvida que a nossa época vê realizar-se uma mutação de extraordinária envergadura; é, todavia, ingênuo supô-la única e que a cultura constituída já não possa ajudar a interpretá-la, a dominá-la. E a nova cultura que se procura instituir em correspondência com a agitação da nossa época, exige um avanço, mas, contudo, uma assimilação do passado; física nuclear não pertence, de fato, aos que desconheciam a física
clássica. Não sendo uma autoridade de tipo universitário, habilitada a atribuir um diploma, apropriando-se do direito de atribuir um diploma, estas redes seriam julgadas pelos seus clientes, através de seus resultados. Masisto só é possível — e Illich tem perfeita consciência disso — no caso de uma sabedoria imediatamente aplicável.
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Semelhantemente, os exames de tipo universitário serão substituídos por provas mais limitadas e precisas para que não se perca de vista a objetividade: trata-se, efetivamente, de conseguir que elas se processem à margem da intervençãoe, principalmente, do juízo de todo o poderdocente. Em todo caso, o alvo visado consiste em estabelecer a competência peculiar a um determinado trabalho. E o exemplo invocado é bem significativo: o postulante, para não dizer o candidato, consegue ou não se servir de determinada máquina? O conhecimento em rede está condenado a limitar as suas ambições educativas àquilo que puder servir de imediato e de forma absolutamente evidente: não ultrapassa as fronteiras de uma prática restrita. Trata-se muito menos de compreender do que de tirar partido de... e um partido imediatamente utilizável. Montar, desmontar, consertar, enfim: trabalhos manu-
ais. O conhecimento em rede corresponde a um conhecimento a curto prazo, encarado unicamente no aspecto das suas aplicações pragmáticas e imediatas. Sacrifica-se alegremente tudo o que abriria perspectivas mais vastas, de contrário como poderia se proceder a uma ratificação instantânea? Como passar imediatamente ao ensaio e à verificação”? Tal educação constitui o melhor meio de não interpretar os conjuntos, os problemas globais; em particular os conjuntos sociais. Afirmamos que a aprendizagem em rede corresponde à escola idealizada pelo patronato para fornecer uma mão-de-obra rentável e que se abstivesse de reivindicar: repisar a competência limitada, diretamente aplicável à tarefa, sem ultrapassar as exigências dessa mesma tarefa — não permitindo, portanto, à classe operária uma visão mais vasta. Ressaltamos, de uma leitura inversa, uma das funções
essenciais da escola e incluindo esses exames e esses diplomas tão depreciados: na escola dispõe-se de tempo, há tempo 240
para se formarem, mesmo em relação ao que não é logo aplicável; confia-se no valor que a escola lhe atribuir, apesar de o aluno não estar apto a avaliá-lo de imediato. E o diplomaé o intermediário entre aquilo que o aluno já sabe fazer e a afirmação, a garantia, do que mais tarde ele será capaz de executar.
Não há dúvida de que a escola precisa se transformar até às entranhas para merecer, para reconquistar tal confiança — e de formaa que a visão do futuro não seja um meio de eliminar a alegria e o progresso presentes. Porém, esta revolução escolar não consistirá em cingir o ensino a uma contribuição imediata, a menos que se trate de uma revolução essencialmente conservadora. Dizem-nos, sem dúvida, que o conhecimento em rede utilizará e desenvolverá os cineclubes, as exposições itineran-
tes etc. Mas, devido ter por alvo suprimir qualquerorientação e qualquer prerrogativa exercidas por um professor, a rede deverá utilizar as possibilidades educativas contidas nas coisas e é necessário que as características das coisas sejam assaz evidentes para que sejam distinguidas quase por si, ou pior ainda, de acordo com o mais ligeiro aceno do apresentador. Isto leva Illich a só introduzir na rede máquinas simples e rudimentares que todos, dentro de um ou dois meses, saberão montar, desmontar, conservar e consertar. Porque as
realizações complexas dos técnicos modernos, não podem inserir-se no não-diretivismo do conhecimento em rede. À escola precisa lutar contra estas tentações do passadismo — e pode fazê-lo apoiando-se, como já dissemos detalhadamente, na forças mais diretamente interessadas na mudança da sua situação presente. Mas é pela sua própria natureza que o conhecimento em rede fica prisioneiro do passado.
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E bem nítida a convergência entre o mundo da convivência familiar, o seu regresso ao rudimentar e estes meios
de limitação educativa. Ilich reprova as desigualdades da escola, e com razão.
Afirma ele que a aprendizagem porredes é igualitária, que a austeridade é igualitária. Apesar do que ele nos diz sobre o crédito educativo concedido a cada um, parece-nos haver
muito mais desigualdades no conhecimento por redes do que na escola. E a escola conserva, sobretudo, certa possibilidade, evidentemente parcial, de vencer a sua desigualdade;
pelo contrário, a desigualdade incorpora-se às redes e tornase insuportável. Há desigualdades nas redes primeiro por defeito: é por demais evidente que esse saberrestrito não bastará para manter em funcionamento uma sociedade técnica e economicamente desenvolvida. E, aguardando a instauração do mundo da convivência familiar, torna-se inevitável que uma reduzida elite de apodere dos conhecimentos profundos que o sistema de redes não demonstrou a todos. Aguardando a instauração desse mundo de convivência familiar, já não há motivo para esperar que o sistema de redes escape pura e simplesmente, como se isso não constituísse problema, à pressão dos interesses estabelecidos, às
contradições entre os interesses estabelecidos e à assustadora disparidade das situações adquiridas. E as redes de conhecimento são desiguais, sobretudo,
nas suas consegiiências diretas: com efeito, recusando toda a regulamentação institucional, elas apenas se baseiam, apenas existem pela necessidade que delas revelarem os participantes. Illich nos diz que o sistema de redes facilita o encontro entre dois seres que, num dado momento, partilham o mes-
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mo interesse. A força que os anima é a propensão natural que nos impele a crescere a aprender. A partir daí passamos a encarar problemas que evocamos detalhadamente a propósito do não-diretivismo de Neill: nada de mais desigual do que as inclinações naturais, pois não são absolutamente espontâneas, visto refletirem a posi-
ção do indivíduo na sociedade e cuja tendência é mantê-los nessa posição. A inclinação natural do filho de um profissional especializado leva-o, pelo menos, à esperança de chegar a contramestre.
A escola, na medida em que tomar partido na luta de classes, tem por papel desmistificar aos olhos da própria criança as origens das suas aspirações, de fazer com que compreendam que elas resultam do seu modo de vida e das dezenas de biscates que lhe são familiares; e, por consegiiência, que ela deve vencera sua aspiração. A rede é incapaz de cumprir semelhante tarefa, pois exige do que ensina uma orientação demorada, contínua, que deverá, em determinadas
alturas, de forma provisória, ter a coragem de não coincidir com o desejo imediato do interessado. Poderemos afirmar que a rede está montada de tal modo que essa tarefa não será executada e que o filho de um profissional especializado não conseguirá ultrapassar os condicionalismos das suas aspirações? As redes de conhecimento só podem ser niveladas na medida em que tudo que certo indivíduo exprimir possa equivaler à expressão de um outro qualquer, com a única condição de que haja atuado numa forma de espontaneidade patente, mal tenham sido anuladas as coações do professor ou da instituição escolar; e finge-se ignorar as muitas outras pressões que não cessam de se exercer sobre o cliente; ficase então alheio a qualquer critério supra-individual; só é válida a manifestação encarada como inerente a cada indivíduo 243
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e isso, absolutamente, sem comparação possível com qualquer outra.
Tudo que se assemelhe a uma investigação autêntica, a uma norma de verdade, será assim abandonado, mas também, paralelamente, desaparecerão as bases comuns de pensamento, de ação, de organização. O ceticismo, a idéia de
que todas as opiniões são equivalentes e, portanto, o isolamento de cada um dentro do seu ponto de vista, são inerentes à rede para a desmobilização da luta operária. É aqui que nos viramos para Althusser, que não cessa de nos precaver contra a ilusão do concreto como elemento imediato, experiência imediata em que bastaria confiar. Ele trouxe de novo à tona e reinterpretou os textos essenciais de Marx, principalmente aquela passagem da Critique de PEconomie Politique que denuncia a tentação de se tomar por base do conhecimento aquilo que se vê e se toca, que se apresenta de mais palpável: por exemplo, a população, a distribuição dos habitantes entre cidades e aldeiasetc. Uma verdadeira sabedoria exige uma orientação para elementos só alcançáveis devido a pensamentos sutis: trabalho. assalariado, capital, troca, divisão de trabalho; sem o
que, a noção de classe, a separação em classes, nem sequer pode ser pensada. A sabedoria exige uma combinação de perspectivas: o concreto da ciência é um resultado, torna-se concreto como recompensa de um longo processo, só é concreto por sera síntese de múltiplas determinações. O conhecimento porredes conseguirá atingireste esforço?
As redes de Illich em que cada um dialoga com os seus companheiros em pé de igualdade, deixam por isso mesmo cada um na sua perspectiva peculiar; instalam-na, cimentamna, no seu modo vulgar de pensar e de viver. Cada um prossegue aí calmamente o seu caminho, tudo continua a ser considerado de forma usual, apenas com mais alguns detalhes,
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com explicações mais numerosas. Cada participante, a pretexto de ser senhordesi, de ser o único responsável pela sua formação, mantém-se, na realidade, abandonado e pregado ao mesmo lugar em que já estava. Não é possível haver oportunidade para um questionar profundo, radical, pois esse esforço, que por vezes chega a ser doloroso, exige uma persistência demorada; há momentos em que se está num túnel, sem se encontrar a saída: é então que se torna necessário ao aluno o apoio de uma instituição duradoura e sólida, de um professor em quem confie porque a experiência lhe mostra que ele inspira confiança; reconhece o papel específico do professor, não como um escravo que se submete, mas como quem observa que só unindo os seus esforços a uma orientação mais firme conseguirá obter uma resposta, a sua resposta, às perguntas que formulava, às contradições em que se debatia. Mas só por ele, e menos ainda com a ajuda dos companheiros, não con-
seguiria avançar decisivamente. Ou a nossa sociedade não está dividida em classes antagônicas e não tem, portanto, de se proteger com ideologias enganadoras — nesse caso as redes podem constituir um processo de educação suficiente; ou a nossa sociedade é atravessada pela luta das classes e segrega mistificações, noções que encobrem a realidade ao pretenderem explicá-la ou descrevê-la; por exemplo, quando se interpreta o salário como preço do trabalhoe, portanto, o seu justo preço, quando ele é o preço da força do trabalho, força capaz de produzir mais do que consome,e é isso que permite a coleta da maisvalia. A tomada de consciência real exige que se enxerguem através das aparências, que o pensamento desafie o radicalmente novo, que se questione novamente o que lhe parecia
evidente e o reconstrua. Não é pelo sistema das redes que isto será conseguido.
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Surgem-nos, portanto, as redes do conhecimento como o mundo que antecede Marx: a classe explorada, privada de armadura teórica, privada dos conceitos que lhe permitiriam compreendera situação, fica presa na passividade e nas ideologias envolventes, demasiadamente conservadoras. Na verdade, a classe no poder nada tem a recear dessas redes.
Enfim, é porque a escola envereda pela aceitação das soluções pré-fabricadas que conduz a um contínuo desenvolvimento das aspirações materiais. Por um lado, devido às promoções, às competições, às rivalidades, a escola inocula uma paixão pelo jogo, uma paixão incurável. E quando não mais se alimentar de notas e de exercícios de avaliação, pas-
E, naturalmente, este estado rudimentar das atitudes so-
sará a ter em vista o consumo, o consumo frenético, criará O
ciais, colado ao imediato e ao conformismo, será reposto, transferido para o domínio do pensamento científico e técnico.
mito de um paraíso terrestre do consumo sem fim. E, por outro lado, a disciplina da escola adapta o homem ao consumo disciplinado, começando pelo consumo escalonado dos programas escolares para terminar com a mentalidade do consumidor habitual, persuadido de que só um acréscimo de produção é capaz de conduzir a uma vida melhor.
Ilich constata que a escola não ensina a renunciar, a viver dentro de limitações, de restrições, e isso o deixa indignado. Para nós é o mais belo dos elogios dirigido a uma escola. A escola pode sentir-se orgulhosa ao ser apontada por Hlich como o inimigo principal, orgulhosa por ser o principal obstáculo à limitação dos desejos e à abdicação que lhe é inerente, bem como pela acusação de atiçar as ambições dos pobres — enquanto tantos a censuram precisamente por repisar a resignação. Para Hlich, a nossa escola não constitui simplesmente
uma instituição entre outras, mas a instituição fundamental e determinante da nossa sociedade. Primeiro porque é ela quem instala determinado indivíduo em determinado nível, quem o engrena em determinada carreira e quem, portanto, o gruda a uma situação social definida. Quem aceitaresta avaliação de uma instância exterior está prestes a admitir que toda a sua existência seja determinada pela burocracia dos tecnocratas.
Depois, são os programas escolares que constituem uma preparação para a planificação institucional: pois aquilo que se aprende na escola, não evidentemente pelo discurso explícito do mestre, mas através da modelagem ideológica contínua, é o “medir o tempo pelo relógio do programador”. 246
Resumindo, a escola forma o homem condenado ao
consumo do progresso e trata-se de uma terrível condenação, primeiro porque o lança numa corrida sem objetivo. Em seguida, porque esses bens que todos cobiçam continuarão sempre reservados a um pequeno número de privilegiados. A escola forma simultaneamente os criadores do progresso € os seus consumidores: os diplomados pelas universidades vão construir aeroportos e hospitais superaperfeiçoados e constituirão eles próprios a sua clientela Ilich concluiu que a escola desempenha hoje o papel primordial que coube outrora à religião; ela representa a nova Igreja mundial. Isto significa que é ela o modelo das outras instituições, a instituição que serviu de molde às outras, para que fosse possível compreendê-las e transformá-las; e significa ainda que é agora ela a depositária das expectativas, dos grandes sonhos humanos. Porém, ela os conduz a um resultado catastrófico. E porisso afirma que o projeto revolucionário e a libertação do homem devem obrigatoriamente implicar a nãoescolaridade, o termo da era escolar, como quem se refere à
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era feudal e ao seu desaparecimento, isto é, o fim da época em que o ensino na escola era considerado indispensável.
modifica a ordem, a hierarquia dos fatores: em lugar de enaltecer a sabedoria do professor (o perito) e considerar nãoválidas, até falseadas e perigosas, as vivências dos alunos (e nisso se fundamenta o tradicionalismo pedagógico), vai glorificar a existência imediata das pessoas vulgares, jovens e adultos, e votar a perda do professor-perito. Mas não se sai
Tiramos daqui uma tripla conclusão: Illich defende de fato o tema da escola libertadora, a escola como motor de todo o desenvolvimento social, simplesmente ele troca a es-
perança pelo desânimo. Basta que se reconheça a necessidade da escola para ela se tornar presa das outras instituições. Em lugar de ser tida como uma salvação, leva à perda, porém, quer num caso, quer noutro, é investida de uma força miraculosa, quase sobre-humana, ora diabólica ora divina. O
que evita repô-la entre o conjunto dos mecanismos da sociedade e implicar a crítica da escola na crítica da sociedade. E isto impede que se situe a escola dentro da luta das classes, que se perceba que ela está fundamentalmente dominada pela luta de classes e que pode e deve ao mesmo tempo adquirir uma margem de autonomia. As redes de conhecimento estão adaptadas ao mundo da convivência — mas só o estão ao mundo da convivência e à teoria illichiana das duas culturas. Uma vez que se concorde que a cultura dos especialistas é um obstáculo irremediável para o bom senso cotidiano, que é necessário excluir a
intervenção dos especialistas por ser catastrófica e que basta nos deixarmos impregnar pelos hábitos envolventes, pela experiência das pessoas vulgares, as redes de conhecimentos justificam-se perfeitamente. Se o alvo é nos restringirmos e nos submetermos, as redes de conhecimento estão no lugar que lhe compete. Mas esse lugar é o do impasse, o da estagnação, e não o de um questionar revolucionário. Na realidade, Illich partilha, em relação ao saber, o
do tradicionalismo, pois a ruptura, o contraste entre os dois
termos foi mantido tal e qual; e é precisamente este contraste que é ruinoso. Hllich é o porta-voz de uma escola tradicional ingenuamente invertida e não de um requestionar progressista da escola, ainda menos de uma escola progressista, cuja base é o vaivém, a continuidade vivida entre a própria experiência dos sujeitos interessados e a formação teórica e organizadora que lhes permite uma cultura elaborada; o enriquecimento das iniciativas e dos primeiros entusiasmos pelos conhecimentos culturais e, em contrapartida, os fomentadores da cultura, ou antes, os que lhe dão forma, vão buscara sua for-
ça nas perguntas, nas esperanças, nas riquezas ainda em estado bruto, quer dos seus alunos, quer do seu público. Parece-nos, deste modo, que a escolha se processa entre a escola tradicional — incluindo Illich — e o marxismo,
o marxismo que torna possível uma sabedoria em que o perito se alie ao bom senso, na medida em que a vanguarda se aliar às massas.
O parentesco entre Illich e a não-diretividade é tão evidente que nos bastará evocar por alusões as convergências mais manifestas: os educadores profissionais previstos nas redes de conhecimento conformam-se com esquemas de nãodiretividade, grande número das acusações que Illich formula contra as escolas são precisamente as mesmas dos não-
mesmo conceito da escola tradicional; nunca conseguiu ultrapassar as concepções da escola tradicional. Simplesmente
al da não-diretividade: a intervenção do mestre só pode resul-
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diretivistas. Explicitamente, Illich retoma a afirmação essenci-
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tar como uma oposição ao verdadeiro desejo, à verdadeira natureza de quem se instrui. Tema da incomunicabilidade entre os seres, mais ainda entre as gerações e que atinge o ponto culminante nas relações entre professores e alunos: “Acreditar que se pode agir sobre os outros para seu bem” não passa de presunção pedagógica; isto é orgulhoso, impiedoso. Ihch denuncia como ilusão perigosa a noção de que seríamos capazes de distinguir entre o que é necessário a outrem em matéria de educação e o que não o é. Em suma, quaisquer formas de influenciar um discípulo, mesmo que sejam consideradas educativas, precisamente quando assim são, não passam de traições em relação àquilo de que ele realmente necessita; nada que se assemelhe a uma orientação podeser frutuoso visto que cada indivíduo é o único a saber, a sentir o que lhe falta para progredir. A educação recusa qualquer diretivismo e mesmo toda direção porque define a si mesma como surpresa; é sempre da ordem do imprevisível.
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realizem com mais plenitude; se os agrupamentos espontã-
neos dos discentes não sentem necessidade de uma instância de vanguarda que guie, filtre, regularize a sua riqueza implícita, então não passa de uma solução tímida e desajeitada. Insistir, como insiste Lobrot, numa escola como local em que o professor abdicará solenemente dos seus poderes a favor do grupo-classe ou, como Rogers, em ter assento numa universidade na esperança de poder travar diálogos de igual para igual: de fato, é a escola comoinstituição, a escola inteira que deve ser revogada, incluindo os locais. Numa primeira fase, a dos não-diretivistas propriamente ditos, a escola, deixando mal esboçadas as matérias a se-
c as aspirações dos alunos, a tomariniciativas para que precisamente essas aspirações e essa vida se compreendam e se
rem transmitidas, punha todas as suas esperanças no modo de transmissão que se esforçaria por tornar igualitário; pediria humildemente um lugar entre as outras instituições que têm por tarefa a comunicabilidade. Mas em breve Illich vai proclamar o seu desaparecimento porque, apesar de tudo, o que ela conserva de pretensão em formar jovens, parece injustificável. O equívoco da não-diretividade, reside na circunstância de ela dar simultaneamente guarida a uma intenção real, a de transformar a relação pedagógica, e a uma indiferença pelo saber, que impede a realização das suas esperanças. Como pode a relação docente-discente afirmar-se se nada mais há de verdadeiramente válido para ensinar? Bem longe de eliminar esta ambigiiidade, o illichismo corre o risco de vir a constituir o mais infeliz dos resultados da não-diretividade. A enveredar-se pela não-diretividade não se procurando paralelamente a síntese entre a expressão pelo aluno daquilo que ele vive e uma herança de pensamento e de ação que ele tem de assumir e de perfilhar, a lógica das situações conduz ao encontro das redes de conhecimento. Por conseguinte, todos os perigos que receávamos em relação aos não-diretivistas e todas as críticas que julgamos
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As redes de Illich vão levar às suas consegiiências extremas a pedagogia não-diretiva. Lobrot e até Rogers mantinham a estrutura escola ou universidade. Illich suprimiu-a; e a razão está com ele, pelo menos se nos inserirmos no nãodiretivismo, se enveredarmos pela aceitação dos seus postulados, sem unir o que existe de fecundo na sua inspiração original, ou seja, a preocupação da relação educativa e da vida do grupo, a um esforço que incida sobre a renovação dos conteúdos ensinados, uma vontade de manter, contra as facilidades do ceticismo, a procura da verdade — ou, pelo menos, de um mais verdadeiro.
São as consegiiências extremas que constituem as consequências lógicas e, na realidade, obrigatórias: se não for o docente, embora mantendo um contato constante com a vida
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dever apontar a Illich, convergem, reforçam-se mutuamente.
para que a mentalidade socialista surja espontaneamente, organicamente. Daí a conclusão lógica de que Hoernle exige a supressão tão completa quanto possível da autoridade, ou seja, da intervenção de adultos. A tripla fórmula educativa que ele tem em vista: a auto-administração, a autodeterminação e a auto-educação recíproca da infância, da juventude pela ju-
As redes de Illich, colocando em prática, mas de maneira unilateral, certos temas da não-diretividade, permitem decifrar-lhes, claramente, o sentido — o sentido perigoso: oposi-
ção estéril entre o saber constituído e o saber espontâneo,daí a renúncia ao saber organizado; o que mais ou menos se subentendia nos primeiros não-diretivistas e que se transforma na proclamação solene de Illich. A partir da qual pretendem conduzir-nos a uma sociedade primitivista e resignada. TERCEIRO TEMA: A morte da escola para Illich e para os pedagogos soviéticos da primeira geração
É exata a relação entre a não-escolaridade de Illich e os temas de morte da escola lançados por numerosos pedagogos soviéticos nos anos imediatamente posteriores à revolução,
retomados depois, vigorosamente, quando das discussões de 1926. Falta averiguar até que ponto, nesses anos por vezes atrozes, pela resistência encarniçada dos capitalistas ou pela intervenção estrangeira, eles conseguiram manter-se fiéis ao marxismo. Não é de menor interesse mostrar como a similitude dos temas remete, todavia, para duas atmosferas intei-
ramente diferentes.
I— A escola definha
Começaremos salientando a influência de Hoernle, teó-
ventude, deixa perceber bastante claramente, recuando no
tempo, que tal escola está em vias de se dissolver. Quanto à URSS, começaremos por nos referir a pedagogos para quem, semelhantemente, subsiste a escola; mas, na realidade, eles vão perdendo espaço e diminuindo o seu papel a ponto de nos inquirirmos se não será por mero hábito que ainda conservam a noção de escola. Por exemplo, Bukharin afirma que, uma vez levada a cabo a revolução, o trabalho se torna, para a criança, uma
manifestação natural e espontânea das suas aptidões. Numa sociedade comunista, e mais precisamente numa escola comunista, a criança entraria imperceptivelmente no trabalho como numa continuação natural das suas brincadeiras e o trabalho se tornaria uma necessidade, como beber e comer. A
partir daí se conclui que a escola pode e deve reabsorver-se, tornando-se progressivamente inútil. Pistrak sustenta que “sobre a base do trabalho se forja inevitavelmente uma determinada compreensão da atualidade”, a partir do momento em que esse trabalho tenha sido concebido e organizado numaperspectiva socialista. Ao mesmo tempo, ele atribui às crianças, desde que se
certo, Hoernle mantém a idéia e o termo de escola socialista,
mas nesta escola que se pretende de um tipo novo, bastam as experiências próprias das crianças, as novas relações de vida
reúnam em grupo em busca de solução para os seus problemas, para os seus conflitos, todas as virtudes e nenhum fracasso: “A assembléia geral dos alunos não seria nem parcial nem subjetiva; e isto porque as resoluções são resoluções
entre as crianças e, sobretudo, do trabalho comum das crian-
coletivas e não ditadas por circunstâncias acidentais”, de
ças para se desenvolverem as virtudes socialistas coletivas e
onde ele conclui, logicamente, que o adulto só deve intervir
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rico do partido comunista alemão, por volta de 1919. Por
GEORGES SNYDERS
em caso de absoluta necessidade. É uma espécie de transposição do Contrato Social de Rousseau e da perfeita retidão porele conferida à vontade geral, aqui atribuída ao conjunto das decisões infantis. Quando a escola está organizada de maneira tal que o trabalho prático tenha uma finalidade social, é a própria força da vida escolar que levará a criança a solucionar a antítese eu e os outros, indivíduo e sociedade. Na assembléia geral dos alunos, o educador não passa de mais um membro, e não goza de qualquer prerrogativa. É de certo modo um camarada mais velho e Pistrak considera simultaneamente, como
possível e desejável, que ele mantenha essa atitude, que insista nela. Mesmo quando o nosso autor encarrega o adulto de orientar as disposições das crianças para determinada finalidade, de “lhes suscitar preocupações carregadas de sentido social, de ampliá-las, de desenvolvê-las”, uma restrição significativa, precisamente a esta frase, indica que tal papel consiste em “ajudar imperceptivelmente em casos difíceis”. A escola ainda existe, a escola parece manter-se, mas, na realidade, desintegra-se, visto transformar-se num simples
meio de vida que age pelo manejo direto das suasestruturas, pelo seu dinamismo imediato, sem que os docentes tomem alguma iniciativa original, e assumam uma tarefa específica.
É em Blonski que encontramos, explicitamente enunci-
ESCOLA, CLASSE E LUTA DE CLASSES
uma instituição que só tem lugar na sociedade capitalista. A escola desaparece, integrando-se em outras esferas de atividades da sociedade, confundindo-se com a vida social, e os
jovens participando diretamente da vida ativa dos adultos. Fundamentalmente, Blonski insiste em que “as disposições inatas da criança são naturalmente boas, ou seja, comu-
nistas. A natureza das crianças é, no sentido latente, proletária, e encontra sozinha, evoluindo naturalmente, o
caminho para o comunismo”, ou ainda: “A criança é boa e ignora o que sejam as classes”. Basta, portanto, que o meio em que vivem os jovens não contrarie a sua natureza nem o desvie do seutrilho. E por isso se entende poder confiar em diligências imediatas para autogestão: por menos que participe num meio comunista ou em vias disso, a criança se de-
senvolverá naturalmente de forma correta, pois ela própria irá descobrir, por uma busca ativa e criadora, as noções, os conhecimentos e as regras de conduta. E então este grito triunfante: “Ela mesma vai elaborar o seu próprio mundo, que será um mundo comunista”. Como não notar que este meio de vida não necessita ser uma escola, nunca mais o será?
O que é que suplanta a escola? O quadro real da educação passa a ser a fábrica e a comunidade agrícola. Em relação ao que ele designa como escola de produção ou ainda escola de trabalho operário, é o trabalho na fábrica ou na cooperativa
que basta para desenvolver o conhecimento e estimular a
ado, o tema da morte da escola e sua influência considerável
consciência coletivista, visto ser um trabalho socialista e a
escola está destruída, dissolvida... decadência da escola... à escola deixou de ter razão de existir... a escola como tal de-
vida se processar de forma comunitária. O local de produção transforma-se em local de formação, único e suficiente, que irá brotar da prática em si. À juventude se educará sem nunca
sobre a pedagogia da URSS até cerca de 1923. “A instituição saparece”. Não passou de uma instituição transitória, uma necessidade imposta pela divisão do trabalho, pela separação do trabalho manual e do trabalho intelectual, isto é, finalmente, pela divisão da sociedade em classes: é, portanto,
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se separar do mundo adulto; 150 a 200 adultos e crianças trabalham, vivem e se divertem em conjunto; as oficinas e os
campos permitem suprir as necessidades da comunidade, ao mesmo tempo que constituem a verdadeira escola. 255
GEORGES SNYDERS
Para os mais crescidos, horas dedicadas especialmente
ao trabalho intelectual, porém Blonski considera que para eles trata-se de uma simples recapitulação, de uma arrumação, sobre o que já tiverem adquirido e que conseguiram agindo simultaneamente sobre a natureza de forma direta e vivendo lado a lado com trabalhadores adultos. Passa-se dos diferentes maquinismos, considerados isoladamente, à mecânica geral e
à cinemática teórica, simplesmente a partir da própria experiência e das respostas dadas pelos adultos, segundo as oportunidades, às questões postas pelas crianças; e o diálogo prosseguirá à medida que os problemas forem surgindo. É a morte da escola como instituição particular, onde profissionais formados para esse fim põem em prática uma orientação elaborada e metódica. A escola anula-se em proveito do meio global de vida, meio em que basta às crianças tirar partido dos acontecimentos e dos acasos. O que explica o arrebatamento de Blonski, e que corresponde profundamente ao seu projeto: “O passeio pelas ruas constitui o melhor método de ensino”. IH — O lado exato e o lado utópico Seria, evidentemente, muitíssimo injusto não mencio-
nar o que consideramos de positivo na contribuição destes pedagogos. Hoernle deu uma belíssima definição da escola politécnica: “Um escola de produção onde escola e fábrica, a iniciativa criadora e a disciplina organizada, o trabalho manual e o trabalho intelectual, hoje em contradição exacerba-
da, se reúnem numa unidade superior”. Por isso é tão lamentável que ele tenha sacrificado uma faceta dos seus objetivos a favor de outra. Pistrak soube dizer que a escola tem o direito de orientar as preocupações da criança num determinado sentido, e isso não é usar de injustificada violência para com ela, pois,
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ESCOLA, CLASSE E LUTA DE CLASSES
de qualquer forma, os interesses da criança dependem do meio social em que ela vive, e estes interesses não podem
servir de base à sua educação. Pistrak teve a preocupação de definir a ligação entre trabalho escolar e trabalho social: as crianças tomarão parte nas formas mais aperfeiçoadas da produção, na planificação do trabalho, no que se refere às técnicas e à organização: “Fazer com que o aluno interprete todos os meandros e toda a rede relacionada com a fábrica”, problemas científicos, problemas econômicos, problemas
diretamente políticos. Daí ele atinge uma espécie de lirismo, mas um lirismo bem fundamentado, exaltando a fábrica e o seu valor formativo: “A fábrica, grande porta aberta ao mun-
do”, a fábrica como local em que se geram “as emoções necessárias à educação social”, e onde os interesses individuais
se transformarão em aspirações coletivas. Precisamente no momento em que distinguiam o alvo a ser atingido, o ensino politécnico, conseguiremos perceber porque esses pedagogos chegaram à conclusão de que a união entre a teoria e a prática, como aliança indivíduocoletividade, se processaria porsi, só pela virtude espontânea do trabalho, da fábrica ou do meio coletivo, tornando-se en-
tão inútil a escola como tal? Um dos motivos essenciais dos seus erros parece provir da circunstância de terem de se opor à escola czarista, sem que a Rússia passasse pela fase da democracia burguesa; é preciso imaginar a influência total sobre a escola czarista de uma religião, de uma culpabilidade religiosa e também de uma severidade, até de uma desvalorização em relação à juventude, vindas diretamente de uma sociedade em que essa religião constituía a justificação teórica. Deste modo, parece que os nossos pedagogos entendem não poderlutar contra este pessimismo senão refugiando-se num otimismo impenitente. Bukharin torna a escola muito vaga, muito fluida, na medida em que pretende estabe-
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GEORGES SNYDERS
lecer uma relação imediata e simples entre o trabalho da criançae a satisfação que este lhe proporcionará, uma via direta e cômoda entre a alegria do trabalho e o prazer da brincadeira, Por certo que se trata de lutar contra o mais tradicional
dos conceitos escolares, ou seja, o de trabalho-punição, tema,
na realidade, transferido das doutrinas do pecado original. Porém, o nosso autor acaba por ignorar a diversidade das alegrias e da sua proveniência: a alegria do trabalho é diferente da de brincar, penetrada por elementos absolutamente
diferentes. E há necessidade precisamente de uma escola, de
uma escola progressista como instância encarregada de conquistar pouco a pouco — metódica e por vezes rudemente — a transição entre satisfações imediatas e satisfações imensamente mais difíceis de atingir. A fim de se opor a toda umatradição que vê a juventude marcada por uma espécie de desvio, de falsidade funda-
mental, Blonski é levado a realçar o arrebatamento inovador
que a caracteriza, a sua força de ruptura em relação às posições estabelecidas por uma possibilidade indubitável de igualar-se ao movimento do proletariado. Por manter que a simples ação do meio social constitui força suficiente para a tomada de consciência revolucionária, ele chega a calar todos os elementos contrários: de fato, a Juventude não escapa à divisão em classes, nem ao prolongadíssimoe lento sobreviver desta divisão. É verdade que suporta menos as situações injustas de que é vítima do que quem há mais tempo as sofre, e mesmo as que a beneficiam; mas não é menos verdade que, estando
ainda desprovida de experiência e de inserção, será presa fácil de múltiplas mistificações. E, porisso, é necessária uma instituição formadora especial, especializada: a escola.
