América Latina na encruzilhada: Lawfare, golpes e luta de classes 9786587233246

Sumário Apresentação PARTE I: Panorama latino-americano no século XXI Sobre o “pós-progressismo” na América Latina: cont

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Table of contents :
Sumário
Apresentação
PARTE I: Panorama latino-americano no século XXI
Sobre o “pós-progressismo” na América Latina: contribuições para o debate
Sobre o Estado, o poder político e o Estado dependente
Parte II: Progressismo e revolução: organização popular, novas constituições
e luta anticapitalista
Venezuela: breve história e análise da Revolução Bolivariana
Bolívia há doze anos do processo de mudança: desafios, apostas e riscos
A via equatoriana: luzes e sombras da Revolução Cidadã
Cuba: a revolução buscando seu socialismo
Parte III: Progressismo e reformismo: avanços sociais e limites estruturais
Brasil: o fim da Nova República – Quebra do arranjo político, crise de
representatividade e golpe de Estado no ocaso da república liberal brasileira
Argentina e as lutas populares em uma perspectiva anticapitalista
Uruguai: a continuidade do projeto do capital com legitimação social
Paraguai: o golpe de estado de classe de 2012 e o governo entreguista
antinacional
Parte IV: nem progressismo, nem revolução: a resiliência do neoliberalismo
na América Latina
Os caminhos para uma “nova esquerda” chilena no século XXI: entre o
neoliberalismo, os movimentos sociais e a nova institucionalidade
Estado, luta de classes e novo contexto de paz na Colômbia
Movimentos sociais e partidos políticos nas dinâmicas da esquerda peruana:
uma leitura crítica em chave territorial
México e “seu momento”: a história de um fracasso
Este livro foi composto em Minion Pro e Paralucent
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América Latina na encruzilhada: Lawfare, golpes e luta de classes
 9786587233246

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© Autonomia Literária, para a presente edição.

Coordenação Editorial Cauê Ameni, Hugo Albuquerque e Manuela Beloni Tradução Roberto Santana Santos e María del Carmen Villarreal Villamar Revisão : Tarcila Lucena Diagramação : Manuela Beloni Capa : Rodrigo Corrêa/@sobinfluencia Conselho editorial Carlos Sávio Gomes (UFF-RJ), Edemilson Paraná (UFC/UNB), Esther Dweck (UFRJ), Jean Tible (USP), Leda Paulani (USP), Luiz Gonzaga de Mello Belluzzo (Unicamp-Facamp), Michel Lowy (CNRS, França) e Pedro Rossi (Unicamp). Autonomia Literária Rua Conselheiro Ramalho, 945 CEP: 01325-001São Paulo - SP autonomialiteraria.com.br Traduzido por Roberto Santana Santos e María del Carmen Villarreal Villamar Amé rica Latina na encruzilhada Roberto Santana Santos João Claudio Platenik Pitillo María del Carmen Villarreal Villamar ( Organizadores ) 2020

Autonomia Liter á ria Sumário Apresentação PARTE I: Panorama latino-americano no século XXI Sobre o “pós-progressismo” na América Latina: contribuições para o debate Sobre o Estado, o poder político e o Estado dependente Parte II: Progressismo e revolução: organização popular, novas constituições e luta anticapitalista Venezuela: breve história e análise da Revolução Bolivariana Bolívia há doze anos do processo de mudança: desafios, apostas e riscos A via equatoriana: luzes e sombras da Revolução Cidadã Cuba: a revolução buscando seu socialismo Parte III: Progressismo e reformismo: avanços sociais e limites estruturais Brasil: o fim da Nova República – Quebra do arranjo político, crise de representatividade e golpe de Estado no ocaso da república liberal brasileira Argentina e as lutas populares em uma perspectiva anticapitalista Uruguai: a continuidade do projeto do capital com legitimação social Paraguai: o golpe de estado de classe de 2012 e o governo entreguista antinacional Parte IV: nem progressismo, nem revolução: a resiliência do neoliberalismo na América Latina Os caminhos para uma “nova esquerda” chilena no século XXI: entre o neoliberalismo, os movimentos sociais e a nova institucionalidade Estado, luta de classes e novo contexto de paz na Colômbia Movimentos sociais e partidos políticos nas dinâmicas da esquerda peruana: uma leitura crítica em chave territorial México e “seu momento”: a história de um fracasso Este livro foi composto em Minion Pro e Paralucent Landmarks Capa Apresentação

Roberto Santana Santos ¹ João Claudio Platenik Pitillo ² María del Carmen Villarreal Villamar ³ A década de 2000 na América Latina foi marcada por um avanço de forças políticas de esquerda. O chamado “giro à esquerda” ou “maré rosa” na região incluiu as vitórias de vários partidos e coalizões tradicionalmente de esquerda ou autodenominadas de esquerda. Aos triunfos iniciais destes agrupamentos em países como Venezuela, Brasil, Argentina e Bolívia, somaram-se mais tarde Nicarágua, Paraguai, Equador e El Salvador, consolidando com isso um ciclo progressista sem precedentes na América Latina. Variando na intensidade de suas políticas e posicionamentos, a região foi palco de sucessivas vitórias eleitorais de (autodenominadas) forças progressistas que tentaram romper com as premissas centrais do Consenso de Washington e recuperar as capacidades estatais. Além do retorno do Estado e do horizonte pós-neoliberal que encarnaram, estes processos se caracterizaram também pela alta popularidade de suas lideranças, um crescimento econômico baseado no aprofundamento do capitalismo extrativista e na reprimarização exportadora, assim como em uma melhor divisão de renda, com políticas sociais e programas de combate à miséria. Novos atores políticos e até novas formas de fazer política surgiram a partir dessa conjuntura, com posicionamentos diversos, muitas vezes em contraposição ao conservadorismo e ao neoliberalismo. A década de 2010, no entanto, testemunhou uma gradual mudança de cenário. A crise econômica mundial, que se apresentou com mais força a partir de 2008, golpeia fortemente a América Latina, levando à queda dos índices econômicos e a perda de fôlego por parte das chamadas “experiências progressistas”. Várias forças políticas foram retiradas do poder, seja por derrotas eleitorais, seja por novas formas de golpes de Estado. Outras permanecem no poder, porém tendo que enfrentar cada vez mais uma direita (muitas vezes de contornos fascistas) que se rearticula e recebe apoio estrangeiro para regressar a região ao neoliberalismo ortodoxo. É sobre essa conjuntura de refluxo e de desafios para a esquerda latino-americana que esta obra pretende refletir. O trabalho coletivo que aqui apresentamos parte de olhares heterogêneos que evidenciam a pluralidade de visões de esquerda presentes na região e oferece contribuições que são de inteira responsabilidade de cada um dos autores e autoras. A partir de diversas perspectivas, os capítulos aqui reunidos visam fazer um balanço dos governos progressistas latinoamericanos, suas diferenças, propostas e, principalmente, seus limites e contradições dentro de uma conjuntura desfavorável como a atual. O objetivo é oferecer um panorama latino-americano dos governos revolucionários, social-liberais ou até de forças políticas de esquerda que não chegaram ao governo. Paralelamente, os capítulos que compõem esta obra apresentam os caminhos possíveis para as forças populares da região, tanto em países que resistem à onda conservadora, quanto naqueles onde as forças populares foram momentaneamente derrotadas, ou até mesmo naqueles em que a esquerda sequer chegou ao governo.

O livro está dividido em quatro partes. A primeira parte, “Panorama latinoamericano no século XXI”, oferece uma visão geral dos governos progressistas e está formada por dois capítulos. No primeiro capítulo “Sobre o ‘pós-progressismo’ na América Latina: contribuições para o debate”, Atilio Borón e Paula Klachko reconhecem a importância da crítica e da necessária autocrítica que deve ser feita pelos governos de esquerda da região, mas defendem o legado destes acerca das conquistas materiais, culturais, políticas e de direitos humanos alcançadas, assim como os avanços em relação aos processos de integração regional e de autonomia dentro do sistema capitalista. Desta forma, segundo os autores, os acertos dos processos progressistas, vistos em perspectiva histórica, superam seus desacertos e limitações. O capítulo 2, “Sobre o Estado, o poder político e o Estado dependente”, é de autoria de Jaime Osorio e nele são analisados alguns pontos fundamentais da relação existente entre Estado, poder político e revolução. Para tanto, o autor considera o Estado capitalista como a condensação das relações de poder político e de domínio, destacando, porém, as particularidades do Estado dependente que caracteriza os países latino-americanos e as limitações que isto implica na procura de horizontes emancipadores. A segunda parte do livro, “Progressismo e revolução: organização popular, novas constituições e luta anticapitalista”, está formada por diversos capítulos que analisam as experiências de Venezuela, Bolívia, Equador e Cuba. No capítulo 3, “Venezuela: breve história e análise da Revolução Bolivariana”, Roberto Santana Santos oferece uma síntese da história da Revolução Bolivariana e realiza uma avaliação deste processo dirigido por Hugo Chávez, analisando as características desta experiência, suas políticas, formas de organização popular, contradições e atuais desafios. O capítulo 4, “Bolívia, há doze anos do processo de mudança: desafios, apostas e riscos”, é de autoria de Rebeca Peralta Mariñelarena e nele é estudada a experiência do “processo de mudança” boliviano, fazendo um balanço do governo de Evo Morales desde 2006 com o objetivo de identificar quanto se avançou na concretização do programa do Movimiento al Socialismo-Instrumento Político por la Soberanía de los Pueblos, MAS-IPSP, e do sujeito indígena popular. O capítulo discute também a atual conjuntura política boliviana, ao passo que reflete sobre os desafios e as alternativas possíveis das forças populares na Bolívia. No capítulo 5, “A via equatoriana: luzes e sombras da Revolução Cidadã”, María del Carmen Villarreal Villamar analisa a experiência de governo do movimento Alianza País com o propósito de destacar as esperanças que este processo alimentou desde sua vitória em 2006 e seus principais acertos, especialmente no que diz respeito à promoção de um projeto de desenvolvimento autônomo e a criação de políticas sociais para reduzir a pobreza e a desigualdade no Equador. Ao mesmo tempo, são também examinados os limites e alguns dos principais paradoxos do projeto da Revolução Cidadã. No capítulo 6, “Cuba: a revolução buscando seu socialismo”, Luiz Eduardo Mergulhão Ruas considera a Revolução Cubana como um dos

acontecimentos fundamentais do século XX, tanto pelas suas implicações internas quanto pelo impacto internacional que esta tem alcançado. O autor examina o processo cubano em perspectiva histórica, destacando suas contradições, limites e desafios, especialmente após a aprovação dos Lineamientos “Diretrizes da Política Econômica e Social do Partido e da Revolução” de 2010. A terceira parte do livro, “Progressismo e reformismo: avanços sociais e limites estruturais”, está dedicada à análise das experiências de Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai. No capítulo 7, “Brasil: o fim da Nova República – quebra do arranjo político, crise de representatividade e golpe de Estado no ocaso da República liberal brasileira”, Roberto Santana e João Cláudio Platenik analisam o sistema político brasileiro e o ocaso da Nova República. Para os autores, o golpe – disfarçado de impeachment – que determinou o fim da presidência de Dilma Rousseff marcou o fim da legalidade e a ruptura com a ordem política anterior que constituía um regime da classe dominante. Para eles, o arranjo pós-ditadura chegou ao seu fim, menos por sua superação do que pela crise de representatividade e pelo esvaziamento de seu conteúdo e sentido, deixando de conter as contradições da sociedade brasileira e suas forças políticas. No capítulo 8, “Argentina e as lutas populares numa perspectiva capitalista”, Júlio Gambina analisa a experiência argentina a partir da ofensiva neoliberal imposta pela ditadura em 1976 até a crise de 2001, a posterior chegada dos governos kirchneristas e o aparente fim de ciclo com a vitória de Mauricio Macri. O caso argentino, caracterizado pela ampla presença de heterogêneos movimentos, coletivos e reivindicações (a favor dos direitos humanos, de luta pela terra, pela justiça, pelo trabalho e etc.), é estudado à luz das tendências do capitalismo contemporâneo e sua crise, que se verifica no meio de processos de luta e resistência dos povos para recriar condições na disputa anticapitalista pelo socialismo. No capítulo 9, “Uruguai: a continuidade do projeto do capital com legitimação social”, Antonio Elías estuda as especificidades e pontos de força da Frente Ampla uruguaia em relação às outras experiências progressistas da região, ao passo que analisa os desafios e limites contemporâneos desta experiência tanto em termos nacionais quanto globais. No capítulo, são também abordadas algumas das tarefas que enfrentam os trabalhadores organizados e a esquerda uruguaia dentro e fora da Frente Ampla em relação às pressões das forças neoliberais a favor do capital transnacional. No capítulo 10, “Paraguai: o golpe de Estado de classe de 2012 e o governo entreguista antinacional”, Cecilia Vuyk examina o caso paraguaio a partir de três elementos: as características da vitória popular e o governo de Fernando Lugo, os interesses nacionais e estrangeiros que levaram ao golpe de 2012 e as bases do governo liderado por Horacio Cartes e aprofundadas por Mario Abdo Benítez. A partir da análise destes três processos, o capítulo considera os desafios da classe trabalhadora paraguaia na conquista de um projeto de desenvolvimento nacional, soberano e independente.

Na quarta parte desta obra coletiva, “Nem progressismo, nem revolução: a resiliência do neoliberalismo na América Latina”, são analisadas as experiências de Chile, Colômbia, Peru e México. No capítulo 11, “Os caminhos para uma ‘nova esquerda’ chilena do século XXI: entre o neoliberalismo, os movimentos sociais e a nova institucionalidade”, Matías Ortíz Figueroa, a partir de um olhar histórico, analisa a experiência da esquerda chilena que, no contexto do protagonismo de movimentos sociais e lutas contra o neoliberalismo, tem permitido a emergência da Frente Ampla. Entendida como uma nova esquerda, considera-se que a Frente Ampla vincula o social e o político contra a “velha ordem” e, neste sentido, tem o potencial de refundar a tradição de luta e emancipação em prol de soberanias populares e democracias radicais que a ditadura militar de Augusto Pinochet tentou apagar. No capítulo 12, “Estado, luta de classes e novo contexto de paz na Colômbia”, Sergio Quintero Londoño examina a experiência colombiana, considerando o capitalismo periférico e o caráter repressor que distingue historicamente o Estado colombiano. No contexto da assinatura dos Acordos de Paz de Havana, o autor evidencia que este processo oferece amplas possibilidades de transformação capazes de fortalecer as alternativas contra-hegemônicas ao capitalismo e ao predomínio das forças conservadoras em prol da construção da emancipação humana. No capítulo 13, “Movimentos sociais e partidos políticos nas dinâmicas da esquerda peruana: uma leitura crítica em chave territorial”, Ricardo Jiménez Palacios aborda a experiência peruana no marco da teoria das ondas de integração. A este respeito, o autor estuda a institucionalização do neoliberalismo no Peru desde a ditadura de Alberto Fujimori até os recentes avanços e contradições da esquerda nacional, considerando que os diversos processos de mobilização e seu correlato nos processos eleitorais estabelecem uma dicotomia territorial entre o centro, constituído pela capital limenha, e os territórios periféricos, com particular ênfase no Sul do país. No capítulo 14, “México e ‘seu momento’: a história de um fracasso”, Antonio Palazuelos Manso examina a experiência mexicana sob um olhar crítico, argumentando que o país constitui um exemplo emblemático de ortodoxia neoliberal e uma estratégia de desenvolvimento fracassada, tanto a partir do ponto de vista econômico, como político e social. No capítulo, são analisados também o otimismo e as esperanças suscitadas pela chegada à Presidência da República de Andrés Manuel López Obrador, assim como algumas das principais contradições que emergem das decisões de seu governo. A partir de múltiplas perspectivas de esquerda, desejamos que a leitura deste livro permita refletir criticamente sobre os processos de transformação econômica, política e social que aconteceram na América Latina desde princípios do século XXI. Em um momento crucial para o nosso continente, queremos contribuir para analisar as opções oferecidas pelos projetos progressistas em prol da construção de sociedades que possam combater a dominação dos mercados e priorizem a justiça social, os direitos e o desenvolvimento das pessoas.

¹ Doutor em Políticas Públicas e mestre em História Política pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Secretário-executivo da Rede de Economia Global e Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (REGGENUnesco). Contato: [email protected]. ² Doutorando em História Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Mestre em História Comparada pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Contato: [email protected]. ³ Doutora em Ciência Política pela Universidade Complutense de Madrid. Professora Permanente e Pós-doutoranda Nota 10 da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) no Programa de Pósgraduação em Ciência Política (PPGC) da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Pesquisadora do Grupo de Relações Internacionais e Sul Global (Grisul) e da Plataforma Latitude Sul. Contato: [email protected]. PARTE I: Panorama latino-americano no século XXI Sobre o “pós-progressismo” na América Latina: contribuições para o debate ⁴ Atilio A. Borón e Paula Klachko ⁵ Nos últimos dias, chegou às nossas mãos um artigo de Massimo Modonesi e Maristella Svampa no qual propõem pensar o pós-progressismo na América Latina. ⁶ Segundo estes autores, a tarefa tem se tornado urgente e imperativa “à luz da súbita aceleração do fim do ciclo que vem acontecendo desde 2015”. Sintomas claros deste caso seriam a impossibilidade de dois dos principais líderes desta nova etapa serem reeleitos como presidentes (Evo Morales, na Bolívia, e Rafael Correa, no Equador), a derrota do oficialismo kirchnerista na Argentina para uma heteróclita coalizão de direita, enquanto no Brasil Dilma Rousseff foi tirada de seu cargo – de forma “legal, mas ilegitimamente”, segundo estes autores ⁷ –, e o cerco a Nicolás Maduro por uma Assembleia Nacional controlada pela oposição, somado ao desgaste de seu governo graças à grave crise econômica – cuja gênesis deveria ser explicada aos leitores, coisa que os autores não fazem. Chama muito a atenção que, ao analisar um tema como este, se passe por alto, como se fosse um detalhe sem importância, a vigência dos três governos dos países que conformam o núcleo duro da mudança de época progressista em nossa América – Venezuela, Bolívia e Equador –, governos que têm realizado profundas reformas sociais, econômicas e políticas e, além disso, têm planejado um horizonte pós-capitalista em longo prazo. Apesar de todos os obstáculos e dificuldades que atravessam – em boa medida atribuíveis ao permanente assédio do imperialismo –, essas coalizões de esquerda ainda mantêm os governos. O mesmo acontece nos casos de El Salvador e Nicarágua, razão pela qual é necessário um estudo mais minucioso desta problemática.

A partir de sua caracterização inicial, os autores advertem sobre a necessidade de evitar cair na armadilha maniqueísta que obriga a optar entre a continuidade do progressismo ou a restauração neoliberal; armadilha que, segundo eles, “oculta uma chantagem orientada a propiciar um artificial cerramento de fileiras por trás dos líderes e partidos do progressismo”. Para evitar esta situação, Modonesi e Svampa propõem recuperar a história e o protagonismo dos movimentos sociais na gestação da fase progressista como chaves para desentranhar as características da nova etapa pós-progressista que começa, fora da camisa de força da política partidária, dos cronogramas eleitorais e das alternâncias governamentais. Os movimentos sociais e as expressões sociais e políticas da luta de classes Depois de dito o anterior, os autores começam afirmando o evidente: que o ciclo progressista, em ascensão desde meados dos anos 1990, teve como protagonista das lutas e resistências ao neoliberalismo um vasto conjunto de movimentos sociais. Isto é verdade, mas no seu desejo por sublinhar a importância deste elemento, com a qual coincidimos, subestimam o papel dos partidos políticos e das expressões da luta de classes no terreno da política institucional. É um erro minimizar a importância destas organizações tradicionais em contextos democráticos, sempre produtos da luta de massas ou fortemente modificados por ela. Em numerosos enfrentamentos sociais realizados nos anos 1990 e princípios dos 2000, sindicatos e organizações tradicionais dos diversos estratos e frações do povo (como os sindicatos cocaleiros na Bolívia, as organizações indígenas e camponesas no Equador, os sindicatos industriais ou de trabalhadores estatais no Brasil e na Argentina, entre muitas outras), e até setores das forças armadas (especialmente no caso da Venezuela), tiveram um papel muito relevante nessas lutas. Não todo o protagonismo foi sempre, e de maneira exclusiva, dos movimentos sociais. O inquestionável ativismo de diversas camadas populares mobilizadas e suas organizações – novas ⁸ ou tradicionais – nas fases preliminares do ciclo progressista tem sido reconhecido e reafirmado permanentemente pelos líderes e pelas forças políticas dos governos progressistas, que, ao contrário do que afirmam nossos autores, não descrevem sua ascensão política como uma “prístina conquista do palácio”. Mesmo governos que se esforçaram por construir um relato épico sobre seu acesso ao poder – por exemplo, o kirchnerismo argentino – têm explicitamente reconhecido que seu sucesso eleitoral está baseado nas grandes jornadas de luta de finais do século XX e começo do XXI. Para não falar da permanente referência de Evo Morales e Álvaro García Linera às guerras da água e do gás, entre outras; ou às de Nicolás Maduro, e antes Hugo Chávez, ao caracazo e às insurreições de militares bolivarianos. Além disso, é evidente que estes desenlaces eleitorais que mudaram o mapa sociopolítico da América Latina são reflexos – mediatizados, mas reflexos ao fim – da turbulenta irrupção do universo plebeu na política nacional. A partir destas premissas, Modonesi e Svampa formulam a seguinte conclusão:

[...] ainda com suas apostas defensivas, suas formas heterogêneas e suas práticas contraditórias, na América Latina, foram os movimentos populares que abriram novos horizontes a partir dos quais pensam-se a política e as relações sociais, instalando outros temas na agenda política: desde o reclamo frente à desapropriação dos direitos mais elementares e o questionamento às formas representativas vigentes, até a proposta de construção da autonomia como projeto político, a exigência de desconcentração e socialização do poder (político e econômico) e a ressignificação dos bens naturais. Não obstante, o protagonismo na luta dos movimentos sociais não foi igual em todos os contextos nacionais. Não foi o mesmo na Bolívia ou no Uruguai e na Venezuela, por exemplo. Que muitos dos temas mencionados acima foram impulsionados com força por esses movimentos também é verdade, mas nos parece que atribuir-lhes exclusividade como impulsores da crítica à ordem neoliberal vigente não é completamente correto. Em primeiro lugar, subestima-se o papel das organizações políticas, mesmo das criadas pelos movimentos sociais ou sindicais como instrumentos eleitorais. Todavia, a esta altura, já sabemos por experiência histórica que, se a arma da crítica não substitui a crítica das armas, aquela constitui um insumo indispensável na constituição de um novo clima de época. Neste sentido, nossos autores passam por alto pelo papel que numerosos intelectuais críticos tiveram no combate contra o neoliberalismo desde finais dos anos 1980, com antecedência – ou pelo menos paralelamente – à irrupção dos movimentos sociais, assim como pelo papel que muitos intelectuais e dirigentes orgânicos desempenharam na criação de renovadas organizações populares. Por exemplo: a crítica à “decidadanização” provocada pelas políticas neoliberais e as insanáveis deficiências da democracia liberal eram parte do discurso contra-hegemônico que o marxismo – o latino-americano, mas também em certos países da Europa e nos Estados Unidos – vinha colocando com força desde aqueles anos. O tema da desconcentração e da socialização do poder, econômico e político, foi cultivado com esforço pelas e pelos pensadores críticos da América Latina, ao passo que estes deviam enfrentar aqueles que, ainda aduzindo a um discurso de suposta esquerda, somavamse ao coro de vozes que exaltavam o advento de uma democracia política supostamente depurada de seus conteúdos classistas, proclamavam o fim da história, celebravam as visões burguesas de um presuntuoso póscapitalismo, ou a irresistível ascensão de uma pós-modernidade que teria posto fim à luta de classes e eliminado do horizonte histórico as perspectivas do socialismo. Tudo isto de forma alguma equivale a menosprezar a essencial e protagonista contribuição dos movimentos sociais na produção destes acontecimentos históricos, mas serve apenas para lembrar que sua situação estava muito longe de ser a de Adão no primeiro dia da criação do mundo. Retomando o fio de nossa argumentação, Modonesi e Svampa acertam quando asseguram que os movimentos sociais deram vida a “uma pluralidade organizativa e temática poucas vezes vista”. Isto aconteceu em um contexto ideológico em que o repúdio aos partidos políticos e aos sindicatos, sobretudo aos primeiros, e a prédica a favor de uma renúncia à tomada do poder marcavam com força o espírito da época. Tal como afirmam nossos autores, estes movimentos estabeleceram complexas e

voláteis relações com os governos progressistas, mesmo no caso daqueles, como na Bolívia, que tinham surgido de seu avassalador protagonismo. Três teriam sido os eixos dessa “mudança de época: a irrupção popular, as demandas de autonomia e a defensa da terra e do território”. Curiosamente, componentes cruciais dessa época – ainda inconclusa –, como o antiimperialismo, o latino-americanismo, a soberania nacional, a recuperação dos bens comuns e as políticas de combate à pobreza e redistribuição da riqueza, não parecem ter jogado nenhum papel para Modonesi e Svampa, apesar de terem sido estes e não as exigências de autonomia popular que desencadearam a furiosa reação das oligarquias locais e o imperialismo. As resistências aos estragos do neoliberalismo permitiram a emergência de novas lideranças e formações políticas entre os distintos estratos populares, que vinham protagonizando intensas lutas nos terrenos econômico e político, inclusive no militar, como nos casos do Partido dos Trabalhadores (PT) brasileiro, o chavismo, a Frente Ampla (FA) do Uruguai, o Movimento ao Socialismo (MAS) boliviano, Alianza País no Equador, ou o reforço do protagonismo de organizações revolucionárias como a Frente Sandinista para la Liberación Nacional na Nicarágua (FSLN) e a Frente Farabundo Martí para la Liberación Nacional (FMLN) em El Salvador. Na Argentina, a oposição às consequências das políticas neoliberais, primeiro, e ao neoliberalismo no seu conjunto depois, expressou-se em um crescente movimento de protesto em nível nacional, marcado por impactantes enfrentamentos sociais protagonizados por diversas frações popular e mediante variados instrumentos de luta (fechamento de estradas, marchas, greves e etc.) dos quais brotaram novas organizações sociais, em um marco de fortes disputas no interior da classe dominante. Não obstante, posteriormente, foi uma combinação de distintas forças políticas tradicionais que chegou ao governo recolhendo essas demandas, e a partir daí se colocaram em discussão algumas das premissas do neoliberalismo. Essa é a história do kirchnerismo, surgido do interior do Partido Justicialista e enfrentando a linha neoliberal dura do mesmo partido: o menemismo. Também em outros países surgiram expressões divergentes dentro dos partidos tradicionais, ou se formaram alianças com setores desses partidos políticos que expressaram oposição às políticas neoliberais e chegaram aos governos, como é o caso da curta experiência da presidência de Manuel “Mel” Zelaya do Partido Liberal em Honduras e da Frente Guasú no Paraguai, que estabeleceu alianças com o Partido Liberal. ⁹ Desta forma, não escutando uma perniciosa moda intelectual que percorreu o continente de ponta a ponta há alguns anos e que exortava a não tomar o poder, porque tal coisa contaminaria irremissivelmente com o vírus estadista os movimentos sociais e seus projetos emancipatórios, numerosas organizações sociais e forças políticas começaram a desenhar instrumentos, alianças e estratégias tendentes, precisamente, a conquistar o poder – ou pelo menos o governo –, apelando aos dispositivos institucionais do Estado burguês. Esta opção e o convencimento de que a derrota sofrida pelas tentativas insurrecionais das décadas anteriores, com exceção do ocorrido na Nicarágua e em El Salvador, teriam fechado esse ciclo (pelo menos no momento), e o único caminho aberto naquele momento até o poder transitava pelo emaranhado institucional da democracia capitalista. ¹⁰

Modonesi e Svampa estão certos quando afirmam que “nas suas versões extremas, este raciocínio desafiou o pensamento de esquerda mais ancorado nas visões clássicas sobre o poder”. Porém, erram quando ignoram que este desafio foi, mais que nada, a suicida negação da problemática do poder, e não a criação de uma nova concepção deste, de sua composição e, seguindo Maquiavel, de qualquer elaboração encaminhada para responder às cruciais perguntas de como se conquista, como se mantém e como se pode perder o poder. Em outras palavras, um desafio que não superava, nem no plano da teoria, muito menos no da prática, isso que os clássicos do marxismo definiram como “o problema fundamental de toda revolução”. Em relação à irrupção popular, nossos autores afirmam que com isso se instalou no espaço público “a política da rua” e a demanda de autonomia, mesmo que o leitor ou a leitora não possam inferir em relação a quem se estabelecia essa demanda de autonomia. No terreno estratégico, dizem, remitia à prática da “autodeterminação” e, também, a um horizonte emancipatório. Ignora-se, obviamente, o fato de que a autonomia de um movimento social pouco significa por si, posto que pode assumir tanto um conteúdo político de direita como de esquerda, e não necessariamente estar ligado a um projeto de emancipação social. Não poucas vezes, a história latino-americana tem demostrado que movimentos autônomos terminaram sendo mais uma expressão da hegemonia burguesa. Exemplos disso podem ser certas variantes do ecologismo que começaram com abordagens radicais e terminaram propondo nada menos do que um inverossímil “capitalismo verde” muito bem visto pelas grandes transnacionais. O mesmo cabe dizer de algumas organizações camponesas ou indígenas que terminaram ficando do lado da reação na Bolívia e no Equador. Em Duas táticas da social-democracia na revolução democrática , Lenin observa que a questão da autonomia reside menos no aspecto subjetivo que no objetivo; não na posição formal que a organização ocupa na luta, ou em seu discurso político, mas no desenlace material do enfrentamento. ¹¹ Os sujeitos sociais e suas organizações podem considerar a si mesmos como autônomos, mas, se eles não conseguem dar um sentido aos acontecimentos históricos, sós ou mediante a articulação das alianças que sejam necessárias para fazê-lo, sua pretensão de autonomia acaba se diluindo nas iniciativas das classes e frações sociais dominantes. Por outro lado, não cabem dúvidas que a narrativa que circundou o auge dos movimentos deu lugar a um novo ethos militante. Mas quais foram os componentes desse ethos ? A luta contra as ameaças burocratizantes que pairavam sobre os movimentos; o culto ao “basismo” e ao horizontalismo, virtudes em certo tipo de organizações e em alguns momentos históricos, mas de duvidosa efetividade prática; uma forte demanda pela democratização das organizações, que é preciso dizê-lo, não necessariamente significa a exaltação do “basismo” e do horizontalismo; e, por último, uma radical desconfiança em relação aos – quando não uma aberta rejeição de – partidos, sindicatos ou de qualquer preexistente “instância articulatória superior”, condenados irremissivelmente a trair as expectativas populares. Depois disto, nossos autores deveriam tratar de explicar a formidável capacidade de convocatória popular demonstrada, em diversos momentos, por forças políticas e organizações populares que se

afastavam do paradigma proposto acima. Os milhões de venezuelanos que respondiam ao chamado de Hugo Chávez ou, ainda hoje o fazem, perante a convocatória do presidente Nicolás Maduro; ou as multitudinárias concentrações que souberam realizar o PT brasileiro, o MAS Boliviano ou o Frente para la Victoria (FPV) na Argentina, ou o Movimiento Regeneración Nacional (MORENA) no México, foram só o produto da subordinação clientelística das massas ou expressavam algo mais? Nossos autores mostram que a “territorialidade” foi outra das dimensões específicas dos novos movimentos sociais da região. Isto é verdade, e também que esta ancoragem no territorial como plataforma de resistência criou novas relações sociais. Mas é preciso sublinhar, para entender cabalmente este processo, que esta retração sobre o territorial foi incentivada pela violenta ruptura do tecido social que as políticas neoliberais (executadas desde os governos, convém não esquecê-lo) provocaram e pelos altos níveis de desemprego e/ou precarização laboral, que causaram o radical enfraquecimento do sindicalismo e que não deixaram outra alternativa às classes populares que se refugiar – por um tempo – na sua última trincheira: o território. Mais do que uma opção ideológica, foi um fato prático que, obviamente, não podia deixar de dar origem à criação de novas relações sociais. Não é a mesma coisa o companheiro ou a companheira de trabalho que o vizinho desempregado ou informalizado que compartilha a marginalidade em um assentamento de emergência, uma favela ou um bairro popular; nem são as mesmas necessidades ou reclamações, nem, portanto, podem ser iguais as formas de luta e organização. Isto sem perder de vista que o que estava mudando era a composição da classe operária e, em geral, do universo popular em direção a outra mais difusa e volátil, tal como lembra em vários de seus escritos Álvaro García Linera. Mesmo que uma parte da esquerda intelectual se somasse a dizer “adeus ao proletariado”, ¹² este não desapareceu nem como classe em si, nem como sujeito de luta, pois no seu sentido estrito – e não restringido, mas bem amplo – o conceito se refere a todas as pessoas que só contam para a produção e reprodução de suas vidas com sua força de trabalho, seja esta física ou mental, força que devem vender em troca de um salário aos que possuem a propriedade sobre os meios de produção, consigam ou não fazê-lo. As modalidades de ligação ao capital vão se modificando permanentemente com a mudança das forças produtivas e as relações sociais de produção, tudo isto gera diversos cenários e experiências de luta e, obviamente, transforma a morfologia do universo assalariado. Seguindo o raciocínio de nossos autores, de sua proposta anterior deriva que o ocaso do velho paradigma socialista revolucionário articulador das lutas das décadas de 1960 e 70, foi substituído por “um não paradigma, um horizonte emancipatório mais difuso, donde prosperaram posturas de carácter destituinte e de rejeição a toda relação com o aparato do Estado”. É verdade que a profunda crise de representatividade desatada pela cumplicidade de muitos partidos e sindicatos da América Latina (melhor nem falar da Europa!) com as políticas neoliberais dos 1990 repercutiu em todas as representações institucionais, incluídas as da esquerda, abrindo profundos debates que exigiam uma democratização das organizações

populares. Este paradigma destituinte coincidiu com a fase de resistência aos governos neoliberais, mas depois, em vários países, foi possível contornar o obstáculo da falta de representação política e de projeto emancipador, e foram-se constituindo novas lideranças e expressões políticas que conseguiram ascender aos governos nacionais, retomando as velhas bandeiras de luta dos povos, como o socialismo, o bem viver, a democracia, a defesa da Mãe Terra etc. Por isso é importante sublinhar que o projeto destituinte das lutas do povo se materializou para depois se tornar instituinte de algo novo, que ao mesmo tempo incorpora a experiência histórica prévia. Uma vez constituídos os governos populares, passa-se da “fase heróica” , para utilizar palavras de García Linera, a certa retração em respeito à vida cotidiana que tinha sido tão afetada pelas políticas neoliberais e pelas árduas tarefas de exercer a função governamental. A raiz desta mudança, a destituição dos governos populares, passa a ser a preocupação obsessiva das classes dominantes locais e seus chefes imperiais. Por isso, de prosperar a perspectiva destituinte que nossos autores pretendem resgatar como um dos elementos fundantes dos movimentos sociais que abriram o ciclo progressista, caberia agora se perguntar, destituinte de quem? Porque uma coisa é pretender derrocar a um governo que recupera os bens comuns da nação, enfrenta o imperialismo – com maior ou menor importância, mas enfrenta –, promove a integração latino-americana e redistribui a riqueza, e outra muito distinta é fazê-lo frente aos governos neoliberais de ontem (Fujimori, Menem ou De la Rúa, Sánchez de Losada, Salinas de Gortari, Fernando H. Cardoso, Sanguinetti, Abdalá Bucarám e etc.). Em relação a estes últimos, essa vocação subversiva foi virtuosa, mas não assim quando se trata de depor aos governos de signo progressista que, apesar de suas limitações, constitui um fenômeno sociopolítico e de classe radicalmente diferente. Não menos enigmática resulta a proposta de um horizonte emancipatório difuso construído a partir da radical rejeição do Estado e seus aparatos. Isto revela uma virginal inocência que, no tenebroso mundo do imperialismo, costuma se pagar a preços exorbitantes. Porque, como conseguir a “emancipação difusa” que requer lutar uma intensa, e por momentos violenta, luta de classes contra as oligarquias dominantes e o imperialismo sem contar com o crucial protagonismo do Estado? Como se preserva a Mãe Terra sem uma legislação que controle e castigue a depredação capitalista? Basta para isso as exortações dos movimentos sociais? Foi justamente esse divórcio entre movimentos sociais e Estado, ou mais precisamente, a cumplicidade do velho Estado oligárquico equatoriano com a Texaco e depois com a Chevron, antes da ascensão de Rafael Correa, o que explica o desastre produzido na Amazônia equatoriana. Como se combate a precarização laboral e a concentração da riqueza? Basta organizar assembleias horizontais para que os capitalistas se inclinem perante o reclamo popular? Esta classe de raciocínios lembra uma passagem da Bíblia em que se conta que sete sacerdotes judeus fizeram entoar com força suas trombetas logrando o milagre de derrubar as imponentes muralhas de Jericó. Lendo nossos autores e outros tributários de uma perspectiva política semelhante, parece que bastaria que os sujeitos sociais invocassem um difuso horizonte emancipatório para que as muralhas do capitalismo e do imperialismo fossem derrubadas ante a potência revolucionária de seu

discurso. Onde e quando as classes subalternas puderam derrotar o bloco dominante sem contar com o poder do Estado? Porém, Modonesi e Svampa fazem ouvidos surdos a estas reflexões e concluem que “rapidamente, se assistiu ao declínio das demandas e práticas de autonomia e a transformação da perspectiva popular em populista, a afirmação do transformismo e o cesarismo – decisionista e carismático – como dispositivos desarticuladores dos movimentos desde abajo ”. Sobre isto cabe também formular vários comentários. Primeiro, que foi o que aconteceu para que esses movimentos sociais velozmente jogassem fora suas demandas e suas práticas autonomistas? Será, por acaso, pela traição de seus chefes? (Acusação favorita dos trotskistas desde tempos imemoriais, dirigida rotineiramente a todas as organizações que eles não controlam.) Ou será que aquelas demandas tropeçaram com um limite prático que requeriam, para o alcance de seus objetivos, estabelecer algum tipo de relação com os aparatos estatais, sobretudo perante a existência de governos dispostos a satisfazer suas demandas? Em segundo lugar, o trânsito da irrupção popular ao populismo mereceria ser explicado muito cuidadosamente, mesmo que fosse pela reconhecida imprecisão que comporta o termo populismo e que, em mãos de seu mais importante cultuador, Ernesto Laclau, servia para caracterizar a política de Hugo Chávez tanto como a de Álvaro Uribe. E que dizer do “cesarismo decisionista e carismático”: foi um esquema perverso para desarticular a vitalidade e o dinamismo dos movimentos sociais? Não seria mais lógico pensar que, se surgiu essa classe de regimes políticos, foi como produto de uma constelação de fatores que, sem negá-los, excede muito os influxos dos movimentos sociais? Não havia outros atores nas cenas políticas dos países que se incorporaram ao ciclo progressista? Não havia ali oligarquias históricas, vorazes burguesias, militares doutrinados pelos Estados Unidos desde a Segunda Guerra Mundial, incontroláveis poderes midiáticos e o papel onipresente da “embaixada” – como o demostra os vazamentos do Wikileaks –, todos conspirando para reprimir os desejos emancipatórios das massas? E que, para neutralizar uma contraofensiva de inimigos tão poderosos e tão bem organizados, requeria-se uma certa concentração do poder político? Em suma, não havia luta de classes nos países governados pelo progressismo? Sobre quais bases se pode, então, pensar que a emergência de fortes lideranças como as de Chávez, Lula, Kirchner, Evo e Correa foram produtos de “personalidades autoritárias” (um velho tema da sociologia funcionalista dos anos 1950) ou uma sorte da perversa “astúcia da razão” destinada a desmobilizar e desarticular os vigorosos movimentos sociais de finais do século passado e começos do presente? De qualquer forma, não seria prudente se perguntar sobre os fatores que explicam a “verticalização” dos movimentos sociais, sua dependência do Estado, cujos alcances, por outra parte, mal poderiam se generalizar, porque não tiveram a mesma força na Bolívia e no Equador que na Argentina, país que talvez represente a versão extrema deste processo de “controle desde cima” do sujeito popular? E se perguntar também, se efetivamente se produz essa “monopolização do povo” por parte dos governos progressistas, coisa que em princípio nos parece sumamente discutível e carente de sustento empírico.

Modonesi e Svampa dizem que não poucos autonomistas radicais se tornaram furiosos populistas e assumiram a defesa e a promoção irrestrita do líder. Não seria bom também tentar explicar com os instrumentos do materialismo histórico a meteórica aparição de uma liderança popular capaz de turvar a visão dos autonomistas e de subjugar a vontade popular? Ou é porque nossos autores se baseiam nas teorias funcionalistas da modernização segundo as quais um intenso processo de mudanças deixa as massas “em disponibilidade” e indefesas para serem manipuladas à sua vontade por um líder carismático. Longe desta leitura equivocada, é preciso recuperar o caminho da construção coletiva da história e analisar os fatos e processos sociopolíticos como resultados do choque de múltiplos sujeitos que formam aquele “paralelogramo de forças” referido por Engels e do qual surge o sentido do processo histórico. Cabe se perguntar se a capitulação do autonomismo não tem a ver com o fato de que as forças políticas progressistas ou de esquerda no governo puderam expressar e dar satisfação, mesmo que seja parcial, às demandas dos diversos sujeitos populares. Estratégias e projetos que podem corresponder ou não às propostas por algumas organizações, mas que evidentemente foram lidas e articuladas – pelo menos em parte – por forças políticas e alguns líderes carismáticos. A experiência concreta mostra que as demandas que primaram e organizaram as estratégias objetivas das lutas populares giraram em torno da melhora na qualidade de vida e do trabalho, uma maior participação democrática e maiores graus de soberania política e econômica frente à entrega de nossos países ao imperialismo. E estas demandas foram, em maior ou menor medida segundo os casos, satisfeitas pelos governos progressistas. Foi por isso que a reivindicação autonomista passou, sem ser abandonada por completa, a um segundo plano. Produtividade histórica e limitações dos “progressismos realmente existentes” Na segunda parte do seu artigo, Modonesi e Svampa examinam os desvios dos “progressismos realmente existentes”. O tom é claramente crítico destas experiências que “pareciam abrir a possibilidade de concretizar algumas demandas de mudança”. Das suas palavras, assim como do resto de seu trabalho, é evidente que esses governos fracassaram lamentavelmente na hora de introduzir alguma mudança minimamente significativa. Ao mesmo tempo, isto abre uma séria interrogação, teórica e prática, sobre as enigmáticas razões pelas quais, perante tanta inocuidade política, o imperialismo reagiu com tanta fúria e sanha contra estes governos. Mas deixando isto de lado, nossos autores fustigam aos que aludiram estes processos, apelando a expressões tão diversas como “pós-neoliberalismo”, “o giro à esquerda”, ou inclusive de uma “nova esquerda latino-americana”. Segundo suas análises, a caraterização que finalmente predominou foi a denominação genérica e vaga de “progressismo”. Reconhecem, contudo, que sob este rótulo se incorporavam – ao nosso juízo erroneamente – experiências políticas e sociais muito distintas. Tal como temos afirmado em outro lugar, há uma distinção que não deixa de ser crucial entre governos que estabeleceram como objetivo a construção de uma sociedade não capitalista: “socialismo do século XXI”, “socialismo bolivariano”, “ sumak

kawsay ”, “viver bem”, como fica evidente a partir dos casos da Venezuela, Bolívia e Equador; e outros cujo objetivo era fundar um “capitalismo sério”, como se propuseram sem sucesso Lula no Brasil, Néstor Kirchner e Cristina Fernández, na Argentina, e os governos da Frente Ampla no Uruguai. ¹³ Em vez disto, Modonesi e Svampa, incompreensivelmente, incluem sob uma mesma categoria de “progressismo” os governos de Ricardo Lagos e Michelle Bachelet no Chile, claramente de centro-direita e quase conservadores, junto ao Brasil de Lula da e Dilma Rousseff, ao Uruguai, de Tabaré Vázquez e Pepe Mujica, à Argentina de Néstor Kirchner e Cristina Fernández de Kirchner, ao Equador de Rafael Correa, à Bolívia de Evo Morales, à Venezuela de Hugo Chávez e, recentemente, de Nicolás Maduro e à Nicarágua com as presidências de Daniel Ortega e os governos da FMLN em El Salvador, em particular o de Sánchez Cerén. ¹⁴ Ficam na nebulosa, por omissão, os governos de Fernando Lugo no Paraguai e de Manuel “Mel” Zelaya em Honduras. Cuba (ainda bem!) não é incluída no progressismo descartável, mas se esquecem de forma chamativa, de incorporá-la em alguma análise ou parte de seu texto. Parece-nos impossível falar destes temas sem uma referência à Revolução Cubana, cuja a obstinada resistência aos desígnios do imperialismo abriu a porta a isso que o presidente Rafael Correa chamou “mudança de época”. Muito mais obscura e desgraçada teria sido a história da América Latina e do Caribe se Cuba tivesse abaixado as bandeiras do socialismo uma vez desintegrada a União Soviética, como reclamaram com insistência numerosos líderes social-democratas, já reconvertidos ao neoliberalismo, da Europa e da América Latina. Modonesi e Svampa acertam só em parte quando asseguram que o progressismo latino-americano tinha uma agenda similar: crítica ao neoliberalismo, certa heterodoxia nas políticas macroeconômicas, inclusão social, luta contra a pobreza etc. Mas deixam nas sombras uma diferença fundamental: que os governos de esquerda – Venezuela, Bolívia e Equador – assumiram posturas e executaram políticas mais radicais no econômico e no social, construíram notáveis constituições que aprofundaram a qualidade democrática de seus países, fizeram da natureza um sujeito de direito (introduzindo uma inovação fundamental no direito contemporâneo) e adotaram posições abertamente anti-imperialistas que as versões mais adoçadas do progressismo nem por acaso se atreveram a ensaiar, muito menos o conservadorismo chileno. O ocultamento do anti-imperialismo em um canto sombrio é um traço comum às diversas famílias trotskistas e aos pensadores liberais, cuja cegueira para ver esse fenômeno chega a ser, por momentos, alucinante e que, em consequência, só lhes permite ver a árvore e não perceber a floresta, com as consequências políticas que daí se derivam. A consequência desta abordagem é que todos os governos progressistas caem na caixa de um “populismo de alta intensidade” que se opõe a absorver e negar outras matrizes ideológicas contestatórias, como a do indigenismo, o campesinato, as esquerdas clássicas e os autonomismos que desempenharam, segundo nossos autores, um papel importante no início da nova época. Em suma, consolida-se uma mudança controlada desde cima, com líderes messiânicos que “dão” coisas a um povo submisso e submetido. O remate desta interpretação é a caraterização destes processos

progressistas (sem diferenciar o Chile de Bachelet da Bolívia de Evo?) como “revoluções passivas” (Gramsci), ou seja, como modernizações conservadoras que desmobilizam e subalternizam os protagonistas do ciclo de lutas anterior. A partir destas premissas, Modonesi e Svampa concluem que existem três limitações que impedem caracterizar aos governos progressistas como “pósneoliberais” ou de esquerda. ¹⁵ Primeiro, porque “aceitaram o processo de globalização assimétrica” e suas consequências: limites à redistribuição da riqueza, ao combate à desigualdade e à mudança de matriz produtiva. Tampouco avançaram estes regimes em reformas tributárias, além de tímidas tentativas, e sua política de recuperação dos bens comuns para seus povos se fez negociando com as grandes transnacionais da indústria, do agronegócio e da mineração. Perante isto cabe dizer que a modificação da globalização assimétrica é um projeto que nem sequer a China está em condições de realizar, e que exigir isso a um país latino-americano revela um profundo desconhecimento do que nossos países estão em condições de fazer. Em relação ao fato de que houve limites nas políticas de redistribuição de renda e riqueza, é verdade, mas onde e quando não houve? Reformas tributárias continuam sendo uma assinatura pendente, mas em alguns países se avançou um pouco, mesmo que não tanto como teria sido desejável. Por último, uma vez mais, se a China concluiu, nos finais dos anos 70 do século passado, que, com seus próprios recursos, jamais poderia garantir o crescimento de sua economia para resolver os problemas de sua população, que sem uma associação não subordinada ao capital estrangeiro, possível pela fortaleza de seu aparato estatal, jamais daria o salto tecnológico requerido pelo desenvolvimento de suas forças produtivas, como poderiam nossos países prescindir de uma negociação com os que têm um prático monopólio da alta tecnologia? O caso da China é muito ilustrativo. Desde o começo das reformas econômicas implantadas por Deng Xiao Ping em 1978, o PIB desse país se multiplicou por dez e terminaram as crises de fome que desde tempos imemoriais periodicamente condenavam à morte dezenas de milhões de chineses. Deng se perguntou, perante seus camaradas do Partido Comunista, se a China poderia, com seus próprios recursos, algum dia chegar a ter a gravitação internacional que tinham alguns países europeus como Alemanha, França ou Grã-Bretanha. Sua resposta foi um rotundo não. Disse que, para alcançar esse objetivo, o país devia construir um Estado forte e evitar ser submetido ao arbítrio dos grandes capitais; que devia atrair o investimento estrangeiro, com transferência de tecnologia, para se apropriar dos avanços tecnológicos do Ocidente; que devia lançar um grande programa de obras públicas, construindo estradas, pontes, vias férreas, portos e toda a infraestrutura que requeria; e, por último, que tinha que realizar fortes investimentos em educação, em ciência e em tecnologia. À luz desta reflexão do líder chinês, é razoável pensar que países latinoamericanos, incluindo Brasil, México e Argentina, podem alcançar os avanços econômicos e sociais que esperam, sem uma negociação com as transnacionais que retêm em seu poder os desenvolvimentos tecnológicos mais importantes de nosso tempo nos principais ramos da economia?

Analisemos o caso da Bolívia e o lítio. Durante séculos, a oligarquia desse país manteve sua população na ignorância e no analfabetismo. Como fazer para que, da noite para o dia, surja uma equipe de técnicos do mais alto nível, familiarizados com a mais atualizada metodologia suscetível a ser empregada para a produção de lítio? Por outro lado, a extração e a produção do lítio, que são criticadas por um irresponsável pseudo-ambientalismo, têm um potencial enorme para se desenvolver como forma de obter energia mais limpa e renovável. Mas, na Bolívia, as multinacionais que manipulam o lítio não têm acesso ao Salar de Uyuni, que é onde se obtém o metal e onde somente ingressam as empresas estatais. Ali não entra o capital estrangeiro. O segundo pecado dos progressismos latino-americanos (lembrar: sem discriminação alguma no interior desta categoria) foi seu fracasso na pregoada vocação por mudar a matriz produtiva, “além das narrativas ecocomunitárias que postulavam no começo os governos da Bolívia e do Equador, ou das declarações críticas do chavismo a respeito da natureza rentista e extrativista da sociedade venezuelana”. Esta incapacidade demostraria que os governos do grupo não somente não ingressaram no terreno do pós-neoliberalismo, mas que, pelo contrário, agravaram a questão ambiental, criminalizaram o protesto social, repudiaram a Convenção 169 da OIT que estabelece a proteção dos povos indígenas e tribais, e deterioraram os direitos anteriormente adquiridos. Perante esta crítica é preciso dizer que, efetivamente, a mudança da matriz produtiva resultou ser muitíssimo mais complicada do que o imaginado. De fato, em momentos recentes, os dois casos mais significativos dessa mudança são a Coreia do Sul e a Grã-Bretanha: a primeira, transitando ao longo de mais de um quarto de século desde uma economia camponesa atrasada a uma de carácter industrial altamente desenvolvida; a segunda, saindo da rota industrial e se transformando em uma economia de serviços e fundamentalmente de carácter financeiro em torno à City londrina. Nos dois casos, o período requerido para fazer estas mudanças oscilou entre 25 a 30 anos, e em ambos também se contou com a colaboração dos Estados Unidos. Pelo contrário, nos países latino-americanos, as mudanças têm que ser feitas de imediato, pois, com dois anos, o governo de turno encara às primeiras eleições e, para piorar, tudo deve ser feito em um contexto marcado pela persistente animosidade dos Estados Unidos e seu tridente desestabilizador: a oligarquia mediática, o poder judicial e a venalidade dos legisladores. Tempo que, obviamente, é irrisório para empreender a transformação da matriz produtiva em quantidade e qualidade suficiente, levando em conta a estrutural dependência externa que foi mudando sua modalidade, mas continua vigente há quinhentos anos. Mas o que de nenhuma maneira ocorreu foi que se criminalizasse o protesto social ou se produzisse uma deterioração dos direitos adquiridos ou se desconhecessem os dos povos indígenas. E, no caso de que se tivesse produzido algo nessa direção, isto não obedeceu a uma política sistemática, mas a exceções, produto de circunstâncias conjunturais. Seria bom que Modonesi e Svampa oferecessem alguns exemplos concretos a respeito, mas não fazem isso. Ao contrário, sugerem que as políticas repressivas que normalmente usam os governos conservadores latino-americanos encontram sua contraparte nos de signo progressista, o que é um erro só atribuível a

um doentio rancor contra estes governos. Rancor que não por acaso é paralelo ao chamativo silêncio de nossos autores em relação às massivas violações dos direitos humanos e das liberdades públicas perpetradas pelos governos do México, Honduras, Colômbia e Peru, que nem por surpresa suscitam a indignação e a dura crítica, que sim, lhes provocam as fraquezas e limitações dos governos do “ciclo progressista”. Existe, contudo, uma terceira limitação que teria impedido o trânsito até o pós-neoliberalismo: “a concentração de poder político, a utilização clientelística do aparato do Estado, o cerceamento do pluralismo e a intolerância às dissidências”. Uma vez mais estamos perante uma crítica indiferenciada que, na sua generalidade, nada explica nem nada permite entender. Não somente isso, na sua temerária afirmação, os autores falam, sem aportar um só dado concreto, de questões tão graves como violação de direitos humanos e, inclusive, de uma clara cumplicidade dos governos progressistas – de novo, todos, sem exceção – com as estratégias de restauração conservadora pela via eleitoral. O remate deste disparate é a afirmação de que “salvo parcialmente no caso do Poder Comunal na Venezuela […] o andaime estatal e partidocrático próprio do (neo)liberalismo” tem permanecido intacto. As novas e radicais constituições de Venezuela, Bolívia e Equador, que abriram rumos na proteção da natureza e na expansão dos direitos democráticos, são jogadas, sem mais considerações, no lixo junto com a estatização dos bens comuns e todo um conjunto de mudanças que desataram a feroz reação da direita vernácula e o imperialismo. Se verifica uma vez mais a verdade contida no ditado que diz que não há pior cego do que o que não quer ver. Horizontes emancipatórios e batalhas estratégicas: uma reflexão final A parte final do artigo de Modonesi e Svampa determina, sobre a base dos grossos erros de interpretação acima mencionados, a acusação final: “estes governos contribuíram para desativar aquelas tendências emancipatórias que se gestavam nos movimentos antineoliberais”. Uma desativação que, segundo os autores, não é só o natural refluxo de um ciclo de lutas ou o repouso que segue à satisfação das demandas largamente exigidas, ou a canalização institucional da luta de classes quando os que comandam os Estados oferecem essa abertura, mesmo jogando contra o poder. O inelutável resultado desta verdadeira traição das forças de esquerda ou centro-esquerda não podia ser outra coisa que o “fim do ciclo progressista”, que se produz pela direita e não pela esquerda. De todos os modos, Modonesi e Svampa não se desanimam, já que entendem, diríamos que com indissimulável alívio, que o desmoronamento daqueles governos permite o nascimento de novas resistências cheias de traços e componentes antissistêmicos que antes se agitavam nas entranhas do progressismo pugnando por se abrir passo e que agora, perante sua final capitulação, emergem com força. Componentes deste venturoso renascimento seriam o questionamento do extrativismo, as novas gramáticas de luta dos novos movimentos socioambientais, coletivos culturais e assembleias cidadãs construtoras de uma nova narrativa emancipatória. ¹⁶

Das e dos trabalhadores e humildes de nossa América, que tinham visto melhorada sua qualidade de vida, nenhuma palavra. Conscientes de que as lutas de classes são tão antigas como nossa história, Modonesi e Svampa atenuam a radicalidade da suposta ruptura destas novas gramáticas de luta com as precedentes ao reconhecer que “não poucas esquerdas classistas hoje começam a ampliar sua plataforma discursiva, incluindo conceitos que provêm daquelas outras linguagens e, vice-versa, a politização das lutas socioambientais as leva a buscar e encontrar chaves de leituras que remetem às melhores tradições e práticas políticas das esquerdas do século XX”. Não obstante, consideramos que o que emerge com vigor é justamente essa força popular que conforma a base dos processos revolucionários. Referimonos ao núcleo duro que está defendendo tenazmente sua posição – mesmo à custa de enormes sacrifícios, como na Venezuela – ou o que vai na rua a defender os projetos progressistas deslocados do poder (Argentina) ou destituídos fraudulentamente (Brasil) e que têm acumulado uma grande experiência de luta contra o neoliberalismo. Esses movimentos não vão esperar impassíveis que passe outra década de barbárie neoliberal arrasando com todas suas conquistas, mas já começaram a se mobilizar e estão debatendo com que ferramentas políticas e com quais projetos voltarão a disputar os governos nas próximas eleições. Álvaro García Linera, faz pouco tempo, expressava com razão que: O importante é que esta geração que hoje está de pé, viveu os tempos da derrota, do neoliberalismo, viveu os tempos da vitória temporária dos governos progressistas e revolucionários e agora está neste período intermédio. Portanto, tem o conhecimento, tem a experiência, para poder voltar a retomar a iniciativa. A diferença dos anos [19]60 ou 70 quando se aniquila uma geração, a derrota política e militar e a construção de uma nova geração vai demorar trinta anos. Aqui não, aqui é uma mesma geração que tem vivido uma derrota, uma vitória e temporária derrota e, portanto, pode ter o conhecimento, a habilidade tática, a capacidade de construção de ideias como força para retomar a iniciativa. Se não fizermos isso, este período de tomada parcial de iniciativa da direita pode se estender e pode se ampliar a outros países de América Latina, o que sem dúvida significaria uma catástrofe, porque, como já estamos vendo, lá onde triunfa a direita, a direita é recorte do social, recorte do Estado, recorte de direitos e, portanto, recorte do bem-estar da população, que foi o que se conseguiu nestes dez anos virtuosos de governos progressistas. ¹⁷ Por outra parte, algumas frações sociais ou suas organizações, descontentes com determinadas políticas dos governos progressistas, como os casos mencionados por nossos autores, poderão facilmente confluir em uma ação conjunta com os demais grupos que se opõem aos governos de direita. Sabem, por experiência própria, que estes procurarão avançar muito mais que os anteriores sobre seus direitos e os da Mãe Terra, perdoando aos verdugos das classes populares, como fez o presidente argentino Mauricio Macri ao eliminar as retenções (impostos sobre suas exportações) às empresas de mineração e a certos ramos da agricultura, entre outros benefícios outorgados à sua própria classe.

A possível coincidência entre os novos e os clássicos sujeitos e suas respectivas formas e estratégias de luta abrem, assim, insuspeitadas possibilidades de resistência tanto contra as tentativas restauradoras da direita frente as insuficiências e vacilações do progressismo. Mas, sobretudo, defendendo as conquistas realizadas no passado e entendendo que os governos de esquerda, dentro do amplo espectro do progressismo, são a garantia do suporte institucional dessas conquistas. Concluímos afirmando que o trabalho que temos comentado se inscreve em uma longa lista de intervenções que partem de duas premissas em nossa avaliação erradas: primeiro, a indiferenciação entre governos de muito diversa tipologia, desde a centro-direita Nova Maioria chilena, com Michelle Bachelet à frente, até o esquerdismo, de fortes reminiscências clássicas, de Evo Morales na Bolívia. Não é necessário ser um obcecado pelas questões metodológicas para concluir que qualquer afirmação que se faça sobre tão heterogêneo coletivo tem um valor apenas relativo, se o tem. Na maioria dos casos, chega-se a proposições de escasso valor explicativo. Podemos, em uma análise rigorosa, falar do “populismo” de Bachelet (!), especialmente quando se apela ao uso vulgar dessa categoria e se prescinde de uma análise teórica desse conceito? O marxismo latino-americano tem feito algumas contribuições importantes ao esclarecimento desse conceito que poderiam ter ajudado a uma melhor concepção da tese de nossos autores. Se a primeira premissa errada é o populismo, a segunda é o antecipado funeral do “ciclo progressista” cujo fim tem sido proclamado – e em alguns casos desejado – urbi et orbi por muitos, incluindo certos setores de uma esquerda em cujo campo de visão ainda não aparece o fenômeno do imperialismo, por imponente e brutal que este seja. Mas uma análise sóbria da conjuntura demonstra que, no Equador, Alianza País tem grandes chances de impor seu candidato na eleição presidencial de 2017; que Evo Morales tem mandato até início de 2019 e que o MAS boliviano tem amplas vantagens pré-eleitorais sobre qualquer de seus rivais; que na Nicarágua Daniel Ortega seria reeleito por una esmagadora maioria eleitoral durante este ano. Em maio, Danilo Medina obteve 66% dos votos vencendo ao candidato da direita na República Dominicana e, em El Salvador, Salvador Sánchez Cerén, da FMLN, tem se mantido no governo, apesar das enormes pressões desestabilizadoras da direita vernácula e do imperialismo, em um país que, da mesma forma que no Equador, tem o dólar norte-americano como sua moeda. Outros referentes centrais na hora de analisar as relações de forças na região são nosso já legendário farol cubano e a possível concretização dos acordos de paz com as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia – Exército do Povo – (FARC-EP) (plebiscito de 2 de Outubro), que, seguramente, terão um lugar muito importante na vida política institucional desse país. A Argentina, com a derrota do kirchnerismo, é a exceção neste quadro, configurando o único caso de um governo progressista derrotado nas urnas, por uma estreita margem e mais como produto de insólitos erros do kirchnerismo que de méritos próprios da oposição da direita. Mas seu futuro é incerto. Um relatório surgido nestes dias do banco de investimento BCP Securities, Wall Street, adverte que “a população está exigindo resultados de parte daqueles que elegeram para governar. Falta somente um ano para

as eleições intermediárias, ao ritmo que vão, o PRO de Macri vai ser esmagado”. ¹⁸ No Brasil, a ilegal e ilegítima destituição de Dilma Rousseff instalou no Planalto um governo usurpador, liderado por um personagem como Michel Temer, a quem votaria em uma eleição presidencial só 2% da população, ao passo que 60% pede sua renúncia. Por outra parte, um dos condenados por delitos de corrupção, o megaempresário Marcelo Odebrecht, declarou recentemente que Michel Temer pedira “uma ajudinha para seu partido, o PMDB, e que recebeu 10 milhões de reais em espécie”. ¹⁹ Com o avanço desta investigação, será muito difícil evitar que Temer seja colocado para fora do Palácio do Planalto, com o que deveria se convocar uma nova eleição presidencial, para a qual não há nenhum candidato da direita que apareça como provável ganhador. Em suma: não existe suficiente evidência concreta que indique que este ciclo tenha chegado a seu fim. Sem dúvida, está enfrentando novos desafios, mas daí a estender o atestado de óbito há um caminho muito longo. Acreditamos, portanto, que a decisão de submeter a discussão à totalidade da experiência dos governos colocados sob confuso rótulo de “progressismo” deve ser bem-vinda, porque sem dúvida houve e haverá erros, turbulências e contradições, como em qualquer outra experiência política. A crítica e, em especial, a autocrítica são muito importantes em momentos como os atuais, quando aumenta a ofensiva do imperialismo. Mas isto deve ser feito seguindo a máxima de Tácito quando recomendava examinar as coisas de nosso mundo sine ira et studio , o que poderia ser traduzido como “sem ódio ou animosidade e sem preconceito ou parcialidade”. Não é este o caso do trabalho de Modonesi e Svampa, no qual a animosidade em relação às experiências do progressismo é manifesta tanto como sua parcialidade no exercício da crítica, onde, pelo visto, nada tem sido feito tão bem e tudo está mal. E a história é muitíssimo mais complicada, ali onde o bem e o mal se misturam de tal modo que se requer um espírito muito sóbrio e alerta para distinguir um do outro. No entanto, do ponto de vista da vida concreta de milhões de homens e mulheres que conformam nossos povos, sem dúvida o bem prevaleceu sobre o mal durante mais de dez anos, em que, embora não tenha “se mexido no outro lado da tortilha”, tem se conseguido importantes conquistas materiais, culturais, políticas, em direitos humanos e civis, e avanços no sonho da integração latino-americana, que dignificaram e significaram uma fenomenal ampliação da cidadania – ou seja, ampliação de direitos, mesmo que dentro do sistema capitalista –, assim como os chamados processos nacionalpopulares ou populismos de meados do século XX. A dialética da história, que obviamente se afasta de qualquer revolução de manual, nos ensina que, mesmo com todas as suas contradições, o que vem depois dos governos progressistas – e muito mais o será dos revolucionários – são selvagens tentativas por maximizar as taxas de lucro removendo a qualquer custo as limitações impostas por movimentos e governos populares. Em vários de nossos países, o ataque da direita colocou os movimentos sociais em alerta, e já estão se erigindo fortes resistências àquelas tentativas. Por isso, a defesa dos processos progressistas e revolucionários que estão de pé – apesar de estarem sob o intenso e incessante fogo econômico, político e mediático do imperialismo e da reação – é a batalha

estratégica de nosso tempo. Defesa que não exclui uma necessária autocrítica para retificar rumos, mas sem deixar de mostrar que, vistos em perspectiva histórica, os acertos históricos destes processos superam amplamente seus desacertos e limitações. Em uma nota recente, um dos autores destas linhas dizia, a propósito da crise no Brasil, que a esquerda latino-americana devia extrair três lições do que aconteceu nesse país, e que esses ensinamentos têm um valor geral para os países da região. ²⁰ Primeiro, reconhecer que qualquer concessão à direita por parte de governos de esquerda ou progressistas só serve para enfraquecê-los e precipitar sua ruína. Em conjunturas como estas, a intransigência perante as pressões da direita e a radicalização política são as únicas garantias de sobrevivência. Segundo, não esquecer que o processo político não só transcorre pelos traiçoeiros canais institucionais do Estado, mas também pela “rua”, o turbulento mundo plebeu. Só esta pode deter os desejos golpistas da direita, que, como se comprovou em Honduras, Paraguai e Brasil, podem processar-se sem maiores contratempos nos marcos institucionais do Estado burguês. Maduro tem a rua, Dilma não a tinha. E esta diferença explica a distinta sorte do primeiro e da segunda. Terceiro, as forças progressistas e de esquerda – decepcionadas pela derrota da “via armada” – não podem cair agora no erro de apostar todas suas cartas exclusivamente no jogo democrático. Não esquecer que, para a direita, a democracia é só uma opção tática, facilmente descartável. As eleições são somente uma de suas armas: a greve de investimentos, as corridas bancárias, o ataque à moeda, as sabotagens aos planos do governo, os golpes de Estado e inclusive os assassinatos políticos têm sido frequentemente utilizados ao longo da história latinoamericana. Por isso, as forças da mudança e da transformação social, sem falar dos setores radicalmente reformistas ou revolucionários, têm sempre que ter à mão “um plano B” para enfrentar as manobras da burguesia e do imperialismo que controlam, segundo seus desejos, a institucionalidade e as normas do Estado capitalista. E isto supõe a continuada organização, mobilização e educação política do vasto e heterogêneo conglomerado popular, coisa que poucos governos progressistas se preocuparam em fazer. Em outras palavras, a desobediência civil ou a via insurrecional não violenta de massas, a mesma que acabou com o regime do Xá no Irã, com Alí na Tunísia e com Mubarak no Egito, é um recurso que por nenhum motivo deveria ser descartado. ⁴ Texto publicado inicialmente em Rebelión em 24 de setembro de 2016. Disponível em: http://rebelion.org/noticia.php?id=217125. Apesar de datado em alguns pontos por novos fatos ocorridos posteriormente, acreditamos que o artigo continua válido pela discussão que guarda, tanto da conjuntura, quanto da maneira de interpretá-la. Fatos importantes que ocorreram após sua escrita foram a traição de Lenín Moreno a Rafael Correa no Equador a partir de 2017; a eleição de Jair Bolsonaro no Brasil, em 2018; derrotas eleitorais de forças progressistas no Uruguai e em El Salvador, em 2019; e o violento golpe de Estado na Bolívia, no mesmo ano. Também houve vitórias progressistas importantes, como a eleição de Lopez Obrador, no México, em 2018; o retorno do kirchnerismo na Argentina, com a eleição de Alberto Fernández em 2019; e uma série de levantes populares antineoliberais em

vários países da região em 2019, especialmente no Chile, ainda sem desfecho quando da edição deste livro [nota dos organizadores]. ⁵ Atilio Borón é professor titular da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires e professor do Departamento de História da Universidade Nacional de Avellaneda. Paula Klachko é professora do Departamento de História da Universidade Nacional de Avellaneda e da Universidade Nacional de José C. Paz. ⁶ Ver “Post-progresismo y horizontes emancipatorios en América Latina”, de 13 de agosto de 2016, disponível em http://www.rebelion.org/noticia.php? id=215469. ⁷ É altamente controverso dizer que o ataque a Dilma Rousseff foi “legal”. A suposta legalidade de seu julgamento político tem sido fortemente questionada por numerosos analistas e observadores da vida política brasileira. O regime político brasileiro é presidencialista, e só frente a constatação credível de um delito poderia ter sido iniciado um julgamento político à presidenta. Não obstante, como evidencia a mesma sentença que a priva de seu cargo, esse delito não existiu. ⁸ Com frequência, as organizações que emergiram dos processos de resistência nos 1990 foram novas, já que foram fundadas nessa conjuntura. Contudo, em muitos casos, adotaram nomes que remetem à velhas bandeiras reivindicativas. Não necessariamente foram novas em relação às suas modalidades de organização e instrumentos de luta, que recuperaram elementos das tradições dos diversos povos latino-americanos e as ressignificaram nos novos cenários. Houve também um importante nível de experimentação social de modos de organização alternativos, mas não com a massividade que pregam alguns intelectuais deslumbrados por essas experiências que, além disso, tiveram uma curta existência. Apesar disso, como afirmamos mais adiante, influíram na democratização de numerosas agrupações sociais. A respeito, ver Paula Klachko, “Las formas de organización emergentes del ciclo de la rebelión popular de los ’90 en la Argentina”, en Documentos y Comunicaciones PIMSA 2007 (Buenos Aires: PIMSA, 2007), disponível em: http://www.pimsa.secyt.gov.ar/ publicaciones.htm. ⁹ Para uma análise tanto da fase de resistências ao neoliberalismo como das mudanças sociais e políticas e os novos desafios que se desencadearam com uma mudança de época, ver Katu Arkonada e Paula Klachko, Desde Abajo. Desde Arriba. De la resistencia a los gobiernos populares: escenarios y horizontes del cambio de época en América Latina (La Habana: Editorial Caminos, 2016). Sobre o tema do poder, ver Atilio A. Borón, “La selva y la polis. Interrogantes en torno a la teoría política del zapatismo”, Revista Chiapas (México, 2001), n. 12. Disponível em: http:// www.revistachiapas.org/No12/ch12boron.html. ¹⁰ O sandinismo ganhou na guerra civil contra o Estado somozista e seus mentores nos Estados Unidos, ainda que logo tenha perdido no terreno eleitoral, porque não conseguiu suportar dez anos de agressões, sabotagens e bloqueios dos “Contras” organizados, financiados e armados por Washington. Contudo, o sandinismo, depois, voltou ao governo com uma

nova vitória eleitoral e, agora, encaminhou-se para um esmagador triunfo na eleição presidencial de 2016. Em relação a El Salvador, os acordos de paz evidenciam que a guerrilha salvadorenha não foi derrotada, mas teve um “empate técnico” entre a FMLN e o exército salvadorenho e seus “assessores” norte-americanos. ¹¹ Lenin, V. I. (1905), Dos Tácticas de la social democracia en la revolución democrática (Bs. As.: Editorial Anteo, 1986). ¹² Cf. André Gorz, Adiós al proletariado: Más allá del socialismo (Madrid: El Viejo Topo, 1981). ¹³ Ver, Atilio A. Borón, Socialismo Siglo XXI. ¿Hay vida después del neoliberalismo? (Buenos Aires: Ediciones Luxemburg, 2014), pp. 11- 51. ¹⁴ Não obstante, Modonesi e Svampa retrocedem espantados perante sua enumeração e aclaram, no corpo do texto, que o progressismo abarca correntes ideológicas e perspectivas políticas diversas, desde aquelas de inspiração mais institucionalista, passando pelo desenvolvimentismo mais clássico, até experiências políticas mais radicais, de timbre popular e nacional-popular ou que terminaram se declarando socialistas. ¹⁵ Alguns publicistas dos governos progressistas, sobretudo no Brasil, insistiram em que nesse país já tinha se chegado ao “pós-neoliberalismo”, afirmação totalmente infundada, como o tempo se encarregou de demonstrar com particular crueldade. Somente no “núcleo duro” dos governos progressistas – Venezuela, Bolívia e Equador – puderam se registrar alguns avanços significativos nessa direção. Em menor medida, houve alguns avanços na Argentina e menos ainda no Brasil e Uruguai. A matriz neoliberal instaurada nos 1990 tem demonstrado ser um osso demasiadamente duro de roer. ¹⁶ A crítica ao extrativismo das experiências progressistas expõe com clareza a irresponsabilidade dos “antiextrativistas”, para dizê-lo com a maior benevolência. Por exemplo, ainda estamos esperando que digam como fará a Bolívia, que em 25 anos duplicará sua população, para construir escolas, casas, hospitais, estradas e pontes que requererá a duplicação do número de seus habitantes. Ou por acaso isso tudo será construído sem ferro, cimento, cobre, sem aproveitar suas reservas de gás, apenas pela magia do discurso? Não parece ser uma crítica séria. Para uma análise detalhada deste tema ver Atilio A. Borón, América Latina en la geopolítica del imperialismo (Buenos Aires: Ediciones Luxemburg, Cuarta Edición, 2014). Há edições deste livro no México, Cuba e Espanha. ¹⁷ Entrevista de Álvaro García Linera a Martín Granovsky na Faculdade de Jornalismo da Universidade Nacional de La Plata. Agosto 2016. CLACSO-TV, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=RuvvgMT826E. ¹⁸ “Un banco de Wall Street advierte que Macri podría perder las elecciones”, La Política Online , 20 set. 2016, disponível em: http:// www.lapoliticaonline.com/nota/100396/.

¹⁹ “Delação da Odebrecht cita os nomes de José Serra e Michel Temer. Serra teria recebido R$ 23 milhões em propina”, Diário do Brasil , 20 de setembro de 2016, disponível em: http://www.diariodobrasil.org/delacao-da-odebrechtcita-os-nomes-de-jose-serra-e-michel-temer-serra-teria-recebido-r-23milhoes-em-propina/#. ²⁰ Conferir Atilio A. Borón, “La tragedia brasileña”. Disponível em: http:// www.atilioboron.com.ar/2016/08/la-tragedia-brasilena.html e em numerosos periódicos digitais latino-americanos. Sobre o Estado, o poder político e o Estado dependente ²¹ Jaime Osorio ²² Introdução O Estado do início do século XXI encontra-se interpelado. A partir de distintas correntes e e diversos problemas, o Estado volta a ser discutido, pondo em cheque sua condição de classe, sua centralidade em termos de poder, seu papel estratégico nas transformações da sociedade, sua persistência em meio a globalização, seus limites, a capacidade de construir através do aparato do Estado “vias democráticas ao socialismo”, suas contradições e sua crise. Tudo que se diga sobre e como se caracterize o Estado tem consequências diretas na política, na (in)definição de uma estratégia diante do poder, na ideia de sua transformação e de sua organização. Daí a importância e a necessidade de analisá-lo. No texto a seguir, abordaremos alguns pontos fundamentais da relação Estado-poder político-revolução. Isso implica estabelecer limites. Ampliar a noção de Estado não significa enfrentá-lo em qualquer recanto da vida social. Não é porque estendemos a noção de poder que avançamos em radicalizar a política. Ao final do texto, incluímos algumas notas sobre as particularidades do Estado dependente, aquele que se faz presente na região. Aparecem novas determinações que se integram aos problemas abordados inicialmente. Sobre o Estado e o poder político Ao destacar suas determinações fundamentais, definimos o Estado como a condensação de relações de poder político e de domínio, as quais possuem uma dimensão que produz sentido de comunidade. Estas relações – fundamentalmente de classe, mas que não são alheias às relações de raça e de gênero – atravessam de diversas formas e em distintas direções todo o emaranhado da organização social. No entanto, elas possuem núcleos particulares de condensação. Ou seja, o Estado é violência e está atravessado por ela. Mas essa violência se condensa em leis, em espaços que ameaçam seu exercício, quando não se apresenta como uma prática aberta e visível. O Estado também produz marcas com sentido de comunidade, como os relatos que conformaram a nação, nas respostas à desastres ou em imaginários de igualdade.

