119 47 41MB
Portuguese Pages [378] Year 1989
G.Ê ale ARRÃO
e A I G O L HO
d i a BIBLIOTECA UNIVERSITÁRIA
PUBLICAÇÕES EUROPA-AMERICA
DL
arm
GERMANO
«5
DA
6
Eb
1982.0680130
FONSECA
27296 SACARRÃO
capa: O
estúdios
P. E. A.
1989, Germano
da Fonseca
Sacarrão
Direitos reservados por Publicações
Europa-América,
Lda.
Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma ou por qualquer processo, electrónico, mecânico ou fotográfico, incluindo fotocópia, xerocópia ou gravação, sem autorização prévia e escrita do editor. Exceptua-se naturalmente a transcrição de pequenos textos ou passagens para apresentação ou crítica do livro. Esta excepção não deve de modo nenhum ser interpre-
tada
como
sendo extensiva à transcrição
de textos
em recolhas antológicas ou similares donde resulte prejuízo para o interesse pela obra. Os transgressores são passíveis de procedimento judicial
Editor:
Francisco
Lyon
de Castro
PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA, Apartado 8 2726 MEM MARTINS CODEX PORTUGAL Edição
n.º 106049/4657
Execução técnica: Gráfica Europam, Lda., Mira-Sintra — Mem
Depósito
Martins
Legal n.º 22377/88
LDA.
BIBLIOTECA
UNIVERSITÁRIA
OGIA E SOCIEDADE-
RAZÃO DOGMÁTICA Tas
é Cual es la verdad? Desde el punto de vista de la verdadera cultura, no es lo mas decidir. Cultura es, frente a dogma,
importante discussión
permanente.
José
OrTEGA
Y GASsET,
1927
Faith is certainty without proof; science is proof without certainty. AsHLEY
MoNnTAGU,
1978
[...] nature, like the bible, is so diverse that diligent search will yield examples in support of any
principle. Davip
Lackx,
1971
ÍNDICE
Páp.
Prefácio .....ececereseeeeereneerereeenerereeanerceeesananacenarenacerenecenenacerenenascertesa
13
dae tias dio stars REL esenererucapasas
17
Capítulo I — Biologia 1.
Natúrea
e ID CDLogÃo
spasssaanunsancanuicaseamca uuesaçõos
1Z
9. A consciência como referência .............ciicicciistesteeemeseeateras 3. Reducionismo e determinismo biológico ...........ciciiciities 4: Biologia e ideologia do Ocidente ,espmsecsamasaasenaas emsaneents 5. Ideologia e origem da biologia ..........cccssesesseseeseeereneros NOÉ mussi so O OA Ta
é origem
do homem
21 29 36 44 50
Capítulo II — Dois modelos dO MEO 1.
Evolução e antievolução no mundo
2.
Antigos
obstáculos
3. Visão antiga e visão moderna ..... nr geo aa o cad 4. Reacções à imagem de um mundo em mudança ................. Ss. À veligião da. evolução sqaasecaenanauaaderenauai ser mcesa cs qo asim
63 69 qo
usa
87
e
DS
mais o
TI ÃO
RD ue
rar 4 IDEC
a
cr
E
generalizado
53 58
spa
ao evolucionismo
antigo ............siiceos
53
..................
NO Capítulo
scisernaaissciceneeasmae ques es resinas é
q
95
1.
O Símio-Adão, o «primeiro homem»
2.
A
à.
Plneiicidade
4. 5.
A diversidade da dieta alimentar .........ciiissiiiiisitieseis A condição de predador e a teoria do «símio-homicida» .........
110 112
q) O. mito: da muldade Inatk cassnscaiiaseseerenpuaienaa ce ques 6. Caracteres psicológicos e culturais .......esemeseseseseeaeeserecsrso O fia E 6 UG. assina iron rr ir intro css g. Natureza hostil ou paraiso terreal? ,easnsumunaareis cd ER dic
119 122 129 131 134
....ccccsiiiiso
139
Crescimento dos primatas e competição intra-uterina ..........c.... Ambiente físico e social no desenvolvimento do ser humano ......
143 145
questão
das
Capítulo IV — Ontogenia 1. 9.
Origens
DIGA
e outros mitos ...............
98
......scseessenessecesseeessrecssenescennsensrerana
102
O ad rr oemenerroepiscanoe
e socialização
na
evolução
humana
109
Pág.
3.
«Juvenilização» e socialização na origem do ser humano ......... a) O significado da gravidez humana ..........cicciiciss b) Aumento do tempo embrionário e fetal (retardação ontogenética .......cciisrereeeeerereerer tera reseeerraio c) Ontogenia, família e sociedade ..........ciiciisiisiees d) A retardação da ontogenia — componente dominante na origem do homem ...........ccciiseeererrrereeraioo &. Modificações SEGUINNA ora cerserEraGIRORSTOs CHE MASC nata vira NL srs asa iG q
Capítulo V — Ciência 1.
Génese
e filosofia do
do
darwinismo
darwinismo
.........ciisirr
«sia caneminsdasaáio cvs emeaes denied AS Doca
a) A «sobrevivência dos mais aptos» .........iccciiiis b) Biologia sem Darwin ....... ementa rir 2. Aspectos tradicionais da teoria da selecção natural e sua moderbizadãs a)
3.
direto cprnecesiadi cl dóresiaquiEasaitia dire suas comes
Modernização
e
COMICS
as is
een
mea
ERINN da
a) A
revolução
intelectual
doca
e
a a
............csscsittes Ria
b) Saltos ou pequenos passos? .........iceisiiiro c) Diversidade que não se repete idêntica CRC e dee sang 4 agia d) Conceitos de evolução e de progresso ...........o. O abuso de metáforas ........ccecsecereereeseerenereeeresrerrrannio a) A metáfora em Darwin .iccessssisessiiesiiaiociscascansaro, b) A retórica sociobiológica ........cisiiseeernneni One
Capítulo
160 164 168 170 174
179 180 188 195 197 200
Algumas consequências científicas e filosóficas do evolucionismo darwiniano asueies musteruss Ens xs CU CG ANS VOA
4.
155 156
VI — Anti-Darwin.
eve
vaso
vg ds seres
204 206 212 217 221 226 228 229 230 233
......mecessemeereceremerrrremeranaacacarsasarererernarerissos
241
1.
O movimento criacionista na América .......ciccimeresiiiiro a) Darwin em tribunal ..csssesrecreereraresssesceriiaserrrraera,
2.
O
3, 4,
Darwin na pátria de Lamarck ..........esesceerrarirreeiro O darwinismo em Portugal ....... rrenan
241 245 251 257 260 268 269 273
caso
da
Europa
a) Algumas b) A
tradição
.....cssecssesessermssrreerencranadesasasearassarranirs
influências. liceal
À
Universidade
.......iiio
....cccesssesseresseresresreesvenaças Séc
c) As origens da zoologia em Portugal e a sua persistente índole classificatória ........iisreimiirir
275 278
Pág.
e)
Pedagogia
da evolução
e museus
de história
natural
em
ROSE assita OA A f) As comemorações do centenário da morte de Darwin, em 1982,
e a indiferença
portuguesa
........ciiiiiiio
tro1 A
Um grande mito susasass PS O dao Lao. quam saao id a DI SÓ a) Biologia anacrónica e ideologia partidária ............... BD) À tnndada à ABM a seen on perenenas c) «Abalar» a hereditariedade ...cesseeecsseseesseracasersaso E) Esprit de apslBa sro cn IS O GI TT E e) Sessões da Academia ............iiiiiiiciceciereseneeciresess 7» VRRIRO GENERO spread en gd
queda
um srta
ensino Dead
einen
293 295 302 304 307 310 313 314 318
ás nbeghas
323
O drama de Semmeçer -,ssnisasa ssa os asno a a a) Novas fentalivas a dasaia soma sd sa dia cas cada do DA ogia je is Ml ego dl lago a SÓ Sd
326 331 334
VIII — Biologia
339
à.
Capítulo
282
287
Capítulo VII — 4 herança biológica do adquirido e a força da ideologia ...... À. E
281
evolutiva
e explicação
da sociedade
..................
1. Competição e cooperação — Realidades e preconceitos ............ 2. Darwinismo social. Racismo. Fascismo .............iccicsiesereso 3. Um novo darwinismo social — Sociobiologia e biologia da moral 4. Biologia e moral ou a metafísica da desumanação .................. DG qe io DES a O
342 351 360 370 377
PREFÁCIO
O presente livro pretende abordar e discutir num plano crítico e ensaístico algumas ligações que « biologia tem com vários aspectos do comporiamento
social humano
e ainda as cauções
ideologias, a sua fragilidade como ções ou valores, de algum modo,
que dá a certas
suporte ou garante de certas posi-
assim como algumas suas contribuições que podem, iluminar questões respeitantes à condição humana, à
sua origem e à sua evolução. Focará ainda aspectos onde a biologia e a sociologia parecem convergir, quer revelando relações válidas, quer procurando denunciar transformações da biologia em ideologia, quando esta, neste ou naquele quadrante, se alimenta dela.
ou
Existe hoje uma nova cultura assente na biologia, pela qual se tenta uma explicação do homem e da sociedade à luz de um determinismo biológico fortemente reducionista, com longas e profundas im plicações ideológicas e políticas, e suscitando múltiplas reacções idealistas
e metafísicas, tudo obstando a uma visão esclarecida dos problemas. É um processo ainda em pleno desenvolvimento cujas raízes vêm de longe. A ele se têm associado não apenas biólogos, mas igualmente outros cientistas vindos de outros campos, assim como numerosos ensaístas, historiadores da ciência, sociólogos, políticos, literatos, jorna-
listas, filósofos, etc., uns mais felizes, outros menos, na justificação dos seus credos e pontos de vista, exercendo uma selecção nem sempre apurada da documentação científica, e os leigos, além disso, tantas vezes sem um
conhecimento
directo da natureza e limitações da biolo-
gia, de que se servem sem competência ou sem prudência. Sendo biólogos (ou outros cientistas), acontece muitas vezes divulgarem conclusões falsamente comprovadas, ou defenderem interpretações «científicas» que pretendem apoiadas na especialidade que cultivam, umas e outras que aplicam no plano político, atitudes estas que amiúde escondem, conscientemente ou não, posições ideológicas. Procuram
também
na bio-
logia armas para atacar ou defender teorias políticas ou credos religiosos ou,
inversamente,
negam
aquisições
da
ciência
por
serem
contrárias
a fé, etc. Ocupando a biologia uma posição de charneira entre as ciências físico-químicas e as ciências psicológicas e sociológicas (ou, talvez com mais propriedade, as ciências humanas), impõe-se q crítica rigorosa da sua utilização nas interpretações das questões respeitantes a estas ciências, mas sem que tal facto constitua obstáculo a que as ciências 13
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
humanas usufruam do indispensável suporte da biologia, ciência de cujos contributos poderão essas ciências largamente beneficiar em esti-
mulos, sugestões e interpretações que lhes possibilitem a elaboração de novas sínteses renovadoras. Classicamente, a biologia fornece as bases à psicologia e à sociolo-
gia, mas modernamente pretende ir muito mais longe. Por um determinismo biológico estrito, sobretudo apoiado na ecologia, na genética e nas programações hereditariamente fixadas de múltiplos comportamentos sociais dos animais, a biologia visa explicar as acções individuais e sociais humanas, os fenômenos políticos, a evolução das sociedades,
a origem da moral, a própria história, etc. Propõe-se substituir a sociologia, a filosofia; explicar o homem e modificá-lo no corpo e na mente, interferindo directamente nos processos biológicos, até os mais íntimos,
tomando
nas suas mãos a nossa evolução.
objectivos da sociobiologia humana, denunciar e combater. Além
São esses os grandes
cujos excessos e perigos se impõe
disso, a sociobiologia e outros sectores da
biologia evidenciam-nos, com particular clareza, a íntima ligação da ciência com a política, a acção de forças ideológicas e sociais a ditarem, em parte, o caminho à pesquisa, a definirem, de cerio mido, a parte da realidade que pode ou deve ser revelada e como deve ser interpretada As posições ideológicas ou filosóficas facilmente invadem o vasto
campo das ciências humanas e a sua influência estende-se do problema da origem e evolução do homem,
gam-se
conclusões
prematuras,
à questão da sua natureza,
generalizações
abusivas,
etc. Avan-
simples
supo-
sições ou credos, que a ciência não legitima, apesar de a ela recorrerem os seus autores. Impõe-se, assim, a vigilância e a crítica de tais atitudes. É
necessário
denunciar
os usos
e abusos
aquisições científicas e, do mesmo os erros, os biologismos de todos presente
que uma
que
as ideologias
fazem
das
passo, combater a falsa ciência, os matizes. Ter constantemente
coisa é o que a ciência descobre
de aparentemente
certo ou de estimulante, as realidades e conexões que põe em outra coisa o que de falso ou de dogmático é dito em seu
evidência, nome por
cientistas e não cientistas. E sobretudo não perder a noção dos limites
da aplicação e validade da biologia no estudo do homem e da sociedade. A
ciência
não
descobre
verdades
eternas
e absolutas,
nem
cria teorias
ou concepções imutáveis sobre a realidade. É por natureza antidogmática (quando não manietada absolutamente neutral.
por
ideologia),
mesmo
que
nunca
possa
ser
Toda a tentativa de aplicar à sociedade e ao indivíduo os resultados da biologia transmite quase sempre uma ideologia, traduz, em regra, uma atitude política, mesmo que o autor, biólogo ou não biólogo,
não se dê conta disso, mesmo que o não queira. Por isso me parece ser de fundamental importância explicitar os preconceitos, tentar desmontar
as
conexões
da
ciência
com
a 14
sociedade,
revelar
as
ideologias
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — |
subjacentes, as influências em jogo, em suma, submeter à dúvida e à critica toda a referência à biologia moderna, em particular as explicações biológicas da sociedade e do comportamento individual e colectivo.
É necessário, a meu ver, exercer uma crítica rigorosa das proposições e sínteses sociobiológicas, assim como das legitimidades das transposições
do conhecimento
biológico para o vastissimo domínio das ciências do
homem. E também a crítica do dogmatismo e irracionalismo que resultam destas transferências, da politização da biologia, assim como do determinismo biológico reducionista historicamente ligado à ideologia burguesa e seu suporte. A biologia ocupa hoje espaços que tradicionalmente pertenciam ao domínio do sagrado, a outras autoridades, a outras metafísicas, na explicação do homem, na sua orientação moral, na sua visão do
mundo e de si mesmo. Este facto confere-lhe uma importância fundamental como caução para ideologias dominantes e, ao mesmo tempo, um enorme poder, que,
em numerosos sectores, me parece constituir uma séria ameaça à dignidade e à liberdade do ser humano. Com este livro faz-se uma discussão crítica de multiplos aspectos desta vasta problemática, que poderá
ajudar à edificação de uma síntese mais aberta e mais lúcida.
G. F. SAcarRÃOo
Prof. Faculdade de Fauna
—. PL2.
catedrático
de
Zoologia
e Antropologia.
de Ciências de Lisboa. INIC — Centro Portuguesa da Universidade de Lisboa
CAPÍTULO BIOLOGIA
E
I
IDEOLOGIA
Hoje não parece possível debater qualquer problema relativo ao homem sem o considerar à luz da ciência, em particular da biologia, que ocupa aí uma posição verdadeiramente central. Mas a interpretação, socorrida pelo conhecimento objectivo, terá de não perder de vista a
profunda
originalidade
humana.
Absorvidos
em
demonstrar
que
o
homem é um animal, tem-se estado muitas vezes desatentos ao facto de
ele ser um animal sem paralelo entre os outros seres. Não é tanto o que nos aproxima do animal o que devemos procurar, mas principalmente conhecer aquilo em que nos afastamos dele. Em geral, o que se tem feito, sobretudo desde os tempos heróicos do começo do darwinismo,
é acumular testemunhos da animalidade do homem, quando hoje o que parece de facto importante gica, a sua humanidade. À aplicar ao homem factos e dequadas quando utilizadas rificando,
de
modo
é evidenciarmos a sua originalidade biolótendência tem sido, quase constantemente, teorias zoológicas que se têm revelado inapara o explicar, ou, pelo menos, não cla-
nenhum,
a extrema
complexidade
dos fenómenos
e problemas que o estudo da nossa espécie revela. Importantes descobertas realizadas no campo da etologia e da ecologia das sociedades animais têm conduzido certos autores à tentação de fazer a sua transposição pura e simples para as sociedades humanas, na presunção, em grande parte falsa, de que o comportamento social humano obedece aos mesmos determinismos biológicos que actuam nos animais sujeitos às observações e experiências. Terá, por exemplo, fundamento biológico a ideia de que o homem é um símio-assassino, um animal diabolicamente possuído por instintos agressivos, inclinado irresistivelmente por sua natureza à violência e à destruição? E o que deverá entender-se por natureza humana? Não há respostas simples e directas para tais interrogações.
1.
Natureza
e
origem
do
homem
O estudo biológico do homem é relativamente recente. Desenvolveu-se, sobretudo, a partir do advento do darwinismo. Data, portanto,
de há pouco mais de cento e vinte e cinco anos. A biologia, porém, não é a exclusiva fonte onde Bibl.
Univ.
49 —
2
devem
buscar-se os dados e conceitos para 17
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
a compreensão do fenómeno humano, com todas as suas complexidades e enigmas. Nem o conhecimento do homem ficará completo se apenas recorrermos à ciência. Outras contribuições, por exemplo as provenientes
das
religiões,
da
filosofia,
meios indispensáveis somos.
para
das
nos
múltiplas
formas
aproximarmos
da
de
arte,
elucidação
etc.,
são
do
que
Mas sem dúvida que qualquer ensaio de interpretação do que é 0 homem ficará incompleto se for esquecida ou negligenciada a sua condição biológica. Todavia, também não basta aprofundar as origens e modo de viver do homem primitivo, dizer que se tratava de um símio avançado,
com
a sua
indústria
rudimentar,
acumular
dados
sobre
a
biologia do homem actual. Todo o progresso da biologia será insuficiente se
ficar
mas
sim
isolado.
Não
múltiplas
existe
uma
ciências
ciência
e ramos
absoluta,
do
total,
conhecimento
satisfazer a interrogação suprema. É o que pretendem tica,
a linguística,
experimental,
etnologia,
as
religiões,
a psiquiatria,
a antropologia
a filosofia,
a geografia
física
a
e social,
homem,
tentam
a história, a polí-
sociologia,
humana,
do
que
a
a
psicologia
arqueologia
a paleontologia
e a
humana,
a
genética, o estudo da evolução e da ecologia respeitantes ao homem, etc.
Está em voga, como referi atrás, aplicar ao homem e à vida social certas descobertas importantes no domínio do comportamento animal. Em certos círculos biológicos atribui-se um determinismo biológico estrito
ao
comportamento
social,
as
acções
colectivas,
atitude
simplista,
como se tentará mostrar. Haveria, por exemplo, genes para a cooperação. para
o
altruísmo,
outros
para
a
agressividade
destruidora,
para
o
egoísmo, para a dedicação dos pais aos filhos, etc. Em suma, uma colecção de instintos bem definidos, determinados por genes ou conjuntos específicos de genes, cuja existência, porém. falta demonstrar. Daqui têm resultado interpretações abusivas. Os instintos, as pulsões inatas, como a «agressividade», a «territorialidade» e outras manifestações da conduta dos animais em sociedade também
estariam
presentes
na
nossa
espécie.
E
o mesmo
aconteceria
altruísmo, o egoísmo, o amor dos filhos, tudo determinado
com
por genes
O
equivalentes aos que existem no animal. Mas estaremos em presença de fenómenos da mesma natureza no animal e no homem, no que se refere ao seu determinismo e ao seu significado? Repito: terá funda mento biológico a ideia de que o homem é, por natureza, um símio-assassino,
um
animal
possuído
por
irreprimíveis
fatalmente inclinado por herança
instintos
biológica à violência
de
agressividade,
e à destruição?
Como tentarei demonstrar no cap. xt (2.º vol.), a questão da agressividade é muito complexa e não pode ser abordada como se LEatasss de
uma como
disposição simplesmente paralela à do animal. Por outro lado, não será a agressividade tão básica é a cooperação,
como
são as tendências 18
associativas,
no
homem
a propensão
»
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —
para a simpatia, o amor, a entreajuda? E estas qualidades e tendências humanas terão todas elas um determinismo genético, como certos autores pretendem? Será legítimo identificá-las, no seu significado e causalidade, ao que se passa no comportamento social dos animais? Nem
todas
as autoridades
estão
de
acordo,
por
exemplo,
quanto
ao
carácter hereditário total (ou mesmo parcial) da agressividade destruidora no homem. Há quem recuse considerá-la um impulso inscrito no
nosso património hereditário. Outros autores vêem nela o produto de acções sociais, estranhas, portanto, em princípio, à nossa herança biológica, que não seria responsável por esse comportamento. As dificuldades começam com a própria definição do termo, nas suas múltiplas manifestações
no animal
e nos seres humanos.
O homem é um animal eminentemente flexível, educável, tudo o que faz a sua humanidade é simultaneamente biológico e aprendido. Mas, também, se não aprender a ser humano, a sua biologia por si só é incapaz
de
o fazer.
É
ao mesmo
tempo
agente
e produto
de cultura.
Mas igualmente não é menos certo que existem nele limitações a essa flexibilidade, impostas pelos imperativos da sua herança biológica. Minimizar
a
importância
consoante
da
as ideologias,
que se pretende
cultura
ou
é semear
os
falsas
clarificar. Como
condicionalismos interpretações
biológicos,
e obscurecer
terei ocasião de discutir mais
o
longe,
o próprio debate tradicional do inato e do adquirido terá provavelmente mais determinantes ideológicos do que científicos. Os seres vivos são produtos da história, tempo homem entrever
é isso mesmo as
origens
também. do
acumulado,
e o
À perspectiva evolucionista permite-nos
primata
humano,
considerando-o
como
o pro-
duto de um dilatado processo histórico onde será convencional demarcar onde acaba a «animalidade»
e começa a «humanidade». Numa
análise
retrospectiva (evolucional), não parece existir diferença de natureza entre o homem e os primatas que lhe deram origem. À humanação foi, muito provavelmente, um processo gradativo. A posição bípede, a inteligência conceptual, a capacidade de inventar e fabricar instrumentos, provavelmente
também
a linguagem,
primata humano. Não é possível primata não humano e o primata foi provavelmente um fenómeno do «antepassado do homem», do elo de ligação,
não
são atributos
do encadeamento
do
traçar uma fronteira nítida entre o humano. À emergência deste último gradual. E é por isso que a procura «primeiro homem», quer mesmo do
são trabalhos vãos, não apenas
tipo de investigação, mas
exclusivos
pelas dificuldades deste
por razões decorrentes da própria natureza
histórico-evolutivo
(v., o cap. HI).
A ciência sugere-nos fortemente que o homem
moderno
(sapiens)
nasceu em parte da convergência e desenvolvimento de atributos existentes sob forma
rudimentar
nos
primatas
que
dade, de concerto com profundas modificações 19
deram
origem
à humani-
na ontogenia, esboçadas
GERMANO
já, também,
DA
FONSECA
SACARRÃO
nesses primatas símios, e que logo se acentuaram
na sub-
“humanidade primitiva e nos homens arcaicos. Isto, se por um
Jado é
muito importante para podermos dilucidar os fenómenos respeitantes ao
homem em bases realistas, não deve criar o preconceito de que o que caracteriza a nossa espécie é simplesmente a continuidade e hipertrofia de propriedades existentes em estádios infra-humanos. E por uma razão, tantas vezes verificada quando se comparam diferentes níveis de integração, ligados por filiação: novos atributos emergem das interacções dessas propriedades quando associadas e integradas de modos diversos, com interdependências e qualidades inexistentes em estádios anteriores. Este facto não contradiz a teoria da passagem gradual do símio não humano a símio humano, ainda que a sua aceitação não seja geral. À crença religiosa ou a convicção secular adoptam, sobretudo, o conceito da existência de um «primeiro homem» na origem da espécie. E também certas posições actuais de tipo saltacionista exprimem tendências análogas. Não parece difícil, no plano do imaginário, inventar processos (metafísicos e mesmo biológicos) com os quais se possa conceber um modo de criação brusca do primeiro ser humano. Mas a verdade é que a generalidade dos zoólogos, que, pela própria natureza da sua actividade científica,
estão
familiarizados
com
os
problemas
da
evolução,
não
podem propor tais processos criativos. O biólogo profissional, que busca
o conhecimento objectivo, não concebe ou adere a proposições vagas e confusas de criação súbita do homem, fora de um demorado e gradual encadeamento. Proposições que, podendo ser glosadas em vários senti-
dos, com a mesma capacidade de significação, acabam por equivaler-se, perdendo a indispensável consistência e coerência para poderem valer
como hipóteses de trabalho. No
homem
vertebrado
e
é tudo
de
muito
primata
mais
complicado.
inseriram-se
Sobre
múltiplas
um
fundo
de
potencialidades
de
exercer comportamentos e de desenvolver processos evolutivamente mais recentes e mais plásticos, de formar culturas. E a herança biológica
orienta,
e, até certa medida,
limita,
as orientações
que
pode
tomar.
Mas o que é importante notar é que toda a ontogenia do homem, desde os estados precoces da vida embrionária, se dirige para a formação de um animal cultural, que faz a sua história, decide da sua vida. constrói o seu mundo, e não, como os outros animais, destinados
rem
sob
O homem
limitadas
condições
ecológicas,
numa
parcela
desenvolve-se para o mundo existente e para
do
a vive-
mundo.
novos mundos
que concebe e cria. Quero dizer que tudo o que faz a humanidade do homem é preparado durante a ontogenia (no embrião e no feto), « depois,
a partir do momento em
que
nasce,
ao contacto
do
meio
Ontogenia e socialização estão fundidas na realização do se : A
postura
erecta
prepara-se
anatomicamente 20
já
no
social.
v humano.
segundo
mês
de
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —1
gestação; a preparação para poder falar é também feita na vida fetal, por exemplo na estrutura peculiar da laringe, que é muito diferente da de qualquer outra espécie. Por outro lado, o grande desenvolvimento do cérebro começa também cedo na ontogenia; etc. Em suma, podemos dizer que o homem é o produto simultâneo do biológico
e do
social
(v.
também
os caps.
IV e xi).
O
homem
não é tanto o resultado da interacção dos dois domínios separados, o da natura e o da cultura, como é costume afirmar-se. Nele, os dois com-
ponentes confundem-se, colam-se e interpenetram-se para constituírem o ser humano, impossível de formar-se sem essa intimíssima conjunção. Em toda a vida do homem o biológico e o cultural são, de facto, indissociáveis. O elemento cultural e a socialização não são exclusivos do ser humano, mas é nele que atingiram proporções imensas, sem igual no resto da natureza viva, nomeadamente como factores de criatividade e diversidade individual, substituindo a fixidez, o automatismo. A cul-
o biológico, dirige a reprodução, as relações entre os
tura subordina
homens, fomenta neles ideias sobre si e o mundo que os rodeia. À complexa mente humana realiza-se socialmente e as ideias que concebe
as suas acções,
determinam
que, por esse facto, escapam
ao condicio-
nalismo estrito de qualquer determinismo genético específico.
9.
A
consciência
Voltando
como
ao problema
referência
da origem
do homem,
poderá, claro está,
conceber-se que o primeiro macaco que na remota linha da nossa ascen-
dência conheceu e recusou a morte foi de facto o primeiro ser humano. Mas
nada
nos garante
que
tal conhecimento
fosse súbito, como
uma
revelação que tivesse surgido num único indivíduo. A consciência da morte e a elaboração de todos os processos psicológicos conduzindo o primata humano a «evadir-se» desse reconhecimento (ou a suportá-lo)
são aquisições que me
parecem
demasiado complexas
para se forma-
rem bruscamente. O processo da consciência do próprio perecimente e das ideias e sentimentos que o negam, não posso concebê-los como fenómenos repentinos, de origem individual. Esta recusa da morte está, provavelmente, na origem das religiões que negam o perecimento ou pelo menos
que pretendem
diz J. D. Bernal
torná-lo,
por vários modos,
aceitável. Como
(1972):
Os animais e os seres humanos primitivos morriam, mas
não conheciam a morte: uma vez conhecida, de processos psicológicos foram encontrados 21
todos os tipos para permitir
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
ao homem suportar ou escapar ao conhecimento da morte. O primeiro destes processos foi o enterramento. Com mais presciência que etimologia, Vico fez mesmo derivar a palavra «humano» de inhumare, enterrar. O sepultamento é uma prática muitas vezes considerada como a mais nítida indicação do estatuto humano, sem o que poderíamos pensar tratar-se de uma sociedade simiesca.
Entre
certos
primatas,
a morte
parece
ter,
em
alguns
casos,
pro-
mento
de mãe deixou de reagir a um objecto que já não gritava nem
se mexia. Em todo o caso, a irmã mais velha do bebé chimpanzé apertou o pequeno cadáver contra o peito, e a mãe, saindo por momentos do seu alheamento, arrancou-lho dos braços, mas indiferente, deixou-o cair no chão.
de novo,
aparentemente
Do mesmo modo, a visão de um chimpanzé paralisado dos membros inferiores, arrastando-se penosamente, perturba intensamente os companheiros,
acostumam
que o observam
cheios de pavor,
até que
à estranha situação do companheiro
finalmente
e acalmam-se.
se
Mais
curioso é o caso de um chimpanzé de 3 anos que, após a morte da mãe, sofreu tão profundas perturbações físicas e psicológicas que morreu,
também, ções
pouco depois. Afectado gravemente
com
os
outros,
passou
a
isolar-se
no crescimento,
por
longos
nas rela-
períodos.
O
seu
definhamento parece (na opinião da autora) dever-se mais aos efeitos de uma insegurança social intensamente ressentida do que a má nutri-
ção determinada por falta do leite materno.
Serão de assimilar estes casos a situações
mesmo
humanas
análogas,
até
provocadas por causas idênticas? De uma maneira geral, pode
talvez dizer-se que o bebé humano
e o bebé chimpanzé exigem
contactos
íntimos e normais com a mãe para que beneficiem de um são desenvol. vimento, mas para além disto é prudente
guardar-nos
de comparações
ou assimilações apressadas. As analogias são tentadoras, mas os erros surgem
muitas
vezes
com
elas.
Que
o chimpanzé
possa
ter
uma
certa
consciência de si mesmo é um facto que parece impor-se em face de observações cientificamente conduzidas. Mas essa consciência é frustre, 22
ssa
fundos efeitos fisiológicos e talvez mesmo psicológicos. Devemos por isso evitar as generalizações excessivas e não estabelecer fronteiras inultrapassáveis entre o animal e o homem. Assim, certos macacos podem, por vezes, durante semanas, estreitar o filho morto até este não ser mais do que um farrapo de pele. Entre os chimpanzés vivendo em condições naturais, Jane Lawick-Goodall fez observações importantes, hoje clássicas. Um chimpanzé fêmea perdeu por completo o desvelo pelo filho logo que este morreu, como se ela o soubesse morto, o que não deve provavelmente ser 0 caso, mas sim, talvez, porque o seu comporta-
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — 1
é provavelmente diferente da consciência do homem, corresponderá a experiências interiores de outra ordem. É talvez fonte de confusão que as mesmas palavras sejam utilizadas para coisas ou processos que não são identificáveis, equivalendo-se, na melhor das hipóteses, parcialmente. Com isto não queremos significar que não haja numerosas semelhanças no comportamento entre primatas superiores e o homem; que o chimpanzé não tenha uma consciência de tipo primitivo que não será talvez de aspecto muito diferente da que teria caracterizado um estádio infra-humano
na linha de evolução da nossa espécie;
finalmente, o estudo do psiquismo
do chimpanzé,
que,
revelador de uma
«autoconsciência» como que a ensaiar os seus primeiros passos incertos,
não seja, cia para -Goodall, animais,
apesar de todas as reservas que se impõem, da maior importâna compreensão do homem. Como diz justamente Jane Lawicko chimpanzé eclipsa pelas suas qualidades todos os outros mas é eclipsado por nós, onde as capacidades espirituais são
praticamente
ilimitadas,
matas superiores. Justifica-se que
se as compararmos
se
desenvolva
um
com
pouco
as exibidas pelos pri-
este
tema.
Refiro-me
ao problema da «mente» do animal na sua relação com o mundo, e em especial a questão de se saber se os animais possuem ou não consciência,
qual
a sua
ligação
ou
afinidades
com
a autoconsciência
humana.
Problema a respeito do qual quase tudo se ignora, mas que tem aqui cabimento, merecendo que lhe dediquemos um pouco de atenção, precisamente porque é daqueles onde as ideologias e as posições religiosas e filosóficas mais decidem das soluções propostas e mais influenciam
as atitudes críticas. Esta «biologia do espírito», como já foi designada, está particularmente
apojada
de carga ideológica, sobretudo porque
o
espaço da investigação e das críticas, dos resultados e das sínteses esclarecedoras é ainda muito reduzido e porque a tendência forte de reduzir os processos mentais culares
opõe
a fenómenos
frontalmente
fisiológicos, físico-químicos e mole-
crenças,
políticas
e filosofias.
E
a questão
surge ao longo deste livro, em vários dos seus passos. O aparecimento de estados conscientes em oposição aos inconscientes marcou o aparecimento de qualquer coisa de novo e fundamental no universo. Em
consequência, vem
logo a seguir ao aparecimento
da
vida. Mas a emergência da consciência no reino animal é, como disse Karl Popper, um mistério talvez tão grande como o da origem da vida, Compreender o seu modo de aparecimento, a sua evolução, reduzi-la a simples
processos
neurofisiológicos,
identificá-la à matéria,
lhe
significado
transcendente,
atribuir-lhe a natureza
um
nómeno,
um
simples
seu
reflexo
constitui,
no
conjunto,
filosofia;
provavelmente
de
um
processos
enorme
insolúvel,
pelo 23
orgânicos,
problema
menos
da
etc.,
procurar-
de epifetudo
biologia
no estado
actual
isto
e de
dos
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
conhecimentos. À discussão deste problema imenso, nalguns aspectos, entra, porém,
no quadro
da biologia
dos seus
evolutiva.
A abordagem do problema da consciência do animal levanta numerosas dificuldades. Temos, por exemplo, as que respeitam à própria definição
do conceito
(variável
com
os autores),
à sua
natureza,
à
questão da legitimidade da correspondência entre a mente do animal e a mente humana, e se de facto será correcto aplicar aos não humanos a noção de consciência e, particularmente, o conceito de «mente
cons-
ciente de si». Os animais são seres que recebem, guardam e organizam informa-
ções recebidas. São capazes, em maior ou menor grau, de «perceber» situações, de se adaptarem ao ambiente, exibindo condutas apropriadas às necessidades de sobrevivência e reprodução, comportamentos que se dirigem para atingirem certas finalidades, em sentidos que se desenvolveram durante
a evolução, inscrevendo-se
na sua
substância
here-
ditária como programas mais ou menos fixos de acção, de ajustamento ao meio e aos desafios que as circunstâncias põem. Dir-se-á, então, que têm comportamentos «inteligentes», e sem dúvida que possuem um certo grau de inteligência, no sentido de que apreendem prontamente um problema e respondem com a solução adequada. São numerosos os zoólogos para os quais têm consciência
os ani-
mais de cérebros complexos, sobretudo, entre os vertebrados, as aves e os
mamíferos
e talvez, também,
os cefalópodes,
entre os invertebrados.
Mas a autoconsciência, o «saber-se que se sabe», o «ter-se consciência de si como pessoa», não será uma aquisição exclusivamente humana
e, com ela, a consciência da morte? É provável que sim. Mas poderá afirmar-se que o animal não tem consciência de si e dos seus actos? No chimpanzé não se pode excluir a existência de um esboço muito grosseiro
de autoconsciência,
que
até poderá
ser,
a meu
ver,
de
uma
natureza peculiar, diferente da humana. É um ponto que divide biólo-
gos e filósofos. a
|
Bernard Rensch (1974), por exemplo, pensa não ser provável que autoconsciência seja característica exclusiva da espécie humana.
Acrescenta que observações feitas sobre a psicologia animal permitem, segundo ele, concluir que os animais superiores, em especial os antropomorfos
(chimpanzés, etc.), formam um conceito razoavelmente com-
pleto de si mesmos («of their own self»). Mais vago é Popper (1974), quando diz que poucas dúvidas existem de que os animais possuem por vezes,
ter a consciência
de
um pro-
Conhecem-se numerosos exemplos, quer nos invertebra dos, quer nos vertebrados, de capacidade perceptual (orientação espa cial, etc.) e de aprendizagem.
Estes
factos
conduzem
obviamente
à questão
de
saber se nos animais existe de facto autoconsciência. O pro blema, por
-
mesmo,
blema.
TITS
podendo
24
EE
consciência,
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —1
insolúvel que pareça, não deixa de ser importante.
Para
W.
H. Thorpe
(1974), da Universidade de Cambridge
(Inglaterra), ele é o problema
máximo
a grande
para o reducionista,
de ciência, e mesmo e a «mente»,
maioria
dos filósofos
numerosos neurofisiologistas, estão de acordo em
concebida
de irredutivelmente
visto que
como
diferente
sendo
do
que
a nossa
em
consciência,
ciência
é algo
se entende
como
«corpo animal», como «mecanismo material», dualismo este que está muito difundido nos círculos científicos. Sendo assim, diz o
mesmo autor, coloca-se o problema de saber a partir de que ponto da série zoológica ascendente será legítimo admitir a realidade de uma «consciência».
Claro
está que
tomamos
como
referência o que
pensa-
mos ser a consciência humana individual, o que implica que admitimos a sua equivalência à «consciência» do animal, o que é manifestamente incerto.
É possível que os animais pensem ou sintam um tanto conscientemente todas as vezes que ajustam o seu comportamento para resolver problemas,
nomeadamente
por
aprendizagem.
É
conjectura
o que
o
etologista Donald R. Griffin (1984), professor da Universidade Rockefeller. Esta hipótese
não
pode, porém,
ser refutada,
nem
confirmada.
Nada nos garante que os animais tenham pensamentos e sentimentos, mesmo que, como parece fazer o referido autor, se limite a sua exis-
tência possível aos mamíferos e às aves. Mas ao mesmo tempo não
podemos recusar que estes animais possuam uma certa consciência das situações e uma certa noção de experiências interiores, em particular
quando têm de agir especificamente perante situações novas às quais repentinamente sejam confrontados, enquanto haveria um como que alheamento ou desconhecimento
de si em situações digamos
de rotina,
normais. A plasticidade da adaptação do comportamento a circunstân-
cias novas seria pois um critério para ajuizar da existência de um pensar consciente, Parece legítimo deduzir, com efeito, que a antevisão de soluções para problemas que no animal urge resolver implique a existência
de
pensamentos,
emoções
conscientes,
e
de
actos
de
certa
maneira
Em suma, não existem provas que demonstrem ou neguem a existência de «consciência» nos animais, de possuírem um sentimento de apreciação da sua própria existência, dos seus próprios actos, deeisões, propósitos, emoções, etc, É certo que a memória é um elemento importante da consciência, e os animais possuem-na bem desenvolvida. Se alargarmos a definição de «consciência», incluindo nela a percepção vaga ou grosseira do ambiente, os processos automáticos de reacção aos estímulos, e uma certa experiência interna de natureza emocional, então teremos de admitir essa qualidade como uma característica de todos os animais. Podendo-se nesta definição abranger aquilo que o etologista Otto Koehler (1972) designou por «pensamento não verbal» 25
GERMANO
dos animais, a percepção figurativas; e com momento certo sem
DA
FONSECA
das formas
SACARRÃO
e do espaço,
das suas imagens
tais concepções tomando decisões adequadas no ter havido treino adicional. Mas ao mesmo tempo
Koehler parece não considerar «consciente» o pensar do animal porque afirma que homem:
«a
consciência
de
si próprio»
é o privilégio
Conscious of himself, power over his own
exclusivo
do
drives, a sense
of responsability and duty, freedom of will, morality, religion, art, and
alone.
science
are the
privileges
articulate
creature
(P. 100.)
Parece, assim, que o «pensamento ciente. À expressão é por isso, a meu Tratar-se-ia,
of the
seguindo
o mesmo
autor,
não verbal» não será consver, geradora de confusão.
de
um
processo
comparável
às
actividades que se desenrolam no organismo. Por isso, diz que os animais superiores memorizam pormenores do ambiente e situações concretas e adaptam directamente o seu comportamento a novas condições
do
mundo
exterior,
tal como
os órgãos
do
corpo
desempenham
as
suas funções (pp. 115 e 116). Como um «pensamento» orgânico, processo básico existente nos animais, pelo menos a vermes anelídeos. As definições e concepções amplas, rarefeitas ou nada servem, a não ser para evidenciar a nossa ver, é provável, repito, que animais superiores e
(talvez)
as
aves
possuam
uma
certa
franja
particular os primatas superiores. Mas no homem é provavelmente de outra natureza,
de
partir
do
nível dos
e vagas, para pouco ignorância. A meu como os mamíferos «consciência»,
em
a «consciência de si»
não tem, talvez, paralelo no mundo
animal, ainda que reconheça haver certas semelhanças básicas compartilhadas e de raiz comum, nomeadamente o «pensamento não verbal» (no sentido que lhe deu Koehler) e a que veio depois sobrepor-se e combinar-se com função descritiva consciente
é
apenas
quatro
uma
Por
seu
como
lhe
inconscientes. conjecture»,
ele a auto-reflexão, ligada ao cérebro humano e à da linguagem. O que se apura é que o pensamento
funções
parte
de
chamou)
biológicas:
um
vasto
Popper
Karl
lado,
de
que
dor, prazer,
conjunto
avançou a
consciência
expectativa
de
processos
(«a
a ideia
emergiu
e atenção
(a
wild de
que
me permito acrescentar a memória). E diz, ainda, que a atenção talvez provenha de experiências primitivas de dor e prazer, e que a dor é um fenómeno quase idêntico à consciência. Todas
e a sua
as ideias
origem
e sugestões
escondem
uma
que
se propõem
ignorância 20
explicar
fundamental,
a consciência
Na
realidade,
BIOLOGIA
totalmente
desconhece-se
E
SOCIEDADE —1
e em
até que ponto
que medida
os animais
são conscientes. Podemos conjecturar livremente, mas não saímos da prisão do antropocentrismo, na qual, quanto a este problema, estamos por
Sugerir,
encerrados.
exemplo
feito), que,
já se tem
(como
se o
animal escolhe uma entre várias soluções, particularmente quando essa opção é nova e corresponde a um problema novo, sendo então o animal despertado no seu comportamento e incitado a estar atento, isso quererá dizer
consciência
ele tem
que
da
e dos actos
situação
e escolhas
que
faz. Ou, como disse Popper, quando o animal ensaia a solução de problemas de tipo não rotineiro. Todavia, como todos os organismos, afinal de contas, solucionam problemas, será absurdo pensar, julgo eu, que
um protozoário, uma anémona ou um verme, uma
todos eles, mesmo
peixe, têm consciência, ou seja, percepção do que neles
mosca ou um
se passa e do que intentam fazer.
Também se poderá, claro está, identificar matéria e espírito. Para o zoólogo Bernard Rensch, a matéria tem uma natureza protopsíquica
e a sua evolução equivale à evolução da consciência desde um nível elementar protopsíquico (átomos, moléculas), passando por níveis rudimentares e não estruturados, até ao desenvolvimento de uma autoconsciência cada vez mais completa, cujo grau máximo é atingido no homem. Para outros ainda, o espírito é anterior à matéria e esta é o
seu produto. É, por exemplo, o caso do biólogo e evolucionista Sewall Wright (1964): Mind
is universal,
in their
and
cells, but
present
not only
in all organisms
atomes
in molecules,
and
elementary
particles.
As estão
na
filosofias deste
base
de
Henri
Teilhard
Bergson,
panpsiquismo,
tese
recuo
de
de que
e outros
Chardin tenta
escamotear
as dificuldades de explicar o aparecimento da autoconsciência e das actividades do espírito e, de uma maneira geral, dos processos mentais
nos animais. O filósofo A. N. Whitehead, em 1938, desenvolvera já a ideia de que não só os animais mas também as plantas, as bactérias e a
matéria
inanimada
compartilham
propriedades que estão na base dos
processos mentais (cit. por Griffin, op. cit.). Deste quadro conceptual (identificação de matéria e espírito) resulta o ponto de vista de que os
fisiológicos
fenómenos
e os fenómenos
corpo/alma Mas
um
tal
(nomeadamente
os
que
ocorrem
no
cérebro)
psíquicos são idênticos, e à luz desta hipótese o dualismo
e as
influências
identicismo
não
recíprocas deverá
das
duas
ser entendido
partes como
desaparece.
um
materia-
lismo absoluto (onde os processos psíquicos seriam epifenómenos), mas, 27
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
ao contrário, os seus defensores pensam que «os nossos fenómenos psíquicos são os únicos factos indubitáveis, enquanto a matéria é somente deduzida a partir das percepções com o auxílio de operações lógicas.» (Rensch, op. cit., p. 247).
Está muito generalizada a tendência de explicar o comportamento e o sentir do animal com base no que se passa no ser humano. Um tal antropocentrismo
não
explica
realmente
nada.
É
certo
que
certas
reacções fisiológicas e comportamentais são comuns aos animais superiores e ao homem e legitimam, por isso, comparações e correspondências.
Sendo
as
raízes,
em
parte,
comuns,
poder-se-á
especular
com
equivalências. Em todo o caso, creio que não podemos ir mais longe no estado actual da ciência do que supor a existência de uma consciência grosseira e muito rudimentar nos mamíferos e nas aves (aqui, sobretudo, experiências emocionais)
e talvez, também, nos cefalópodes. Mas
na condição de considerarmos essa consciência primitiva como significando a «inteligência» de um problema ou situação, um experimentar de prazer ou dor, representações do mundo
exterior, etc. Penso que se
impõe a maior reserva nestas equivalências de conceitos, neste projectar do homem no animal. É verdade que os mamíferos experimentam processos psíquicos comparáveis aos que se passam no homem (vêem, ouvem,
têm memória,
sentem
dores, etc.), mas
em
todo o caso existe
um imenso abismo a separar a vida espiritual do homem, a autoconsciência, que parece seu único privilégio, dos processos mentais e subjec-
tivos dos mamíferos e das aves. que
Quanto
aos antropomorfos,
tenham
uma
consciência
em
especial o chimpanzé,
confusa
e
grosseira
da
sua
é provável existência
individual, mas a autoconsciência do homem é algo de radicalmente diferente, é um fenómeno de outra ordem que emergiu provavelmente
na linha evolutiva que conduziu ao ser humano. As reacções de pavor que manifestam os chimpanzés perante cadáveres (de semelhantes seus, ou de outros mamíferos), ou o medo que experimentam perante animais
adormecidos, nada
disso demonstra,
ou sequer indica
claramente,
a meu ver, que eles tenham consciência autêntica da morte. Parecem-me infundadas as afirmações que por vezes se fazem nesse sentido, como, por exemplo, a de que «os chimpanzés têm provavelmente uma intuição
sobre o significado da morte»!
(A. Kortlandt, em Dróscher,
Penso que os seus comportamentos, não só individuais seriam
inteiramente
sentimento
interior
como
1978). sociais,
diversos do que são se acaso neles emergisse e reflexivo
acerca
do
próprio
um
perecimento.
A linha onde se operou a evolução física e espiritual do homem desviou-se de tal modo do tronco evolutivo dos primatas que lhe são mais próximos que se torna muito difícil, diria mesmo impossível, estabelecer
uma
lógica
consistente
de 28
descendência
para
a
enorme
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — I
inovação que foi a autoconsciência profundamente
humana. O saber-se mortal
a diferença fundamental
marca
relativamente aos outros ani-
mais não humanos. É um dos seus sinais de mais profundo significado. 3.
Reducionismo
e determinismo
biológico
Já noutra ocasião me referi aos perigos que resultam de se explicar o comportamento humano recorrendo a um determinismo biológico estrito, ou seja, como resultado último e certo da actividade dos genes, das células, dos tecidos e órgãos que existem em cada indivíduo, e que o próprio comportamento da sociedade equivaleria à soma total desses comportamentos
individuais,
cujas
causas
se
encontrariam
fixas
no
enoma e nos processos físico-químicos elementares do organismo (v. meu 1982). O determinismo biológico explicaria, portanto, o que é e o que faz o homem por um enfiamento de causas que se sucedem as biomoléculas
desde
da hereditariedade,
que
das proprieda-
decidem
des bioquímicas das células, como os neurones do cérebro, até à elabo-
ração das ideias, dos sentimentos, dos actos da vontade, etc. As acções individuais proviriam de propriedades das células e estas dos programas contidos nas moléculas da hereditariedade. A vida social seria a totali-
dade destas acções individuais, por sua vez comandadas pelas moléculas básicas do programa genético. O ideal determinista (materialista mecanicista) estaria aqui realizado. O determinismo biológico é um
prévio
esclarecimento.
fundamentalmente
Na
tipo de explicação que exige um
realidade,
as causas
em
tudo o que
si próprio,
no
faz o homem que
tem
ele é como
ser
biológico, criador de culturas, aberto para o mundo, e nas relações de si mesmo com as circunstâncias que enfrenta. É na sua biologia, durante o seu desenvolvimento embrionário e fetal, que se preparam
as estruturas e funções que mais tarde irão permitir que, por socialização, se faça a edificação do ser humano. Atribuir, portanto, o comportamento social a um determinismo biológico, no sentido de se tratar de uma causalidade que basicamente emana da própria constituição do ser humano, complementada por socialização, é um ponto de vista que não levantaria controvérsia no plano científico, julgo eu. Mas não é neste sentido vago e todavia não falseado que o determinismo biológico deverá
controlo
ser
condenado,
genético
manifestações
mas
sim
quando
e hioquímico-celular
do comportamento
significa
um
estrito e directo
exercido sobre os caracteres
social, em
suma,
que
haveria
e
genes
específicos para esses comportamentos, para o egoísmo, para o altruísmo, para as diferenças entre classes sociais, etc. Ora é este o sentido corrente
da
expressão.
Este
praticado
determinismo
biológico
é
reducionista
e prende-se com a questão mais geral do reducionismo, metodologia em regra associada
ao materialismo
mecanicista. 29
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
O reducionismo é o ponto de vista segundo o qual só se compreende verdadeiramente um fenómeno quando o dividimos até as suas últimas partes, quer dizer, quando
o fragmentamos
até ao mais baixo nível da
sua organização que é acessível à análise. Assim, as propriedades dos conjuntos complexos
(como uma
molécula, uma
célula, um
organismo,
um ecossistema, uma sociedade, etc.) são apreendidas a partir das partes, de que são compostos. Por exemplo, as características das células ou das sociedades seriam a soma das propriedades das suas partes. Para compreender as sociedades humanas bastaria adicionar as características dos comportamentos individuais. E como estes seriam o resultado dos seus genes, a sociedade seria finalmente reduzida e compreendida em termos
de genes e previstas as suas estruturas, modificações e condutas
em função das raízes moleculares que contêm os programas hereditários de cada indivíduo. Devido
ao enorme
sucesso dos
métodos
analíticos,
cada
vez mais
refinados, e também por causa dos êxitos extraordinários conseguidos pela biologia molecular, tem-se assistido à tendência para concluir que em biologia as verdadeiras explicações devem ser procuradas a nível molecular. Mas nem todos pensam assim. Outros há que, pelo contrário,
são da opinião de que reduzir as explicações à raiz física ou química dos fenómenos da vida não contribui para a solução dos problemas
mais importantes da biologia. Mas se estas duas posições extremas são, de facto, de rejeitar, é nas relações entre os factos e teorias da biologia,
e em diversos aspectos da biologia humana e da sociedade, que o reducionismo, na forma de um determinismo biológico estrito, se tem mos trado particularmente
nocivo,
como
suporte
e legitimador
de desigual-
dades, opressões, interesses de classe e atentados à dignidade e liberdade humanas. Como
escrevi noutro lugar, em
1972, a vida do organismo é mais
do que a soma das propriedades e processos que ocorrem nas células ou nas moléculas que o constituem, é mais do que a adição das pro
| ,
priedades das suas partes constitutivas, porque estas interactuam, influenciam-se mutuamente, e destas interdependências resultam novas
propriedades que não existem nas suas partes ou órgãos, células, ete.. quando isoladas. Mas enquanto o reducionismo, como interpretação e solução,
nomeadamente
dos problemas
biológicos
e sociais
humanos,
é de recusar, é importante advertir que como método de análise cient fica é um artifício cujo enorme significado está à vista, com o imenso saber e progresso tecnológico acumulados. Todo o verdadeiro cientista, seja ou não partidário da filosofia reducionista, utiliza esse método nas suas investigações. É o melhor instrumento que até hoje foi inventado para conduzir com sucesso a investigação científica e o melhor
processo de revelar a organização e funcionamento relações
entre
si e com
o ambiente, 30
e portanto
dos seres vivos é as
o método
mais
capas
| |
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —
de contribuir para melhor compreender o mundo e se poderem obter os meios eficazes de o mudar e aperfeiçoar. Mas o reconhecimento do seu inestimável valor nada tem a ver com as suas limitações, perigos e vícios, que aliás são inerentes a qualquer método de análise da realidade. Sobretudo o que não deverá ser confundido é o reducionismo, como instrumento de pesquisa, com as interpretações, teorias e filosofias reducionistas e suas relações com as ideologias construídas à luz desse artifício metodológico ou por ele suportadas. Como justamente lembrou George G. Simpson, um gene nocivo pode estar na origem de uma deficiência mental. Conhecem-se exemplos. Mas a ausência ou presença do gene normal (do seu alelo «são») é que não explicará o funcionamento normal do cérebro. Diversos biólogos se têm referido ao problema do reducionismo na ciência que cultivam. Alguns daqueles que defendem o reducionismo reconhecem que ele tem os seus limites (v., por exemplo, os Medawar,
1983). Por outro lado, a compreensão de um todo nunca é possível, visto que a ciência é selectiva, a pesquisa exerce-se sobre aquelas propriedades dos organismos que oferecem interesse, e sobretudo sobre aqueles processos e estruturas que são acessíveis à metodologia reducionista. O problema do reducionismo apresenta diferentes faces e valores, consoante os domínios nos quais o consideramos. Para Francisco J. Ayala (1974), a questão do reducionismo surge-nos em três espaços diferentes — o ontológico, o metodológico e o epistemológico. Ao discutir o problema, convém distinguir a área respectiva em que ele se insere para evitar mal-entendidos. A grande maioria dos biólogos está de acordo em que os processos físico-químicos subjazem aos fenómenos da vida, nomeadamente a nível atómico e molecular. A nível elementar, as leis da física e da química aplicam-se inteiramente aos processos biológicos que nele se passam. Todos os vitalismos estão hoje em processo de decadência ou extinção na filosofia da biologia desde que se reconheceu que os «princípios» não materiais (enteléquia, «élan vital», etc.) não servem para explicar cientificamente os processos biológicos. Não se aclaram ou dissipam mistérios invocando outros mistérios.