E em especial a escola czarista estava a tal ponto subJugada ao despotismo que se tornava praticamente impossí258
ESCOLA, CLASSE E LUTA DE CLASSES
vel qualquerluta no seu seio; era bem uma reserva do poder, onde nenhuma ação das forças progressistas seria concebível. Assim se pode compreender por que, por volta de 1919, a posição cômoda para os revolucionários consistia em afirmar que toda a escola (visto que, na realidade, só havia conhecido a versão czarista) estava condenada a reproduzir o tipo tirânico e, portanto, em procurar um modo de formação
que nada mais tivesse de comum com a escola. Era preciso o talento extraordinário de Lenin para ao mesmo tempo condenar a escola tal como ela funcionava e afirmar que era essa mesma escola que deviam metamorfosear para a transformar no instrumento de formação do proletariado. Lenin soube exortar o proletariado a apoderar-se dos elementos de verdade que a escola contém, sem deixar de se opor às mistificações que dela transbordam e que constitui a única forma real de oposição. Ao contrário, para os pedagogos da morte da escola, esta, na verdade, reduzida ao seu molde czarista, obedece a
um único impulso. As crianças que fregientam a escola apenas aprendem os limites tacanhos da felicidade burguesa; tendo como único ideal o conforto doméstico, as pequenas distrações domingueiras, as festas religiosas tradicionais; assim, a escola aumenta a submissão do proletariado sem que seja sequer mencionada qualquer força antagônica. Noplano intelectual, o êxito do poder não é menos absoluto: as escolas apresentam o regime estabelecido como natural, eterno e melhor que qualquer outro possível. Nem nas reações, dos professores ou dos alunos, nem no próprio conteúdo da história ensinada, surge a mínima possibilidade de contrariareste propósito. Quem sustentava que os regimes autoritários desconfiam da história? Aqui ela é apresentada como uma aliada cujo poder não corre o risco de qualquer fracasso.
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ESCOLA, CLASSE E LUTA DE CLASSES
Não é, evidentemente, por coincidência fortuita, que Chulgine, apontado por Lindenberg (infelizmente sem citar o texto persuasivo) como um dos protagonistas da morte da escola, é simultaneamente um dos que negam com a maior violência toda a possibilidade de evolução real, de progresso efetivo, nas estruturas escolares: a escola única não passa de uma artimanha da burguesia para decapitar as massas. Se os filhos do proletariado se introduzem nas escolas, até na universidade, é somente porque a burguesia “quer aproveitar e absorver as cabeças mais competentes do proletariado a fim de fortalecer as suas fileiras e separá-los da classe a que per-
que precisamente por isso, há espaço para outra coisa e o vazio é um apelo a essa outra coisa. O silêncio da escola oficial jamais é designado como um ensejo, uma possibilidade, um convite aos outros para usar da palavra — mesmo dentro do regime capitalista. Menos ainda se mostrou como uma outra escola irrompe na escola burguesa, por toda a parte em que o silêncio deixou de constituir um dique suficiente. - Hoernle destaca com muita lucidez a contradição fundamental da escola burguesa: por um lado, é indispensável dar ao proletariado a formação necessária ao seu trabalho, um trabalho que apela cada vez mais para técnicas comple-
tencem”?. Quando a burguesia utiliza assim a escola, mostrase, como sempre, vitoriosa; vitoriosa sem luta, pois nem se-
xas. Mas, por outro lado, “há um elemento revolucionário
quer parece admissível que estes alunos façam abortar os planos da classe dominante e se sirvam da instrução alcançada para travar um combate mais lúcido. Para Bukharin: cada vez que crianças vindas do povo triunfam nos seus estudos, “os talentos dos trabalhadores ser-
vem em definitivo à opressão da sua própria classe”. É essencial perceber-se que só devido a esta visão não-dialética da escola é que fica de pé a tese do enfraquecimento da escola.
Em certos momentos, apesar de tudo, não se pode deixar de chamara atenção para as dificuldades com quea classe dominante se depara na sua própria escola. Pistrak observa que se torna cada vez mais incômodo introduzir idéias conservadoras num aluno proletário. A escola, por conseguinte, vê-se constrangida ou Julga mais prudente renunciar à educação como evolução geral do indivíduo e vai experimentar limitar-se a simples exercícios de ginástica mental. E assim se irá refugiar “confuso... na ausência fregiiente de idéias... no ecletismo... na falta de elaboração de uma concepção definida” — derradeira salvação da ideologia conservadora. Mas, no que nunca se repara, é
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escondido em toda sabedoria” e ameaça, portanto, pôr em perigo a supremacia da classe dominante. O autor retira daqui, como únicas conclusões, que a cultura deverá ser admi-
nistrada ao proletariado em pequeníssimas doses e que irão empenhar-se em apresentá-la sob uma forma que exclua qualquer ação subversiva. Entre outras medidas, os trabalhadores serão preparados para uma única tarefa, excelente meio de bloquear a sua tomada de consciência reivindicativa. Porém, Hoernle não reconhece que este esforço, esta esperança da classe dominante está inexoravelmente fadada ao fracasso porque o elemento revolucionário oculto na sabedoria cada vez menos se esconde, e vai manifestar-se à luz
do dia, transformar-se numa força revolucionária — e isso na medida em que a pressão do proletariado vá aumentando de intensidade, em que o capitalismo for forçado a apelar para uma mão-de-obra cada vez mais concentrada e instruída. Assim, as forças progressistas possuem uma base objetiva de ação mesmo no interior da escola, dentro dela e porque ela existe. Pinkevitch, enfim, reconhece que a classe dominante
não pode pretender o domínio simples e total da escola: camadas sociais diferentes partilham o poder, por conseguinte, 261
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ESCOLA, CLASSE E LUTA DE CLASSES
a instrução pública. Vêem-se reduzidas a negociar, a estabelecer compromissos, a fazer concessões. O equilíbrio é frágil tanto no domínio educativo como no plano econômico. Con-
ção do proletariado, o aumento da sua capacidade de luta contra a burguesia. Compreendendo perfeitamente que não é de forma automática que a instrução exerce estes efeitos revolucionários, mas sim, na medida em que ela se torna parte integrante de uma luta revolucionária.
tudo, ele de forma alguma deduz que a escola, atravessada
por tais falhas, ofereça menos resistência à ação das forças progressistas e constitua, pois, um local onde a sua luta possa
ser avivada até uma considerável intensidade.
PCF, no prefácio de Gilbert Masson da tradução do livro de Hoernle, Education Bourgeoise et Education Prolétarienne, soube relevar os mais graves erros destas posições e marcar algumas balizas essenciais: sem nunca pretender que a escola possua o poderde transformara sociedade, interessa trazerà
Estas ideologias do enfraquecimento da escola remetem para dois postulados essenciais: “cada instituição de Estado não faz mais do que executar as diretivas da sociedade” e a escola nos será apresentada como uma instituição semelhante às outras, pouco diferente da polícia. A relação infinitamente complexa da escola com uma verdade simultaneamente oculta, mascarada e, contudo, sempre presente, ou pelo menos sempre pressentida, uma verdade que é impossí-
luz a realidade, a eficácia da luta conduzida pela classe ope-
vel evitar, apesar de tudo, é inteiramente silenciada. Sendo
É do maiorinteresse observar que, a partir de 1933, o
rária como força constante de oposição ao Estado burguês no seu conjunto e em particular ao domínio que a burguesia exerce sobre a escola. É esse movimento, já incontestável, que interessa ampliar: o proletariado deve utilizar a escola burguesa para adquirir conhecimentos que lhe facilitemelevar a sua consciência de classe e a participar ativamente na luta de classes. O proletariado tem de lutar primeiro para
letariado, mas, paralelamente, a instrução facilita a organiza-
assim, negada a tensão fundamental que percorre a escola, o esforço da burguesia para tornar a escola um objeto seu parece não deparar com qualquerresistência. E o segundo pressuposto, que mostra a que ponto se vão pouco a pouco afastando do marxismo autêntico, é uma absoluta falta de confiança nas massas de hoje — que aliás se une à negação total de evolução do proletariado através da história. A distância entre a cultura do operário moderno e a do seu patrão, conserva-se exatamente igual à que ia do escravo egípcio ao seu senhor. Ou ainda: “o proletário atual mostra-se tão inapto como o escravo de outrora para dominar a máquina incrivelmente complexa do Estado e da economia”. O tema do trabalho e do meio de trabalho considerado como valor educativo bastando-se a si mesmo constitui uma reação contra o intelectualismo de uma escola que se determina relativamente a seu público burguês, o qual em caso algum se prestará a tarefas manuais. Mas ele não abrange, de fato, a noção de escola politécnica: de um lado, estabelece uma interpretação obreira de Marx, onde a classe operária é
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tentar submeter a escola e finalmente, para conseguir contro-
lá-la. Mas nem antes nem depois se trata de suprimir a escola como instituição particular, pois é ela a depositária do sistemático, de um tipo de trabalho metódico e organizado —
insubstituível na sociedade moderna. O próprio Gilbert Masson, em Cahiers du Bolchevisme (agosto de 1931) se ergue contra os que só vêem na escola laica um instrumento de sujeição do proletariado, que a pintam como um aparelho pura e simplesmente manobrado à sua maneira pelas classes dominantes. Na realidade, é uma
faca de dois gumes. A burguesia é obrigada a instruir O pro-
GEORGES SNYDERS
isolada de todos os seus possíveis aliados, a começar pelos intelectuais. De outro, significa uma fuga ao aprofundamento teórico graças ao qual o trabalhador ficará metodicamente ligado aos problemas globais que se pôem à sociedade, sob pena de perder todo o valor político. Porsi próprio, o trabalho permanece um elemento ainda neutro, e é capaz de favorecer uma consciência artesanal
da obra-prima, pacientemente aperfeiçoada, pela qual uma pessoa se deixará absorver a ponto de esquecer os problemas do mundo. Mesmo organizado em bases comunitárias, O trabalho não conduzirá à tomada de consciência das tarefas revolucionárias sem entrar em síntese com um esforço global de lucidez e de ação, ponto de apoio indispensável de existência de um partido da classe operária. É pela escola, essa escola que nós queremos fundamentalmente transformare, contudo, manter, e em primeiro lugar, a escola de hoje nasua contradição dialética, que passa o nosso caminho. Atualmente, na França, é essencial não seconfundires-
cola czarista e escola da democracia burguesa, não confundir regime absolutista e capitalismo mais ou menosliberal — e, portanto, não pretenderaplicar à escola burguesa o quejá era extremamente contestável em relação à escola czarista. Precisamente por lutarmos a fim de que as matérias a serem transmitidas e as modalidades de apropriação sejam revolvidas, é indispensável que a regulamentação metódica do ensino e a sua atividade específica subsistam; continuará a existir
um local escolar mesmo após a revolução. Aquilo que em quarenta anos o movimento operário conquistou, as tentativas anarquizantes que pouco a pouco foi vencendo, se perderiam com a não-escolaridade.
ESCOLA, CLASSE E LUTA DE CLASSES
III — Para uns a escola morre em beleza, para outros apocalipticamente Insistimos sobre uma certa convergência nas palavras de ordem, bem como nas conclusões entre esses soviéticos e Nlich. Porém, o que é notório, se examinarmos o problema
mais de perto, é que os objetivos e as razões que conduzem uns e outros à mesma palavra de ordem “descolarização... abaixo a escola”, são diametralmente opostos. Os nossos pedagogos soviéticos supõem poder renunciar à escola por terem plena confiança no trabalho em si, na organização coletivista de um meio de trabalho que induza as crianças a atitudes revolucionárias; têm plena confiança na vida das crianças entre si. Trata-se, de certo modo, de uma
morte da escola em beleza. A agitação e o avanço do socialismo vão criar uma vida tão rica que será por si própria educativa; vai assumir as duas funções da escola: despertar a sede de conhecimento e satisfazê-la — e isso sem necessidade de nenhum intermediário. Estão persuadidos de que será pela morte da escola que se passará à edificação de uma sociedade industrializada, de um alto nível técnico, pois eles não dissociam, segundo o famoso dito de Lenin, a eletrifica-
ção e os sovietes. Ao contrário, para Illich, a morte da escola é o desen-
cantamento diante dos resultados da industrialização capitalista, mas este conceito é desconhecido por Illich; é a recusa
do progresso técnico, até científico. Illich exige a morte da escola para conseguir a morte da sociedade das grandes maquinarias e das grandes organizações; e vai a ponto de aniquilar o desejo dos conhecimentos elaborados, racionais. De resto, em ambosos casos, aquilo que se diminui é o papel de uma vanguarda, de um partido como vanguarda capaz de desempenhar um papel educador junto dos adultos — e por
isso mesmo de abrir caminho à educação dos jovens. . 264
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Quem tem razão? Incontestavelmente Illich. Tem razão
na coerência da sua argumentação — o que para nós significa que quem está profundamente mais errado é ele. Quanto mais se avança num raciocínio em si lógico, mas partindo de hipóteses errôneas, maior será o afastamento de uma tomada
de consciência real do mundo. Masé sem dúvida Illich quem atinge a coerência: o que se pode esperar do fim da escola, é a limitação da sabedoria e do progresso técnico-científico, o regresso a um primitivismo. As ilusões dos pedagogos soviéticos surgem agora em plena luz graças a um recuo no tempo, através do que foi realizado nos países socialistas e, finalmente, pela própria ação de Illich. Contrariamente ao que supunham, se a escola morrer, a cultura elaborada nunca será reconstituída pelos próprios jovens a partir da sua cultura espontânea, mesmo comunitária; eles não se afirmarão ao nível dos técnicos avan-
gados. Illich viu acertadamente que se querem a morte da escola, só renunciando às conquistas da sociedade moderna, só erguendo uma separação estanque entre cultura espontânea e cultura elaborada; e recusando a segundapara depositar todaa confiança no isolamento da primeira. Mas demonstramos que o preço a pagar será a esterilização de umae de outra, a irrealidade de uma e de outra, e o conservantismo.
O que aproveitaremosde Illich é a advertência de que a escola deve transformar-se no mais profundo desi se quiser evitar as acusações que ele lhe lançou, se quiser continuar como escola. O que temos a opor a Illich é que a escola pode transformar-se, é possível uma escola progressista, a partir de uma luta política geral por uma sociedade renovada, e conservando, simultaneamente, a fachada pedagógica, pois ela possui a sua especificidade.
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CAPÍTULO II GRAMSCI COMOANTÍDOTO DE ILLICH
Gramsci é o melhor antídoto para Illich, pois auxilia-
nos a basear a escola na continuidade entre cultura popular é cultura elaborada, no enriquecimento recíproco de uma pela outra, ao contrário de Illich, que só visa opô-las. A referência constante, o ponto de partida, e que nunca deixará de estar presente e ativo, é o senso comum,a filosofia direta da mul-
tidão e aquilo a que Gramsci chama folclore, alargando o sentido do termo para aí incluir igualmente as contribuições modernas: é um sistema de opiniões, de formas de ver e de agir — e pretende-se deste modo discernir-lhe a coerência — o conjunto de sentimentos e de idéias vividos pelas massas e que se formam à custa da sua experiência, da sua existência
cotidiana, e sempre em conexão com as suas lutas sociais. Em primeiro lugar, trata-se de ser sensível às suas virtudes de espontaneidade e de robustez; a recusa do artificial;
um poder de estimulação e de oposição, uma força que vise a transformação da realidade; o povo adquire aí a consciência da sua própria personalidade; consegue assim separar-se, levar a cabo uma cisão, quando a ideologia burguesa quer persuadi-lo de que os homens são como são e todos iguais. Daí a afirmação de que cada homem (e é preciso interpretar-
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GEORGES SNYDERS
ESCOLA, CLASSE E LUTA DE CLASSES
se isso como cada proletário) é filósofo, porque existe uma filosofia em prática.
Por conseguinte, entre os sentimentos espontâneos das massas, as concepções das massas e as dos intelectuais, existe uma diferença de grau, não de qualidade; entre uma e outra nenhuma ruptura, nenhuma oposição. O essencial é a passagem de umas a outras: a tarefa consiste em atingir um senso comum dotado da coerência e do nervo das filosofias individuais e que esteja ao mesmo tempo ligado à vida prática (das massas) e nela implicitamente contido. Com isso, a obra elaborada deixa de representar o privilégio de alguns, pois possui possibilidade e poder de difusão. A literatura, que Gramsci não separa da filosofia, nem naturalmente da política, testemunha este enriquecimento e este contato sempre presente: os romances de Dostoiesvski derivam culturalmente dos romances-folhetins tipo Eugêne
Porém, o folclore é formado por uma confusão de dados, um mosaico, com tributos diversos, até contraditórios,
em particular noções que remetem para períodos muito diferentes da história; ele arrasta concepções científicas que estão ultrapassadas, representações idealistas e religiosas misturadas com visões materialístico-revolucionárias. Tudo isso se constituiu e passou a ser aceito sem críticas: daí um
caráter fragmentário, incoerente, inconsegiente. O perigo é o folclore representar um apelo, mas pode também transformar-se em narcótico que adormece a sensação de desgraça; o romance-folhetim, para utilizar um exemplo típico, é como um sonho acordado. Exprime paralelamente os complexos de inferioridade social do povo e exige a punição dos responsáveis pelas provações sofridas — mas também desvia para aa fantasia as necessidades da luta. Em suma, o que caracteriza a afirmação do senso co-
Sue; de certa maneira, Hugo e Balzac podem incluir-se na
literatura de folhetim. Esta continuidade entre o senso comum e as grandes obras já conseguiu delinear-se, em alguns casos até mesmo realizar-se. Com efeito, ela não é um dado a ser apurado,
mum é o fato de ela conter uma multiplicidade de elementos conscientes, sem que qualquer deles predomine. Portanto, o elemento de convite à ação organizada não triunfou verdadeiramente do elemento fictício. E porisso está reservado um papel, um papel necessá-
mas um ato a ser concluído: compete-nos a tarefa de desenvolver ao mesmo tempo uma literatura e uma prática, que irão mergulharas suas raízes no húmus da cultura popular tal como ela é.
rio, essencial, âquele a que Gramsci chama o novo intelectu-
O novo intelectual é aquele que, de maneira consciente, explícita, está em adesão orgânica, em conexão de sentimen-
al. O novo intelectual não despreza nem descura os componentes do folclore, encontra aí a sua substância, o seu princípio, mas cabe-lhe discipliná-los, conferir-lhes um rigor lógico, situá-los nas suas diferentes etapas históricas, purificá-los de tudo que, do exterior, ameace corrompê-los: tratase de criar com eles um todo ordenado, tornar homogêneo o senso comum e aumentar-lhe assim, substancialmente, a eficácia. Renovar o senso comum, equivale a educá-lo levando-
o a avançar para uma concepção unitária.
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tos com a vida e a experiência das massas; apenas existe graças a esta comunicação e a toda riqueza concreta que o povo assim lhe transmite; ele sente as paixões do povo, não para
as oporà cultura elaborada, muito menos para aí encontrar o esquecimento da cultura elaborada, mas, ao contrário, para as explicar, as justificar, às relacionar dialeticamente com o
saber. Assim, será capaz de viver as exigências globais da comunidade ideológica, porque existe, apesar de tudo, uma
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ESCOLA, CLASSE E LUTA DE CLASSES
comunidade que abarca os pensamentos percebíveis e experimentados pelas massas, algumas das obras mais eruditas e, sobretudo, as de transição, que conduzem de uns a outros. Malgrado as aparências, malgrado o seu aparelho de tecnicidade, os peritos em ciências tampouco estão independentes da vida do povo, e menos ainda em oposição com ela. Para se servir de um exemplo simples, Gramsci demonstra que o progresso decisivo levado a cabo pela ciência ao conseguir expulsar do seu domínio a autoridade da Bíblia e de Aristóteles, só se tornou possível pelo progresso geral da sociedade moderna. o O intelectual do tipo novo é a expressão da sua época, Junta-se, quer juntar-se e isso por uma ambição propriamente
industrial e técnica são para eles fatores cada vez mais consideráveis. Se a cultura real, representa assim a unidade do espontâneo e do elaborado, implica a presença e a ação do partido da classe operária, pois a integração de um no outro será efetuada graças à atividade educadora sistemática por parte de um grupo dirigente já consciente; e será na medida em que esse grupo participe na experiência de vida e nas lutas do povo que escapará ao risco de se apresentar como um conjunto de especialistas, de puros e simples especialistas.
política, aos homens e aos acontecimentos que marcam a sua
Nestes termos, passa a ser viável uma escola progressista, O que significa, ao mesmo tempo, uma escola em que as crianças do proletariado deixam de constituir um corpo estranho e votado ao fracasso — e é bem este o caso, em que aquilo que é ensinado nasce da experiência do proletariado e permanece em continuidade com ela; e uma escola onde o aluno é feliz, de uma felicidade intensa que não exclui mo-
época, são as exigências contemporâneas do povo que ele traduz, e prefigura o que está prestes a nascer, com um vigor que é vedado aos outros, e isso porque as condições de vida, no seu conjunto, lhes cortaram as asas. O que converge com a afirmação de Gorki: “O grande homem é um homem apresentado como uma prova de talentos escondidos, potenciais, da massa”. Isto significa que este intelectual é um homem político, que contribui para a luta de classes do proletariado e que por isso exige que o proletariado cesse de ser a classe desprezada, desvalorizada, da qual a elite desvia os olhos ou que contempla ostentando uma piedade melíflua. Por isso ele assume não apenas um papel de militante, mas também o de persuasor permanente; não que se confunda necessariamente com um profissional do interesse público, mas a partir da tarefa que lhe é própria e sem nuncaa renegar, ele participa na vida cotidiana do proletariado e contribui para alargar as ambições e as perspectivas dessa vida cotidiana até o ponto de ela ganhar dimensão política. Quer dizer que o intelectual não é
tudo, são agora visíveis as condições políticas e pedagógicas em que tais medidas poderão ser tomadas.
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mentos difíceis, austeros — e é por certo o caso presente, pois
ele sente a sua experiência pessoal completada, enriquecida com o que aprende. E esta escola é necessária: sem ela as crianças, começando pelas do proletariado, continuam a ser alvo de forças contraditórias e morreriam no campo de batalha. Os alunos, no seu todo, partilham a cultura das massas;
o professor tem por tarefa representar a cultura elaborada e que, até esta data, só pode ser elaborada pelas classes dirigentes. Mas compreende-se que, de nenhum modo, o seu
papel consistia em se opor à vida da criança, nem tampouco em confirmá-la pura e simplesmente, mas, de acordo com as palavras essenciais de Gramsci, “em acelerar e disciplinar” os métodos de vida e de pensamento da criança — e, sobre-
apenas o homem de letras, o artista, o filósofo: a ativida de
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ESCOLA, CLASSE E LUTA DE CLASSES
A escola é o local onde a criança irá passar da representação aproximativa e mágica do mundo, que se limitou a absorver no seu meio impregnando de folclore, para uma certa objetividade, para a compreensão das leis da natureza e da sociedade. Resumindo: para as premissas do
vê progressivamente evoluir a sua individualidade, sente que se enriquece, que se cria, em decorrência dessa apropriação da riqueza social.
espírito científico, do senso do verificável.
Para isso contribuirá fortemente o caráter politécnico da escola: as tentativas inventivas e exploratórias da criança transformam-se, pouco a pouco, num trabalho organizado e ligado ao conhecimento tecnológico. O trabalho em comum de uma classe evolui progressivamente para uma experiência social coletiva. E assim se destacam os primeiros elementos de uma percepção do mundo livre de toda magia. Pelo mesmo movimento, a escola valoriza a força de trabalho e arran-
ca o aluno do caos das paixões contraditórias. Graças à escola, o aluno começa a percorrer o caminho ao fim do qual alguns conseguem dominar a oposição entre teoria e prática. O sábio ensaísta é ao mesmo tempo um teórico e um operário: o seu pensamento é controlado sem cessar pela prática e dessa prática brotam pensamentos novos; logo que lhes transmita uma forma teórica definida, serão submetidos, de novo, à experiência da prática. À sua imagem, mesmo consideravelmente atenuada, o aluno estabele-
cerá um laço entre as tentativas e os erros que por vezes lhe permitem alcançar os seus fins e em outros meios (por que não?) o desiludem — e o rigor de uma experimentação garantida e controlada pelo raciocínio. Enfim, a escola é a síntese que vai do individual ao co-
letivo. Um conhecimento científico, objetivo, é aquele que tem a aprovação do grupo dos peritos, um grupo unificado, relativamente unificado de peritos; o aluno que fixa algumas frases, que distingue entre as suas opiniões as que se relacionam com o patrimônio coletivo, e isso à custa de certo número de retificações, de clarificações ou até de reconstituições, 272
Gramsci liberta-nos dos pesadelos acumulados por Hlich à nossa volta, porque soluciona os antagonismos em que Illich procurava envolver-se: não há oposição entre o perito e o senso comum, entre a cultura do intelectual e a cultura popular, entre o que os jovens experimentam porsi e aquilo que o docente se propõe a transmitir-lhes, como tampouco há antagonismos entre os produtos fabricados pela indústria e as necessidades dos consumidores. Ou, melhor dizendo, esses antagonismos não são definitivos, irremediá-
veis — e não estamos reduzidos a acabar com tudo que conquistamos para regressarmos docilmente à Boa Mãe Natureza. Por certo eles marcam, ficam estampados na nossa sociedade capitalista, mas pressentimos a forma de os ultrapassar, qual a luta político-cultural que os ultrapassa. E já despontam na nossa sociedade realizações culturais e educativas que deixam antever o que pode vir a ser a fecundação recíproca da cultura popular pela cultura erudita — ao passo que Illich pretende convencer-nos que uma não pode subsistir sem arruinar a outra. É talvez a música, desde a IX
Sinfonia de Beethoven até à obra de Chostakovitch, que representa o exemplo mais flagrante. É possível uma escola progressista, e não estamos de forma alguma perante a opção entre uma escolaridade opressiva e a não-diretividade das redes de conhecimento como entre a espada e a parede. Mas já não podendo subsistir o mundo e a escola na sua forma capitalista, talvez isto signifique para Illich que só lhes resta ou tornar-se marxistas ou proclamar a falência desse capital cultural de que nos honramos.
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CAPÍTULO HI BOURDIEU-PASSERON OU A LUTA DE CLASSES IMPOSSIVEL
I — A seriedade prejudica, a desenvoltura compensa Como nos é apresentado o estudante de elite, o que tri-
unfa, o que encarna o êxito das classes dominantes? O que o caracteriza é o diletantismo, a elegância do abandono, a graça e a naturalidade aparentes, a desenvoltura, o ar distante e
requintado. Visto que lhe bastou conformar-se com o estilo de vida e de pensamento de que o seu meio o impregnou, visto que só deve ter de se deixar levar pela corrente cultural dos seus, ele sabe sem se ter esforçado para adquirir essa sabedoria. Desde a mais tenra idade encontrou à sua volta com o que completar, compensar, matizar, até contradizer, as
contribuições dos professores; por conseguinte, para ele é possível assumir em relação aos professores uma certa distância, onde irá insinuar a sua originalidade peculiar. Evidentemente, a sua segurança tem por base prioritária a convicção de que o seu futuro, tanto material como universitário, não comporta ameaças graves. É brilhante, a sua desenvoltura, ou antes, a sua desenvoltura reservada, acentua-lhe tanto as atitudes como as palavras; evita discutir aca-
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loradamente, não sublima com ênfase ou superficialidade,
do que perturba a todos porque se percebe que ele não está à vontade. Nada consegue dissimular o acanhamento: ao fazer uma exposição papagueia o texto que prepara porque se deixa levar pela tentação da elogiiência.
mas sem mudar o tom de voz, impressionará com arte: dará discretamente a entender que o que sente e o que pensa, vão bastante além do que deixa entrever. Em suma, a sua afetação natural possui todos os encantos da naturalidade e todos os recursos e eficácia do que é cuidadosamente preparado; é mestre na arte de escondera arte. Além dele, o estudante saído das classes médias, das
pequenas classes médias e que ocupa socialmente a parte inferior da escala universitária, já que a classe operária não desempenha um papel real no nosso ensino superior: esse estudante reduz-se a um ou a outro miraculado. Ele encara os estudos dentro do culto do trabalho executado rigorosa e dificilmente, pois nisso residem as virtudes profissionais que valorizam o seu meio. Convicto de que há regras a serem respeitadas, regras de trabalho e regras de acesso à cultura, ele as procura e as vigia não só com rigor, mas rigorosamente. Esta seriedade que ele confere aos estudos, comoaliás, a toda a sua vida, não cessa de se traduzir exteriormente pelo
caráter laborioso e tenso das suas produções. Uma obstinação crispada domina tudo quanto ele faz. A ansiedade que não o larga transparece numa falta de jeito, até num constrangimento constante. Procura continuamente a atitude correta, a que é devida, e nada lhe é mais contrário do que espiála sem descanso; nada há de mais incômodo para o espectador. Por exemplo, ele sente-se tão ávido pelas regras gramaticais que cai na hipercorreção errada e na proliferação de indícios de vigilância gramatical. No trabalho universitário, tem de tal forma necessidade
de adquirir segurança que está constantemente solicitando uma aprovação; espera tudo do professor, bebe-lhe as palavras. Este poderia sentir-se lisonjeado, mas depressa se exaspera. Sempre no receio de não fazer bastante, excede-se; há algo de ostensivo naquilo que apresenta, um caráter empola276
Estas análises célebres parecem-nos constituir, contudo, uma das facetas mais ilusórias da obra de BourdieuPasseron. Sem dúvida que contêm uma parte de verdade. Monique de Saint-Martin analisou o que representam esses estudos feitos na incerteza e de incerteza: semelhantes estudantes mostram-se propensos a pouco valorizar, a considerar fracas
ou muito fracas as suas oportunidades de êxito, mesmo se os resultados conseguidos foram, na realidade, satisfatórios; do
seu futuro não têm mais do que uma imagem muito vaga, nomeadamente porque, para eles, a continuação do aperfeiçoamento dos estudos oferece sempre dificuldades: ano a ano, a fim de saber o que irão fazer no ano seguinte, aguardam o resultado do exame; em caso de sucesso, prosseguem; de contrário, desistem frequentemente e não ficam prestes a
recomeçar. Os outros, os favorecidos, esses têm de antemão um projeto global que pode conduzi-los ao mais alto grau. Entendemos, pois, que as interpretações de BourdieuPasseron estão muito longe de esgotar a realidade, mas os
acusamos de só apontaremdela alguns aspectos pitorescos e fáceis. Para começar, muito poderia ser dito do diletantismo dos estudantes favorecidos; sem dúvida que isso se verifica em relação a determinado tipo de estudantes, por exemplo, o de sociologia: prepara uma licenciatura, dispõe de todo o tempo, acabará por consegui-la, e no fundo não é com ela
que conta para assegurar o futuro, mas muito mais com as relações e as situações já estabelecidas, dos pais; e é exato que tudo que aprendeu de preciso e de custoso em sociologia terá na sua vida um papel muito menor do que uma certa 277
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forma de falar e de estar que ele terá conseguido assim, refinar, confirmar.
dinheiro ou de ser posto na rua, mas representa-se à imagem das esperanças dos que o rodeiam,e isso nada vale.
Não se trata de uma inocente e um tanto ridícula deformação profissional, um pecadilho de intelectuais, que aliás, não os impediria de desempenhar as suas tarefas sérias: eles não sabem realmente propor outros objetivos. Consideremos a linguagem. Bourdieu-Passeron souberam, sem dúvida, interpretar a relação entre a língua e o pensamento: a língua fornece um sistema de categorias mais ou menos complexas, de forma que a habilidade para decifrar e manipular as estruturas complexas depende em boa parte da
As descrições de Bourdieu-Passeron reduzem, acima
sua complexidade. E, contudo, a língua dos favorecidos, a
de tudo, a superioridade escolar e universitária das classes mo. O triunfo exige condutas irreais: desenvoltura e des-
língua rica, sutil e cultivada irá ser assimilada a uma das boas maneiras mundanas, nada mais nada menos do que determinada maneira de vestir. Afirmam-nosque no dia do exame
prendimento; mais do que isso, reduz-se a elas. Triunfam
são postos no mesmo plano os extremamente pobres quanto
precisamente melhor os que vivem os estudos como uma experiência lúdica, um jogo que só admite como sanção a que for admitida pela respectiva regra; isto é, os que não ficam surpreendidos, magoados ou desconcertados pelo caráter fictício atribuído pelos nossos autores às tarefas escolares. À habilidade de um estudante do século XX para se inserir, no espaço de uma dissertação,nassutilezas da paixão
a estilo ou maneiras, à entoação ou à elocução, à postura ouà mímica, ou até quanto a vestuário ou cosmética. Chega-se a declarar que nem a cultura elaborada nem a decisão dos professores estabelecem uma diferença verdadeiramente nítida
Porém, o filho do engenheiro, que sabe a que ponto irá desiludir os seus familiares se não ingressar, depois de n concursos, na Escola Central ou na X, mas numa escola insignificante, onde vai buscar a sua desenvoltura? Não corre, certamente, o risco de interromper os estudos por falta de
cultas a atitudes mundanas, artificiais, convenção, esnobis-
entre gestos, vestuário, cosmética, mímica e o mangjo, a compreensão da língua, e, finalmente, do pensamento de um
Spinoza.
raciniana, será tomada como exemplo característico.
lados: a redução da cultura a um mero piscar de olhos entre iniciados e a redução da cultura ao proveito que dela setira. Como cúmplices que trocam um sutil sorriso quando se encontram e uma citação que tenha o bom gosto de não figurar nas páginas cor de rosa do Larousse: tudo quanto é incluído sob a designação de cultura está em jogo no pequeno nada que separa a alusão erudita do comentário escolar. O que garante o domínio prático da língua e da cultura? É o que permite alusões e cumplicidades, que serão rotuladas de cultas e monopolizarão de fato essa designação de cultas.