O Estado é a condensação das correlações de forças. Se diversas classes sociais (e outros grupos) atuam e se desenvolvem na sociedade, todas elas buscam alcançar seus interesses. Em diversos graus, o Estado tem a particularidade de assumir demandas e posições de todas as classes, frações e setores. Porém, assume-as com a condição de que há classes que detêm o poder político e outras não. Desta forma, muitos interesses sociais adquirem expressão na vida em comum, mas com limitações estabelecidas pelos interesses dos grupos sociais dominantes. Para as classes sociais, conservar o poder político significa contar com a força social para organizar a vida em comum . Este não é um assunto irrelevante, porque implica criar um redemoinho na vida em comum, ao redor do qual fundamentalmente tudo gira, permitindo assim que os projetos e interesses dos quem detêm o poder político prevaleçam – mais do que absorver e assumir posições e interesses de outras classes. Os assalariados podem reivindicar empregos ou melhores salários. E é possível que alcancem estes objetivos em tempos e períodos específicos. Porém, permanecerão em um contexto em que a condição do trabalho assalariado se mantém. E isso é parte dos interesses das outras classes, as que dominam. À medida que estas relações sociais e de força se naturalizam, o Estado pode se projetar como uma entidade que expressa os interesses da sociedade como um todo. O Estado é o centro do poder político, porque é nele que se condensa a força social que organiza a vida em comum . Sem Estado, não seria possível dar forma a nenhum projeto e interesse de classe, e tampouco organizar a vida de outros seres humanos de maneira duradoura. Essa centralidade o converte no centro de qualquer projeto político que queira modificar e transformar as relações que subjazem à organização da vida em comum e que a tornem possível. Não existem, nesse sentido, atalhos que permitam eludir o Estado. ²³ A centralização do poder político no Estado não impede sua projeção ao espaço social como um todo, repercutindo na forma como este se recria e se produz. As relações estatais têm a capacidade de se projetar sobre todas as novas dimensões da vida social na atualidade, tais como o espaço criado pela internet e seus dispositivos, os casamentos homoafetivos ou a “barriga de aluguel” para a gestação assistida. Do ponto de vista dos problemas que a transformação da ordem social atual deve enfrentar, a centralização do poder político no Estado capitalista implica que, necessariamente, em algum momento dos enfrentamentos sociais, as relações de força e suas coisificações centralizadas devem ser destruídas. Isto implica compreender as particularidades do Estado capitalista, compreender que não estamos, por exemplo, diante de um Estado feudal, uma entidade atomizada e descentralizada em diversos núcleos de poder, possibilitando sua destruição por etapas, a exemplo do que ocorreu com a longa marcha de Mao Tsé-Tung na China. O Estado capitalista se expande, mas está formado por um feixe de relações de poder político que exigem condensação e centralização. ²⁴ Se buscássemos alguma imagem para exemplificar o que afirmamos, não

recorreríamos à imagem de uma rede de pescadores, com seus quadrados homogêneos, mas a uma teia de aranha, com raios abertos a todo o espaço, mas que partem e se condensam em um centro. ²⁵ As dimensões das relações sociais que constituem o Estado têm pesos constitutivos diferenciados. As relações de poder e domínio que definem as formas e os modos de organização da vida em comum são mais determinantes que a dimensão de tais relações como criação de sentido de comunidade. Por isso, ainda que esta última dimensão seja enfraquecida, isso não implica uma diluição do Estado. ²⁶ No máximo, ocorrerá uma mudança na forma de governo, segundo a terminologia clássica, em que as dimensões do autoritarismo prevalecerão sobre as consensuais. A fetichização do Estado Se algo caracteriza o Estado capitalista é a fetichização das relações de poder e domínio, o que impede que elas apareçam tal como são e ocorra a reconstrução da ficção de um mundo de homens livres e iguais, ao mesmo tempo que o Estado aumenta sua presença como uma entidade abstrata. Com isso, a burguesia encontra solução para um problema nada menor: sua promessa civilizatória de construir um mundo de homens livres e iguais. Esta fetichização tem sua origem no fato de que, na sociedade capitalista, o dinheiro opera como forma do valor, permitindo que os produtos do trabalho de produtores privados e independentes só possam ser trocados por este meio. Trata-se de uma entidade abstrata (o que é uma nota, senão um pedaço de papel? O que é um cartão de crédito, senão um pedaço de plástico?) que ofusca as relações entre seres humanos e a lógica do valor que busca valorizar-se, impondo-se e dominando as relações entre os membros da sociedade. Da mesma forma que o dinheiro, expressão da forma-valor, o Estado também se constitui como uma abstração, fetichizada, que se sobrepõe à sociedade e que pareceria romper com a atomização e separação de seus membros, criando um imaginário fictício de comunidade. ²⁷ Com o desenvolvimento do capitalismo, as atividades econômicas ganham espaço e presença na vida social. Mas a lógica do capital projeta esta presença crescente como autonomia da economia em relação à política, processo que é reforçado quando essas dimensões dão origem a disciplinas cada vez mais especializadas, nas quais o imaginário de um mundo de homens livres e iguais se recria e o indivíduo é colocado como a unidade básica a partir da qual se deve pensar a vida em sociedade. Para uma economia determinada, não política , os homens que levam a cabo as trocas nos mercado são livres , agem aparentemente sem coação alguma, enquanto que na política, não econômica , ²⁸ são indivíduos iguais os que dão vida ao Estado como autoridade que protege a comunidade (segundo o relato contratualista). Essa ficção ganha força com a reconfiguração do cidadão e com a ampliação do sufrágio, procedimento em que cada indivíduo deposita um só voto, igual aos dos outros cidadãos, sem importar se uns são donos de empresas e outros são somente empregados assalariados das mesmas empresas. ²⁹

A ruptura entre economia e política faz parecer que as relações entre exploração e o exercício do poder e do domínio desapareçam. Porém, as relações sociais de exploração, mesmo fetichizadas pelo dinheiro, operam na criação de comunidade. Para o caso do dinheiro, García Linera afirma que “permite o intercâmbio de produtos […] e, com isso, facilita a realização do valor de uso dos produtos concretos do trabalho humano, [o que] se plasma na […] satisfação de necessidades de outros seres humanos”. E acrescenta, “não há dúvida de que está é uma função de sociabilidade, de comunidade”. ³⁰ Já vimos, por outro lado, que as relações de poder e domínio do Estado, em sua forma fetichizada, projetam-se também como gestoras de comunidade (ilusória): cada cabeça, um voto, igualdade política, tomada de decisões sobre a vida em comum. Tudo isso nos permite entender por que o Estado não aparece como condensação de poder político e domínio , pois, a partir da fetichização de suas relações econômico/políticas, a exploração, o poder e o domínio desaparecem, favorecendo justamente a construção de imaginários de comunidade. Em outras palavras, há um sentido de comunidade que prov ém justamente do funcionamento das relações de poder e domínio, à medida que aparecem como seu contrário, favorecendo “o mundo encantado, invertido e colocado de cabeça para baixo” ³¹ que o capital exige. Por sua vez, pela via das políticas sociais, o Estado é um grande criador de consensos, o que, somado ao anterior, questiona a ideia do Estado somente como poder e coerção. Se, um dia após outro, e apesar do enfraquecimento do sentido de comunidade, reproduzem-se as relações sociais que organizam a relação capital-trabalho; a produção e a apropriação de mais-valia se mantêm e se reproduzem; persiste a exploração; o capital continua encontrando espaços de valorização; então deveremos reconhecer que, nessa vida social, continua imperando uma organização específica da vida em comum que beneficia algumas classes e prejudica outras. Em outras palavras, continuam operando e reproduzindo-se relações de poder político e de domínio, ou seja, o Estado continua existindo. E é muito provável que suas formas (como se exerce o poder) continuem se modificando. As relações sociais de produção imperantes no capitalismo permitem, por sua vez, que estas se reproduzam cotidianamente, tendo consequências na reprodução das relações de poder e de domínio e em sua capacidade de criar sentido de comunidade. Uma vez que o salário cobre o equivalente de um dia do valor da força de trabalho, ³² é necessário que o assalariado volte a se apresentar para trabalhar no dia seguinte, para poder apropriar-se de um novo dia de salário e de meios de vida. E isso tem como correlato o incremento do capital. Dessa maneira, a própria reprodução do capital reproduz, diariamente, trabalhadores e capitalistas, os quais se encontram dia após dia dispostos a realizar contratos de trabalho. Assim, existe uma espécie de imanência na vida social capitalista que aponta para reprodução das relações sociais de produção, das classes sociais e das relações de poder e domínio. Enquanto essas condições aparecem como uma

ordem natural, “assim se trabalha e assim se resolve a subsistência”, as relações de poder político e de domínio do Estado não precisam tornar-se explí citas e operam como uma espécie de determinação geral para que a rotina dos contratos capital/trabalho e da produção e reprodução do capital ocorram com fluidez e sem perturbações. Isto permite que o Estado capitalista não apareça comprometido no dia a dia com a exploração, nem com o fortalecimento e com a reproduçã o do capital , o qual aprofunda sua imagem de entidade neutra em termos classistas e situada acima da sociedade. Estado e sociedade civil: assimilações e distinções Afirmar que o Estado é o centro do poder político não implica desconhecer que, no domínio e na gesta ção de sentido de comunidade , operam outras relações e entidades, as instituições da sociedade civil, escolas, igrejas, meios de comunicação (tradicionais e as novas redes sociais da internet), entre outras, criadoras de valores e interpretações da vida social. Estas instituições, articuladas com o Estado, dão vida ao sistema de dominação , entendido como o conjunto de relações e processos por meio das quais as classes dominantes procuram perpetuar a ordem social imperante, internalizando seus valores e pretendendo, com maior ou menor êxito, que a sociedade e o mundo sejam interpretados de acordo com seus pontos de vista. Em outras palavras, as relações que outorgam sentido de comunidade, e que emanam do próprio Estado, são reforçadas pela ação de entidades que não são o Estado em sentido estrito. ³³ Para destacar o importante papel daquelas instituições na dominação, não é preciso assumi-las como instâncias do Estado, como ocorre na proposta de Louis Althusser e de Nicos Poulantzas, que as denominam “aparelhos ideológicos do Estado ”, ³⁴ ou na versão neogramsciana que conduz ao conceito de “Estado ampliado”, ³⁵ ou mesmo na formulação de Gramsci que afirma que o “Estado é igual à sociedade política mais sociedade civil , hegemonia revestida de coerção”. ³⁶ Estas formulações criam mais problemas teóricos e políticos do que os que pretendem resolver. Em primeiro lugar, porque diluem a centralidade do Estado em matéria de poder político; segundo, porque fazem perder a especificidade do Estado e do poder político. Se assumirmos que o poder político repousa no Estado e nas instituições da sociedade civil mencionadas, abre-se espaço para que qualquer alteração de forças relevante no âmbito das instituições seja interpretada como transformações em matéria de poder, geralmente assumidos como perda de poder político pelas classes dominantes e como acumulação de poder pelas classes dominadas. A extensão do conceito de Estado à sociedade civil supõe que as relações de poder político estão distribuídas homogeneamente entre os dois , motivo pelo qual avançar na sociedade civil traz implícita a ideia de que, por aquele meio, está se resolvendo o problema do poder. Em outras palavras, assumese que os avanços no sentido da hegemonia ideológica (direção) são sinônimos de poder político. No entanto, se algo caracteriza as instituições da sociedade civil, sob formas democráticas, é que nelas são permitidos espaços e posições contrárias aos interesses dos que dominam. Não é raro

que se permita a circulação de uma imprensa opositora, nem que surjam programas de rádio críticos aos projetos hegemônicos, ou que haja cátedras e matérias contrárias ao ponto de vista das classes dominantes no âmbito das instituições de ensino. ³⁷ Esta permissividade não ocorre, porém, no nível do aparato de Estado, por mais que a conformação de governos populares no século XXI na América Latina apareça como algo rotineiro. Pelo contrário, na história política, e não somente regional, são processos excepcionais. E será menos possível ainda no próprio nível do Estado, como posições entre classes antagônicas. ³⁸ A ideia implícita nestas interpretações é a de que alcançar o poder político é um processo semelhante a fatiar um pedaço de queijo, o que permitiria, por acúmulo de força ideológica e de posições no aparato, chegar a um ponto onde o queijo (leia-se o poder político) passa às mãos dos dominados de maneira gradual e quase imperceptível para os dominantes, algo assim como uma “revolução sem revolução”, nos dizeres de Slavo Žižek. ³⁹ A ideia caminha no sentido contrário ao apontado sobre a centralidade do poder político no Estado capitalista e sua não fragmentação. Em uma derivação dos pressupostos que fazem da sociedade civil uma entidade estatal, aparece, por sua vez, o privilégio da “guerra de posições”, entendida principalmente como avanços na tomada ou ocupação de posições na sociedade civil (assumida como Estado) e no aparato de Estado (também entendido como Estado), conduzindo no longo prazo à conquista do Estado e, consequentemente, do poder. O Estado capitalista é uma entidade que pode assumir posições das classes dominadas. Porém, como classes dominadas . ⁴⁰ Portanto, não se trata de território, espaço ou relação que possam ser surpreendidos por forças constituintes de outro poder de classes. Uma coisa é a permissividade da sociedade civil para incorporar posições contrárias ao poder, mas essa permissividade já não ocorre quando se trata de posições no Estado. Isto é mais factível no aparato de Estado. Porém, como veremos a seguir, aquela é uma tendência que leva as classes dominantes a deixar a administração do aparato nas mãos de outras classes, como fórmula para encobrir seu domínio. Na mesma linha de sobredimensionar a sociedade civil, está a noção do Estado como “hegemonia revestida de coerção”, segundo a qual finalmente se assume que a sociedade civil é o elemento determinante do poder político, o qual é protegido (revestido) pela coerção, atividade que se supõe própria do Estado. Seria preciso inverter a fórmula anterior e apontar que o Estado é, primordialmente, coerção revestida de consenso, com a qual nos aproximaríamos da noção de “sistema de dominação” e, o mais importante, para a qual o Estado manifesta sua preeminência em matéria de poder político e domínio, como sugere a formulação apontada anteriormente. Em todos os processos revolucionários conhecidos, gestaram-se processos de poder dual e, a partir do campo popular, esse novo poder, gérmen de um novo Estado que emerge junto com as relações de poder que serão destruídas, concretizando-se historicamente nos sovietes, nos exércitos rebeldes, nos conselhos operários, ou seja, em entidades que portam e

sintetizam força social constituinte de novas relações sociais. É claro que podem surgir novas formas de uma sociedade civil, tal como novas formas de ensino e de comunicação, mas não possuem a mesma importância em matéria de poder político que as entidades anteriores. Por tudo o que foi apontado anteriormente, é necessário enfatizar que, entre a sociedade civil e o Estado, não existe uma linha de continuidade em matéria de poder político. Estamos falando de poderes qualitativamente diferenciados. O Estado , como relações de poder político condensadas, é aquele que tem a capacidade de organizar a vida em comum de maneiras específicas , em função de interesses particulares de classes, tarefa que as instituições da sociedade civil não podem levar a cabo, por estarem orientadas predominantemente a tarefas de educação nos valores dominantes e, a partir daí, de obtenção do consentimento dos dominados. Em termos metafóricos, poderíamos afirmar que não é galgando posições na sociedade civil que se chega às escadas que dão acesso ao Estado, porque entre uma escada e outra há uma ruptura chamada revolução, que implica ruptura de relações sociais de poder e domínio. ⁴¹ Existe, portanto, mais ruptura que continuidade em matéria de poder político entre o Estado e a sociedade civil. A debilidade das relações que criam sentido de comunidade a partir do Estado pode ser compensada com a ação das instâncias da sociedade civil. Porém as relações de poder político não podem ser derivadas para a sociedade civil. E, se algumas de suas instituições (escolas, igrejas, meios de comunicação) as assumissem, terminariam transformando-se em Estado. O hiato entre Estado e aparato de Estado: chaves para pensar os governos populares O aparato de Estado é primordialmente a coisifica ção das relações sociais que constituem o Estado . O aparato de Estado está formado por instituições como o Banco Central, o Parlamento, o Poder Executivo com seus ministérios de Estado, o Superior Tribunal Federal e demais tribunais, ministérios públicos, as Forças Armadas, a polícia, o sistema penitenciário, as prisões, as empresas estatais etc. – todas elas hierarquizadas. Também fazem parte do aparelho de Estado os servidores que trabalham nessas instituições. Esses funcionários também estão sob determinada hierarquia, e chamamos de classe reinante o setor que ocupa as posições mais altas e de maior hierarquia dentro do aparelho, como Presidente, ministros de Estado, diretores e demais altos funcionários de ministérios ou do Banco Central, os altos comandos militares, juízes do Supremo Tribunal Federal, as autoridades da Câmara de deputados e do Senado. Por último, conformam também o aparato de Estado o corpo constitucional, as leis e normas estabelecidas. Se o Estado é o centro do poder político, onde os interesses das classes dominantes são os que prevalecem na organização da vida em comum, o aparato de Estado é a instância que administra esse poder uma vez que seu funcionamento em geral está determinado pelos interesses que prevalecem

no Estado. Neste sentido, a distinção entre classes dominantes e classe reinante é fundamental. Se nos referimos à sociedade mexicana, podemos dizer que os Slim, Azcárraga, Larrea, Salinas Pliego, Aramburu etc. (ou para a sociedade brasileira os Odebrecht, os donos de O Globo ou da Folha de S. Paulo ) formam parte das classes dominantes, isto é, daquelas classes que detêm o poder político e que têm um peso específico na organização da vida em comum de acordo com seus interesses, enquanto os Salinas de Gortari, Fox, Calderón e Peña Nieto no México (ou Cardoso, Lula da Silva, Rousseff e Temer no Brasil) foram a cabeça da classe reinante nas últimas décadas. Um erro comum e nada menor é apontar os presidentes da república e demais altos funcionários do aparelho de Estado como aqueles que detêm o poder. Não é difícil perceber o erro dessa confusão provocada pela fetichização do Estado pelo capital, fazendo com que se perceba a vida social de forma distorcida e opaca. Para as classes dominantes no capitalismo, deixar a administração do aparato de Estado nas mãos de outras classes lhes permite alimentar a ficção de um Estado socialmente neutro, ocultando seu caráter de classe. Por isso são excepcionais as situações em que presidentes ou primeirosministros são diretamente membros das classes dominantes. Em períodos recentes, empresários como Mauricio Macri ou Donald Trump chegaram respectivamente à presidência da Argentina e dos Estados Unidos, mas esses casos configuram exceções que apenas confirmam a regra antes apontada. Se o Estado é o centro do poder político, esse poder não está em jogo em qualquer consulta eleitoral, nem sequer naquelas que definem o cargo principal dentro do aparelho de Estado, seja tal cargo o de presidente ou de primeiro-ministro. O que se define nas consultas eleitorais são as pessoas que ocuparão posições relevantes no aparelho de Estado. Em outras palavras, não é o poder político que está em disputa mesmo nas consultas eleitorais mais importantes. Somente estão em disputa os funcionários e as forças políticas que administrarão esse poder político. Se as mudanças de cargos se realizam entre partidos e figuras partidárias que representam interesses das classes dominantes, isso provocará reacomodações no interior do bloco no poder. ⁴² E se são forças e figuras que, em diversos graus, buscam mudar a ordem imperante, isso poderá expressar mudanças potenciais nas correlações de força entre as classes fundamentais, mudanças que deverão ser validadas na gestão desses governos. A possibilidade de que as mudanças nas correlações de força entre as classes fundamentais assumam uma orientação de ruptura ou apenas reformista , por exemplo, estará marcada pelos projetos em marcha e pelo modo como a própria gestão do novo governo se orienta para uma ou outra meta. Nesses dois últimos parágrafos se condensam o espaço teórico para explicar a conformação de governos populares – de particular relevância na região a partir do início do novo século – e, ao mesmo tempo, os limites que tais governos enfrentam , posto que se posicionam num aparelho que responde a

interesses estatais específicos . O aparelho de Estado não é uma garrafa vazia e transparente, que ganhará a cor do líquido que a preencha – conforme formulado por diversas correntes reformistas –, mas sim um território carregado de interesses de classe, com labirintos e armadilhas prontas para obstruir os projetos de forças sociais e políticas que rejeitem ou questionem a ordem existente. Os governos populares: um enclave no aparato de Estado burguês Não é um tema irrelevante que figuras de partidos políticos e/ou movimentos sociais que se propõem a modificar ou mesmo a superar a organização capitalista ganhem eleições e cheguem a ocupar posições relevantes dentro do aparato de Estado. Isso gera problemas não apenas ao aparelho, mas também ao próprio Estado, pois parte importante das funções exigidas às relações de poder político e domínio é realizada por meio do aparato de Estado. Uma interpretação recorrente em situações como a anteriormente assinalada afirma que não apenas teriam vencido as eleições e os cargos em disputa – seja para presidente, deputados, senadores etc. –, mas se acredita haver conquistado o poder político ou parte dele. A partir dessas considerações, explica-se o sentido de propostas de como iniciar a construção do socialismo. ⁴³ Mas entre o capitalismo e o início da construção do socialismo, há um problema nada irrelevante chamado revolução e o estabelecimento de um novo poder político. Em uma versão que relativiza um pouco a anterior, argumenta-se que nas eleições não se ganhou o poder político, mas sim posições importantes para avançar neste sentido. Mas avançar pode ser entendido como seguir realizando mudanças, muitas delas importantes, para as quais é necessário seguir ganhando eleições para manter ou aumentar os cargos e as posições alcançadas, o que em algum momento terá como consequência que a correlação de forças se modifique a favor dos dominados e em detrimento dos dominantes, resolvendo-se assim a questão sobre quem detém o poder. ⁴⁴ Descrevendo os pontos centrais que possibilitaram que o “ponto de bifurcação” se resolvesse em favor das “forças revolucionárias”, García Linera aponta a vitória eleitoral no referendo revogatório (aprovado por meio de Lei do Senado) do mandato de Evo Morales, em agosto de 2008, na Bolívia; a derrota da escalada golpista, entre agosto e setembro de 2008, e, finalmente, a aprovação da nova Constituição, através de referendo, em janeiro de 2009. O fio condutor dessa leitura é que com tais episódios teriam consolidado “um novo bloco de poder”, encerrando “o ciclo da crise estatal na Bolívia”. ⁴⁵ García Linera destaca a necessidade de entender a revolução como processo, o que, acredito, ninguém questionará. Mas, nesse processo revolucionário, necessariamente deve ocorrer a quebra do antigo Estado, a derrota das classes dominantes, a derrota ou desintegração dos antigos aparelhos armados e a conformação de um novo exército, como povo em armas, assuntos que não são abordados ou aparecem com sérias confusões na intervenção de García Linera.

Assim, por exemplo, o “ponto de bifurcação”, entendido como “momento de confronto aberto ou da medição de forças”, em que “ou se reconstitui o velho bloco de poder conservador ou se termina com o empate catastrófico e se consolida um novo bloco de poder”, é localizado no processo boliviano na derrota da direita golpista em setembro de 2008 e assumido como “vitória militar do povo”. García Linera afirma que o triunfo das forças revolucionárias foi alcançado por um processo de “mobilização social geral, de todas as forças que tinha o Partido [MAS], o camponês, o movimento indígena, o movimento cooperativista, as comunidades, os ponchos rojos , os ponchos verdes ⁴⁶ * , produtores de folhas de coca, do Chapare, dos Yungas”, e também pelo “respeito institucional das Forças Armadas”. ⁴⁷ E como se produziu a mudança das Forças Armadas bolivianas, expressão da violência concentrada do Estado capitalista, numa instituição que agora opera com outro sentido de classe? A resposta de Garcia Linera é de uma enorme ingenuidade teórica e política: a partir de uma “articulação institucional cultivada pelo presidente Evo na redefinição de uma nova função das Forças Armadas na democracia”. Nisso residiria “o respeito institucional das Forças Armadas” (bolivianas) e, como bem agrega, não ao processo revolucionário , mas sim “em defesa da democracia”. ⁴⁸ A mesma ideia é formulada novamente em outra ocasião, mas sem referência às Forças Armadas em particular. Neste sentido, García Linera defende que “durante uma insurgência social por fora do Estado, e por dentro das próprias estruturas institucionais do Estado , é preciso derrotar o velho poder decadente, atravessando [... o] ponto de bifurcação”. ⁴⁹ Ninguém pode desvalorizar a relevância dos momentos acima apontados, bem como a força social alcançada, os quais permitiram iniciar a “descolonização do Estado”, nem deixar de reconhecer na Constituição os direitos dos povos indígenas; a nacionalização dos hidrocarbonetos; a conformação de uma Assembleia Constituinte; a nacionalização das empresas de telecomunicações e de outras empresas. Todos esses elementos, somados aos triunfos eleitorais e aos triunfos antigolpistas, estão muito distantes, entretanto, de resolver o problema do poder na Bolívia, de produzir um “ponto de bifurcação” (ou triunfo da revolução) ou que tenha redundado em uma inclinação na direção das forças revolucionárias. ⁵⁰ Nesse sentido, o vice-presidente era mais claro nos anos anteriores, quando afirmava que se buscava construir um “capitalismo andino-amazônico” na Bolívia, cuja base era um “processo de redistribuição pactuada do poder”. ⁵¹ Os chamados governos populares da Venezuela e da Bolívia se enredaram na confusão entre Estado e aparato de Estado, e perderam um tempo precioso do ponto de vista da força social com a qual contavam no momento em que ascenderam ao aparato de Estado. Nesta oportunidade, as forças sociais revolucionárias poderiam ter sido incrementadas no sentido de resolver quais interesses sociais e quais interesses políticos organizam a vida em comum, e, finalmente, qual poder político se impõe. No caso da Venezuela, em meados de 2017, produziram-se mudanças de grande importância. Em meio a uma longa ofensiva opositora no plano local e internacional durante a primeira metade de 2017, a convocação de eleições e a posterior conformação da Assembleia Nacional Constituinte se

converteram em uma comoção política que reanimou as forças populares e o próprio governo, que estavam já por um longo período na defensiva e em desarticulação. Isso lhes permitiu retomar novamente a iniciativa política. ⁵² A ingerência e as ameaças do governo dos Estados Unidos aumentaram, fortalecendo a reorganização anti-imperialista e nacionalista. Este novo impulso levou à radicalização do processo e à desarticulação dos principais centros e cabeças da ofensiva opositora interna. O particular caráter nacionalista das Forças Armadas venezuelanas e o fato de o comandante Hugo Chávez ter sido um de seus membros são alguns elementos que explicam o respeito institucional que as Forças Armadas manifestam até hoje em relação ao governo de Nicolás Maduro. Nesse marco, foi realizada a convocatória, teve andamento a Assembleia Nacional Constituinte, a destituição da Procuradoria Geral e foram reduzidas as atribuições da Assembleia Nacional onde estavam entrincheiradas institucionalmente as forças opositoras. É relevante que forças críticas ao capital vençam processos eleitorais sempre que poss ível . Porém, é preciso ter em vista que, em uma estratégia de poder, são muito altas as probabilidades de que até mesmo as conquistas efetuadas deverão ser ultrapassadas pela força social em sua passagem para se converter em força social constituinte. Esta força social pode se ver fortalecida e potencializada a partir das posições alcançadas dentro do aparelho de Estado, mas precisam ultrapassá-lo no intuito de superar o capitalismo e suas relações. A contenção dos movimentos sociais na Venezuela e na Bolívia, que ajustam suas mobilizações e seu auge às conjunturas eleitorais ou nos momentos em que a ofensiva reacionária os alcança, não deixa de ser um problema na perspectiva da radicalização dos processos. Breve intermezzo sobre governos populares e a necessidade de rupturas institucionais Os principais teóricos e políticos que deram vida à “via chilena ao socialismo” – cuja maior conquista foi o triunfo e ascensão de Salvador Allende (1970-1973) ao governo –, sustentaram a ideia de que era possível ir modificando o aparelho de Estado e o Estado por um caminho que respeitasse a institucionalidade vigente. Esse processo se efetivaria realizando mudanças apoiadas na força outorgada por consecutivos triunfos eleitorais – ou em mais uma tentativa de realizar a revolução sem revolução. Não se pode dizer que não se avançou, e muito, na organização, na distribuição de terras, nas empresas ocupadas, na expropriação do capital estrangeiro das minas de cobre etc. Entretanto, o golpe militar de 1973 evidenciou que, se, por um lado, as forças populares queriam avançar em direção a um novo poder através de caminhos institucionais, de outra parte, as classes dominantes e as Forças Armadas estavam dispostas a “sacrificar” seu respeito às normas institucionais com o objetivo de impedir esse avanço e preservar seu poder. O presidente Salvador Allende não deixou de ter razão quando em suas últimas mensagens pelo rádio, já avançado o golpe militar e um pouco antes de sua morte, fez um chamado aos trabalhadores, aos setores populares e

aos estudantes a não se deixarem massacrar por milhares de homens fardados posicionados nas ruas e locais de trabalho. Entretanto, houve conjunturas no processo chileno nas quais o avanço que implicou contar com um governo popular, que tinha por meta chegar ao socialismo, alcançou pontos culminantes em matéria de força social disponível, de desorganização dos setores dominantes e de confusão no seio das Forças Armadas e militares. Nestas conjunturas residia o ponto de inflexão a partir do qual a ruptura institucional imperante era não apenas necessária, senão possível. Um dilema com o qual se enfrenta qualquer processo de transformação com perspectivas socialistas que alcance posições substanciais no aparelho de Estado. Um desses momentos se produziu em julho de 1973, quando, no dia 29 daquele mês, um setor militar de um regimento de blindados tentou levar a cabo um motim, com tanques nas ruas, chegando inclusive à sede do governo, o Palacio de La Moneda , com o objetivo de fomentar um golpe militar – no episódio batizado de “ tanquetazo ”. A ação não conseguiu atrair maiores forças militares ou civis, nem o apoio dos altos comandos dos três ramos das Forças Armadas. Assim, os militares golpistas foram submetidos por outros setores e corpos militares. Como resposta a este motim, o governo, as centrais sindicais e os partidos políticos que conformavam a Unidade Popular convocaram uma grande concentração no centro de Santiago para expressar seu rechaço à ação golpista. Massivas marchas de operários, funcionários públicos e do setor privado, camponeses, estudantes, trabalhadores da limpeza com seus caminhões, donas de casa, moradores das comunidades periféricas, radicalizados, lotaram as ruas de Santiago e do restante das principais cidades do país. Diante da enorme força social disponível, esse era o momento de evidenciar a cumplicidade dos partidos da direita chilena e da Democracia Cristã com o fracassado motim militar e de reivindicar a destituição de seus parlamentares. Era o momento também de denunciar as organizações empresariais mancomunadas ou solidárias com a ação militar e de decretar a passagem de suas empresas e bancos ao setor social da economia; de questionar os comandos militares diretos dos golpistas, pela incapacidade de manter o respeito institucional de suas tropas, destituindo-os; de convocar a população a ocupar ruas e postos de trabalho até excluir as instituições daqueles potenciais golpistas, ou decretar seu fechamento; de convocar a população à conformação da Assembleia do Povo proposta desde julho de 1972 pelo Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR), uma Constituinte para definir a reorganização da vida em comum sobre novas bases. Tratava-se de uma conjuntura particular nas quais as Forças Armadas se encontravam questionadas, e, inclusive, desorganizadas por uma operação que tomou forma a partir de seu interior e que surpreendeu o alto comando. O general Carlos Prats, um militar institucional e leal ao governo de Allende, não havia renunciado ainda ao cargo de comandante em chefe das Forças Armadas, fazendo-o apenas em agosto daquele ano, razão pela qual o general Augusto Pinochet, que se converterá em um dos líderes do golpe de setembro, ainda não contava com a força e a coordenação do setor militar golpista. Este foi um momento para grandes decisões, porque os setores

populares se agitaram com a tentativa golpista e manifestaram disposição de assumir maiores responsabilidades pelo avanço e pela defesa do processo. Além disso, nas eleições legislativas de março de 1973, três meses antes da tentativa golpista, as organizações políticas que davam vida a Unidade Popular tinham conquistado 43% dos votos em escala nacional, o que denotava o elevado apoio com que contava o governo. Esse apoio popular deteve a tentativa de “golpe institucional” que seria sustentado pelo Congresso, pelo Judiciário e por contingentes civis protofascistas que já operavam como forças paramilitares. Nada do mencionado se concretizou. Pelo contrário, após o tanquetazo , começou a vigorar a Lei de Controle de Armas, aprovada em outubro de 1972 pelo Congresso, com revistas militares nas comunidades de periferia, fábricas e organizações populares em busca de armas. Com isso, não apenas não foram enfrentados os poderes e instituições que já revelavam seus limites para sustentar um processo de transformação institucional, mas inclusive foram reforçados seus poderes, resultando na desmoralização dos setores populares. A resposta popular também teria outra envergadura se tivessem sido impulsionadas a partir do governo e de fora deste as iniciativas organizativas e de ação que os setores populares foram gerando no decorrer do processo, tais como os comandos comunais, a articulação de sindicatos e trabalhadores em cordões industriais, formas de organização de camponeses e indígenas para recuperar terras expropriadas, organização de moradores e setores pobres urbanos e populares em geral para enfrentar o desabastecimento e o mercado paralelo de especulação com bens e produtos, e incipientes formas de defesa armada em diversos setores e organizações populares. Impulsionar e favorecer todas essas iniciativas organizativas e de ação exigia que os partidos e as autoridades de governo não gastassem todas suas cartas em uma só forma de resolver o conflito de classes: as formas institucionais. A luta de classes não é um duelo entre cavalheiros, em que previamente se escolhe a arma com a qual ocorrerá o enfrentamento. É preciso prever os possíveis cenários, e um deles é aquele em que se deve atuar com outra lei, já não com a lei estabelecida. Do contrário, fica-se de mãos atadas à forma prévia, apostando todas as fichas numa só opção. O final desta história é conhecido. O presidente se suicida no palácio do governo, enquanto aviões militares bombardeiam o Palacio de La Moneda e os cordões industriais. Pinochet e os demais comandantes em chefe das Forças Armadas conformam a Junta Militar, que governará o país por dezesseis anos, até 1989. Assim se deu por encerrado ao projeto de revolução institucional, com milhares de mortos e desaparecidos.

As novas propostas de “vias democráticas ao socialismo”, como aquela apresentada por García Linera na Bolívia, poderiam fazer um balanço mínimo da experiência do governo de Salvador Allende, e das dificuldades políticas que essa experiência evidenciou. Ao fim e ao cabo, aquele processo atuou a partir de uma estratégia similar à de uma via institucional e democrática ao socialismo. Problemas não contemplados nas propostas de “via democráticas ao socialismo” O capitalismo apresenta uma série de particularidades que limitam – quando não liquidam – a proposta de “vias democráticas ao socialismo”, pelo menos nas condições atuais da correlação de forças em escala mundial. A primeira remete às relações sociais de produção, as quais, no capitalismo, possuem um papel central na reprodução dessa organização social, dado que, por mais que as relações se agudizem, delas obtém-se como resultado sempre capital e trabalho. Não é o caso, por exemplo, nas relações do senhor com os servos no feudalismo. Se a exploração se agudizasse, com a cobrança de maiores tributos pelo senhor, isso podia fazer com que os servos abandonassem as terras e buscassem refúgio e formas de subsistência nas incipientes cidades. Ou seja, a agudização da exploração permitia, naquele caso, romper as relações sociais. Isso não ocorre de nenhuma forma substantiva no capitalismo. No feudalismo, não eram as relações sociais de produção o elemento fundamental da reprodução daquela ordem social, mas sim os elementos ideológicos, religiosos e culturais que operavam de modo prioritário naquela reprodução. Justamente por isso foi possível que, no seio do feudalismo, as relações sociais feudais pudessem se desintegrar, permitindo a geração e posterior expansão de relações sociais cada vez mais plenamente capitalistas, nas quais se produz capital. Isso permitirá à burguesia, em dado momento, requerer sua incorporação ao regime de domínio imperante e, mais tarde, reivindicar e lutar pela hegemonia do Estado. A força que a burguesia ganha como parte desse processo está ligada ao fato de que, tal como as antigas classes dominantes, também é uma classe exploradora sobre a qual repousa a possibilidade de que possam se estabelecer acordos e alianças entre a nova classe que se tornará dominante – a burguesia – e as antigas – os senhores, a nobreza, o alto clero. Daí o fato de a transição do feudalismo ao capitalismo não assumir necessariamente formas próprias de uma guerra entre classes. Nesta perspectiva, não é a revolução francesa o modelo de revoluções burguesas, mas, ao contrário, a revolução inglesa. No capitalismo, não existe a possibilidade de que emerjam de seu interior relações socialistas, o que limita, a partir deste terreno, o empoderamento prévio à revolução por parte da classe revolucionária. Portanto, posto que o proletariado traz consigo um projeto societário em que desaparecerão a exploração e o domínio de classes, as possibilidades de alianças e acordos com as velhas classes dominantes são praticamente nulas. O proletariado é a negação do projeto burguês. Isso faz com que as possibilidades de transições democráticas ao socialismo sejam reduzidas, ou mesmo nulas. É

possível que cheguemos a um ponto da correlação de forças mundial em que os avanços da revolução coloquem a burguesia em uma posição na qual se encontre encurralada em espaços determinados e abandone o enfrentamento, na lógica de defesa de seu poder e de seus privilégios a qualquer custo. Conforme já indicamos antes, nada disso deve ser interpretado como uma negação da luta no campo institucional no capitalismo. Não existem espaços e formas de luta negadas na busca por acumular forças. Mas tratamos de estabelecer as determinações e os limites enfrentados por essas lutas no atual estado de coisas. Determinações do Estado dependente Do assinalado nos pontos anteriores sobre o Estado capitalista em geral cabe registrar algumas particularidades do Estado dependente. 1. No seio do sistema interestatal mundial, o Estado dependente é um Estado subsoberano. De cara, isto significa um poder estatal subordinado a outros poderes estatais. Também implica a presença de um poder que opera descentrado em respeito à sociedade no qual se constitui, nutrido por modalidades de reprodução que culminam em mercados exteriores. Esta condição não significa que o Estado não conte com o poder político para definir e organizar a vida em comum no interior da organização social em que atua e opera. Isso implica em romper com a equação da ciência política tradicional que supõe ser o Estado um equivalente à soberania. Essa formulação desconhece a heterogeneidade econômica e estatal que o capitalismo conforma no nível do sistema mundial. Por sua vez, implica romper com a ideia de que as carências em matéria de soberania supõem incapacidades para o exercício do poder político por parte das classes dominantes locais. 2. No plano econômico do sistema mundial, operam mecanismos de transferência de valor (de lucros por investimento, de juros da dívida etc.) de umas a outras economias que dão forma a capitalismos desenvolvidos e capitalismos dependentes. Quando ditas transferências se produzem por maiores ou menores composições orgânicas, e, portanto, de produtividade, tecnologia e conhecimentos, falamos de intercâmbio desigual. As modalidades de inserção no mercado mundial e de reprodução do capital encorajam que o capital no mundo dependente tenha condições de apropriar-se de parte do fundo de consumo e de vida dos trabalhadores para transferi-lo ao fundo de acumulação do capital. A esta modalidade particular de exploração se denomina superexploração, a qual se vê possibilitada pela presença de enormes contingentes de população excedente em relação às necessidades do capital, gerados pela própria dinâmica da acumulação. 3. O predomínio da superexploração sob diversas formas agudiza os conflitos sociais e debilita as relações que geram sentido de comunidade. Esta é uma das principais razões pelas quais, na história política dos Estados latino-americanos, verifique-se a tendência ao predomínio de diversas formas autoritárias, bem como a dificuldade destes Estados em assentar-se de maneira mais duradoura em formas

democráticas. ⁵³ Não é falta de desenvolvimento político a explicação para isso, mas sim a expressão das formas particulares de reprodução do capitalismo dependente. 4. Em uma economia sustentada na espoliação das condições básicas de vida do grosso da população e submetida pelas classes dominantes hegemônicas a processos de desapropriação de valor para as economias desenvolvidas, deriva-se uma agudização dos conflitos sociais e da luta de classes, com maior força pelo desenvolvimento pleno das classes sociais do capitalismo e de seus enfrentamentos. Nestas condições, o Estado dependente tende a se converter em um elo frágil da corrente de dominação mundial do capital, a qual coloca em evidência de maneira permanente a atualidade da revolução. ⁵⁴ 5. A intensificação dos conflitos sociais no capitalismo dependente e da superexploração trazem consequências sobre o Estado de direito e o peso da lei, os quais são minados e aplicados discricionariamente. As leis não escritas têm um peso significativo na vida social. As instituições do Estado, por sua vez, manifestam fragilidade, não por imaturidade, senão pela particularidade que apresenta a imbricação do econômico com o político. Tudo o que foi dito é necessário para sustentar a condição de subsoberania no sistema interestatal, as particulares formas de exploração no plano local e as transferências de valor. 6. Frente a instabilidade das instituições, tendencialmente frágeis, alimentada também pela débil legitimidade das autoridades, emerge a tendência a outorgar à classe reinante maiores espaços de ação e decisão no âmbito do aparato de Estado. Neste quadro é que operam as condições para a regular a emergência de mandos autoritários e de governos encabeçados por caciques ou caudilhos políticos nos Estados dependentes. ⁵⁵ A inexistência de estruturas produtivas complexas e a precoce monopolização da economia em seus muito diversos setores propiciam o rápido surgimento do grande capital, que passa a predominar na economia e no Estado dependente. Isso faz com que prevaleça no interior do bloco de poder uma subordinação do restante dos capitais aos setores e frações hegemônicas, em vez de esses conflitos pela repartição dos lucros e em torno de projetos econômicos se fazerem sentir com força no Estado e na sociedade. ⁵⁶ 7. Este processo foi reforçado pela massiva entrada de capital estrangeiro na indústria local desde os anos 50 do século XX, que se viu reforçado no século XXI com as alianças do grande capital local com o capital externo após a emergência de segmentos e elos produtivos de cadeias globais, com a expansão do capital financeiro pelo conjunto do sistema e com importantes investimentos externos no setor primário. 8. Diante do peso de padrões de reprodução do capital orientados ao mercado exterior na história econômica latino-americana, prevalece no capitalismo dependente uma espécie de esquizofrenia social nas classes dominantes da região. Frente à necessidade de estarem abertas aos mercados exteriores e de limitar medidas protecionistas, operam

defendendo posições liberais no âmbito econômico, sustentando, no entanto, posições conservadoras no terreno político e social. Isto, que já havia sido expresso na segunda metade do século XIX, segue apresentando-se com força desde o último terço do século XX até nossos dias, com governos de direita no campo político e liberais na esfera econômica – como ocorre desde as ditaduras civil-militares. O surgimento de governos populares progressistas no século XXI moderou esta tendência, que volta a ganhar vida depois da derrota eleitoral destes governos (com Maurício Macri, na Argentina) ou a instauração de golpes civis (e a entronização de Michel Temer no Brasil). O Estado de segurança com verniz eleitoral: resposta à crise A crise dos arremedos de democracia na região, a destituição dos presidentes em Honduras (2009), Paraguai (2012) e Brasil (2016) por meio de golpes suaves, as crises dos governos populares da Venezuela e da Bolívia, cada vez mais cercados pelas mobilizações internas e pelo acosso internacional, e, inclusive, a ascensão de Mauricio Macri à presidência da Argentina, em um processo de devassa mediática, econômica e judicial contra o governo anterior, revelam que o período aberto com a chamada transição para a democracia chegou ao fim na região, e que assistimos a uma reconfiguração das formas de governo que emergiram daquele processo, colocando em marcha uma nova forma, o Estado de segurança com verniz eleitoral . Uma das razões que explicam a força com que amadurece essa nova forma de governo na segunda década do século XXI, e que já apresenta antecedentes na década anterior, possui relação com um novo estágio de desenvolvimento da fração burguesa produtora e exportadora de matériasprimas, alimentos e componentes industriais ligados às indústrias automobilística, eletrônica e de montagem, assim como da fração bancária e financeira, ambas em estreita relação com capitais estrangeiros, resultado da enorme expansão de suas atividades e investimentos na primeira década do século atual, com um elevado aumento dos preços dos bens de exportação no mercado mundial e o crescimento, por sua vez, do volume de exportações. Porém, o Estado de segurança com verniz eleitoral também é resultado da crise proporcionada pelo descenso dos preços e dos volumes das exportações, o que agudizou os embates daquelas frações e do capital local e internacional com investimentos na região e dos Estados com interesses geopolíticos na zona, contra as políticas sociais dos governos populares e progressistas, o que leva o capital a redobrar seus esforços para recuperar a gestão do aparato de Estado, buscando por fim àqueles governos e a reforçar em toda a região as políticas de segurança. ⁵⁷ Nessa nova forma de governo, poderá se manter as consultas eleitorais, mas sob procedimentos que limitem as decisões cidadãs e impeçam o ascenso ao governo de forças políticas disruptivas e de personalidades que encabecem projetos críticos ao capitalismo. Um objetivo central para o capital é que não se volte a repetir a presença de governos progressistas e menos ainda de governos populares no cenário regional. Para isso é preciso derrubar a credibilidade e pôr fim político a organizações que ameacem a paz social e

eleitoral dos grandes capitais. Também destruir – quando não eliminar – ⁵⁸ lideranças sociais e políticas que possam encabeçar respostas de massas. A “eliminação” política de Lula das urnas para a eleição presidencial no Brasil faz parte dessa nova lógica; de igual forma pode-se interpretar a poderosa ofensiva mediática de desprestígio que se implementou contra Cristina Fernández, não somente para derrotá-la eleitoralmente, mas para destruí-la como opção para futuras contendas. Desta maneira, o eleitoral permanece como um mecanismo que outorga legitimidade às autoridades e como um pano de fundo para a nova forma de governo. Mas a segurança política no campo eleitoral reforça a tendência à realização de todo tipo de truques e fraudes eleitorais, ⁵⁹ desde a compra de votos até manobras cibernéticas. O Estado de segurança com verniz eleitoral apresenta pontos de diferença com os Estados de contrainsurgência que a América Latina conheceu a partir dos anos 60 do século XX. Num primeiro momento, a manutenção de processos eleitorais para designar as autoridades permite deixar em segundo plano os aparatos repressivos do Estado, o que não ocorreu particularmente nas ditaduras militares. Busca-se o controle da sociedade por mecanismos em que atuam parlamentos e se identificam inimigos, especialmente no crime organizado e no “terrorismo”, ainda que o espectro seja muito mais amplo. Esses mecanismos incluem também o controle de organizações e líderes políticos, bem como da imprensa e de outros meios de comunicação, particularmente os públicos, que sofrem embates que limitam suas atividades. Elevar a percepção de insegurança é um terreno fértil fundamental para desarticular organizações e desmobilizar a sociedade, subtrair a iniciativa e justificar a vigilância e a intervenção policial e militar. O peso particular dos meios de comunicação para aumentar a percepção de insegurança social, para endossar e justificar as políticas governamentais e atacar e destruir líderes opositores são de vital relevância na nova forma de governo. Porém a nova forma de governo apresenta também muitos pontos em comum com o Estado de contrainsurgência, como perseguir ou eliminar a quem critica as políticas em marcha ou denuncia negócios, corrupção ou abusos de autoridades civis ou militares; ⁶⁰ estabelecer novas leis em matéria de segurança pública; ⁶¹ a reorganização de forças policiais, de aparatos de inteligência e segurança, e das Forças Armadas, ⁶² bem como seu reequipamento; ⁶³ a aplicação de novos sistemas de controle e vigilância de opositores. ⁶⁴ Também de novos acordos com os aparatos de inteligência, de segurança e com as Forças Armadas dos Estados Unidos. Em segunda ordem, também se implementam reformas educativas nos distintos níveis de ensino e novas ofensivas contra a educação pública superior, com a demissão ou aposentadoria obrigatória de professores por idade (na Argentina, aos 65 anos), desvalorização de suas posições em rankings internacionais ou a presença do crime organizado em suas instalações para justificar controles externos e renovação de programas de pesquisa e corpo de pesquisadores. ⁶⁵

Apesar do papel relevante dos aparatos armados, não é necessário, nem pertinente, que estes ocupem o primeiro plano na nova forma de governo. Pelo contrário, incentivarão a presença de civis na cúpula do aparato de Estado, para que o imaginário de democracia, pela via de consultas eleitorais e de partidos concorrentes se mantenha. ⁶⁶ Além de impedir a repetição de experiências como os governos populares e progressistas, também se busca, sob a nova forma de governo, alcançar outras metas para avançar nos projetos do grande capital local e transnacional, como redobrar o ritmo das políticas de ajuste; realizar novas reformas trabalhistas e previdenciárias; prosseguir a venda de bens e recursos públicos para capitais privados; construir novos acordos regionais com outros mercados para alargar os campos de ação do grande capital exportador da região; criar “comandos político-intelectuais” de ação rápida, para que escrevam, falem e agitem a “condenação” de forças, personalidades e governos que atentem contra a liberdade e a democracia. ⁶⁷ Os passos para configurar a nova forma de governo não podem senão gerar rechaças em amplos setores da população, pelos efeitos que propiciam em suas condições de vida; pela militarização das ruas e cidades e pela criminalização dos movimentos sociais e dirigentes; pelas sequelas de mortes de civis, acusados de forma geral de estarem envolvidos com o tráfico/grupos criminosos, sem que tribunais civis possam se envolver nos processos. De maneira mais acelerada em alguns casos, e mais lenta em outros, essa nova forma de governo se concretiza no conjunto da região, colocando em marcha as diversas dimensões que a caracterizam. O aumento da violência estatal será uma condição necessária para que alcance formas maduras, e com maiores razões se se considera que os movimentos populares da região foram golpeados e colocados na defensiva, mas de nenhuma forma desarticulados. Epílogo: o triunfo contracorrente de López Obrador no México O triunfo de Andrés Manuel López Obrador nas eleições presidenciais do México em julho de 2018 caminha contracorrente das tendências assinaladas acima. Não é a primeira vez na história da região que se produzem processos divergentes, e menos ainda no México, uma sociedade que conheceu uma prematura revolução social em 1910; com a formulação de uma Constituição em 1917, uma das mais avançadas em matéria de direitos sociais; com Lázaro Cárdenas, que expropriou as petroleiras de capital estadunidense nos anos 1930 e repartiu terras aos camponeses; com governos que mantiveram uma postura contrária a Washington nos fóruns internacionais (México, por exemplo, foi o único país latino-americano que se opôs à expulsão de Cuba da OEA nos anos 1960); com uma política de contrainsurgência agressiva desde fins dos anos 1960 até os 1980, sem necessidade de golpes militares como nas outras grandes economias da região; e que nessa postura recebeu milhares de refugiados políticos do Cone Sul e da América Central. O triunfo também do partido criado por López Obrador, o chamado Movimento de Renovação Nacional – MORENA (Movimiento de

Regeneración Nacional), tem sido de tamanha envergadura que expressa uma verdadeira rebelião e insurgência cidadã, deixando em minoria os partidos tradicionais que governaram a sociedade mexicana, como o Partido Revolucionário Institucional (PRI) e o Partido de Ação Nacional (PAN), que se encontram em uma severa crise. O eixo dos problemas colocados para o novo governo centra-se na luta contra a corrupção e a insegurança e em abrir novas expectativas de emprego e melhores condições de renda aos setores mais pobres da sociedade, o que deveria reduzir a enorme desigualdade social que impera atualmente. Porém, para além das metas planejadas, que não são poucas no contexto atual em que o crime organizado cresceu a níveis alarmantes e o roubo de recursos públicos também, o relevante é o espaço social e político que abre o novo governo, oferecendo possibilidades de ação a forças políticas e movimentos que, com suas ações, podem alargar e radicalizar os objetivos a alcançar e ganhar em organização e disposição de luta dos setores populares. Não compreender isso é o que leva a algumas forças, como os neozapatistas, a equiparar López Obrador e seu potencial governo com os de Salinas de Gortari, Calderón ou Peña Nieto. Essas análises rudimentares ajudam a entender os problemas destas organizações em operar politicamente nas conjunturas geral e particular. Bibliografia ALTHUSSER, Louis. Ideología y aparatos ideológicos de Estado . México: Comité de Publicaciones de los Alumnos de la Escuela Nacional de Antropología e Historia, 1974. ÁVALOS, Gerardo. “México; nudo poder y disolución del Estado”. Veredas , n. 20, México, Departamento de Relaciones Sociales, UAM-Xochimilco, primer semestre de 2010. __. La estatalidad en transformación . México: Itaca/UAM, 2015. __.; HIRSCH, Joachim. La pol ítica del capital . México: UAM-Xochimilco, 2007. GARCÍA LINERA, Álvaro. “La construcción del Estado”. Facultad de Derecho UBA, 9 de abril de 2010. Disponível em: http://cidac.filo.uba.ar/conferenciamagistral-de-alvaro-garcia-linera. Acesso em: 31 mayo 2016. “Las reformas pactadas” (entrevista por José Natanson). Nueva Sociedad , n. 209, Buenos Aires, mayo-junio de 2007. _. “El Estado y la vía democrática al socialismo”. Nueva Sociedad , n. 259, Argentina, septiembre-octubre de 2015. _. “La construcción del Estado”. Facultad de Derecho UBA, 9 de abril de 2010. Disponível em: http://cidac.filo.uba.ar/conferencia-magistral-de-alvarogarcia-linera. Acesso em: 31 mayo 2016.

GRAMSCI, Antonio. Notas sobre Maquiavelo, sobre política y sobre el Estado moderno . México: Juan Pablos Editor, 1975. HOLLOWAY, John. Cambiar el mundo sin tomar el poder. El significado de la revolución hoy . Buenos Aires: Ediciones Herramienta/Universidad Autónoma de Puebla, 2002. MARX, Carlos. El capital . t. III. 7. reimp. México: Fondo de Cultura Económica, 1973. OLIVER, Lucio. El Estado ampliado en Brasil y México . México: UNAM, 2009. OSORIO, Jaime. O Estado no centro da mundialização. A sociedade civil e o tema do poder. São Paulo: Outras Expressões, 2014. __. Explotación redoblada y actualidad de la revolución . Refundación societal, rearticulación popular y nuevo autoritarismo. México: UAM/Itaca, 2009. POULANTZAS, Nicos. Estado, poder y socialismo . México: Siglo XXI editores, 1979. ROUX, Rhina. “El Príncipe fragmentado. Liberalización, desregulación y fragmentación estatal”. Veredas , n. 20, México, Departamento de Relaciones Sociales, UAM-Xochimilco, primer semestre de 2010. SADER, Emir. “La Revolución Rusa, según García Linera”. Página 12 , Argentina, 22 de junio de 2017. Disponível em: https:// www.pagina12.com.ar/45597-larevolucion-rusa-segun-garcia-linera. Acesso em: 2 out. 2017. ŽIŽEK, Slavoj. Repetir Lenin . Madrid: Akal, 2004. ²¹ Tradução: Fernando Correa Prado, Diógenes Moura Breda, Marina Machado e Maira Bichir. Supervisão de tradução: Carla Cecilia Campos Ferreira. ²² Docente do Departamento de Relações Sociais da Universidad Autónoma Metropolitana UAM – Xochimilco. E-mail: [email protected] ²³ A formulação que afirma o contrário e que adquiriu maior visibilidade na região em tempos recentes está no livro de John Holloway, Cambiar el mundo sin tomar el poder. El significado de la revolución hoy (Buenos Aires: Ediciones Herramienta/Universidad Autónoma de Puebla, 2002). ²⁴ Por isso é equivocada a ideia de “desintegração” ou de “fragmentação” do Estado capitalista. Ver Rhina Roux, “El Príncipe fragmentado. Liberalización, desregulación y fragmentación estatal”, Veredas n. 20, México, Departamento de Relaciones Sociales, UAM-Xochimilco, primer semestre de 2010, pp. 73-96. ²⁵ Este é um dos motivos que explicam a centralização da organização política.

²⁶ Somente uma leitura que sobrevalorize a dimensão de comunidade do Estado, relegando e subvalorizando as relações de poder político e domínio , pode sustentar uma posição como a anterior. Ver Gerardo Ávalos, “México; nudo poder y disolución del Estado”, Veredas n. 20, México, Departamento de Relaciones Sociales, UAM-Xochimilco, primer semestre de 2010, pp. 97-119. ²⁷ Existem diversos estudos sobre o Estado que utilizam a forma-valor como elemento-chave para sua compreensão. Ver, por exemplo, de Álvaro Garcia Linera, “El Estado y la vía democrática al socialismo”, Nueva Sociedad , n. 259, septiembre-octubre de 2015: “A forma dinheiro” – diz García Linera – “tem […] a mesma lógica constitutiva que a forma Estado”, pelo que “a lógica das formas do valor e do fetichismo das mercadorias […] [são] a profunda lógica que também dá lugar a forma Estado e a sua fetichização” (pp. 150-152). Ver, também, de Gerardo Ávalos Tenorio, La estatalidad en transformación (México: Itaca/UAM, 2015). ²⁸ Retomo aqui a ideia de Ávalos Tenorio: “que a economia se manifeste como não política, para que a política se manifeste como não econômica”, em G. Ávalos y J. Hirsch, La política del capital , p.57 (México: UAMXochimilco, 2007). ²⁹ Trabalhamos esse tema no Anexo “A ruptura entre economia e política no mundo do capital” publicado no livro O Estado no centro da mundialização (São Paulo: Outras Expressões, 2014). ³⁰ García Linera, “El Estado y la vía democrática al socialismo”, p. 151. ³¹ Karl Marx, El capital , t. III, p. 768 (México: Fondo de Cultura Económica, 7 ed., 1973). ³² É uma hipótese que não se verifica no capitalismo dependente e tampouco nos diversos setores de trabalhadores do mundo desenvolvido. ³³ Em situações específicas, o aparato de Estado pode integrá-las, como ocorre quando os meios de comunicação estão subordinados diretamente ao governo. Mas isso não é a norma, pelo menos na democracia liberal. ³⁴ Ver Louis Althusser, Ideología y aparatos ideológicos de Estado (México: Comité de Publicaciones de los Alumnos de la Escuela Nacional de Antropología e Historia, 1974); e Nicos Poulantzas, Estado, poder y socialismo (México: Siglo XXI editores, 1979). ³⁵ Ver Lucio Oliver, El Estado ampliado en Brasil y México (México: UNAM, 2009). ³⁶ Ver Antonio Gramsci, Notas sobre Maquiavelo, sobre política y sobre el Estado moderno , p. 165, grifos nossos (México: Juan Pablos Editor, 1975). ³⁷ Esta permissividade desaparece quanto mais autoritária seja a forma de governo imperante.

³⁸ O Estado pode assumir formas de organização sindical ou de partidos de “esquerda”, mas os primeiros somente são reconhecidos como organizações de vendedores de força de trabalho, e os segundos, à medida que se comprometerem a respeitar o Estado de direito, não atentando contra ele. ³⁹ Ver Slavo Žižek, Repetir Lenin , pp. 10-11 (Madri: Akal, 2004). ⁴⁰ Ver nota n. 16. ⁴¹ Já apontamos o erro que é supor que – mantendo a metáfora – subindo pelo Estado capitalista, este irá mudando de conteúdo de classe quanto mais alto cheguemos. Em todos os casos, o que se oculta é o tema da revolução. ⁴² Ou seja, alterações na articulação/confronto das diferentes classes, frações e setores das classes dominantes, segundo os graus de força social de que dispõem em determinados momentos históricos, nos quais algumas frações e/ou setores se tornarão hegemônicos no bloco, o que indica que será em torno de seus projetos que passarão a se articular e confrontar o restante das frações e setores dominantes. Sobre esse ponto, ver nosso livro O Estado no centro da mundialização (São Paulo: Outras Expressões, 2014). ⁴³ Isso foi o que se propôs na Venezuela no período em que governava o comandante Hugo Chávez: construir o “socialismo do século XXI” tornou-se uma meta do processo. Álvaro García Linera, vice-presidente da Bolívia, colocou a questão da seguinte forma: “está claro que esta construção do Estado que estamos fazendo hoje […] não é a modernização clássica […] mas sua transição é evidentemente para o socialismo” (na conferência magistral de Álvaro García Linera, “La construcción del Estado”, Facultad de Derecho de la UBA, 9 de abril de 2010). Disponível em: http://cidac.filo.uba.ar/ conferencia-magistral-de-alvaro-garcia-linera; consultado no dia 31 de maio de 2016. [N.T.: esta conferência foi publicada em versão sintetizada na revista Margem Esquerda , n. 15, 2010.] ⁴⁴ García Linera é um dos principais porta-vozes dessa formulação recentemente. Ver seu artigo “El Estado y la vía democrática al socialismo”. Já em 2010, García Linera assinalara que “o que estamos fazendo […] como horizonte de nossa ação política, é encontrar uma via democrá tica para a construção de um socialismo de raízes indígenas , que chamamos de socialismo comunitário” (Conferência magistral “La construcción del Estado”, grifos nossos). ⁴⁵ Ver conferência magistral de Álvaro García Linera “La construcción del Estado”. ⁴⁶ N.T.: Os ponchos rojos e os ponchos verdes são milícias que defendem seu território e buscam a autonomia e a dignidade indígena, originárias respectivamente de Ayachachi (Província de Omasuyos, Departamento de La Paz) e Aramasí (Província de Tapacrí, Departamento de Cochabamba). ⁴⁷ Conferência magistral de Álvaro García Linera, “La construcción del Estado” .

⁴⁸ Conferência magistral de Álvaro García Linera, “La construcción del Estado”, grifos nossos. Sob o governo de Salvador Allende, o comandante em chefe das Forças Armadas do Chile, general Carlos Prats, desarmou os militares golpistas no “tanquetazo” (processo que se analisa mais adiante), fazendo-os descer dos tanques em que estavam posicionados à frente da casa de governo em julho de 1973. Dois meses depois, em setembro de 1973, as “institucionais” Forças Armadas chilenas realizaram o golpe militar que estabeleceu a ditadura do general Augusto Pinochet, que tinha substituído Prats no comando do Exército. Muitas pessoas naquele momento, da mesma forma como parece fazer García Linera atualmente, acreditaram que o braço armado do Estado poderia manter-se disciplinado frente à institucionalidade vigente. Existe um ponto (de bifurcação?), quando não há mais saídas, no qual o acirramento dos enfrentamentos sociais obriga a intervenção militar, salvo quando o processo não seja tão radical e não implique maiores agudizações. ⁴⁹ Ver seu artigo “El Estado y la vía democrática al socialismo”, p. 158. ⁵⁰ Em um artigo jornalístico intitulado “La Revolución Rusa, según García Linera”, P ágina 12 , Argentina, 22 de junho de 2017, Emir Sader também sustenta que o “ponto de bifurcação” na Bolívia foi a derrota do “golpe de Estado cívico-prefeitural de setembro de 2008”. Disponível em: https:// www.pagina12.com.ar/45597-larevolucion-rusa-segun-garcia-linera. ⁵¹ García Linera, “Las reformas pactadas” (entrevista por José Natanson), Nueva Sociedad , n. 209, Buenos Aires, mayo-junio de 2007, p. 165. ⁵² Esse artigo foi concluído no dia 16 de outubro de 2017, data na qual se anunciou que o Partido Socialista Unificado da Venezuela (PSUV) ganhou 17 dos 23 governos que estavam em disputa nas eleições de 15 de outubro desde mesmo ano. ⁵³ Isso implica questionar ideias que tentam explicar o autoritarismo presente na região como resultado de deficiências de cultura política. ⁵⁴ Desenvolvi este tema no livro Explotación redoblada y actualidad de la revolución . Refundación societal, rearticulación popular y nuevo autoritarismo (México: UAM/Itaca, 2009). ⁵⁵ O tema apresenta matizes que, aqui, pelo nível geral da análise, não podemos desenvolver. Apenas a título de exemplo, cabe registrar que não é igual ao caudilhismo de Stroessner, no Paraguai, o de Chávez, na Venezuela, por orientação política, pelas forças sociais que os apoiam, pelas políticas sociais colocadas em prática, pela relevância na região etc. ⁵⁶ Na Argentina e no Brasil, é possível perceber, na história recente, conflitos relevantes entre frações e setores do capital local pela repartição do lucro ou por projetos econômicos conflitantes, entre setores industriais e setores ligados a produção primária para exportação. ⁵⁷ As políticas do Estado chinês, que aumentou de maneira notável seus intercâmbios comerciais com a região no período, são uma exceção, mesmo que os governos populares e progressistas tenham se constituído em um de

seus principais sócios comerciais e de investimentos. O pragmatismo da China em matéria comercial a leva a manter boas relações com os governos de todas as cores ideológicas na zona. ⁵⁸ Fórmula contrainsurgente que o Estado colombiano tem aplicado de maneira efetiva nas últimas décadas, assassinando a dirigentes sindicais da cidade e do campo, líderes sociais e dirigentes guerrilheiros que tenham passado para a vida institucional. ⁵⁹ A reeleição de Juan Orlando Hernández como presidente de Honduras, após escandalosa fraude nas eleições de 2017, é parte das novas soluções a que se considera prudente recorrer. Nesse caso, a “voz da comunidade internacional”, a OEA e os “comandos político-intelectuais” não se fizeram escutar. ⁶⁰ Aqui se destaca a elevada quantidade de jornalistas mexicanos assassinados nos últimos anos. Também o assassinato no Brasil da vereadora do PSOL, Marielle Franco, tenaz opositora da presença de militares no Rio de Janeiro e dos crimes das forças de segurança nas favelas. ⁶¹ No fim de 2017, aprovou-se uma nova Lei de Segurança Nacional no México que outorga maior presença e operatividade das Forças Armadas em intervenções do Executivo em estados ou municípios. A nova lei, aprovada com a oposição de organismos locais e internacionais de direitos humanos, deverá ser sancionada pela Suprema Corte de Justiça, por decisão do então presidente Peña Nieto. ⁶² Por solicitação do então presidente Mauricio Macri, em março de 2018, o Ministério da Defesa criara uma unidade especial das Forças Armadas para apoiar as forças de segurança na luta contra o narcotráfico e a preservação dos recursos naturais, assunto que se refere à presença de organizações mapuches nas zonas florestais ao sul do país, entre elas o grupo Resistência Ancestral Mapuche (RAM), que reivindica seu direito às terras que ocupam, e onde já houve enfrentamentos com mapuches mortos em 2017. O relevante dessa decisão é que permite operações das Forças Armadas no interior do território, o que não ocorria desde as ditaduras militares nos anos 1980. Na mesma linha, em outubro de 2017, o governo brasileiro aprovou a criação de um novo Ministério Extraordinário de Segurança Pública, que agrupa todas as forças da ordem, sob o comando do Ministro da Defesa. Tribunais e promotores militares investigarão a morte de civis durante as operações armadas. ⁶³ Aviões, helicópteros, navios de patrulha, caminhões blindados, adquiridos nos Estados Unidos e na França, formam parte da equipe da nova unidade militar na Argentina. ⁶⁴ Em 2017, foi noticiado que os aparatos de inteligência do Estado mexicano espionavam jornalistas críticos, infiltrando com uma mensagem de SMS em seus celulares o sistema Pegasus, adquirido de Israel, que permite que câmera e microfone fiquem sob controle da segurança estatal. No Chile, como parte da Operação Huracán (Furacão), iniciada em setembro de 2017, policias militares (caribineros) detiveram oito dirigentes mapuches acusados de queimar igrejas e caminhões em La Araucanía. Mais tarde se descobriu

que a Unidade de Inteligência Operativa Especializada da Polícia Militar não só espionou jornalistas de diversos meios que seguiam o caso, que se prolongou por meses, mas que também plantou mensagens falsas nos celulares dos detidos para oferecê-las como prova de culpa e de pertencerem a uma organização subversiva e criminal. Em março de 2018, o diretor geral da Polícia Militar e o diretor de Inteligência da instituição, cientes da montagem, tiveram que renunciar. ⁶⁵ Busca-se novamente apagar o pensamento crítico, que teve tendência a renascer nas últimas décadas, após presença diminuta nos governos de contrainsurgência nascidos de golpes militares. ⁶⁶ O que não impede a crescente presença de militares e forças de segurança. Por exemplo, em 16 de fevereiro de 2018, Michel Temer declarou a “intervenção federal” no Rio de Janeiro, entregando a um general o comando sobre militares e policiais para controlar a “delinquência”. ⁶⁷ Hoje um desses comandos está integrado com personagens como o escritor Mario Vargas Llosa, o ex-chanceler mexicano Luis Videgaray, o empresário e ensaísta mexicano Enrique Krauze, Juan Luis Cebrián, presidente da empresa espanhola que edita o jornal El País , e incorpora também o secretário-geral da OEA, Luis Almagro, na atual cruzada internacional contra a Venezuela. Parte II: Progressismo e revolução: organização popular, novas constituições e luta anticapitalista Venezuela: breve história e análise da Revolução Bolivariana Roberto Santana Santos ⁶⁸ O comandante Hugo Chávez certa vez disse: “a Revolução Bolivariana foi a última revolução do século XX e a primeira do século XXI”. ⁶⁹ Esse posicionamento cronológico guarda bem o sentido de revolução: uma transformação total e radical das estruturas socioeconômicas de uma sociedade. Se a virada do milênio não confirmou diversas das previsões que se faziam (principalmente o fetiche com o ano 2000), outras surpresas ocorreram, entre elas, a promoção da até então discreta – para não dizermos desconhecida – Venezuela a um dos países mais importantes e discutidos do mundo. Mesmo na história recente latino-americana, a Venezuela não ocupava uma posição de grande destaque. Não figurava entre as grandes economias da região, como Brasil, Argentina e México, nem chamava atenção por experiências políticas, como Cuba ou Chile. Na história da América Latina, a Venezuela era reconhecida como berço do libertador Simón Bolívar, grande líder da libertação sul-americana contra o julgo espanhol no século XIX. Mas, durante a maior parte do século XX, é impossível não percebermos que o país passou ao largo dos grandes acontecimentos e dramas da região. Seria dessa forma até 1989, quando a rebelião popular conhecida como “Caracazo” marcaria profundamente a história venezuelana e latinoamericana, mesmo que essa profundidade histórica ficasse evidente somente

anos à frente. Este fato seria o estopim para uma série de eventos e movimentações na sociedade venezuelana que levariam à ascensão de Hugo Chávez e a constituição das forças sociais que compõem o chavismo. A Revolução Bolivariana é, até o momento, o acontecimento mais importante da América Latina no século XXI. Ela abriu uma conjuntura de reconfiguração das forças políticas e sociais na região e articulou, direta e indiretamente, todo um movimento de contestação popular à dominação burguesa e imperialista na região. Resgata e atualiza o projeto de integração latino-americana idealizado por Simón Bolívar no século XIX e radicalizado pela Revolução Cubana no século XX. Em nível mundial, retomou o socialismo e a luta de classes, conceitos banidos desde o fim da União Soviética (1991) e da hegemonia neoliberal, colocando-se como vanguarda da luta revolucionária no mundo, propondo retirar a esquerda da defensiva que lhe foi imposta pelo capital globalizado. Nada, nem ninguém consegue ficar indiferente ao chavismo. Este pequeno artigo tem a intenção de ser um resumo da história da Revolução Bolivariana para aqueles que começam a procurar informações sobre este processo. É também uma avaliação dos caminhos da Revolução, suas políticas e formas de organização popular. Analisar a Revolução Bolivariana é estudar as diferentes formas de organização da classe trabalhadora na luta pelo poder e na construção de uma nova sociedade, livre da exploração do trabalho e domínio imperialista, com todas as suas contradições, incertezas, avanços e recuos. O texto também serve para estudo da militância de esquerda saber mais sobre o principal processo revolucionário em curso no mundo atual. Antecedentes: petróleo e o pacto de Puntofijo A história da Venezuela no século XX ⁷⁰ possui um protagonista muito claro: o petróleo. Já constatada sua presença no território do país desde o final do século XIX, sua extração e o posterior desenvolvimento da indústria petroleira transformaram um país até então predominantemente agrário e pobre em um dos maiores produtores do “ouro negro”. Toda sua estrutura socioeconômica foi redesenhada, o que fez da Venezuela um país importador de produtos industrializados de todo tipo. Desenvolveu-se uma burguesia rentista, que vivia apenas dos percentuais repassados pelas multinacionais que extraiam o produto e do aluguel de propriedades; assim como uma incipiente classe média que a servia. Formou-se também um proletariado urbano, incluindo os trabalhadores do setor petroleiro; pequenos e médios proprietários rurais, além de pescadores da costa caribenha. O capitalismo venezuelano se baseou no tripé renda do petróleo/importação/ latifúndio improdutivo. Suas contradições sociais se davam em embates intraclasse, entre um setor servil aos interesses do capital estrangeiro (principalmente o norte-americano e as petroleiras) e outro que almejava uma espécie de nacional-desenvolvimentismo, principalmente na janela criada pela Segunda Guerra Mundial (1939-1945). Também havia embates entre classes, já que o proletariado avançou na sua organização política criando sindicatos, partidos e outras formas de luta, com destaque para o Partido Comunista da Venezuela (PCV), fundado em 1931. As agremiações

dos trabalhadores foram postas na ilegalidade em diversos momentos e, mesmo quando eram formalmente aceitas no cenário político do país, sempre havia dificuldades impostas a seu pleno funcionamento e sua participação. Após a Segunda Guerra Mundial, a Venezuela conheceu uma de suas mais ferozes ditaduras, capitaneada pelo general Pérez Jiménez. O golpe que levou Pérez Jiménez ao poder e seus dez anos de governo autoritário foram apoiados pelos Estados Unidos, no sentido de garantir sua hegemonia sobre a América Latina na Guerra Fria. ⁷¹ O general governou sob intensa repressão, cerceamento de direitos fundamentais, ausência de eleições diretas e prescrição de partidos políticos, ao mesmo tempo que realizou uma “modernização” física de Caracas, para ser a vitrine da nova “Venezuela petroleira”, e investiu em infraestrutura, como nas áreas de siderurgia e petroquímica. O endividamento crescente do governo, no entanto, foi corroendo diversos setores, levando a manifestações de descontentamento das massas e ao abandono do governo por frações da burguesia venezuelana. Em 21 de janeiro de 1958, ocorreu uma greve geral, articulada por todas as forças oposicionistas, com destaque para o PCV, que resultou em grandes enfrentamentos contra as forças de repressão do governo. Dois dias depois, Pérez Jiménez, ao perder o apoio dos militares, fugiu para a República Dominicana, encerrando dez anos de ditadura. Paralelamente, três partidos políticos mantinham conversas desde o ano anterior para reorganizar o sistema político no pós-ditadura, excluindo, contudo, os comunistas. Essas três agremiações eram: a AD (Ação Democrática, em espanhol), que pretendia ser uma versão venezuelana dos partidos sociais-democratas europeus do pós-guerra, com participação no movimento sindical e estudantil, de corte liberal e anticomunista; o COPEI (Comitê de Organização Política Eleitoral Independente), de orientação social-cristã, com ramificações em diversos setores organizados da sociedade; e a URD (União Republicana Democrática), de caráter liberal. As conversações entre essas forças resultaram no Pacto de Puntofijo. ⁷² A ideia central do acerto era a implementação de uma república liberal restrita, onde as diferentes siglas representantes das classes proprietárias dividiriam o governo e os cargos na esfera pública. A repartição dos espaços no aparato público deveria ser realizada entre os três partidos que obtivessem melhor resultado eleitoral. Assim, os interesses das diversas frações da classe dominante eram acomodados, evitando-se disputas intestinas e, ao mesmo tempo, utilizava-se o poder estatal para reprimir e cooptar os diversos setores populares não inseridos no Pacto. O Pacto de Puntofijo, de saída, tinha a pretensão de reduzir as diferenças ideológicas e programáticas entre seus signatários e lançar as bases para uma convergência de interesses que tinha como ponto de apoio o domínio do aparelho de Estado. Na prática, ele se converteria, mais tarde, num acerto entre AD e COPEI e um terceiro partido, de acordo com sua força eleitoral de momento. O Pacto representou um jeito de acomodar na partilha de poder as diversas frações da classe dominante, incluindo aí o capital

financeiro, as empresas de petróleo, a cúpula do movimento sindical, a Igreja e as Forças Armadas. Além disso, esforçava-se por definir uma democracia liberal simpática aos Estados Unidos. Este grande acordo representou a tradução político-institucional de uma economia baseada na exportação de petróleo. Além de abrigar os interesses das elites, visava a amortecer os conflitos sociais mediante lenta, porém constante, melhoria do padrão de vida da maioria da população. Clientelismo, fisiologismo e corrupção eram também as características de um tipo de dominação que, no reverso da medalha, reprimia duramente qualquer contestação mais consistente. Uma democracia dependente de fluxos de petrodólares. ⁷³ Com o tempo, a UDR se retiraria do Pacto e perderia muito de sua força, levando o período ser mais comumente relacionado com o revezamento na presidência do país entre as outras duas siglas, a AD e o COPEI, que desenvolveriam amplas redes de clientelismo, tornando-se as forças dominantes na política venezuelana na segunda metade do século XX. A AD hegemonizou a Central de Trabalhadores da Venezuela (CVT), maior central sindical do país, e passou a dividir os principais cargos de Estado com a COPEI, como o comando da Câmara de Deputados e do Senado, comissões legislativas, indicações para Suprema Corte e Procuradoria-geral da República. Com a Constituição de 1961, o voto em lista (no qual a população vota nos partidos e não em candidatos) e os acordos entre AD e COPEI se repartiram todas as áreas do poder público entre as duas agremiações, que representavam a mesma classe dominante venezuelana e os interesses do capital estrangeiro, com amplas redes de clientelismo e corrupção. Setores populares que almejassem ter suas reivindicações atendidas pelo governo deveriam se aliar a um dos lados, garantindo votos e a perpetuação do Pacto. Foi dessa maneira que a Venezuela gozou de uma reputação democrática na América Latina dos anos 1960 e 1970, enquanto a região testemunhava golpes de Estado e a instalação de ditaduras patrocinadas por Washington. Na realidade, a classe dominante venezuelana e o imperialismo norteamericano apenas desenvolveram uma forma mais complexa de dominação no país, quando comparada a seus vizinhos. A repressão existiu, de maneira violenta, contra todos aqueles que foram excluídos do Pacto, notoriamente a esquerda revolucionária, incluindo grupos guerrilheiros e outras formas de organização popular, especialmente nas favelas das grandes cidades (ambos, no futuro, seriam importantes para a constituição das forças populares do chavismo).

A hegemonia do Puntofijo foi possível graças à bonança petroleira. A criação da OPEP (Organização dos Países Exportadores de Petróleo) em 1960 – da qual a Venezuela é membro fundador – e a alta dos preços do produto no mercado internacional, especialmente na década de 1970, ⁷⁴ permitiram que o clientelismo da AD e da COPEI melhorassem, gradualmente, as condições de vida de boa parte da população, sem, contudo, reduzir a desigualdade, já que a burguesia do país e uma parte da classe média indicada para cargos públicos possuíam condições de vida completamente díspares à realidade nacional. “Havia a sensação de que ninguém precisava pagar impostos para fazer o país funcionar. O fluxo de petrodólares foi até mesmo maior do que a capacidade de a economia absorver capital.” ⁷⁵ Parte da população lembra desse período como “os bons tempos”. Dentro desse período, foi criada a PDVSA (Petróleo de Venezuela S. A.), a poderosa estatal petroleira do país. O surgimento da empresa e a nacionalização do petróleo aumentou a participação estatal nos dividendos, mas não diminuiu o controle do capital estrangeiro. Houve, na verdade, uma reacomodação dos interesses das burguesias interna e externa no controle dos recursos de hidrocarbonetos que permitisse seu enriquecimento e a alimentação das redes clientelistas dos partidos da ordem. A PDVSA teve ampla autonomia para operar, tornando-se um Estado dentro do Estado. Pesa também na “tranquilidade” política do Pacto de Puntofijo, o funcionamento de comissões tripartidas, entre Estado, representantes empresariais e dos trabalhadores. Do lado dos patrões, a principal organização foi a Fedecámaras (Federação de Câmaras e Associações de Comércio e Produção da Venezuela), e pelos trabalhadores, a já citada CTV. Ambas controladas por AD e COPEI, decidiam sobre políticas sociais e trabalhistas. Tudo começou a desabar a partir da Crise da Dívida e da queda dos preços do petróleo, no início da década de 1980. A diminuição do fluxo de dólares para o país e a alta dos juros da dívida norte-americana drenaram recursos, no momento em que a economia mundial era reestruturada pela hegemonia neoliberal, que teria como contrapartida a destruição das economias periféricas. A alta dos juros estadunidenses elevava também os juros das dívidas contraídas pelos países periféricos, o que as tornavam impagáveis. O 28 de setembro de 1983, a sexta-feira negra – expressão, hoje em dia, politicamente incorretíssima –, ficou marcado como o fim de um sonho. A situação internacional era grave. O México e o Brasil tinham literalmente quebrado, entrando na longa crise da dívida externa que atingiu vários países periféricos. O presidente da República, o copeiano Luís Herrera Campíns (1979-1984), fora obrigado a desvalorizar abruptamente a moeda nacional, o bolívar, como culminância de um processo que incluía, nos últimos anos, a queda substancial dos preços do petróleo, a disparada da dívida pública, que fora multiplicada por dez entre 1974 e 1978, e o aumento dos juros para empréstimos internacionais. Rapidamente, a cotação do dólar saltou de 4,70 para 7 bolívares. Estima-se que US$ 8 bilhões tenham saído da Venezuela ao longo daquele ano. O desemprego avançou aos saltos, dando início a uma crise material e de valores que acabou se mostrando irreversível. Era o epílogo dos bons tempos . ⁷⁶

A estrutura que mantinha o Pacto de Punto Fijo se deteriorava de forma irreversível. Houve tentativas ainda de oxigenar o sistema político, como o fim do voto em lista e as eleições diretas para governadores e prefeitos (até então eram indicados), abrindo espaço para o surgimento de outros partidos políticos. Em 1988, Carlos Andrés Pérez, da AD, foi eleito presidente pela segunda vez, após ter sido o governante do país na década anterior. Sua eleição trazia a ideia de retomada dos “bons tempos”, ao mesmo tempo que significava o compromisso de ouvir as críticas realizadas pela população e pelos setores políticos alijados do Puntofijo. Mas não seria assim. Caracazo (1989) e o 4F (1992): o surgimento de Chávez em um momento de ruptura A economia e a sociedade venezuelana entraram em profunda crise com a queda dos preços do petróleo, a Crise da Dívida e as fissuras no Pacto de Puntofijo. Desemprego em massa, inflação alta e aumento do custo de vida castigavam a população, enquanto as forças dominantes da política começavam a apresentar desavenças. Carlos Andrés Pérez, eleito presidente pela segunda vez, surpreende o país no início de 1989 ao anunciar que havia assinado um acordo com o FMI (Fundo Monetário Internacional). O objetivo de tudo era a liberação de um empréstimo de US$ 4,5 bilhões. A contrapartida, concretizada no dia 25, um sábado, era salgada: o pacote incluía desvalorização da moeda nacional, o bolívar, redução do gasto público e do crédito, liberação de preços, congelamento de salários e aumento dos preços de gêneros de primeira necessidade. A gasolina sofreria um reajuste imediato de 100%. Isso resultaria, segundo anunciado, numa majoração de 30% nos bilhetes de transporte coletivo. Na prática, esses reajustes chegaram também a 100%. Nada disso havido sido ventilado durante a campanha. ⁷⁷ Como todos os ajustes impostos pelo FMI aos países periféricos, nenhuma das medidas apresentadas visava melhorar a qualidade de vida da população, mas sim garantir os lucros do capital financeiro, dando-lhe garantias de que a riqueza do país seria direcionada para a banca internacional e não para as necessidades do povo. Longe de visar a melhora dos indicadores econômicos, algo que o neoliberalismo nunca foi capaz de fazer, as medidas provocariam uma piora na realidade venezuelana. No dia 27 de fevereiro de 1989, veio a resposta popular. Protestos começaram em terminais de ônibus na capital Caracas, devido ao aumento das passagens. As manifestações foram crescendo e se multiplicando, de forma espontânea, pela capital e outras cidades do país, logo recebendo a participação de estudantes e outros setores. Surgiram barricadas nas ruas, saques que fecharam o comércio e queima de ônibus. Uma multidão tomou as ruas de Caracas numa explosão social de raiva e descontentamento, sem pauta ou organização, escancarando a crise do país e a falta de representatividade na política. Apesar de ocorrer em várias cidades da Venezuela, e não somente em sua capital, o fato recebeu o nome de “Caracazo”. O presidente Carlos Andrés Pérez reuniu os representantes dos sindicatos patronais e decretou a suspensão dos direitos constitucionais. Foi a senha

para um massacre. As Forças Armadas e a polícia passaram a reprimir as manifestações com munição letal e fazer incursões às favelas e aos bairros pobres das cidades, assassinando pessoas indiscriminadamente. Até hoje não se sabe ao certo o número de vítimas, que oscila entre centenas, nas estimativas mais conservadoras, a mais de cinco mil assassinatos. As manifestações, no entanto, permaneceriam a partir de então no cotidiano do país, espontâneas ou organizadas, como sintomas de uma crise geral na sociedade venezuelana. Toda essa convulsão e violência era vista com muita atenção por um jovem tenente-coronel do exército venezuelano. Hugo Chávez foi fundador do MBR-200 (Movimento Bolivariano Revolucionário 200, referência ao bicentenário de nascimento de Simón Bolívar), que arregimentava jovens militares, na maioria de média patente, para discutir a grave crise do país. Os participantes do movimento discordaram fortemente das ordens presidenciais para reprimir a população no Caracazo e outras manifestações, as quais viam como legítimas contra um governo que consideravam corrupto e ineficaz. É importante ressaltarmos um diferencial dos militares venezuelanos em relação a seus correspondentes em outros países latino-americanos. A história recente da região testemunhou a utilização das Forças Armadas como forma de imposição de ditaduras antipopulares e alinhadas de maneira subalterna à hegemonia norte-americana. Boa parte dos chefes militares que dirigiram os regimes ditatoriais na região ao longo do século XX foram treinados diretamente pelas Forças Armadas estadunidenses na Escola das Américas e outras instituições. Na Venezuela, entretanto, não só os militares tinham uma formação continuada nas universidades do próprio país, fazendo a jovem oficialidade conviver com outros ambientes diferentes da caserna (Chávez teve em sua formação experiências desse tipo), como a própria esquerda sempre realizou trabalho de base e recrutamento de militantes no setor militar. O PCV foi um dos poucos partidos comunistas que seguiam a linha de Moscou de investir na luta guerrilheira, mesmo que a tenha abandonado posteriormente. Não havia, portanto, uma hegemonia forte do pensamento autoritário e entreguista entre os militares venezuelanos, ao contrário de seus pares em outros países da região. ⁷⁸ O MBR-200 se articulou para uma insurgência contra o governo de Carlos Andrés Pérez, em outra data que passaria para a história contemporânea da Venezuela, o 4 de fevereiro de 1992, ou simplesmente, 4F. A sublevação consistiria em deter o presidente assim que ele retornasse de uma viagem ao exterior e tomar pontos estratégicos da capital e outras cidades, como o Comando Geral de Aviação, o Palácio de Governo e bases militares. Não se sabe como, o plano foi descoberto já no início de sua execução e levou a combates entre insurretos e forças leais ao governo em diversas localidades. Foi, com pequenas exceções, uma ação estritamente militar, sem apoio de populares ou organizações políticas, mas não desprezível, com a participação de cerca de seis mil militares, na sua maioria de patentes intermediárias e oriundos das classes populares. Depois de horas de combate, a insurreição não conseguiu tomar o poder. Hugo Chávez, como líder do movimento, negociou a rendição, pedindo

apenas duas coisas: que fosse tratado com dignidade e que lhe fosse permitido fazer um comunicado na TV para que seus companheiros em outras cidades depusessem as armas. Eis suas palavras: Antes de mais nada, quero dar bom dia a todo o povo da Venezuela. Esta mensagem bolivariana é dirigida aos valentes soldados que se encontram no regimento de paraquedistas de Arágua e na Brigada Blindada de Valência. Companheiros: lamentavelmente, por enquanto , os objetivos que nos colocamos não foram atingidos na capital. Quer dizer, nós, aqui em Caracas, não conseguimos controlar o poder. Vocês agiram muito bem, porém já é hora de refletir. Virão novas situações e o país tem de tomar um rumo definitivo a um destino melhor. Assim que ouçam minha palavra, ouçam o comandante Chávez, que lhes lança esta oportunidade para que, por favor, reflitam e deponham as armas, porque, em verdade, os objetivos que traçamos em nível nacional são impossíveis de ser alcançados. Companheiros, ouçam esta mensagem solidária. Agradeço sua lealdade, agradeço sua valentia, seu desprendimento. E eu, diante do país e de vocês, assumo a responsabilidade deste movimento militar bolivariano. Muito obrigado. ⁷⁹ A ênfase no “por enquanto” ( por ahora , em espanhol) entraria para a história, quase como uma profecia. As palavras de Chávez deixavam claro que seu projeto não estava derrotado, apenas sofreu um revés momentâneo. O comandante e seus companheiros foram presos, mas ganharam o país. O 4F não foi interpretado pela população venezuelana como uma tentativa de golpe de Estado, mas sim como uma insurreição contra um governo que castigava o povo com miséria e precariedade, enquanto os ricos viviam no luxo. A ação liderada por Chávez traduziu uma insatisfação que vinha desde o Caracazo e despertou na população, principalmente nos trabalhadores pobres, a sensação de que alguém os ouvia e tomou uma atitude contra a dramática realidade em que viviam as maiorias. No futuro, o chavismo transformaria o 4F no “Dia da Dignidade Nacional”, data comemorada com marchas e concentrações de cunho político. As ações do MBR-200 e suas propostas iam ao encontro dos desejos da população. Entre elas, a deposição de todas as autoridades dos três poderes, a eleição de novos representantes dos sindicatos, o fim das privatizações, o congelamento de preços e crítica à dívida externa. A reorganização da vida política do país se daria pela mais importante das propostas de Chávez: a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte eleita pela população para formular uma nova carta magna para o país. As propostas do MBR-200 eram de cunho popular e nacionalista, afastando a ideia de que se tratava de uma mera quartelada de viés autoritário, tão comum na história latinoamericano. Mesmo preso, Chávez se tornou a figura mais popular do país e passou a receber visitas de diversos setores da sociedade. Seu irmão, Adán Chávez, militante marxista, foi um dos que investiu no diálogo entre os militares do MBR-200 e a militância de esquerda. Com a crise se aprofundando, novas insurreições militares, constantes protestos e denúncias de corrupção, Carlos Andrés Pérez sofreu um impedimento e foi afastado da presidência. A ideia de uma Venezuela democrática e uma vida política tranquila graças ao Pacto de Puntofijo se

desmanchou de forma violenta. O país necessitava de uma reviravolta total, capaz de refundar o sistema político e trazer as massas para o centro das decisões, ou seja, uma democracia de verdade. Esse era o plano de Chávez. A eleição de 1998 Ainda na prisão, Hugo Chávez passou a receber a visita de representantes de diversos setores sociais, forjando uma aliança que seria sua base política inicial para disputar as eleições presidenciais. Solto por um indulto, Chávez, àquela altura já a figura mais popular do país, passou a se preparar para concorrer à presidência pelo MVR (Movimento Quinta República, sendo o V uma alusão ao cinco em números romanos), sigla que substituiu o MBR-200, ⁸⁰ recebendo o apoio de outras legendas e organizações, que iam de militares nacionalistas, movimentos e partidos de esquerda, políticos liberais com preocupações sociais, entre outros. A situação econômica e o Pacto de Puntofijo continuavam a se deteriorar, por meio da aplicação do pacote neoliberal do FMI, rechaçado fortemente pela maioria da população. Em um momento de desencanto total da população com o sistema político e de profunda crise econômica, Chávez e sua campanha foram capazes de condensar todo o anseio popular em uma única proposta: Assembleia Nacional Constituinte. Carro-chefe da campanha chavista, a proposta era convocar os venezuelanos a reescreverem a Constituição do país, passando a limpo o cenário político. O então candidato se comprometeu, caso fosse eleito, a convocar imediatamente um pleito para eleição de deputados constituintes que elaborariam uma nova carta magna, dando ênfase à participação popular nos mecanismos de governo e à soberania nacional, principalmente das riquezas do petróleo. Hugo Chávez foi eleito presidente da Venezuela no dia 6 de dezembro de 1998, com 56,20% dos votos (mais 3,6 milhões de sufrágios), bem à frente de Henrique Salas Römer, candidato da dupla AD/COPEI (apesar de não pertencer a nenhuma das duas siglas, que procuraram desesperadamente um outsider ), com 39,97% dos votos. Um resultado que entraria para a história venezuelana como um divisor de águas e definitivo termo no Puntofijo. Abriu-se uma nova quadra histórica na vida do país, a Revolução Bolivariana. Mais do que isso, a eleição de Chávez contrariava a até então hegemonia neoliberal na América Latina, no auge naquele momento. Chávez se elegeu com uma postura claramente antineoliberal, nacionalista, com apoio de forças de esquerda, que pese ainda não se falasse abertamente em socialismo.