Mas a questão complica-se quando
se consideram
níveis superio-
res de integração (orgânica), onde as leis da física e da química não conseguem explicar (não são aplicáveis a eles) processos biológicos como a selecção natural, a adaptação e tantos outros (v. mais adiante). Mas nem por isso as alternativas ao reducionismo têm de ser os vitalismos. Muitas das críticas ao reducionismo vieram de vitalistas, mas actualmente,
na
biologia,
a
generalidade
dos
anti-reducionistas
não
defende princípios imateriais. São materialistas
(alguns deles apologis-
tas
Lewontin)
do
materialismo
dialéctico,
como 31
Richard
ou
aderem
VE RS
a outros materialismos e são holísticos (organicistas)
stress mag e Na
SACARRÃO
FONSECA
DA
GERMANO
ou emergentistas,
base
em
princípios
vitalistas.
No
presente,
ser
anti-reducionista
Te pj
ou simplesmente biólogos que rejeitam frontalmente as explicações com não
reducionista, sendo por esse facto
UR PPA
derna é profundamente
o
significa que se seja vitalista. À alternativa já não é entre reducionismo e vitalismo. As explicações em biologia exigem de facto mais do que identificações à química. Mas há que reconhecer que a biologia moconsiderada,
muitas vezes, como materialista mecanicista por obedecer à metodologia do reducionismo cartesiano.
toma
o nome
de
materialismo
dialéctico.
Todavia,
de máquina)
e na filosofia
muitos
dos
que
seguem esta última escola afastam-se em muitos pontos do holismo, e a verdade é que numerosos partidários desta última doutrina pouco ou nada têm de comum com o materialismo dialéctico. Mas na prática investigativa nenhum biólogo é, em absoluto, reducionista (mecanicista), nem é completamente holístico. Porém, nas interpretações que elabora, nas aplicações das suas conclusões científicas ao domínio social ou
político,
nas
grandes
sínteses
que
constrói,
ou
no
aproveitamento
rar
e o outro é o materialismo holístico, que na história
RPPN
de trabalho
NEN SP
mos físico-químicos e de reacções mecânicas,
ÇA
Podemos, com Garland Allen (1978), distinguir dois tipos de materialismo. Um é o materialismo mecanicista (explica tudo em ter-
Aí é que se revela a grande influência da sua filosofia básica e inspiradora, do seu método de abordagem
da realidade.
A nível da prática
científica, a maioria dos biólogos não toma, portanto, posições extremas
reducionistas ou anti-reducionistas. Apenas as exigidas pela especialização que cultiva. Biólogos e filósofos comungam na ideia de que a investigação de problemas num dado nível de complexidade exige, de
pa Ra
que delas faz para defesa de ideologias ou filosofias, já não é assim.
facto, a análise de outros níveis do mesmo sistema, quer inferiores, quer
aplicação
RAF
invisíveis à actividade normal dos importa estudar e relacionar, sem compreensão razoavelmente realista
da natureza viva. À nível epistemológico, o problema saber se as leis e teorias com
como o
do reducionismo
numa
consiste em
área ou disciplina
fica serão casos particulares de leis ou teorias de outra plina. No caso afirmativo, dir-se-á que a primeira
cientt-
área ou disci-
disciplina é reduzida
a segunda, que uma ciência pode reduzir-se a outra, que a inclui. Em biologia, a questão está em reconhecer se afinal esta ciência, as suas
teorias e leis, não serão casos particulares das leis físicas ou quimicas, 5º
os
fenómenos
biológicos
não
serão
todos
redutíveis
a
processos
físicos
acne
mundo dos processos e estruturas sentidos (células, moléculas, etc.) o que não será possível obter uma
biológicos
SUTURA a
visível dos fenómenos
sn
o mundo
Pes OP
superiores. Tanto
34
Deere
e químicos; se a biologia é, ou não, uma subárea da quimica e estã, por sua vez, em grande parte, incluída na física 2. À história da ciêncis
BIOLOGIA
está
cheia
destas
tentativas —
E
SOCIEDADE — 1
reduções
e
anti-reduções,
afinidades
e unificações, muitas delas de suma importância. No que respeita à biologia, importa acentuar que a redução desta ciência às ciências físico-químicas não é possível no estado actual dos conhecimentos sobre a natureza viva. É certo que a base da existência de todos os seres vivos é constituída por certas moléculas, como o ADN, o ARN e enzimas, e que da estrutura e actividade destas moléculas parece depender tudo o resto. Isto pode levar à tentação de afirmar que só o estudo molecular dos seres vivos é verdadeiramente significativo para os explicar. Ou seja, que a biologia molecular seria toda a biologia, e com ela poderíamos tentar obter respostas para todas as interrogações. Ora a verdade é que existem numerosos problemas e conceitos em biologia que não cabem nos quadros das leis e fenómenos da física
e da química, ciências, nem exemplo,
não podem
ser definidos em termos próprios a estas
delas poderão vir as soluções adequadas. Refiro-me, por
a conceitos
(e aos problemas
deles decorrentes)
de selecção
natural, adaptação, espécie, ontogenia, população mendeliana, comportamento, relação predador-presa, ecossistema, nível trófico, etc. Mesmo conceitos básicos como o de célula, de órgão ou de organismo não podem ser derivados, concebidos ou definidos à luz de leis ou teorias da
física ou da química, para não referir tantos outros aspectos ligados à evolução dos seres vivos, haver ou não «progresso» na mudança, relações da mente com o mundo, no animal e no homem, etc. A biologia não é pois redutível às ciências físicas e químicas. Esta negação não significa que tenha de admitir-se qualquer princípio vital misterioso, qualquer «princípio organizador» ou «força imaterial», com os quais poderíamos explicar os fenómenos vitais. Mas o que é facto é que os seres vivos têm caracteres e manifestam propriedades que não se encontram no mundo inorgânico ou em qualquer outro sistema que não seja vivo. Apesar desta comprovação, os seres vivos são constituídos rigorosamente pelos mesmos elementos que entram na constituição dos corpos inanimados, e, tal como eles, obedecem às mesmas leis físicas. Todavia, se quisermos abordar o estudo do ser vivo, dividindo-o e analisando cada uma das partes, acontece que as suas características como sistema se perdem. Ora, são estas propriedades do sistema que são irredutíveis à física e à química. Para Ernst Mayr (1982), que atacou o problema do reducionismo em biologia, a análise de sistemas é um
método
válido, mas
as tentativas de uma
«redução»
de conceitos ou de fenómenos puramente biológicos às leis das ciências físicas só raramente, se não nunca, conduzem acerca deles a qualquer progresso sensível na nossa
compreensão,
Acentua,
ainda, a vacuidade,
o carácter ilusório e fútil da abordagem reducionista, o que me parece constituir um Bíbl.
Univ.
49 —
exagero 3
do mesmo
autor. 33
Mas
sejam
possíveis,
ou
não,
GERMANO
reduções,
sejam
problemas
tem
Dobzhansky, Os
elas
DA
FONSECA
completas
certamente
ou
muita
SACARRÃO
incompletas, importância
a
discussão
(v.
destes
também
Ayala
são
claramente
e
1974).
excessos,
defeitos
e perigos
do
reducionismo
apreendidos, por exemplo, com o estudo das adaptações dos organismos (v. meu 1985). O processo da adaptação é daqueles que talvez mais claramente demonstram a impossibilidade total de uma redução do organismo e da evolução aos níveis moleculares.
A
adaptação
tem um
sentido, uma lógica de conservação e continuidade, de cumprimento de um «projecto» obtido por combinação de partes no sentido da sua satisfação, que só um processo de nível mais elevado
( supramolecular ).
actuando sobre variações orgânicas e enfrentando directamente o ambiente, seleccione, reúna e preserve os resultados das escolhas. Este processo é a selecção natural no seu sentido moderno (Simpson. 1969).
Outros casos são o estudo da hereditariedade e do desenvolvimento. Aqui, quando a partir do nível biomolecular se passa para o das sínteses enzimáticas e para os da estrutura
e do metabolismo
celular.
transita-se daquele plano onde o reducionismo compelia a levar tão longe quanto possível as equivalências e causalidades físico-químicas. para o plano «composicional» (Simpson), quer dizer, para a fase da complexidade a partir da qual os fenómenos passam a ser considerados na perspectiva da vida do organismo e das interacções de que é a sede.
Vejamos outros exemplos — dades animais e humanas. São as níveis de integração na biologia. das comunidades ecológicas sem
as comunidades bióticas e as socieentidades que possuem os mais altos Não se pode ensaiar uma explicação conhecermos as espécies que entram
na sua constituição. O mesmo se dá com as sociedades que, para serem explicadas,
é indispensável
conhecer
respectivos. Mas este conhecimento
o comportamento
des
indivíduos
não basta nos dois casos referidos.
Por sua vez, as espécies não são inteiramente explicadas pelos individuos componentes, mas é impossível compreendê-las sem o conheci mento destes últimos. E assim sucessivamente, até aos níveis mais
inferiores, como podem
as células e as partes das células,
ser explicadas sem
irmos
às suas fundações
que
também
moleculares.
não expli-
cação esta que, todavia, também não é completa. Mas o que é verdade do complexo para o simples simples para o lhe chamou o não podem ser celulares e nas espécies ficam
também
o é de
complexo (isto é, na direcção «composicionista», como mesmo autor). Na realidade, os fenómenos moleculares inteiramente explicados pelos que se passam nas partes células, nem os fenómenos que ocorrem ao nível das completamente explicados pelos que caracterizam 25
comunidades ecológicas, mas, por outro lado, também cados sem estas últimas. Quanto
às sociedades Sd
humanas,
não serão explise é certo que
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — 1
o seu comportamento não é a simples soma dos comportamentos individuais, também não parece menos verdadeiro que estes últimos nunca
são inteiramente explicados pela sociedade, mas também não podemos explicá-los sem ela, sem as forças sociais. Isto porque os todos também
afectam as propriedades das partes. Tem sido designado por emergência o fenómeno de aparecimento de novas
propriedades
nos
todos,
que
não
existem
nas partes
respecti-
vas. Popper (1974) diz que vivemos num universo de novidades emergentes, num mundo de evolução emergente, em que as inovações surgidas não podem ser reduzidas a quaisquer estados precedentes. Foi o que aconteceu com o aparecimento da vida, da consciência, do
espírito. George Simpson chama «composicionismo» ao emergentismo, que lhe parece veicular um significado metafísico. O método «composicional» ou emergentista descreve, não explica. Nada tem a ver com o vitalismo e outras metafísicas, e tanto exige o estudo dos todos como o das partes. Trata-se de uma filosofia materialista. Separa-se do holismo
tradicional, materialista,
mas
não
não
da
sua
posições
abraçando
moderna,
corrente
que
é estritamente mais
anteriores,
metafísicas
ou
menos vitalistas. Também é utilizado como seu sinónimo o termo orgaActualmente,
nicismo.
estas designações
todas
afirmam
os todos
que
não podem ser explicados apenas à Iuz da simples adição das propriedades das suas partes, e, mais importante ainda, que o seu estudo deve incidir em todos os níveis, tendo cada nível os seus próprios problemas
e teorias aplicáveis. O «composicionismo» não se opõe ao reducionismo como método, exige-o até. Mas o reducionismo como explicação é muito insuficiente, visto que nos sistemas hierárquicos novos caracteres imprevisíveis surgem nos seus níveis superiores de complexidade. É por isso que os sistemas complexos (como os biológicos) devem ser estudados nível por nível, porque em cada um deles surgem propriedades não existentes nos seus escalões inferiores. Em suma, a biologia tanto é reducionista como «ermegentista», e não
reducionista
como
não
emergentista.
O
reducionismo
extremo
é um malogro porque não dá importância à interacção das partes de um sistema complexo. É necessário ter presente um certo número de princípios. Sem pretensão a ser completo, ou mesmo a fazer um desenvolvimento
desta
questão,
referirei,
em
síntese,
apenas,
os
pontos
seguintes:
1) Um
todo é uma relação de partes que só têm existência real na medida em que as delimitamos no todo, e cujas propriedades nasceram do facto de fazerem parte desse todo, ou seja, das interacções que o definem.
GERMANO
2)
DA
FONSECA
SACARRÃO
Num
todo, cada parte tem, em regra, propriedades diferentes das que apresenta quando isolada do mesmo todo. E o todo que cria essas propriedades das partes. 3) Além da interacção das partes de um sistema, existe interpenetração delas com o todo, porque sujeito e objecto, causas e efeitos, não são entidades separáveis, pelo contrário, alternam. São simultaneamente causas e efeitos, sujeito e objecto (v. Levins e Lewontin, 1985). 4) Os excessos e defeitos do reducionismo podem ser, em parte, remediados equilibrando-os com o «composicionismo», relacionando o ponto de vista químico com o biológico, mantendo
claros os limites e objectivos
destas duas ciên-
cias, mesmo quando ambas se introduzem no estudo do mesmo fenómeno. E sobretudo considerando as várias facetas e interacções desse fenómeno e perspectivando-o em quadros amplos de entendimento. Sendo a natureza viva uma
partes
teia complexissima
em
todos
e entre
de relações
todos
entre
os níveis,
todas
impõe-se,
as
no
estudo de um problema, procurar as interacções possíveis, necessárias à boa compreensão e solução do mesmo pro-
blema.
Redução e «composicionismo» são duas exigências para fazer 0 estudo da biologia, para aceitarmos e apreendermos a realidade da natureza
4.
em
viva
Biologia
e ideologia
e integridade.
aspectos
seus variados
do
Ocidente
Não existe talvez ciência totalmente isenta de ideologia 3 de uma época, ou que não lhe sofra a influência, ou cujas direcções não sejam determinadas por ela. Apesar disso, existe alguma diferença entre «defeitos» próprios da condição da ciência, de esta ser em parte produto
de
condições
vezes
sociais,
distorcida,
e os prejuízos
de justificação
ou
resultantes suporte
de
ela
servir,
tantas
a ideologias.
Talvez seja útil insistir neste ponto. Um dos sinais mais curiosos de certas ideologias e modas intelectuais é a sua pretensão a crédito científico, muitas vezes mesmo a teoria. Para isso amparam-se a uma disciplina da ciência, sustentam-se dela, mas recusam-se à demonstração
científica, à busca, à prova aproveitam
Assim biologia
as
acontece sem
se
do erro. Fabricam
suas
nomenclaturas,
com
diversos sistemas
submeterem
às
mimam
as
e ideologias
normas 36
aparências
da
suas
que
verificação
de
ciênais
exterioridades.
se nutrem e
da
da
neltica
BIOLOGIA
científicas. Quantas
E
SOCIEDADE —
|
ideologias nestas condições não existem, com
ambi-
ções de ampla explicação «científica», a nível da raça, da psicologia, da sociologia, da história, da moral, da condição humana, O mesmo
searam
em
sido o caso
acontece com
modas da
disciplinas da biologia, que se metamorfo-
intelectuais ou em
ecologia
etc,
e sobretudo
ideologias de massa, da
sociobiologia
(forma
como
tem
moderna
e viva do darwinismo social) em tantas das suas levianas transposições para a esfera humana. Tendência que se estende a outros ramos da biologia, numa sorte de cinterdisciplinaridade» ideológica no seio desta ciência. A ponto de a biologia como fonte de mais saber de conhecimento objectivo se confundir com uma «biologia» social e política, que é uma falsificação de ciência. O que Pierre Achard e co-autores (1977) chamaram a «biologização acelerada das questões sociais e políticas». Importa, em suma, distinguir a biologia como sistema de conceitos estruturados nos factos daquela que é utilizada como sistema que se sobrepõe aos factos para servir de garantia a filosofias ou ideologias *.
De resto, não há ciência neutral. À sua pureza é relativa. O facto de os cientistas descobrirem tantas coisas verdadeiras e importantes não significa que tudo o que afirmam em nome da ciência o seja, que não veiculem falsidades, preconceitos, ideologias. Ciência livre de influências políticas, de orientações ideológicas, autenticamente objectiva,
é coisa que não existe. Se confundir ciência e ideologia é sempre um
mal, a verdade é que a primeira não consegue libertar-se inteiramente
da influência da segunda. As convicções sem prova, típicas das ideologias, têm uma força enorme, e são elas muitas vezes que guiam a pesquisa e a desviam para caminhos estéreis ou viciados, ou barram
o caminho à crítica e ao livre exame. À ciência é orientada em regra
para objectivos
de acordo
com
os interesses, as ideologias, as culturas
das classes que detêm o poder. E que o os resultados da sua própria ciência em sua própria ideologia, ou a da classe a cunstâncias em que chega a deformar ou de outrem)
com
justifiquem. O cientista utiliza harmonia, muitas vezes, com a que pertence. E então há ciras conclusões científicas (suas
consciência, ou não, dessa alteração. Num
universo
social totalitário, ou numa civilização fortemente influenciada pela religião, a ciência toma feições e desenvolvimentos diferentes daqueles que surgem em países que oferecem largas possibilidades à discussão livre, à investigação
fundamental
e à aventura das ideias. À ciência,
de facto, é sempre relativa, raramente ou nunca é neutral. O poder político domina-a, infiltra-se nela, é constantemente inspirada pela ideologia, comandada por ela. À inseparabilidade da ciência em relação à política é particularmente evidente quando a pesquisa ou a interpretação à luz da ciência respeita ao homem. É a ideologia burguesa marcou profundamente a ciência moderna, quer lhe tenha servido de veículo, quer de suporte.
reage
37
GERMANO Os
cientistas
têm
DA
as
e religiosas, que amiúde
FONSECA
suas
SACARRÃO
ideologias,
decidem
as
suas
das suas opções
crenças,
políticas
por este ou
aquele
ponto de vista, determinam em parte o sentido das hipóteses que formulam
e, sobretudo,
estão, em
das resistências que opõem (v.
Barber,
1961).
Na
grande
número
de
casos,
na
às novas teorias e descobertas
realidade,
o homem
de
ciência
origem
científicas dificilmente
escapa à influência dos valores da sociedade em que se insere e foi educado e à ideologia da classe social a que pertence. Perante os mesmos factos, os cientistas manifestam opiniões opostas e extraem conclusões absolutamente antagónicas das mesmas experiências e observações. Numerosos biólogos opuseram-se com vigor à teoria da evolução, em particular ao darwinismo, quer na sua forma tradicional, quer moderna. Houve (e há) grandes resistências à teoria da selecção natural.
A
teoria
cromossómica
da
hereditariedade,
a teoria
do
gene,
foram igualmente alvo de fortes ataques e rejeições. Ainda nos anos 20 e 30 havia professores de Biologia que manifestavam fortes dúvidas sobre a realidade dos cromossomas, a sua integridade, o seu papel de veículos
dos factores
hereditários,
etc. Durante
muitos
anos,
a teoria
da hereditariedade dos caracteres adquiridos foi admitida mais por razões de crença do que por argumentos científicos. Este fenómeno de oposição de fundo ideológico continua vivo. As filosofias e políticas
a que os cientistas aderem continuam a influenciar as conclusões dos seus trabalhos, as rejeições ou simpatias que exprimem pelas novas ideias, e a determinar múltiplas contradições que nascem nos seus espíritos. À ciência não é separável da ideologia. Teorias biológicas, por exemplo, sobre a origem da vida, sobre as causas das adaptações, os factores
da
evolução,
origem do homem,
o papel
da
etc., recebem
hereditariedade
ou
do
resistências ou acerbas
ambiente,
a
críticas que
muitas vezes nada têm a ver com a objectividade científica, mas antes
com as ideologias de cada opositor. Grandes nomes da ciência têm exprimido fortes objecções ou mesmo rejeições absolutas de factos e de teorias científicas meramente
(ou predominantemente)
por razões ideo-
lógicas. Em cada época existem certas áreas da ciência que predominam, que atrofiam outras, ou exercem forte influência sobre os seus modelos
explicativos. Muitas vezes é uma questão de moda, mas noutros casos à supremacia resulta da sua maior importância social, do seu significado industrial, económico
e financeiro
(exemplo
da biologia
molecular,
da
engenharia genética, da ecologia), do seu suporte à ideologia do poder, etc. De modo que uma área científica dominante tem tendência a definir
os modelos,
as hipóteses
e os conceitos
de
outras
áreas
ou
disciplinas. Actualmente, na biologia prepondera a biologia molecular, ou seja, a «biologia do invisível» *; e a biologia evolutiva, que é sobre-
tudo a biologia da mudança, da adaptação e da diversidade das estru38
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —1
turas e fenómenos acessíveis à actividade normal dominada pelos conceitos, factos e pressupostos que
dos sentidos, é respeitam à pri-
meira, e valem para ela. Ernst Mayr (1982) tem razão ao chamar a atenção para o grande perigo que existe quando explicações válidas no
âmbito de certas ciências são aplicadas a situações ou problemas para os quais são completamente inadequadas. Isto tem a ver, também, com o problema do valor das explicações baseadas em analogias, que, se em certos casos se revelam
eficazes,
por
via de regra
conduzem
a falsas
e
grosseiras interpretações. Não oferece lugar para dúvidas que o espírito geral de uma época (o Zeitgeist), assim como as filosofias predominantes, as estruturas socioeconómicas existentes, as ideologias de classe, os interesses dos grandes grupos económicos, etc., têm influência sobre o desenvolvimento da ciência, sobre as suas orientações, as áreas que dominam, as teorias que se estabelecem. É, todavia, talvez que a generalidade dos cientistas, nomeadamente
dos biólogos, não atribua significativa impor-
tância a esse facto. Negam que o progresso da biologia esteja dependente de modo expressivo da acção de factores sociais. À biologia, e a ciência em geral, seria algo que pairaria acima do jogo das forças que regem a sociedade, mantendo,
assim, a sua pureza objectiva como instrumento
de procura e encontro da verdade, impermeável às ideologias conspur-
cadoras. Seria o produto da pura actividade do espírito, estranha às exterioridades. A continuação do ideal grego. Os factos mostram, contudo, à saciedade, exactamente o inverso. Se é amplamente reconhecido que a biologia
não
trabalha
mesmo os que proclamam está provado
num
vazio
social, como
aliás o admitem
a sua imaculadidade e independência, e se
que as crenças e filosofias de cada cientista influenciam
vincadamente as suas opções, hipóteses e conclusões, forçoso bém reconhecer que a ideologia de um grupo social ou de uma pode deixar de marcar profundamente a ciência, em especial dos problemas, as teorias elaboradas, as conclusões extraídas vações. Mas não devemos
cair em excessos. Nem
será tamépoca não a escolha das obser-
a ciência progride como
um universo fechado sobre si mesmo, apenas movido por factores pertencentes ao seu próprio âmbito, nem as forças sociais são os únicos agentes no processo. Nem devemos negligenciar nem agigantar outras causas, entre as quais se situam, por exemplo, as posições individuais dos cientistas, as suas ideologias, culturas e psicologias, a que aludi há pouco. Charles Darwin constitui um exemplo significativo. Sem dúvida que na génese da sua teoria entraram múltiplos factores e não apenas a sua posição de classe. À viagem do Beagle, o que durante ela observou em
terras
escolheu,
exóticas, a
maneira
as meditações como
tudo
suscitadas, isto
se
os autores
reflectiu
no
seu
e leituras espírito
que e
o
modo original (e genial) como este reagiu e construiu novas e fecundas 39
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
ideias, teve uma importância decerto considerável na elaboração da teoria darwiniana, não sendo legítimo reduzir a sua obra a uma sim-
ples aplicação à natureza viva do laissez-faire, do individualismo económico característico do sistema capitalista, ainda que não possa negar-se
a sua importante quota-parte para o desenvolvimento darwiniano e como reflexo e justificação de uma
do pensamento
sociedade e dos valo-
res de uma classe em plena ascensão. As considerações precedentes, particularmente no que respeita as influências das ideologias dos cientistas como entraves ao progresso científico, ou como fontes de «má» ciência, não devem criar a ideia
falsa de que eles são pessoas sem «espírito aberto». Pelo contrário, creio que entre os cientistas esta qualidade continua a ser um valor incontestável e frequente. As resistências às inovações, as oposições e influências
ideológicas os defeitos tantas vezes os escalões
ou religiosas, são obstáculos importantes, assim das especializações excessivas, ou o peso da nefasto e devastador, imposto pelos cientistas superiores das hierarquias universitárias ou
como o são autoridade, que ocupam dos grandes
centros de pesquisa. Creio que no âmbito das ciências exactas e experi-
mentais a aceitação é maior do que a resistência e que tanto ela como a objectividade são maiores do que noutras áreas, por exemplo, nas áreas das ciências sociais e humanas. O desenvolvimento da ciência
moderna aí está para o demonstrar. Mas torna-se indispensável alargar o espírito antidogmático e incrementar a vigilância e actuação crítica. Os esforços deverão convergir para reduzir ao máximo a resistência que ainda existe. É um facto que a «abertura de espírito» e o livre exame continuam a ser normas dominantes em ciência, e a crítica livre e a competição entre ideias permitem pôr à prova conceitos e teo-
rias e a submeter hipóteses refutáveis à prova
de erro. O ideal seria
tomar a natureza física e biológica como ela é, ou a natureza social e individual do homem e o seu comportamento em sociedade tal como são, sem nessas naturezas projectar as nossas políticas, os nossos dese-
jos, os nossos valores. É o que pretendem Barber e tantos outros autores, sobretudo aqueles, que formam provavelmente a maioria, que acreditam e proclamam a neutralidade estreme da ciência. É a utopia da objectividade absoluta, que é coisa que não existe, ao que me parece. Em áreas como as das ciências sociais e humanas, as teorias não
passam muitas vezes de pontos de vista consolidados por uma selecção de elementos da realidade que lhe são aparentemente favoráveis, e na escolha de factos ou teorias biológicas convenientes para caucionar a ideologia
subjacente
ou
em
vista,
com
isso
se
constituindo
que poderá chamar-se uma «biologia justificatória». As incontestáveis virtudes da ciência, produto supremo
aquilo
a
do espírito
humano e sua glória, não devem fazer-nos esquecer as suas fragilidades, 40
BIOLOGIA
as suas
utilizações,
a fazerem
E
SOCIEDADE— 1
dela
instrumento
de poder
e em
acordo
com o poder político. As universidades e outros grandes meios científicos criam uma aristocracia do saber e uma ideologia de dominação que, ao mesmo tempo que suportam o poder político e as suas instituições, se distanciam dele para melhor garantirem as suas aparências de pureza
e de objectividade. Este facto acontece em todos os regimes, mas é particularmente nefasto nos regimes totalitários, porque nas democracias pluralistas a existência de poderes e contrapoderes legitimados servem de são correctivo a esse pendor. À ciência faz parte do corpo social, desenvolveu-se nele e não escapa aos nexos, às contradições e aos
movimentos
produzidos pelas forças sociais. Aliás, a ciência criou a
sua própria ideologia, nova religião a que é costume chamar cientismo (o reducionismo é o seu mito fundamental), credo fortemente enraizado em todos os países do mundo, capitalistas ou ditos socialistas, em desenvolvimento ou desenvolvidos. O cientismo é uma ideologia de
poder, moral,
de certezas, O único a filosofia, que tudo
conhecimento verdadeiro, que abarca a invade, num reducionismo absoluto que
tudo pretende explicar e dominar.
O credo assenta em vários mitos que
são outros tantos erros. O cientismo é provavelmente uma das ideologias mais poderosas e perigosas da nossa época, que alimenta toda a ideoloia política moderna, burguesa ou marxista vulgar. Constitui um
«sólido fundo comum à ideologia capitalista e à ideologia comunista sob em
a forma
vigor
na
parte
maior
(Jaubert e Levy-Leblond, 1975). Parte da ideologia do Ocidente,
rectilíneo
à custa
da ciência
dos
com
socialistas»
chamados
países
a sua noção
de progresso
servido de inspiração
e da técnica, tem
ao estudo do reino animal. Os conceitos competitivos e capitalistas for-
jados pela civilização ocidental têm sido confundidos ou assimilados à
natureza ou sancionados luz
de
uma
visão
por esta. Esta natureza, antropomorfizada
económico-concorrencial
e
de
progresso
sem
à
fim,
serve, depois, para explicar o homem ocidental, a sua civilização, os seus valores, a sua condição social. Cultura ocidental, natureza, darwi-
nismo social, moderna teoria genética da evolução, biologia molecular, teoria do código genético, ecologismo, e, finalmente, a sociobiologia são partes de um mesmo todo complexo. Marshall Sahlins (1976), que analisou de perto este problema,
afirma, não sem razão, que se «Adam
Smith produziu uma versão social de Thomas Hobbes, Charles Darwin deu-nos uma versão naturalizada de Adam Smith; em seguida, William
Graham Sumner reinventa Darwin como sociedade e Edward O. Wilson reinventa Sumner como natureza. Desde Darwin, o movimento pendular conceptual acelerou-se. Cada década dá-nos uma noção mais refinada do homem como espécie, e também uma mais refinada espécie de “selecção natural” como homem.» E mais adiante o referido autor acres41
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
centa ainda que lhe parece não sermos capazes de nos libertarmos do perpétuo movimento de vaivém entre «a culturização da natureza e a naturalização da cultura».
Assimilar o mundo da natureza ao mundo da sociedade e vice-versa é uma
forte tendência dos homens
de todas as épocas, mas
introduzir
levianamente essa noção na análise e interpretação científicas é lançar a confusão e levantar obstáculos à compreensão de uma e outra. Já na concepção medieval do mundo a hierarquia de uma sociedade estática se reflectia na hierarquia do próprio universo. E muitos animais serviam, por exemplo, de modelos de força moral, como a formiga com
a sua vida laboriosa e activa, o leão com a sua coragem, o pelicano com a sua abnegação, etc. (cf. Bernal, 1969). As fábulas como género literário, onde os protagonistas são animais, traduzem desde a antiguidade o mesmo pendor, e não faltam testemunhos de que os homens sempre inventaram culturas influenciadas pelas suas ideias sobre a natureza, ou que a imagem que tinham desta reflectia em maior ou menor grau os seus costumes e modos de vida. A ideia de uma sociedade estagnada, imutável, dominada por classes conservadoras e reaccionárias, impõe ou sugere uma natureza que não muda, favorece a eclosão e desenvolvimento de ideias que
apontam para a existência de um universo fixo, hierarquizado, concep-
ção esta que, sob forma teológica, filosófica ou de teoria científica, se harmoniza
com
a estrutura
social e política. Ajustam-se
e mutua-
mente se justificam. Se no passado era a teologia, agora são certas teorias científicas no âmbito da biologia que caucionam sistemas reaccionários e/ou totalitários. À própria teoria da evolução e os modernos estudos
sobre
o comportamento
e, acima
de
tudo,
a selecção
natural,
que entretece todas as ideologias que se apoiam no darwinismo clássico ou actualizado, se servem, é certo, um modelo de sociedade em mu-
dança, podem justificar também políticas de submissão e atropelos à liberdade e dignidade do homem. Humanar
a natureza
e naturizar
o homem
parecem-me,
assim,
duas tendências inevitáveis, existentes com maior ou menor intensidade desde as nossas origens, tendências que não desapareceram com o advento da ciência moderna, antes se acusaram e tomaram nova dimen-
são, sobretudo a partir da altura em que a explicação teológica do homem e da sociedade foi substituída por uma ideologia biológica, que, como
toda
a ideologia,
corresponde
a um
sistema
de
crenças,
a uma
concepção do mundo em dada época e lugar, nutrida ou inspirada por valores,
tradições
socioeconómicas
(ou
sua
e culturais
negação),
dos homens
revoltas,
desse
desejos,
intervalo
e
condições
histórico.
As
grandes teorias biológicas são como todas as teorias científicas — transformam-se
com
o tempo,
têm a sua história e não são estranhas, 42
nas
BIOLOGIA suas
formulações,
às
ideias
E
SOCIEDADE —
dominantes
na
sociedade,
aos
seus
movi-
mentos de fundo e às relações económicas predominantes. Isto em nada diminui as virtudes da ciência, como meio de acesso ao conhecimento objectivo, a sua coerência lógica, os seus métodos, o seu antidogmatismo, o seu carácter inacabado, a sua renovação permanente, a sua ousadia e prudência combinadas para duvidar e rever, para evidenciar erros, para comprovar ou questionar a imagem provisória conseguida da realidade. A maior cautela se impõe, portanto, quando se pretende caucionar com a biologia as ideias e factos políticos e sociais. Nestas tentativas nem sempre o errar é inocente, há por vezes especulação fraudulenta, noutras verificam-se exageros, falsas analogias, metafísicas ocas, generalizações abusivas, etc.
O respeito que ainda merecem a ciência e os seus métodos de pesquisa serve de salvo-conduto para avalizar filosofias e políticas que. se são muito respeitáveis em si mesmas, já não o serão se desse passo as considerarmos mais «científicas» ou «verdadeiras» do que outras não dispondo de tal abonação. O que me parece fecundo é a crítica das ideologias e filosofias à luz das aquisições científicas, e não tanto
o simplesmente creditá-las por estas, e sem se esquecer o facto fundamental de que o conhecimento científico apenas abraça uma
área rela-
tivamente reduzida das questões e factos que interessam aos homens,
não se negando, portanto, de modo nenhum o alto valor da especulação filosófica, cujas virtudes são inegáveis, como meio de o espírito humano obter aquela profundidade e liberdade de imaginação e de crítica que o rigorismo
e limitação
científicas
não permitem,
em
regra,
atingir.
Adopto, em boa parte, as ideias de Bertrand Russell sobre as relações da filosofia com a ciência. Disse ele que «a filosofia consiste em especulações sobre matérias acerca das quais ainda não é possível obter um conhecimento rigoroso», que «ciência é o que nós conhecemos e filosofia o que não conhecemos». Mais adiante, perante a questão que lhe foi posta por Woodrow Wyatt («para que serve a filosofia?»), Russell responde dizendo que a filosofia tem realmente duas utilidades. uma delas sendo a de manter viva a especulação «sobre coisas que ainda não são susceptíveis de tratamento científico; no fim de contas, o conhecimento científico apenas abarca uma parte muito reduzida das coisas que interessam a humanidade,,.» Alargar a imaginação no campo das hipóteses explicativas do mundo é uma das utilidades da filosofia, mas para B. Russell há ainda outra igualmente importante, que consiste em «mostrar que há coisas que pensávamos conhecer e que não conhecemos. Pensar em coisas que poderemos vir a conhecer e por outro lado verificar modestamente o quanto se assemelha a saber e não é saber» (v. Russell, 1960). 43
GERMANO
5.
Ideologia
e origem
DA
da
FONSECA
SACARRÃO
biologia
Outro aspecto respeita as próprias origens da biologia moderna e à influência que a ideologia burguesa parece ter tido nela e no seu desen-
volvimento, a partir do século xvit. É certo que é em grande parte convencional marcar uma época precisa para o começo da biologia como ciência. Por outro lado, parece mais correcto dizer que a biologia nasceu logo no começo do século xix (a palavra «biologia» foi aplicada pela primeira vez em 13800 por Lamarck e Treviranus), mas as suas características como ciência estruturada firmaram-se após o meado do mesmo século, em pleno sucesso da revolução industrial. Seja como for,
burguesia e ciência estão intimamente ligadas, pelo que se justifica partirmos de uma fase mais precoce das suas mútuas influências. A sociedade burguesa, que se originou no seio da sociedade feudal, baseia-se numa visão mecânica do mundo e das coisas (a máquina é o seu símbolo), visão que atinge o seu auge no século XIX com a revolução industrialº do maquinismo, servida e promovida pela ciência, e que nas modernas sociedades industriais continua ainda em pleno desenvolvimento e expansão !. Não é mera coincidência se o relógio mecânico surge e se desenvolve com a emergência de nova classe — a burguesia. Em 1863, numa carta a Engels, Marx diz que «o relógio
é a primeira máquina automática aplicada a fins práticos; toda a teoria da produção e da regularidade do movimento
foi graças a ele que se
desenvolveu». Mas a influência do relógio mecânico (que data do século xr) foi ainda mais longe e mais fundo — ele é o modelo de todas as máquinas e automatismos sociais e não apenas da regularidade
e disciplina do trabalho e produção no âmbito da fábrica *. Para a mentalidade burguesa, o mundo é feito de coisas dispostas numa
certa ordem, com materiais a explorar, a manipular,
a submeter
e a traficar. A eficácia, o cálculo, a clareza da razão e a incessante procura de lucro fazem parte do ideal burguês. A natureza e a humanidade são fonte de matérias-primas
que há que extrair, transformar,
manufacturar para vários fins práticos de poder e enriquecimento da nova classe. As relações humanas orientam-se sobretudo pela utilidade e pelo lucro, e a própria moral reflecte esses padrões de valor. Esta ideologia era certamente incompatível com o sobrenatural, a mística e o teológico, que governavam a sociedade feudal e a mantinham coesa, estática e rigidamente estruturada e hierarquizada. Tudo nela estava
subordinado
à fé, à tradição, ao poder divino. Mas
para
a ideologia
burguesa o mundo é movimento, é uma máquina, e, como ela, formado por um conjunto de peças. Para compreender o mundo faz-se o mesmo que à máquina — desmonta-se, desunem-se as peças e estudam-se separadamente.
Um
tal mundo
oferece-se aos homens 44
activos, engenhosos
e
BIOLOGIA empreendedores.
reguladas benefícios.
O
trabalho
e articuladas Novos
E teve
para
meios
SOCIEDADE —
de
obter
de
ser
organizado,
sempre
navegação
maior
são
as
actividades
eficácia e maiores
inventados,
atende-se
ao
espaço, mede-se o tempo. O mundo alarga-se com a descoberta de novas terras e de novas gentes, com
outros costumes ?. Ao homem
contempla-
tivo da idade feudal sucede no Ocidente o homem inquieto, arrojado e inventivo. O livro impresso tornou os conhecimentos mais facilmente
acessíveis (outrora um monopólio de classe). As lentes ampliadoras permitiram a construção do microscópio e do telescópio. Tudo isto abriu a via
a novas
tecnologias,
novos
maquinismos
e novos
saberes.
For-
mou-se na ideologia burguesa a imagem do universo como uma máquina, modelo que de tal modo se radicou nos espíritos que passou a representar a própria realidade, visto que a ciência se desenvolveu no
século xviI e seguintes à luz deste paradigma (mecânica galilaica, cartesianismo, revolução newtoniana), e com o teste da prática e à luz
(Francis Bacon) º.
da experiência
Rose e Kamin
Lewontin,
abordaram, recentemente, este problema
e dizem, com razão, que, se por um lado a visão burguesa da natureza influenciou a ciência, esta marcou também profundamente essa mesma
visão do mundo
natural. A influência desta imagem
fundamentalmente
exprimiu-se
que,
física,
na
sobre a ciência os
segundo
mesmos
autores, se desenvolveu e se organizou segundo certos princípios redu-
cionistas basilares. A emergência da física moderna (Galileu, depois Newton) «atomizou o mundo natural, impôs-lhe uma ordem» e reduziu-o a um «mundo de massas absolutas e interactuantes segundo leis invariáveis
tão
regulares
como
um
mecanismo
de relógio».
A emergência da biologia moderna nasceu sob a influência da mesma visão mecânica e automática do mundo que a física tinha consagrado e que correspondia à mentalidade burguesa e a legitimava. O seu impulsionador foi René Descartes (1596-1650). À sua física e a sua biologia são puramente lista da época
sobre o mundo,
mecanistas, Para
na esteira da visão fisica-
Descartes, os animais
e os homens
eram também simplesmente máquinas. O mundo da matéria bruta e da matéria animada foi por ele comparado a uma máquina (bête machine ),
mas tinha de haver uma certa ligação entre o homem puramente mecanico, movendo-se segundo princípios físicos, e a sua vontade e espírito racional habitando no seu interior, o que foi resolvido por ele de forma extraordinária. Afirmou com a maior seriedade e convicção que a alma
se alojava numa pequena glândula — a glândula pineal — situada no cimo do encéfalo. Seria aí a sede, ou pelo menos o ponto de entrada da alma (J. D. Bernal). Por estranho que pareça, há hoje neurocientistas que apontam não só para um tal dualismo corpo máquina-alma,
como o solucionam
à maneira cartesiana 45
(ver o cap. Xi no 2.º vol.).
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
E mesmo para Karl Popper a estranha ideia de Descartes de localizar a alma na glândula pineal não lhe parece absurda. Em 1974 escreveu: 1 also suggested that Descartes's conjecture that locates the human soul in the pineal gland may not be as absurd, as it has often been represented. Voltando
a Descartes, o corpo
de um
animal
ou
de
um
homem
é para ele «como um relógio ou qualquer outro autómato (isto é, qualquer outra máquina que se mova por si própria)». Foi esta imagem cartesiana do mundo análogo a uma máquina que veio a dominar na ciência e «a actuar como uma metáfora fundamental a legitimar a concepção burguesa do mundo» (Lewontin et al.). À máquina simboliza as novas relações de produção da burguesia, e com o modelo mecânico que Descartes aplica aos animais e ao homem fica completada a imagem física do mundo, até aí abrangendo apenas a matéria inanimada. As consequências desta extensão à natureza viva foram múltiplas. A total separação do corpo-máquina da alma acantonada na glândula pineal permitirá doravante aos cientistas trabalharem sem serem perturbados por obstáculos de natureza religiosa, visto que passará a haver
duas entidades bem distintas na natureza — a matéria, sujeita às leis mecânicas
da física, e a alma
(ou espírito), entidade
imaterial criada
por Deus, a comandar o corpo no seu habitáculo — a glândula pineal. Este dualismo teve as suas vantagens. Tendo sido cuidadosamente concebido, não suscitou ataques teológicos
(ainda
que
houvesse
violentos
protestos das universidades), e mesmo em vida de Descartes foi aceite na França católica. Diga-se de passagem que o dualismo cartesiano não
se assemelha ao dualismo escolástico. À sua influência no pensamento
científico e filosófico em França é um tema discutido, que não interessa
desempenha uma função observável, cado pela soma das partes, dos seus respectivas propriedades. Tendência sabemos, porque se explica o ser
e o conjunto, o organismo, é explimais pequenos constituintes e suas nitidamente reducionista, como já vivo-máquina em termos das suas
peças (órgãos, células, moléculas) que o compõem. Mas o modelo mecânico não deixou de apresentar dificuldades, e muitos aspectos do ser vivo ficaram inexplicáveis. À existência de uma alma no homem ajudava
a resolver os problemas, e quanto
aos animais
havia
o recurso
à vontade divina, que presidia à harmonia do universo e lhe regulava os movimentos. O dualismo foi, portanto, a solução cartesiana, e a 46
im
as
suas partes (órgãos), e cada parte é estudada separadamente. Cada uma
iene rá
desarticulando
pa AR aa pr des
os seres vivos
pt
estudam-se
o eU à 00 Pe
se faz nas máquinas,
Ae
como
tmemerva
abordar aqui. O modelo mecânico foi prontamente aplicado aos seres vivos. Tal
BIOLOGIA verdade
é que,
sob uma
E
forma
SOCIEDADE — 1
ou outra, persistiu
até aos
nossos
dias,
inclusivamente em casos de pretendidos materialismos (reducionistas), e em concepções do homem-máquina, onde é forte a tendência de introduzir um componente metafísico na explicação do ser humano e da
natureza viva. À razão deste facto parece residir numa recusa praticamente
universal, mais ou menos
transparente, em
considerar
o homem
apenas como um conglomerado de moléculas em movimento. Seja como for, desde Descartes que o dualismo infecta e atormenta o pensamento ocidental. Mas diga-se de passagem, e na sequência do contexto anterior, que nem todos os biólogos são dualistas ou estritamente materia-
listas-reducionistas,
a
quer dizer, considerando, nesta última posição,
consciência e o espírito como
simples epifenómenos, a exprimirem
um
conjunto de actividades do próprio cérebro. Bernard Rensch, por exemplo, não distingue matéria de espírito e pensa que toda a matéria é de natureza protopsíquica. Esta ideia do espírito a penetrar a matéria, a confundir-se, a identificar-se com ela, encontra-se, a meu ver, noutros evolucionistas, como em Teilhard de Chardin, por exemplo. E no fundo
não será esta metafísica que estará implícita em, pelo menos, alguns materialismos absolutos? Uma das consequências do dualismo foi tornar compatíveis a teologia e o materialismo reducionista, apesar dos violentos choques
que por diversas ocasiões ocorreram entre a Igreja e as filosofias e biologias materialistas, e dos predomínios que uma ou outra destas posições
opostas obtiveram, consoante as vantagens que ofereciam em cada fase
histórica. Mas a compatibilidade dos dois credos revelou-se útil à ideologia
das
dualidade
classes
dominantes
matéria/espírito
burguesas
permite
físicos, como máquinas, e ao mesmo
e ao
capitalismo
tratar os homens
como
porque
a
objectos
tempo confere fé na imortalidade
da alma, esperança de salvação e de compensações divinas (a bem-aventurança no Céu) para as misérias e injustiças sofridas, e um permanente medo de castigos para os pecados !!. O dualismo persiste, continua a emergir sob várias máscaras. A biologia continua marcada por um forte determinismo reducionista. cuja expressão talvez mais extrema seja revelada na sociobiologia. Neurofisiologistas de nomeada proclamam a existência de uma região do cérebro em comunicação directa com o espírito (conscious self), e à
qual obedeceria toda a maquinaria cerebral 2. Quanto aos sociobiologistas, afirmam que, para além do império dos genes, existe no homem uma
vontade
livre, um
querer.
Estas hipóteses-cedências
são perfeita-
mente justificadas porque os determinismos reducionistas criam, quando aplicados ao corpo social, dificuldades enormes no sentido em que, por exemplo, retiram qualquer responsabilidade aos homens pelos seus
actos, considera-os simples autómatos dirigidos pelos genes, absolve os criminosos
e os tiranos,
etc. De
maneira 47
que
os sociobiologistas,
como
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
E. O. Wilson e seus seguidores, declaram que o homem possui livre-arbítrio, guarda o poder de dirigir livremente as suas acções. Em suma, que é livre de actuar contra as imposições dos seus genes. Mas estas renúncias estão em contradição com a doutrina sociobiológica, são pseudo-abdicações. São formas de dualismo cartesiano. O reducionismo
conduz,
assim,
inevitavelmente,
aliás
bem
Se as sínteses interpretativas da natureza viva e do homem
con-
vincaram os autores atrás apontados É. tinuarem
a ser realizadas em
termos
ao
dualismo,
reducionistas,
como
ou seja,
atendendo
a que as causas residem nos seus mais pequenos constituintes, seremos conduzidos a falsas interpretações e à elaboração de teorias incorrectas
sobre o ser humano e a sociedade. Teorias que caucionam racismos, discriminações sociais e servem de suporte pseudocientífico a múltiplas formas de perseguição e aviltamento. Porque o corpo do homem (e o dos outros organismos) não é simplesmente um mosaico de partes e acções derivadas cada uma delas de outras partes da sua constituição hereditária
(genes) —e,
de modo
semelhante,
a sociedade
não
é a soma
dos
comportamentos dos componentes individuais, nem estes são redutíveis a genes ou conjuntos de genes particulares, nem somos seres em parte biológicos, parte sociais, mas, ao invés, somos simultaneamente biológicos
e sociais,
com
negação
frontal
do
programa
reducionista,
que
atomiza o ser vivo, separa as causas e isola os efeitos, o que leva à elaboração de teorias comprovadamente falsas ou absurdas, quando nessa base se elaboram as sínteses. À metodologia da ciência exige que o processo de análise seja permanentemente acompanhado por verdadei-
ras sínteses, quer dizer, que não se tomem as abstracções (a que conduz o pensar reducionista) rica e complexa.
pensável
para
por toda a realidade, que é infinitamente mais
O reducionismo é uma
a pesquisa
científica,
estratégia e metodologia
mas
como
A larga aceitação do reducionismo como uma
filosofia
é um
indis-
erro.
filosofia credível resulta
do facto de a ciência ser tecnicamente reducionista. Para Viktor Franki o reducionismo é hoje uma máscara para o niilismo, é ele o verdadeiro
niilismo O
(eit. por W.
magquinismo-reducionismo
científico-industriais
logia,
H. Thorpe,
propósitos
(burguesas
e legitimações,
1974).
caracteriza ou
as
totalitárias)
da
sociedade
modernas
sociedades
herdeiras
na sua ideo-
burguesa
tradicional.
Com meios imensamente mais poderosos, as modernas classes dominantes prosseguem cada vez com mais eficácia na sua tarefa de extrair, separar e transformar os recursos da natureza viva e inanimada com vista a retirar sempre maiores utilidades e benefícios para satisfação dos interesses dessas mesmas classes. Os próprios seres humanos não escapam a esse movimento, no qual são tratados como objectos físicos lucrosamente trados
ou
utilizáveis, susceptíveis de serem
transformados
pelas minorias 48
que
convenientemente
tomaram
e detêm
ades-
o poder.
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — T
Ora a biologia continua a modelar-se por uma visão da natureza que engloba o antigo paradigma mecanista divisor e dualista, reforçado pela
visão
darwinismo
competitiva,
da
e reducionista,
pela
sociobiologia.
natureza
caução para a mesma
Como
é feita em
resses das classes dominantes;
pelo
século
reduto
onde
«a inter-
as filosofias
e inte-
construída serve de
sociedade, e de base para a explicação da condição
Charles
em
com
e depois a imagem por
Darwin
escrevi noutro lugar,
consonância
humana» (v. meu 1982). Com a teoria da evolução último
caucionada
(cujas raízes se podem situar em Thomas Hobbes) e mais
recentemente pretação
exploradora
meado
ainda
do
selecção
se refugiava
x1x
foi
natural
sustentada
fortemente
o cristianismo
como
abalado
por o
ideologia
dominante da sociedade ocidental, de modo que a caução para a ideologia burguesa e para a ordem social dominante já não podia firmar-se na religião, mas sim só na ciência, de modo que esta, e, particularmente,
a biologia, passaram então a ocupar inteiramente o domínio da teologia e o espaço do sagrado. À teoria da selecção natural, o reducionismo
fisiológico e a biologia molecular (com o geneticismo) constituem hoje, e mais do que nunca, os pilares fundamentais de uma biologia mecânica, materialista e atomizada, em perfeita harmonia com a sociedade
dade)
Bibl.
científico-industrial
dos nossos
dias, cada uma
a influenciar e a reflectir-se na outra.
Univ. 49 — 4
49
(biologia e socie-
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
NOTAS
1 As evidências acumuladas são em regra fragmentárias e demasiado frágeis. Por exemplo, a interpretação de Galdikas (1980) respeitante ao orangotango não convence de modo nenhum. A propensão para considerar a psicologia dos antropomorfos actuais como um estádio da linha evolutiva na qual se desenvolveu a psicolo-
gia do homem está, creio eu, na origem destas correspondências em extremo simplistas e provavelmente
falsas.
2 Jacques Loeb (1858-1924), em 1911, com o seu trabalho 4 Concepção Mecanística da Vida foi um dos principais defensores da ideia mecanista de que todos os fenómenos da vida podem ser reduzidos às leis da física e da química, na esteira da tradição da escola materialista berlinense de 1850. 3 Compreendo a expressão como o conjunto de predilecções e crenças políticas, religiosas, filosóficas, morais, de um partido, sociedade ou classe social, ideias que são nelas predominantes numa dada fase histórica e que legitimam, comandam e ajudam a manter a ordem económica, cultural e social. Biologia e ideologia andam mais do que nunca enlaçadas. A biologia saiu da fase de relativa inocência e situou-se, em pleno, no centro da filosofia, da sociologia, das ideologias morais e políticas.
4 Pierre Thuillier, historiador de ciência e um dos autores que se têm dedicado nas suas obras a negar a pura objectividade e a pura neutralidade da ciência, critica
a sua posição de divindade transcendente, denunciando o mito da ciência como suprema sabedoria, criadora da felicidade plena, de um novo modelo de sociedade, geradora de uma nova moral. No essencial estou de acordo com estas ideias. Com efeito, a ciência é uma realidade cultural como as outras, e a posição em assim considerá-la deve-se particularmente à ideologia que domina o Ocidente desde a Renascença, a qual conferiu à ciência um carácter sagrado, que é indispensável não
pôr em questão, visto se tratar de um poderoso e indiscutível instrumento manipulador da natureza física e espiritual do homem, ao serviço das ideologias políticas e económicas dominantes nas modernas sociedades industriais. 5 Sobre as duas dimensões «visível» e «invisível da biologia, v. no 2.º vol. o cap. xt. E também Portmann (1960).
6 O industrialismo invenção
começou
mais
cedo, no século
dos teares mecânicos e da máquina
7 Em
vez de constituir
um
organismo,
xvirt
(Inglaterra),
com
a
a vapor. o mundo
natural
é para
a Renascença
uma máquina, no sentido literal e exacto do termo, uma coordenação de partes e de corpos conjugados,
impelidos para um
fim definido por um
espírito
inteligente que
lhe é exterior, tudo articulado, constituído por peças, que se movem segundo leis fixas (ideia cristã de um Deus criador engenhoso e omnipotente). Toda a vida material e espiritual passou a ser influenciada pela concepção mecanista, a partir sobretudo do século
xvII com
a revolução
burguesa.