Desta forma foram os nossos autores da cultura à forma de a abordar, à relação cultural. Dizem-nos queisto representa papel essencial no sucesso escolar e universitário. Graças ao que, a cultura se reduz a essa relação, ouseja, finalmente ela se desfaz, se dilui nos tiques e manias dos profissionais, nas alegrias e tristezas que não passam de convenções mundanas: a hierarquia escolar das aptidões organiza-se harmoniosamente com os contrastes entre o indivíduo brilhante e o grave, o elegante e o trabalhador, o distinto e o vulgar. No píncaro está a naturalidade, a desenvoltura irônica. Os estudantes, nos quais se nota certa ascendência popular, são desacreditados porque as pessoas autenticamente
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O que, afinal de contas, só é sustentado por dois postu-
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distintas, e, portanto, os professores, não apreciam nem a ostentação do novo rico, nem o que traz a marca plebéia do esforço. Têm algo de vulgaridade interesseira e a delicadeza dos professores sente-se ofuscada. Mas desde que se conjuguem facilidade e distinção, eles deliram — e o êxito do aluno passa a depender da vontade do professor. Em particular o sentimento da presença de um candidato (no sentido em que se emprega o termo ao falar de um fator) ou da sua insignificância, ocupa um lugar importantíssimo na nota que lhe vão atribuir e quase não há outra base além deste sistema das marcas sociais. A cultura das classes dominantes parece tocada pela irrealidade; a ligação com a linguagem e com a cultura reduzse a uma soma infinita de diferenças infinitesimais nas for-
por instâncias que conseguiram armar-se de semelhante po-
mas de atuar ou de dizer; a das classes dominadas não é me-
nos irreal. Reivindicar a promoção em nome da cultura ensinada pela escola das culturas paralelas, que incidem sobre as classes menos favorecidas, não passa de uma ilusão populista. Do mesmo modo, os nossos autores se negam à tentação populista de canonizar pura e simplesmente a cultura popular. Certamente que lhes cabe aqui o mérito de uma reação corajosa contra tantas ilusões baratas que florescem ao redor do espontaneísmo. Porém, não se contentam em
recusar à cultura popular o sagrado e as suas beatitudes: nem sequer a consideram como portadora de elementos válidos e eficientes, nem ao menos como meras promessas.
der de persuasão. Mas estamos submersos no arbitrário cultural, ou antes,
no irreal cultural, porque nunca se descobrirá, nunca se procurará, parece impossível e ilusório pretender encontrar um fundamento válido em que tais instâncias teriam baseado seu Juízo: o sentimento de que determinadas obras são admiráveis confunde-se com o número de pessoas que foram convencidas a admirá-las. Portanto, também a cultura artística é uma das facetas das boas maneiras: nas suas deslocações turísticas, os membros das classes cultas sentem-se impelidos a obrigações culturais que lhes são impostas como inerentes à sua personalidade social. Por isso, concluímos que não há diferença entre visitar uma igreja romana e usar um colar de pérolas para jantar na cidade: ambas as atitudes se impõem como obrigatoriamente constitutivas da personalidade social e não têm outra justificação. Do que se resulta ter esta cultura por única razão de ser o desejo de se integrar num pequeno grupo, a chamadafinaflor da cultura, de o manifestar aos outros e de a si próprio se
persuadir disso: o amor pela arte é a marca da eleição, que separa como barreira invisível e intransponível, os tocados pela graça e os que não a receberam.
turalmente dignas de serem admiradas, a única razão é de terem sido objeto de uma fregiiência assídua e numerosa — e isso porque foram apontadas como merecendo ser visitadas
Estamos, sem dúvida, em presença de uma obra não de estetas, mas de sociólogos — e é uma obra que denuncia aquilo que descreve: ideologia dos dotes, confronto entre uma natureza bárbara e uma natureza culta como meio de legitimar a reprodução social. Mas, Bourdieu-Passeron parecem-nos prisioneiros daquilo que criticam: nenhum outro conceito cultural, nenhuma outra função cultural será sequer apontada, nenhuma outra possibilidade além da cultura será capaz de ter conteúdo próprio.
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De uma forma ou de outra, não há mais solidez do lado
cultural dos pobres do que no dos privilegiados.
A cultura artística não dá mostras de mais autenticidade: se certas obras parecem intrinsecamente ou, melhor, na-
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Nota-se a ironia com que os autores evocam o gosto cultivado: “Uma atitude devotada, cerimoniosa, ritualizada,
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única função excluir o vulgar, criar uma zona interdita ao vulgar, se a regra das regras é não fazer como os outros, os
os acompanhamentos ritualizados do saborear erudito”: em suma, algo que nos parece hesitar entre a missa domingueira das onze horas e a paródia à religião. Não vemos definição mais perfeita do esnobismo do que a dada aqui como apresentação da própria cultura: o dever de admirar e de apreciar certas obras que vêm surgindo pouco a pouco como queligado a determinado estatuto escolar e social. Bourdieu-Passeron imaginam um operário que decidisse decorar o seu quarto guiando-se mais pela reprodução de quadros do que por cores: romperia com as normas estéticas e naturais do seu meio, seria chamado à ordem pelo seu grupo, pronto a interpretar esse esforço para se cultivar como um esforço para se aburguesar. Mas, mal os seus camaradas lhe dissessem: “Você se aburguesa”, a mim próprio pergunto com inquietação se não resumiriam numa só palavraas perspectivas culturais de Bourdieu-Passeron — que não são apresentadas senão como um meio hábil do indivíduo se desburguesar? Esse papel de barreira social, parece que qualquer código cultural o pode interpretar de maneira equivalente, igualmente fundada ou infundada, seja a música de Xenakis ou outro jogo de regras suficientemente complicadas. Do mesmo modo nos explicarão que se passa gradualmente de artes plenamente consagradas como o teatro e a pintura, à cosmética ou à cozinha, que só se distinguem das primeiras por estarem muito mais entregues ao arbítrio individual. Os autores pressentiram estas críticas e anteciparam-se a neutralizá-las; o sociólogo é sempre suspeito de contestar a autenticidade e a sinceridade do prazer estético pela única razão de descrever as condições da existência. Na verdade, não é aí que está em jogo a questão decisiva; mas sim no que diz respeito à significação da cultura: se a cultura tem por
Alguns poderão objetar que, como sociólogos, eles se contentam em descrever o que se passa. Porém, esta neutralidade é só aparente, pois, em primeiro lugar, ela só considera as práticas culturais sob determinado ângulo, precisamente o mais favorável ao ponto de vista sociológico — e não nos falarão, por exemplo, nos esforços, evidentemente vagos e pouco institucionalizados da nossa sociedade, pelos quais os militantes operários não se cultivam para vir a ser militantes mais completos. Umavez mais o que representava um risco, que é preciso reconhecer como risco real e grave e que importa ultra-
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incultos, e, sobretudo, não ser tomado por um inculto, então,
é evidentemente absurdo fazer participar dela o povo, a idéia de democratizar a cultura é, nesse caso, precisamente contra-
ditória. A própria definição de cultura é a de servir e delimitar grupos sociais, conservar os privilegiados na posse de seus privilégios culturais e sociais. E a ambição de democratizar a cultura também é absurda num segundo sentido: o que encontraria o miraculado popular que apesar de tudo conseguisse penetrar no círculo cultivado, senão vaidade, dupla-
mente significativa do orgulho e do nada? A cultura como penetração pessoal e, com mais forte razão como arma no combate social, a idéia de um valor re-
volucionário da cultura, de um reforço do povo pela cultura; o esforço para distinguir entre uma utilização conservadora da cultura, ou antes, uma perversão conservadora e as condi-
ções em que ela se pode transformar em patrimônio do próprio povo: não basta dizermos que Bourdieu-Passeron não encararam estas questões, receamos até que eles tornem impossível apresentá-las aqui corretamente.
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passar, é apresentado como uma definição inalterável e inultrapassável. Podemos lutar para que a cultura venha a ser algo mais do queisto, visto que hoje ela contém elementos, apelos diferentes — apelos a que daremos toda plenitude unindo nossas forças às forças daqueles que não pertencendo à categoria dos eleitos, aspiram, todavia, à cultura, pois dela carecem para sacudir o jugo da exploração.
JE — O ensino constitui o segundo grau da irrealidade
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O ensino, tal como aqui é evocado, parece-nos mais re-
lacionado com a revista do final do ano letivo, interpretada alegremente de modo caricatural. O curso magistral, declamado perante trezentos estudantes, evidentemente reduzidos
ao silêncio, é o que há de mais criticável num certo funcionamento, num certo modelo de faculdade; e também o mais criticado: em maio de 1968 foi condenado quase por unanimidade por professores e alunos. Sobreviveu, mas a concorrência vitoriosa dos trabalhos orientados em grupos restritos e ativos força-o a ir perdendo terreno sem cessar. Ainda aqui uma crítica: mesmo que vise elementos absolutamente justi-
O ensino, e trata-se do ensino superior, é descrito como
ficados, despreza as forças renovadoras e mina toda a espe-
mal entendido é bastante fraco para o caso, deve-se falar de
rança de lhe aumentar a amplitude. Com Bourdieu-Passeron, a cultura não passa de uma comédia que a classe dominante interpreta para si mesma com o único fim de afastar todos que não pertencem à confraria; por isso o ensino só pode ser uma comédia dessa co-
uma dupla ilusão: ilusão dos professores de saberem ensinar e a ilusão dos estudantes de conseguirem aprender. O termo absurdo. Enquanto o mestre sustenta, em idioma universitário, um monólogo teatral, os estudantes já se dão porsatisfeitos se conseguirem vislumbrar no nevoeiro semântico algumas frases soltas, de certo modo afins, mas sempre de
sentido duvidoso. As duas partes estão ligadas por uma inconsciência feliz e também por um pacto tácito de cumplicidade: “Não exijam demasiado de mim, que por meu lado não lhes perguntarei mais nada”. Quando o auditório não consegue perceber, não cai na asneira de pedir explicações e muito menos de protestar; o professor não interrompepara verificar se os seus auditores o entenderam porque se exporia a aparecer aos olhos dos alunos como um professor primário perdido no ensino superior. Bourdieu-Passeron afirmarão que este tipo de curso magistral constitui o principal meio de formação dos estudantes e que a leitura dos livros, em relação à qual não se justificaria o mesmo gênero de críticas, ocupa um lugar reduzidíssimo.
média, comédia de segunda ordem, transmissão teatralmente incoerente do que já não continha a mínima realidade; exceto no que diz respeito à exclusão social dos ignorantes, isto é, das classes dominadas. O curso da faculdade é irreal em si,
com relação às matérias transmitidas; só tem um significado social: o mestre do ensino superior felicita-se por não ser um monitor ou um professor primário, a sua finalidade consiste em garantir o seu estatuto superior e seus alunos irão recolher as migalhas do seu prestígio. A cultura como rito, sem qualquer contato com o mundo, corresponde, muito naturalmente, a um ensino em que
uma aparência espectral de compreensão erra no espaço dos discursos vãos. Tais argumentos não nos convencem. Em primeiro lugar, não acreditamos que o interesse por Racine, o acordo
com o universo raciniano, a presença do trágico raciniano 284
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sejam necessariamente acolhidos como uma autêntica dádiva por essas crianças cujos pais enriqueceram no comércio ou dirigem uma fábrica. Certamente que nas exposições de pintura é insignificante a presença de profissionais especializados acompanhados de seusfilhos; falta igualmente averiguar qual a proporção de burgueses que as frequentam com suas famílias. Mas, acima de tudo, as forças capazes de se opor a esta perversão do ensino, estão ausentes: bem pior, são negadas, declaradas impossíveis. Afirmam-nos que tudo se passa em redor do mundano, do distinto, do desembaraço: ora, por
definição, distinção é privilégio de poucos — e o desembaraço está reservado só às famílias abastadas. É como e por que entrariam as classes exploradas em luta para se apoderar dessa cultura, que nadasignifica — ou para a transformar? Ela é, se é que nos é permitido dizê-lo, tão insignificante, que o projeto de lhe extrair uma força ativa, uma força revolucionária, parece inconcebível. Com que capacidade progressista se pode contar para fazer voar em estilhaços essa paródia de ensino, se a apresentam comoinerente à universidade e nos afirmam que ela é portodos admitida? Como poderia haver um esforço que desembaraçasse a linguagem escolar dos seus floreados ocos, visto ter sido afirmado que os professores esperam unicamente da linguagem que ela se afaste do comum; assim eles próprios se poderão convencer que são fora de série. A cultura surgiu como palavra de passe para fregiientar a boa sociedade; algo, portanto, sem significação e sem nada de progressista. Umaescola, por todos os modos, injustificável, onde Já nem intervém uma verdade elementar, o domínio do real,
nem qualquer força capaz de aumentar-lhe a autenticidade. Bourdieu-Passeron continuam a falar de classes, mas cada classe parece encerrada na sua essência, imutavelmente, definitivamente: o ensino superior é o feudo da classe domi286
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nante, do idioma universitário, do monólogo; se uma ou ou-
tra criança vinda da classe dominada consegue chegar à universidade, ou se adapta aos privilegiados ou em breve é marginalizada. Nunca há forças de oposição e, portanto, nenhuma possibilidade de evolução, de progresso; nunca os explorados estão prestes a conquistar algo, as coisas são como são, estaticamente, definitivamente sub specie aeternita-
tis. É sempre uma questão de classes; a luta de classes está ausente, e é, por assim dizer, impossível. Atualmente, nas escolas, os alunos menos favorecidos
são numerosos, ativos. Os seus pais € as associações de pais têm um papel, tentam mais ou menos abertamente ligar-se ao movimento operário. Somos levados a ir ao encontro deles,
podemos fazê-lo para que o ensino reaja contra a contaminação burguesa. E essa luta fará um só corpo com a luta para libertar de mistificações o núcleo racional, a aprendizagem de atitudes racionais em tudo o que lhes ensinarmos. De resto, na universidade já existem estudantes que se vêem forçados a andar com os pés assentados na terra; não só não podem arrastar os estudos anos e anos, como, acima de tudo, não se darão porsatisfeitos com aproximações mais ou menos incoerentes, que não respondem às questões que eles pjem — que o mundo, o seu mundo, os obriga a pôr. Procuram na cultura uma ajuda para as suas lutas, descobrem
que a cultura pode constituir essa ajuda e esforçam-se para a transformar em realidade. Então, exigem outras formas de ensino diferentes do
curso magistral, tendem a imprimir à universidade um outro estilo de vida. E encontram docentes dispostos a partilhar a sua preocupação, tornam maleável a conduta dos docentes. Estes docentes já são uma realidade, já meteram mãos à obra; trata-se, simultaneamente, de atuar com eles e de os
auxiliar a multiplicar as suas forças para que consigam opor287
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se mais eficazmente aos perigos que Bourdieu-Passeron tiveram o mérito de denunciar — embora pretendam que os englobemos no conjunto da cultura e do ensino. Para Bourdieu-Passeron, o ensino é uma comédia, mas
uma tragicomédia, pois para eles a regra das regras assenta na eliminação dos não-privilegiados. O ponto de convergência dos temas precedentes é a afirmação de que na desigualdade dos resultados escolares referentes às posições sociais, a escola fica com a principal e mais esmagadora responsabilidade. É, com toda a evidência, o conceito da escola reprodu-
tora que vemos aqui, mas extraído com mais precisão a partir da irrealidade da cultura e, portanto, do ensino; se a cultura
difundida pela escola visasse valores existentes, coerentes, seríamos obrigados a, pelo menos, formular esta pergunta: em que medida os obstáculos, as limitações que a vida escolar impõe aos explorados serão a causa dos seus desastres escolares? Quando se vive com seis pessoas num único quarto e sem água corrente, será possível estudar devidamente as lições e chegar às aulas bem disposto? Não será basicamente o sistema social, no seu conjunto, que dificulta assim a essas
crianças o desabrochardas suas possibilidades?
Mas, para os nossos autores, é a escola que escolhe os critérios de cultura da classe dominante, critérios infundados,
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dos projetores; e, por isso mesmo, a escola, isolada do mun-
do operário, do movimento operário, é apresentada como um monopólio da classe dominante, local em que nenhuma contestação chegará a representar um papel efetivo. Com os professores não se conta, deles nada se espera. Entre o laço
cultural reconhecido pela escola e o laço cultural cujo monopólio pertence às classes dominantes, asseguram-nos a existência de uma harmonia pré-estabelecida sem a mínima nuvem ou sombra de uma discordância. Se os docentes reassumem espontaneamente os critérios da fina-flor da cultura,
isso não significa quetais critérios correspondam a qualquer realidade cultural, mas apenas que esses professores e pequeno-burgueses só acalentam um sonho: compartilharessa famosa distinção, serem encarados em pé de igualdade pela classe dirigente. Quando muito, pode argumentar-se em sua defesa com a sua inconsciência ou simplesmente com a sua ingenuidade: estes critérios provêm de vias secretas, proibindo a censura que sejam expressamente tomados em conta. O que não impede queseja, na verdade, com base neles, que se aprecie o valor dos candidatos. Nãose trata de protestar virtuosamente. Uma vez mais, Bourdieu-Passeron souberam denunciar tentações de que todos nós pudemos medir a gravidade. Porém, de novo, eles a apresentam como algo de inevitável e que, aliás, nenhum
grupo de interessados tentaria de modo algum evitar. Nessas
arbitrários — se é que são estes os mais indicados para repelir o povo. À escola é um mecanismo cuidadosamente montado para organizar o fracasso dos socialmente desfavorecidos e assegurar, por conseguinte, o conservantismo. Afirmar queela é cúmplice, e cúmplice voluntária, não chega, ela surge como o elemento chave da reprodução. Digamos ainda uma vez: a sociedadecapitalista está fora de questão, absolvida sem restrições; em qualquer caso, o seu papel fica em plano de fundo, não é ela que suporta a luz
nosso esforço para outra coisa; e que não é um sonho, uma boa vontade simplesmente moral visto sermos apoiados, ou antes, pressionados, quer pelos nossos alunos, quer pela configuração objetiva das situações — desde o ponto de vista cultural à preocupação com a escolha de carreiras. É interessante observar a conexão entre Goblot e Bourdieu-Passeron: Goblot via no latim a barreira que separa a
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descrições, reconhecemos aqueles momentos de desânimo, em que, mais ou menos, todos sucumbimos — mas nunca o
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burguesia do povo; é a desigualdade de cultura que distingue as classes sociais — e isto de forma irrefutável: os que traduziram o De Viris, os que não se misturam. O latim é aquela espécie de cultura que distingue a fina-flor, o que, na realidade, quer apenas dizer que o seu único significado é permitir que essa fina-flor se destaque. Seria possível dizer que Bourdieu-Passeron estendem a toda a cultura o que Goblot afirmava a propósito do latim, mas esta generalização parece-nos abusiva. Talvez Cícero só tenha valor para os jovens de hoje como distinção escolar — o que continua objeto de discussão. Mas de todos os conhe-
como a confundi-lo com o reflexo de um estado do sistema econômico. A partir daí, nem a escola seria única culpada de todas as desigualdades que gera, nem ao sistema social caberia a única responsabilidade. Será necessário discernir simultaneamente a autonomia relativa e a dependência do sistema de ensino em relação à estrutura das relações de classes.
cimentos, de todas essas obras ao nosso alcance, seremos nós
incapazes de extrair elementos mais expressivos, mais enérgicos, mais próximos da vida dos nossos alunos?
II — Apesar de tudo, alguns momentos dialéticos À nossa parcialidade nos teria levado a deixar em branco algumas passagens importantes dos nossos autores por não coincidirem com as nossas análises? Defato, aquilo que designávamos no nosso artigo por segunda resposta, e, por exemplo, esta frase dos Héritiers: “Não basta verificar que a cultura escolar é uma cultura de classe, deve-se fazer tudo
para que ela continue comotal, agir em conformidade”, onde procurávamos em Bourdieu-Passeron uma visão dialética da escola, aparece depois, singularmente atenuada, na publicação posterior de La Reproduction. Algunsfatores da segunda resposta parecem-nos agora com tantas tentativas que abortam
Mas eles não conseguirão, efetivamente, manter esta dupla exigência, que nos aparece, todavia, como a verdadeira exigência; eles não são, nem podem ser, fiéis a este desígnio: a autonomia relativa do sistema escolar vai surgir, não como um dos componentes de um movimento dialético, mas unica-
mente como aquilo que permite à escola dissimular as funções sociais que desempenha; ela reduz-se ao desconhecimento
da estrutura das relações sociais que servem de base ao pedagógico. Por onde eles passaram não deixaram à escola possibilidades de subsistir: terá de concluir-se que ela apenas dá cobertura à dissimulação indispensável à grande conspiração.
Paradoxalmente, é talvez em relação à cultura livre que Bourdieu-Passeron atribuem à escola o papel mais positivo. Estabelecer que a cultura extra-escolar dá lugar às desigualdades mais gritantes, não equivalerá a reconhecer, apesar de tudo, uma certa eficiência, uma espécie de função reguladora da escola? Explicam eles, e quanto a nós é esse um dos pontos mais positivos das suas análises, que é a cultura escolar que proporciona o gosto pelas práticas culturais; por exemplo, a taxa de frequência dos museus aumenta de 1 para 10 entre o nível do diploma primário e o do BEPC. Mesmo apesarde a
sem conseguir influir no equilíbrio do conjunto do sistema. Em dados momentos, La Reproduction esforça-se por conferir eficácia própria à escola — quando nós os acusávamos de transformar a escola num mero instrumento nas mãos das classes dirigentes. Eles vão negar-se tanto a conceder ao sistema de ensino a independência absoluta a que ele aspira
com um certo número de categorias, o jeito e o hábito de assinalar os traços estilísticos distintivos que fazem a origi-
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escola, infelizmente, reservar pouquíssimo espaço ao ensino artístico, ensina pelo menos, a propósito da literatura, a lidar
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nalidade de uma obra ao mesmo tempo quea situam entre as obras aparentadas. Terão a este propósito a coragem de defender a escola contra as censuras que vulgarmente lhe dirigem: muitos alunos, mal deixam a escola, abandonam o comportamento edu-
cativo em relação ao qual a escola se esforçara precisamente em formá-los; dizem alguns que eles apenas rejeitam o lado escolar, que já estariam fartos de exercícios, de explicações e por isso abandonam livros, teatros e museus. A isto replicam
ESCOLA, CLASSE E LUTA DE CLASSES
O gosto cultivado, e, portanto, o gosto acadêmico, são
considerados desligados das aspirações da imensa maioria dos alunos ou, mais exatamente, fazem-lhe oposição, pois apenas foram arquitetados para se opor à multidão. Nestes termos, a escola de Bourdieu-Passeron confunde-se com a escola tradicional, com o que nela existe de mais contestável
— e de morto: a ruptura com a vida dos alunos e os objetivos que a escola lhes propõe, e não aquela continuidade-ruptura que já invocamos detalhadamente por outra via.
Bourdieu-Passeron, e muito acertadamente, que, pelo contrá-
rio, a escolaridade não foi suficientemente longa nem a educação bastante profunda para constituírem uma atitude culta em relação aos que não receberam estímulo do seu meio. Igualmente, pertence a eles o mérito de recusar a oposição tão fregiente entre a cultura escolar, estereotipada, rotineira, e a cultura autêntica, que dá lugar a apreciações de
Bourdieu-Passeron propõem reformas escolares, não podem deixar de propô-las. Mas receamos que elas demorem muito a processar-se. Como melhorar o que não contém a mínima realidade, a mínima validade?
ultrapassar os conformismos escolares, só é permitido aos que conseguiram a plena posse dessa formação dispensada precisamente pela escola.
A arrancada que eles dão a entender partirá essencialmente dos mecanismos de aprendizagem: a habilidade para falar e escrever e mesmo a multiplicidade de aptidões e ainda a virtuosidade verbal e retórica. Ficarão limitados, aliás, a pedir a organização contínua do exercício como atividade orientada para a aquisição tão completa quanto possível das
Enfim, a escola vê-se empossada de umatarefa essenci-
técnicas materiais e intelectuais do trabalho intelectual, exer-
al: é encarregada da legitimação cultural e possui, realmente, o monopólio desta legitimação: o jazz, o cinemae a fotografia situam-se fora da esfera de cultura consagrada porque não participam dos conhecimentos organizados pela escola.
cícios preparados de maneira sistemática, entregues e corrigidos pontualmente, a ampliar o domínio do que pode ser racional e tecnicamente adquirido com uma aprendizagem metódica. Exigirão que se dê, em simultaneidade com a mensagem, o código para a decifrar, ou seja, uma explicação escrupulosa do que ficou dito; será instaurado um controle progressivo em que cada momento se encadeará no momento seguinte, preparará o momento posterior.
gosto pessoal. Com efeito, libertar-se das pressões escolares,
Seria possível dizer que a escola fica, deste modo, exaltada ou, pelo menos, justificada. Mas, infelizmente, não de-
vemos esquecer que esta cultura só tem para os nossos autores o fundamento de ser monopolizada por determinada classe social: por isso de nada vale à escola favorecera difusão cultural. Será ela mais do que um porta-voz dos que pretendem distinguir-se e cuja vaidade, temos repetido, se alimenta da vaidade inerente à cultura? 292
Tudo isto nos parece muito útil, muito razoável, muito necessário. Porém, estas medidas, unicamente formuladas,
não implicam um novo questionamento das matérias ensinadas, nem do funcionamento geral da instituição. Há um
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ESCOLA, CLASSE E LUTA DE CLASSES
abismo enormeentre estas ligeiras precauções de bom senso e a gravidade das ameaças e das acusações que põem em
este resultado está longe de ser perfeito: a escola, enquanto conservadora e reprodutora, constitui uma ameaça ao con-
evidência a validade, a própria existência da escola. Se estu-
servantismo e às situações estabelecidas, é local de lutas e de
dantes e professores se contentam igualmente com um dis-
progresso, porque a cultura que espalha é, ao mesmo tempo, fictícia e verdadeira. É esta ambigiiidade criadora que Bourdieu-Passeron desconhecem e que só o marxismo nos parece capaz de desvendar.
curso nebuloso, como esperar uma mutação, de onde virá a
força capaz de impor exatidão, objetividade? Confia-se tanto quanto possível que a escola inculcará mais racionalmente uma cultura cujo vazio não se tem deixado de proclamar, que imprima mais equitativamente uma cultura que só existe pela e para a desigualdade. Não será esta contradição que revela a timidez dos projetos pedagógicos aqui presentes? Dizem-nos: será reprovado determinado número de estudantes socialmente privilegiados — porque serão sacrificados, deverão sacrificar-se para maior glória do interesse coletivo. Pensamos detectar, enfim, um momento em que o
conflito se instala no ensino pedagógico; haveria uma possibilidade de resistência, os dominantes e os seus cúmplices, passivos ou mistificados, não continuariam sozinhos a mexer
os cordões. Mas olhando mais de perto, verificamos que esse conflito não passa de hábil encenação: trata-se, na realidade, do interesse coletivo das classes dominantes; e isso exige que,
pelo menos, se salvaguardem as aparências — e que se faça, uma vez ou outra, uma exceção à automaticidade do sucesso
dos favorecidos. Não vale a pena afirmarem-nos que a hipótese de um' sistema de ensino que só tivesse por função técnica a sua função social de legitimar a cultura e a sua ligação com a cultura das classes dominantes representa um caso limite, temos a percepção de que toda a obra assenta nesse caso limite, considerado como o único caso real. “O sistema de
ensino só consegue desempenhar com perfeição a sua função ideológica de legitimação da ordem estabelecida se...”, Não, 294
295
CAPÍTULO IV AS DIFERENTES UTILIZAÇÕES DA CULTURA
Será que uma reflexão sobre a cultura nos permitirá ultrapassar o ponto de vista de Bourdieu-Passeron — visto nos ter parecido que era sobre a cultura, como aparência irrisória,
que se fundava a sua negação da escola? PRIMEIRO TEMA: Utilização conservadora da cultura Bourdieu-Passeron trouxeram à luz a questão de que existe, dentro e fora das aulas, uma utilização reacionária da
cultura e que a cultura se presta a esta utilização. Os modelos culturais podem ser conservadores, apresentados de forma conservadora, quando se pretende fazer deles a garantia da imutabilidade do homem e, portanto, da
imutabilidade da sociedade. Entre uma centena de casos, anotemos esta declaração de Léon Bérard: constitui-se através dos séculos “um capital de conhecimentos, de idéias, de
verdades morais praticamente invariáveis, definitivamente asseguradas, um fundo estável de verdades, sobre o justo e o injusto, o homem e a família, o homem e a cidade, a guerra €
a paz”. Tais tomadas de posição levam, inexoravelmente, a desvalorizar o mundo contemporâneo, e a cultura seria um 297
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convite à procura de refúgio num passado, evidentemente mítico. Outro exemplo: uma comissão francesa, a pedido da Unesco, formulou em 1959 um relatório acerca do papel dos estudos humanistas. Ela empenhou-se, em primeiro lugar, em traçar a oposição entre “essas grandes obras do espírito
podem compensar as dificuldades de uma vida profissional
humano em que ficam depositadas as normas da verdade, do
exigente. E é, antes de mais nada, no seio da escola, que a
burguesia se esforça por interpretar as obras culturais imprimindo-lhes um sentido suscetível de a servir — ou, pelo me-
nos, que não constitua um perigo para ela. Fayolle mostra bem como certa tradição escolar apaga, em relação aos filósofos do século XVIII, as idéias de progresso e de renovação, minimiza e adoça as contestações, as
bem e do belo, cujo valor permanente corresponde ao que de eterno existe na natureza humana” e “o mundo atual em que valores e contravalores se misturam na maior das confusões”!. Do ponto de vista pedagógico, estando tais normas fatalmente desligadas da experiência vivida pelo aluno, recusando esta experiência, visto que ela não passaria de confusão, torna-se impossível a ele encontrar uma resposta pessoal, tomar uma iniciativa que só pode, portanto, ser imposta de fora: torna-se inevitável o autoritarismo escolar.
sonho, e denota um prazer sempre renovado em descobrir o homem por detrás do livro. A partir daí o estilo e a linguagem passam a ser temas válidos em si e temas de predileção. “O acadêmico dá a primazia ao século XVI — a um século
São estes, efetivamente, os mesmos que pretendem apresentar a cultura como o lugar imediato da reconciliação: “Os bens da cultura constituem um patrimônio coletivo inalienável e indivisível em fatores discriminatórios, sejam eles de que natureza forem. Situam-se num domínio que transcende as divisões”? A cultura ficaria desligada dos acontecimentos que se desenrolam no espaço e no tempo, isto é,
dúvida, obras culturais reacionárias. Serão elas assim numerosas e haverá muitas realizações de vulto que pôem em cena
realmente desligada das lutas dos homens, acima delas, re-
presentando um domínio à parte; seria um oásis preparado para que se esqueça o contemporâneo e se renuncie a uma tomada de posição. Uma evasão mágica, um ópio. A cultura como calmante, bálsamo, compensação para a vida como ela
é, resignação à vida tal como ela é. O interesse pela arte dramática, o cinema, o canto coral e as atividades ao ar livre
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2.
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Française, Notas e estudos documentários, maio de 1959. , La Documentation ! * Perspective pour le Vº Plan.