Os monopólios globais da comunicação, especialmente na América Latina, apresentaram a eleição de Chávez como uma aberração, perguntando-se como a população votou maciçamente em alguém que, apenas cinco anos antes, tentou dar um “golpe de Estado”. Boa parte da esquerda mundial também não compreendeu o fenômeno Chávez de primeira, pois espera sempre por uma revolução pura e redentora, que só existe no imaginário e não nas sinuosas contradições da realidade. Era difícil imaginar que aquele triunfo ressoaria para a história regional como o início de um processo de avanço das lutas populares e vitórias eleitorais de forças progressistas, recolocando a revolução, o socialismo, a luta de classes e tantos outros termos e conceitos então abandonados de volta à ordem do dia. A Constituição de 1999 Chávez foi fiel às propostas apresentadas durante a campanha eleitoral e, no mesmo dia de sua posse, em 2 de fevereiro de 1999, emitiu decreto convocando o processo constituinte. Ao fazer o juramento de posse do cargo de presidente, com as mãos sobre a Constituição, disse jurar sobre essa “moribunda Constituição” que promoveria uma nova carta magna. Este processo iniciaria, contudo, com uma consulta ao povo, por meio de referendo, perguntando se a população estaria de acordo com a convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte. Dois meses depois, em abril, foi realizado o Referendo Constituinte, no qual 87% da população autorizaram a convocação do processo. Em julho, foram eleitos os deputados constituintes pela população, e as forças do Polo Patriótico ⁸¹ conseguiram uma vitória esmagadora, com 119 das 131 cadeiras. A Constituição de 1999 ⁸² marca a refundação institucional do país, que serviria de modelo para as forças populares na América Latina e além. Ela defende uma democracia participativa e protagonista que vai muito além da desbotada “democracia” representativa liberal. Entre suas invenções, estão a institucionalização dos referendos, com destaque para o revogatório (para o qual, no meio de um mandato, a população pode propor uma consulta para retirar do cargo um governante eleito), ⁸³ e os referendos para reforma da própria Constituição. A criação de cinco poderes, e não mais três (Executivo, Legislativo e Judiciário), constituindo o Poder Eleitoral – resgatando proposta de Símon Bolíviar – para organizar toda a esfera eleitoral do país; e o Poder Cidadão, formado pela Procuradoria-geral da República, a Defensoria Pública e a Controladoria-geral da União. Houve uma ampliação no número de juízes da Suprema Corte e um aumento das prerrogativas do Executivo com as leis habilitantes (abordadas mais abaixo) e de seu tempo de mandato, estendido para seis anos. A nova Constituição reconhecia pela primeira vez na história venezuelana os direitos dos povos indígenas e a proteção ao meio ambiente. Uma de suas maiores inovações era o reconhecimento dos conselhos populares e assembleias de vizinhos como entidades políticas de organização do povo. Tratam-se de conselhos de bairros ou regiões em que os moradores se reúnem para discutir os problemas da localidade e possíveis soluções. Em determinadas pautas, suas decisões têm caráter deliberativo, como na alocação de recursos para obras de infraestrutura, fornecimento de água e promoção de atividades culturais. Essa iniciativa revolucionária passou a

promover a democracia de base no país, politizou boa parte da população, com destaque para os mais pobres e moradores de favelas e bairros populares, que se constituíram na base social de sustentação do chavismo. A Constituição de 1999 também mudou o nome do país para República Bolivariana da Venezuela, em proposta do próprio Chávez, e acabou com as duas câmaras legislativas (Câmara dos Deputados e Senado), criando apenas uma, a Assembleia Nacional. Ao final de seis meses de trabalho, o povo foi novamente convocado em referendo, agora para decidir se aprovava ou não a Carta Magna. Em dezembro de 1999, o novo texto constitucional foi aprovado por 71% dos votos. Chávez não parou por aí. Com a nova Constituição em vigor, todos os cargos eletivos deveriam passar por novas eleições, inclusive a própria presidência. As “megaeleições” foram convocadas para julho de 2000, quando ocorreram, simultaneamente, pleitos para presidente e Assembleia Nacional, governadores e assembleias estaduais, prefeitos e vereadores. Chávez foi reeleito com 59% dos votos (mais do que o pleito de 1998) e seus partidários conquistaram a maioria da Assembleia Nacional e dos governos estaduais. Em um ano, a população foi convocada quatro vezes às urnas para passar o país a limpo, formulando uma nova Constituição e renovando todos os Poderes da República. Foi uma tarefa hercúlea, mas muito bem-sucedida. Chávez entregou o poder de decisão ao povo venezuelano, enterrando a falsa democracia do Puntofijo e politizando a população. Ao mesmo tempo, construiu uma nova arquitetura de poder que lhe permitisse, junto ao povo, promover as modificações estruturais necessárias para o desenvolvimento socioeconômico do país. De fato, uma revolução estava em curso e boa parte da população fazia e desejava fazer parte dela. A constituinte inaugurou um mecanismo importante de funcionamento da Revolução e que angariava força ao chavismo: a consulta popular nos temas importantes por meio de referendos. Se no campo político Chávez foi rápido, aproveitando e ampliando seu capital político, na economia iniciou de modo mais moderado. O governo foi hábil em manter a equipe econômica anterior enquanto concentrava forças no processo constituinte. Garantiu os investimentos estrangeiros e não fez nenhuma grande ação que tirasse foco da batalha política. Quando os trabalhos para a nova carta magna já estavam adiantados, foi o momento em que Chávez começou a colocar em prática seu plano de recuperação da soberania econômica do país. Seu primeiro lance foi ousado. Conseguiu articular a II Cúpula de Chefes de Estado e Governo da OPEP em território venezuelano. Tal Cúpula não ocorria desde 1975 e tinha o objetivo de recompor os preços do petróleo (naquele momento sendo vendido por menos de US$ 10 o barril) e reavivar a própria OPEP como uma entidade influente na geopolítica internacional. A ação foi bem-sucedida e importante para recuperar os ingressos nos cofres públicos. A Venezuela se beneficiaria da escalada do preço do petróleo nos anos 2000, principalmente em virtude do aumento da demanda chinesa. Mas os recursos obtidos pelo petróleo somente seriam usados para combater a gravíssima crise social e econômica graças às ações do governo Chávez.

Em 2001, após a aprovação da Constituinte e sua nova eleição, combinadas com a recuperação paulatina dos preços do petróleo, Chávez e sua equipe sentiram-se seguros para incidir de maneira mais direta na desigual sociedade venezuelana, aprovando novas leis que reestruturavam todos os setores da economia. As Leis Habilitantes eram um novo mecanismo da Constituição, em que a Assembleia Nacional permite ao presidente legislar sem a aprovação parlamentar. Com ela, Chávez promulgou 49 leis reestruturando portos, setor bancário e finanças, aviação civil, sistema ferroviário, segurança, gás, eletricidade, turismo, entre outros. As mais importantes e polêmicas foram a Lei de Terras e Desenvolvimento Agrário, Lei de Pesca e Aquicultura e a Lei de Hidrocarbonetos. A Lei de Terras promoveu um recadastramento das propriedades rurais no país, exigindo a comprovação da propriedade e produtividade de terras. A taxação das propriedades passou a ser realizado pelo seu tamanho. As que fossem consideradas ociosas seriam destinadas à reforma agrária, assim como uma série de benefícios seriam concedidos para o pequeno camponês e à agricultura familiar. A Lei de Pesca também beneficiava os pescadores artesanais, com incentivos à manutenção de suas atividades, e delimitava a pesca industrial para além das seis milhas da costa, evitando assim uma pesca predatória que ameaçava a reprodução dos peixes e demais animais marinhos, ações que colocavam o próprio setor em risco de colapso. A Lei de Hidrocarbonetos tinha endereço certo: acabar com a posição da PDVSA como um Estado dentro do Estado, seu controle por parte do capital internacional e sua espoliação por parte do patronato local. A Lei aumentava os royalties e impostos que a empresa deveria pagar ao governo e delimitava que os ingressos deveriam ser destinados a saúde, educação e estabilização macroeconômica do país e reinvestidos no desenvolvimento nacional. Chávez e seu governo demonstraram grande habilidade. Em um primeiro momento, concentraram forças em construir uma hegemonia política e eleitoral junto à população, forjando uma nova institucionalidade que possibilitasse a utilização de mecanismos constitucionais no sentido de reestruturar a economia nacional em prol das maiorias. Seus passos econômicos foram graduais, primeiro para recuperar os preços do petróleo, fonte de recursos sem a qual nada funciona na Venezuela, para depois avançar sobre os pontos centrais da economia. Chávez mostrava que não era nem um demagogo, nem um bufão, que estava à frente de um governo nacionalista, antineoliberal e de viés popular, ao mesmo tempo que demonstrava ser um líder muito inteligente, avançando com cautela, sempre angariando forças junto à população para realizar uma política de maioria. Obviamente, o avanço popular desencadearia o ódio da classe dominante, de uma fração privilegiada da classe média que vivia de cargos estatais e na PDVSA e do imperialismo norte-americano (naquele momento gerido por George W. Bush). Dois mil e dois seria um ano dramático que mudaria a Venezuela para sempre. O golpe fracassado de 2002 e o paro petroleiro ⁸⁴ Com o avanço das medidas populares do governo Chávez, as forças representantes do patronato e do capitalismo internacional passaram a

tramar a derrubada do presidente. As Leis Habilitantes afrontavam diretamente os lucros e as propriedades da burguesia venezuelana e do capital estrangeiro, além dos cargos de confiança em órgãos públicos e na PDVSA distribuídos a setores médios. Representantes do patronato, dos partidos políticos tradicionais e a embaixada dos Estados Unidos deram início a uma série de eventos que culminariam em um drama nacional. Já no final de 2001, após a promulgação das Leis Habilitantes, a direita venezuelana passou a convocar manifestações de rua, ou seja, paralisações em setores produtivos e do comércio, como forma de mostrar insatisfação com as ações de Chávez. Nos primeiros meses de 2002, as manifestações iam se tornando maiores e mais recorrentes, em cenas que se tornariam parte da realidade política latino-americana nas primeiras décadas do século XXI: verdadeiras revoltas dos privilegiados, enrolados na bandeira nacional e dos Estados Unidos, acusavam Chávez de comunista, terrorista, ateu e o que mais surgisse na imaginação fértil do conservadorismo. Aqueles que apoiavam o governo, especialmente os mais pobres, o faziam porque viviam de esmolas da política “populista” do chavismo. Os participantes das manifestações antigoverno se concentravam nos bairros ricos das grandes cidades, principalmente a capital Caracas. Eram na sua maioria brancos e ricos, a antítese da maioria do povo. O governo respondia também com grandes marchas, nas quais ficava evidente o trabalho político feito pelas assembleias de vizinhos e conselhos populares. Em pouco tempo, as organizações de base nos locais de residência da classe trabalhadora – agora reconhecidas na Constituição como entes políticos – passaram a politizar e organizar o povo, e estavam prestes a enfrentar sua primeira grande batalha de mobilização na Revolução Bolivariana. Chávez demarcou bem que as riquezas do petróleo deveriam ser repartidas com toda a população e não restringidas a uma casta de privilegiados. Foi convocada uma grande marcha opositora para o dia 11 de abril de 2002, apoiada por todos os meios de comunicação privados, que repetiam exaustivamente nos comerciais convocatórias para a manifestação. Para contrabalancear, o governo também convocou uma manifestação, que se daria nas imediações do Palácio de Miraflores, sede do Executivo. A Fedecámaras, juntamente com os meios de comunicação privados, a embaixada norte-americana e alguns oficiais contrários ao governo repetiam exaustivamente que “a batalha final se dará em Miraflores”, mesmo sabendo que milhares de apoiadores do governo estariam nos arredores do Palácio. Ao chegar a seu ápice, a manifestação da oposição foi desviada para Miraflores em uma atitude irresponsável, no intuito de jogar uma multidão contra a outra. Quando ambas estavam já muito próximas e ficava claro que os corpos de segurança não conseguiriam manter a separação entre as duas marchas, tiros passaram a ser ouvidos. Franco-atiradores do alto dos prédios passaram a assassinar pessoas a esmo, sempre com tiros na cabeça. Tratava-se de um plano orquestrado de matança para jogar a culpa no presidente Chávez. Dezenas de pessoas foram assassinadas pelos atiradores de elite e em outros confrontos. De maneira coordenada, os canais privados de televisão exibiam as cenas de confronto, colocando a culpa no governo

pela matança, enquanto as lideranças patronais e militares dissidentes davam declarações exigindo a renúncia do presidente e a formação de um governo de transição. Pela noite, os militares oposicionistas se sublevaram contra o governo e cercaram Miraflores, exigindo que Chávez renunciasse e fosse preso. Dentro do Palácio, o presidente e seus ministros avaliavam a dramática situação quando o canal VTV (canal público, na época único contraponto à mídia empresarial) foi tomado pelos golpistas e retirado do ar. Chegaram as ameaças de que, se Chávez não se entregasse, o Palácio seria bombardeado. Depois de horas de negociações – que incluiram conversas do presidente com Fidel Castro –, Chávez se entregou, negando-se, contudo, a assinar uma carta de renúncia. Deixava claro que ocorria um golpe de Estado e que se encontrava sequestrado pelas forças golpistas. Ao amanhecer do dia 12 de abril, o que se assistiu foi um show de horrores nos canais de televisão. Militares e jornalistas golpistas se vangloriavam em programas de TV de terem tramado o golpe e narravam para todo um país estarrecido, passo a passo, como se deu todo o plano para a ação. Figuras ligadas ao chavismo passaram a ser perseguidas numa caça às bruxas e espancadas por militantes dos partidos de direita. A embaixada de Cuba – onde figuras do governo chavista procuraram refúgio – teve seus serviços de água e luz cortados. Em cena grotesca, os políticos de direita (os mesmos derrotados eleitoralmente diversas vezes por Chávez nos últimos anos) se reuniram junto a líderes empresariais e, ao vivo na televisão, declararam o presidente da Fedecámaras, Pedro Carmona, como presidente do país num governo de transição, ao mesmo tempo que era anunciada a destituição de todos os deputados eleitos para a Assembleia Nacional, e os titulares dos Poderes Judiciário, Eleitoral e Cidadão, tudo sob vivas e aplausos da burguesia venezuelana presente na cerimônia. O governo golpista foi prontamente reconhecido pelos Estados Unidos e pela Espanha, mas não pelos países latino-americanos (inclusive o Brasil, então governado por Fernando Henrique Cardoso). O que as televisões privadas não mostravam era a ebulição social que começava a tomar forma nos bairros populares e favelas de Caracas. Mesmo com intensa repressão policial, a população passou a fazer barricadas, piquetes, trancaços de ruas e manifestações, exigindo o retorno de Chávez e afirmando que ele não tinha renunciado, mas sim estava sequestrado. Na manhã do dia 13 de abril, os conselhos comunais, assembleias de vizinhos e outros coletivos chavistas tomaram as ruas da capital do país em marcha rumo ao Palácio Miraflores para exigir o retorno de Chávez. Com o Palácio sitiado pela população, militares leais a Chávez que faziam a segurança do edifício passaram a agir e retomaram o Palácio, prendendo vários integrantes da cúpula golpista. Carmona e outros conseguiram fugir. A massa que se aglomerava no lado de fora do Palácio foi ao delírio quando fuzileiros subiram no teto do prédio e levantaram a boina vermelha, símbolo chavista. Ao se espalhar a notícia do contragolpe bem-sucedido, diversos quartéis pelo país passaram a enviar mensagens a Miraflores dizendo estar com a Constituição e com o presidente Chávez.

Faltava, entretanto, achar o presidente. Boatos se multiplicavam de que seria executado ou entregue aos Estados Unidos. Novamente, com a participação de militares leais à Revolução Bolivariana, Chávez foi resgatado e retornou já na madrugada do dia 14 a Miraflores, onde foi saldado por uma multidão que o esperava ao coro de “voltou, voltou”. Foram três dias dramáticos que deixaram um saldo de dezenas de mortos e um país fraturado. Em menos de 72 horas, o golpe foi derrotado pela grande mobilização popular e pela ação dos militares leais a Chávez. Aqui estão duas características essenciais da Revolução Bolivariana e de qualquer movimento revolucionário que se preze: a organização das massas e a politização dos militares por um viés socialista e anti-imperialista são necessárias para a manutenção de qualquer governo popular. O resultado do fracassado golpe marcaria a oposição como golpista e o chavismo como força democrática e pacífica. Mas a oposição direitista e o capital internacional não desistiriam tão fácil e tentariam uma última cartada na virada de 2002 para 2003. Um paro petroleiro, quando praticamente toda a produção de petróleo e derivados do país foi paralisada, mostrando a força que ainda detinha a burocracia do Puntofijo dentro da PDVSA e outros setores da produção petroleira. As consequências para a população foram avassaladoras: falta de gasolina nos postos, desabastecimento de alimentos, restaurantes e centros comerciais fechando as portas, tudo ampliado por uma cobertura parcial da mídia que culpava o governo pelo caos realizado pelos empresários. Bancos fecharam e houve fuga de capitais do país. Chávez novamente mostrou altivez e enfrentou o paro , realizando uma devassa na PDVSA e nas Forças Armadas, demitindo e retirando de postoschave os sabotadores. A Venezuela, dona das maiores reservas de petróleo do mundo, teve que importar gasolina para enfrentar a escassez. As Forças Armadas foram acionadas para tomar o controle de poços de petróleo, plataformas, navios e refinarias. Com um mês de paralisação e sem perspectiva de derrubar o governo, a burguesia não aguentou e teve que reabrir seus negócios. A direita do país saiu totalmente desmoralizada ao perder todas as quedas de braço com o governo. Por outro lado, Chávez consolidou sua hegemonia popular e conseguiu colocar em marcha seu plano. A Constituição estava reformada, a economia se recuperaria agora sob a égide da soberania nacional e em termos antineoliberais, e a maioria da população, sobrevivente de terríveis provações, estava disposta a dar o sangue pela Revolução Bolivariana. A situação ficou clara para Chávez: com o controle da política e da economia, essa população, que lutou bravamente, deveria ser assistida em suas necessidades. E a continuidade e aprofundamento de seu projeto não cabiam no capitalismo dependente. O socialismo do século XXI Vencidas as batalhas decisivas para a manutenção de seu projeto, Chávez passou a desenvolver formas de atender os problemas da população e declarou a Revolução Bolivariana uma revolução socialista, já em 2001. Educação, saúde, habitação, previdência social, apoio às cooperativas, comunas e microempresas, foram algumas das políticas públicas desencadeadas por Chávez que mudaram o panorama social da Venezuela.

De um dos países mais desiguais do continente, castigado por décadas de crise econômica, o país passou a exibir melhorias nos indicadores sociais, ao mesmo tempo que a economia ganhava novo fôlego com a alta do petróleo. Importante destacar que as ações do governo sempre são acompanhadas da politização e organização da população. Foram estabelecidas as “Missões”, programas sociais vinculados diretamente ao governo federal, evitando assim as burocracias estaduais e municipais e melhorando o contato do povo com o governo revolucionário. A primeira grande missão foi a Missão Bairro Adentro, que instalou consultórios médicos em cada bairro e favela do país. Foram construídos, junto às próprias comunidades, pequenos sobrados para que o médico residisse na comunidade, com a parte de baixo da casa sendo um consultório e na parte de cima sua residência. Mesmo com incentivos do governo, a elitista categoria médica do país aderiu pouco ao projeto. A saída foi um convênio com Cuba, que enviou mais de 20 mil médicos (além de profissionais de educação e esportes) em troca de petróleo abaixo do preço de mercado. A conhecida ação de solidariedade internacional da medicina cubana recebeu a reação enérgica da direita do país, mas aos poucos conquistou o povo venezuelano, principalmente os mais pobres (muitos que nunca tinham ido ao médico na vida). Na educação, houve uma reforma total do ensino básico e a distribuição de tabletes educativos a toda criança matriculada na escola pública. A ONU reconheceu a Venezuela como território livre do analfabetismo em 2005, situação muito diferente de países da região com mais recursos, como o Brasil. Foram criadas diversas universidades públicas e melhorado o acesso ao ensino superior, algo que era exclusivo às classes abastadas. A maioria das universidades do país eram privadas e/ou controladas pela Igreja católica (altamente conservadora e alinhada com a direita do país). Nesse contexto, a criação das “universidades bolivarianas”, assim como a melhora na escola básica, não era somente uma política educacional, mas sim uma necessidade revolucionária de educar uma população até então desvalida, e também de produção de conhecimento para a emancipação nacional, contra uma educação mercadológica e colonizada. Até hoje há uma forte divisão político-ideológica, que se manifesta inclusive no movimento estudantil do país, entre os educados nas escolas públicas – que tendem a ser de esquerda – e nas privadas – que tendem a ser de direita. Uma das ações de maior envergadura do governo bolivariano é a Gran Misón Vivenda Venezuela, programa de construção de habitações populares com o objetivo de zerar o déficit habitacional do país. A Missão não se restringiu a construir prédios com apartamentos minúsculos (como no Brasil), mas erguer verdadeiros bairros inteiros, de blocos de apartamentos de dois a três quartos (dependendo do tamanho da família), com infraestrutura de transportes, quadras esportivas e espaços comuns (para festas e assembleias políticas). Mais importante, os apartamentos não podem ser vendidos e operam sob uma espécie de propriedade familiar, em que a titularidade pode ser repassada somente para filhos e outros familiares. Isso evita que as residências caiam no mercado imobiliário e, ao mesmo tempo, sejam ocupadas por quem realmente precisa – pessoas que moravam em áreas de risco –, além de garantir que cada família sempre terá

um teto para viver. A maioria dos apartamentos já vem equipada com fogão, geladeira, máquina de lavar e micro-ondas, graças a convênios com a China, que troca os eletrodomésticos por petróleo. ⁸⁵ A previdência social foi uma das grandes revoluções sociais feitas pela Revolução Bolivariana. A cobertura de aposentadorias, pensões e auxílios a necessitados aumentou enormemente a partir de Chávez, garantindo renda fixa a idosos e portadores de necessidades especiais, o que, indiretamente, aumenta a renda de toda família. O governo reconheceu a “dona de casa” como profissão, garantindo o direito à aposentadoria de milhões de mulheres que nunca estiveram no mercado formal de trabalho. Em 2018, a Venezuela se tornou o primeiro país da América Latina a ter 100% de seus idosos recebendo algum benefício previdenciário. ⁸⁶ A legislação trabalhista ⁸⁷ tem o trabalho como elemento principal da criação da riqueza do país. Ela reconhece o trabalho como direito, de acordo com a capacidade de cada um (incluindo pessoas com deficiência), proíbe a demissão sem justa causa (estabilidade no emprego), garante dois dias de descanso semanal a todos os trabalhadores – sendo os dois dias obrigatoriamente seguidos; proíbe a terceirização e a desigualdade salarial por gênero e outros tipos de discriminação; e reconhece os idiomas indígenas como oficiais, o que permite o acesso a regras, leis e à Justiça do trabalho na língua original desses povos. É proibida a demissão de trabalhadoras mães e pais até dois anos depois do nascimento dos filhos (direito estendido a pais adotivos). É importante salientar que, mesmo durante a guerra econômica enfrentada pela Venezuela no governo Maduro, o desemprego sobe pouco quando comparado a outros países da região, justamente por essa legislação protetiva combinada a outras formas de organização do trabalho. A comunicação foi um dos pontos em que o chavismo mais investiu. Para combater uma mídia totalmente hostil ao governo, dentro e fora do país, a Revolução Bolivariana investiu na construção de um sistema de comunicação nacional, reunindo canais de televisão, emissoras de rádio, jornais impressos e portais de internet – inclusive com grande trabalho nas redes sociais, especialmente o Twitter, a mais popular entre os venezuelanos. Talvez a mais audaciosa iniciativa tenha sido a Telesur, canal de televisão – também transmitido pela internet – que se propõe a ser uma “CNN da esquerda”, com notícias 24 horas por dia, sinal para vários países latino-americanos e sustentada em coparticipação com os governos de Cuba, Bolívia, Equador, Nicarágua e Uruguai. ⁸⁸ O país também fechou convênios de comunicação com outras nações para troca de conteúdos jornalísticos, como China, Rússia e Irã, retirando o monopólio das agências de notícias ocidentais. As leis que regulam a mídia também foram modificadas para normatizar a classificação etária de cada programa, garantir o direito de resposta de pessoas difamadas pela imprensa e reconhecer as iniciativas de meios de comunicação comunitários, compreendendo o acesso e a produção de comunicação como um direito democrático do povo venezuelano. No plano internacional, Chávez colocou a Venezuela como ponta de lança no processo de integração latino-americano, principalmente em diálogos com os governos Lula e Dilma (Brasil) e Néstor e Cristina Kirchner (Argentina).

Os três países foram os grandes responsáveis pelo fracasso do desejo norteamericano de formular a Alca (Área de Livre Comércio das Américas). ⁸⁹ Congregou os países com projetos socialistas na região na Alba (Alternativa Bolivariana para os povos de nossa América); formulou o Petrocaribe, rede comercial de cunho socialista, graças à qual a Venezuela vende petróleo a condições favoráveis aos países caribenhos e recebe em troca alimentos e serviços nos quais os demais participantes são especialistas; articulou a Unasul (União das Nações Sul-americanas) e a Celac (Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos), dando oportunidades para a integração regional e diminuição da influência norte-americana na região. Para além da América Latina, a diplomacia bolivariana se orientou pela criação de um mundo multipolar, com respeito à soberania dos povos, forjando laços importantes com China, Rússia e os países da OPEP e do Movimento de Países Não Alinhados (MNOAL). Nos momentos de ataque mais agudo do imperialismo norte-americano, essa extensa rede diplomática realizada por Chávez e continuada por Maduro se mostrou de grande valia, deixando evidentes os ataques estadunidenses, apoiados por seus parceiros europeus e governos subservientes na América Latina. A partir dessas e outras iniciativas, a Revolução Bolivariana fincou raízes firmes e sólidas na sociedade venezuelana, tornando o país um participante de primeiro nível na geopolítica regional e internacional. A Revolução não era somente a liderança de Chávez, mas sim um movimento social gigante, que sacudiu todo o país e passou a estar presente em todos os setores da sociedade. Revolução no sentido mais profundo da palavra. Sua base está principalmente nos trabalhadores pobres, que passaram a se organizar em diversas formas de participação reconhecidas pela Constituição e incentivadas pelo poder público. O socialismo do século XXI defendido por Chávez deve caminhar para um “Estado Comunal”, no qual as formas organizativas da população vão recebendo cada vez mais poder político e econômico, diminuindo o Estado atualmente existente, que se torna muito mais um corpo técnico para atender as necessidades deliberadas pelo povo, tendo como objetivo sua total extinção. Para usarmos termos clássicos, poderíamos qualificar essa ideia como uma via venezuelana para o socialismo e o comunismo. O marxismo aqui se mescla, de forma original, com ideias da Teologia da Libertação e da cultura do país, que contém contribuições importantes de origem indígena e afro-venezuelana, além de experiências comunitárias autogestionárias que precedem a Revolução Bolivariana. ⁹⁰ Os conselhos comunais, que já eram responsáveis por planejar e executar obras e melhorias em suas localidades, recebem a companhia de fábricas e serviços cooperativos, ou autogestionários, com apoio do poder público. Da junção dessas diversas experiências socialistas, nascem as comunas, entidades que pretendem ser o embrião do poder popular e da transição socialista na Venezuela. As comunas são entidades territoriais, abarcando as iniciativas descritas acima, visando a autoprodução e autogoverno. Trata-se de um processo intrincado, em que essas entidades passam de executoras autogestionárias de verba pública para detentoras de meios de produção e serviços, com tendência a não depender mais do Estado, sendo geridas por um “Parlamento comunal”, no qual todas as entidades participantes da comuna têm voz ativa. Um projeto de transição ao socialismo em que os

meios de produção e serviços, assim como algumas esferas de poder, vão sendo repassadas à população, ficando o governo somente com as questões mais estratégicas. Esses são os objetivos principais da Revolução Bolivariana: construir o socialismo do século XXI e o Estado comunal. ⁹¹ A vitória perfeita e a morte de Chávez Por meio da democracia direta e protagonista, o chavismo constrói um modelo próprio de socialismo a partir da participação popular. A reestruturação dos diversos setores da economia e a recomposição dos preços do petróleo ao longo da década de 2000 permitiram ao governo atender as demandas da população, combinada com uma diplomacia direcionada à integração latino-americana e a multipolaridade, que garantiu a diversificação dos parceiros econômicos do país e também a segurança contra os ataques norte-americanos. Chávez se reelegeu em 2006 com uma vitória esmagadora: 62,84% dos votos. Como toda revolução, o avanço do processo divide a sociedade, potencializa os inimigos e ocasiona traições. Alguns aliados de Chávez, tanto no campo militar, quanto partidário, romperam com o governo ao perceberem o aprofundamento da revolução e sua conotação socialista. O chavismo também avançou em termos organizacionais, fundindo diversas organizações de esquerda em uma única agremiação, o PSUV (Partido Socialista Unido de Venezuela), e consolidando uma nova doutrina militar, anti-imperialista e socialista, principalmente na formação da nova oficialidade. As organizações populares em bairros, favelas e locais de trabalho passaram também a contar com maior apoio em sua estruturação e formação política. O avanço do processo revolucionário vai tornando mais complexa e intrincada a luta de classes. Chávez enfrentou um câncer, que retornou em 2012, momento de novas eleições presidenciais. O pleito tomou cores de batalha decisiva. Tanto a direita quanto o próprio chavismo consideravam que mais seis anos de governo do presidente tornariam a revolução irreversível. O colégio eleitoral venezuelano dobrou de tamanho ao longo do governo Chávez, de dez para vinte milhões de cidadãos aptos ao sufrágio. Boa parte da população não tinha carteira de identidade e, sem esse documento, era impedida de exercer o direito ao voto. Foi o governo de Hugo Chávez que promoveu uma grande campanha de documentação, concedendo o registro de identidade aos cidadãos e com isso sua inscrição eleitoral. O capital internacional despejou muitos recursos para eleger o candidato Henrique Caprilles, representante de uma unidade dos partidos de direita do país, chamada MUD (Mesa de Unidade Democrática). Para isso, Caprilles se apresentou como uma direita light , que reconhecia as políticas públicas chavistas como responsáveis pela melhoria nos indicadores sociais e jurava mantê-las. Caprilles chegou a dizer que sua inspiração era o governo Lula no Brasil e que sua candidatura era uma proposta de unir todos os venezuelanos, despolarizando a sociedade. Sua campanha animou o eleitorado conservador e seus comícios reuniam grandes aglomerações. Chávez já estava combalido pelo câncer e, mesmo assim, não se intimidou em realizar a campanha. Por onde passava, uma massa humana vestida de

vermelho seguia o comandante e respondia a seu chamado para uma “vitória perfeita” no pleito que se aproximava. O ato final da campanha tomou cores antológicas, dignas de processos revolucionários. Uma multidão de mais de um milhão de pessoas lotou a avenida Bolívar sob forte chuva, o que deu contornos ainda mais épicos ao evento. Naquele 4 de outubro de 2012, Chávez realizou um dos seus mais grandiosos discursos, que ficou conhecido como “um relâmpago na chuva”. Foi também uma despedida. Chávez venceria as eleições alguns dias depois e viria a falecer cinco meses após o pleito. A eleição presidencial de 2012 foi a maior da história venezuelana até a presente data (dezembro/2019). Com o comparecimento de 80,56% do eleitorado, que totalizaram mais de 15 milhões de sufrágios (num colégio eleitoral de 18 milhões de votantes), Hugo Chávez foi reeleito com 55,07% (mais de 8,1 milhões votos) contra 44,31% de Caprilles (mais de 6,5 de votos). Foi a maior votação de um candidato presidencial na história do país até o momento (dezembro/2019). Chávez chegava a incrível marca de quatro vitórias eleitorais seguidas, sempre recebendo mais votos do que no pleito anterior. Dois meses após as eleições, em dezembro de 2012, Chávez fez seu último pronunciamento à nação em rede de rádio e televisão, ⁹² no qual detalhava que precisava se retirar para tratar seu câncer em Cuba. Deixou claro à população que o caso era sério e que poderia não retornar. E foi direto, ao apontar que, caso ocorresse o pior, o povo deveria eleger Nicolás Maduro para presidente da república. Maduro, naquela época vice-presidente, estava a seu lado, assim como outras figuras de proa do chavismo. A cena é histórica por ser a primeira vez que um líder revolucionário indicava de maneira tão direta à população o seu sucessor. O ato garantiria no futuro a unidade do chavismo, ao contrário de outros processos revolucionários, em que a desaparição física de sua principal liderança ocasionava disputas fratricidas pelo poder ou até a contrarrevolução. Em janeiro, quando deveria tomar posse do novo mandato, uma multidão foi à sede do Poder Eleitoral (Conselho Nacional Eleitoral – CNE) para “tomar posse” no lugar de Chávez, mostrando sua fidelidade ao comandante. Maduro governava o país e fazia constantes viagens a Cuba para visitar o presidente. No início de março, Chávez retornou para a Venezuela, transferido para uma unidade médica militar. No dia 5 de março de 2013, faleceu devido a complicações causadas pelo câncer. Maduro, em lágrimas, junto a outras lideranças chavistas, deu a notícia em rede de rádio e televisão. Pela legislação eleitoral venezuelana, se o presidente falece na primeira metade do mandato – como era o caso – novas eleições deveriam ser convocadas. Frente ao luto pela perda de seu comandante, o chavismo teria que se preparar para uma nova batalha eleitoral, a mais difícil de sua história. O velório de Chávez foi acompanhado por uma multidão ao longo das ruas de Caracas e no mausoléu que lhe foi construído, no mesmo quartel que se insurgiu no 4 de fevereiro de 1992. Líderes de todo mundo compareceram a seu funeral. Chávez saia da vida e entrava para a história. Maduro, o sucessor

Em menos de um ano, a Venezuela caminhava mais uma vez para uma eleição presidencial. Com o falecimento de Hugo Chávez antes da metade do mandato, um novo pleito seria o caminho constitucional estabelecido. Seguindo o último comando de Chávez, Nicolás Maduro foi apresentado como seu sucessor. Maduro construiu sua militância no sindicalismo do setor de transportes (foi motorista de ônibus e também trabalhou no metrô de Caracas), apoiou o 4F, estando com Chávez desde o começo de sua ascensão. Foi deputado constituinte em 1999 e depois ministro em diversas áreas do governo, inclusive chanceler. Era o vice-presidente no novo mandato de Chávez, e já governava de facto enquanto seu padrinho político se tratava em Cuba. Sua candidatura e vitória representavam a continuidade e unidade do chavismo, além de uma escolha pessoal do próprio líder falecido. A direita, sempre apoiada pelo capital internacional, viu a sua grande oportunidade. Pela primeira vez em quase quinze anos não teria que concorrer contra um mito político para Presidência da República. Sentiu o momento e partiu para cima, novamente com grande campanha em volta de Henrique Caprilles, candidato unitário da MUD derrotado por Chávez no ano anterior. Com o desaparecimento físico de Chávez, uma nova conjuntura se abria para a Venezuela e a direita sentiu a possibilidade de vitória. Para isso, traçou uma estratégia que se tornaria lugar-comum a partir daquele momento. Investe pesado nas eleições quando vê possibilidade clara de vitória, mas desconhece os resultados em caso de derrota. Em toda campanha eleitoral, a direita, ao receber um resultado negativo, grita “fraude”, sem nunca apresentar provas, mas reconhece imediatamente o resultado dos pleitos em que sai vencedora. Em 14 de abril de 2013, o país testemunhou a mais acirrada eleição de sua história, superando o pleito do ano anterior. A participação foi parecida (cerca de 79%), mas a diferença entre os candidatos foi minúscula. Maduro venceu com 50,61% (7,5 milhões de votos), contra 49,12% de Caprilles (7,3 milhões de votos). Muitos eleitores que votavam em Chávez, ou que não participavam das eleições, votaram em Caprilles, demonstrando como a ausência de sua liderança máxima anunciava momentos difíceis para o chavismo. Caprilles não reconheceu os resultados, alegando fraudes, nunca comprovadas, e convocou a população a “descarregar sua indignação nas ruas”. Foi a senha para ataques incendiários a sedes de organismos identificados com o chavismo e assassinatos de militantes de esquerda.

A violência de rua, com utilização de explosivos e ataques incendiários, somados ao desconhecimento dos resultados eleitorais, passaram a ser a posição da direita venezuelana. Já no ano seguinte à eleição de Maduro, em 2014, uma parte da oposição direitista convocou a campanha “La Salida”, onda de mobilizações para a “derrubada da ditadura”. Grandes mobilizações nos bairros ricos de Caracas e outras cidades terminavam com quebraquebra generalizado, ataques incendiários a prédios públicos e morte de transeuntes, participantes ou não de tais “manifestações”. Um mês de campanha deixou um rastro de mais de quarenta mortos. O governo acionou a Justiça, através do Poder Cidadão, e prendeu os líderes das manifestações, entre eles Leopoldo López, prócer do partido de extrema-direita Voluntad Popular, acusado de ser o mentor intelectual das mortes ocorridas durante La Salida. A tentativa de golpe foi sufocada, mas deixou lições à direita. Primeiro, La Salida foi capitaneada por um agrupamento de extrema-direita, minoritário na MUD, principalmente o partido Voluntad Popular e outros menores. Para um golpe bem-sucedido, seria necessária uma unidade da direita e o apoio logístico da embaixada norte-americana. Segundo, a maioria da população, classe trabalhadora residente nos bairros populares, não aderiu às manifestações, pois percebia que era uma rebelião de ricos contra as conquistas da Revolução Bolivariana, menos de um ano depois das eleições presidenciais. A politização e a melhoria material da vida do povo foi o grande legado de Chávez. Os Estados Unidos compreenderam que não haveria adesão popular a um golpe contra Maduro enquanto as condições de vida dos venezuelanos continuassem melhorando, como os indicadores sociais apontavam. Era necessário isolar o chavismo da massa, colapsar o país e apresentar a Venezuela internacionalmente como uma ditadura. Guerra econômica, avanç o imperialista A conjuntura latino-americana na década de 2010 mudou radicalmente. Os efeitos da crise desatada em 2008, que afetaram primeiramente os Estados Unidos e a União Europeia, passaram a atingir com mais força a periferia a partir desse decênio. Sua principal manifestação foi a queda no preço internacional das commodities, com a retração da demanda. Para países que têm produtos primários como elemento principal de sua pauta exportadora, isso significa queda nos ingressos e déficit na balança comercial. Com menos dinheiro em caixa, menos investimentos em bem-estar e infraestrutura. A Venezuela foi diretamente afetada pela queda estrondosa do preço do petróleo, que em um intervalo de três anos caiu de um preço acima dos US$ 100 para menos de US$ 30. Pesou também a ação geopolítica estadunidense de forçar a queda do preço internacional do ouro negro, aumentando a exploração do fracking e utilizando a Arábia Saudita para inundar o mercado com uma oferta muito alta. Junto às mudanças na economia mundial, os governos progressistas da região chegaram a certos gargalos de suas propostas, ao mesmo tempo que o imperialismo norte-americano avançou na desestabilização de seus adversários regionais. Os golpes em Honduras (2009), Paraguai (2012) e Brasil (2016), somados às vitórias eleitorais de Maurício Macri na Argentina (2015) e Jair Bolsonaro no Brasil (2018), além do racha na esquerda

equatoriana entre os partidários de Rafael Correa e Lenín Moreno (2017), praticamente isolaram a Venezuela na América do Sul. Os Estados Unidos passaram a articular os governos de direita da região, esvaziando a Unasul e a Celac, chegando a criar o Grupo de Lima, agrupamento de países governados pela direita que tem como único propósito desestabilizar a Venezuela, algo inédito na história latino-americana. É perceptível a mudança de postura da ingerência norte-americana na Venezuela. Se antes o governo americano apoiava logisticamente a direita venezuelana, que nunca conseguiu corresponder aos desejos de seu amo, a partir do final do governo Obama e, principalmente, com Donald Trump, o Departamento de Estado e a CIA, passaram a dirigir, de maneira direta, as posturas da oposição na Venezuela, assim como buscar coordenar ações dos governos de direita da região para isolar o chavismo na América Latina. O país caribenho passou a ser um dos mais afetados pela chamada Guerra de Quarta Geração: Na definição conceitual atual, a coluna vertebral da Guerra de Quarta Geração se enquadra no conceito de “guerra psicológica”, ou “guerra sem fuzis”, que foi assim chamada, pela primeira vez, nos manuais de estratégia militar da década de 1970. Em sua definição técnica, “Guerra Psicológica” ou “Guerra Sem Fuzis” é o emprego planejado da propaganda e da ação psicológica orientadas a direcionar condutas, em busca de objetivos de controle social, político ou militar, sem recorrer ao uso das armas. Os exércitos militares são substituídos por grupos de operação descentralizados, especialistas em insurgência e contrainsurgência e por especialistas em comunicação e psicologia de massas. ⁹³ Nessa guerra “sem fuzis”, utilizam-se as redes sociais e os grandes conglomerados empresariais de mídia, que seguem a posição ditada pelo Departamento de Estado norte-americano. Aciona-se a sabotagem e as sanções internacionais, chamada de “guerra econômica”. ⁹⁴ Donald Trump proibiu o comércio de qualquer empresa norte-americana (ou estrangeira que tenha filiais nos Estados Unidos) com o governo venezuelano e a PDVSA, além de proibir a venda e a compra dos títulos da dívida do país, ações da estatal petroleira e demais transações no mercado financeiro estadunidense. Isso impede a Venezuela de quitar seus contratos internacionais, mesmo que assim deseje, pois as formas de pagamento estão trancadas para negociações com os credores. Negociações de compra de alimentos e remédios no mercado internacional também são constrangidas, além dos negócios da PDVSA nos Estados Unidos (cerca de 30% das exportações de petróleo venezuelano, refinarias e uma rede de postos de gasolina em território norte-americano). ⁹⁵ Além do cerco comercial-financeiro-midiático internacional, a situação se deteriorou internamente. As empresas privadas passaram a praticar sabotagem, produzindo muito abaixo de sua capacidade, estocando alimentos, praticando mercado negro, contrabandeando produtos para a Colômbia, desviando para a especulação os dólares concedidos pelo governo para importação de mercadorias, entre outras práticas. O resultado foi o desabastecimento de produtos de primeira necessidade, como alimentos, produtos de higiene e limpeza, além de remédios, disparando a inflação e

despencando o padrão de vida das famílias venezuelanas. O objetivo dessa ação coordenada entre órgãos do governo norte-americano e a burguesia local consistia em deteriorar as condições materiais de vida da população que tinham sido significativamente melhoradas pela Revolução Bolivariana e, assim, provocar o descontentamento geral (guerra psicológica) que quebraria a hegemonia chavista na sociedade e nas instituições, levando ao golpe de Estado. É claro que os ataques inimigos não justificam por si só os problemas que a Revolução Bolivariana passaria a sofrer a partir do governo de Maduro. Um certo marasmo tomou conta das ações do governo e o próprio presidente parece ter demorado a se sentir à vontade com tamanha responsabilidade de suceder um mito político como Chávez. As contradições inerentes a todo processo revolucionário começaram a surgir, principalmente entre as formas organizativas populares (comunas, conselhos comunais etc.) e a burocracia institucional. São problemas inevitáveis de um processo que objetiva a transformação radical da sociedade e cabe à liderança revolucionária saber mediar os conflitos no sentido de manutenção da unidade, mas com o foco no avanço do processo. Outro ponto é a corrupção em organismos públicos, regalias no acesso a produtos em momento de escassez para a população e ineficácia em indústrias e empresas estatizadas ou entregues aos trabalhadores pelo Estado. A ação do governo revolucionário não pode vacilar no combate aos desvios internos e na intervenção em ações ineficazes. Quando um governo revolucionário não age com firmeza sobre essas questões, a população se desencanta com a revolução e se afasta. Foi o que ocorreu no caso venezuelano entre 2013 e 2017. No final de 2015, a direita conseguiu uma vitória retumbante, ao conquistar 112 de 167 cadeiras na Assembleia Nacional, passando a controlar o Legislativo com mandato válido até 2021. A maioria direitista passou a usar o Legislativo para sabotar e derrubar o Executivo, além de tentar revogar leis anticapitalistas até então em vigor. ⁹⁶ No campo internacional, aproveitando-se da ofensiva imperialista na América Latina, a Assembleia Nacional passou a ser reconhecida pelos Estados Unidos como único interlocutor válido da Venezuela, em uma tentativa de criar uma dualidade de poder. Diversos intentos de rachar as Forças Armadas foram realizados, para provocar um golpe de Estado ou a balcanização do país, sem, contudo, alcançar sucesso. A Assembleia Nacional acabaria por não reconhecer Maduro como legítimo presidente e passaria a ditar regras por fora da Constituição, entrando em choque com os demais poderes da República, principalmente o Judiciário. Em meados de 2017, a Suprema Corte chegou a tomar para si as prerrogativas do Legislativo, mas voltou atrás a pedido do próprio Maduro. Contudo, a desobediência constitucional da Assembleia Nacional continuou e passou a não reconhecer nenhum dos outros quatro poderes do país (Executivo, Judiciário, Eleitoral e Cidadão), além de, sucessivamente, “conclamar” as Forças Armadas a tomar partido contra Maduro, o que levou a Suprema Corte a decretar que o Legislativo estava em “desacato” e, portanto, seus atos eram nulos, até que retornasse às normas constitucionais. Essa ação do Judiciário inviabilizou a direita em utilizar o Legislativo como forma de desestabilização do país.

A desestabilização chegou ao auge em 2017, quando o país foi massacrado por três meses de violentas manifestações da direita, onde morreram mais de 140 pessoas. Após um ano e meio de guerra econômica e psicológica visando o descontentamento social e a desestabilização e isolamento internacional da Venezuela, a oposição, junto ao governo dos Estados Unidos, passou a convocar grandes manifestações nos bairros ricos das grandes cidades, especialmente Caracas. Como resposta, o governo e seus apoiadores também organizavam marchas de resistência à escalada golpista. A Guarda Bolivariana (agrupamento policial criado pelas Forças Armadas justamente para evitar as polícias corruptas e, algumas vezes, sob ordens de políticos opositores em estados governados pela oposição) agia no sentido de evitar que as duas manifestações, ambas de massas, se encontrassem – e assim não repetir as cenas bárbaras de 2002. Os líderes direitistas insistiam em direcionar as manifestações contra o cordão policial e atingir a manifestação chavista. Isso ocasionava conflitos entre a Guarda Bolivariana e os manifestantes contrários ao governo, que começaram a ficar cada vez mais frequentes e letais. Vale salientar que a Guarda Bolivariana, diferente de outros países, não utiliza balas de borracha, muito menos munição letal, tendo como recursos antidistúrbios apenas gás lacrimogênio, cassetetes e canhões d’água. O que começou como conflitos ao final de manifestações entre opositores e policiais evoluiu para uma sucessão de ações coordenadas contra prédios públicos, sedes regionais do PSUV e atentados terroristas contra instalações militares, além de assassinatos de pessoas “acusadas” de serem chavistas. Houve ataques incendiários contra estações de metrô (construídas pelo governo bolivariano), depredação de sedes do Poder Judiciário, Poder Cidadão e de meios de comunicação ligados ao governo, trancamento de ruas e por vezes de bairros inteiros em áreas de residência das classes mais abastadas. Pessoas foram queimadas vivas em manifestações da direita por serem supostamente infiltrados chavistas. O país entrou praticamente em colapso, principalmente no abastecimento de bens de primeira necessidade e diversas atividades econômicas foram paralisadas pela violência da direita. Logo, não havia mais as grandes manifestações convocadas pelos políticos opositores, mas somente grupos mascarados que surgiam do nada e começavam a quebrar e incendiar coisas (e pessoas!), atos que em qualquer lugar do mundo seriam classificados como terroristas, mas que a mídia corporativa internacional apresentava como manifestações legítimas reprimidas pela “ditadura de Maduro”. ⁹⁷ Com exceção do golpe malsucedido de 2002, esse foi o momento em que a Revolução Bolivariana esteve mais próxima de seu término. O governo passou a não reprimir diretamente os atos terroristas, mas sim reagir a eles, ao mesmo tempo que usava os serviços de inteligência para desmontar esses grupos criminosos e desvendar suas redes de funcionamento, que incluíam lideranças políticas da direita do país. Maduro, diversas vezes, conclamou a oposição ao diálogo, não encontrando retorno. A prolongação da tática da violência, sem, contudo, conseguir lograr seu objetivo (derrubar o governo, ou ao menos, partir o país ao meio) passou a surtir o efeito contrário. Como os bairros e vias trancadas se situavam nas áreas ricas das cidades, os habitantes dessas localidades, em sua maioria

partidários da direita, passaram a abandonar as manifestações – cada vez mais violentas – e a reclamar da inviabilização da vida cotidiana. O comércio e outros setores contabilizavam o prejuízo de dias parados, sempre que ocorria uma manifestação. A direita passou a dinamitar sua própria base social e perder qualquer tipo de apoio frente à violência e o caos perpetrado pelo terrorismo. Esse foi o momento exato em que o chavismo contra-atacou e retomou a hegemonia social. Uma nova Constituinte e a retomada chavista Para deter a escalada golpista, Maduro convocou uma nova Assembleia Constituinte, revivendo o ponto fundador do chavismo como força social. A Constituinte era a chance da participação de todos os setores e forças da sociedade venezuelana para passar o país a limpo, reescrevendo a carta magna. O intuito era descartar a violência como método de se disputar a política, trazendo essa disputa para um terreno de ampla participação popular, sem a imposição de lados. E foi exatamente esse o ponto da derrota fragorosa da direita venezuelana naquele momento. Ela se negou a participar da Constituinte e, com isso, deu um sinal de fraqueza à toda população – e, principalmente, para sua própria base social –, mostrando que não detinha a maioria social que alardeava ter. Ninguém que detém a maioria vai se negar a participar de um pleito que tem o poder de remodelar as leis do país. A ação de Maduro e das forças bolivarianas também respondeu à sensação de cansaço da população com os atos violentos. Existe um intenso sentimento popular no país, construído pelo chavismo, de rechaço a qualquer solução política de força e de valorização da participação cidadã nos momentos decisivos. Com a iniciativa, Maduro isolou a direita em uma lógica “paz versus violência”, apresentando a Constituinte como o caminho da solução pacífica da crise e deixando a oposição como responsável pelo caos. A composição da Assembleia Constituinte foi uma verdadeira aula de democracia participativa e de inovação em um momento em que a “democracia” representativa liberal vem sendo questionada em âmbito mundial. A votação ignorou o sistema de partidos políticos, abriu a possibilidade para qualquer cidadão concorrer a um cargo na Constituinte sem a necessidade de se filiar a um partido e dividiu os constituintes em duas esferas: territorial e setorial. • Territoriais : cada município venezuelano tinha direito a eleger 1 deputado constituinte, com exceção das capitais estaduais, que elegiam 2, e da capital federal, Caracas, que elegeu 7 representantes. • Setoriais : foram delineados 8 setores sociais, que os cidadãos podiam votar e a que podiam se candidatar, desde que se inscrevessem no Conselho Nacional Eleitoral no setor escolhido: trabalhadores; empresários; camponeses e pescadores; aposentados e pensionistas; estudantes; indígenas; pessoas com necessidades especiais; representantes de comunas e conselhos comunais.

Alguns dos setores tinham subdivisões, como os estudantes (escola pública, privada e missões), trabalhadores (petróleo, comércio etc.) e assim por diante. A votação da Constituinte garantia uma real representatividade, seguindo a proporção social (eram cerca de 5 representantes empresariais e mais de 100 trabalhadores) e privilegiando as pessoas que realmente se destacavam como lideranças em cada área, já que não havia a participação de partidos políticos, tendo o/a candidata que ser uma referência no seu território ou setor para alcançar a vitória. Os/as representantes indígenas foram escolhidos à parte, por essa própria população, de acordo com seus costumes ancestrais. Os atentados terroristas da direita continuaram até o dia da eleição da Constituinte, 30 de julho de 2017, quando, mesmo com ataques a bombas e trancamento de ruas – além da campanha abstencionista, 41% da população apta a votar (mais de 8 milhões de pessoas) foi às urnas e elegeu 545 representantes. Os números totais de votos demonstram que a população venezuelana preferiu a Constituinte pela paz, contra a guerra e a violência. Mesmo tentando deslegitimar o processo, a direita venezuelana acusou o golpe. A violência evaporou totalmente das ruas no dia seguinte à Constituinte. Suas diversas lideranças começaram a entrar em discordância sobre a postura a tomar sobre os fatos, o que prenunciaria o racha. Contra todos os prognósticos, Maduro não caiu depois de três meses de fortes pressões. Pelo contrário, fez o movimento mais ousado de sua presidência e saiu vencedor, retomando a hegemonia social, política e eleitoral do chavismo. A Constituinte se instalou e começou seus trabalhos. Além da revisão da Constituição – com consultas temáticas junto à população, ela passou também a legislar sobre o país, como órgão supremo da vontade popular (um Poder constituidor, e não constituído, como os demais). Pouco adiantou o não reconhecimento por parte de outros países submissos aos ditames estadunidenses, já que a direita local não tinha correlação de forças para impedir a instalação e funcionamento da Constituinte. Com a retomada da hegemonia e o descrédito total da oposição junto à população, a Constituinte instituiu a necessidade de renovação total dos cargos executivos do país. Se iniciou uma sequência de eleições nas quais o chavismo saiu amplamente vencedor. Ainda no segundo semestre de 2017, nas eleições para governadores, o chavismo venceu em 19 dos 23 estados, o que deixou claro, novamente, que a direita não tinha a maioria social que alegava e desmontou qualquer narrativa de fraude, já que ela conseguiu sair vencedora em 4 estados e reconheceu os resultados. Logo depois, os principais partidos que compunham a MUD, prevendo novo fracasso nas eleições para prefeitos, abstiveram-se de participar do pleito, dando uma vitória colossal ao chavismo em 92% dos municípios, incluindo 22 das 23 capitais. O discurso foi que a oposição se prepararia para a eleição que “realmente importava”, as presidenciais, marcadas para dezembro de 2018. A Constituinte propôs, então, adiantar as eleições presidenciais de dezembro para abril de 2018, no sentido de, novamente, dar à população o direito de escolher qual projeto deveria governar o país e ratificar que as disputas políticas devem ser feitas de maneira participativa e pacífica, e não por meio de uma violência imposta por um dos lados. Maduro iniciou um ciclo de

negociações com a oposição na República Dominicana, onde todas as garantias eleitorais foram acertadas, além do reconhecimento mútuo dos poderes e a soltura de indivíduos que não cometeram crimes violentos nas manifestações de 2017. Foi acordado passar as eleições presidenciais de abril para maio e que esta fosse supervisionada pela ONU. Para a surpresa de todos, no dia da cerimônia na qual seria assinado o tratado de convivência pacífica, mediado pelo ex-presidente espanhol José Luis Zapatero, a comitiva opositora recebeu um telefonema da Colômbia, onde se encontrava o então chefe do Departamento de Estado norte-americano, Rex Tillerson, e, após isso, se retirou da mesa dizendo que não cumpriria mais o acordo. ⁹⁸ Essa ação aumentou ainda mais o descrédito da oposição, já que deixava claro que não participaria das eleições presidenciais (até então sua grande pauta) e que era teleguiada pelas autoridades norte-americanas. Se alardeava ter maioria, por que nunca participava das eleições? Se não participa das eleições, como quer chegar ao poder? Guerra civil e apoio a uma invasão dos Estados Unidos? Essa ação errática rachou a MUD em três, sendo que uma das partes, encabeçada por Henri Falcón, decidiu concorrer às eleições e assinar o tratado de garantias eleitorais que tinha sido desenhado na República Dominicana. Os outros dois terços da oposição continuaram com a posição abstencionista e passaram a fazer um circuito diplomático por Europa, Estados Unidos e América Latina, solicitando mais sanções econômicas contra seu próprio país (!) e o não reconhecimento das eleições presidenciais, as mesmas que tanto pediram, porque elas seriam – no futuro – fraudadas. Alguns mais exaltados clamam até mesmo pela intervenção armada liderada pelos Estados Unidos. ⁹⁹ Com todo o descrédito acumulado pela oposição desde a Constituinte e seu posterior racha, assim como a reacumulação de forças do chavismo, o caminho ficou livre para uma estrondosa vitória no dia 20 de maio de 2018, quando Maduro se reelegeu com 67,8% (6,2 milhões de votos), mesmo sob forte cerco econômico, midiático e diplomático. O principal opositor, Henri Falcón, fez 21% (1,9 milhões de votos) e outro opositor, Javier Bertucci fez 10,3% (983 mil votos). Falcón não reconheceu os resultados, como de praxe, mas Bertucci sim. Também foram eleitos deputados estaduais e vereadores, renovando, no intervalo de um ano, quase a totalidade dos cargos púbicos do país, com exceção da Assembleia Nacional “em desacato”, mas nula em matéria de força. Maduro, que sobreviveu a um atentado contra sua vida em agosto de 2018, após as eleições, quando foram utilizados drones com explosivos para matálo, tem agora o desafio de solucionar os problemas cotidianos da população ocasionados pela guerra econômica imposta pelo imperialismo estadunidense e pela burguesia local. A população venezuelana deixou claro em quatro eleições realizadas no espaço de menos de um ano que está dando novo crédito ao chavismo. Ela espera respostas. Maduro saiu em definitivo da sombra de Chávez e hoje aparenta ser um líder mais experimentado, trilhando caminho próprio. Precisa agora ter firmeza e inovação para responder ao recado claro do povo: aprofundar a revolução. O lançamento da criptomoeda “Petro”, a primeira do gênero emitida por um país e com lastro (as riquezas minerais venezuelanas), é uma grande

inovação e permitirá ao país um canal de financiamento que burla as sanções dos Estados Unidos e da União Europeia. ¹⁰⁰ Porém, mais é necessário. A Revolução Bolivariana chegou ao limite das contradições entre duas formações sociais, a capitalista (em decomposição) e a socialista (em formação). Isso se desdobra na superestrutura política, em que a burguesia local e seus aliados internacionais somente veem como alternativa a solução bélica para encerrar o processo revolucionário. É a cartada final para não tornar a Revolução irreversível. A liderança bolivariana não tem outra alternativa senão aprofundar as experiências comunais, auto-organizadas e mistas. Os empreendimentos privados podem existir somente se seguirem à risca as demandas econômicas traçadas pelo poder público. O sistema de governo deve abandonar qualquer resquício da “democracia” liberal representativa e desenvolver formas cada vez mais participativas de atuação política, inclusive em processos eleitorais (a forma como foi eleita a Constituinte de 2017 é um caminho possível). A Revolução Bolivariana precisa dar o salto definitivo para acabar com o que ainda resta de capitalismo no país. Só assim será afastada em definitivo a possibilidade contrarrevolucionária, e estarão garantidos o futuro do processo popular e a própria segurança do país. Conclusão A Revolução Bolivariana é, até o momento, a principal revolução do século XXI e o maior acontecimento da América Latina no mesmo período. Hugo Chávez é, também até o momento, a personalidade mais importante da história latino-americana neste século. Toda a história da região no início do milênio gira sobre os fatos ocorridos no país caribenho, e os posicionamentos, contrários e favoráveis ao chavismo, são o “Sul” da geopolítica regional. Em âmbito mundial, a ação venezuelana contribui para uma série de movimentos que marcam o declínio do poderio norteamericano e sua substituição por um mundo multipolar, que, invariavelmente, terá que enfrentar o dilema da superação do capitalismo no longo prazo, ou a destruição da humanidade como espécie. A importância da Revolução Bolivariana para as lutas da humanidade contra o capital ainda está para ser avaliada. O processo venezuelano recolocou o socialismo no mapa político mundial. Provou que o projeto de esquerda que vence é o revolucionário, é o que leva as necessidades do povo a sério, é o da radicalidade e não o da “esquerda da ordem”, que se perde no republicanismo liberal, nas negociatas da pequena política e que renuncia à revolução para “humanizar o capitalismo”. Essa esquerda da ordem está totalmente derrotada mundialmente, quando não, cooptada pela direita. A organização e a politização da população são o alicerce que sustenta o processo revolucionário venezuelano. O compromisso com os desejos do povo e a criação de saídas não capitalistas, das quais as comunas são a principal, mostram que, justamente quando se inova e se aponta um horizonte de mudança radical, tem-se como retorno o engajamento político das massas. A participação política é educadora e, quando se adentra esse mundo, não se fica mais indiferente ao que acontece ao redor. Enquanto no

mundo inteiro se discute os limites da “democracia” representativa, a Venezuela nos apresenta uma saída de inclusão política das massas nos momentos de grande decisão, o que é coletivamente emancipatório e torna mais difícil o cenário para a manipulação e o clientelismo. A Revolução Bolivariana chega a duas décadas de existência e entra em seu momento mais tenso. Aquele em que a forma de produção (e de vivência) capitalista chega ao limite de sua existência e convivência com outra formação social, socialista, em construção. Não há mais espaço para conciliação com a direita e o capital estrangeiro. Estes não vão abandonar a sabotagem, a violência e a chantagem como método político. O que ainda resta de capitalismo dependente na Venezuela precisa ser superado nos próximos anos, reforçando cada vez mais o socialismo do século XXI – Estado comunal, como uma via venezuelana para o comunismo. Esse caminho passa pela socialização da economia (comunas, autogestão, trabalho por conta própria na lógica socialista, empresas estatais e mistas etc.) e na política (delegados de base, voto qualificado como na Constituinte de 2017 e outras inovações políticas). É necessário também um grande programa de defesa do país – que até agora se mostrou eficaz – que combine as Forças Armadas, as milícias bolivarianas, ¹⁰¹ uma geopolítica de integração regional e multipolar e um sistema de Justiça revolucionário que seja firme contra a violência pró-imperialista. A luta de classes continua, mesmo no socialismo, e os inimigos da classe trabalhadora a levam muito a sério. Cabem aos revolucionários fazerem o mesmo. Post scriptum Após o fechamento deste artigo, já no ano de 2019, o governo do presidente norte-americano Donald Trump aumentou a pressão sobre a Venezuela. Aplicando medidas extraterritoriais, parecidas com as que existem contra Cuba, proibiu qualquer tipo de transação comercial e financeira com a Venezuela, inclusive expropriando a Citgo, subsidiária da PDVSA em solo norte-americano para refino e distribuição de combustíveis. Tal ação nada mais é do que um roubo de propriedades venezuelanas em solo norteamericano, privando o país de enormes recursos que afetam o bem-estar do povo venezuelano. O governo de Trump passou a reconhecer somente a Assembleia Nacional – Legislativo venezuelano – como legítimo (único poder controlado pela oposição, mas sem efeito prático nenhum, já que se encontra com suas atribuições suspensas como descrito neste texto), e alçou o até então desconhecido deputado Juan Guaidó, presidente da Assembleia Nacional, como presidente “autoproclamado” interino do país. De maneira subalterna e orquestrada, diversos aliados norte-americanos fizeram o mesmo, na esperança de criar uma situação de duplo poder que levasse a um golpe de Estado e à deposição de Maduro. Até a presente data (dezembro/2019), a estratégia norte-americana foi um retumbante fracasso, ao não alcançar nenhum de seus objetivos. Como descrito acima, a direita venezuelana se encontra nesse momento em descenso, impossibilitada de convocar grandes mobilizações populares devido, em parte, a seus próprios erros. As Forças Armadas Nacionais

Bolivarianas não racharam, nem traíram Maduro (que pese os subornos oferecidos pelos Estados Unidos e a quartelada malsucedida de Guaidó no dia 30 de abril de 2019), o que lhe garante o monopólio das armas, situação também verificada nos demais poderes da República e aparatos de Estado. Portanto, até o momento, a Revolução Bolivariana mantém o poder estatal e a capacidade de mobilização social, por mais que a conjuntura seja incerta e explosiva. Tampouco os governos de direita da região deram aval para um ataque militar norte-americano, que, invariavelmente, necessitaria de seus territórios e recursos, por mais que a linguagem bélica seja constantemente alardeada por Trump e seus assessores. Os ataques recorrentes à soberania venezuelana sem a condenação explícita de boa parte da comunidade internacional entram para a história como um capítulo vergonhoso da diplomacia. A tentativa de invasão do território venezuelano no dia 23 de fevereiro de 2019, como uma suposta “ajuda humanitária” não oficial imposta pelos Estados Unidos, ¹⁰² seguida dos ataques cibernéticos ao sistema elétrico do país, ocasionando um apagão que deixou o país às escuras por dias, são exemplos flagrantes de desrespeito ao direito internacional. Essa situação de cerco castiga a população com desabastecimento e inflação descontrolada, que pese o primeiro pareça demonstrar sinais de superação ao final de 2019. Fortes denúncias de corrupção vieram a público contra Guaidó e pessoas de sua equipe, inclusive com uso indevido de dinheiro supostamente enviado para “ajuda humanitária” por órgãos estadunidenses. Acusações sobre este e outros casos evidenciam novas fraturas na oposição, onde determinados setores passam a questionar o recorrente fracasso das ações violentas que não produzem qualquer mudança substancial na correlação de forças interna. ¹⁰³ Desde 2017, a ofensiva política, eleitoral e social voltou a ser do chavismo, que parece aguardar as eleições para Assembleia Nacional no fim de 2020, no intuito de recuperar, por meio do voto, o único poder da República que se encontra em mãos da direita. A mobilização constante do povo para repelir as tentativas de invasão do território venezuelano e a disciplina revolucionária que a população apresenta para superar os atos de sabotagem (como o apagão) sem cair no caos e no enfrentamento generalizado demonstram o grau de organização e politização construído ao longo de duas décadas de processo revolucionário. É apostando nesta mobilização popular, na unidade das Forças Armadas e nas relações internacionais multipolares construídas ao longo de vinte anos, que a Revolução Bolivariana continua resistindo aos ataques imperialistas e construindo um novo tipo de sociabilidade para além das imposições do capital. Bibliografia AMENTA, Núnzio R. A guerra de Hugo Chávez contra o colonialismo . São Paulo. Expressão Popular, 2010. BRUCE, Mariana. Estado e democracia nos tempos de Hugo Chávez (1998-2013) . Rio de Janeiro: FGV, 2016.

FREYTAS, Manuel. “Guerra de Quarta Geração: ‘Aniquilar, controlar ou assimilar o inimigo’”. Via Mundo , 8 out. 2010. Disponível em: https:// www.viomundo.com.br/voce-escreve/aniquilar-controlar-ou-assimilar-oinimigo.html. Acesso em: 1 o jun. 2018. HARNECKER, Marta. Venezuela. Militares junto al pueblo . España: El viejo topo, 2003. KORYBKO, Andrew. Guerras híbridas. Das revoluçõ es coloridas aos golpes . Tradução de Thyago Antunes. São Paulo: Expressão Popular, 2018. MARINGONI, Gilberto. A revolução venezuelana . São Paulo: Editora Unesp, 2009. POLJAK, Ernesto Villegas. Abril golpe adentro . Caracas: Editorial Galac, 2009. Filmes A REVOLUÇÃO não será televisionada. Direção: Kim Bartley, Donnacha O’Briain. Produção: David Power. Irlanda. 2003, 1 DVD. PUENTE LLAGUNO, claves de una masacre. Direção: Ángel Palacios. Produção: Panafilms. Venezuela. 2004. Disponível em: https:// www.youtube.com/watch?v=Gu8RzkOT1rg. Acesso em: jun. 2018. Sites Conselho Nacional Eleitoral (Venezuela) – Folha de S.Paulo – O Globo – Hugo Chávez (blog) – Instituto Nacional de Capacitação e Educação Socialista (Venezuela) – Opera Mundi – TeleSUR – Youtube – ⁶⁸ Doutor em Políticas Públicas pelo programa de Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPFHUERJ). Professor de História e historiador. Secretário-executivo da Rede de Economia Global e Desenvolvimento Sustentável da Unesco (REGGENUNESCO). ⁶⁹ “La última revolución del siglo XX e primera del XXI”. Disponível em: http://blog.chavez.org.ve/temas/discursos/primera-xxi/. Acesso em: jun. 2018.

⁷⁰ Para um rico panorama da história venezuelana no século XX conferir Gilberto Maringoni. A revolução venezuelana (São Paulo: Editora Unesp, 2009). Boa parte das informações históricas aqui apresentadas foram retiradas deste trabalho. Também foram utilizados alguns sites de notícias que estão listados ao final do artigo. ⁷¹ Ao mesmo tempo, os Estados Unidos apoiavam as ditaduras de Fulgencio Batista em Cuba, Anastacio Somoza na Nicarágua, Rafael Trujillo na República Dominicana, entre outras. Essa era uma ação coordenada do governo norte-americano para reduzir o grau de autonomia dos países latino-americanos após a Segunda Guerra Mundial e satelitizá-los no contexto da Guerra Fria. ⁷² Puntofijo era o nome da chácara em Caracas pertencente a Rafael Caldera, líder da AD, onde o Pacto foi firmado. ⁷³ Gilberto Maringoni. A revolução venezuelana , p. 62. ⁷⁴ Devido aos dois choques do petróleo, em 1973 (Guerra dos Seis Dias) e 1979 (Revolução Iraniana). ⁷⁵ Gilberto Maringoni. A revolu ção venezuelana , p. 65. ⁷⁶ Ibidem , pp. 67-68. ⁷⁷ Ibidem , p. 70. ⁷⁸ Marta Harnecker. Venezuela. Militares junto al pueblo (España: El viejo topo, 2003). ⁷⁹ Vídeo disponível no Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=VBUopYeVfQ. Acesso em: jun. 2018. ⁸⁰ A legislação venezuelana proibia a utilização de símbolos pátrios, como o nome de Bolívar, no nome de agrupamentos políticos, por isso a mudança de nome. A ideia de Quinta República mostra novamente a posição de Chávez de marcar uma ruptura na história venezuelana, já que o país historicamente tivera quatro períodos republicanos até aquele momento. ⁸¹ Frente de partidos que apoiavam o governo, apresentando-se também como coligação eleitoral. ⁸² Disponível em: http://www4.cne.gob.ve/web/normativa_electoral/ constitucion/indice.php. Acesso em: jun. 2018. ⁸³ Importante salientar que não existe na Constituição venezuelana o recurso do impeachment, no qual o Legislativo pode retirar do governo o presidente da República (Executivo). Somente a população, por meio do referendo revogatório, pode retirar um governante do cargo, ação que é seguida automaticamente pela convocação de novas eleições. ⁸⁴ Paro significa paralisação, greve. Para não atrapalhar a narração dos fatos dessa sessão, informo que a fonte das informações nesta parte são as seguintes: Ernesto Villegas Poljak. Abril golpe adentro (Caracas: Editorial

Galac, 2009); Núnzio R. Amenta. A guerra de Hugo Chávez contra o colonialismo (São Paulo. Expressão Popular, 2010) e os documentários A revolução nã o será televisionada e Puente Llaguno, claves de una Masacre . ⁸⁵ A Missão continua no governo Maduro e, até o momento (dezembro/2019), já entregou mais de três milhões de apartamentos. Mesmo com a sabotagem e o cerco econômico imposto à Venezuela, o objetivo do governo é zerar o déficit habitacional no segundo governo Maduro (2019-2025). ⁸⁶ “Venezuela: Primer país latinoamericano con 100% pensionados”. Disponível em: https://www.telesurtv.net/news/venezuela-primer-paislatinoamericano-pensionados-20180420-0054.html. Acesso em: jun. 2018. ⁸⁷ Lei Orgânica do Trabalho, Trabalhadores e Trabalhadoras (LOTTT). Disponível em: < inces.gob.ve/wp-content/uploads/2017/04/lot.pdf> Acesso em junho de 2018. ⁸⁸ Originalmente, a Argentina também fazia parte da Telesur. Uma das primeiras medidas do governo neoliberal de Mauricio Macri em 2016 foi retirar o governo argentino da participação no canal e proibi-lo no país. Vale lembrar que Macri é uma das vozes regionais que acusam a Venezuela de ser uma “ditadura”. O governo neoliberal de Lenín Moreno no Equador e o governo golpista boliviano também retiraram do ar a Telesur em seus respectivos países em 2019. ⁸⁹ Ficou famosa a frase de Chávez “Alca al carajo” na Cúpula dos Povos paralela à Cúpula das Américas, onde a proposta da Alca foi derrotada em 2005, na cidade argentina de Mar del Plata. ⁹⁰ Mariana Bruce. Estado e democracia nos tempos de Hugo Chávez (1998-2013) (Rio de Janeiro: FGV, 2016). ⁹¹ Ibidem . ⁹² Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=BKmlHhjMGP0. Acesso em: jun. 2018. ⁹³ Manuel Freytas. “Guerra de Quarta Geração: ‘Aniquilar, controlar ou assimilar o inimigo’”. Via Mundo , 8 out. 2010. Disponível em: https:// www.viomundo.com.br/voce-escreve/aniquilar-controlar-ou-assimilar-oinimigo.html. Acesso em: 1º jun. 2018. ⁹⁴ É bom recordar que o cerco começou no governo Obama, que, por meio de decreto, qualificou a Venezuela como uma “ameaça à segurança nacional dos Estados Unidos”, algo que somente pode ser classificado como cínico. ⁹⁵ “Trump amplia sanções econômicas à Venezuela e atinge petroleira estatal”. O Globo , 25 ago. 2017. Disponível em: https://oglobo.globo.com/ mundo/trump-amplia-sancoes-economicas-venezuela-atinge-petroleiraestatal-21747362. Acesso em: jun. 2018.

⁹⁶ Por exemplo, a possibilidade de venda dos apartamentos da Gran Misón Vivienda Venezuela, entregando-a para o mercado imobiliário. A medida foi impedida pela Suprema Corte. ⁹⁷ “Cronología de ataques de la oposición en Venezuela”. TeleSUR , s.d. Disponível em: https://www.telesurtv.net/multimedia/Cronologia-de-ataquesde-la-oposicion-en-Venezuela-20170608-0061.html. Acesso em: jun. 2018. As ações promovidas pela direita venezuelana claramente se encaixam na estratégia da guerra híbrida, método de desestabilização norte-americano contra seus adversários. Esse método vem sendo utilizado em diversos lugares do mundo na história recente, como Síria, Irã, Ucrânia, Hong Kong, Nicarágua, incluindo os golpes de Estado no Brasil em 2016 e na Bolívia em 2019. Para compreensão de como funciona a guerra híbrida ver Andrew Korybko. Guerras híbridas. Das revoluções coloridas aos golpes (São Paulo: Expressão Popular, 2018). ⁹⁸ “¿Por qué la oposición venezolana no firma el acuerdo definitivo?”. TeleSUR , 7 fev. 2018. Disponível em: https://www.telesurtv.net/news/Porque-la-oposicion-venezolana-no-firma-el-acuerdodefinitivo-20180207-0009.html. Acesso em: jun. 2018. ⁹⁹ “Intervenção militar estrangeira na Venezuela deve ser considerada”. Folha de S.Paulo , 3 já. 2018. Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/ mundo/2018/01/1947693-intervencao-militar-estrangeira-na-venezuela-deveser-considerada.shtml Acesso em: jun. 2018. ¹⁰⁰ Há previsão para que o comércio na Venezuela passe a aceitar Petros como forma de pagamento em larga escala a partir de 2020. ¹⁰¹ O termo não tem o significado pejorativo que possui no Brasil. As milícias bolivarianas são corpos compostos por cidadãos comuns, que recebem treinamento militar e são dirigidos pelas Forças Armadas, e devem entrar em ação e organizar a resistência armada em sua localidade em caso de invasão do país. É uma parte da cidadania armada, mas somente para momentos necessários. Cuba possui sistema semelhante. ¹⁰² O apoio explícito dos governos de direita da América do Sul chegou ao nível de utilização do território brasileiro e colombiano para as tentativas de invasão, além da presença in loco dos presidentes da Colômbia (Ivan Duque) e do Chile (Sebastián Piñera). Trata-se de um capítulo vergonhoso da história da região, num exemplo sem precedentes de vassalagem internacional e desrespeito a um país vizinho que nunca os atacou em toda a história. ¹⁰³ “O ano da Venezuela: em 2019, oposição apostou em golpe e terminou desgastada”. Opera Mundi , 25 dez. 2019. Disponível em: https:// operamundi.uol.com.br/resumo-do-opera-2019/62249/o-ano-da-venezuelaem-2019-oposicao-apostou-em-golpe-e-terminou-desgastada. Acesso em: 29 dez. 2019. Bolívia há doze anos do processo de mudança: desafios, apostas e riscos Rebeca Peralta Mariñelarena ¹⁰⁴

Este artigo tem o objetivo de analisar a experiência do “processo de mudança” ¹⁰⁵ boliviano e se estrutura em três partes. A primeira faz um balanço sobre o governo de Evo Morales desde 2006 até o presente – em termos políticos e econômicos –, com o objetivo de identificar quanto se avançou na concretização do programa do Movimiento al SocialismoInstrumento Político por la Soberanía de los Pueblos, MAS-IPSP, e do sujeito indígena popular. A segunda parte discute a conjuntura política atual e analisa o cenário eleitoral, assim como as possibilidades de que Evo Morales se mantenha no governo em um contexto de importantes transformações na sociedade. E, finalmente, a terceira parte busca refletir sobre os desafios e as alternativas possíveis das forças populares na Bolívia. Balanço há doze anos do governo de Evo Morales Durante décadas a Bolívia ocupou um dos primeiros lugares em desigualdade e pobreza em nível mundial. No começo do século XXI, posicionava-se como um dos países mais desiguais do continente; no ano 2000, inclusive, superou o Brasil e a Colômbia. ¹⁰⁶ Apesar de possuir uma importante riqueza cultural e natural, com abundantes recursos como água, biodiversidade e ecossistemas, os diferentes ciclos econômicos (prata-salitre-borracha-estanho) foram aproveitados pelas elites locais e estrangeiras, deixando as maiorias indígenas numa situação de pobreza e vulnerabilidade maiúsculas. No começo do século XXI, na Bolívia, viveu-se uma crise econômica e política de grandes dimensões, produto da implantação das políticas de Terapia de Choque, assim como das imposições próprias do Consenso de Washington via organismos internacionais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional. A Terapia de Choque foi a metodologia de intervenção do economista norte-americano Jeffrey Sachs aplicada na Bolívia na década de 1980 por Víctor Paz Estenssoro. O objetivo era deter a hiperinflação por meio de um implacável pacote de medidas que incluía a redução do Estado, a “relocalização” de trabalhadores, especialmente da Corporación Minera de Bolívia, Comibol, o aumento da receita tributária graças ao aumento de impostos, o fechamento e a privatização de empresas públicas, a renegociação da dívida externa e a aceitação de empréstimos. A “capitalização” de empresas públicas foi o elemento central da nova política econômica desenhada por Sachs e provocou a desestruturação da matriz produtiva do país, baseada historicamente na mineração. ¹⁰⁷ O resultado foi desastroso. No ano 2003, a pobreza moderada alcançou 66,4 % da população, e a extrema, 39,9 %. ¹⁰⁸ Nesse mesmo ano, a desnutrição crônica em crianças menores de 5 anos chegava a 32%. Os movimentos sociais, principalmente os movimentos indígenas, foram os protagonistas do ciclo de lutas e resistências contra o modelo neoliberal. Eles conformaram a força social que levou Evo Morales à presidência do país no ano 2005. Há doze anos de governo de Morales, o país ostenta, pelo quarto ano consecutivo, a taxa mais alta de crescimento econômico na região, inclusive em um cenário de crise internacional. E não somente isso, a Bolívia é o país

que mais avançou na redução das desigualdades na última década em toda a América Latina. ¹⁰⁹ O crescimento econômico esteve acompanhado de políticas para a redução da pobreza; da fome e da desnutrição; do abandono escolar e da erradicação do analfabetismo. O papel do Estado tem sido determinante nestas questões, por isso é preciso se perguntar: que tipo de transformações é necessário desenvolver em um Estado devastado durante décadas pelas oligarquias políticas e econômicas para reconstruir-se e assumir um papel ativo na economia? E como se redirecionam os recursos do Estado até as maiorias empobrecidas quando isso implica passar por cima de poderes fáticos à escala local e regional? Cabe também se questionar sobre as possibilidades de aprofundamento deste projeto há doze anos de iniciado. O sujeito das transformações na Bolívia Quando se trata de analisar o processo de mudança boliviano, há um elemento central que articula e ordena o resto das partes e nos ajuda a explicar a totalidade. Esse elemento é o sujeito . ¹¹⁰ A partir dele e seu projeto se articulam o Estado, as políticas públicas e a sociedade. Este sujeito contém determinações históricas próprias, muitas delas herdadas de tradições indígenas, que o levam a incursionar no Estado de uma maneira específica, suas ações respondem a um projeto de sociedade em que o comunitário, o coletivo e o público ocupam um lugar central. As transformações que atravessam a Bolívia são de um profundo impacto graças ao redesenho da totalidade política desenvolvido no processo constituinte de 2006-2009, que também foi possível pelas lutas indígenas das décadas passadas. A particularidade das políticas públicas implementadas na Bolívia nos últimos anos é que tem por trás a legitimidade outorgada por uma nova Constituição. A partir destas especificidades, propõe-se analisar o carácter e os efeitos das principais políticas públicas do governo de Evo Morales, destacando dois elementos: primeiro, seu poder democratizador – em termos não somente políticos, mas também econômicos –; segundo, que estas respondam ao projeto de um sujeito político com um horizonte emancipatório. René Zavaleta Mercado, no texto clássico “El Estado en América Latina”, no qual a Bolívia ocupa boa parte de suas reflexões, afirmava que: “O Estado […] contém elementos mais ou menos amplos de consciência, a capacidade de valoração da sociedade e de incursão sobre ela . É capaz de ser ativo no mercado e sua transformação , pelo menos dentro dos limites de suas determinações constitutivas ou de sua natureza de classe”. ¹¹¹ Seguindo Zavaleta, podemos afirmar que o Estado boliviano contém determinações constitutivas em natureza de classe que o levam a incursionar na sociedade e no mercado em função de um programa e de um projeto de um sujeito político não apenas distinto, mas oposto – e que esteve em condição de subalternidade – ao que se impôs durante os 180 anos da República. As transformações na Bolívia avançaram, em primeira instância, em reação a um programa neoliberal, capitalista e ainda colonial, mas também instalaram novas formas do político e modificaram relações econômicas e

sociais que têm impactado positivamente na vida cotidiana das maiorias sociais. Crescimento com equidade As políticas priorizadas no governo de Morales têm a ver fundamentalmente com a diminuição da pobreza e das desigualdades, mas articuladas a um programa soberano de recuperação dos recursos – econômicos, naturais – para as maiorias. Com a nacionalização dos hidrocarbonetos no ano 2006, obtiveram-se os recursos econômicos necessários para a implementação do programa econômico e social do MAS-IPSP. Esta medida marcou o roteiro de uma gestão baseada na recuperação soberana dos recursos estratégicos. Entre as principais vitórias do governo, destaca-se a queda da pobreza moderada em 27% desde o ano 2005 até 2017 e uma redução da pobreza extrema em 19,5% no mesmo período. ¹¹² A diminuição da pobreza se tornou o eixo articulador do programa de governo para 2025, a Agenda Patriótica do Bicentenário – Agenda 2025. A Agenda 2025 se estrutura em treze pilares, que representam as prioridades do governo nacional. Além de se propor erradicar a extremapobreza no ano 2025, busca-se garantir a universalização do direito à saúde, à educação e à alimentação, além da provisão universal de serviços com água, eletricidade, saneamento básico, comunicação e outros, com ênfase na população rural. Destacam-se ainda um pacote de pilares que se centra em políticas de recuperação da soberania – científica, tecnológica, financeira –, a diversificação produtiva e a industrialização dos recursos naturais. Mesmo que os direitos da Mãe Terra figurem em um pilar específico, é também um eixo transversal em toda a Agenda. Aqui está também uma das principais linhas do governo: garantir o cuidado e a preservação da Mãe Terra, quando se estabelece o horizonte da industrialização. O exposto acima é crucial, já que se visa à desmercantilização da natureza, ¹¹³ o que representa outro paradigma, uma aposta pela vida no meio de uma crise que tem sido caracterizada por distintos intelectuais como crise civilizat ória , ¹¹⁴ crise múltipla , ¹¹⁵ crise estrutural do sistema , ¹¹⁶ crise integral, civilizacional e multidimensional ¹¹⁷ e crise sistê mica . ¹¹⁸ Simultaneamente à implementação da Agenda 2025, nos últimos doze anos de governo do MAS, avançou-se na democratização do Estado e da política. Uma democratização que se deu em vários níveis e incluiu os quatro órgãos do Estado: Executivo, Legislativo, Judiciário e Eleitoral. Em seguida, analisaremos este processo. Democratização da política e políticas democratizadoras : o deslocamento das elites tradicionais do Estado Com a vitória eleitoral de um partido indígena em 2005, o Estado se viu irrompido por um novo sujeito que deslocou a rosca , ¹¹⁹ essas velhas elites políticas e econômicas antinacionais. E mesmo que a presença indígena não tenha implicado per se uma mudança substancial na arquitetura estatal, no caso boliviano esse deslocamento esteve articulado com o redesenho de outra institucionalidade: criação dos vice-ministérios de Coordenação com

Movimentos Sociais e Sociedade Civil; Justiça Indígena Originária Camponesa; Coca e Desenvolvimento Integral; Descolonização; e Medicina Tradicional e Interculturalidade. A reengenharia estatal foi acompanhada da incorporação massiva de indígenas, camponeses e dirigentes sociais em toda a nova estrutura. O que Álvaro García Linera denominou como uma “invasão social sobre o Estado”. ¹²⁰ O incremento de membros de organizações indígenas, camponesas e sindicais no Estado é relevante porque significa tanto a participação direta das nações e povos indígenas originários camponeses no exercício de poder político como a democratização do Estado. Nos últimos doze anos, também se instalaram diversos mecanismos de participação e de consulta às organizações indígenas, sociais e populares – por exemplo, as cúpulas e os gabinetes sociais ¹²¹ – que ampliaram o espectro do social nos espaços tradicionalmente exclusivos do Estado. Evidentemente, por si mesmas e de maneira isolada, as pessoas em cargos dentro do Estado não geram uma mudança na institucionalidade, mas um gabinete com uma composição majoritária de trabalhadores, camponeses, dirigentes indígenas ou sindicais pode dirigir os recursos econômicos e humanos do Estado para políticas focadas na redução das desigualdades – de classe, gênero e raça – e pode potencializar a ampliação dos direitos das maiorias. Democratização do poder legislativo Se revisarmos a composição do legislativo, veremos que, até o ano 2002, a representação indígena não era significativa. A partir do ano 2006, experimentou-se uma mudança que derivou em transformações qualitativas no tipo de leis aprovadas e também representou uma democratização profunda de suas estruturas. Em 1997, de um total de 130 deputados, apenas 12 eram indígenas. Em 2002 – em um contexto de intensas mobilizações indígenas, não somente na Bolívia, mas em boa parte da América Latina –, essa cifra praticamente duplicou, chegando a 23 deputados indígenas, um deles foi o próprio Evo Morales. No ano 2013, o número se elevou a 41, alcançando a mais alta representatividade desse setor na Câmara de Deputados na história do país. Por outra parte, ao incorporar parlamentares de circunscrições indígenas se fortaleceu a democracia representativa, mas, de forma ainda mais importante, fortaleceu-se a democracia comunitária, já que os povos indígenas exerceram seus usos e costumes para eleger seus representantes perante a Assembleia Legislativa Plurinacional. Paridade e alternância Segundo um relatório da Comissão Interamericana de Mulheres da Organização de Estados Americanos, ¹²² a Bolívia é o país com a proporção mais alta de mulheres parlamentares na América Latina e um dos dois únicos países do mundo que supera a meta do 50%, com 53,2% em junho de 2016.