R. Collingwood
(1981)
abordou
este tema
comparando a antiguidade grega e romana com a Renascença. Os Gregos e os Romanos só em certas ocasiões usavam máquinas, as catapultas e os relógios de água não eram tão importantes na sua vida de todos os dias que influenciassem fortemente a sua visão do mundo e as relações que tinham com ele. Mas no século XVI a máquina de imprimir, o moinho de vento, o relógio, o carrinho de mão e um sem-número de outras máquinas utilizadas pelos mineiros e engenheiros fixaram modos de viver diários e portanto
hábitos de pensar
a visão do mundo
e do próprio
e interpretar
homem.
as coisas que alteravam
O maquinismo 50
modelou
por
completo
a consciência
e a
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —
inteligência do Europeu. Em regra, é fácil ver como trabalha uma máquina, como se forma, para que serve, como se utiliza, As analogias surgem a todo o passo entre o
mundo das máquinas e o mundo da natureza e do homem. E assim (citando o mesmo autor) «como um relojoeiro ou um fabricante de moinhos de vento estão para um relógio ou um moinho de vento, assim está Deus para a natureza». Analogias que alimentam
uma
metafísica,
impõem
uma
ordem
no
mundo,
tudo
valores nascentes da grande revolução burguesa em marcha. 8 Lewis Mumford (1973), referindo-se ao relógio, diz
que
em
acordo
com
a máquina
os
que
mecanizou o tempo regulou não só as actividades do quotidiano como passou a sincronizar as acções humanas,
não já com o nascer e pôr do Sol, mas sim com os movi-
mentos dos ponteiros do relógio, introduzindo no trabalho e em todos os aspectos da vida do homem o domínio temporal, a fragmentação do dia, transformando-se num poderoso sistema de controlo que o homem ocidental difundiu no planeta. 9 A grande revolução burguesa, com as exigências prementes e permanentes de escoamento para os seus produtos, de procura de matérias-primas, alargamento de
mercados e obtenção de cada vez maiores lucros, obrigou à invasão e exploração de todos os lugares do planeta. Os descobrimentos e o colonialismo resultaram em grande parte disso. Neste movimento de expansão, impulsionado pelo próprio mecanismo da produção, e que agora se exprime numa tentativa de conquista e exploração do
espaço exterior, está interessada toda a civilização científico-industrial (burguesa e socialista). Esta dinâmica obriga a que tudo mude continuamente (donde os conceitos
de evolução, de «progresso», etc.), «num mundo que não esteja catalogado de uma vez para sempre, como podia pensar Aristóteles» (Sonnati, 1884). Mundo estagnado, imutável como ele era na visão feudal. Esta dinâmica de mudança encontra-se actualmente contrariada por uma «harmonia».
certa ideologia ecológica, de «equilíbrio», «estabilidade»,
19 Toda a ciência moderna é mecanista, sempre o foi desde as suas origens no
século XVII, a natureza para ela é como uma máquina cujas partes trabalham segundo leis
que
revelar.
é necessário
comparados
De
acordo
com
esta
concepção,
os seres
vivos
foram
a máquinas e esta descomunal metáfora jamais abandonou o estudo da
natureza viva. Mais tarde, quando na biologia surgiu o novo conceito de vida, ele foi logo mecanizado, e, apesar das enormes dificuldades que daí resultaram (e das reacções suscitadas), a biologia continuou mecanista, os seres vivos considerados máquinas, e acentuou-se o predomínio do reducionismo mecanista ou cartesiano na
explicação dos fenómenos biológicos, visando a sociedade máquina. 11 Alexandre dupla
exigência:
Koyrê
diz, com
«necessidade
razão, que há no pensamento
de certeza religiosa, necessidade
de Descartes uma
de certeza científica».
Ora, tendo a física cartesiana destruído o cosmo da Idade Média, da ordem perfeita, da hierarquia perfeita, numa escala de perfeição que vai da matéria inanimada até
Deus, e sendo esse universo substituído por outro inteiramente mecânico, composto unicamente de extensão e movimento, mundo onde já não há lugar nem para o homem nem para Deus, segue-se que para um homem profundamente religioso como Descartes a solução estava em separar completamente o espírito da máquina, para
tornar
compatíveis
as
duas certezas —a
científicamecânica
(ligada
à revolução
burguesa e inspirada por ela) e a religiosa, não sendo concebivel no universo cartesiano a existência de fenómenos estranhos ao maquinismo e ao pensamento do homem, quer dizer, de fenómenos de vida, nem mesmo a ideia de vida. À sua tendência
para
explicar
o mundo
dos seres
vivos
em
termos
da nova
física, em
termos
mecânicos, marcou profundamente o destino da biologia. Só no século xix é que o estreito e rígido dualismo cartesiano matéria/espírito foi em parte quebrado, tendo ficado mais complicado com a crescente autonomia das ciências da vida. E desde então, com o aparecimento da trindade matéria-vida-espírito como entidades distinguíveis, o esforço filosófico tem consistido em conciliá-las «ou suprimir uma ou outra
delas), mas o dualismo cartesiano persiste como metafísica, continuando a apoquentar a filosofia e a própria ciência.
51
GERMANO i2 Para
mais
pormenores,
DA
FONSECA
v. cap.
13 Para explicar o comportamento ceito de máquina.
Mas
XII,
no
SACARRÃO 2.º
vol.
dos seres vivos, Descartes
ao fazê-lo instilou também
o de finalismo,
introduziu quer
o con-
dizer, um
ser
vivo é uma organização pensada com vista a determinado fim. Ora as máquinas são demasiadamente rígidas no seu planeamento e estruturação para poderem ser comparadas a seres vivos, nos quais a regulação e a adaptação são fenómenos que não têm paralelo no mundo físico. Os seres vivos não são produtos de planos previamente
fixados,
mas,
ao contrário,
são
resultados
de
história,
de
um
passado
que
em parte persiste neles, mas que é remodelado e reconstruído para gradualmente constituir novas formas, novas estruturas e novas funções; histórias que neles se exprimem nas ontogenias e nas filogenias (v. meu 1985). Nada disto acontece, porém, nos corpos inanimados da natureza, ou nas máquinas, nas pedras, nos planetas ou
nas
estrelas,
ainda
que
no
universo
físico
tenha
havido
sucessões
históricas,
em
qualquer caso extremamente menos complicadas e de outra ordem. Seja como for, parece que a história não tinha nenhum papel na física newtoniana ou galilaica, e é curioso que Descartes, ao fazer dos seres vivos máquinas, introduziu para sempre na biologia o conceito de objectivo, o propósito, a utilidade, a finalidade, apesar de ele e Galileu terem considerado tais conceitos como estranhos ao domínio da ciência positiva (v. também Mumford, vol. 2, 1974). A visão mecanista teve, por isso, consequências que contrariavam o pensamento original.
52
CAPÍTULO DOIS
MODELOS
11 DO
MUNDO
A publicação da 4 Origem das Espécies, por Charles Darwin, em 1859, é um acontecimento de transcendente importância, pois marca o início de uma revolução (já esboçada antes, sem dúvida)
científica e filosófica a que muitos já têm chamado «revolução darwiniana». Uma das consequências mais decisivas da teoria da evolução foi a introdução de uma componente histórica na biologia, provocando a ruptura com a tradição platónico-aristotélica, com a sua imagem de um mundo estático, agregado de objectos sem relações uns com os outros, mundo
com as suas essências e as suas eternas verdades, as suas
espécies fixas, produtos invariáveis, criados separadamente.
1.
Evolução
e a antievolução
no
mundo
antigo
A ideia de evolução já tinha sido formulada por diversos pensadores na antiga Grécia. Por exemplo, Empédocles de Agrigento (c. 440 a. C.), de onde
era natural
(no Sul da Sicília), refere-se à adaptação
dos seres às condições físicas do ambiente em que vivem, em termos que, segundo parece, não desagradariam a um lamarckista. A sua teoria da evolução, se é com certeza muito extravagante em certos aspectos, a verdade é que tem um carácter materialista e de modernidade, tanto
mais importante sendo este facto quanto é certo que só para o final do século xvil e sobretudo em meados do século xIx é que o conceito ressurge apoiado, agora, em irrefutáveis documentos científicos. Tal como os seus antecessores jónicos, Empédocles concebeu a transformação dos seres sem recorrer à intervenção de divindades ou de qualquer secreto desígnio de natureza divina. Aliás, a sua explicação do mundo apoia-se no mesmo ponto de vista dos seus antecessores,
continuando assim o pensamento que caracterizou a escola jónica, cuja tendência era a concepção de um mundo dinâmico de «contínua e mútua transformação de elementos materiais» (Bernal, 1969). O mundo ordenado,
fixo,
imutável,
é uma
invenção
da
filosofia
(Platão, Aristóteles), apegada à ideia da ordem dispostas sem alteração num universo estático, 53
grega
natural
posterior
das
coisas,
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
provinham
Para Empédocles e os filósofos jónios, os organismos
da matéria inerte, sofrendo transformações variadas antes de atingirem
a configuração definitiva do presente. Pensou que os seres que não se adaptavam a novas condições do meio pereciam, o que sugere uma evolução por selecção natural. Para Empédocles, os vários órgãos e par-
tes do corpo tinham origens completamente independentes, só posteriormente se ligavam para constituir os organismos. Aristóteles (que o cita) ! escarnece das ideias de Empédocles, o que não surpreende dada a sua posição adversa ao atomismo
e a todas as teorias
da
mudança,
filósofo que veio culminar o pensamento criador dos antigos Gregos, seguindo-se-lhe um intervalo de dois mil anos, onde a sua autoridade foi imensa, travando o progresso, mais pelas condições históricas, que não propiciaram o surgimento de filósofos que o negassem, do que pela sua obra, aliás magnificamente ajustada à concepção de um mundo estagnado, pleno, acabado, divinamente ordenado e hierarquizado por vontade divina. Esta imagem, como veremos mais adiante, corresponde ao modelo da mundo antigo, que, com arrastado declínio, perdurou, em diversos dos seus aspectos, até ao século XIX. Pensou Empédocles que, originariamente, os seres mortais possuíam todas as formas, em combinações bizarras e monstruosas: «Havia cabeças sem pescoço, braços sem espáduas, olhos sem rostos, membros
soltos em busca de ligação. Essas coisas juntaram-se ao acaso. Houve criaturas
vacilantes
direcção
diferente, criaturas de corpo bovino
com
mãos
inúmeras,
outras
com
e face
faces
e seios
humana
contrário. Houve hermafroditas com natureza de homem
ou
em
ao
e de mulher,
mas estéreis. Por fim, só algumas formas sobreviveram» (trecho extraído de Bertrand Russell, 1977). Esta ligação de partes far-se-ia em várias combinações, resultando umas
vezes monstros,
outras vezes
seres viáveis
e normais,
acidental-
mente compostas da maneira conveniente, mas quando isto não acontecia as criaturas formadas pereciam, enquanto as primeiras sobreviviam. Como já referi, está aqui aparentemente expressa uma evolução por
selecção natural, com sobrevivência dos mais aptos. Segundo Empédocles, a origem dos seres organizados precedida do aparecimento independente
teria sido
das suas várias partes, depois
reunidas pelo amor. Assim se teriam formado, como produtos da terra, os animais e os homens. As plantas surgiram primeiro da terra, apresentando grandes semelhanças com os animais (v. também Voilquin, 1964). É de notar que antes de os fundadores da escola atomista (abertamente materialista), Leucipo e Demócrito, terem desenvolvido as suas ideias, Empédocles elaborou uma articulação entre o atomismo e a evolução por selecção natural, apesar do seu carácter vago, da sua tosca estrutura e larga fantasia, ideias que vieram até nós através dos poucos 54
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —1
fragmentos existentes da sua obra, conhecida, aliás, pelas citações que dela fez Aristóteles. Como disse Bertrand Russell (op. cit.), Empédocles «rejeitou o monismo e considerou o curso da natureza devido ao acaso
e à necessidade e não ao fim. Nesse aspecto, a sua filosofia foi mais científica do que a de Parménides, Platão e Aristóteles. Em
outros aspectos,
é certo, aceitou superstições vulgares; mas nisto não foi pior do que homens de ciência muito mais recentes». Diga-se, de passagem, que a
expressão acontece
«acaso no
e necessidade», como
mundo,
é
devida
a
causa de tudo o que existe e
Demócrito,
expressão
que
Jacques
Monod utilizou para titular o seu famoso livrinho. A teoria atomista teve uma poderosa influência na ciência, mas
foi sempre travada pelas influências imensas de Platão e Aristóteles, com as suas doutrinas das «ideias», das «formas» e «essências» ?, teorias que só vieram a declinar com o Renascimento, que viu nascer uma filosofia que, na opinião de Bertrand Russell, «readquiriu o vigor e a independência que caracterizam os pré-socráticos». Seria injusto, porém, atribuir à influência de Aristóteles a exclu-
siva responsabilidade da feição antievolucionista que perdurou até ao século XIX. A questão é mais complexa, e o que será, talvez, mais
conforme à realidade será dizer que houve ajustamento da sua metafísica às condições sociais e religiosas que se desenvolveram até ao Renascimento. E não haveria até uma certa influência positiva do filósofo-naturalista na receptividade posterior ao transformismo? Penso
que não, mas
julgo
(1962)
ser isso o que pensa Moody
quando
se
refere à contribuição de Aristóteles para o pensamento evolutivo, nomeadamente à sua ideia de haver uma completa gradação na natureza. Assim, o estado mais inferior é o inorgânico. Por metamorfose, os seres orgânicos derivam do estado inorgânico. Concebeu assim Aristóteles uma escala natural (scala naturae) tendente para a perfeição, tendo na base os minerais, seguindo-se-lhe o mundo orgânico, constituído por três estados: (1) plantas; (2) plantas-animais, grupo de transição no
qual introduziu as esponjas, as anémonas-do-mar e outros celenterados;
(3) o dos animais, cuja característica era a sensibilidade. Para os animais elaborou uma série gradativa, indo dos mais simples aos mais complexos, colocando o homem no topo da escala, que, ao contrário
das genealogias mais tarde construídas pelos filogenetistas pós-darwinianos (árvores filogenéticas), era linear, sem quaisquer ramificações: minerais, as plantas, destas, através dos pólipos, passa a todos os outros animais,
a
culminar,
finalmente,
de formas sucessivamente «escala
da
natureza»
no
homem,
num
desdobrar
directo
mais complexas e perfeitas, reflectindo uma
cada
vez
mais
esmerada
nos
seus
componentes,
que veio a influenciar todo o pensamento imobilista sobre os seres vivos até Lamarck ?. Este,
dade
parece
ter
em
1809,
concebido
foi o primeiro naturalista que
a primeira 55
«árvore
genealógica»
na reali-
de
tipo
GERMANO «moderno»,
entrando
em
DA conta
FONSECA com
SACARRÃO
formas
de
vida
extintas,
ou
seja,
após cerca de vinte séculos depois de Aristóteles ter ideado a sua escala dos seres, com absoluta indiferença pela questão dos fósseis, cujo verdadeiro significado já Xenófanes havia reconhecido muitos anos antes. A concepção de Aristóteles sobre a existência de uma gradação na natureza entre os seus diversos estados e formas de complexidade não teve qualquer efeito aparente sobre o desenvolvimento do pensamento evolucionista, ainda que se admita às vezes que talvez tivesse contribuído indirectamente para isso muito mais tarde, provavelmente quando do sistema aristotélico nasceram os primeiros sistemas de classificação pré-darwinianos, traduzindo ainda, escolasticamente, a ordem divina da natureza *. Mas não tenho isso como muito certo, nem
mesmo
como
provável. As contribuições que Aristóteles fez para a classificação e a anatomia só vieram a ser consideradas nos tempos modernos quando, de facto, já tinham sido superadas ou eram de pouca ou nenhuma utilidade para o progresso científico e filosófico. Chegaram demasiado tarde, enquanto, pelo contrário, a sua metafísica constituiu um obstáculo permanente.
À
sua
scala
naturae,
exprimindo
uma
completa
gradação
na natureza, poderia tê-lo conduzido à ideia de evolução (reforçada com a sua extraordinária intuição de naturalista), desenvolvendo e aprofun-
dando o que os seus predecessores Heraclito e, sobretudo, Empédocles
tinham avançado. Mas não o fez. Pelo contrário, exaltou a sua certeza de que o mundo é imutável, que nada nele muda, que as espécies são eternamente perfeitas ou imperfeitas, conceito indispensável à sua ideia da
existência
de
diferentes
graus
de perfeição.
Veremos
mais
adiante
que a ideia da fixidez das espécies mudou no decurso da história, até que finalmente se estabeleceu, firmemente, com o darwinismo, o
conceito da sua origem e transformação por causas materiais. Na ausência de documentos científicos, o evolucionismo do pensamento grego tinha forçosamente de ser especulativo e vago. Aliás, o espírito da época, as motivações que provêm da tradição cultural, os conhecimentos dos homens e a estrutura da sociedade, as relações entre as classes sociais, os processos técnicos e tantos outros factores são elementos em grande parte determinativos da orientação científica e filo-
sófica. Houve com os Gregos um aspecto que resultou provavelmente das condições históricas em que nasceu a sua civilização, e que teve um papel preponderante no rumo e natureza da sua filosofia e da sua cul-
tura. Grandes mestres na arte do raciocínio dedutivo e na utilização do argumento descobriram a matemática e inventaram a geometria, mas eram em geral adversos ao método científico, que pela busca e observação de factos particulares conduz indutivamente ao estabelecimento
dos princípios e leis. O seu pensamento 56
era fortemente motivado
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —
1
pela «crença helénica na dedução a partir de axiomas luminosos, deri-
vados do espírito filosófico» (B. Russel, op. cit.). Foi este aspecto cu ja acção foi tão decisiva na orientação da sua filosofia.
Antes de Empédocles houve um filósofo, Heraclito (c. 500 a. C.), de Éfeso, da mesma escola do naturalismo jónico, cuja visão do mundo constitui a base do evolucionismo do século xx e a que Charles Darwin, em meados do século xIx, deu plena comprovação e verdadeira estrutura científica. Heraclito foi o filósofo materialista da mudança, do movimento perpétuo, da ideia de que tudo flui expressa na sua (suposta) conhecida divisa panta rhei. O evolucionismo moderno encontra nele os seus primórdios conceptuais, pois dizia, segundo citações de Platão e Aristóteles, de que «nada é e tudo evolve», de que «nada é constante». Introduziu igualmente a ideia dos opostos, que se combinam para produzir movimentos que resultam em harmonia, sendo o mundo uno, mas resultando de diversidade, não podendo haver unidade se não houver contrários para oporem tensões e se combinarem. Esta seria a primeira indicação de uma filosofia dialéctica, origem remota da filosofia de Hegel. Parece, porém, que a concepção da combinação dos opostos é um pouco mais antiga. Uma das mais remotas manifestações da teorização dialéctica do pensamento ocidental encontra-se em Ana-
ximandro (c. 611-547 a. C.), de Mileto, para quem «os elementos do
universo são mantidos unidos por meio de uma oposição — o ar é frio, o fogo é quente, e assim por diante» (J. F. Rychlak). Mais tarde, Heraclito diz que a luta é o princípio de mudança, causa do encadeamento dos fenómenos através do tempo, e que tal oposição é fundamental para a vida. Para Empédocles, os antagónicos dialécticos são «a luta e o amor», causa da sequência dos fenómenos. O essencial do pensamento dialéctico, tal como o exprimiram Anaximandro e Heraclito, constitui o fundo do conceito moderno de evolução, visto terem esboçado a ideia da unidade do mundo vivo, da transformação dos seres vivos, originando novas formas, e ainda a
concepção da sua origem à custa de elementos materiais. O sentido altamente especulativo dos Gregos tem um bom exemplo no plano biológico na ideia de Anaximandro de que os homens primeiro teriam sido peixes, que abandonando a pele teriam passado a viver em terra. É uma pura especulação sem qualquer base factual, mas com algum fundamento de cunho moderno, visto que a evidência actual, baseada pelo menos na anatomia comparada e na embriologia, indica que os peixes constituem na realidade um
estado da evolução dos vertebrados e por-
tanto do homem. Xenófanes, que foi, em parte, contemporâneo de Anaximandro, julga-se ter sido o primeiro a reconhecer que os fósseis, tal como ossos
petrificados no seio das rochas, representam restos de animais extintos. 57
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
A ideia era verdadeira, mas nasceu, segundo tudo indica, da pura imaginação do seu autor. Pensou, também, que os fósseis de animais marinhos existentes em áreas emersas indicam que as mesmas estiveram
outrora cobertas por mares 2.
Antigos
obstáculos
(Moody, op. cit.). ao
evolucionismo
generalizado
Até ao século viii, a ideia de evolução existia nalguns homens da Igreja, como São Gregório de Nissa (ec. 335-395), Santo Agostinho (c. 354-430) e outros. Os capítulos da Bíblia respeitantes à origem do
homem não deviam ser tomados à letra (Santo Agostinho; S. Tomás de Aquino,
1225-1274).
Para estes homens,
a evolução
do mundo
rea-
liza-se em obediência a leis divinas. Deus, ao criar o mundo, fez também
as leis da sua transformação, criando as espécies em potência, que depois se sucedem. As ideias destes evolucionistas, se assim se lhes podem chamar, tiveram reduzida ou nenhuma influência. A autoridade sem paralelo de Aristóteles, geminada com a autoridade dos textos bíblicos sobre a criação do mundo, atrasou por mais de dois mil anos o firme estabelecimento da ideia de evolução.
No longo período em que dominou a filosofia escolástica, as ideias
sobre as espécies modificaram-se, sendo curioso que durante esta fase histórica, em que o mundo era considerado como eternamente imutável,
as espécies ora eram consideradas como criações da mente,
sem exis-
tência objectiva, ou, pelo contrário, eram supostas entidades reais, mas
susceptíveis de se transformarem noutras com a maior facilidade. Acreditava-se entre o vulgo nas hibridações mais fantasiosas, de onde resultavam
novas
espécies,
e por
geração
espontânea
tinha-se
como
certo
que surgiam plantas e animais superiores, ideia que durou até quase ao momento em que Darwin publicou 4 Origem das Espécies. Deve também ser lembrado que Aristóteles e Teofrasto, respectivamente na zoologia e na botânica, nunca conceberam as espécies como entidades imutáveis, sobretudo o segundo (Zirkle, 1959). Teofrasto afirmou, por exemplo, que as plantas mudavam de espécie quando transplantadas
para diferentes regiões e que as modificações eram causadas pelo facto de crescerem em solo e clima diferentes. As espécies eram, portanto, variáveis. Teofrasto pensava o mesmo para as espécies de animais e que nestes as transformações eram até mais frequentes do que nas plantas pelo facto de se deslocarem, sujeitando-se a mais variáveis condições de ambiente.
em
víbora
Descreveu, por exemplo,
quando
Aristóteles
não
secam referiu
os charcos tantas
a transformação
em
que
da cobra-d'água
vive a primeira.
modificações
como
o seu
sucessor,
mas pode dizer-se que nunca considerou as espécies como unidades permanentes e imutáveis. Esta contradição entre a concepção de um 58
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —
mundo eterno e a modificação das espécies é só aparente. Para os antigos, e durante muitos séculos, até pelo menos meados do século xvrir. os naturalistas eo
homem
comum
não pensavam
que as espécies fossem
unidades imutáveis. Houve variações neste ponto de vista, os conceitos eram
muitas
espécies
são
vezes
confusos,
ideias
mas
sobretudo
a realidade
lineanas
e constância
e relativamente
absoluta
das
recentes
em
relação ao transformismo, pois datam principalmente do meio do século xvilI. Este facto foi significativo para a eclosão do transformismo
científico e do seu antecessor — o lamarckismo. A realidade das espéideia
era uma
cies não
até
comum
ou eram
ao século XVIII;
criações
da mente ou eram formas efémeras; e acreditava-se, além disso, numa à variação
circunscrita
limitada,
evolução
facto
das espécies,
não
que
impedia a aceitação da criação divina para todos os animais e plantas. A fixidez das espécies, a sua permanência tal como foram criadas por Deus, tomou vulto no século xvrrr, sobretudo com a grande autoridade
de
e
Lineu,
grande
século
do
parte
nos
predominou
que
em
xIx,
círculos religiosos e científicos. Referi há pouco que não existe contradição entre a concepção de um mundo eterno e imutável e a ideia da modificabilidade das espécies. Em primeiro lugar porque as espécies eram consideradas como meras aparências, escondendo uma realidade íntima e transcendente (a essência) que não era tocada, componente platónico-aristotélica, que se intui pelo intelecto. Ora foi a associação mística entre o essencialismo e o
cristianismo que constituiu o grande obstáculo à emergência da concepção evolucionista e racional do mundo. Não era possível conciliar um mundo
de essências
possibilidade
de
natureza íntima
sem
imutáveis,
se relacionarem,
relação umas
as outras,
com
de se continuarem,
e misteriosa das coisas, com um mundo
sem
a
escondendo em mudança.
À concepção das obscuras essências, essas inalteráveis propriedades das moderno,
coisas, sucedeu no mundo
inaugurado com a revolução cien-
tífica, o conceito das relações e afinidades físicas entre os objectos, desligadas de considerações metafísicas ou teológicas sobre a sua natureza íntima. Com esta profunda ruptura ficou o caminho aberto para a aceitação do evolucionismo racional como fenómeno
universal devido a
causas materiais e liberto do preconceito de que é o fim que determina os meios. Enquanto não se deu esta metamorfose no pensamento (só completada,
cap.
v),
aliás, com
a espécie
era
a revolução
uma
darwiniana,
aparência
mera
que
como
mostrarei
podia
mudar
no
sem
que a sua essência fosse atingida.
Durante mais de vinte séculos, as espécies foram consideradas como unidades efémeras, incertas, susceptíveis de variarem, testemunhando uma
capacidade
de alteração
extremamente
limitada,
que
não
atingia
o seu fundo transcendente (a sua essência), o qual garantia a imutabilidade de todas as coisas da natureza. E quando no século XVII 59
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
e na primeira metade do século xix a realidade e a estabilidade das espécies foram conceitos dominantes, a oposição fundamental entre os criacionistas e os precursores do evolucionismo científico residia igual-
mente, sob uma ou outra forma, na questão das «essências». Por exemplo, Lyell não acreditava que os caracteres essenciais pudessem variar; tal facto só podia dar-se com os caracteres não essenciais, e nunca admi-
tiu, como fez Lamarck, que entre os géneros e as espécies pudesse haver estados de transição, ou simplesmente formas intermediárias. Para ele e tantos outros, como Louis Agassiz, Cuvier, etc., a natureza era formada por tipos fixos, criados de uma só vez, susceptíveis de degenerar e parecer, mas não de evolver.
No século xvr, o nosso P.º Gaspar Afonso escreveu «[...] animais em que a natureza se quer mostrar tão magnífica
que há
e poderosa
que, deixando de ser os que são de uma espécie, se passam e convertem em outras» *. Não creio que o seu autor tivesse uma visão transformista geral
da natureza,
mas,
como
tantos
outros
do seu
tempo,
nutria
apenas
um evolucionismo parcial e «inofensivo», que não atingia o fundo das formas, os vigamentos imutáveis da natureza viva e do mundo físico. Para os antigos, as espécies eram demasiado caóticas para servirem de
unidades de evolução e estarem na origem dos maiores agrupamentos. E os naturalistas dos cem anos que precederam a publicação de A Ori-
gem das Espécies estavam tão fortemente condicionados pelo determinismo teológico que os conhecimentos positivos que entretanto se tinham acumulado acerca da estabilidade e realidade das espécies (em consequência do progresso dos estudos sobre as floras e as faunas europeia e exótica) os levou a recusar o evolucionismo e a proclamarem não só a imutabilidade das espécies como a origem de cada uma como um acto único de criação divina. A variabilidade observada nelas era um desvio em relação ao «tipo» ou «essência» de cada uma. O obstáculo
místico continuava, apesar de certos abalos sofridos com alguns «precursores» da grande revolução darwiniana, como Buffon (mas que em parte se acomodou e transigiu), como Lamarck (que não possuía autoridade para convencer os seus contemporâneos) e alguns mais, além de haver que contar, igualmente, com a reacção religiosa e conservadora
que se seguiu à Revolução Francesa, que relegou para segundo plano, no
espírito
dogmas
dos
bíblicos
naturalistas,
sobre
tudo
a criação
o que
representasse
do mundo
pôr
em
e do homem.
causa
Em
os
França,
que na época era o centro da fermentação política e da cultura e ciência europeias, Cuvierº tinha imenso prestígio (aliás, merecido e qualidade dos seus trabalhos em anatomia comparada)
pelo valor e com ele
susteve os impulsos que porventura existissem para se oporem ao pensamento tradicional.
Outro duradouro obstáculo metafísico ao evolucionismo foi o chamado princípio da plenitude, assim designado, por A. Lovejoy em 60
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — 1
1960, e cuja origem remonta a Platão. O princípio da escala da natureza ou da «escala dos seres» está intimamente ligado ao princípio da plenitude, segundo o qual existem todos os tipos possíveis de organismos,
de tal modo que nessa grande «cadeia de seres», do mais imperfeito ao mais perfeito, não há lugar para mais nenhum. O Criador, sendo infinitamente bom e perfeito, tem necessidade de criar o universo e de
preenchê-lo com
todos os seres e coisas possíveis, e no maior número
possível delas, e todas boas. E as extinções obviamente são impossíveis.
É evidente que esta ideia se opõe a qualquer princípio que implique
mudança,
evolução,
transformação
e descendência.
Segundo
esse
modo
de pensar, não pode haver lacunas na grande cadeia dos seres,
onde
não
há
lugar
para
novas
criações,
pois
todos
os elos
possíveis
estão ocupados. Segundo alguns autores, o princípio da plenitude não teria constituído um obstáculo tão importante à ideia de evolução como o foi o essencialismo. Uma das suas consequências teria sido a crença de que a evolução procede por lentas e graduais transformações, e assim se eria remover a dificuldade, tantas vezes evocada pelos criacionistas,
da identidade ou estreita semelhança entre os organismos cujos restos datavam de há quatro mil anos (túmulos do Egipto), identidade a favor da fixidez das formas de plantas e animais, numa época em que a geologia e a paleontologia ainda não tinham fornecido o recuo temporal indispensável à génese do conceito de evolução. E Lamarck tinha decerto razão quando argumentava que a semelhança de formas não era de surpreender dada a extrema lentidão da evolução e o pouco tempo decorrido para mais profundas alterações. Depois descobriram-se cada
vez mais descontinuidades entre as espécies, e, sobretudo, entre as categorias supra-específicas. A grande «escada da natureza» já não era a perfeição imaginada: faltavam degraus”. Quem estava principalmente
em
dificuldade
plenitude
com
espaços
portar
culdades. ou
teorias
Mas
por
metafísicas,
mais
progressivos,
se
qual
pensava
não
comodamente scala
naturae
com-
as difi-
obsessionados
menos
a imutável
interpretaram
da
conciliar o princípio
ignoraram
Uns
preencher.
alguns
a
natureza,
da
hiatos
esses
queriam
que
aqueles
eram
com numa
perspectiva transformista, as semelhanças indicando afinidades, descen-
dência. O escalonamento gradual que lhe estava implícito indicaria então que a evolução não procede por saltos, mas sim por lentas e pautadas progressões. Para outros, a saída foi um acordo ainda mais radicado
na
imutáveis.
tradição:
Isto
as
espécies
aconteceu
relacionar esse facto expansão colonialista,
foram
no século
declaradas
entidades
XVIII, e creio que
reais
seja legitimo
com as condições de um mundo europeu em consequência em grande parte directa das des-
cobertas iniciadas por Portugal e Castela no século xv. De
facto,
avanço
e
a
hipótese
da 61
necessidade
dessa
ideia.
Como
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
haveriam os produtos dos três reinos da natureza, afanosamente procurados nas novas terras ricas, de ser inventariados, identificados e
possuídos, se as espécies fossem entidades fugazes e sujeitas a caprichosa diversidade? Lembremos neste contexto que a classificação dos objectos naturais foi a actividade dominante do século xvili em relação precisamente com a exploração das terras exóticas, prenhes de riquezas fabulosas ou de objectos estranhos aos olhos vindos de horizontes estreitos, como os do Europeu de então. À classificação desenvolveu-se com a ascensão da burguesia e com a sua expansão económica colonialista e com a filosofia da espécie real e imutável, bem definida e caracterizada. Esta última concepção era indispensável, não só como base dessas classificações, como concedia a objectividade indispensável aos produtos obtidos, permitia a catalogação de uma diversidade imensa de espécies, ao lado da qual a flora e fauna da Europa eram modestíssimas. Além disto, não se rompia com a tradição da Igreja; pelo contrário, ainda mais se firmava a omnipresença do Criador declarando as espécies sua obra imutável e concedendo-lhes uma posição central na classificação, considerada como expressão de ordem da natureza, reveladora do plano divino. No século xvrrl e parte do xix a classificação dos organismos desenvolveu-se confortavelmente num mundo que ainda era pensado como imutável, onde o tempo ainda não tinha um sentido de mudança. Nasceu nele e para ele. Quando se tentou, porém, acomodá-la a novo paradigma entre
de um universo em mudança,
aparências
intencionalidade contradições,
e essências,
assim
como
divina que o marca,
tendo
na base
que varreu a velha oposição a
invariância
surgiram
a inconciliação
do
real
as dificuldades
absoluta
entre
e a
e as
o fluir das
coisas e as «essências» imutáveis. Daí o esforço tentado desde o nasci-
mento do darwinismo em fazer que a classificação e o conceito de espécie continuassem como as traves mestras da ciência biológica, esforçando-se
os taxonomistas
por
conciliar
o que
afinal
pertencia
a
dois sistemas conceptuais inconciliáveis. Surgiu uma crise ao decidir-se enxertar
no
novo
modelo
do mundo
o que
nascera
e frutificara
na
visão antiga. Assim, considerando-se as espécies como realidades objectivamente definíveis, mas simultaneamente entidades dinâmicas em contínua transformação, abriu-se caminho a um interminável conflito
metafísico sobre a natureza real da classificação e da espécie, com os seus numerosos teóricos e escolas, onde tem avultado a tendência de obstar à decadência da venerável ciência da classificação, revitalizando-a com todos os conceitos e técnicas que lhe dêem a aparência de estar perfeitamente integrada na própria mudança. Tudo isto deu como resultado
a sua transmutação,
em
certos sectores
anticlassificação ou antitaxonomia,
mais
transcendendo em
progressivos,
em
muito os objec-
tivos tradicionais da classificação, perseguidos pela grande maioria dos 62
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — 1
taxonomistas actuais (para maior desenvolvimento deste tema, v. meus 1978, 1980). A classificação das plantas e dos animais, que no século xvilI atingiu um extraordinário desenvolvimento, estava ainda muito influen-
ciada pela visão antiga de um mundo harmonioso. Para Lineu, a clasreproduzia
sificação
o plano
perfeitamente
ficos eram
da criação
e os seus fundamentos
escolásticos, impregnados,
como estavam,
de
da criação
aristotélico, considerando as espécies produtos
essencialismo
filosó-
divina, realidades isoladas numa natureza imutável. A classificação, com as suas categorias inferiores subordinadas às categorias superiores, traduzia de certa maneira as classes sociais; e, reflectindo-as, exprimia, ao seus nível, uma sociedade fixa, baseada na ordem natural do mundo,
oposta ao progresso e à mudança. Daí a sua crise, surgida com o darwicom
nismo,
a concepção
de um
universo em
permanente
movimento.
Este facto não surpreenderá, visto que a ordem estática dos elementos foi consagrada por Aristóteles. Este filósofo recusou, como referimos,
a escola materialista e dinâmica da primeira fase da filosofia grega, opondo-se, assim, à inconstância, tendo sido sempre fiel ao conceito
de subordinação de partes não activamente relacionadas. O predomínio da classificação, como expressão de uma ordem inalterável da natureza, que se manteve até ao darwinismo nascente, entrou assim em crise quando declinou a imagem do mundo antigo. A classificação adaptou-se logo à concepção moderna, mas conserva
ainda, em certos aspectos, uma estrutura arcaica, que lhe vem da sua não idade de ouro. Com o darwinismo surgiram contradições que ainda terminaram, como bem mostram a profusão de teorias, conceitos e esco-
las que tentam
harmonizar o que pertence
superá-las, tentando
a dois
sistemas conceptuais antagónicos. Nos ensaios a que aludi acima desenvolvi estes aspectos, respeitan-
tes ao significado e natureza da classificação biológica. Aí tentei mostrar que a classificação tem uma componente essencialista, e que, além disso, ou por causa disso, leva à compartimentação da realidade biológica em mudança. Esta formalização da realidade biológica tem sido
um obstáculo a uma mais profunda compreensão dos organismos, das suas inter-relações e evolução, e mesmo à elaboração de uma adequada filosofia
do ser vivo. O próprio
conceito moderno
de espécie
(conceito
biológico, como é designado) transforma-se, em regra, na prática, num conceito fenético-essencialista,
3.
Visão O
antiga
abalar
dos
ou menos
mais
e visão
moderna
obstáculos
maiores
explicitado.
ao evolucionismo
essências, o princípio da plenitude e a teologia cristã — 63
—
a teoria
começou
das
com
GERMANO
a Renascença, culo
xIx
as
DA
FONSECA
SACARRÃO
precipitou-se nos séculos XVII e XVIII, até que condições
históricas
e as
transformações
no sé-
económicas
e
tecnológicas operadas na sociedade, que entrou em crises mais rápidas de mudança, esperavam apenas por um Darwin que lhes concedesse a honorabilidade e credibilidade científicas, que pusesse cobro aos derradeiros ecos de um passado bem morto. Não estou certo do carácter providencialista dos homens, e, assim, se não fora Darwin,
o século xIX
haveria de ser o palco da grande revolução do transformismo, porque a ciência já era, em meados do século xIx, mais um produto colectivo do que o resultado de inteligências ou vocações isoladas *. O aluimento do modelo antigo deveu-se a vários factores, cientificos, sociais e tecnológicos. Um mundo rural e religioso, de pequenas comunidades isoladas, onde tudo parecia ordenado e imutável, em que os homens pouco comunicavam e muito pouco ou nada conheciam de outros
homens
vivendo
sob
outras
latitudes,
com
outros
costumes
e
ideias, foi gradualmente substituído por outro nascido de um conjunto de condições que vão desde as formidáveis consequências dos Descobrimentos, da invenção da imprensa, da crise suscitada pela Reforma, até à expansão comercial, às novas tecnologias e relações económicas, tudo isto desarticulando a ordem
social estabelecida,
introduzindo
a mobili-
dade, a invenção, e, como reflexo, conduzindo os homens a olharem com
outras ideias a scala naturae, e, por consequência, a «verem» nesta um dinamismo, uma expressão de movimento e diversidade a que até aí estavam por assim dizer cegos ?. Acentuou-se rapidamente a intervenção
na natureza, o homem ocidental apoderou-se dela, já não era a «grande cadeia de seres» para contemplar, para lhe admirar a ordem e a perfeição, mas sim para explorar, utilizar, transformar, dando nos nossos dias,
como
reflexo
contrário,
o
chamado
«movimento
ecologista»,
romântico nas origens, mas na realidade agora mais económico e político, em todo o caso assimilado e reorientado pelas nações industriais,
que em vão procuram um compromisso viável entre o aproveitamento e conservação dos recursos naturais e a crescente exploração
industrial,
agrícola e oceânica, e como ideal o fruir de todos os bens produzidos por uma
humanidade
em plena explosão demográfica,
natureza rica e impoluta. Podemos considerar agora
a existência
de
duas
instalada numa
concepções
ou
modelos do mundo. O modelo do mundo antigo e o do mundo moderno !º. Não há limites entre eles; a passagem da visão antiga para a
moderna foi gradual, e dido por uma filosofia caracterizado pela ideia tituído por formas fixas
também vimos que o modelo antigo foi precemais próxima da actual. O modelo antigo era de que o mundo era eterno e imutável, conspor determinação divina, onde o tempo quase
não tem significado, onde qualquer evolução cósmica não existe. Dominava a concepção de que a fé é sempre superior à razão, no sentido, 64
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —
como diz Bernal, de que há coisas que só a razão por si só nunca pode
descobrir. As respostas são conhecidas antecipadamente, mas a revelação e a razão nunca entram em colisão: cada uma
tem o seu domínio
próprio, uma ideia que ainda hoje forma a base da doutrina religiosa. místicas
fixas, a esconder
de formas
Mundo
essências, as propriedades
repetiam-se eternamente as mesmas, não havia lugar para novas, tudo havendo de integrar-se em modelos invariáveis e universais. Já se fez referência ao caso das espécies. Neste sistema de conceitos, as espécies
suas (de specere, ver, atentar) de um objecto eram simplesmente as aparências, não a sua «essência» íntima (Zirkle). As aparências, por
eram
consequência, eram
eternas,
espécies no
não
sentido
as configurações
moderno,
as entidades
como
mudança,
para
lugar
havia
aparentes.
o homem
siderava-se
E
enganadoras.
a
para
de origem
imutável,
das
evolução
as aparências,
pois só se modificavam
Paralelamente
«essenciais»
à fixidez
da
divina,
cujo
natureza,
con-
espírito,
por-
tanto, é capaz, por revelação, de apreender o verdadeiro significado dos
fenómenos naturais e o plano do Criador. A arte também traduzia fiel-
mente a concepção antiga. Nas palavras de A. Katzir (1972), «a arte reflectia o paradigma, e a sua expressão serena tentava representar o eterno, as propriedades imutáveis do homem e da natureza». visão
Esta
do mundo
teve
antigo
o seu apogeu
a
toda
durante
época medieval. Mas não terminou com ela; a sua influência, já em
arrastada fase de crise, foi até meio do século XIX, e os seus ecos mundo longínquos ainda hoje se fazem sentir. Era uma imagem de um bem nutrido de teologia e de fé religiosa, solidamente apoiado em Aristóteles,
o grande
paladino
da ordem,
e de quem
Bernal
disse
ter
sido «o filósofo do senso comum, quase do lugar-comum», o que talvez
seja um
juizo
demasiado
severo.
O
mesmo
autor acrescentou,
ainda,
que, tal como fazia Hitler, Aristóteles nunca disse nada que as pessoas não acreditassem já, tendo sido mais um lógico e um cientista do que um filósofo moralista. Por seu lado, Russell escreveu: Qualquer filósofo notável, e mais ainda Aristóteles, deve estudar-se com referência aos predecessores e aos sucessores. No primeiro aspecto, o mérito de Aristóteles é enorme; no segundo, o demérito igualmente enorme; mas deste são mais
responsáveis os sucessores. Ele veio no fim do período criador do pensamento
grego e durante dois mil anos o mundo
não
produziu filósofo que o igualasse. Durante esse período, a sua autoridade foi quase tão indiscutida como a da Igreja, e em ciência como em filosofia tornou-se obstáculo sério ao progresso. Desde o começo do século XVII, quase todo o avanço intelectual começou por um ataque a alguma doutrina aristo-
Bibl, Univ.
49 — 5
65
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
télica; em lógica ainda hoje assim é. Mas teria sido igualmente desastroso, pelo menos, se qualquer dos predecessores (excepto talvez Demócrito) tivessem adquirido igual autoridade. Para sermos justos, devemos começar por esquecer a excessiva fama póstuma e a igualmente excessiva póstuma condenação !!. A
ciência
e a filosofia
modernas,
e
com
elas
o
evolucionismo
darwiniano, modificaram profundamente a visão antiga de um mundo harmonioso, estável, criado por um acto divino. À rígida subordinação
de partes permanentes tinha, na concepção antiga, a sua equivalência
na hierarquia da sociedade. Aquela reflectia esta. E a esta convinha aquela. Esta correspondência aparece nitidamente na sociedade medieval. Na visão moderna vamos encontrar um
sistema de conceitos e um
tipo de sociedade que de certa maneira também se correspondem, se influenciam mutuamente, mas de outra maneira. Uma concepção nascente de mundo em mudança, de invenção e transformação, competitivo e repleto de contradições estava, de facto, desajustado
a uma
sociedade
de regime senhorial, de proprietários rurais, de vassalagem e enfeudação, rigidamente dirigida pela fé cristã, apropriada ao imobilismo. Mas
já não
acontecia
o mesmo
em
relação
ao
capitalismo
industrial,
ajustado a uma concepção de mudança e que nela via em parte a justificação para a sua existência, para a sua moral, para os seus empreen-
dimentos 2. Não
seríamos
verdadeiros
se
opuséssemos
à visão
evolucionista
moderna um passado onde esta noção não tinha lugar. A história das ideias sobre a evolução revela-nos que poucas vezes se justifica a afirmação absoluta da não existência de transformações, pelo menos ao nível da espécie, que todavia não teve constantemente um
mesmo
signi-
ficado. Mesmo nas épocas onde se julgava o universo imutável, havia a ideia de um evolucionismo tímido, a noção de que as espécies se mudavam em outras, mas o essencialismo metafísico, os dogmas religiosos, em particular o da Criação, determinavam um forte condicionamento nos espíritos que os impedia a irem mais longe. E ficavam-se pelas aparências (que essas, sim, mudavam) não se pondo, claro está, em
questão a realidade e imutabilidade das «essências».
A visão moderna, marcada pelo princípio de um
mundo
em mu-
dança permanente, implantou-se rapidamente a partir da segunda metade do século xIx (a ruptura começara já no século XVIII ), penetrando profundamente no pensamento filosófico, nas ciências e em
todas as manifestações da vida social, não esquecendo, igualmente, no plano da interpretação histórica e sociológica, a obra de Marx e de Engels, com as suas ideias sobre os factores que presidem à evolução 66
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —1
das sociedades humanas desde as origens. A biologia, com Charles Darwin, e a sociologia (pelo menos nos seus aspectos mais progressivos ) tornaram-se ciências materialistas e históricas e influenciaram rapida-
mente todas as esferas do pensamento e da criação científica, artística e sociológica. À teoria da relatividade veio finalmente embaciar as últimas
imagens
do mundo
antigo,
atacando
os seus pilares
sagrados
— o espaço e o tempo absolutos —, e assim se desvaneceram, também, as ideias sobre a natureza dos átomos, não já como objectos de estrutura material fixa e bem determinada, mas conceptualizados agora em novos quadros mentais, com a ajuda de modelos matemáticos complicados. À ruptura não foi repentina, como já referi. À parturição da imagem moderna foi lenta e gradual no seu trabalho de desfazer dos antigos, de exumar valores esquecidos e descobrir
e novas
leis
que
rasgaram
pouco
a pouco
a autoridade novos factos
os horizontes
do
mundo
moderno. Charles Darwin, com a sua gigantesca acumulação de factos e a sua poderosa e objectiva argumentação científica, deu um golpe definitivo na velha imagem do mundo, ainda repleta de ideias e preconceitos arcaicos.
Atingiu
em
pleno
o próprio
conceito de humanidade,
feriu
fundamente os conceitos religiosos e morais, o dogma da criação, da origem do homem; deu à ciência a possibilidade de desacreditar a auto-
ridade dos textos bíblicos; e com isto foi toda a origem, natureza e destino do homem
que
passaram
a ser vistos a uma
nova
luz, como
as
resultantes de um processo de longa evolução devida a causas materiais, contrariando assim frontalmente a autoridade teológica e as enraizadas crenças de vinte séculos, que todavia não tinham sofrido tão formidável abalo com a revolução de Copérnico-Galileu. Com o darwinismo nasceu
uma
ciência
do homem,
encarado
doravante como
um
animal
de ori-
gens humildes, irmanado aos outros seres, produto da Terra como eles, e com eles originado de formas primitivas muito simples, por um processo de gradual evolução. Surgiu a ideia de progresso sem fim, agora estribada em considerações científicas, indo buscar-se à biologia a sua fundamentação, prestigiada pelo nome de Darwin e seus continuadores, se bem que o grande naturalista não a perfilhasse inteiramente
(veja-se o cap, V) É, A ideia de progresso, nas condições socioeconómicas do século XIX, estava intimamente ligada à ideia de competição, e sem dúvida que a teoria da evolução nasceu, em parte, sob a influência de um clima social onde se procurava uma justificação para a exploração capitalista, ou pelo menos foi largamente utilizada para isso. Na visão antiga, a biologia reflectia
a imagem
de uma
natureza estática, criada
de uma
vez para sempre por Deus, e, como tal, podia legitimar a rígida hierarquia social, a concepção harmoniosa da sociedade, a ordem firme que existia em tudo. Ainda nos séculos XVII e xvill, a ordem da natureza 67
á GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
era proclamada, nos seus múltiplos aspectos, como uma prova do trabalho divino, servindo de exemplo e de orientação para a vida social. No
de
competição,
de
de progresso,
mágicos
ceitos
os
com
armado
evolucionista,
o biologismo
paradigma,
novo
também,
passou,
selecção, reflectindo agora um processo de mudança,
de
vida,
pela
luta
con-
a servir de guia e justificação intelectual e ética à nova sociedade, com todos os erros e abusos inerentes.
Para a eclosão da visão moderna foi de fundamental importância o progresso da geologia, com as novas noções sobre a idade da Terra. Foi abandonada a falsa ideia de uma criação recente (seis mil anos)
e começou a impor-se a ideia de uma muito longa idade !*. Este facto a
teve enormes consequências, a mais importante sendo provavelmente
de permitir explicar, com muito mais longo tempo disponível e por processos graduais, a origem e transformação não só do relevo geográfico como das plantas e dos animais. O elemento temporal foi decisivo. Foi ele que em grande parte permitiu a Darwin negar com sólidos argumentos científicos o criacionismo, recusar o antropocentrismo, colo-
cando o homem na grande corrente do movimento evolutivo, e não fora dele como
até aí; e permitir,
à luz dos factos,
o velho
afastar
dogma
das «essências» dos escolásticos, rejeitando essas qualidades íntimas das que, por serem
coisas,
e eternas,
imutáveis
sério obs-
um
constituíam
táculo à formação da ideia de transformação gradual de umas coisas em outras, separadas
como
estavam
pelas suas essências
a impossi-
ocultas
bilitarem continuidades e descendências. Esta revolução mental não está ainda acabada, restam fragmentos poderosos da visão antiga |. A
teologia
por
operando,
tenta-se século
de teleologia
e o conceito
formas;
novas
motivo
dessa
xx, a revolução
revolução;
regresso. De
aqui e ali um
e estão
procuram-se
facto,
neste
a tomar
ainda
que
direcções,
outras
último
se vão
quartel
do
as
suas
ou de suscitar profundas
con-
está longe
darwiniana
possibilidades de abrir novos caminhos trovérsias.
tomaram
às lentas modificações
a religião adapta-se
É, por exemplo, o que se passa com
de
ter esgotado
o nascimento
da socio-
biologia, elevada a ramo fundamental da biologia evolutiva, e com a qual se pretende explicar as acções sociais humanas à luz da sociobiologia animal e dos mecanismos genéticos e ecológicos e comportamentais
que
estão
na
sua
base,
e com
a soberana
intervenção
da
selecção
natural. Como disse E. O. Wilson (1975), um dos principais chefes de fila da nova escola, «a formulação de uma teoria da sociobiologia cons-
titui, na minha opinião, um dos grandes problemas da biologia a serem tratados nos próximos vinte ou trinta anos». Este problema está no centro da grande controvérsia de se saber se o homem é um animal pré-programado ou se, pelo contrário, a sua realização como indivíduo e como ser social escapa ao estrito condicinalismo de mecanismos genéticos. Se tem, em suma, larga margem para a liberdade, ou se é um 68
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — 1
ser tão condicionado pelos genes e pelos processos que se passam nas células do seu organismo que a responsabilidade pelo seu destino só poderá exercer-se por manipulação e aperfeiçoamento do seu próprio património hereditário. Tudo isto, e inclusivamente o próprio conceito de selecção natural, está hoje sujeito a profunda crítica e revisão. Debate-se, além disso, se a evolução é um processo gradual
(como sem-
pre pensou Darwin) ou, pelo contrário, intermitente. Estes e outros aspectos serão discutidos neste livro, nos capítulos subsequentes. 4.
Reacções
à imagem
de
um
mundo
em
mudança
A nova visão do mundo é marcada pela filosofia evolucionista, que deu não só novas e radicais direcções à ciência, em particular à biologia e à sociologia, como penetrou em todos os aspectos do saber e da cultura humanas. Novos quadros conceptuais estão porém em elaboração, e assiste-se, aqui e além, a uma procura de pontos de apoio que lembram posições semelhantes à visão antiga, com as suas estruturas e leis invariáveis. Há
sempre
uma
certa reacção
ao movimento,
à mudança,
e por
isso o evolucionismo científico suscita, muitas vezes, numerosas reservas,
suspeitas e distorções. E isto apesar de ser este século que fez, como
escreveu
Katzir,
«do
princípio
de
Heraclito
panta
rhei
(“tudo
flui”)
a base da sua visão do mundo. Não somente a vida e a sociedade» (continua o mesmo autor) «estão num estado de perfeito fluxo, como os próprios átomos sofrem transmutações, ao longo de biliões de anos, e o cosmo
no
seu
conjunto
transforma-se
e evoluciona
a um
ritmo
espantoso. Mesmo as leis da natureza — os verdadeiros alicerces da crença do homem, os pilares de todos os fenómenos observados e das expressões da sabedoria cósmica — parecem mudar com o tempo». Na opinião do mesmo autor, há tendência para a elaboração de uma nova síntese que apresenta certas semelhanças com «o mundo organizado da antiga posição». Parece devotar-se uma atenção cada vez maior «à relação, à composição e à estrutura. O aspecto estrutural das relações materiais afasta numerosas barreiras que separavam a arte e as humanidades, por um lado, das ciências naturais, pelo outro, e permite uma nova unificação a um nível mais elevado que a integração clás-
sica». Esta nova síntese viria, para o mesmo autor, a seguir ao desmoronar do mundo materialista. O que me parece traduzir uma reacção idealista,
no
fundo
sempre
contrária
ao
evolucionismo,
traduzindo
o
pendor do espírito para encontrar pontos de apoio, uma certa segurança na invariabilidade do real, uma visão do mundo mais estática; eom formas, com leis e estruturas estáveis, e até com uma promessa de
espiritual ascensão, em
suma,
com
intencionalidade, 69
que compensaria,
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
talvez, a angústia ressentida pela verificação de um
permanente fluir.