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lutas, as revoltas, mas privilegia tudo quanto seja confissão,
XVII que transmite, do homem, uma imagem eterna, univer-
sal — e que permite confrontar todo o projeto inovador com a representação definitiva de um ser marcado pelo vício e pelo pecado, que se debate inextricavelmente entre paixões contraditórias. Tudo isso é verdade, tudo isso existe. E existem, sem
a escravatura e a tortura a fim de as glorificar? São, sobretudo, imitadores pobres, que tentam remendar o vestuário filo-
sófico e religioso da burguesia, há muito gasto e sujo, profusamente manchado com o sangue do povo trabalhador. A utilização, para fins reacionários, de valores culturais pelos administradores, políticos e também professores, é fenô-
meno constante. Resta saber se ela se inscreve no objetivo das obras ouse é uma marca de traição. O irrealismo da cultura — da cultura erudita, acadêmica — não é de forma alguma a sua definição, mas pelo contrário, o desvio de sentido que a burguesia pretende operar. A prova já está à vista do número ínfimo de famílias burgue-
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sas que participa da cultura: que proporção vai ao museu e incentiva os seus filhos a irem? E hoje, principalmente, em situação de perigo, a burguesia não hesita em renegara cultura, a sua cultura, desde que se convença de que esta renúncia pode ser-lhe útil na luta de classes. Ela já não grita pedindo que se abram os museus a todos; prefere sussurrar; os museus, são coisas mortas, um passado que se tornou inútil, um mero luxo, algo que nada oferece de atual ao homem,
numa palavra, isso é burguês. A desvalorização da cultura como burguesa é uma atitude fundamentalmente burguesa, onde é evidente que a classe dominante já nem em si própria confia, nem nas criações a que deu a sua contribuição, pelo menos com a matéria inicial; pressente mais ou menos confusamente os riscos que encerra a sua cultura e que a ameaçam a partir do momento em que o proletariado conseguir dominá-la. Então não se esforçará muito para divulgar esse fracasso. Não pode dissimular o risco inerente à cultura: pela magia das palavras, dos sons e das cores constituir um universo que a si próprio se baste, muitíssimo mais belo, deixando ao alcance da mão satisfações muito mais agradáveis do que a realidade e que irá permitir o esquecimento dessa realidade; uma pessoa perde-se a contemplar. Quanto mais se fregiienta um concerto menos se milita; os melhores militan-
tes não são os que vão mais assiduamente a concertos. SEGUNDO TEMA: Restituir a cultura a si própria
E, contudo, a cultura, ao ser recuperada pela burguesia, é traída porela e é a nós, à classe operária, que compete re-
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elas, como efeito, evocar a realidade de tal forma que ela se
mostre finalmente como é, ou seja, intolerável? O mundo no banco dos réus e, portanto, a boa consciência, o conforto mo-
ral. Conseguirão arrancar dos acontecimentos o sinete do familiar, o sentimento que é habitual, estabelecido, natural, que
não pode ser de outro modo? Farão surgir o mundo na sua mobilidade, provisória, problemática, instável, tendo mudado, podendo mudar, devendo ser mudado? Existe, pois, um futu-
ro. Saberão elas representar a luta do que é novo contra o que é velho, como as contradições se desenvolvem, se enriquecem, que força da evolução, ou antes, de progresso repentino estas contêm, que carreira traçam às forças libertadoras? É porestas três formas combinadas que a cultura será luta contra o afundamento nas areias movediças e nos implicará nessa luta. Devemos lembrar a frase de Lenin: “Para os analfabetos não há política no verdadeiro sentido da palavra,
mas só mexericos”. Nem acreditar na harmonia como se já tivesse sido realizada, nem na desgraça fatal, mas pressentir uma plenitude, o ultrapassar da exploração e da divisão. Mesmo o proletariado, que vive a exploração na sua carne, corre sempre o risco de a sentir de modo resignado,
como uma fatalidade. Ele pode encontrar na cultura meios para abrir perspectivas. E os não-proletários, para não lhes chamarmos burgueses, descobrem muitas vezes, através da cultura, a realidade da luta de classes e conseguem assim
aproximar-se das posições da classe operária. Já o Manifesto dizia: “Uma parte da burguesia passa para o proletariado e nomeadamente essa parte dos ideólogos burgueses que se promoveram à inteligência teórica do conjunto do movimento histórico”. Bourdieu-Passeron, como Baudelot-Establet, recusam a
encontrar-lhe o significado, o valor, e dizendo tudo, a honra.
hipótese de um papel progressista de uma facção das classes médias e a realidade da cultura: a coincidência não é fortuita.
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Perante as obras culturais, eis o tipo de perguntas que poremos e que procuram cingir-se ao nosso objetivo: terão
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I— O papel da alegria no combate político
pelo desespero. “A obra de Delacroix surge-me por vezes como uma espécie de mnemotecnia da grandeza e da paixão primitiva do homem universal... ele desconhece a decadência, só aponta o progresso”; é isto que justifica as linhas anteriores: “Eugêne Delacroix conservou sempre os traços desta origem revolucionária”.
Deste modo se conclui que a obra cultural é inseparável da política, mas que de forma alguma se confunde com a política. A obra cultural é alegria, ela transfere o acontecimento para o domínio da alegria — evidentemente também para o do sofrimento, mas um sofrimento sentido diferentemente, que já não é esmagador. Corresponde à sua função na medida em que conseguir fazer da dialética um prazer. As contradições deixam de ser meramente constatadas, dão lu-
A cultura passa a ser local de combate porque nunca escapa à luta de classes que se processa consubstancialmente com a história. As idéias dominantes são as idéias da classe dominante; mas elas não se obstinariam a apresentar-se como dominantes se não soubessem e se ao mesmo tempo não se sentissem, ameaçadas pela constante pressão das classes dominadas. Os criadores burgueses verdadeiramente impor-
gar a um humor; a transformação torna-se surpresa, isto é, certo distanciamento, um distanciamento que não é evasão,
mas pelo contrário, um meio de ação, pois a evolução dos fatos é vista globalmente. Daí um prazer que aumenta o nosso vigor, estimula a alegria de viver, o que não significa, de modo algum, que tenham desaparecido as provações. Barberis soube definira literatura com um meio termo entre o devirhistórico e os homens: é graças à literatura que um tema abandona o domínio da ideologia abstrata, para se tornar exigência viva, e ser interpretado como tal. É então que ele se transforma numa procura individual e individualizada, humanizada, expressiva. O que as obras culturais têm para nos comunicar, não é apenas que uma outra vida é deseJável e possível, mas que essa exigência está ligada às próprias pulsações do nosso sangue, não é um desejo frio. Esta alegria dolorosa não será o indício de que então o indivíduo ultrapassa os limites do seu eu, se une e se identifica com aquilo que ele não é e que nem é capaz de ser — a
A obra cultural nunca está, certamente, independente das forças sociais que o autor representa, de que é até o porta-voz e tem, ao mesmo tempo, limites de classe que nunca transporá. Mas não é menos importante recordar que os filósofos da burguesia progressista não vão buscara sua inspiração nas mesmas fontes em que bebem os empreendedores capitalistas. O criador, na medida em que sua obra reflete uma tomada de consciência da realidade mais vasta do que a
experiência coletiva, o conjunto dos sofrimentos, mas tam-
vida corrente, mais sensível, aberta e mais atormentada pelo
bém do combate humano? Já Baudelaire o exprimia em termos notáveis a propósito de Delacroix: pressentimento do indivíduo escapando à dispersão, à fragmentação contraditória; dignidade possível do homem, prometida mas ainda a ser conquistada; recusa de se deixar influenciar pela dúvida e
sofrimento dos homens, não pode deixar de fazer eco aos protestos e projetos que, de uma forma ou de outra, sempre foram manifestados pelos oprimidos. Rastignac lamenta: “Como se alinhariam os grandes sentimentos a uma sociedade mesquinha, pequena, superficial?”.
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tantes continuam, de qualquer maneira, burgueses, e sepa-
ram-se da suaclasse, enfrentam-na e propõôem-lhe uma nova imagem do homem: protestam nas suas obras, mesmose nas opiniões políticas que exprimem, naquilo em que não passam de uns simplórios, deram tão frequentemente provas de uma triste incompreensão, como é o caso de Flaubert.
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Parece-se, então, que as obras não devem estar dividi-
das em duas simples categorias, as reacionárias e as revolucionárias, mas que desvendam, de maneira mais ou menos
pronunciada, perspectivas progressistas — sendo raras as grandes obras conservadoras, inteiramente conservadoras, e
frequentemente pergunto a mim mesmo se isso existe. A noção de cultura dominante, de cultura da classe dominante, não deve ser, portanto, interpretada como um
dado estatístico, mas como um resultado complexo e sempre móvel das forças em questão. É bem notório que até agora as obras que ficaram consagradas no nosso patrimônio foram produzidas por homens vindos das classes dominantes que se dirigiam essencialmente aos da sua classe. Porém, deve-se
também recordar que a cultura da classe dominante é a cultura a que essa mesma classe teve de aderir — muito mais freqientemente de má vontade do que de bom grado e à custa de muitos sofrimentos. O desprezo da burguesia pelos grandes artistas, em particular no decorrer do século XIX, confirma-o plenamente. France Vernier revela por um lado, numa análise de extremo rigor, que “a classe dominante se vê constrangida a valorizar como literárias obras que põem em evidência a coerência e a harmonia (do seu sistema)”; por outro, que ela Jamais conseguiu impor de forma durável como“textos literários escritos que a serviam sem falhar”. Deste modo se infiltra no coração da cultura existente “uma contradição que a classe dominante não consegue evitar nem solucionar”. É esta contradição constitutiva das obras culturais, o seu peso conformista e o seu valor contestatário, que seria necessário esclarecer. Racine apresenta, evidentemente, a corte de Luís XIV, os seus hábitos, a sua hierarquia consentida, os seus
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riam ao lote comum da humanidade, seriam capazes de sublimar as suas paixões num heroísmo cavalheiresco e estariam,
por índole, destinados a comandaros outros. Há em Mozart um pequeno marquês, empoado, amável e elegante, uma atmosfera de corte principesca. Mas é ele que transporta para a música, que transforma em música as tomadas de posição mais progressistas da sua época: o ateísmo e o protesto contra determinado tipo de moralismo (Don Juan), a luta de um criado e da mulher contra os direi-
tos feudais que iam a ponto de escravizar o homem (As Bodas de Fígaro), a regeneração do mundo por uma vanguarda que terá a coragem de se purificar, de superar as provações — e o homem do povo teve aí lugar, a ação não se limita a reunir personagens já estabelecidas, não poderia desenrolarse sem a participação de todos esses que exprimem uma espontaneidade natural e popular (A Flauta Mágica). Musicalmente, ele atua unindo a música popular à erudita,
reunindo a área de tradição vienense ao coral e à fuga; assim ele visa chegar a um público vastíssimo, a todos os públicos simultaneamente, e a experiência lhe dará razão em múltiplas
circunstâncias. É para os fregiientadores de uma espécie de teatro ambulante dos subúrbios de Viena que Mozart escreve A Flauta Mágica; essa gente aplaude, pede bis em determinadas passagens divertidas, e ao mesmo tempo percebe o alcance da obra, demonstra-o em certos momentos culminan-
tes com a sua aprovação silenciosa — e isso Mozart comenta com alegria numa carta ao pai. A pintura dos impressionistas pode parecer desligada de preocupações, das lutas cotidianas; pode ver-se umatentativa de fuga às duras realidades, no requinte, na iridiscência,
no prazer desfrutado com as cores e as formas evanescentes. Mas representa, acima de tudo, uma reabilitação do mundo
do-nobiliária em que certos homens, os bem-nascidos, escapa-
do dia a dia, das cenas familiares e próximas; que todos consigam penetrar a poesia, ou pelo menos, as promessas por ela
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faustos. Mas Racine destrói, torna impossível a ideologia feu-
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encerradas; e é essa recusa dos motivos nobres, históricos,
superestrutura... igualmente exercem a sua ação nas lutas históricas e em muitos casos lhe determinam, de maneira preponderante, a forma”. Comenta Althusser: o marxismo
mitológicos, simbólicos, que na época provocou a indignação doscríticos instalados. É igualmente o acordo possível, o acordo prometido entre o mundo e o homem: a natureza, as coisas simples do mundo têm beleza, constituem uma festa,
devem transformar-se em festa e é escandaloso que tal não acontecesse ainda. Não se pode afirmar que os criadores escapam à luta de classes, pois, muito pelo contrário, à sua maneira, eles a vi-
vem intensamente: Mozart participa, por intermédio da franco-maçonaria, no movimento das forças progressistas do século XVII, na sua confiança redescoberta nas virtudes, a
virtude do povo — e assim se esquiva ou compensa a pressão da aristocracia e mantém um constante contato com o folclore. Racine é, seguramente, um homem da corte, mas
Port-Royal, que teve tão grande papel na sua vida, é interpretado como uma ameaça autêntica ao poder e perseguido, como todos que partilham o jansenismo. Os Impressionistas são excluídos da alta sociedade. Deste modo, a ideologia e a cultura existentes são fundamentalmente animadas pela burguesia, mas também, de
forma contraditória, pelas lutas da classe operária e das massas populares. Necessidade de reconhecer uma originalidade do cultural; por certo este nunca consegue ser autônomo em relação à classe que lhe dá e à qual, apesar de tudo, se destina, mas,
pelo menos nas suas obras mais perfeitas, o cultural não se reduz a um reflexo, um disfarce, um mero anteparo dos inte-
resses da classe dominante. Para melhor compreensão devemos nos referir a uma passagem onde Althusser interpreta com extrema clarividência a famosa carta de Engels a Bloch. Dizia Engels: “A situação econômica está na base, mas os diversos elementos da 306
“oferece-nos os dois extremos da cadeia”; de um lado, o mo-
do de produção e do outro, as superestruturas e “é entre os dois extremos da cadeia que é preciso investigar”, investigar como a economia dirige o curso da história e em particular a ideologia; mas ela atua em última instância, o que significa
ao mesmo tempo que há ação e reação das superestruturas sobre a base. Althusserinsiste na acumulação de determinações eficientes, vindas das superestruturas — e isso só se
torna viável pela existência real, em grande parte específica e autônoma, das formas da superestrutura. É esta existência de superestrutura que nos parecefaltar em Bourdieu-Passeron, onde surgem apenas como decalque das posições de classe, instrumento tão dócil da classe dominante. E Althusser acrescenta estas frases que talvez constituam a melhorcrítica a estes dois autores: “Jamais a dialética econômica manobra no estado puro, jamais se vêem na História as estruturas afastarem-se respeitosamente ou dissiparem-se a fim de dar passagem, respeitosamente, à sua majestade a Economia; a hora solitária da última instância
nunca soa”. Temos de lutar para restituir às grandes obras culturais o senso revolucionário que de fato possuem e que a tradição burguesa se esforça por sufocar. Temos igualmente de lutar para impor obras que a burguesia não pode recusar (pensemos em J. Vallês), mas que deixará astuciosamente na sombra e no esquecimento se não nos precavermos. Esta luta é possível porque a cultura, tanto a que é inculcada na escola como a que evolui fora dela, pode servir de meio para preservar a ordem estabelecida, mas constituindo, ao mesmo
tempo, um dissolvente corrosivo desta mesma ordem.
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ESCOLA, CLASSE E LUTA DE CLASSES
R. Leroy introduz a noção essencial de um afastamento entre a obra cultural e as lutas sociais. Este afastamento não representa, certamente, um vôo para um céu quimérico; destina-se a longo prazo a ser reabsorvido e, finalmente, no tempo
das e que significam, especificamente, algo que não se iden-
histórico, o movimento social revolucionário e o movimento cultural acertam o passo. E, todavia, em dado momento, ele
marca a especificidade e a realização artística ou científica e acima de tudo a possibilidade de a criação intelectual se antecipar. E eis porque a luta de classes no domínio cultural, e, portanto, na escola, reveste formas próprias, não se pode aplicar-lhe o rótulo de predomínio da classe dominante. Objetarão alguns que mais valeria recorrer a obras diretamente proletárias do que procurar numa cultura, evidentemente marcada pela burguesia, elementos progressistas, ou até uma inspiração revolucionária. Mas numa sociedade capitalista, a classe dominada terá conseguido levar a cabo
obras plenamente significativas? À cultura proletária, uma cultura que assume conscientemente a tarefa de absorver e traduzir a energia emotiva da massa, apresenta-se hoje como um fim a ser atingido, ainda não constitui uma realidade. Uma cultura que se dirige à massa, é compreendida pela massa; e presume-se que a massa não é apenas um público que assiste; a participação na obra e a transposição para a vida do que a obra sugeriu são inseparáveis da sua apresentação. É evidentemente o contrário de Salzburg com vestidos de noite e festas de galas estereotipadas; é de fato aquilo com que sonhara Mozart — e que emtal época, com tal sociedade, não podia passar de sonho. Mozart só será Mozart após a Revolução, quando um público nãoalienado conseguir finalmente gritaro significado da sua obra. Devemoscultivaros princípios desta cultura proletária, sem escondermos que não passam ainda de princípios. Haverá na França obras de vulto executadas por classes explora308
tifica com as obras da cultura reconhecida — e que não fo-
ram admitidas por esta mesma cultura? Será preciso procurar do lado das realizações que saem um tanto da rotina, como o artesanato? Mas isso mais se assemelha a um passado reconstituído do que a uma existência ativa. Enquanto permanecer como classe explorada, a classe operária exprime-se
culturalmente por aspirações ou rejeições, não com realizações que possam ser apresentadas nas escolas. Talvez um paralelo com a ciência seja esclarecedor: não se pode sustentar que a classe dominante tenha deixado de lado descobertas científicas proletárias, equivalentes às que haviam sido realizadas pelos burgueses e que até o presente continuam eles a ser os únicos em condições de realizar. Quando o proletariado deixar de ser uma classe explorada, talvez venha a ter o seu Mozart; talvez se exprima de maneira diferente, inédita, ainda dificilmente imaginável,
mais com tendência para a diversidade do que para algumas obras-primas. A este ponto ainda não chegamos; e a cultura proletária não pode constituir-se por cisão ou repúdio do patrimônio conquistado. O que há de justo em Bourdieu-Passeron e que nos toca no mais íntimo, é a denúncia do escândalo que representa uma cultura de uma insignificante fina-flor. O que nos desilude, é que a cultura parece, quase por definição, condenada a semelhante solidão. Com efeito, a classe dominante exerce sobre os criado-
res uma constante pressão a fim de os encerrar num círculo restrito de admiradores confessos: ela pressente que a difusão da cultura estaria para ela repleta de perigos e isolando os criadores, desligando-os das massas, espera reduzi-los a temas e a sutilezas inofensivas. A isto vem juntar-se, eviden-
temente, em relação aos explorados, a extrema dificuldade
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de acesso ao que vai do habitual ao novo — depois de tantas horas de trabalho extenuante e com tão ligeira preparação inicial, O que não impede que os grandes criadores tenham desejado ardentemente dirigir-se ao mais vasto conjunto humano; lançam um apelo a todos — e só depois de desanimar, quando se julgam constrangidos a isso, é que alguns se isolam num clube de iniciados. Haverá, sob este ponto de vista, exemplo mais caracte-
rístico do que o de Mallarmé? O seu nomeé o próprio símbolo de uma arte limitada a um reduzido grupo esotérico; e,
contudo, ele mesmo declara que essa situação é adversa, transitória: uma época não passa de um interregno,no entanto, Já atravessada pela presença do novo, está em efervescência preparatória; e se o poeta se vê provisoriamente condenado a só se dirigir a alguns, é enquanto aguarda que a multidão se defina. O próprio Mallarmé espera, prevê que a multidão se realize plenamente. À nossa sociedade, que voga de guerra em guerra, não saiu da pré-história. É esta mesma expressão que os cubanos retomam ao declarar: “A cultura reservada a uma classe privilegiada só permitiu a raros indivíduos distinguir-se; não é uma característica inerente à cultura, é apenas um indício da
pré-história da cultura”! Seria necessário, ainda, explicar como se processam a
evolução e a revolução culturais. É demasiado fácil afirmar que a cultura como passado, visto manterestreita relação com o passado, conduz obrigatoriamente ao conformismo e nos encerra numa eternidade desesperadamente estática: essa obra antiga ou não nos impressiona ou é a prova de que o homem não muda, de que o mundo não consegue modificar-se. 1º Congresso da Educação em Cuba, 1971. Citado por Huteau e Lautrey.
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Muito ao contrário, Brecht leva-nos a compreenderque o prazer proporcionado pelas obras antigas, começa porser a satisfação de descobrir as distâncias, as diferenças, de participar no desenrolarda história através dos caracteres peculiares a cada época e aos seus contrastes: os modelos do passado trazem-nos o reconhecimento de transformações já atingidas e que são garantias de transformações a serem conquistadas. E é precisamente assim que o antigo pode assumir para cada um de nós um significado pessoal e vivo, exercer uma incidência direta, pois a humanidade enternece-se ao recordar as suas lutas e as suas vitórias. E reviver até aquilo que não passou de mera tentativa pode aumentar-lhe a determinação e a confiança. A obra pode, portanto, ser interpretada como presente sem deixar de ser história, com a condição de que esteja desenvolvido o sentimento — diríamos o prazer da continuidade dialética da história — de tal forma que o passado cultural se unisse à atualidade da ação: a continuidade da luta, a
mesma luta e sempre por formas novas. Pensemos na imagem da espiral que volta periodicamente a passar pelo mesmo ponto, mas sempre mais acima. A unidade do presente e do passado está em primeiro plano nesta definição da cultura dada pelo autor soviético, Vladimir Mshvenieradze: “Aptidão para utilizar os resultados obtidos, para subjugar as forças elementares da natureza e resolver os problemas imediatos e urgentes do progresso social”. Por isso, não há contradição entre criar-se um presente a partir do presente e criar-se um presente a partir das obras do passado; é preciso não nos deixarmos iludir por uma posição fictícia entre a cultura prestes a ser realidadee a cultura Já inscrita nas obras consagradas; nem ter de um lado um patrimônio a conservare transmitir tal como é e nem de outro, inovações a promover numa efervescência repentina. Simultaneamente, o passado diz respeito aos homens de hoje 311
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se soubermos examiná-lo no seu encadeamento dialético com o nosso hoje e o presente tanto da cultura como da ação, só atingirá a criatividade se conseguir alicerçar-se nas aquisições já realizadas. A oposição entre a cultura-consumo de obras já feitas e a cultura como manifestação nova do meu projeto pessoal não parece menosfalsa: não assisto passivamente a um espetáculo — de contrário é porque lhe permaneci indiferente. Prova-o a fadiga a que a minha cooperação dá origem, mesmo silenciosa e imóvel. Inversamente, de cada vez que se imagina encontrar algo de novo, sem que esse entusiasmo pessoal parta de qualquer coisa já elaborada, deixa-se influenciar pela mais banal das ideologias dominantes. Os textos
ESCOLA, CLASSE E LUTA DE CLASSES
E, de resto, pode suceder que o fato de me ter assim
preparado para melhor ver e amar Picasso me leve, não a pretender pintar, mas a interpretar o mundo de forma mais clarividente, a atuar no mundo com mais convicção. R. Leroy diz com toda justiça: “A cultura é feita igualmente de ciência, de técnica, de atividade profissional, de atividade
física; está nas relações que se estreitam entre os homens a cada instante da sua vida”. Repudiar tudo em um bloco só, aí vendo uma mistificação tirânica ou o esplendor fingido dos privilegiados, é superestimar as posições da classe dominante, supô-la todopoderosa, fechar os olhos à influência política e cultural que o movimento democrático exerce, e há tanto tempo, seja junto dos criadores, ou no conjunto das correntes intelectuais.
livres, os desenhos livres das crianças são exercícios indis-
pensáveis ao seu progresso e indiscutivelmente muito se assemelham uns aos outros e ao que já é conhecido.
H — Três exemplos das relações entre a ideologia dominante e a ideologia dominada
Por um lado, não posso deixar-me embalar, é demagó-
Para eu pintar validamente, é necessário que tenha con-
Para tentar definir as relações entre ideologia dominante e ideologia dominada, tomaremos como primeiro exemplo a noção de igualdade e o estudo que dela fez Engels. À noção burguesa de igualdade, é a igualdade civil: todos os cidadãos são iguais perante a lei. Ora, o proletariado bem sabe que a igualdade não deve ser simplesmente estabelecida como igualdade de direitos formais, mas que ela engloba o estatuto econômico-social; em outras palavras: não há igualdade enquanto não se abolirem as classes. Desempregados e milionários têm o mesmo direito de dormir de-
templado demoradamente a pintura dos outros — e apesar de
baixo das pontes, e também o mesmo direito de fundar um
tudo, aquilo que eu executar ficará à grande distância, muito
jornal. Falta saber em que se transformará esse direito.
atrás, digamos, de Picasso; mas precisamente por eu ter experimentadopintar é que verei Picasso de maneira mais lúcida, mais pessoal; e será essa repercussão que irá permitir manifestar-me de maneira mais pertinente.
sa uma aparência e a reivindicação proletária de igualdade é nada mais nada menos do que uma reação contra esse conceito-chave da ideologia dominante.
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gico deixar-me embalar pela ilusão de que estou, estamos todos, ao mesmo nível dos fundadores de cultura. O que de
forma alguma significa que eu esteja condenado a uma absorção inerte daquilo que os outros conquistaram: interpreto e assimilo a obra dos outros de acordo com a minha própria individualidade, participo nela de modo original, a partir daquilo que eu próprio sou, situo-me em relação a ela; e é, finalmente assim, que modiífico a minha vida, a vida; graças à obra dos outros exprimo e exprimo-me.
Num certo sentido, a idéia de igualdade burguesa só vi-
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ESCOLA, CLASSE E LUTA DE CLASSES
Mas, mais profundamente, é muito pouco dizer que a reivindicação proletária se baseia na teoria burguesa, não basta sequer afirmar que ela tira essas conclusões ultrapassando-a; a realidade, é que os proletários tomam a burguesia
é pela cultura que se escapará à luta de classes e que se alcançará uma unificação idílica. Mas a cultura dominante não se reduz a um disfarce opressivo em face do qual uma cultura de explorados se ergueria como um outro bloco: é precisamente à cultura dominante que os explorados devem ir buscar os elementos que irão reconstituir por sua conta e que irão metamorfosear. Terceiro exemplo: a noção de verdade. A ideologia dominante tende a fechar-se numa alternativa: ou o nosso pensamento é capaz de vencer a corrente movediça das aparências e atingir conhecimentos absolutos, definitivos; ou então é o ceticismo em que todas as idéias são equivalentes, tudo pode ser admitido segundo os casos e as pessoas. Num primeiro período, o marxismo recusa esta escolha forçada e afirma, paralelamente, que o homem não pode abraçar, reproduzir e representar a natureza na sua totalidade imediata, mas que consegue ir abeirando-se perpetuamente desta finalidade. Há uma longa evolução da ciência que vai subindo degrau a degrau, sempre mais alto. E é esta mesma evolução, progressiva e interminável, que constitui a verdade. Neste sentido, o marxismo instala-se na própria contradição entre ceticismo e dogmatismo que faz o desespero da ideologia dominante e que marca o seu malogro, esta contradição transforma-se na principal alavanca de todo o progresso intelectual. O que não impede que o marxismo retome do dogmatismo a noção de que a verdade não é umaleitura simples e
ao pé da letra; se a burguesia, na sua luta contra o Velho Re-
gime, teve de reconhecer que os homens não nascem já separados, não poderá, impune e definitivamente, fechar os olhos
perante o fato de o ter nascido numa família proletária não implicar as mesmas oportunidades de êxito — e para começar, na escola — que se teriam sendo-se um herdeiro; a ideo-
logia dominada, e sobretudo quando é o contrário da ideologia dominante, é tudo quanto já continha de real a ideologia dominante, mas metamorfoseado, sem subterfúgios,
finalmente liberto das suas mistificações. Outro exemplo: o patriotismo. Se existe um conceito que pertence à ideologia dominante, ou antes, à ideologia reacionária, que é quase o símbolo do imperialismo, do militarismo, de todo o cortejo de logros, de massacres que infligiram, e em primeiro lugarà classe operária, esse conceito é o de pátria. Por isso o Manifesto Comunista proclama que os operários não têm pátria. Mas, acrescenta esta restrição capital, ou antes, esta considerável abertura: existe uma realidade nacional que não é de forma alguma o sentido burguês do termo. Mal o proletariado se erige em força dirigente, mal cessa a exploração de uma nação por outra, visto cessar a exploração do homem pelo homem, o patriotismo adquire um significado revolucionário, que recusa basear-se na hostilidade recíproca dos povos. E, contudo, esta transmutação não teria sido possível se o conceito burguês de nação não contivesse esta possibilidade de acepção nova, perdida, dissimulada, nas deformações que o imperialismo a fez sofrer.
da natureza pelo homem, mas essa reflexão é um processo feito de uma série de abstrações, de aplicações, de formação de conceitos, leis etc. E são estas contribuições que ele vai fundir numa síntese inteiramente nova, que repõe a verdade
Portanto, existe, realmente, uma cultura da classe do-
na história, e mais precisamente, na história do trabalho, da
minante, e que não corresponde à das classes dominadas; não 314
imediata do real; o conhecimento é, sem dúvida, a reflexão
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relação entre infra-estrutura e superestrutura, na história da
fia clássica alemã. O torneiro, herdeiro de Kant e de Hegel...
prática das massas.
Que estranha ruptura e que espantosa continuidade! O co-
Nada é mais característico a este respeito do que a análise da escravatura feita por Engels. A ideologia dominante afirmará que a escravatura é um erro que desonra a humanidade ou que é a prova de que tudo é possível e pode ser justificado. Engels vai situar a escravatura em correspondência com um estágio em que o trabalho humano é muito pouco
resses e as aspirações da classe operária e por isso se dirige a ela e nela encontra compreensão. Paralelamente, a ideologia dominada defende o contrário da ideologia dominante, o que sabe e experimenta o nosso torneiro, a partir da luta de classes e do desenvolvimento das forças produtoras, não é verdadeiramente o jogo dialético
produtivo; a sociedade só consegue sobreviver se os traba-
do Ser e do Absoluto; e contudo, isso constitui a sua herança,
lhadores estiverem inteiramente monopolizados pelo seu
em que nada de valorfoi dissipado.
nhecimento, com efeito, elabora-se de acordo com os inte-
trabalho e, literalmente, acorrentados a ele. À medida que as forças produtivas se desenvolveram, a escravatura tornou-se
uma indignidade e provocou indignação. O que não significa que ela fosse abolida imediatamente, porque as classes dominantes se combinam para entravar o que há de fatal na história, já que não podem evitá-lo. Portanto, o repúdio da escravatura não é em nada uma verdade eterna que teria sido, em dado momento, ignorada por um erro coletivo e, contudo, atualmente, é sem dúvida
uma verdade, corresponde a um progresso para a verdade; não que esse progresso seja contínuo, unilateral e triunfal; é feito de aproximações sucessivas, interrompido por recuos;
Consegiientemente, a cultura e a escola deixam de ter o
rosto que lhes emprestam Bourdieu-Passeron: é por a cultura inculcada conter elementos heterogêneos, por ser suscetível de utilizações contraditórias, que depende a todo momento do equilíbrio das forças vigentes verificar qual delas a arrebatará. Há uma tarefa para os docentes progressistas: consolidar a sua participação no movimento operário a fim de desmistificar uma cultura em que tantas noções, tantas obras, foram pervertidas, por si ou pelo público a quem estavam reservadas, pelo lucro que a classe dominante delas conta obter: são, contudo, estas mesmas obras que esperam ser
verdade; mas ia a ponto de a anular. Distinguimos aqui, não dois mundos estanques, a ideologia dominante e a ideologia dominada, mas o movimento palpitante de continuidade e de ruptura entre a ideologia dominante e o marxismo, ideologia
fecundadas. Enfim, é prosseguir a luta de classes no domínio das idéias. As obras que estão em jogo são sempre suscetíveis de uma interpretação reacionária, pois não cortaram todos os laços com as idéias dominantes das classes dominantes; mas se é verdade que brotaram do protesto e do conflito e de uma perspectiva aberta ao futuro, temos de exprimir o seu valor explosivo, o seu acerto de denúncia e de esperança. Devemos
dominada, ideologia dos dominados.
lutar até chegar lá, até sermos suficientemente fortes para o
todavia, existe. O dogmatismo não interpretava a verdade como história, mas tinha razão em admitir a oposição verdadeiro-falso; o ceticismo recusava com acerto imobilizar a
E é assim que Engels chega a este paradoxo extraordinário de apontar o movimento operário como herdeiro da filoso-
conseguir. A cultura geral constitui a iniciação nas diversas formas de atividade humana que possibilitam continuar em con-
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tato com os outros homens, aprender a apreciar o interesse e os resultados de atividades diferentes da nossa própria, situar perfeitamente esta em relação ao conjunto. Pode alcunhar-se a cultura de idealista, tal como é assim evocada no projeto Langevin-Wallon; pode causar espanto ela não suporos problemas que levanta, numa sociedade de classes, a existência
CAPÍTULO V
de uma cultura dominante como cultura da classe dominante, tentativa da classe dominante de justificar, pela cultura, o seu domínio e, por conseguinte, os conflitos entre esta cultura
dominante e as aspirações da classe explorada: “A cultura geral representa o que aproxima e une os homens, ao passo que as profissões retratam, muito fregiientemente, aquilo que os separa”. Não é menos exato que os homens se expõem tanto mais a permanecer bloqueados em si próprios quanto menos houverem participado na busca da objetividade e da verdade que a todos é imposta. Seria um erro completo considerartal cultura geral um dado imediato capaz de unir futuramente os homens, disfarçando os antagonismos e os conflitos. Mas não será legítimo mantê-la presente no espírito como ponto de chegada, como ideal, projeto regulador — com a condição de se saber que um ideal só será realidade na medida em que as nossas lutas reais tiverem ultrapassado as explorações reais?
BAUDELOT-ESTABLETOU A LUTA DE CLASSES INUTIL
PRIMEIRO TEMA: A ideologia proletária como manifestação repentina ou como conquista
Qualquer livro de Baudelot-Establet põe no mesmo plano, como duas forças equivalentes, dois parceiros comparáveis, dois adversários igualmente autênticos: a ideologia burguesa e a ideologia proletária. É só do ponto de vista burguês que a ideologia proletária é inferior à ideologia burguesa; de fato, a ideologia proletária é uma ideologia positiva, em pleno desenvolvimento. Entre elas, a única relação é de oposição: a ideologia da classe dominante é contrária aos interesses objetivos das classes dominadas, apenas existe por esta oposição e reduzse porinteiro a ela. I — Constituição da ideologia proletária
Vejamos como os nossos autores nos apresentam a ideologia proletária.