Como pode-se observar no Quadro 1, no ano 2015, a Câmara dos Deputados estava composta por 66 deputados homens e 64 deputadas mulheres; enquanto o Senado contou com vinte homens e dezesseis mulheres, fechando a diferença de décadas anteriores e alcançando paridade de gênero. Desde o ano 2006, registraram-se avanços importantíssimos com respeito à equidade de gênero. Primeiramente, na nova Constituição Política do Estado, foi incorporado, dentro dos Direitos Políticos, o direito de todas as mulheres a “participar livremente na formação, no exercício e no controle do poder político” . ¹²³ Da mesma forma, o Órgão Eleitoral Plurinacional aprovou regulamentos para as eleições gerais de 2014 e as regionais de 2015 que estabelecem as diretrizes para garantir os princípios de equivalência de condições e paridade de gênero na apresentação de listas de candidatos e candidatas ao Senado, à Câmara dos Deputados, às assembleias departamentais e regionais e aos conselhos municipais. Este processo tem transformado a esfera política a favor das mulheres bolivianas, mas na esfera econômica também se registram transformações. Para citar apenas um exemplo, a concessão de títulos de propriedade de terras tem o seguinte comportamento: em 1995, do total de proprietários de terras, apenas 9,8% eram mulheres; no ano 2016, a cifra se elevou a 46%, segundo dados do Ministério de Desenvolvimento Rural e Terras. Hoje, as mulheres, sobretudo as da área rural, são proprietárias de suas terras. Mais adiante, abordaremos os efeitos positivos das transferências de renda a mulheres gestantes. Por enquanto, basta dizer que as políticas focadas em garantir a equidade de gênero desenvolvidas no governo de Morales têm tido impactos concretos na dimensão política, material e simbólica, posto que geram uma base de segurança jurídica e econômica para as mulheres bolivianas e significam uma importante redistribuição do poder político. Ampliação da democracia A Bolívia é hoje uma referência em nível regional em termos de aprofundamento democrático pelo reconhecimento e pela prática da democracia intercultural, cujo eixo é a complementação de distintas tradições democráticas: a direta e participativa, a representativa e a comunitária. A democracia intercultural reconhece o exercício complementário e em igualdade de todas elas, segundo a Lei do Regime Eleitoral. A democracia intercultural boliviana se sustenta na existência das nações e povos indígenas originários camponeses e das comunidades interculturais e afro-bolivianas que conformam o Estado Plurinacional da Bolívia, com diferentes formas de deliberação democrática, distintos critérios de representação política e o reconhecimento de direitos individuais e coletivos. ¹²⁴ A democracia comunitária tem a particularidade de que se exerce “mediante o autogoverno, a deliberação, a representação qualitativa e o exercício de direitos coletivos” ¹²⁵ e não requer normas escritas para seu exercício. Existe um forte vínculo entre este tipo de democracia e os direitos coletivos – à identidade cultural, à territorialidade, ao meio ambiente, à consulta

prévia sobre o uso dos recursos naturais, à propriedade e à titularidade coletiva das terras, ao autogoverno e à livre determinação –, posto que estes somente podem ser exercidos por uma comunidade. Mecanismos para o aprofundamento da democracia Segundo um relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD, 2004), até o ano 2002, na América Latina, apenas três países não tinham mecanismos de democracia direta oficiais no âmbito nacional, como o plebiscito, o referendo e a revogação de mandato, um deles era a Bolívia. Em 2004, incorporou-se o referendo à democracia boliviana, e, no período 2006-2016, aconteceram 47 referendos tanto de alcance nacional como departamental, municipal, regional e de autonomias indígenas, originárias, camponesas. Também se incorporou o mecanismo de revogação de mandato, aplicável ao cargo de presidente, vice-presidente, governador e prefeito. Assim como a consulta prévia a nações e povos indígenas anterior à tomada de decisões a respeito de obras ou projetos relacionados com a exploração dos recursos naturais em seus territórios. Até aqui têm sido descritas algumas das transformações produzidas nos diferentes órgãos da estrutura estatal devido à presença de um novo sujeito, o que tem derivado na sua democratização. Desde essa nova composição social do Estado, foram geradas as políticas econômicas e sociais que serão examinadas a seguir. Programa econômico, entre rupturas e desafios A maioria da renda do país provém do aproveitamento dos recursos naturais, principalmente dos hidrocarbonetos e os minerais. Constitucionalmente, essa renda deve ser reintegrada à sociedade com ênfase nas nações e povos indígenas dos territórios onde há recursos nãorenováveis. A partir do ano 2009, o sistema econômico boliviano se definiu como social, comunitário e produtivo . É um modelo plural que articula as diferentes “formas de organização econômica sobre os princípios de complementariedade, reciprocidade, solidariedade, redistribuição, igualdade, seguridade jurídica, sustentabilidade, equilíbrio, justiça e transparência”. ¹²⁶ E reconhece as seguintes formas econômicas: privada, estatal, cooperativa e comunitária. Aqui podem ser observados alguns elementos em oposição aos preceitos da economia neoliberal, começando pelo fato de que se recupera o papel ativo do Estado no mercado e na economia e, além disso, contrapõe-se com um dos desígnios presentes no Consenso de Washington que visa promover a desregulação como uma forma de garantir a competência capitalista. Na Bolívia, a partir de 2006, o Estado recuperou tanto sua capacidade produtiva como sua capacidade regulatória, inclusive com os limites que o sistema capitalista internacional lhe impõe. O crescimento econômico a que se fez referência no início deste artigo, junto à diminuição da extrema

pobreza e a redução das desigualdades, deve-se à recuperação dos recursos estratégicos por parte do Estado e a implementação de uma ampla política de redistribuição da riqueza via transferências de renda e ajudas sociais ( bonos ). Entre os principais bonos que concede o governo estão: o bono para as crianças em idade escolar (Juancito Pinto), o bono para mulheres em estado de gestação ¹²⁷ (Juana Azurduy) e o destinado a pessoas da terceira idade (Renta Dignidad). Entre os subsídios, podemos mencionar o pré-natal e o da lactação. ¹²⁸ Se estima que até o ano 2015 se beneficiaram 4,8 milhões de pessoas com algumas destas ajudas, ou seja, 45% da população foi favorecida por um destes benefícios. ¹²⁹ Nacionalizações e soberania Na Bolívia, o modelo neoliberal entrou de forma plena em 1985 com uma agressiva política de privatizações das empresas públicas, por isso uma das primeiras medidas tomadas pelo presidente Morales foi a nacionalização dos hidrocarbonetos que estavam em mãos das empresas estrangeiras Repsol, Enron, Shell e outras. Seguiu a nacionalização da água. Na mineração, reverteram-se os direitos das empresas Glencore, South American Silver e Jindal Steel. Em telecomunicações, aconteceu o mesmo com a empresa Telecom. E, em energia elétrica, foram nacionalizadas mais de três empresas transnacionais. A nacionalização dos hidrocarbonetos direcionou 82% do valor da produção para o Estado, deixando 18% para as companhias privadas. Esta nova relação Estado-empresa significou um incremento importante de ingressos para o Estado, basta observar os seguintes dados: em apenas um ano, 2014, a renda petroleira foi de US$ 5,489 milhões, superando o acumulado em 21 anos de governos neoliberais (Informe de Gestión, 2016). Boa parte dos recursos obtidos pela recuperação dos hidrocarbonetos se destina às universidades, aos municípios e ao Fundo de Desenvolvimento Indígena. A reativação das empresas públicas recuperadas a partir de 2006 respondeu ao objetivo de chegar a lugares onde não chegaram as privadas durante o neoliberalismo, e não competir com estas. Por exemplo, a empresa pública de eletricidade chegou a zonas que careciam do serviço priorizando a área rural, que passou de 33% de cobertura elétrica em 2005 a 73% em 2016. Além das nacionalizações, ao falar do papel ativo do Estado na economia e no mercado, referimo-nos aos seguintes aspectos: incremento sustentável do investimento público – foi incrementado dez vezes o investimento em 2016 em relação a 2005 –, ao incremento do salário-mínimo nacional em 368% de 2005 a 2017; à reativação da demanda interna e à direção da economia e da produção. Desmercantilização e ampliação do público

Um dos elementos mais potentes do programa econômico de Evo Morales tem a ver com o reconhecimento dos direitos individuais, coletivos e fundamentais, entre os que figuram alguns que antes eram considerados bens ou serviços. Trata-se de outro sentido do público, de direitos e não de mercadorias. A recuperação do valor de uso (Echeverría, 1995) ou a desmercantilização (Santos, 2010; Harvey, 2017) são, sem dúvida, a ruptura econômica mais importante realizada na Bolívia durante a última década. Isto acontece porque se propiciam espaços nos quais a lógica de reprodução do capital é interpelada por outra na qual prevalece o valor de uso acima do valor de troca – pelo menos de maneira parcial –; aqui se encontram latentes elementos para uma mudança de paradigmas, como o do Bem Viver. Apontamos alguns exemplos a seguir. Na educação O gasto em educação cresceu cinco pontos percentuais do PIB no período 2005-2016, o que repercutiu positivamente na diminuição da taxa de analfabetismo em pessoas com mais de 15 anos, que passou de 13% no ano 2001 a 2,8% em 2016 (Informe de Gestión, 2016). Como dissemos anteriormente, uma das principais políticas do governo foi a concessão do bono Juancito Pinto com o objetivo de reduzir o abandono escolar, incrementar a matrícula e a finalização do ano escolar. Trata-se de um programa de transferência monetária dirigido a crianças de escolas públicas de nível primário e secundário. ¹³⁰ Os recursos provêm de empresas públicas, principalmente Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB), Empresa Nacional de Telecomunicaciones (Entel), Boliviana de Aviación (BOA) e a Corporación Minera de Bolivia (Comibol). No ano 2015, o bono alcançou mais de 2 milhões de beneficiários. Este programa tem um alcance nacional e uma cobertura urbana e rural em todos os municípios do país. Graças à sua implementação, a taxa de assistência escolar aumentou 3,2 pontos percentuais do ano 2006 a 2016; e a taxa de reprovação em educação primária caiu de 6,37 %, no ano 2006, a 1,43 % no ano 2016. Por meio do incentivo à permanência e à finalização dos estudos das crianças, esta ajuda constitui um mecanismo que rompe a reprodução intergeracional da pobreza. ¹³¹ Em saúde Apesar da saúde ser uma das áreas em que tem-se registrado maiores dificuldades, é preciso lembrar de alguns dos avanços alcançados, entre os quais se destaca a queda de 30% na taxa de mortalidade materna do ano 2003 a 2011. Ao mesmo tampo, a taxa de mortalidade infantil se reduziu a mais da metade do ano 2003 a 2016. ¹³² Por outro lado, a taxa de desnutrição crônica em crianças menores de 5 anos foi reduzida até a metade, passando de 32% no ano 2003 a 16% em 2016. ¹³³ A respeito disso há um dado interessante, o consumo de leite por pessoa na Bolívia aumentou 222% nos últimos 12 anos. Um dos fatores que possibilitou este fato é o Subsídio Pré-Natal Universal que garante uma dotação de leite às mulheres em estado de gestação. Desde nossa perspectiva, estamos frente a uma política clara de desmercantilização , já que o subsídio pré-natal tem

tirado do mercado os alimentos para levá-los como valores de uso a mulheres gestantes que não têm plano de saúde. Na mesma linha, segundo dados da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, ¹³⁴ a Bolívia baixou a proporção de pessoas subnutridas de 38% em 1990 a 15,9% em 2015, como efeito dos programas de apoio ao campo para a produção de alimentos e ao incremento no acesso de famílias de escassos recursos econômicos a estes produtos. Serviços básicos A política “gás primeiro para os bolivianos” tem o objetivo de incrementar o consumo interno de gás natural. Para tanto, instalam-se linhas de distribuição subvencionadas pelo Estado que levam o recurso aos lares bolivianos. Até 2005, este serviço chegava apenas a 2,9% da população, em 2016 chegou a 36%. Na cidade de El Alto, epicentro da Guerra do Gás, ¹³⁵ este serviço chegou, no ano 2017, a 85% da população. Após a nacionalização das multinacionais da água, o governo destinou importantes recursos para garantir o acesso a este recurso e ao saneamento básico. A cobertura de conexões de água potável se incrementou em mais de treze pontos percentuais do ano 2005 ao 2017. No ano 2010, a Bolívia alcançou, perante a Organização das Nações Unidas, o reconhecimento da água potável e o saneamento como direito humano. Estas políticas respondem à memória das Guerras da Água. ¹³⁶ Em energia elétrica, após a nacionalização das multinacionais que operavam no país, implementaram-se políticas focadas em incrementar o acesso da população à eletricidade, fundamentalmente na área rural. Em 2005, somente 33% da população rural tinha acesso a este serviço, com a recuperação da geração elétrica pelo Estado, a cobertura na área rural chegou a 73% no ano 2016 (Informe de Gestión 2016). Depois deste panorama, estamos em condições de voltar às perguntas feitas no início do texto e afirmar que a gestão econômica realizada na Bolívia desde 2006 parte da recuperação do papel ativo do Estado na economia e sua capacidade para redirecionar os recursos a favor da sociedade e não do mercado, tudo isso a partir da recuperação da soberania. O novo modelo econômico boliviano em síntese O governo de Evo Morales leva a economia do país sob diretrizes de recuperação soberana dos recursos naturais e redistribuição da riqueza. A nacionalização dos recursos naturais foi fundamental para gerar uma base material com a qual ressarcir as desigualdades herdadas do período neoliberal por meio da transferência de renda a setores vulneráveis. Contudo, a nacionalização não somente significou soberania econômica e maior equidade, mas também soberania política.

As políticas de redistribuição de renda afetaram positivamente os mais pobres do país. A Bolívia conseguiu reduzir a diferença de desigualdade de maneira importante: no ano 2005, os 10% mais ricos tinham uma renda 127 vezes maior que os 10% mais pobres da população; para 2016, a diferença se reduziu 37 vezes. A redistribuição de renda no período 2006-2016 se expressou também no incremento dos investimentos públicos, na construção de obras de infraestrutura que beneficiaram de maneira direta a população e no aumento salarial. Todos estes aspectos dinamizaram o mercado interno, gerando não somente crescimento econômico, mas também maior equidade. Por outra parte, a redistribuição da riqueza esteve acompanhada da redistribuição do poder político, que se deu graças ao deslocamento das elites políticas e econômicas do Estado. Ou seja, o Estado se democratizou tanto no nível de suas estruturas como de sua composição social. Esta democratização foi múltipla: em termos de classe, deslocamento de elites; de raça, indigenização do Estado; de gênero, paridade e alternância. Conjuntura política em 2018 Todos as mudanças antes descritas geraram uma nova Bolívia. Nos últimos doze anos, mais de 1,5 milhão de pessoas saíram da pobreza extrema e quase 3 milhões começaram a fazer parte da classe média. Porém, com a ampliação de direitos, cresceram as demandas destes setores emergentes. Mesmo que o Estado tenha recuperado seu protagonismo sobre o mercado, este se expandiu e, com ele, as ideias de “individualismo”, “empreendedorismo”, “liberdade” e “democracia”. O que também se explica pelo crescimento da migração do campo até as cidades capitais, com a consequente ruptura de vínculos comunitários. Tudo isto tem gerado uma menor autoidentificação com os povos indígenas (no censo de 2001, 61% da população se considerava pertencente a algum povo indígena, enquanto que no censo de 2012 esta porcentagem caiu para 41,7%). A nova Bolívia que emergiu graças ao programa político-econômico de Evo Morales e do MAS-IPSP, com altas taxas de crescimento, redução de desigualdades, estabilidade política e modernização do Estado, é radicalmente distinta do contexto no qual Morales ganhou as eleições no ano 2005. Uma boa parte da sociedade, hoje, não se sente interpelada por um projeto dirigido por e para os povos indígenas. Ainda mais, para muitos jovens que votarão pela primeira vez em outubro de 2019, Evo Morales já não representa o novo, mas o status quo. Isto nos ajuda a compreender a derrota que sofreu o MAS no ano 2016, no referendo sobre a reforma da Constituição para habilitar Evo Morales a outra reeleição: ganhou o “não” por uma margem estreita. Essa foi a única derrota de Evo nas urnas desde o ano 2005; não obstante, obteve 49% dos votos, o que representa uma força política bastante sólida, mesmo que na derrota. Mas também demonstra um desgaste natural, após uma década no governo. Foi amplamente documentado que o resultado eleitoral contrário a Morales respondeu a uma estratégia de campanha muito bem articulada com tons de

guerra suja com fake news incluídas e o manuseio mais vil da vida privada do presidente para manipular os sentimentos da população boliviana. Seja como for, o referendo de 21 de fevereiro de 2016 representou a oportunidade que as forças mais conservadoras do país esperavam para rearticular-se, dessa vitória se alimentaram para criar “plataformas cidadãs” contra a participação de Morales, legitimadas em novembro de 2017 pelo Tribunal Constitucional graças a um recurso interposto pelo MAS-IPSP. ¹³⁷ Junto com as “Plataformas Cidadãs” reemergiu o racismo em departamentos como Santa Cruz, e, no último ano, germinou um clima de assédio contra o presidente e o vice-presidente em atos públicos, em paralelo ao discurso de “renovação política” e luta contra a “ditadura” de Evo Morales. Quando esta conjuntura prognosticava um possível fim da era do MAS-IPSP nas próximas eleições presidenciais, surgiu um elemento que moveu o tabuleiro e reconfigurou o cenário político, hoje incerto: a aprovação da lei de organizações políticas que contempla a realização, pela primeira vez na Bolívia, de eleições primárias para eleger as candidaturas do binômio presidencial. Com isso, adiantou-se a definição de candidatos a presidente e vice-presidente por cada competição eleitoral, aspecto que entorpeceu a possibilidade de uma candidatura única contra Evo Morales e seu vicepresidente, Álvaro García Linera. Além disso, os tradicionais partidos políticos do período neoliberal postularam velhos personagens que não representam de forma alguma uma mudança ou renovação política, como estava sendo exigida ao MAS. ¹³⁸ E o candidato com maiores possibilidades de enfrentar Morales, o ex-presidente Carlos Mesa, desprezou uma grande aliança opositora e optou por outro velho político como seu acompanhante de fórmula, uma arriscada estratégia que pode consolidar outra vitória de Morales. Para que isto aconteça, o MAS-IPSP deverá ganhar no primeiro turno, pois ir para o segundo turno seria fatal. O movimento também tem o desafio de obter os dois terços no Legislativo, caso contrário, uma eventual gestão de Morales no período 2020-2025 se veria seriamente obstaculizada. Para além dos candidatos, hoje em dia não existe uma alternativa programática ao MAS, o programa da dispersa oposição se reduz ao antievismo . Veremos se isso será suficiente para derrotar uma figura que tem demostrado saber governar, brindar o país com estabilidade política e crescimento econômico e que garante, no caso de perder a eleição, ser uma força ativa na oposição. Desafios e alternativas Evidentemente, em mais de dez anos de governo do presidente Evo Morales, combateu-se a desigualdade e a pobreza geradas pelo neoliberalismo, inclusive ensaiando políticas de desmercantilização . Porém estas não conseguiram quebrar o discurso capitalista focado na satisfação individual mediante o consumo de mercadorias. É preciso não esquecer que o neoliberalismo é mais do que um programa econômico e político, para a sua realização e manutenção requer deslizar-se através dos dispositivos produtores de subjetividade . ¹³⁹ Esses dispositivos não têm sido disputados completamente ainda, e a racionalidade neoliberal continua em pé. Pelo

contrário, na última década, o mercado ganhou terreno no imaginário das novas classes médias. Todavia, nos limites estão também os desafios, e o sujeito político que propiciou as transformações na Bolívia, que democratizou o Estado e a sociedade mais desigual de décadas passadas, tem de fronte a possibilidade de criar essa outra subjetividade. Nos últimos dez anos, temos alcançado uma Bolívia mais equitativa, mais digna, graças às políticas públicas do governo do MAS-IPSP. Tem se gerado melhores condições materiais para a equidade, e agora é preciso se perguntar se tudo o que foi conseguido é suficiente e se estas conquistas são irreversíveis. Consideramos que, em definitivo, estas medidas não esgotam o horizonte emancipatório do sujeito político que produziu o processo de mudança na Bolívia, tampouco representam uma superação do capitalismo nem constituem um período de transição até o socialismo – nem em sua vertente comunitária. Mas também não consideramos que pretendam sê-lo. Estas políticas se inscrevem em um processo de recuperação da dignidade e do estabelecimento das condições mínimas para a reprodução da vida das maiorias empobrecidas durante o neoliberalismo. As políticas analisadas formam parte de um programa mínimo de condições materiais, mas também simbólicas, que têm colocado as bases para o começo de variados projetos emancipatórios. E o pleno desenvolvimento destes não depende nem podem depender do Estado. Todavia, em respeito às complexidades desta nova Bolívia e suas classes médias emergentes, cabe introduzir uma nuance, já que estas jogaram um determinante nas vitórias eleitorais do MAS por maioria absoluta em 2005, 2010 e 2014. Mesmo que nos países da região haja uma classe média “protótipo” – branca e ilustrada –, na Bolívia, a classe média emergente tem uma forte raiz no mundo indígena e popular, por isso seria um erro do atual governo vê-la como o inimigo e a combater por traição. Neste cenário está um dos desafios para as forças populares do país, disputar o sentido comum destes novos setores, interpretar suas aspirações e lhes propor um futuro. Outro dos desafios que se enfrentará no processo de mudança na Bolívia tem a ver com consolidar os êxitos alcançados e aprofundar o projeto político popular. E isso está indefectivelmente ligado à reeleição de Evo Morales. Sem dúvida, o MAS-IPSP não construiu novas lideranças, mas tampouco o fizeram nem a direita nem a esquerda mais pura, o que demostra que não é um limite próprio do MAS, nem de Evo Morales, mas um limite histórico presente em todos os países de nossa América. Construir lideranças não é uma tarefa fácil. Tampouco existe, por enquanto, um projeto político, social, de governo e Estado que supere ao do governo do MAS-IPSP, o que não significa que não possa existir. Não obstante, os projetos não se constroem sozinhos, requerem força social, sujeitos, estrutura, e a força coletiva com maior capacidade de mobilização e organização continua apoiando Evo. O desenlace das eleições de outubro de 2019 é incerto, a única certeza é que os projetos de governo que surgirem daqui em diante entrarão para disputar apoios no marco de uma gramática política já consolidada na

sociedade, caracterizada pela recuperação dos recursos naturais estratégicos pelo Estado, a redistribuição da riqueza e a diminuição das desigualdades, a capacidade regulatória do Estado na economia e, sobretudo, o reconhecimento da plurinacionalidade do país e o protagonismo dos povos indígenas como atores políticos em todos os espaços de tomada de decisões. Uma gramática que instalou o sujeito político, as nações e os povos indígenas originários camponeses na Constituição de 2009 e o próprio Evo Morales e seu governo. Apêndice Este artigo foi escrito a finais de 2018, um ano antes do golpe de Estado de 10 de novembro que derrocou o presidente constitucional da Bolívia, Evo Morales Ayma. No texto, foram analisadas algumas das políticas implementadas em mais de uma década de governos do MAS-IPSP e foram apontadas algumas das complexidades do cenário eleitoral de 2019. Tudo isso pensado no marco da vigência do “Estado de direito”, nunca se prefigurou que o projeto social das maiorias seria interrompido, de forma violenta, por um golpe cívico-militar. O golpe de Estado, que deixou um rastro de mortes e perseguições, avança com o desmantelamento das conquistas do processo de mudança. No primeiro trimestre do governo, de fato, registra-se um forte ataque ao aparato produtivo – que emula a Terapia de Choque da década de 1980 –, no marco de uma política de destruição das empresas do Estado em setores estratégicos (comunicações, transportes, agroindústria e recursos estratégicos como o lítio e o gás). Em termos de gasto público, há uma clara tendência a priorizar recursos públicos em segurança e defesa, em prejuízo do investimento em serviços de primeira necessidade. Há uma semana do golpe, o governo de fato aprovou um Decreto que outorga recursos adicionais (US$ 5 milhões) para o equipamento das Forças Armadas. ¹⁴⁰ Dias depois de perpetrar os Massacres de Sacaba e Senkata, ¹⁴¹ aprovou outro para eximir de responsabilidade penal os membros das Forças Armadas que realizem tarefas “para o reestabelecimento da ordem interna e estabilidade pública”. ¹⁴² A presença militar é a garantia para a “paz social” que requer o atual governo para realizar as eleições de 3 de maio de 2020. O programa neoliberal voltou à Bolívia recarregado e aceito pela maquinaria militar. A perseguição política contra Evo Morales e seu gabinete não tem limites. Até agora, um ex-ministro está preso e pelo menos outros cinco têm ordens de detenção, acusados de delitos como “terrorismo” e “sedição”. Sete ex-altas autoridades estão asiladas na Embaixada do México em La Paz, sob um assédio permanente que não se experimentou nem nas piores ditaduras da Doutrina de Segurança Nacional. Dois asilados foram detidos e maltratados pela polícia e grupos paramilitares quando se dispunham a sair do país com salvo-condutos na mão, emitidos pelo próprio governo de fato. O objetivo é claro: desarticular toda possibilidade de recuperação do governo por parte do MAS-IPSP, a partir da militarização do país, da perseguição de militantes e da judicialização da diligência do MAS-IPSP. Os impactos que o golpe de Estado terá na Bolívia e na região, em termos econômicos, sociais e políticos ainda não foram avaliados. À violência

política se soma a violência simbólica mais vil, o ressurgimento aberto do racismo e do classismo. O Estado e a administração pública de um país com maiorias indígenas está se embranquecendo novamente, ao deslocar os povos e nações originárias do lugar protagonista que ganharam com suas lutas históricas. As feridas abertas pelo golpismo – com centralidade militar e policial – não serão fechadas por nenhum processo eleitoral, muito menos com um desenhado sob medida pelos que hoje ocupam o Estado. O MAS-IPSP, após a proscrição de Evo Morales e Álvaro García Linera, está prestes a disputar as eleições presidenciais com dois ex-ministros do governo de Evo e tem uma preferência importante segundo as pesquisas de intenção de voto difundidas em meios locais. Não obstante, a disputa será desigual, e o mais difícil será reconstruir um país que se atreveu a romper paradigmas e avançar em um projeto de sociedade diferente daquele marcado pelo modelo hegemônico. Esse foi o pecado da Bolívia, por isso voltaram com a espada e a cruz, outra vez, para nos disciplinar e colonizar. Não conseguiram, não conseguirão. Bibliografi a ALEMÁN, Jorge. Horizontes neoliberales en la subjetividade . Buenos Aires: Grama, 2016. BARTRA, Armando. “La gran crisis”. Revista Venezolana de Economía y Ciencias Sociales , Caracas, Universidad Central de Venezuela, v. 15, n. 2, mayo-ago. 2009. BENSAÏD, Daniel. “La crisis capitalista: apenas un comienzo”. Memoria , México, n. 236, jun.-jul. 2009. BORÓN, Atilio. “De la guerra infinita a la crisis infinita”. Memoria , México, n. 236, jun.-jul. 2009. CECEÑA, Ana Esther. La guerra por el agua y por la vida. Cochabamba: una experiencia de construcción comunitaria frente al neoliberalismo y al Banco Mundial . Cochabamba: Coordinadora de Defensa del Agua y de la Vida, 2004. DIERCKXSENS, Wim. “La crisis actual como crisis civilizatoria”. Herramienta , Buenos Aires, 2008. Disponível em: http:// www.herramienta.com.ar/autores/dierckxsens-wim. Acesso em: 20 jan. 2017. GARCÍA LINERA, Álvaro et al. Memorias de octubre . (La Paz: Muela del Diablo/Comuna, 2004. __. “Estado, revolución y construcción de hegemonía”. Conferencia inaugural en el VI Foro Internacional de Filosofía, Venezuela, 28 nov. 2011. ORELLANA, Alberto García et al. La guerra del agua. Abril de 2000: la crisis de la política en Bolivia . La Paz: Pieb, 2003.

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¹¹¹ René Zavaleta. “La formación de las clases nacionales”. In: La formación de la conciencia nacional , (Montevideo: Marcha, 1967). ¹¹² INE, Encuesta de Demografía y Salud . ¹¹³ A Lei Marco da Mãe Terra e Desenvolvimento Integral para Viver Bem considera a Mãe Terra como “sujeito coletivo de interesse público” (capítulo II, art. 4). ¹¹⁴ Wim Dierckxsens. “La crisis actual como crisis civilizatoria”. Herramienta , Buenos Aires. Disponível em: http://www.herramienta.com.ar/autores/ dierckxsens-wim. Acesso em: 20 jan. 2017. ¹¹⁵ Armando Bartra. “La gran crisis”. Revista Venezolana de Economía y Ciencias Sociales , Caracas, Universidad Central de Venezuela, v. 15, n. 2, mayo-ago. 2009. ¹¹⁶ István Mészáros. “La crisis que se despliega y la relevancia de Marx”. Herramienta . Disponível em: http://www.herramienta.com.ar/forocapitalismo-en-trance/la-crisis-que-se-despliega-y-la-relevancia-de-marx. Acesso em: 4 maio 2017. ¹¹⁷ Atilio Borón. “De la guerra infinita a la crisis infinita”. Memoria , México, n. 236, jun.-jul. 2009. ¹¹⁸ Daniel Bensaïd. “La crisis capitalista: apenas un comienzo”. Memoria , México, n. 236, jun.-jul. 2009; Eric Toussaint. “¿Qué crisis?”. Rebelión , 4 dic. 2008 . Disponível em: http://www.rebelion.org/noticia.php?id=76940. Acesso em: 4 dez. 2017. ¹¹⁹ René Zavaleta. “La formación de las clases nacionales”. ¹²⁰ Álvaro García Linera. “Estado, revolución y construcción de hegemonía”. Conferencia inaugural en el VI Foro Internacional de Filosofía, Venezuela, 28 nov. 2011. ¹²¹ As cúpulas e gabinetes sociais são espaços onde o presidente, o vicepresidente, o gabinete ministerial e organizações sociais e indígenas estabelecem acordos sobre determinados aspectos de políticas públicas e gestão. Também se realizam audiências presidenciais com movimentos e organizações; no período 2006-2016 estas chegaram a 5.889. Em contraste, durante o período 1985-2005 unicamente se registraram 59 audiências, segundo dados do Relatório de Gestão 2016. ¹²² “OEA: Bolivia tiene la tasa más alta de mujeres parlamentarias”. Cambio , 19 jul. 2017. Disponível em: https://issuu.com/cambio2020/docs/ edicion_impresa_19-07-17. Acesso em: 22 jul. 2020. ¹²³ Asamblea Legislativa Plurinacional. Constitución Política del Estado Plurinacional . Gaceta Oficial de Bolivia , La Paz, 2009, art. 26. ¹²⁴ Asamblea Legislativa Plurinacional. Ley del Régimen Electoral . Gaceta Oficial de Bolivia , La Paz, 2010.

¹²⁵ Ibidem , art. 10. ¹²⁶ Asamblea Legislativa Plurinacional. Constitución Política del Estado Plurinacional , art. 306. ¹²⁷ Destinado a mulheres gestantes e crianças menores de 2 anos que não tenham plano de saúde. O valor do bono é de 1.820 bolivianos e está condicionado ao cumprimento de quatro controles pré-natais, parto institucional e controle pós-parto, assim como a doze controles bimensais de saúde às crianças menores de 2 anos. ¹²⁸ O subsidio pré-natal consiste na entrega de um valor mensal equivalente a um salário-mínimo a partir do quinto até o nono mês de gestação. O subsidio de lactação é a entrega de um pacote de produtos de alto valor nutricional durante o primeiro ano de vida do bebê. O subsídio de natalidade é o pagamento, apenas durante o nascimento do bebê, de um salário-mínimo extra. As mulheres que não têm plano de saúde recebem o “Subsidio Universal por la Vida”. Esta ajuda consiste na entrega de pacotes de produtos alimentícios de alto valor nutricional desde o quinto até o nono mês de gravidez. ¹²⁹ Darwin Ugarte; Rosangela Cruz; Elio Colque. Balance del pensamiento económico latinoamericano (La Paz: Banco Central de Bolivia, 2017). ¹³⁰ O valor que se concede a cada estudante é de 200 bolivianos por ano, equivalente a 28,84 dólares. ¹³¹ Flavia Marco. El Bono Juancito Pinto del Estado Plurinacional de Bolivia. Programas de transferencias monetarias e infancia (Santiago: Cepal, 2012). ¹³² De 53,6 mortes por mil nascimentos no ano 2003 a 24 mortes no ano 2016 em menores de 1 ano. ¹³³ Instituto Nacional de Estad í stica – INE. Encuesta de Demograf í a y Salud . ¹³⁴ Crispim Moreira. “Bolivia logra meta internacional de reducir el hambre”. Pagina Siete , 8 ju. 2015. Disponível em: https://www.paginasiete.bo/opinion/ 2015/6/9/bolivia-logra-meta-internacional-reducir-hambre-59286.html. Acesso em: 23 jul. 2020. ¹³⁵ A Guerra do Gás foi uma luta na cidade de El Alto pela recuperação do gás para os bolivianos. Em 2003, o presidente Gonzalo Sánchez de Lozada anunciou a exportação de gás aos Estados Unidos e ao México, via Chile, o que significaria o aumento de preços para a população boliviana e a pilhagem do gás em um país que carece em abundância de outros energéticos. ¹³⁶ Lutas contra a privatização da água de inícios do século XXI. A Guerra da Água do ano 2000 na cidade de Cochabamba é a mais emblemática. ¹³⁷ O Tribunal Supremo Eleitoral determinou a prevalência de convênios internacionais sobre a Constituição Política do Estado (CPE), o recurso

abstrato de inconstitucionalidade apresentado pelo MAS se baseou no argumento de que os limites para uma eventual recandidatura se contrapõem ao pacto de San José de Costa Rica subscrito pela Bolívia. ¹³⁸ Entre os candidatos figuram Víctor Hugo Cárdenas, Vice-presidente de Gonzalo Sánchez de Lozada de 1993 a 1997; e Jaime Paz Zamora, Presidente da República no período 1989-1993. ¹³⁹ Jorge Alemán. Horizontes neoliberales en la subjetividad (Buenos Aires: Grama, 2016). ¹⁴⁰ Este Decreto autoriza “ao Ministério de Economia e Finanças Públicas, através do Tesouro Geral da Nação, (TGN), a realizar a atribuição orçamentária de recursos adicionais por uma quantidade de $b 34.796.098 a favor do Ministério da Defesa, destinados ao equipamento das Forças Armadas”. Ver: https://www.nodal.am/wp-content/uploads/2019/11/ sample.pdf. ¹⁴¹ Ver o Relatório Informe da CIDH sobre a missão na Bolívia realizada em novembro de 2019: https://www.oas.org/es/cidh/prensa/comunicados/ 2019/321.asp. ¹⁴² Decreto Supremo 4078. Disponível em: https://www.nodal.am/wp-content/ uploads/2019/11/sample1.pdf. Acesso em: 23 jul. 2020. A via equatoriana: luzes e sombras da Revolução Cidadã Mar í a del Carmen Villarreal Villamar ¹⁴³ Introdução Desde o início do século XXI, o chamado “giro à esquerda” na América Latina incluiu as vitórias de vários partidos e coalizões tradicionalmente de esquerda ou autodenominados de esquerda. Aos triunfos iniciais destes agrupamentos em países como Venezuela, Brasil, Argentina e Bolívia, somaram-se mais tarde Nicarágua, Paraguai Equador e El Salvador, consolidando com isso um novo ciclo e uma “mudança de época” na região. Apesar dos projetos que estes governos implementaram incluírem, em diversas medidas, a recuperação do papel do Estado na gestão da economia e na promoção do desenvolvimento, assim como políticas sociais para diminuir problemas como a pobreza e a desigualdade, a verdade é que cada país traçou um caminho próprio com especificidades, avanços, limites e contradições únicas. Sem pretensões de realizar um balanço exaustivo, nossa intenção é estudar, mediante revisão bibliográfica, análise documental e de dados secundários, a experiência da Revolução Cidadã com o objetivo de destacar as esperanças que este processo alimentou na sociedade equatoriana, alguns dos seus principais acertos, mas também seus limites e paradoxos. Com este exercício de reflexão, buscamos contribuir para a compreensão da experiência equatoriana, mas também para pensar e repensar os discursos e práticas da esquerda, ou de projetos que se autodenominam como parte desta tendência ideológica, nas sociedades latino-americanas.

Equador: traços essenciais A sociedade equatoriana é herdeira das estruturas assimétricas anteriores à Colônia e profundamente marcada pelas relações que se estabeleceram durante o regime colonial entre criollos , mestiços, indígenas e afrodescendentes, assim como de desiguais relações regionais e de gênero, além da exclusão de grande parte da população por meio de um sistema de concentração da riqueza e do poder em poucas mãos. Em 1830, o país que se denominou Equador ¹⁴⁴ nasceu em um cenário de disputas territoriais em que foi preciso estabelecer compromissos entre as diversas regiões que o constituem: Costa, Sierra, Oriente e o arquipélago de Colón ou Galápagos; este último incorporado em 1832. Mesmo que as classificações das suas fases históricas sejam múltiplas, neste trabalho utilizaremos a formulada pelo historiador Enrique Ayala (2013), que divide a história republicana do país em três grandes períodos. O primeiro período republicano, ou Projeto Nacional Criollo , compreende o período de tempo que vai da fundação da República em 1830 até o começo da Revolução Liberal em 1895. Para Ayala (2013), apesar das mudanças introduzidas pela criação de um novo Estado, este período representa uma fase de continuidade com o regime colonial na qual permanece a centralidade da Igreja católica, assim como os privilégios e hierarquias que este sistema estabeleceu. Os criollos , herdeiros do poder colonial, desenvolvem um projeto de assimilação cultural das diferenças baseado no modelo europeu e fundam seu domínio na exclusão de indígenas, negros, mestiços e mulheres. Neste contexto, o Estado equatoriano surge como um Estado oligárquico-latifundiário, em luta constante pela manutenção da sua unidade perante as tendências separatistas e autonomistas, guiadas por caudilhos e facções de carácter local e regional. A pugna de poderes entre as regiões Sierra e Costa do país constitui, desde então, uma caraterística estrutural do Estado. Além disso, existem as pretensões territoriais dos países vizinhos, que durante muito tempo constituíram também uma ameaça. No nível econômico, a nova República se caracterizará pela aposta na agricultura como modelo de acumulação, com a sucessiva expansão da fronteira agrícola em grande parte do seu território, e pelo deslocamento de Quito e da região andina em favor de Guayaquil e Costa como principais polos econômicos da nação. Sob o predomínio do latifúndio, neste período iniciará também a vinculação do país ao comércio internacional por meio do modelo primário exportador. O segundo período republicano, ou Projeto Nacional Mestiço, inicia em 1895 com a Revolução Liberal e vai até 1960. De acordo com Ayala (2013), esta fase se caracteriza por profundas transformações socioeconômicas, políticas e culturais. O latifúndio tradicional evolui até se tornar burguesia agrária. O poder latifundiário e o predomínio da região Sierra são substituídos pela vitória da burguesia comercial e bancária da região Costa, que, todavia, mantém elementos comuns com os setores econômicos tradicionais. Deste modo, apesar de tímidos avanços de industrialização, a burguesia nacional consolidará o modelo primário exportador e, com isso, a definitiva inserção do país no sistema capitalista. Como resultado da Revolução Liberal, durante este período se concretizará também a separação entre o Estado e a Igreja católica, ao passo que se modernizará a economia e, perante as

tendências autonomistas, se reforçará o papel do Estado central. No nível político, surgirá um moderno sistema de partidos que irá além das diferenças entre posturas liberais e conservadoras; enquanto no nível social acontecerá um processo de emergência e incorporação à vida pública das classes populares e setores médios. Devido a elementos como as migrações internas e a criação de grandes obras de infraestrutura, entre as que se destaca o trem transandino, aprofundar-se-á também a unidade do território equatoriano e, como corolário, a integração nacional. Por fim, de acordo com Ayala (2013), o terceiro período republicano, ou Projeto Nacional da Diversidade, surge em 1960 e se estende até os nossos dias. Esta fase é fruto do esgotamento do projeto nacional mestiço a favor de um novo desenho capaz de refletir a heterogeneidade da sociedade equatoriana. É uma época de profundas mudanças, que tem permitido o aprofundamento do processo de modernização em várias esferas e a reivindicação de direitos étnicos, sociais e políticos por parte do movimento indígena, da coletividade afro-equatoriana e dos movimentos de mulheres. Ao longo desta fase, foi possível também a implementação da reforma agrária que, apesar de não ter cumprido suas metas, conseguiu pelo menos pôr fim às relações de dominação como o huasipungo , ¹⁴⁵ vigentes até então no país. Do ponto de vista econômico, os dois primeiros períodos republicanos coincidem com o modelo agroexportador. Nesta conjuntura, o país se integrou ao comércio internacional em um regime de divisão internacional do trabalho no qual exportava matérias-primas e importava manufaturas e bens suntuários para satisfazer os desejos da oligarquia nacional. No final do século XIX e começos do século XX, o Equador se tornou o principal provedor mundial de cacau e, posteriormente, de banana, além de ser um notável exportador de produtos como café, algodão e arroz. ¹⁴⁶ Contudo, no marco de um processo de acumulação e de crescimento orientados “para fora”, os benefícios deste modelo se concentraram em poucas mãos e não tiveram repercussões suficientes sobre outros setores capazes de dinamizar e modernizar a economia nacional. Além disso, é preciso destacar que os primeiros períodos republicanos coincidem também com o surgimento de um dos traços estruturais da economia equatoriana: a dívida externa. ¹⁴⁷ No período 1950 a 1971, o Estado equatoriano teve um papel central na integração nacional mediante o investimento público e a ampliação do mercado interno. Durante o período da Junta Militar (1963-1966), o Estado realizou também os primeiros esforços para impulsionar o processo de industrialização, com grandes obstáculos devido à escassez de divisas. ¹⁴⁸ A industrialização do país adquiriu especial relevância nos anos sucessivos durante o denominado “ boom petroleiro” (1972-1981). Durante esta fase, a descoberta de relevantes depósitos petrolíferos na Amazônia e a sucessiva produção e exportação de petróleo cru geraram enormes recursos que permitiram a promoção da industrialização via substituição de importações. Como consequência, a economia nacional cresceu a um ritmo inédito e gerou recursos que permitiram aumentar de forma significativa o gasto público. Por exemplo, em 1972 e 1973, o país cresceu a uma taxa de 14% e 25% respetivamente. Durante todo o boom , a economia cresceu com uma média superior a 8% e se calcula que o PIB per capita aumentou 72%. ¹⁴⁹

Os benefícios deste modelo permitiram uma maior redistribuição de recursos, mas não conseguiram alterar a estrutura econômica do país. Não somente não se industrializou a economia, mas em lugar disso foram criados novos problemas ou aumentaram-se alguns dos que já existiam. A dívida pública externa cresceu de maneira exponencial, passando de US$ 229 milhões em 1970 a US$ 4,4 bilhões em 1981. A economia nacional se tornou altamente dependente do petróleo e das oscilações de seu preço no nível internacional. Por outro lado, em lugar de diminuir, as importações industriais aumentaram e a geração de empregos ao longo de todo o processo foi valiosa, mas insuficiente para cobrir a crescente demanda de trabalho da população, concentrada nas cidades de Quito e Guayaquil, causa da urbanização da sociedade. ¹⁵⁰ Na década de 1980, a excessiva dependência do petróleo provocou, com a diminuição do seu preço no mercado internacional, uma sucessão de carências e crises econômicas no Equador. Este elemento, junto à crise latino-americana da dívida, permitiu justificar a aplicação de políticas de estabilização e ajuste em toda a região. Mesmo assim, a implantação do modelo neoliberal no Equador se verificou de forma tardia, gradual e no meio de graves conflitos sociais e políticos, mas sem gerar maior crescimento econômico nem bem-estar. Desta forma, a renda por habitante em 1998 era apenas 5% superior à de 1980, com um crescimento anual do 0,3%. ¹⁵¹ Nos anos seguintes, durante o período 1981-1998, a economia equatoriana cresceu a uma média anual de 2,5%; mas em 1999, o país registrou a maior queda do PIB, com uma diminuição de 30,1%, e uma redução do PIB por habitante de quase 32%. Durante este processo e como resultado da instabilidade do sistema financeiro, o governo do então presidente Jamil Mahuad decretou um feriado bancário e o congelamento dos depósitos privados. Em 2000, optou-se também pela eliminação da moeda nacional e a sucessiva dolarização da economia equatoriana com graves efeitos sociais. ¹⁵² A crise econômica de 1999 foi a maior crise financeira experimentada na história do país, mas assumiu proporções trágicas devido a fatores de natureza estrutural e conjuntural. Entre os primeiros, segundo Acosta, ¹⁵³ devem ser mencionados a histórica debilidade do mercado interno, o bicentralismo nacional com a constante pugna de poderes entre a região Costa e Sierra do país, assim como os elevados índices de corrupção nacional e os fundamentais recursos destinados ao pagamento da dívida externa, cujas dimensões tinham crescido a um ritmo desproporcionado desde o auge petroleiro. Por outro lado, processos como o fenômeno natural do El Niño, o conflito militar de 1995 com o Peru e fatores exógenos, como a queda dos preços do petróleo ou a crise asiática, tiveram também fortes impactos negativos sobre a economia nacional. A fuga de capitais e processos como o “resgate bancário” completaram o panorama, provocando o pior período econômico do país. Junto à crise econômica, desde o retorno à democracia, a sociedade equatoriana foi também vítima de uma profunda crise de governabilidade que determinou uma elevada instabilidade dos cargos públicos. Neste

sentido, no período 1979-2006, o país contou com 11 diferentes mandatários presidenciais, que exerceram suas funções em média durante dois anos. ¹⁵⁴ Ambos elementos permitiram a chegada ao poder de propostas alternativas e determinaram, desde 2006, o fim de um ciclo turbulento da história equatoriana. Alternativas progressistas e emergência da Revolução Cidadã Desde o retorno à democracia, o Equador se caracterizou por ter um sistema político altamente instável e a vigência, segundo Paz y Miño, ¹⁵⁵ de um “modelo empresarial de desenvolvimento” no qual prevaleceram os interesses dos setores econômicos acima das necessidades da grande maioria da população. Como resultado, no país aumentaram progressivamente os índices de pobreza e desigualdade, cresceu a deslegitimação da classe política e aumentou o nível do conflito social. Contemporaneamente, cresceu o descontentamento generalizado da população a respeito do país e das possibilidades de futuro que ele oferecia, gerando, entre outros fenômenos, o êxodo massivo de equatorianos em busca de uma vida melhor fora do território nacional. A título ilustrativo, calcula-se que só no período 2000-2008 mais de 1,5 milhão de equatorianos emigraram para Espanha, Itália, Estados Unidos e outros destinos. ¹⁵⁶ O cenário descrito acima, junto com a existência de uma crescente crítica ao neoliberalismo e suas consequências, determinou no país uma maior abertura em relação às opções políticas antissistema. É neste contexto que deve ser entendida a entrada de Rafael Correa no cenário político equatoriano, antecedida pela escolha, em 2002, de Lucio Gutiérrez como presidente da República. ¹⁵⁷ A vitória deste último aconteceu após a queda de Jamil Mahuad, no meio de amplas mobilizações cidadãs, e foi fruto de uma coalizão política na qual participaram partidos políticos de esquerda e movimentos sociais . ¹⁵⁸ O general Lucio Gutiérrez ganhou as eleições presidenciais de 2002 com amplo apoio social e a promessa de refundação nacional. Contudo, uma vez no poder, mudou sua orientação externa e interna, aproximando-se de grupos conservadores. Em 2005, sua destituição em meio à Revolta dos Foragidos ¹⁵⁹ foi resultado de acusações crescentes de corrupção, nepotismo e autoritarismo. O heterogêneo movimento cidadão responsável por sua saída, com o lema “ que se vayan todos ”, evidenciou também o profundo descontentamento social em relação à classe política equatoriana. ¹⁶⁰ Uma vez derrubado Gutiérrez, a Presidência foi assumida pelo então vicepresidente Alfredo Palacio, que outorgou a titularidade do Ministério da Economia e Finanças a Rafael Correa Delgado, um acadêmico notório por sua postura crítica em relação à dívida externa, ao Fundo Monetário Internacional (FMI) e ao modelo neoliberal. Graças às reiteradas condenações à ortodoxia econômica, o ingresso na cena política de Correa alimentou as esperanças das forças opositoras ao neoliberalismo e dos setores progressistas nacionais. Posteriormente, durante seu breve mandato como Ministro da Economia, Correa se aproximou do governo venezuelano, estabeleceu a redistribuição da renda petrolífera a favor do investimento social e promoveu negociações mais

favoráveis aos interesses nacionais com os organismos multilaterais de crédito. Estas medidas provocaram diversas polêmicas que determinaram sua renúncia, mas lhe deram notoriedade pública e lhe garantiram a simpatia da maioria da população. ¹⁶¹ Por sua vez, o presidente Palacio não cumpriu com as expectativas da população e não resolveu as urgentes necessidades do país em matéria econômica, política e social. Apesar de ter suspendido as negociações do Tratado de Livre Comércio (TLC) com os Estados Unidos e ter revisado os acordos de cooperação com esse país em relação ao Plano Colômbia, as ações do governo foram incapazes de transformar a situação nacional. Com o fracasso de Palacio, ficaram abertas as portas para a entrada de outsiders como Correa nas eleições de 2006. Depois de se tornar uma figura pública, Rafael Correa formalizou sua précandidatura independente à Presidência em dezembro de 2005. Com o objetivo de respaldar sua figura e seu projeto político, foi criado posteriormente o movimento Alianza País, expressão que como acrônimo significa “Pátria Altiva e Soberana”. Este heterogêneo grupo tinha raízes na oposição às reformas neoliberais, agrupando desde o início um amplo grupo de líderes e organizações sociais, ambientalistas, políticas e religiosas com visões políticas diferentes. ¹⁶² Não obstante, como afirma Dávalos, ¹⁶³ no movimento destacam-se, sobretudo, as classes médias urbanas, com heterogêneas tendências ideológicas, auto-identificadas sob o epíteto de “cidadãos”. Uma vez criado, e após a formalização das candidaturas para presidente e vice-presidente da República nas figuras de Rafael Correa e Lenín Moreno, Alianza País se apresentou, então, como um movimento “antipolítica”, de caráter cidadão, crítico com a “partidocracia” tradicional e alheio a seu funcionamento. Considerando também que o Congresso Nacional era a instituição com a reputação mais baixa em nível político, optou por não apresentar candidatos para as eleições legislativas. Posteriormente, durante a campanha presidencial, os candidatos de Alianza País, sob lemas como “volver a tener patria” ou “Ecuador ya es de todos”, enfatizaram a necessidade de combater o neoliberalismo e recuperar o protagonismo do Estado, a soberania econômica e o investimento social em lugar dos interesses financeiros e das obrigações em relação ao pagamento da dívida externa. Com estes objetivos e tentando realizar o sonho de fazer do Equador “um país alegre, otimista e com futuro”, o Plano de Governo 2007-2011 ¹⁶⁴ incluía os seguintes eixos programáticos: A revolução constitucional e democrática : voltada a concretizar, em um novo texto constitucional, as bases da transformação social, econômica e política do Estado. A revolução ética : que implicaria no combate frontal à corrupção e a evasão fiscal, assim como no estabelecimento de mecanismos de transparência na administração pública. A revolução econômica e produtiva : cujo objetivo era estabelecer um novo modelo econômico, oposto ao modelo neoliberal, mais inclusivo e a favor das pessoas acima dos interesses do capital.

A revolução educativa e de saúde : que serviria para priorizar o investimento social e superar os atrasos do país nestes setores. A revolução pela dignidade, a soberania e a integra ção latino-americana : cujo objetivo era reformular as relações internacionais do país, aproximando-se aos países latino-americanos e assumindo posturas mais favoráveis aos interesses nacionais. Após eleições polêmicas, Correa venceu no segundo turno seu oponente conservador Álvaro Noboa, obtendo 56,67% dos votos. Porém sua chegada à Presidência não somente implicou o fim do sistema de partidos tradicionais, mas provocou profundas reformas e uma mudança de regime político. Uma vez assumindo o controle do Executivo, em 15 de janeiro de 2007, Correa cumpriu com sua principal promessa eleitoral e convocou a Assembleia Constituinte que elaborou a Constituição de 2008. Com este objetivo, convocou-se uma consulta popular que, apesar do ativismo da oposição, obteve 81,72% de aprovação. ¹⁶⁵ Desde o início, o novo governo nacional dirigiu também seus esforços à recuperação do papel do Estado na direção das políticas públicas e no planejamento do desenvolvimento nacional. Os dois exemplos paradigmáticos desta transformação foram: a substituição do Conam (Conselho Nacional de Modernização do Estado) pela Secretaria Nacional de Desenvolvimento (Senplades) e a criação do Plano Plurianual de Desenvolvimento (2007-2010). Nesta linha, além de uma Comissão de Auditoria para a revisão da dívida pública do Equador; estabeleceram-se as primeiras medidas para a recuperação da propriedade pública de recursos estratégicos para o Estado; desenvolveram-se vários programas para estender benefícios sociais à população; e redefiniram-se as relações internacionais do país, fazendo uma aproximação a governos “progressistas” na América Latina e, fora da região, a países como Irã, China e Rússia . ¹⁶⁶ Depois de ter obtido a vitória, Alianza País ampliou sua estrutura e integrou novos agrupamentos sociais e coletivos políticos como Ruptura de los 25, Foro Urbano e Polo Democrático. Em relação às eleições para a Assembleia Constituinte, criou também uma coalizão de governo chamada “Acordo País” integrada por Alianza País, Nuevo País e Alternativa Democrática. ¹⁶⁷ Nas eleições de 30 de setembro de 2007, este agrupamento conseguiu uma significativa maioria e obteve 80 das 130 cadeiras para a Assembleia Constituinte, podendo participar ativamente da construção da nova Carta Magna. A Constituição de Montecristi e a promessa do Bem Viver Uma vez no poder, a Assembleia Constituinte convocada pelo presidente Rafael Correa foi realizada em Montecristi (Manabí). ¹⁶⁸ A partir de sua instalação, em 30 de novembro de 2007, a Constituinte levou oito meses para elaborar o novo texto Constitucional e foi questionada numerosas vezes em relação a sua legitimidade e seu caráter plenipotenciário, além da representação majoritária da Alianza País e das constantes intervenções de Correa nas decisões do bloco. ¹⁶⁹ Ao longo de sua duração, as diversas posturas presentes na Assembleia provocaram intensos debates em relação ao modelo de desenvolvimento do país, o ecologismo, os direitos civis e

sexuais, a plurinacionalidade e o destino dos recursos naturais do território. Porém, apesar das diferenças, o texto definitivo da nova Constituição foi aceito e submetido à aprovação de um referendo celebrado em 28 de setembro de 2008, no qual a maioria absoluta dos votantes (63,9%) optou pelo sim. A Constituição de 2008 constitui um marco na história política do país porque, desde 1869, seu texto foi o único que, além de ser discutido por uma Assembleia Constituinte, foi amplamente conhecido, debatido e votado pela população. ¹⁷⁰ A Constituição de Montecristi contém 494 artigos, distribuídos em 33 títulos constitucionais, e é, neste sentido, a expressão de um grande processo participativo que incluiu, mediante “assembleias itinerantes” e numerosas iniciativas de caráter pessoal e coletivo, tanto a população residente como a população expatriada. ¹⁷¹ Em termos organizativos, a Vigésima Carta Magna do Estado reforça, no nível político, o papel do Executivo e define a Assembleia Nacional como titular da função legislativa em lugar do Congresso Nacional. Estabelece, por outro lado, profundas reformas estatais, reconhecendo, a título ilustrativo: a necessidade de descentralização territorial do país; a existência das funções Eleitoral e de Transparência e Controle Social, junto às funções Executiva, Legislativa e Judiciária; e a justiça indígena na resolução de conflitos. Independentemente do reordenamento político e institucional, a importância da Constituição de Montecristi reside em que ela estabelece um novo modelo de desenvolvimento, que, por meio do sumak kawsay ou Bem Viver, busca alcançar a inclusão e a justiça social, colocando no centro do projeto a figura do ser humano. Com o objetivo de alcançar o Bem Viver, a nova Constituição propõe a erradicação da pobreza, a promoção do desenvolvimento sustentável e a redistribuição equitativa da riqueza do país. Para tanto, recupera o papel do Estado no planejamento do desenvolvimento e na garantia de direitos políticos, sociais e econômicos da população, fixando como metas a mudança da matriz produtiva e um novo modelo de economia social e solidária. De forma inédita, o texto reconhece também os direitos da natureza e reforça os direitos das comunidades, povos e nacionalidades do país. Em matéria de política externa, promove a integração latino-americana e declara o Equador como território de paz, com a relativa proibição de bases estrangeiras. Além disso, devido à importância do coletivo emigrante e de fenômenos como a imigração e o refúgio em nível nacional, inclui 58 artigos que abordam o fenômeno migratório a partir da perspectiva da mobilidade humana e oferecem um enfoque garantidor de direitos e liberdades. A proposta constitucional de uma alternativa em relação aos modelos socioeconômicos implementados no país tem como pressuposto o estabelecimento de um novo regime de desenvolvimento, contido no título VI e definido pelo artigo 275 como: “o conjunto organizado, sustentável e dinâmico, dos sistemas econômicos, políticos, socioculturais e ambientais que garantem a realização do Bem Viver, do sumak kawsay ”. ¹⁷² Em oposição aos projetos preexistentes, os objetivos deste novo modelo de desenvolvimento, segundo o artigo 276, são:

• Melhorar a qualidade e a esperança de vida e aumentar as capacidades e potencialidades da população no marco dos princípios e direitos que estabelece a Constituição. • Construir um sistema econômico, justo, democrático, produtivo, solidário e sustentável, baseado na distribuição igualitária dos benefícios do desenvolvimento, dos meios de produção e na geração de trabalho digno e estável. • Fomentar a participação e o controle social, com o reconhecimento das diversas identidades e a promoção da sua representação equitativa em todas as fases da gestão do poder público. • Recuperar e conservar a natureza e manter um ambiente sano e sustentável que garanta às pessoas e coletividades o acesso equitativo, permanente e de qualidade à água, ar e solo e aos benefícios dos recursos do subsolo e do patrimônio natural. • Garantir a soberania nacional, promover a integração latino-americana e impulsionar uma inserção estratégica no contexto internacional que contribua para a paz e para um sistema democrático e equitativo mundial. • Promover um ordenamento territorial equilibrado e equitativo que integre e articule as atividades socioculturais, administrativas, econômicas e de gestão, e que coadjuve à unidade do Estado. • Proteger e promover a diversidade cultural e respeitar seus espaços de reprodução e intercâmbio; recuperar, preservar e acrescentar à memória social e ao patrimônio cultural. Na mesma linha, o artigo 277 estabelece que, para alcançar o Bem Viver, serão deveres gerais do Estado: a) garantir os direitos das pessoas, coletividades e da natureza; b) Dirigir, planejar e regular o processo de desenvolvimento; c) Gerar e executar as políticas públicas e controlar e sancionar seu cumprimento; d) Produzir bens, criar e manter infraestrutura e prover serviços públicos; e) Impulsionar o desenvolvimento das atividades econômicas mediante uma ordem jurídica e instituições políticas que as promovam, fomentem e defendam mediante o cumprimento da Constituição e a lei; f) Promover e impulsionar a ciência, a tecnologia, as artes, os saberes ancestrais e, em geral, as atividades da iniciativa criativa comunitária, associativa, cooperativa e privada.

Para realizar estes objetivos de desenvolvimento e os deveres estatais apenas descritos, os governos de Alianza País dirigidos por Rafael Correa redigiram vários documentos programáticos: o Plano Nacional de Desenvolvimento 2007-2010 ; o Plano Nacional para o Bem Viver 2009-2013 e o Plano Nacional para o Bem Viver 2013-2017 . Os três documentos partem de uma crítica aos modelos de desenvolvimento que têm sido aplicados no Equador e, especialmente, da constatação dos “fracassos do modelo neoliberal”. Em contraposição, propõem uma alternativa perante a situação vigente no país até 2006 e sucessivamente, uma continuidade dos “sucessos” alcançados pela Revolução Cidadã, baseados em um projeto que privilegia o ser humano em lugar do capital e a dívida social em vez da dívida externa. Estes elementos têm como fundamento a construção do “Socialismo do Bem Viver” ou sumak kawsay , que supera concepções exclusivamente economicistas e recupera os saberes tradicionais de matriz não ocidental. O conceito de Bem Viver, definido como “horizonte e ideia mobilizadora”, ¹⁷³ tem origem nas tradições indígenas da região andina e, como alternativa ao desenvolvimento entendido como crescimento econômico, incorpora elementos como a necessidade de buscar o bem-estar de todos em harmonia com a natureza, a solidariedade ou a busca da felicidade. A este respeito, mesmo que os planos de desenvolvimento afirmem que o Bem Viver é um conceito em “permanente construção”, suas propostas se baseiam em uma estratégia de planejamento sustentada na democratização do Estado, no investimento social, na expansão de direitos, na redistribuição dos recursos e na transformação da matriz produtiva do país com o objetivo de superar o modelo primário exportador e a dependência da economia equatoriana, para alcançar a “sociedade do conhecimento” (ver Quadro 1). Quadro 1. Objetivos dos planos de desenvolvimento equatorianos no período 2007-2017 Elaboração própria. Fonte: Planos Nacionais do Bom Viver 2007-2010; 2009-2013; 2013-2017. Secretaria Nacional de Planejamento e Desenvolvimento (Senplades). Uma vez em vigor, a nova Carta Constitucional determinou um regime de transição pelo qual se convocaram novas eleições. Nestas últimas, celebradas em 26 de abril de 2009, Rafael Correa e seu projeto político ganharam com 51,99% dos votos para o período 2009-2013. Posteriormente, nas eleições presidenciais de 17 de fevereiro de 2013, Rafael Correa ganhou novamente as eleições com 57,79% dos votos válidos ¹⁷⁴ e iniciou um novo mandato presidencial que se estendeu até maio de 2017. Luzes e sombras da Revolução Cidadã Como afirmam Falconí e Muñoz ¹⁷⁵ a vigência do paradigma neoliberal no Equador é responsável pelo desmantelamento do Estado, a liberalização da economia e a desregulação do sistema financeiro, elementos-chave na hora de entender a profunda crise que viveu o país nos anos 1990. Uma década depois, o Equador tinha conseguido melhorar alguns indicadores sociais de desenvolvimento em relação a esse período, mas ainda era um dos países da América Latina com menores níveis de investimento social e significativos

índices de desigualdade e pobreza. ¹⁷⁶ A diferença da média regional de US$ 610 destinados anualmente aos setores sociais, junto com El Salvador, Guatemala, Paraguai, Peru e República Dominicana, o Equador designava uma cifra por habitante igual ou inferior a US$ 180. Este escasso investimento social era resultado do baixo ingresso por habitante, a baixa carga tributária do país e a escassa proporção do gasto público destinado aos setores sociais, que equivalia apenas a 5,7% do PIB. ¹⁷⁷ Neste contexto, uma das prioridades do governo da Revolução Cidadã foi aumentar progressivamente o investimento social, que, de US$ 1,9 bilhão em 2006, passou a US$ 9,6 bilhões em 2016. ¹⁷⁸ No mesmo período, o investimento social como porcentagem do PIB registrou um aumento de cinco pontos percentuais (ver Gráfico 1). ¹⁷⁹ Este aumento do gasto social foi possível graças à realização de uma auditoria externa, disposta pelo Decreto 472 de 2007, que permitiu a renegociação da dívida externa e uma poupança estimada em US$ 3,5 bilhões. Por sua vez, a disponibilidade de maiores recursos foi também resultado de excepcionais receitas petroleiras e fiscais. Especificamente, o preço do petróleo passou de US$ 25 em 2003 a US$ 146 em 2008, ¹⁸⁰ mas as maiores rendas petroleiras se explicam também pelas reformas do Executivo na administração dos recursos, pela negociação dos contratos e pelas concessões petroleiras, assim como pelas reformas aplicadas no pagamento de impostos do setor. ¹⁸¹ Os ingressos tributários foram também produto de importantes transformações realizadas a partir de 2008 que determinaram a ampliação e modernização no sistema de arrecadação nacional. Em consequência, segundo a Secretaria Nacional de Planejamento e Desenvolvimento, ¹⁸² se em 2006 a arrecadação tributária foi de US$ 4,7 bilhões, em 2016 ascendeu a US$ 13,3 bilhões. Finalmente, o financiamento do gasto público foi também possível graças a diversos créditos concedidos pela China, que hoje é o principal credor do país. Desde 2011, a dívida com este país asiático tem crescido de forma progressiva até alcançar os US$ 8 bilhões de dólares. ¹⁸³ Gráfico 1. Investimento social como porcentagem do PIB 2000-2016

Elaboração própria. Fonte: Ministerio Coordinador de Desarrollo Social – MCDS. Informe de desarrollo social 2007-2017 , p. 152. De acordo com a Senplades, ¹⁸⁴ o incremento de fundos públicos tem determinado importantes avanços em relação à dotação de infraestruturas, telecomunicações e serviços básicos. Nas áreas de saúde e educação, por exemplo, foi possível reduzir de forma considerável as taxas de analfabetismo, mortalidade infantil e incidência de doenças graves associadas com a pobreza, ao mesmo tempo que aumentaram as taxas líquidas de matrícula educativa, melhorou a oferta formativa e o número de bolsas de graduação e pós-graduação e diminuíram diversas brechas étnicas ou de gênero. Além disso, segundo o mesmo órgão, o governo nacional conseguiu diminuir também o déficit quantitativo de moradia e as porcentagens de superlotação no país, ao passo que aumentou progressivamente o acesso de mais cidadãos à água potável e aos serviços de saneamento. Contudo, estes resultados se devem também a uma série de medidas criadas com objetivo de facilitar a inclusão econômica e social dos grupos menos favorecidos. Dentre as mais importantes, destacam-se as transferências monetárias de caráter social como o Bônus de Desenvolvimento Humano e as ajudas oferecidas a descapacitados e idosos. Na mesma linha, foram criados programas de desenvolvimento infantil, de alimentação e saúde, além de pequenos programas de inclusão econômica e subsídios para populações carentes, assim como para o consumo de combustíveis e energia elétrica. ¹⁸⁵ Na tentativa de construir um modelo econômico e político pós-neoliberal ¹⁸⁶ que privilegiara as maiorias, o maior investimento social e as políticas governamentais para os grupos menos favorecidos incidiram positivamente sobre os níveis de pobreza e desigualdade em nível nacional. Segundo a Pesquisa Nacional de Emprego, Subemprego e Desemprego (Enemdu) de 2016, ¹⁸⁷ no período 2007-2016, a taxa de pobreza por renda reduziu em 13,8 pontos percentuais, passando de 36,7% a 22,9% em nível nacional. Esta diminuição permitiu a saída da pobreza de aproximadamente 1,4 milhão de pessoas. A pobreza extrema, por outro lado, também experimentou uma redução notável, passando de 16,5% a 8,7% (ver Gráfico 2). Contudo, ainda existem importantes diferenças entre os setores urbano e rural. Assim, por exemplo, a diminuição da pobreza foi especialmente significativa no setor rural, onde os níveis de pobreza no período 2007-2016 passaram de 63,1% a 38,2%. No setor urbano, durante o mesmo período, a redução foi de 24,3% a 15,7%. De acordo com a mesma fonte, as maiores rendas no setor social têm determinado também o descenso da desigualdade social. A título ilustrativo, o coeficiente de Gini tem registrado uma tendência decrescente, passando de 0,551 em 2007 a 0,466 em 2016, também com uma maior incidência no setor rural, mesmo que de maneira não uniforme nem sustentada em nível nacional. Gráfico 2 . Pobreza por renda e extrema pobreza no período 2007-2016

Elaboração própria. Fonte: Pesquisa Nacional de Emprego, Subemprego e Desemprego (Enemdu) de 2016. Os dados correspondem ao mês de dezembro de cada ano. No setor laboral, os sucessos também foram importantes, porém menos significativos que nos âmbitos apenas descritos. Segundo a Enemdu, ¹⁸⁸ em 2016 a taxa de desemprego alcançou 5,2% em nível nacional, mas no período 2007-2016 a taxa de emprego formal não conseguiu superar 50%, enquanto que o emprego informal (que compreende o subemprego, outro emprego informal ou não pleno e o emprego não remunerado) correspondeu, em 2016, a 53,4% da população (ver Gráfico 3). Grá fico 3. Evolução do emprego em nível nacional no período 2007-2016

Elaboração própria. Fonte: Pesquisa Nacional de Emprego, Subemprego e Desemprego (ENEMDU) de 2016. Os dados correspondem ao mês de dezembro de cada ano. Apesar do complexo panorama laboral, as políticas públicas no setor registraram avanços significativos em relação aos direitos dos trabalhadores. De fato, a Lei Orgânica para a Defesa dos Direitos

Trabalhistas de 2012 estende o período de proteção pós-natal para as mães trabalhadoras, ao mesmo tempo que assegura direitos e melhora a proteção de grupos tradicionalmente excluídos como as empregadas domésticas ou os agricultores. Alguns avanços destacáveis se registraram também em outros âmbitos, como a redução da taxa de trabalho infantil em nível nacional, que passou de 12,5% em 2007 a 5,5% em 2016; enquanto que, segundo a Enemdu, ¹⁸⁹ a porcentagem de empregados afiliados ao Instituto Ecuatoriano de Seguridad Social (IESS) – Seguro General passou de 19,8% em 2007 a 32,5% em 2016. Porém, apesar deste aumento e do número de pessoas que dispõem de outras tipologias de segurança, o número de equatorianos que não têm nenhuma afiliação ainda representa 55,9% dos trabalhadores nacionais. Ao realizar um balanço dos êxitos no setor social, autores como Acosta e Ponce ¹⁹⁰ e Acosta e Cajas ¹⁹¹ afirmam que, apesar dos benéficos efeitos redistributivos na era da Revolução Cidadã no período 2000-2006, o país experimentou uma redução da pobreza de 27%, uma porcentagem muito maior em relação a alcançada durante as administrações do Alianza País. Contemporaneamente, apesar da redução da desigualdade total, a desigualdade entre classes não experimentou variações significativas. Em outros termos, o que se reduziu foram as desigualdades dentro das classes sociais, mas não a concentração da riqueza nem as desigualdades estruturais de classe ou as hierarquias que geram as assimétricas rendas de capitalistas e trabalhadores de diversos setores. As críticas também evidenciam que não se eliminaram problemas em relação a, por exemplo, a oferta ou qualidade dos serviços em âmbitos como a saúde ou a educação, já que gastar mais nem sempre significa fazê-lo melhor ou com melhores resultados. Por outro lado, em nível laboral ainda não se resolveram os problemas estruturais da área que implicam – como ilustrado no Gráfico 3 – altas taxas de subemprego e emprego informal, assim como baixos níveis de afiliação à previdência social. A partir destas premissas, Acosta e Cajas ¹⁹² afirmam que o governo da Revolução Cidadã não somente não questionou o capitalismo, mas modernizou suas relações e hierarquias. A partir de uma ótica complementar, Unda ¹⁹³ afirma que as políticas sociais ampliaram a relação clientelista das massas pobres em relação ao Estado e foram um instrumento de ampliação do mercado interno no qual participaram capitais médios e grandes com o propósito de obter novos clientes em relação a, por exemplo, bens de primeira necessidade ou programas de moradia popular. Para o autor, os avanços em matéria laboral também foram limitados mediante disposições como o Código da Produção que serviram para manter diversos espaços de flexibilização e precariedade, além do disciplinamento da classe trabalhadora e da divisão entre normativas laborais para empregados públicos e privados. No momento de analisar as melhores condições sociais do período 2007-2016, Dávalos ¹⁹⁴ também defende que nem tudo pode ser atribuído às medidas adotadas pelo governo nacional, mas que é indispensável considerar elementos externos como os fluxos de remessas que incidiram diretamente sobre o consumo das famílias. Por exemplo, segundo o Banco

Central, no período 2007-2016, o Equador recebeu mais de US$ 26 milhões e, mesmo que o fluxo de remessas tenha diminuído após a crise de 2008, sua contribuição à economia equatoriana continuou sendo fundamental e está relacionada tanto com a estabilidade da balança de pagamentos como com a dinamização de diversos setores da economia, o aumento do emprego e a diminuição da pobreza nos lares receptores. A partir de outra perspectiva, autores como Naranjo ¹⁹⁵ e Acevedo e Valenti ¹⁹⁶ reconhecem os avanços na redução da pobreza obtidos pelo governo equatoriano no período 2007-2016, mas destacam o carácter conjuntural das políticas sociais, a falta de coerência entre as disposições normativas e as práticas governamentais e a escassez de transformações estruturais no país. As mudanças introduzidas pelo Executivo coincidem com a estrutura precedente e, mesmo que tenham melhorado as condições de diversos setores, a sustentabilidade do gasto público é uma das grandes dificuldades para o país, já que o fim do financiamento público implicará amplos retrocessos. Além disso, mesmo que as transferências monetárias como o Bônus de Desenvolvimento impliquem corresponsabilidades no âmbito educativo e sanitário para seus beneficiários, na prática seu monitoramento e controle constitui ainda um tema pendente. ¹⁹⁷ Por outro lado, Acevedo e Valenti ¹⁹⁸ destacam a existência de um Sistema Nacional de Inclusão e Equidade Social e de uma série de iniciativas como o Programa de Desenvolvimento Integral, os Centros Infantis do Bem Viver e o Programa Crescendo com Nossos Filhos que buscam enfrentar a exclusão social mediante a oferta de atenção universal e integral. Não obstante, segundo os autores, ao oferecer atenção preferencial à população em extrema pobreza ou vulnerabilidade, tanto a aplicação como os resultados destes programas contradizem seus pressupostos normativos e reproduzem uma lógica assistencialista e focalizada da atenção social. Assim, apesar de sua importância, estes programas não têm contribuído na construção de uma cidadania ativa, limitando-se a ampliar unicamente a possibilidade de recursos e o nível de consumo dos mais pobres. No nível econômico, uma das vitórias do governo foi obter um crescimento superior à média regional. Com efeito, se no período 2007-2016 o crescimento médio do PIB na América Latina e no Caribe foi de 2,4%, no Equador – apesar das contrações registradas em 2009 e 2015 – este alcançou 3,4%. ¹⁹⁹ Para além deste fenômeno, o eixo central do projeto dirigido por Alianza País foi transformar a matriz produtiva do Equador e diminuir sua dependência de bens primários. Para tanto, os planos de desenvolvimento visavam passar de uma economia primária exportadora a uma economia do conhecimento, fundamentada na inovação, pesquisa e produção de bens secundários e de alta tecnologia. Com este fim, o governo nacional impulsionou o desenvolvimento do setor turístico e de novas indústrias em âmbitos como as novas tecnologias e as energias renováveis. Dentre os projetos promovidos, destacam-se a construção de diversas hidroelétricas, o financiamento da Cidade do Conhecimento e da Zona Autônoma de Desenvolvimento Yachay, a construção de numerosos centros de pesquisa e as políticas de atração de profissionais qualificados que buscam vincular acadêmicos e pesquisadores, tanto nacionais como estrangeiros, às universidades do país. ²⁰⁰ Paralelamente, o governo

equatoriano impulsionou também transformações que redefiniram as relações comerciais do país. Assim, mesmo que os principais destinos das exportações equatorianas continuem sendo os Estados Unidos e a União Europeia, no período 2007-2016 aumentou a importância das exportações para os países da Associação Latino-americana de Integração (Aladi) e as dirigidas para a Ásia. Na prática, segundo autores como Acosta e Cajas, ²⁰¹ contrariamente às promessas de transformação da matriz produtiva e da criação de um novo modelo de desenvolvimento, o impacto das reformas realizadas no nível econômico não alterou de forma substancial a estrutura econômica do país nem a tipologia de exportações que, segundo o Banco Central do Equador, corresponde em aproximadamente 80% de bens primários (ver Gráfico 4). Como pode ser visto na Tabela 1, o aumento nas exportações de produtos primários se registrou especialmente nos setores de mineração e energético, enquanto o crescimento das exportações de bens industrializados, mesmo com avanços importantes em alguns anos, não se caracterizou por uma evolução sustentada nem uniforme. Como resultado, os críticos da Revolução Cidadã destacam que a economia continua produzindo matériasprimas e serviços de baixo valor agregado, enquanto a dependência do petróleo e de seus altos preços gera um entorno de instabilidade perene, agravado recentemente pela queda dos preços no mercado internacional. Além disso, afirmam que as políticas promovidas pelo governo, após a redução da dívida alcançada até 2009, têm gerado um significativo endividamento público externo e interno, que equivalia a 39,6% do PIB no final de 2016 (26,3 pontos de dívida externa e 12,9 de dívida interna). ²⁰² Gráfico 4. Evolução das exportações por tipo de produto no per íodo 2007-2016