Monod, por exemplo, no seu livro L'Hasard et la Nécessité,
não esconde
a sua simpatia pela existência de entidades imutáveis na estrutura do Universo.
Livro
pequeno
nas
dimensões,
mas
extremamente
penetrante,
ele é, de certo modo, um inteligente discurso de apologia as pretensões reducionistas da biologia molecular, com a qual o autor edifica uma teoria sobre o destino e significado do homem. Obra muito brilhante, sem dúvida, mas discutível, quer quanto à legitimidade de certas deduções, quer no que respeita ao bem fundado de certos conceitos ou noções que se sabe serem controversas e estarem sujeitas a revisão, ou mesmo se tendo demonstrado já não corresponderem aos factos. Trata-se, sobretudo, de uma obra que propõe uma ideologia, e como tal enferma, a meu ver, de generalizações e esquematismos que podem enlear o leitor leigo ou desprevenido, que passa, assim, sem
talvez se dar conta, do domínio da biologia para o da filosofia, com muito do que neste último há de especulativo, de indemonstrado ou de indemonstrável. Alguns significativos trechos do livro de Monod mostram claramente um quadro conceptual com analogias com o paradigma clássico, no sentido de existirem realidades imutáveis na própria estrutura do mundo. Diz Monod, por exemplo, que «a estratégia fundamental da ciência na análise dos fenómenos é a descoberta de invariantes» (p. 134). E mais adiante declara que «há e permanecerá na ciência um
elemento platónico de que não pode ser separada
sem
a destruir.
Na diversidade infinita dos fenómenos singulares, a ciência não pode procurar senão invariantes». Em seguida, reportando-se a um período pré-darwiniano, evoca Cuvier e Goethe para dizer que havia nesses grandes naturalistas «uma ambição “platónica” na procura sistemática de invariantes anatómicas». Cuvier era fixista e Goethe um dos mestres da morfologia idealista, da busca da ideia absoluta, da unidade de plano, dos arquétipos, do plano divino da natureza, que caracterizaram a Naturphilosophie desde o princípio do século xix na Alemanha,
tra-
vando-se, assim, com estas ideias místicas, a liberdade do espírito para aceitar o conceito de evolução, e que estudos existentes e diversas observações já fortemente sugeriam. Na opinião de Monod, os biólogos modernos não prestam, talvez, a merecida justiça «ao génio dos homens que, sob a assombrosa
dos
variedade
seres vivos, souberam
menos
um
número
das morfologias
reconhecer
finito de planos
senão
uma
anatómicos,
riante no seio do grupo que caracteriza»
(p. 135).
e dos modos
“forma” cada
um
de vida
única,
pelo
deles
inva-
A biologia moderna revela novas provas da existência de «formas»
universais. Assim, continua Monod, a espécie mantém, invariante, através das gerações, a norma estrutural que a caracteriza e a diferencia,
cuja causa está na reprodução «do texto escrito sob a forma de sequên70
BIOLOGIA
cia de nucleótidos no ADN», E afirma
ADN»,
categoricamente
E
SOCIEDADE — 1
que garante a invariabilidade da espécie.
que «o invariante biológico fundamental
é o
(p. 138) e que «todas as propriedades dos seres vivos assentam
num mecanismo fundamental de conservação molecular. Para a teoria moderna, a evolução não é de modo nenhum
uma propriedade dos seres
vivos, pois ela tem a sua raiz nas próprias imperfeições do mecanismo conservador»
(pp.
151
e 152;
itálicos
do autor).
Ora a realidade biológica aí está para demonstrar que a evolução é a própria condição dos seres organizados, porque sem um permanente
fluir para novas formas face das constantes não é nem
mação,
mais
sendo
e funções como poderia a vida subsistir em
mudanças
nem
dos ambientes? importante
menos
da contradição
O processo conservador
do que o processo de transfor-
que se põe a todo o momento
entre o
passado (transmitido pelo mecanismo conservador) e as exigências do presente que resulta a evolução, isto é, saídas para novas soluções adaptativas, ou para novas extinções que, por sua vez, estimularão
novas direcções do processo. À evolução é um movimento em que o passado
se
nega,
mas
ao
tempo
mesmo
tende
a conservar-se,
o
sendo
resultado um brotar de novas formas que se apoiam em formas precedentes, num
Também
vasto
encadeamento histórico.
para Monod,
o organismo persegue uma
finalidade — a
invariância reprodutora. Esta e outras afirmações traduzem uma tentativa de explicação da biologia à luz de uma filosofia, dando o autor o
aspecto que é a primeira, como ciência, que confere legitimidade e suporte à segunda, quando é o inverso que faz. À sua posição é sem
dúvida idealista, de resto bem evidenciada pela sua própria termino-
logia, v. g. quando
se refere às funções cognitivas das moléculas,
finalidade dos organismos, de antropomorfismo,
como
à
ao projecto que realizam, atitude penetrada bem
justamente
notou
Jane
Oppenheimer
(1972). Por outro lado, conceber a biosfera, a emergência do homem
e a sua complexíssima história como produtos do ADN
(o «conservató-
rio do acaso») e da selecção natural (sem quanto a este conceito reconhecer as incertezas e as ambiguidades) traduz, a meu ver, um biologismo triunfante, um tanto dogmático e certamente esquemático. Estabelecer qualquer teoria geral sobre a vida, com aspectos de suficiência dogmática, como transparece nos propósitos de Monod, oferece os seus perigos. Por exemplo, a sua afirmação fundamental de que «o que é verdadeiro para a bactéria o é também para o homem» já não pode sustentar-se, em face das provas posteriormente acumuladas sobre a organização do genoma e sobre a estrutura e o modo de acção dos genes dos organismos superiores
(v. meu
1985).
Não me parece necessário entrar em mais particularidades para se notar na filosofia natural exposta por Monod uma certa semelhança ou simpatia com certos aspectos da visão clássica, dada a sua ideologia 71
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
dos invariantes na estrutura do universo. Razão tinha, já em 1961, Oparin ao afirmar o seu cepticismo quanto às possibilidades de alterações induzidas no ADN, dizendo que «nunca poderemos transformar um
elefante numa mosca ou uma
em
face dos dados recentes,
uma
mosca num bactéria
num
elefante» elefante
(p.
190), ou,
ou
vice-versa.
A vida dos organismos não é um jogo invariante de biomoléculas, nem a evolução a simples eliminação e escolha, pela selecção
natural,
res-
pectivamente dos «erros» e «tentativas» desse jogo (mutações). Monod, ao pretender explicar com tal esquema reducionista toda a biologia, o homem, o pensamento, a sociedade, a história, a ética, etc., transformou
imprudentemente a biologia numa ideologia peremptória, não se dando talvez conta das dificuldades em identificar a mesma ciência (que, como qualquer outra, é por natureza entretecida de verdades transitórias,
e é
anti-sentenciosa)
a uma
filosofia
natural
dogmática
com
pretensões a ser uma explicação definitiva e universal. Outro autor, C. Portelli (1975), avança uma hipótese que dá bem, a meu ver, também, a medida da tendência de encontrar à luz da biolo-
gia molecular e da teoria do código genético uma entidade perene, fonte da vida em todo o universo, determinando o seu progressivo aperfeiçoamento. Para o mesmo autor, os ciclos de evolução do universo
e da vida estão ligados de tal modo que, se acaso interpreto correcta-
mente a sua hipótese, a vida desenvolvida num dos ciclos do universo, e a informação que ela aí acumulou, passam, aquando de um ciclo cósmico, para o universo seguinte, através da «origem»
novo deste
último (v. também Berger, 1976). O código genético actual representa para Portelli a mensagem proveniente de sistemas vivos que existiam num universo que precedeu o actual, mensagem essa portadora de toda a informação necessária para dirigir o aparecimento da vida no nosso universo, e com a capacidade de determinar
vivos. O código genético um código mais perfeito coeternidade da matéria existiria uma constante
a evolução
dos seres
actual contido no ADN produzirá, por sua vez, no próximo ciclo do universo. Como que uma e da vida. Temos assim que, segundo Portelli, universal, que passaria de um para outro uni-
verso, de cada vez fazendo ressurgir aí a vida e sempre
perfeita, pois a mensagem
contida no ADN
de forma
mais
seria cada vez mais rica de
possibilidades. Trata-se de uma pura vista de espírito. Fica de lado a difícil questão da origem do código genético e sugere-se a coeternidade
da matéria e da vida, ideia que não é nova.
Esta procura de invariantes num mundo em constante transmutação parece
ser uma
compensação
para a perda
da visão antiga em
um
mundo em permanente transformação. É uma reacção idealista. Lem-
bra uma reacção análoga àquela (e aliás no mesmo quadro geral) que Popper (1961) denunciou nos partidários do historicismo nas ciências sociais. Em todos haveria medo à mudança, um inconsciente con72
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — |
servadorismo, relutância em aceitar que, quer na evolução biológica, quer na social, não se possa predizer o seu curso futuro, que não existam leis da história ou que o progresso não seja determinado por leis imutáveis. Procura afinal de «essências», ou seja, daquilo que fica inalterável durante a mudança.
O mesmo autor mostrou igualmente que o reducionismo filosófico, além de ser um erro, é devido ele próprio à pretensão de tudo reduzir a uma explicação final em termos de essências e substâncias aristotélicas, quer dizer, a uma explicação definitiva, para além da qual não é possível haver
mais
elucidação,
nem
será necessário que
haja, o que,
no fim de contas, é impossível, porque há sempre em cada redução alegada um «Porquê?» infindável (v. Popper, 1974). Nesta ordem de ideias, conjecturo que o reducionismo poderá também englobar as tentativas, conscientes ou não, de captar o que seria finalmente imutável num mundo em constante transformação — ou seja, as essências. Mas os erros ou os sucessos do reducionismo são (como acentuou o filósofo antes mencionado) fonte de novos problemas e de grande enriquecimento teórico. Mas existem ainda outros aspectos na sociedade que traduzem provavelmente a tendência para considerar o mundo e a sociedade como estáveis, onde nada haveria para profundamente melhorar. Por exem-
plo, a moda de imaginar a presença de «civilizações inteligentes» dispersas no universo, de uma «inteligência universal», com possibilidades admitidas de comunicação e entendimento, pressupõe que exista identidade, ou quase, nos processos cognitivos e nas funções da mente, que por
toda
a
parte
seriam
as
mesmas,
e,
portanto,
uma
mesma
meta
tecnológica teria sido atingida em todos os mundos pela evolução da vida (v., no cap. V esta mesma questão). Esta crença insere-se na mesma ideologia de estabilidade e harmonia necessitada pelos actuais sistemas político-económicos,
tanto das nações
burguesas
como
dos países onde
impera o capitalismo de Estado e o socialismo totalitário. Em todos a estabilidade surge como uma situação especialmente mais importante do que as mudanças, particularmente as mutações socioeconómicas bruscas,
violentas e revolucionárias. A fase de progresso, de mudança e de instabilidade exigidas pela ascensão da burguesia, sobretudo nos séculos XviII e XIX, foi substituída, neste século, por uma fase de resistência por
parte do sistema capitalista (privado e estatal), que se julga naturalmente eficaz e insubstituível, donde a exigência de novas cauções ideo-
lógicas que entram em conflito, já se vê, com ideologias científicas dominantes, nomeadamente com as noções de evolucionismo e de progresso. Também a ideologia da harmonia e do equilíbrio dinâmico na natureza, noções que reinam na ecologia científica e nos movimentos ecológicos (políticos, românticos, etc.), traduz, provavelmente, a mesma 73
GERMANO
tendência,
DA
eco talvez de uma
FONSECA
SAGCARRÃO
situação social
que
se desejaria
estabili-
zada e que se pretenderia demonstrar que o é no plano político e económico. Richard Lewontin (1985) escreveu que «as bem sucedidas revo-
luções do século xvill corriam o risco de ser seguidas
por
outras.
A resistência da burguesia, então dominante, a um ulterior progresso social requeria novas legitimações ideológicas». E acrescenta que «a ideologia do equilíbrio e da estabilidade dinâmica caracteriza tanto a teoria moderna da evolução quanto a teoria político-económica burguesa», que «os organismos estão no seu óptimo esperado ou perto dele» e que, «embora as espécies surjam ou se extingam, nada realmente novo acontece na evolução». E junta, ainda, que «não há progresso porque não há nada a melhorar. A selecção natural apenas impede que as espécies se atrasem muito relativamente a um ambiente em lenta mas contínua evolução». Pensa haver uma «surpreendente analogia» entre essa dinâmica da natureza viva «e a pretensão de que a moderna sociedade de mercado é a organização mais racional possível, e de que, embora os indivíduos possam ascender ou decair na hierarquia social com base nos seus méritos específicos, existe um equilíbrio dinâmico das classes sociais, ocorrendo as mudanças
sociais ou tecno-
lógicas apenas em função da necessidade de fazer frente à degeneração
do ambiente». Esta visão crítica é provavelmente acertada, mas é limitada. A meu ver, aplica-se ao conjunto das modernas sociedades industriais, quer às democracias burguesas, quer aos regimes políticos totalitários. A sua análise de que existe uma tendência para dar supremacia a uma biologia de estabilidade e de equilíbrios dinâmicos parece-me de incluir no contexto do que pode assumir-se como traduzindo reacções à imagem de um mundo em mudança, as quais, como tentei mostrar, parecem resultar de causas diversas. A realidade biológica ou social é demasiado
complicada para consentir ser reduzida a esquemas. O paralelismo ideológico pode traduzir apenas a existência de cenários independentes, quer dizer, a reacção idealista aos conceitos de mudança
podendo
não
depender de necessidades de legitimação ideológica de natureza política. 5.
A
religião
da evolução
O impacte do evolucionismo científico (darwiniano) foi, como se sabe, enorme, não apenas na biologia e na ciência em geral, como na
filosofia e em todos os aspectos e manifestações da vida social e até política. O novo modelo do mundo criado pela revolução industrial induziu
nalguns homens de ciência uma nova visão da realidade — visão tem74
BIOLOGIA
poral, visão de mudança, sequência foi o criarem-se vida. O darwinismo, com vivência dos mais aptos», de conceitos. Este passou, modelo de sociedade. Por
E
SOCIEDADE — 1
e por isso mesmo visão de progresso. A connovos modelos científicos da natureza e da a sua teoria da selecção natural e da «sobreconstituiu a pedra angular do novo sistema por sua vez, a explicar e justificar o novo outro lado, o evolucionismo darwiniano foi,
na sua origem e desenvolvimento, em parte influenciado pela estrutura socioeconómica
nascente.
que era necessário,
as
características
Parece ter surgido exactamente na época
visto que uma
competitivas
do século xIX poderia
sociedade em mudança
e de
encontrar
brutal
exploração
em
rápida e com
do
capitalismo
na nova doutrina a sua própria justifi-
cação, a sua filosofia, os meios para purificar, por assim dizer, a sua consciência. Claro está que vários poderes se viram ameaçados com a revolução darwiniana, tais como a Igreja, os grandes proprietários rurais e outros meios conservadores fortemente apegados aos simbolismos da sociedade, às suas tradições e mitos e aos privilégios recebidos.
Não
é meu
intento ensaiar aqui uma
análise exaustiva das conse-
quências desta revolução mental. Ela não seria, todavia, despropositada, em
descrença
face da
conhecimento e preconceito
actual na ciência e dos ataques
aos valores
do
objectivo em si, em que se confunde análise científica (v. o cap. V). É o caso das pretendidas bases científicas
de muitos dogmas e princípios que recorrem ao evolucionismo científico
para obterem a solidez racional de que carecem, que não será mais que ilusória, para não dizer mesmo, em muitos casos, mistificação pura. O como
evolucionismo tanto tem servido para apoiar os materialismos as doutrinas espiritualistas. E não se hesita em harmonizá-lo
quer com os princípios transcendentes da existência de uma finalidade na natureza
e na
vida, quer
com
o mecanicismo
ou com
as teorias
do
acaso como fontes criadoras. Tanto se socorrem dele os Teilhards, como
os Monods, os Oparins ou os Bergsons. Ultrapassam-se os limites da ciência. Cada um filosofa, defende a sua ideologia, subjectiva o real. Já não é só de ciência o debate. O capitalismo e os totalitarismos não deixaram de aproveitar o filão para obterem o substrato teórico de que careciam. Uns dão a primazia ao espírito, outros à matéria; esta, numa acepção
metafísica,
ainda
que
muitas
vezes negada,
com
algo de ine-
rente e determinante de progresso infindável, como se o mundo estivesse destinado à perfeição e a matéria vocacionada para isso. Outros, ainda, dão nova vivacidade ao antropocentrismo e afirmam a existência de «humanidades» em planetas distantes, capazes de se entenderem (portanto com inteligências análogas) como se a evolução tivesse sido pré-programada no universo, obra de um espírito modelador da matéria para configurações semelhantes, para um mesmo fim que julgam ser a hominização à escala universal. É o retorno à ideia tradicional de que o homem
é o centro e fim de toda a criação. 75
GERMANO
O evolucionismo
DA
FONSECA
científico tem
SACARRÃO
sido, portanto,
deformado
e per-
vertido, ajustando-o, conscientemente ou não, ao modelo desejado, acontecendo que, podendo ser lido em todos os sentidos, perde em consistência o que ganha em vacuidade e confusão !*. Ao serviço de diversas tendências e escolas, o evolucionismo científico tem sido politizado com cores e sinais que variam consoante o clima económico e social e os interesses das classes dominantes. Foi combatido por meios religiosos, por vezes parecendo assimilado, mas sempre aberta ou veladamente
combatido.
Tentou-se,
também,
fazer
dele
o
estandarte
de
uma ideologia, a justificação de uma moral. Ora o evolucionismo como filosofia, inserido numa doutrina, ou assimilado por uma mística ou política, tanto pode servir a libertação do homem como a sua sujeição. Diferentes cores políticas e sistemas económicos lêm-se amparado a um vago evolucionismo e sobretudo à teoria da selecção natural (falseada, já se vê, quando transportada para esses domínios) ou a um oco lamarckismo, para justificar objectivos, atitudes, reformas da sociedade,
ou até decisões atentatórias
da liberdade e dignidade.
Foi,
por
exemplo, o caso do chamado «darwinismo social», grande mistificação de vasta repercussão, que se estendeu inclusivamente à justificação das
ideologias fascistas, nomeadamente das teorias expansionistas do nazismo e outras. Por outro lado, num pólo oposto, Sir Julian Huxley acreditava (como, se verá adiante) muito sinceramente num humanismo cientifico, inspirado na evolução biológica e no princípio da selecção natural,
julgando perfeitamente possível a edificação de uma filosofia total da evolução que explicasse e guiasse os destinos humanos, para um progresso
sem
limites
que
dizia expresso
no próprio
processo
evolutivo.
São numerosas as tentativas para, a partir do evolucionismo científico, construir sistemas mais ou menos filosóficos, vendo-se na evolu-
ção um movimento transcendente, fonte e guia da moral, onde o homem pode encontrar suportes para as suas interrogações metafísicas,
evolucionismo que uns vêem sem sentido, nem finalidade, regido pelas leis da
matéria
e do acaso,
outros,
pelo
contrário,
afirmam-no
miste-
rioso, orientado por forças espirituais, com origem num Criador, vindo de Deus, ou caminhando para Deus, ou força caprichosa em invenção
permanente,
movida
por um
impulso
transcendente
que
atravessa
a
matéria e a modela, havendo todas as combinações destas tendências, mas os mais «optimistas» (materialistas ou espiritualistas) afiançando que o mundo caminha para a perfeição, evolução a significar progresso, ascensão. São filosofias de «esperança», talvez úteis, ou inevitáveis, não o nego. Mas não é da sua inevitabilidade que pretendo agora ocupar-me. O evolucionismo científico, transmutado em religião ou em filosofia, em doutrina transcendente caucionada por ele, perde genuidade, e sem autenticidade científica estiola, transforma-se em retórica. Não confundir, portanto, o evolucionismo como fonte e estímulo da pesquisa 76
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —I
científica, com a sua metamorfose religiosa ou filosófica (ou pseudofilosófica), é portanto um requisito indispensável para se lhe entender o significado. Ora o que acontece é que é a sua feição deturpada que é,
em regra, divulgada ou discutida. Não é possível enumerar todos os autores que têm tentado a transformação do evolucionismo em ideologia, dando-lhe muitos deles um carácter de misticidade. Desde Ernst Haeckel a Teilhard de Chardin, de
Herbert
Spencer
a Lecomte
Noiiy,
du
de
Henri
Bergson
a Julian
Huxley, a Jacques Monod e a tantos outros, todas as interpretações convergem para um objectivo metafísico. Dos
biologistas
Julian
profissionais,
Huxley
foi,
talvez,
o mais
influente, o mais original e o mais brilhante divulgador do evolucionismo
científico e filosófico neste século. E Teilhard de Chardin, em
certos aspectos na esteira do bergsonismo, foi, por seu lado, talvez o que
mais espiritualizou e divinizou o processo da evolução, afastando-o da ciência, mas socorrendo-se desta, sendo ele próprio um distinto paleontologista e antropologista. A sua filosofia esteve muito em voga (agora provavelmente a sofrer um certo declínio) e constituiu uma verdadeira
(como foi o bergsonismo), atraindo espíritos de várias
moda intelectual
tendências ”. O primeiro foi uma das personalidades científicas mais em evidência neste século. Após uma longa e fecundissima vida, faleceu em 14 de Fevereiro de 1975, com 87 anos.
O período em que Julian Huxley foi director-geral da Unesco (aliás, o primeiro desta organização mundial) foi daqueles da sua vida
em que despendeu mais energia e actividade. Disso foi testemunha Joseph Needham, seu colega e notável colaborador (que tinha a seu cargo a divisão de Ciências Naturais) e que lembra esses tempos pio-
neiros (a seguir à II Guerra Mundial) e as conferências diárias inesquecíveis com André Thomas para a cultura e Knoyu-Shou para a educação.
Diversos
autores,
ideias e teorias sobre ao destino do homem
Herbert
Spencer,
têm
pode chamar-se
aquilo a que
tentando
evolucionismo», com o mundo.
desde
construir
uma
doutrina
expressado uma
várias
«filosofia do
que sirva de guia
e de possível solução ao problema da sua relação
Julian Huxley foi dos homens modernos que mais tra-
balharam esta ideia, tendo desenvolvido essa filosofia evolucionista em diversas das suas obras, num humanismo baseado no darwinismo, com
uma ética construída a partir dele, com uma certeza inabalável no progresso humano, que lhe advinha da própria verificação e inter-
pretação dos processos biológicos. Como o humanismo evolucionista huxleyano é dos mais elaborados e aquele que mais influenciou fortemente a filosofia natural de gerações de biologistas e serviu de guia aos divulgadores,
vale a pena expor a doutrina, a partir, sobretudo, de
um ensaio pouco conhecido que o seu autor escreveu em 1946, e que 77
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
provocou forte contestação quando foi submetido à comissão preparatória para a Unesco e à I Conferência-Geral da mesma organização, particularmente porque a exposição tinha um carácter anti-religioso. Esse
estudo
intitulava-se
4
Unesco,
os
Seus
Fins
e a
Sua
Filosofia,
Para não ferir susceptibilidades, o texto não foi publicado por recusa
da Conferência-Geral. Trinta anos após (em 1976), a mesma Unesco publica Filosofia de Huxley, trabalho praticamente desconhecido do grande público durante esse longo tempo. Mas o fundo dessa doutrina, nos seus aspectos humanistas, já era conhecido de outros escritos do mesmo autor. Do artigo em questão extraí as passagens que se seguem, e farei, no final, alguns comentários a seu respeito, tentando mostrar o carácter idealista dessa filosofia baseada numa fé profunda na biologia evolucionista como fonte da ética e guia do destino humano. Para Julian Huxley, o humanismo que está na base dessa filosofia deve ter carácter mundial e ser sobretudo um humanismo científico que «não pode todavia ser materialista, mas deve abraçar tanto os aspectos espirituais e intelectuais como os materiais da existência; deve
esforçar-se por consegui-lo baseando-se numa filosofia verdadeiramente monista, procurando a unidade de todos esses aspectos». Trata-se, portanto, para o autor, de um humanismo evolucionista, tanto mais impor-
tante quanto é certo que «o ponto de vista evolucionista fornece a ligação entre as ciências naturais necessidade de pensar de maneira
e a história humana; ensina-nos a dinâmica, em termos de velocidade
e direcção, e não de forma estática, em termos de posição momentânea e de resultado quantitativo; não semente nos faz compreender
e nos mostra as raízes biológicas dos valores humanos,
mas
a origem
ainda, na
massa aparentemente neutra dos fenómenos naturais, permite estabelecer, para estes valores, certos fundamentos e certos critérios exteriores». Para Julian Huxley, a filosofia geral da Unesco deve ser, portanto, cum
humanismo
científico universal, unificando
os diferentes
aspectos
da vida humana e inspirando-se na evolução». A
evolução
cobre múltiplos
processos
que
ocorrem
no
universo,
onde J. Huxley distingue três domínios diferentes: o inorgânico ou inanimado, o orgânico ou biológico e o social ou humano. Deixando de parte o primeiro, o autor refere-se ao segundo dizendo que neste dominio
«o aparecimento
das duas propriedades
fundamentais
da
matéria
viva: faculdade de reprodução e de variação (mutação), deu à vida um método de a selecção evolução». mais eficaz
transformação absolutamente novo e muito mais poderoso: natural. Daí resultou uma enorme aceleração do ritmo da No domínio humano surgiu, porém, um novo método, ainda como motor de transformações. Enquanto no domínio bio-
lógico surgiu a selecção natural, na esfera da espécie humana a tradição
cumulativa
(produto
da 78
palavra
e do
pensamento
apareceu concep-
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —I
tual), «que constitui o fundamento desta hereditariedade social graças a qual as sociedades humanas se transformam e se desenvolvem». E como neste processo de acumulação e de transmissão existe escolha,
não
há dúvida
de que
«a luta pela existência, que
selecção natural, é, cada
vez mais,
está na base
substituída por uma
da
selecção cons-
ciente, por uma luta entre as ideias e os valores no seio da consciência». Ora para o autor mencionado este novo método especificamente humano
acelera
muito
mais
ainda
o ritmo
possível da evolução,
passou
que
do domínio biológico, onde teria entretanto esgotado as suas possibilidades, para o humano, onde prossegue a sua marcha para novos des-
tinos, sobretudo por transformações a operarem-se na organização social, nas máquinas de trabalho e no domínio das ideias. É nestes aspectos que a evolução humana se evidencia com maior intensidade e força. Logo em seguida, Julian Huxley refere-se ao conflito que opõe constantemente do
presente
a natureza
e a formação
histórica de
novas
de cada organismo adaptações
como
às exigências
solução
possível
desse conflito. Esta oposição, para Julian Huxley, «faz imediatamente
pensar na tese, antítese e síntese da filosofia hegeliana e na “fusão dos contrários” da filosofia marxista, que se funda na precedente. De facto, o materialismo dialéctico foi a primeira tentativa profunda de filosofia
evolucionista». Todavia, para Julian Huxley, o materialismo dialéctico baseou-se quase exclusivamente em princípios de evolução social e não
biológica, nasceu demasiado cedo, ou seja, antes da acumulação e verificação científica da grande soma de factos que mais tarde permitiram
as grandes generalizações teóricas do transformismo.
Para a sua filosofia total da evolução, Julian Huxley considera absolutamente necessária a prova da existência de uma direcção na evolução, que traduza inequivocamente um movimento de progresso. Ora para o autor é a biologia que nos permite «descobrir uma direcção na evolu-
ção, tomada no seu conjunto, e de forma nenhuma limitada ao pequeno
domínio da vida humana,
uma
direcção à qual o termo de progresso
pode perfeitamente aplicar-se». Como provas de progresso lembra, logo a seguir, a complexidade crescente dos organismos, a tendência progressiva no domínio biológico e humano de modificar o ambiente, a tendência para uma maior independência do organismo em relação ao meio, uma direcção no sentido de um acréscimo das capacidades mentais, e finalmente,
já na
esfera
humana,
e somente
nela,
«uma
preensão e uma realização crescentes dos valores intrínsecos», se tornou agora a característica mais importante do progresso.
com-
a qual
Afirma mais adiante que o homem «é o único herdeiro do progresso da evolução» e que «tem o apanágio dos progressos futuros eventuais». E o seu destino evolutivo «pode resumir-se muito simplesmente: é fazer o máximo de progresso num mínimo de tempo». E ainda que «a chave do progresso humano [...] é a tradição cumulativa, a
oque
79
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
existência de um fundo comum de ideias capaz de se perpetuar e de evolver, e este facto teve por consequência imediata que o tipo de organização social tornou-se o factor essencial dos progressos
humanos,
ou pelo menos o quadro que lhe impõe os limites». Da direcção da evolução, do conceito de progresso que dela resulta (para J. Huxley), tira
este
autor
toda
cultural comum,
uma
ética.
Afirma,
que evolucione
como
assim,
um
que
todo,
só
de
sem
um
partes
fundo
opostas
que entrem em conflito, é que emerge progresso; e defende a ideia de que quanto mais se unificar a tradição humana mais rápida será
a possibilidade de progresso. Um fundo cultural único para toda a humanidade é que será fonte de progresso (v. mais adiante). Daqui segue-se que, para Julian Huxley, o melhor meio de chegar a este resultado é a unificação política. O forte pendor antropocêntrico da sua filosofia leva-o a afirmar que o homem é o tipo de organismo mais elevado da evolução, que nele se perpetua a corrente do progresso para novos destinos e que a posição do homem no cimo da nova scala naturae não deve torná-lo «culpado de vaidade antropocêntrica», pois mais não faz do que «enunciar um facto biológico». Mais longe aborda o problema de como concilia o princípio democrático da igualdade humana com o facto biológico da desigualdade humana de origem hereditária. A igualdade democrática significaria igualdade
de
diferentes
dons
herança
oportunidades,
e
e capacidades
genética.
Julian Huxley
a
desigualdade
naturais
do
biológica
homem
analisa brevemente
incide
nos
transmitidos
por
a parte
da
here-
ditariedade nas desigualdades físicas, mentais e morais dos seres humanas, reconhecendo que em geral é difícil saber qual a participação da hereditariedade
nessas manifestações,
mas
crê que
haverá
determi-
nismo genético para parte delas. Pensa que uma das grandes tarefas que se impõem será a de «conciliar o princípio da igualdade democrática com o facto da desigualdade biológica». Para isso, uma das soluções será «o nascimento de uma cultura mundial única, possuindo a sua filosofia, o seu fundo comum de ideias e um amplo objectivo». Para o final do seu trabalho, o autor tece um certo número de considerações sobre os meios de evitar o confronto ideológico que opõe o Ocidente e o Leste, duas filosofias traduzidas por uma concepção americana
de vida em contraste com a concepção russa, o cristianismo
contra o marxismo,
o individualismo contra o colectivismo, etc., o que,
diga-se desde já, traduz uma esquematização a esconder uma muito
mais complexa.
Pensa
que a solução pacífica
político só pode ser feita no quadro de um
de uma
filosofia unificada, afirmando
só ser realizada
como
deve
realizar-se 80
desse
humanismo
realidade
antagonismo
evolucionista,
que essa conciliação pode não «em
consequência
da
inexorável
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —I
dialéctica da evolução». Ignora se a síntese se fará antes ou depois de
outra guerra, mas realizando-a rapidamente evitar-seá um conflito armado que «faria recuar a humanidade de várias séculos». Parece-lhe ser
esta
uma
Unesco».
tarefa
Por meu
que
«deve
constituir
o objectivo
primordial
lado, devo dizer que me parece puramente
da
irrealista
a ideia de que a uniformidade ideológica garante a paz entre os homens,
mas este é um ponto que não desenvolverei por não me interessar para a discussão
dos problemas
que me
propus
abordar. Não
sendo
possível
transcrever todos os aspectos do artigo de Julian Huxley, limitar-me-ei aos fundamentos da sua exposição, na parte sobretudo que se relaciona com
a biologia
e com
a fundamentação
que
nela
procura
para
ideologia científica burguesa (v. parte final da nota 18). O artigo de Julian Huxley não contém nada de novo respeita
à biologia.
A
sua
originalidade
reside
no realce
a sua
no que
que
dá
ao
evolucionismo, no entusiasmo e profunda fé que nele deposita como solução para todos os grandes males que afligem a humanidade e sobretudo no apoio que vai buscar ao evolucionismo biológico e à selecção natural para com eles construir aquilo que chamou um «novo humanismo científico», e a partir dele de uma nova filosofia de vida, de uma nova medida de valores, de uma segura paz política e de um grande desígnio para orientar para o bem supremo a evolução do homem,
sempre no caminho
do aperfeiçoamento se a receita recomendada for
seguida
todos
à
risca
por
os
povos.
Certamente
que
Julian
Huxley
foi um grande máitre à penser, um grande cientista que deixou notáveis contribuições em diversos sectores da biologia, e um grande divulgador do evolucionismo,
da mesma
Huxley. Foi, sem
dúvida, um
envergadura
do seu ilustre avô, Thomas
dos mais importantes líderes da moderna
teoria da evolução (teoria sintética), que ajudou a edificar, e como cientista está certamente entre os primeiros deste século. Mas isto não evitou, naturalmente, que a sua admiração intelectual pela evolução biológica o conduzisse a uma exaltação apaixonada pelo evolucionismo, com o qual procurou edificar uma filosofia total da evolução. Assim se compreende,
talvez,
que
não
tenha
reconhecido
os limites
entre
a
biologia como ciência e a ideologia que procurava erigir, garantida por essa mesma ciência. A chave de toda
a sua
ideologia
é a noção
de que
existe uma
direcção na evolução que traduz progresso e que este facto é provado pela biologia evolucionista. Ora a verdade é que a biologia não prova objectivamente tal facto. Não prova nem nega explicitamente. Evidentemente que, sendo a vida um processo temporal, é impossível conside-
rá-la independentemente
de uma
sequência
de fenómenos.
Mas
que
esse sequência constitua necessariamente um progresso, só o será por definição ou em relacão a qualquer critério em relação ao qual essa
sequência Bibl. Univ.
histórica 49 — 6
adquira
um
significado. 81
Se a evolução
se tradu-
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
zisse em cada caso por unilinearidade filogenética, talvez se justificasse
a ideia de a evolução traduzir progresso, mas é exactamente
o que os
factos negam. Em geral existiram multiplicidades de linhas evolutivas a partir de uma base ancestral, ramificações adaptativas a todos os níveis, a que as extinções dão uma ilusão de sequência numa única
linha de descendência. Por outro lado, mesmo quando não se possuem documentos
que
demonstrem,
ou
indiquem,
sem
significativa
contes-
tação, as filogenias mais prováveis (o que é raro se considerarmos o conjunto do reino animal), a tendência é para dispor as espécies ou grupos de espécies em sequências temporais graduais, com base em critérios convencionados. E estas sequências são, como se vê, simples sugestões,
meras
hipóteses,
derivações. Além
e nada
têm,
em
regra,
a
ver
com
disso, os critérios para avaliar tais seriações
reais
são em
regra frágeis. Concluir por progresso na evolução em tais condições é quase sempre ilusório. Toda a questão de haver progresso na evolução deriva da nossa posição de seres humanos em relação ao problema. Quase todas as aná-
lises do processo evolutivo são feitas com base num antropocentrismo a que dificilmente se pode escapar. É perfeitamente compreensível fazê-lo, mas já não é legítimo concluir que evolução é sinónimo de progresso, que é sempre e necessariamente progresso. E até conforme
aos critérios humanos pode traduzir ou não progresso. O homem desde há muitos séculos que se vê como símbolo de perfeição, como termo de uma evolução material e/ou espiritual, como produto de um desígnio transcendente,
ou
como
resultado,
ou
como
o
estado
material
mais
aperfeiçoado da grande corrente da vida, na qual os outros seres ficaram para trás. A meu ver, a questão do progresso da evolução não é uma questão propriamente biológica, no sentido em que não se mostra como uma propriedade básica da vida, aparente em todas as suas manifestações. É antes, se não estou em erro, o resultado da aplicação dos múltiplos critérios humanos de progresso. Que «pensaria» o insecto ou a ave se lhes fosse dado olhar o mundo da evolução biológica e ajuizar da sua posição na corrente que lhes deu origem? Quais os critérios do insecto ou da ave? Outra afirmação idealista de Huxley, e não só idealista, mas contrariada pela realidade, é aquela em que afirma (p. 23) que «outra característica geral do progresso é a de permitir sempre um progresso
ulterior, de nunca
se introduzir num
beco sem
saída».
Se, como
me
parece, o autor se refere igualmente ao domínio da biologia, os factos opõem-se a tal proposição, e nesse caso não poderá a ciência biológica
a existência
de
um
progresso
permanente
nas
sociedades
humanas. Nem caucionar nem refutá-lo. O problema, além do mais, torna-se confuso, posto que os bloqueamentos das sociedades escondem, 82
e rm poeta nerenemereeeer
caucionar
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —I
muitas vezes, reais progressos em profundidade, e o haver progresso ou
retrocesso depende muitas vezes de opinião ou de pressupostos ligados a ideologias. Mais uma vez se verifica a necessidade de proceder com cautela
nos ensaios
de ligação
da biologia com
a sociologia.
Outros pontos do artigo de Julian Huxley são muito discutíveis; de outros discordo frontalmente, como seja quando advoga uma
mundial
única,
com
a sua
filosofia,
a sua
uniformidade
ou quando, ao referir-se à diversidade humana
cultura
ideológica;
e à parte que a here-
ditariedade desempenha no determinismo de muitas qualidades que enumera, afirma, por exemplo, que uns seres humanos «são amáveis e
bons, outros cruéis e egoístas», introduzindo assim a ideia de uma possível base genética para esses aspectos, estando ainda seguro de que «pelo menos uma parte da diferença é de origem genética», proposição sem segura base científica, e sobretudo respeitando a aspectos morais e
temperamentais onde as dificuldades começam logo quando se pretende
saber o que ou
se entende
«egoista»,
ou
inequivocamente
«cruel»,
ou
por um
«brilhante»,
ou
indivíduo
«obtuso»
«bom»,
(termos
de
Huxley) £. E todo esse fatalismo hereditário (mesmo atenuado) para o comportamento
moral
tem
o perigo
de justificar múltiplos
precon-
ceitos reaccionários, como terei ocasião de discutir noutros passos deste livro. O mesmo se poderia dizer para a sua afirmação «a luta pela existência que está na base da selecção natural», que seria justificável nos
tempos pioneiros do darwinismo, mas não em 1946, preconceito cujas
consequências foram perniciosas para a compreensão do processo evolutivo, estando na origem de muitas posições fanáticas no domínio da
de alimento ao darwinismo social, que
política, servindo
(não é de
mais afirmá-lo) corresponde a um darwinismo corrompido, tantas vezes
a legitimar as opressões de classe. À teima de ver a selecção natural a
operar em todos os domínios (sem a menor demonstração minimamente satisfatória) conduziu Huxley à ideia de que essa luta pela existência,
promotora
de selecção natural, é substituída por uma
ciente, uma
«selecção cons-
luta entre as ideias e os valores no seio da consciência».
Há mais autores na esteira de Julian Huxley que pensam similarmente sobre o conceito
em
substância
de selecção
o que
obtém
natural,
em
tornando-o
tão elástico que perde
latitude.
Toda a filosofia total da evolução, no sentido que lhe deu Huxley, perde conteúdo e significado quando se verifica que a sua trave mestra — que a evolução biológica é progresso — não é de modo nenhum garantida pela biologia evolucionista. Há progressos, de acordo com certos critérios, não progresso num único sentido. Filosofia generosa, filosofia de esperança, sem dúvida, a ser tomada ou negada por razões de fé, mas onde a biologia tem de desvirtuar-se para garantir essa ideologia, essa
religião,
que
o
autor
apelidou 83
de
«humanismo
evolucionista».
GERMANO
tem,
Razão
a meu
DA
FONSECA
ver, o conhecido
SACARRÃO
biólogo
Peter
quando
Medawar,
escreveu que tão grande era o entusiasmo de Huxley pela ideia de evolução que passou para o final da sua vida a tratar o evolucionismo
como uma espécie de religião secular ”. O
evolucionismo
darwiniano,
como
teoria
científica
da
natureza
e da vida, não deve confundir-se com os desvios e desfigurações
a que
o sujeitam as necessidades de justificação de sistemas políticos ou os interesses e privilégios de classe, ou o desejo de construir com ele (ou apoiado nele) uma religião ou uma filosofia que dê resposta a interrogações metafísicas sobre a relação do homem consigo e com o mundo. É por igual estranho às deturpações que lhe têm infligido políticos, filósofos, escritores e vulgarizadores ignorantes. Apelar para causas transcendentes ou para hipóteses inverificáveis está fora do domínio da ciência, e, enquanto novos dados não lançarem
luz sobre os enigmas
numerosos que persistem, há que limitarmo-nos ao método científico, no quadro racional da busca de novos factos e da sua interpretação por meio de hipóteses legítimas, inseridas num contexto lógico-factual, ou comprovados pela observação e/ou pela experiência. Torna-se assim necessário delinear os contornos da ciência, no caso presente as fronteiras da biologia evolutiva, assinalar os limites em que podem formular-se hipóteses legítimas, e até que ponto podemos ensaiar sugestões científicas, tendo o cuidado de fazer a distinção entre as questões que apelam para respostas científicas ou filosóficas ou ambas. Mas ter presente que fora dos limites da ciência o biólogo penetra do domínio da filosofia ou nos caminhos nebulosos das ideologias, da paraciência ou da ficção científica, que já não é o seu. O obscurantismo surge quando, deliberadamente ou não, se mistura ciência com ideologia e com fé, quando a crença e o dogmatismo subvertem a dúvida e o conhecimento objectivo. Neste e noutros aspectos, Darwin
será sempre
um
exemplo
de probidade científica absoluta. Nunca os seus trabalhos científicos foram conscientemente motivados por outro objectivo que não fosse a procura cautelosa da verdade, num tactear prudente da realidade, meta que ele perseguiu recorrendo ao mais puro rigor dos factos e dos méto-
dos, edificando uma obra que é um monumento ao espírito humano. Que a sua posição de classe e a época em que nasceu determinassem,
em grande parte, a sua obra não é de duvidar. Mas esse é outro problema, que deixaremos para um outro capítulo. Sem dúvida que as controvérsias suscitadas pela teoria da evolução
parecem mostrar que muita gente tem dificuldades em aceitar a evolução da natureza e do homem como um processo puramente sem origem e finalidade divinas, sem espiritualidade, sem
material, qualquer
sentido religioso ?. Assim se explicam as múltiplas interpretações metafísicas que têm sido propostas à teoria e pondo-a de acordo com a teologia. A Igreja suavizou os seus ataques, mas diversas seitas protes84
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — |
tantes, em particular os fundamentalistas, rejeitam em absoluto a evolução sob qualquer forma. A velha oposição ao darwinismo reacendeu-se em grande parte devido à importância crescente da biologia nas ciências humanas, em especial na psicologia e na sociologia, que não podem já ignorar as contribuições fundamentais desta ciência no domínio do comportamento social. À convicção de muitos biólogos e não biológos de que
a agressividade,
a competição,
a territorialidade, a natureza
e a
génese de comportamentos egoístas ou altruístas são da responsabilidade quase absoluta da hereditariedade, e que as tendências inatas do homem têm a sua raiz remota numa herança biológica recebida do seu passado animalesco, têm sem dúvida contribuído muito para lançar a confusão no espirito de cidadãos desprevenidos. Ora essa ideia está muito longe de
ser
tão
simples,
e
se,
sem
dúvida,
contém
algo
de
verdadeiro,
toda ela não é uma verdade. Em globo é falsa. O reducionismo que nela subjaz tem conduzido a deformações, a erros de perspectiva que é necessário desfazer. As múltiplas potencialidades de realização humana permitem o aperfeiçoamento moral e a livre ascensão a uma dignidade por escolhas deliberadas. O homem não é joguete dos seus genes, nem escravo directo da sua herança biológica.
A evolução biológica e social não nos mostra que o homem é escravo de fatalidades biológicas, mas sim que é um ser todo ele com ibilidades para ser livre e responsável, mas cuja liberdade e responsabilidade têm de ser obra sua. Assim o indica a extraordinária evolução
da
sua
inteligência
neodarwinismo
e da
extremista,
autoconsciência. nomeadamente
A
ampla
difusão
de
um
da ideologia sociobiológica.
reducionista e sectária, com pretensões a substituir a filosofia e a sociologia, a moral e a própria religião, provoca muitas vezes reacções igualmente sectárias e irracionais da parte dos que, muito justamente, se recusam a considerar o homem um simples «símio inteligente» e egoísta, provido de instintos inflexíveis de agressividade, para o qual não haveria lugar para a esperança nem futuro de dignidade. Existe hoje em certas áreas uma acentuada reacção religiosa contra a evolução,
contra
o
darwinismo
científico,
particularmente
contra
a
selecção natural, processo que teria uma importância menor na evolução. Como outras épocas, esta é caracterizada pela trindade, fanatismo, terrorismo e repressão. Assim, não surpreende a hostilidade dirigida ao espírito de livre exame e ao trabalho científico não comprometido. A selecção natural poderá ter importância secundária, mas esse facto terá de ser suportado por estudos aprofundados, conduzidos na natureza, que dêem base segura à presunção. Ora tais estudos faltam. Os que têm sido empreendidos estão longe de ser suficientes. E têm sido desacreditados, talvez sem razão. É esta uma das grandes exigências actuais da biologia — investigações sobre a selecção natural na natureza. INão serão argumentos político-religiosos que poderão servir para refutar a 85
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
teoria da selecção natural. Nem, ao invés, que alguns trabalhos experimentais constituam fundamentos para justificar uma crença dogmática na mesma teoria. Sobretudo muito há ainda a esperar do estudo da embriologia evolutiva e causal, e de investigações sobre o cérebro e os processos mentais, quer no homem, quer nos animais. Estas áreas poderão contribuir substancialmente para um alargamento das pers-
SPTV
Dee USOS
RÃ
pectivas da teoria moderna da evolução.
86
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — 1
NOTAS
1 Aristóteles é justamente
considerado como o primeiro naturalista digno deste
nome (v. meu 1958). Até Charles Darwin, ninguém mais do que ele contribuiu para a compreensão da natureza viva. Os seus conhecimentos biológicos eram vastos e exactas muitas das suas observações. Possuía uma óptima informação sobre a fauna da Grécia (reconheceu, segundo parece, quinhentas e vinte espécies). Elaborou,
pela primeira vez, uma classificação de acordo com a anatomia, os hábitos e até com certos aspectos embriológicos e fisiológicos, expressos, por exemplo, em diversos caracteres com os quais distinguiu os peixes dos mamíferos. Crismou grupos zoológicos com apelativos que ficaram para sempre na linguagem científica. Descreveu a biologia de numerosos animais marinhos, observou o desenvolvimento do choco e
da galinha.
Reconheceu
a partenogénese
das abelhas, etc. É admirável
o que con-
seguiu com a sua habilidade e poder de observação. Desprovido de instrumentos ópticos e numa época praticamente sem tradição de conhecimentos positivos na área das ciências da vida, legou-nos uma soma considerável de factos verdadeiros que só no transcurso dos últimos dois séculos puderam ser confirmados como exactos. 2 Há diferenças entre as formas ou ideias de Platão e o essencialismo de Aristóteles, ainda que o segundo se tenha directamente inspirado no primeiro. Enquanto para Platão as formas ou ideias são exteriores e anteriores às coisas sensíveis, Aristóteles não as concebe com existência à parte das coisas, as quais, portanto, não se distanciam das ideias, mas, ao contrário, se movem no sentido dos seus fins ou causas finais, as quais identifica com as suas formas ou essências. À forma ou
essência
(termo
dos tomistas)
isso, todo o movimento cialidades
ocultas
está na coisa e não é anterior e exterior a ela. Por
ou mudança
inerentes
à
se traduz pela concretização efectiva de poten-
«essência»
de
uma
coisa.
Porém,
as
«essências»
ou
formas aristotélicas são idênticas à «alma» ou «natureza» de Platão, como aliás declarou Aristóteles, e para ambos (e seus seguidores) a intuição intelectual é o meio de descobrir e apreciar as essências. A essência é a totalidade ou a fonte das potencialidades próprias de uma coisa,
sendo aristotélica a ideia de que a «essência» (imutável) de uma coisa só é revelada pelas suas modificações, e portanto
a
sua
da coisa respectiva só é possível uma subitamente
uma
que
«essência»,
mostram a
qual
os diversos aspectos e possibilidades não
muda
durante
o processo
de
da coisa,
modificação
(dados segundo Popper, 1961, 1966). Para a escola essencialista mudança real profunda por meio de um salto que transforme «essência»
ou
«tipo»
noutra
«essência»
ou
«tipo»,
visto
que
uma
«essência» é sempre a mesma, ainda que se dêem modificações superficiais e acidentais na coisa. Transformação gradual não é possível pela simples razão de que as diferenças entre as «essências» são de uma natureza (metafísica) inteiramente diversa das variações operadas no âmbito de cada «essência» ou «tipo», de modo que não há possibilidade de passagem insensível de uma para outra. É o que acontece com a espécie (v. a nota 15 deste capítulo). Segundo a filosofia idealista platónico“aristotélica, a espécie não existe a nível dos indivíduos que a compõem, mas antes num nível diferente e mais profundo da realidade. É uma estrutura idealizada, uma forma que a define, e não o que aparentemente conslitui os indivíduos, os seus caracteres, as suas variações. Lamarck (com a motivação psicológica do animal) e Geoffroy-Saint Hillaire tentaram explicar a passagem de uma forma material de um “tipo»
para
outra
forma
de
outro
«tipo»,
mas 87
não
conseguiram
edificar
uma
teoria
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
coerente e aceitável. Essa revolução intelectual iria ser a obra de Darwin, que, tendo mostrado que a evolução é um processo gradual, tal facto torna-o inconciliável com o — tudo dogma do essencialismo. Em biologia não há classes de entidades idênticas é variável no espaço e no tempo, quer a nível da organização visível, quer «invisivel», de modo que a evolução não envolve as «classes», as categorias v. g. espécies), mas sim as variantes (diferenças entre os indivíduos e suas partes). Veja-se, mais adiante, o cap. V.
3 A great chain of being, como Arthur Lovejoy, no seu clássico livro, designou a grande cadeia ascendente dos seres, desde os mais infimos até ao mais perfeito, teve consequências históricas de grande significado para a biologia, não só da Renascença como dos séculos XVII e XVIII e começo do XIX, nomeadamente os principios da hierarquia e da gradação e quase continuidade entre os organismos. Ora a hierarquia da natureza, considerada como um dado divino, justificava a imutável hierarquia
social, a existência de classes superiores e inferiores, e do mesmo
passo o seu imobi-
lismo. É de notar que na «escala dos seres» os vários elos são extremamente vizinhos, mas não se interpenetram. Que a scula naturae tivesse subentendida a noção de evolução é uma pura vista de espírito, provavelmente equívoca, a traduzir um ponto
de vista inverificável. Contra essa noção estão os dois mil anos durante os quais a ideia de evolução não surgiu à luz, o que mostra a ineficácia da «escala dos seres». Quando, para o final do século xvirI e sobretudo no começo do século xIX, a escala ascendente, agora transformada literalmente em «escada», começou a ser desmem-
brada e «temporalizada»
(na expressão de A. Lovejoy)
e se iniciou a transposição
para um quadro conceptual de mudança mais ou menos confessada, a hierarquia, a continuidade e o progressivismo (sem mudança) nela aparentes, isso aconteceu não por meditação sobre a scala, mas por uma multidão de razões científicas, económicas e sociológicas que estavam a preparar activamente o clima intelectual. Dizer
que a scala inclui algo que ninguém viu durante séculos e ela nunca evidenciou é, a meu ver, pura retórica. Nos séculos XVIII-XIX, entre as várias forças em jogo no processo de ruptura e de outro entendimento da «grande escala da natureza», parecem-me ser de mencionar: as extinções de espécies (facto que punha em cheque a perfeição da «escala», e portanto a perfeição divina, o que para muitos era impensável); a entrada em cena da geologia, a mostrar a existência de transformações lentas e graduais na modelação da superfície terrestre e a evidenciar um grande recuo temporal na idade da Terra (e não os seis mil anos tradicionais, ou menos), circunstância que permitiu que se tivessem dado modificações profundas e contínuas nas plantas e nos animais; os avanços
extraordinários
obtidos
no
conhecimento
das
floras
e das
faunas
das
mais
diversas regiões, o que, pela riqueza e variedade de espécies, fornecia dados e levantava problemas que já não eram compatíveis com o plano da natureza sob a forma de uma cadeia de seres estática, unilinear e ininterrupta, onde cada espécie tem o seu lugar fixo e eterno, à qual subjaz a velha noção aristotélico-teológica de que a causa é mais importante do que o efeito, querendo isto dizer, no caso em análise, que, sendo cada forma da série linear de seres superior à que a precede, não pode obviamente
ser originada dela, isto fazendo da evolução um
processo impossível
de ocorrer.
Deve ainda acrescentar-se que uma sociedade em mobilidade e transformação profunda, com a que estava a nascer da revolução industrial, a romper com os velhos
privilégios senhoriais, a quebrar as antigas barreiras
que
separavam
as classes,
tinha certamente de ter efeitos ruinosos para uma concepção rígida do mundo assente na teologia natural, regulada pelo poder divino. Se a sociedade já não era o reflexo da
ordem
divina,
se a burguesia
aspirava
por
mudança
e por
progresso,
pela
explo-
ração da natureza (e não, como até aí, a sua contemplação), como poderiam manter-se velhos conceitos estáticos, como o de plano divino da natureza, sob a forma de sistema linear hierárquico fechado, de uma «cadeia de seres» em que encontra predeterminado, inclusivamente os germes de todas as espécies e 88
tudo se também
BIOLOGIA os da espécie
humana,
e encapsulados
em
E
estes igualmente
séries,
uns
nos
SOCIEDADE —I preformados
outros,
à
desde
espera
de
geração?
O progresso das observações científicas e uma
paravam,
portanto,
o caminho
ralizado,
quer
teoria
da
para
a aceitação
científica.