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Para eles é a existência de um proletariado revolucionário que faz dele, diretamente, o portador de uma ideologia nova. A ideologia proletária surge como resultado da formação recebida em contato com a vida dura, com as condições materiais da existência e do trabalho. Ela constitui um todo com a resistência à exploração e o seu princípio único e suficiente é a instrução direta para a vida. Daí, esta conseqgiiência essencial de que a consciência
de classe é um instinto de classe, uma consciência espontãnea. O que constitui a força viva da ideologia proletária são as formas espontâneas, não organizadas e teorizadas, mas
que possuem o mérito de haver nascido da experiência. Deste modo, sem necessitar serem estruturadas ouelaboradas, as
experiências operárias bastam para suscitar idéias diretivas originais da ideologia proletária, evidentemente inseparável das condutas proletárias. Disto nos dão, como exemplos, o afrouxamento da produção, e não o seu esforço máximo; nunca ultrapassar um limite determinado e evitar, assim, um reajustamento das normas,
mesmo quando se é pago à peça. E ao mesmo nível, citam a luta contra a diminuição do salário, contra o prolongamento do horário de trabalho. O conjunto das lutas sindicais. Malgrado esta alusão aos sindicatos, está bem definido
que isso faz parte das práticas espontâneas da luta econômica de classe — e é suficiente este tipo de ações para os operários se sentirem solidários entre si contra o capitalismo.
A partir disso gera-se uma transposição para o domínio escolar. Não só não existe, na escola, formação ideológica
ESCOLA, CLASSE E LUTA DE CLASSES
inculcação tem por condição sine qua non a repressão, a suJeição e o disfarce da ideologia proletária. E tal como no mundo adulto, os comportamentos dos alunos proletários vão brotar do seu instinto de classe. A versão pequeno-burguesa da ideologia dominante é interpretada pelos alunos da rede PP como uma autêntica provocação e por isso suscitará resistências violentas, a saber: a oposição ativa ou passiva à disciplina, fuga, destruição. Estas atitudes de protesto ou de inércia são habitualmente consideradas como fortemente negativas; fala-se de preguiça, de inadaptação (para uns as crianças é que não estão adaptadas à escola, para outros a escola é que não está adaptada às crianças; em qualquer caso, a estas crianças), classificase o caso de capricho juvenil, de reação a um complexo — ou como formas de passar o tempo mais agradavelmente do que estudando, formas mais movimentadas e mais fáceis. Baudelot-Establet afirmam, pelo contrário, que isso revela a expressão direta da consciência proletária, da ideologia proletária: “Essas resistências e essas formas em que se manifestam são próprias da rede PP, e a este título têm, pois, caráter de classe”; e do mesmo modo“se avaliarão o caráter de clas-
se desta reação”. Os nossos autores citarão entre os efeitos mais nítidos da ideologia proletária o comportamento bem conhecido dos alunos do CET que recusam a história, a geografia, o francês,
em suma, o ensino geral e só aceitam o que for diretamente útil à sua profissão. Nisso, que a maior parte das vezes é denunciado como preguiça de garotos, vêem Baudelot-Establet um meio de os principiantes testemunharem a sua maturidade, o que fica comprovado pelo fato de esses comportamentos se organizarem no âmbito da condição futura dos
que permita à classe operária interpretar-se, como, efetivamente, o sistema escolar está encarregado de assegurar o domínio burguês contra o seu adversário. Trata-se, pois, da mesma luta que se trava no mundo do trabalho entre duas potências antagonistas. O processo de
belas frases que pretendem resolver os conflitos de classe
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trabalhadores; simultaneamente, eles retomam uma atitude universal de resistência do proletariado às belas frases, às
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ESCOLA, CLASSE E LUTA DE CLASSES
numa harmonia moralizadora. E julgam-se autorizados a afirmar: “Trata-se de condutas mais diretamente proletárias”. Último exemplo: é agora na rede SS, principalmente no
Particularmente quando as resistências enveredam por formas selvagens de tendências pequeno-burguesas anarqui-
técnico ampliado, que se instala, com fregiiência, uma con-
testação endêmica, numerosas faltas de disciplina geral — e isto à medida que lá se introduzem os filhos dos operários; ainda aqui, mas a um nível escolar mais nobre, estes serão
logo à primeira vista os representantes da oposição proletária. São movidos pelos seus interesses de classe; e se protestam é porque as tarefas propostas pela escola estão em contradição com esse Instinto. Da mesma forma que os operários adultos, basta aos alunos deixarem-se conduzir pelo que há de mais espontâneo na sua existência, pelas formas imediatas e diretas da sua vontade, para aí encontrarem, ao mesmo tempo, os meios para resistir e os valores em nome dos quais eles resistem. Aquilo que provoca os antídotos contra a inculcação burguesa é a vida que as crianças da classe popular levam fora da escola. Ela chega para vincar o irrealismo dos conteúdos ideológicos que a escola gostaria que elas tomassem por faróis. É então que se vislumbra o campo em que a escola pretendia agir: os seus comportamentos, as suas noções pessoais só terão de ocuparo terreno. E se surge algum desvio, até mesmo algum erro nestas
zantes, toda a culpa incide nas formas escolares de inculca-
ção da ideologia burguesa. Exemplo característico: os alunos do CET recusam-se, fregientemente, a designar pelos seus nomes a aparelhagem e,a propósito de tudo, falam de aparelhômetro ou qualquer outro termo vago, em moda. Repudiam a linguagem técnica, na mesma atitude global que os leva a repudiar a linguagem escolar, a linguagem burguesa. Assim, se privam de um instrumento preciso e precioso. Mas, para Baudelot-Establet, a razão desta falta deve ser procurada unicamente no lado da organização burguesa da escola: a nossa escola está desligada da fábrica, os alunos não participam na vida fabril e é isso que os impede de aprendera diferença entre os dois vocabulários, de distinguir entre o que soa falso e o que é eficaz. Basta que o aluno passe a ser um operário inserido na produção e quediscuta os problemas da produção para que comece a mostrar que sabe do que fala.
II — Validade da existência proletária
nortear determinadas formas deagir. É a ideologia fictícia, fabricada no PP, que vai desnaturar o significado de certo número de atitudes espontâneas do proletariado; o adversário provoca e consegue imprimir a sua marca na resposta que lhe vão infligir.
Primeiramente, diremos como nos parecem importantes certas perspectivas assim abertas por Baudelot-Establet; elas constituem uma indispensável reação contra os que só vêem uma desvantagem no proletariado, tanto no seu modo de viver como no de pensar. A vida real dos alunos, a vida real dosfilhos do proletariado é reabilitada; deixa de sera de uma grande quantidade de preguiçosos, de inadaptados, ou até de vítimas de uma escola inadaptada. Há um esforço notável para atingir o ponto de vista dessas crianças, avaliar a escola, a sua disciplina e a sua linguagem tal como elas à interpretam. A denúncia da ideologia burguesa, mesmo nas suas formas escondidas de modelagem constante e imperceptível,
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lutas, os jovens proletários não têm culpa, o seu instinto de
classe não está em questão; o único responsável é o adversário, a ideologia burguesa, contra a qual se levantam, visto ser ela que consegue, nesta mesmaluta, contaminar e des-
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ESCOLA, CLASSE E LUTA DE CLASSES
é igualmente de extrema importância. Quanto ao que se refere a matérias, faz-nos recordar uma conhecida passagem em que Klineberg se indigna por os problemas de aritmética
objetivos diretamente tangíveis, portanto, limitados, parciais, próprios de certa categoria — e, finalmente, contraditórios.
retomarem, como coisa evidente, os conceitos do capitalis-
sidade de uma organização e de uma teoria gerais, que são, nada mais nada menos, que a evolução explícita da luta sempre travada e por isso reconhecida pela classe operária— e,
mo: empréstimos e juros, transações comerciais na base de lucro — e propõe problemas de um tipo novo: “Se uma família necessita de quinze dólares mensais para se alimentar, mas apenas recebe cinco, qual é a percentagem da subalimentação?”. Ou ainda: “Se numa fábrica de tecelagem de algodão um operário em cada cem é atingido pela pelagra, quantos casos novos se manifestarão se a fábrica contratar mais cem operários”. Mas isso não significa que tenhamos sido convencidos pelo conjunto das teorias desenvolvidas por BaudelotEstablet. O operário adulto, como eles o apresentam, parece passar sem choque nem dificuldade, de um afrouxamento de produção como resistência aos ritmos infernais, à luta pela redução do horário de trabalho e daí a objetivos propriamente revolucionários. O instinto de classe constitui o único estimulante, o fio condutor, ao mesmo tempo necessário e
suficiente, como guia através de um tal itinerário. Se os proletários podem agir assim, a partir unicamente da prática, se basta a prática coletiva para eles afirmarem a sua solidariedade e serem capazes de conduzir conjuntamente ações revolucionárias, poderiam acreditar, bastaria que confiassem na espontaneidade que os orienta e os arrebata em nome da si-
tuação de explorados. Mas, de fato, tudo quanto o movimento operário con-
quistou de proveitoso há um século converge para os pontos de vista de Marx e de Lenin: as contestações operárias, reduzidas a isto, correm sempre o risco de se fechar no conformismo, isto é, serão incapazes de atacar os alicerces do
Para ultrapassar esta fase, o movimento operário tem neces-
contudo, elas devem vir até ele do exterior, de fora. O instinto de classe exige esclarecimento, purificação, unificação;
uma vanguarda que terá, entre outras, uma dimensão pedagógica, instala-se no combate dos adultos. Althusser diz, muito acertadamente, que o marxismo não é uma expressão direta, uma produção direta do proletariado. É indispensável que haja produção da teoria marxista devido a uma prática teórica específica e que esta teoria tenha importância para o movimento operário em ação. A tarefa do marxismo, como
definiu Lenin, consiste em “generalizar, organizar, tornar conscientes das formas de lutas as classes revolucionárias surgidas espontaneamente”. Percebe-se a distância que separa a reivindicação imediata da luta revolucionária — e que não será transposta sem um imenso esforço teórico e organizado: “A luta operária só se transformará em luta de classes quando todos os representantes da vanguarda do conjunto da classe operária do país tiverem consciência de formar uma única classe operária e começarem a agir, não contra este ou aquele patrão, mas contra a classe dos capitalistas no seu todo e contra o governo que a apoiar”. E Lenin insiste: “Será apenas quando cada operário tiver consciência de ser membro da classe operária no seu todo, quando ele considerar que lutando cotidianamente por reivindicações parciais, contra certo patrão e certo funcionário, se bate contra toda a burguesia e todo o governo, será então, e só então, que a sua intervenção se transfor-
mará numa luta de classes”.
regime capitalista, pois sofrem a tentação de se agarrarem a 324
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O espontaneísmo, o instinto de classe, que apenas se exprimem e são objetos de desabafo, negam, tornam inútil a luta de classes, a qual exige organizações que se constituam, se estruturem, conquistando pouco a pouco a sua unidade de teoria e de luta. O proletariado não é um dado, uma totalidade, não pos-
sui esta ou aquela qualidade de forma imediata e definitiva, como uma propriedade; transforma-se no que é pela ação do partido da classe operária e dos sindicatos. As condições de uma existência explorada porcerto o incitam à solidariedade; porém, esta se arrisca a ficar estagnada em pequenos círculos, em clãs, até em meros grupos de recreio, se não evoluir até à luta unida, sob o impulso teórico e prático da vanguarda que a própria classe operária soube extrair de si.
ESCOLA, CLASSE E LUTA DE CLASSES
guir-se da massa. Em Baudelot-Establet, existe uma cultura
como dado efetivo, realidade existente: a cultura proletária. Contudo, afirmaremos que os nossos dois pares de autores estão mais próximos um do outro do que o supõem: por um lado, em Bourdieu-Passeron as diferenças de quantidade e de distância, chegam a transformar-se em diferença de qualidade. Por outro, e acima de tudo, esta cultura proletária,
esta ideologia proletária, não nos parece que consiga ter o tipo de existência que lhe atribuem Baudelot-Establet. Baudelot-Establet souberam demonstrar que existe uma verdadeira ideologia proletária, mas, ao mesmo tempo, entendemos que eles mascararam, desfiguraram essa verdade, admitindo três postulados que nós recusamos. O primeiro consiste em apresentar a ideologia domi-
Para Baudelot-Establet há, de um lado, uma ideologia
nante, e em particular a cultura incutida na escola, como uni-
burguesa, que não passa de burguesa e mistificadora; do outro, uma ideologia proletária e específica, colocada ao mesmo nível de uma coerência comparável. Defrontam-se dois poderes adversos e do mesmo nível. Eles mesmos se situam em relação a Bourdieu-
camente opressiva e mentirosa; não passaria de cultura de classe. De nenhuma forma permite que o operário se aproxime da verdade, da verdade de que precisa como arma. A
Passeron: para estes últimos, a escola transmite “a mesma
cultura, mas segundo um código mais ou menos decifrável para os diferentes receptores em função da sua origem social”; distâncias diferentes e, portanto, oportunidades de êxito diferentes, separam os estudantes da mesmacultura enraiza-
da. Ao passo que Baudelot-Establet colocam em primeiro plano a oposição entre ideologia dominante e ideologia dominada; da mesma forma centram a sua análise da escola na
oposição entre os dois modos de inculcação da ideologia burguesa, segundo ele visar o PPouo SS. A divergência pode parecer importante: em BourdieuPasseron, a cultura nos é revelada como irreal, conjunto de
escola, unicamente feudo da burguesia, é negar ao mesmo
tempo qualquer relação do que é ensinado comoreal e toda a presença das forças progressistas dentro da escola — esforços constantes para que a escola não tombe completamente a serviço da classe dominante — e os poucos resultados já obtidos; são, contudo, as garantias indispensáveis de que, num sentido, umaluta revolucionária é viável. A escola capi-
talista na França é uma escola integralmente, unicamente capitalista, que só tem como função repudiar o seu adversário. De fato, e pensem eles o que quiserem, não há luta de classes na escola de Baudelot-Establet, porque as forças progressistas não dispõem aí de nenhum ponto de apoio a quese agarrar, uma vez que toda a escolaridade é apresentada como mistificação burguesa.
convenções fictícias pelas quais a burguesia tende a distin326
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O segundo postulado é o de que a ideologia proletária está posta como uma espécie de dado imediato, já completo; não precisa lutar para conquistar a si mesma e se constituir, trata-se simplesmente de se defender contra as usurpações da ideologia dominante; as suas forças são reprimidas, recalcadas, pela ideologia dominante; o proletário e os seus filhos teriam simplesmente de se proteger da ameaça de as classes dominantes não permitirem que exprimam o que são — e O que já é em si inteiramente válido. Por isso nos permitimos afirmar que, para Baudelot-
apenas porque garantem a perpetuação do poder da classe dominante, porque garantem... Agir como se as diferentes culturas das diferentes classes sociais pudessem ser postas em pé de igualdade é fechar os olhos às desvantagens e às dificuldades que marcam o proletariado e os seus filhos; é negar a exploração e as suas consegiiências; é uma vez mais negare tornar inútil a luta de classes. Enquanto o proletariado for classe explorada, não poderá criar uma cultura comparável à da classe dominante. A revolução se tornaria
Establet, a luta de classes desaparece, torna-se inútil: a ideo-
das classes exploradas alcançassem no plano cultural uma expansão da mesma amplitude da dos favorecidos. É tornar inútil a luta de classes — e desfigurá-la: a luta de classes na escola deixaria de ser um dos setores, uma das projeções neste plano particular da luta de conjunto da classe operária; a luta de classes na escola concentraria a totalidade da luta de classes, a escola seria o alvo principal, a instância essencial de não-libertação, pois fabricaria, e quase artificialmente, inferioridades para uns para garantir o reinado dos outros. Não há matemática proletária diferente da matemática burguesa porque foi a ideologia dominante, aproveitando-se das condições conquistadas, que conseguiu, neste domínio, toda a verdade de que a nossa época é capaz. Tampouco existe um Victor Hugo saído do proletariado nem um Marx proletário, porque a doutrina socialista nasceu das teorias filosóficas, históricas e econômicas elaboradas pelos representantes instruídos das classes possidentes. Parece-nos de extrema clareza esta passagem de Rosa Luxemburgo: “A classe operária tem toda sede de saber, de um saber em que o imediatamente utilizável não se opõe à perspectiva teórica
logia proletária não resulta mais de um combate do que a prática proletária; as condições de vida do proletariado bastam para a provocar e, por assim dizer, para a segregar. À escola não tem de lutar para auxiliar a classe operária a conquistar a cultura; tudo que dela se espera é que se abstenha, que deixe de transbordar mistificações burguesas; bastaria acabar com a escola e então desabrocharia uma cultura vinda diretamente da prática proletária e que nunca mais seria sufocada pelas contribuições burguesas. Espontaneidade que, mais cedo ou mais tarde, se juntará a Illich. E após a revolução, a salvação virá, e ao que parece, da fábrica como local de formação, de um modo que pouco conservará do que caracterizava a escola. O terceiro postulado — talvez lhe devêssemos ter chamado o primeiro, pois é ele que suporta todo o edifício — considera a cultura proletária possuidora da mesma consistência, do mesmo grau de existência que a cultura burguesa; e se a escola escolheu a cultura burguesa, foi por motivos unicamente políticos. Pensamos que, pelo contrário, na nossa sociedade não existe uma pluralidade de normas culturais diferentes, mas sim iguais, do mesmo valor; a escola poderia propor outras e
completamente supérflua se, na nossa sociedade, os filhos
global; será ela a renovar a cultura da sociedade”.
se escolheu estes modelos, modelos burgueses, teria sido
Mas, mesmo na sua marcha em frente, ela não podecriar sem falhas uma cultura intelectual e isso enguanto se mantiver no âmbito de uma sociedade burguesa. A sua luta
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cultural é dupla: a burguesia abandona as próprias conquistas
Sendo assim, a ideologia dominada tem necessidade, ao mesmo tempo, de desconfiar da cultura dominante, de revelar as suas mistificações, e ainda de se apoiar nos seus
culturais, tornadas perigosas na época da sua decadência; é a
classe operária que vai proteger a cultura da burguesia contra o vandalismo da reação burguesa. E, simultaneamente, “forjar as armas intelectuais necessárias à sua emancipação... criar as condições sociais necessárias... ao livre desenvolvimento da cultura” — e estes próprios termos dão bem a entender que o proletariado não é detentor de uma cultura, mas que incita a... Na verdade, a ideologia proletária tem uma existência,
mas de um modo essencialmente diferente da ideologia dominante, e isto porque os explorados não podem levar o mesmo tipo de vida dos privilegiados. Nizan soube dizer bem, em 1930: “Não é exato que o povo venha de mãos vazias, a sua cultura abrange a vontade da revolução, a lem-
brança da opressão, o próprio repúdio e a crítica dos valores dos seus mestres”. A ideologia dominada é real, mas como
um grito de protesto — a partir do qual se passa a construir; ela é força combativa, apelo, intuição das linhas diretivas de uma luta; de uma luta que é preciso estruturar o que só se conseguirá com o apoio da cultura estabelecida — e um esforço para a pôr de pé; quer dizer que ela não é de forma alguma comparável com a cultura instalada pela classe dominante, porque mal a separem da luta e a queiram avaliar pelas obras, pelas realizações já concluídas, equivalentes às dos outros, traem-na.
France Vernier explica-o perfeitamente: enquanto a classe operária for a classe dominada, os elementos culturais que lhe são inerentes não podem “manifestar-se positivamente” sob a forma de uma“estética antagonista constituída”, mas
sim como “distorção significante das normas em vigor”, uma certa maneira de agir contra, uma força para agircontra...
conhecimentos, de utilizar alguns dos seus métodos e até parte dos seus resultados. Pensamos que a ideologia dominante contém, ao mesmo tempo, mistificações e facetas de
realidade, no setor científico e técnico e igualmente como produção artística, filosófica, literária; que a ideologia dominada não deixa de ter, paralelamente, a sua existência mas,
devido às condições de exploração em que vive e luta a classe operária, não consegue um mesmo tipo, um mesmo grau de elaboração; o real e o mistificante apontam um ao outro — e eis porque é necessária a luta para pesar, vergar, resistir, opor-se; e por isso mesmo a luta se tona possível, pois já dispõe de pontos de apoio. Poristo confirmamos que somos fiéis a Lenin e damos a devida interpretação a esta citação do próprio Lenin a que Os nossos autores recorrem em seu livro: “Cada cultura nacional comporta elementos, mesmo em embrião, de uma
cultura aristocrática e socialista, pois existe em cada nação uma massa laboriosa e explorada cujas condições de vida criam, forçosamente, uma ideologia democrática e socialista. Mas, em cada nação, existe igualmente uma cultura burguesa
e que é também, na maiorparte do tempo, ultra-reacionária e clerical, não apenas num estado elementar, mas sob a forma
de cultura dominante; (não aceitamos) a posição da burguesia que tem todo o interesse em propagar a fé numa cultura nacional sem classes... aproveitamos de cada cultura nacional unicamente os seus elementos democráticos e socialistas,
em contraste com a cultura burguesa, com o nacionalismo burguês de cada nação”. Os nossos autores fazem o seguinte comentário: “Para Lenin, a cultura em vigor sob a forma de produção capitalista é uma cultura de classe, uma cultura burguesa. A tomada do
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poder pelo proletariado não consiste no mero retomar da cultura existente, mas numa transformação radical, destinada a elaborar uma nova cultura, a cultura proletária”. Na realidade, todo o esforço de Lenin se concentra na
recusa do dilema em que o Proletkult o pretendia encerrar: ou optar pela continuação da cultura burguesa ou fundar uma cultura radicalmente diferente. O seu objetivo é o prosseguimento crítico e revolucionário da cultura existente. É isso que a citação anterior já significava e que será de novo proclamado num discurso famoso: “É preciso saber distinguir o que tinha de mau a antiga escola e o que nela havia de útil para nós, e é preciso saber extrair-lhe o que é indispensável ao comunismo... é apenas o perfeito conhecimento da cultura criada durante a evolução da humanidadee a sua transformação que permitirão criar uma cultura proletária... a cultura proletária deve ser o desenvolvimento lógico do somatório de conhecimentos que a humanidade acumulousob o jugo da sociedade capitalista”! Para Baudelot-Establet, ao contrário, a cultura burguesa, que se obstina a recalcara cultura proletária, parece privada de qualquer realidade. Só nela encontram discursos considerados perfeitos e profundos de umaelite que se alimentava de ilusões para fortalecer a sua consciência de classe e consolidar o seu domínio. O que confirma que os nossos dois autores não estão tão longe comoeles imaginavam, como eles esperavam, de Bourdieu-Passeron: para estes, a vida
cultural burguesa na base de mundanidade e de repercussão política; para aqueles, o vazio cultural burguês de base diretamente política — e os burgueses procuram aí menoso prazer de se encontrar no seu meio do que a possibilidade de calar o proletariado.
ESCOLA, CLASSE E LUTA DE CLASSES NI — A escola não é necessariamente inútil
Daí em diante a escola volta a ter um papel, sem nada de comum com o indicado por Baudelot-Establet: levar as crianças da classe operária a assimilar a cultura dominante, ou a desmistificá-la. A escola reencontra um papel, e mesmo que seja a escola capitalista, na medida em que as forças progressistas nela se introduzam, e ajam ativamente — e a história recorda facilmente que as classes dirigentes não pararam de se lamentar da intromissão destas forças progressistas na educação dos filhos dos operários. Teriam elas se comprazido tanto tempo forjando um inimigo imaginário? Devendo a cultura proletária ser considerada muito mais um fermento do que um conhecimento, a luta de classes torna-se possível e necessária no seio da escola; ao passo que Baudelot-Establet visam montar uma máquina de guerra contra a escola, e a escola quase se torna inútil se o objetivo
residir em salvaguardar na sua pureza uma ideologia que só pretende alimentar a si própria. Na realidade, a luta de classes na escola, é o combate prolongado, duro, organizado, uma lenta ascensão preparando a explosão revolucionária, pela qual as crianças proletárias desviam os conhecimentos culturais do sentido que a burguesia dá a eles; o que só é realizável pela união de grande número de alunos, de docen-
tes, de pais e também pela revelação do que já existe de verdade na escola. Não se trata de se satisfazer com resultados já obtidos, ainda menos de imaginar que basta reforçá-los pouco a pouco; são, de fato, lutas decisivas que devem ser conduzidas —
e que seriam, todavia, impossíveis, se não continuassem lutas já existentes. Para evitar que os filhos do proletariado enfrentem disciplinas que para eles seriam insuportáveis, temos de lutar no sentido de que não sejam empurrados para
I Lenin, . no /// Congrês , ro. , de [Union de la Jeunesse Communiste.
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os ciclos de impasse das escolas capitalistas. O que não autoriza a eliminar todo o mundo do ensino.
propaganda burguesa não desiste de perseguir as crianças, mesmo, e principalmente, quando elas abandonam os bancos da escola.
As consegiiências desta discussão são essenciais em relação ao jovem proletário escolarizado. Para BaudelotEstablet qualquer alarido, qualquer contestação na escola, desde que desencadeados pelo PP, ou mesmo pelo SS, por parte dos filhos de operários, assumem imediatamente a dignidade de ações de classe, testemunhos da política proletária. Isto só pode justificar-se em virtude dos pressupostos que acabamos de examinar: ideologia burguesa e ideologia dominada como dois blocos equivalentes e monoliticamente antagônicos; assim, a cada vez que os alunos se opuserem a um deles, ficará provado que optaram pelo outro, que deram primazia ao outro. É o instinto de classe no seu estado puro, perfeito logo à primeira vista; não há necessidade de ser nem limado, nem ordenado; o único risco que corre é o de ser
corrompido pela ideologia burguesa inculcada. Os alunos proletários fazem-me pensar no Vigário Saboiano de Rousseau, bastando que fiquem no apelo que brota da sua consciência, que chamaremos aqui consciência de classe: “Imortal e celeste voz... guia seguro... juiz infalível do bem e do mal” — por exemplo quando ela lhes sugere que protestem ruidosamente contra o que não lhes interessa; e ei-los certos de cumprir assim uma boa ação proletária. Desse modo se compreenderá a admiração incontestável que votam os nossos autores a todas as formas não-escolares e extra-escolares da vida dos alunos proletários, seja lá onde for desde que se sintam no seu meio, unicamente no seu
meio: visto que escapam dos ensinamentos da burguesia, é evidente que estão em contato direto com a verdade. Tentação não-diretivista que vai a ponto de desconhecer os meios indiretos e vagos — da publicidade, dos jornais, das histórias em quadrinhos e da televisão — pelos quais a 334
Se examinarmos mais de perto os exemplos citados por Baudelot-Establet, chegaremos a conclusões bem diferentes. Dizem que os alunos do CET rejeitam o ensino geral porque eles só selecionam os aspectos que mais tarde lhes serão úteis e dão assim provas da sua maturidade rejeitando planos tanto enganadores quanto inúteis. Muito daquilo que Baudelot-Establet afirmam é exato, mas eles falseiam a própria autenticidade dos seus propósitos negando-se a situá-la no contexto geral. Não se trata de acalmar, de suavizar, mas ao contrário, de adaptar as suas
descobertas válidas a perspectiva que tornem a luta válida. Para nós, naquilo que ensina a escola, a escola da burguesia, há uma mistura de conhecimentos reais, de falsidades e de
logros — ao mesmo tempo devido ao que é omitido, reprimido e, como demonstraram os nossos autores, pelos aspectos tão frequentemente irreais do universo evocado. A literatura e a história são os meios de melhorinterpretar, de
melhor combater, apesar de, ao mesmo tempo, os autores responsáveis pelos programas serem aqueles que pregam a resignação ou o regresso a um passado idílico, apesar de a história ensinada favoreceras interpretações conservadoras e chauvinistas, apesar de o sistema servir-se deste ensino geral para eliminar a crianças de origem popular. Rejeitar estes conhecimentos, rotular de ideologia burguesa todo o domínio escolar do literário, do científico e do técnico, é para o proletário, enfraquecer-se perigosamente. Admitir, engolir tudo quanto lhe propõem, é trair a si próprio. Trata-se, pois, de operar uma revisão crítica, uma revalidação crítica da escola.
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Nacitada revisão, os alunos, e especialmente os vindos
do proletariado, têm papel decisivo a desempenhar. Baudelot-Establet conseguiram mostrar a existência de uma relação entre a recusa de tais matérias, de tais formas de disciplina e as posições de classe das crianças proletárias — e não é possível, depois de tê-los lido,atribuir muito simplesmente estas
revoltas à preguiça ou à pobreza de espírito. Mas a oposição àquilo que o ensino apresenta de mistificação é, paralelamente, um apelo a um ensino mais autêntico, só tem sentido revolucionário como apelo a um ensino mais verdadeiro. Por isso os alunos são levados a elaborar a sua recusa, sob pena de cair num desdém indiferenciado por tudo quanto seja cultural. Por conseguinte, parece-nos insensato supor que eles consigam só por si, pelas suas próprias forças, proceder a essa revisão, fiando-se a cada instante na sua opinião, na sua
opção. Contudo, é o que admitem os nossos autores ao aceitar, sem examinar, os seus protestos, as suas posições e as suas oposições tal como eles as vivem dia a dia. É indispensável aos alunos o apoio de umateoria e de uma organização capazes de os esclarecer acerca dos seus próprios sentimentos e de levá-los atingir o sentido das suas respostas. Precisam de uma aliança com os professores progressistas, com os aspectos progressistas da escola. É utópico pensar que a escola capitalista apresentará, e sobretudo aos alunos do CET, umaliteratura e uma história
purificadas das mistificações burguesas: mas não está certo negar tudo que há de real nessa literatura e nessa história, tudo que se pode, mesmo hoje, extrair-lhes de real e que é indispensável para que eles consigam conduzir a sua luta; não é menos falso considerar que os conhecimentos no seu conjunto se colocam, de forma indistinta e análoga,a serviço da classe dominante. E não se pode, então, escapar ao derro-
tismo: aguardando a revolução, renuncia-se à esperança de 336
ESCOLA, CLASSE E LUTA DE CLASSES
realizar algo na escola, abandona-se esse campo de luta que é a escola. O combate na escola não se trava entre o instinto de classe que irromperá armado até aos dentes, da vida dos alunos vindos do povo — e todo o resto, em que professores e matérias ensinadas seriam equivalentemente qualificados de burgueses. O combate implica um duplo movimento: de um lado, o esforço dos professores progressistas a fim de tornar convincentes, visíveis, a utilidade e a realidade do que ensinam; o questionar, portanto, dessa realidade e dessa utilidade e, afinal, um empenho tão profundo quanto possível em penetrar a realidade e a utilidade do que eles ensinam. Eles são,
desde já, suficientemente numerosos e poderosos para avançar com tais tentativas. Baudelot-Establet terão ensinado que eles só o conseguem com o apoio do que constitui o instinto de classe dos alunos proletários. Por outro lado, os alunos têm de apurar o seu sentido do útil e do real; o que exige confrontação com as obras elaboradas, portanto, de difícil acesso; e é então que os professores são necessários para esclarecer e apoiar essa aproximação. Uns e outros têm de se apoiar, em conjunto, na própria classe operária, nas suas teorias e nos seus reagrupamentos — as intervenções e as retransmissões serão asseguradas por organizações sindicais de professores, bem como por organizações de pais e de alunos. Nem uma aceitação admirativa perante a espontaneidade dos alunos, nem uma escola que considere como insignificantes as respostas, as reações dos alunos e queira orientá-los não tendo em conta as suas reações, ou seja, contrariando-as; particularmente neste caso,
pretendo ignorar o que os alunos do povo esperam do ensino, como exigem que ele tome parte nas suas preocupações e nos seus projetos, como se sentem predispostos a revoltar-se contra o que lhes pareça ofender os seus direitos.
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O que se acaba de dizertanto vale para as práticas pedagógicas como para as matérias do ensino. BaudelotEstablet têm razão em afirmar que os atos de vandalismo e de destruição, nas classes de transição, constituem uma res-
posta direta e selvagem ao desprezo de que elas são objeto e não se esquecerá que elas incluem as crianças de origem proletária. Os alunos, portanto, recusam formas disciplinares que os infantilizam e, principalmente, que os repelem. Os autores têm razão em denunciar uma segregação destas classes, que já é nítida nos locais que lhes estão atribuídos, nos gêneros desses locais. Esta resistência é fundamentada, e ao mesmo tempo
constitui uma força sobre a qual qualquer ação pedagógica progressista terá de se apoiar. O que não significa que se
ESCOLA, CLASSE E LUTA DE CLASSES
SEGUNDO TEMA: Questões de linguagem A linguagem vai servir-nos, ao mesmo tempo, de exemplo particular na discussão sobre as ideologias e de transição para o nosso último capítulo. Retomando sobre este tema o que afirmam nas suas interpretações genéricas, Baudelot-Establet explicam muito claramente aquilo que os mantém afastados de BourdieuPasseron: para estes últimos, “as línguas faladas nas diferentes classes sociais afastam-se da norma lingiiística imposta pela escola”. Baudelot-Establet sustentam que existe uma verdadeira oposição entre o discurso falado na classe operária e o francês imposto pela escola.
deve sacralizá-la tal como é, em cada uma das suas manifes-
tações. Todas as organizações progressistas têm de procurar, em comum com os alunos, que modalidades de disciplina podem ser aqui formadoras — e lutar para as impor.