Elaboração própria. Fonte: Banco Central do Equador (BCE), Boletim estatístico mensal . Tabela 1. Exportações do Equador segundo categorias de produtos (milhares FOB) - 2007-2011

Tabela 1. Exportações do Equador segundo categorias de produtos (milhares FOB) - 2012-2016 Elabora çã o pr ó pria. Fonte: Minist é rio do Com é rcio Exterior, Panorama del Comercio Exterior del Ecuador 2007-2016 , p. 458. Em vista de que a China possui aproximadamente 70% da dívida externa e de que o governo vai precisar, futuramente, de novos fundos para dar continuidade a seus projetos, os críticos do processo destacam também os perigos do aumento da dependência econômica em relação àquele país, que empresta recursos a juros mais altos em relação a outros Estados e organismos internacionais, condiciona os empréstimos à construção de infraestrutura e projetos extrativistas e exige, por norma, a contratação de suas empresas para executar as obras financiadas. ²⁰³ Finalmente, apesar da retórica do governo nacional sobre a construção de um modelo alternativo de desenvolvimento, baseado no princípio de Bem Viver ou sumak kawsay , seus críticos lhe acusam de utilizar estes conceitos como ideologia e utopia mobilizadora, esvaziando-os de seu conteúdo original ²⁰⁴ e implementando unicamente um projeto desenvolvimentista de modernização capitalista com redistribuição social que não afetou os interesses de grandes grupos econômicos nem implicou uma redistribuição dos recursos naturais como a água ou a terra. ²⁰⁵ Pelo contrário, se, por um lado, o governo enfrentou a determinados grupos econômicos como os do setor bancário, por outro, os lucros destes mesmos setores foram superiores aos obtidos em períodos neoliberais. Por isso, considera-se que o projeto desenvolvimentista do governo dirigido por Alianza País esteve baseado na reprimarização da economia nacional e em propostas neoextrativistas que favoreceram a específicos grupos locais e transnacionais, determinando tanto a ampliação da fronteira de mineração, petroleira e do agronegócio, assim como de importantes custos sociais e ambientais. ²⁰⁶ No que se refere às transformações no âmbito político, é preciso destacar que, se por um lado, no período 2007-2016, o país se caracterizou por ter estabilidade política, especialmente na função Executiva, não tem conseguido resolver os fortes desequilíbrios que subsistem no desenho institucional, afetam sua recente e frágil democracia e alimentam suas fontes de conflituosidade social. Com efeito, segundo Freidenberg e Pachano, ²⁰⁷ o regime hiperpresidencialista equatoriano, reforçado pela reforma Constitucional de 2008, caracteriza-se pela escassez de contrapesos e mecanismos de controle e transparência da função Executiva. Além disso, diversos autores, como De la Torre ²⁰⁸ e Burbano de Lara, ²⁰⁹ defendem que, no período 2007-2016, o discurso governamental favoreceu a polarização social, restringindo tanto o debate como as formas de manifestação dos desacordos com o poder público. Para De la Torre, ²¹⁰ o governo liderado por Rafael Correa combinou algumas das características clássicas do populismo (carisma do líder, discurso maniqueísta e polarizador etc.) com aspectos inovadores como o apelo constante à racionalidade e ao conhecimento científico para justificar suas políticas ou a presença majoritária de especialistas acadêmicos em ministérios e cargos-chaves da administração pública. Ao combinar o carisma com a tecnocracia, o caso equatoriano se diferencia da Venezuela ou da Bolívia e constitui uma tipologia específica de populismo: o tecnopopulismo. ²¹¹

Além dos enfrentamentos com uma oposição desarticulada composta por partidos tradicionais e novas formações surgidas no contexto da Revolução Cidadã, uma das relações mais conflitivas no período 2007-2016 foi a mantida com os meios de comunicação. Em aplicação da Constituição de 2008, as premissas iniciais do governo eram democratizar os meios de comunicação, assegurar a liberdade de expressão e informação e fortalecer a participação cidadã, mas sua atuação neste campo não esteve isenta de contradições. De acordo com Punín, ²¹² se o governo nacional acusava os meios de comunicação de ser o principal instrumento da oposição e de carecer de ética jornalística ou rigor profissional, os meios de comunicação consideravam ao Executivo como responsável por limitar a liberdade de expressão, exercer censura indireta e possuir o controle de numerosos meios que estavam ao serviço de sua propaganda política. Este enfrentamento determinou altos níveis de confrontação que provocaram, do lado da imprensa, fortes críticas e denúncias de corrupção e nepotismo de membros do governo. Por outro lado, por vontade do Executivo, apreenderam-se diversos meios de comunicação, não se renovaram licenças de concessão de frequências e se aprovou uma Lei Orgânica de Comunicação, que estabelece a existência da Superintendência da Informação e Comunicação (Supercom) como organismo regulador. Neste marco, segundo a Associação Andina para a Observação e Estudo de Meios (Fundamedios), ²¹³ no período 2008-2016, registraram-se 2.050 agressões por parte de membros do governo aos meios de comunicação e jornalistas. Entre estes fenômenos, incluem-se processos pela Lei de Comunicação, formas de uso abusivo do poder e casos de censura. Não obstante, agrupações progressistas que, em princípio, deveriam estar do lado da Revolução Cidadã, ou seja, o movimento indígena, os movimentos sociais e setores organizados da sociedade equatoriana como sindicatos, estudantes, professores e grupos ambientalistas, também manifestaram publicamente sua oposição e, muitas vezes, seu total desacordo com o governo nacional. ²¹⁴ A relação do movimento indígena com o Executivo, por exemplo, foi tensa, e suas diferenças residem nas distintas perspectivas sobre a plurinacionalidade e interculturalidade, o modelo de desenvolvimento ou o controle dos recursos naturais do país. ²¹⁵ Apesar de diversas organizações e líderes indígenas terem estado a favor do governo e suas políticas desde 2009, tanto a Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie) como outras agrupações organizaram de e participaram em mobilizações e protestos nacionais, principalmente contra as propostas de regulação de recursos naturais e projetos neo-extrativistas do Executivo. As tensões e conflitos do governo foram constantes mesmo com outros setores progressistas que inicialmente o apoiaram, mas que paulatinamente se distanciaram, questionando seu projeto modernizador e neo-extrativista ou algumas de suas políticas. O protagonismo destes setores foi evidente na consulta e referendo de 2011 e nas eleições de 2013, no qual ex-aliados de Alianza País criticaram abertamente o governo e denunciaram o carácter autoritário de suas práticas. Não obstante, segundo Ospina, ²¹⁶ estes desencontros foram resultado da visão unitária e anticorporativista, assim

como da retórica revolucionária do governo que classificava os grupos organizados em aliados ou inimigos. Com efeito, no período 2007-2016, o uso de pejorativos como “esquerdistas infantis”, “fundamentalistas ecológicos” ou “setores radicais” foi frequente para críticos e opositores, mais ou menos progressistas. Além disso, já que segundo o ex-presidente Correa ²¹⁷ não era possível “serem mendigos sentados em uma sacola de ouro”, os questionamentos ao extrativismo se deslegitimavam como obstáculos ao desenvolvimento e a superação da pobreza. Como resultado, segundo a Plataforma pela Defesa da Democracia e os Direitos Humanos do Equador (PDDHE), ²¹⁸ durante o período 2007-2016, limitou-se o direito de participação dos cidadãos, criminalizou-se o protesto social e se adotaram estratégias de controle social e limite de ação das organizações sociais, ao mesmo tempo que se perseguiu e encarcerou numerosos líderes de organizações sociais e defensores de direitos humanos e da natureza acusados de “terrorismo, sabotagem, rebelião e atentados contra a segurança nacional”. Outras medidas utilizadas pelo governo foram a ameaça de dissolução, o fechamento de ONGs e a criminalização de organizações sociais, a cooptação de organizações e a criação de sindicatos e organizações paralelas afins como a Central Unitária de Trabalhadores (CUT). As contradições entre a construção de uma “democracia radicalmente participativa”, ²¹⁹ as diversas modalidades de participação social previstas pela Constituição de 2008 e a restrição dos espaços de participação da cidadania no período 2007-2016, de acordo com Burbano de Lara, ²²⁰ são resultado do projeto de refundação popular encarnado por Alianza País no qual o partido – em um processo de progressiva concentração e centralização do poder estatal –, assumiu a ação do Estado e sua liderança política como a autêntica expressão da vontade popular. Neste marco, aos cidadãos e organizações sociais cabia somente a adesão aos desígnios do Estado, mas não o espaço para a organização autônoma nem tampouco o direito de dissenso ou protesto. Em consequência, quando o faziam, eram acusados ou de representar interesses setoriais em oposição ao interesse coletivo ou de serem aliados dos grupos conservadores. Por outro lado, mesmo que no período 2007-2016 houve importantes avanços em relação à representação política feminina e políticas públicas com enfoque de gênero e intercultural. Após a aprovação do Código Penal em 2014 e a substituição da Estratégia Nacional Intersetorial de Planejamento e Prevenção da Gravidez em Adolescentes (Enipla) pelo Plano Família Equador, limitaram-se os avanços nas agendas de igualdade e direitos. Ambos instrumentos implicaram retrocessos importantes em matéria de saúde sexual e reprodutiva que incluem a criminalização do aborto ou a imposição de uma agenda conservadora e religiosa em relação ao planejamento familiar. ²²¹ Os elementos apenas descritos se relacionam também com os processos de reestruturação que aconteceram em Alianza País desde a aprovação da Constituição de Montecristi. As tensões internas, derivadas em grande parte da heterogeneidade do movimento, têm contribuído tanto com o distanciamento e as críticas de coletivos progressistas como com a saída de

vários de seus membros fundadores, entre os que se enumeram intelectuais e líderes sociais. ²²² A estes fatores cabe adicionar o déficit democrático do movimento, a centralização da tomada de decisões, a fraqueza de sua estrutura política e a excessiva personalização e hegemonia da figura presidencial no período 2007-2016. ²²³ Nas eleições provinciais e municipais de 2014, os resultados obtidos por Alianza País determinaram sua derrota nas três principais cidades equatorianas (Guayaquil, Quito e Cuenca) e a perda na maioria das capitais provinciais. Não obstante, no ano seguinte a Assembleia Nacional, a Alianza aprovou a reeleição indefinida como mecanismo de continuidade do projeto da Revolução Cidadã. Esta disposição, que não foi submetida à consulta popular, somou-se aos efeitos da crise econômica e contribuiu para aumentar o descontentamento social entorno do projeto governamental, assim como a rejeição às crescentes regulações das organizações da sociedade civil, a criminalização do protesto social ou a promoção de emendas constitucionais e a aprovação de reformas sobre a herança e a mais-valia. ²²⁴ O ano de 2015, denominado “o ano da resistência”, caracterizou-se por múltiplas manifestações e marchas organizadas por diversos setores (ambientalistas, indígenas, centrais sindicais, aposentados, médicos, estudantes etc.). ²²⁵ Neste contexto, que se caracterizou também pela queda de popularidade de Rafael Correa, ²²⁶ este último optou por não participar nos comícios de 2017, designando como candidato Lenín Moreno Garcés, ex-vice-presidente da República. Moreno ganhou as eleições no segundo turno com 51,16% dos votos frente a seu opositor Guillermo Lasso, banqueiro e representante da coalizão de direita Creo-Suma, que obteve 48,84% dos votos. ²²⁷ De acordo com Dávalos ²²⁸ e Acosta e Cajas, ²²⁹ a última etapa do governo de Rafael Correa se distinguiu não só pelo desgaste do projeto, mas também pelo retorno ao Consenso de Washington, às privatizações e à assinatura de um Acordo Comercial Multilateral com a União Europeia. Assim, as eleições de 2017 aconteceram em um cenário adverso para Alianza País, que, além dos problemas econômicos, a perda de legitimidade do projeto e as consequências de tragédias como o terremoto da província de Manabí, em 2016, teve que enfrentar diversas denúncias de corrupção que envolviam membros do governo e a repercussão de escândalos internacionais como o da construtora brasileira Odebrecht. Neste contexto, desde sua chegada ao poder em 2017, Moreno tem se distanciado gradualmente do programa de seu antecessor, tem permitido o julgamento por corrupção do ex-vicepresidente Jorge Glas e outras figuras importantes do governo anterior e tem implementado medidas como a convocatória de uma consulta popular e um referendo constitucional. Com a vitória majoritária do sim em fevereiro de 2018, estes processos eliminaram a reeleição indefinida e prescreveram, temporariamente, o retorno de Rafael Correa à presidência, ao mesmo tempo que têm revertido diversas das reformas aprovadas por seu governo e sua institucionalidade. Moreno tem dado também um giro ainda mais neoliberal à política econômica e hoje se debate entre a ruptura total com a herança e estruturas do governo anterior e a preservação de algumas das suas conquistas sociais em um novo cenário marcado por grandes dificuldades econômicas, baixa aprovação popular e não poucas contradições entre teoria e prática.

Reflexões finais Após o que Rafael Correa denominou como a “longa e triste noite neoliberal”, as transformações propiciadas pela Revolução Cidadã se inscrevem dentro de um projeto mais amplo de refundação da “pátria” sobre novas bases e, no qual, recupera-se o papel do Estado na condução da economia e da vida política nacional. Depois de longos períodos de instabilidade e múltiplas dificuldades, a chegada ao poder de Alianza País, mediante as eleições presidenciais de 2006, implicou uma transformação radical desta tendência e alimentou as esperanças de mudança, superação do neoliberalismo e alcance de bem-estar por parte da sociedade equatoriana. Os desejos se tornaram realidade, pelo menos parcialmente, e ao longo do período 2007-2016, a “Revolução Cidadã” recolheu diversos desejos da sociedade equatoriana. Graças a priorização do gasto social, alcançaram-se vários êxitos neste âmbito e uma relativa estabilidade econômica que permitiu tanto a saída da pobreza de diversos grupos sociais como a diminuição da desigualdade. Isto aconteceu em um cenário de altos preços das matérias-primas e importantes reformas que ampliaram os recursos à disposição do Estado. Não obstante, as medidas de redistribuição adotadas pelo governo equatoriano e suas políticas sociais não alteraram a essência da estrutura econômica do país, que continua sendo desigual e com elevada concentração da riqueza em poucas mãos. As transformações nas esferas econômica e social também permitiram o surgimento de novos consumidores, mas não de novos cidadãos com plenos direitos, enquanto os graves problemas de subemprego e a falta de serviços públicos adequados ainda constituem traços essenciais da sociedade equatoriana. Além disso, em um cenário caracterizado por amplas contradições entre discursos e práticas, o país tampouco superou as condições de dependência e extrativismo que distinguem seu modelo econômico. Pelo contrário, para diminuir a dependência do petróleo e combater a diminuição de seu preço, potencializou-se a mineração e a construção de hidroelétricas, aprofundando o modelo extrativista com todos seus efeitos nocivos nos níveis social e ambiental. Em tais circunstâncias, as críticas e a oposição à Revolução Cidadã não foram visíveis só entre os representantes da direita tradicional. Amplos grupos mais e menos progressistas (indígenas, intelectuais de esquerda, estudantes, professores, sindicalistas, ambientalistas, mulheres etc.), que inicialmente apoiaram o projeto levado à frente por Alianza País, à medida que não se cumpriram as promessas de seu programa, foram-se desvinculando de sua base social e passaram a questionar suas decisões. Contudo, ao considerar representar o interesse geral, o projeto dirigido por Rafael Correa não incluiu a colaboração de todos os setores organizados e atores-chave da sociedade equatoriana, cuja participação foi desqualificada, deslegitimada e mesmo criminalizada em nome do que considerou como a “razão” e o “bem comum”. Outros problemas como a corrupção e a falta de transparência pública também minaram a confiança da população nas propostas de Alianza País e têm contribuído ao progressivo desgaste de seu projeto.

Perante este cenário, fatores como a diminuição das receitas petroleiras, o aumento do endividamento público ou as consequências da crise econômica global, assim como os problemas de vários setores da esquerda equatoriana e o renovado protagonismo dos grupos conservadores (presentes com maior ênfase no atual governo de Lenín Moreno), ameaçam a continuidade dos sucessos alcançados no âmbito social. Além disso, colocam em discussão o cumprimento dos objetivos iniciais do programa proposto por Alianza País e a promoção de uma real transformação da sociedade equatoriana. Após o “giro à esquerda” de princípios do século XXI, tem se argumentado que questionar os governos progressistas latino-americanos implica favorecer automaticamente a direita e os setores conservadores, reforçando também fenômenos como o imperialismo. Este raciocínio dicotômico parece considerar o carácter progressista ou de esquerda de um governo apenas a partir de seu discurso e promessas, mas não de suas práticas, ou da mera renovação de elites com ampliação e promoção de direitos, mas sem transformações reais e sustentáveis. Deste ponto de vista, ignora-se que a promoção da transformação de uma sociedade em igualdade e liberdade não se pode impor, nem pode prescindir, na democracia, do debate entre visões opostas, como tampouco pode carecer de ampla participação social ou da crítica à autoridade. Perante esta contradição, um dos principais desafios para a América Latina talvez consista justamente em definir o que se entende por governo de esquerda ou progressista e qual é o projeto ideológico que perseguem os povos da região, reconceitualizando estas noções à luz das experiências que, como a equatoriana, prometeram uma “Revolução” e um “Socialismo do Bem Viver” e deixaram uma década marcada por diversos acertos, mas também por muitos limites e contradições. Ap êndice No marco de um governo plenamente neoliberal que hoje se caracteriza pelo corte do investimento público e pelo retorno das reformas estruturais exigidas pelo FMI, o presidente Lenín Moreno aprovou o Decreto Executivo 883 estabelecendo o fim dos subsídios dos combustíveis e uma série de medidas de austeridade que a população denominou como “pacotaço”. Tais medidas provocaram a rejeição dos setores populares, fazendo que, entre os dias 3 e 13 de outubro de 2019, o Equador registrasse as maiores manifestações dos últimos anos, com forte protagonismo de diversos setores sociais como trabalhadores do transporte e estudantes, mas especialmente do movimento indígena representado pela Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie). Durante os protestos, o governo declarou o Estado de exceção nacional, suspendeu os direitos de liberdade de reunião e associação e, mais tarde, limitou o direito de liberdade de circulação em todo o território nacional. Mesmo que, após o diálogo com os setores indígenas, estas medidas e o fim dos subsídios tenham sido revogados, a repressão dos protestos adquiriu um caráter inaudito na história do país. Segundo a Defensoria Pública, ²³⁰ registraram-se 10 mortes, mais de 1.000 feridos e numerosos ataques e violações aos direitos humanos.

Além destes fatos, o atual governo presidido por Lenín Moreno promove a perseguição de opositores políticos, tem aprofundado o neoliberalismo econômico com benefícios recorde para os bancos e os grandes capitais, em detrimento do bem-estar dos trabalhadores e dos setores mais vulneráveis. De forma paralela, está consolidando o modelo de desenvolvimento extrativista com novas concessões para a exploração mineira e o agronegócio que provocam graves danos ambientais, assim como violações dos direitos dos povos indígenas e comunidades rurais. A estes elementos se somam novas ameaças como o avanço do conservadorismo religioso e o crescimento da extrema direita. A apresentação de um projeto de lei de Fortalecimento das Famílias do Equador e a criação do partido de ultradireita Livres, Aliança pela Liberdade são dois exemplos recentes deste processo. Como corolário, o caminho para a construção de uma sociedade mais justa, equitativa e democrática deverá enfrentar novos obstáculos. Neste processo, cabe às esquerdas equatorianas reinventar-se e oferecer propostas emancipatórias que vão além dos modelos até agora experimentados. Bibliografia ACEVEDO, Carlos; VALENTI, Giovanna. “Exclusión social en Ecuador. Buen vivir y modernización capitalista”. Polis , n. 46, 2017. Disponível em: https:// journals.openedition.org/polis/12319. Acesso em: 12 dez. 2017. ACOSTA, Alberto; CAJAS, John. “Ecuador, un país incierto que no cambió”. Sin Permiso , 17 mar. 2018. Disponível: http://www.sinpermiso.info/textos/ ecuador-un-pais-incierto-que-no-cambio. Acesso em: 30 mar. 2018. __.“‘La deuda eterna’ contraataca”. Plan V , 24 jul. 2017. Disponível em: http://www.planv.com.ec/historias/sociedad/la-deuda-eterna-contrataca. Acesso em: 12 dez. 2017. __. “El correísmo de regreso al WC. Una primera lectura al ciclo capitalista de la economía ecuatoriana entre 2000-2014”. In: ANDRADE, Adrián López; PAZMIÑO, Darío Terán; FLOR, Francisco Hidalgo (eds.). Desafíos del pensamiento crítico. Memorias del Décimo Congreso Ecuatoriano de Sociología y Política . Quito: Universidad Central del Ecuador/Clacso, 2015. pp. 87-110. ACOSTA, Alberto; PONCE, Javier. “La pobreza en la ‘revolución ciudadana’ o ¿pobreza de revolución?”. Ecuador a Debate , Quito, n. 81, dic. 2010, p.7-19. ACOSTA, Alberto. “La compleja tarea de construir democráticamente una sociedad democrática”. La Tendencia , Quito, n. 8, oct.-nov. 2008, p. 43-8. __ . Breve historia económica del Ecuador . Quito: Corporación Editora Nacional, 2006. ACOSTA, Alberto; LÓPEZ, Susana. “Causas del reciente proceso emigratorio ecuatoriano”. Cartillas sobre Migración , ILDIS/FES, Quito, n. 3, 2003. ALIANZA PAÍS. Plan de Gobierno del Movimiento PAIS 2007-2011 . Disponível em: https://www.ucm.es/data/cont/media/www/17360/

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lugar do nome tradicional de matriz indígena “Quito”, se optou por identificar o país com o termo assignado ao seu território pela missão geodésica francesa que visitou o país durante o século XVIII com o objetivo de medir um arco do meridiano terrestre para definir a forma da Terra. ¹⁴⁵ O huasipungo era um sistema de produção agrícola herdado do período colonial, pelo qual, em troca de terras para o cultivo familiar, o camponês ou peão – majoritariamente indígena – estabelecia uma relação de dependência com o proprietário, intercambiando sua força de trabalho para satisfazer as intenções de produção deste último. ¹⁴⁶ Alberto Acosta. Breve historia económica del Ecuador (Quito: Corporación Editora Nacional, 2006). ¹⁴⁷ Como destaca Acosta ( Breve historia económica del Ecuador ), a dívida inicial foi herdada da guerra de independência, porém seu volume cresceu de forma exponencial no período do auge petroleiro e, posteriormente, durante a era neoliberal. ¹⁴⁸ Adrián Carrasco; Pablo Beltrán; Jorge Palacios. “La economía ecuatoriana 1950-2008”. In: Estado del país. Informe cero Ecuador 1950-2010 (Quito: Espol, Flacso, Puce, Universidad de Cuenca, Contrato Social por la Educación en el Ecuador, Observatorio de los Derechos de la Niñez y la Adolescencia (ODNA), 2011). ¹⁴⁹ Rafael Correa. Ecuador: De Banana Republic a la No Rep ública , p. 19 (Bogotá: Random House/Mondadori, 2009). ¹⁵⁰ Ibidem . ¹⁵¹ Carlos Larrea. Pobreza, dolarización y crisis en el Ecuador , p. 23 (Quito: Abya Yala/ILDIS-FES/IE/Flacso, 2004). ¹⁵² Alberto Acosta; Susana López. “Causas del reciente proceso emigratorio ecuatoriano”. Cartillas sobre Migración , ILDIS/FES, Quito, n. 3, 2003, p. 5. ¹⁵³ Alberto Acosta. Breve historia económica del Ecuador . ¹⁵⁴ Guillaume Fontaine; José Fuentes. “Transición hacia el centralismo burocrático”. In: Estado del País. Informe cero, Ecuador (1950-2010) , p. 247 (Quito: Espol, Flacso, Puce, Universidad de Cuenca, Contrato Social por la Educación en el Ecuador, Observatorio de los Derechos de la Niñez y la Adolescencia (ODNA), 2011). ¹⁵⁵ Juan Paz y Miño. “El gobierno de la Revolución Ciudadana: una visión histórica”. In: Sebastián Mantilla; Santiago Mejía (comp.). Rafael Correa. Balance de la Revolución Ciudadana (Quito: Centro Latinoamericano de Estudios Políticos/Editorial Planeta, 2012). ¹⁵⁶ Gioconda Herrera (coord.). Ecuador: la migración internacional en cifras , p. 25 (Quito: Flacso Ecuador/Fondo de Población de las Naciones Unidas (UNFPA), 2008).

¹⁵⁷ Como já foi descrito, durante o governo de Jamil Mahuad, decretou-se o “resgate bancário” e posteriormente a dolarização do país. Ambas decisões geraram ampla rejeição popular e provocaram grandes mobilizações em todo o território com grande protagonismo da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie). Nestas circunstâncias, o presidente tentou se autoproclamar ditador, mas não obteve o apoio das Forças Armadas, que tinham um plano ditatorial autônomo. Finalmente, Mahuad foi derrubado em 21 de janeiro de 2000. Nesta conjuntura, formouse, em primeiro lugar, uma “Junta militar”, posteriormente um “Triunvirato” e, após extensas negociações, em 22 de janeiro, assumiu a Presidência da República o então vice-presidente Gustavo Noboa Bejarano (Ayala, 2013). ¹⁵⁸ Flavia Freidenberg. “El Flautista de Hammelin: liderazgo y populismo en la democracia ecuatoriana”. In: Carlos De La Torre; Enrique Peruzzotti (eds.). El retorno del pueblo. Populismo y nuevas democracias en América Latina (Quito: Flacso, 2008). ¹⁵⁹ A Revolta dos Foragidos é o nome que se deu às reiteradas mobilizações cidadãs que precipitaram a saída da presidência de Gutiérrez. ¹⁶⁰ Para Franklin Ramírez (“Desencuentros, convergencias, polarización (y viceversa). El gobierno ecuatoriano y los movimientos sociales”. Nueva Sociedad , n. 227, 2010, p. 87), ao contrário das mobilizações que provocaram a destituição de Bucaram, em 1997, e a queda de Mahuad no ano 2000, os protestos que se verificaram no marco da Revolta dos Foragidos apresentam uma particularidade, pois foram consequência direta do denominado “rompimento cidadão” da tutela partidária e do comando de qualquer estrutura organizativa. ¹⁶¹ Franklin Ramírez; Analía Minteguiaga. “El nuevo tiempo del Estado. La política posneoliberal del correísmo”. OSAL , CLACSO, Argentina, año VIII, n. 22, 2007. ¹⁶² Virgilio Hernández; Fernando Buendía. “Ecuador: avances y desafíos de Alianza País”. Revista Nueva Sociedad , Buenos Aires, n. 234, jul.-ago. 2011, p. 130-42. ¹⁶³ Pablo Dávalos. Alianza País o la reinvención del poder. Siete ensayos sobre el posneoliberalismo en Ecuador (Bogotá: Ediciones desde Abajo, 2016). ¹⁶⁴ Alianza País. Plan de Gobierno del Movimiento PAIS 2007-2011 . Disponível em: https://www.ucm.es/data/cont/media/www/17360/ Texto%201%20-%20Plan_de_Gobierno_Alianza_PAIS.pdf. Acesso em: 12 ago. 2015. ¹⁶⁵ Catherine Conaghan; Carlos De La Torre. “The Permanent Campaign of Rafael Correa: Making Ecuador’s Plebiscitary Presidency”. Press/Politics , v. 3, n. 13, 2008, p. 118. ¹⁶⁶ Franklin Ramírez; Analía Minteguiaga. “El nuevo tiempo del Estado”, p. 93-6.

¹⁶⁷ Flavia Freidenberg. “El Flautista de Hammelin”. ¹⁶⁸ A cidade de Montecristi é a cidade natal de Eloy Alfaro, líder da Revolução Liberal equatoriana (1895-1924). Também conhecido como o “velho lutador”, Alfaro realizou reformas fundamentais para o Estado e a sociedade equatoriana, como a instituição do laicismo, a extensão de direitos civis e a construção de infraestrutura pública como escolas, hospitais e o modal ferroviário, que desempenhou um papel essencial na integração do território nacional (Ayala, 2013). Sua figura é também inspiradora do Movimiento Alianza País e, neste sentido, a escolha de sua cidade natal para a realização da Assembleia Constituinte foi altamente simbólica. ¹⁶⁹ Franklin Ramírez. “Las antinomias de la Revolución Ciudadana”. Le Monde Diplomatique , Buenos Aires, 2008. Disponível em: http:// www.institut-gouvernance.org/es/analyse/fiche-analyse-447.html. Acesso em: 11 jul. 2011. ¹⁷⁰ Alberto Acosta. “La compleja tarea de construir democráticamente una sociedad democrática”. La Tendencia , Quito, n. 8, oct.-nov. 2008, pp. 43-8; Virgilio Hernández; Fernando Buendía. “Ecuador: avances y desafíos de Alianza País”. ¹⁷¹ Betsy Salazar. La Nueva Constitución del Ecuador (2008): retos para el presente y para el futuro . In: Ángel Montes (coord.). Ecuador contemporáneo. análisis y alternativas actuales , p. 332 (Murcia: Ediciones de la Universidad de Murcia, 2009). ¹⁷² Asamblea Constituyente. Constitución de la República del Ecuador . 2008. Disponível em: http://www.asambleanacional.gob.ec/sites/default/files/ documents/old/constitucion_de_bolsillo.pdf. Acesso em: 4 abr. 2017. ¹⁷³ Secretaria Nacional de Planificación y Desarrollo – Senplades. Plan nacional para el Buen Vivir 2013-2017. Todo el mundo mejor. Quito: Senplades, 2013. ¹⁷⁴ Consejo Nacional Electoral – CNE. Atlas electoral 2009-2014 . Disponível em: http://cne.gob.ec/es/estadisticas/publicaciones/category/136-atlaselectoral-2009-2014. Acesso em: 15 dez. 2017. ¹⁷⁵ Fander Falconí; Pabel Muñoz. “Ecuador: de la receta del ‘Consenso de Washington’ al posneoliberalismo”. In: Sebastián Mantilla; Santiago Mejía (comp.). Rafael Correa. Balance de la Revolución Ciudadana (Quito: Centro Latinoamericano de Estudios Políticos: Editorial Planeta, 2012). ¹⁷⁶ Comisión Económica para América Latina – Cepal. Panorama social de América Latina , p. 120 (Santiago: Cepal, 2005. ¹⁷⁷ Ibidem , p. 31. ¹⁷⁸ Secretaria Nacional de Planificación y Desarrollo – Senplades. Diez años de Revolución Ciudadana. La década ganada (Quito: Senplades, 2017). Apesar do governo do ex-presidente Rafael Correa ter terminado

oficialmente em 1 o de maio de 2017, neste trabalho utilizaremos dados oficiais do período 2007-2016. ¹⁷⁹ Ministerio Coordinador de Desarrollo Social – MCDS. Informe de desarrollo social 2007-2017 (Quito: MCDS, 2017). ¹⁸⁰ Após a crise global de 2008, a demanda de petróleo diminuiu, ao passo que aumentou a oferta de combustíveis não convencionais, o que provocou uma queda de seus preços. Mais adiante, a retomada do crescimento das economias e fatores como a demanda dos países emergentes ou a Primavera Árabe determinaram um novo aumento no período 2009-2013. Porém, desde 2014, registra-se a tendência à diminuição dos preços do petróleo cru com recuperações parciais. ¹⁸¹ Mark Weisbrot; Luis Sandoval. La economía ecuatoriana en años recientes . Center for Economic and Policy Research (CEPR), Estados Unidos, 2009, p. 8. Disponível em: http://cepr.net/documents/publications/ ecuador-update-2009-06-spanish.pdf. Acesso em: 15 jul. 2013. ¹⁸² Senplades. Diez años de Revolución Ciudadana , p. 62. ¹⁸³ Alberto Acosta; John Cajas. “‘La deuda eterna’ contraataca”. Plan V , 27 jul. 2017. Disponível em: http://www.planv.com.ec/historias/sociedad/ladeuda-eterna-contrataca. Acesso em: 12dez. 2017. ¹⁸⁴ Senplades. Diez años de Revolución Ciudadana . ¹⁸⁵ Mariana Naranjo. Sistemas de protección social en América Latina y el Caribe, Ecuador . Documento de Proyecto. Cepal, Naciones Unidas, Chile, 2013, p. 31. Disponível em: http://repositorio.cepal.org/bitstream/handle/ 11362/4097/1/S2013558_es.pdf. Acesso em: 12 abr. 2014. ¹⁸⁶ Fander Falconí; Pabel Muñoz. “Ecuador: de la receta del ‘Consenso de Washington’ al posneoliberalismo”. ¹⁸⁷ Instituto Nacional de Estadísticas y Censos – INEC. Encuesta Nacional de Empleo, Subempleo y Desempleo (Enemdu) . 2016. Disponível em: http:// www.ecuadorencifras.gob.ec/enemdu-2016/. Acesso em: 12 nov. 2017. ¹⁸⁸ Ibidem . ¹⁸⁹ Ibidem . ¹⁹⁰ Alberto Acosta; Javier Ponce. “La pobreza en la ‘revolución ciudadana’ o ¿pobreza de revolución?”, Ecuador a Debate , Quito, n. 81, dic. 2010, p.7-19. ¹⁹¹ Alberto Acosta; John Cajas. “El correísmo de regreso al WC. Una primera lectura al ciclo capitalista de la economía ecuatoriana entre 2000-2014”. In: Adrián López Andrade; Darío Terán Pazmiño; Francisco Hidalgo Flor (eds.). Desafíos del Pensamiento Crítico. Memorias del Décimo Congreso Ecuatoriano de Sociología y Política (Quito: Universidad Central del Ecuador/Clacso, 2015). ¹⁹² Ibidem , p. 97.

¹⁹³ Mario Unda. “Modernización del capitalismo y reforma del Estado”. In: Freddy Álvarez; Ramiro Ávila; Carlos Castro et al. El correísmo al desnudo , p. 37 (Quito: Montecristi Vive, 2013). ¹⁹⁴ Pablo Dávalos. Alianza País o la reinvención del poder , p. 130. 195 Mariana Naranjo. Sistemas de protección social en América Latina y el Caribe, Ecuador . ¹⁹⁶ Carlos Acevedo; Giovanna Valenti. “Exclusión social en Ecuador. Buen vivir y modernización capitalista”. Polis , n. 46, 2017. Disponível em: https:// journals.openedition.org/polis/12319. Acesso em: 12 dez. 2017. ¹⁹⁷ Mariana Naranjo. Sistemas de protección social en América Latina y el Caribe, Ecuador , p. 79. ¹⁹⁸ Carlos Acevedo; Giovanna Valenti. “Exclusión social en Ecuador”. ¹⁹⁹ Senplades. Diez años de Revolución Ciudadana , p. 61. ²⁰⁰ Antonio Palazuelos; María del Carmen Villarreal. “Ecuador: el proyecto de desarrollo de la Revolución Ciudadana”. In: Antonio Palazuelos; José Déniz; Omar De León. Nuevas estrategias económicas en América Latina (Madrid: La Catarata, 2012). ²⁰¹ Alberto Acosta; John Cajas. “‘La deuda eterna’ contraataca”. ²⁰² Ibidem . ²⁰³ Ibidem . ²⁰⁴ Sara Caria; Rafael Domínguez. “El porvenir de una ilusión: la ideología del Buen Vivir”. América Latina Hoy , n. 67, 2014, pp. 139-163. ²⁰⁵ Mario Unda. “Modernización del capitalismo y reforma del Estado”; Alberto Acosta; John Cajas. “‘La deuda eterna’ contraataca”; idem , “Ecuador, un país incierto que no cambió”. Sin Permisso, 17 mar. 2018. Disponível em: http://www.sinpermiso.info/textos/ecuador-un-pais-inciertoque-no-cambio. Acesso em: 30 mar. 2018. ²⁰⁶ Eduardo Gudynas. “Si eres tan progresista ¿por qué destruyes la naturaleza? Neoextractivismo, izquierda y alternativas”. Ecuador a Debate , Quito, n. 79, abr. 2010, pp.61-82; Pablo Dávalos. Alianza País o la reinvención del poder. ²⁰⁷ Flavia Freidenberg; Simón Pachano. El sistema político ecuatoriano (Quito: Flacso-Ecuador, 2016). ²⁰⁸ Carlos De La Torre. “El tecnopopulismo de Rafael Correa. ¿Es compatible el carisma con la tecnocracia?”. In: Freddy Álvarez; Ramiro Ávila; Carlos Castroet al. El correísmo al desnudo (Quito: Montecristi Vive, 2013). ²⁰⁹ Felipe Burbano de Lara. “Ciudadanía, dominación estatal y protesta en la ‘revolución ciudadana’”. Iberoamericana , v. XVII, n. 65, 2017, pp.179-200.

²¹⁰ Carlos De La Torre. “El tecnopopulismo de Rafael Correa”. ²¹¹ Ibidem . ²¹² María Punín. “Rafael Correa y la prensa ecuatoriana. Una relación de intrigas y ódios”. Revista Razón y Palabra , Monterrey, n. 75, feb.-abr. 2011, p. 2-3. ²¹³ Asociación Andina para la Observación y Estudio de Medios – Fundamedios. 2016. Un clima negativo para la libertad de expresión en Ecuador . 2016. Disponível em: http://www.fundamedios.org/2016-laaplicacion-de-la-ley-de-comunicacion-y-la-censura-en-internet-marcan-elclima-negativo-para-la-libertad-de-expresion-en-ecuador/. Acesso: 12 nov. 2017. ²¹⁴ Pablo Ospina. “Historia de un desencuentro: Rafael Correa y los movimientos sociales en el Ecuador (2007-2008)”. In: Raphael Hoetmer (coord.). Repensar la política desde América Latina. Cultura, Estado y movimientos sociales (Lima: Programa Democracia y Transformación Global, Universidad Nacional Mayor de San Marcos, 2009); Felipe Burbano de Lara. “Ciudadanía, dominación estatal y protesta en la ‘revolución ciudadana’”. ²¹⁵ Jorge León. “Las organizaciones indígenas y el gobierno de Rafael Correa”. Íconos. Revista de Ciencias Sociales , Quito, n. 37, mayo 2010, pp. 13-23; Felipe Burbano de Lara. “Ciudadanía, dominación estatal y protesta en la ‘revolución ciudadana’”. ²¹⁶ Pablo Ospina. “Historia de un desencuentro: Rafael Correa y los movimientos sociales en el Ecuador (2007-2008)”, p. 213. ²¹⁷ Discurso realizado no Enlace Cidadão 299 de 2012 na cidade de Riobamba (Agencia Pública de Noticias del Ecuador y Suramérica – Andes. “Rafael Correa: ‘No podemos ser mendigos sentados en un saco de oro’”. Andes , 1 dic. 2012. Disponível em: https://www.andes.info.ec/es/noticias/ actualidad/1/9675. Acesso em: 23 jun. 2017. ²¹⁸ Plataforma por la Defensa de la Democracia y los Derechos Humanos en el Ecuador – PDDHE. Democracia, Derechos Humanos e instituciones en Ecuador (Quito: PDDHE, 2017). ²¹⁹ Alianza País. Plan de Gobierno del Movimiento PAIS 2007-2011 . ²²⁰ Felipe Burbano de Lara. “Ciudadanía, dominación estatal y protesta en la ‘revolución ciudadana’”, p. 196. ²²¹ PDDHE. Democracia, Derechos Humanos e instituciones en Ecuador , p. 456. ²²² Virgilio Hernández; Fernando Buendía. “Ecuador: avances y desafíos de Alianza País”; Pablo Dávalos. Alianza País o la reinvención del poder. ²²³ Flavia Freidenberg; Simón Pachano. El sistema político ecuatoriano ; Felipe Burbano de Lara. “Ciudadanía, dominación estatal y protesta en la ‘revolución ciudadana’”.

²²⁴ Pablo Dávalos. Alianza País o la reinvención del poder ; Felipe Burbano de Lara. “Ciudadanía, dominación estatal y protesta en la ‘revolución ciudadana’”. ²²⁵ Felipe Burbano de Lara. “Ciudadanía, dominación estatal y protesta en la ‘revolución ciudadana’”, p. 195. ²²⁶ Segundo a empresa de opinião pública Cedatos, em 2016, 53% dos equatorianos desaprovavam a gestão de Rafael Correa, 61% não acreditavam no seu discurso e 63% desaprovavam sua atitude e forma de ser. Não obstante, a entidade também sublinhou que, ao longo do mandato de Correa, a aprovação de sua gestão e sua credibilidade sempre superaram 50%. ²²⁷ Consejo Nacional Electoral – CNE. Elecciones generales de 2017 . Disponível em: http://cne.gob.ec/es/procesos-electorales/eleccionesgenerales-2017. Acesso em: 15dez. 2017. ²²⁸ Pablo Dávalos. Alianza País o la reinvención del poder . ²²⁹ Alberto Acosta; John Cajas. “Ecuador, un país incierto que no cambió”; idem , “‘La deuda eterna’ contraataca”; idem , “El correísmo de regreso al WC. ²³⁰ “10 muertes en el contexto de las protestas registra la Defensoría del Pueblo; ocho personas perdieron un ojo”. El Comercio , 23 oct. 2019. Disponível em: https://www.elcomercio.com/actualidad/defensoria-puebloderechos-humanos-manifestaciones.html. Acesso em: 24 jul. 2020. Cuba: a revolução buscando seu socialismo Luis Eduardo Mergulhão Ruas ²³¹ “No es que todo sea bueno, ni que haya de disimularse lo malo que se ve, porque con cosméticos no se crían las naciones, ni con recrearse contemplando en la fuente inmóvil su hermosura; pero todo se ha de tratar con equidad, y junto al mal, ver la excusa, y estudiar las cosas en su raíz y significación, no en su mera apariencia”. José Martí, “La Nación, Buenos Aires, 4 de diciembre de 1877, t. 7, p. 330 e 331. Características centrais da revolução A Revolução Cubana foi um dos acontecimentos fundamentais do século XX tanto por ter derrubado uma ditadura associada ao imperialismo estadunidense, ousando construir o socialismo em uma ilha, quanto por sua imensa repercussão e influência em todos os continentes. A resistência em manter vivo seu projeto socialista já está eternizada na história da luta revolucionária e, sem dúvida, inspira todos os povos que permanecem na busca de sua libertação. Todo esse processo, construído em condições totalmente desfavoráveis, diante do qual a razão talvez convidasse a outra atitude, tamanha disparidade da correlação de forças frente ao imperialismo

estadunidense, acabou por demonstrar que a vitória é possível caso os princípios fundamentais do projeto revolucionário se mantenham firmes e presentes no sentimento do povo, sendo por ele constantemente enriquecido e redimensionado. A referência a Martí, o principal pensador cubano falecido em combate na guerra de independência em finais do século XIX, convida-nos a aprofundar a investigação buscando as essências e contradições do processo revolucionário que criou as bases concretas da soberania do país e a superação do capitalismo. Diante de um período histórico caracterizado pela globalização hegemonizada pelo capital financeiro e no qual o mundo do trabalho busca reconstruir a estratégia socialista, o povo cubano aprovou os denominados “Lineamientos de la Política Económica y Social del Partido y la Revolución” (“Diretrizes da política econômica e social do Partido e da Revolução”), lançado em novembro de 2010 pelo PCC. Os Lineamientos são apresentados como uma urgente e necessária atualização do socialismo, acabando por retomar o debate de questões centrais, tanto antigas como recentes, da transição comunista como a relação entre planejamento econômico e mercado, a existência de várias formas de propriedade, a produtividade socialista etc. Os dirigentes da ilha esperam ao menos encaminhar na prática, à luz dos erros e acertos que marcaram o desenvolvimento do socialismo cubano, sem deixar de olhar para toda a história do socialismo no século XX, a construção de um socialismo autossustentado e genuinamente cubano. Neste pequeno artigo, buscaremos levantar algumas tensões percebidas no estudo do processo revolucionário enriquecidas pelo contato direto com o povo cubano, pois tal se faz necessário justamente para pesarmos os perigos de retrocesso à antiga ordem, aliás sempre presentes em todos os processos revolucionários que buscaram superar o capital desde 1917, esperando que as lutas de classes no país permitam uma saída cujo centro seja o aprofundamento das relações socialistas e o fortalecimento da democracia socialista. Para tentarmos uma aproximação inicial dessas contradições, buscando suas raízes e com a devida justiça, como apontou Martí na epígrafe que usamos para este artigo, é preciso levar em conta o solo histórico de onde surgiu a revolução cubana e as características centrais do processo, o que nos permite entender a lógica de funcionamento de todas as esferas de seu socialismo, evitando uma análise abstrata distante da realidade que exigiria do processo algo muito além de suas condições reais. A Revolução Cubana vitoriosa em 1959 foi o resultado de um projeto de cunho democrático, popular, em que o nacionalismo anti-imperialista foi se tornando cada vez mais presente, tendo adotado a luta armada por meio da guerra de guerrilhas como principal forma de luta para derrubar a ditadura de Batista, militar que dera um golpe em 1952 apoiado pelos Estados Unidos. A vertente democrática e popular já se fazia presente no próprio julgamento de Fidel Castro em 1953 após a tentativa de assalto ao quartel Moncada – A história me absolverá – transformado em programa político do principal agrupamento que liderou o processo, o Movimento 26 de Julho. Já ali era clara a ênfase na participação popular e uma visão de democracia com forte

acento social, embora sem apresentar um sinal de rompimento com a tradição liberal. ²³² O nacionalismo cubano foi componente necessário de diversas lutas sociais após a independência, alimentado pela explícita e profunda ingerência estadunidense na sociedade cubana, que gerava uma república neocolonial. O peso na economia da ilha, a presença de uma base militar americana de Guantánamo à leste do território e a Emenda Platt na Constituição do novo país, permitindo a invasão dos marines sempre que os interesses estadunidenses fossem ameaçados, eram apenas os sinais imediatos da profunda dependência econômica e subserviência aos Estados Unidos. O pensamento nacionalista teve várias vertentes, sendo aquele com uma dimensão anti-imperialista sempre presente, a ponto desta emenda ser retirada da Constituição da ilha durante o processo conhecido como Revolução de 1933, quando houve conquistas democráticas sociais importantes, porém sem uma dinâmica tão radicalizada que permitisse recolocar a relação com os Estados Unidos sobre novas bases, como requeria um projeto de revolução nacional. A derrubada de Batista se apresentou como uma nova possibilidade de o país afirmar um projeto econômico e político que conquistasse uma real independência e uma soberania efetiva. A intensa participação de massa na revolução no campo e na cidade, com a formação, após janeiro de 1959, de diversas organizações populares expressando a legitimidade da revolução e seu vigor no cotidiano da ilha, somada a resistência estadunidense, fez crescer o nacionalismo antiimperialista na população e no Movimento 26 de Julho. Foi vencedor dentro desta organização e entre a população esse nacionalismo revolucionário, popular e anti-imperialista no qual a defesa da soberania, da independência e das reformas democráticas e sociais passavam também pelo rompimento com a dependência estrutural frente ao imperialismo e a construção de um novo modelo de sociedade. A revolução e a orientação socialista representavam a soberania e a vitória da nação cubana, construída a partir da necessidade dos mais humildes, dos trabalhadores do campo e da cidade e capazes de forjar uma unidade nacional e patriótica na defesa da pátria. ²³³ A Revolução Cubana, portanto, não foi contida – como outras tão radicais como a revolução mexicana de 1910, a boliviana de 1952 ou a própria revolução de 1933 que mencionamos – pela rearticulação de várias frações das classes dominantes, e tanto a participação popular como as medidas democráticas e sociais que dela vieram não foram apropriadas ou contidas pela ordem liberal capitalista. Os setores da burguesia da ilha participantes na derrubada de Batista e no Movimento 26 de Julho, que sonhavam com um capitalismo mais autônomo e soberano combinado com localizadas políticas sociais, foram vencidos pela presença proletária e popular aliada a setores radicalizados da pequena burguesia, sedimentando um projeto que via no socialismo a saída das contradições e a afirmação de uma efetiva soberania nacional. Essa foi a razão central para a série e de batalhas políticas nos primeiros anos da revolução que acabaram expressando as contradições, até então implícitas, dos setores vitoriosos. A vertente socialista não estava garantida

de antemão com a derrubada de Batista. Apesar de se fazer presente desde o início das lutas contra a ditadura, tornou-se hegemônica após intensa luta de classes tanto no país como na arena internacional, quando a radicalização da vertente anti-imperialista da revolução contou com a presença da União Soviética e do campo socialista, que garantiram a Cuba mercado, divisas e apoio político após as tentativas de isolamento e até de uma invasão da ilha patrocinada diretamente pelos Estados Unidos. O caminho socialista e suas alterações A declaração do caráter socialista da revolução insere Cuba e sua revolução na perspectiva da transição comunista. De acordo com os escritos de Marx e Engels, nesse período longo – com sua fase inicial comumente chamada de socialismo não afirmando, porém, um modo de produção próprio e menos ainda desconectado do objetivo final –, a propriedade dos grandes meios de produção deveria ser socializada graças, fundamentalmente, à intervenção do Estado. Um país como Cuba passou a ter a espinhosa missão de sair do atraso imposto por uma economia neocolonial em uma ilha com parcos recursos naturais, desenvolvendo as forças produtivas e simultaneamente criando condições para a progressiva socialização da gestão política em todas as suas instâncias. Diante desse quadro, como foi reestruturada a economia socialista cubana e que desenho teria esse novo Estado e as organizações componentes da esfera política do país para garantir a democratização da gestão da produção e da sociedade, aprofundando essa nova forma de democracia socialista? Deixemos claro que há diferenças contundentes entre países capitalistas e socialistas nos mais diversos aspectos. Isso pode ser observado pela estatização e socialização da propriedade e pelo planejamento econômico, pelo desenho do Estado e pela forma de construção da participação política, além dos pilares ideológicos, éticos e morais que lhe dão norte, objetivando a construção de uma sociedade igualitária e sem classes. Nesse processo de socialização econômica crescente, o Estado socialista se manifesta como uma necessidade histórica nesse período de transição. Refletindo a hegemonia e o controle político do proletariado em uma sociedade de classes, em que pese ser um Estado, é completamente diferente daquele democrático burguês no que se refere a seu desenho institucional, devendo buscar a incorporação progressiva e permanente da população na gestão da sociedade, sendo um dos instrumentos utilizados pelo proletariado para sua própria extinção, quando sua função não se fizer mais necessária. Tais observações são fundamentais para entendermos a sociedade cubana, que não está fundada nos princípios liberais tanto em termos de funcionamento econômico como no tocante a representação política. Tendo em vista o momento histórico da vitória da revolução e a forte disputa ideológica e política presentes no mundo entre o mundo capitalista e o campo socialista, o governo revolucionário teve como orientação o socialismo marxista predominante nas lutas sociais e orientador das experiências socialistas que se converteram em modelo hegemônico do século XX. Até meados dos anos 1960, era o marxismo a teoria predominante nas esquerdas que buscavam superar o capitalismo, e a União Soviética, um país que se desenvolvera rapidamente apesar de todo o

permanente cerco capitalista e o sofrimento com a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), era o paradigma. Em que pese a pressão interna por reformas e problemas econômicas e políticos, aquele modelo parecia o mais plausível e de acordo com as orientações gerais apontadas pelo marxismo. Por outro lado, foi neste momento que a revolução cubana mostrou toda sua força interna resultante de suas tradições, desenvolvendo uma cultura política revolucionária enraizada no povo e sempre fundamental para a sobrevivência do próprio projeto revolucionário, razão principal de sua sobrevivência após o fim da União Soviética. ²³⁴ A direção do país adotou medidas espelhadas na teoria marxista, aprofundando o processo de estatização/socialização, expropriando as grandes fortunas, avançando na reforma agrária e destruindo o Estado burguês. Percebendo que a industrialização tão sonhada para se libertar da monocultura do açúcar tinha limites históricos e estruturais claros, realizou um amplo debate sobre que tipo de planejamento econômico socialista deveria ser adotado em Cuba. Não há espaço aqui para reproduzirmos essa polêmica que primou pela profundidade da argumentação e liberdade de discussão, porém precisamos ressaltar que nela se mostrou a vitalidade de uma visão de um socialismo originado da revolução, fruto de um marxismo que se revelou criador e antidogmático, sendo um de seus expoentes Ernesto Guevara. Tendo como centro a contestação da vigência da lei do valor como orientadora econômica nesta etapa e a crítica da autonomia produtiva e gerencial que já se apontava na União Soviética, Che combateu uma visão da transição comunista mecânica, muito colada nas forças produtivas como símbolo do desenvolvimento econômico socialista e como base para a construção de uma nova consciência e de um novo homem. Distante da visão soviética, para Che havia uma centralidade na formação desta consciência revolucionária por meio de uma nova moral socialista. Para o combate à alienação, a construção do homem novo e um desenvolvimento econômico eficiente e socialista, o caminho não seria criar consciência com riqueza e sim riqueza com consciência, como apontou posteriormente Fidel (1968). Os estímulos morais e o trabalho voluntário seriam fundamentais já naquele momento em uma sociedade que teria por obrigação construir novos valores e um sistema econômico superior em todos os aspectos, sem usar categorias e conceitos da economia capitalista. ²³⁵ Essa ênfase na consciência, nos incentivos morais, no trabalho voluntário, segundo a qual elementos da sociedade comunista devem não só estar presentes, mas devem ser constantemente incentivados pelo governo revolucionário nesta etapa inicial denominada socialista, com a valorização do elemento subjetivo no processo de transformação histórica capaz de acelerar as transformações estruturais, fazia parte do marxismo cubano e fincou raízes na cultura revolucionária. O socialismo cubano assume uma igualdade radical e um acento social realmente diferentes das experiências até então existentes, com um duro combate ideológico e moral ao que seriam os sintomas da sociedade burguesa e capitalista. Esses elementos se tornam a espinha dorsal do marxismo e do socialismo cubanos, compondo uma cultura revolucionária que foi fundamental nos diversos momentos de quase sessenta anos de revolução.

A radicalização desta visão levou à condenação do comércio privado embutida na Ofensiva Revolucionária em 1968 e mostrou seu vigor contra qualquer sobrevivência das relações de mercado, o que acabou por aumentar a presença do Estado na economia. ²³⁶ Essa política só foi revista após o país não ter alcançado a meta de 10 milhões de toneladas em finais da década de 1960. A esfera política do socialismo cubano, notadamente a organização do Estado socialista, não teve a mesma atenção por parte dos revolucionários, e isso refletia um dos problemas das experiências do socialismo do século XX. ²³⁷ Contraditoriamente, foram determinadas formulações desenvolvidas pelo marxismo cubano, embora sem sistematização e reflexão teórica que dessem base ao desenvolvimento de uma teoria do Estado no socialismo, que frearam uma maior burocratização do processo, aliás uma permanente preocupação da direção revolucionaria. ²³⁸ Observamos um exemplo dessa limitação na formação do Partido Comunista de Cuba em 1965. A fusão de três organizações políticas que dirigiam o processo – o Movimento 26 de Julho, o Partido Socialista Popular e o Diretório Revolucionário – foi objeto de observações contundentes de Fidel e Che, que combatiam a forma sectária com que tudo era conduzido e apontavam a necessidade de uma organização mais presente na massa, composta por militantes indicados por coletivos de trabalhadores no chão da fábrica e nos bairros que deveriam dar o exemplo como revolucionários. Era nítida a preocupação de acabar por ser formado um partido seleto afastado do cotidiano da classe e de uma camada burocrática controlando o Estado (CASTRO, 1985). ²³⁹ A direção revolucionária buscou também integrar as organizações de massa na condução dos poderes locais, onde as administrações tinham a presença de delegados eleitos pelo povo e pelas organizações de massa com possibilidade de revogação. Essas organizações de massa – sindicatos, comitês de defesa da revolução, federação de mulheres etc. – foram formadas espontaneamente após a revolução ou sofreram modificações, como no caso da CTC (Confederação dos Trabalhadores de Cuba), porém sempre voltadas para construção da nova sociedade, trabalhando junto ao Estado e ao partido, ainda que com demandas e base social próprias, na gestão do poder político e aperfeiçoamento do socialismo cubano. Em que pese os esforços de integração das massas ao processo e as exigências ao militante partidário, principalmente se fosse componente da administração, permanecia um alto nível de centralização por parte do governo nacional, e o controle popular se dava, até certo nível, além de uma confusão de funções entre o partido dirigente, organizações de massa e administração do Estado, fenômeno também presente nas outras experiências socialistas. Os anos 1970 representaram uma clara mudança no socialismo cubano. A crise econômica diante do fracasso da safra de cana-de-açúcar impôs a necessidade de uma maior articulação com a comunidade econômica socialista (Came) que Cuba passou a integrar a partir de 1972. Os reflexos dessa opção imposta pela história geraram consequências diversas, positivas e negativas, na sociedade cubana. O processo de autocrítica em relação ao

modelo anterior se expressou de forma clara no I Congresso do PCC em 1976, a ponto de ser apontado um viés subjetivista e idealista nas concepções revolucionárias da década de 1970, que teria desprezado presunçosamente a experiência mais longeva de outros países socialistas. Esta visão certamente inibiu o pujante marxismo-leninismo cubano por meio de uma visão já ossificada de sua vertente soviética, inaugurando o que posteriormente foi classificado como “Quinquênio Gris” devido ao doutrinarismo ideológico e cultural manualesco. Do ponto de vista econômico, houve a adoção de um modelo com maior autonomia das empresas, embora ainda fosse claro o papel do Estado e do planejamento centralizado. A adoção deste modelo recolocou a necessidade de organização do Estado socialista diante da desorganização dos anos anteriores, delimitando o papel do partido e das organizações de massa, um avanço positivo que conferiu a formação de um Poder Popular institucionalizado, buscando sistematizar a participação de massas no Estado dentro dos limites do socialismo. A estrutura do Poder Popular guardava, sim, semelhanças com o socialismo soviético, mas com a importante diferença: os candidatos no nível de município eram indicados diretamente pelos moradores de cada circunscrição, não precisando pertencer ao Partido Comunista, único garantido pela Constituição. Esse projeto foi debatido e aprovado por 97,7% da população com poucas emendas (SADER, 1985). O crescimento da economia cubana foi pujante pois, apesar do bloqueio, à ilha mantinha alguma relação com os países capitalistas até meados da década de 1970, e houve melhorias sociais nítidas, chegando a média de 8,8% na primeira metade da década de 1970, com um maior desenvolvimento da indústria, embora a dependência do açúcar se mantivesse intocada (GUTIERREZ, 1988). O crescimento econômico, por outro lado, escondia debilidades e desequilíbrios sérios no que concerne a gestão, a organização e a distribuição do trabalho produtivo, sendo que esses problemas já afetavam o cotidiano da sociedade. A crise econômica do socialismo euro-soviético era visível e, indiretamente, atingiu a ilha, o que aumentava os problemas econômicos internos. Já no início dos anos 1980, a ilha passou a permitir investimentos estrangeiros e estimular o turismo, porém ambas as iniciativas alcançaram pouco efeito. A direção do país, sensível a crise iminente, e uma série de movimentos que partiram dos trabalhadores, notadamente dos sindicatos e órgãos ligados a cultura, resolveram adotar, em 1986, o Processo de Retificação de Erros e Tendências Negativas, criticando o mercado e a autonomia das empresas, a centralidade absoluta dos estímulos materiais e dos mecanismos econômicos, que criavam deformações sérias na sociedade e afetavam não só a produção, mas erodiam a consciência revolucionária. Foi posta em marcha, portanto, uma proposta para superar a crise completamente diferente da posterior Perestroika soviética, tendo como base política e ideológica uma revalorização dos escritos do Che, principalmente os que faziam crítica a economia soviética e à construção do socialismo com as categorias do capitalismo.

O Processo de Retificação foi de extraordinária importância para o desenvolvimento socialista cubano. De imediato, a crítica corajosa e destemida aos caminhos das reformas seguidas pelo campo socialista mostrou mais uma vez que a direção revolucionária não confundia aliança com subserviência à política soviética. Demonstrava mais uma vez a vitalidade do socialismo e do marxismo cubanos, posto que tinham a energia necessária, apesar de toda a força do modelo soviético implantado nos anos 1970, para revitalizar o processo graças a um mergulho nas suas origens, na cultura revolucionária, valorizando os elementos nacionais componentes da revolução com uma maior atenção não só a Che como a Martí. Esse aspecto, fundamental, compunha a mudança do modelo e realizou uma discussão mais aberta e profunda sobre o papel do partido e das organizações de massa, desde sua composição até suas funções, a partir da qual foram propostas mudanças e novas organizações, como brigadas de produção e cooperativas. Essa nova vertente baseada nas peculiaridades da revolução e do socialismo cubano com uma crítica à cópia adotada do modelo euro-socialista, embora contundente, era um processo de longo prazo e realizado paulatinamente, mesmo porque era impossível, em uma ilha que convivia com um bloqueio imposto pelos Estados Unidos e com a dependência soviética, mudar radicalmente todo um padrão produtivo e societário. O Processo de Retificação precisava de tempo para essas mudanças e, contraditoriamente, necessitava da manutenção dos vínculos com o Came e a União Soviética até reordenar suas relações econômicas com países capitalistas – entre eles vários da América Latina recém-saídos de ditaduras –, captar investimentos estrangeiros na base de join-ventures e incentivar o turismo com países que já restabeleciam relações diplomáticas e até comerciais. Os vínculos com o Came e a União Soviética se fortaleceram em contradição com as críticas às reformas de mercado, que inclusive atinavam para o fim do bloco soviético, a ponto de Cuba dirigir a esse campo 85% de suas mercadorias e dele importar boa parte e seus produtos. A crise do socialismo e o fim da União Soviética fizeram com que as exportações caíssem em 79% e as importações, 73%, com o PIB caindo 45%. Esse quadro deixara o país na insolvência, sendo preciso construir uma economia de resistência que evitasse o fim do socialismo e da revolução cubana (RODRIGUEZ, 2013). Nesse difícil contexto de crise econômica, dissolução do campo socialista em um mundo marcado pela globalização neoliberal, em que qualquer regulação da economia via Estado soava como algo jurássico, Cuba passou a discutir saídas para a crise. O Período Especial em Tempos de Paz significava uma economia de resistência no sentido de o Estado revolucionário garantir, com um duro racionamento, a alimentação de todos, e o funcionamento do país estabelecendo um consenso básico entre a população sobre o que era irrenunciável em termos de conquistas revolucionárias. Reformas econômicas cada vez mais amplas foram feitas progressivamente, incentivando o investimento estrangeiro, despenalizando a posse do dólar, permitindo o comércio privado em determinadas áreas. Realizou-se uma abertura da economia, sem seguir os parâmetros neoliberais, voltada para garantir as conquistas da revolução e do socialismo, com o discurso da resistência centrado na unidade do povo cubano e nas referências culturais da revolução.

Interessante notarmos alguns pontos de continuidade com o Período de Retificação em determinados aspectos. O IV Congresso do Partido em 1991, que traçou essa linha de abertura econômica ainda que distante da liberal e tendo o socialismo e o patriotismo como símbolos das conquistas sociais, alimentando a resistência revolucionária, apontava a necessidade de reformas políticas que já vinham sendo anteriormente discutidas. Aprovouse a entrada de cristãos no partido e foram encaminhadas a Assembleia uma série de medidas de revitalização do sistema político, como a eleição diretas para os deputados provinciais e nacionais, a retirada do partido das comissões de candidatura eleitorais e até mudanças na Constituição, tornando-se o PCC o partido da nação cubana, embora marxista e leninista, agora também orientado pelas ideias de Martí. As eleições previstas não foram canceladas e assumiram um tom plebiscitário em torno do socialismo, da revolução e da linha de resistência proposta pelos comunistas cubanos. Essas reformas políticas não eram de cunho neoliberal, no culto ao multipartidarismo, percebendo ser possível, em meio a resistência frente ao bloqueio e as dificuldades econômicas, aprofundar a democracia socialista dentro do quadro previamente delimitado, buscando incorporar o povo nas discussões e na gestão administrativa do Estado. Para além dessas mudanças, foram construídos vários espaços de socialização política, como os Parlamentos Obreros, que buscavam um maior estreitamento com a população e soluções mais imediatas, ao mesmo tempo que já tentavam realizar o que mais tarde foi consagrando como Batalha de Ideias, no sentido de combate a comportamentos e ideologias nascidas tanto da situação do desespero cotidiano quanto da abertura econômica que se dava como inevitável. Do ponto de vista teórico, importante salientar que a direção revolucionária, e notadamente Fidel, foram firmes em, simultaneamente, apontarem a necessidade real e prática das reformas econômicas, mesmo lamentando por terem que implantá-las. O comandante apontava corretamente que estava sendo realizado um recuo no processo, interrompendo a evolução do socialismo visando salvar as conquistas da revolução e a construção do socialismo até então, ao mesmo tempo que defendia com veemência a democracia cubana, marcando tanto as diferenças com os países socialistas como em relação a democracia liberal (Fidel, 1993). Em que pese o aumento do bloqueio econômico e a crise do socialismo, Cuba conseguiu sobreviver e, lentamente, recuperar-se, passando a ter algum nível de crescimento a partir de 1995. Sua resistência foi de enorme importância para a luta dos povos e serviu não só para manter erguida a bandeira do socialismo como para alimentar a resistência à globalização neoliberal por todo o mundo, notadamente na América Latina. A explicação da resistência está tanto na capacidade de a direção revolucionária recriar esse projeto revolucionário, mantendo as conquistas e estabelecendo um consenso entre o povo, como na legitimidade alcançada por seu sistema político e sua democracia. O sistema político cubano possui defeitos, em parte por Cuba ser uma trincheira próxima ao Império e, por outra, pelos entraves próprios do modelo socialista nas condições em que foi implantado no século XX. Esses problemas devem ser investigados e

corrigidos sem que se perca a essência socialista e a democracia de classe, cuja marca é, para além dos direitos sociais, a progressiva e permanente incorporação do povo às decisões de Estado. A força desta abertura ao mercado e das relações constituídas em seu entorno, como a circulação de dólares e a presença de duas moedas paralelas, por um lado alimentaram um desenvolvimento das forças produtivas minorando o sufoco cotidiano dos cubanos, por outro causaram determinados desequilíbrios que conspiravam constantemente com a ética desenvolvida pelo socialismo cubano, por exemplo, trabalhadores do turismo e outras atividades privadas receberem em dólares por semana o que um professor ou engenheiro de uma empresa estatal ganhava em peso cubano em meses. Os comunistas cubanos no V Congresso do PCC, realizado em 1997, observaram tais fenômenos e, para além da necessidade de maior produção nas empresas estatais fundamental para o progressivo fim da “dupla moeda”, incentivaram uma renitente batalha ideológica contra os fenômenos decorridos das necessárias reformas de mercado. Passada a pior fase dessa economia de resistência, era preciso que a recuperação de Cuba fosse sustentada e não ocasional, avançando na discussão sobre as reformas econômicas e o papel do mercado, por exemplo. No início do século XXI, Cuba estreita relações com os mais diversos países, socialistas ou não, porém tendo uma proximidade cada vez maior com os governos progressistas da América Latina, em especial com a Venezuela bolivariana. A ilha era abastecida com petróleo em troca de professores e médicos, no marco de relações especiais estabelecidas posteriormente pela Alba, que também incorpora Bolívia e Equador. Neste período, o governo tentou reestabelecer um maior controle estatal sobre a economia, fiscalizando o acesso de divisas pelas empresas e o comércio com o exterior e realizando uma verdadeira batalha de ideias – termo usado pelo comandante Fidel em 2003 – contra o consumismo, o absenteísmo e as deformações provocadas pelo mercado descontrolado, revalorizando os incentivos morais e organizando brigadas de fiscalização sobre atividades que provocavam enriquecimento ilícito. O debate em torno do mercado no socialismo ganhava corpo em Cuba, dividindo os intelectuais e a população. É novamente a iniciativa de Fidel Castro, com seu discurso da Universidade realizado em 2005, um ano antes do seu afastamento do governo por motivo de saúde, que incentivou o debate pela busca desse novo modelo que dialogasse com as necessidades do país. Apontando que os próprios cubanos poderiam fazer aquilo que o Império não fez – destruir a revolução – o comandante, sempre reticente ao mercado e crítico das desigualdades sociais e do avanço da corrupção provocadas com as reformas, viu na ausência da consciência revolucionária a possibilidade do fim. Em seguida, apontou que um dos maiores erros cometidos pelos revolucionários cubanos foi o fato de acharem que sabiam como construir o socialismo. ²⁴⁰ Todo esse conjunto de discussões referentes a crise do socialismo e do potencial contraditório das reformas de mercado com a vigência da “dupla moral” em função da necessidade de sobrevivência já era levantado pela população, majoritariamente no duro cotidiano da ilha, e também se fazia

presente na intelectualidade cubana. As palavras de Fidel, em que pese sua resistência às reformas de mercado, apontava no sentido de que o debate e a construção de um projeto que atualizasse o socialismo cubano não deveriam ser cerceados por qualquer tipo de preconceito ideológico e que era necessário mudar. Raúl Castro, sucessor de Fidel, também apontou por diversas vezes a necessidade de uma nova retificação sob pena de toda a nação afundar, comprometendo o esforço de gerações de revolucionários (RAUL CASTRO, 2010). Estavam preparadas as condições para o surgimento de um projeto de reformas que reatualizasse o socialismo cubano. Os Lineamientos e o labirinto do socialismo cubano A proposta de reformas e atualização em torno dos Lineamientos – “Diretrizes da Política Econômica e Social do Partido e da Revolução” – foram lançadas em novembro de 2010 contendo 291 pontos, submetidos a partir de 2011 a um grande debate em toda a sociedade cubana, havendo modificações em torno de 68% de sua proposta original. O projeto foi aprovado no VI Congresso do PCC realizado no ano seguinte e, posteriormente, pela Assembleia Nacional do Poder Popular. Em síntese, as principais medidas adotadas giraram em torno de uma ampla abertura ao capital estrangeiro – a exceção de saúde, educação e área militar – e a gradual mas permanente e profunda diminuição do número de funcionários estatais. Visando atender esse número de pessoas a serem desligadas de suas funções mediante indenização, o governo ampliava o trabalho por conta própria em diversas atividades, incentivando a formação de cooperativas, entregando terras em usufruto e também apostando nas empresas privadas com a liberdade de contratação de pessoal, tudo isso acompanhado por uma política tributária capaz de angariar divisas para o Estado (LAMIM, 2013). O número de trabalhadores por conta própria e pequenos empresários dobrou rapidamente, e chegou-se a discutir o fim, ainda que paulatino, da libreta – a caderneta de alimentação – em nome do combate ao igualitarismo e o assistencialismo promovido pelo Estado, que acabara, segundo o governo, por prejudicar a produtividade social e desequilibrar a sociedade cubana. Essa proposta não foi aceita pela população, demostrando uma certa resistência em se romper com determinadas políticas que permitem o acesso ao mínimo necessário para todo o cubano. Apesar de sua urgência, a mudança deveria ser conduzida sem pressa mas sem intervalos, como apontou Raul, e seria necessária a criação de condições concretas para a mudança. Importante dizer que, segundo o governo, tratava-se de um processo de atualização socialismo cubano , com uma maior presença de elementos de mercado – aumento de investimentos estrangeiros, do trabalho por conta própria, maior abertura a empresas privadas –, sendo mantida a orientação socialista sintetizada na supremacia do planejamento, da propriedade estatal/social dos meios de produção, das políticas sociais dirigidas pelo Estado. Eram combatido, entretanto, o igualitarismo, resgatando-se o princípio socialista do rendimento segundo o trabalho e a valorização da formas socialistas de propriedade, no caso a estatal e as cooperativas.

Interessante perceber que o Congresso não fez uma discussão sobre o funcionamento da esfera política do socialismo cubano, deixando tal tarefa a uma conferência partidária posterior, que não fez nenhuma modificação profunda no funcionamento do Poder Popular e muito menos cogitou o pluripartidarismo, posto que a unidade dos cubanos em torno de seu partido é apontada como uma das chaves do sucesso da resistência frente ao bloqueio e às agressões do imperialismo estadunidense (RAUL CASTRO, 2012). Os Lineamientos recolocam uma discussão reiterada em todas as experiências que buscaram iniciar a transição comunista: a presença do mercado e das relações a ele vinculadas neste período histórico específico, principalmente em países marcados pelo atraso no desenvolvimento de suas forças produtivas, com poucos recursos naturais e com forte herança do subdesenvolvimento. Como articular a relação do planejamento socialista com algum nível de centralização e o mercado? Maior presença do Estado inibindo o mercado seria sinônimo de mais socialismo? É uma discussão rica, complexa, com várias mediações nas posições – da admissão de elementos de mercado até o socialismo de mercado – e também duramente marcada, talvez por isso um pouco prejudicada, pela trajetória de alguns países socialistas que fizeram essa experiência. A primeira lembrança que temos neste aspecto é a Perestroika soviética ou as reformas realizadas na Hungria. Porém há exemplos de reformas nas quais vigora o denominado socialismo de mercado, com resultados positivos no que se propõe, como na China e no Vietnã. Estes foram, sem dúvida, processos estudados pelos dirigentes e intelectuais da ilha, embora a direção da revolução acertadamente aponte que um dos erros do processo revolucionário tenha sido, marcadamente na década de 1970, copiar demais outros exemplos. Por isso, para além da necessidade de estudar outras experiências, é preciso aplicar medidas de acordo com a realidade da ilha, construindo um socialismo cubano autossustentado. Devemos examinar a posição cubana com o devido cuidado, atentando para as declarações de sua direção, mas ao mesmo tempo levando em conta a situação do país e a dinâmica das reformas, que se dão em um quadro de crise geral do capitalismo, permanência do bloqueio, início da crise da Venezuela, país com relações comerciais especiais com Cuba, e a vigência do socialismo de mercado na China e no Vietnã com resultados positivos. Esse debate em Cuba, surgido no Período Especial, quando a abertura do mercado foi uma necessidade de sobrevivência, intensificou-se no século XXI, quando se torna urgente superar a economia de resistência. A posição da direção cubana em termos de fundamentar o papel do planejamento e da supremacia da propriedade socialista – estatal e cooperativa – sobre outras formas de propriedade é, do ponto de vista político e ideológico, importante e diferenciada. Por vários momentos, refere-se a essas reformas como uma atualização do socialismo, e vários intelectuais não aceitam que esse projeto seja a defesa de um socialismo de mercado, muito menos crie condições para a restauração capitalista. Raul disse mais de uma vez que não foi eleito para terminar com o socialismo, e sim para torná-lo mais vigoroso. ²⁴¹ Foi um mérito da democracia socialista

cubana a discussão do projeto nas organizações de massa e com a população, discussão que permanece viva e com novos posicionamentos que voltaram a ser examinados no recente VII Congresso do PCC e pela Assembleia Nacional. É inegável, porém, que os Lineamientos são um projeto de reformas no qual se abre muito mais espaço às relações de mercado; e o mercado é um sistema de relações sociais repleto de contradições, possuindo uma dinâmica própria e carregado de valores inadequados ao socialismo. Certamente, o mercado e seus elementos não podem ser deixados sem controle, posto que não é a partir dele, de sua lógica e, não certamente, da ética que acaba desenvolvendo que teremos o avanço das relações socialistas. Por outro, há que se diferenciar um restaurante privado ou uma pequena empresa privada, principalmente neste período histórico e nas condições de Cuba, de uma abertura de uma grande empresa privada em setores-chave da economia. A ampliação dessa a abertura é nítida, embora seja ressaltado o controle do governo sobre o processo e a supremacia das empresas estatais e cooperativas como centros do avanço das relações socialistas. Certamente, nesse momento, nas condições de um país pobre em recursos naturais, uma ilha dependente tecnologicamente e bloqueada pelo maior império do planeta, não é possível apenas a existência da propriedade estatal e cooperativa, havendo, portanto, uma eliminação fictícia do mercado, o que também poderia gerar uma profunda crise econômica, social e política, trazendo o fim do socialismo. O que nos preocupa nas recentes declarações da direção cubana é sua posição diferenciada em relação aos anos 1990. Naquela década, de dura resistência da revolução, era nítido o contragosto do governo cubano – Fidel à frente – em relação às reformas, apontando que tais medidas eram amargas se fosse levada em conta a ideologia revolucionária, e representavam de fato um recuo. Hoje, não obstante a valorização do socialismo e do planejamento, parece que é um mérito essa presença do mercado e da abertura ao capital estrangeiro. Portanto, há uma avaliação positiva das medidas capazes de libertar o socialismo cubano de determinados “preconceitos ideológicos”, firmando passo na atualização do socialismo mais produtivo e eficiente. Está embutida nesta compreensão uma concepção na qual a transição comunista é algo muito mais longo e complexo do que era pensado anteriormente, quando foi tentado um avanço nas relações comunistas sem as devidas condições materiais, baseada apenas na política e na ideologia sem condições estruturais para tal. Hoje, a concepção presente nos documentos advoga que devem ser admitidas diversas formas de propriedade, num processo em que o mercado e a propriedade privada possuam um espaço considerável, porém não predominante. Parece que os documentos do PCC e a linha mestra dos Lineamientos representa um meio termo conciliatório entre aqueles que defendem claramente o socialismo de mercado e os que ainda são classificados como guevaristas, temerosos da abertura crescente acabar por desfigurar o socialismo cubano. Essas linhas sempre existiram e, por ser o PCC um partido único e sem frações

reconhecidas, sua versão é melhor vista pela intelectualidade, fundamentalmente entre os economistas. Atualmente, a necessidade do mercado, ainda que controlado, ou do socialismo de mercado, é a visão predominante entre as esquerdas, em que pese determinadas críticas a seus resultados negativos nos países que adotaram em linhas gerais tal projeto. Não é por acaso que a direção cubana voltou a valorizar algumas decisões do I Congresso do PCC, quando foi implantado um modelo próximo ao soviético de autonomia das empresas e também o combate dos chamados igualitarismo e paternalismo, enfatizando a defesa do lema a cada um segundo seu trabalho. Claro que houve e há no país problemas em relação à produtividade do trabalho e um mau direcionamento das políticas sociais estatais, porém essa radicalização na defesa da igualdade real e da estranheza com as diferenças sociais sempre foi uma marca do socialismo cubano, razão pela qual a libreta foi ardorosamente defendida pela população cubana nos debates do projeto. Apontamos, então, ser inevitável, tendo em vista a situação de Cuba, a aplicação dessas reformas que diminuem a presença do Estado e aumentam a presença das relações mercantis, do mercado e das empresas privadas no socialismo da ilha, embora sejamos de opinião que tais fenômenos representam um recuo na transição comunista, devendo ser admitidos criticamente e não valorizados como se fossem um componente estratégico do comunismo. É verdade que a pressão pelos resultados imediatos no cotidiano de um povo que demonstrou tanto espirito de sacrifico e luta durante toda a revolução, principalmente após o fim da União Soviética, é mais que justa. No entanto, as medidas podem também exacerbar tendências negativas e debilidades ao incentivar não só ideologias, mas dar maiores condições estruturais e históricas para determinados grupos e classes sociais minarem lentamente o socialismo. É uma aposta dentro da história por parte de uma revolução que sempre primou pela ousadia, correndo riscos permanentes, sofrendo ameaças constantes do imperialismo, e mesmo assim, seguidamente, arrancou forças e criatividade para sobreviver e se reinventar, mantendo os valores centrais do socialismo. Alentador também é sabermos que tais medidas de mercado, embora configurem um perigo real, não foram determinantes isolados para o fim das experiências socialistas, haja vista a existência de países socialistas onde essa concepção é aplicada concretamente com méritos ou com fenômenos negativos. A crise do socialismo deve ser vista em termos de totalidade, na relação contraditória entre economia, política e ideologia, e não de maneira monocausal. Fosse por uma mera questão de desenvolvimento econômico e bens materiais à disposição do povo, não se explicaria a manutenção do projeto na ilha ou o fim melancólico da Alemanha socialista, por exemplo, quando o povo trabalhador alemão não foi para as ruas defender o socialismo. Cuba tem uma reserva política inegável, resultante da cultura revolucionária de seu socialismo e da força de seu sistema político, no qual o Poder Popular aparece como uma das instâncias mais importantes de articulação e espaço

de discussão do povo cubano. Certamente, a forma como se estabeleceu a democracia socialista cubana e seu sistema político, que não está isenta de erros e contradições, foi elemento central na manutenção do socialismo no país. É uma forma de exercício de poder que necessita ser aperfeiçoada, pois uma das tarefas fundamentais do processo de transição comunista está na incorporação permanentemente do povo na gestão política e administrativa de seu bairro e de seu local de trabalho, como protagonista do processo, superando a situação de mero participante e executor de políticas, por mais que sejam justas. ²⁴² Avançar e aprofundar o Poder Popular não significa, deixemos claro, revalorizar a democracia liberal representativa que já se mostra ultrapassada, ou então fetichizar o pluripartidarismo nas condições de Cuba, abrindo espaço, em uma trincheira de guerra, para contrarrevolucionários em nome da “liberdade”. Mas também não significa transformar a construção da unidade necessária fruto do debate em unanimidade por decreto, sem espaço para a crítica, que tanto está presente no dia a dia dos cubanos. Aperfeiçoar o Poder Popular significa avançar na gestão democrática e socialista do Estado, dando a oportunidade de o povo cubano dar sua contribuição para a democracia socialista, tanto nos aspectos teóricos quanto na prática política. A experiência de décadas de Poder Popular e a crítica a suas limitações em uma perspectiva socialista podem permitir, além da construção de uma teoria do Estado no socialismo, lacuna fundamental nas reflexões das experiências pós-revolucionárias, reverter um processo que vem se manifestando em níveis internacionais e que agora começa a se manifestar na vida política da ilha, ainda que em grau bem menor: o afastamento da população de um dos momentos da instância de decisões, o processo eleitoral. Pela primeira vez, em Cuba, tendo como base as últimas eleições de 2015, houve um índice de participação menor que 90%, proporção que, se somada aos votos nulos e brancos, chega a um porcentual que deve ser observado com atenção. É necessário e estratégico um revigoramento do Poder Popular, avançar na sua capacidade de mobilização, ampliar a participação na gestão, no controle e nas melhores condições de trabalho dos próprios delegados eleitos. É por meio dessa instância que também podem ser minoradas as tendências negativas do mercado, impedindo, graças à batalha permanente de ideias, que forças comprometidas com um projeto de restauração, e elas existem e serão mais apoderadas com as reformas, possam chegar a dominar alguma esfera de poder político dentro da estrutura do Estado. A tarefa dos cubanos que defendem revolução e o avanço das relações socialistas como saída para as contradições em Cuba é complexa e árdua, devendo ser construído um projeto que abranja todas as instâncias da sociedade, combinando desenvolvimento econômico em acordo com as relações socialistas, num desenho político, no caso da organização de Estado e da forma de participação das organizações populares, capaz de aprofundar a democracia no socialismo. Nesse processo, pensamos serem três as vertentes apontadas para a manutenção e o avanço das relações socialistas em Cuba, levando-se em conta sua situação concreta. Elas seriam capazes de combater a cultura e as

relações de mercado já presentes na ilha que poderiam, evidentemente, ameaçar tudo que até então foi construído. A primeira vertente é a eficiência socialista, centrada na produtividade e na gestão coletiva das empresas estatais socializadas. Com ela, os trabalhadores seriam participantes na gestão produtiva, podendo demostrar a superioridade produtiva e humana em relação a empresa privada, se combinada com o avanço produtivo das cooperativas. A segunda vertente é a batalha de ideias com o fito de ser travado um combate cotidiano, fazendo avançar a cultura anticapitalista contra aquela originada no mercado. Por fim, o aprofundamento do papel do Poder Popular e de outras organizações e massa na gestão do Estado é elemento fundamental para o combate à alienação e para a defesa do Estado socialista, que deve ser visto como pertencente ao trabalhadores. Este poder é a mais eficiente forma de vigilância revolucionária e de defesa contra as permanentes tentativas de desestabilização fomentadas pelo imperialismo em nome da “liberdade”. A luta de classes em Cuba vai definir o resultado de tal processo complexo e permeado de contradições. Daqui, sempre solidários a Cuba, de forma intelectual militante, esperamos que sua soberania, sua democracia e seu socialismo continuem a inspirar a luta dos povos. Anexo: a Reforma Constitucional, nova etapa da busca do socialismo cubano A Assembleia Nacional do Poder Popular, formada a partir do processo eleitoral encerrado em 2018, aprovou, após variadas discussões, um anteprojeto de Reforma Constitucional a ser discutido por toda a população até dezembro do presente ano. Esta iniciativa deve ser entendida como a necessidade de se adequar à Constituição, aprovada em 1976, as transformações objetivas que foram se tornando mais intensas com o decorrer do Período Especial e também aquelas presentes nos chamados Lineamientos a que nos referimos neste artigo. Em linhas gerais, o anteprojeto possuía 224 artigos, reconhecendo a existência de várias formas de propriedade, mostrando a crescente importância do mercado na economia cubana pela presença das pequenas empresas privadas e dos chamados trabalhadores por conta própria, além dos investimentos estrangeiros, embora reforce o papel do planejamento econômico e da propriedade estatal socialista. Do ponto visto político ideológico, reafirmava o caráter socialista sempre acompanhado das ideias martianas e o papel dirigente do partido – único, martiano, fidelista e marxista-leninista – comunista como força superior da sociedade e do Estado, conforme apontava o artigo quinto. Cria, também, os cargos de presidente da República e de primeiro-ministro com limitação de mandatos – só permitida uma reeleição – e limite de idade, ao mesmo tempo que extingue as Assembleias Provinciais, conferido uma maior autonomia aos municípios e incorporando o conceito de Estado socialista de direito, no qual as funções e objetivos de cada organização – Estado, partido, governo, sindicatos etc. – se tornam mais definidos, avançando também no reconhecimento da legalidade do casamento de cidadãos do mesmo sexo. Chamou a atenção, sendo talvez muito mais badalado na imprensa estrangeira, em que pese ter sido alvo de uma troca de opiniões durante uma das sessões da Assembleia Nacional que deu forma final ao anteprojeto,

a retirada do “avanço à sociedade comunista”, antes presente na Constituição de 1976. A defesa da retirada girou em torno da necessidade de se adequar a estrutura jurídica e política à realidade concreta, posto que tal artigo tinha relação com todo o contexto dos anos 1960 e 70, em que havia a presença do campo socialista e uma expectativa de um trânsito mais acelerado ao comunismo. Seguindo mais uma vez a marca da democracia socialista cubana, a segunda fase do processo, que durou vários meses, findou recentemente. Contando dessa vez com a participação de cubanos residentes no exterior, que enviaram mais de duas mil propostas. Foram 133.681 reuniões, com a participação de 8.945.521 pessoas. Delas, foram apontadas 783.174 propostas 666.995 modificações, 32.149 adições e 45.548 eliminações e levantadas 38.482 dúvidas, como aponta o diário Trabalhadores, órgão da Central dos Trabalhadores Cubanos do dia 3 de dezembro de 2018. Curiosamente, a discussão popular levantou a necessidade de ser mantida a referência ao objetivo comunista, ao mesmo tempo que foi reticente ao casamento entre as pessoas do mesmo sexo, acabando o Parlamento, posteriormente, por fazer uma formulação conciliatória para o momento, deixando a discussão para o Código de Família. Estes são os movimentos de uma sociedade cubana em permanente ebulição participativa, que encara de frente suas contradições, na busca por seu socialismo Trazidas as emendas e sugestões na Assembleia Nacional, houve a elaboração de um documento final a ser aprovado pela população em referendo. Contando com a presença de 84% dos cubanos com direito de voto, a nova Constituição foi aprovada por 86,6% dos votantes, havendo 9% contra e 4,1% de brancos e nulos. ²⁴³ Recentemente, a Assembleia Nacional do Poder Popular elegeu D íaz-Canel como presidente e vai discutir, em breve, novas leis orgânicas para funcionamento do Poder Popular em todas as instâncias e definir a data para a eleição dos governadores de província a ser realizada pelo conjunto de Assembleias Municipais. Nota-se uma visão mais plural sobre o que seria o socialismo, sendo até discutido a presença do partido único como força dirigente, embora seja uma vis ão bem minoritária, e a necessidade de reorganização do Poder Popular no sentido de superar algumas travas e, assim, aprofundar a democracia socialista, reforçando o papel de sujeito revolucionário. No anteprojeto, nas discussões realizadas e na própria realidade cubana, estas tensões se fazem presentes, ainda que bem amainadas nos marcos do projeto socialista ainda majoritário e arraigado na sociedade. Não pode ser feita uma an álise mecânica e retilínea que encare os cidadãos aptos que não foram votar, somados aos votos nulos e brancos como contrários à Reforma Constitucional ou contrários à revolução e ao regime socialista. Por outro lado, como apontamos anteriormente, este deve ser um elemento a ser refletido, pois a indiferen ça também é uma barreira para as transformações socialistas e pode dar base a um projeto de restauração capitalista, ainda que lento. Aos trabalhadores cubanos, suas organizações e deputados do Poder Popular que vão votar e elaborar as novas leis de funcionamento desta esfera de participação do poder socialista cabe a tarefa de motivar a população, criar novos vínculos de participa ção e inovar na gestão do poder, ao mesmo tempo que devem encarar a eficiência

econômica como algo que legitima materialmente esse novo socialismo. É fundamental, como apontava Fidel, não criar espaço para que, não o imperialismo, mas os próprios cubanos venham a derrotar o seu socialismo. Que os trabalhadores cubanos, submetidos as mais diferentes pressões internas e externas, consigam, com seu espirito revolucion ário comunista construído em décadas, equacionar todas estas profundas e difíceis contradições, erigindo condições materiais concretas para superá-las rumo a sociedade comunista. Bibliografia AUGUST, Arnold. Cuba y sus vecinos – democracia en movimento . La Habana: Editorial Ciencias Sociales, 2014. __. “El referendo en Cuba: ciertamente Cuba ha “cambiado”, pero no como algunos esperaban”. TeleSUR , 4 mar. 2019. Disponível em: https:// www.telesurtv.net/bloggers/El-referendo-en-Cuba-ciertamente-Cuba-hacambiado-pero-no-como-algunos-esperaban-20190304-0001.html. Acesso em: 30 jun. 2020. BANDEIRA, Luis Alberto Muniz. De Martí a Fidel: a Revolução Cubana e a América Latina . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1998. BRIGOS, Jesus P. Garcia. Governabilidad e democracia: los órganos del Poder Popular em Cuba . La Habana: Editorial Ciencias Sociales, 1998. CASTRO, Fidel. A historia me absolverá. Habana: Editora Alfa Omega, 1985 . __. Discurso pronunciado por Fidel Castro Ruz, Presidente de la República de Cuba, en el acto por el aniversario 60 de su ingreso a la universidad, efectuado en el Aula Magna de la Universidad de La Habana, el 17 de noviembre de 2005. Disponível em: http://www.cuba.cu/gobierno/discursos/ 2005/esp/f171105e.html. Acesso em: 30 jun. 2020. __. El Pensamiento de Fidel Castro, Discursos Escogidos . La Habana: Editorial Ciencias Sociales, 1986. __ . Un Grano de Maiz – Entrevista con Tomas Borges . La Habana: Editorial Ciencias Sociales, 1993. __ . Discurso pronunciado por el comandante Fidel Castro Ruz, primer secretario del comite central del partido comunista de cuba y primer ministro del gobierno revolucionario, en la concentracion por el X aniversario de los CDR, efectuada en la plaza de la revolucion, el 28 de septiembre de 1970 . Disponível em: http://www.cuba.cu/gobierno/discursos/ 1970/esp/f280970e.html. Acesso em: 30 jun. 2020. __ . Na trincheira da Revolução . La Habana: Editorial José Martí, 1990. __. Discurso ante la ANPP. I Período de Sesiones IV Legislatura. 1993. __. Retificación – 1986-1990. Habana: Política, 1990.