Com
a
da
a primeira
se
feitos desenvolveram-se
à custa
dos menos
Eva,
em
cada
sociedade em mudança
evolução,
revolução
quer
industrial
burguesia passou para a scala algo de profundamente blasfémico: derivam
mulher,
desenvolverem
perfeitos, os escalões
do
e
conceito
a
pregene-
ascensão
da
os seres mais per-
superiores
da «escala»
dos inferiores.
4 Por exemplo, os degraus na «escada dos seres» não comunicam
entre si. Se
estão tão vizinhos uns dos outros, é para que todas as formas possíveis de seres possam estar aí representadas, com todos os intermediários possíveis. A sua proximidade
tão íntima não traduz dependência, comunicabilidade, continuidade. As espécies existem, mas não se transformam umas nas outras. Uma forma intermediária é criação própria, independente, que não vem de outra, nem engendra outra. Cada
uma uma
com a sua «essência», essa entidade oculta e misteriosa, que ainda hoje atrai filósofos e biólogos, buscam algo que não existe. O plano da natureza fixa, sendo de origem divina, não podia consentir descendência de espécies. Simplesmente, por criar Deus as coisas e os seres, não precisa de os derivar uns dos degradação, degenerescência. Aplicou-se esta ideia às raças aos símios, etc.
5 Segundo Balthasar Osório (v. meu
outros. Poderá haver é humanas não brancas,
1953, p. 85).
6 George Louis Leclerc, conde de Buffon (1707-1788); Jean-Baptiste Pierre Antoine de Monet de Lamarck (Chevalier), (1744-1829); Georges Chrétien Léopold
(1769-1832).
Cuvier (barão),
7 Os evolucionistas
darwinianos
preencheram
essas lacunas com
formas
(a estabelecer possivelmente a ligação, mas com profundas imprecisões)
fósseis
ou com for-
mas idealizadas de transição, arquétipos, etc.
8 Como escreveu Bowler (1984), só a partir do momento em que se considerou
que todo o universo físico estava em mudança
é que se tornou possível imaginar que
os seres vivos também estivessem realmente num estado de transformação natural. Todo o ímpeto do evolucionismo foi para a supressão da necessidade de crer na intervenção divina para explicar a existência e a própria estrutura das espécies. Mas
aconteceu em seguida em
termos
de
que passou a explicar-se o novo conceito de mudança
planificação
divina,
como
criação
de
Deus,
e mesmo
Darwin
contínua
admitiu
esta ideia ainda que apenas aplicada à origem das leis gerais que regulam a evolução da vida e não para os pormenores das transformações que escapariam ao planeamento
divino. A selecção natural, todavia, constituía uma
enorme
dificuldade
porque
era
inadmissível que uma teoria baseada no jogo da «tentativa-erro», de que resultava a «sobrevivência dos mais capazes» numa dura «luta pela existência» pudesse constituir um processo criado e comandado por Deus (v. o cap. v). À partir do momento
em que foi excluída qualquer intervenção sobrenatural na génese das espécies (obra sobretudo de Darwin) é que o problema da sua origem ficou aberto para ser abordado
cientificamente. ? A teoria preformacionista dos germes (v. a nota 3) veio alterar um pouco a compreensão da «cadeia dos seres», devido a que no século xviIIL os filósofos da natureza
Charles
Bonnet
e J. B.
Robinet
consideravam
a estrutura
da
natureza
não
já como absolutamente estática, mas em que cada elemento da cadeia surgiu um a seguir a outro no decurso da história da Terra, mas agora estando tudo predeterminado pelo sistema dos germes. Não havia porém evolução (descendência). A esta introdução da componente tempo chamou Lovejoy (1964) a «temporalização» da cadeia (v. Bowler,
1984),
10 Consoante os pontos de vista, poderiam considerar-se outros modelos. Aqui, tomo como base da visão do mundo o conceito de evolução numa perspectiva biológico-social.
89
GERMANO li Recentemente
têm-se
DA
FONSECA
verificado
SACARRÃO
tentativas
para
reconhecer
ainda
maior
importância a Aristóteles, sobretudo o facto de ele ter compreendido os seres vivos de uma maneira que se aproximaria da visão actual, particularmente a propriedade
O eidos de Aristóteles (que não é o mesmo de Platão) é um princípio teleonómico que realizaria no pensamento desse filósofo exactamente o mesmo que o «programa genético» na concepção do biólogo moderno. E então, ou o ADN dos genes é a «essência», ou Aristóteles nem mesmo teria sido um essencialista, ou o seu essencialismo era melhor do que o de Platão (Mayr, 1982, Bernier, 1984, Ghiselin, 1985).
Mas os autores que, como Mayr, fazem a reabilitação de Aristóteles, e advogam a «essência» para o filósofo seria o mesmo
que o «programa
genético»
da
que
Desen rremtaeo supra omite
de os seres vivos cumprirem um projecto, serem sistemas teleonómicos, realizarem afinal um programa que hoje a biologia afirma estar contido no ADN dos genes. O conceito actual de programa genético (ou de genótipo) equivaleria ao de «essência»
biologia
moderna não me parece que tenham razão. A comparação não é legítima (e tem muito de metafísica); e a conclusão é falsa porque o desenvolvimento de um organismo não é realmente a simples concretização de um «programa interno», como o «motor imóvel» que desencadeia a formação do organismo. Pelo contrário, o desenvolvimento é um processo histórico onde em cada fase há comparticipação, há
simultaneidade de acção de múltiplos agentes — de genes, dos ambientes que se sucedem, dos processos e estruturas do próprio organismo que vão surgindo no tempo, das orientações impostas pelas várias e consecutivas morfologias realizadas, do que o
organismo total faz, das acções que cria, dos meios que constrói, e como tudo isso depois se repercute no mesmo organismo até à sua morte. Se a extensão e qualidade das observações biológicas de Aristóteles são factos incontestáveis, isso não significa que a sua metafísica não constituísse um obstáculo, sobretudo pelo seu método essencialista de que o objectivo
da ciência
é encontrar e
compreender a natureza de cada coisa, o «tipo»» ideal dela, a sua «essência» secreta. Mesmo o seu conceito de «escala da natureza» poderia tê-lo conduzido a uma certa noção de evolução (noção que não seria nova), mas não o fez porque estava
absolutamente convicto de que nada no mundo mudava. 2 A burguesa
progresso
teoria
da evolução
e a expressão
traduz
as
representa
em
e desenvolvimento
contradições
(v. Lewontin et al., 1984).
nascidas
grande
da sua
no
parte
ideologia.
âmbito
da
a
glorificação
E mesmo
sua
da
o seu
imagem
do
visão
ulterior
mundo
3 A ideia de progresso biológico é muito antiga (Aristóteles, etc.), muito anterior ao estabelecimento da teoria científica da evolução, mas só a partir desta é que o conceito foi relacionado com o transcurso temporal. Só com a noção de evolução da vida como um processo materialmente histórico é que as velhas noções de «inferior» e «superior» obtiveram novo significado, tal como a própria ideia quase intuitiva de progressão e mesmo de progresso. heresia. Buffon
atreveu-se
a calcular 168 000 anos, mas em privado pensava ser muito mais antiga, meio milhão de anos e mais, mas Immanuel Kant foi mais longe nos seus cálculos sobre a idade do mundo, que para Lyell seria ilimitada, enquanto Darwin a considerava na ordem dos vários milhares de milhões de anos (Mayr, 1982). 15 Charles Darwin foi um dos primeiros pensadores a provocar uma mudança radical na maneira tradicional de pensar a natureza. De tipológico ou essencialista, o método passou a ser populacional, quer dizer, a realidade são os indivíduos, com as suas qualidades e variações materiais, e não o «tipo», a «essência», essa propriedade oculta de uma «classe» de objectos inanimados ou de seres vivos, compartilhad | a por todos os seus com ponentes, nos quais as variações singulares seriam desvios dessa natureza metafísica (ver, adiante, o cap. v). Sem uma tal revolução 90
e
14 A ideia da antiguidade da Terra passou por diversas vicissitudes. A Igreja
estimou 4000 a. C., sendo qualquer desvio considerado uma
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — 1
no pensamento, a teoria científica da evolução não poderia talvez surgir. São as diferenças materiais entre os indivíduos que é necessário estudar e não as entidades ideais, «essências» ou «tipos». Os indivíduos de uma espécie, por exemplo, são diferentes uns dos outros, e não há a uni-los qualquer transcendência, intencionalidade ou predestinação que lhe marque o destino e a posição, como sucede no pensamento
tradicional. As diferenças que manifestam são da mesma ordem das diferenças entre as espécies.
Na concepção tradicional, que durou de Aristóteles até meio do século xIX, as variações entre os indivíduos com uma mesma «essência» tinham importância secundária, eram consideradas como anomalias ou desvios, ou acidentes em relação ao «tipo», e eram metafisicamente diferentes das variações entre os «tipos». Enquanto
não foi ultrapassado este obstáculo intelectual, não estava aberto o caminho para a biologia
evolucionista
moderna.
Esta
revolução
no
modo
de
pensar
não
a
fizeram
os «precursores» do evolucionismo científico, como Maupertuis, Buffon, Geoffroy Saint-Hillaire e outros, nem mesmo Lamarck. Foi essa revolução a grande viragem
no pensamento, e não a ideia de evolução, que já era admitida antes da publicação de A Origem das Espécies. A visão criacionista-essencialista era ainda demasiado forte e os tempos
pouco
amadurecidos
para
que
nessa altura
se fizesse a completa
modificação dessa visão. A revolução consistiu na rejeição do idealismo platónico-aristotélico
natureza
consequências
e as
viva
segundo
um
profundas
esta ruptura
que
de onde
processo
estavam
teve
a explicação
para
da
a
a interioridade,
retiradas
teologia e a metafísica tradicionais. Para Darwin (ao contrário de todos os seus antecessores e contemporâneos), a evolução resulta de uma alteração na proporção de variantes preexistentes à direcção adaptativa (os indivíduos diferem uns dos outros à
anteriormente
variação
surge
adaptar. Quer e desuso
«necessidade»
em
da
indivíduo
cada
adaptação),
dizer, a variação para Lamarck
dos órgãos,
enquanto
para
enquanto
resposta
como
é anterior
mesma
a
ressentida
é adaptativa e é uma
a variação
Darwin
Lamarck
para
à necessidade
de
se
reacção ao uso
à adaptação
e não
tem relação causal com ela, o que é radicalmente diferente de tudo o que até aí tinha sido proposto. Introduziu na evolução o método absolutamente revolucionário da «tentativa-erro»
(R. Lewontin)
(v. o cap. v). E que já não é a espécie propria-
mente o objecto de estudo, mas sim os indivíduos e as populações.
16 Para além de ser uma teoria biológica, o evolucionismo tem uma influência considerável nos sentimentos e acções do homem, como acentuou Mary Midgley (1985), que chamou à evolução um mito («is the creation-mythe of our age»),
se bem que não queira com isso afirmar que é uma falsa teoria, mas sim que possui um grande poder simbólico, que é independente do facto de ser ou não ser verdadeira.
Não há dúvida de que o evolucionismo tem várias leituras, boas e más, pode exercer uma
acção
deformante
e ser
captado
e utilizado
pelas
mais
diversas
ideologias
e
metafísicas. Pode-se tirar dele e caucionar com ele tudo o que se quiser. Por exem-
plo, sempre existiram e existem tentativas de espiritualizar o darwinismo (e mais recentemente a sociobiologia) e ajustá-lo à fé (v. meu 1982, p. 105). Até há pouco mais de duzentos anos, era da religião que se tirava a moral e era com ela que se interpretava a natureza; depois passou-se a tentar edificar a moral a partir do evolucionismo darwiniano, já que este cada vez mais ocupava O lugar do sagrado, Assim se poderá compreender que a religião, a ideologia política e o
evolucionismo biológico sejam quase indissociáveis. Tanto ele é uma expressão puramente e nada
materialista, mais,
como
forma um
de movimento
movimento
para
da matéria, Deus,
como
sem
finalidade
exaltou
Teilhard
transcendente, de
Chardin.
Seja ou não em parte devido a esta extrema facilidade de utilização ideológica, a verdade é que têm resultado infrutíferas as tentativas de construir sistemas éticos derivados dos princípios científicos da evolução biológica, e que esta possa constituir uma referência para a defesa ou edificação de valores humanos. Nem a sabedoria nem a moral podem ser retiradas do evolucionismo biológico, como firme, única 91
GERMANO e
infalível
referência,
como
DA
FONSECA
tentaram
vários
SACARRÃO
pensadores,
entre
os
quais
sobressai
Sir Jutian Huxley, precisamente porque tudo e os seus contrários podem ser extraídos dele. 17 São numerosas as tentativas empreendidas para conciliar a evolução com a religião. A mais elaborada, e, para muitos, a mais conseguida,
é talvez
a de
Teilhard
de Chardin (Le Phénomene Humain, 1955), para quem a evolução da vida era um processo universal de progressiva espiritualização. Julian Huxley interessou-se muito por esta filosofia, tendo até escrito um prefácio para a tradução inglesa do livro acima
referido,
mas
outros
cientistas
de
nomeada
foram,
pelo
contrário,
muito
severos nas suas críticas (v. g. Peter Medawar) e também numerosos teólogos (cit. Bowler, 1984). Sobre Teilhard de Chardin vejam-se, por exemplo, os artigos de François Russo
e de Yves Coppens publicados em Le Courrier de VUnesco, Novembro de 1981. E igualmente o trabalho de Ana Luísa Janeira (1978) sobre a interpretação do pensamento
científico
e da metafísica
da obra
de Teilhard,
sua
origem
e desenvolvi-
mento, contendo abundante bibliografia. Iê Julian Sorell Huxley (1887-1975), na época em que escreveu o seu ensaio (1946), situa-se ao lado daqueles que preconizam medidas eugenistas para obter a melhoria do ser humano («par des mesures eugénistes concertées, si nous décidons délibérément d'améliorer cette capacité»), nomeadamente a capacidade mental inata do homem. É possível que estivesse imbuído de uma certa dose de geniticismo, no que se refere, por exemplo, à inteligência, e que depositasse seguras esperanças nas medidas eugenistas para colocar o homem e a sociedade em melhores bases. Este hereditarianismo, no que respeita ao desenvolvimento psíquico humano, é a expressão de uma constante demarcação relativamente ao idealismo filosófico e à teologia, em
defesa de um materialismo científico e da edificação de uma sociedade toda impregnada
de
ciência,
como
aliás outros
ilustres
biológos
seus
contemporâneos
também
manifestavam, como H.-J. Muller e J. B. S. Haldane (este com variantes da opinião), na sua luta para expurgar a ciência e a sociedade de todas as influências idealísticas e religiosas.
Na sua autobiografia (Memories, 11, 1973), Julian Huxley refere-se a esse ensaio interditado, giosa, nem
justificando que a Organização não podia assentar numa doutrina reliem qualquer dos sistemas filosóficos reconhecidos, porque não havia
unanimidade num caso nem noutro, mas apenas doutrinas e ideologias que se opunham entre si. Persiste na mesma ideia de que a Unesco devia trabalhar no quadro do que apelidou humanismo científico, que, na sua opinião, se fundava em factos incontroversos
da
biologia
evolutiva
darwiniana,
que
se
prolonga
em
progresso
na
esfera humana, com o domínio do ambiente e das forças naturais pelo homem. Após fazer a história da entrega do seu ensaio à comissão, e da recusa absoluta do historiador Sir Ernest Baker (membro da mesma comissão) em autorizar a sua publicação, por ajuizar que a Unesco não podia adoptar uma posição ateísta, traduzida pelo humanismo
científico,
Huxley
confessa
que
«retrospectivamente
crê que
ele
[Baker]
tinha razão» vorque seria desastroso subordinar a actividade da Unesco a qualquer doutrina fosse qual ela fosse, ainda que a Unesco tenha trabalhado numa perspectiva humanista (v. Le Courrier de "Unesco, Outubro de 1985). Para mim, o humanismo científico de Huxley corresponde em parte, se não mesmo no todo, a um ponto alto e optimista da ideologia burguesa (reconstrução económica, reajustamento político, em seguida à II Guerra Mundial), uma espécie de sublimação actualizada do darwinismo, ainda sem os excessos que viria a ter o seu mais recente rebento — a sociobiologia. 19 C. H. Waddington, biólogo respeitado, era igualmente um entusiasta do
evolucionismo, afirmando, por exemplo, que «devemos
aceitar a direcção da evolução
como
accept
boa
simplesmente
porque
ela é boa»
(«we
must
the direction
tion as good simply because it is good», in Science and Ethics, K. Popper, 1961). 92
of evolu-
1942, p. 17, cit. de
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — I
2? Em Portugal, o evolucionismo científico jamais mereceu qualquer atenção séria, nem da parte de profanos, nem da parte da Universidade (v. o cap. v e meu 1985). Por vezes, desperta a atenção de um ou outro estudioso ou curioso, mas quase sempre visando objectivos religiosos ou anti-religiosos. Por exemplo, no livro de F. Neto de Carvalho (que, como diz, não é cientista) intitulado O Homem Ponta de Lança do Universo, Livr. Almedina, Coimbra, 1977), que se garante com certos dados científicos, nomeadamente da biologia, todo o seu discurso é um acto de fé
no evolucionismo,
movimento
filosofia obscura. Na
última
no qual acredita haver um página
pode
sentido, traduzindo
ler-se, por exemplo,
à guisa
uma
de conclusão:
«Acredito, por isso, que a evolução tem um sentido que nos conduz a um equilíbrio de convivência que todos desesperadamente buscamos», e tudo conforme a um «Princípio que anima o Universo e constitui o seu elemento aglutinador», como escreve quase logo a seguir. Enfim, repete-se a velha história: uns acreditam que vida e matéria não são separáveis, outros, pelo contrário, que a vida corresponde a algo de misterioso e inefável que anima a matéria. Para a biologia actual, a evolução tem o valor de um facto incontroverso, mas no quadro das suas interpretações cabem confusamente todas
as metafísicas.
93
CAPÍTULO A
HI
HUMANAÇÃO
Qualquer tentativa de levantar um pouco que seja o véu que encobre o determinismo biológico das acções sociais dos homens, do seu comportamento individual e colectivo, exige uma referência, ainda que
breve,
à história,
ao
desenvolvimento
das
complexas
inter-relações
da evolução física e comportamental, e com alusão, também, aos outros
mamíferos, em especial aos primatas superiores que lhe são mais próximos (chimpanzé, gorila, etc.). Quando a organização do corpo do homem é comparada à dos outros mamíferos,
torna-se
evidente
que
ele pertence à ordem
dos pri-
matas. É curioso comprovar que desde a antiguidade sempre se reconheceu
a estreita
semelhança
entre
o homem
e os símios, mas
só com
a
aceitação generalizada do darwinismo é que as similitudes foram cientificamente explicadas por parentesco e descendência. Durante séculos, nunca surgiu, com toda a transparência, na mente dos homens, que as
semelhanças entre eles e os macacos indicassem parentesco e origem a partir de um tronco comum. Ou, se tal se deu, a ideia era tímida e logo
refutada pela poderosa autoridade dos textos sagrados ou por preconceitos idealistas, todos a negar a existência de um dinamismo de mudança na natureza. Os símios seriam formas imperfeitas, degradadas, e não uma fase do movimento evolutivo que originou o homem. Já muito antes da publicação de A Origem das Espécies, de Charles Darwin, se haviam observado semelhanças mais ou menos íntimas
entre os mais variados grupos de plantas e de animais, quer entre formas adultas, quer entre estados embrionários. Estes últimos são particularmente significativos para a formulação de hipóteses de descendência. Com efeito, no século XvIII e na primeira metade do século XIX já se sabia que certos órgãos passam, durante o desenvolvimento embrionário, por estados semelhantes aos estados definitivos desses mesmos órgãos
noutros
grupos
inferiores.
Assim
acontece
praticamente
com
todos os grupos de animais multicelulares (metazoários). E o homem não foge à regra. Entre os vegetais conhecem-se também numerosos exemplos. A interpretação desses fenómenos de semelhança não era feita,
porém,
num
espírito
transformista.
E
todavia
não
temos
hoje
dúvidas de que a semelhança entre os embriões de todos os vertebrados 95
GERMANO só
pode,
logicamente,
DA
FONSECA
conduzir
à
SACARRÃO
conclusão
de
que
tal
facto
indica
parentesco e comunidade de origem. Havia ideias que constituíam obstáculo a essa interpretação e que só foram varridas definitivamente pelo impacte do livro de Darwin. A preocupação de muitos naturalistas da segunda metade do século xvir e da primeira metade do século XIX consistia principalmente na procura
da «unidade de plano» na natureza. À ideia transformista transparecia por vezes muito tímida nessas especulações, mas era ainda confusa ou
influenciada por velhas reminiscências aristotélicas. Por exemplo, Meckel (1806), na Alemanha, e Serres (1824), em França, precedidos por
Kielmeyer
(1793),
pensam
que
a
ontogenia
sucessão de estados transitórios que reproduzem nente
de grupos
inferiores
da escala
animal
do
homem
é uma
a organização perma-
(«lei
do paralelismo»).
Esta concepção, porém, era quase exclusivamente idealista e transportada a exageros. Havia nela uma intuição transformista, mascarada, porém, pela ideia da «unidade de plano». Nestas especulações dos natu-
ralistas pré-darwinianos
suas
relações
descendência
com
sobre a sucessão dos estados da ontogenia
a anatomia
tal como
comparada
ela surge
autêntica
não em
existia
Darwin.
uma A
nas
ideia
de
«unidade
de
plano» é que seria a causa das semelhanças e não o resultado de parentesco evolutivo ou de descendência. Este último conceito só mais tarde
é que surge com nitidez com a aceitação do transformismo. A ideia-base em Meckel e em Serres era a da «escala dos seres»
(a série ontogenética
e a escala dos seres seriam paralelas). Esta ideia inspirou-se na concepção de G. Bonnet (1764), um conceito, de resto, com raízes aristotélicas e com
intermediários prováveis em
capítulo
anterior).
Outros
W. Harvey e em John Hunter
naturalistas
seguiam
a «escola
dos
(v. o
factos»
de Cuvier, mas negavam ainda mais o transformismo do que os anteriores. Merece referência especial Von Baer, um grande naturalista que lançou
os
alicerces
da
embriologia.
Em
1828
estabeleceu
um
certo
número de princípios muito importantes. Um deles, por exemplo, diz que os estados embrionários ou juvenis de um indivíduo não se assemelham sim
às formas
adultas
dos indivíduos
aos estados embrionários
ou juvenis
dos grupos
desses
inferiores, mas
indivíduos.
Esta obser-
vação fundamental ainda hoje forma uma das bases do significado da embriologia para a evolução. É evocada sempre que é necessário recorrer ao testemunho
organismos. Não
Mas
da embriologia
Von
para apoiar o processo
Baer era fixista, sobretudo
evolutivo dos
para o fim da vida.
deixa de ser singular que tais proposições, conhecidas por «leis de
Von Baer», se aproximam muito das ideias actuais sobre o significado da ontogenia para a evolução. Bastaria adaptá-las à «linguagem»
formista, e foi o que se fez com o triunfo do darwinismo. Von descritivo
Baer da
enunciou realidade,
os seus sem
princípios
preocupações 96
num
espírito
especulativas
trans-
puramente
sobre
as rela-
BIOLOGIA
ções da embriologia com
E
SOCIEDADE — I
a evolução ou a filogenia; e poderia tê-lo
feito, se não fora o obstáculo mental que consistia em encarar a natureza em
termos
Darwin
(1864),
estáticos.
Fritz
estabeleceu
Miúller,
de forma
no seu famoso
fecunda
livrinho
Fiir
as novas relações entre
a ontogenia e a filogenia, à luz já da profunda revolução introduzida pelo darwinismo.
Darwin
varreu
das mentes os últimos obstáculos ao
evolucionismo, fazendo admitir prontamente que as semelhanças de estrutura indicam relações de parentesco e de origem e que os vários graus de diferenças e de semelhanças traduzem vários graus de paren-
tesco. A
estreita
semelhança
do
homem
com
os
símios
já
havia
sido
reconhecida por Aristóteles. No século xvilr, Lineu (Carolus Linnaeus)
inclui o homem o podemos
e os símios no mesmo grupo (os «Primates»). Assim
verificar na
10.º edição da sua obra fundamental
Systema
Naturae (1758), que serve de base para o estabelecimento da nomenSímios e homens
clatura zoológica.
na ordem
dos Primatas e na classe
A ordem sofreu alterações, tendo mais tarde sido dela
dos Mamíferos.
retirada outros mamíferos aí incluídos por Lineu (como os morcegos),
tornando-se por isso mais homogénea e mais de acordo com o transfor-
mismo, que é, por princípio, incompatível com grupos taxonomicamente heterogéneos,
ou
seja,
incluindo
subgrupos
com
diferentes
histórias
evolutivas, e sobretudo com diferentes origens. Claro está que há gru-
s assim constituídos (grupos polifiléticos), ou por razões práticas, ou por falta de dados para se construir uma classificação mais de acordo com a história evolutiva, ou por desacordo entre os especialistas, etc. Mas
em
princípio
uma
categoria
taxonómica
deve
ser mono-
filética (isto é, comunidade de origem para as espécies que nele estão incluídas). Segundo o ilustre naturalista sueco, todos os seres humanos pertencem a uma só espécie, Homo sapiens (o homem sábio). As várias
raças humanas não seriam mais do que variantes dessa grande espécie. A inclusão num mesmo grupo dos homens e dos macacos foi um evento de grande alcance, num sistema de classificação cuja influência no mundo científico passou a ser enorme. Para Lineu, o mundo era obra de Deus e a classificação reflectia o plano dessa criação, obedecendo
à filosofia essencialista, Apesar disso, a aproximação dos homens e dos símios
influenciou
reflexo
de possíveis
outros
naturalistas, que viram
afinidades,
e preparou,
na aproximação
portanto,
o
as mentalidades
para uma aceitação do darwinismo, que logo deu uma explicação racional e materialista deste e de outros factos até ai envolvidos nas confusões e obscuridades da escolástica e da teologia. À reunião do homem
e dos símios no mesmo Bibl.
Univ.
49 — 7
grupo obedeceu, sem dúvida, a critérios de 97
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
semelhança, de níveis aproximados de complexidade e de perfeição corpórea, mas para Lineu nada disto significava parentesco evolutivo, medida de afinidades ou descendência. 1.
O
Símio-Adão,
o «primeiro
homem»
e
outros
mitos
No século xvilt, o célebre naturalista Buffon (1707-1788) representou na sua Histoire Naturelle a imagem de um feto de macaco (cercopiteco) que impressionou vivamente os estudiosos seus contemporâneos. Tal facto mostra que, pelo menos da parte de Buffon (e pelo que se conhece das suas tendências evolucionistas), havia um parentesco próximo entre todos os macacos e o homem. À escolha do estado fetal foi motivada precisamente pela ideia de que a cabeça do macaco tem grandes semelhanças com a do homem. Como escreveu Adolf Portmann (1965): «No século xvim, a ideia que tinham existido “sub-homens” influenciou igualmente a tese do símio antropóide, considerado durante longo tempo como um irmão imperfeito, como um homem silvestre, o piteco, e que Lineu denominou Homo Eram variantes do homem, criaturas pacíficas, mas esta
nocturnus.» ideia, como
justamente lembra o mesmo autor, foi substituída no século xIx, sob a influência do darwinismo nascente, pela concepção de considerar
os símios antropóides como bestas selvagens e cruéis, devido à ideia dominante na época de uma rude luta pela existência que caracterizaria a natureza. Mais tarde, essas ideias modificaram-se no
que
respeita
aos
símios
antropóides,
quer
às
de novo,
formas
de
quer
transição
entre o escalão animal e o escalão humano, se assim se pode dizer por uma questão de simplicidade de explicação. Mas a moderna etologia animal, com os seus conceitos de cooperação social, de lutas ritualizadas e não destruidoras, de agressão atenuada, veio, em parte, corrigir os exageros tradicionais sobre o carácter sangrento e violento da luta pela
existência.
Mas
a influência
novos alentos e novos rumos.
primitiva
não
se perdeu;
antes
ganhou
As ideias sobre «o homem original», sobre a sua condição física, cor da pele, comportamento moral, posição e superioridade em relação à natureza, etc., foram modeladas pelo cristianismo, mais propriamente pela tradição judaico-cristã e greco-pagã. Mas enquanto na primeira 0
«homem
original»
é o reflexo
da
perfeição
ideal todavia perdido em consequência
divina,
do pecado
criado
original,
como
tal,
na segunda
ele é um produto da Terra e não de um Deus omnipotente. «Já muito antes do século xvilt, considerava-se que esse ideal era representado pelo branco do tipo designado *caucásico”. As Escrituras davam tal facto como certo, e contavam a história da arca de Noé, cujos vestígios
Em
98
orgao
no Cáucaso ainda são procurados na actualidade por cientistas crentes».
BIOLOGIA
E mais adiante
Portmann
E
SOCIEDADE —I
acrescenta que «aos olhos dos Ocidentais,
a raça caucásica parecia ser a mais bela e a mais próxima da harmonia perfeita das formas» e que a cor da pele «era naturalmente a cor
“autêntica”, assim como
der e Kant confirmam»
o declaram Blumenbach
e Buffon, e que Hen-
(cit. de Portmann, op. cit.).
Toda esta mistura de concepções e tradições religiosas e estéticas do Ocidente ainda hoje pesa sobre as ideias que se forjam sobre a imagem da humanidade primitiva e seus precursores. Por um lado, a imagem de Adão e Eva no Paraíso, ideal da forma de vida autêntica que se perdeu após a queda. Por outro, a ideia mística de um Adão andrógino,
criação
de
criação
divina
anterior.
e súbita,
vivendo
A
imagem
em
do
homem
original,
condições idílicas,
de
moralmente
puro e inocente, contribuiu profundamente para a modelação espiritual do Ocidente cristão, e foi, até ao advento do darwinismo, como justamente nos diz Portmann, «reforçada por argumentos filosóficos e im-
pregnados de elementos místicos». Esta concepção tradicional colide
ainda
hoje
em
tantos
pontos
com a teoria da evolução que explica certa confusão existente a respeito da origem e evolução do homem, e a persistência de certos conceitos,
como sejam o da procura de testemunhos físicos homem. A mitologia antiga e a filosofia de certos primeira fase, contribuíram, como já referimos para a idealização de um mundo em mudança, partir da matéria inerte, e desta aos organismos e
e naturais do primeiro pensadores gregos da no capítulo anterior, com uma evolução a finalmente ao homem.
Ora esta concepção opunha-se à tradição judaico-cristã, orientada noutro
sentido, com o mundo, as coisas e os seres criados por um Deus omni-
potente,
que
neles
intervém,
e não
pensando
a Terra
como
a fonte
directa do homem e de tudo o que vive. Com o darwinismo associado
a esta amálgama
de tradições nasceu necessariamente
a ideia de uma
humanidade originada em formas inferiores e brutais, e a ideia do homem como o produto de uma evolução progressiva, caminhando para a perfeição, mas de mistura com a velha concepção cristã do primeiro ser humano (equivalente do Adão), que pudesse constituir o
ponto de partida de uma ascensão espiritual em continuo progresso, e para muitos movida por inspiração divina. Adiante mostrarei o infundado da concepção do primeiro homem. Mas há um ponto para o qual Portmann
também
chamou
a atenção e que a meu ver merece registo,
ainda que não esteja de acordo com parte do seu pensamento. A propósito da revolução intelectual ainda não terminada, resultante da nova concepção sobre o homem nascida na segunda metade do século XIX, escreveu o mencionado autor: «Com a técnica ocidental,
propagada universalmente, impõe-se também o modo de pensar que engendrou esta técnica e que subverte as formas primitivas do mundo 99
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
de outrora. Esta metamorfose fez desaparecer a alta concepção que se fazia do homem primitivo e que teria podido servir de protótipo para uma regra da existência. O estado precursor animal, que as ciências naturais lhe substituíram, não podendo já assumir a função de modelo, implica todavia uma perigosa presunção, a de que o homem representa um progresso em relação ao animal, e que ele está no direito de se envaidecer por ter atingido um grau superior de evolução.»
Não creio
que um modelo de homem primitivo criado por Deus pudesse ser de algum proveito para orientar os homens. Aí está para o demonstrar o falhanço do modelo religioso ocidental que não evitou comportamentos infamantes de que está bem recheada a história do homem ocidental, com as perseguições e ódios raciais, e com os imensos crimes do colonialismo
e da escravatura.
Quanto
ao segundo
ponto,
é possível
que Portmann tenha razão, mas não me parece que possa saber-se se é esse o sentimento
geral da humanidade,
se de facto os homens
se sen-
tem superiores ao animal (e vaidosos por esse facto) por resultarem de formas
inferiores.
Lembrarei
apenas
neste
contexto
que,
segundo
a
Bíblia, a Terra foi povoada por animais e plantas para poderem servir o homem, e neste aspecto cristã para colocar o homem
tudo se conjugou também na doutrina em posição de superioridade absoluta em
relação ao resto da criação. Por outro lado, nem
toda a humanidade
é ou foi cristã, e as ideias sobre a natureza variam muito com as diferentes
culturas,
no espaço e no tempo.
Aliás, a concepção de que o tipo ideal humano é o homem branco conduziu imediatamente à ideia da sua superioridade, preconceito de
que ele se apropriou, passando a fazer parte da cultura, com todas as suas consequências, entre as quais a justificação para a prática da escra-
vatura e para a exploração colonialista. Quem detém o poder, quem utiliza e explora o semelhante, constrói ou procura uma teoria legitimadora, bem ou mal elaborada, justificações religiosas, ideologias políticas e cauções pseudocientíficas que actuam em descargo da consciência e bom fundamento das acções. E não se julgue que a teoria da evolução,
atestando a origem humilde de todos os homens, não pode ser ideologi-
camente moldada num sentido de discriminação racial ou de opressão, como o foi muitas vezes, com a indiferença ou a complacência da Igreja de Cristo. Aliás, a afirmação de que o homem progresso em relação ao animal traduz ideologia, que
retirar
do
evolucionismo
Lamarck
darwiniano
como
dos
foi mais explícito do que Buffon
textos no que
representa um tanto podemos
sagrados. respeita à con-
dição natural do homem. Logo em 1809 encara a possibilidade de o ser humano descender de grandes símios. Refere-se, também, a um «orango
de Angola», que considera denciar
«o mais
as suas estreitas semelhanças
perfeito dos animais» com
o homem,
mas
para evinão
que este animal esteja realmente a sofrer um processo de transformação 100
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — 1
em ser humano. Tinha a ideia de que a organização do corpo humano é o produto de remotas modificações nas suas acções e hábitos. A partir
de um
tipo quadrúmano,
Lamarck
explica
a sua transformação
em
bimano pelo abandono do estado arborícola e, portanto, fazendo uso dos pés exclusivamente para a marcha. Estimulado por diversas necessi-
dades, esse ser hipotético tomaria, pouco a pouco, a postura vertical, e aprenderia a falar para comunicar. As necessidades psicologicamente ressentidas provocariam as necessárias (e adaptativas) modificações orgânicas. É
curioso
no
mismo a respeito
entanto
que
do homem,
Lamarck
mostrava
nomeadamente
um
sombrio
pelos malefícios
pessi-
que ele
provoca no equilíbrio da natureza, e pelas destruições das suas riquezas,
em florestas, em solos férteis, etc., vaticinando um verdadeiro desastre a que
hoje
podemos
chamar
«ecológico»,
eliminando-se
o homem
a si
próprio após ter aniquilado a Terra, transformada em planeta inabitá-
vel. Apesar deste negro augúrio, Lamarck considerava o homem o ser mais surpreendente e admirável que habitava a Terra (v. referências em Burkhardt, Jr., 1977). Lamarck é provavelmente o primeiro autor a dizer, de forma relativamente clara, que o homem provém de formas inferiores extintas,
mas esta ideia só foi retomada e desenvolvida após a publicação de A Origem das Espécies por Darwin, em 1859. Com esta obra lançaram-se as sementes
para
base aliás muito
O aprofundamento
e clarificação
dessa
ideia,
numa
teórica, visto as bases factuais serem ainda incertas.
Na realidade, os documentos do passado eram praticamente nulos para convencer os meios científicos e profanos. Fósseis de restos humanos ou infralhumanos quase não existiam, ou eram postos em dúvida
quanto ao seu significado. Todavia, a publicação de A Origem (onde o seu autor apenas diz que o processo do transformismo por selecção natural esclarecerá o problema da origem e da história do homem) lançou rapidamente cientistas como T. H. Huxley e A. Wallace na Inglaterra, E. Haeckel na Alemanha e Carl Vogt em Genebra (e outros ainda, como L. Biichner, F, Rolle, etc.), entre 1859 e 1871, a aplicarem
a doutrina de Darwin ao problema da origem da humanidade. Então, Darwin, como que encorajado por estas obras, mas ainda hesitante por temer avolumar a indignação pública já suscitada pelas suas doutrinas,
publica em 1871 o livro The Descent of Man, onde desenvolve então largamente as suas ideias sobre esse tema escaldante. Aí estabeleceu Darwin
que, tal como
os outros organismos, o Homo
sapiens é um
pro-
duto de evolução a partir de formas inferiores totalmente diversas, transformação realizada por processos naturais e sob a influência directora da selecção natural. E o grande naturalista conclui que o homem e os grandes símios actuais descendem de símios primitivos já extintos. 101
FN ES
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
Dois homens notáveis contribuíram largamente para dar grande expansão e desenvolvimento científico ao problema. Um foi Th. H. Huxley, que já referi, que publicou, em 1863, o seu clássico livro
Man's
Place in Nature.
E o outro foi Ernst
Haeckel,
na
Alemanha,
que abordou o mesmo tema na sua Natiirliche Schôpfungsgeschichte (1868). Para o final do século, o problema da origem e evolução do homem era um problema inteiramente científico, tendo Haeckel] afirmado no IV Congresso Internacional de Zoologia, efectuado em Cam-
bridge, em
1898, que «a origem
do homem
a partir de uma
série de
pelo
vaga hipótese;
primatas extintos já não pode considerar-se uma
contrário, é um facto histórico bem estabelecido». Nesta
data já se
conheciam há anos os restos de Pithecanthropus erectus!, forma humana arcaica a estabelecer, na opinião da época, a ligação entre os
símios e o homem
moderno, de que Haeckel tinha imaginado
a exis-
tência em 1806, e que cinco anos mais tarde o achado dos restos desta
forma humana feita por E. Dubois veio afinal confirmar a existência. O próprio nome descoberta
Pithecanthropus
foi inventado
antes da
surpreendente.
antevisão
restos, numa
dos respectivos
por Haeckel
Desde o final do século x1x, os conhecimentos sobre o passado do homem
enriqueceram-se enormemente
e o problema
das origens, apesar
de todas as incógnitas que o envolvem, tem suscitado sugestões de base científica que têm alargado e aprofundado as perspectivas sobre a emergência do homem e o seu destino. As considerações que se seguem não pretendem constituir qualquer resumo sobre um problema tão complexo, mas tão-somente pôr em evidência aqueles aspectos que poderão ajudar
a compreender,
em
parte,
em
que
consiste
a originalidade
do
símio humano. E sobretudo mostrar que a ideia do «primeiro homem»
não corresponde aos factos que a ciência tem revelado, que não houve um
Símio-Adão,
mas
sucessão
histórica
numa
sim
uma onde
qual foi o ser humano original. 2. em
A questão
das
gradual não
emergência
é possível
da
assinalar
humanidade, concretamente
origens
Os primeiros homens foram provavelmente precedidos por primatas
que
coexistiam
caracteres já nitidamente
humanos
e caracteres
de
é muito
abarcando
mais
complicada
necessariamente,
se
considerarmos
tamabém,
102
os múltiplos
a
taxonomia
restos
dos
humanos
re Sande
DANE PPS PUT
ordem
extintos,
A VMUIAINTIPA RE
homem e também outras formas mais primitivas, sobretudo os lémures « os táraios
A
amo:
* O grupo actual dos primatas inclui os símios (macacos é grandes símios) e 0
Ir
antropomorfos *, Os australopitecos são, de certo modo, a comprovação deste facto,
BIOLOGIA
que não tenham
mesmo
dade. Estes primatas
E
SOCIEDADE — 1
sido eles os antepassados directos da humani-
formam
grupo muito complexo, conforme
um
o demonstra o estudo dos seus numerosos restos. Constituíam um grupo de primatas superiores que viveram na África do Sul e na África Oriental. Os restos mais antigos de hominídeos têm cerca de 5-6 milhões
de anos. Mas se são ou não de verdadeiros australopitecos ninguém o sabe. Como as opiniões divergem, muitas vezes, quanto ao significado dos restos encontrados, os limites da sua antiguidade são incertos. O que parece certo é que os australopitecos viveram pelo menos desde há 4 milhões de anos até há cerca de 1,5 milhões de anos. Eram primatas de pequena estatura (entre 1,20 m e 1,60 m, com peso do corpo oscilando entre 20 kg e 65 kg, que se assemelhavam mais a antropomorfos do que ao homem actual, ainda que, por outro lado, estejam, do ponto de vista evolutivo, mais relacionados com o homem do que com aqueles. A capacidade craniana situava-se entre a dos antropomorfos e a do homem, oscilando entre os 435 cc e os 600 cc. Marchavam na posição vertical. A dentadura é de tipo humano, assim como a bacia, e outros que nos caracteres do esqueleto, como a posição mais anterior do
antropomorfos do buraco occipital, facto que está intimamente ligado à à bipedia. Os membros eram; quase humanos e o pé está adaptado posição marcha bípede. Eram. portanto bípedes e marchavam em
|
vertical.
Tem-se admitido a existência de dois grupos distintos de australo-
pitecos,
provavelmente «robusta»,
e a forma
representando duas espécies: a forma «grácil» designados,
tecnicamente
Australopithecus africanus
respectivamente,
por
(Dart, 1925) e Australopithecus robustus
(Broom, 1938). A forma «grácil», mais progressiva (omniívora), assemelhar-se-ia mais ao género Homo, enquanto a «robusta» (vegetariana) teria mais afinidades com os antropomorfos. Os australopitecos do grupo
«grácil» eram sobretudo caçadores e trabalhavam muito grosseiramente a pedra e o osso, que utilizavam como instrumentos. Viviam provavelmente em ambiente mais ou menos árido, em pradarias secas, com
pouca vegetação, ao contrário da forma «robusta», que viveu em condições de certa humidade, em áreas de arborização pouco densa. O tipo de alimentação reflecte as condições ecológicas dominantes. Em amseco,
a forma
do alimento
vegetal,
biente
manos
com
uma
«grácil»
sido forçada,
teria
em
face
da
escassez
a nutrir-se de insectos, aves, répteis (provavel-
classificação complicada. Entre os símios distinguem-se os macacos
do Novo Mundo (longa cauda por vezes preensora, vivendo na América, do Uruguai ao Sul do México) e os macacos do Velho Mundo, entre os quais ocupam um nivel » superior os grandes símios (sem (chimpanzé, gorila, orangotango,
mais
quentes
da
África
cauda) gibão).
ou da Ásia.
designados também por «antropomorfos Vivem quase exclusivamente nas regiões
103
GERMANO
mente vez
de ovos)
mais
DA
e pequenos
predominante
FONSECA
mamíferos.
com
o aumento
SACARRÃO
Esta dieta passou da
aridez.
É
lógico
a ser cada supor
que
tais condições de ambiente exercessem pressão sobre as condições de existência destes primatas sub-humanos. Pressão que se exerceu de forma a terem sobrevivido em maior número os indivíduos mais inteligentes,
mais
hábeis
pela difícil procura
em
solucionar
de alimento,
os inúmeros
actuando
problemas
a selecção
natural
dos indivíduos mais imaginativos na concepção de armas mais eficazes para capturar mais facilmente as presas. australopitecos era já muito superior aos dos primatas sados e tinha um volume superior ao do cérebro dos actuais, e isto para uma massa corpórea que era neles vezes menor. Utilizavam provavelmente uma certa forma emitindo sons com determinados significados. não
levantados
a favor
e armadilhas O cérebro dos seus antepasantropomorfos quatro a seis de linguagem,
Formavam na sua vida social comunidades de caçadores (o que significa que tivessem comportamento de carnívoros), facto que
impunha a necessidade de trocar ideias, planear actividades em comum e conceber, de forma rudimentar, decerto, planos para a caça em grupo. Mas, como veremos mais adiante, a actividade da caça não era provavelmente exclusiva num
animal que era predominantemente
omniívoro.
Se os australopitecos mais progressivos não foram os antepassados
directos
dos primeiros
homens,
representam,
pelo menos,
um
ramo
muito próximo da base de onde emergiu gradualmente a linhagem humana. Mas há quem ponha em dúvida que os australopitecos representem um estado de evolução da humanidade, constituindo a transição entre o complexo queniapitecos-ramapitecos (hominídeos arcaicos) e os
primeiros
representantes
do
género
Homo
(Homo
habilis).
locomoção
não teria, talvez, as características da locomoção
moderno;
e que,
além
disso, paralelamente
aos
A
sua
do homem
australopitecos,
teriam
existido homens semelhantes ao Homo erectus. Este ponto de vista não corresponde, porém, às conclusões da maior parte dos trabalhos que têm sido empreendidos. Com efeito, pensa-se que a série Australopithecus africanus > Homo habilis > Homo erectus (pitecantropo) —> Homo sapiens corresponde a quatro escalões fundamentais da evolução humana, série esquemática, sem dúvida, mas a exprimir uma certa realidade, que não devemos entender estritamente como uma evolução linear,
mas
antes
como
quatro
estádios
de
organização.
Não é improvável que os australopitecos se situassem na linha que conduziu ao homem. Não há nada de fundamental na sua organização e comportamento que se oponha à ideia de que a humanidade tenha passado por um estádio semelhante, representado por primatas bípedes, com dentadura humana, com cérebro mais pequeno do que 0 do homem, mas mais volumoso do que o dos antropomorfos, de inte-
ligência
superior
à destes
últimos,
104
autores
de
uma
cultura
bastante
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —. 1
rudimentar, sem dúvida, e capazes de apreenderem relações de causa e
efeito. Importante é o facto de que a invenção e fabrico de instrumentos precedeu o homem. O mesmo se pode dizer da locomoção bípede da dentadura de tipo humano e, provavelmente, da linguagem e da
lentidão de crescimento ligada a longa fase de juvenilidade e de aprendizagem (v. mais adiante). À linguagem, por exemplo, se era rudimen-
tarissima, significa, porém, que não houve um hiato absoluto em relação à emergência da linguagem articulada tipicamente humana. Esta transição gradual para a humanidade suportada pela documentação fóssil mais moderna, indicando que o que ia fazer original-
mente o homem
já existia sob uma
forma ou outra nos primatas que
o precederam, torna impossível marcar o momento em que surge o primeiro
homem,
ou
assinalar
em
determinados
restos
um
testemunho
da sua primeira presença, da sua configuração física, e inclusivamente
provas do começo das suas características psicossociais subitamente nascidas. Assinalar a origem do primeiro homem é tão improvável de acontecer que se pode afirmar que a busca do primeiro primata humano
é mais um pseudoproblema do que uma questão real. O que modernamente
se sabe do determinismo
do processo evolutivo, dos mecanismos
de encadeamento
histórico, que se desenvolve gradativa-
genético-ecológicos que estão na sua base, opõe-se à hipótese de haver um «primeiro homem», porque a evolução biológica é um processo de continuidade,
mente, ainda que rapidamente, por vezes. A inovação que surge em cada fase insere-se na condição que a
precede, num encadeamento onde o passado subsiste mais ou menos profundamente modificado. Cada mudança é condicionada pelas alte-
rações
precedentes
O modo
como
e determina,
por
sua
vez,
as que
lhe
sucedem.
se realiza a evolução em cada caso depende
assim
da estrutura que lhe deu realidade e fora da qual não tem existência (cf. meu
1985) 2. O homem
não estava predestinado, mas sem dúvida
que os vários escalões infra-humanos determinaram o que ele é, con-
servando-se sempre nele vastos testemunhos do passado, que podemos hoje descobrir na organização e comportamento (em parte) do ser humano: o seu passado longínquo pisciforme, ou o seu passado mais recente de mamífero, ou o ainda mais próximo de primata. Idealizemos que se dispunha de todas as séries de documentos, de todos os elos e provas anatómicas e culturais ao longo do vasto segmento temporal decorrido desde, pelo menos, os primatas proconsulídeos ou dos ramapitecos do miocénico superior (ao longo de cerca de 20 a 25 milhões de anos). É quase certo que nessa cadeia de todas as formas e indústrias, passando gradualmente (como somos obrigados a intuir em face da documentação que se tem acumulado) da forma primata-símio para o símio humano moderno, com todas as combinações
e estados intermediários, não seria possível fixar aquele elo em que o 105
GERMANO
termo
DA
de «autêntico homem»
FONSECA
pudesse
SACARRÃO
pela primeira
vez ser aplicado.
Atente-se, por exemplo, nas interpretações a respeito do célebre Homo habilis, que para uns é já um homem, enquanto para outros tratar-se-ia
de um autralopiteco avançado. A complicar o problema está o facto de que a humanação do símio não seguiu provavelmente um curso linear. Pelo contrário, diversas linhas evolutivas se devem ter formado e extinguido, à excepção daquela, mais progressiva, mais plástica, que, reunindo
os atributos um
tanto dispersos por outras formas de primatas, consumou a humanação. À série que conduziu à humanidade é apreciada a posteriori, numa espécie de finalismo póstumo. Os que discordam deste ponto de vista talvez devam atentar no facto de que as tendências ocultas, as ortogéneses misteriosas, tão apreciadas pelos evolucionistas idealistas, são quase sempre o resultado de uma combinação de dois factores — um espírito preconcebido, pronto a pôr em evidência destinos previamente demarcados, e a necessidade lógica do espírito humano de ligar fenómenos ou formas em sequências lineares. George G. Simpson (1965), ao discutir a ambiguidade do termo «ortogénese», interroga-se sobre se existe algo de intrínseco nos organismos ou na evolução que determine tendências a prosseguir indefinidamente, sem desvios, para direcções determinadas, e independentes das constrangências do ambiente. O peso dos factos e uma poderosa argumentação da parte deste e de outros autores levam à conclusão de que as ortogéneses não obedecem provavelmente a causas
inatas a apontarem para determinadas finalidades que impulsionem a evolução numa dada direcção, independentemente das imposições e contingências
do ambiente.
À
evolução
é em
grande
parte
invenção.
E com razão observa: «Certamente que qualquer grupo de objectos pode ser disposto em séries graduais de acordo com um critério. O resultado naturalmente que nada diz sobre a maneira como se desenvolveram as características dos objectos ou fenómenos seriados, a não ser que o critério utilizado
seja verdadeiramente
filogenético
e correctamente
esta-
belecido» (idem, p. 269). Em muitos dos trabalhos e livros que relatam e discutem os acha-
dos sobre o passado da humanidade existe, a meu ver, subjacente à frieza dos métodos e mesmo ao mais puro racionalismo e objectividade dos seus autores, a ideia de pôr em evidência a imagem do primeiro homem, como se a tradição cristã do «homem original» continuasse
no íntimo da nossa cultura a ser a fonte mais ou menos
interpretações.
Esta
tendência
verifica-se
regularmente
em
oculta das obras
de
divulgação. No livro de Jules Carles Le Premier Homme (1970), o próprio título anuncia essa preocupação, e no texto o autor várias vezes tenta explicar (um tanto confusamente, aliás) como apareceu o primeiro homem, invocando a mutação decisiva que bruscamente teria feito surgir de repente um ser humano possuidor de razão, capas 106
BIOLOGIA
SOCIEDADE — 1
apoiar-se em dados da ciência
esta posição não pode
de reflectir. Ora
no que se conhece sobre o processo da evolução
nem
antropológica,
E
biológica, ou no comportamento
primatas
dos
e dos outros mamíferos.
O que se sabe do psiquismo destes animais, em particular dos primatas
como o chimpanzé, não suporta a tese do brusco aparecimento no homem da inteligência reflexiva. O mesmo preconceito pode ser facilmente observado noutros autores, mesmo quando abordam o problema da génese da humanidade em termos de evolução gradual, e de acordo (pelo menos aparente) com o jogo complexo da mutação-acidente e da selecção natural. Se o método os incita a considerar uma evolução gradual de populações, um enraizado preconceito leva-os a discutir se tal ou tal fóssil deve ou não
ser considerado
como
ser humano,
o primeiro
representando
mesmo
considerando-o como sob a forma de grupo. Numa outra posição encontramos aqueles zoólogos, antropólogos, divulgadores ou simples amadores de ciência que negligenciam, de uma forma ou outra, o significado causal do encadeamento histórico, e, mais de acordo com a tradição, imaginam uma origem brusca do ser humano, mas atribuindo-a a profundas modificações cromossómicas, ou de qualquer tipo de mutação
resultassem
de onde
misteriosa,
repentinamente
mitivos
dois seres de sexo diferente, o Adão
advento
imediato
em
certos símios pri-
e a Eva.
Para uns,
a
metamorfose envolveria a brusca mudança da configuração física e o Para
outros,
seria
de
uma
de
razão,
só a parte
ideias
espiritual
sobre
o bem
que repentinamente
e o mal. surgiria
num ponto da sucessão de várias formas físicas historicamente ligadas. E aquela que se veria prontamente possuída de capacidade espiritual, do poder de pensar e escolher em termos de moral, seria a do primeiro ser humano *. À luz da ciência não é compreensível que um primata sub-humano
sofra uma tão profunda metamorfose física ou espiritual, como se fosse um acto de criação, ou seja, sem um encadeamento histórico gradativo.
E pressuposta a ocorrência, entra-se, para a explicar, nos domínios da invenção e/ou da crença, que já não são os da ciência, a qual nos indica, pelo contrário, ser muitíssimo improvável a formação brusca, de uma só vez, do ser humano, origem súbita para a qual seria necessário conceber processos que pertencem não ao mundo das evidências ou
probabilidades científicas, mas ao do imaginário. Por exemplo, a ideia de bruscas e profundas refundições do genoma (rearranjos cromossómicos) é aproveitada para servir de base a tais especulações. É a hipótese
que
desenvolve,
por
exemplo,
o geneticista
Jean
de
Grouchy.