I — As duas linguagens servem uma recíproca incompreensão
Em dados momentos, Baudelot-Establet são, todavia,
Estamos mais uma vez perante dois blocos equivalen-
levados a aceitar que os filhos do proletariado não estão livres de riscos e de erros: “Seja a adesão à ideologia pequenoburguesa, seja, o que é mais grave ainda, uma resistência generalizada a qualquer ideologia. Por pouco reconheceriam eles a existência de oposições à escolaridade que não possuem o mínimo valor revolucionário: não é com uma linguagem indecente ou escatológica, nem com alarido, que o proletariado acabará com a burguesia”. Mas que partido tiram os autores destas observações tão pertinentes? Julgamos não terem ainda dado ensejo a consegiiências — nem poderia ser de outro modo numa at-
tes, contrários um ao outro e, portanto, impermeáveis entre si. De um lado o francês escolar, o bom francês. Do outro, a
mosfera de espontaneísmo, inconciliável com uma aliança
metódica e premeditada que reagrupa as forças progressistas dentro e fora da escola.
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linguagem das classes populares. Oposição total: a língua escolar e as suas normas nada têm a ver com as da língua realmente falada pelas classes exploradas. Entre estas duas práticas lingiúísticas, a única relação existente é a de contradição; a fala da criança proletária difere radicalmente, tanto pela estrutura como pelo significado, do discurso escolar. O contraste não provém do fato de o discurso escolar ser mais complexo, mais requintado do que o das classes populares. Bem longe de corresponder a uma maior penetração, o bom francês não passa de uma língua artificial, convencional. É diferente, porque é o veículo de uma outra ideologia, da outra ideologia.
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Em compensação, não é permitido incluir no léxico escolar termos que permitiriam ao filho de um operário compreender e descrever as condições materiais de existência da sua família. Assim a linguagem da escola impõe, com o uso do francês correto, a expressão das aspirações em conformi-
imposto pela escola é um subproduto construído em benefício de causa”. Invoca-se o testemunho de todos os casos em que ele não está de acordo com o francês efetivamente falado na burguesia.
dade com as exigências da classe dominante; ou dizendo o
Daí o papel da escola, a mistificação fundamental da escola: ela é o local preparado pela burguesia para que o francês escolar e tudo que ele acarreta consiga impor-se reduzindo o outro ao silêncio; a escola tem por função vedar a expressão direta, em relação às crianças do povo, do seu mundo e da sua vida. É em redor desta repressão que se organizam todas as práticas pedagógicas da escola primária, nela a disciplina e a aprendizagem formam um todo. Modalidades desta repressão: a escola põe o ferrete da interdição na expressão falada espontânea, nega-lhe todo o valor, penaliza-a. Isto significa que se corta sistematicamente a palavra a quem a quiser tomar sem se conformar com as leis do texto escrito. Pelo que, a escola acentua o imobilismo destas crianças criando-lhes um sentimento de culpa: se elas
mesmo inversamente, ela recalca, privando-as dos processos de elocução e de redação autorizados, a expressão das condições reais de existência das classes exploradas, e, por conse-
qiiência, as reivindicações daí emergentes. Esta opacidade total entre as duas línguas precipita no insucesso escolar as crianças de origem popular; o discurso escolar não faz sentido para elas, não se reconhecem nele; e,
gradualmente, será todo o universo escolar que lhes parecerá estranho. Desta maneira, como conseguiriam elas utilizar
com prazer (em toda a acepção do termo) uma linguagem que não é a sua, como chegariam a mover-se à vontade num universo que não se comunica com o delas? A adaptação é impossível. Alguns mantêm — e pensamos em Bourdieu-Passeron — que para as crianças da burguesia, o discurso escolar, o bom francês, se situa na continuidade direta dos discursos proferidos e ouvidos no meio familiar de origem, elas não se sentem deslocadas, ao passo que as crianças vindas do povo não se beneficiam de igual conforto. Tal interpretação parece radicalmente insuficiente a Baudelot-Establet, pois deixaria supor que essa feliz harmonia entre a linguagem e determinada categoria de crianças se estabelece porsi, pela força das circunstâncias, a partir da constituição e do funcionamento peculiares à linguagem culta. Na realidade, eles querem dizer-nos que este francês escolar foi montado, inteiramente manipulado, na intenção sempre escondida, mas sempre presente, de ser diferente da linguagem popular e de excluir, dessa forma, os emissários da linguagem popular: “O francês 340
erram, a culpa é delas ou da família. E também uma culpa
deturpada: a repressão por parte da escola da linguagem espontânea e, simultaneamente, da espontaneidade da vida,
forçam as crianças a recalcarem os seus problemas, a viverem-nos como dificuldades familiares, isto é, como um complexo de inferioridade. Em suma, a escola da burguesia
organiza, a partir de uma linguagem que só foi criada para esse fim, uma barreira social: trata-se de domesticar e de
eliminar o mais rapidamente possível as crianças das classes populares. E afirmar que a responsabilidade da escola é total: foi ela que escolheu, minuciosamente afinado, o instrumento
de expressão (ou de silêncio) mais adequado para desorientar
os filhos da classe proletária.
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WH — Os que viram a cara quando um popular abre a boca Devemoscreditar a Baudelot-Establet a importância de terem mostrado que o tipo de linguagem utilizada e o seu emprego, quer nos textos escritos, quer no diálogo escolar, definem com a maior profundidade o papel da escola e a sua fisionomia. E, principalmente, devemos creditar a eles essa valorização da linguagem popular. Talvez um bom meio de lhe medir o alcance seja considerá-la no seu contraste com o desprezo com que os professores mais reacionários desaprovam o que dizem os alunos e acima de todos, os alunos das
classes exploradas. Por exemplo, Raymond Picard explica-nos que o professor não deve perder o seu tempo “ouvindo a tagarelice das crianças que tantas vezes praticam nas aulas o francês incorreto e pobre que escutam em casa... os alunos da escola primária tudo ignoram (da língua francesa) até o mais rudimentar”. Se todos os alunos parecem assim visados, é, contudo,
evidente, que os que ouvem em casa um francês incorreto e pobre estão do mesmo lado da escala social. A linguagem é, seguramente, o fator da rejeição daquilo que os alunos exprimem, produzem; rejeição, finalmente, do que eles são — e para as crianças proletárias isso é o mais brutal. É essencial sublinhar aqui que essa recusa em se levar em consideração a linguagem e, portanto, a experiência dos
ESCOLA, CLASSE E LUTA DE CLASSES
ano”. As idéias da Antiguidade são apresentadas como “sem relação aparente com o atual, o instável, o controverso” — o que será elevado à categoria de serenidade, pretendendo-se ver nisso oportunidade para uma cura de modéstia. E o mínimo que se poderá afirmar é que essa modéstia não combina bem com o espírito reivindicativo. Eis uma pedagogia da qual não se ignora que afastará e impedirá o avanço das crianças do povo com muito mais severidade do que as outras, pois elas estão ligadas ao presente, que representa a seus olhos a família, a luta indispensável para se manterem à superfície. E é precisamente esta pedagogia que vai levar a cabo a distinção, a oposição, entre as duas linguagens, a escolar e a espontânea, a ponto de uma delas passar a ser o latim. Ao mesmo tempo é uma pedagogia, em si, conservadora, visto esforçar-se por manter os alunos no recinto fechado de uma escola fechada sobre si, no artifício de um universo diferente do mundo cotidiano, con-
trastando ponto a ponto com o mundo cotidiano. Este exemplo extremo revela a enorme importância da valorização, por Baudelot-Establet, da linguagem popular — que constitui evidentemente um todo único com a valorização da existência popular. Enfim, afirmamos existir um risco constante da escola
organizar uma repressão propriamente política dando lugar essencial a certos requintes de vocabulário, a sutilezas de frases intermináveis e afetadas; considerando escandaloso
que as crianças falem e escrevam como se fala nas suas ca-
alunos, está diretamente ligada à vontade de escolher como
sas, confundindo geralmente o francês e a ortografia, o fran-
modelos educativos autores e temas sem relação com a vida dos alunos, que se caracterizam precisamente pela circunstância de não oferecerem qualquer relação com a vida dos alunos: quando um Léon Bérard enaltece os estudos gregos e latinos é porque a familiaridade com os antigos “afasta os jovens cérebros das preocupações e das discussões do cotidi-
cês e o bom francês, sem querer levar em consideração o que
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se introduz de vivacidade, de realidade, nos ditos proferidos
por certas crianças — ainda que isso implicasse algumas incorreções. É bem evidente que a interdição de tais temas, de tais termos, os silêncios impostos, os disfarces sugeridos,
estão longe de serem distribuídos ao acaso ou por mera im343
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perícia: o seu resultado consiste em desarmar as crianças da classe operária e tornar-lhes mais difícil uma tomada de consciência autêntica.
os dois, haja intermediários que estabeleçam uma continuidade — e o papel da escola consiste, precisamente, em assegurar esta continuidade que levará a criança da sua linguagem e experiência habitual até à leitura, digamos do Manifesto; e nesse longo itinerário, talvez alguns passem por Maurice Genevoix — sem aí se deterem definitivamente. Para Baudelot-Establet, a luta de classes acaba por se confundir com o tema banal do absurdo na incomunicabilidade.
E, contudo, não aceitamos o conjunto destas análises
que assenta em dois postulados, transposição dos postulados genéricos que havíamos criticado anteriormente, visto que a linguagem constitui um caso particular. O primeiro postulado, que sintetiza de certo modo o primeiro e daqui a pouco o segundo, é que as duas linguagens constituiriam dois blocos incomunicáveis: o francês da escola permite ler Maurice Genevoix mas não um boletim sindical. Pode-se replicar que isso não passa de exagero retórico; de fato, muito mais está em jogo: as duas linguagens formam dois todos separados, porque as duas classes constituem dois adversários sociais — e pretende-se concluir daí que todas as suas características são heterogêneas ou, mais exatamente, opostas termo a termo. Esta transposição mecànica da luta de classes para todos os comportamentos de cada classe está muito longe de convencer. Visto a relação entre as duas classes ser de exploração, quer concluir-se que a relação entre as duas linguagens só pode ser de repressão. A luta de classes parece ter sido introduzida no coração da escola; na realidade, entendemos que os nossos autores a alojaram assim. Não é exato que a luta de classes se jogue, ouantes, não é umaluta de classes que está em jogo, entre os que utilizam a bela linguagem e os outros; para o admitir é necessário, uma vez mais, tirar de jogo as classes médias e os alunos do M2, e é, sobretudo, preciso derrubar todos os
escritores que alinham com a classe dominante, proibindo qualquer distinção entre Victor Hugo, Aragon e Maurras porque todosos três falam bem. Inversamente, é concluir que ler Maurice Genevoix não tem a mínima relação com leitura de um boletim sindical; nem sequer se admite que, entre 344
Quem diz luta, diz possibilidade de avanço e, naturalmente, também de derrota. Neste sentido, nos permitiremos
afirmar que não se luta no universo de Baudelot-Establet, pois toda a sua argumentação tende a apresentar como impossível — e, sobretudo, como inútil — qualquer esforço para introduzir mais realidade no artificial, o voluntário e bur-
guesmente artificial da linguagem escolar e, portanto, dos conteúdos que ela veicula. Até à revolução, nenhuma ação poderia ser conduzida na escola. Voltamos a encontrar o nosso tema fundamental, mas aqui num domínio um tanto mais
preciso e que nos permite abrangê-lo melhor: o que é um risco da escola contra o qual se pode lutar, contra o qual alguns já lutam — e essa luta só se torna real participando no conjunto da luta de classes — transformando em algo de irrevogável que esmaga e condena globalmente o mundo escolar. O segundo postulado consiste na não-existência de superioridade da linguagem escolar, da linguagem burguesa sobre a linguagem espontânea das crianças do povo. Esta afirmação pode explicar-se como reação contra a boa consciência ingênua dos que supõem poder desprezar toda frase desprovida de elegância, de brilho — e, ao mesmo tempo,
quem a pronuncia. Vê-se, contudo, surgir a ameaça desta solução oportunista; não é mais cômodo declarar que todos falam bem, bem de acordo com as suas próprias normas,
com os seus próprios hábitos, do que colaborar nummelhor 345
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domínio da língua? E quem são os que mais urgentemente carecem desse auxílio? E, acima de tudo, sustentaremos que a linguagem escolar-burguesa pode, certamente, satisfazer-se com criações artificiais, sutilezas vãs, cuja função política é agora muito
sua palavra de clichês imprecisos e o seu pensamento do visgo das primeiras aparências. A tarefa de uma escola progressista consistirá em constituir uma linguagem escolar que seja um passo adiante na linguagem dos alunos, que mantenha contato com a linguagem das crianças do povo, mas permitindo-lhes um avanço em direção à linguagem elaborada. Dez passos separam o estilo, o vocabulário do poema que lhes propõem, do que lhes é próprio e o texto só conseguirá atolar ainda
nítida, mas que também dispõe de recursos, de precisão, de
possibilidades de gradação e de sistematização; em suma, uma superioridade que reflete a situação privilegiada de que as classes dominantes se apropriaram — graças à exploração dos outros. A linguagem popular tem valor — valorde interJeição, de acusação, de apóstrofe — mas não escapa a deficiências, a uma fraqueza, a uma pobreza, que é precisamente a dos pobres, ou seja, dos explorados. E essa deficiência não foi provocada pela escola, mas por esse mesmo conjunto de condições de vida e, portanto,
de pensamento, que a nossa luta se propõe a abolir. Por conseguinte, a linguagem escolar perde o seu aspecto abrupto e unilateral na repressão que os nossos autores lhe atribuem; serve, simultaneamente, para iludir a classe
operária e constituir um meio de progresso que lhe é indispensável. Como toda ideologia burguesa, é uma mistura de mistificação e de verdade — e entrelaçamento constante de uma na outra. Porisso há, efetivamente, um papel a ser desempenhado por uma escola progressista, uma luta a ser travada, e que está, neste ponto especial, a serviço da luta de classes; separar por um esforço cotidiano, na linguagem escolare na sua utilização, o que represente uma armadilha que manterá prisioneira a tomada de consciência (os exemplos citados por Baudelot-Establet são, a este respeito, convincentes), em que
certa categoria de crianças continuará prisioneira, e sempre do mesmo lado — e os termos, as expressões, as constru-
ções, que auxiliarão essas mesmas crianças a libertarem a
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mais as crianças em dificuldades, convencê-las da irrealidade
da escola e da sua incapacidade para essa escola. Se os alunos estão prestes a interpretar o poema, ou seja, se no fundo estão prestes a interpretá-lo porque da sua linguagem à deles só vai um passo, e se o professor os ajudar a dá-lo, o escritor os terá auxiliado a sentir e a exprimir-se com mais plenitude do que nas primeiras frases que eles próprios haviam esboçado. A ação das forças progressistas apóia-se em bases reais: a confiança nos filhos dos proletários. O que significa, neste domínio, reconhecer o sentido da linguagem popular e atribuir-lhe um papel, o direito primordial e quase o dever de as crianças do povo utilizarem a sua linguagem e, em particular, não passar em silêncio as expressões que correspondem à situação proletária; é a presença e a pressão da linguagem das crianças do povo que deve impedir a linguagem escolar de se constituir em código hermético, de cair em
requintes fictícios; acabaria por assustar todos que não estão preparados para manejar semelhante linguagem preciosa. A repressão está sempre presente numa sociedade dividida em classes — e também a linguagem serve à repressão. À outra base da ação progressista, o complemento dialético da primeira, é o valor da linguagem culta — e a escola é o local em que a linguagem popular se apura pela impregnação da linguagem culta. É para ultrapassar a sua lingua347
GEORGES SNYDERS
gem que as crianças do povo se servirão dela; aqui como no conjunto da sua existência, as crianças proletárias, sendo as
que estão pior instaladas na sociedade, são as que melhorse situam para denunciar, recusar, e também pressentir a dire-
ção a ser tomada; a sua linguagem merece crédito. Há ainda um imenso esforço a ser feito para elaborar, clarificar, eluci-
dar, e nem o termo mais-valia, nem o de germinação, se introduzem porsi no seu discurso. Ser progressista aqui, é utilizar toda a margem de manobra que a escola deixar (não é exato que esta margem seja, neste momento, insignificante, e de qualquer maneira nós lutaremos para a aumentar) a fim de assegurar o vaivém entre os dois pólos. Depende da coerência organizada dos professores progressistas, depende, igualmente, da pressão dos alunos de origem popular, portanto, do seu número e da sua força, que o contato entre as duas linguagens seja um enriquecimento, seja sentido como tal — e não como uma ameaça. Não desprezar a ortografia, pois é, todavia, um pensamento mais claro, o que distingue entre ou e oi; não menos-
prezar a correção, pois é mesmo assim um pensamento mais elástico o que é sensível à eventualidade e que diz para que tu sejas e não por que tu és; mas não confundir a ortografia e a correção com o interesse e a vivacidade das idéias exprimidas, trata-se, enfim, de uma luta simultaneamente pedagógica e política. Uma escola em que o proletariado não consegue fazer-se ouvir, exprimir as suas exigências como ele as entende e, portanto, antes de tudo, com as palavras que lhe são pró-
prias, não conseguirá fazê-lo progredir. Mas, de forma alguma uma escola que pretendesse negar a superioridade da linguagem culta, da linguagem dos escritores e o fato de ela estar à disposição das crianças sob a forma de linguagem escolar; caso contrário a linguagem das crianças do povo seria considerada perfeita — convidando-as a recusar, em bloco, a he-
rança cultural e o seu veículo: a linguagem. 348
ESCOLA, CLASSE E LUTA DE CLASSES
HI — A contribuição doslingiiistas Este duplo aspecto da linguagem popular, o seu valor contra os burgueses que querem considerá-la como mero déficit, e também as desvantagens que lhe cabem, este duplo aspecto afasta-se pouco a pouco de determinado número de investigações contemporâneas em lingiiística. A linguagem popular encerra um apelo para ser ultrapassada e uma possibilidade para essa ultrapassagem. Sabe-se que, pelo menos numa certa fase dos seus inquéritos, Bernstein tendia a encerrar as classes trabalhadoras num código lingiiístico restrito e a reservaràs classes médias e superiores o código elaborado. As classes trabalhadoras não conseguiam ter acesso à expressão de um mundo ordenado, onde os acontecimentos estão integrados num sistema
de relações de um mundo concebido em função de um futuro e dando ensejo a um projeto a longo prazo. O código restrito está condenado a descrever o que é imediato, a constatar o que é, sem poder nem demonstrá-lo nem tirar conclusões, a
anotar estados sem poder encadeá-los num processo. Sob uma forma precisamente muito elaborada, equivalia, de fato, a reconhecer as opiniões burguesas que desvalorizam a existência operária e a sua linguagem, que só retêm os aspectos que podem depreciar a existência operária. Ora, Lawton retomou as mesmas experiências, não na perspectiva de uma constatação do que é dado, mas de uma pedagogia preocupada em criar situações múltiplas e enriquecedoras. Estabeleceu que as crianças das classes trabalhadoras são totalmente capazes de utilizar o código elaborado, com a condição de que o tipo de perguntas postas, o gênero de exercícios propostose, sobretudo, o contexto das provas as convidem a isso. Não há, pois, qualquer ruptura, heterogeneidade entre as duas línguas — e, portanto, inferioridade de uma em relação à outra.
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ESCOLA, CLASSE E LUTA DE CLASSES
Contudo, Lawton mostra que as crianças do povo de início não adotam espontaneamente o código elaborado como fazem os favorecidos: é indispensável uma incitação por parte do pedagogo; depois, e principalmente, experimentam uma dificuldade especial: sendo ao mesmo tempo o trabalho destinado a todos e utilizado por todos, as crianças do povo
crianças sejam constrangidas a normas ideais do alto das quais seriam avaliadas — sendo a sua linguagem declarada má linguagem. Vale a pena deixar que comecem porseinsta-
ou devolvem os trabalhos mais abreviadamente ou, se não se
resignam a essa brevidade, correm o risco de cair nas pequenas frases de simples constatação, de pura descrição, e desajeitadamente justapostas. Por outras palavras, para manter a qualidade, as crian-
ças das classes trabalhadoras vêem-se forçadas a reduzir a quantidade — e isso tanto mais quanto a questão posta se afaste da experiência (“Explica como se joga a bola ou o que você faz na escola”) para enveredar pela abstração (“Como será a sua vida dentro de dez anos; por que é preciso frequentar a escola?”). A linguagem das crianças do povo alcança o código elaborado, mas para elas o não-verbal, gestos, mímicas e de
maneira geral, a ação, desempenham um papel muito mais importante do que no meio favorecido. E é por isso que a sua linguagem mantém uma relação privilegiada, mais direta, mais imediata, com o código restrito, isto é, com as condutas
lar ao nível real da sua expressão, sem que lhes seja imposto
um idioma. E, contudo, essa linguagem acabaria por travar a transmissão da vivência, o requinte e a explicação da vivência, pois sente certa dificuldade de abertura às conseqiiências lógicas remotas, ao que se distancia em relação ao expressamente transmitido pela experiência presente. É, pois, legítimo e necessário que o pedagogo facilite a todos os alunos o acesso à linguagem elaborada; ele o conseguirá, não devido a
meros processos retóricos, mas fazendo-os viver situações pedagógicas cada vez mais complexas e ricas (inquéritos, discussões) em que eles experimentarão a necessidade de estruturas cognitivas e de modos de comunicação capazes de ultrapassar as primeiras impressões. Semelhante esforço é possível porque a linguagem popular possui o seu valor, a sua riqueza específica — e ela não está separada por um abismo da linguagem dos escritores. Segundo a feliz expressão de Lawton, trata-se de uma “ex-
tensão” e não de uma “conversão”. O estudo efetuado por Laurence Lentin, a propósito de uma criança de 3-4 anos, uma dessas crianças rotuladas de socialmente desfavorecidas, pareceu-nos muito característi-
em que o indivíduo é guiado mais pela corrente afetiva, pelos desejos, pela satisfação imediata dos desejos, do que pela objetividade do conhecimento. E, sobretudo, as crianças do povo sentem muito mais dificuldade do que as outras em passar de um código para outro. De onde tiramos uma dupla conclusão: é essencial manter coesão entre esta linguagem e esta experiência, simultaneamente a vivacidade da experiência e os seus conteúdos específicos, como, por exemplo, pelo valor de palavras como trabalho, desemprego, ritmos; isto evitará que estas
co. De fato, a autora preocupa-se, sobretudo, com a valorização da inteligência e das atitudes deste menino. Tanto para ele como para um adulto: “O indivíduo que não domina facilmente uma linguagem elaborada não é necessariamente incapaz de qualquer pensamento abstrato, de qualquer discernimento lógico a alto nível”. Verbaliza extremamente pouco, e, contudo, exerce “uma atividade mental que ultrapassa os comportamentos sensório-motores”; brinca de ma-
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neira coerente, tem excelente memória. Deste modo ela
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sente-se autorizada a recusar a noção de avanço ouatraso (da linguagem) em relação a uma fase e quer que cada linguagem seja considerada como sistema que possui as suas próprias modalidades de funcionamento. Nós respiramos a atmosfera de Baudelot-Establet, ou seja, uma espécie de teimosia em negar que os privilégios de que gozam os socialmente privilegiados sejam reais. A incapacidade para a linguagem, que é, evidentemente, um dos traços mais marcantes das crianças proletárias, diria respeito, simplesmente,
Últimareflexão acerca destes problemas da linguagem: no conjunto, as crianças oriundas do povo estão mais à vontade nos trabalhos orais do que nos escritos. É, pois, fundamental, que a escola não conceda à escrita uma preponderância, até quase uma exclusividade, reservando antes,
largo espaço a exposições, a discussões — o que, aliás, conduz diretamente a problemas de efetivos por classe: um grupo numeroso pode escrever ao mesmo tempo, mas não podem falar todos ao mesmo tempo —minimizar o tempo
a um setor particular entre outros e não acarretaria conse-
concedido à parte oral poderá ser, e é, efetivamente, uma
quências ao desenvolvimento global da personalidade.
arma dirigida contra as crianças da classe operária. Isso não impede que a passagem para a linguagem escrita represente um progresso. Afirma muito acertadamente Vigotski: “Mesmo o desenvolvimento mínimo da linguagem escrita requer um alto nível de abstração: a criança deve Jibertar-se dos aspectos sensoriais da palavra e substituir as próprias palavras pela sua imagem”. Martinet analisa com sutileza a diferença entre as duas
Mas, parece-nos que a materialidade dos fatos, tão
notavelmente observados e entendidos, introduz — sem dúvida, contra as intenções da autora — uma segunda perspectiva: a pobreza da linguagem, devido a um meio social tão explorado e aos hábitos de vida que lhe são impostos, acabará, igualmente, por constituir um obstáculo; e não é só na
escola que a criança corre o risco de esbarrarnele. Daí a justaposição, não diremos contraditória, mas de forma divergente, de dois tipos de enunciados: uns do gênero: “O desenvolvimento da linguagem da criança reflete o meio sócio-cultural em que ela cresce; não se trata de uma diferença de inteligência”; outros, do tipo: “Dada a natureza dialética das relações que unem o desenvolvimento da linguagem e o desenvolvimento do pensamento pode recear-se quanto à evolução dessa criança as maiores dificuldades no plano cognitivo”. Não propomos nenhuma solução milagrosa que reduza esta divergência; entendemos que é indispensável reconhecê-la de maneira explícita afirmando, simultaneamente, a validade da
experiência de vida das classes proletárias e a desvantagem que pesa sobre elas, devido precisamente à sua proletarização — e será esse o objeto do nosso último capítulo.
situações: na oral, podem-se utilizar rodeios elípticos, alusi-
vos, por exemplo a utilização de certos pronomes sem ser necessário precisá-los; intervêm gestos e entonações, e, por
outro lado, confia-se numa situação global onde quem fala vive de acordo com os seus interlocutores. Quando se recorre à linguagem escrita, não se pode prever em que condições se encontrará o destinatário no momento em que tiver de decifrar a mensagem; já não se pode aludir a uma realidade comum; ela terá de ser reconstituída a partir das palavras e só à força delas. Daí as exigências de clareza e de precisão — difíceis, mas frutuosas. Martinet convida-nos a refletir acerca do esforço que o aluno terá de dispensar para identificar um com o outro, “o sintagma /izem/ que pronuncia desde que sabe falar e o grafismo ils aiment”. Mas este esforço é salutar, adquire rigor, desejo
de generalidade e de permanência. 352
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Queremos ainda destacar o valor da linguagem espontânea da criança do povo — principalmente a linguagem oral — e, portanto, a necessidade de lhe garantir um lugar, um lugar permanente na pedagogia; mas também os limites desta linguagem, que são, apesar de tudo, os limites de um certo modo de vida, a vida dos explorados — e, portanto, a necessidade de levar estas crianças, precisamente estas, o mais longe possível no domínio da língua escrita. Esta passagem de uma para a outra pode, sem sombra de dúvida, servir de meio para precipitar as crianças do povo em dificuldades inextricáveis: isso se constatará sempre que o afastamento entre a sua língua falada e a língua escrita for excessivo, a ponto de esta última se tornar uma espécie de língua estrangeira. Mas isso de forma alguma representa uma
Pelo contrário, o processo de escrita, por ser mais lento e por
fatalidade pedagógica, trata-se, pelo contrário, de uma per-
versão pedagógica, e, evidentemente, política, de uma situação que, por si mesma, proporciona a base favorável a uma ação educativa. É, sem dúvida, possível, a educadores pro-
gressistas, auxiliar a criança a passar da sua linguagem falada à sua linguagem escrita, isto é, uma escrita que começou a elaborar a espontaneidade da conversa sem interromper o contato com ela; depois à linguagem escrita no seu conjunto. Contrariamente ao que se afirma com tanta freqiiência, não é de forma alguma constitutivo da língua escrita formar uma outra língua, ser especificamente diferente da língua oral. Beaudichon e Strock mostraram, perfeitamente, que durante muito tempo a linguagem escrita da criança é, na realidade, uma linguagem falada: ela profere em voz mais ou menosalta o que está prestes a escrever. Dos 7 aos 9 anos, a criança exprime-se de maneira mais fluente e variada por escrito do que oralmente. O que estes dois psicólogos explicam assim: “Na linguagem oral, a sucessão temporal de palavras é dificilmente perceptível e, portanto, a criança encontra dificuldade em dominar o conjunto do seu discurso. 354
implicar uma materialização, um traço visível, permite-lhe organizar melhor o que tem para dizer”. Por conseguinte, é possível e necessário manter, nas crianças do povo, a vivacidade, a vivência da linguagem oral — e auxiliá-las a aceder ao nível da linguagem escrita. Terminamos com dois exemplos muito simples: na linguagem mais imediata, podre qualifica indistintamente o que é desagradável, porco, degradado, mau, ruim — seja o objeto em questão um lugar ou um rosto. E cretino significa, na medida das circunstâncias, desajeitado, besta, mentiroso, hipócrita, falso, injusto, desonesto, violento, enfadonho, estúpido. A
fala popular espontânea possui um notável vigor de expressão, mas está também marcada por uma grande imprecisão, cada palavra abrange uma multiplicidade confusa de sentidos e de indicações. A criança consegue, pois, um progresso real ao aprender a servir-se de termos em relação aos quais não se deve apenas afirmar que são mais polidos, mais civilizados, mas sim, que conotam tonalidade e exatidão. A passagem para a língua culta, erudita, não é simplesmente um artifício escolar
e político — apesar de ameaçar constantemente vir a sê-lo se os docentes progressistas deixarem de se opor ao movimento natural da sociedade capitalista.
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CAPÍTULO VI DUPLO ROSTO DAS CRIANÇAS DO PROLETARIADO
A partir deste caso particular que constitui a linguagem, talvez nos seja permitido pôr o problema em toda a sua vastidão. A burguesia se satisfaz vendo no povo, e especial- . mente nas crianças de origem popular, unicamente o que vai considerar como falta, insuficiência — até desvio, sendo a
criança burguesa transformada, muito naturalmente, em exemplo; todas as diferenças são interpretadas como outras tantas inferioridades.
Contra isso temos a impressão, ao ler BaudelotEstablet, de que as crianças do proletariado detêm, e unicamente porque existem, pela sua existência imediata, a realidade da linguagem — bem como a posse da cultura, o senso da exploração comoa justa orientação da luta a travar contra ela. Que papel resta à escola desempenhar? Ela é, de parte a parte, repressão de condutas, já completamente adequadas e que só esperam manifestar-se, que bastaria deixar que o fizessem — o que aconteceria mal as crianças abandonassem a escola e voltassem ao seu meio.
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PRIMEIRO TEMA:
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Afinal de contas, a autora vai reduzir-nos a esta alterna-
Os que vêem apenasnosfilhos da
classe proletária, a positividade Baudelot-Establet estão longe de ser os únicos a apresentar assim a infância proletária. A Senhora Lurçat, por exemplo, não consente que a propósito das crianças do proletariado se fale de privações, carências, desvantagens — em particular de desvantagens sócio-culturais — que as considerem em desvantagem, desfavorecidas, culturalmente desfavorecidas. Os termos, e, principalmente, as idéias, de
desenvolvimento insuficiente, de carência na aprendizagem e, principalmente, as da linguagem, devem ser banidos. Se estas crianças reagem pior às experiências de testes e também a tantos exercícios escolares, é só porque lhes repugnam as tarefas gratuitas, formais, privadas de motivação prática. Para apresentar desta forma a criança da classe operária, isenta de qualquer deficiência, fugindo a qualquer deficiência, a Senhora Lurçat vai apresentá-la como distinta da criança burguesa, sem que seja possível uma comparação, pois trata-se de dois modos de realização heterogêneos. A criança da classe operária não deve ser considerada como uma criança burguesa inacabada, incompleta, com fraco êxito; deve dizer-se que ela é diferente, que representa outra
forma de equilíbrio e de coerência. No fundo, o operário adulto será evocado como diferente, quase se ousaria dizer,
em-natureza, do adulto burguês. A Senhora Luçart proíbe que seja interpretado como uma imperfeição, o fato de o filho do operário se prestar mais à ação, ao que é imediato, e se sentir pouco à vontade falando ou diante de perspectivas teóricas. Está pronta a considerar que ele é que está prestes a restabelecer a verdadeira hierarquia de valores, falseada pelo domínio burguês.
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tiva: ou só existe “um modelo único... um protótipo da espécie humana, a criança burguesa; e o melhor serviço a ser prestado à criança proletária consistirá em transformá-la em criança burguesa”; ou existe uma pluralidade de modelos entre os quais não se pode, nem deve, estabelecer confronto.