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por cuenta propia ni la industria privada ni nada. …..Nosotros no podemos estimular ni permitir siquiera actitudes egoístas en los hombres si no queremos que los hombres sigan el instinto del egoísmo, de la individualidad, la vida del lobo, la vida de la bestia, el hombre enemigo del hombre, explotador del hombre, poniéndole zancadilla al hombre.” (Fidel Castro, 13 de marzo 1968, tomado de Discursos de Fidel Castro, Grana Internacional). ²³⁷ “Marxistas e socialistas em geral sempre tenderam a subestimar os problemas que devem surgir na organização e administração de uma sociedade socialista” (MILLIBAND apud BLACKBURN, 1996, p. 25). ²³⁸ “Que sectarismo? O sectarismo de acreditar que os únicos revolucionários, que os únicos companheiros que podiam ser de confiança, que os únicos que podiam assumir um cargo numa granja, numa cooperativa, no Estado, em qualquer lugar, tinham que ser os velhos militantes marxistas.” (CASTRO, 1989, p. 108). ²³⁹ Fidel Castro. A historia me absolverá. (Habana: Editora Alfa Omega, 1985) . ²⁴⁰ Fidel Castro. Discurso en la Universidad de la Habana. 17 de Noviembre de 2005. ²⁴¹ “Aos que creem nessas infundadas ilusões (desmontar o regime econômico e social), vale recordar outra vez o que já expressei: não me elegeram presidente para restaurar o capitalismo em Cuba e tampouco entregar a Revolução. Fui eleito para defender, manter e continuar aperfeiçoando o socialismo, não para destruí-lo. As medidas que estamos aplicando e todas as modificações que forem necessárias à atualização do modelo econômico estão dirigidas a preservar, fortalecer e tornar o socialismo verdadeiramente irrevogável.” (CASTRO, R. 2009). ²⁴² “Los trabajadores de las entidades no tienen participación real en la elaboración del Plan Técnico Económico y el Presupuesto, ni en la propuesta a los organismos superiores. Una vez tomada la decisión se les informa – en algunos casos ni esto – y, como regla general, se apela a su cumplimiento, o sea, se definen los objetivos a obtener por la entidad sin el consenso de los trabajadores, pero son ellos quienes tienen que cumplirlos con los trabajadores” (Rodriguez, Lazaro, 2017). ²⁴³ Arnold August. “El referendo en Cuba: ciertamente Cuba ha ‘cambiado’, pero no como algunos esperaban”. TeleSUR , 4 mar. 2019. Disponível em: https://www.telesurtv.net/bloggers/El-referendo-en-Cuba-ciertamente-Cubaha-cambiado-pero-no-como-algunos-esperaban-20190304-0001.html. Acesso em: 30 jun. 2020. Parte III: Progressismo e reformismo: avanços sociais e limites estruturais Brasil: o fim da Nova República – Quebra do arranjo político, crise de representatividade e golpe de Estado no ocaso da república liberal brasileira ²⁴⁴

Roberto Santana Santos ²⁴⁵ João Claudio Platenik Pitillo ²⁴⁶ Escrever sobre fatos ainda em desenvolvimento é um desafio para historiadores. A chance de ser desmentido rapidamente pelo desenrolar dos acontecimentos é grande, levando vários profissionais recusarem tal intento, escondendo-se nas páginas mais antigas da história (o que não significa ausência de polêmica). Tomamos esse desafio neste artigo, para uma análise dura do atual sistema político brasileiro. Somos impelidos pela necessidade e pela urgência de refletir sobre o arranjo político estabelecido ao final da Ditadura, devido ao que, para nós, representa sua célere deterioração, com a crise política ocorrida no segundo mandato da presidenta Dilma Rousseff (2014-2016) e sua deposição pelo Congresso federal. Esta deposição configura um golpe de Estado, disfarçado de impeachment , como discutiremos ao longo do trabalho. Apesar de ser a peça final e mais dramática do ocaso da Nova República, não é o único fator que nos leva à compreensão do término do referido período. Nos anos que antecederam o golpe de 2016, vários sinais foram dados pela sociedade brasileira de que o sistema político vigente não era mais capaz de dar respostas aos anseios políticos e ideológicos do Brasil atual, qualquer que seja a orientação política de um determinado grupo, instituição ou indivíduo. O mal-estar na sociedade brasileira é tão generalizado quanto a desorientação de forças políticas. Por Nova República compreendemos o período histórico brasileiro iniciado com o fim da Ditadura a partir da eleição indireta de Tancredo Neves em 1985, que pôs fim aos governos ditatoriais capitaneados pelos militares, até o golpe de Estado de 2016, que se configura como a quebra definitiva do arranjo político então vigente. O principal mecanismo de legitimação da Nova República foram as eleições diretas para os principais cargos públicos, principalmente, a Presidência da República. Do ponto de vista estrutural, a Nova República foi a forma de governo necessária para adequar a economia brasileira a uma integração subordinada no processo de globalização neoliberal, atualizando o caráter dependente do capitalismo brasileiro às novas configurações do sistema mundial. ²⁴⁷

O arranjo político da Nova República configurou-se como uma tentativa de construção de uma república liberal, baseada na representatividade, no contratualismo e no multipartidarismo. A pactuação nesses termos preservou a estrutura capitalista dependente do país, mesmo com a alteração do regime político, mas englobou forças à esquerda do espectro ideológico, retirando-as da ilegalidade e da perseguição. A livre organização dessas forças permitiu uma maior pluralidade de vozes, que se manifestaram na Constituição de 1988, assegurando dentro do arranjo uma série de direitos sociais e trabalhistas, assim como a participação cidadã em vários mecanismos institucionais em maior ou menor grau. As forças civis que outrora sustentaram a Ditadura tiveram que aceitar novos termos de disputa política para fazer parte do regime, e a possibilidade de um enaltecimento ou retorno do regime de exceção foi totalmente descartada. Os militares se retiraram da vida pública e se submeteram ao controle constitucional. As forças políticas e sociais da Nova República, à direita e à esquerda, construíram a identidade desse arranjo em antítese ao período anterior, apresentando o regime como a conquista da democracia, principalmente focada na possibilidade de eleições diretas para os principais cargos da República – algo vedado na Ditadura. A maior mobilização de massas pelo fim do regime de exceção, a campanha das Diretas Já (1983-84), teve justamente como mote o direito de votar para presidente. A pactuação sobre esses termos e a construção de um consenso social sobre eles permitiram à Nova República se apresentar não como uma experiência ou tentativa de democracia, mas sim como “A” democracia em si. Esse idealismo em torno da essência do regime permitiu a formulação de vários termos e análises, como a identificação de uma democracia que ainda não estava “consolidada” ou, como a grande mídia gosta de colocar, uma “jovem democracia”, e, por isso mesmo, ainda frágil. Tais nomenclaturas carecem de substância, pois, mesmo que apontem uma inquietação, como se ainda faltassem elementos para considerarmos a democracia “consolidada” no Brasil, nunca apontaram de maneira prática quais seriam os objetivos e as políticas a serem implementadas para superar esses entraves. Como regime calcado no liberalismo político, não é estranho que a Nova República se apresente como a encarnação do espírito democrático. Faz parte do ideário liberal se apresentar não como uma ideologia e, portanto, projeto de uma classe social (a burguesia), mas sim como algo natural, essencialista, como a forma final de um determinado conceito. No campo das ideias liberais, estas não se apresentam como partidárias de uma classe em uma sociedade contraditória, mas como “A” democracia, “As” ideias a serem seguidas, corretas pela sua própria natureza. Qualquer divergência é logo taxada de antidemocrática. Estas ideias poderiam no máximo serem aprimoradas, mas nunca rompidas. ²⁴⁸ O curioso do período em discussão foi que a própria esquerda organizada (de onde se esperam rupturas e propostas de superação do status quo ) foi assimilada por tal construto. As esquerdas do período, que realmente chegaram a representar grandes mobilizações e permitiram diversos avanços, nunca contestaram tal regime, nem se propuseram a superá-lo.

Pactuaram que a chegada ao poder se daria por meio de eleições, centralizando nestas a sua estratégia, assim como na preservação do regime. Se num primeiro momento (década de 1980 até meados dos anos 1990) tal posição era acertada, vide que as lutas sociais até aquele momento respondiam à necessidade de encerrar a Ditadura e construir um ambiente político em que as possibilidades de participação e vitória de projetos progressistas seriam possíveis, a partir da hegemonia neoliberal que se instaurou nos anos 1990 (momento que um retorno da Ditadura já era impossível), assistiu-se uma incapacidade colossal das forças de esquerda de proporem um movimento de massas que servisse de impulsionador para o rompimento dos limites liberais do arranjo da Nova República e a construção de uma verdadeira democracia, com soberania nacional, justiça social e participação direta da população. Formou-se assim o que chamamos de “esquerda da ordem”. Essas ideias estavam contidas nos programas dos principais partidos de esquerda formados nos anos 1980. De um lado, o PT (Partido do Trabalhadores), sob liderança de Luís Inácio Lula da Silva, fruto do novo sindicalismo, que cresceu nas indústrias multinacionais do ABC paulista e primava por um reposicionamento dos interesses do trabalho frente ao capital. Trazia também uma cultura de participação ligada a movimentos sociais e experiências comunitárias de forte influência da Igreja católica. Por outro lado, o PDT (Partido Democrático Trabalhista), sob liderança de Leonel Brizola, herdeiro direto do trabalhismo golpeado em 1964, dotado de um conteúdo nacionalista-revolucionário e socialista e que denunciava as “perdas internacionais”, em defesa da soberania brasileira contra o imperialismo e seus sócios locais. A Nova República foi, indiscutivelmente, um avanço em relação à Ditadura. Ela permitiu a construção de um ambiente muito menos opressor do que o regime de exceção ²⁴⁹ e garantiu – em tese – um conjunto de direitos à população em proporções até então inéditas. Porém, isso não pode nos eximir de uma análise crítica, nem tampouco de abrir mão de ferramentas analíticas na contramão do pensamento dominante. A Nova República não foi um regime fascista, ²⁵⁰ tal qual foi a Ditadura, mas não deixa de ser, obviamente, um regime de classe, no qual a “ideologia dominante é a da classe dominante”. ²⁵¹ Da mesma forma, o sistema político é montado de acordo com os interesses dessa classe dominante. Tratando-se de um país de capitalismo dependente, a “classe dominante” inclui o capital estrangeiro, com enormes interesses em uma nação de importância mundial como o Brasil. Não se trata também de esperar que a Nova República se traduzisse em socialismo e revolução. Nossa posição em tratar o regime pelo o que ele é (liberal) e não por seu ideal (democracia em si) não significa que a Nova República falhou e se extinguiu por não ter levado a classe trabalhadora ao poder e revolucionado as relações de produção no país. Esse nunca foi o objetivo da Nova República, não era o horizonte de expectativas que se colocou em seu alvorecer nos anos 1980 (nem no seu desenvolvimento posterior), nem mesmo era a leitura dos partidos de esquerda naquele período, para quem (PT, PDT, Partido Comunista do Brasil – PCdoB etc.) formular uma república representativa era uma condição de organização da

classe trabalhadora, para aí sim, almejar voos maiores. Nossa tese não trata de reducionismos, nem de teleologias. A tese aqui defendida é que a Nova República chegou a seu fim pela perda de seu conteúdo e de sua identidade, pela pactuação de um ordenamento social, materializado na Constituição de 1988, e das regras de disputa pelo poder. A violação de seu mecanismo de legitimação (as eleições) pelo golpe de 2016 e a irreversível crise de representatividade das forças políticas vigentes, visível nas Jornadas de Junho de 2013 e no mal-estar social do impeachment , mostram que as contradições da sociedade brasileira não estão mais comportadas nas forças políticas atuais. Essa falência do sistema fere de morte o arranjo político, no qual o conjunto de normas constitucionais e direitos que baseiam a cidadania desde 1988 não estão mais garantidos, e forças que não faziam parte anteriormente do pacto (fascismo) ganham terreno na sociedade brasileira e chegam à Presidência da República. O crescimento de manifestações de extrema-direita no país, a divulgação orquestrada de notícias falsas e o alastramento de uma política feita à base de ódio, discriminação e pregação da total irresponsabilidade social (por vezes com enaltecimento da Ditadura), assim como o endossamento de boa parte de suas pautas por atores institucionais e sociais relevantes, como o Congresso, frações importantes do Judiciário e a mídia corporativa, atentam contra os próprios valores sobre os quais foi construída a Nova República. Essas forças que já faziam parte do arranjo (ao contrário do fascismo) quebram o pacto e deslegitimam sua legalidade, atropelando a Constituição. A Carta Magna de 1988, conjunto de direitos da cidadania da Nova República, sofre ataques públicos de forças que outrora a formularam, ²⁵² o espectro político se abre para o retorno de forças que defendem a truculência e o autoritarismo como forma de se fazer política, e a garantia de respeito aos resultados eleitorais não mais existe, graças ao precedente aberto por um impeachment presidencial sem crime de responsabilidade. A Nova República não foi derrubada, nem sofreu uma revolução. Ela terminou pelo esvaziamento de seu conteúdo e sentido, com a quebra dos pilares sob os quais se constituiu, a representatividade e a legitimidade por meio do voto popular. Não mais comportando as contradições da sociedade brasileira e tendo seu mecanismo de legalidade violado por atores que outrora construíram o arranjo, a Nova República perdeu sua própria identidade e substância. Parte das forças que legitimaram o regime se mostram bem dispostas a levar o rompimento do pacto até às últimas consequências, inclusive agrupando atores que não cabiam no arranjo “neorrepublicano”, enquanto outras forças, que desejam sustentar e defender as regras acertadas, não demonstram mais ímpeto suficiente para realizar tal intento. Ressaltarmos, o fim da Nova República não significa dizer que as forças políticas que a constituíram, assim como sua superfície institucional, deixam de existir automaticamente. As transformações históricas se dão em velocidades distintas. Porém, apontamos que os processos em andamento na sociedade brasileira e a movimentação dos atores inviabilizam os ideais do regime e rompem com seus limites. Analisar os elementos que levaram à deterioração e ao termo da Nova República é tarefa fundamental para a intervenção prática na realidade, de modo a constituir um projeto

verdadeiramente democrático e voltado para a solução dos graves problemas socioeconômicos do país. Outra tarefa é analisar os novos atores e as novas roupagens de velhos personagens que se movimentam na arena política e que propõem a construção de projetos que não cabem nos limites da Nova República. A crise de identidade: essência versus aparência da Nova República O que é democracia? Essa palavra é tão repetida que naturalizamos seu entendimento sem uma reflexão apurada. A grande mídia e boa parte da intelectualidade apresenta democracia como sinônimo de eleições multipartidárias. Essa é uma visão muito limitada do objeto. Ela responde a um projeto de dominação liberal, em apresentar aspectos da democracia como a democracia em si. Trata-se a aparência pela essência, confusão típica do pensamento liberal. A simples existência de uma quantidade “X” de partidos e a sucessão de pleitos eleitorais não necessariamente significa a existência real de democracia. Como relembra Atílio Boron, ²⁵³ democracia significa “governo do povo”. Um sistema verdadeiramente democrático é aquele em que as decisões políticas não só são tomadas por meio da participação direta da população, como também respondem às necessidades desta. Diversos mecanismos foram formulados ao longo da história para viabilizar a democracia, sendo partidos políticos e eleições diretas alguns deles. No entanto, esses são elementos possíveis de serem utilizáveis, não se tratando da democracia em si. O voto direto, por exemplo, é uma aparência democrática, pois quem exerce o mandato é quem vence as eleições, mas pode não expressar os interesses da maioria. É uma aparência que oculta a concretude social, já que, apesar de passar pela decisão popular, não significa necessariamente um real exercício de poder pelo povo. Da mesma forma, esses mecanismos podem ser esvaziados de sentido e conteúdo. Sua mera existência não significa seu funcionamento democrático e satisfatório. A Ditadura no Brasil manteve um sistema bipartidário entre a Arena ²⁵⁴ (apoio ao governo) e o MDB ²⁵⁵ (oposição liberal-conservadora consentida) que disputavam eleições completamente espúrias para às câmaras legislativas federal, estaduais e municipais. Ninguém em sã consciência apontaria esse sistema como democrático, mesmo que nele sobrevivessem, de forma restrita e inócua, os sistemas de partidos e eleições. Da mesma forma, quantidade não significa qualidade. Existem hoje um sem número de partidos no Brasil que defendem todos as mesmas bandeiras, quando não, são meras legendas de aluguel com fins lucrativos e eleitoreiros. Poucos são os partidos que realmente representam uma determinada visão de mundo. A multiplicidade de siglas não é sinônimo de pluralidade de vozes.

Boron prefere classificar os sistemas políticos latino-americanos nascidos da transição dos regimes militares de “pós-ditatoriais”, ao invés de “democráticos”. O controle empresarial da política e das eleições, as promessas não cumpridas de desenvolvimento social a partir de regimes “democráticos” e a insatisfação generalizada das populações da região com seus representantes e instituições nos levam a concordar com as ponderações de Boron. Desenvolveremos alguns desses elementos em nossa crítica à Nova República brasileira. O republicanismo liberal é a mais perfeita forma de dominação política da classe capitalista. No entanto, também é a melhor forma de governo para a organização dos trabalhadores que propõem a superação do sistema capitalista. Até mesmo para os padrões liberais, a Nova República no Brasil deixou a desejar nos objetivos que se propôs, sendo sequestrada por uma plutocracia autóctone e estrangeira, e vendo seus mecanismos de funcionamento pretensamente democráticos não garantirem a pluralidade de posicionamentos e os direitos básicos da cidadania. A Nova República nasce pela exaustão da Ditadura. O regime de exceção chegou exaurido na década de 1980 devido à Crise da Dívida, que atingiu fortemente os países latino-americanos. A inviabilidade de continuação do keynesianismo nos países centrais, devido ao estancamento econômico dos anos 1970 e 1980, e a adoção do ideário neoliberal nos Estados Unidos e na Europa, elevaram as taxas de juros nessas economias, originando uma fuga de capitais da periferia do sistema, assim como a elevação dos juros relativos aos empréstimos contraídos pelos governos latino-americanos. O governo ditatorial brasileiro, que baseou sua política econômica no endividamento externo, ficou completamente paralisado, levando o país à recessão e à hiperinflação, aumentando o descontentamento. Da mesma forma, muitos dos militares no governo eram partidários de uma política nacional-desenvolvimentista (autoritária e segregadora, por certo), o que não combinava com os novos ditames do capital globalizado, de liberalização do comércio e privatização de empresas públicas. A Ditadura não era, portanto, o modelo ideal de sistema político para promover a integração subalterna da economia brasileira na globalização neoliberal. ²⁵⁶ A Ditadura também perdeu o apoio norte-americano, justamente por suas pretensões desenvolvimentistas de construir um “Brasil potência”, com hegemonia no Atlântico Sul. Do apoio irrestrito ao regime ditatorial, os Estados Unidos passaram a uma política de valorização dos diretos humanos sob a presidência de Jimmy Carter (1977-1981), continuada por Ronald Reagen (1981-1989), que denunciava as violências perpetradas pelos militares e seus aliados. Essa condenação dos “excessos” da Ditadura casava muito bem com a necessidade de abrir mercados e se apoderar de bens públicos do capital transnacional (apresentando falsamente a liberalização econômica como parte da liberalização política). A renovação da dependência brasileira não poderia ser feita pela Ditadura, pois o modelo econômico desta não respondia às novas imposturas do grande capital, da mesma forma como seria inviável uma nova rodada de concentração de renda e desemprego (como pretendiam os neoliberais) pelo governo então vigente. ²⁵⁷

O fim da Ditadura e a adoção de uma república liberal foi uma necessidade do capitalismo para o Brasil se adequar à nova dinâmica mundial do capital. O país passou, como todas as outras nações latino-americanas, por uma renovação de sua condição dependente, que deixou de lado um modelo industrializante (substituição de importações) e de investimento do capital estrangeiro no mercado interno, para o modelo da globalização neoliberal, caracterizado pela liberalização da economia, a privatização de bens e serviços públicos e a financeirização, com destaque para o mecanismo da dívida pública. As consequências dessas políticas para o mundo do trabalho (terceirização, precarização, informalidade e desemprego estrutural) somente seriam possíveis se implementadas sob a legitimidade de governos eleitos pelo voto. Regimes autoritários não respondiam mais às necessidades de reprodução do capital na América Latina. Deve-se destacar o caráter extremamente conservador da Transição no caso brasileiro. Não houve uma ruptura ou derrubada do regime de exceção, mas sim uma pactuação entre antigas forças de apoio à Ditadura e uma oposição liberal-conservadora liderada pelo PMDB. Não houve condenação dos crimes de lesa-humanidade cometidos pelo regime de exceção nem o resgate da memória, e a reparação dos crimes somente passou a ser discutida com maior firmeza nos anos 2000. Os acordos e tensões com os militares ficam claros no depoimento do ex-presidente José Sarney: A transição deu certo, porque nós constituímos um grupo de políticos. A união do Tancredo, do Ulysses, Aureliano, Marco Maciel, eu, os outros todos. E fizemos uma coisa fundamental: tomamos vacina contra a área militar. Para inibir reações de setores militares antagônicos. Isso foi feito com o general Leônidas, no Exército. O Aureliano ajudou junto à Marinha, com os almirantes Sabóia e Maximiano... O brigadeiro Murilo Santos na Aeronáutica, e assim por diante. Assim, tínhamos um esquema que, na hipótese de qualquer reação, o III Exército, com o general Leônidas, garantiria. Ele fez um proselitismo dentro das Forças Armadas para que a transição fosse feita, fosse bem-sucedida. Graças a isso, nós tivemos a segurança de fazê-la. É a minha tese, que repito sempre: a transição tinha que ser feita com as Forças Armadas, não contra as Forças Armadas. Quer dizer: o contrário do caso argentino. A ideia de que a transição deveria significar a derrubada dos militares do poder, essa era extremamente perigosa. Então nós fizemos justamente com o Tancredo. Foi feito com Tancredo, com as Forças Armadas. Ninguém sabe disso até hoje [1997]! ²⁵⁸ A derrubada da Ditadura seria o fim do regime ditatorial devido às mobilizações populares. O mecanismo para isso seria a campanha das Diretas Já (1983-84), uma das maiores manifestações da história brasileira, que exigia a convocação de eleições diretas para presidente da República. A Ditadura e parte da oposição liberal-conservadora temiam que a Transição fosse feita por meio de uma clara derrota do regime militar que impusesse eleições diretas em um momento de grande popularidade de líderes da esquerda, como Lula e Brizola. Uma vitória eleitoral de uma dessas figuras era dada como certa naquela conjuntura de ascenso de mobilizações de massas e significaria a radicalização do processo de Transição. Era preciso que a Transição significasse continuidade, sem grandes radicalismos políticos ou mudanças bruscas na economia brasileira, muito menos o

julgamento dos militares por seus crimes de assassinatos, torturas, sequestros, entre outros. ²⁵⁹ A derrota das Diretas Já asfaltou o caminho para a Transição negociada com os militares e próceres civis da Ditadura, tendo Tancredo Neves como seu principal artífice. Florestan Fernandes foi, naquele momento, um dos maiores críticos da forma como se deu a Transição. Determinar o sucessor e as condições políticas da “transição” constituíam dois objetivos centrais, mas não os mais importantes. O essencial consistia (e ainda consiste) em impedir um deslocamento de poder , com uma acumulação de forças políticas acelerada das classes subalternas. O que os militares temiam era ainda mais temido pela massa reacionária da burguesia. Trocar a ditadura por um governo de “conciliação conservadora” era uma barganha imprevista, que o sistema de poder e de propagação ideológica da burguesia fortaleceu com estardalhaço por todos os meios possíveis (conferindo, inclusive, à campanha eleitoral de Tancredo Neves o estatuto de um movimento de salvação nacional). A partir daí, o PMDB perdera a capacidade de afirmar-se numa linha de combate coerente pela democracia e adernou à direita, arrastando na queda sua “esquerda parlamentar” e sua riquíssima irradiação popular. O antiditatorialismo passou por um processo análogo ao esvaziamento do republicanismo, provocado pela aliança dos fazendeiros com os “republicanos históricos”. Os touros estavam soltos na praça. Mas não havia toureiros. Os próceres do PMDB ocupavam-se em “matar as cobras com o próprio veneno”, enquanto estas mudavam de covil e se instalavam confortavelmente entre as cobras que infestavam o PMDB. Em seu clímax, o movimento político popular sofrera um golpe mortal. A “transferência de poder” converteu-se numa troca de nomes e, como afirmou um notável comentarista político, as velhas e as novas raposas aplainaram o caminho que levava à satisfação de seus apetites. Esse era o desdobramento que mais convinha às elites econômicas, culturais e políticas das classes dominantes. Esvaziar a praça pública, recolher as bandeiras políticas “radicais”, matar no nascedouro o movimento cívico mais impressionante da nossa história – restaurando de um golpe as transações de gabinete, as composições entre os varões “liberais” da República, o mandonismo político. Não há o que negar: as figuras de proa, como Tancredo Neves, Ulisses Guimarães, Marco Maciel e Aureliano Chaves à frente, lavraram um tento. Exibiram um profissionalismo político de causar inveja. E tiveram êxito. O que consagra a ação política é a vitória. Vitoriosos, eles demonstraram o seu valor e a sua competência. E a Nação? Esta foi inapelavelmente empurrada da estrada principal. Moldura e cenário de uma reestruturação específica, que nos coloca metade na década de [19]20 e outra metade na década de [19]40. Mais que a eleição direta de um presidente, perdeu-se a oportunidade histórica única de usar o rancor contra a ditadura e a consciência geral da necessidade de mudar profundamente como o ponto de partida de uma transformação estrutural da sociedade civil e do Estado. E se ganhou uma mistificação monstruosa: a montagem política e ideológica de Frankenstein , batizado de Nova República e trombeteado pela cultura da comunicação de massa como uma “vitória do Povo na luta pela democracia”! ²⁶⁰

Desdobramento direto da não punição dos responsáveis pela Ditadura, a permanência do caráter militar da polícia e, por extensão, da segurança pública, são a maior reminiscência do regime anterior. Manter boa parte do aparato de repressão do regime anterior intacto é prova da fraqueza da Nova República e da farsa de sua “essencialidade” democrática. Não houve uma remodelação dos corpos policiais e das Forças Armadas após o fim do regime, o que se desdobra numa polícia extremamente violenta, com altíssimos índices de assassinatos de civis – sobretudo a população mais pobre e negra. Segundo a Anistia Internacional, a polícia brasileira é a mais letal do mundo. No intervalo de cinco anos (2009-2013), as forças policiais assassinaram 11.197 pessoas, o que significa seis mortes por dia, números que equivalem a uma guerra civil. Da mesma forma, a polícia brasileira é a que mais morre. No mesmo período, foram 1.770 policiais mortos, praticamente um por dia. ²⁶¹ Do lado das Forças Armadas, a leitura positiva da Ditadura continuou sendo ensinada nas escolas de formação das três Forças, perpetuando o legado autoritário e brutal da Ditadura como um “mal necessário” que os militares fizeram pelo Brasil. ²⁶² Da mesma forma, mesmo a identidade da Nova República tendo sido construída em antítese à Ditadura, nunca se trabalhou de fato para extirpar o legado dos anos de chumbo. Nos últimos anos, assistimos um sem número de figuras públicas enaltecendo a Ditadura, rememorando a figura de torturadores, e tentativas de revisionismos da história recente brasileira ganhando corpo sem provocar a condenação veemente dos três poderes e outros atores. Pelo terror empreendido pela Ditadura e as feridas ainda abertas que ela deixou na sociedade brasileira, deveria ser proibido por lei o enaltecimento de tal regime e das atrocidades cometidas por seus agentes. A rala desculpa de que o fato de permitir os defensores da Ditadura se manifestarem é uma prova de que vivemos em democracia, na verdade, é uma posição covarde para não assumir que muitos dos que têm poder na política brasileira são os mesmos da época ditatorial. ²⁶³ Esconde o fato de que a Nova República surgiu de um “acordão” entre as elites brasileiras e estrangeiras para que a transição da Ditadura para o republicanismo liberal fosse realizada sem grandes radicalizações que pusessem em xeque o sistema de dominação nacional e internacional que recai sobre nosso povo. Quando um sistema político não consegue passar a limpo seu passado e extirpar o enaltecimento do que considera repugnante, não se trata de uma demonstração de robustez democrática, mas sim de sua fraqueza. A violência policial como legado e permanência da Ditadura na Nova República é apenas uma amostra dos problemas desse sistema. Mesmo durando três décadas, a Nova República não conseguiu convencer os brasileiros em grande escala da eficácia e da necessidade da democracia. Os levantamentos feitos pelo Latinobarómetro, que medem a satisfação e confiança na democracia nos países da América Latina, mostram um grande descontentamento do povo brasileiro com o regime “democrático”. Verificamos a média de vinte anos ²⁶⁴ de satisfação da população brasileira com a “democracia” (1995-2015), portanto, quando a Nova República já estava consolidada, sem ameaças de um retorno da Ditadura. Somente 21% dos brasileiros disseram estar satisfeitos com a democracia no país, ficando

à frente somente do México, onde só 19% da população se encontra satisfeita com a democracia. Enquanto a média latino-americana é de 37%, o Brasil está bem distante dos países que apresentam os maiores índices de satisfação: Uruguai, 70%, Equador, 60% e Argentina, 59%. Ao ser perguntado se, em qualquer circunstância, a democracia sempre é preferível a um regime autoritário, 54% dos brasileiros concordaram com a afirmação, próximo à média latino-americana, de 56%. Mesmo assim, encontra-se bem distante dos primeiros colocados: Venezuela, 84%, Uruguai, 76% e Equador, 70%. O pior resultado foi o de representação no Congresso: 87% dos brasileiros disseram não se sentirem representados pelo seu poder legislativo, um dos piores índices da região, junto ao Peru (92% de reprovação). Mesmo a média latino-americana sendo ruim (70% não se sentem representados pelo Congresso de seus países), o Brasil permanece distante dos primeiros colocados: a rejeição à representatividade do Parlamento é de 55% no Uruguai, 64% na Nicarágua e 69% na Venezuela. Os números demonstram que o brasileiro em geral não está satisfeito com a “democracia” da Nova República e não se sente representado pelo seu Congresso. A insatisfação com a Nova República em nossa interpretação vem no sentido de não resolução dos graves problemas socioeconômicos do país, o que decepciona os brasileiros, assim como a distância entre a população e os mecanismos de funcionamento do sistema político, como o Congresso. A possibilidade de “aceitar” um regime não democrático respondida por alguns nos parece um horizonte de expectativa em relação à resolução dos problemas sociais. A preocupação dos brasileiros estaria mais inclinada na solução dos problemas existentes do que na forma política necessária para isso. Não significa que brasileiros sejam propensos a apoiar regimes ditatoriais, mas que a “democracia” não parece estar funcionando da maneira como a população esperava. A defesa de um sistema fica difícil quando ele não consegue se mostrar capaz de realizar o que promete. Se a insatisfação com a representatividade do Congresso é uma demonstração de algo errado com o sistema eleitoral da Nova República, outros resultados jogam por terra os argumentos de que a existência de eleições multipartidárias são a garantia de democracia. No mesmo levantamento, somente 31% dos brasileiros confiam que as eleições são limpas no país, ficando à frente somente do México (26% de aprovação). Mais uma vez, o país se encontra abaixo da média latino-americana: 47% aprovam a lisura das eleições na região. O Brasil se encontra bem distante da confiabilidade dos primeiros colocados em relação a seus pleitos eleitorais: no Uruguai, 82% acreditam que as eleições são limpas, Chile, 67%, Costa Rica, 60%. No quesito transparência, a média da Nova República brasileira é a pior da região. Somente 16% dos brasileiros afirmaram que seu governo era transparente. Importante ressaltar que, no período analisado, 1995-2015, tivemos governos das duas grandes forças da Nova República, PSDB e PT. E de novo, o Brasil ficou distante da média latino-americana, 36%. Os melhores avaliados no quesito satisfação com a transparência dos governos foram Uruguai, 61%, Equador, 59%, e República Dominicana, 56%.

Tais informações demonstram que a representatividade, o multipartidarismo e a presença de eleições periódicas não só não garantem a democracia, como sequer convencem parte significativa da população de que esta é a melhor forma de governo. Observamos que o descrédito dos atuais regimes políticos latino-americanos é algo recorrente em toda região. Contudo, o Brasil aparece abaixo da média em todos os quesitos, sempre figurando entre os piores índices e muito distante dos países que apresentam os melhores indicadores. As pesquisas realizadas pelo Latinobarómetro são apenas quantitativas, servindo para nos demonstrar uma insatisfação da população brasileira com a Nova República. No entanto, é importante salientar que o fim do sistema político supracitado guarda traços mais profundos do que simplesmente o descontentamento com os rumos da política brasileira. Para a Nova República ganhar sua forma definitiva, foi necessário encerrar a Ditadura e trazer para a arena política uma série de forças de esquerda até então perseguidas e colocadas forçosamente na ilegalidade. Nacionalistasrevolucionários, comunistas, sociais-democratas e até mesmo liberais com maiores preocupações sociais tinham sido exilados, perseguidos e assassinados pela Ditadura. Se o fim do regime de exceção não ocorreu com a sua derrubada por forças populares (como almejavam alguns setores durante a campanha das Diretas Já), as forças de esquerda que se agrupavam em partidos como o PT, PDT, e movimentos e organismos que surgiam, como o MST (Movimentos dos Trabalhadores Sem-terra) e a CUT (Central Única dos Trabalhadores), tiveram que ser acolhidas na nova institucionalidade, e com elas boa parte de suas pautas. O conjunto de direitos sociais e trabalhistas contidos na Constituição de 1988 formou um pacto necessário para um novo momento político do país. Foi uma condição imposta pela conjuntura para se virar a página da Ditadura. O Capítulo II dos Princípios Fundamentais da Constituição de 1988, “Dos direitos sociais”, é uma demonstração de como essas forças foram determinantes para a construção do Brasil pós-ditatorial. Direitos como o salário-mínimo, décimo-terceiro salário, fundo de garantia, participação nos lucros das empresas, piso salarial e uma série de outros direitos foram inscritos na Carta Magna. Direitos sociais como alimentação, moradia, trabalho, saúde, educação, previdência social passaram a figurar como garantias constitucionais a todos e todas, independente de governos e vontades políticas. As forças de direita tiveram que se adaptar ao republicanismo liberal para continuarem controlando o poder. Diversos políticos civis que apoiaram a Ditadura abandonaram o barco da então Arena e passaram para outras siglas, numa necessidade de se desvincular do regime ditatorial: Collor, Sarney, Maluf, a família Antônio Carlos Magalhães, Agripino Maia, Marco Maciel, Edson Lobão, a família Bornhausen, entre outros. A defesa da Ditadura, do fascismo e da perseguição como forma de atuação política foram descartadas devido ao ascenso de mobilizações pelo fim do regime ditatorial na década de 1980 e a inviabilidade de continuação da Ditadura devido à nova conjuntura econômica e política mundial.

Entretanto, nos últimos anos da Nova República, assistimos uma retomada da extrema-direita, ganhando base social e espaço midiático como nunca visto desde a Ditadura. O avanço do fascismo como forma de fazer política no Brasil não é mais restrito a grupos obscuros e meia dúzia de congressistas folclóricos. No ocaso do sistema, ele ganhou base social e viabilidade eleitoral, recebendo apoio e alianças de setores mais tradicionais da direita brasileira, além de considerável espaço midiático. Esses últimos violaram o arranjo político colocado, desrespeitando seu mecanismo de legitimidade (voto) e se mostram bem dispostos a desmontar a Constituição, realizando alianças com a extrema-direita, força até então não participante das pactuações nacionais. As políticas impostas pelo governo ilegítimo de Michel Temer (2016-2018) e a vitória eleitoral de Bolsonaro e do fascismo seriam impossíveis de serem concretizadas sem o recurso do golpe de Estado, o atropelo da Constituição e o ascenso de forças de extrema-direita, outrora ausentes no regime político brasileiro. Sem meias palavras, a jogada de força da direita brasileira não cabe nos marcos da Nova República. Por último, um ponto importante para refletirmos sobre as diferenças entre o essencialismo creditado à Nova República e sua realidade se encontra na volatilidade dos governos. Entre 1985 e 2016 tivemos quatro presidentes eleitos. Apenas dois, ou seja, a metade, concluiu o governo (Fernando Henrique Cardoso e Lula). Por outro lado, os três vice-presidentes que assumiram após a impossibilidade/remoção do titular chegaram ao fim dos “seus” mandatos. A Nova República iniciou com a eleição indireta de Tancredo Neves. Seu falecimento precoce levou à presidência José Sarney, quadro da Ditadura, que ficou responsável pela Transição. Seu mandato de quatro anos foi aumentado para mais um ano pelo Congresso Federal sem consulta à população. A Constituição de 1988, em que pese ser um texto avançado para aquela conjuntura, tampouco passou por referendo popular. Fernando Collor, primeiro presidente eleito da Nova República sofreu um impeachment no meio do governo. Seu vice, Itamar Franco, complementou o mandato. A partir desse momento, tivemos os governos das duas principais forças partidárias da Nova República: o PSDB, com Fernando Henrique Cardoso, e o PT, com Lula (tendo sempre o MDB como fiador da governabilidade). Esses foram os únicos presidentes que conseguiram terminar seus governos. Posteriormente, Dilma Rousseff, também do PT, foi eleita, concluiu o primeiro mandato e foi reeleita, sofrendo o impedimento no segundo mandato sem crime de responsabilidade, o que configura golpe de Estado. Portanto, a Nova República em três décadas nos presenteou com: uma Transição dirigida por um quadro do regime anterior, um golpe, dois impeachments , um presidente eleito indiretamente, três vices que assumiram nas mais variadas formas (todos do PMDB) e uma emenda constitucional que autorizou a reeleição sob acusações de compra de votos no Congresso.

A Constituição de 1988 já sofreu até o momento (julho/2018) 99 emendas (!), quase todas de cunho regressivo, ou burocrático. ²⁶⁵ A volatilidade dos governos e as constantes revisões do texto constitucional demonstram como a Nova República se desenvolveu sobre terreno incerto. A falta de estabilidade exemplifica a contradição entre o essencialismo democrático creditado à Nova República e as grandes contradições que permearam o período e inviabilizaram, na prática, muito do que se declamava no ideal. ²⁶⁶ A crise de representatividade: pluralidade de vozes na Nova Repú blica? Uma das formas adotadas na Nova República para garantir a pluralidade de vozes foi o pluripartidarismo. Mecanismo típico do liberalismo, o pluripartidarismo muitas vezes é fetichizado pela grande mídia monopólica e pela intelectualidade. Se, por um lado, para a atual configuração da sociedade brasileira o sistema é correto, por outro, seu endeusamento acrítico é uma armadilha para a democracia. O pluripartidarismo é muitas vezes representando como a democracia em si, como mecanismo que garantiria a pluralidade de ideias em uma determinada sociedade. No caso brasileiro, ele foi uma necessidade histórica, vide que a Ditadura permitiu apenas seu partido oficial, a Arena, e uma oposição modesta do MDB, sem qualquer chance de vitória. O fetiche do pluripartidarismo ocorre muito por uma tentativa das mentes liberais em taxar o comunismo e a esquerda como sinônimo de ditadura. Advogam que a “política de partido único” não permite eleições “livres” e “alternância de poder”. Não é o objetivo desse artigo realizar um aprofundamento nesse debate, porém marcamos posição de que discordamos de tais afirmações. Primeiramente, nem todas as experiências socialistas são/foram adeptas da política de “partido único”. Em segundo lugar, o partido comunista nas experiências socialistas não tem como objetivo concorrer às eleições, mas sim ser um promotor de debates em toda a sociedade e recolher os posicionamentos da população para resolver as questões apresentadas, agindo como vanguarda social. Tampouco o sistema eleitoral de países socialistas é feito a partir de disputas partidárias, já que a sociedade socialista é fruto de uma revolução que pretende acabar com as classes sociais, logo, representações de classe são desnecessárias. A representatividade ocorre em outro nível, como federação de mulheres, sindicatos etc. Os trabalhadores não precisam de uma infinidade de partidos para os representar no socialismo, porque o governo já os pertence e sua participação política é direta a partir de assembleias locais, entre outras formas, não cabendo o conceito liberal de representatividade. Em outras palavras, o conceito de representatividade liberal é obsoleto numa sociedade socialista, já que a participação se dá em termos completamente diferentes. Sequer precisamos nos alongar sobre o mito da “alternância de poder”. Poder não se alterna, poder se disputa, conquista-se e se priva o adversário dele. No entanto, como colocado, a Nova República foi um sistema de governo liberal, e como tal necessitava da livre organização de partidos e sua concorrência pelo governo. O que observamos nos tempos atuais é que o conjunto de partidos políticos existentes, pretensamente representantes de diversas vozes na sociedade brasileira, passa por uma grave, e para nós

irreversível, crise de representatividade. O alto número de siglas existentes no país não significa diversidade, mas sim legendas de aluguel para fins eleitoreiros e lucrativos (acesso ao fundo partidário, doações de campanha, regalias do poder). Porém o mais importante é analisar que aqueles partidos que detêm força suficiente para serem determinantes na vida pública, ganhar cargos importantes, incluindo a presidência e que possuem fortes bases sociais de apoio são financiados por grandes empresas nacionais e estrangeiras. Parte de uma tendência mundial no neoliberalismo, o financiamento empresarial de campanhas compromete os partidos políticos com os interesses das grandes empresas. Aqui não há espaço para ingenuidade. As empresas financiam todos os principais partidos para que depois possam cobrar a fatura por meio de isenções fiscais, privatizações e todo tipo de projeto político e decisão judicial que as favoreçam. O sistema partidário brasileiro faliu em representar os interesses de grupos específicos da sociedade. As siglas partidárias se tornaram cativas dos interesses de grandes multinacionais, que financiam todos os candidatos com real chance de vitória, comprometendo governos com seus interesses. Vejamos um caso exemplar. Em novembro de 2015, ocorreu o maior crime ambiental da história do Brasil, ²⁶⁷ com o rompimento da barragem de rejeitos da mineração no município de Mariana, Minas Gerais. Foram entre 50 e 60 milhões de m3 de rejeitos que destruíram parte da cidade e devastaram o rio Doce, que percorre mais de duzentos municípios dos estados de Minas Gerais e Espírito Santo, causando uma devastação de fauna, flora e recursos sem precedentes. Foram dezenove mortos, milhares de desabrigados, incluindo o prejuízo para populações indígenas que residiam ao longo do rio. A barragem de rejeitos pertencia à empresa Samarco, que por sua vez pertencia à Vale e à anglo-australiana BHP Bilinton. A Vale doou R$ 24 milhões para a campanha de Dilma Rousseff em 2014. Ao mesmo tempo, doou também R$ 2,7 milhões para o segundo colocado nas eleições, Aécio Neves (PSDB), rival de Dilma no segundo turno. ²⁶⁸ Treze dos dezenove deputados que compunham uma comissão de avaliação do desastre em Mariana tinham recebido doações de empresas ligadas à Vale. Anos após o acidente, muito pouco foi feito para reconstruir o que foi destruído. A poluição do rio Doce demorará décadas para se dissipar. A Vale só foi condenada a pagar algumas multas, tratando o caso como “acidente”. O assunto sumiu dos noticiários com a escalada da crise que culminou no golpe de 2016. Empresas não fazem doações, fazem investimentos. A doação empresarial de campanhas, que foi proibida a partir de 2015 pelo Supremo Tribunal Federal, foi um dos elementos que pasteurizou a política brasileira. O objetivo da diversidade de vozes com o pluripartidarismo naufragou preso no jogo das grandes empresas. Tornou-se muito difícil perceber quais eram as diferenças entre PT, PSDB, MDB e demais siglas, já que todas parecem executar as mesmas políticas de governo com algumas pequenas diferenças. A política econômica dependente de corte neoliberal, o descaso com a qualidade dos serviços públicos, a distância entre instituições e cidadãos,

sucessivos casos de corrupção, tudo isso corroeu a participação política e esvaziou o cenário brasileiro dos grandes debates. Em 2015, segundo o Latinobarómetro, mesmo com a existência de mais de trinta legendas, somente 23% dos brasileiros se sentia representados por um partido político, a porcentagem mais baixa da América Latina, que apresentou média de 40% de identidade dos entrevistados com alguma agremiação política. O campeão regional no quesito foi o Uruguai, com 72% de identificação de sua população com algum partido político. ²⁶⁹ A decisão do STF em julgar inconstitucional o financiamento empresarial de campanha, apesar de importante, veio muito tarde. Essa modalidade de financiamento já tinha cumprido sua função, ao tornar impossível uma vitória eleitoral sem o dinheiro de grandes empresas multinacionais. Essa realidade, que perdurou por quase duas décadas, foi uma das principais responsáveis pela pasteurização e pela corrupção da política brasileira. Ela criou uma “jaula de ferro” que aprisionou a política numa falsa “tecnicidade”, que, na verdade, significava a proibição por parte das empresas e da banca internacional de se fazer uma política econômica que fugisse do neoliberalismo. O caso das tarifas de transporte nas cidades é exemplar. As passagens aumentam todos os anos como se isso fosse uma questão somente de contrato, “técnica”. Sua questão é política, pois os governos não encaram as máfias do transporte público porque são, na grande maioria, financiados por elas mesmas. E foi justamente do caos das cidades que veio o estopim para escancarar a crise de representatividade da Nova República. As Jornadas de Junho de 2013 foram o indício de que algo não estava bem na sociedade brasileira. Mesmo com a economia apresentando bons indicadores naquele momento, com baixo desemprego e aumento do consumo, milhões de pessoas saíram às ruas de todo o país para reivindicar melhores serviços públicos, com destaque para os transportes, estopim dos protestos. Foi a primeira grande manifestação da Nova República sem a liderança do PT e aliados na sua organização e condução. Em determinado momento, apesar da pauta popular, representantes da esquerda organizada foram hostilizados nos atos. “Sem bandeira”, “sem partido” e “não me representa” foram demonstrações de como aquela massa de trabalhadores pobres, em sua maioria jovens com acesso às redes (e inseridos no circuito trabalho/consumo/ensino superior), rechaçavam as agremiações partidárias, sindicais e estudantis tradicionais. Da mesma forma, em nenhum momento as Jornadas de Junho apresentaram um conteúdo contra o então governo de Dilma Rousseff e do PT, nem tampouco enalteceram figuras da oposição de direita da época. Foi uma manifestação espontânea e reivindicativa ²⁷⁰ que aguardava as autoridades responderem positivamente seus anseios por saúde, educação e transporte gratuito, público e de qualidade. O problema é que a resposta não veio. Os dois governos Lula não foram capazes de criar novos direitos sociais [...]. Pesquisa da empresa de consultoria Plus Marketing na passeata de 20 de junho de 2013 no Rio de Janeiro mostrou que 70,4% dos manifestantes estavam empregados, 34,3% recebiam até um salário-mínimo e 30,3% ganhavam entre dois e três salários-mínimos. A idade média era de 28 anos,

ou seja, a faixa etária dos que entraram no mercado de trabalho nos últimos dez anos. [...] Os aumentos nos gastos sociais não aliviam quase nada as carências desses setores. Uma pesquisa nacional realizada pelo Ibope durante as passeatas do mês de junho de 2013 mostrou que os problemas mais citados pelos manifestantes eram a saúde (78%), a segurança pública (55%) e a educação (52%). Ademais, 77% dos entrevistados mencionaram a melhoria do transporte público como a principal razão dos protestos. Estamos diante de um autêntico processo de mobilização do proletariado precarizado em defesa tanto de seus direitos à saúde e à educação públicas e de qualidade quanto pela ampliação de seu direito à cidade. ²⁷¹ A “inclusão pelo consumo” dos governos petistas não foi suficiente para criar novos direitos sociais, algo que para ser efetivado teria que enfrentar os monopólios, não cabendo, portanto, no modo petista de governar. Pelas pautas levantadas pelos manifestantes de junho de 2013, vemos que esses direitos sociais reivindicados nada mais eram que a eficiência e qualidade nos serviços públicos. A não resposta por parte de um pretenso governo de esquerda criou um descrédito político, somado a outras decepções petistas, como a conivência com sucessivos casos de corrupção, o que levou a população brasileira a uma posição de aversão aos políticos e a não conseguir identificar a diferença entre os diversos projetos políticopartidários. Na maioria das vezes, essa diferença realmente não existe, quando, por exemplo, no início do seu segundo mandato, Dilma nomeou para ministro da Fazenda Joaquim Levy, homem de confiança do Banco Bradesco, que aplicou uma política antipopular de ajuste fiscal, exatamente o contrário do prometido no pleito eleitoral apenas alguns meses antes. Daí em diante, seguiu-se a derrocada do governo de Dilma Rousseff e do PT até o Golpe de 2016. No entanto, é importante salientar que em nenhum momento a direita tradicional da Nova República (PSDB, MDB e aliados) foi enaltecida pelas manifestações pró-impeachment de Dilma. Em uma delas, Aécio Neves e Geraldo Alckmim, lideranças importantes do PSDB, foram escorraçados por manifestantes em São Paulo e chamados de “oportunistas”. ²⁷² Mesmo depois do Golpe, o novo presidente Michel Temer, antes vice de Dilma e que conspirou abertamente com a oposição de direita para usurpar a presidência, manteve baixíssimos níveis de popularidade, que ultrapassavam os 90% de reprovação. ²⁷³ Quem preencheu, em parte, o vácuo político foi uma direita de conteúdo fascista, violenta e intolerante. Figuras como a família Bolsonaro, aliada a latifundiários, membros das forças policiais e líderes de algumas igrejas evangélicas ganham cada vez mais holofotes na grande imprensa, trazendo bandeiras como intolerância religiosa, militarização da segurança pública, ataques frequentes contra mulheres, LGBTs e outras minorias políticas, incitação ao enfrentamento contra tudo que se assemelhe a ícones de esquerda, tentativa de censura a professoras e imposição de uma educação de conteúdo autoritário (movimento Escola sem Partido), enaltecimento da violência como forma de resolução de problemas sociais. Se os “valores” defendidos e as práticas estabelecidas por esse agrupamento são uma afronta a qualquer noção de democracia, sua valorização da Ditadura e de personagens ligados aos aparatos de repressão e tortura do mesmo período, sem nenhum tipo de repreensão dos poderes, da grande mídia e outras

instituições, são mais um indício da total falência da Nova República, pois entram em rota de colisão direta com os pilares nos quais esse sistema político foi erigido. Por outro lado, a esquerda passa a se movimentar por fora do PT. As redes se tornaram um espaço muito importante de comunicação e informação, tentando muitas vezes fazer um contraponto à cobertura falaciosa da grande imprensa. O MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem Teto) vem se tornando um importante ator político do país, não pertencendo à esfera petista de influência, mesmo que dialogue com esse agrupamento quando necessário. Novas formas de organização da classe trabalhadora vão surgindo à revelia das agremiações já existentes, como organizações a partir do local de moradia que investem na produção e nos serviços autogestionários – a exemplo das Brigadas Populares, economia solidária, coletivos feministas, de negros e negras, movimento LGBT, ocupações urbanas. Novas formas de velhas lutas também se configuram, como o sindicalismo de trabalhadores informais, as ocupações estudantis por melhorias na educação e a luta institucional, nas quais se destacam os mandatos do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade). Como mecanismo de mobilização, formularam-se frentes, como a Povo Sem Medo e a Brasil Popular (essa última mais ligada ao petismo). Tanto a escalada do fascismo organizado quanto o aparecimento de novas e ainda incipientes formas de organização da classe trabalhadora demonstram o esgotamento das forças políticas da Nova República. Não nos parece que a direita tradicional (PSDB-MDB) tenha muito mais a oferecer do que ajuste fiscal, corte de direitos e servilismo internacional, num volver a los noventa . Por outro lado, o petismo não é mais capaz de operar a conciliação de classes que realizou em seus governos. Esse esgotamento de forças se torna o ocaso do próprio sistema quando o horizonte apontado pelas novas forças que surgem não cabe dentro dos limites da Nova República, seja porque não serão absorvidas pelas forças hegemônicas até o momento, sejam porque entram em rota de colisão com o republicanismo liberal, essência do próprio arranjo até então vigente. Uma nova quadra da história brasileira se abre com desenvolvimento ainda incerto. A quebra da legalidade: o golpe de 2016 O esgotamento das forças políticas da Nova República e a crise de representatividade são elementos que encaminharam o termo do período em questão. Contudo, a Nova República teve como ponto final o processo de impeachment da então presidenta Dilma Rousseff em 2016. Tal ato se configurou como um golpe de Estado por não apresentar crime de responsabilidade – como determina a Constituição – e ser fruto de uma operação de grande envergadura, envolvendo o Congresso, a grande mídia (Rede Globo à frente) e setores do Judiciário. As principais instituições públicas contribuíram para a destruição do mais importante elemento de legitimidade da Nova República: a soberania do voto popular por meio de eleições diretas. Essas mesmas instituições abrem espaço para novas-velhas formas truculentas de se fazer política que não faziam parte do pacto “neorrepublicano”.

A crise do governo Dilma se deu por duas razões: a política petista de defesa da ordem econômica e política (dependência e liberalismo “neorrepublicano”) e pela ação de seus adversários. No início do segundo mandato de Dilma, o PT passou a aplicar o programa que derrotara nas urnas por quatro eleições seguidas, em um momento em que a economia já sofria os efeitos da crise internacional desencadeada a partir de 2008. ²⁷⁴ Dilma passou a instituir uma série de políticas de ajuste fiscal e aumento de juros, o completo oposto do que tinha prometido nas urnas três meses antes. Isso dinamitou a base social de apoio ao governo, deixando-o indefeso frente aos ataques da direita tradicional. A operação jurídico-midiática da Lavajato, sobre denúncias de grandes empreiteiras que atuavam junto à Petrobras, corroeu qualquer apoio popular que Dilma poderia angariar. É necessário apontar, contudo, que se uma força política dita de esquerda passa treze anos no governo, vivendo diversas conjunturas, e não propõe, em nenhum momento, um rompimento com a ordem capitalista, então ela é na verdade parte dessa ordem. A ação da direita tradicional foi perfeita. Se utilizando de várias táticas e espaços (muito além das eleições), e de uma ferramenta constitucional, o impeachment , criou uma narrativa dominante de que a presidenta era a culpada pela corrupção na estatal petroleira, mesmo que Dilma não tenha sido sequer citada em qualquer momento da Lava-jato até sua deposição. Movimentos fake na internet foram criados para dar o ar de “clamor das ruas” pelo impedimento de Dilma, mesmo que a torrente de manifestantes contra o governo nas manifestações de 2015 e 2016 tenha participado dos protestos muito menos por convocação desses pretensos movimentos do que pela manipulação midiática, sobretudo na classe média, maioria absoluta nas manifestações. Sem respaldo popular para sua defesa, com a exposição sistemática na mídia dos números negativos da economia (muito devido à sua desastrosa política), denúncias diárias na grande imprensa, uma operação jurídica em que a lei foi desrespeitada diversas vezes sem qualquer tipo de manifestação do STF ²⁷⁵ e uma ação de implosão da base congressual do governo, comandada pelo então presidente da Câmara Eduardo Cunha (MDB), Dilma virou presa fácil, perdeu a sua problemática “base aliada” e viu a grande massa da população brasileira não disposta a defender um governo que parecia ter prometido X e feito Y. No final, sua derrubada não foi tão difícil para as forças conservadoras.

A questão da queda de Dilma não foi legal, foi política. A fraqueza do governo e a possibilidade clara de derrubá-lo fizeram com que as forças da oposição de direita tivessem apenas que “escolher” algo para incriminar Dilma. A justificativa escolhida, manejos de verbas para equilibrar as contas públicas (que ficaram popularmente conhecidas como “pedaladas fiscais”) foram largamente utilizadas por todos os governos predecessores e também por administrações estaduais e municipais, tanto do campo petista quanto da oposição de direita. Um mês antes do afastamento definitivo de Dilma pelo Senado, o próprio Ministério Público reconheceu que as tais “pedaladas” não configuravam crime ²⁷⁶ e, num ato de pura galhofa, dois dias após o impedimento de Dilma, a própria Câmara dos Deputados legalizou em definitivo as pedaladas. ²⁷⁷ Até junho de 2018, Dilma foi inocentada de todas as acusações que respondia na Justiça. Por mais que se tenha usado um dispositivo constitucional, o impeachment , o afastamento de Dilma Rousseff da presidência configurou-se como um golpe de Estado pela ausência de crime. Utilizou-se o impedimento como verniz legalista para um golpe, possível graças à impopularidade do governo e sua perda de base social e legislativa (que revelou a incapacidade do PT em construir uma defesa de seu governo). De qualquer forma, o afastamento de Dilma é uma cortina de fumaça para a implementação de um programa político antipopular e antinacional, de entrega do patrimônio público para empresas estrangeiras, especialmente a Petrobras e o pré-sal, somado a uma regressão brutal na legislação trabalhista e sucateamento de serviços públicos (para sua posterior privatização). Este último se materializa em uma bizarra emenda constitucional que congela os gastos públicos em todos os setores por vinte anos – excetuando-se a dívida pública, repassando mais dinheiro público para os bancos detentores de títulos da dívida brasileira e abrindo mercado para as empresas de serviço privado. Tais medidas foram colocadas claramente pelo projeto de Michel Temer e do PMDB, “Ponte para o Futuro” ²⁷⁸ e colocadas em prática em seu ilegítimo governo. ²⁷⁹ Não podemos deixar de citar que, por trás do teatro do golpe, onde se mexeram os atores visíveis (partidos, movimentos, figuras públicas e instituições), existem os personagens invisíveis, mas que realmente movem as peças. O capital internacional, principalmente do setor energético (petróleo), é o principal interessado na crise política brasileira, desestabilizando as forças que o impediam de se apossar do pré-sal e da tecnologia desenvolvida pela Petrobras. ²⁸⁰ O golpe também está ligado à pressão de outras grandes empresas estrangeiras representadas pelos Estados Unidos e pela OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte) para a retirada do Brasil do eixo multilateral construído pelos Brics e da integração latino-americana soberana, e acoplá-lo aos tratados internacionais que procuram acabar com legislações nacionais de proteção trabalhista, comercial e ambiental, tais como o Tisa e o TPP. ²⁸¹ O Golpe de 2016 é a quebra definitiva do arranjo político da Nova República. Ao forçar a saída de uma presidenta eleita sem as prerrogativas necessárias que justificam o impeachment na Constituição, as forças responsáveis por tal intento deslegitimaram o processo eleitoral, pilar de legalidade da Nova República e parte de sua própria identidade. Não há mais nenhuma garantia, a partir de agora, de que um presidente, governador ou prefeito

eleito pela população complementará seu mandato. O Golpe de 2016 criou um precedente de desrespeito ao voto popular, abrindo a possibilidade de reverter decisões eleitorais se utilizando dos demais Poderes da República com beneplácito da mídia empresarial. A partidarização da Justiça pela extrema-direita impediu Lula de se candidatar às eleições 2018, privando a população da livre escolha e inaugurando um sufrágio tutelado pela perseguição judicial de adversários. As regras pactuadas para disputa do poder, acordadas ainda na década de 1980, no alvorecer da Nova República e consagradas na Constituição de 1988, não estão mais garantidas. O pacto foi violado, o arranjo está quebrado, a estabilidade inviabilizada. Conclusão: o futuro será a instabilidade? A Nova República acabou. A conjuntura que se abre a partir do golpe de 2016 não mais cabe nos marcos estabelecidos em 1985-1988. A pactuação das formas de disputa do poder foi violada, retirando sua legitimidade. As forças políticas do período não mais comportam as contradições existentes na sociedade brasileira. As propostas colocadas em movimento nos últimos anos não são possíveis de serem implementadas sem romper, de maneira irreparável, com o arranjo político até então vigente, tanto à esquerda, quanto à direita. A existência torta da Nova República se evidencia, de maneira muito curiosa, tanto no seu início quanto no seu final. Ela não surgiu de uma revolução ou derrubada do regime anterior, mas de uma conciliação pelo alto entre conservadores pró e contra a Ditadura, que inviabilizou uma derrubada dos governos militares pela população, o que ocorreria em caso de vitória da proposta das Diretas Já. Da mesma forma, seu fim não se dá pela sua superação dialética (revolução) ou por ato de violência explícita – por mais que tenha havido um golpe. A Nova República termina pela sua exaustão em não conseguir cumprir com os próprios objetivos e não extirpar por completo permanências do regime ditatorial, que agora, em seu ocaso, retornam adaptadas às condições do século XXI. O golpe de Estado de 2016 foi apenas o ato final de um processo de esgotamento do regime político que já demonstrava claros sinais nos governos petistas, principalmente, a partir das Jornadas de Junho de 2013. A direita jogou em terreno próprio, a república liberal. Se num primeiro momento, pela correlação de forças dos anos 1980, foi obrigada a englobar a esquerda no sistema político, e com isso teve que aceitar um texto constitucional que respondeu a muitas pautas da última, com o tempo impôs as regras do jogo político e econômico. Essa situação engoliu as esquerdas, que não souberam mais se mobilizar para além dos limites institucionais da Nova República e viram na tática eleitoral um fim em si mesmo. Com isso, a direita desarmou a esquerda de radicalidade, transformando-a em uma esquerda da ordem, e emplacou o neoliberalismo no Brasil, atualizando o caráter dependente do capitalismo brasileiro em um momento de reconfiguração do sistema mundial (globalização neoliberal). A fé inabalável nas instituições políticas brasileiras por parte da esquerda da ordem é um indicativo de como estas se deixaram assimilar pela institucionalidade liberal. Tal feito é a morte da própria esquerda como

projeto alternativo no período, já que, parece se esquecer, a Nova República é um regime político liberal, portanto, pertencente à classe dominante, à burguesia. Na crise política que levou ao golpe de 2016, ficou evidente, em diversos momentos, que o governo Dilma acreditou na “institucionalidade”, esquecendo-se que essas instituições e as pessoas que as compõem não são neutras, possuem cortes de classe e interesses políticos próprios. As nomeações feitas por Lula e Dilma para o Supremo Tribunal Federal demonstraram claramente que atender certa “institucionalidade” e certo corporativismo, em vez de encarar a política real, custa muito caro. A maioria do STF, nomeada pelos governos petistas, participou da trama para derrocada do governo Dilma e da prisão sem provas de Lula. ²⁸² Os pilares de sustentação da Nova República (representatividade e eleições direitas) desmoronaram frente ao sequestro da política pelo financiamento de empresas e o Golpe de 2016. Com partidos políticos que não respondem a seus anseios e se envolvem nos mesmos casos de corrupção, a população brasileira não reconhece mais diferenças entre as diversas siglas existentes. Da mesma forma, a cassação do mandato presidencial de Dilma Rousseff em um processo de impeachment sem crime de responsabilidade viola o mecanismo de legitimação do sistema. Somado à grave crise econômica, esse cenário permitiu à extrema-direita se apresentar como uma novidade, por meio de propostas de “soluções” grosseiras, violentas e autoritárias para os problemas do país. Com o desmoronamento de seus pilares, a Nova República perde sua própria identidade e deixa de existir. Sem a necessidade de respeitar as regras estabelecidas em 1985-1988, as forças mais conservadoras da sociedade brasileira se encontram muito à vontade para romper com todos os pactos, incluindo os direitos sociais, trabalhistas e a soberania popular através do voto, cernes do ideal do regime. Forças políticas partidárias do fascismo e da truculência como forma de fazer política retornam ao cenário brasileiro trinta anos depois, criam base social e são muito bem recebidas pela direita liberal e pelo monopólio midiático. A Nova República se apresentou como o início da construção de uma democracia no país, mas foi, na verdade, um interregno menos agressivo da longa história de autoritarismo político e violência que marcam a sociedade brasileira, tendo sua origem no nosso passado colonial e escravocrata. Apontar o fim da Nova República não significa dizer que as forças políticas e sua superfície institucional deixam de existir automaticamente. Elas ainda estarão presentes na sociedade brasileira por algum tempo. A Nova República não está sendo substituída imediatamente por outro sistema político, mas sim por um período de transição para algo que ainda está por vir e que ainda não temos elementos suficientes para classificar. Essa inexatidão se explica pela falta de clareza de qual projeto político se sobrepujará na substituição do regime que se encerra. Em um primeiro momento, tudo parece apontar para a manutenção de uma superfície institucional aparentemente liberal, mas com conteúdo cada vez mais autoritário, fruto do casamento entre um ultraliberalismo econômico e a extrema-direita, sem criatividade para propor algo à sociedade brasileira que não seja o aprofundamento do neoliberalismo, ou seja, a espoliação

ainda mais brutal da classe trabalhadora e dos recursos naturais do país, aliada à obediência aos ditames estadunidenses. Tal situação só levará o país para um cenário de maior desigualdade e violência no âmbito interno (com riscos de instalação de um Estado autoritário, com forte conteúdo policial, militar e paramilitar), e pequenez e subalternidade no âmbito externo. Os poucos avanços sociais sofrerão uma brutal regressão, empobrecendo a população, piorando a qualidade de vida, embrutecendo e polarizando o tecido social (turbinado pela ascensão do fascismo). Na política exterior, o Brasil, cerrando fileiras de maneira subalterna aos Estados Unidos e seu projeto supremacista decadente, andará na contramão da história, perdendo a oportunidade de construir um mundo multipolar, situação na qual tinha sido um dos protagonistas até o momento. ²⁸³ Por outro lado, uma nova geração promete trazer fôlego às lutas populares, superando o projeto fraco e limitado da esquerda da ordem. A visão de mundo de uma juventude trabalhadora, com acesso ao ensino superior e ao mundo virtual, não caberá no neoliberalismo ortodoxo, nem no fascismo tosco. Os valores e as necessidades que se põem para a classe trabalhadora e sua juventude são muito diferentes do cenário de terra arrasada que a direita brasileira e o imperialismo planejam para o futuro próximo. Novas formas de fazer política, ou mesmo reinvenções de antigas lutas, darão o tom das manifestações que se tornarão cada vez mais presentes no cotidiano nacional. A defesa da soberania nacional, da ampliação dos direitos sociais e de condições de trabalho dignas, que garantam o momento de cultura e lazer, podem ser os pilares para a construção de uma nova esquerda no Brasil, que tem como palco as grandes cidades e como sujeito revolucionário a confluência de diversos sujeitos, capazes de construir uma nova maioria. Esse conjunto de forças sociais não deve se guiar pela divisão esquerda versus direita (o que em hipótese nenhuma significa negá-la), mas sim “os de baixo” contra “os de cima”, os que trabalham contra os que vivem de privilégios. Somente o trabalho de base popular a partir dessa visão poderá construir uma política, não de esquerda, mas de massas, que é, afinal, como se faz política e, principalmente, transformações de grandes proporções. As forças que podem levar esse projeto à frente já existem e se movimentam no cenário político brasileiro, mas ainda se encontram dispersas e sem uma forma organizativa que potencialize seu poderio. De qualquer forma, o projeto dessas novas forças não cabe nos limites da finada Nova República. A única certeza nesse momento é que viveremos um período histórico de grande instabilidade. Certezas absolutas serão derrubadas, traições e viradas de mesa acontecerão mais de uma vez, retrocessos terríveis ocorrerão, da mesma forma que lutas tidas como impossíveis conquistarão vitórias. Acordos e agrupamentos políticos se desmancharão e outros novos surgirão. Vencerá aquele projeto que conseguir assumir uma forma organizativa que lhe permita não só cativar e convencer as massas, mas organizá-las para abrir uma nova etapa da história brasileira. Bibliografia

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Carta Capital: El Universal: Folha de São Paulo: G1: Governo Federal do Brasil: Estado de São Paulo (jornal): Latinobarómetro: Opera Mundi: MDB (ou PMDB): Terra Notícias: UOL Notícias: Viomundo: ²⁴⁴ O presente artigo é uma versão revisada e atualizada de texto escrito originalmente em 2016. Para o original ver Roberto Santana Santos; João Claudio Platenik Pitillo. “O fim da Nova República: quebra do arranjo político, crise de representatividade e golpe de Estado no ocaso da república liberal brasileira”. Latinidade , Rio de Janeiro, v. 10, 2018, p.179-212. ²⁴⁵ Doutor em Políticas Públicas pelo programa de Políticas Públicas e Formação Humana da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPFHUERJ). Professor de História e historiador. Secretário-executivo da Rede de Economia Global e Desenvolvimento Sustentável da Unesco (REGGENUNESCO). ²⁴⁶ Doutor em História Social pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Pesquisador do Núcleo de Estudos das Américas da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Nucleas-UERJ). ²⁴⁷ Roberto Santana Santos. O capitalismo dependente brasileiro e a globalização neoliberal: três momentos de uma inserção subalterna (1980-2016) (Tese, UERJ, 2019). ²⁴⁸ Ibidem . ²⁴⁹ Utilizamos aqui “exceção” como sinônimo de “ditadura” por se tratar de expressão consagrada. Na verdade, na história brasileira, são os momentos democráticos as verdadeiras exceções. ²⁵⁰ Compreendemos “fascismo” como um “regime de terror do capital”. Ver Theotonio dos Santos. A evolução hist órica do Brasil: da colônia à crise da “Nova República” (Petrópolis, RJ: Vozes, 1994).

²⁵¹ Karl Marx; Friedrich Engels. A ideologia alemã , p.47 (Trad. Rubens Enderle, Nélio Schneider, Luciano Cavini Martorano. São Paulo: Boitempo, 2007). ²⁵² Lu Aiko Otta. “Serra apoia ideia de promover uma ‘lipo’ na Constituição”. Estadão, Política, 11 set. 2016. Disponível em: http://politica.estadao.com.br/ noticias/geral,serra-apoia-ideia-de-promover-uma-lipo-na-constituicao, 10000075325. Acesso em: 17 set. 2016. ²⁵³ Atilio Boron. Aristóteles em Macondo: reflexões sobre poder, democracia e revoluçã o na América Latina (Trad. Fernando Correa Prado . Rio de Janeiro: Pão e Rosas, 2011). ²⁵⁴ Aliança Renovadora Nacional. Partido de apoio à Ditadura que sempre tinha a maioria no Congresso e nas assembleias regionais por meio de expedientes fraudulentos e leis que o favoreciam. Vários quadros civis da Arena sobrevivem até hoje na política brasileira, como José Sarney e seu clã, Francisco Dornelles, Marco Maciel, Paulo Maluf, a família Antonio Carlos Magalhães, Agripino Maia, família Collor de Mello, entre outros. Após a Transição e durante a Nova República, o partido trocou de nome várias vezes, até chegar no atual, Partido Progressista (PP). ²⁵⁵ Movimento Democrático Brasileiro, oposição consentida pela Ditadura para manter as aparências. De viés liberal-conservador, chegou em alguns momentos ser mais plural, principalmente durante a Transição, quando se tornou o PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro). Passou a ter o caráter mais fisiológico, pelo qual é conhecido até hoje, após a Constituição de 1988. Retornou ao nome MDB em 2018. ²⁵⁶ Roberto Santana Santos. “Uma análise estrutural do fim da Ditadura”. História e Luta de Classes , ano 10, n. 17, mar. 2014, p.53-7. ²⁵⁷ Theotonio dos Santos. A evolução hist órica do Brasil . ²⁵⁸ Ronaldo Costa Couto. História indiscreta da Ditadura e da Abertura: Brasil:1964-1985 , p.380 (Rio de Janeiro: Record, 1998). ²⁵⁹ Roberto Santana Santos. “30 Anos da Transição no Brasil: luta de classes e dependência na constituição do Brasil contemporâneo”. Revista Contemporânea , ano 5, n. 7, v. 1, 2015. ²⁶⁰ Florestan FERNANDES. Nova República? (2ª ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1986). ²⁶¹ Rafael Geyger. “Polícia brasileira mata e morre mais do que em outros países”. Terra , 1 dez. 2014. Disponível em: https://noticias.terra.com.br/ brasil/policia/policia-brasileira-mata-e-morre-mais-do-que-em-outros-paises, 9828b860e660a410VgnVCM20000099cceb0aRCRD.html. Acesso em: 7 set. 2016. ²⁶² Fica evidente que os militares participantes do governo Bolsonaro foram educados dessa forma, em uma visão mítica da Ditadura, segundo a qual o país supostamente possuía ordem e crescia economicamente. Essa posição

acrítica e mecanicista da história é o que alimenta esses militares a se enxergarem como um “poder moderador”, “neutro”, únicos capazes de “ordenar” o país. Além de ser uma falsificação grosseira da história, a realidade dinâmica do século XXI, dentro e fora do Brasil, não comporta tais devaneios. 263 Roberto Santana Santos. Coronéis e empresários. Da esperança da transição democrática à catástrofe neoliberal (1985-2002) (Rio de Janeiro: Multifoco, 2014). ²⁶⁴ Latinobarómetro. Informe 1995-2015. Disponível em: https:// politicasgobiapem.files.wordpress.com/2015/11/latinobatrc3b3metro1.pdf. Acesso em: 7 set. 2016. Importante salientar que o levantamento foi realizado antes do Golpe de 2016 e da eleição de Jair Bolsonaro em 2018, fatos que podem modificar os resultados de futuros levantamentos desse tipo. ²⁶⁵ Todas disponíveis em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/ Emendas/Emc/quadro_emc.htm. Acesso em: 10 jul. 2018. ²⁶⁶ Para uma discussão sobre a dilapidação da Constituição de 1988 a favor dos interesses do capital, ver Roberto Santana Santos. “30 Anos da Constituição de 1988: reflexões sobre a Carta Magna brasileira no ocaso da Nova República”. Rebela , v. 8, n. 3, set.-dez. 2018, p.553-75. ²⁶⁷ Após a escrita desse artigo, ocorreu outro rompimento de barragem da Vale ainda mais grave, na cidade de Brumadinho, Minas Gerais, em janeiro de 2019, que ocasionou mais de duzentos mortos, quase uma centena de desaparecidos e danos ambientais e sociais incalculáveis. ²⁶⁸ Dados do TSE. Disponível em: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/ quanto-candidatos-e-partidos-recebem-da-vale-6889.html. Acesso em: 8 set. 2016. ²⁶⁹ Dados do Latinobarómetro. Disponível em: http:// www.eluniversal.com.mx/entrada-de-opinion/articulo/ciro-murayama/nacion/ sociedad/2015/10/14/latinobarometro-2015-la. Acesso em: 8 set. 2016. Essa sensação de falta de representação permitiu à extrema-direita se apresentar como outsider , angariando enorme vitória eleitoral em 2018, mesmo que vários de seus baluartes, incluindo o próprio presidente Bolsonaro, fossem típicos representantes da política fisiológica tradicional. ²⁷⁰ As Jornadas de Junho de 2013 foram um movimento espontâneo e de pautas populares, que pese a disputa de narrativa e a tentativa de direcionamento da grande mídia e setores da direita (que, ao fim e ao cabo, são a mesma coisa) para pautas vazias como “fora todos” ou “contra a corrupção”, especialmente no final da onda de protestos. Sempre haverá disputa das movimentações populares e é necessário separar a espontaneidade da conspiração. Achar que não houve disputa e conspiração em 2013 é ingenuidade. Porém, achar que 2013 foi uma movimentação golpista contra o governo Dilma é soberba, falta de autocrítica e inabilidade para fazer análise de conjuntura. Sobre as diversas posições políticas e ideológicas presentes nas ruas em junho de 2013, ver André Singer. O

lulismo em crise. Um quebra-cabeça do período Dilma (2011-2016) (São Paulo: Companhia das Letras, 2018). ²⁷¹ Ruy Braga. “Sob a sombra do precariado”. In: Cidades Rebeldes. Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil , p.79-82 (São Paulo: Boitempo/Carta Maior, 2013). ²⁷² “Alckmin e Aécio são hostilizados na chegada à manifestação na Paulista”. G1 , 13 mar. 2016. Disponível em: http://g1.globo.com/sao-paulo/ noticia/2016/03/alckmin-e-aecio-sao-hostilizados-na-chegada-manifestacaona-paulista.html. Acesso em: 8 set. 2016. ²⁷³ “Temer é reprovado por 94% dos brasileiros, e 95% creem que Brasil está no rumo errado, diz pesquisa”. Uol , Política, 25 jul. 2017. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2017/07/25/temer-ereprovado-por-94-dos-brasileiros-95-acreditam-que-brasil-esta-no-rumoerrado.htm. Acesso em: 11 jul. 2018. ²⁷⁴ A crise estourou no centro do sistema, primeiro nos Estados Unidos em 2008 e depois, em uma segunda onda, na União Europeia a partir de 2011. ²⁷⁵ O mais estarrecedor de uma sucessão de fatos grotescos foi a divulgação em rede nacional de uma conversa grampeada entre Lula e Dilma, totalmente ilegal, já que envolvia a então presidenta da República, configurando-se, entre outras coisas, crime de segurança nacional. O áudio foi repetido a cada dez minutos na Rede Globo de televisão na noite do dia 16 de março de 2016, numa clara ação orquestrada entre o conglomerado midiático e o juiz Sergio Moro, autoridade responsável pela Lava-jato. A matéria da Globo está disponível em http://g1.globo.com/pr/parana/noticia/ 2016/03/pf-libera-documento-que-mostra-ligacao-entre-lula-e-dilma.html. Acesso em: 8 set. 2016. Claramente, a operação tinha como objetivo derrubar o governo petista e prender o ex-presidente Lula, impedindo sua candidatura em novo pleito. Somente após esses dois fatos é que a Lava-jato passou a alcançar políticos da direita tradicional, especialmente o grupo do MDB liderado por Michel Temer. Mesmo assim, é completamente desproporcional o tratamento dado a esses quando comparado aos ataques contra o petismo. Para uma análise política da Lava-jato, ver André Singer. O lulismo em crise. ²⁷⁶ Fabio Fabrini. “Para Ministério Público, pedalas do governo Dilma não são crime”. Estadão , Política, 14 jul. 2016. Disponível em: http:// politica.estadao.com.br/noticias/geral,para-mp-pedaladas-do-governo-dilmanao-sao-crime,10000062862. Acesso em: 8 set. 2016. ²⁷⁷ “Congresso legaliza pedaladas que usou como pretexto para derrubar Dilma. ‘Não tiveram nem o pudor de disfarçar’, diz professor”. Viamundo , 2 set. 2016. Disponível em: http://www.viomundo.com.br/denuncias/congressotorna-legitimas-as-pedaladas-que-usou-como-pretexto-para-derrubar-dilmanao-tiveram-nem-o-pudor-de-disfarcar-diz-professor.html. Acesso em: 8 set. 2016. ²⁷⁸ Disponível em: http://pmdb.org.br/wp-content/uploads/2015/10/ RELEASE-TEMER_A4-28.10.15-Online.pdf. Acesso em: 18 set. 2016.