Segundo o mesmo autor, um primitivo casal de símios seria atingido
pelas mesmas alterações cromossómicas, as quais, sendo por esse facto improváveis de ocorrer em tal situação de simultaneidade, levam à 107
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
sugestão (para o autor) de se tratar de um casal de gémeos. Adão e Eva seriam então gémeos, originados por um acidente cromossómico. Rossion (1978), que comenta num artigo o livro de Grouchy, conclui que toda a evolução se teria passado como se houvesse um princípio director. A mesma tendência de rejeitar a concepção darwiniana da evolução gradual transparece gios deixados por homens
noutros trabalhos de interpretação de vestíde passado remoto. Por exemplo, em artigo
intitulado «Les premiers pas de lhomme», o seu autor refere-se a seis pegadas com três milhões e meio de anos descobertas em Laetoli, na Tanzânia, por Andrew Hill. O interesse deste facto está, segundo o autor da notícia, na circunstância de o indivíduo que as fez na areia caminhar na posição vertical e ter um modo de andar próximo do homem moderno. Os pés eram no entanto «mais curtos e largos do que os dos homens actuais e a arcada plantar não era muito desenvolvida». Mas o problema para o autor é sobretudo o de saber se as pegadas eram de australopitecos ou se já seriam de homens. Esforço vão, a meu ver, pois a realidade é complexa e não se conforma às nossas categorias mentais,
no
caso
presente,
mente, Regine Dalnoki
ao
mito
(1979)
do
«homem
original».
Posterior-
refere-se também a este tema e publica
fotografias dos vestígios de pés e um relato das investigações. Refere-se
o artigo mais completamente a duas séries de vestígios na mesma região, uma constituída por vinte vestígios de pés e outra por vinte e sete, que ficaram marcados numa velhíssima camada de lama de poeira vulcãnica. O autor segue a mesma linha de pensamento ao dizer que se trata de vestígios deixados «por um dos primeiros humanos». A dúvida consiste em saber se as passadas eram de um indivíduo do género Australopithecus ou se já são de indivíduos pertencentes ao género Homo (tratar-se-ia de um indivíduo masculino e de outro feminino). O preconceito
persiste e a própria
taxonomia
criada
para
clarificar os
documentos convida a abraçá-lo. Na realidade, inventaram-se os géneros
Australopithecus e Homo e depois procuram-se testemunhos que correspondam a essas categorias. Ora estas denominações traduzem descontinuidades artificiais que fazemos no encadeamento histórico-evolutivo das formas, artifícios cómodos e indispensáveis para abordar a realidade. Eles são em parte responsáveis pelo mito do «primeiro homem» entre diversos antropologistas. Assim, o autor que antes citâmos, ao referir-se
a Australopithecus afarensis*, diz que é o nome
dado a «ce premier
humain» que teria vivido primeiro na Tanzânia há 3,6 a 3,8 milhões de anos, e depois na Etiópia, de há 3,3 milhões de anos a 2,6 milhões
de anos. Os vestígios de passos seriam deste australopiteco? A questão provavelmente
não
tem
solução
real,
dependendo
fundamentalmente
das nossas convenções classificatórias e das definições dos géneros e espécies pelos quais distribuímos os vários restos fósseis. 108
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — I
Pelas razões que tenho vindo a aduzir, não é naturalmente possível
referenciar a demarcação que assinale o começo da humanação do símio. E não só pelas razões a continua decerto em nossos dias e as direcções síveis, apesar de algumas modificações estarem, rendo.
Mas
ignora-se
destas
a sua
qual
a futura configuração do homem. 3.
da
e importância
amplitude
para
física
Plasticidade Apesar
ou o fim do processo que aludi. A evolução que toma são imprevisegundo parece, ocor-
sua
fragilidade
física
aparente,
o
homem
é
um
ser
extraordinariamente resistente. A sua capacidade de resistência e de adaptação é demonstrada pela sua dispersão pelas mais diversas latitudes
e ambientes, onde conseguiu sobreviver pobre de instintos, sem meios próprios de defesa, a não ser a inteligência, que de resto de pouco lhe
serviria sem vida em grupo, na ausência de estreita colaboração dos seus membros. O ser humano não está adaptado especialmente a
nenhum modo de vida particular; está, por assim dizer, disponível, desarmado, não especializado. Mas esta condição fez em grande parte
o seu sucesso.
Se o compararmos
com
outros animais, logo se verifica
a diferença. O gorila é mais forte, o cavalo é mais veloz, o peixe nada
melhor, etc., e assim poderíamos continuar a citar exemplos sem conta em relação aos quais o ser humano está em inferioridade quando o compararmos com as especializações mais marcantes de cada espécie
animal. Nenhum dos animais, porém, faz é capaz de fazer por si só e em cooperação. orgânicos para determinados fins específicos As especializações biológicas herdadas pelos
tudo aquilo que o homem O animal tem dispositivos (a asa, a barbatana, etc.). genes e induzidas por eles
duram, em geral, milhões de anos a desenvolverem-se plenamente por evolução, enquanto no ser humano a adaptação ao meio se faz pela
invenção e fabrico de ferramentas e sua transmissão por tradição cultu-
ral. Os dispositivos inventados ficam, ao contrário do que acontece no animal,
exteriores
ao
organismo:
adquirem-se
e
aperfeiçoam-se
no
espaço de poucos anos. À evolução por herança biológica é portanto incomparavelmente mais lenta do que por evolução cultural. O homem ficou fisicamente «descomprometido», mas capaz de inventar e fabricar todo o instrumental necessário para se adaptar ao mundo— e isto no espaço de uma ou poucas gerações, ou prontamente no caso de soluções rápidas de problemas por meio da invenção de técnicas simples ou improvisações súbitas. O homem é um animal que inventa as especializações, não está biologicamente sujeito a elas porque não se desenvolvem nele, não estão nele programadas. Fica assim disponível para utilizar todas as adaptações, sem por isso se limitar organicamente (v. no 2.º vol. 109
GERMANO
o cap.
XII).
Com
DA
FONSECA
o ser humano
surgiu
SACGCARRÃO
portanto
um
fenómeno
novo
de grande e rapidíssimo poder de transformação do mundo e do próprio
homem — a evolução cultural.
À ausência comportamento.
de especialização O
seu
sucesso,
física associa-se
como
espécie,
a flexibilidade
deveu-se,
por
do
isso, pro-
vavelmente à sua enorme capacidade de adaptação física aos mais variados ambientes e condições, à sua inteligência e imaginação, que conceberam técnicas e culturas de superação das dificuldades, e à sua forte tendência para a vida em grupo, para a cooperação social. Claro
está que noutros primatas existe igualmente vida em grupo, cooperação
social, c um pouco de quase tudo (mas em menor grau) o que caracteriza o homem. Mas neste deu-se uma combinação originalíssima dessas e de outras qualidades, num grau muito mais elevado, sem a rigidez maior ou menor do animal, e sem o carácter de estar plenamente realizado. como acontece neste último.
4.
A
diversidade
da
dieta
alimentar
Tomemos por exemplo a alimentação. O ser humano
e esta propriedade
de se adaptar perfeitamente
é omnívoro
às dietas mais
variadas
foi igualmente um factor importante de sobrevivência. O seu aparelho
digestivo não é especializado para servir apenas a determinado tipo de dieta. Como
os dos macacos, os seus dentes são os de um
animal omni-
voro. Todas as dietas lhe convém, que variam conforme as circunstân-
cias. Investigações orientação
das
sobre as superfícies dentárias, o seu
estrias
têm
revelado
alimentação dos primatas e do homem
alguns
factos
desgaste e a
sobre
o modo
de
pré-histórico. Existe correlação
entre o comprimento e a orientação das estrias e a alimentação cárnea ou vegetariana. O estudo das estrias permite, portanto, distinguir as
dietas, vegetariana ou carnívora. Aliás, a usura dentária reflecte não só o tipo de alimentação como, também, a forma como é confeccionado
o alimento. Antes da revolução introduzida pela agricultura, os homens
eram omnívoros, dependendo o tipo de alimentação do tipo de ambiente
em que viviam e, portanto, dos recursos oferecidos por este. Os homens da idade pré-agrícola
viviam da colheita directa, de modo que a humanidade de então não se pode dizer que fosse vegetariana ou carnivora. A alimentação
era mista;
quando
abundava
a caça, eram
carnívoros,
mas em períodos de escassez de caça ou de pesca os homens lançavam mão de tudo, das presas mais diversas, ou da colheita de vegetais. Em
dias de fome, ervas, raízes, insectos, répteis, etc., tudo isto servia
para a mitigar.
Certas particularidades foram
postas em
evidência
pelos métodos
referidos. Por exemplo, o método para comer carne no homem HO
de há
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —I
700 000 anos (e mais) seria o de cortar a parte excedente fora da boca com sílex ou, mais tarde, com uma faca, como de resto ainda hoje se faz. A orientação das marcas deixadas sob a forma de estrias nos seis dentes anteriores da mandíbula de Mauer (Homo heidelber gensis ) indica que este homem arcaico comia carne, e fazia-o com a mão direita. Aliás, os caninos eram utilizados como instrumento auxiliar das
mãos, como se deduz do comprimento e orientação das estrias (dados extraídos dos trabalhos de P. F. Puech, de J. R. E. Mills, de A. S. «Do mesmo modo para o homem,
Ryan e outros). Escreveu o primeiro:
uma grande parte do desgaste dos dentes é devida ao modo de preparação
do
A
alimento.
exposta
carne
ao vento,
os alimentos
cozinhados
sobre as cinzas, contêm grande quantidade de partículas abrasivas; é preciso, portanto, no estudo da alimentação e do desgaste dos dentes,
distinguir entre o cozinhado e o cru, o assado e o cozido.» Outros auto-
res estudaram mastigação, e
o desgaste das faces oclusivas que regista o esforço da
tal facto levou à solução do «enigma posto pela evolução
dentária do homem:
a extensão dos métodos de preparação do alimento
fora da boca, desde o plistocénico inferior, tendo gradualmente mido
o esforço
que
a dentadura
supri-
devia produzir».
Segundo La Barre (1960), os mamíferos antepassados do homem comiam insectos; e os primatas seus antepassados aprenderam a comer mesmo plantas, incluindo os seus frutos. Nos tempos plistocénicos, talvez já antes, como voros, como o
diz o mesmo autor, os primeiros homens eram carnídemonstram as armas utilizadas para matar animais.
Este ponto de vista não é provavelmente legítimo (v. mais adiante). A verdade,
porém,
é que
a variabilidade
da dieta humana
permitiu
a
invasão dos mais diversos ambientes, concedendo ao homem a ocupação
de vastíssimos espaços ecológicos. Esta possibilidade para se adaptar às mais variadas dietas tem sobretudo uma base cultural. Depende de hábitos tradicionais e não de qualquer disposição ou determinismo genético. Certamente que a própria plasticidade é de natureza genética.
Mas o pronto ajustamento a esta ou aquela dieta é um imperativo cultural, não resulta de qualquer estruturação anatómica específica, nem
é uma
imposição
climático ou
da hereditariedade. Qualquer
cultural,
uma
migração
mudança
para obter novas
no ambiente
condições
de
vida, não impede os homens de se ajustarem a novos tipos de alimentação. O esquimó, eminentemente carnívoro, consome algumas plantas como alimento, e os povos do Oriente, em cuja dieta predomina o arroz, alimentam-se também de alguma carne e peixe. As diferenças alimentares entre as chamadas raças humanas são de natureza económico-cultural e mada têm a ver, provavelmente, com quaisquer exigências
fisiológicas ou anatómicas inatas.
A alimentação humana esteve sempre associada a uma forte componente cultural e provavelmente esta associação desenvolveu-se grasi
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
dualmente com a passagem do primata símio a primata humano. O facto de o homem ter uma ampla flexibilidade alimentar, podendo viver com os mais variados tipos de dietas, permitiu-lhe atravessar períodos críticos e subsistir onde outras espécies mais exclusivistas teriam perecido. Certos regimes alimentares andam ligados a uma mística, têm um carácter
religioso,
de
salvação.
As
civilizações,
as
classes
sociais,
são
marcadas por diferenças alimentares por vezes profundas, e, se as razões económicas são factores importantes neste aspecto, não são os únicos que estão na base dos hábitos alimentares dos homens. O homem primitivo não se dedicou jamais a um tipo único de alimento. O homem é por natureza omniívoro, ou, talvez melhor dizendo, tudo nele permite
e concorre (a anatomia, a fisiologia, a psicologia) para poder sobreviver com os mais variados regimes alimentares, monótonos ou variados, vegetariano ou carnívoro, comendo insectos, raizes, frutos, sempre ou
intermitentemente. Teimar, como fazem alguns autores (v. a seguir), em considerar os homens primitivos como caçadores especializados,
com hábitos e psicologia de carnívoro, não está de acordo com a sua disposição
de omnívoro,
que é afinal um
aspecto,
da sua não-especialização, da sua adaptabilidade,
der de múltiplas
maneiras
5.
de
A
condição
ao problema
predador
aliás
significativo,
no sentido de respon-
da sobrevivência é.
e a teoria
do
«símio-homicida»
O fenómeno da dieta alimentar dos primeiros homens e do homem actual tem outras implicações ao nível do determinismo do comportamento social humano. Há duas tendências gerais, a meu ver, que se
opõem: uma pretende explicar o comportamento humano comparando-o com os comportamentos de diversos tentando a aplicação a todos da mesma
animais, procurando analogias, causa; noutra é-se adverso a esse
ponto de vista: o comportamento humano, o que ele tem de fundamental, teria resultado de uma longa evolução psicossocial na linha humana
e
não
seria,
portanto,
o
reflexo
e
a
amplificação
de
uma
herança comportamental do animal. Segundo uma convicção que emerge do primeiro ponto de vista, o homem teria um comportamento de carnívoro; donde a sua forte tendência para um modo de ser caçador, conduta especializada para matar com rapidez e eficácia, etc. Desta condição de predador retirar-se-iam diversas consequências no plano social, ou seja, a de que o homem
é um
símio-assassino, que mata os
indivíduos da sua própria espécie. Segundo esta concepção, aliás muito popularizada, a condição de predador
dos
primeiros
homens
explicaria
muitas
das
qualidades,
sobretudo psicológicas, do ser humano. Conforme este ponto de vista, os primeiros homens difeririam dos outros primatas (que são sobretudo 112
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — I
vegetarianos) por serem caçadores e terem desenvolvido, por um fenómeno de convergência evolutiva, caracteres de carnívoro”. Diversos autores têm proposto e defendido esta doutrina, tais como Raymond
Dart, Robert Ardrey, Konrad Lorenz (o mais influente), Desmond Morris, Sherwood L. Washburn e outros. Segundo a teoria advogada, o homem tem natureza de «símio-caçador» e o facto de ser um predador homicida explicaria todo o seu comportamento social. Haveria provas incontestáveis de que o comportamento humano teria desenvolvido
caracteres que são típicos dos mamíferos
carnívoros. Essas caracterís-
ticas seriam, para os defensores da teoria, as seguintes: compartilhar o alimento, constituir reservas alimentares, matar mais do que o indis-
pensável
para
comer,
manifestar
agressividade
e aversão por outras
espécies que não são presas, prática do canibalismo, etc. (v. Thomson, 1975). Ora a verdade é que estas afirmações têm muito pouca consis-
tência. Partem do pressuposto de que o comportamento de predador teria sido herdado dos australopitecos antepassados do homem, do seu
tipo de alimentação, do seu modo de vida. Não existem, porém, quais-
quer
seguros
dados
sobre
a existência
de
primatas supostos antecessores do homem
tendências
assassinas
nestes
(conforme à hipótese origi-
nalmente elaborada por Dart), nem nos homens mais arcaicos. As evidências indirectas apontam noutro sentido. Toda a reconstituição do modo de vida das fases sub-humanas primitivas
e humanas
é frágil
sempre
e quase
assenta
em
cadeias
de
pressupostos. Nem mesmo se sabe qual o estado da evolução humana em que teria sido adquirido o suposto comportamento de predador exclusivo. Afirmar, apenas com o recurso a analogias, que o homem é um «primata assassino» é negligenciar o valor incomensurável da evolução cultural do ser humano, nomeadamente o significado da autoconsciência. Esquece-se o longo processo da evolução psicológica humana e o facto fundamental de o homem ser simultaneamente autor e produto da sua própria história. Para conciliar o ponto de vista de o homem possuir «natureza de carnívoro» com o facto de não ter mecanismos inibidores que travem o impulso
homicida,
como
acontece
nos
carnívoros
autênticos,
inven-
tou-se a história de que essa natureza teria degenerado, que já nascera adulterada (K. Lorenz). Este etologista chega a lastimar que o homem não seja um «carnívoro» completo, de natureza feroz e ao mesmo tempo subordinada.
Uma outra indicação do fracasso da teoria é que nem mesmo os principais defensores do determinismo biológico do comportamento social humano se põem de acordo quanto a aspectos essenciais. Por exemplo, E. O, Wilson (1975), o fundador da sociobiologia, discorda frontalmente de Lorenz e da sua escola. Não está de acordo com a teoria
de o homem Bibl. Univ.
49 — 8
ser um
símio-homicida, 113
que considera suspeita,
Para
o
GERMANO
mesmo
autor,
o homem
DA
não
FONSECA
SACARRÃO
é intrinsecamente
violência e do assassínio dos seus
semelhantes,
propenso
à prática
ideia esta
da
tão do agrado
de K. Lorenz, Raymond Dart e outros, e cujas raízes podemos encontrar no darwinismo social e de certa maneira, até, no próprio Darwin. Para Wilson, assim como para a generalidade dos sociobiologistas, o assassínio é mais comum noutros vertebrados do que no ser humano; e, se nos compararmos com o leão, o tigre e outros carnívoros aparentados, podemos mesmo considerar que os homens são naturalmente inclinados à amizade, à simpatia mútua, à conduta pacífica. Esta opinião não é nova entre os biólogos, tendo sido defendida pelos Russells (v. a seguir). Se imaginarmos, escreve Wilson, que um zoólogo marciano visita a Terra e aqui observa, durante longo tempo, o comportamento dos homens, poderá perfeitamente concluir que somos dos mamíferos
mais
agressões
ou
observações
duzem
pacíficos,
com
homicídios
base
no
cálculo
por indivíduo
efectuadas na natureza
do
e por
invalidam
número
unidade
de
de
sérias
tempo.
a tese de Lorenz
As
e con-
a um ponto de vista oposto ao deste autor.
Dois autores, Claire Russell e W. M. S. Russell,
cuja opinião faz
autoridade, abordaram o problema de violência no homem numa obra a que deram o sugestivo título de Violence, Monkeys and Man (1968). Apesar de passados vinte ancs, a obra conserva ainda interesse. Os seus autores introduziram o estudo da etologia humana em 1955, por ocasião de uma conferência internacional, disciplina que depois, através deles e de muitos outros, veio a desenvolver-se num campo de
promissoras pesquisas. Mas que ainda está no começo, poder-se-á afirmar. Dizem os Russells que aqueles que acusam o homem de exprimir maior violência do que os macacos argumentam que tal facto resulta da sua condição de caçador, enquanto os macacos seriam pacíficos vegetarianos. À especialização para caçar teria produzido uma agressividade inata no homem, de modo que o ser humano, por esse condicionalismo hereditário, nunca poderá constituir sociedades pacíficas como são as sociedades de macacos
na natureza.
Ora, segundo
os Russells, há
duas razões que se opõem a tal ponto de vista. Por um lado, os dentes humanos não são os característicos de um animal carnívoro. Pelo outro,
a distinção
do
homem
como
caçador
em
relação
aos
macacos
como vegetarianos não é absoluta. Na realidade, conhecem-se as obser-
vações clássicas de Jane Goodall, que estudou os chimpanzés no seu ambiente natural. Estes primatas podem capturar, matar e comer pequenos macacos; e todavia não deixam, por esse facto, de ser animais perfeitamente pacíficos em condições naturais. O que parece certo é que
os macacos são capazes de variar facilmente
de dieta consoante
as eh
cunstâncias. Oportunistas, aplicados à colheita de alimento. E o homen mais do que qualquer outro primata. tI4
Mesmo
que
4.
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — I
africanus
e
A.
robustus
(que
atrás
referimos)
sejam espécies distintas (o que já foi contestado), o modo de vida destes primatas, que estariam na base do tronco evolutivo da humanidade, não está tão bem
conhecido
que legitime estabelecer diferenças de regimes
alimentares que não dêem lugar a dúvidas. À conclusão de que africanus (mais vizinho ou mesmo na continuidade da linha evolutiva humana) era carnívoro não convence totalmente, nem pela forma e tamanho dos dentes (pré-molares e molares), nem pelos restos de esqueletos de animais juntos. As maiores dimensões dos molares de robustus relativamentes a africanus também
não são um sinal certo do herbivo-
rismo do primeiro, nomeadamente
a indicar mais extensas superfícies
de mastigação do abundante alimento vegetal, o que não seria, por con-
traste, o caso de africanus. Mas, tal como foi sugerido, o maior tamanho dos dentes de robustus seria um resultado das maiores dimensões do corpo deste primata, uma circunstância que também ocorre noutros mamíferos. Quanto aos pequenos dentes de africanus, eles são, em valor absoluto, até maiores do que os dentes do homem, apesar de este ser três vezes mais pesado (Gould, 1977 b). A conclusão provavelmente legítima será a de que À. africanus era uma espécie basicamente vegetariana, mas simultaneamente omnivora. São mais imaginadas do que reais as evidências a favor da ideia de que os antepassados do homem
seriam carnívoros, dos quais teríamos recebido a herança da sua psicolo-
gia de símio predador e sanguinário. Relacionado com o problema que temos vindo a considerar, surge-nos necessariamente a questão do canibalismo no ser humano, encarado muitas vezes como prova de tendências homicidas inatas desenvolvidas no símio humano na sua evolução para o predatorismo e por conseguinte para os hábitos de carnívoro destituído de mecanismos biológicos inibidores das suas tendências. O canibalismo é um procedimento largamente existente no reino animal, mesmo entre os vertebrados superiores. É natural que este comportamento tenha sido explorado por diversos autores que compartilham o ponto de vista de o ser humano ser uma espécie sanguinária. O canibalismo existiria desde os alvores da humanidade. Neste aspecto não parece haver desacordo fundamental. No seu possível relacionamento com a agressividade homicida é que há divergência. Segundo os defensores desta última tese, o canibalismo seria prática dominante, por inclinação inata, em diversas sociedades humanas através da história, uma espécie de passatempo (como disse Ardrey). Isto é decerto muito exagerado. Que existiu canibalismo nas primeiras
populações
humanas
e através
de toda a pré-história
e his-
tória não é de duvidar. Basta pensar nos períodos de fome, e nos nossos dias o canibalismo pode surgir em situações extremas, até entre homens civilizados actuais, como aconteceu em 1972, por ocasião de um desastre, em que um
avião caiu nos Andes 115
(Chile). Os sobreviventes conse-
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
guiram salvar-se comendo carne dos companheiros mortos. Mas há mais
exemplos deste tipo. E a imprensa relata por vezes canibalismo ocasional, como
prática ritual.
Não é de duvidar que em condições primitivas o canibalismo possa ter funcionado por vezes de recurso para sobreviver, em face de raridade ocasional de proteínas, ou como ritual com um sentido religioso, pelo qual quem come carne humana assimila a energia vital da vítima
e outras virtudes. Claro está que o rito sagrado pode ser considerado como uma adaptação favorecendo a sobrevivência, como uma justificação cultural a encobrir a necessidade de suprir a extrema pobreza em proteínas e como preparação para períodos de miséria alimentar. Até mesmo no desastre de avião de 1972, acima referido, houve algo deste género, uma espécie de justificação de natureza religiosa, traduzindo-se em
comunhão
nítida entre
vivos
e mortos
por meio
do canibalismo,
segundo relato feito posteriormente pelos sobreviventes. Em todo o caso, a proibição do canibalismo é um produto de condicionamento social e não biológico, e quando se exerce (em caso de morte iminente, etc.)
logo toma a aparência de uma prática com sentido religioso, em sacrificios rituais, de recusa da morte
(a vítima continuaria a viver por ser
incorporada como alimento), sentido de tradição e respeito, etc. Em diversos casos, todavia (não direi em todos, mas há quem o pense), a razão fundamental para o acto poderá ter significado alimentar. A antropofagia pré-histórica teria um
análogo significado cultural,
mas não é de rejeitar que por vezes se traduzisse numa prática aberta de compensação
alimentar, de sobrevivência. E quer ritualizada neste ou
naquele sentido, parece legítima a hipótese de considerar o canibalismo
como uma
adaptação
(ou preadaptação?)
cuja importância não seria talvez de pouco
com
valor de sobrevivência,
alcance nos tempos
pré-his-
tóricos sob condições de excessiva miséria alimentar, e que afinal ainda hoje pode mostrar-se operante em ocasiões excepcionais. Os fortes preconceitos morais que se opõem à sua prática não devem ter existido nos recuados tempos pré-históricos: o sabor repulsivo da carne humana (desenvolvido pela educação) e as coacções da moral não deviam embaraçar grandemente os nossos longínquos antepassados. Devo lembrar. porém, que a existência de uma vida de fome e de privações de toda
a espécie nas sociedades de primeiros homens
é um ponto de vista que
provavelmente não tem muita consistência (v. adiante).
Em Homo erectus há indicações de canibalismo: crânios abertos na base por comedores de cérebros. No homem de Neandertal aconteceria
o mesmo.
À causa da morte parece ter sido
(pelo menos
num
caso,
que não oferece dúvida) uma violenta pancada na região temporal. Isto parece indicar um comportamento ritual. É uma crença entre os comedores
de cérebros
de que
quem
come
o cérebro
adquire
o poder
e as qualidades da vítima. É este, segundo A. C€. Blanc, o mais antigo 116
E
BIOLOGIA
tipo
de
SOCIEDADE — 1
e que
conhecido,
religiosa
cerimónia
E
crença
tal
ainda
básica
subsiste na moderna religião, como o prova o ritual da transsubstancia-
ção cristã (cf. Kurtén, 1972). Não é nada provável que o canibalismo na espécie humana seja o agressividade inata, de uma ferocidade congénita. No
resultado de uma
Dicionário da Lingua Portuguesa, de Cândido de Figueiredo, considera-se o canibal como significando também homem feroz. Os chimpan-
zés só ocasionalmente é que comem os seus próprios filhos, mortos ou pertencentes
a outro grupo,
que
seja prática
Ora
isto
existente a
suporta
não
mas
isto é raro e não parece igualmente
noutras
tese
de
espécies
actuais
australopitecos
os
de grandes
símios.
normalmente
serem
antropófagos por imposição do seu hipotético comportamento inato de símio-caçador. Mas, se o foram, tal facto não demonstra que o compor-
tamento resultasse de um determinismo genético estrito ligado a uma (também discutível) hereditariedade de caçador e de carnívoro. Carne, por certo, era uma
componente
da
sua
alimentação,
mas
é mais
con-
forme aos dados actuais da ciência não considerar as primeiras popula-
ções
humanas
e
seus
antepassados
imediatos
como
exclusivamente
carnívoros. Nem o seriam na dieta, e muito menos o seu comportamento era limitado por essa actividade. A flexibilidade do ser humano apela
para outro tipo de interpretação. O problema do canibalismo está longe de estar esgotado. Recentemente, o antropologista William Arens, num livro intitulado The
Man-Eating
Myth,
defende
uma
posição extrema:
nega que o caniba-
lismo tenha existido como prática regular. Afirma que se trata mito utilizado pelo Ocidente para justificar a escravatura e o lismo. Para certos sociobiólogos, o canibalismo humano prova a cia de uma agressividade inata, enquanto alguns antropólogos que
ele funciona
como
um
processo
ritualístico
de recusa
de um coloniaexistênpensam
da morte,
porquanto a vítima continuaria a viver transmutando-se em alimento. Mas, quanto a Arens, julgo que ele exagera ao negar a veracidade de diversos testemunhos de antropofagia, Por outro lado, a biologia não dá suporte à tese de que a agressividade é um comportamento específico,
necessariamente inscrito no património hereditário da espécie, desenvolvido desde os tempos em que o símio sub-humano adoptou, por imposição ecológica, o comportamento de caçador. À selecção natural teria sido o factor em jogo no processo. Por meu lado, penso que o que é hereditário no homem é a sua própria flexibilidade, a sua capacidade de aprender, de nunca se realizar como um ser definido e definitivo. E no caso da agressividade será o mesmo: pode-se ser condicionado a ser agressivo ou pacífico, a matar, a justificar a conduta, simbolizando-a, ritualizando-a. A tese da flexibilidade herdável abre mais vastas perspectivas do que a teoria da existência de genes específicos para agressi117
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
vidade, para altruísmo, para cooperação social, etc. No cap. 1x desenvolver-se-á este ponto. Outra consequência nefasta desta ideologia,
desta crença
suposta-
mente apoiada na ciência, de que o homem é produto da sua «natureza» de predador, joguete de automatismos que vemos em acção nos animais, é, a meu
ver, a existência de um fatalismo na nossa condição, a justifi-
cação da alienação, das desigualdades, opressões e violências, de que há raças naturais de senhores e de escravos, que há uma maldade inata, etc.
Nesta argumentação contra a hipótese exclusivista do homem primata-predador poderia citar documentos e testemunhos vários que também a recusam. Mumford, por exemplo, desenvolve com fundamento e inteligentemente a ideia de que «a sociedade humana assenta, desde o começo, não sobre uma economia de caça, mas sim de colheita, e em quase toda a duração da sua existência o homem dependeu da colheita de alimento para a sua alimentação quotidiana. Nestas condições, a excepcional curiosidade do homem, o seu engenho, a sua facili-
dade de aprender, as suas capacidades de memorização, foram utilizados e postos à prova. Constantemente ocupado em colher e escolher, em identificar e seleccionar, em explorar, em vigiar os filhos, em ocupar-se
dos seus semelhantes — tudo isso fez mais pelo desenvolvimento da inteligência humana do que o talhar intermitente de instrumentos» (vol. 1, pp. 136-137). A
teoria do homem-caçador
original
não
se ajusta
ao facto
de o
regime alimentar da humanidade ser em todas as épocas omniívoro e principalmente vegetariano, na dependência das circunstâncias, dos recursos do meio, da época, das culturas estabelecidas e herdadas. Pelo menos, não se acomoda à tese de o símio humano assassino resultar da sua
condição
de
carnívoro
original,
hipótese
sem
dúvida
frágil.
Que
pudesse agir como predador parece muito provável. Mas que este facto tenha determinado uma natureza agressiva e assassina, que ainda hoje.
por herança biológica, é a marca fundamental do homem, tudo parece contradizê-lo. É mais simples admitir que o comportamento de caça é motivado por causas exteriores ao ser humano do que por um determinismo biológico inscrito nos genes. Que esta última teoria seja inspirada
e divulgada por K, Lorenz não surpreenderá. E o facto de ter recebido o Prémio Nobel não lhe confere autoridade para além da sua especia-
lidade, que não é a antropologia. Sabe-se, porém, que este biologista apoiou
de certo modo
o nazismo,
e não
escondeu
a necessidade
de
seleccionar rigorosamente os seres humanos superiores, e promover & eliminação dos indivíduos inferiores (v., o cap. vir). Mesmo os instru-
mentos das primeiras populações humanas ou sub-humanas «armas»,
mas
sim
utensílios
para
procurar
alimento,
ou
não seriam para
fazer
armadilhas. Esses utensílios grosseiros seriam testemunhos muito pobres 118
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — I
do engenho humano. Deduzir a inteligência e a imaginação dos homens primitivos apenas pelos instrumentos que nos legaram conduz a uma visão estreita do seu modo de vida e da sua habilidade técnica. Donde a ideia perfeitamente aceitável de os homens serem capazes de inventar uma «tecnologia» variada e rica antes de fabricarem rudes instrumentos de pedra ou de osso. E que os objectos, em vez de servirem só ou predominantemente de «armas», seriam adjuvantes do corpo, cujas partes (dentes, mãos, pés) já executariam trabalhos de grande habilidade técnica. Como
diz Mumtford
(op. cit.), a maior descoberta do homem
no começo da sua carreira, o seu primeiro artefacto modelável, foi o seu próprio corpo. Com ele, servido por um cérebro altamente imaginoso, operou uma profusão de proezas técnicas, com as mãos, as unhas, os dentes, os pés, tudo isto antes de utilizar os instrumentos grosseiros de
pedra ou osso. Considerar os primeiras homens como seres brutos, que, inventando
rudes «armas» actividade
de
de pedra ou de osso, se entregavam constantemente matar
para
presas
estimulados pelas condições
e
subsistir,
a sua inteligência,
a imaginação
é, provavelmente,
uma
teoria
e o engenho
simplista
posteriormente,
só
que
exigidas por esta mesma
actividade, é que
puderam
e cómoda,
à
desenvolver-se,
mas
inadequada.
Numerosos factos postos em evidência pelo estudo de populações actuais,
com modos
de vida de tipo primitivo, mostram
que existe um
hiato
profundo entre a habilidade técnica dos homens e aquilo que pode ser deduzido da simples observação de instrumentos Jíticos. Nenhum calhau lascado, machado de pedra ou tosco instrumento de pedra pode servir
de indicação acerca das realizações técnicas da fase primitiva humana ou pré-humana, da sua riqueza e variedade. À teoria do símio-assassino está longe de satisfazer como teoria científica. a)
O
mito
da
maldade
inata
A tese da maldade inata enraíza em mais do que um preconceito. Um é o de que os primeiros homens viveram em ambiente de miséria, onde só os mais fortes e cruéis sobreviveriam em luta com a natureza inimiga e os seres que a habitam. Mas pode muito bem ter acontecido que fosse
outro
o ambiente,
que
oferecesse
aos estados
infra-humanos
e aos primeiros homens caça e pesca abundantes, frutos variados, em suma, uma natureza generosa em clima ameno (v. adiante). É compreensível que o homem das modernas sociedades industriais, que exploram intensivamente os recursos naturais para satisfazer necessidades sempre crescentes, considere naturalmente indigente o modo de viver dos primitivos seres humanos, situando-o no limite da sobrevivência,
como
se
esses
remotos 119
homens
tivessem
de
procurar
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
debelar uma fome crónica. Todavia, a condição do homem original em luta permanente com a natureza hostil tem mais a aparência de ser uma inferência preconceituosa do que uma asserção cientificamente fundamentada. O que parece mais provável é que o homem primitivo adaptasse judiciosamente as suas necessidades aos recursos naturais, e que as teses da «penúria» e da «abundância» se fundem para dar lugar a uma situação provavelmente mais próxima da uberdade. Comparar modos de vida, privações e canseiras à luz dos valores das socie-
dades da era industrial pouco ou nenhum valor tem como método científico. Outro preconceito, talvez a mais importante causa da aceitação da ideia de o homem
ser um
homicida nato, é, como
lembrou
Montagu, o
facto de esta ideia se ajustar a crenças já existentes. Aquilo em que se acredita justifica essa ideia e ao mesmo tempo é justificado por ela. Para o mesmo autor, o homem-assassino é simplesmente a versão actual secular da velha ideia do pecado original que ferreamente
ciado a imaginação
do homem
“homicida, geneticamente
ocidental. A doutrina
determinado,
tem influen-
actual do símio-
dos etologistas instintivistas é a
tradução para os tempos actuais da antiquíssima história religiosa que nos diz que os homens nascem, vivem e morrem pecadores. Ela é mesmo anterior à civilização judaico-cristã porque noutros povos
também
teria
havido necessidade de explicar a existência do mal, concebendo-se, então, igualmente a noção da queda: o homem primeiro teria sido bom e inocente, o mundo era um paraíso, mas tendo o homem caído em tentação e perdido a inocência, jamais voltou à condição da candura ori-
ginal E o Velho Testamento juntou a isto o conceito de vício:
de depravação,
Eis — que eu fui gerado na iniquidade; e em pecado me concebeu minha Mãe. [Velho
O conceito de maldade
Testamento,
e de depravação
salmo
LI, 5]
inatas, de uma
humani-
dade pecadora, foi largamente difundido e incrustado na mente do homem ocidental. E mesmo as crianças não escaparam ao ferrete, consideradas como «criaturas naturalmente depravadas» (isto em 1835), e mesmo neste século opiniões (abalizadas, imagine-se) atribuem-lhes tantas máculas, vícios e perversões que (como escreveu Edward Glover, decano dos psicanalistas ingleses) «o bebé normal é para todos os efeitos
práticos
um
consideravam
criminoso
nato»
as crianças
(cit.
de
e as mulheres
Montagu, como
tradição judaico-cristã deu outra dimensão a ruindade
e o vício
como
maldição. 120
seres
1976).
Os
inferiores,
ao estigma,
Gregos mas
introduziu-lhe
8
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — I
Elisabeth Badinter (1980) diz que Santo Agostinho se referia à criança como um ser que se o deixassem fazer o que lhe agradasse não haveria crime que não praticasse. À criança, segundo o estudo da mesma autora, é acusada dos maiores pecados. E acrescenta que o pensamento agostiniano reinou longo tempo na história da pedagogia, reflectindo-se na dureza para com a criança. Descartes também considerou a criança como uma criatura inferior, fonte permanente de erros, de falsas ideias, e lamentou que o homem
tenha de passar pelo estado infantil. O desprezo pela criança, o medo até que ela inspira, tem pois raízes religiosas, sendo uma maldição lançada sobre a humanidade. Isto sobretudo era o que se pensava, particularmente,
nos séculos XVII a XIX, com
altos e baixos
de opinião.
Mas não desapareceu por completo. A natureza corrompida da criança obrigava a um trabalho aturado de educação, com a justificação, por isso mesmo,
dos castigos corporais mais duros.
A ideologia burguesa concebe nos séculos xvil e xvilI a ideia da criança-máquina,
que a medicina
consideraria, naturalmente, suscepti-
vel de reparar facilmente e de moldar aos desejos e normas dos adultos. Aliás, a ideia corrente era a de que a criança é uma máquina, um brinquedo mecânico. Ora, sendo a criança encarada como a prova da
natureza vil e imunda do homem, no seu estado por assim dizer livre, espontâneo, compreende-se que até muito dentro do século xIx não existisse medicina infantil, ainda que no século xvil tenha havido um certo interesse médico
1872,
por ela. O termo
«pediatria»
apenas
surge em
segundo a autora acima referida. A maldade como característica inerente à substância biológica do
homem,
ficada
à sua
com
natureza
a revolução
foi reforçada
profunda,
darwiniana
(o homem
e pretensamente
herdou
justi-
e desenvolveu
instintos do seu passado animalesco), a que depois se associou Freud, que ainda penetrou mais fundo na espeleologia das perversões humanas, dos instintos
(sexual e de morte), tendo culminado em 1930 num
seu
pessimismo total sobre o homem. O darwinismo social (e agora a sociobiologia) e a psicanálise (que não é bem ciência) dão-se as mãos, neste campo, e com a doutrina religiosa tradicional tendem a fundir-se numa enfatuada biologia do espírito com base no reducionismo sociobiológico, todos a reforçarem, com o peso da ciência e da meia-ciência, a crença generalizada de que o homem é uma criatura brutal, congenitamente perversa e violenta. Os biólogos (etólogos, sociobiólogos, etc.), que hoje
proclamam que o homem é o lobo do homem, que ele é o macaco nu-homicida, não fazem mais do que dar consistência pseudocientífica a uma longa e profunda tradição religiosa, que o darwinismo e o freudismo fortaleceram (e ao mesmo tempo substituíram e embaralharam) e prepararam para ser tomada como uma verdade. Perante uma crença
tão funda nos espíritos, não se torna fácil demonstrar que a tradição 121
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
veicula uma mensagem falsa, porque foi sempre muito difícil contrariar a veracidade daquilo em que a generalidade das pessoas já acredita,
como judiciosamente lembra o autor a que me Com
estas ideias feitas é difícil lutar para
tenho reportado, convencer
que
a edu-
cabilidade do homem possibilita que se modifique e oriente em múltiplas direcções o seu comportamento,
mesmo
aquela fracção do mesmo
que poderá ter uma componente hereditária. À constituição genética do homem, contrariamente à dos outros animais, é fortemente modificável pela socialização, pela tradição cultural. Mas, como terei a ocasião de
desenvolver em vários pontos deste livro, não devemos separar biologia e sociedade
na
formação
do
homem.
O
ser
humano,
não
é
de
mais
insistir, é o produto da acção conjunta do biológico e do social, de interpenetração íntima da sua ontogenia com a cultura. Qualquer tentativa de apreciar o peso relativo de uma ou de outra, de considerá-las como entidades distintas em interacção, conduz a uma visão falseada da realidade humana,
do que já foi chamado,
com
toda
a propriedade,
o Homo humanus (v. Montagu). A história produz o homem, mas essa história é a fusão de várias histórias biológicas e culturais, quer a nível da formação do indivíduo, quer da sociedade.
6.
Caracteres
psicológicos
e culturais
As qualidades únicas do cérebro humano
estão na origem
adaptabilidade ao mundo físico e social. O homem
da nossa
é um animal pobre
de instintos e não surpreende que o seja, visto que a ampla acomodação
as circunstâncias do mundo exterior não seria nada fácil num ser de conduta rígida. Possuindo autoconsciência e o mais elevado poder de reflexão e de imaginação, a programação inata do comportamento, deixando estreita margem para a iniciativa individual, seria fonte de grande embaraço e de extrema confusão. É fácil verificar a incompatibilidade entre comportamento pré-programado, inteligência e reflexão. O desenvolver de um comportamento plástico e de uma inteligência superior teria de ser acompanhado da drástica redução da esfera instintiva. Imaginação e conduta rígida não poderiam coexistir. A partir das formas sub-humanas, que podemos conceber assemelhando-se, nos aspectos físico e comportamental,
a australopitecos,
ou
talvez mesmo a Ramapithecus * (é necessário aguardar por documentos fósseis mais representativos deste último), a inteligência e a reflexão consciente desenvolveram-se gradualmente com cérebros sucessivamente
mais complexos. Estas faculdades não maneira repentina. Diversos mamíferos
mesmas
faculdades.
São particularmente
surgiram, provavelmente, de manifestam certos sinais das importantes
os resultados
experiências conduzidas nos chimpanzés, que nos demonstram 122
de
a exis
BIOLOGIA
tência,
neste
primata
tão
E
SOCIEDADE —I
vizinho
do
ser humano,
da
capacidade
de
conceber e fabricar instrumentos e uma certa compreensão do princípio da causalidade. Capacidade muito rudimentar, sem dúvida, mas não menos real, e sobretudo com uma dinâmica lógica de tipo humano. Este primata pode, além disso, aprender uma linguagem simples, podendo combinar frases e por elas comunicar com o ser humano ou com outros chimpanzés º. Estas experiências conduzidas em chimpanzés têm revelado aspectos interessantes, indicativos de que o cérebro destes primatas trabalha conforme certos esquemas lógicos do homem e é capaz de alguma abstracção. Por isso é de admitir que a inteligência e o poder de reflexão no homem sejam, em parte, processos já existentes nos mamíferos em estado rudimentar, particularmente nos primatas.
E que através das formas sub-humanas evolvessem rapidamente para a psicologia e a inteligência
próprias
velmente
problema
gradual.
Mas
o
do homem. não
é
O processo foi prova-
tão
simples
e
a
equiva-
lência à aprendizagem da linguagem humana pelos chimpanzés é posta
em dúvida. Por este facto tem havido, parece, uma generalizada renúncia
a este
tipo
de
investigações,
devido
à ambiguidade
dos
resultados
obtidos. Os próprios animais ensinados foram colocados noutros lugares, havendo problemas com a sua readaptação *. Com o desenvolver da linguagem articulada, veículo de ideias e de conhecimentos (e mais tarde com o seu registo sob forma simbólica) surgiu a tradição acumulada,
característica
absoluta
do
homem,
não
existente
em
qualquer
outro animal. Em certos animais é verdade que podemos observar um determinado grau de aprendizagem recebida da experiência dos adultos, assimilada durante a fase juvenil. Mas isto nada é comparável ao que se passa no homem. Porque não se trata apenas de receber do adulto a experiência deste. O processo é cumulativo;
é uma torrente de saber
e experiência que cada ser humano transmite ao que lhe sucede. No animal, o processo é repetitivo; a experiência não se avoluma, a tradição não é modificada; não há inteligência inovadora, nem meios de a fazer perdurar
ou registar. No ser humano,
pelo contrário, é saber
que se acumula, que cresce e se multiplica de geração em geração. Formidável
corrente
cultural
inteligência, enriquecida
que
atravessa
as gerações,
produzida
pela
pela diversidade individual e registada pela
linguagem articulada, pela escrita, pela arte. Já me referi à adaptação do ser humano
às mais
diversas
dietas
alimentares. O seu poder de adaptabilidade revela-se igualmente no que respeita aos climas tão variados que pôde suportar e sob os quais pôde viver desde os tempos mais remotos, Esta adaptabilidade climática não se realiza apenas pelas condições especialíssimas do seu organismo, que
lhe permite
viver em
desertos secos e quentes ou gelados, nas altas
montanhas, em planícies férteis, na espessura da floresta tropical húmida, etc. A larga acomodação climática e as longas e extensíssimas 123
GERMANO
migrações
DA
FONSECA
empreendidas pelos homens,
SACARRÃO
transitando
de climas árcticos
para tropicais ou temperados, ou vice-versa, só foram
habilidade zes
técnica e pela invenção
de servirem
de meios
das mais
de adaptação
possíveis pela sua
diversas
ao ambiente.
culturas, Estão
neste
capacaso
os vestuários, as ferramentas, as construções de abrigos e habitações mais elaboradas, a extrema plasticidade dos hábitos alimentares, etce.,
tudo consoante as pressões ambienciais e as repercussões na sua mente imaginativa. Pelo seu engenho, pelo seu de comunicação pela linguagem, associada à mais elevada ajustou-se às mais diversas situações, tirou amplo partido
que tiveram grande poder sociabilidade, delas, conce-
beu e fabricou instrumentos, vestuários, abrigos, procedeu ção de trabalho pelos membros
conquista
do grupo, etc. Um
do planeta, neste vencer
da natureza
à distribui-
factor decisivo nesta
e nas
transformações
que desde cedo nela começou a operar foi (é sempre útil lembrá-lo) a sua enorme
capacidade de educabilidade, de longe superior à de qual.
quer
animal,
outro
estando
condenado
a quase
tudo
aprender.
Ora
a
evolução para tudo ou quase tudo aprender não poderia coexistir com um
comportamento onde a maioria das acções estivesse biologicamente
determinada pela hereditariedade. Volto ao ponto que deixei atrás: se o homem passou a realizar-se pela educação, a parte instintiva do seu ser passou
a ser mínima,
visto que
a evolução
para
a educabilidade
obrigou obviamente à flexibilidade das respostas comportamentais. Por tudo isto, o ser humano modifica as circunstâncias e é transformado por elas, comprovação na aparência banal, tal a sua evidência, mas que
não parece ser suficientemente meditada, pois se assim fosse creio que
se evitariam
os equívocos
que
muitas
vezes
surgem
quando
se aborda
o problema do papel da hereditariedade e do ambiente como determinantes
das acções humanas.
Apesar de algumas básicas semelhanças as
sociedades
de
primatas
difícil estabelecer princípios
não-humanos
gerais
que devem
e as
seguros
que
sociedades
existir entre humanas,
se apliquem
é
a umas
e a outras e que resultam de disposições inatas respectivas. E ainda é mais difícil extrair do que se passa nas sociedades de primatas não “humanos dados que com segurança se possam aplicar às sociedades humanas. Montagu (1976) refere-se a este problema afirmando mesmo que não podemos basear-nos no comportamento dos primatas não-huma-
nos para justificar as estruturas sociais humanas, nem explicar aspectos do nosso sistema social, apelando para o velho argumento de que eles
fazem parte de uma qualquer mítica «herança de primata». Acrescenta
ainda que «o comportamento de cada espécie tem de ser compreendido
mete
em serem ente Rae
em
relação ao seu próprio ambiente.
Se desejamos
resolver problemas
especificamente humanos, como a guerra, então temos de considerar problemas do ambiente humano tais como o poder do complexo industrial-militar, os nacionalismos, a educação, o racismo, a miséria e tam124
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — 1
tos outros. Talvez que a mais importante lição a tirar do estudo dos primatas seja a de que pertencemos a uma ordem de animais cujo
comportamento e organização social não são estáticos, mas modificam-se em resposta aos desafios do ambiente. Os primatas são animais adaptáveis, e os seres humanos
são-no muito mais do que todos os outros
representantes do grupo. Esta é, possivelmente, a mais esperançosa lição entre
todas
as que
podem
extrair-se
dos estudos
feitos nos
primatas».
Trabalhos modernos sobre a estrutura social nos primatas vieram demonstrar que muitos aspectos do comportamento que se julgavam geneticamente programados dependem de facto de factores ecológicos e ontogenéticos, aspectos que desaparecem desde que os animais são
introduzidos noutro contexto social !!. Os modos de relações sociais determinam as condutas das fêmeas e, por via destas, o comportamento dos
Ambiente,
filhos.
causas
em
sendo
Jogo,
Por
dois primeiros.
é uma (v.
qualidade
Kummer,
tipo
de
particularmente
inata, é transmitida Ropartz,
são
a acção
dos
social de cada indivíduo
não
pelas mães aos jovens macacos Estes
1979).
genéticos,
analisar
importante
a categoria
exemplo,
1979,
social, factores
estrutura
dão
dados
um
suporte
às
afirmações atrás mencionadas por Montagu. Diversas
investigações
vieram
demonstrar
o
estreito
parentesco
genético entre o homem e os grandes símios. E Bruce e Ayala, a quem se devem importantes resultados, afirmam
que estes últimos conduzem
a um paradoxo: por um lado, somos muito diferentes dos antropomorfos, quer na morfologia, quer no comportamento, e pelo outro a diferenciação genética que nos separa deles é mínima, sendo da mesma ordem da que se observa entre as espécies gémeas (isto é, indistintas do ponto de vista morfológico) da mosca-do-vinagre (Drosophila). Admitem a hipótese de que as diferenças em relação aos grandes símios sejam sobretudo devidas a fenómenos de regulação genética !?. Se, como parece concluir-se, o parentesco é extremamente estreito, poderia inferir-se que, no que respeita ao comportamento social, haveria
grandes semelhanças e que as acções sociais humanas seriam em grande medida esclarecidas à medida que progredissem os conhecimentos sobre as sociedades de primatas não-humanos. Ora não é isto que se verifica por enquanto, e não há dúvida de que é um enigma extremamente interessante que com tão íntimo parentesco na constituição hereditária existam tão enormes diferenças dos pontos de vista anató-
mico, adaptativo e comportamental além de outros importantes aspectos psicológicos que tão profundamente nos separam dos primatas actualmente mais próximos de nós. Apesar
de
todas
as
dificuldades
de
interpretação,
pode
todavia
afirmar-se que no homem a tendência à vida em grupo é uma condição primitiva e que o seu sentimento social foi provavelmente fortalecido pelo temor
da solidão, solidão psíquica 125
|
sobretudo.
As características da
GERMANO
DA
FONSECA
psicologia humana
desenvolveram-se em
estimulo
ao
desabrochar
Nasce-se
com
pleno
a capacidade
das
de
SACARRÃO
sociedade,
que
potencialidades
desenvolver
funcionou
do
ser
linguagem,
tal
de
humano.
como
se
nasce com a capacidade de nos tornarmos humanos. Isto significa, em certa medida, que não se nasce «ser humano», mas sim como «animal
capaz de o ser». Outro
elemento
de sucesso residiu
no comportamento
do homem,
provavelmente o menos rígido de entre todos os animais. Se a extrema flexibilidade física do seu organismo e a do seu comportamento foram dois decisivos factores de sobrevivência, além de possuir um psiquismo sumamente plástico, reduzidamente instintivo (os seus impulsos inatos, que os tem, não são em regra bem definidos e imediatamente expressos em
comportamentos
específicos, como
no
animal),
e uma
inteligência
superior, o primata humano desenvolveu também autoconsciência, capa-
cidade de previsão, de se interrogar sobre o seu destino, sobre a morte. A
autoconsciência
fez
nascer
o medo
metafísico,
a recusa
da
morte,
o que abriu logo o caminho ao desenvolvimento de sentimentos religiosos, ao sentido
de mistério — tudo
passo sob forma ainda rudimentar
isto tendo
talvez
surgido
pelo menos
com
o Homo
ou sob forma ainda pouco definida no Homo
passo
a
erectus,
habilis e talvez em
certos
australopitecos mais progressivos, seus prováveis antecessores imediatos. Em rigor, não existem instintos no homem, no sentido que é proprio conferir-lhe: ou seja, como reacções complexas, fixas, predeterminadas e automáticas em relação a certos estímulos do ambiente. O ser humano desenvolveu respostas, não reacções rígidas e automáticas
se repetiriam em face das mesmas circunstâncias exteriores. A evolução do homem ocorreu sob condições que o pressionaram constantemente para encontrar a solução adequada para problemas suscitados pelo meio físico e cultural. Consequentemente, evolveu para uma nova esfera de adaptação «na qual o seu comportamento é dominado por respostas aprendidas, e não por reacções predeterminadas» (Montagu). A mais poderosa pressão selectora veio do ambiente sociocultural, moldando o ser humano não só culturalmente como fisicamente. Os poucos comportamentos
inatos que
existem
no
homem
senão todos, ser modificados, reorientados,
podem,
muitos
introduzidos em
deles,
novos com-
plexos de aprendizagem, plasmados com as fortes influências socioculturais,
de
humanos.
onde Esta
resultará
a aparência
«instintividade»,
da
a existir,
não não
instintividade
dos
seres
é caracterizada,
como
nos outros animais, por mecanismos nervosos mais ou menos complexos e
fixos,
constituídos
por
múltiplos
automatismos
inscritos
no
genes
e libertados por processos internos neurofisiológicos e por causas exter-
nas. Ou seja: tudo parece conduzir à ideia de que o ser humano é destituído de rígidos processos automáticos e pré-programados que caracterizam em grande parte a conduta dos outros animais. Os que possuirá 126
BIOLOGIA representam
talvez
muito
E
SOCIEDADE — 1
pouca
coisa
comparativamente
à
imensa
capacidade de modificabilidade de um ser que quase tudo terá de aprender, pelo menos (e já é muito) tudo o que é fundamental para
se tornar humano. Neste aspecto, a evolução cavou um fosso profundiíssimo que iria para o futuro separar o destino do ser humano do dos outros animais. Isto não significa que não haja uma certa componente genética no comportamento social do homem, que a ontogenia seja estranha a ele; mas sim que o biológico e o social são co-determinantes na realização do ser humano, impossível de compreender fora dessa dualidade (v. o cap. xm) É. É fácil de deduzir que uma conduta da natureza dos automatismos não seria possível coexistir com a enorme riqueza que confere a plastici-
dade física e psicológica do ser humano, a dade de aprendizagem, o estar condenado a pela educação. Será útil que, ao considerar (que também existem, claro está, em maior animais, em particular nos mamíferos, mas comparável ao atingido no homem, tanto mente, nas consequências), será útil, dizia,
sua quase infinita capacitudo aprender, a realizar-se estas qualidades humanas ou menor grau em muitos em nenhum deles em grau no modo como, principalque não percamos de vista
o problema complicado das pulsões inatas no homem, e todos aqueles
processos que, por herança biológica, desempenham uma importante função na vida do ser humano, inclusive no seu comportamento. É o
caso, por exemplo, das funções do complexo hipotalamico-hipofisário e de diversos outros mecanismos neurofisiológicos. Mas pode dizer-se, sem receio de cair em erro, que o ser humano é um animal muito pobre
de «instintos», no sentido de que o seu comportamento não se exprime por esquemas hereditariamente fixados, de tal modo que não seriam
contrário,
Pelo
modificáveis.
aqueles
componente
aqueles
que possam
ter uma
homem
introduz-se,
geralmente,
comportamentos
seus
genética)
(mesmo
ser sempre
podem
alterados, recusados, regulados ou reorientados por acção cultural. O problema da extensão e dos limites do comportamento inato no (op.
por
cit.)
natureza
por
entender-se
declarou
natureza
infinitamente
certa
o debate
todo
em
humana
(v. meu
1982).
que
ignorava
o que
vez
sobre
o que
Bertrand se devia
Russell entender
humana,
Em
todo
o caso, para ele essa natureza
maleável.