É, ao que nos leva, a noção de diferenças específicas que desempenha aqui um papel central. Explicaremos um pouco mais aprofundadamente porque recusamos esta espécie de racismo, mesmo inverso, que divide a nossa sociedade em espécies diferentes entre as quais seria impossível manter comunicação. Combessie, num artigo célebre e de elevada qualidade,
“acusa de etnocentrismo de classes os que falam de deficiência a propósito das crianças do povo; segundo ele, é apresentar a classe média como protótipo que serviria de modelo a todas as classes; é apresentar a cultura das classes médias como termo absoluto, definitivo, evidentemente válido e
fundado: “os outros só existiriam porque careciam de... grau zero destes valores, e a raiar o absurdo”. Dão-se ao conforto
moral de reduzir o que os outros fazem a uma série mais ou menos incoerente de erros; proíbem-lhes interpretar a cultura na sua especificidade e nas suas características positivas. E a partir disso a educação consistiria em introduzir no seu seio, como protetores benévolos, os valores de que necessitam. Atitudes que oscilam entre o paternalismo e a colonização. Um exemplo característico: os inquéritos sociológicos mostram, sem dificuldade, que os pais da classe operária aplicam com mais fregiiência castigos corporais quando as consegiências da falta lhes parece grave, e castigam em função das consegiiências imediatas do ato; procuram, antes de mais nada, garantir a obediência e a manutenção da ordem; os pais da classe média preferem apelar para os sentimentos, lançam a ameaça de privação afetiva, ao mesmo tempo que 359
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procuram interpretar a intenção da criança e agem de acordo com essa suposta intenção.
não se correrá o risco de justificar o fato de os pequenos proletários ocuparem os últimos lugares, elevados por artes mágicas à categoria de lugares proletários”? Num estudo cujo interesse é inegável, Burguiêre e Seydoux afirmam que as crianças assinaladas, pela professora, no grande setor da escola infantil, como tendo problemas de adaptação, são, com mais fregiiência, filhos de operários e de pessoal doméstico do que crianças da burguesia. A explicação que os autores dão, é a de que existe uma identidade, ou pelo menos uma aproximação, entre as normas culturais da escola e as de certos meios que utilizam a escola. São favorecidas as crianças já familiarizadas com estas normas — isto é, os meninos-família. Por isso, foi a escola que escolheu entre os modelos possíveis, uma escolha aparentemente arbitrária, na realidade política, e destinada a conservar o domínio das classes dominantes. A fim de que nada venha a embaçar-lhe a pureza, negam-se a admitir que os filhos dos operários são freqientemente assinalados porque o modo de vida a que estão submetidos lhes tornou mais difícil alcançar o domínio de si próprios e a harmonia dos seus impulsos. Na verdade, Burguiêre e Seydoux dizem, no começo do seu estudo, que as causas devem ser procuradas tanto dentro das classes sociais como no aparelho escolar. Mas à medida que o artigo avança, mais a responsabilidade se centra, de fato, no aparelho escolar: “Não haverá na própria forma das normas culturais valorizadas pela escola uma determinada maneira de favorecer mais determinadas crianças do que outras”? Enfim, Eric Plaisance e Olga Baudelot, ao estudarem as dificuldades escolares das crianças da classe operária, dão a impressão global de hesitar entre duas hipóteses: será que
Para explicar estas duas maneiras de intervir, o autor
leva em consideração os valores populares como tais; reconhece que os pais operários passam a vida a manipular as coisas, e não as idéias ou as palavras; que estão submetidos a tarefas padronizadas e a um controle apertado, que não levam em consideração as intenções, mas apenas o resultado atingido. Depreende-se, assim, que as suas práticas educativas são absolutamente coerentes com as suas condições de vida, como nas classes médias as práticas educativas diferen-
tes correspondem a condições de vida diversas. O autor nega-se a formular um juízo de valor para comparar estas duas maneiras de proceder; nega-se a classificar as atitudes educativas como mais ou menos fundadas, mais ou menos favoráveis ao desabrochar da criança. Mas, ao mesmo tempo, transmite-nos a sensação de que nada de negativo se introduz na situação da criança proletária quando a exigiiidade da habitação, o excesso de trabalho dos pais etc., os fazem utilizar uma disciplina repressiva. Não se cor-
rerá o risco de concluir que não há urgência em modificar este estado de coisas? De maneira análoga, Combessie recusa interpretar o desinteresse pela escola e pela promoção que ela anuncia como preguiça ou apatia, que a burguesia denuncia virtuosamente em tantas crianças proletárias; ele vê nisso um comportamento completamente adequado aos que sentem muitíssimo bem e que, de qualquer maneira, não terão da escola essa promoção; e os sermões são irrisórios, pela sua irrealidade. E aqui nos convidam a compreender, na sua especificidade, a conduta destas crianças, e a descobrir-lhes a coerên-
cia; para que não a qualifiquem de inferior, será dito que ela consegue um equilíbrio, que diverge, simplesmente, do das crianças burguesas. Mas, malgrado as intenções do autor,
— ou será o aparelho escolar que aciona desde o princípio,
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as crianças esbarram com problemas, com obstáculos reais
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na escola infantil, mecanismos de rejeição em relação a alunos de certas categorias? Por isso, os nossos autores nos deixam numa espécie
importante pôr em discussão as normas da escola, e dessa forma, em consideração, as normas do proletariado, o que exige que não o reduzam a um conjunto de frustrados.
de ambigiiidade e sugerem, simplesmente, que nos interro-
Ficamos diante da noção, tão confusa, de desvantagens
guemos sobre as continuidades ou, ao contrário, sobre as
sociais ou sócio-culturais. Compreendemos que ela se arrisca a remeter-nos para um plano de fundo patológico e que se assimilem confusamente essas famosas desvantagens em simultaneidade com perturbações individuais, e com algo que evoque privações de ordem motora ou sensorial; e então, seria cada indivíduo da classe operária potencialmente um transviado. Pode ser este um pretexto para transferir para
discordâncias entre as normas culturais escolares e as normas culturais das diferentes classes sociais. Com muito mais reserva se recusa sempre a idéia de que à situação explorada da classe operária se reflete em determinado número de elementos negativos no tipo de vida e de escolaridade destas crianças. Estas interpretações parecem-nos importantes de um triplo ponto de vista: primeiro, constituem uma relação, sem dúvida alguma indispensável, contra a opinião tão divulgada que apenas vê nas crianças das classes desfavorecidas o déficit do seu desenvolvimento intelectual, não só em rela-
ção à escola, mas a toda a sua vida; e as qualidades, os recursos, as possibilidades que encerram são silenciados. As crianças do proletariado só seriam caracterizadas por deficiências. Portanto, mesmo que se pretenda ser democrata, como ajudá-las a progredir, em que força confiar para pro-
vocar o seu progresso? Depois, estas interpretações, forçam-nos a uma descentralização em relação às regras culturais e escolares estabelecidas, a pormos o problema dos caracteres singulares inerentes a outras formas de viver, e, em primeiro lugar, às
do proletariado. Somos assim levados a romper com a confiança ingênua na infalibilidade dos valores burgueses e com a convicção de que eles se destinam a ser, identicamente, valores de todos; os critérios da escola deixam de se impor como
absolutos. Percebemos, então, que, na medida em que nos deixamos conduzir, os valores contidos no comportamento popular tendem a ser considerados como nulos e não como acessos ao poder — e isso no interior da escola. Torna-se 362
estruturas mais ou menos médicas, em qualquer caso, segre-
gativas, crianças que a escola tem de tomara cargo; isto pode ser para a escola um meio de fugir a um novo analisar da questão: será que todas estas crianças fracassam por serem como que atingidas por uma doença — e, se é permitido dizê-lo, por um antidote? Mas, devemos insistir nos perigos que tais interpretações contêm. Comecemos por dizer que se pode evitar o ponto de vista patológico da desvantagem mantendo sempre presente no espírito — e na ação — a conexão desvantagem/condição de vida das classes exploradas. Como seus adversários, os autores, que acabamos de evocar, só concebem um único mo-
do de desvantagem, a do tipo da deficiência fisiológica, uma espécie de falha biológica desses famosos méritos pessoais — e têm razão em recusá-los. Deixam de debater desvantagens bem mais complexas, sem qualquer correspondência no domínio dos déficits sensoriais, quando elementos negativos extrínsecos vêm bloquear uma riqueza potencial; e é o que tentaremos analisar um pouco mais adiante. Mas, sobretudo, eles arriscam-se a travar, e sem dúvida
alguma contra o seu desejo, a indispensável ação transformadora: primeiramente, se a classe operária não for atingida 363
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por desvantagens fundamentais, a responsabilidade total dos insucessos escolares destas crianças cabe à escola — e a es-
so; cada uma seria encerrada na sua forma de cultura podendo, perfeitamente, contentar-se com isso.
cola mostra-se tão viciada, visto ter organizado meticulosa-
mente essa acumulação de derrotas, que é impossível proceder no seu âmbito a qualquer ação renovadora. Em segundo lugar, lendo os autores citados, tem-se a impressão de que a principal, por assim dizer, quase a única, coisa a ser mudada na nossa sociedade, seria a escola e as exigências por ela impostas. Quanto à situação objetiva das crianças do
Por vezes chegamos a temer que quem assim tenta conferir uma espécie de estatuto particular às crianças do proletariado a fim de as proteger de qualquer avaliação, de qualquer comparação depreciativa, acabe por alinhar, efetivamente, com os seus adversários, com aqueles que identificam proletariado e déficit, que julgam esse déficit definitivo e enaltecem, à maneira de Vermot-Gauchy, os ciclos de carreira escolar
proletariado, não nos convidam de modo algum a modificá-
diferenciados: o mesmo imobilismo, e, principalmente, em
la, pois declaram não haver qualquer certeza de que estas crianças enfrentam, realmente, na sua evolução global, dificuldades mais graves do que as crianças de outros meios. Dizer que essas crianças proletárias são diferentes das crianças burguesas, das crianças que triunfam na escola, mas que no seu gênero são tão realizadas, tão perfeitas como elas, faz com que se perca a vontade de as ajudar a progredir — é correr o risco de as encerrar, pacífica e gloriosamente, nas suas dificuldades. E isto acabará criando observadores curiosos, que olham as crianças do proletariado vendo nelas uma espécie distinta com as suas particularidades próprias, acabará criando atitudes típicas do naturalismo — feliz por existirem muitas espécies diferentes e ansioso por as mantertal e qual. Combessie tem razão ao afirmar que o comportamento desinteressado destas crianças, está adaptado à sua situação, à sua situação de impasse. Mas, acrescentaremos que ele só está adaptado ao impasse da sua situação. E, portanto, a sua especificidade deve servir de ponto de partida a uma vontade de transformação — e não para uma mera contemplação das diferenças, como se elas constituíssem um elemento inultrapassável ou satisfatório. É mais fácil, mais lisonjeiro, mais glorioso, negar as desvantagens das crianças da classe operária do que tentar remediá-las. Mas é, na realidade, bloqueálas no estado em que se encontram, impedir-lhes o progres-
relação à escola, às ações a serem empreendidas na escola.
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Uns consideram a luta de classes como irrisória, pois negam
ao proletariado a força organizada e a exatidão de pensamentos necessários à condução dessa luta; quanto aos outros, de
Baudelot-Establet a Olga Baudelot, não podemos fugir à inquietação de que essa luta pareça estranhamente inútil. SEGUNDO TEMA: Descobrir o duplo rosto do próprio proletariado Para se sair deste impasse, para descobrir o duplo rosto das crianças do proletariado e deixar de as imaginar na sua riqueza idílica ou de as reduzir unicamente em proporção com as suas desvantagens, parece-nos indispensável descobrir o duplo rosto do proletariado adulto — e pedimos desculpas por algumas citações marxistas. Por um lado, o proletariado é rebaixado ao nível do
animal de carga; a concorrência faz dele uma coisa e uma mercadoria. O Capital dirá que “pelo jogo de leis imanentes da produção capitalista”, aumentam não apenas “a exploração”, mas igualmente “a miséria, a opressão, a escravatura” e
Marx não receará acrescentar “a degradação”. Para caracterizar esse proletariado, que acaba de realizar a maior revolução da história, Lenin empregará os termos 365
GEORGES SNYDERS
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“ignorância, falta de cultura, barbárie e embrutecimento”. Mesmo na URSS, e com mais forte razão nos países capita-
que uma promessa e, por assim dizer, uma fuga para um mundo diferente, uma antecipação. O que não impede que, no plano histórico, seja o lado mau, no feudalismo os servos e o proletariado no capitalismo, que provoca o movimento, determina a luta e acaba der-
listas, “o proletariado ainda está retalhado, humilhado, cor-
rompido”. E, contudo, precisamente por isso, o proletariado assume a missão real de revolver as suas condições de vida. Não a deterioração por um lado e pelo outro a tarefa revolucionária, é a própria deterioração o motor da tarefa revolucionária — e a tarefa revolucionária procura-se e realiza-se nesse mesmo fundo de deterioração. Se o proletariado está na posse de um papel histórico, é precisamente porse encontrar numa miséria que ele nem pode evitar, nem dissimular. É a desumanidade à que se vê reduzido, tanto na sua vida
como no seu pensamento, que o constrange a revoltar-se. Resumindo, no proletariado o homem perdeu-se a si mesmo — € é esse próprio proletariado que age para que todos os homens, finalmente, se reencontrem. Por analogia com a cultura, Gramsci trouxe à luz esta
extraordinária ambigiiidade: os proletários “têm ainda a concepção do mundo de Ptolomeu; a sua concepção do mundo ainda se encontra no estado fragmentário e ingênuo”, e, to-
davia, “alcançaram um grande avanço do ponto de vista da função econômica e política”. É que “o desenvolvimento industrial determinou nas massas um certo grau de autonomia espiritual e um certo espírito de iniciativa histórica”. Sem dúvida, já se podem distinguir, mesmo na sociedade capitalista, alguns momentos de realização conseguidos pelo proletariado — particularmente pela sua vanguarda: “Quando os operários socialistas franceses se encontram reunidos, a fraternidade humana não é para eles uma frase vazia, mas uma verdade; e a nobreza da humanidade brilha
nos seus rostos endurecidos pelo trabalho”. Marx dirá mesmo: “Hoje tem-se a impressão que é ainda entre os proletários que a individualidade mais se desenvolve”. Isto é como
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rubando a sociedade antiga. É, simultaneamente, falar do papel do lado mau e ele continuar, todavia, o lado mau, ex-
plorado e, portanto, fatalmente degradado. Não se imaginarão, portanto, de nenhum modo, os pro-
letários como puros, preservados: o proletariado representa a mesma alienação humana da classe dominante. O seu papel revolucionário não é uma plenitude já possuída, não é do tipo triunfal da realização: é uma exigência que significa o lado inverso — ou, de preferência, o direito — da sua humilhação. A classe dominante consegue satisfazer-se, mais ou
menos, com a aparência de uma existência humana, torna-se resignada, vegeta na melancolia e no tédio, num mundo de
falsas aparências e de sombras. O proletariado é diretamente constrangido a revoltar-se, a matar as suas ilusões, num certo
sentido pela força que possui, mas, principalmente, porque está aniquilado, impotente; e a sua força, é o fato de viver dia
após dia, de ser forçado a viver a sua impotência. E é isso o que cria o papel do Partido da classe operária, unidade dialética destes dois componentes; o proletariado degradado, o proletariado gerando uma sociedade reconciliada. Um partido constituído, estruturado no seu pensamento e na sua organização, é indispensável; num primeiro sentido,
a sua ação implica o próprio real, limita-se a prolongar os fenômenosreais e a encaminhá-los para a sua conclusão; é o
próprio mecanismo da produção capitalista que aumenta a resistência da classe operária, a torna cada vez mais discipli-
nada, unida e organizada. É na sociedade capitalista que se
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encontra a força capaz de varrer o velho e de criar o novoe é esta força que é preciso educar e organizar para a luta.
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TERCEIRO TEMA: Voltando às crianças do proletariado
Mas como estas forças são, se é permitido afirmá-lo,
forças incompetentes, só atingirão uma existência eficaz na medida em que souberem educar-se, ordenar-se para a luta. Não é, pois, absolutamente nada contraditório, afirmar que é a classe operária que suscita o futuro — e que só na medida em que os trabalhadores se constituam sindical e politica-
Se nos é dado transpor, traduzir, diremos que as crianças do proletariado são terríveis desordeiros em miniatura, incapazes de apresentar um ditado sem uma profusão de er-
mente se tornarão capazes de executar um projeto a longo prazo, coerente, de confiança. E isso pela ação de uma van-
dância dos particípios, estão impedindo a causa revolucioná-
guarda em que os trabalhadores reconheçam o que há neles de mais positivo e de uma teoria que prolongueas suas perspectivas muito além do que cada um deles conseguiria ver. Esta conexão do Partido com a classe operária, com as massas, exprimiu-a Brecht de forma surpreendente: “O que é o Partido? Mostra-nos o caminho que devemos seguir e o seguiremos. Mas não sigas sem nós o bom caminho: Sem nós ele é O pior dos caminhos”. Compete ao partido desembaraçar o caminho, abri-lo; porém, se não mantiver com as massas as mais íntimas relações, se as massas, num dado momento, não enveredarem por essa via, ou, se por ela enveredarem, mas não reconhece-
rem que seja esse, exatamente, o caminho justo e que lhes é necessário para avançar, é porque nessa altura era outra a via de que precisavam; não era a via apropriada ao momento. Esta síntese contínua de uma instância exterior e de uma ratificação, de uma aprovação interior, de um reconsiderar pelos interessados, é para nós a definição da pedagogia — a pedagogia de que o proletariado nos dá o exemplo com a sua formação revolucionária.
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ros, fruto tanto da sua ignorância como da sua desatenção. Quando destroem o material ou se recusam a fazer a concorria de avançar, e dão testemunho, retomando o termo de Marx, da sua degradação. E, contudo, indissoluvelmente, a
sua conduta comporta uma validade essencial: é o repúdio de uma escola selecionista que os despreza e toma todas as precauções para lhes barrar o caminho; é o repúdio de uma cultura penetrada por um espírito de classe e que, obstinadamente, disfarça a sua existência, o papel do proletariado. Se tomássemos a sério esta dupla afirmação, não consideraríamos as crianças do proletariado, nem como depositárias de uma nova cultura, já em boa e devida forma, nem como em desvantagem, como desfavorecidas, em relação às
quais teria de ser prestada uma assistência benévola. E é, finalmente, a partir desta duplicidade, que podemos antever o papel da escola e a função da escola progressista. Parece-nos indispensável começar mostrando certas desvantagens indiscutíveis que atingem as crianças do proletariado, ao mesmo tempo, para sublinharmos as suas lamen-
táveis repercussões e proclamarmos que não foi a escola a suscitá-las. Acabamos de evocar um determinado número de autores que querem negar a realidade das desvantagens que se abatem sobre a classe operária e interpretá-las comocriações artificiais, completamente montadas pela escola e pela cultura dominantes; perante isso resta-nos recordar as marcas
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que a exploração capitalista imprime às suas vítimas — e é essa a liça principal da luta de classes. Por exemplo, a taxa de mortalidade infantil dos recémnascidos é tanto mais elevada quando mais incidir sobre as classes mais duramente exploradas. Por cada 1.000 nascidos vivos, morrem no decorrer do primeiro ano: entre os operários qualificados, 42; entre os operários sem qualificação especial, 61; no outro extremo, entre as profissões liberais, 19. Basta, em relação aos mais explorados, que a mãe trabalhe, portanto, que entre para o lar um segundo salário, para esta mortalidade infantil diminuir, porque o nível de vida passa a ser menosaleatório.
Conclui-se que a saúde é mais delicada nas crianças das classes populares; em particular, as doenças leves são mais numerosas, sendo por isso o absentismo escolar frequente. É fácil compreender o papel aqui desempenhado pela habitação, alimentação, higiene geral. A possibilidade, em relação à mãe, de preparar racionalmente as refeições, e também a sua competência em consegui-lo, competência que
É preciso, igualmente, que se tomem em consideração
os estudos sobre a biometria: a partir de um ano de idade, são verificadas diferenças de estatura e de peso entre as crianças do meio operário e as crianças pertencentes às profissões liberais; estas diferenças acentuam-se progressivamente até à idade de 5-6anos, em que os filhos dos operários são, em média, dois centímetros mais baixos. Os alunos do liceu
são mais altos e mais pesados do que os seus contemporâneos de 14 anos que continuam na escola primária, isto é,
que pertencem aos meios que normalmente povoam as classes de transição (em 1948).
À origem social marca a estatura da criança de forma tão profunda queas diferenças nem na adolescência desaparecem. Ignazi considerou, entre os 18 e os 21 anos, de um lado, um
não deixa de estar relacionada com a escolaridade efetuada,
variam de acordo com as classes sociais. As mesmas causas que provocam a fragilidade sanitária fazem que a instalação de crianças fora do seio familiar se torne cada vez mais inevitável; e as sua consequências são pesadas no plano afetivo e também quanto à regularidade do desenvolvimento. €. Chiland demonstrou que crianças de 6 anos que já conheceram três ambientes de vida ou mais, se classificam fregiientemente de maneira muito desfavorável no teste de inteligência. Os problemas psicológicos e os problemas fisiológicos juntam-se e agravam-se reciprocamente: por exemplo, uma alimentação insuficiente, particularmente de qualidade insuficiente, torna uma criança pequena mais vulnerável às doenças e também diminui a sua sensibilidade aos estímulos do ambiente; corre o risco de responder com menos vivacidade e discernimento ao que dela esperam os seres e as coisas. Mas, na nossa sociedade capitalista, o proletário, ao
grupo de estudantes pertencentes à fina-flor, visto já terem sido admitidos na Politécnica ou fregientarem as classes preparatórias das grandes escolas científicas; do outro, os jovens vindos das classes médias, dos meios operários e agrícolas e que se haviam mantido nesses meios: de maneira estatisticamente significativa, os do ensino preparatório e os da escola Politécnica são mais altos, mais largos e mais pesados.
mesmo tempo que é a classe explorada, é a classe que luta contra essa exploração, que tem força para lutar contra tal exploração — e que mesmo assim marcoupontos. Equivale a dizer que as exigências revolucionárias que apóiam a sua ação, bem como as promessas de que ele é o depositário, penetram o curso da sua existência de maneira parcial e ambígua. Será necessário analisar a contradição da desvantagem e da positividade como característica da classe operária — e,
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portanto, também dos seus filhos; descobrir a coerência, a
Devemos tentar interpretar o fundamento destas atitudes: de que servirá economizar, ter amor à economia, quando apenas se possui o necessário? E quando os horários de tra-
eficiência da vida popular, escapar assim à desvalorização fácil em que a burguesia se compraz, sem porisso se dissimular a marca ouo ferrete da exploração. Nada mais podemos fazer do que citar alguns exemplos!: | — Perspectivas transitórias — Todos os que tiveram a preocupação de compreender o modo de vida da classe operária ficaram surpreendidos pelas suas atitudes em relação ao tempo: perspectivas transitórias a breve termo, curtas de vista, onde domina o presente; poucas previsões, poucos planos a longo prazo; os alvos distantes representam muito menos do que os objetivos próximos, as satisfações imediatas. Daí a tendência para aproveitar o presente, para levar boa vida, especialmente os pais que deixam os adolescentes livres, num período considerado como uma espécie de entreato que precede a vida ativa e as suas dificuldades; quando essa época representa para a burguesia, em muitos casos, um período ansioso de preparação, de estudos, de concursos. Têm pouca tendência para economizar, algumas vezes chegam a ponto de despesas faustosas, e não se arrependem,
nem porse eniregar ao prazer, nem por se meter em despesas. Não faltam os dias em que são obrigados a apertar o cinto; poderão recusar-se alguns momentos de compensação, de excesso? A burguesia indigna-se e chovem censuras; melhor seria se poupassem, visto que ganham pouco; seria preferível que pensassem no seufuturo e na preparação dos seus filhos.
“Osfatos que serviram de base a esta análise foram colhidos de muitas fontes. Essencialmente C. Pétonnet (Ces Gens-lt), Hoggart (La Culture du Pauvre), Verret (Artigo de La Pensée, consagrado a este livro, junho de 1972), CL. Grignon (La Force des Choses), Andrée Michel (Famille, Industrialisation, Logement), Chombart de Lauwe (Famille et Habitation, La Vie Quotidienne des Familles Ouvriêres), Combiesse (Art. cit), Séminaire d'Cevermann referido em Petite Enfance.
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balho estão tão regularmente, tão inexoravelmente determi-
nados, quebrar-lhes a monotonia é uma necessidade; por esse tipo de distração, o trabalhador quer ainda provar a si mesmo que é capaz, porinstantes, de sacudir tantos condicionamentos e afirmar a sua liberdade. Simplificando, já que tão poucas ocasiões se proporcionam, é importante aproveitá-las quando surgem. E trata-se, sobretudo, de perceber o que tal modo de vida é capaz de trazer como novidade: a alegria do presente, a alegria do abandono ao presente e às possibilidades instantâneas que encerra; em suma, a capacidade de ser feliz de
imediato, de saber fazer da fuga das preocupações umafesta. Trata-se de estabelecer um paralelo entre isto e essa sufocação, esse tédio, esse amontoado de escrúpulos burgueses, cujo fardo tantos dos nossos romancistas referiram, e essas carreiras, essas ascensões realizadas só à custa de sacrifícios,
cuja amargura nunca se dissipará. E, contudo, não se pode dissimular a que ponto este comportamento traz a marcha da exploração, constitui o reverso da exploração: reflete uma insegurança essencial, um futuro que não pode ser dominado. Daí uma sensação de esmagamento: de qualquer forma, mesmo que se enverede pela precaução e previsão, não se conseguirá sair de apuros, ter nas mãos o próprio futuro e o dos filhos. A satisfação imediata, é também a limitação ao imediato; numa situação sempre precária, ir vivendo o dia a dia. 2 — Solidariedade e individualidade — Tudo o que os operários conseguiram, devem a uma ação coletiva, a uma
resistência coletiva. A luta operária é uma luta de massa; e o trabalho operário exige não apenas que se esteja unido, mas
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que também se unam esforços e que se estabeleça a cooperação das tarefas. Por mais penoso que seja, o trabalho operário é, ao
que fazem os vizinhos, o que se faz — sendo o fim em vista cimentar e viver em comunidade com os outros. Viver de solidariedade é encontrar a solução entre si, proletários com proletários. Hoggart faz-nos notar que há, por parte dos explorados, a afirmação de algo que ninguém nos pode arrancar e que vem a ser o respeito de nós próprios. E assim se chega a um sentimento de classe, que se exprime, pelo menos por um fosso, entre nós e eles: a recusa das suas belas palavras, a desconfiança perante promessas demasiado
mesmo tempo, o fator de união, a alegria da luta unida!. Na vida cotidiana, o auxílio mútuo e a solidariedade são necessi-
dades e instituem um prazer, talvez o prazer por excelência, o próprio meio da existência. De onde a importância primordial do grupo: nada de separações absolutas entre a família e os vizinhos, entre os vizinhos e os amigos. Sermos nós próprios, e estarmos com os amigos como em nossa casa. Pensar, é pensar em conjunto, em voz alta e por todos, de preferência; e
solitariamente, contra todos. As distrações se realizarão ao mesmo tempo, em grupo, e uma das suas funções essenciais consiste em consolidar o grupo. Hoggart tanto fala de uma promiscuidade afetuosa, como da calorosa participação de grupo. O proletariado aí encontrará ajuda para sair de apuros nos momentos difíceis, proteção contra as ameaças que sempre podem vir de fora, da parte dos outros, dos poderosos — e um reconforto, numa existência nunca segura. Distinguir-se dos outros, ser contrários aos outros, pretender a todo custo fazer melhor do que eles, cultivar a dife-
rença: não é assim que as classes populares interpretam a realização individual. Pelo contrário, isso seria ir ao encontro
da discórdia, da separação. A gente do povo deseja fazer o
sedutoras para serem autênticas — e que se tornam suspeitas
pelo simples fato de provirem de quem não partilha seu destino, quem não está envolvido nas mesmas dificuldades, no mesmo combate; desconfiança perante as autoridades que se proclamam imparciais, mas das quais se sabe que não estão semelhantemente dispostas em relação a ricos e a pobres. Face ao individualismo burguês, ao seu isolamento, dentro de si próprios, egoísmo da concorrência, avidez de se destacar a qualquer preço, a união operária aparece como o fermento ideal para a construção de um mundo novo. Mas, simultaneamente, esta solidariedade é duramente
abalada pelas pressões e restrições; não se pode desprezar, por exemplo, a sua relação com as habitações acanhadas, onde quase não existe possibilidade de isolamento. Porisso é que, se, sob certos aspectos, ela representa unidade de indi-
víduos, parece situar-se, também, numa fase em que as pessoas ainda não se libertaram, não se afirmaram com as suas " Entre tantos testemunhos, o de Louis Oury, Les Prolos, pág. 55. Ele deixa uma pequena fábrica do seu país para trabalhar nos estaleiros de construção naval de Saint-Nazaire. Na primeira manhã da sua chegada: "Isto formiga de gente. Sintome atravessar por um ímpeto de entusiasmo, tenho a impressão de participar em qualquercoisa de grandioso. Incorporo-me a esta massa que mecerca, é à partir deste instante que sinto a primeira noção de solidariedade. Tenho a sensação de ser incorporado num bloco, soldado a uma força poderosa”. Em1955, longo período de greves: "Quinta-feira, 5 de maio, encontramos 15.000 metalúrgicos reagrupados no aterro. Fiquei atônito pela sensação de energia que transmitem 15.000 homens reunidos por um motivo comum, por um combate vital. Só então compreendi verdadeiramente que a união faz a força”.
características próprias: o rádio fala por todos, o que significa que todos desejam participar, mas que todos são obrigados a ouvir. Nota Hoggart: estar só, pensar só, ler com calma, é quase impossível. Oscila-se entre a intimidade, a unidade coletiva e a atmosfera gregária. A não-separação dos vizinhos, significa igualmente que os vizinhos escutam tudo quanto se passa. Esta vida comunitária tem qualquercoisa de
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atraente, mas ameaça cair no mais conhecido, no mais comum, no mais fácil: na rotina.
3 — Aspectos da vida cotidiana — O negativo aqui, aparece de imediato, salta aos olhos e nos contentaremos em evocar-lhe alguns traços; a dificuldade consiste mais em se perceber como, sem deixarde ser negativo, trazer em si valores essenciais. Numa habitação acanhada, superlotada, em que os brinquedos são pouco numerosos e rudimentares, onde não há espaço para brincar, a criança pequena tem menos ensejos de experimentar, de desenvolver a habilidade motora e a discriminação perceptiva; a sua atenção e a sua curiosidade, são pouco estimuladas; ela é tirada poucas vezes do berço, permanece mais tempo deitada. Mais tarde, vem a obrigação de mantê-la sossegada, de proibir muitas coisas, o que não lhe favorece a atividade. O bebê abre os olhos para um mundo repleto de objetos díspares; tudo serve para tudo: a mesma caixa será cofre, banco, depois será utilizada como uma parte de um leito e acabará no fogo. Daí umadificuldade em identificaros objetos, em dizer o que é precisamente determinada coisa — e, portanto, em construir a sua própria identidade em relação aos objetos. Uma mãe sobrecarregada de trabalho, na maioria das
vezes, não terá tempo para deixar a criança habituar-se a
comer com a colher, aprender a vestir-se só e terá de esco-
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lhedora dos que não passam por tais provações, que reservam às suas brincadeiras, às suas palavras, e mais tarde, ao seu trabalho escolar, o mesmo interesse, o mesmo grau de partici-
pação. Também não se pode esperar que, como educadores, mantenham um humorigual e coerente, e todos os observado-
res notam as alternâncias: da rispidez à ternura, dos castigos aos afagos, das privações à indiferença. A comunicação entre pais e filhos recorre largamente aos meios extralingiiísticos: mímicas, gestos, risos, zombaria. Corre, todavia, o risco de, em breve, estar limitada pela sua
pobreza e falta de interesse. As palavras dirigidas às crianças, são simples e extremamente breves, quase vazias de qualquer sentido ou encorajamento. Assim se fomentam as dificuldades tão conhecidas das crianças do povo em desenvolverem a linguagem como meio de comentar, de exprimir, de elaborar o que sentem. Enfim, muito cedo, o jovem vive o peso dos apertos financeiros; é impossível que não o façam sentir que ele gasta e não ganha. Daí a frequência de sentimentos de inferioridade, até de culpabilidade, uma dificuldade particular de se afirmar: enquanto não passa de um fardo, e de um fardo pesado, terá direito a falar?
Em outro plano, Colette Pétonnet mostra como estes Jovens não foram iniciados nos rituais, nem das refeições (muitas vezes o rapaz come quando sentir fome, apressadamente, sem esperar pelos adultos e sem se sentar à mesa),
lher a solução mais rápida: ela mesma vestir à criança. De onde o risco de atraso na habilidade gestual e nas ações de primeira autonomia. Conseguirão os pais arranjar uns mo-
nem do deitar (mesmo para as crianças ainda de tenra idade, ninguém se debruça sobre o seu leito, dispensando-lhes en-
se com eles, em que estejam realmente disponíveis? Pais explorados, que estão demasiado fatigados, demasi-
que é levada a dar grande destaque às prescrições periódicas
não conseguem manifestar aos filhos a mesma liberdade aco-
um tipo de regularidade e de ordem que ameaça faltar-lhes — depois de haverem passado sem contrapartida, tantas ho-
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mentos para se ocupar só dos filhos, brincando, entretendo-
ado inquietos com o futuro, que sofrem imensas humilhações,
tão um gesto de ternura), não há hora certa de cerimonial metódico. Por um lado, isso vai constrangê-los na escola, e pontuais; mais fundamentalmente é um certo autodomínio,
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ras em brincadeiras violentas que não eram controladas, em experiências de recuperação anarquizantes. Claude Grignon dirá, de maneira análoga: “Não conhecem obrigações verdadeiramente rigorosas, no que comportam de exatidão e de atenção, de concentração na tarefa em perspectiva”.
As classes superiores têm tendência em dividir a sua vida em compartimentos, como as suas residências em múltiplas divisões; separam as atividades dos adultos e as das crianças, instalam-se de forma a que cada criança possua o
Seria, portanto, tão falso quanto grave, reduzir a sua vida cotidiana a este acumular de desvantagens, ignorandolhe os aspectos positivos. As habitações são acanhadas, tanto do ponto de vista material como do moral, ou antes, ambos se confundem, é
pequena a distância entre pais e filhos; muito cedo as crianças partilham as condições de vida, os ritmos de vida dos adultos; muito cedo participam nas dificuldades, nas preocupações, mas, igualmente, nas alegrias dos seus pais.