²⁷⁹ Projetos continuados pelo governo Bolsonaro a partir de 2019, principalmente pela ação de seu Ministro da Economia, Paulo Guedes, e a confortável maioria pró-mercado no Congresso. ²⁸⁰ Para uma interessante análise sobre o golpe e a Petrobras ver “Unidade aberta em defesa do Brasil – Nota de Conjuntura”. Brigadas Populares , abr. 2016. Disponível em: https://brigadaspopulares.org.br/unidade-aberta-emdefesa-do-brasil-nota-de-conjuntura/. Acesso em: 18 set. 2016. ²⁸¹ Os tratados citados acabaram perdendo força devido à política protecionista do presidente norte-americano Donald Trump. Jocelio Drummond. “O Brasil e os tratados plurilaterais: os riscos presentes”. Carta Capital , 7 jul. 2016. Disponível em: http://www.cartacapital.com.br/blogs/ blog-do-grri/o-brasil-e-os-tratados-plurilaterais-os-riscos-presentes. Acesso em: 18 set. 2016. ²⁸² Frederico de Almeida. “O STF não vai parar o golpe porque ele é parte do golpe”. Operamundi , 1 maio 2016. Disponível em: http:// operamundi.uol.com.br/conteudo/samuel/44011/ analise+o+stf+nao+vai+barrar+o+golpe+porque+ele+e+parte+do+golpe.shtml. Acesso em: 18 set. 2016; Lauriberto Pompeu. “Cinco dos seis ministros do STF que votaram contra Lula foram indicados pelo governo do PT”. Folha de S.Paulo , 5 abr. 2018. Disponível em https://www1.folha.uol.com.br/poder/ 2018/04/cinco-dos-seis-ministros-do-stf-que-votaram-contra-lula-foramindicados-pelo-governo-do-pt.shtml. Acesso em: 11 jul. 2018. ²⁸³ É importante ressaltar que essa realidade é mundial, fruto do encontro da crise estrutural do capitalismo, que se arrasta desde a década de 1970, com uma crise conjuntural aberta em 2008 e ainda não superada. Na América Latina e no Caribe, a década de 2010 ficou marcada por um revide violento do imperialismo estadunidense e seus aliados locais contra as forças progressistas e revolucionárias, com a proliferação de golpes de estado, perseguição política e judicial a líderes populares, frequentes decretações de toque de recolher e estado de sítio para conter mobilizações populares e até “autoproclamação” de presidentes apoiados pelos Estados Unidos com a intenção de criar situações de duplo poder e guerras civis. Argentina e as lutas populares em uma perspectiva anticapitalista Julio C. Gambina ²⁸⁴ Introdução Para entender o presente, é necessária uma análise de conjuntura do momento contemporâneo de ofensiva capitalista, ocorrida a partir do terrorismo de Estado das ditaduras na América do Sul. ²⁸⁵ O momento anterior ao da ofensiva capitalista é de acumulação do poder popular, a partir das revoluções russa, ²⁸⁶ chinesa, cubana, vietnamita – sendo o Vietnã o ponto máximo desse poder popular mundial, tendo derrotado o poderio militar dos Estados Unidos, algo impensável hoje. A resposta mundial foi terminar com a defensiva instaurada ao término da crise de 1930, com o Estado de bem-estar e as políticas keynesianas,

acomodadas à situação mundial que havia gerado os bolcheviques e os revolucionários de todo o mundo. Essa defensiva do capital se transformou, desde 1973, em uma brutal e violenta ofensiva para recuperar a lógica original da acumulação capitalista, tão bem descrita por Marx no tomo I de O Capital . ²⁸⁷ Agora volta-se a sustentar a categoria de acumulação por expropriação, ²⁸⁸ recuperando a categoria inicial de Marx, e destacar que o capitalismo está em um processo recorrente de refundação em um contexto de crise capitalista, evidenciado, a partir dos fenômenos de 2007/08, nos Estados Unidos e com impacto mundial. A violência desatada na América do Sul nos anos 1970, como ensaio designado “neoliberal”, que não era novo ou liberal, generalizou-se como política mundial com a restauração conservadora liderada por Thatcher (1979) e Reagan (1980) nas potências imperialistas por excelência: Inglaterra, como anterior país hegemônico do capitalismo mundial, e Estados Unidos, o novo emergente desde o final da Segunda Guerra em 1944/5. As características atuais da ordem capitalista são o terrorismo de Estado mundial, exercido com a brutal militarização hegemonizada pelos Estados Unidos e uma nova onda de armamentismo e violência contra os povos do mundo. Junto a eles, o crescimento do capitalismo criminal, com os negócios das drogas, a venda de armas, o tráfico de pessoas e a especulação financeira, eixo e mecanismo de circulação mundial do capital, dos lucros e da acumulação do sistema capitalista. Esta ordem delitiva e terrorista se assenta e se potencializa na extorsão da mercantilização capitalista e na amplificação da exploração da força de trabalho em todo território possível do planeta, especialmente os países mais populosos e empobrecidos. Ambas as questões, mercado, mercadoria e dinheiro por um lado, e dinheiro e capital por outro, são a base para pensar a atualidade das teorias do valor e do mais-valor, amplamente consideradas no tomo I de O Capital , de Karl Marx. A novidade no capitalismo do século XXI é a grave deterioração que exerce o modelo produtivo do capital sobre a natureza, afetando duplamente “o pai e a mãe do valor”, como sustentava Marx ao recuperar um dos fundadores da economia política clássica: William Petty. Marx reconhecia o homem como natureza, para aqueles que negam a dimensão da análise ecológica no fundador da teoria da revolução. A novidade, hoje, é a amplificação da agressão depredadora do capitalismo sobre a natureza. Disse Marx:

Os valores de uso – jaqueta, lenço etc., em suma, os corpos das mercadorias – são combinações de dois elementos: material natural e trabalho. Se se faz abstração, em sua totalidade, dos diversos trabalhos úteis incorporados à jaqueta, ao lenço etc., ficará sempre um substrato material, cuja existência se deve à natureza e não à ação humana. Em sua produção, o homem somente pode proceder como a natureza mesma, vale dizer, mudando, simplesmente, a forma dos materiais. E é mais: mesmo nesse trabalho de transformação, ele é constantemente apoiado por forças naturais. O trabalho, portanto, não é a única fonte dos valores de uso que produz, da riqueza material. O trabalho é o pai dela, como William Petty diz, e a terra, sua mãe. ²⁸⁹ Este é o marco histórico para pensar o capitalismo no século XXI e sua crise, ²⁹⁰ a forte ofensiva do capital sobre o trabalho, a natureza e a sociedade E é sob essas condições que se deve analisar as resistências e lutas dos povos para recriar condições na disputa anticapitalista e pelo socialismo. A ofensiva capitalista, que vem se manifestando desde 1973 (golpes de Estado no Chile e Uruguai), encontrou um limite nos processos de Caracas de 1989, na insurreição em Chiapas de 1994 e em várias revoltas populares, entre as que destaco a de 2001 na Argentina. Esses e outros processos sociais e políticos constituem parte indispensável para pensar a “mudança política” na região latino-americana, fenômeno que inaugura o governo venezuelano em 1999 e os novos governos críticos com a política hegemônica neoliberal em variados países da região. Claro que a “mudança política” regional se assentou também no aporte da revolução cubana, que encontrou não somente uma forma de sair do isolamento promovido pelo bloqueio estadunidense e pelas classes dominantes do mundo, senão também de assinalar o socialismo como um horizonte possível aos processos mais radicalizados. É a partir daí que surge para o debate as categorias do “socialismo do século XXI” ou a de “socialismo comunitário”, entre muitas apelações a uma sociedade anticolonial, anticapitalista e anti-imperialista, especialmente desde a concepção renovada do viver bem ou do bem viver. Existem balanços críticos sobre alguns desses processos que seguem nutrindo a valorização necessária da experiência de mudança política na região. ²⁹¹ Agora, com a ofensiva reacionária na região, da qual, o governo argentino (Macri) gera expectativa no poder mundial, pretende-se reverter o clima instalado desde o início do século XXI, com uma América do Sul gerando expectativas além de seus limites geográficos. Segue sendo de interesse o estudo do passado recente da região. O tema se agiganta com o triunfo de Jair Bolsonaro no Brasil, com o que significa esse país na geopolítica da região. A experiência da Argentina A ofensiva neoliberal na Argentina tem dois turnos, o primeiro sob a genocida ditadura entre 1976 e 1983 e a segunda nos anos 1990, sob o império da convertibilidade ²⁹² entre abril de 1991 e janeiro de 2002. ²⁹³ Em Los años Menem , descrevemos amplamente o processo econômico, político e social da década de materialização do enfoque neoliberal e do decálogo do

Consenso de Washington pelo impulso da iniciativa privada, das privatizações, da baixa do gasto público e, claro, de seu lado oposto: a resistência popular. Essa resistência encontra sua máxima acumulação em coincidência com o esgotamento do regime de convertibilidade e com a recessão iniciada em 1998, que elevou o desemprego a 21,5%, o maior índice da história até maio de 2002, e o registro de pobreza nesse tempo assinalava 57% da população. São algarismos impensáveis na história do capitalismo argentino. Essa realidade, nunca vivida no país, era produto de profundas mudanças na estrutura econômica e social da Argentina. Aquele país de industrialização precoce para os parâmetros da região latinoamericana, que no início do século XX contava já com importante parque industrial e que, no centenário, em 1910, já tinha uma luta de classes evidenciando-se nas ruas, fruto das contradições com o fausto organizado pelas classes dominantes com o “Estado de Sítio” motivado no amplo conflito social e trabalhista. A imigração, entre o último quarto do século XIX e o primeiro do século XX, aportou na Argentina não somente abundante força de trabalho demandada pela burguesia em ascensão e a hegemônica presença do capital externo, mas também a experiência da luta de classes mundial, do anarquismo, do socialismo e do comunismo. A Argentina inseriuse de maneira subordinada e dependente no desenvolvimento capitalista mundial entre séculos, mas incorporando a tradição de luta da Comuna de Paris. ²⁹⁴ A industrialização da Argentina supõe a presença de uma importante tradição operária e sindical, ²⁹⁵ objetivo a ser desarticulado pela ditadura genocida em 1976. Relatamos esse processo com Osvaldo Bayer e Atilio Boron em um trabalho conjunto sobre o terrorismo de Estado na Argentina. ²⁹⁶ O resultado da política terrorista se evidenciou nas mudanças estruturais profundas que ainda sobrevivem em 2018, entre outros, o processo de desindustrialização relativa, com forte impacto na capacidade de organização do movimento sindical e operário. Entre 1975/6 e 2001, existe um processo de reestruturação regressiva do capitalismo local, especialmente na relação capital-trabalho, que subsiste no nível atual de 1/3 de trabalhadores na informalidade, a terceirização como norma de emprego nas grandes empresas, na maioria de capital externo. A flexibilidade salarial e trabalhista se construiu desde então até agora. Nesse sentido, inscreve-se a reforma regressiva do Estado, verdadeira mudança de função do Estado nacional, que evidentemente sustenta as políticas do poder e também a inserção subordinada do país na lógica liberalizadora dos grandes capitais e dos organismos internacionais. Até 1989/90, no escopo da ruptura da bipolaridade mundial, a ordem capitalista argentina mudara substancialmente, tanto na estrutura de dominação como entre as classes subalternas. Quase podemos assinalar que, ante a deliberada desideologização e despolitização da sociedade, os desafios para o movimento popular foram gigantescos. Entre as principais questões a destacar, reivindico a tentativa de construir um novo modelo sindical com o surgimento do Congresso dos Trabalhadores Argentinos no início dos 1990, que se transformou em meados da década na Central das/ dos Trabalhadoras/es da Argentina [Central de las y los Trabajadoras y

Trabajadores de la Argentina], a CTA. Foi uma ruptura com a tradicional Confederação Geral do Trabalho [Confederación General del Trabajo], a CGT, e uma tentativa ainda em implementação de construir uma nova experiência sindical que contesta a hegemonia do movimento popular. Com a CTA, apareceram as novas experiências do movimento piquetero (desempregados que discutem “planos de emprego” ou benefícios de transferência de renda com o Estado) e, mais próximo à revolta de 2001, o movimento de assembleias de bairro e de empresas recuperadas pelos trabalhadores. Convive nesse período um amplíssimo movimento em defesa dos direitos humanos, que transcende a memória contra os crimes da ditadura genocida e toma corpo contra a repressão policial. Surge nesse tempo um extenso movimento em defesa dos bens comuns, da terra e dos interesses dos povos originários, a habitação e sua autogestão. É crescente o movimento de mulheres e pelos direitos para a diversidade sexual. Os anos 1990 são de forte ofensiva neoliberal e de constituição de um amplo movimento social e político que confronta a lógica hegemônica do poder e gesta a revolta de 2001 para abrir um novo tempo na política argentina, que ainda não se encerrou. São nessas circunstâncias que emergiu o governo de Néstor Kirchner, com apenas 22% de votação, atrás dos 24% de Carlos Menem, que decidiu não encarar o segundo turno. Começou, assim, o turno de Kirchner presidente entre 2003 e 2007, e dois turnos de Cristina Fernández de Kirchner: entre 2007 e 2011, com 45% de votação, e entre 2011 e 2015, com 54% dos votos. O ciclo de governos kirchneristas se encerrou em 2015, tendo perdido vinte pontos do que conseguiu em 2011 em comparação a 2015. Havendo segundo turno, o candidato da direita, Mauricio Macri, ganhou pouco por mais de dois pontos em relação ao candidato do kirchnerismo, somando a seus próprios votos o descontentamento de uma parte importante da sociedade com o governo de Cristina Fernández. Falta ainda realizar um balanço dos governos kircheneristas. Destaco um balanço realizado quando dos dez anos, 2003-2013, publicado na revista Herramienta , ²⁹⁷ porém deve-se destacar que o kirchnerismo assumiu, nas origens, muitas das reivindicações do movimento popular e, por isso, ganhou consenso eleitoral e militante no período, sendo ainda hoje uma opção social e institucional de peso, a medir-se nas eleições de sucessão presidencial de outubro de 2019. Destaca-se seu trabalho em vários aspectos relativos aos direitos humanos (anulação da legislação da impunidade: “obediência devida” e “ponto final”; julgamento dos genocidas, entre outras questões), ainda que se reprove a não integralidade dessa agenda efetivamente aos direitos humanos no presente – questionamento sustentado por alguns organismos de direitos humanos e movimentos populares. Merece atenção a política internacional, em geral ligada à região latinoamericana e caribenha, segundo a qual o mais importante foi facilitar, em 2005, as concentrações pelo Não à Alca e a Bush, com a presença e o protagonismo de Hugo Chávez. A participação da Argentina estimulando um processo alternativo de integração com a Unasur e a Celac, com algumas mudanças no Mercosul, são a outra face da participação no G20 e, ao final dos governos, o acordo com o Clube de Paris para cancelamento de uma

dívida odiosa, por ter sido assumida majoritariamente em tempos de ditadura. Valoriza-se o papel da Argentina na formulação de uma nova arquitetura financeira que incluía o Banco do Sul, ainda que, após sua apresentação entre 2007 e 2010, nunca tenha se materializado, por falta de vontade política, especialmente associada com o governo do PT no Brasil. Entre os méritos, destaca-se a extensão da política social e o incentivo ao consumo dos setores mais marginalizados, apoiados em uma política social massiva e na distribuição relativa da renda pela apropriação de uma parcela do aluguel da terra (retenções agrícolas de exportação, mineração e um pouco da indústria). Vale assinalar que a massividade dos programas sociais de distribuição de renda não foi somente patrimônio da Argentina, senão uma prática generalizada em toda a região, ainda que em governos de sinais e orientações contraditórios. Pode-se registrar, entre os limites da experiência, a ausência de mudanças estruturais em matéria de relações econômicas essenciais. Nesse sentido, fortaleceu-se o modelo agrário-exportador com eixo no avanço da produção de soja, com 95% destinado ao exterior. Consolida-se, no período, a megamineração a céu aberto, hegemonizada por mineradoras estrangeiras. Avança-se em acordos com a petroleira Chevron, transnacional estadunidense, para extrair hidrocarbonetos não convencionais a partir do acordo com a YPF, empresa privada de gestão estatal. Consolida-se o papel do setor industrial como “armadura”, dependente do investimento do exterior, reduzindo a capacidade fabril e de encadeamento produtivo local. Um dado não menor é que segue vigente a legislação financeira de 1977, aprovada em plena ditadura, com um peso relevante da banca transnacional e da subordinação da lógica financeira ao circuito especulativo com epicentro na condicionalidade da dívida pública. Ainda que reduzindo a porcentagem da dívida sobre o PIB, no período kirchneristas, o endividamento continuou sendo um grande condicionante da política econômica e, no último período do governo de Cristina Fernández, retomouse o ciclo de endividamento público, elevado de maneira importante sob o governo de Mauricio Macri desde dezembro de 2015. Ampla consideração sobre aspectos destacados e limites podem serem lidos em um balanço que realizei para um seminário internacional a convite dos sindicatos estatais uruguaios ²⁹⁸ e, de maneira mais geral, para a revista Herramienta . ²⁹⁹ O governo Macri O triunfo eleitoral da coalização Cambiemos [Vamos Mudar, em tradução literal] em novembro de 2015 é mais produto do descontentamento e da perda de consenso social e eleitoral do kirchnerismo, do que motivado por poder político próprio. Portanto, o objetivo principal do governo que assumiu em dezembro de 2015 passa por transformar o consenso eleitoral em consenso político, algo que se mediria nas eleições presidenciais de outubro de 2019. Nessa busca de consenso político, o governo lançou uma bateria de choque nos primeiros dias, com uma desvalorização significativa que elevou o preço do dólar de ARS$ 9 para ARS$ 13, e depois evoluiu, acelerando o processo de uma crise cambial entre abril e setembro de 2018 que elevou o preço da

moeda acima de ARS$ 40 por cada US$ 1, sendo o parâmetro atual do preço da moeda. É uma avaliação considerada, novamente, adiada por grandes produtores e exportadores. A desvalorização passou imediata e progressivamente para os preços da cesta básica, afetando seriamente a maioria empobrecida da população, com inflação próxima a 50% em todo o ano de 2018. Junto à desvalorização, eliminaram-se as retenções das exportações agrárias, de mineradoras e das indústrias, diminuindo progressivamente as de soja (as principais, devido ao montante envolvido). Essa melhora no preço para grandes produtores e exportadores foi um importante impacto fiscal difícil de sustentar. Portanto, o déficit fiscal aumentou, apesar de as promessas de campanha aludirem para sua diminuição. Durante 2018, reinstalaram-se transitoriamente as retenções ante os evidentes problemas fiscais do governo. Nesse clima de choque, culminou o conflito com os credores externos, os chamados fundos abutres, assumindo nova e grave dívida pública. A Argentina tomou mais de US$ 50 bilhões em empréstimos no sistema mundial durante 2016, liderando o endividamento de países emergentes no ano. Logo viria o acordo com o FMI, em meados de 2018, que adicionou US$ 57 bilhões, agravando a hipoteca presente e futura da Argentina. Também aumentaram substancialmente as tarifas de serviços públicos, entre 400 e 1000%, com forte impacto na maioria da sociedade e com incidência na evolução dos preços que definem a inflação. Por sua parte, o Banco Central exerceu uma política monetária ortodoxa de restrição muito forte para tentar conter a inflação, provocando recessão e maior penúria social. A partir dessas medidas de choque, consideradas exitosas pelo poder econômico local e mundial, que saudaram ruidosamente o novo clima de negócios na Argentina, seguiram-se numerosas viagens de personalidades do capitalismo mundial, entre as que se destacam a presença de Barack Obama, então presidente dos Estados Unidos, e vários chefes de Estado e personalidades de países do capitalismo desenvolvido, bem como executivos de transnacionais atraídos com a perspectiva de investimentos e lucros em tempo de crise capitalista. O foro de Davos recebeu novamente autoridades argentinas, aleijadas uma década de suas reuniões, e inclusive organizou um evento de negócios em Buenos Aires. Os investimentos estrangeiros foram a grande preocupação do governo Macri, já que a situação da Argentina foi presidida por uma recessão agravada durante 2016, que se reiterou durante 2018 e se projetou até 2019. A combinação de recessão e inflação supõe a deterioração das condições de vida da maioria empobrecida.

Os investimentos são vitais em qualquer processo capitalista. Sem vontade de investimento para a valorização de capitais, não há mais-valor nem lucro e, portanto, a lógica de reprodução do capital não tem espaço. Nem o capital local privado nem público estão em condições de lograr a reanimação da deprimida atividade econômica da Argentina. Portanto, o apelo ao capital estrangeiro, embora lento em investimentos produtivos, habilita o ingresso de empréstimos e o investimento especulativo, estimulado pela própria autoridade monetária. O poder mundial alinhava as políticas do governo argentino, mas clama por aprofundar o ajuste e avançar em reformas estruturais que afetem o poder dos trabalhadores. Este é o calcanhar de Aquiles do governo Macri, assentado na tradição de luta e organização do movimento sindical e social, que anima a conflitividade crescente e aleija esses investidores demandados pela lógica capitalista. O impacto social das políticas oficiais se faz notar nas estatísticas que confirmam o cansaço que permeia o senso comum majoritário. De fato, segundo dados de dezembro de 2018, a indigência cresceu de maneira importante desde dezembro de 2015 e, ao contrário da promessa de Mauricio Macri de diminuir a pobreza, os pobres por renda alcançam 33,6% da população, segundo a Universidade Católica. Um terço da população está abaixo da linha de pobreza, e as mulheres estão em situação mais vulnerável que os homens. ³⁰⁰ Um agravante é que a situação é pior para menores de 14 anos, já que para a infância se reconhece 48,8% de pobres; nos jovens de 15 a 29 anos, 37,9%; os adultos entre 30 e 59 anos, 28,3%; e os maiores de 60 anos, 10,9%. São dados preocupantes no presente e alarmantes sobre o futuro de crianças e jovens. Por sua parte, o Instituto Nacional de Estadísticas y Censos, o Indec, ³⁰¹ dependência do governo nacional, desmente os próprios discursos oficiais sobre contenção da inflação, já que, em novembro de 2018, marcou uma subida de 3,2%, o que significado um acumulado de 43,9% para os onze meses de 2017, de janeiro a novembro, e uma projeção perto dos 50% para todo o ano, muito distante da meta entre 12 e 17% estabelecida pelo Banco Central no início do ano, e um teto para as negociações salariais paritárias entre patrões e trabalhadores, com a conseguinte perda de capacidade de compra do salário. A crônica jornalística se refere regularmente às crescentes suspensões e demissões, derivadas da contínua recessão, contrariando otimismo econômico do partido no poder. Estima-se a perda de 200 mil empregos públicos e privados perdidos desde o início do governo Macri. Nicolás Dujovne, o ministro da Economia, fala da recuperação futura da economia enquanto cresce o desemprego de trabalhadoras e trabalhadores. É uma situação convergente com uma capacidade instalada na indústria de 60,6% em janeiro de 2017 contra 62,9% em janeiro de 2016. ³⁰² Se bem alcança 64% em outubro de 2018, a recessão industrial é um fato desde meados do ano. É uma questão que também se verifica na subida dos índices oficiais de desemprego (8,5%), subemprego (9%) e um terço de trabalhadores na informalidade. Isso conflui em um crescimento da desigualdade, cuja metáfora passa pelo aumento da venda de automóveis zero quilômetros e

pela demissão de trabalhadores da indústria automotora. Tem-se que associar esses fenômenos à melhora na capacidade de compra de setores de renda alta, ao aumento da importação de automóveis e à diminuição da produção local com destino ao mercado interno e/ou brasileiro. Este relato remete a um fenômeno de continuidade que deteriora a condição de vida da maioria da sociedade, que não está no pior momento de 1989 ou 2011, mas que tem esse destino segundo a evolução progressiva dos indicadores econômicos e sociais. Como vínhamos sustentando, chega-se a essa máxima deterioração pelas reformas estruturais organizadas desde 1975/6 e especialmente nos 1990, que consolidam o aumento da desigualdade, da pauperização e da concentração e da estrangerização da riqueza socialmente gerada. Isto é o essencial na ordem capitalista: a recriação das condições de exploração e dominação para assegurar a valorização dos capitais e a obtenção de lucros, sua acumulação e reprodução social. Aqui está a essência da reforma regressiva da estrutura econômica e social da Argentina, implementada em dois tempos: um sob a ditadura genocida e outro durante a convertibilidade (1991-2002). A crise induziu à regressiva reestruturação da economia e da política, disciplinando o movimento social às novas condições de funcionamento da sociedade (estrangerização, concentração, novo modelo agroprimário exportador, elevada especulação e papéis da banca transnacional), com maiores níveis de empobrecimento e marginalização social, com a consequente despolitização instaurada desde o genocídio e o terrorismo de Estado. Sobre essas reformas estruturais no modelo produtivo não modificadas nos últimos anos, a reestruturação continuou sob o governo Macri e tem a ver, em primeiro lugar, em acentuar as modificações em relação entre o capital e o trabalho, para aprofundar a subordinação desde àquele, o que se manifesta com a diminuição do custo laboral. Também deve se considerar a permanente reforma do Estado a serviço do capital e a inserção subordinada no sistema mundial. Sob este conceito de redução de custo laboral está o salário e, por esse, o teto pretendido à atualização da renda, consumada entre 2016 e 2018 com perdas na capacidade de compra da renda popular em torno de 15% em distintas categorias de emprego, formal ou informal. Porém, também supõe a redução do salário indireto por meio do corte em benefícios de seguridade social, da saúde ou da educação, junto a outros direitos universais a cargo do orçamento público, agravado com os ajustes orçamentários para 2019 acordados com o FMI. Toda a lógica da política econômica se sustenta em gerar melhores condições para o investimento, para o qual o esforço oficial aponta, elevando a rentabilidade do capital, o lucro. Este resulta da produção de mais-valor, e por isso o dinheiro destinado ao investimento requer baixa dos preços dos meios de produção (capital constante) e da força de trabalho (capital variável). Para reduzir o preço dos meios de produção, busca-se o menor preço possível no mercado mundial, e por isso a pressão é no sentido da abertura da economia. Assim, destrói-se qualquer processo produtivo local.

Inclusive, pode-se chegar a suprimir o processo produtivo e substituir a produção final local por outra de origem externa. Para diminuir o preço da força de trabalho, os sindicatos patronais e o governo pressionam com o objetivo de desarticular a capacidade de organização e resistência do movimento sindical e social, setorial ou territorial, dos trabalhadores. Trata-se de disciplinar as organizações sindicais e sociais para facilitar a indução de custos de produção mais baixos, seja no setor privado ou no gasto público social. É por isso que os esforços são para reduzir o déficit fiscal e, a qualquer custo, transladar a carga fiscal sobre os de baixo e em benefício da cúpula de investidores. Nesse rumo, não é de surpreender que, em algum projeto, pense-se em baixar impostos aos investidores e aumentar o IVA (Imposto de Valor Agregado), por exemplo. Enquanto o governo resolve o financiamento local de sua política, não tem dúvida em incrementar a dívida pública hipotecando o futuro das finanças do Estado. Condiciona, assim, presente e futuro. A resposta popular e os desafios A novidade política na Argentina é a presença da iniciativa política popular, que foi disputada pelo governo kirchnerista na última década e que agora se faz visível e em ascenso. O conflito docente é emblemático nesse sentido, e na luta com o governo joga-se com a possibilidade de avançar sobre outros setores de trabalhadores. O acordo relativo a melhores salários associado à produtividade e mudanças regressivas nas condições de trabalho, alcançado com os petroleiros patagônicos e no avanço com metalúrgicos e sindicatos automotivos, é um caminho para reduzir o custo salarial das grandes empresas, no mesmo caminho da terceirização e de toda forma de flexibilização de renda e condições de trabalho, para as quais o governo forçou a reforma da legislação de segurança do trabalho. A grande mobilização docente se repete todo início de ano, adiando o começo das aulas, com greves de 48, 72 ou 96 horas com uma demanda sempre afastada da oferta patronal (governos estaduais e nacional) para atualização dos salários. ³⁰³ Ela evidencia uma confrontação que alcança o conjunto do movimento sindical e social. Fez-se todo o possível, a partir do governo, para deslegitimar a manifestação, incluindo a aberração de convocar voluntários para substituir professores na educação. A confrontação é econômica, política e ideológica, e não está encerrada, com o governo negando a constituição da lei paritária nacional. Esta demanda é estendida a outros sindicatos, caso dos trabalhadores da Justiça, que possuem resoluções internacionais na OIT, mas que, mesmo assim, não têm suas convocatórias atendidas para debater salários e condições de trabalho. O não início das aulas coincidiu com mobilizações sucessivas protagonizadas principalmente por trabalhadores e trabalhadoras. Por isso se pode pensar em sequência as mobilizações da segunda 6, terça 7 e quarta 8 de março de 2017, ainda que cada uma tenha tido suas próprias reivindicações e motivações. A primeira, com os professores e a defesa da escola pública e seus salários. A segunda, iniciada pelos sindicatos produtivos da

Confederação Geral do Trabalho, CGT, e assumida pelas outras duas centrais de trabalhadores, a CTA Autônoma e a CTA dos trabalhadores, junto a diversos movimentos e organizações não pertencentes às centrais sindicais. A terceira mobilização foi promovida pelo Dia Internacional das Mulheres Trabalhadoras e em apoio à Greve Internacional de Mulheres. Todas as mobilizações ganharam a consigna de “greve geral”. A cúpula da CGT foi rechaçada por não convocar com data certa a demanda reclamada em uma imensa mobilização de rua. O poder do movimento popular, especialmente dos trabalhadores, fez-se sentir e evidenciou que, junto à iniciativa do poder (o governo e as classes dominantes), também existem outras iniciativas das classes subalternas. Desde o começo de 2017, aumentou a mobilização popular com três greves gerais convocadas por centrais sindicais durante 2017 e 2018, com grandes lutas ao final de 2017 que frearam a reforma trabalhista, ainda que o governo tenha conseguido mudar a fórmula de atualização de benefícios de aposentadas e aposentados. O ano de 2018 mostrou a contradição de um elevado nível de mobilização popular, com epicentro no movimento operário e com destaque ao movimento de mulheres, mas com o detalhe de ausência de uma alternativa política popular que contenha a diversidade de reivindicações. É interessante entender a situação a partir da luta de classes, já que a constituição de um sujeito coletivo mobilizado limita o objetivo “disciplinador” promovido pelas classes dominantes e pelo governo Macri. O determinante entre o final de 2015 e o presente era a fortíssima iniciativa política a partir do governo e do poder. O novo é a emergência da mobilização popular como coletivo em construção para definir uma política alternativa. É certo que a hegemonia no movimento popular está em disputa, ou dito de outro modo, ele ainda não tem uma direção. Ao mesmo tempo, parece que o governo Macri tampouco resolve a demanda das classes dominantes em fazer arrefecer o movimento popular em luta. Por isso, a situação política na Argentina está aberta em um debate sobre seu rumo, seja no sentido da ofensiva capitalista com a liderança regional da direita argentina, seja no sentido de propor cursos alternativos a partir do movimento popular. A partir do governo, impõe-se a discussão sobre ajuste gradual ou políticas de choque, no sentido das primeiras medidas com desvalorização, fim ou diminuição de retenções e liberalização do mercado de câmbio e cancelamento de dívidas em litígio, ainda que com maior endividamento. Às vezes prevalece o gradualismo que se confirma na sustentação e no aumento do déficit fiscal, ainda que, com o acordo com o FMI, o choque de ajustes seja explícito e se manifeste no compromisso assumido de déficit fiscal zero e também zero emissão monetária para induzir o esfriamento da economia e tentar frear a elevada inflação, claro que às custas de uma grande recessão no final de 2018. Ambas as perspectivas convivem no poder, que teria como próximo desafio o aniversário do golpe de Estado de 24 de março de 1976, que iniciou a regressiva reestruturação, agora em um novo turno reacionário. Era

prevista uma gigantesca mobilização popular em todo o país, dificultando o deliberado interesse dos setores do poder por remeter ao esquecimento a memória e o escárnio ao terrorismo de Estado. Vale mencionar que o governo tentou modificar o feriado de 24 de março (dia do golpe genocida de 1976) para 27 de março e transformá-lo em um dia turístico. Fracassou a tentativa ante a generalizada manifestação social. O dia da memória é parte da luta popular e nisso não há retrocesso, o que explica o caso único da Argentina de julgamento aos responsáveis de crimes de lesa-humanidade. É preciso assinalar que na Argentina se processam distintas concepções no debate político. Uns discutem como governar o capitalismo local e se adéquam às novas condições da ordem mundial, com Trump e Brexit, simultâneas à continuidade da liberalização, com a 11 a reuni ão da OMC realizada em dezembro de 2017 ou a do G20 realizada em 2018 na Argentina. São conclaves globais que dão conta dos limites do capitalismo mundial para superar a crise que já leva mais de dez anos. O capitalismo desta época não transita com a tranquilidade que supunha o avanço da globalização e menos ainda com as iniciativas realizadas pelo governo Macri em suas relações com os governos dos Estados Unidos, com Obama e Trump. Recordemos que os investidores sempre pedem aos governantes para conter o movimento social. Na discussão de como governar o capitalismo local num momento eleitoral (em outubro de 2019 houve eleições presidenciais), várias candidaturas se apresentam. Muitas coincidem com o eixo de demandas dos investidores, que olham para o exterior, ante ao parasitismo da classe dominante local, somente animada pelo agronegócio e a mineração, pelas mãos das transnacionais desse setor. Outras imaginam que podem estimular o consumo sem afetar a lógica de dominação do capital, não compreendendo os limites da mudança política na região neste novo século. A demanda por mais consumo sem modificar o modelo produtivo implica a orientação do voto para lógicas reprodutivas de um padrão consumista e de dominação monopólica da esfera da produção. Este é um dos principais problemas da discussão no movimento popular: a orientação de projetos políticos contidos em fazer somente o que se considera possível, congelando correlações de força locais e globais. Abre-se espaço no movimento popular para a discussão sobre o que se necessita e aponta-se à discussão sobre o país que temos e o que queremos, o que demanda assembleias e uma dinâmica congressual para analisar e consensualizar o diagnóstico e as propostas para transformar a realidade. Um congresso popular é necessário para transformar o parasitismo das classes dominantes do capitalismo local e orientar o desenvolvimento para a satisfação das necessidades sociais contra a lógica capitalista. O problema dos problemas, no rumo econômico, passa por reforçar a recorrente lógica de investir para lucrar, sempre às custas do bem-estar majoritário. O que se necessita é vontade majoritária para orientar o esforço coletivo da produção e resolver necessidades sociais insatisfeitas. Esta é uma questão essencial, já que a lógica capitalista requer investidores, se não, não existe valorização. Romper a lógica mercantil capitalista e o modelo produtivo associado a ela é o nó górdio da proposta a se sustentar para um

processo de emancipação. Em síntese, há de se reconhecer uma nova situação: a luta de classes derivada do triunfo eleitoral do Cambiemos e Macri em fins de 2015. A partir do fim de 2018 se desprendeu uma forte iniciativa política popular mobilizada, em disputa sobre quem a dirige e com que sentido. A ofensiva das classes dominantes, ainda que com contradições, pretende consolidar o primeiro governo constitucional que não é nem peronista nem radical, ainda que existam apoios, e provavelmente se somem novos, de ambas as expressões. Um desses desafios passa pela conjuntura eleitoral de 2019 e, muito especialmente, por transformar o consenso eleitoral de 2015 em consenso político mais duradouro, o que requer certa organicidade social funcional para o objetivo da força política no governo. Trata-se de conformar certa base social de massas com pretensão de construir um pilar de apoio para além do voto. O privilégio nesse sentido passa pela capacidade de negociação e cooptação de dirigentes e organizações ao projeto do governo. No estrutural, o governo busca adequar as condições sociais, econômicas, políticas e culturais ao contexto mundial de ofensiva do capital e das direitas. O que está em jogo é uma concepção política da “antipolítica”, cujo emblema são as/os “gerentes” ou yuppies no governo, de aparência “técnico eficientes” para além de qualquer ideologia. Seriam “modernos” artíficies de um novo tempo aggiornado do capitalismo contemporâneo. Existe consenso prévio de boa parte da sociedade para legitimar este “novo” senso comum, como resultado da despolitização e desideologização operada desde 1975/6. Macri e sua equipe pretendem estabilizar um senso comum favorável a seu modo de ver a conjuntura. A cultura individualista forjada desde 1975/76 abona esse objetivo, inclusive entre “bons intelectuais” críticos do neoliberalismo e do próprio Macri, uma questão exacerbada com a crítica ao kirchnerismo e seus governos por doze anos entre 2003 e 2015. Para além dos objetivos das classes dominantes e do governo Macri, o problema central da crítica é a capacidade de construir alternativa, superando o limite de quem disputa a gestão do capitalismo na Argentina. Não é um dado menor, já que muitos potenciais aliados em perspectivas alternativas optam pelo mal menor dentro da gestão do capitalismo e apresentam opções eleitorais “intragáveis”. O argumento é que não está na ordem do dia a revolução, então tem que se optar pelo limite do possível. Um dado relevante passa por reconhecer a emergência do kirchnerismo na disputa do movimento popular entre 2003 e 2015. O kirchnerismo não somente foi gestão da ordem capitalista, mas um projeto que impulsionou uma base social de massas com capacidade de atração de organizações e setores sociais diversos. Não basta caracterizá-lo, e suas alianças, como hegemônico na política local por três períodos, de 22% alcançados em 2003 até os 54% de 2011. O kirchnerismo foi a forma de gestão do capitalismo tal e qual ele é no país, com soja, megamineração a céu aberto, fracking e dependência de capitais externos. Trata-se de um modelo produtivo gestado desde a ditadura genocida, aprofundado nos 1990 sob hegemonia menemista-peronista e não modificado substancialmente nesses anos, ainda que com distribuição de renda (políticas sociais estendidas) e avanços no emprego e nas negociações coletivas.

O modelo produtivo para a dependência do capitalismo local, com os matizes de cada gestão constitucional desde 1983, é uma construção consolidada desde a ofensiva capitalista de 1975/76. Construir alternativa política foi um desafio durante a ditadura genocida e segue sendo um assunto pendente, especialmente em um horizonte que questiona a ordem capitalista e seu efeito regressivo na distribuição de renda e de riqueza. A tendência histórica no capitalismo, não somente na Argentina, é o crescimento da desigualdade, para além de qualquer mudança por curtos períodos que não modifica a tendência. Insistimos, não somente no país. Basta consultar o estúdio de Pikety sobre o tema, ou os informes da Oxfam ³⁰⁴ difundidos nas reuniões de Davos todo mês de janeiro. Como e a partir de onde construir o novo? Pergunta complexa de responder, mas que, consciente ou inconscientemente, atravessa as práticas e iniciativas de diversas organizações e coletivos militantes. Aspirar à articulação dessas iniciativas, por vezes contraditórias, é parte do desafio da época. Isso inclui a crítica e a autocrítica de todo o realizado em prol de mudanças transformadoras e, se se quer, revolucionárias. Ninguém está isento da crítica e da autocrítica. A unidade de ação é mais do que necessária nesta etapa, mas com um sentido claro de confrontação com a estratégia das classes dominantes. É certo que existe unidade de ação contra a ofensiva da direita explícita, mas nesse marco devem-se reconhecer âmbitos de unidade estratégica de sentido anticapitalista, anti-imperialista, anticolonial, contra o patriarcado, o racismo e a discriminação. Existem várias experiências nesse sentido, e cada uma delas incluiu debates e disputas pela hegemonia, com processos específicos que merecem ser estudados e utilizados para pensar novas estratégias para a acumulação de poder popular. A democratização e a pluralidade nesses âmbitos são chave para pensar e agir no presente e no futuro. Destaco, em especial, as experiências que assumem o desafio por um novo modelo sindical e que promovem a unidade dos projetos em perspectiva revolucionária, com um rumo essencial para pensar nos novos tempos. É necessário discutir como se constrói o bloco popular para a transformação, com quem e como se transitam os debates com humildade, abandonando soberbas que não reconhecem práticas e pensamentos dessemelhantes. Não há solução simples aos problemas aludidos, que só se resolveram pelo protagonismo na luta social e no conflito cotidiano para defender direitos adquiridos e ampliá-los, ao mesmo tempo que se depreende a luta por construir subjetividade social consciente na perspectiva de um presente e de um futuro para além do capitalismo. A coisa mais difícil e concreta nessa luta e nesse devir é a construção de forças sociais e políticas, processos inexcedíveis, pois não adianta contrastar o social com o político. Na dinâmica política integral da sociedade, manifesta-se a cotidiana luta reivindicativa e a construção de ambientes com capacidade de disputar hegemonia e sentido comum em todos os terrenos da vida. Buenos Aires, 18 de dezembro de 2018

Postscriptum As eleições de outubro de 2019 deram a vitória ao peronismo unificado sob hegemonia kirchnerista na Frente de Todos, o que envolveu um agrupamento maior do que a hegemonia peronista e kirchnerista para derrotar a Frente para el Cambio (Frente pela Mudança), que propunha um segundo mandato de Mauricio Macri. As expectativas sociais são importantes para mudanças, especialmente na economia, diante da deterioração das condições de vida da maioria. O resultado de quatro anos de governo Macri, entre 2015 e 2019, são a elevada inflação, de 55% ao ano, e uma queda da produção de -3% ao ano. A recessão foi a característica em três dos quatro anos de gestão. A pobreza tangencia os 40% da população, com um desemprego superior aos 10%, falências de empresas, suspensões e demissões de trabalhadores e trabalhadoras, tudo fomentado a partir de um elevadíssimo endividamento público agravado com o acordo com o FMI. Em que pese tudo isso, a força política que sustentou a candidatura de Macri obteve 41% dos votos, contra 48% da vitoriosa Frente de Todos de Alberto Fernández e Cristina Fernández de Kirchner. A sociedade argentina está dividida politicamente, e a direita mantém consensos eleitorais importantes e a capacidade de organização e mobilização, o que preocupa em um clima regional de avanço de governos autoritários, ainda que, ao mesmo tempo, exista uma dinâmica de lutas populares mais que interessante no momento atual da luta de classes regional e mundial. Os primeiros dias do governo dos Fernández demonstra as dificuldades da nova experiência de governo pelas limitações do desenvolvimento capitalista local e global. O desafio está, como sempre, na capacidade do movimento popular de construir uma iniciativa política que estimule a projeção de uma política anticapitalista e anti-imperialista, contra o patriarcado e toda forma de discriminação racial. Um novo tempo se passa na Argentina e a história está aberta a uma luta de iniciativas políticas em confronto, habilitando um novo processo de experiências pela emancipação social. Buenos Aires, 19 de dezembro de 2019 Bibliografia BAYER, Osvaldo; BORON, Atilio; GAMBINA, Julio. El terrorismo de Estado en la Argentina . Buenos Aires: Ediciones Espacio para la Memoria, 2010. [Também disponível em: https://fisyp.org.ar/wp-content/uploads/media/ uploads/libro_tea_2010.pdf. Acesso em: 5 jul. 2020.] ELÍAS, Antonio (org.). La experiencia de los gobiernos progresistas en debate: la contradicción capital trabajo. Argentina, Brasil, Venezuela y Uruguay . Buenos Aires: IneSur/Sepla/Cofe/PIT-CNT/Clate, 2017. GAMBINA, Julio. Crisis del Capital (2007/2013). La crisis capitalista contemporánea y el debate sobre las alternativas . Buenos Aires: Fundación de Investigaciones Sociales y Políticas – FISYP, 2013.

__. “10 años de kirchnerismo: el capitalismo local entre la coyuntura y la estructura”. Herramienta , año XVII, n. 5, jul.-ago. 2013. __. “El cambio político requiere del cambio económico para aportar a la transformación social, artículo”. Herramienta , n. 58, oto. 2016. __.; CAMPIONE, Daniel. Los años de Menem. Cirugía mayor . Buenos Aires: Centro Cultural de la Cooperación, 2002. HARVEY, David. “El ‘nuevo’ imperialismo: acumulación por desposesión”. Socialist Register , ene. 2005. Disponível em: http://biblioteca.clacso.edu.ar/ clacso/se/20130702120830/harvey.pdf. Acesso em: 5 jul. 2020. IEF-CTA AUTÓNOMA. La historia del movimiento obrero argentino . Material para la formación político sindical. Sep-oct. 2014. Disponível em: http://media.wix.com/ugd/ 12e354_d092e3de30ee431aa4404ce68f584c18.pdf. Acesso em: 5 jul. 2020. MARX, Karl. El Capital: el proceso de producci ón del capital . t. I/v. 1. Libro primero. Trad. Pedro Scaron. 3 a reimp. Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 2008. ²⁸⁴ Doutor em Ciências Sociais pela Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Nacional de Buenos Aires, UBA. Professor titular de Economia Política na Faculdade de Direito da Universidade Nacional de Rosário, UNR. Presidente da Sociedade Latino-americana de Economia Política e Pensamento Crítico, Sepla. Presidente da Fundação de Investigações Sociais e Políticas, Fisyp. Diretor do Instituto de Estudos e Formação da Central de Trabalhadores da Argentina Autônoma, IEF-CTA Autônoma. ²⁸⁵ A partir do Chile em 1973 em diante, com a Argentina em 1976, toda a América do Sul foi submetida às garras da dominação transnacional da repressão, da tortura e do assassinato como política deliberada das classes dominantes. ²⁸⁶ No ano de 2017, celebrou-se o centenário da revolução de outubro de 1917, que inaugurou a possibilidade de pensar e atuar para além da lógica capitalista. ²⁸⁷ Em 2017, cumpriram-se 150 anos da publicação do tomo I de O Capital , e é muito importante continuar com sua difusão, já que construiu a base científica para pensar e criticar o capitalismo, com plena validade em nosso tempo, ainda que tenha passado tanto tempo e tantas transformações na ordem capitalista tenham ocorrido. Sem Marx e O Capital , é impossível pensar os problemas de nosso tempo, contribuir para a recriação da teoria da revolução e sustentar as bases do socialismo em nossa época. ²⁸⁸ David Harvey. “El ‘nuevo’ imperialismo: acumulación por desposesión”. Socialist Register , ene. 2005. Disponível em: http://biblioteca.clacso.edu.ar/ clacso/se/20130702120830/harvey.pdf. Acesso em: 5 jul. 2020.

²⁸⁹ Karl Marx. El Capital: el proceso de producción del capital . t. I/v. 1. Libro primero (Trad. Pedro Scaron. 3 a reimp. Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 2008). 290 Julio Gambina. Crisis del Capital (2007/2013). La crisis capitalista contemporánea y el debate sobre las alternativas (Buenos Aires: Fundación de Investigaciones Sociales y Políticas – FISYP, 2013). ²⁹¹ Antonio Elías (org.). La experiencia de los gobiernos progresistas en debate: la contradicción capital trabajo. Argentina, Brasil, Venezuela y Uruguay (Buenos Aires: IneSur/Sepla/Cofe/PIT-CNT/Clate, 2017). Inclui artigo de Julio Gambina sobre a experiência argentina. ²⁹² O regime de convertibilidade estabeleceu após uma grande desvalorização da moeda local, a equivalência de um para um entre o peso argentino e o dólar estadunidense. Isso supunha um ajuste brutal na renda popular, uma imensa deterioração da capacidade produtiva e de exportação da Argentina, um acúmulo de dívida pública insustentável, tudo que terminou com uma recessão gigantesca entre 1998 e 2002, prévia da explosão ao final de 2001, com os mais altos níveis de desemprego e empobrecimento da população. ²⁹³ Julio Gambina; Daniel Campione. Los años de Menem: cirugía mayor (Buenos Aires: Centro Cultural de la Cooperación, 2002). ²⁹⁴ Primeira experiência de poder operário em 1871, massacrada pelas classes dominantes francesas. ²⁹⁵ IEF-CTA Autónoma. la historia del movimiento obrero argentino . Material para la formación político sindical. Sep.-oct. 2014. Disponível em: http://media.wix.com/ugd/ 12e354_d092e3de30ee431aa4404ce68f584c18.pdf. Acesso em: 5 jul. 2020. ²⁹⁶ Osvaldo Bayer; Atilio Boron; Julio Gambina. El terrorismo de Estado en la Argentina (Buenos Aires: Ediciones Espacio para la Memoria, 2010), também disponível em: https://fisyp.org.ar/wp-content/uploads/media/ uploads/libro_tea_2010.pdf. Acesso em: 5 jul. 2020. ²⁹⁷ Julio Gambina. “10 años de kirchnerismo: el capitalismo local entre la coyuntura y la estructura”. Herramienta , año XVII, n. 5, jul.-ago. 2013. ²⁹⁸ Antonio Elías (org.). La experiencia de los gobiernos progresistas en debate. ²⁹⁹ Julio Gambina. “El cambio político requiere del cambio económico para aportar a la transformación social, artículo”. Herramienta , n. 58, oto. 2016. ³⁰⁰ Observatorio de la Deuda Social Argentina. Pobreza en la argentina urbana (2010-2016) . Disponível em: http://www.uca.edu.ar/uca/common/ grupo68/files/2017-Observatorio-Presentacion-InformesPobreza-2010-2016.pdf. Acesso em: 10 mar. 2017.

³⁰¹ INDEC. Índice de Precios al Consumidor Febrero de 2017 . Disponível em: http://www.indec.gob.ar/uploads/informesdeprensa/ipc_03_17.pdf. Acesso em: 10 mar. 2017. ³⁰² INDEC. Utilización de la Capacidad Instalada en la Industria . Enero de 2017. Disponível em: http://www.indec.gob.ar/uploads/informesdeprensa/ capacidad_03_17.pdf. Acesso em: 10 mar. 2017. ³⁰³ Enquanto os governos apresentam dados muito distantes da inflação esperada, os sindicatos docentes demandam aproximar-se à evolução dos preços da cesta básica, incluindo a perda de capacidade de compra dos salários durante os anos anteriores. ³⁰⁴ Oxfam. Una economía para el 99%. Es hora de construir una economía más humana y justa al servicio de las personas . Disponível em: https:// www.oxfam.org/es/informes/una-economia-para-el-99. Acesso em: 15 mar. 2017. Uruguai: a continuidade do projeto do capital com legitimação social Antonio Elías ³⁰⁵ Introdução Para começar essa análise, temos que levar em conta dois aspectos fundamentais que diferenciam a situação do governo da Frente Ampla (FA) no Uruguai do resto dos governos progressistas da região: primeiro, é uma força política de esquerda unitária, bem organizada e com uma larga trajetória; segundo, nos três governos, teve maioria absoluta em ambas as câmaras (mais do que 50% dos legisladores) sem fazer aliança com nenhum outro partido. Com efeito, a criação da Frente Ampla (1971) é o terceiro marco de um processo de unidade da esquerda; o primeiro é a realização do Congresso do Povo ³⁰⁶ (1965); o segundo, a fundação da Convenção Nacional de Trabalhadores ³⁰⁷ (1966), unidade sindical que perdura até hoje. A unidade política em torno de uma única ferramenta, a FA, formou-se em meio a intensas lutas populares contra os efeitos de uma reestruturação capitalista que supunha maiores níveis de exploração e desmantelamento do Estado de bem-estar que desenvolvera o batllismo. ³⁰⁸ O programa fundacional da FA se baseia, com pequenas variações, no aprovado no Congresso do Povo, que incluía, entre suas principais medidas, a ruptura com o Fundo Monetário Internacional, a reforma agrária e a nacionalização do comércio exterior e dos bancos. Um programa essencialmente antiimperialista e antioligárquico, o qual não impediu, nem ocultou, a existência de diferenças profundas acerca de quais eram os caminhos para a acumulação de força e o acesso ao poder. Naquela época, diferenciava-se claramente o acesso ao governo do acesso ao poder. A FA foi composta pelos partidos Comunista, Socialista, Democrata-cristão, alguns grupos e personalidades que abandonaram os partidos tradicionais Colorado e Nacional e personalidades independentes, entre elas, oficiais das

forças armadas como o general aposentado Líber Seregni (nomeado presidente da FA, cargo que ocupou até 1996) e o general aposentado Víctor Licandro, que até o final de sua vida seguiu sendo para os frenteamplistas uma referência fundamental por sua história e seus princípios. O Movimento de Liberação Nacional (Tupamaros) lhe deu imediatamente apoio crítico, impulsionou a criação de uma força frenteamplista, o “Movimento de Independentes 26 de março” e declarou uma trégua no período eleitoral. ³⁰⁹ A FA nasce como uma organização política que, majoritariamente, propõe-se transcender os aspectos puramente eleitorais. Dizia, em 1972, o general Seregni, seu presidente: A razão de ser, o porquê e para quê de nossa Frente Ampla, está em realizar uma tarefa histórica fundamental: cumprir o processo revolucionário de nosso país. Em transformar as velhas estruturas econômicas, políticas e sociais de nosso país hoje caducas e criar as novas que correspondem à instância que nosso povo deve viver. E é, sim, um verdadeiro, um autêntico processo revolucionário, porque o que nossa Frente se propõe não é somente a mudança profunda das estruturas, mas a substituição das classes no poder. Retirar o poder da oligarquia e levar o povo a governar. ³¹⁰ Em novembro de 1971, a FA participou das eleições nacionais, nas quais obteve 18% dos votos (maior que a votação anterior, somada, de todos os partidos de esquerda). Dois anos depois de sua fundação, foi dado o golpe de Estado. Nos doze anos seguintes de sua existência, sob ditadura, teve seus principais dirigentes presos (Líber Seregni por quase dez anos), assassinados, no exílio ou na clandestinidade, e seus maiores partidos ilegalizados. Ainda que com dezenas de milhares de seus militantes presos, no exílio ou proscritos, participou com o registro de um de seus partidos não ilegalizados na eleição restringida da “transição” da ditadura para a democracia, de novembro de 1984, na qual obteve 21% dos votos, mais que em 1971. Isto pôde ocorrer precisamente porque não era uma coalização com fins eleitorais, mas uma organização com definições de mudanças profundas, com uma poderosa fortaleza ética que lhe permitiu resistir, lutar e avançar. Após a queda do muro de Berlim e o colapso do socialismo real, setores importantes da Frente Ampla abandonaram a concepção da luta de classes. A proposta socialista foi substituída por um discurso “esquerdista” que se declarava órfão de projeto, o que resultou no não questionamento do capitalismo, privilegiando a conciliação de classes expressada em políticas de Estado e na alternância de partidos no governo. A luta por uma “democracia social e econômica” que resumia e sintetizava esta perspectiva esquerdista em relação a uma democracia política burguesa que se limitava, no melhor dos casos, a garantir o direito a voto, transformou-se, para muitos, em melhora do nível de vida da população – sem redistribuir a riqueza acumulada – por meio de um aprofundamento do modelo do capital. A conquista do poder e uma saída anticapitalista – que supõe uma ruptura do status quo – ficaram de lado, não somente como prática sociopolítica limitada por uma determinada correlação de forças, mas como sustento ideológico de muitas organizações da chamada esquerda. Tudo isto, claro,

com diferentes ênfases e níveis de profundidade em cada país. Nesse marco, em novembro de 2004, depois de uma importante crise econômica, os partidos de direita foram derrotados eleitoralmente pela Frente Ampla, que obteve 50,5% dos votos e não necessitou ir ao segundo turno. No caminho de acesso ao governo, foram caindo e ficando de lado muitas bandeiras do programa histórico da Frente Ampla, sob a suposição, nunca demonstrada, de que não eram convenientes para a acumulação de forças eleitorais. Se assumia assim o axioma “político” de que as eleições se ganham capturando o centro do espectro político. A FA voltou a ganhar as eleições em 2009 (47,9% no primeiro turno e 54,6% no segundo) e 2014 (47,8% na primeira e 56,5% na segunda), o que aumenta a responsabilidade histórica dos governos da FA por não ter cumprido, nem sequer haver tentado alcançar, os objetivos pelos quais o povo uruguaio lutou durante décadas. Aprofundamento capitalista com conciliação de classes A derrota eleitoral dos partidos políticos tradicionais não implicou uma capitulação ideológica da ortodoxia econômica e do pensamento único. Pelo contrário, a Frente Ampla apagou seu programa histórico de mudanças no âmbito de uma estratégia “realista” que incluiu uma ampla política de alianças para capturar o voto do centro político e a designação de um ministro da Economia, o contador Danilo Astori, que dava garantias ao capital nacional e transnacional. Sob a égide de Astori se construiu uma equipe econômica que rege a economia do país até o dia de hoje e que mantém a iniciativa e impulsiona as mudanças institucionais que favorecem a penetração transnacional, além de ter o respaldo dos partidos de centro e de direita, dos meios de comunicação e de boa parte das câmaras empresariais. Para essa equipe, dominante nos três governos, as relações com os Estados Unidos, o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial implicam garantir o predomínio das regras do mercado no âmbito de uma inserção capitalista subordinada. O “país produtivo” que defendia a Frente Ampla como alternativa ao chamado neoliberalismo, transformou-se radicalmente quando dita força política alcançou o governo em 2005. A potencial alternativa pela esquerda se transformou em continuidade e aprofundamento do mesmo modelo que se aplicava há várias décadas com ênfase muito maior no investimento estrangeiro direto (IED). A concepção da equipe econômica, que de fato é assumida pelo governo, é que os partidos Nacional e Colorado fracassaram na “implementação” de um modelo econômico que, no essencial, era adequado para o país. Contra o que outrora eram os discursos da esquerda, hoje as vantagens outorgadas pelo governo ao capital forâneo têm permitido um forte processo de estrangerização dos principais recursos do país; de fato, predomina o projeto do capital transnacional com um novo formato político. Como contrapartida, perde-se o controle nacional do processo produtivo e se questionam aquelas decisões estratégicas que poderiam repensar o desenvolvimento nacional sob bases mais autônomas.

A agenda dos governos da Frente Ampla esteve marcada desde o princípio pelos objetivos macroeconômicos, que se transformaram no fiel da balança das decisões de todas as políticas, já que a busca do equilíbrio fiscal e de certo nível de superávit fiscal primário – exigência dos credores e seus representantes – geraram uma restrição orçamentária muito dura que impediu atender em tempo e forma as demandas sociais. Mas, fundamentalmente, não permitiu implementar políticas de desenvolvimento produtivo que se constituiriam em uma mudança estrutural de longo prazo. Há, certamente, contradições no governo e na força política – na FA se expressam interesses socioeconômicos opostos –, porém a iniciativa em relação ao modelo econômico e à inserção internacional esteve desde o princípio em mãos de quem advogava um aprofundamento do modelo centrado no mercado, atrair investimentos estrangeiros e o maior nível de abertura externa possível. Os setores que têm resistido a esse modelo econômico carecem de uma proposta coletiva comum, limitando-se, em muitos casos, à defesa do Mercosul. A pedra angular da proposta era e é atrair inversão estrangeira. O modelo que impulsiona há doze anos a condução econômica assume como premissas que: a) o crescimento de um país depende de investimentos (argumento indiscutível, ainda que deveria precisar o tipo, qualidade e objetivo destes); b) no país não há poupança disponível para realizar investimentos; c) requer-se investimento estrangeiro, o qual virá ao país se cumprirem certas condições imprescindíveis: estabilidade macroeconômica, cumprimento estrito das regras do jogo e aval dos organismos multilaterais. A agenda de ajustes estruturais acordada com o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e o Banco Interamericano de Desenvolvimento, cumprida ao longo dos três governos, tem sido aprofundar as reformas institucionais de “segunda geração”, ³¹¹ buscando eliminar a “interferência” da política na economia. A partir do pressuposto de que qualquer modificação das regras estabelecidas gerará incerteza entre os potenciais investidores (supostamente imprescindíveis para ampliar a capacidade produtiva), assumem-se os seguintes “mandamentos”: cumprirás os contratos, não tocarás os fundos de previdência privada [Administradoras Financieras de Ahorro Previsional], firmarás tratados de promoção e proteção recíproca de investimentos com quem quer que seja (começou em 2005 com os Estados Unidos), eliminarás e reduzirás ao mínimo os monopólios públicos e honrarás a dívida externa.

Dentro da lógica do pensamento dominante, figura um argumento “decisivo”: no país não há capital para levar adiante uma política de desenvolvimento. Porém poder-se-ia analisar o que faz o Banco da República (BROU) com seus ativos líquidos, depositados em Nova Iorque, ou os vários bilhões de dólares de “ativos sem contrapartida” que o Banco Central do Uruguai tem em forma de títulos da dívida pública estrangeira, em sua maioria norte-americana. Os fundos de previdência privada, atualmente, podem depositar a poupança uruguaia no exterior, o que anteriormente estava proibido. Com esses recursos se está financiando o desenvolvimento de outros países e a economia-cassino internacional. Parte dessa massa de recursos poderia perfeitamente destinar-se a financiar investimentos industriais, pesquisa e desenvolvimento, e outros aspectoschave para a economia do país. Mas, no escopo de uma opção política pelo capital, apresenta-se essa opção econômica como inevitável. O setor dominante continua impulsionando mudanças institucionais que apontam para o debilitamento da capacidade de intervenção do Estado, em particular nos aspectos referentes às fronteiras econômicas nacionais e às regulações do mercado, uma vez que aprova políticas de incentivos econômicos ao investimento estrangeiro, que reduzem os impostos a um mínimo absoluto. A reforma tributária “dual” do primeiro governo de Tabaré Vásquez teve como objetivo fundamental favorecer o capital: reduziu o imposto de renda dos empresários (antes IRIC, agora IRAE) de 30% a 25%; eliminou de forma gradual o imposto imobiliário e deduziu os grandes investimentos, basicamente, estrangeiros de forma praticamente descriminada, transformando o país em uma zona franca. A arrecadação do IRPF (Imposto de Renda Pessoa Física) não foi paga pelo capital, mas sim por uma transferência de renda dos trabalhadores com salários altos e médios ao Estado. Como contrapartida do processo de aprofundamento do modelo ortodoxo, amigável para o investimento estrangeiro, os governos da FA buscaram sua legitimação por meio de uma estratégia que combinou a contenção das situações de máxima pobreza com políticas assistencialistas; e um conjunto de mudanças institucionais e políticas que favoreceram o movimento sindical. A partir desse ponto de vista, consideramos que os governos da Frente Ampla têm realizado uma estratégia de aprofundamento do capitalismo baseada em uma política de conciliação de classes assimétrica, que brinda certos benefícios aos capitalistas e aos trabalhadores, uma vez que está acompanhada de assistencialismo aos setores mais pobres. O problema fundamental é que os benefícios legais recebidos pelos trabalhadores, com base na sua luta, podem ser reversíveis por qualquer governo, uma vez que se pode modificar ou derrubar leis, decretos e resoluções. Avanços tão importantes podem ser anulados, tais como: a reimplantação dos Conselhos de Salários ³¹² – ampliado aos trabalhadores rurais e às empregadas domésticas –; os fóruns sindicais; ³¹³ a eliminação dos decretos que impediam as ocupações; a lei que garante os pleitos de direitos trabalhistas quando não cumpridos por uma empresa terceirizada; a

lei de oito horas de jornada de trabalho no setor rural; as leis de negociação coletiva pública e privada. Da mesma forma, deve-se assinalar que, no caso dos trabalhadores públicos, foram tomadas medidas legais que precarizaram o trabalho (que vão desde contratos de direito privado a uma série de medidas no estatuto que degradam o Serviço Civil de Carreira) e penalizam as ações sindicais (decreto 401, que sanciona duramente as paralisações intermitentes [ paros perlados ] e as medidas parciais), bem como sancionados decretos de essencialidade que não correspondem com os acordos da OIT e que não cumprem com a Lei de Negociação Coletiva. Em relação aos trabalhadores aposentados, o novo sistema misto os desprotege e os empobrece graças a um sistema de poupança individual criado para liberar parcialmente o Estado de suas responsabilidades sociais e econômicas de garantir uma aposentadoria digna. Os fundos de previdência privada são organizações com fins lucrativos, que especulam com o dinheiro dos trabalhadores e geram aposentadorias cujo valor é indefinido. O caso dos chamados “cinquentões” – trabalhadores que estão a ponto de se aposentar e, com o novo sistema, receberão até 30% menos que com o sistema de repartição – é uma mostra, generalizável no futuro, do que aguarda os trabalhadores quando se aposentarem. Observa-se, também, que os valores das aposentadorias que se cobram dos contribuintes são modificados arbitrariamente pelo Banco Central, que determina as taxas de juros técnicos (que já foi reduzida em 2012 de 3% a 1,5%) e a taxa de mortalidade que determina a expectativa de vida (aumentar-se-ia, nesse mesmo ano, o tempo de sobrevivência). Com ambas as medidas, reduz-se de forma muito importante a aposentadoria que receberão dos fundos de previdência privada os trabalhadores que hoje contribuem a esse sistema. Os capitalistas, por outro lado, têm benefícios e privilégios, tais como: a ampliação do número de zonas francas, as que se outorgam a empresas transnacionais (ET) que instalam grandes indústrias no campo e/ou edifícios na cidade; a aplicação dos benefícios da Lei de Promoção de Investimentos e a Lei de Associação Público-Privada, que beneficiam tanto o capital estrangeiro como o nacional. Esses benefícios do capital transnacional estão fortemente protegidos por tratados de proteção de investimentos e de livre comércio, que garantem que, em caso de não cumprimento do Estado, este deve enfrentar demandas internacionais e pagar enormes indenizações. Tampouco pode desconhecer que os subsídios já outorgados às empresas nacionais não podem ser revogados porque enfrentariam julgamentos com custos muito altos. Tem-se em conta que esta situação de assimetria entre o capital e o trabalho aumentará exponencialmente se o governo seguir adiante com sua política de assinar tratados de livre comércio e proteção de investimentos com países de enorme poder econômico mundial, como a China e os países agrupados no Transpacífico, com Estados Unidos na cabeça.

Esta desigualdade jurídica entre o trabalho e o capital se expressa com meridiana claridade nos momentos de crise econômica, quando se produzem reduções do nível de atividade, desvalorização, inflação e déficits fiscais que fazem com que o Estado aplique medidas de ajuste. Nesse contexto se inscreve o processo de ajuste das contas públicas, chamado “moderação e prudência”, que impactará muito negativamente o nível de vida de trabalhadores e aposentados, tanto na renda direta – salários e aposentadoria – como na indireta – redução e perda de qualidade de serviços básicos, tais como educação e saúde. Os capitalistas, por outro lado, não serão afetados, porque, como assinalamos anteriormente, estão em grande medida “blindados”. Impactos e tendências O modelo de acumulação do país está baseado, em grande medida, no agronegócio, com algumas características importantes: (I) extrativismo com o único propósito de apropriar-se da renda dos recursos naturais; (II) processo ampliado de reprimarização das exportações; (III) o crescente processo de mercantilização da terra, incluindo o papel do capital fictício (especulativo, sem intenção de produzir), que aprofunda a concentração da propriedade; (IV) incremento do papel das empresas transnacionais como o agente fundamental da lógica extrativista, exploradora e depredadora. Os governos da FA aprofundaram o capitalismo captando investimento estrangeiro direto (IED). O “êxito” em atrair esses investimentos foi muito alto. Tenhamos em conta que, de 1999 a 2004, a média anual de IED que ingressou no país foi de US$ 292 milhões. A partir de 2005 até 2015, período dos governos frenteamplistas, houve um salto enorme, chegando a US$ 1,954 bilhão. Os montantes acumulados de investimento estrangeiro implicam uma mudança estrutural nas relações econômicas do país com o exterior, que se vê refletida no aumento da presença de ET na atividade produtiva e, em consequência, com efeitos de longo prazo sobre o crescimento e o desenvolvimento econômico. O IED se concentra em setores industriais que recorrem com intensidade à extração de recursos naturais para cadeias de valor transnacionais integradas por redes de empresas que tendem a gerar enclaves nos lugares onde se instalam, administram o comércio internacional entre filiais e, na prática, controlam os processos econômicos nacionais. Tanto em nível microeconômico (transferência de tecnologia, geração de emprego, abertura de mercados) como macroeconômico (investimento, crescimento), é incontestável que o IED não cumpre os requisitos que deveriam ser estipulados como necessários para um desenvolvimento produtivo com justiça social. A presença crescente das ET implica no controle de parte significativa da poupança gerada localmente, o que cobra uma relevância particular na política de reinvestimentos úteis que essas empresas apliquem nos próximos anos. A utilização dos excedentes por parte das ET terá um impacto significativo nas futuras taxas de crescimento, na estrutura produtiva, na inserção internacional e na distribuição de renda, que, pode-se adiantar, não será positivo. Deve concluir-se que o processo de concentração e

estrangerização dos recursos naturais, bem como a transferência das indústrias que subsistem para o capital estrangeiro fortalece e consolida o capitalismo dependente. O capitalismo está em crise, porém as ET seguem tendo capacidade para comprar terras, imóveis e meios de produção na periferia, ampliando a desnacionalização de nossas economias. O modelo dominante continua impulsionando mudanças institucionais que apontam para o enfraquecimento da capacidade de intervenção do Estado, em particular nos aspectos referidos às fronteiras econômicas nacionais e às regulações do mercado. A maioria das reformas se caracteriza pela criação e/ou aperfeiçoamento de instituições e agências favoráveis ao “livre” mercado, ao investimento estrangeiro direito, à circulação mais aberta de capitais. O pressuposto básico de todas elas é que a política deve ser substituída pelo “saber técnico” naquelas partes do Estado que, de acordo com esse critério, não devem interferir com as decisões “livres” do mercado. O que mencionamos acima demonstra que o neoliberalismo – que é, por sua vez, uma concepção ideológica, uma forma de fazer política e o modelo econômico que expressa os interesses dos capitalistas – segue vigente. O que explica, simples e claramente, porque o capital segue sendo o setor dominante e tem crescido enormemente nessa etapa em relação às classes subordinadas. Ou, dito de maneira mais direta: há um aprofundamento do domínio do capital sobre o trabalho na etapa atual. Os governos da FA cortam suas raízes com o programa histórico quando assumem que o Estado não tem recursos para investir, que não existe poupança no setor privado nacional e que a única fonte de recursos para o crescimento é o investimento estrangeiro. Daí em diante, o problema é como atrair os investidores forâneos, os quais exigem pôr à “disposição” de seu capital os recursos naturais potencialmente mais rentáveis e, complementarmente, garantir os direitos de propriedade e de menores custos fiscais e salariais possíveis. O neodesenvolvimentismo é a fórmula progressista para aprofundar o capitalismo. Deve-se notar, também, que a classe trabalhadora tem contradições internas importantes entre a luta por objetivos programáticos históricos e a preservação de benefícios – às vezes os menores – obtidos destes governos (direitos trabalhistas, condições de trabalho e melhorias salariais). Como contrapartida, a luta pelo socialismo ficou como uma “retórica rêmora” que acompanha e convive com a luta cotidiana para manter o obtido dentro do sistema capitalista. A Frente Ampla se institucionalizou e aceitou as regras do sistema A Frente Ampla no governo não se propôs em nenhum momento aplicar políticas anti-imperialistas e antioligárquicas, menos ainda anticapitalistas. Longe no tempo ficou a proposta do general Líber Seregni, líder histórico da Frente Ampla já citado na introdução desse artigo. Com efeito, as definições programáticas foram moderadas: primeiro, de forma ambígua, para se aproximar de setores moderados; depois, frontalmente, para obter o aval dos senhores do “mercado”. Com esse objetivo se aceitaram quatro princípios: a) a manutenção e o aprofundamento de uma ordem

constitucional e legal favorável ao capital; b) a “política” não deve interferir nas decisões do livre mercado; c) a primazia da democracia representativa sobre a participativa; d) o compromisso de garantir a alternância política, renunciando aos processos de transição ao socialismo. Quando os governos da FA assumem em sua prática, a partir de 2005, ditos “princípios” e impulsionam a humanização gradual do capitalismo, renunciam – de fato – aos objetivos históricos da esquerda. Os três governos da FA, com suas matizes e diferenças, inscreveram-se dentro das variadas opções de institucionalidade capitalista para administrar a crise. Renunciaram a seus objetivos fundacionais, assumiram as reformas de “segunda geração” do Banco Mundial como se fossem um programa de superação do neoliberalismo e trataram de atenuar os males do capitalismo sem enfrentá-lo como sistema. As mudanças são fortes no plano eleitoral – com reiteradas vitórias nacionais e estaduais –, mínimas ou nulas no ideológico, porém, no econômico e institucional, aprofunda-se o capitalismo. Como consequência, não se produziram mudanças significativas no sistema de dominação, nem sequer se avançou nessa direção. Durante quase uma década, os preços das matérias-primas que exporta o país tiveram preços muito mais altos que em períodos anteriores, e isso possibilitou um aumento significativo dos recursos de que dispunha o progressismo para financiar a conciliação assimétrica de classes. A queda dos preços das matérias-primas, a recuperação do valor relativo do dólar – com as consequentes desvalorizações – e a retração da entrada de capitais afeta economicamente e pode desestabilizar politicamente o atual governo da FA. Há uma tendência ao descenso da atividade econômica: primeiro desaceleração, agora estagnação e, se não se tomam as medidas adequadas, recessão. Em contextos críticos, como os assinalados, podem cair as rendas reais dos trabalhadores e aposentados e reduzir os recursos destinados aos serviços públicos e a políticas assistenciais dirigidas aos setores mais desprotegidos, o que provoca uma luta distributiva entre trabalho e capital e o crescente empobrecimento de setores sociais que dependem de subsídios do Estado. Isso gera condições objetivas para a agudização da luta de classes, porém não existem condições subjetivas tais como consciência, organização e direção para pôr em questão o domínio do capital. A situação é particularmente complexa, porque o que restou de progressismo, depois da perda de governo na Argentina (derrota eleitoral), Brasil (destituição ilegítima de Dilma) e Equador (o giro à direita do novo presidente Lenín Moreno), deve enfrentar uma agudização das agressões imperialistas – por diversos métodos – para retirá-los das posições de governo. O objetivo principal e imediato segue sendo o governo da Venezuela – o que mais esforços fez para fixar um horizonte socialista e uma integração regional anti-imperialista –, tratando-o de isolá-lo internacionalmente, ao mesmo tempo que se desenvolve uma massiva campanha midiática buscando criar condições para legitimar todo tipo de confrontação interna e/ou agressão externa.

Em qualquer caso, não se pode ignorar que as derrotas eleitorais, a ofensiva do capital e as agressões imperialistas têm sido facilitadas, em maior ou menor medida, por insuficiências internas, tais como: o burocratismo, a corrupção, a luta pelo poder e, fundamentalmente, por profundos desvios ideológicos. Tampouco pode-se desconhecer que não se logrou a transformação da base produtiva e que aumentou a reprimarização, a estrangerização e a vulnerabilidade de nossas economias. Todo este processo se enquadra dentro de uma ofensiva estratégica do capital – que leva décadas – para instaurar um modelo de acumulação que lhe permita aumentar a decaída taxa de lucro e transladar os custos das sucessivas crises aos trabalhadores dos países periféricos. Para isso necessita: a) reduzir ao mínimo as fronteiras e as regulações econômicas por meio de tratados de livre comércio e de proteção de investimentos cada vez mais invasivos e lesivos à soberania nacional; b) aplicar políticas de ajuste para baixar os custos do Estado e da mão de obra com políticas restritivas de diversos tipos. Os limites do progressismo e as condições para sua remoção ficaram estabelecidos quando se aceitaram as instituições políticas e econômicas do sistema capitalista. A ofensiva atual para substituí-los por forças políticas totalmente submetidas aos desígnios do capital se explica, em grande medida, porque os governos progressistas têm contradições internas importantes e não garantem o cumprimento dos objetivos econômicos e geopolíticos dos Estados Unidos. O acesso ao governo, para os setores de esquerda, era um caminho que permitiria acumular forças para avançar até um horizonte socialista. Não foi assim, seguramente, porque as classes dominantes mantiveram o poder que vem da propriedade dos meios de produção e da hegemonia mundial do neoliberalismo. Cabe perguntar-se, então, em que medida esses governos aproximam, estancam ou inclusive aleijam as classes dominadas da possibilidade de realizar transformações estruturais a favor do trabalho e contra o capital. Essa é a questão que julgará a história. A modo de conclusão Se se reconhece que a caracterização dos governos da FA é correta, torna-se necessário avaliar quais são os desafios e limites atuais. Um primeiro desafio é, sem dúvida, a crise mundial que segue se aprofundando. Vale a pena recordar que as ditaduras militares foram removidas nos anos 1980, no escopo de uma grande crise internacional, a da dívida; os governos que implementaram o Consenso de Washington foram derrotados politicamente no marco da crise do começo do milênio.

O governo uruguaio, por sua parte, enfrenta uma redução dos valores e dos preços das exportações, a queda do IED em 46% entre 2013 e 2015 e um provável aumento da taxa de juros internacional. As contradições entre o capital e o trabalho vão se agudizar, porque os empresários reivindicarão e exigirão recortes no gasto público, redução de impostos e flexibilização trabalhista. Não se pode esquecer que o aprofundamento da crise não é somente uma destruição de capitais, é também um aumento da superexploração dos trabalhadores para poder evitar, ou ao menos minimizar, a queda na taxa de lucros. Será muito difícil à FA demonstrar que os resultados da crise são independentes de sua política econômica; exagerando, poder-se-ia dizer que, para uma boa parte da população, vale o ditado italiano: “ piove, porco governo ”. ³¹⁴ Neste caso, também, a crise encontra o país em um processo de aprofundamento da dependência e da vulnerabilidade social, o que não é algo menor. Dizemos aprofundamento da vulnerabilidade social, porque estes governos gastaram muitos recursos em políticas assistencialistas que, como tais, não se sustentam quando a crise reduz a renda do Estado. As pessoas beneficiadas pelo assistencialismo seguirão sendo tão vulneráveis como antes; é pouco provável que algo mude, uma vez que essa população carece de formação e de oportunidades de trabalho – faltas geradas pelo desenvolvimento de matrizes produtivas inclusivas –, não tendo sido promovida nova inserção social. Hoje somente superam a linha da indigência ou da pobreza por um subsídio econômico que em nada muda o essencial de suas vidas. Um segundo desafio é a ofensiva dos Estados Unidos buscando o controle da América Latina por meio de governos totalmente confiáveis e permeáveis a suas decisões. Os governos progressistas como a FA – com suas contradições internas e seus discursos internacionais ambíguos – não garantem a estabilidade que requer o capital transnacional, nem os objetivos geopolíticos dos Estados Unidos. Um terceiro desafio é superar a atual exaustão da FA, uma força política que se encontra sem programa de transformações para poder avançar em um processo redistributivo, em uma nova matriz produtiva e em uma proposta de organização social que consolide sua base popular. Para mudar essa situação, deveria fazer um giro à esquerda, assumindo um novo programa que, necessariamente, a levaria a uma confrontação com o capital que se tem evitado de múltiplas maneiras. Com efeito, os governos da FA têm-se caracterizado por uma política de conciliação de classes, que permitiu melhorar as rendas reais dos trabalhadores, ainda que em termos relativos, já que as rendas do capital aumentaram mais e se aumentou a concentração da riqueza acumulada. Com a agudização da crise, a FA tem perdido possibilidades reais de manter essa política e faz o peso do ajuste estrutural cair sobre os trabalhadores. Por um lado, “pauta salarial nominal” (reajuste de salário abaixo do nível da inflação), redução do orçamento público na área social e aumento do imposto de renda sobre os trabalhadores; por outro lado, impulsiona uma abertura total da economia por meio de um tratado de livre comércio (TLC) de nova geração com o Chile (4 de outubro de 2016), uma proposta de TLC

com a China (que não avançou por rechaço da Argentina e do Brasil) e a solicitação de ingresso na Aliança do Pacífico, como Estado associado (30 de junho de 2017). Nesse contexto, parece que a tarefa imediata dos trabalhadores organizados e da esquerda uruguaia – dentro e fora da FA – é resistir às políticas que impulsionam setores majoritários dentro do governo frenteamplista. Isto implica tratar de deter os ajustes fiscais e salariais, ao mesmo tempo evitando a abertura indiscriminada do país aos interesses do capital transnacional, seja por meio do investimento estrangeiro direto seja de tratados de livre comércio e proteção recíproca de investimentos. Adendo (dezembro 2018) Poderíamos utilizar este espaço de atualização para registrar notas do cenário político, tais como: a renúncia do vice-presidente da República, questionado por falsificar um título universitário e realizar atos de corrupção que estão sendo julgados em âmbito penal; a disputa interna acerca de quem deve ser o candidato da FA à Presidência da República; o permanente retrocesso programático expressado no programa comum cada vez mais inserido na lógica do sistema. Poderia indicar também que foi assinado um tratado de livre comércio com Chile, aceitando regras favoráveis ao capital da Aliança do Pacífico, ou que se assinou um contrato com a UPM ³¹⁵ para construir uma nova megafábrica de celulose sob condições impostas pela empresa, que incluem um ponto assombroso: ainda que o país construa a gigantesca infraestrutura que exige, a empresa se reserva o direito de não realizar nenhum investimento. Todavia, preferimos destacar que, no XIII Congresso da PIT-CNT [Plenario Intersindical de Trabajadores – Convenção Nacional de Trabajadores] (24 e 25 de maio de 2018), realizado em um contexto internacional que se caracteriza pelo avanço dos processos de reestruturação capitalista impulsionados pelos governos de direita e ultradireita para ampliar a superexploração dos trabalhadores, o ponto de debate foi: a existência ou não de um bloco social para as transformações, integrado, fundamentalmente, pela Frenta Ampla e a PIT-CNT que se contrapõe ao projeto de “restauração conservadora” da direita. Debate absolutamente lógico, levando em conta que, nos governos da FA, existiu e existem diferenças muito claras entre seus múltiplos setores a respeito de temas cardinais, tais como: o papel do Estado; a inserção internacional; os megaempreendimentos estrangeiros; a matriz produtiva a se desenvolver; a política de impostos etc. De fato, para além de intenções e justificativas, há setores que defendem basicamente os interesses do capital e se apegam a seu projeto. Outros setores, que possuem projetos de maior alcance programático, não têm capacidade e/ou força para lograr que suas posições se reflitam no modelo de acumulação atual e nas correspondentes políticas econômicas. O relevante a assinalar é que os interesses estratégicos do capital, basicamente transnacional, predominaram no programa estrutural.