Os
seres
humanos
modificam-se
deve
era
consoante
a
maneira como são tratados, e considerou disparatada a ideia de que a natureza humana não possa ser modificada. Esta resposta de Russell
respeitava ao problema de a guerra fazer ou não parte da natureza humana. David Barash cita uma frase interessante de Simone de Beauvoir
a
propósito
igualmente
da
natureza
humana,
frase
que,
a
meu
ver, é feliz na medida em que caracteriza o ponto de vista da extrema medificabilidade do homem: «lêtre dont Pêtre est de n'être pas», e que sem dúvida não é aplicável provavelmente aos outros animais. Por 127
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
muitos
instintos e condutas
programadas
nascer,
as suas
de escolha
capacidades
que o homem
e de adaptação
possuísse ao seriam
muito
inferiores às que lhe confere a sua situação de ser que só se realiza por aprendizagem e socialização, em que as possibilidades de resposta e de criatividade são ilimitadas comparativamente aos automatismos da
conduta, mesmo quando estes são em certa capacidade de aprendizagem pelo animal. o que o homem faz ou é capaz de fazer é poder estar nele programado. Nos capítulos
medida modificáveis e exista O cérebro humano e tudo demasiado complicado para 1X, XI e sobretudo x11 voltarei
a esta questão.
Após esta rápida digressão por certos aspectos do determinismo do comportamento do ser humano, referirei outros caracteres. O ger humano possui muito mais curiosidade, maior poder de imitação, de atenção e de memória do que os outros animais superiores. À linguagem revela-se como o meio mais importante
para manter
ou transformar a
cultura. Surgiu a imaginação, que se desenvolveu prodigiosamente, assim como o sentido da arte, da beleza. Forma sentimentos religiosos, crenças em poderes sobrenaturais. À riqueza psíquica aumenta então enormemente. Alarga e aprofunda a personalidade por meio da sua imensa força imaginativa, das suas faculdades de criação artística, dos seus sonhos. Antevê os seus actos, prevê as consequências, nasce o
reconhecimento da responsabilidade pelos efeitos resultantes da sua conduta, raiz provável do senso moral, do apego a valores, dos juízos sobre o que é bom e o que é mau. Esta capacidade de pensar e escolher em termos de bem e de mal é simultaneamente inata e aprendida. O seu mecanismo básico faz parte da nossa herança biológica, mas o desenvol-
vimento, a orientação que tomam no indivíduo e na sociedade dependem de educação e da estrutura social,
individual
plasticidade do comportamento
A imensa
teve ainda
outras consequências. Por exemplo, permitiu que, por educação, se formem as especializações mais diversas, como se verifica actualmente
nas sociedades humanas mais complexas, que obviamente não poderiam tais num
surgir como mentalmente
a
mecanismos
comportamento
cujo
animal
fixos,
inatos
cuja
obedecesse
estrutura
social
fundaresul-
biológico. A não ser em sociedades
tasse de um estrito determinismo
de estruturas fixas (como nos insectos), o que não é o caso das humanas. Além
disso, a própria evolução
sociais foi rapidíssima
porque
das culturas,
não se efectuou
herança biológica, mas sim pelos processos
técnicas e estruturas
pelos mecanismos
da herança
da
cultural. Nela
não intervêm os genes, mas sim a educação, no sentido mais lato deste
termo. A transmissão de conhecimentos, técnicas e formas de comportamento fez nascer diferentes culturas e variadíssimas estruturas sociais. A razão fundamental reside no facto de o homem ser um animal social de características únicas, A palavra e a cooperação ligaram entre si os
q
128
BIOLOGIA membros
dos
agrupamentos
E
SOCIEDADE —
primitivos,
cada
um
comunicando
aos
outros as suas experiências, legadas, depois, de geração em geração. Pensamento, linguagem conceptual, cooperação social, plasticidade de adaptação
e extrema
educabilidade foram os meios mais importantes de
sucesso para as primeiras comunidades de homens. A selecção natural actuou aí, provavelmente, a favor dos homens mais hábeis, mais comunicativos, mais imaginosos, mais cooperantes, mais inteligentes na caça, na confecção
de armadilhas,
na sua capacidade
de manipular
e inven-
tar instrumentos, na protecção e coesão da família, tudo qualidades que actuaram,
provavelmente,
como
factores
decisivos
de
sobrevivência.
É fácil concluir que a pressão para mudar se exerceu exactamente no sentido de um alargamento da fase juvenil de aprendizagem, indispensável numa espécie desarmada de instintos, que depende, para sobreviver, de
7.
O
mais
inteligência
físico
e
o
e de mais
saber.
cultural
Importa também salientar outro aspecto, ou seja, que as características físicas ou anatómicas do homem estão em nítida relação com o seu
comportamento,
com
as suas
actividades
e realizações.
Todos
os
caracteres especificamente humanos, sejam físicos, psicológicos ou culturais, interactuam e integram-se num todo que define o humano. Por um lado, não fora a flexibilidade individual do comportamento
e seria impossível constituir por aprendizagem as mais diversas especializações necessárias à vida das sociedades humanas em constante modificação e adaptação a novas circunstâncias, o que exige a formação de novas classes e tipos profissionais. Ora sem a larga margem para educabilidade que caracteriza o ser humano não poderiam ocorrer as permanentes reestruturações e readaptações das sociedades humanas. Por
outro lado, a linguagem humana depende sobretudo de uma estrutura cerebral complexa, da qualidade e número dos neurónios, das suas intrincadas associações, da complexidade das vias nervosas e também de certos dispositivos anatómicos e fisiológicos (estrutura da laringe, cordas
vocais bem
diferenciadas, etc.).
As complexas máquinas das actuais sociedades industriais, caracterizadas por um grande avanço científico e tecnológico, do mesmo modo que os utensílios simples que o Homo
sapiens inventou e fabricou há
uns trinta mil ou quarenta mil anos, só puderam ser criadas por um ser dotado de elevado poder de raciocínio e poderosa imaginação, mas necessariamente
dotado, também,
de extraordinária habilidade manual,
capaz de executar com a mão movimentos não só extremamente delicados como rigorosos e perfeitamente coordenados. Todavia, a mão do
homem Bibl.
Univ.
é o instrumento 49 —
9
de um
cérebro 129
superior, que
concebe,
que
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
antevé utensílios destinados a cumprir determinada finalidade. A mão do chimpanzé não pode executar o que faz a mão humana não só por causa da sua estrutura, que, em
certos aspectos, é diferente
(ainda que
basicamente semelhante à mão humana), como, sobretudo, por este primata ser destituído de um psiquismo elevado, determinado por um cérebro e um sistema nervoso de grau superior, que não é o seu. Por
outro lado, a invenção
de instrumentos
não
depende
exclusi-
vamente de habilidade manual nem de um cérebro superior. Ela não poderia concretizar-se num animal cujas mãos estivessem também ao serviço da locomoção, mas, pelo contrário, libertas totalmente dessa função,
transformadas
agora em
órgãos de tacto, de preensão e manejo
de objectos. Estas actividades, por sua vez, suscitam novas ideias, novas relacionações,
numa
interacção
fecunda
com
complexos
centros
cere-
brais. Como órgão preensor, a mão passou a substituir as mandíbulas (não inteiramente, mas em todo o caso para o mais importante). Mãos
e cérebro devem-se ter mutuamente influenciado. Esta profunda alteração funcional na evolução dos primatas antecessores da humanidade
conduziu, progressivamente, à redução das mandíbulas e da dentadura (em particular dos caninos) e à transformação e encurtamento da região
facial e predomínio correlativo da região craniana. Além disso, o bipedismo dos primeiros seres humanos, aliás já existente nos antepassados sub-humanos, abriu largas possibilidades de desenvolvimento à intekgência, em ligação com a progressiva evolução das indústrias, e à socialização. Libertas as mãos da locomoção, estes órgãos ficaram disponíveis para o transporte dos filhos e de alimento, para o manejo e fabrico de instrumentos, etc. !*. Poder-se-á conceber, então, que todas as mutações,
e regulações
combinações
génicas
que
fossem
favoráveis
ao desenvolvimento cerebral, e nomeadamente da inteligência, tenham sido, logo de começo, rapidamente preservadas pela selecção natural. porquanto, como é fácil deduzir, a sobrevivência e adaptação do homem (e dos primatas infra-humanos que imediatamente o precederam) dependiam,
fundamentalmente,
capacidade.
dessa
Correlativamente,
como disse, a capacidade craniana atingiu, gradualmente, valores maiores, o que implicou, entre outras, modificações na arquitectura óssea
do
duos
mais
crânio. hábeis,
À
selecção mais
exercer-se-ia
natural
na
inteligentes,
sua
a favor
capacidade
dos indivt-
de manipular
e inventar instrumentos, qualidades essas que actuariam como factores decisivos
de sobrevivência
em
seres
como
os humanos,
destituidos de
especializações que especificamente os protegessem dos numerosos perigos provenientes
do ambiente
natural
e social. O sucesso
deveu-se provavelmente ao facto de não ser um para viver sob determinadas condições.
130
do homem
animal especializado
BIOLOGIA
8.
Natureza
hostil
ou
E
SOCIEDADE — 1
paraíso
terreal?
Uma noção que o darwinismo tradicional, sobretudo os seus aspectos popularizados e deturpados respeitantes à noção de luta pela vida, imprimiu nos espíritos foi a de que os primeiros grupos humanos levavam
uma
existência em luta permanente e sacrificada com
mentos físicos, com num
constante
uma
esforço
os ele-
natureza adversa, contra os outros animais, por
sobreviver.
À
selecção
natural
actuaria
a favor dos homens cujas invenções técnicas concedessem, por exemplo, qualquer vantagem na caça, no confronto físico entre os homens, ou entre estes e os animais; e sobreviveriam sobretudo os indivíduos mais
resistentes, mais brutais. Ora isto pode ter sido assim, mas não está demonstrado que o fosse. Os preconceitos têm mais força nesta questão que os dados da ciência. Se a África Oriental ou Central (nomeadamente a região Centro-Oriental) foi, como hoje há tendência a admitir, o berço da humanidade (não podendo excluir-se que haja outros cen-
tros de origem
em
África ou no Médio
Oriente), há quem
avance
a hipótese de que as primeiras fases da evolução humana, decisivas para o desenvolvimento mental, se tivessem processado numa região tropical ou subtropical, rica de alimento, num paraíso terreal favorecendo
a vida
fácil, propensa
à imaginação,
intensificar-se mais
do que
a invenção
atingiria níveis que
abriram o caminho
faculdade
que
poderia
até
racional, a qual só mais tarde às técnicas.
Julgo que os valores dominantes nas sociedades industriais e com-
petitivas do Ocidente, assim como a interpretação socialista marxista, que confere posição dominante aos instrumentos materiais de produção na determinação da evolução humana, aceitam logicamente a primeira hipótese (vida dura em natureza hostil), rejeitando a segunda (vida edénica). É extremamente provável que a evolução da humanidade pré“histórica tenha sido dominada pela invenção de tecnologias e culturas que adaptaram o símio humano às múltiplas vicissitudes e perigos que o espreitavam de todos os lados. A maior dúvida persiste, porém, no que respeita às primeiras fases da hominização, às condições que presidiram à metamorfose da configuração física e ao desenvolvimento da mente humana e à modificação de grande parte da sua herança simiesca, À incessante e intensa actividade do cérebro humano, pletórico
de energia mental, exigiu que logo desde o início os homens e seus antecessores imediatos pudessem dar livre curso à torrente nervosa que os invadia, estando isso talvez na origem da sua conversão em múltiplas culturas e modos de acção, desde o trabalho e a invenção de técnicas, aos jogos, à arte, à dança, aos sonhos, ete, À mente do homem prolonga,
modificada, a mente dos símios seus antepassados. À tendência humana
para a imitação, a sua intensa curiosidade exploradora, sem objectivos utilitários, são qualidades que já existiam neles e que de certo modo se 131
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
encontram também nos símios actuais, apesar de todas as reservas que imponho às comparações para delas deduzir filiações ou homologias.
Lewis Mumford (1973) referiu-se ao facto de o historiador holandês, J. Huizinga, no seu livro Homo ludens, ter sugerido, à luz
de numerosas provas, que mais do que o trabalho, foi o jogo o elemento formador no seio da cultura humana, e que o domínio das quimeras constituiu a mais séria actividade dos homens. «Segundo esta tese», escreveu o primeiro autor, «o ritual e a mímica, os desportos, os jogos e o teatro libertaram o homem das suas insistentes ligações ani-
mais;
e nada melhor o poderia
demonstrar,
cerimónias primitivas onde o homem
espécie
de animal.
Longo
tempo
acrescento
eu, do que
as
representava o papel de uma outra
antes de ter adquirido
o poder
de
transformar o meio natural, o homem havia criado um meio miniatura, o domínio simbólico do jogo, onde cada função da vida podia ser remodelada num estilo estritamente humano, como num jogo.» Diz ainda
Mumford que a tese do Homo ludens de Huizinga era tão surpreendente que chegou a chocar o seu tradutor, que, por isso, alterou intencionalmente a afirmação do mesmo autor, quando este diz que «toda a cultura
é uma forma de jogo», transformando-a na noção convencional e mais
evidente de que «o jogo forma um elemento da cultura». Mais
adiante,
Mumford
contesta
a
ideia
de
que
o
homem
se
caracteriza sobretudo por ser um animal fabricante de instrumentos, em suma, a pretensão de que os instrumentos materiais de produção dominariam
todas
as
outras
actividades
humanas.
«Há
boas
razões
para crer que o cérebro do homem, desde a origem, foi mais importante do que as mãos, e que a dimensão deste cérebro não resultou unicamente
do facto de o homem
fabricar e utilizar instrumentos;
que o
ritual, a linguagem e a organização social, que não deixaram o menor vestígio
material,
ainda
que
estivessem
constantemente
presentes
em
cada civilização, foram sem dúvida os mais importantes artefactos do homem logo a partir dos primeiros estados; e que, bem longe de conquistar a natureza ou de remodelar o seu ambiente, o primeiro cuidado do homem
primitivo foi utilizar o seu sistema
nervoso
hiperdesenvolvido,
intensamente activo, e dar forma a um eu humano separado do seu eu animal de origem, pela fabricação de símbolos — os únicos instrumentos que podiam ser construídos a partir dos recursos do seu próprio corpo: À
sonhos, imagens e sons.» meu
ver, não existe oposição
faber e a do Homo
ludens.
actuais da ciência admitir Nem houve exclusivamente
Não
necessária
entre
a tese
creio que seja conforme
do Homo
aos dados
qualquer delas com exclusão da outra. áspera luta pela existência, que consti»
tuiu provavelmente um elemento importante da hominização, nem poderá esquecer-se que nessa luta pela vida a imaginação talvez tivesse um
poder
tão grande
ou mesmo
maior, 132
do que
a invenção
racional,
|
BIOLOGIA que
está
na
base
da
E
SOCIEDADE — 1
tecnologia
grosseira
do
começo,
imaginação
a determinar um comportamento complexo de adaptação e de que os rudes utensílios líticos não foram senão um dos aspectos de um viver já assaz complicado, simples adjuvantes de uma conduta já rica de manifestações
humanas.
O
ambiente
de
clima
tropical
ou
subtropical
provavelmente permitia e até convidava a uma vida fácil, tranquila, com alimento abundante à disposição, onde tudo, sem dúvida, convidaria ao desenvolver da imaginação criadora e de actividades não orientadas para a luta rude e sem tréguas. Mas mesmo nesse «paraíso terreal»
a humanação não foi, provavelmente, um processamento idílico, com permanente doçura de viver, preguiça, destemor, facilidade. Os primeiros
homens
viviam
num
mundo
de
animais
e de
contingências,
onde, portanto, a rudeza, a força física, a astúcia e a mínima invenção técnica
para
matar
ou
dominar
a presa
ou
os elementos
muias ocasiões, decisivos factores de sobrevivência. Que
eram,
em
esses primeiros
homens não foram apenas carnívoros é o mais certo. Que a imaginação
fecunda deva ter precedido a invenção tecnológica, e que a inteligência não deve ter esperado
por esta para
atingir valores de criação, é legí-
timo aceitá-lo. Mas se o berço da humanação foi uma região paradisíaca, isso não obstaria a que os seres humanos estivessem perante necessidades que
aguçassem
a invenção
racional,
sem
deixar
naturalmente
de,
pelas próprias condições de amenidade climática, de riqueza alimentar,
desfrutarem
de largos intervalos
de
onde poderiam
«ócio»
dar livre
curso a outras actividades que não fossem as de caça, nas quais, aliás,
projectariam e satisfariam o seu prodigioso poder imaginativo e o seu pendor religioso. Preferir
a tese do
«paraíso
terreal original», onde
a humanação
se teria realizado livre das duríssimas obrigações da luta pela existência, dando
a primazia
ao sonho,
à arte, à magia,
etc., é uma
ideia
talvez
preconcebida a esconder possivelmente apego a forças espirituais na evolução da humanidade, como que um ajustamento à doutrina cristã da criação. Defender uma humanação em clima rude, cheio de perigos,
onde só homens duros, violentos e resistentes, agressivos e inventores de armas
eficazes
poderiam
vencer
em
luta
feroz
contra
uma
natureza
inimiga povoada de inimigos, está de acordo com a ideologia burguesa, que considera a força do trabalho, a competitividade criadora, o progresso sem fim e a evolução tecnológica do Ocidente como grandes realizações da história da humanidade, de que as modernas sociedades industriais capitalistas ou socialistas constituem a suprema expressão. Os dois pontos de vista não se excluem mutuamente. Ambos
“am
+
a meu
traduzem,
ver, cenários possíveis e combinados de uma realidade longínqua
que tentamos reconstituir com a escassa factualidade que possuímos e com a coerência que nos é permitida pela estrutura da lógica cien-
tífica *º. 133
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
NOTAS
1 O pitecantropo
(o homem-símio)
foi incluído, com
outras formas, no Homo
erectus. Há tendência, por vezes, em eliminar esta designação «espécies»
arcaicas
humanas,
entre
os símios
ancestrais
e abranger
e o homem
todas as
moderno,
numa
única e grande espécie — Homo sapiens (Saint-Blanquat, 1984). Mas tal solução não traria grande proveito, por agora, porque enquanto houver formas humanas diversas, exibindo diferenças significativas e separadas no tempo, será necessário apor-lhes uma etiqueta
e um
nome.
Entre
outras,
foram
incluídas
em
Homo
erectus
o sinantropo
(homem da China), o homem de Olduvai (África Oriental) etc. Esta espécie apresentava grande área de distribuição, compreendendo quase todo o Velho Mundo. 2 No meu livro 4 Adaptação e a Invenção do Futuro (1985) desenvolvi o ignificado
daquilo
que
designei
por
pressão
histórica,
como
factor
orientador
da
mudança, conceito que também poderá apelidar-se (com certas vantagens) pressão filogenética. Os caminhos que toma a evolução são fortemente orientados e limitados pelas estruturas e processos preexistentes. O conceito de preadaptação é um: dos aspectos desta realidade. De facto, as direcções que a evolução pode tomar não são ilimitadas, a organização preexistente determina em grande parte as vias a seguir e as configurações que é possível desenvolver. Por outro lado, nem a mutação a nível biomolecular,
nem
a sua expressão
no organismo,
se realizam
inteiramente
ao acaso.
A estrutura preexistente e a pressão histórica favorecem ou em parte impõem determinadas direcções à mudança e marcam os limites do possível, quer no seio do genoma, quer a nível do organismo, como tenho sugerido várias vezes. A evolução não inova a partir do nada, trabalha sobre o preexistente, e as modificações surgem por razões arquitecturais, ontogenéticas e históricas, de concerto com a pressão das contingências externas (selecção). À participação da estrutura lução biológica não têm merecido a atenção que merecem.
e da
história
na
evo-
3 Os partidários da origem súbita das espécies consideram que o homem nasceu a partir de uma pequena população isolada de um australopiteco, cuja espécie continuaria a existir geograficamente separada dos primeiros homens nascidos dessa
população da mesma espécie. Não pensam que o homem
É
se tenha originado logo na
sua forma final (sapiens), mas que nesse passo original grande parte da forma humana se teria constituído numa só geração, visto que para os «punctuacionalistasa
não há evolução gradual espécie > espécie, É óbvio que a teoria «punctuacionalista», ou
dos
«equilíbrios
intermitentes»
(v.,
adiante,
o
cap.
V),
«trouxe
a
alegria
aos corações dos criacionistas», como declarou um dos seus defensores, que não é criacionista (v. Stanley, 1981). No fundo esconde-se a mesma preocupação de marcar
de anos de idade, baptizado mesma espécie (Johanson e aparecimento do homem na respeita aos documentos da a seu respeito, que têm sido
«Lucy», e ainda de novos restos esqueléticos incluídos na Edey, 1983). Marcará «Lucy» o momento evolutivo do Terra? A controvérsia e até a confusão existentes no que nossa evolução, e as respectivas e diversas interpretagões propostas, impõem uma atitude de prudente reserva, Há
numa
nem
GPL
como um acontecimento súbito.
4 Trata-se de um esqueleto do hominídeo mais completo (a mulher-macaco de Afar, na Etiópia) descoberto em 1974 por Donald Johanson com 3 a 4 milhões
rir np
o aparecimento do homem
tantos pressupostos e fundamentações com pretensões a provas que as conclusões são todas problemáticas. Será «Lucy» o antepassado de todos os hominideos? Se mesmo evolutiva
se sabe definir com
rigor em
que consiste
um
ses
134 A
perspectiva
BIOLOGIA humano, gradual e gicos) de 5 O Mary
E
SOCIEDADE — 1
o que não surpreenderá, naturalmente, se a evolução é um movimento não uma série de bruscas inovações separadas por longos intervalos (geolóestabilidade. artigo de Regine Dalnoki menciona que o nome Á, afarensis foi dado por
Leakey,
o que
é incorrecto
(v. Johanson,
White
e Coppens,
1978;
e Johanson
e Edey, 1983, pp. 315-330). Por outro lado, também não é admissível referir-se à mesma espécie como «ce premier humain», tratando-se de um autralopiteco como é a opinião unânime. Quanto à idade deste australopiteco arcaico, parece ser ainda mais antigo por terem sido encontrados restos datados de há 4 milhões de anos (Chaline, 1982). O que parece indubitável é que em Laetoli (lanzânia) há pegadas deixadas em
cinzas
vulcânicas
que
caíram
há
cerca
de
3,5
milhões
de
anos
(Hay
e Leakey,
1982). Eram pés de homens ou de infra-humanos? Serão vestígios de precursores dos homens primitivos ou já o seriam destes últimos? Nenhuns artefactos foram encontrados (os mais antigos conhecidos datam de há 2 milhões de anos), e acredita-se que esses hominídeos tivessem cérebro de símio com postura erecta de tipo humano. Libertas já as mãos da locomoção, estaria, assim, aberto o caminho ao desenvolvimento da inteligência e ao fabrico de instrumentos. A postura erecta seria o facto fundamen-
tal que teria provocado o desenvolvimento em cadeia de todas as principais transformações
posteriores que caracterizaram a humanação.
Mas as origens humanas
não são
facilmente redutíveis a um tal esquema.
6 Marvin Harris, antropólogo da Universidade da Florida, em artigo publicado
em 1986, defende a ideia de que o homem não foi feito para uma dieta sem carne. Refere que os homens do paleolítico, vivendo como recolectores-caçadores em clima temperado durante os cem mil anos que precederam a domesticação de plantas e animais, tiravam do consumo de carne cerca de 35 Jo das suas caiorias. Mas, ainda que isto possa ser certo, não deixa de ser uma coisa problemática, e é legítimo
duvidar dela como generalização. Ainda
segundo
dados
citados pelo mesmo
autor, o organismo
dos nossos ante-
passados estaria adaptado a consumir cerca de 788 g de carne por dia, dez vezes mais do que o americano médio (dos Estados Unidos da América do Norte) consome no mesmo intervalo. O autor exalta o valor do consumo de carne. Seria a expressão de
uma tendência para a qual o homem estaria geneticamente programado (o que provavelmente
é inexacto),
além
de valer como
indicativo de posição social. Quer dizer,
apetência natural misturada com aspectos culturais. o mesmo autor tece ainda considerações sobre o papel do consumo cárneo no acréscimo da longevidade. Mas atribuir este último facto ao aumento do consumo de carne não parece correcto porque, como é bem sabido, as classes de mais elevada posição social têm menor mortalidade não porque de factores
comam mais carne (ainda que o façam), mas sim por todo um favoráveis decorrentes do seu status e dos seus privilégios.
conjunto
A questão da nutrição humana não se compreenderá apenas à luz dos factos biológicos e bioquímicos. Se teoricamente todos os seres humanos têm essencialmente as mesmas exigências alimentares, e sofrem de modo semelhante de múltiplas deficiências, na prática
há um
imenso
número
de populações
que se mantêm
em
boa
saúde com dietas consideradas insuficientes pelos nutricionistas, dietas que são de fome pelos padrões por exemplo norte-americanos, Muitas destas populações «primitivas» desenvolveram práticas de ajustamento aos recursos disponíveis que lhes permitem encontrar o sustento necessário. Há conjunção de adaptações biológicas e sociais. Por outro lado, muitos destes povos mudam rapidamente de dieta de acordo com as circunstâncias; e as necessidades fisiológicas são tão importantes como o são a tradição, as práticas sociais e os tabos. À dentadura, a anatomia do aparelho digestivo,
mostram que o homem foi omnívoro durante a sua longa história evolutiva, talvez predominantemente herbívoro de começo, transitando depois para dietas mais abun-
dantes
em
carne durante
o paleolítico;
mas
foi sempre
variável
no regime
e na
escolha dos meios de subsistência (v. dados no importante livro de Dubos, particularmente no seu cap, WI),
135
DA
GERMANO Os grande
SACARRÃO
FONSECA
dieta caracterizada por como fonte alimentar
hominídeos mais arcaicos devem ter seguido uma diversidade com exploração de rizomas e raízes 1975,
(Kolata,
1981,
e Teleki,
Harding
Lovejoy,
em
de
salto
Novo
1982).
regime
ocorreu com a invenção da agricultura, nomeadamente a cultura de cereais. O homem é altamente adaptável do ponto de vista da nutrição, e qualquer con-
clusão rígida a este respeito, como de certo modo é a de Marvin Harris, está conde-
a afastar-se da realidade. 7 Não existem quaisquer evidências que os hominídeos arcaicos (australopitecos) caçassem. Várias indicações conduzem à conclusão segundo a qual a actividade da caça não era significativa do ponto de vista nutritivo nos antepassados infra-humanada
nos e nos primeiros homens. Parece agora bem estabelecida a noção de que o homem
foi sempre omnívoro; e quando caçou fê-lo apenas como actividade adjuvante para outras fontes alimentares (v. Lovejoy, 1981 e 1982). O que dominou sempre na evolução humana foi a flexibilidade da dieta e a adaptação cultural às circunstâncias,
num
revelar de potencialidades intermináveis
(v. nota anterior).
8 É possível que o ramapiteco (donde teria derivado o orangotango) esteja fora da linha evolutiva humana (v. Science, 1982, 297:541-546, e Andrews, 1982) e que a divergência desta última seja mais recente, tendo o homem e os antropomorfos (chimpanzé, gorila, etc.) uma base comum datando de há pouco mais de 6 milhões de anos, como parece indicar Australopithecus afarensis, com marcha bípede e estação vertical humana, mas com cabeça de «chimpanzé». Mas nesta questão das origens as conjecturas proliferam. Pode pôr-se sempre a hipótese de afarensis também estar fora da linha humana, sendo um caso de paralelismo evolutivo, enquanto outro
tronco seria responsável pela origem de Homo habilis > Homo erectus. Significaria ela que Australopithecus não estaria na linha histórica do homem, mas sim a ela, a divergência, humana
nesse
caso,
de
seria muito
Homo
remota.
a evolução
Aliás,
pode ter-se dado em várias linhas paralelas, facto que não está em
desacordo
com o que nos ensina a genética e a adaptação. Em todo o caso, as diferenças ontogenéticas para a bipedia e o desenvolvimento cerebral parecem ter constituído a divergência de arranque, tendo na base uma acentuada retardação da ontogenia (v. o próximo capítulo).
9 A «linguagem», que se tem feito aprender aos chimpanzés é feita de símbolos geométricos (lexigramas), ou é gestual, havendo ainda outras técnicas mais complicadas, com utilização de computador. Allen e Beatrice Gardner, por exemplo,
ensinaram
a linguagem gestual dos surdo-mudos
«Washoe».
Estabeleceu-se
uma
comunicação
chimpanzé
ao famoso
americanos
homem-animal.
Tem
criticada
sido
a
equivalência destes sistemas de comunicação à linguagem humana. Tratar-se-ia, antes, de uma aperfeiçoada domesticação. A grande flexibilidade do chimpanzé e a sua estreita aproximação evolutiva à linha humana permite-lhe aprender um processo de comunicação que se assemelha na estrutura semântica e gramatical à linguagem humana, mas estas analogias podem induzir a ir mais longe do que será legítimo na comparação (v., por exemplo, CGlasersfeld, 1978, MeGonigle, 1980, Marx, 1980, Maury, 1980, e Petter, 1984).
Id
V. The Sciences, Novembro-Dezembro,
E
1986,
p. 65
(análise
do livro de
Linden: Silent Partners: The Legacy of the Ape Language Experiments). 1 A estrutura social dos chimpanzés parece ser única entre os mamiferos. Cada bando move-se constantemente à procura de frutos e outros alimentos na área do respectivo território, e a comunidade fragmenta-se ou agrupa-se consoante a disponibilidade em alimento. Há exogamia das fêmeas, mas não dos machos. A forma de organização seria típica das sociedades humanas na fase de recolectores-caçadores (Ghighieri, 1985). Em todo o caso, as diferenças são consideráveis porque não há (entre outras divergências) vida de casal, nem sua fixação em «lar», com criação simultânea de vários filhos. I2 A
e o gorila
estreita
semelhança
mostra,
entre
outros
genética
aspectos,
que
que 136
existe
entre
a evolução
o
homem
morfológica
e
q
chimpanzé
e a evolução
BIOLOGIA
bioquímica
nos
genes
estruturais
E
são
SOCIEDADE — 1
de
certo
modo
independentes,
processam-se
a velocidades diferentes, o que põe novos problemas sobre a origem e a evolução do homem. As maiores diferenças genéticas entre o homem e os antropomorfos residem provavelmente no sistema regulador, mas é de crer que outros processos também
intervenham que dêem conta das profundas diferenças existentes entre o ser humano
e os primatas mais próximos (v. King e Wilson, 1975, Miller, 1977, Cherry, Case e Wilson, 1978, e Lovejoy, 1981). 8 O próprio «instinto» maternal, sempre invocado como um dos grandes exemplos de impulsos irresistíveis e automáticos, seria um mito (Badinter, 1980). Para esta autora, ele é antes um sentimento que pode ou não existir, pode surgir ou desaparecer, contingências que dependem de causas variadas. «Tout depend de la
mere, de son histoire, de Histoire. Non, il n'y a pas de loi universelle en cette matiere qui échappe au déterminisme naturel. L'amour maternel ne va pas de soi. II est “en plus'» (idem, p. 369).
única e universal. Não existe fundamento natural para o amor
nismo
humano,
uma
conduta
para se admitir unicamente
um
determi-
noutros aspectos do comportamento
há, neste como
Não
maternal, mas
não creio que se possa excluir a biologia.
Penso que o amor de mãe, como tudo o que é humano, terá de ser aprendido, mas as suas raízes vêm do que há de mais profundo na substância biológica humana. Não actua apenas a influência cultural. Trata-se, a meu ver, de um sentimento desenvolvido por acção conjunta de factores biológicos e sociais, co-determinado
pelas duas componentes intimamente fundidas. 14 O antropólogo C. O. Lovejoy (1981) é da opinião que na linha hominideana (Australopithecus-Homo) existiu uma relação muito íntima entre o bipedalismo e a estratégia reprodutora. A sua teoria sobre a origem do homem é baseada nessa dualidade. Como foi referido neste capítulo III, a bipedia surgiu nos hominídeos arcaicos, muito antes do aparecimento dos primeiros homens. Lembro que há 4 milhões de anos Australopithecus afarensis era bípede e tinha já a dentadura algo modificada no sentido humano. Claro que a dita antecedência não é absolutamente certa, porque não podemos excluir a possibilidade de a linha humana existir nessa altura à parte do stock arcaico australopitecóide. Mas não há quaisquer documentos que façam suspeitar seriamente dessa eventualidade, de modo que a asserção guarda toda a sua
A
legitimidade.
bipedia
nasceu,
antes
portanto,
Ora,
do fabrico de instrumentos.
para Lovejoy, os antropóides arcaicos (e os actuais) tinham uma estratégia sexual e reprodutora que determinou o seu reconhecido declínio, o que é bem testemunhado no presente pelo seu reduzido número de espécies e de indivíduos e a sua estreita limitação geográfica. Em linguagem técnica diz-se que eram estrategistas K. Mas eram-no em demasia, e teria sido esta a causa da sua decadência. À estratégia reprodutora pode tomar duas modalidades: ou a espécie produz grande número de ovos,
mas
relativamente
com
pouco
consumo
de energia
(investindo pouco
como
se diz
metaforicamente em ecologia evolutiva), e esta é estratégia r; ou o número de ovos produzidos é extremamente reduzido, mas o investimento biológico-energético com cada ovo, e seu desenvolvimento, é elevado, e temos a estratégia k. Há todas as combinações e intermediários na escala r—k e não refiro outras complicações e factores em jogo. Para efeitos de simplicidade, pode dizer-se que as estratégias r—k traduzem afinal uma relação entre fecundidade e sobrevivência, um equilíbrio em que a
quantidade
de
ovos
produzidos
condições
das
depende
protecção que receberão dos progenitores. Os antropomorfos, como o chimpanzé
ou
o gorila
hostis
do
o orangotango,
ou
e
ambiente
da
apenas
geram um filho cada cinco ou seis anos, o que, segundo Lovejoy, é uma estrategia k excessiva, sendo ela que tem sido a causa da decadência do grupo, e não a acção
humana, remoto,
ainda
certos
que
talvez
antropóides
declínio — enveredaram miocénicos quadrúpedes
a tenha
apressado.
pré-hominídeos
não
Mas,
seguindo
seguiram
a
Lovejoy, mesma
em
passado
estratégia
de
a fundo pela bipedia, separando-se dos restantes auntropóides ou arborícolas, modo de locomoção, com o qual, numa série 137
DA
GERMANO
FONSECA
SAGARRÃO
de movas aquisições orgânicas e comportamentais, desenvolveram uma estratégia menos k, quer dizer — diminuição drástica do intervalo entre os nascimentos (sendo,
o resultado, portanto, a possibilidade de criar mais do que um filho ao mesmo tempo), actividade sexual contínua, atracção permanente dos machos pelas fêmeas, as quais exibiam maior riqueza, individualização e constância dos seus sinais, susceptíveis de agradar aos primeiros (nascimento da simpatia, do amor?), cooperação do macho na vida do casal, com uma fémea que ele escolhe desinteressando-se das outras, o que significa o nascimento da família nuclear, todos estes factores e aquisições a reforçarem-se mutuamente em ciclos de retroacção. Não haveria sucessão linear de causas, nenhuma das aquisições precederia as outras. Tudo a encaixar, a reforçar-se
reciprocamente. Talvez a bipedia esteja na base de todo este desenrolar de processos e combinações para assegurar uma melhor estratégia reprodutora do que a que tinham os outros antropóides quadrúpedes ou arborícolas. O ponto de vista (darwiniano-sociobiologista)
utilidade, que todas as partes do organismo
de Lovejoy é que tudo tem uma
se constituíram
por
que é ela a força criadora de tudo o que determinou a humanação dos
exageros
O
deste
credo
adaptacionista-seleccionista,
ponto forte do autor
referido no
v. meus
que respeita
1982,
à origem
selecção
natural,
(Para uma crítica 1986).
do
homem
é a
modificação da estratégia reprodutora r—k, que é por ela que se assegura a sobrevivência e transmissão dos «bons» genes. Para a edificação da sua teoria, o autor constrói todos os cenários necessários e intermediários. É um facto a bipedia dos hominídeos
arcaicos de há 4 milhões de anos. Também é provavelmente certo que houve evolução do comportamento social e gradualmente à linha da bipedia, a monogamia, a sabemos é dos comos e dos
reprodutor de certos antropóides ancestrais para se passar evolução humana. As aquisições ocorreram, existem: a educação simultânea de vários filhos, etc. O que nada porquês do seu aparecimento, e é isso o que Lovejoy tenta
resolver com a sua teoria, Para mim, a sua maior fragilidade parece-me ser o desinteresse manifestado
pelo fenómeno
da retardação
ontogenética
(e suas
consequências
evolutivas prováveis), retardamento que me parece ser, na realidade, uma das bases
de onde devemos partir para tentar penetrar nos mistérios das nossas origens. Nunca saberemos como se originou o homem, mas os modelos a conceber não poderão abstrair do enorme significado das características da evolução ontogenética dos
primatas superiores não humanos e do homem. 15 V. Portmann (1965), Sahlins (1976),
Perlês
(1987).
Em
fase
mais
recente (paleolítico superior) também não há indicações seguras do passado, mas é provável que os caçadores primitivos tenham vivido numa relativa abundância de recursos, cortada por fases de crise alimentar.
136
CAPÍTULO ONTOGENIA
E SOCIALIZAÇÃO
IV NA
EVOLUÇÃO
HUMANA
Em regra, designa-se por ontogenia o conjunto das transformações embrionárias e pós-embrionárias pelas quais passa um organismo desde
a fase de ovo até atingir a forma adulta !. Abrange todo o desenvolvimento físico, assim como o aperfeiçoamento
dos processos psicológicos
ou comportamentais do indivíduo, em combinação íntima e co-determinante de causas biológicas, de factores físicos do ambiente e de causas
A ontogenia apresenta-se mais ou menos complicada consoante os pos. A ela estão ligados, ou por ela suscitados, numerosos problemas biológicos da maior importância. Um dos mais significativos é o das suas relações com a evolução, em que medida é que a embriologia pode contribuir para o esclarecimento de múltiplos problemas da filo-
genia, como que revelando as prováveis fases da história do desenvol-
vimento evolutivo de uma espécie ou de um grupo de espécies ?. Assim, surge neste quadro o significado da ontogenia da nossa espécie. Qualquer ensaio de explicação da origem e evolução do homem ficará sem dúvida incompleto se não se considerar a sua ontogenia, quer em si mesma, quer numa perspectiva comparativa, no quadro dos mamíferos ou mais especialmente no âmbito dos primatas. Poderá mesmo afirmar-se que é o progresso nos conhecimentos sobre a ontogenia humana que contribuirá para o rasgar de mais amplas perspectivas ao problema da evolução humana, como em certa medida já aconteceu. Para isso dever-se-ão
articular
as
contribuições
vindas
de vários
campos,
num
quadro mais amplo de relacionações interdisciplinares, visando uma síntese onde a ontogenia evolutiva terá o seu lugar. E não deixa de ser estranho que a problemática ontogenética não tenha merecido a atenção que será necessário consagrar-lhe em todo o estudo sobre a origem e a evolução do ser humano. Na verdade, se queremos abordar o problema de saber em que medida é que a biologia poderá explicar certas características do comportamento social humano, sem dúvida que teremos de contar com a ontogenia, que ocupará no seu estudo uma posição verdadeiramente determinante, por exemplo no que respeita aos fenómenos da protecção paterna, nas relações pais X filhos, nas particularidades do crescimento humano, na preparação da forma humana
durante
a vida
embrionária,
etc. 139
GERMANO
DA
FONSECA
O problema do comportamento cífico, exige que se faça uma ainda
portamento
animal.
de complicação
tismos.
A natureza
evolutiva:
reflexos
inatos.
social humano, se bem que espeque breve articulação com o com-
do comportamento
na base,
Nas
SACARRÃO
nas formas
formas
mais
varia
simples,
elevadas
com
meros
em
o grau automa-
organização,
mecanismos instintivos complexos e aprendizagem, com maior ou menor desenvolvimento de um ou outro destes componentes. No homem, plena emergência da razão. que de resto coexiste nele com alguns processos inatos e uma vastissima capacidade de aprendizagem. Isto é uma esquematização um tanto grosseira da realidade, porque (por exemplo) até nas formas simples, unicelulares, há alguma capacidade para aprendizagem, e há animais complexos, como os insectos e as aves, onde dominam os esquemas estereotipados de condutas herdadas. De modo que a complexidade de organização não está necessariamente ligada a capacidade elevada de modificação do comportamento inato por aprendizagem. Por outro lado, torna-se difícil hoje considerar os instintos como entidades bem definidas e fixas, inteiramente de origem hereditária nos seus pormenores, de tal modo existe interacção de causas internas e externas, com introdução, portanto, nos esquemas inatos de múltiplas
variações devidas à experiência do animal. Os comportamentos
instin-
tivos são, então, mais ou menos modificáveis, e a própria plasticidade,
por mais ampla que seja, possui em si mesma uma base hereditária. O psiquismo humano provém de uma longa evolução que enraiza no psiquismo muito rudimentar dos primatas sub-humanos. Não quero significar com isto que a actividade mental e o comportamento do homem nos seus aspectos tão variados (e variáveis) apenas resultem do aperfeiçoamento do psiquismo grosseiro dos primatas da sua linha ancestral. Pelo contrário, é provável que a parte mais importante e original da evolução psíquica tenha decorrido já na fase propriamente humana
da
evolução,
mas
ainda
muito
arcaica.
Por
outro
lado,
não
tem sentido dizer-se que o ser humano foi marcado na sua origem por um salto brusco e prodigioso que passou o psiquismo grosseiro do animal para a espiritualidade que assinalou o advento do primeiro homem, portador da razão superior, produto da mutação misteriosa a marcar
um
destino transcendente.
Como
já referi anteriormente,
não
é nada provável que se tenha dado um tal salto evolutivo do não-homem
para o homem (v. o cap. HI). Mas o nosso comportamento enraíza ainda mais fundo, no comportamento dos mamiferos, e mais longe numa base comum
aos vertebrados
superiores. As homologias de partes e funções do encéfalo e do cérebro e a
consideração
das
suas
diferenças
entre
os
vários
grupos
anfíbios, répteis, aves, mamíferos), e destas em relação superiores e ao homem, obriga a essa conclusão. Mas uma 140
(peixes,
aos primatas tal conclusão
BIOLOGIA não significa que
a mente
E
SOCIEDADE — 1
humana
seja muito
simplesmente
a amplia-
ção de faculdades existentes nos outros primatas e nos outros vertebrados *. Pelo contrário. À complexificação do cérebro humano fez surgir novas
qualidades
existem
quaisquer
em
do homem longo
uma
e níveis de integração e de adaptação
outros vertebrados e que conferem
que
ao cérebro
posição única. Às fases intermediárias perderam-se
encadeamento
histórico
do nosso passado
não
de mamífero
no
e de pri-
mata.
A organização corpórea e a conduta do ser humano nasceram ambas de um longo processo histórico de milhões de anos. A visão do passado
(aquela
organização eventos
que
actual
evolutivos
nos
dos
é permitida
seres
capitais,
pelo estudo
vivos) tais
como
dos
mostra-nos
que
a origem
dos
fósseis
na
e pela
ausência
eucariotas
de
e dos
metazoários, a origem dos vertebrados, a formação de patas nos primeiros tetrápodes, a passagem da adaptação à vida aquática para adaptação à vida terrestre, à génese do ovo terrestre de casca, da pla-
centa, e de tantos outros aspectos da evolução ontogénica, anátomo-fisiológica e organopsíquica dos vertebrados, sem estes e igualmente uma infinidade
de outros
acontecimentos,
o homem
não
se teria realizado,
animal que é, sem dúvida, o resultado, a tantos títulos originalíssimo, dessa evolução. Como criatura histórica, como o são todos os outros organismos, não seria o que é sem as transformações ocorridas numa longuíssima
série de antepassados,
cujas estruturas e funções
ram condições para a sua emergência. O corpo do homem
marcas
profundas
desse
tetrápode, de pré-amniota,
longo
passado:
de cordado,
constitui-
conserva as
de vertebrado,
de
de amniota, de mamífero, de primata, numa
sucessão de formas das mais remotas para as mais recentes. Ora, sendo a evolução um processo dinâmico em que entram em jogo causas materiais, em permanente conjunção e interpenetração de factores biológicos e ambienciais, poder-se-á talvez então dizer, numa
análise retrospectiva,
que o homem é um ser necessário (no sentido de que não seria o que é sem o encadeamento histórico que o originou), mas não predestinado. Claro que a biologia não pode provar a não predestinação do ser humano, mas se admitirmos que a evolução obedece a um projecto, logo entramos em grave conflito com as aquisições científicas. O homem é um produto de história, não do acaso. Na ausência da história (e da selecção associada ao seu encadeamento) ou os seres vivos se consti-
tuiriam por simples acaso (o que é em extremo improvável), ou haveria
que admitir a acção de causas metafísicas, criadoras e orientadoras de toda a evolução, até aos mais ínfimos pormenores, o que não está no
ambito da ciência (v. meu 1985). Não podemos substituir a objectividade da metodologia científica pela metafísica. A hipótese da não predestinação do ser humano é mais fecunda do ponto de vista científico do que a crença no seu destino transcendente e programado.
|
141
GERMANO
DA
FONSECA
É útil neste passo apresentar
alguns
SACARRÃO
pontos
respeitantes
ao com-
portamento dos vertebrados superiores, a evolução do qual serviu de base ao desenvolvimento ulterior do psiquismo dos primatas e do homem. Os vertebrados superiores (aves e mamíferos) mostram significativas diferenças no que respeita ao comportamento, quando se considera a amplitude da sua modificabilidade, a capacidade de aprendizagem e de resolver problemas, o que põe necessariamente a questão
magna da emergência da iniciativa individual e da aptidão à reflexão, O comportamento nas aves é dominado por mecanismos estereoti-
pados. Esta preponderância de processos inatos não significa que estes animais não mostrem inúmeros exemplos de complexos ajustamentos ao meio e de múltiplas reacções na aparência racionais. São susceptíveis de aprendizagem e possuem, sem dúvida, capacidade para desenvolverem uma maior ou menor iniciativa individual perante as situações que se lhe oferecem — mas não é esta, de facto, a tónica do grupo. Não estando, em regra, nas aves o conteúdo emocional da conduta associado
a
uma
«razão»
(como
sucede
nos
mamíferos
superiores),
ele atinge, talvez por isso, um máximo de intensidade, que provavelmente constitui uma compensação para a incapacidade (relativa) desses animais em se ajustarem a situações novas do ambiente com aquela ampla plasticidade que o comportamento de forte raiz inteligente con-
fere. Tudo se passa como se as aves tivessem um profundo interesse emocional pelos seus ovos e filhos e por tantos outros aspectos do seu
mundo; mas tudo leva a crer que esse interesse é uma fixação predominantemente de natureza instintiva; é por assim dizer sentido e nãosado*.
É
um
comportamento,
em
suma,
«irracional»
e
de
forma
nenhuma, como justamente pensou Julian Huxley, «um instinto intimamente geminado com a razão, a memória, o amor individual e a consciência do passado, do presente e do futuro, como veio a suceder
com a atracção que os humanos sentem pelos filhos» *. Nos
mamíferos,
contrariamente
às aves
e aos
outros
animais,
O
comportamento tende acentuadamente para uma libertação em relação aos automatismos do instinto, tende para o desenvolvimento da iniciativa e do arbítrio individual, qualidades básicas intimamente ligadas ao comportamento inteligente. Esta abertura à liberdade e à iniciativa individual (à formação da personalidade), de tão extraordinárias consequências para o nascimento do fenómeno humano, dependeu, em grande parte, de uma
evolução
do encéfalo, particularmente
dos
hemisférios
cerebrais, onde novas regiões se formaram, responsáveis por essas qualidades. Daqui a sua importância fundamental como base de onde partiu a evolução para o cérebro do homem, onde as tendências refe ridas atingiram o ácume e se criaram novas expressões é novas imagens
e interpretações do mundo, sem paralelo, pela quantidade e natureza, nos animais não humanos. 142
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — 1
Na nossa espécie, a protecção da progénic apoia-se numa longa evolução ontogenética dos amniotas, a qual de certo modo prolonga. Amplamente liberta dos automatismos do comportamento, a protecção
exercida pelos pais realiza-se no primata humano num plano consciente e actua como um factor fundamental movimento evolutivo, de perspectivas e o homem, e titubeante
da evolução do homem. Neste tão largas para os mamíferos
o emocional ligou-se ao racional, o qual, ainda confuso em muitos mamíferos, mas menos nos antropomorfos,
começará a patentear-se com maior nitidez e intensidade nos primatas infra-humanos que antecederam vicinalmente os homens mais arcaicos, e mais completamente depois, para finalmente atingir a sua plena expressão
no
homem
moderno,
que,
provavelmente,
continuará
no seu
processo de mudança.
1.
Crescimento
dos
primatas
e competição
intra-uterina
Não podemos deixar de ligar os fenómenos relativos ao crescimento humano com o que se passa nos outros primatas. Assim, é significativo que o retardamento do crescimento e da maturidade seja uma peculiaridade não só do homem como também de muitos outros primatas. Além
disso, esse crescimento
é caracterizado, nuns e noutros, por um
rápido incremento na puberdade, após um longo período relativamente equilibrado. Relembremos, para comparação, que nos outros mamíferos a maturidade sexual é atingida durante o crescimento activo, ou logo após este ter terminado. Exemplos do primeiro caso encontram-se em numerosos pequenos roedores e do segundo em coelhos e diversos ruminantes (dados segundo Tanner; Young, 1971). Várias consequências no plano social resultam deste tipo de prolongado crescimento nos primatas. Por um lado, parece haver vantagem que os jovens atravessem um longo período, que, pela sua duração, permita uma aprendizagem eficaz por meio de jogos (no homem sendo mais
duradoura,
mais
rica, mais
elaborada),
inclusivamente
do ponto
de vista da disciplina, da obediência, da assimilação das regras sociais, etc. Sendo os jovens frágeis e de pequeno tamanho, estes objectivos são facilmente atingidos, tanto mais que é diminuto o número de crias
(em regra, um filho por cada parto). Por outro lado, há maior economia de alimento em sustentar jovens de pequeno tamanho durante o longo tempo de crescimento do que se atingissem rapidamente pesos próximos dos do adulto e sendo ao mesmo tempo, por assim dizer, improdutivos por viverem uma prolongada fase de aprendizagem. Quanto ao grande arranque do crescimento na idade púbere, ele produz rapidamente
adultos
dominadores,
mais novos, obtendo
que tomam
sob o seu cuidado a protecção
a sua sujeição. 143
dos
É curioso o facto de o crescimento
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
nesta fase ser mais acentuado nos machos do que nas fêmeas, o que está
talvez de acordo com a função dos primeiros na hierarquia do sistema social. Sem querer reduzir estes fenómenos complexos a simples mecanis-
mos neuro-hormonais, parece, todavia, que o conjunto formado pelo sistema hipotalámico-hipofisário e estrogéneos seja em parte responsável] pela sua causalidade e regulação, associado na base a um certo determinismo geneticamente programado. A ampla intensificação destes fenómenos de retardamento de crescimento no homem marcou decidi-
damente
a peculiaridade
da
sua
evolução
e do
seu
modo
de
viver
social, como terei a ocasião de expor mais adiante. Outro aspecto da ontogenia dos primatas, com significado para o nosso ponto de vista, é o do número de filhos por parto. A necessidade de protecção exigida pelo bebé humano para sobreviver, os longos cuidados impostos e a sua demorada aprendizagem seriam incompatíveis com a ocorrência de partos múltiplos. Segue-se daqui ser legítimo concluir que o retardamento do crescimento não poderia dar-se num mamífero que tivesse normalmente diversos filhos de cada vez. Ora a espécie humana tem, em regra, um filho por cada parto e esta condição do primata humano é, também, como
tantas outras, uma
característica dos
outros primatas. Donde se pode inferir que a uniparidade tenha sido um carácter já existente nos primatas não humanos que originaram o símio humano. A maioria dos mamíferos é multípara, sobretudo os de pequenas dimensões (dez, quinze e mais filhos de cada vez nos roedores, por exemplo). Nascimentos múltiplos ocorrem na quase generalidade dos casos nos outros vertebrados e nos invertebrados, aqui nos anfíbios e peixes frequentemente com posturas de centenas, milhares e mesmo milhões de ovos de uma só vez. Haldane especulou sobre a relação entre a rapidez de crescimento e o número de embriões, sugerindo haver forte pressão de selecção intra-uterina. À concorrência pré-natal conduziria, segundo o mesmo autor, numerosos embriões a abortar ou a serem reabsorvidos, de modo
que haveria selecção a favor daqueles que mais rapidamente se desenvolvessem
e
diferenciassem,
sendo
a
intensificação
do
crescimento
transferida para o período pós-natal. Daqui pode talvez depreender-se que a longa fase de juvenilização, que provavelmente deu origem ao primata
humano,
com
as suas consequências
sobre
o desenvolvimento
de um cérebro plástico, sede do pensamento conceptual e motor da linguagem articulada, nunca poderiam evolver em mamíferos de partos múltiplos, dado que, neste caso, a tendência seria exactamente a inversa (crescimento breve) devido à competição intra-uterina dos embriões (pelo espaço, por melhor nutrição, etc.). De resto, o retardamento do
crescimento e da maturidade, matas,
também
não
seria
que caracteriza aliás o grupo
provavelmente 144
possível,
se
todos
dos prios
seus
BIOLOGIA
representantes
não
humanos
E
SOCIEDADE — |
(lémures,
macacos,
antropomorfos)
não
dessem em regra ao mundo um filho por cada parto. Verificamos aqui, uma vez mais, que o que faz o homem resulta em grande parte de imposições já esboçadas, com maior ou menor desenvolvimento, nos primatas não humanos.