O que quer dizer, em primeiro lugar, que as relações pais-filhos podem estabelecer-se de um modo mais direto, mais franco, mais imediato do que na burguesia; segundo ponto: estas crianças vivem num universo vasto como a natureza
— e uma verdadeira vida. Os pais falam elas, ou pelo menos falam nasua frente, dos problemas da existência, uma linguagem que não é elaborada ad usum delphini. Quanto a eles, aquilo que fazem leva o selo da autenticidade; nem a quimera, nem o pueril; executam tarefas úteis, realizam coisas práticas sem se perder nos seus sonhos, sem ficar presos a
seu quarto, viva e trabalhe no seu quarto, com calma — e
também num certo isolamento individualista. Os operários são levados a distinguir muito menos as funções e as idades;
reúnem-se frequentemente todos na sala comum, queé, aliás, muitas vezes, a cozinha. Daí uma afetividade por vezes instável, difícil de dominar, mas que constitui, para a criança,
um apoio constante — ao passo que não nos faltam exemplos da secura e da insipidez burguesas. Não basta dizer que têm um grande número de companheiros; possuem o seu mundo, o mundo dos seus comparsas, estão integrados numa verdadeira comunidade juvenil. Também nos seus jogos depressa compreendem que têm de agir como verdadeiros campeões; é preciso pagar com o corpo e pagar na hora: será chefe o que soube bater, correr, trepar. Nada de evasivas, uma rudeza garantida, mas, igualmente, para a maiorparte, um prazer a que não estão dispostos a renunciar, porque lhes sentem a sinceridade, um meio a
que não faltam proteção e ajuda. É, evidentemente, um modo de vida muito promíscuo
— é fácil imaginar como os tabus sexuais são aí menos opressivos. Os riscos de vandalismo e de delingiiência são evidentes, mas isso gera crianças muito menos dependentes dos pais do que os meninos da burguesia, conscientes da sua
receios imaginários que os romancistas burgueses tão repetidamente evocam ao descrever a sua infância: captam as alegrias reais oferecidas pela realidade. Habituam-se, pouco e pouco, a regular a sua ação pela resposta dada pelo próprio objeto, a avaliar resultados tangíveis, a sentir-se felizes com esses resultados palpáveis. Enfim, cedo participam na vida familiar das ocupações e dos ócios, de que acabamos de referir a grande abertura para o exterior e para a comunidade que apóia.
a noção de que precisam preparar uma carreira, não sentem a
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individualidade — e que, de certa maneira, é, indubitavel-
mente, uma individualidade de grupo; crianças felizes por existirem, por viverem juntas; de peito ao vento, um vento duro, mas que varre tantos miasmas.
4 — Face aosestudos — Múltiplos observadores já notaram e, aliás, já nos aludimos a isso: estas crianças não têm
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necessidade de triunfar, não contam com os estudos ou com
cultura do pobre, ajuda-nos Hoggart a destacar duas contribuições que podem tornar-se importantes para a escola: de
o seu entusiasmo pelo estudo para se governar. O que explica as acusações de preguiça, de inércia, de apatia. Os professores sentem-se desarmados, estas crianças não aproveitam as poucas oportunidades, as magras oportunidades, que a nossa sociedade não lhes veda completamente. Perante as
um lado, a tônica incide, principalmente, no interesse pelas
pessoas; desejo de compreender e apreciar as individualidades, aptidão para distinguir gradações no seu comportamento e nas suas relações; eles sabem e gostam de avaliar as pesso-
autoridades escolares assumem, com fregiiência, a mesma
as, de ler num rosto. Do outro, tanto no cinema como no rá-
atitude dos pais diante das autoridades da fábrica ou do Esta-
dio ou na televisão, uma preferência que procura, antes de tudo, o prazer de reconhecer o que já é conhecido e reconhe-
do: são os eles opostos aos nós, distantes, inacessíveis, agin-
do por decretos dos quais não se alcançam as razões, nem se descobrem os motivos. Por conseguinte, é o mundo escolar, a cultura escolar, que se arrisca a ser encarada como estranha, senão hostil. E os professores afirmam a sua inocência, ou, em qualquercaso, a sua boa fé, a sua imparcialidade.
Na realidade, o que os jovens proletários recusam, é, por um lado, o gênero de profissões que lhes oferecem, ou melhor, a que estão destinados — profissões de que dificilmente se esperará uma realização compensadora. Por outro, a sua recusa de promoção, é a recusa a prestar-se a um jogo que sentem e que sabem queé falso logo de início: é a recusa da nossa sociedade e das predestinações que impõe desde a infância. Pelo que, a sua preguiça faz parte da luta operária. Pode até afirmar-se que, negando a seleção, a promoção individual, essas crianças opõem à moral burguesa da concorrência o sentimento, mais ou menos consciente, de
que, todos juntos, pertencem ao proletariado, para o melhore para o pior — e que o proletariado só existe, resiste e avança enquanto formar uma unidade. E é essa força, pelo menos entrevista, que obriga alguns docentes, cada vez em maior número, a colocarem em dúvida a mecânica escolar e o seu próprio papel como garantia da sua validade. Estas crianças opõem os hábitos do seu meio, da sua classe, às atitudes que a escola pretende inculcar-lhes. Desta
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cido de imediato, o cotidiano, a vida nas suas formas já familiares. Apresentar meio mundo a outro meio, apontar criaturas
vulgares enquadradas numa existência banal. Uma arteespelho de que uma das funções essenciais consiste em reviver, afirmar, assegurar valores já reconhecidos pelo grupo. Onde se vê unirem-se positividade e limite: contra as belas palavras ilusórias e as promessas vagas, essas tiradas quiméricas em que os outros são tão facilmente pródigos, o senso do concreto, do imediato, o certificar-se a partir do real cotidiano. Mas, ao mesmo tempo, apreensão e dificuldade em verà distância, em destacar perspectivas globais. Contras as tentações da gratuitidade sempre ameaçadoras, contra as artes do irreal e do inútil, colar-se resolutamente à vida direta, àquilo que nós vivemos e conquistamos pouco a pouco. Mas, por isso mesmo, o risco de desconfiar igualmente, indi-
ferentemente, de tudo que seja esforço para ultrapassar. E para concluir, a famosa preguiça destas crianças deixa, mesmo assim, algum espaço à preguiça — e assim se expõem a quase não conseguirem preparar-se, nem do ponto de vista técnico nem no seu modo de vida, para as exigências que, confusamente, a sua recusa e a sua luta implicam. A cultura do pobre, é um equilíbrio, uma coerência — e não um somatório de déficits. Mas, sobretudo, representa
um momento, um grau de uma luta. É um apelo. Porque as insuficiências nascidas da exploração estão inscritas no cora381
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ção desta existência, e são, aliás, as primeiras das pelos interessados; é o que Hoggart nos quando afirma: “As pessoas do povo sabem, as satisfações mais plenas, que pressupõem
a serem sentidá a entender no fundo, que o domínio do
futuro, não são para elas”.
CONCLUSÃO PARA UMA ESCOLA PROGRESSISTA
Sob cada uma destas rubricas, encontramos nós, no
proletariado e nos seus filhos, não só uma desvantagem justaposta a uma positividade, mas a fusão de ambas: a desvantagem contém positividade, abre-se para uma positividade e,
inversamente, a positividade é atingida pela desvantagem. Uma contradição, infinitamente complexa, de positivo e de desvantajoso, que atinge as crianças da classe operária, em que se debatem as crianças da classe operária. E eis por que motivo — é essencial dizer ambas as coisas de um jato — estas crianças são, efetivamente, vítimas dos mecanismos de opressão e de esmagamento da nossa sociedade e à qual, de momento, na sua massa, só têm acesso
a formas menos elaboradas de escolaridade e dela a profissões menos valorizadas. Mas, paralelamente, elas são portadoras de valores, são elas as portadoras de valores onde se
estabelecem as possibilidades de renovação e de progresso — em particular, a renovação da escola.
Se o proletariado se reduzisse às suas desvantagens, a única escola que lhes conviria, seria a dos ciclos-impasse; a sua educação só seria possível levando-o a alinhar com a burguesia e a renunciar a si próprio. E a revolução se trans-
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formaria numa quimera, pois é ele quem deve colocá-la em prática — e não existe outra força capaz de a realizar. Se o proletariado já possuísse plena positividade, se
À escola progressista é a escola que saberá aproveitar o lado positivo da desvantagem, que servirá de instrumento intermediário entre a positividade e a desvantagem. A escola, como o próprio movimento operário, implica um equívoco: só conseguirá interpretar plenamente o seu papel numa sociedade renovada e, ao mesmo tempo, compete-lhe, dia após dia, desempenhar um papel. A partir de hoje existem possibilidades pedagógicas e políticas de encorajar e de valorizar os
não fosse sujeito a tantas dificuldades e motivos de entrave,
quase não necessitaria de escola: enveredaria, sem embaraços, pelas redes não-diretivas de Ilich, pela formação e pelo local de trabalho; bastaria a ele uma espécie de livre expressão de uma ideologia proletária, como a de BaudelotEstablet. Então, o sistema escolar e as suas divisórias, por
exemplo, o desterro das crianças do povo para o ciclo de transição, seriam encarados como uma conspiração propriamente escolar, um conluio artificialmente montado pela clas-
se dominante graças à cumplicidade dos docentes. Por meios tortuosos, a escola impediria estas crianças de ser o que elas são — ou, pelo menos, o que elas estão em condição de ser: tão bons, escolarmente falando, como as outras; seriam provocadas, para as deter, dificuldades fictícias. Por conseguinte, a revolução seria essencialmente escolar, orientada, acima:
de tudo, para a escola; a escola desempenharia aí o papel preponderante visto haver desempenhado até o presente papel preponderante nos insucessos das crianças do povo — tal nos parece ser a constante tentação de Bourdieu-Passeron. Estes insucessos, de fato, e todo o sistema escolar no seu
caráter segregativo, devem ser considerados como resultantes da divisão em classes da nossa sociedade; assim se exprimem,
quer o modo de vida vinculado aos proletários ao longo de toda a sua juventude, quer o futuro que lhes foi destinado. Eis por que razão há lugar e necessidade para uma instância de formação: estando a positividade constantemente ameaçada pela desvantagem não escapará à sua própria perda, à dispersão, à confusão, sem se organizar numa instituição reguladora. É, por o positivo se misturar, inextricavelmente, ao negativo, que a escola é indispensável para tentar desenredá-los.
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ciclos diferenciados, não de os suprimir. Na mesma medida,
dentro dos mesmos limites, existe uma possibilidade para o proletariado lutar até conseguir afrouxar o torno: não é nesta sociedade que chegará a quebrá-lo, e, contudo, é essencial que se prepare, pois, para os combates futuros. Deste modo, o
termo escola progressista é ambíguo, e é necessário que seja, porque designa o objetivo dos nossos esforços e o que se pode, a partir de agora, introduzir de progressista na escola. Verret enumera assim a gama de atitudes que se espalham pelas crianças do proletariado em virtude das ideologias que se esforçam por lhe incutir: exclusão submissa, e que será interiorizada sob a forma de auto-exclusão; aceitação inconsciente ou resignada; utilização distante, cínica, que se
exprime tanto pela troça como por depreciações; assunção instrumental da aprendizagem escolar como elemento necessário à qualificação da força de trabalho; enfim, reivindicação do direito ao consumo escolar, porque é posto em discussão o monopólio dos meios do saber pela classe monopolizadora. O dinamismo real da cultura operária consiste em não se manter no terceiro escalão, esse mesmo que Baudelot-Establet
descrevem com tanta complacência, mas esforçar-se até os limites, esforço esse que exige escola; e temos de compreender que esta apropriação da sabedoria e da escola pela classe operária, as transforma tanto como a apropriação das fábricas pela classe operária modifica o modo de produção. 385
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Hoje, a margem de autonomia da escola está reduzida; limitados os seus poderes e numa sociedade dilacerada por antagonismos, ela não constituirá um recinto de reconciliação;
capaz de unificar a sociedade, desobrigando-se de libertar a sociedade por inteiro. As crianças do proletariado forçam a escola ou a eliminá-las ou a enveredar pela via da metamorfose; mas ao mesmo tempo é graças à escola que elas renovarão a escola. Até mesmo elas, as crianças do proletariado, para renovar a escola necessitam dela. Seremos capazes de precisar estes aspectos muito genéricos, retomando, mas agora sob um ângulo propriamente pedagógico, os exemplos que evocamos nas páginas anteriores?
de uma maneira ou de outra, oficialmente, quando os ciclos
são proclamados e etiquetados, ou sub-reptilialmente, se os considerarem abolidos, serão introduzindo processos seletivos e de recusa que jogarão contra as crianças proletárias. A escola não é um agente de renovação, não será ela a libertadora;
unicamente a pressão do proletariado pode transformara escola e ela avançará na medida em que, no interior da sociedade global, o proletariado atacara divisão em classes. E, contudo, há tarefas pedagógicas que são possíveis e necessárias na sociedade atual: não aguardaremos o dia seguinte à revolução para tirar da escola o máximo que ela possa dar. Os docentes progressistas têm de construir em união com os alunos proletários, a partir das exigências próprias e dos problemas postos pelas crianças proletárias. A escola progressista parece-nos organizar-se por um triplo movimento: a escola apóia-se no que há de positivo nas crianças da classe operária; transforma-se por essa mesma positividade, pelo impulso que terá de receber delas, que lhes
| — Perspectivas temporais
relação entre as classes. E é, finalmente, deste modo, que ela proporcionaàs crianças uma vida mais intensa, uma cultura mais real — se é exato que o proletariado não é uma classe que vai substituir outra, dominada e explorada por sua vez, mas sim, a força
A escola atual não sente o mínimo escrúpulo em funcionar segundo perspectivas temporais a longo prazo, que só atuam a longo prazo e que esmagamo presente. Isto de dois modos: “Trabalha bem para poder triunfar mais tarde”. Mas a sua expansão presente, a plenitude da sua existência juvenil, serão realmente objeto de preocupação? E, por outro lado, a atualidade tem enorme dificuldade em se introduzir como objeto de estudo: a classe dominante a teme, prefere guardar silêncio — e falar de outra coisa. Com isto condena todos os alunos à apatia. Pelo contrário, as crianças do proletariado estão presas ao mundo presente, porque é seu caminho na luta do dia a dia sem a qual os seus pais não poderiam agiientar-se — e que para elas é o teatro das suas ações, já reais e já adaptadas; além disso, estão presas ao presente porque os alunos de futuro, as grandes combinações baseadas no futuro, têm algo de ridículo a seus olhos. São as crianças do proletariado, se forem suficientemente numerosas e organizadas e se os professores progressistas se unirem à sua ação, que forçam a escola a ser uma escola do atual e não apenas mera preparação para um futuro, um dissabor a ser suportado agora na vaga esperança de
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terá extraído. Enfim, essa positividade, submersa em desvan-
tagem, é trazida por ela à superfície e elaborada: ajuda as crianças proletárias, desenvolvendo os valores que lhes são próprios, as suas atitudes próprias, a ultrapassar as suas limitações, a desembaraçar-se de tentações sempre ameaçadoras. Assim, a escola faz o que pode para se tornar menos segregativa em relação aos filhos da classe proletária e diminuir-lhes os insucessos; o resto, todo o resto, depende da
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vir a tirar mais tarde qualquer proveito. Pois um dos traços característicos do modo de vida popular é apreciar o tempo presente recusando o sacrifício do presente por promessas remotas. A escola só pode triunfar junto dos alunos do povo,
se limitar à economia parcimoniosa e enfadonha do perpétuo sacrifício. Os filhos da burguesia conseguem triunfar numa escola que olha sem cessar para o passado porque são bem educados, educados por este tipo de esforço; eles triunfam, eles
e fazê-los triunfar, se for capaz de comunicar uma alegria
atual àquilo que lhes ensina: o prazer de sentir a emoção de um poema, seja ele composto por um escritor ou por eles, de desenvolver um raciocínio coerente, de construir e de com-
preender os mecanismos, o sentimento de ter uma visão mais segura dos próprios problemas. Os alunos do povo pedem que a escola lhes fale deles mesmos, e do seu tempo, do seu
mundo e das suas lutas — o que implica uma conexão direta entre o movimento social e o que se passa na escola. Deste modo se vai muito longe na exigência de transformação. Com isto, e dentro dos limites que lhe são atribuídos, a
escola luta contra a segregação, torna-se menos seletiva — visto se esforçar por atenuar uma das causas de desentendimento e, portanto, de insucesso das crianças do povo. Mas a escola progressista também assumea tarefa de impedir que a exigência do presente, e muito especialmente no que diz respeito a estas crianças do povo, se afunde no anedótico imediato, se encerre no pitoresco fácil dos pequenos acontecimentos ou dos grandes escândalos; ela espera que as crianças descubram, pouco a pouco, uma passagem entre a aspiração atual e projetos cada vez mais vastos. Encontramos, assim, um dos
temas essenciais de Makarenko, o alargamento progressivo das perspectivas temporais: orientar as crianças para planos que abarquem um campo de ação com uma abertura cada vez maior para o futuro, englobando também os elementos mais eficientes do passado. Mal as crianças do proletariado conseguirem dominaro tempo, será possível pensar, legitimamente, que não o utilizarão como a burguesia, o senso do presente os impedirá de
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trabalham, mas será com entusiasmo? À escola que se atre-
ver a viver o presente proporcionará, também a eles, uma hbertação. 2 — Solidariedade e individualidade
Ao mesmo tempo que faz o elogio verbal da fraternidade, a escola atual não sente o mínimo escrúpulo em funcionar segundo um sistema de seleção, de hierarquia, que joga com o desejo de êxito individual e o interesse pessoal; glorifica-se determinada classificação de determinado aluno;
o futuro de cada um é considerado independentemente do dos outros; por vezes até em oposição ao dos outros: trata-se de o levar a vencer os concorrentes, mesmo que seja necessário esconder dos outros a solução acabada de descobrir. Os filhos do proletariado, pelo contrário, estão dispostos a recusar esta lei da selva em nome da experiência de solidariedade e de união que se inscreve no coração da existência dos seus pais e se prolonga até eles. São, portanto, estas crianças, aqui unidas aos professores progressistas, que podem proporcionar os estímulos necessários à transformação da classe num local de cooperação: colocar em primeiro plano o progresso da classe no seu conjunto, como coletividade; partilhar o saber, explicar aos outros o que sabe ou tem habilidade. Deste modo, a escola ajuda a
encontrar a significação social do trabalho e cada um poderá situar-se em relação à coletividade, descobrir a sua contribuição para a coletividade.
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Certamente, isto não é inteiramente praticável numa sociedade de classes, de rivalidades. Mas a luta com essa finalidade não é impossível, é a nossa.
Contudo, a recusa da competição, pelas crianças proletárias, ameaça cair na inércia: não querer entrar em concorrência, é solidariedade, mas pode ser uma passividade crispada. Os estudantes proletários arriscam-se a transportar termo a termo, mecanicamente, para a escola, os esquemas extraídos da sociedade global: viveriam então com a sensação, mais ou menos explícita, de que toda atitude de competição na escola é uma transposição das relações sociais da burguesia e retoma as atitudes do empresário capitalista em
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grado todas as dificuldades em que se debate, e que não vale menos do que os outros; o desejo de promoção pode transformar-se em afirmação do orgulho da classe, onde o indivíduo e o coletivo deixaram de se opor. É explicar, finalmente, aos alunos, que o seu esforço para alcançar a verdade não é comparável à avidez capitalista de acumular mais-valias. Deste modo se percebe como a
escola progressista pode obter algo de novo, que nem é a pedagogia tradicional da competição, nem a resignação a uma mediocridade: por exemplo, quando os pioneiros se esforçam pelo progresso dos seus camaradas para merecerem, por sua vez, a admissão no grupo dos pioneiros.
concorrência com os seus rivais. Isto estaria, portanto, reser-
Assim, este sentimento de solidariedade, que se integra
vado à criança burguesa; quanto a eles, estariam fora de jogo, insistindo em continuar assim, vedando a si próprios a participação nos proveitos reais desse jogo.
na existência dos proletários e, portanto, na dos seus filhos, não pode ser aceita tal e qual pela escola, como se fosse, de antemão, puro e perfeito. Paralelamente, a escola progressista encontra fundamento na experiência de solidariedade e deve ajudá-la a atingir uma expressão mais completa de si mesma. Verret dá continuidade a Hoggart ou, mais exatamente, mostra como o movimento operário retoma as descrições de Hoggart: o grupo, a unidade coletiva, não inclui apenas a
Esqueceriam, desta forma, a especificidade da escola.
À escola progressista pode suscitar formas de sucesso escolar, um desejo de avançar em relação a si próprio e, portanto, em relação aos outros, que de forma alguma se confunde com os sonhos pequeno-burgueses de ascensão individual a qualquer preço. Hoggart mostra, muito lucidamente, que o proletariado tem direito a visar um nível mais elevado de conforto e de felicidade sem que, de qualquer forma, incorra no aburguesamento; reivindica a sua parte naquilo que produziu, visto ter sido ele a produzi-lo e, igualmente, o direito de viver dignamente e não na imundície. O proletariado não é infiel a si, não constitui traição o fato de se recusar a ver-se privado de valores que não existiriam sem o seu trabalho. De forma análoga, a escola tem de desmistificar certas
família, a vizinhança, os amigos, mas igualmente a fábrica, a
fábrica como local de cooperação técnica das operações de trabalho, a fábrica como local de exploração e de resistência à exploração. Daqui, a organização (mas lenta e difícil) em sindicatos e em partidos operários. É assim que oproletariado confia nos seus valores para lhes ultrapassar os limites — limites que o conservaria num agradável conservantismo das tradições folclóricas. A solidariedade de parentesco passa a ser, transferida para os participantes da luta política e sindical, palavra de ordem deluta e, portanto, de transformação.
rejeições das crianças proletárias até elas compreenderem que o desejo de promoção podesignificar, para elas também, a vontade de mostrar aquilo de que cada um é capaz, mal-
é, de início, pequeno, mais próximo de umaespécie de calor humano do que de uma comunidade de destino; não foge a
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O sentimento de solidariedade das crianças proletárias
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atitudes exclusivas contra outros grupos, nem sequer às infiltrações racistas. A escola progressista apóia-se no senso do coletivo, muitíssimo mais profundo entre as crianças proletárias e encarrega-se de desenvolver e consolidar, pouco a pouco, as coletividades que as crianças conseguem constitu-
Ao mesmo tempo, cabe à escola a tarefa de explicar aos alunos vindos do povo que a sua preferência pela prática ameaça ser envolvida numa negação do teórico e acabar caindo numa prática restrita, desprovida de perspectivas de
ir, até o momento em que elas forem suficientemente vastas
para poderem impor-se sem se oporàs outras coletividades. 3 — Vida cotidiana e vidaescolar
conjunto. Precisam, portanto, de uma escola, de uma escola transformadora, mas de uma escola que, mesmo assim, seja
diferente do puramente, do diretamente profissional. Onde se vá ao encontro da escola politécnica. A disciplina e a contestação — A vida dos alunos proletários desenvolveu neles qualidades de iniciativa, de inde-
Daremostrês exemplos. A propósito do ensino técnico — Criar um ensino técnico que possua tanto valor e tanta dignidade como as outras vias escolares, é um tema inesgotável de elogiiência ministerial; para que este tema adquira realidade, é necessário que a escola se transforme dando o devido lugar à prática, seja como modo de transformação, seja como via de acesso às profissões. Isto exigiria que ela desse o devido lugar às crianças do proletariado, pois elas é que têm o senso direto do contato com a matéria; onde se vão reunir o modo de vida
dos seus pais e os seus próprios hábitos de executar pequenos trabalhos caseiros e de fazer remendos. Ainda aqui, a escola se torna menos segregativa na medida em que valoriza as atividades que são familiares e fáceis, precisamente para aqueles que costuma eliminar. Este movimento não terá sucesso enquanto a classe operária permanecer classe explorada, isto é, classe cujas práticas — e aqui trata-se, precisamente, da atividade prática — são depreciadas. Mas, toda a avançada política da classe operária, toda a iniciativa pela qual consegue impor-se, modifica o papel por ela assumido, transforma a imagem que dá, ou antes, que de si impõe — e, portanto, retifica o lugar que o técnico pode assumir dentro do sistema escolar.
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pendência, um hábito de se organizar, em grande parte espontaneamente, que os levam a entrar, violentamente, em
oposição com uma disciplina que a curto espaço classificam de infantil e que está integrada nas medidas repressivas a que a classe dominante recorre no seu esforço para manter a ordem estabelecida. São assim forçados, docentes e autoridades escolares, a
uma série de interrogações fundamentais: que temos nós feito para conseguir convencê-los de que as nossas decisões não são arbitrárias? E por que não somos bem sucedidos quando o tentamos? Não seriam algumas delas justificáveis? Mesmo em relação às outras, que instituições escolares foram planificadas, capazes de as justificar aos olhos deles? E uma disciplina justificada significa apenas a sua coerência em relação ao sistema ou visa o progresso dos alunos? Trata-se de procurar, inflexivelmente, e de acordo com
os interessados, aquilo que, em matéria de disciplina, é imposto por tradição, sem corresponder a uma necessidade real, aquilo que os alunos consideram desvalorizante; transformar o que não resiste a uma crítica destas; manter o que merece ser mantido. Mas, pretendemos deixar aqui expresso que, a maior parte das vezes, nem sequer consideraram estes alunos dignos de ouvir a justificação do que deles se espera — e que será a primeira etapa a ser percorrida. A segunda será, sem 393
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dúvida, transmitir aos alunos a sensação de que não têm só deveres, deveres de que constantemente lhes falam, mas, igualmente, direitos a serem respeitados. Finalmente, uma
dignidade a ser defendida. O que nunca está desligado da luta do proletariado para estabelecer a sua dignidade. A prova é que são sempre os mesmos que consideram as crianças umas viciosas e o povo incapaz. E isso até que se consigam regras de que a própria classe se encarregue e cuja legitimidade reconheça: os alunos participarão na sua elaboração, sentirão que estão ligados a elas, eles as interpretarão como necessárias — e porisso se esforçarão para as cumprir. Mas, na constituição destas regras, o adulto tem um papel a desempenhar, um papel específico: se renunciar a ele, ninguém o substituirá, e o sistema não encontrará o seu equilíbrio. Não se trata de uma oposição ao desejo da criança, mas de introduzir a regulamentação, a dosagem de esforços, a perspectiva a longo prazo, o método e o entusiasmo sem os quais esse desejo não sai das suas formas esquemáticas e contraditórias. Confundindo-nos com autoridades patronais ou com autoridades colonialistas, os alunos, e sobretudo os da cama-
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haverá possibilidades de se inscrever como continuidade enriquecedora da cultura cotidiana. Autoritarismo e colonização serão, pois, ultrapassados,
à proporção em que forem sendo mais íntimas, mais diretas, as relações entre aquilo que o professor ensina e o que os alunos esperam; à medida em que os alunos forem tomando consciência da necessidade de uma teoria geral da sua experiência e o professor, de que essa mesma teoria só será ativa pelo seu contato com a experiência das massas, ou seja, à
proporção em que a luta das classes for real, permitirá avanços reais. Continuam, portanto, a ser os fracassos e os comportamentos dos alunos da classe proletária que constituem a força viva pela qual a escola sofre uma metamorfose. E, no entanto, a escola tem também de reagir contra as suas exi-
gências: não se pode admirar qualquer contestação,ratificar toda rejeição; seria abandonar os jovens aos seus impulsos repentinos, esquecer que tudo quanto não for elaborado estará muito mais contaminado pelas contribuições confusas das ideologias dominantes. Uma vez mais, a cultura — São os alunos proletários que podem coagir a cultura escolar a manter uma relação constante com os problemas da vida; eles é que conseguem impor uma exigência de realidade; esperam da cultura que ela seja um meio de ação sobre o real, pois experimentam uma necessidade vital de agir sobre o real e de o modificar,
da popular, forçam-nos a reagir violentamente, e a perguntarmos a nós mesmos: por que nos metem no mesmo saco? O que devemosfazer parasair dele? O autoritarismo, o risco sempre presente do autoritarismo, já não parece uma causa primária, mas uma consegtência da inadequação das matérias: na medida em que o que for apresentado não despertar o interesse dos alunos, não for poreles interpretado como umaresposta às suas dúvidas, a matéria só poderá ser imposta pela coação, seja qual for a forma que revista. O risco de colonização será tanto maior quanto a cultura encarnada pelo mestre mais se afastar da cultura peculiar aos alunos — e então esta cultura dominante visará suplantar, extirpar a cultura dos dominados; já não
lidade é mais vasta, mais complexa, mais ambiciosa do que eles supõem inicialmente: tal pintura que, à primeira vista,
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não toleram que ela se disperse em evasivas, gratuitidade, ou
que se reduza a meros exercícios formais. As dificuldades que eles próprios e as suas famílias já enfrentaram levam-nos a denunciar como terrivelmente vazias e vãs essas tiradas arrebatadoras. Porém, a escola tem ainda de lhes mostrar que essa rea-
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parece extravagante, constitui, afinal, uma incursão mais profunda no real do que a reprodução minuciosa ou a fotografia; mas para o sentir, é preciso ter passado por um grande rodeio educativo. Será indispensável que compreendam, igualmente, que a álgebra, através da sua abstração, até sin-
realizar. A escola precisa que a pressão operária seja forte ou corre o risco de se esquecerde tirar das obras culturais a sua substância revolucionária. E como não chego a uma conclusão...
gularidade, garante uma tomada do real bem mais exata do
que qualquer avaliação direta. Se desconfia da qualidade do livro, a escola não deve nem ignorá-lo nem resignar-se, mas procurar quais os escritos que conseguirão persuadir os alunos da integração enriquecedora do que se lê e se vê. A rejeição do sistema escolar e da cultura burguesa ameaça, se não for vencida, cair num vago ceticismo. São, portanto, os alunos progressistas que podem convidar os professores progressistas a operar uma purificação revolucionária entre as contribuições que a escola burguesa se satisfaz em amalgamar; separar as exigências fundadas da cultura e as mistificações, os disfarces a que essa mesma cultura dá lugar. Só há idéias burguesas no que a escola da burguesia divulga. É burguês catapultar Victor Hugo em pára-quedas para crianças que ninguém preparou para o acolher, é burguês interpretar Victor Hugo de maneira puramente formalista deixando na sombra as suas tomadas de posição essenciais. Mas, não é burguês iniciar as crianças em Victor
Hugo levando-as, pouco a pouco, a ir além do seu Tintim habitual. E é a melhor das oportunidades para que, finalmente, sejam elas próprias a extrair, quer dos seus livros, quer da sua experiência, aquilo que irá alimentar uma tomada de consciência criadora do mundo de hoje. Quanto mais obras-primas se conhecerem, mais o peso da verdade e da realidade se sobreporá ao artificial burguês. As exigências dos alunos proletários, consideradas e inter-
pretadas por professores progressistas, correspondem à passagem da classe de André Theyriet a Eluard. A cultura operária carece da escola, não para se renegar, mas para se
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Espero ter escrito um livro, não reformista, mas que
contribua para o movimento revolucionário, que participe, na simples medida das minhas forças, na grande arrancada para uma sociedade socialista. Ao mesmo tempo, sonho que ele consiga ajudar os docentes, os alunos e os pais a lutarem, desde já, na escola tal
como ela é hoje, a extrair da escola de hoje tudo quanto ela for capaz de dar ainda hoje — o que comporta, fundamentalmente, um avanço para o seu amanhã. Por isso me parece que ambas as perspectivas podem ser alcançadas, simultaneamente, sem que uma origine equívocos em relação à outra. Quando se toma consciência da ação conservadora, re-
produtora da escola, malgrado tantas declarações e ilusões, o primeiro movimento é abandoná-la à sua triste sorte — pelo menos até depois da Revolução. Contra esta tentação esforcei-me por mostrar que, se a escola, pelo peso da sociedade e também porinfluência da própria carga, envereda pela opressão dos oprimidos, ela é, ao mesmo tempo, um dos locais onde o combate existe, onde
ele pode, de forma privilegiada, evoluir de tal maneira que os oprimidos adquiram lucidez e força. Unir a clarividência, doravante inevitável, quanto à função da escola, e uma fundada confiança, racional e razoá-
vel no papel da escola, o seu papel atual e, sobretudo, o seu papel possível numa sociedade transformada. Mas que futuro viria a ser o seu se o seu presente não contivesse, apesar de
tudo, o germe, a promessa?
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O que implica um duplo desafio: podemos realizar a união do povo da França sem prejuízo da luta de classes; podemos desenvolver uma pedagogia progressista sem en-
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NOTASBIBLIOGRÁFICAS
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& Escola, Estado e Sociedade - Freitag m Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo (A) - Weber E Eue Tu-Buber Ideologia Alemã (A) - Marx e Engels " +. Imperialismo (O) - Fase Superior do Capitalismo - Lenine & Introdução aoPensamento : Sociológico - Arx, Parsons & Livro do Filósofo (0) - Nietzsche H Luta pelo Direito (A) - Jhering
E Razão na História (A) - Hegel
º Traité Marxiste d'Economie Politique
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Anticristo (0) - Nietzsche . Capital (0) - Edição Compacta - Marx Capítulo VI Inédito de "O Capital" - Marx ConceitosBásicos de Sociologia- Weber
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* Zazzo, Des Garçonsde 6 à 12 Ans
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