Se atentarmos ao apontando anteriormente, esse chamado “bloco das transformações” inclui setores que defendem os interesses do capital e que predominaram na condução econômica do país. Significa, então, que rechaçar a “restauração conservadora” não implica, como contrapartida, o apoio irrestrito ao chamado “bloco político social das transformações”, como se fosse uma força homogênea cujo objetivo é defender os interesses dos trabalhadores. Mais ainda tendo em conta que não existe possibilidade de mudar a correlação de forças no interior da FA, em que predomina a concepção de que é possível alcançar avanços sociais sem enfrentar o capital, em um projeto de conciliação de classes que tem demonstrado seus limites e fracassos em todo o continente. Deve-se destacar que tanto os que sustentam que existe um bloco social para as transformações, como aqueles que, questionando dita caracterização a partir da independência de classe, reconhecem que o capital “vem contra nós, para liquidar as conquistas... vem contra tudo o que temos ganhado como trabalhadores ao longo dos anos de luta, entre outros, direitos trabalhistas, liberdades sindicais, formalização do trabalho e aumentos salariais”. Dito isso, reconhecendo que, para preservar o conquistado pela classe trabalhadora, existem múltiplas dificuldades derivadas das características do país – pequeno, periférico, exportador de bens primários, dependente da evolução dos preços internacionais –, inserido em um Mercosul onde governa a ultradireita e em um contexto mundial, continental e regional capitalista e neoliberal, salvo mínimas exceções. Análise de uma derrota esperada (dezembro 2019) No primeiro turno das eleições presidenciais, em 27 de outubro de 2019, o candidato do Partido Nacional, Luis Lacalle Pou, obteve uma votação de 28,6%, e o candidato da Frente Ampla, Daniel Martínez, alcançou 39%. Dado que a legislação eleitoral exige, para ser eleito em primeiro turno, 50% dos sufrágios emitidos (incluindo votos brancos e nulos), convocou-se o segundo turno. Na mesma noite de 27 de outubro, deram seu apoio público ao candidato da direita no segundo turno os líderes da oposição: Ernesto Talvi, do Partido Colorado, com 12,3% dos votos; o general na reserva Guido Manini Ríos, do Cabildo Abierto, com 11%; Pablo Mieres, Partido Independente, 1%; e Edgardo Novick, Partido de la Gente, 1%. Em 5 de novembro, a coalização “multicolor” de cinco partidos assinou um documento conjunto, o “Compromisso pelo País”, ³¹⁶ assinalando que representavam 53% dos votos emitidos, detinham 56 cadeiras na Câmara de Deputados (integrada por 99 congressistas); alcançaram dezessete cadeiras no Senado (integrado por trinta senadores e o vice-presidente da República). Se no segundo turno (24 de novembro) todos os votantes da coalizão o tivessem apoiado, Lacalle teria obtido mais de 50% dos votos. Porém o resultado foi 48,71% contra 47,51%, o que implica uma mudança substancial de preferências. Cabe destacar que, quatro dias antes da eleição, as pesquisas estimavam uma diferença entre 5 a 7%, mas o resultado foi de somente 1,2%.

A redução da diferença se explica por três razões. Duas delas se referem a técnicas de campanha: passou-se dos atos massivos para a busca de votos pessoa por pessoa; e a campanha para trazer frenteamplistas do exterior. A terceira, politicamente a mais importante, foi a ação de Guildo Manini Ríos, ³¹⁷ senador eleito por Cabildo Abierto, partido da corporação militar: ele dirigiu um vídeo ³¹⁸ às tropas identificando a Frenta Ampla como um inimigo das forças armadas e pedindo que não lhe votassem. A esta tática se somou um comunicado do Centro Militar, ³¹⁹ típico da Guerra Fria, no estilo Bolsonaro, que chama a extirpar o marxismo, assumindo que a Frente Ampla é uma força marxista. Vale a pena considerar, nesse contexto, as afirmações de uma alta autoridade das Forças Armadas brasileiras: “Jair Bolsonaro não é pura ideologia, por trás de tudo isso está a cúpula das Forças Armadas construindo um presidente próprio, encarregado de impor o que se denomina uma ‘nova democracia’. Esta consistirá em um programa político ultraconservador e um econômico ultraliberal, com os condimentos de uma participação ativa dos militares na vida política e a missão de arrancar pela raiz a esquerda que engana a sociedade”. ³²⁰ Também se difundiu uma mensagem de Whatsapp enviado por um comando autodenominado “Barneix” em que ameaçam os soldados: “Sabemos quem são e contamos com seu voto e de sua família para salvar a Pátria. É uma ordem. As ordens se acatam e o que não o faça é um traidor. Sabemos como tratar os traidores. […] Começamos a retornar”. ³²¹ Para completar o panorama, o presidente do Centro Militar, que foi candidato a deputado pelo Cabildo Abierto, declarou que não se descartava que o que está se passando na região possa ocorrer no Uruguai, e que as Forças Armadas – que possuem “monopólio do uso da violência” – estão preparadas para atuar. Essa ação de membros da “corporação militar” gerou um rechaço da sociedade civil que se expressou não somente em surpreendente apoio à candidatura da FA, mas que também foi questionado por dirigentes políticos, movimentos sociais e jornalistas de todos os meios de comunicação. O novo cenário Apesar de apertado no segundo turno, o resultado final das eleições é que a coalizão de direita possui maioria parlamentária em ambas as câmaras e a Presidência do país, o que implica uma mudança quase total nos quadros do Poder Executivo. Uma diferença significativa entre a coalizão perdedora e a ganhadora é que a Frente Ampla nasceu em 1972 e tem múltiplos mecanismos para garantir o cumprimento das decisões (disciplina partidária); por outro lado, a coalização da direita é um agrupamento eleitoral, recém-constituído e sem nenhuma experiência comum de governo. Dentro da Frente Ampla, há uma mudança de voto para a esquerda: o Movimento de Participação Popular, que dirige José Mujica, possui 24 deputados e seis senadores; o Partido Comunista e seus aliados tem seis deputados e dois senadores; o Partido Socialista possui três deputados e um senador. Somados, são oito senadores de treze e 33 deputados de 42 da Frente.

Deve-se destacar, no entanto, que o partido da corporação militar obteve três senadores e onze deputados, pelos quais terão um peso fundamental dentro da coalizão “multicolor”, porque são a minoria que garantirá a maioria parlamentária. O Cabildo Abierto se inscreve no avanço, tanto em nosso continente, como no mundo, dos partidos de ultradireita, profundamente regressivos e desestabilizadores da democracia. Um dos pontos mais relevantes do novo cenário é a modificação substancial da inserção geopolítica do paí s. O novo governo afirma que “a defesa da democracia e dos direitos humanos no nível regional será promovida no marco da OEA e de todas aquelas instâncias que buscam reafirmar tais objetivos (por exemplo, o Grupo de Lima)”. ³²² Ele almeja impulsionar uma inserção econômica internacional “livre de condicionamentos ideológicos” e aponta a priorização do acordo de Associação Estratégica com a União Europeia, da flexibilização do Mercosul, para possibilitar a assinatura de tratados de livre comércio com terceiros países, sem a necessidade do aval dos países membros, e das relações com a Aliança do Pacífico. Por sua vez, se manterá a política de abertura ao investimento estrangeiro direto e se continuará com a construção da questionada fábrica da UPM, sobre o rio Negro. Pretende-se aumentar o investimento (basicamente estrangeiro) por meio de parcerias público-privadas e meio da modificação de regime, “com o objetivo de reduzir prazos legais, eliminar superposições e custos burocráticos, aumentar os atrativos para investir”. ³²³ Do ponto de vista macroeconômico, planeja-se um forte ajuste fiscal e propõe-se reduzir o gasto e não aumentar impostos. Isto reduzirá, entre outros, o pessoal que possui vínculos trabalhistas diretos com o Estado e o número de trabalhadores terceirizados que se contratam através de empresas e ONGs. O programa também prevê a elaboração de um orçamento “base zero”, que implica não aumentar gastos discricionais, aqueles que dependem unicamente da vontade do governo (verbas, investimentos, quantidade de pessoal etc.). A assistência financeira ao sistema de segurança social será reduzida por meio de “reformas do regime de aposentadoria por solidariedade intrageracional administradas pelo Banco de Seguridade Social, bem como a melhoria da poupança individual”. ³²⁴ Estas medidas implicarão perdas na quantia do benefício dos trabalhadores que se aposentem no futuro. Para reduzir o custo país e alcançar melhoras na competitividade de preços, levar-se-á adiante um processo de desvalorização que, como é óbvio, reduzirá o poder aquisitivo do salário e das aposentadorias. Os direitos dos trabalhadores estão em questionamento, uma vez que: será eliminada a estabilidade dos postos de trabalho no setor privado (extensão do direito de greve); tentar-se-ão reduzir o conteúdo e as prerrogativas dos Conselhos de Salários; pretende-se, ademais, regulamentar o direito de greve e exigir pessoa jurídica dos sindicatos.

Em essência, poderíamos sustentar que o “Compromisso pelo País” e os programas dos partidos que integram a coalizão da direita se alinham com os objetivos da Câmara de Indústria do Uruguai [Camara de Industrias del Uruguay]. ³²⁵ Sobre isso recomendamos ver a análise crítica que apresentamos no semanário Voces . ³²⁶ As responsabilidades do progressismo Existem múltiplos eixos de análises para tratar de explicar o sucedido: erros na estratégia eleitoral, maus candidatos, características da campanha etc; os meios de comunicação massivos impuseram à população uma campanha favorável à direita; perdeu-se o peso dos grupos da FA que competiam pelo centro político com os partidos tradicionais e implosão da Frente Líber Seregni; as classes médias pagaram pelo ajuste fiscal do terceiro período de governo (2015-2019) e os deserdados do sistema que, na necessidade de sobreviver a cada dia, buscam a proteção dos “poderosos”, sem importar o partido, e que foram os mais afetados pelo estancamento da economia e a perda de empregos. Todas as razões assinaladas possuem uma parte da explicação, mas, ao nosso entender o fator fundamental é que a Frente Ampla fez um movimento ao centro deixando de lado seu programa . Recordemos que, no contexto de uma importante crise econômica, a Frente Ampla alcança o governo em 2004 e se mantém em 2009 e 2014, tendo sempre maiorias parlamentárias. No processo para ascender ao governo, a FA se esqueceu de seu programa histórico de transformações e, no contexto de uma estratégia “realista”, incluiu uma ampla política de alianças para captar votos do centro político. No governo, ela não se colocou, em nenhum momento, a necessidade de aplicar políticas anti-imperialistas e antioligárquicas, não apenas como prática sociopolítica limitada por uma determinada correlação de forças, mas também como apoio ideológico para suas ações. As definições programáticas foram-se diluindo, primeiro, de forma ambígua, depois, frontalmente, para obter o aval dos senhores do “mercado”. Os três governos da FA, com suas matizes e diferenças, inscreveram-se dentro das variadas opções de institucionalidade capitalista para administrar a crise. Renunciaram a sua luta contra o neoliberalismo e assumiram as reformas institucionais de “segunda geração” do Banco Mundial como se fossem um programa superador do neoliberalismo. As mudanças são fortes no plano eleitoral, mínimas ou nulas no ideológico, mas na economia e no institucional se aprofunda o capitalismo dependente. O terceiro governo tratou de administrar a queda dos preços internacionais, o estancamento produtivo, o aumento do déficit fiscal com um ajuste fiscal gradual sobre o salário direto e indireto dos trabalhadores, sem afetar o capital. De fato, a modificação do ciclo econômico mundial e seu impacto no preço das matérias-primas provocou uma queda global dos investimentos no país. As políticas de conciliação de classes (social-democrata) requerem recursos para atender os interesses do capital e do trabalho. Até 2014, mantiveram-se com dificuldades, mas depois, o ajuste afetou fundamentalmente os trabalhadores e não o capital.

A inseguridade e o crescimento dos delitos sobre as pessoas e a propriedade se transformaram em um problema muito importante. Para além do fato de que a população uruguaia está em melhores condições de segurança que outros países do continente, o que as pessoas comparam é sua situação atual à sua situação anterior e, objetivamente, ela piorou. Não foi feita nenhuma política contra o capital transnacional, pelo contrário, ele foi favorecido amplamente (lei de promoção de investimentos, zonas francas, liberdade absoluta para mover capitais). Tampouco se fizeram políticas de preservação do meio ambiente: as cianobactérias contaminam os rios e as costas como consequência dos fertilizantes que aumentam os lucros do agronegócio. Por último, e fundamental, não houve luta ideológica contra os princípios e valores do sistema socioeconômico vigente . Essa falência é uma responsabilidade compartida, como aponta Rubén Montedonico: “A FA, da mesma forma, cortou as correntes de transmissão que a ligavam com suas bases e passou a ser uma mutualidade cupular, em que o principal se debatia entre líderes; deve-se acrescentar a escassez – em geral – de uma arquitetura classista da central sindical e do papel secundário da universidade pública”. ³²⁷ Bibliografia do autor sobre o tema ELÍAS, Antonio. “Uruguay: un gobierno en disputa en el marco de la globalización neoliberal”. In: Pensamiento y acción por el socialismo. América Latina en el siglo XXI. Buenos Aires: Fundación Investigaciones Sociales y Políticas, 2005. __. “Ante la expansión capitalista y la retórica progresista: una agenda de cambio institucional”. In: ¿Hacia dó nde va el sistema mundial? Impactos y alternativas para América Latina y el Caribe. Buenos Aires: Redem/Fisyp/ RLS/Clacso, 2007. __. “Uruguay: un gobierno en disputa”. In: Gobiernos de Izquierda en América Latina. Un balance político. Bogotá: Ediciones Aurora, 2008. __. “Uruguay: la inserción internacional en disputa”. In: Economía mundial, corporaciones transnacionales y economías nacionales . Buenos Aires: Clacso Libros, 2009. __. “El proyecto del capital, efectos y alternativas”. In: La crisis mundial y sus impactos en América Latina. México: Redem/la Benemérita Universidad Autónoma de Puebla, 2009. __. “La ‘izquierda’ progresista y el proyecto del capital”. In: La ofensiva de la derecha en el cono sur . Asunción: Base IS/RLS, 2010. __. “Frente Amplio: 20 años sin proyecto histórico”. In: La izquierda latinoamericana a 20 añ os del derrumbe de la Unión Soviética . La Habana: Ocean Sur, 2012.

__. “Uruguay: la ‘izquierda’ progresista y el proyecto del capital”. In: América Latina en disputa. Reconfiguración del capitalismo y proyectos alternativos. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia, 2012. __. “Uruguay: la ofensiva del capital y sus impactos”. In: Desarrollo y crisis del capitalismo. México: Benemérita Universidad Autónoma de Puebla/ Universidad Nacional Autónoma de México, 2013. __. “La ofensiva del capital y el papel de los gobiernos progresistas en el Cono Sur”. In: América Latina en medio de la crisis mundial. Trayectorias nacionales y tendencias regionales. Bogotá: Clacso/Universidad Nacional de Colombia, 2014. __. “Uruguay en su laberinto: la inserción económica internacional en disputa”. In: Letras e ideas del Uruguay. La Habana: Casa de las Américas, 281, 2015. _. “Uruguay: el proyecto del capital transnacional se impuso al programa de cambio social”. In: La experiencia de los gobiernos progresistas en debate: la contradicción capital trabajo. Montevideo: Cofe/Clate, 2017. Bibliografia geral SEREGNI, Líber. “Discurso pronunciado el 18 de julio de 1972”. In: WETTSTEIN, Germán. La autoridad del Pueblo . México: Mex-Sur Editorial, 1982. ³⁰⁵ Antonio Elías é mestre em Economia e docente na Universidade da República de Uruguai (1985-2017); diretor do Instituto de Estudos Sindicais Universindo Rodríguez; integrante da Rede de Economistas de Esquerda do Uruguai (Rediu); vice-presidente da Sociedade Latino-americana de Economia Política e Pensamento Crítico (Sepla). É membro da Rede de Estudos da Economia Mundial (Redem), da Rede de Artistas e Intelectuais em Defesa da Humanidade e do Grupo de Economia Mundial da Clacso. ³⁰⁶ No original, Congreso del Pueblo . ³⁰⁷ No original, Convención Nacional de Trabajadores . ³⁰⁸ O Estado de bem-estar foi sendo construído desde a primeira década do século XX sob o impulso do presidente José Batlle y Ordóñez, completando suas conquistas até meados do século passado. O termo “batllismo” se refere a este presidente e suas políticas sociais e trabalhistas. ³⁰⁹ O MLN ingressa formalmente na FA em 1989 e é o núcleo fundamental do Movimento de Participação Popular, a força frenteamplista mais votada em 2004 e 2009. ³¹⁰ Líber Seregni, Discurso pronunciado el 18 de julio de 1972 apud Germán Wettstein. La autoridad del Pueblo , p. 131 (México: Mex-Sur Editorial, 1982). ³¹¹ Reformas conduzidas pelo Banco Mundial, desde 1997, quando publicou seu estudo O Estado em um mundo em transformaçã o . Caracterizam-se

pela criação e/ou aperfeiçoamento de instituições favoráveis ao “livre” mercado, ao investimento estrangeiro direito, à circulação mais aberta de capitais. O pressuposto básico de todas elas é que a política deve ser substituída no âmbito econômico pelo “saber técnico”. Assim se desenvolvem e se implementam “agências autônomas”, com autoridades independentes dos governos de turno: as mais notórias são os bancos centrais e as unidades reguladoras. Negam a intervenção do Estado, mas intervêm muito frequentemente para desenhar e implementar mudanças institucionais favoráveis ao capital. ³¹² Órgãos de integração tripartida – trabalhadores, empresários e o Estado – criados por lei, que, mediante o mecanismo de negociação por setor, estabelece salários-mínimos por categoria e outros benefícios. ³¹³ A lei de fórum sindical protege de forma ampla os trabalhadores e suas organizações contra todo ato antissindical: todos aqueles que prejudiquem ao trabalhador e suas organizações no exercício da atividade sindical ou que lhes neguem injustificadamente as facilidades ou garantias para o desenvolvimento da ação coletiva. Por conseguinte, podem ser atos antissindicais, entre outros: demissões, transferências, adiamento de promoções, descriminação de salário, envio discriminatório ao segurodesemprego, mudança de tarefas, redução de salário e horário etc. ³¹⁴ “Chove, porco do governo”. Significa que, quando o momento é ruim, tudo será creditado como culpa do governo, até mesmo o que não tem a ver com decisões políticas, como a chuva. Tradução livre. ³¹⁵ Empresa finlandesa de celulose. ³¹⁶ Comprimisso por el país . Nov. 2019. Disponível em: https:// partidocolorado.uy/documentos/compromiso.pdf. Acesso em: 5 jul. 2020. ³¹⁷ Comandante em Chefe das Forças Armadas desde 2 de fevereiro de 2015 até 12 de março de 2019, quando foi destituído pelo Presidente da República, depois de insubordinar-se ao criticar a Justiça civil e o Poder Executivo, ocultando informação que incriminava um dos principais assassinos e torturadores da ditadura cívico-militar (1973-1984). ³¹⁸ Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=x8Qx5ewUqGs. Acesso em: 5 jul. 2020. ³¹⁹ Disponível em: https://www.martes.com.uy/comunicado-centro-militar. Acesso em: 5 jul. 2020. ³²⁰ Marcelo Falak. “Bolsonaro, un líder construido en pos de un nuevo proyecto de poder militar”. Ámbito , Mundo, 6 oct. 2018. Disponível em: https://www.ambito.com/bolsonaro-un-lider-construido-pos-un-nuevoproyecto-poder-militar-n4035789. Acesso em: 5 jul. 2020.

³²¹ “Fiscalía investiga amenaza del Comando Barneix que ‘llegó a miles’ previo al balotaje”. El Observador , Nacional, 28 nov. 2019. Disponível em: https://www.elobservador.com.uy/nota/fiscalia-investiga-amenaza-delcomando-barneix-que-llego-a-miles-previo-al-balotaje-20191128113550. Acesso em: 5 jul. 2020. ³²² Partido Nacional. Lo que nos une: programa de gobierno 2020/2025 , p. 30. Disponível em: https://lacallepou.uy/descargas/programa-degobierno.pdf. Acesso em: 5 jul. 2020. ³²³ Compromisso por el país , p. 13. ³²⁴ Partido Nacional. Lo que nos une , p. 88. ³²⁵ Disponível em: http://www.ciu.com.uy/. Acesso em: 5 jul. 2020. ³²⁶ Antonio Elías. “Contra el manifiesto del capital”. Voces , 7 jun. 2019. Disponível em: http://semanariovoces.com/contra-el-manifiesto-del-capitalpor-antonio-elias/. Acesso em: 5 jul. 2020. ³²⁷ Apud Antonio Elías. “Contra el manifiesto del capital”. Paraguai: o golpe de estado de classe de 2012 e o governo entreguista antinacional Cecilia Vuyk ³²⁸ Introdução O texto deste artigo foi concluído em julho de 2017 e tem como objetivo compartilhar: 1. os principais elementos da vitória popular e do governo de Fernando Lugo (2008-2012), o primeiro governo nacional da chamada transição democrática com participação de setores da classe trabalhadora; 2. os interesses da burguesia e do imperialismo que levaram ao golpe em 2012; e 3. as principais bases do atual governo antinacional liderado por Horacio Cartes, as quais serão aprofundadas pelo novo governo encabeçado por Mario Abdo. A partir disso, o capítulo visa colocar a perspectiva do projeto da burguesia e do imperialismo no país – assim como as disputas das diferentes facções –, a fim de projetar os desafios da classe trabalhadora paraguaia na conquista de um projeto de desenvolvimento nacional soberano e independente. Fim de qual ciclo? Muito se refletiu tanto nas organizações sociais e políticas quanto na academia em geral em torno do chamado “fim do ciclo progressista” na América Latina, com várias posições e análises em torno dele.

Consideramos fundamental contextualizar o período em que vivemos e compreender o processo do movimento do capital e da luta de classes nele, para enquadrar os processos e, a partir disso, afastar posições fáceis que limitam a análise colocando as linhas de base no início dos próprios governos progressistas, minimizando, assim, a compreensão materialista e histórica dos processos atuais e cenários futuros. Afastando-nos da concepção do suposto fim de um ciclo progressista, citamos Roberto Regalado, ³²⁹ que analisa três etapas principais de acumulação e desacumulação de forças da década de 1980 até o presente. O autor sustenta que […] os ideólogos e estrategistas de mídia a serviço do imperialismo fabricaram a noção de “fim do ciclo progressista”, segundo a qual a cadeia de eleições e reeleições de governos de esquerda e progressistas nesses e em outros países seria um parêntese no avanço da humanidade em direção ao reino eterno do neoliberalismo, isto é, que a noção de “fim do ciclo progressista” nada mais é do que uma reformulação da tese desacreditada do “fim da história”. ³³⁰ Analisando o processo de acumulação e desacumulação de forças, no marco dos processos de revolução e contrarrevolução, Regalado destaca três etapas. A primeira vai da segunda metade da década de 1980 até o final da década de 90, na qual ele argumenta que o fator determinante foi o acúmulo da necessária força social para derrubar os chamados governos neoliberais – caracterizados por políticas de ajuste, privatizações e cortes sociais – e ocupar espaços em governos locais e legislaturas nacionais, mas insuficientes para conquistar governos nacionais. Contextualiza essa primeira etapa no marco da “reestruturação do sistema de dominação continental, que buscou uma alternância eleitoral nos poderes do Estado restrita, exclusivamente, às forças neoliberais”. ³³¹ A segunda etapa situa-se entre o final da década de 1990 e 2000, marcada por um acúmulo de força social e política que possibilitou a eleição e reeleição de governos nacionais com presidentes/as chamados de esquerda e/ou progressistas, e o ataque do imperialismo e dos grupos da burguesia local deslocados do controle monopolista do Estado contra eles. A terceira e atual etapa, que o autor coloca a partir de 2009, é determinada pelo fluxo e refluxo da acumulação de força social e política, e causada pela combinação de “maior efetividade das estratégias reacionárias desestabilizadoras, e [pelo] aumento do custo político causado por erros e deficiências próprias”. ³³² Identificamos nesta fase o golpe de Estado em Honduras em 2009, no Paraguai em 2012 e no Brasil em 2016, juntamente com o triunfo de Mauricio Macri na Argentina em 2015, a perda de controle da Assembleia Nacional pelo Partido Socialista Unificado da Venezuela no mesmo ano e o triunfo do NÃO no referendo constitucional na Bolívia. Assim, os golpes de Estado e as derrotas eleitorais marcam a atual situação de desacumulação social e política, e de maior efetividade nas estratégias de desestabilização do imperialismo, que caracterizam esse terceiro e atual estágio.

Partimos deste marco para analisar tanto o governo de Fernando Lugo no Paraguai, no marco da segunda etapa caracterizada, como o golpe de 2012, o atual governo autoritário e antinacional e a resistência e luta das classes trabalhadoras do campo e da cidade, com suas projeções e desafios. Paraguai: a luta do povo contra os obstáculos ao desenvolvimento nacional O Paraguai, um país dependente no centro da América do Sul, com uma burguesia latifundiária local aliada ao imperialismo norte-americano e ao subimperialismo brasileiro, tem uma longa história de luta popular contra os obstáculos a seu desenvolvimento nacional. Da resistência dos povos nativos contra a colonização, que forçou os colonizadores espanhóis a incorporar elementos da cultura indígena para subordiná-los, ³³³ passando pela primeira revolução nacional democrática na América do Sul iniciada em 1811 e pela resistência à Guerra da Tríplice (Quádrupla) Aliança (1865-1870) e à ditadura civil-militar ³³⁴ (1954-1989), entre outros marcos, o povo paraguaio tem lutado contra a dominação estrangeira e o latifúndio, bem como contra o Estado colonial, e depois semicolonial, a serviço destes. No processo de revolução e contrarrevolução, após a revolução de independência nacional liderada pelo dr. José Gaspar Rodríguez de França no século XIX, baseada no campesinato paraguaio, o então imperialismo inglês, aliado e financiador do Império brasileiro, da nascente República Argentina e do Estado Oriental do Uruguai, gesta a Guerra da Tríplice (Quádrupla) Aliança ³³⁵ com o objetivo de destruir o Estado nacional que representa a burguesia nascente e o povo paraguaio e instalar um Estado representativo dos interesses do capital estrangeiro imperialista. Isso abre o período de recolonização nacional que continua até hoje. ³³⁶ A estrutura semifeudal é reconstruída após a guerra, tendo como base o latifúndio e o capital estrangeiro. Na década de 1970, no marco da Guerra Fria e das ditaduras civis-militares no Paraguai e no continente, ocorre um movimento de ajuste estrutural, com a consolidação da dependência paraguaia do Brasil – no contexto do processo de chegada do Brasil à fase subimperialista, marcada pela expansão da fronteira agrícola com a incorporação da soja, a instalação de empresas hidrelétricas binacionais com o Brasil e a Argentina (Itaipu e Yacyretá, respectivamente) e o endividamento do Estado paraguaio com monopólios financeiros internacionais, principalmente norte-americanos e brasileiros. ³³⁷ O papel, no projeto político-econômico dependente, dos principais partidos latifundiários no processo de recolonização, ajuste estrutural e continuidade dos obstáculos ao desenvolvimento foi e é fundamental. Um destes atores é a Associação Nacional Republicana (ANR), conhecida como Partido Colorado, grande partido fundado depois da Guerra de 1865-1870 por um setor da burguesia nacional aliado ao Brasil, no marco do processo de recolonização nacional e que está atualmente no poder. Na verdade, esteve no poder de maneira ininterrupta a partir de 1947 – até a vitória popular de 2008 – como partido do governo e responsável tanto pela ditadura militar (1954-1989) como pela chamada transição democrática após o autogolpe de 1989 – na qual entraram em ação os mesmos sócios do ditador Alfredo

Stroessner, de forma a preservar os interesses de classe antes que avançasse a luta popular contra a ditadura. Outro ator é o Partido Liberal Radical Autêntico (PLRA), conhecido como Partido Liberal, fundado também após a Guerra, depois da fundação do Partido Colorado, por outra facção da burguesia latifundiária e comercial com influência argentina – ligada ao imperialismo inglês –, no âmbito da disputa imperialista intraburguesa sobre a distribuição de terras públicas no país. O Partido Liberal, inicialmente, foi sofrendo rupturas na ditadura civilmilitar: ao passo que setores do partido concordavam com a ditadura e participaram dela como legitimação de sua fachada democrática, o setor de oposição à ditadura criava novos partidos – primeiro o Partido Liberal Radical e depois o Partido Liberal Radical Autêntico (PLRA), porém somente o PLRA permaneceu na transição. O processo de organização da classe trabalhadora, tanto no campo quanto na cidade, tem sido, em todo o quadro de resistência nacional desde a colonização até o presente, extremamente rico, com experiências históricas de grande importância tanto para o país como em nível internacional. Excede o objetivo deste artigo realizar uma recontagem e uma análise deste tema, mas não podemos deixar de destacar sua importância fundamental. A vitória popular e o governo de Fernando Lugo A vitória popular de 2008, com a ascensão de Fernando Lugo ao governo nacional, constitui um marco na história paraguaia, representando a derrota do Partido Colorado após 61 anos de governo ininterrupto (1947-2008). É também a primeira mudança do partido político no governo por via eleitoral e o primeiro governo com participação das classes trabalhadoras do campo e da cidade na chamada transição democrática. Esta vitória popular foi o produto do acúmulo de forças da classe trabalhadora, bem como de facções da burguesia e da pequena burguesia em oposição ao Partido Colorado, em um processo que, desde a resistência à ditadura civil-militar – e seus antecedentes históricos –, foi gerando experiências e aprendizagens na luta social, política e eleitoral, e levou à construção de uma alternativa unitária com a ação de várias forças políticas, catalisada pelo surgimento da liderança articuladora de Fernando Lugo. Soma-se a esse acúmulo um contexto favorável a uma grande erosão do Partido Colorado devido à crise política e econômica no país, agravada pelas disputas internas e pela tentativa de reeleição do então presidente Nicanor Duarte Frutos. Esta última conjuntura teve vários desdobramentos: gerou um amplo movimento democrático contra a reeleição, ³³⁸ além de ter sido alimentada por um ambiente internacional favorável, graças ao surgimento de governos progressistas na região ³³⁹ e por uma ampla aliança eleitoral com facções da burguesia latifundiária, comercial e financeira, cujos interesses estavam ameaçados pela continuidade do Partido Colorado no governo. A ferramenta eleitoral usada foi a Alianza Patriótica para el Cambio (APC), ³⁴⁰ composta pelo Partido Liberal Radical Autêntico e por partidos e organizações políticas, que foram em grande parte consolidados na Frente

Guasu. ³⁴¹ Ao final, a APC conseguiu uma ampla vitória eleitoral em 20 de abril de 2008, derrotando o Partido Colorado. O governo de Lugo representou a primeira alternância eleitoral na transição democrática que permitiu ampliar o plano da disputa com o surgimento de um governo próximo aos interesses populares e nacionais e com a participação de setores da classe trabalhadora, gerando possibilidades cada vez melhores para o trabalho de base e de massas. Ao mesmo tempo, como qualquer movimento contraditório da realidade, a alternância eleitoral permitiu fortalecer e oxigenar a democracia liberal e o sistema de dominação burguesa erguido sobre ela. A disputa pela liderança do governo e a governabilidade conservadora O primeiro ano de governo foi marcado, principalmente, pela disputa por sua direção entre os setores da burguesia – encabeçada por entidades patronais ligadas ao gado e à soja, o Partido Liberal e os partidos latifundiários graças a sua maioria no Congresso Nacional (ANR, PLRA, UNACE e PPQ) – ³⁴² e a classe trabalhadora – principalmente o movimento camponês, protagonista do movimento popular paraguaio. Ao longo de 2008, após a vitória, ambos os setores realizaram uma série de medidas de força, como marchas, ameaças de impeachment, “tratoraços” (mobilizações das entidades patronais ligadas à produção de soja que consiste em sair às ruas com tratores como mecanismo de protesto) pelas guildas de produção e ocupações de terra e mobilizações massivas pelo campesinato. Após um ano de tensões e disputas, os blocos de poder dentro do governo estavam consolidados, com os principais ministérios liderados pelos grandes partidos fundiários e pela burguesia (Finanças, Agricultura, Indústria, Interior, Obras Públicas, Justiça e Trabalho, Educação, entre outros) e outra parte importante deles por partidos e movimentos ligados a setores populares, articulados principalmente na Frente Guasu (Saúde, Relações Exteriores, Defesa, Ação Social, Infância, Habitação e Moradia, Juventude, Comunicações, Emergência Nacional). A burguesia conseguiu, no primeiro ano, frear medidas propostas pelo governo Lugo que representariam uma transferência do poder para o povo e tocariam nos interesses dos latifundiários, como o início da reforma agrária com vinculante protagonismo camponês (CEPRA), ³⁴³ o armazenamento de gergelim pelas próprias organizações camponesas com apoio do Estado, a regulação e o controle do uso de agrotóxicos, ³⁴⁴ a instalação de mecanismos de participação vinculante de organizações comunitárias nas políticas sociais, ³⁴⁵ a compra de terras para a reforma agrária, a contenção das máfias das indústrias farmacêuticas, ³⁴⁶ a nomeação de uma cacique indígena de esquerda na pasta indígena, ³⁴⁷ entre outros. Assim, estabelece-se uma governabilidade conservadora que não altera o esquema de poder da burguesia comercial e latifundiária e que não transfere poder ao povo, não sem que isso conduza a disputas e tensões que continuaram por todo o governo, até que a ascensão da mobilização das classes trabalhadoras do campo e da cidade levou a burguesia aliada ao imperialismo a perpetrar o golpe de Estado.

Principais políticas públicas do governo de Fernando Lugo Em um esforço de síntese, que por sua vez nos permite expressar a orientação do governo, colocamos de maneira geral quatro dos principais pontos que marcaram a gestão do governo Lugo em termos de políticas públicas, uma vez consolidada a governabilidade conservadora. Políticas sociais redistributivas e saúde gratuita Houve expansão das políticas sociais com a proposta de “reverter a dívida social histórica com os setores excluídos”. O Tekoporã (“bem viver”) foi um dos principais programas, consistindo na política de transferência monetária condicional (CCT) do Banco Mundial, iniciada no governo anterior, que passou de 13 mil famílias beneficiárias para mais de 100 mil em nível nacional. Da mesma forma, o governo instituiu pensões para idosos em situação de pobreza e ampliou a cobertura de programas de atenção a crianças, jovens e povos indígenas. Em dezembro de 2009, o governo de Lugo aprovou saúde gratuita, eliminando tarifas de consultas, aumentando serviços e disponibilizando uma grande maioria de medicamentos em instalações de saúde pública, com uma economia de 8 bilhões de guaranis para o público. Ampliou a estratégia de atenção primária à saúde de treze unidades de saúde da família (USF) para mais de setecentas. E em agosto de 2010 obteve a aprovação da Lei 4088/10, que declara educação inicial e secundária gratuita em escolas públicas. O Estado como agente do pacto social A “necessidade de recuperar o Estado do predomínio e da lógica do mercado” ³⁴⁸ foi outro eixo do governo que promoveu certas mudanças institucionais dentro da estrutura do Estado burguês. Isso não representou um impacto importante, mas marcou tanto o discurso público quanto a visão do Estado como agente do pacto social, fortalecido e reivindicado pelo governo, juntamente com políticas para buscar sua institucionalização e seu fortalecimento. Com esse discurso de recuperação e reivindicação do público como patrimônio de todos os cidadãos, e não propriedade privada dos gestores do atual governo, Lugo estimulou a entrada em cargos dentro do governo por meio de concursos de mérito e de uma política de profissionalização da burocracia estatal. Contudo, o pessoal com essa qualificação continuou a ser uma minoria marginal frente àqueles que ingressaram no serviço público como posições de confiança ou de indicação política. Integração latino-americana O posicionamento do Paraguai no cenário internacional como ator político e a priorização dos blocos de integração latino-americanos foram outros dos principais eixos. No marco de um cenário regional caracterizado pelo avanço dos governos progressistas, Lugo assumiu o governo com uma política regional que buscou maior autonomia do imperialismo norteamericano a partir do fortalecimento do bloco regional latino-americano, ³⁴⁹

com a promoção da Unasul e a criação da Celac. O Paraguai participou ativamente dos diferentes blocos regionais e promoveu posições conjuntas nas instâncias multilaterais em torno de reivindicações regionais históricas, como a recuperação das Ilhas Malvinas pela Argentina e o fim do bloqueio contra Cuba. Continuidade da estrutura econômica Com as ações descritas acima e retidas pela burguesia fundiária, o governo de Lugo não desenvolveu mudanças na estrutura agrário-pecuáriaenergética. Pelo contrário, esta foi ampliada e fortalecida, no marco de um cenário favorável à exportação de commodities, principalmente carne bovina e soja. O ano de 2010 marcou um crescimento recorde do PIB de 14,5%, principalmente devido ao importante avanço da fronteira agrícola e ao crescimento da produção agropecuária e da exportação. ³⁵⁰ Dependendo das necessidades do mercado internacional, o governo de Lugo, por meio do Ministério da Industria e Comercio (MIC) e Ministério das Obras Públicas e Comunicações (MOPC), promovia e encorajava a indústria maquiladora e de empresas de energia intensiva, assim como a mineração. ³⁵¹ De 2008 a 2012, o número de empresas maquiladoras cresceu de dezenove para 51, principalmente de origem estrangeira, com três quartos de suas exportações destinadas ao Brasil e à Argentina. Da mesma forma, com o Decreto 7.406/11, que prevê o fornecimento de energia barata para as empresas de energia intensiva, quatro empresas estrangeiras se instalaram no país – duas argentinas e duas brasileiras – para a produção de silício a ser exportado para a indústria aeronaval (principalmente brasileira). A promoção da atividade de mineração – principalmente ouro, urânio e titânio – veio da oposição no Congresso Nacional com a mudança da Lei de Minas em 2011 e pelo MOPC, graças às licenças de exploração. Não houve um grande debate e não foi dada atenção nacional a este assunto, no entanto, os avanços nessa pauta têm sido importantes e vêm se aprofundando ainda mais após o golpe de Estado e com o progresso da exploração de hidrocarbonetos. ³⁵² A esses quatro pontos, devemos acrescentar três elementos que, após o golpe de Estado, adquirirão maior relevância e serão fundamentais para compreendê-lo. O primeiro é a apresentação e aprovação da chamada lei antiterrorista, ³⁵³ apresentada pelo presidente Lugo ao Congresso Nacional com o apoio da Organização dos Estados Americanos e da Embaixada dos Estados Unidos e aprovada pelo Poder Legislativo. A lei tipifica o terrorismo no Código Penal paraguaio e estabelece importantes sanções por atos relacionados a ele. Foi aplicada pela primeira vez após o golpe de Estado. O segundo elemento a destacar foi a política econômica de não endividamento do Estado, não tendo o governo contraído dívidas ao longo do período. O terceiro elemento é o processo de privatização do aeroporto Silvio Petirossi, o principal aeroporto do país com sede em Luque, na entrada de Assunção, como ponta de lança do processo de privatização de bens e serviços públicos. O MOPC, sob o comando do PLRA, apresentou com o apoio da presidência o projeto de privatização do aeroporto – atualmente público – como o início de um processo de privatização de bens e serviços

públicos. Após as mobilizações de organizações sociais e partidos políticos de esquerda, o governo retirou o projeto e o processo de privatização foi interrompido. O projeto reformista A gestão do governo foi marcada por diferentes linhas políticas e de gestão de acordo com o setor que dirigia cada ministério. Apesar disso, o governo consolidou um discurso e uma prática que se enquadra no quadro dos chamados governos progressistas do período, os quais podemos caracterizar – no marco da análise latino-americana desses governos – como neodesenvolvimentista, ³⁵⁴ o que constitui a expressão do reformismo no estágio atual. O governo – através dos partidos nele inseridos – estabeleceu um projeto baseado na proposição de que a mudança da estrutura social – a revolução – pode ser desenvolvida gradualmente, dentro do marco institucional do Estado burguês, a partir das eleições, da gestão do Estado e do desenvolvimento de reformas – daí o nome reformismo. Este projeto reformista limitou o avanço das políticas de transferência de poder para o povo, que permitiriam construir uma hegemonia da classe trabalhadora para conquistar as mudanças necessárias, e projetou soluções para os grandes problemas como a terra, a educação, a saúde, entre outras, por meio de reformas e mudanças graduais. Essa proposta não atinge frutos reais, dado que as grandes mudanças necessárias à estrutura atrasada e dependente do Paraguai só podem vir da conquista do poder pelas classes operárias do campo e da cidade. Isso abre uma série de debates sobre o que poderia ser feito no âmbito do governo. Para isso é fundamental analisar não apenas qual a correlação das forças existentes na época, mas, principalmente, quais foram os projetos de cada um dos setores, para entender suas ações e sua projeção. O artigo pretende contribuir para esse debate, no qual ainda há pouca pesquisa e literatura desenvolvida, bem como poucos processos de avaliação e síntese, que são muito necessários. O golpe de Estado de 2012 Com base na análise das políticas governamentais, permanece a questão do porquê a burguesia aliada ao imperialismo norte-americano e ao subimperialismo brasileiro perpetrou o golpe de Estado. Para entendê-lo, devemos analisar o processo de organização e mobilização da classe trabalhadora, que, no auge da luta, começou a tocar os pontos centrais dos obstáculos ao desenvolvimento, especificamente o latifúndio e a dominação estrangeira erguida sobre o controle deste. O golpe de 2012 foi, portanto, um golpe não só contra o governo instalado em 2008, mas, principalmente, um golpe de Estado para impedir o crescimento da mobilização popular e os avanços na recuperação de terras ilegalmente usurpadas pelo capital estrangeiro. O auge da mobilização popular

Após o primeiro ano de disputa pela liderança do governo, marcado por mobilizações sistemáticas e massivas, e uma vez que a governança conservadora se consolidou, uma parte importante das organizações populares, majoritariamente próximas do governo, concentrou seus esforços na gestão institucional e nas eleições dos governos locais de 2010 (municipal), que não levaram aos resultados esperados. O reconhecimento do limite da gestão institucional, expresso como autocrítica pelas próprias organizações populares nos balanços subsequentes, e a ação das organizações camponesas que não estavam no âmbito da articulação do governo, levaram a um novo boom de mobilização popular, que começou com força em 2011 com ocupações massivas de terras para a recuperação destas e como impulso para a Reforma Agrária. Uma das principais ocupações foi a da fazenda 4036, no distrito de Ñacunday, na zona leste do departamento fronteiriço do Alto Paraná, executada por camponesas e camponeses sem terra, iniciada em abril de 2011. Essa ocupação maciça com mais de 10 mil camponeses e camponesas situaram o eixo da disputa e o debate público em torno da recuperação das “terras malhabidas ”, ³⁵⁵ grande maioria delas ilegitimamente apropriadas por pessoas ligadas à ditadura stronista, tanto paraguaias quanto brasileiras. No auge da mobilização social e da identificação da necessidade de fortalecer a luta e a mobilização contra o limite da gestão institucional para promover as mudanças necessárias, a Coordenadoria de Recuperação de Terras Malhabidas foi constituída no segundo semestre de 2011. Este foi o espaço unitário concebido em torno da recuperação das “terras malhabidas ” e que articulou as organizações camponesas, as centrais sindicais, os movimentos sem teto, estudantes urbanos, jovens, partidos e movimentos políticos. Em 25 de outubro de 2011, a Coordenadoria realizou uma mobilização que reuniu mais de 10 mil pessoas na capital do país e obteve a aprovação do Decreto n. 7.525/11, que regulamenta a Lei n. 2.352/05 de Segurança Fronteiriça, esta responsável por estabelecer que terras a cinquenta quilômetros da fronteira nacional não possam ser propriedade de estrangeiros. Com essa regulamentação, foram iniciadas as medições de terra ³⁵⁶ na área do Alto Paraná, começando em Ñacunday, para recuperação. Em 2012, ocorre a oitava ocupação das terras de Marina Kue, terras públicas destinadas à reforma agrária, mas usurpadas pela empresa Campos Morombi do político colorado Blas N. Riquelme, que a aluga ao capital brasileiro para a monocultura de soja transgênica. Esse auge da luta popular pela terra marcou o avanço em direção à recuperação de terras usurpadas por proprietários paraguaios e estrangeiros, tocando tanto o latifúndio quanto a dominação estrangeira que dele surgiu. Golpe de estado de classe defensivo Resumindo os vários elementos, podemos argumentar que o golpe de 2012 foi de classe e defensivo, executado pela burguesia aliada ao imperialismo

norte-americano e ao subimperialismo brasileiro a fim de conter a ascensão da luta popular e salvaguardar os interesses daquela. O medo da burguesia e do imperialismo era que, ante o fortalecimento da luta do povo e a falta de contenção eficaz pelo governo de Lugo, as classes trabalhadoras do campo e da cidade avançassem rumo a um levantamento geral contra o latifúndio, a dominação estrangeira e o Estado a serviço destes. No contexto internacional de crise do capital, o golpe também responde à necessidade do capital financeiro de expandir as políticas de desapropriação no país, como a flexibilização trabalhista, o endividamento do Estado e a privatização de bens públicos, retardados pela mobilização popular durante o governo de Lugo. O golpe foi realizado naquilo que poderíamos caracterizar como três atos. O primeiro foi o massacre executado sobre a Resistência Heroica dos lutadores e lutadoras de Curuguaty em 15 de junho de 2012, na oitava ocupação da terra de Marina Kue para sua recuperação para a reforma agrária. A partir da tentativa ilegal de despejo da ocupação por parte da Polícia Federal e do Ministério Público, com um contingente de mais de 350 tropas diante de aproximadamente sessenta camponeses que se encontravam na ocupação na época, se desdobraram uma série de eventos que deixaram um balanço de dezessete assassinatos – seis policiais e onze camponeses, dos quais sete foram comprovadamente executados extrajudicialmente –, vários feridos e torturados, doze presos políticos e mais de cinquenta processados. ³⁵⁷ As diferentes entidades, partidos e meios de comunicação da grande burguesia latifundiária iniciaram uma forte campanha pedindo o impeachment para destituir o governo. Graças à manipulação da figura constitucional do impeachment, desenvolveu-se o segundo ato do golpe, e o Congresso Nacional executou um julgamento político que, ilegalmente e ilegitimamente, destitui o presidente constitucional Fernando Lugo, violando todo o devido processo, e instalou um governo de fato liderado pelo golpista e ex-vice-presidente Federico Franco, com a aliança dos partidos políticos dos latifundiários e burgueses ANR, PLRA, UNACE, PPQ e PDP. Esse processo faz parte dos novos tipos de golpes, chamados de “golpes suaves”, que foram desenvolvidos na Venezuela em 2002, depois em Honduras em 2009 e posteriormente no Brasil em 2016. O golpe de Estado gerou mobilização e indignação nas classes trabalhadoras do campo e da cidade, organizadas ou não, bem como em setores da burguesia e da pequena burguesia, incluindo uma base importante dos partidos golpistas que não se sentiam representados pelas ações da burguesia. Houve mobilizações amplas, unitárias e sistemáticas de denúncia e resistência ao golpe de Estado, tanto na capital como em cidades do interior e no exterior. Após dez meses de governo de fato de Federico Franco, marcado pelo desmantelamento de grande parte das políticas públicas do governo Lugo, a racionalização de políticas em benefício de grandes proprietários e do capital estrangeiro e a pilhagem de bens públicos para benefício próprio e de seu grupo, além de grandes casos de corrupção até o momento não investigados, ocorreram as eleições nacionais em 21 de abril de 2013.

As eleições de 2013 constituem o terceiro e último ato do golpe de Estado, que o consumou após a eleição do novo governo encabeçado por Horacio Cartes e legitimado pelos diversos setores, tanto pela participação no processo dos partidos da oposição ³⁵⁸ como pela aceitação e pelo reconhecimento dos resultados. O projeto entreguista-antinacional As ações realizadas pelo governo liderado por Horacio Cartes demonstram o objetivo perseguido pelo golpe de Estado de 2012: tentar impedir o processo de ascensão da luta da classe trabalhadora no país e frear o fortalecimento das políticas de desapropriação do capital, nacional e principalmente estrangeiro. O governo de Cartes, representante de facções da burguesia latifundiária e financeira aliada ao imperialismo norte-americano e ao subimperialismo brasileiro, avançou no aprofundamento da estrutura de dependência baseada no latifúndio e no domínio estrangeiro – expresso na produção e extração de carne-soja-energia – ³⁵⁹ e fortaleceu o papel do capital financeiro no país com o processo acelerado de endividamento e privatização do Estado. Juntamente com esse processo de desapropriação, e para fortalecêlo diante da resistência popular, o governo ampliou as políticas repressivas e de perseguição, com um importante avanço da criminalização, perseguição social e violação sistemática das liberdades fundamentais, como o direito à livre expressão, manifestação e organização. Principais políticas antinacionais e entreguistas do atual projeto A realização de uma análise minuciosa de cada uma das políticas do governo antinacional excede o escopo do presente trabalho. Apresentaremos, então, uma análise dos principais pontos a serem destacados, a fim de compreender o processo de desapropriação e perseguição mencionado acima, bem como as frações de classe beneficiárias. Endividamento do Estado com o capital financeiro internacional O endividamento do Estado com o capital financeiro internacional é uma das principais políticas do governo antinacional, o que representa uma nova margem de dominação estrangeira, pouco aprofundada anteriormente em relação ao atual salto do endividamento. A exportação de capital estrangeiro e o endividamento dos Estados nacionais é uma das principais características da atual fase do capitalismo imperialista, e é um dos principais elementos de sujeição e dependência dos Estados.

O Ministério da Fazenda do Paraguai fez cinco emissões de títulos soberanos no valor de US$ 2 bilhões e US$ 880 milhões até junho de 2017 (MINISTERIO DE HACIENDA, 2017). A primeira emissão de títulos soberanos ocorreu no governo de Federico Franco depois do golpe de Estado. No governo liderado por Horacio Cartes, a primeira emissão, no valor de US$ 500 milhões, se deu pela Lei 4.848/13, a segunda, pelas leis 5.142/14 e 5.251/14, emitiram um total de US$ 1 bilhão, a terceira, pela Lei 5.386/15, emitiu US$ 280 milhões, a quarta, pela Lei 5.554/16, emitiu US$ 600 milhões, e a quinta, pela mesma lei, no âmbito do orçamento 2017, emitiu títulos no valor de US$ 500 milhões. No final de 2016, iniciando as disputas para as eleições gerais de abril de 2018, o Congresso Nacional – em sua maioria de oposição conjuntural ao Poder Executivo – modificou o valor da emissão de títulos soberanos propostos pelo Poder Executivo na Lei Orçamentária Geral de Despesas Nacionais para o período 2017, passando de US$ 558 milhões arrecadados pelo Executivo – 6,7% do orçamento para novos títulos e pagamento de juros sobre a dívida atual – para US$ 350 milhões . ³⁶⁰ Em uma ação inédita, demonstrando a importância fundamental do endividamento no novo governo, o Poder Executivo vetou a lei do orçamento geral para o ano de 2017, e passou a vigorar a lei do orçamento geral de gastos da nação de 2016, o que estabeleceu US$ 600 milhões para a emissão de títulos soberanos. Em 2016, o saldo da dívida externa somava US$ 4,813 bilhões, e a dívida interna, US$ 1,481 bilhão, totalizando US$ 6 bilhões. ³⁶¹ Assim, o governo Cartes triplicou a dívida externa em seus primeiros anos de mandato. Historicamente, a maior parte da dívida pública era conformada por empréstimos de organismos internacionais, o que mudou com o governo de Cartes graças ao aumento da emissão de títulos, que passaram, de 2013 a 2016, de 12% a 40,4%, sendo hoje o principal componente da dívida. As dívidas são acompanhadas por empréstimos de organismos multilaterais com 31,4% de dívida e, em menor escala, títulos domésticos (2,2%) e dívidas com agências bilaterais (4,5%). ³⁶² Setenta e cinco por cento da dívida é em moeda estrangeira, sendo 72% em dólares, 3% em ienes, 1% em outros e apenas 24% em moeda local. Mais da metade da dívida pública está nas mãos do setor privado (52%), sendo o setor financeiro privado norteamericano o credor de 39% da dívida externa. ³⁶³ Privatização de bens e serviços públicos As privatizações são outra etapa do projeto dependente ligado ao capital financeiro internacional, sendo os principais bens e serviços nacionais controlados por monopólios, principalmente estrangeiros. O projeto de privatização de bens e serviços públicos, denominado “parceria público-privada”, tem sido amplamente difundido pelo governo nacional, mas não conseguiu avançar de acordo com o inicialmente proposto, apesar de ser um dos pontos centrais de seu programa. Isso se deve, em grande parte, à luta de resistência desenvolvida pelos sindicatos e organizações camponesas e urbanas, bem como às disputas interburguesas sobre quem se beneficiaria das privatizações.

No primeiro trimestre à frente do governo, o Executivo apresentou ao Congresso – que aprovou com maioria composta pela ANR e pelo PLRA – a Lei n. 5.102/13 “Sobre a Promoção do Investimento em Infraestrutura Pública e Expansão e Melhoria de Bens e Serviços sob responsabilidade do Estado” (parceria público-privada – APP), ³⁶⁴ regulamentada em março do ano seguinte. Esta lei, em conjunto com outras leis anteriores de investimentos e com a Lei 5.074/13, estabelece o marco legal para a concessão de bens e serviços públicos – estradas, portos, rios, educação, telefonia, água, eletricidade etc. – ao capital privado, por trinta a quarenta anos, assumindo o Estado o risco do investimento e deixando toda a mediação a cargo de árbitros internacionais. Até julho de 2017, vários projetos foram apresentados, mas apenas um deles foi implementado desde a assinatura do contrato em março deste ano: um projeto de iniciativa pública apresentado pelo MOPC para a extensão e melhoria das rotas 2 e 7, que foi concedido a um consórcio espanhol, português e paraguaio formado pela Sacyr Concesiones, juntamente com a Mota Engil e a Ocho A. ³⁶⁵ Por sua vez, a mesma empresa Sacyr foi premiada com o projeto de modernização do aeroporto Silvio Petirossi via PPP no início de 2017. No entanto, foi interrompida por reclamações de irregularidades na licitação; segundo relatórios do Escritório do Controlador-geral da República, o MOPC não cumpriu o devido processo legal e ocultou o registro de não conformidade da empresa para favorecê-lo. No final de 2016 também foram licitados sob a forma da Lei 5.074/13 o corredor bioceânico Chaco Central, com investimento de US$ 315 milhões, o projeto de esgotamento sanitário do Departamento Central, no valor de €$ 425 milhões, a expansão da rota 6 no trecho San Cristóbal – Narajal por US$ 40 milhões e a construção da Costanera Sur – na fase de projeto – no valor de US$ 380 milhões. ³⁶⁶ Expansão do latifúndio A base da estrutura atrasada e dependente do Paraguai é o latifúndio semifeudal, sobre o qual se encontra todo o sistema político em defesa dos interesses da burguesia latifundiária, aliada ao capital financeiro internacional, principalmente norte-americano e brasileiro. Em relação à terra, um dos pontos centrais do golpe de Estado, bem como à histórica luta nacional do país, o governo encabeçado por Horacio Cartes vem apoiando a expansão do latifúndio e do agronegócio por meio de diversos mecanismos. ³⁶⁷ Em termos de hectares destinados ao cultivo da soja, a safra agrícola 2011/2012 possuía 2.920.000 hectares cultivados e, na safra 2013/2014, o número chegou a 3.500.000 hectares cultivados, 120% a mais. Contemplando as outras commodities como trigo, girassol, milho, erva-mate etc., o crescimento entre 2013 e 2015 passou de 5.554.400 hectares na safra anterior para 5.854.400 hectares cultivados no período 2014/2015, com 26.004.870 toneladas na safra agrícola 2014/2015, comparado a 24.715.121 na campanha 2013/2014 (MAG, em Campo Agropecuario, 2016). ³⁶⁸ Um elemento que caracteriza a fase atual é o esgotamento das terras públicas como espaço de usurpação e expansão do latifúndio, fortalecendo a

expansão deste sobre as comunidades camponesas e indígenas, com métodos violentos de despejo e expropriação (PALAU et. al., 2007). ³⁶⁹ Nos meses seguintes à consumação do golpe de Estado em 2012, pela primeira vez ocorreram despejos de comunidades por civis armados pagos por grandes proprietários, como no caso da comunidade indígena Y’apo e do assentamento de camponeses Naranjito, no departamento de Canindeyú em 2014, ao qual se somam os despejos perpetrados pelas mesmas forças repressivas do Estado nos casos de Guahory, Guayaibí, Itakyry, Alto Verá, Pastoreo, Pindo’i, entre outros (LA VÍA CAMPESINA, 2017). Todos estes casos não são punidos e nenhum deles foi investigado. O caso de Guahory, assim como o de Curuguaty, mostra com grande clareza a aliança do atual governo com o capital nacional e estrangeiro para a expansão do latifúndio. ³⁷⁰ A esta expansão do latifúndio é acrescentada a liberação de sementes transgênicas produzidas desde o golpe de Estado até hoje, com doze variedades lançadas pelo governo de Cartes, totalizando 22 desde 2004 até hoje, ³⁷¹ e também o avanço da importação de herbicidas, que, apenas entre agosto de 2015 e julho de 2016, adicionou 24 milhões de quilos de herbicidas importados pelo país (PALAU, 2016). ³⁷² Manutenção dos tratados antinacionais de Itaipu e Yacyretá Os tratados de Itaipu e Yacyretá, assinados em 1973, na ditadura militar, com Brasil e Argentina, respectivamente, outorgam controle territorial, energia e administração das entidades a esses países estrangeiros, mantendo importantes dívidas externas com capital financeiro estrangeiro. Estes tratados consolidam a dependência paraguaia. O aprofundamento dessa entrega da soberania nacional ao Brasil e à Argentina é outro dos pontos centrais do atual governo. Nas primeiras declarações de Cartes após as eleições gerais em abril de 2013, ele sustentou que não tocaria no Tratado de Itaipu e que continuaria pagando a dívida do Estado paraguaio com o brasileiro, que relatórios oficiais do Estado paraguaio assim como da sociedade civil e de pesquisadores estrangeiros provaram ser uma dívida espúria já paga. Desde que assumiu até hoje, o governo pagou US$ 2 bilhões anualmente para a dívida em Itaipú. ³⁷³ No âmbito da expiração do Anexo C do Tratado de Yacyretá com a Argentina em 2014, o governo Cartes iniciou uma negociação que culminou com a assinatura do Memorando de Entendimento de 4 de maio de 2017. Este mantém os principais elementos da dependência, como a não possibilidade de livre disponibilidade de energia paraguaia e o pagamento de dívida espúria. Em 2023, o Anexo C do Tratado de Itaipu expira em condições semelhantes, e o atual governo ainda carece de uma estratégia de negociação, projetando – se esta tendência continuar – uma aposta semelhante à negociação de Yacyretá, caso não se dê uma ação da classe trabalhadora e do povo como um todo que permita reverter esta nova entrega.

Militarização, abuso de força e espionagem Juntamente com o processo de expansão do latifúndio, dominação estrangeira e controle do capital financeiro, o fortalecimento do uso da força repressiva é outra das bases do governo, que, como todos os governos autoritários, precisa combater a resistência organizada das classes trabalhadoras rural e urbana, além de frações da burguesia e da pequena burguesia que lutam contra os processos de violação de direitos e espoliação. O uso da força contra a classe trabalhadora e o povo, assim como a política econômica analisada anteriormente, expressa com grande clareza que o Estado atual está a serviço da burguesia latifundiária e do imperialismo, contra o povo. Sete dias depois de assumir o governo, Cartes conseguiu uma maioria parlamentar composta de ANR, PLRA e UNACE para aprovar a emenda da Lei 1.337/99 sobre defesa e segurança interna, ³⁷⁴ que permite que as Forças Armadas assumam tarefas de segurança interna com apenas a autorização do Poder Executivo. Cria-se a Força-Tarefa Conjunta (FTC), composta pelas Forças Armadas e pela Polícia Federal, que está implantada desde agosto de 2013 nos principais departamentos do norte do país – San Pedro, Concepción, Amambay – onde seriam encontrados grupos armados, sendo o foco principal da resistência camponesa contra o avanço do agronegócio e uma das principais áreas de tráfico de drogas no país. Desde o início do trabalho da FTC, seus resultados em relação à luta contra os grupos armados foram quase nulos. Houve relatos de casos significativos de abuso de força, tortura, maus-trato, assassinatos e prisões de pessoas e líderes sociais, sob a falácia de um suposto vínculo com grupos armados, ³⁷⁵ bem como denúncias do uso de logística e infraestrutura da FTC para o transporte de drogas e madeira na região. ³⁷⁶ As Missões Observadoras Internacionais, bem como o Subcomitê para a Prevenção da Tortura da ONU, solicitaram ao Paraguai que examinasse as situações de violações de direitos humanos no país no âmbito da ação da Força-Tarefa Conjunta. Por sua vez, o governo criou, no final de 2014, o Sistema Nacional de Inteligência (Sinai), encarregado de “detectar, neutralizar e revidar as ações de grupos terroristas nacionais ou internacionais e de organizações criminosas transnacionais”. ³⁷⁷ Em 2016, investigações jornalísticas identificaram que o Sinai estava sendo usado para espionar jornalistas que investigavam casos de corrupção e que, da mesma forma, as Forças Armadas, baseadas em ordens de Cartes, constituíam uma equipe de inteligência militar que se infiltrava em manifestações estudantis, camponesas e políticas nos últimos anos para “acompanhar e monitorar”. ³⁷⁸ Repressão e violação dos direitos e liberdades fundamentais Da mesma forma, desde o golpe de Estado, o governo aumentou a repressão e a criminalização contra os vários setores que se opõem às suas políticas, sejam eles organizações ou líderes das classes trabalhadoras do campo e da cidade, sejam frações da burguesia e pequena burguesia. A polícia federal reprimiu a grande maioria das mobilizações sociais, sindicais e camponesas, como: a resistência de Curuguaty em 15 de junho

de 2012; a mobilização contra o golpe de 22 de junho de 2012; a mobilização por justiça em Curuguaty em frente ao Ministério Público em 22 de novembro de 2012; a mobilização contra o aumento da passagem em Assunção em 3 de janeiro de 2014; a greve dos professores em 29 de agosto de 2014; as mobilizações dos bañados (ver nota 42) em 10 de setembro de 2014 e 18 de dezembro de 2015; a mobilização de agricultores em Curuguaty no dia 6 de outubro de 2014; a greve dos aeroportos em 24 de junho de 2015; a mobilização sindical por direitos e liberdade na porta do Ministério do Trabalho em 26 de agosto de 2015; as mobilizações de Guahrory em 3 de janeiro e 8 de maio de 2017; a mobilização contra a reeleição em 31 de março de 2017; entre outras somadas aos despejos violentos das comunidades mencionadas. Militantes e líderes sociais e políticos foram criminalizados no marco da luta, com o surgimento, novamente, da figura jurídica da “defesa da paz pública” usada nos tempos da ditadura civil-militar stronista. Somam-se a isso os casos de prisões e detenções arbitrárias, como os presos nas mobilizações camponesas, contra o aumento da passagem, contra a privatização do bañado , contra a reeleição presidencial, entre outros. Juntamente com a violação dos direitos de livre manifestação e liberdade de expressão, estão a perseguição direta da classe trabalhadora organizada e a violação do direito à livre associação e organização. Já tendo levantado uma política antissindical em sua campanha eleitoral, desde a sua posse, o governo não registra novos sindicatos nem registra mudanças nas autoridades dos sindicatos existentes. Várias empresas, com apoio do Ministério do Trabalho, demitiram dirigentes sindicais, incluindo trabalhadores que estavam em processo de sindicalização, e cortaram direitos trabalhistas. A luta por liberdades fundamentais está aumentando como uma das principais lutas de resistência hoje. O projeto entreguista, autoritário e antinacional Este governo expressa e promove o projeto entreguista de aprofundar a dependência paraguaia, principalmente do capital financeiro norteamericano e brasileiro, bloqueando as possibilidades de desenvolvimento nacional soberano e independente. As frações da burguesia comercial e financeira ligadas ao capital estrangeiro, principalmente a burguesia industrial e financeira brasileira e norte-americana, são as que mais se beneficiam das políticas promovidas. Esse aprofundamento da dependência deve-se principalmente à manutenção e à expansão do latifúndio – principalmente sob o controle do capital estrangeiro, destacadamente dos brasileiros –, do endividamento do Estado – principalmente do capital financeiro privado norte-americano –, do aprofundamento da entrega da soberania para o Brasil e a Argentina por meio da manutenção dos tratados de Itaipú e Yacyretá, e a perseguição e repressão das classes trabalhadoras organizadas do campo e da cidade, que resistem às políticas de entrega e espoliação e lutam por um projeto de desenvolvimento nacional, independente e soberano. O caráter de classe do Estado a serviço da burguesia e do imperialismo latifundiário pode ser visto com grande clareza nas ações promovidas pelo atual governo. Analisar as

projeções dessas políticas é de fundamental importância; compreender suas continuidades, a composição e a recomposição das frações de classe que o compõem, as alianças com o imperialismo e, com isso, o cenário de disputa da luta que a classe trabalhadora e o povo terão. Da mesma forma, analisar as posições do projeto reformista – da concepção enganosa e da crença da mudança gradual por etapas e por meio de reformas gestadas pelo Estado burguês – e do projeto esquerdista – que propõe ações sectárias, afasta-se das massas e é uma expressão do reformismo – em torno de cada uma das lutas de resistência, bem como debruçar-se sobre as políticas promovidas pelo governo antinacional permite projetar as ações deste setor, desmascarar discursos e conhecer em profundidade o escopo limitado deste projeto. Os frutos desse projeto – a partir dessa concepção institucionalista e gradualista burguesa, ou sectária e vanguardista – acabam por fortalecer os interesses da burguesia latifundiária e do imperialismo, reforçam a dependência e a entrega nacional, e param a luta ampla e unitária do povo pelas necessárias mudanças profundas. Resistência popular às políticas antinacionais Após a consumação do golpe de Estado em abril de 2013, o cenário foi marcado pela resistência e pela luta contra as políticas do governo Cartes, com importantes avanços na mobilização e nos espaços unitários das organizações das classes trabalhadoras do campo e da cidade. A crise econômica e política e o impulso às políticas de expropriação e entrega da soberania nacional geraram mobilizações amplas e sistemáticas em diversas frentes e setores, com uma importante experiência organizacional, bem como um alto nível de desgaste do governo. Entretanto, ainda falta uma força unitária para reverter as políticas antinacionais e a situação atual. O principal desafio das classes trabalhadoras do campo e da cidade está no fortalecimento da organização, na articulação em nível nacional e na formação de uma frente ampla de unidade nacional que permita confrontar e reverter as políticas de desapropriação e saque promovidas pela burguesia e aprofundadas após o golpe de Estado. Assim será possível construir o projeto de desenvolvimento nacional soberano e independente e caminhar em direção da tomada do poder pela classe trabalhadora. Ultrapassa o objetivo deste trabalho realizar uma análise da resistência popular, mas vale destacar como marcos desse período de lutas de resistência amplas, unitárias, patrióticas, que tocaram os principais obstáculos ao desenvolvimento analisados, a greve geral em 26 de março de 2014, após vinte anos da última greve geral no país; a luta pela recuperação das terras de Marina Kue e pela liberdade dos presos políticos de Curuguaty; a luta da UNA “não se cale” em 2015 e 2016 para a democratização da educação; a greve dos aeroportos em junho de 2015 contra a privatização do setor; as lutas dos camponeses pelo cancelamento da dívida em 2016 e 2017, entre outros. Conclus ões

No quadro da atual crise estrutural do capital, o capitalismo, em sua fase imperialista superior, intensifica sua expansão e a desapropriação sobre as economias e os povos, com base na necessidade de uma maior apropriação da riqueza para evitar a queda de sua taxa de lucro. Esta fase de recrudescimento do saque e da expropriação nada mais é do que a fase de decadência deste modo de produção, um processo que não será automático nem mecânico, mas dependerá da força e da organização da classe trabalhadora para que chegue a seu fim e, então, seja possível construir um novo modo de produção, socialmente mais justo. É desse movimento de capital que, levando ao limite a contradição fundamental da produção social de riqueza e de sua apropriação privada, busca formas de deter a luta do povo e mitigar momentaneamente seus efeitos, desde que isso não afete sua busca para reduzir a queda de sua taxa de lucro. Os governos progressistas da região, no marco de uma luta popular que levou a essas vitórias eleitorais e a processos de transformação nos países que analisamos, foram momentaneamente eficazes para o capital pois conseguiram amenizar a mobilização popular. Ao mesmo tempo, como qualquer movimento contraditório da realidade, também forma eles que possibilitaram melhores condições para a organização e a luta. Por sua vez, foram estas mobilizações populares que, em casos como o paraguaio ou o hondurenho, levaram a golpes de Estado que buscavam cortar governos progressistas. O governo de Cartes e seus seguidores, instalados após o golpe de Estado, bem como outros setores que se apresentam como oposição, mas expressam o mesmo projeto político-econômico aliado ao imperialismo e ao subimperialismo, continuarão com o esquema de perseguição, aprofundamento do endividamento, privatização, expansão do latifúndio, entrega de recursos naturais e, consequentemente, aprofundamento da pobreza. Isso porque seu objetivo último é tentar conter a crise do capital, bem como atender a necessidade deste de se beneficiar com a dependência financeira do país. Não é possível cumprir as promessas de grandes mudanças, terra, saúde, educação, entre outras, no quadro do atual atraso e da dependência, que eles mesmos defendem e aprofundam. É também de suma importância analisar a projeção do projeto reformista e sua não realização de mudanças estruturais baseadas em um processo gradual e de gestão da institucionalidade burguesa. Não colocamos isso como uma projeção futura e fatalista, mas apenas no sentido de conhecer sua extensão, limitada e sem capacidade de dar respostas reais às necessidades das pessoas. Com isso, acreditamos ser possível analisar coletivamente, com base nos dados concretos da realidade histórica, maneiras de avançar na luta por sua superação e consequente vitória da classe trabalhadora, que será a vitória da terra, da educação, da saúde e da paz. Uma ampla unidade nacional é o caminho para reverter esse projeto institucional burguês. Só a conquista de um governo patriótico das classes trabalhadoras do campo e da cidade levará a um desenvolvimento nacional

soberano e independente. Esse caminho de luta e mobilização vem ocorrendo com força. Devemos entender a atual fase de crise e a consequente ofensiva do capital, e assumir com responsabilidade a tarefa de organização, luta e ampla unidade. O capitalismo, em sua fase final do imperialismo e do subimperialismo, nada mais é do que um “gigante com pés de barro”, um “tigre de papel”. É tarefa nossa, do povo, organizar-se, unir forças e avançar na luta. É maliciosamente falso falar sobre o suposto fim do ciclo progressista na América Latina e no Caribe, mas estamos testemunhando o fim do ciclo, o estágio, o período ou o que queremos chamar de passado recente em que os governos de esquerda e progressistas foram reeleitos, quase automaticamente, em virtude do carisma de sua líder ou de seu líder; do histórico social e político acumulado, e dos frutos colhidos na batalha contra os governos neoliberais anteriores; do boom de exportação de produtos primários, do qual não se tirou proveito para reorientar a matriz econômica para o fortalecimento das cadeias produtivas nacionais e a integração regional; e das meritórias políticas públicas que, no entanto, não eram reais ou suficientemente harmonizadas com a geração de consciência transformadora, a construção do poder popular e o empoderamento das pessoas. Muitas outras coisas podem ser ditas sobre o feito e o não feito, mas aqui paro. ³⁷⁹ Postscriptum O artigo foi corrigido em maio de 2018, motivo pelo qual não podemos deixar de mencionar o cenário aberto após a eleição do novo governo, que assumirá em agosto de 2018 e governará até 2023. Numa eleição com 60% de participação eleitoral e com a menor margem entre um candidato e outro (só 3,7% de diferença), o Partido Colorado ganhou a Presidência pelos próximos cinco anos, com o filho do secretário pessoal do ditador Alfredo Stroessner como candidato, Mario Abdo Benítez, frente a Aliança opositora composta pelo PLRA, Frente Guasu e outras forças da oposição. Mario Abdo, após se apresentar conjunturalmente como uma oposição interna no Partido Colorado ao projeto Cartes, é hoje a sua continuidade, projetando o aprofundamento das políticas de saque e espoliação aqui analisadas. A grande quantidade de votos da Aliança opositora, assim como das candidaturas independentes menores e mesmo os votos nulos, brancos e a não participação eleitoral expressam a vontade de mudança do povo paraguaio, que precisa se organizar e se manifestar para conquistar o poder e as mudanças necessárias. Os desafios analisados da classe trabalhadora seguem e seguirão vigentes. Bibliografia “ACUERDO Lula-Lugo es la hoja de ruta en Itaipú hasta 2023, según Leila”. ABC Color , 7 oct. 2013. “AUMENTA el porcentaje ciudadano que aplaza la gestión de Horacio Cartes”. Última Hora , 14 ago. 2016.

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³³⁴ Ditadura civil-militar liderada pelo general Alfredo Stroessner, que durou de 1954 a 1989, apoiada pelo governo dos Estados Unidos no âmbito da doutrina de segurança nacional. ³³⁵ Na literatura brasileira, esta guerra é conhecida como “Guerra do Paraguai”, uma conceituação que consideramos errônea quando apenas colocamos o nome do Paraguai como “vítima” da guerra, e assim escondendo a aliança imperialista existente e seu objetivo antinacional e contrarrevolucionário. Recomendamos, portanto, trabalhar a partir do conceito da Guerra da Tríplice (Quádrupla) Aliança. ³³⁶ Oscar Creydt. Formación histórica de la nación paraguaya. Pensamiento y vida del autor . (3. ed. rev. e amp. Asunción: Servilibro, 2007); Manuel Mandelik. Formaciones económicas del Paraguay I (Asunción: Servilibro, 2014). ³³⁷ A incorporação do contrabando e do comércio ilegal com base no tráfico de drogas, armas, entre outros, é um elemento que também começa nesse período de ajuste e persiste com um peso importante até hoje. Na falta de estudos e dados que permitam uma análise, deixamos de fora deste artigo. ³³⁸ A atual Constituição Nacional, construída no início da transição democrática em 1991 e aprovada em 1992, proibiu a reeleição presidencial como um mecanismo para proteger possíveis novas ditaduras, uma vez que esse recurso havia sido um elemento-chave na consolidação da ditadura civil-militar stronista. Nesse sentido, a tentativa de reeleição presidencial sempre gerou uma importante reação cidadã contrária, baseada em princípios democráticos inspirados na memória nacional e na consciência antiditatorial. ³³⁹ Hugo Chávez na Venezuela (1999), Lula da Silva (2003) e Dilma Rousseff (2010) no Brasil, Néstor (2003) e Cristina Kirchner (2008) na Argentina, Tabaré Vázquez (2005) e Pepe Mujica (2010) no Uruguai, Evo Morales na Bolívia (2006) e Rafael Correa no Equador (2007). ³⁴⁰ Aliança Patriótica para a Mudança. ³⁴¹ “Frente Guasu”, em guarani, significa Frente Ampla ou Frente Grande, é uma articulação de partidos de esquerda que estavam em sua maioria na Aliança Patriótica pela Mudança e que em março de 2010 lançaram a concertação política como espaço de unidade. Articulou em seus primórdios a 20 partidos e movimentos. Após a retirada de um setor depois do golpe de Estado - consolidado posteriormente no Avanza País -, a Frente Guasu articula 10 partidos e movimentos políticos e é a terceira força eleitoral em nível nacional.

³⁴² A União Nacional dos Cidadãos Éticos (UNACE) é uma dissidência da NRA criada em 1999, ligada a setores militares, latifundiários e grandes comerciantes, liderados pelo general Lino Oviedo (já falecido em circunstâncias ainda não esclarecidas no período da campanha eleitoral onde este disputou a presidência a Horácio Cartes). O Partido Pátria Querida (PPQ) é um partido criado em 2003 por um setor da burguesia latifundiária, industrial e financeira com um projeto de modernização nacional, que atualmente não tem representação parlamentar. ³⁴³ A Coordenadoria Executiva para a Reforma Agrária foi uma conquista da mobilização camponesa no início do governo Lugo, em agosto de 2008. Por meio do Decreto 838/2008, foi criado um órgão governamental com a participação de organizações camponesas de forma vinculante para o desenvolvimento da reforma agrária, com regularização fundiária, promoção da produção e melhoria da qualidade de vida das comunidades camponesas. ³⁴⁴ Decreto 1937/2009, posteriormente revogado em julho daquele ano. ³⁴⁵ Mesas de Participação Social do Programa Tekoporã da Secretaria de Ação Social, posteriormente eliminadas e substituídas por Mesas de Participação Cidadã não vinculantes. ³⁴⁶ Processo iniciado pela nova diretora da II Região de Saúde, drª. Raquel Rodríguez, com apoio de organizações sociais da área. Depois da pressão dos intendentes da área e de um grupo de médicos vinculados, o governo demite a diretora. ³⁴⁷ Destituição de Margarita Mbywangi, líder Aché, da Presidência do Instituto Nacional do Indígena (INDI) em dezembro de 2008. ³⁴⁸ Fernando Lugo. Discurso presidencial ante la XXI Cumbre Iberoamericana (Asunción: Presidencia, 2011). ³⁴⁹ No entanto, nesse quadro de disputa contra o imperialismo norteamericano, vários países do bloco latino-americano desenvolveram alianças com outros imperialismos, como o russo e o chinês. ³⁵⁰ A área cultivada de soja aumentou de 2.463.510 hectares em 2007/2008, com 3.855.000 toneladas produzidas, para 3.080.000 hectares em 2012/2013, com 9.086.000 toneladas produzidas, representando um crescimento de 125% em termos de área e 235,7% em termos de volume (DCEA – Dirección de Censo y Estadísticas Agropecuarias/MAG – Ministerio de Agricultura y Ganadería. Síntesis estadísticas producción agropecuaria 2013/2014 [Asunción: MAG, 2014]). ³⁵¹ Cecilia Vuyk. Subimperialismo brasileño y dependencia del Paraguay: los intereses económicos detrás del golpe de Estado de 2012 (Asunción: Cultura y Participación, 2014). ³⁵² Idem , Recursos minerales, hidrocarburos e hídricos en Paraguay: escenario presente y posible escenario futuro (Asunción: Cepag, 2014).

³⁵³ Lei n. 4.024, “Que pune os atos de terrorismo, associação terrorista e financiamento do terrorismo”. ³⁵⁴ Eu caracterizo o neodesenvolvimentismo como uma das expressões do reformismo atual: uma política que apoia a possibilidade de um desenvolvimento capitalista pleno na periferia, com uma certa autonomia dos centros, baseada na associação do Estado com o capital estrangeiro, fortalecendo o desenvolvimento de capitais e monopólios nacionais e estrangeiros estabelecidos no país, tanto para o mercado interno quanto, principalmente, para o mercado externo, gerando uma burguesia local associada ao capital internacional. Essas ações são acompanhadas por políticas sociais redistributivas que permitem a adesão em massa e mitigam os efeitos do aprofundamento da dependência. Trata-se de um movimento que concebm o Estado como mediador e gestor do pacto social. ³⁵⁵ A tradução mais próxima seria “terras mal obtidas”. As terras que foram entregues no período da ditadura a pessoas não sujeitas à reforma agrária são denominadas “terras malhabidas ”. Essas terras foram distribuídas principalmente entre os membros do governo ditatorial ou com laços políticos ou econômicos com o ditador e sua equipe. Segundo o relatório final da Comissão de Verdade e Justiça (CVJ, 2008), as “terras malhabidas ” chegam a quase 8 milhões de hectares, correspondentes a 20% do território nacional. ³⁵⁶ Trata-se de um processo judicial pelo qual mede-se uma terra em conflito e realiza-se sua posterior comparação com os títulos existentes para determinar a natureza e a origem de sua propriedade, seja pública ou privada. ³⁵⁷ Coordinadora de Derechos Humanos del Paraguay – CODEHUPY. Informe de Derechos Humanos sobre el caso Marina Kue (Asunción: CODEHUPY, 2012); Cecilia Vuyk. “Curuguaty y Ñacunday: lucha por la tierra y golpe de Estado en Paraguay” . Revista Interdisciplinaria de Derechos Humanos , Universidad Federal de San Pablo, v. 3, n. 2, jul.-dez. 2015, p. 57-73. ³⁵⁸ Todos os partidos da anterior APC, bem como outros que não estavam na APC, mas eram atores na luta contra o golpe – como o Partido dos Trabalhadores e o Movimento Comunitário Independente – participaram das eleições pós-golpe e reconheceram os resultados. O Partido Liberal Radical Autêntico, o Partido Democrático Progressista e a UNACE concorreram juntos, a Frente Guasu e o Avanza Pais (racha da Frente Guasu) concorreram separados. ³⁵⁹ Conforme mencionado na nota 10, não temos dados para analisar o comércio ilegal, especificamente o contrabando e o tráfico de drogas, itens aos quais o atual presidente estaria vinculado. No entanto, há importantes eventos públicos que podem ajudar a entender o processo de expansão e crescimento desses itens também, com o impulso e o apoio oficial das instituições do Estado. ³⁶⁰ Alan Fretez. Presupuesto general de la Nación 2017: ¿quién lo cubre y qué se disputa? (Asunción: CyP, 2016).

³⁶¹ CADEP. Deuda pública (Asunción: CADEP, 2017). ³⁶² Ibidem . ³⁶³ Lila Molinier. La deuda pública actual, Ponencia en el encuentro del GARS (Asunción: CyP, 14 dic. 2016). ³⁶⁴ Lei n. 5.102/13 e Lei n. 5.567/16 (emenda), disponíveis em: http:// webmail.stp.gov.py/archivos/APP/Ley5.102.pdf e