2.
Ambiente físico do ser humano
e
social
no
desenvolvimento
Em geral, considera-se que o desenvolvimento do ser humano começa no momento em que se constitui o ovo. Todavia, a biologia não pode marcar um começo em termos absolutos, porque as influências sobre o desenvolvimento do futuro organismo já se exercem antes da fecundação, no ovário. E se é legítimo assinalar o começo individual com a fecundação, atendendo a que é a partir daí que se faz a participação dos genes do pai (veiculados pelo espermatozóide), a verdade é que os determinantes do desenvolvimento e o dinamismo organizador do germe se estabelecem antes da ovulação e da penetração do espermatozóide, no decurso da importante fase conhecida por ovulogénese *. Do ponto de vista biológico, as potencialidades da vida individual, o que em
em do aí ser
parte
orientará
o
seu
destino,
residem
não
só
no
ovo
virgem
como
elementos seus precursores. No cap. x1 (2.º vol.) voltareià questão começo da vida do ser humano a propósito do problema do aborto, e se verá que a definição do momento em que começa a vida de cada humano pertence mais ao domínio da ética, do direito e das preo-
cupações metafísica e teológicas.
O desenvolvimento do ser humano fornece inúmeros exemplos de como a realização do indivíduo se processa por uma solidariedade permanente
e íntima
da constituição biológica
(genes, células, tecidos
e suas propriedades bioquímicas, etc.) e das condições do ambiente externo, da qual resulta em cada momento a configuração morfológica e a expressão funcional do organismo e das suas partes. O primeiro ambiente (externo) do ser humano é intra-uterino, tal como também lhe são exteriores todas as condições do ambiente interno da mãe, com
o qual está em contacto por via sanguínea durante a gestação. Por outro lado, a acção do mundo exterior sobre o organismo da mãe e sobre o seu comportamento não deixam de influenciar, para melhor ou para pior, o ser em desenvolvimento. Entre as condições desfavoráveis ocupam lugar proeminente a má nutrição, as doenças infecciosas, as perturbações
emocionais,
traumatismos
vários,
fadiga
excessiva,
intoxicações
diversas, etc. Impõe-se, por isso, a mais extrema prudência no que respeitaa tomar medicamentos durante a gravidez, devendo assegurar-se us futuras mães um viver acautelado e saudável, com boa dieta aliBibl.
Univ.
49 —
10
145
GERMANO
DA
FONSECA
SAGARRÃO
mentar. À não ser por absoluta necessidade, e sob controlo de médico especialista, a futura mãe não deverá absorver qualquer droga, mesmo ligeira. O embrião ou o feto (assim chamado a partir do terceiro mês de
gestação)
deve
ser
protegido
de
possíveis
acções
de
substâncias
químicas, radioactivas ou não, dos raios X, etc. Todos os medicamentos que
tomar
podem,
em
princípio,
atravessar
a placenta
e
introduzir-se
no embrião ou no feto. E como praticamente nada se sabe de concreto sobre a possível acção da quase totalidade das drogas que se ingerem
(como
actuam
e o que
provocam),
a mais
elementar
prudência
se
impõe. O caso da talidomida é elucidativo. Como os conhecimentos sobre a farmacologia fetal são muito deficientes, deve encarar-se sempre com
a maior reserva a administração
de medicamentos
aparentemente
inofensivos. São conhecidos acidentes no recém-nascido devidos a diversos medicamentos (efeitos de sulfamidas, de antibióticos, etc.). Mães viciadas por droga (morfina, heroína, metadona, LSD, etc.) causam diversos danos ao recém-nascido, alguns deles de muita gravidade, como a «síndrome de privação», que pode provocar a morte. têm como
Além
dos factores acima
i
ente importância sobre o desenvolvimento a idade da mãe
enunciados,
e o número
período mais favorável para uma
outros factores
do ambiente
da criança, tais
de filhos que já teve. Parece
mulher ser mãe
que o
se situa em média,
entre os 22 e os 28 anos. Todas as hormonas indispensáveis ao desenvolvimento
feminino
do
está
novo
nas
ser
atingiram
melhores
um
condições
nível
para
óptimo.
a
O
função
organismo
reprodutora.
Antes dos 17 anos nenhuma destas condições se encontra plenamente realizada. Os acidentes de gravidez
(nado-mortos,
etc.)
são mais fre-
quentes antes desta idade. Também após os 29 anos de idade se eleva lentamente a percentagem de acidentes de parto, assim como de riscos para o feto e para a criança. É após os 35 anos de idade é rápido o aumento
de
recém-nascidos
anómalos,
em
particular
de
crianças
so-
frendo da síndrome de Down, mais vulgarmente conhecida por «mon-
golismo», anomalia que é hereditária. Também parece haver relação entre o número de partos que teve uma mulher, a sobrevivência da
criança e a frequência de anomalias fetais. Numa longa série de partos,
os primeiros e os últimos filhos têm menos probabilidades de sobreviver do que
os restantes
irmãos.
Nas
primíparas,
em
média,
são
menores
o peso e a estatura das crianças do que nas multíparas. Estes e outros dados são de ordem estatística, de modo que há grande número de crianças que nascem depois de a mãe ter 35 anos de idade, ou que são
os primeiros e os últimos de uma série de filhos, e que todavia gozam de perfeitíssima saúde à nascença. É por isto, e por razões de liberdade
da pessoa, que tais dados não devem em si mesmos constituir um obstáculo à maternidade antes ou depois da melhor fase da vida para procriar. 146
BIOLOGIA
Os
genes
regulam
criança
adquire
melhor
em
tantemente
E
SOCIEDADE — 1
diversos
reacções
comportamentos
e formas
de
e impulsos,
agir que
se definem
mas cada
a vez
face dos estímulos físicos, psicológicos e sociais que consrecebe
mundo
do
com
exterior,
os
quais
se
o organismo
combina, se interpenetra. Ora estes componentes adquiridos são muito mais amplos na espécie humana do que nos outros animais, não devendo
por
isso
transposição
o homem
para
humano
o comportamento
interpretar-se
simplesmente
se passa nos animais, mesmo
do que
pela que
estes sejam os outros primatas, apesar do indubitável parentesco que têm com o ser humano.
(a chamada
do sistema nervoso
do desenvolvimento
O começo
neurulação) produz-se no embrião humano do vigésimo primeiro ao vigésimo nono dia de vida intra-uterina. Ainda que existam influências intra-uterinas sobre o seu desenvolvimento, é todavia depois do
nascimento que o ambiente é decisivo para a diferenciação rapidíssima
do sistema nervoso durante o primeiro ano de vida pós-natal, prolongando-se ainda o seu desenvolvimento por todo o período da infância. Verificou-se no gato e em macacos que certas estruturas cerebrais e cer-
tos grupos de neurónios estão programados para responder só de certa maneira a determinadas formas. «Cada grupo de neurónios trata provavelmente
um
de
aspecto
muito
preciso,
neuronal
e o conjunto
do
córtex cerebral integra estas informações diferentes fazendo um tratamento estatístico. Ora o desenvolvimento deste sistema não parece ser determinado geneticamente, dependendo muito das estimulações as quais é submetido. Isto foi demonstrado com experiências de restrição selectiva do espaço visual numa “fase crítica” do desenvolvimento» (Pierre Royer). No que respeita, porém, à espécie humana, existem ainda profundas lacunas nos conhecimentos sobre o desenvolvimento do sistema nervoso. É uma questão ainda pouco conhecida e que de futuro deve revelar factos de grande importância. O cérebro humano, para se diferenciar normalmente, poder analisar o mundo e responder-lhe adequadamente, necessita desse mesmo mundo. É preciso ter presente este facto para se compreender a interpenetração do inato e do adquirido, e a extrema dificuldade ou mesmo a impossibilidade de separar o que é de um ou de outro domínio. A partir aproximadamente dos 20 anos de idade, o ser humano perde diariamente numerosos neurónios (elementos estes que não se multiplicam), mas este facto não significa que a diferenciação neuronal não prossiga em certos aspectos até mais tarde e que não se estabeleçam
novas
e
múltiplas
conexões”.
Aliás,
a
reserva
de
neurónios
psicomotores cerebrais é tal que o cérebro pode ser perfeitamente funcional e fonte de novas ideias e de positiva adaptação ao real até idades por vezes avançadas, como o demonstram
e nas ciências. Além
inúmeros exemplos nas artes
da hereditariedade, os factores psicossociais têm 147
GERMANO
um
papel
extremamente
DA
FONSECA
importante
no
SACARRÃO
envelhecimento
precoce
tardio das funções centrais do sistema nervoso. No homem,
ou
a sua acção
é provavelmente muito mais significativa do que nos outros mamíferos. Da complexa interacção da ontogenia e dos factores físicos e sociocultu-
rais vai emergir a personalidade biológica, o carácter e o modo de pensar, de sentir e de agir de cada indivíduo perante o mundo. Pouco se conhece das influências particulares ambienciais, do modo como modelam a personalidade de cada indivíduo, da sua maior ou menor importância no processo de realização do ser humano. O que parece certo é que cada indivíduo nasce com potencialidades inatas «indefinidas», não expressas na sua natureza e significado. Só se definem em contacto e em contraste com o ambiente físico e social imediato,
e isto tanto se aplica aos aspectos físicos como materiais. A sociedade e todo o conjunto do ambiente e do estilo de vida onde o indivíduo está mergulhado desde que vem ao mundo desempenham, assim, um papel de primeira plana na revelação e desenvolvimento daquilo a que poderá então chamar-se, por comodidade de expressão, natureza humana, não que esta seja algo de fixo e de aclarado, mas antes o que em cada momento exprime o modo de ser peculiar do homem quando lhe é permitido o livre e saudável desabrochar das suas tendências imensas para a educabilidade.
Já vimos que a adaptabilidade do homem lhe permitiu sobreviver através de toda a sua longa história, cujos antecedentes infra-humanos podemos situar talvez no nível ramapiteco-australopiteco. Vegetariano ou omnívoro, subsistindo a comer insectos, ou apenas frutos, vive com todas as dietas, em todos os lugares, sob todos os climas e altitudes, solitário ou em compactas aglomerações, resistente a todos os regimes, abraça as crenças religiosas mais diversas, e crente, ateu ou agnóstico, não serão estas diferenças de credo que afectarão a sua sobrevivência
serenidade; mais
diversas
exprime-se culturas.
e física do ambiente,
nas mais Quanto
variadas maior
maior riqueza
línguas,
fragmenta-se
for a diversidade
individual
ou a sua
nas
sociocultural
se revela. A monotonia
e uniformização são fataisà livre expansão das múltiplas e inesperadas
expressões da personalidade humana. As sociedades que entorpecem e se fixam em esquemas únicos e despóticos são fatais a si próprias, rapidamente se desagregam; não permitem
a ampla e fecunda diversi-
dade humana, fonte de criação e de liberdade. Cito aqui a metáfora de René Dubos, defensor incansável da diversidade do ambiente social,
quando se refere ao «mais importante objectivo» que é o de «proporcionar numerosos tipos de terreno que permitirão o germinar de semena ideia de que natureza humana é uma boceta cheia de misteriosas e magníficas propriedades que apenas esperam por serem reveladas. 148
dopia tj asi
tes que ainda estão dormentes na natureza humana». A metáfora talvez não seja inteiramente feliz pela simples razão de que parece veicular
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — 1
Em certo sentido poderá em parte ser isso, mas a natureza humana, se assim queremos chamar-lhe, só surge realizando-se, e apresenta-se sempre como coisa incompleta. Na sua origem não estão enigmáticos primórdios
do espírito, nem configurações ou «programas» a aguardarem desenvol-
vimento e expressão. Mas Dubos tem decerto razão ao chamar a atenção
para
a necessidade
de
se assegurar
a diversidade
do
ambiente
social.
Se pouco sabemos de como é que as influências externas orientam
e desenvolvem a formação da personalidade, do temperamento e da inteligência do indivíduo, não se duvida de que essas acções do meio
social são decisivas, incluindo as particularidades da paisagem imediata, rústica ou urbana, dos objectos, da configuração do meio físico envolvente do indivíduo e dos seres que o habitam. É durante os primeiros anos de vida pós-natal que estas influências adquirem enorme importância, exercendo-se num corpo incompletamente diferenciado, com um cérebro plástico à nascença, capaz de responder e adaptar-se de muitas maneiras ao ambiente e aos estímulos que dele recebe, adqui-
rindo múltiplas modelações, até que com os anos perde a flexibilidade e se «fixa». O mesmo
acontece durante a infância às estruturas anatómicas, à
fisiologia do organismo, aos esquemas da conduta. Escreveu René Dubos (op. cit.) que «uma criança criada em Roma fica constantemente exposta à paisagem, horizontes, sons e odores característicos da sua bela cidade; o seu desenvolvimento é condicionado pelos estímulos
procedentes dos palácios, igrejas, parques, etc. Ela pode não se dar conta das respostas que nascem nela por efeito dessas repetidas experiências, mas formarão parte da sua constituição biológica, que a torna permanentemente
diferente do que ela seria se o seu desenvolvimento
tivesse ocorrido em Londres, Paris ou Nova Iorque. Ainda que eu tenha despendido quase dois terços da minha vida nos Estados Unidos, os meus gostos, atitudes e respostas continuam a ser condicionados pelas recordações dos estímulos que modelaram o meu ser físico e biológico durante o tempo em que cresci numa pequena aldeia francesa e mais tarde em Paris. Na verdade, a criança é o pai do homem» *. Em resumo: do confronto do programa genético e do organismo plástico humano infantil com
os múltiplos estímulos e acções do ambiente, e da interacção
e interpenetração destes componentes, por um lado, o organismo flexível, munido o ambiente
de
diversas
físico e social,
potencialidades nasce,
e, pelo
outro,
o ser humano,
o seu
de realização,
gradualmente,
recorte do mundo e o seu mundo próprio. Com o nascimento, o ser humano faz a primeira e dramática experiência de vida independente do ponto de vista biológico. Não inteiramente,
claro
está
(a
sua
dependência
dos
adultos
é ainda
intensa),
mas em todo o caso sob condições novas em relação à vida intra-uterina, onde a sua dependência biológica era total. Após o nascimento, com 149
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
efeito, fica sujeito a condições totalmente diferentes. Do meio líquido, onde estava, passa a viver em meio aéreo e com autonomia respiratória.
A transição é brusca e violenta do ponto de vista ecológico, pois se a sua vida intra-uterina decorria em meio aquático (líquido amniótico), passa de repente a estar mergulhado numa atmosfera e a respirar pelos pulmões. Antes recebia o oxigénio e os alimentos do organismo materno, por via da circulação sanguínea em ligação com a mãe; agora recebe directamente o ar, e o seu aparelho digestivo passa a receber o alimento e a entrar em pleno funcionamento. Antes estava protegido e em embiente
termicamente
constante,
favorável
ao
seu
desenvolvimento.
Depois de nascer, sofre repentinamente o embate de um ambiente de temperatura variável e de valores em regra mais baixos do que aqueles que suportara. Estas bruscas transformações no seu ambiente são acom-
panhadas de novos e numerosos factores hostis que ameaçam constantemente a sua sobrevivência: doenças, condições familiares e socioeconómicas de
desfavoráveis, múltiplos acidentes, etc. Da calma, monotonia e segurança uterinas passa para um mundo aventuras e perigos. O modo de vida aéreo exige transformações
e novas adaptações complexas no plano orgânico e psicológico, na função cardiorrespiratória, na função digestiva, renal, etc., com implantação de acções reguladoras. Tudo isto torna o recém-nascido autónomo
em relação à mãe, mas tal autonomia é apenas relativa: se desaparecem muitas
dependências, outras se estabelecem.
mente
autónoma,
nem
por
isso deixa
de
A criança,
constituir
se é organica-
novos
elos
com
a
mãe. Depende dela na alimentação, na protecção, aquecimento, no desenvolvimento psíquico, realizando-se como ser social e desabrochando a sua humanidade ao contacto com o seu meio social, nas relações com os outros. Realiza-se por socialização, havendo neste processo períodos mais favoráveis do que outros. A criança é particularmente influenciável, segundo parece, no período que está compreendido entre o nas: cimento e cerca dos 5-6 anos. Quando vem ao mundo, o bebé humano não anda nem fala; é incapaz de procurar alimento, de compreender o que o rodeia, etc. Não pode sobreviver pelos próprios meios, Depende totalmente dos cuidados maternos e é por intermédio da mãe (e em geral dos seres humanos que a rodeiam) que a criança ensaia os primeiros contactos com o ambiente físico e sociocultural. O primeiro ano de vida é de fundamental impor tância para o seu desenvolvimento.
Como
que
prolonga
uma
vida em-
brionária insuficiente para atingir as características essenciais da nossa condição de seres humanos, que só surgem em regra mais ou menos expressos para 0 final, ou pouco depois, desse período; a posição erecta, a linguagem articulada conceptual e a manipulação de instrumentos (ver, adiante, a p. 156). Com efeito, no primeiro ano de vida o crescimento
tem um
aspecto embrionário:
faz-se em 150
ritmo rápido
(triplica pelo
BIOLOGIA menos o peso da nascença)
E
SOCIEDADE — 1
e o cérebro e os órgãos dos sentidos desenvol-
vem-se ampla e intensamente para a percepção e compreensão do mundo imediato. À criança adquire a capacidade de estar em posição erecta: esboçam-se os primeiros ensaios de linguagem articulada, conforme ao modelo do seu meio social; e tenta o manejo de objectos. Estas características, para se desenvolverem normalmente, exigem aprendizagem, contactos com outros seres humanos, não só no primeiro ano como nos seguintes. Sem contactos e influências humanas, a criança não falará, não andará em posição erecta, não desenvolverá a mente. Perturbações
graves do ambiente sociocultural e económico têm, por isso, consequên-
cias nefastas sobre o desenvolvimento da criança, como sejam, por exemplo, falta de afeição e de carinhos, que pode comprometer de maneira mais ou menos
grave
todo o curso da existência.
Parece
estar provado
que um ambiente de grande calor humano e de constante afeição pela criança tem influência benéfica não só sobre a sua saúde psíquica como até sobre
o seu harmonioso
desenvolvimento
e sadio
que
físico, ainda
haja significativas diferenças individuais.
Numerosos estudos têm sido empreendidos para averiguar quais as interacções que se estabelecem na união dos pais aos filhos, e os comportamentos complicados que se desenvolvem entre eles, trabalhos que mas sobretudo aos outros primatas
não respeitam só a espécie humana,
e demais mamíferos, onde obviamente as possibilidades de observação e experimentação
são imensamente
mais
amplas. Um
facto que parece
bem estabelecido respeita, por exemplo, aos casos de separação forçada.
Para grande parte dos jovens mamíferos a separação forçada da mãe é
uma
traumática
experiência
os macacos
e desorganizadora
(Cairns,
1977).
Entre
(Rhesus), esta separação causa sérias perturbações, e não só
no filho como
na mãe e nos indivíduos que presenciam a separação. naturalmente
porque
é benéfica
para
ambos,
ao desenvolvimento
não
só da esfera emocional
A ligação pais-filhos
aos
primeiros permite a ampla aplicação dos seus processos afectivos, é uma estimulação
como
da
inteligência, e um meio de estruturação social. E sem dúvida que é decisiva para a sobrevivência dos filhos. Na nossa espécie pode haver uma certa adaptação ao isolamento, mas posteriormente pode já não ser
possível a adaptação a um ambiente social normal, enquanto nos macacos haveria um pronto ajustamento às condições normais. O bebé humano pode sofrer graves perturbações se for separado da mãe, quer o apartar
se faça
aos
6-7
meses,
quando
a mãe
é reconhecida
como
objecto de amor, quer mesmo mais cedo, quando se constituem os primeiros laços com a mãe. Como refere o psicólogo René Zazzo, a criança emagrece, e às perturbações de ordem física vêm juntar-se outras de natureza psicológica. O seu desenvolvimento psicológico é como que suspenso e pode mesmo regressar. À criança acusa, portanto, muito precocemente a perda de um ambiente favorável ao seu desenvolvimento 1514
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
normal, físico e psicológico, um ambiente feito de calor, de sons, de odores, de balouçar, etc., que lhe é dado pela mãe. Estes factos não se apli-
cam a todas as crianças. Por razões que falta averiguar ao certo, há crianças que não sofrem as consequências dramáticas de uma separação materna.
Existem
várias fases de sensibilidade
da criança
até aos
3-4
anos.
Entre os 18 meses e os 3 anos seria um período privilegiado de sociali-
zação, durante o qual «os pais podem fazer do seu filho exactamente o que eles esperam», como escreveu Michele Masson. A meu ver, isto é um exagero da autora, que não parece dar-se conta de que a fase de plasticidade infantil tem os seus limites impostos pela constituição biológica da criança, que não é um objecto de cera moldável aos desejos da sociedade, e ainda bem que assim é. Mas não resta dúvida de que após um período de extrema educabilidade a criança atinge a fase de maturação cerebral (entre os 4 e os 6 anos), a partir da qual a flexibilidade vai decrescendo e a diferenciação cerebral, os modelos recebidos durante a sua formação, vão determinar em grande medida as escolhas e as reacções do indivíduo perante o mundo. Por outro lado, o processo
de
socialização
é,
também,
fundamental
nos
primeiros
dezoito
meses de vida pós-natal. A humanidade do homem, o seu comportamento como ser humano, tudo o que sobretudo o demarca do animal, tem
de ser aprendido.
que
a cultura
Isto não significa que haja
actue isoladamente,
mas
antes
separação
(como
tenho
de causas,
insistido)
que a realidade é a participação conjunta do biólogo e do social. Como deixei acentuado no cap. 1, a preparação da originalidade humana é, nos seus traços fundamentais, feita precocemente na ontogenia, no decurso do desenvolvimento embrionário e fetal. O comportamento adquirido passou a ser a marca profunda do homem, o que enriquece o seu presente e prepara o seu futuro. À cultura e a socialização são as fontes da liberdade, que permitiram ao homem subtrair-se às fortes constrangências do seu passado animal — não inteiramente aos limites e obrigações da biologia, mas outorgando-lhe a faculdade de escapar às imposições dos instintos e aos determinismos estritos dos seus genes. O domínio da sexualidade da criança tem recebido também uma particular atenção. Esta ontogénese da sexualidade é extremamente complicada. Depende de numerosos factores (genéticos, hormonais, somáticos, psicológicos, sociais).
Como
tudo o que
respeita
ao domínio
humano, o comportamento sexual é fortemente influenciado pela edu-
cação e pelos modelos sociais. Basta que ponderemos a enorme influência da cultura e do ambiente social, com o seu cortejo de estímulos, de ideias e valores morais dominantes, para se avaliar do imenso fosso que separa a complicada esfera da sexualidade humana da sexualidade dos outros mamiferos. Sabe-se, também, que as hormonas sexuais actuam na infância e que na puberdade têm os seus começos de actividade mais 152
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —1
cedo do que outrora, como veremos adiante, Estes estudos sobre a ontogénese
da
sexualidade
apresentam
ligações
com
outros
aspectos
do
desenvolvimento físico e mental, e as pesquisas neste campo abrem cada vez mais novas perspectivas. A
vida
da
criança,
até
ao
ano,
revela
factos
interessantes.
Por
exemplo, antes do final do primeiro mês de idade a criança é capaz de distinguir o odor emanado pela mãe, pelo seu vestuário, o qual não confunde com o de outra pessoa. À voz materna, os sorrisos, o calor, os odores que dela difundem, o contacto físico com ela, a quantidade de afecto recebido, tudo isso, que constitui um ambiente de amor e de
segurança, tem um efeito tranquilizante sobre o pequeno ser, e é neste limitado mundo que se realiza pouco a pouco a formação da personali-
dade própria, e isto já a partir do primeiro mês de vida pós-natal. Os efeitos da hereditariedade misturam-se com os do meio físico e com os factores socioafectivos, culturais e económicos. E esta co-determinação sobrepõe-se à simples influência das potencialidades hereditárias. A natureza dos cuidados que a mãe dispensa à criança, a influência dos seres humanos que a rodeiam, que com ela entram em relação, são, por isso,
componentes decisivos do seu ambiente desde o momento em que vem ao mundo. Várias pesquisas têm mostrado que no que respeita à ligação à mãe
não
há
uniformidade
nas
respostas
da criança.
A
expressão
da
fixação varia muito de criança para criança, como já foi referido. Enquanto, por exemplo, umas suportam mal a partida da mãe, outras não. Se umas crianças manifestam comportamento afectuoso e activo quando se encontram nos braços maternos, outras mostram uma atitude ambivalente em relação ao contacto físico, ou então parecem ficar indi-
ferentes.
Algumas
enquanto
outras
1979).
Em
crianças mostram
todo
o caso,
acolhem agitação
no
fim
do
com (cf.
prazer o regresso Ainsworth,
primeiro
ano
Bell de
e
vida
da mãe, Stayton, pós-natal,
todas as crianças sãs mostram sinais evidentes de fixação à mãe. E parece,
também,
que
durante
os
primeiros
quatro
a seis
anos
de
vida
o comportamento da mãe ou de toda a pessoa que cuida da criança tem grande influência sobre o seu desenvolvimento físico e mental. À mãe
desempenha neste sistema de relações um papel fundamental. Num ambiente favorável, a criança desenvolve gradualmente o «sentimento» social, o sentido de cooperação humana, que é outra das características essenciais da espécie, cuja elaboração se faz sob a influência dos pais primeiro e continuando posteriormente com a educação escolar e os con-
tactos sociais. A melhor educação, diz-se, será aquela que permite a livre expansão
das potencialidades
de
cada
indivíduo,
sendo
isto um
bem
para o desenvolvimento integral da sua personalidade e uma fonte de progresso e de bem-estar social. Mas que sabemos nós das potencialida153
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
des de cada indivíduo ao nascer? Que significa isso? E alguma vez poderá haver livre expansão dessas supostas potencialidades? Como o
saberemos? Em
e do
toda
ambiente
a discussão
na
sobre os efeitos
realização
relativos
do ser humano
da
hereditariedade
é costume
recorrer
às
conclusões resultantes das observações conduzidas no estudo dos gémeos uniovulares, também designados por homozigóticos (MZ), ou seja,
daqueles que resultam de um único ovo. Por processos que seria longo referir, um ovo separa-se em porções, cada uma delas dando um novo indivíduo. E por resultarem todos de um mesmo
ovo fecundado por um
único espermatozóide, esse indivíduos têm todos a mesma
constituição
hereditária. Esta circunstância permite portanto, em teoria, avaliar os
efeitos das diferenças de ambiente e de educação, sem a interferência de diferenças hereditárias. As diferenças que porventura apresentarem os gémeos uniovulares são portanto devidas a efeitos do meio físico e social em que se desenvolveram. Claro está que, dadas as circunstâncias referidas, têm sobretudo particular interesse os casos em que os
gémeos são separados desde a nascença e crescem e são educados em
ambientes diversos. Os
estudos
comparativos
sobre
os
gémeos
uniovulares
permitem
concluir que, para a maioria dos caracteres físicos, a influência da here-
ditariedade parece ser mais forte do que a do ambiente, E que a inteli-
gência, o temperamento, a emotividade, são fortemente sensíveis às condições de ambiente e da educação. Diferenças nítidas têm sido verificadas no que respeita à intensidade e qualidade das emoções, à capacidade de adaptação ao ambiente físico e social, ao interesse intelectual e ao
nível da inteligência. Estes factos não significam que a génese do com-
portamento e da inteligência não tenham um substrato biológico. Querem
antes significar que, nestes e noutros aspectos do desenvolvimento individual, existe maior plasticidade na sua realização, uma cooperação
provavelmente mais complexa entre o ser biológico e o meio sociocultural em
que se desenvolve a criança. As semelhanças
uniovulares
são
em
geral
maiores
do
que
nos
entre
gémeos
os gémeos
pluriovulares
(crianças nascidas de diferentes óvulos, portanto com diferente hereditariedade, cuja gestação é simultânea). Há forte concordância nos caracteres físicos nos primeiros e acentuada discordância nos segundos como
é de esperar. Na
esfera mental
e do comportamento
já os fadios
são diferentes: a flexibilidade é a regra, se bem que a concordância aqui pareça ser maior entre os gémeos uniovulares do que nos pluriovulares, mas as razões disso são complicadas e incertas. Mas gémeos unio-
vulares completamente separados e crescendo em ambientes diferentes
podem
mostrar
observada
discordâncias
psicológicas
entre os gémeos pluriovulares.
da
mesma amplitude
A maior
concordância
que
a
tem
sido observada, por exemplo, nas tendências para o crime, o alcoolismo,
154
BIOLOGIA
a prostituição e outras formas
E
SOCIEDADE — 1
de delinquência, Mas
a criminalidade
entre os gémeos uniovulares, em relação aos pluriovulares, não significa
que exista qualquer predestinação para o crime, que certos indivíduos venham ao mundo geneticamente inclinados para violarem a lei ou a moral.
Muito
pouco
ou nada se sabe
quanto à existência de um
deter-
minismo biológico do comportamento originado nos genes, mesmo se considerarmos os grandes criminosos, insusceptíveis de qualquer recuperação, incapazes de sentirem quaisquer sentimentos de arrependimento ou de responsabilidade pelos seus actos anti-sociais. Há que ter em conta, também, quer no caso da criminalidade, quer noutros casos, que os gémeos uniovulares têm, em geral, uma vida social comum (mesmas
companhias, frequentam os mesmos locais, etc.), o que não é tão frequente entre os pluriovulares, que têm tendência a procurar convivências diferentes. Tais diferenças de ambiente social poderiam explicar a maior incidência da criminalidade entre os primeiros. Não se pode excluir certa concordância de factores psicológicos talvez de base here-
ditária que, sem significarem predestinação específica para o crime (que é um fenómeno social, determinado por causas sociais) poderiam propiciar certo tipo de conduta
do ambiente mais
ou de reacção perante certas condições
social (que as estimularia), que conduziria ao crime, ou
geralmente
que
entrariam
em
conflito
com
sistemas políticos ou
com determinados valores da sociedade. No cap. xI haverá a ocasião de voltar ao método dos gémeos quando se discutir o problema da hereditariedade
3.
da inteligência.
«Juvenilização»
e socialização
na
origem
do
ser
humano
A ontogenia do homem ocupa um lugar à parte no conjunto dos mamíferos. Pelo elevado grau de cerebralização que caracteriza a nossa espécie e pelo que se observa nos outros primatas, a ontogenia humana devia originar jovens nidífugas, quer dizer, recém-nascidos activos que logo levassem vida autónoma *. Ora não é este o caso. Às condições em que nasce o ser humano são totalmente dessemelhantes relativamente às dos outros mamíferos que originam jovens nidífugas.
* Chamam-se
nidífugas
aos jovens que nascem num
estado bem desenvolvido,
capazes de levarem vida independente ou quase, Os nidícolas estão na situação inversa, nascem num estado por assim dizer inacabado, tendo de viver durante algum tempo na dependência absoluta dos pais, para completarem activamente o seu desenvolvimento (cf. meu 1977).
155
GERMANO
a)
DA
FONSECA
SACARRÃO
O significado da gravidez humana
Com efeito, o bebé humano, quando vem ao mundo, não anda nem fala, é incapaz de procurar alimento, de compreender o que o rodeia, etc,
É totalmente dependente dos cuidados maternos. Será que o desenvol.
vimento intra-uterino é de duração insuficiente? Tendência para um vir ao mundo num estado fetal, que seria propício à humanação do
primata? Quais as razões biológicas desta situação? Impõe-se aqui uma pequena pausa para expor alguns aspectos da evolução ontogenética dos mamíferos que parecem esclarecer, pelo menos em parte, a originalidade da ontogenia humana. Verifica-se nos mamíferos que a evolução ontogenética seguiu um curso peculiar: a formas multíparas com rápidas gestações, dando ao mundo
jovens nidícolas de crescimento acelerado
(insectívoros, muitos
roedores, etc.) sucederam-se, na evolução do grupo, formas com um ou muito poucos filhos por cada parto, com longas gestações, e dando nascimento a jovens já bem diferenciados e activos (nidífugas). Os mamíferos superiores, como os ungulados, os cetáceos, os primatas, estão neste último caso: formam jovens nidífugas, que nascem muito activos e desenvolvidos, com os centros nervosos e os órgãos dos sentidos
perfeitamente diferenciados, sendo capazes de acompanhar os pais logo
após nascerem. Os comportamentos inatos básicos da espécie são nestes mamíferos
prontamente
operantes.
A maior
duração
do tempo
de gra-
videz é uma característica destes grupos superiores de mamíferos (isto é. evolutivamente mais modernos), caracterizados por elevada cerebralização. Tal facto veio permitir (em parte) o nascimento de jovens nidifugas. Esta como que tendência evolutiva dos mamíferos pareceria que deveria nos primatas vir a terminar no homem numa situação que correspondesse, por assim dizer, à sua máxima expressão: bebés humanos activos logo ao nascer, relativamente independentes dos pais, com comportamentos bem definidos, socialmente bem integrados, assaz despertos
para o mundo, como resultado necessariamente
(devido ao seu cérebro
mais complexo, à sua posição psicossocial mais elevada) de uma gestação longa, muito mais longa do que a éjue caracteriza os restantes primatas.
Todavia, não é esta a realidade. À gravidez humana apenas é, em regra, ligeiramente mais longa do que a dos grandes símios. Segundo foi esti-
mado,
a nossa gestação deveria andar pelos vinte e um-vinte e dois
meses, na lógica e estratégia da referida
«tendência
evolutiva»
a que
acima me referi. E, a fim de conciliar o modo ontogenético humano com a dinâmica do processo evolutivo invocado, Adolf Portmanna comsiderou que o primeiro ano de vida pós-natal do homem tem caracteris ticas fetais. Logo, os nove meses da gravidez humana mais os doze meses de «vida embrionária» pós-natal dão precisamente os vinte e um meses 156
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —I
exigidos pelas estimativas fetais, por uma comparação do nosso desenvolvimento com o dos símios superiores. Para
Portmann,
o
bebé
humano
tem
as
características
de
um
nidícola. Um ser flexível como o ser humano, que só se faz em contacto com
o social, nasce
num
estado por assim dizer inacabado, para exacta-
mente poder realizar-se por aprendizagem e contactos sociais nascimento. Assim se compreenderia o nascimento precoce
após o do ser
humano. Para ir mais longe, houve que prolongar uma condição fetal, mas agora não no útero, mas em contacto com a riqueza física e social
do mundo externo. Daqui resulta a exigência de nascermos inacabados, «interrompendo-se», por assim dizer, uma gestação que devia durar vinte e um meses. O intenso ritmo dos crescimentos fetais (tal como hoje pode observar-se no primeiro ano de vida pós-natal) e o elevado
à nascença
que daí provém não permitiriam uma gestação para
além dos nove meses
(quarenta semanas), a não ser que o organismo
da mulher sofresse profundas remodelações. Por exemplo, se o crescimento prosseguisse no útero para além dos nove meses de gestação. que atingiria a cabeça não consentiria parturições normais.
o tamanho
A razão biológica profunda da origem humana escapa-nos, e qual-
quer teoria até à data proposta parece-me constituir mais uma descrição
de situações do que uma verdadeira explicação. Em todo o caso, pela
teoria de Portmann parece poderem compreender-se as razões do prematuro nascimento do ser humano e as características e, sobretudo, o significado do primeiro ano de vida pós-natal. É provável que nessa teoria exista uma parte substancial da verdade. Pelo menos enlaça com coerência e lógica
circunstâncias
de outro modo
que
ainda
não
foi possível
explicar de maneira satisfatória. À teoria de Portmann foge aos quadros
ortodoxos
do
darwinismo,
darwinianos,
dade
de
se
como
conhecerem
mas
tem
suscitado
o interesse profundo
de
S. J. Gould, que aponta para a necessi-
melhor
os
trabalhos
do consagrado
zoólogo
suíço º.
É possível que as dificuldades anatómicas em dar à luz fetos volumosos e similares no peso e configuração aos actuais bebés de doze meses determinassem a prematuridade do nascimento do ser humano, já que seria talvez demasiado complicado e demorado (pelas profundas alterações requeridas) o processo evolutivo de readaptar o organismo materno para tal fim. Se de facto o prolongado desenvolvimento humano,
que dura vinte anos, é, como parece, uma característica sem a
qual o ser humano concluir também
que
não poderia
talvez ter surgido, somos levados a
a uniparidade foi uma condição necessária para
que se originasse essa ontogenia profundamente retardada. E neste caso a hipótese de Haldane, que atrás apresentei, parece legitima: a uniparidade nos primatas permitiu o retardamento do crescimento, daqui decorrendo a socialização do jovem; e tal «tendência», que é própria 157
GERMANO
DA
FONSECA
dos primatas, atingiu o seu máximo
SACARRÃO
na espécie humana.
Ou
seja, logo
que esse tipo de crescimento obrigou gradualmente à precocidade do termo da gestação para poder prosseguir fora do útero, a socialização do jovem atingia o nível humano. Ela prossegue durante ainda muitos anos,
mas
o cunho
modelador
cultural
é mais
quatro a seis anos de vida pós-natal, período
forte
nos
no decurso
primeiros
do qual
se
exercem decisivamente os contactos sociais, actuam de maneira intensa os estímulos do mundo físico, o universo das cores, dos sons, dos contactos, dos ritmos, etc., em suma, um período em que se inicia, por
assim dizer, a aprendizagem da condição humana, mem
e em que se expri-
as características do nosso ser profundo, as quais tomam
direcções
conforme às influências emanadas do meio e recebidas da educação. A elevada posição evolutiva do ser humano e certas características fundamentais da espécie (complexo desenvolvimento cerebral e dos órgãos dos sentidos, aquisição da locomoção bípede,
da linguagem
arti-
culada, manejo de objectos, fabrico de instrumentos, etc.) exigiriam, segundo tudo leva a crer, uma gravidez de longa duração para, no momento do nascimento, existirem logo como tais num bebé nidífuga. Mas seria tudo isto concebível num animal que obtivesse essas qualidades durante essa prolongada ontogénese intra-uterina? Talvez. Mas então seria de prever que a sua configuração física, a sua conduta, a sua percepção
do mundo,
atingissem
sub-humano,
supe-
rior ao dos grandes símios certamente, mas ainda imensamente
longe
da riqueza e diversidade psíquica
um
nível apenas
do ser humano,
mesmo
das formas
mais primitivas. E porquê? Creio que a resposta está no facto de a edi-
ficação
de
nervoso
central,
um
ser tão complexo e que
na
é ao mesmo
estrutura tempo
tão
e funções flexível,
se realizar de múltiplos modos, como é o homem,
socialização, ao contacto de um mundo
do tão
sistema capaz
de
só poder fazer-se por
de diversidade,
que contraste
com a extrema monotonia e pobreza do meio uterino. Será talvez nesta
perspectiva (que apenas esquematicamente aponto)
que poderemos en-
contrar o significado, que Portmann nos revelou, de a gravidez humana ficar aquém do que seria necessário, se compararmos a sua duração com a dos grandes símios, que são os primatas actuais evolutivamente mais próximos
de
nós.
mente a mesma
Na
realidade,
a gravidez
humana
tem
aproximada-
duração do que a do orangotango e cerca de um
mês
mais do que a do chimpanzé. À seguinte tabela mostra, comparativamente,
o
a duração
homem:
da gravidez em
diversos
tipos de primatas,
incluindo
BIOLOGIA
E
Duração
(seg.
SOCIEDADE — | da
Abbie,
gestação
1958) Semanas
o COD
A ser nes er
RR e dra DESES ES a
d
24 30
Orangofango casuunsos os cesso dceuas eee Go Siza da Gota esmero mermo Sire oniirrs tino asma Emememavs su CR o rar FD
39 37 34
Homem
40
moderno
(H. sapiens)
....................
O primeiro ano de vida da espécie humana teria por isso o significado de prolongar uma vida embrionária insufiente. Sob a tutela materna
e abundantemente
alimentado,
o bebé
humano
é, como
um
«feto», um ser em activo crescimento (um nidícola secundário) a exigir cuidados de toda a espécie. Durante o primeiro ano de vida pós-natal, o crescimento processa-se em ritmo intenso, o peso à nascença pelo menos triplica no final desse período, o cérebro e os órgãos dos sentidos desenvolvem-se amplamente para a percepção e compreensão do mundo imediato. Ao rápido crescimento humano do primeiro ano de vida sucede, depois, um crescimento mais lento, enquanto nos antropomorfos,
como o gorila, é o inverso que se passa: o peso aumenta mais rapidamente depois dos três anos de vida pós-natal, sendo superior ao do homem. Há assim uma prematuridade do bebé humano à nascença, sobretudo no que respeita ao seu grau de cerebralização (Portmann, 1944). Ele mantém durante o primeiro ano de vida características fetais — que se traduzem, em especial, por grande velocidade de crescimento, rápido aumento de peso e diferenciação intensa dos centros nervosos e dos órgãos dos sentidos, sobretudo até aos 6 anos de idade.
Ao fim de um ano de vida pós-natal, o chimpanzé tem o cérebro aca-
bado, pelo menos terminou o seu crescimento. Todavia, no bebé humano, à nascença, o cérebro tem cerca da quarta parte do tamanho que terá no estado adulto. Ora, para termos uma ideia das diferenças de crescimento de um órgão de tão fundamental importância como é o cérebro, quando neste aspecto se compara o homem com os símios, bastará dizer que nestes últimos o cérebro «adianta-se» e à nascença chega a atingir já cerca de três quartas partes do volume adulto do órgão. Mas no
homem
o cérebro é um
órgão que, por assim dizer, «se atrasa» até à
nascença; depois cresce e diferencia-se rapidamente até aos 6 anos, esti-
mulado pelo mundo
físico e social !º, E o processo não pára aqui:
O
desenvolvimento continua, mais lento, durante muitos anos, e para além
da fase de maturidade sexual, o que não é o caso dos símios, que, como o chimpanzé, quando estão capazes de procriar já o seu cérebro se fixou 159
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
definitivamente seis a sete anos antes. Aliás, se o homem um
cérebro
volumoso
e complexo,
mas
continuasse
desenvolvesse
o seu
crescimento
a obedecer ao esquema simiesco, como seriam possíveis partos com volumes cerebrais à nascença, mesmo que fossem apenas da ordem dos cerca de
70 %
do tamanho
que o órgão
atinge
no estado
adulto,
como
acon-
tece nos símios? Repito: só com profundas alterações anátomo-fisiológicas na mulher que acompanhassem, gradualmente, a evolução para maior volume cerebral. Mas isso não aconteceu, nem me parece que,
se o processo se tivesse iniciado, pudesse prosseguir com êxito até final. Se fosse, porém, esse o caso, é razoável prever que não poderia ter existido o processo de longa aprendizagem (portanto, de plasticidade à influência social) que foi decisivo para se dar o advento da humanidade. Com cérebros precocemente fixados, mesmo volumosos e complexos, esse primata símio seria provavelmente mais inteligente do que os actuais antropomorfos,
mas
nunca
poderia
humanar-se.
Os actuais antropóides nascem num estado que corresponde ao do bebé
humano
com
1 ano de idade. São autênticos
nidífugas,
enquanto
no homem uma edificação mais complexa exige, como mostrei, um suplemento de desenvolvimento que se realiza intensamente durante o primeiro ano de idade, não já no útero, mas nos braços da mãe. As características fundamentais da nossa espécie desenvolvem-se durante esse intervalo em intima associação com o ambiente social, representado pelos cuidados maternos e pelo ambiente que estes criam à nascença.
No
decurso
deste
primeiro
ano
do
bebé
humano,
a protecção
exercida pelos adultos atinge a sua expressão mais alta, que nenhum outro animal iguala, continuando esta acção protectora nos anos seguintes. Outros aspectos respeitantes ao ambiente físico e social são igualmente significativos, como já tive ocasião de referir neste capítulo. É provável
que tudo isto tenha
tido
(e continue
a ter)
uma
grande
importância para a nossa evolução. O homem está sujeito a quase tudo aprender, a realizar-se pela educação. Aprende a andar, a falar, a pensar, a sentir. Ser-se humano
resulta, afinal, de um
processo
de culturi-
zação do biológico, que não tem paralelo em qualquer outro organismo. Daqui provém a responsabilidade do homem pela sua própria humanidade.
b)
Aumento
do tempo
embrionário
e fetal
(retardação
ontogenética)
Diversos autores, na esteira da teoria da «fetalização» da antropogenia, de Louis Bolk (1926), aliás simplista e injustificada em nume-
rosos aspectos, reconhecendo que o homem possui numerosos caracteres que são embrionários nos outros antropóides (e não nos adultos destes),
admitem que a nossa espécie tenha sido originada por neotenia, isto é, por um
processo que, por retardação 160
do desenvolvimento,
conservaria
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — I
nos indivíduos adultos dos descendentes numerosos
vamente
embrionários
actualmente
o essencial
ou
juvenis !!. Alguns
da teoria, por
do-se também em dados hipotéticas na regulação
caracteres primiti-
investigadores
vezes refutada,
apoiam
de Bolk,
apoian-
genéticos, nomeadamente em modificações dos genes. Por exemplo, segundo Gould
(1977), um retardamento na sequência da expressão génica teria causado a lentidão
mento
já se manifesta
humano. mente
do desenvolvimento
Com
do que
nos
do primata
primatas,
efeito, os primatas os outros
mas
é mais
atingem
mamíferos;
humano.
Esse
retarda-
acentuado
a maturidade
e entre os primatas
no
mais
ser
lenta-
não humanos,
os antropomorfos (chimpanzé, gorila, orangotango, gibão) fazem-no ainda mais lentamente do que as outras espécies menos progressivas do grupo. As conclusões que Gould extrai do retardamento do desenvolvimento (prolongamento do período de aprendizagem) não são, porém, novas,
e
vários
autores
em
sentido
semelhante
se
lhe
têm
referido
(cf. meus 1957, 1977, 1977-a). A persistência no adulto humano da flexão craniana embrionária é uma característica «infantil» do primata humano que teve, provavel-
mente, profundas consequências para a nossa evolução (cf. Bolk, 1926; De Beer, 1968; meu, 1977-a). O ângulo que a cabeça embrionária faz
com o tronco é recto em todos os embriões de mamíferos e em quase todos os vertebrados. Mas esta flexão craniana desaparece, durante o desenvolvimento
de
todos
os mamíferos,
mas
não
no
do
homem.
primeiros, o maior eixo cefálico fica por isso em continuidade linha vertebral, enquanto com
a linha
vertebral,
no homem
facto
que
a cabeça forma um
só se verifica
Nos
com
a
ângulo recto quando
claramente
se
observa a orientação do encéfalo embrionário humano em relação à linha da medula espinhal. Nestas condições a linha de mira só poderia ficar horizontal com a bipedia; e foi o que aconteceu. Por outro lado a conservação do ângulo fetal determinou a posição mais anterior do buraco occipital, que, no embrião, se estabelece simultaneamente com a flexão craniana. A conservação
do ângulo fetal abriu, assim, o caminho
ao desen-
volvimento evolutivo da posição vertical e libertou, portanto, as mãos para múltiplas e novas funções: para o manejo e fabrico de instrumen-
tos,
para
o
transporte
caça, etc.), etc. Cérebro
dos
filhos
complexo,
e do
alimento
desenvolvido
(e
sua
por uma
colheita,
mais
longa
aprendizagem, bipedia, mãos livres, tudo isso proveio, em grande parte,
da persistência e prolongamento das cadências próprias do crescimento embrionário
e pós-natal,
e da retenção da flexão craniana,
que
ainda
determinou outras importantes consequências !2, Quer dizer, resultou de um retardamento geral da ontogenia humana. Pergunta-se:
quando
ocorreu
na
linha
evolutiva
da humanidade
(incluindo o seu tronco infra-humano) o pronunciado retardamento de Bibl. Univ.
49 — 11
161
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
toda a embriogénese e da vida fetal e a retenção da flexão craniana, alongamento que se continuou numa fase pós-natal de crescimento e de aprendizagem? Quando é que se estabeleceu a ampliação da infância e da adolescência? Quando é que a fase de brincar, de inventar, de ser-se
À
curioso, começou a prolongar-se e, por conseguinte, a permitir a apren-
dizagem de culturas e de técnicas, e a ser-se receptivo ao ensino dos
pais? Todos estes fenómenos estão interligados. Como o tipo de crescimento humano, apesar de diferente, se insere no quadro geral do crescimento dos primatas, nunca será provavelmente possível saber qual foi o primata símio que representou o «primeiro homem». Segundo algumas opiniões, porém, a retardação da ontogenia e o consequente alonga-
| |
mento da infância e da adolescência deve ter começado nos ramapitecos (há 10 a 20 milhões de anos), esse acontecimento «profetizando» a vida
4
cultural É. A vida em sociedade, a linguagem sob forma rudimentar (sons específicos constituindo um sistema de comunicação), a cultura, desenvolveram-se, gradualmente, no fundo dos tempos pré-históricos, de mistura com os outros atributos anátomo-fisiológicos que fizeram o primata humano. Se os ramapitecos já tinham de facto uma maturidade mais retardada (com a extensibilidade da adolescência e maior periodo
|
de aprendizagem), ocorre perguntar: seriam hominídeos? Ainda que alguns autores se inclinem para esta hipótese (Coppens, por exemplo,
remonta parece
as origens do grupo a 25 a 30 milhões que se avance, significativamente,
com
de anos),
não me
estas especulações, que
traduzem 6 desejo persistente de assinalar descontinuidades na evolução dos primatas, de forma a datar e como que testemunhar o nascimento do fenómeno humano. Por causa do encadeamento histórico-evolutivo, os atributos humanos resultam
de um
processo
de desenvolvimento
de
caracteres existentes em primatas de há 20 milhões de anos (e talvez mais), e nestas circunstâncias a procura do escalão que assinale o surgimento do primeiro homem constitui, a meu ver, um falso problema, como já referi anteriormente. O retardamento do desenvolvi
mento nos primatas superiores precedeu a sua transformação posterior; nas
suas
várias
orientações
e
diferenciações,
uma
tendência
que
se
ampliou e atingiu o seu máximo com a retardação do crescimento do ser humano. Se compararmos o crescimento dos primatas com o dos restantes mamíferos, à excepção do homem, verifica-se que os primeiros vivem
162
anterior à
a origem
do
Criadaa In dftista speed
é, portanto, muito
e como que a preparou. Mas
bo
cada caso. À origem do fenómeno
emergência do ser humano,
TO
em
ao peso definitivo do corpo,
|
Dario a) a
é o do ser humano, em relação (sempre)
|
to Tae? rato co DS
mais tempo e chegam mais lentamente à maturidade do que os segundos com tamanho de corpo comparável. Muitos mamíferos não primatas atingem a puberdade com cerca de 30 % do seu peso definitivo enquanto no chimpanzé esse valor quase atinge os 60 %, valor este que
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — 1
homem só se deu quando esse retardamento (de concerto com outras condições) passou a ter consequências que gradualmente transformaram o
«símio
australopitecóide»
num
«símio
humano».
Aliás,
segundo
algumas estimativas, a sequência Australopithecus africanus > erectus
>
Homo
sapiens
corresponde
a uma
progressiva
Homo
fixação
de
proporções juvenis na fase adulta, e isto à medida que aumenta a capacidade craniana e se reduz a região mandibular. As formas jovens conhecidas de australopitecos (v. g. Taung) preanunciam as proporções
posteriores da fase adulta, de modo que não foi preciso inventar uma configuração juvenil (necessária à hipótese de derivação evolutiva) para um antepassado hipotético, como opinaram autores como Schindewolf, Buxton e De Beer e outros (cf. Gould, op. cit., pp. 358, 366 e 372).
Diversos autores têm manifestado a sua discordância da teoria de Bolk, sem dúvida com certa justificação, mas não parecem, por outro lado, ter reconhecido devidamente o valor da retardação do crescimento
para a realização do ser humano. Contrapondo-se à ideia da «juvenili-
zação» prolongada do primata, com o seu ponto máximo no ser humano,
Ernst Mayr, por exemplo, diz que «desde que os bebés humanos têm de ter cérebros tão extremamente volumosos, poder-se-á dizer exactamente o inverso do que disse Bolk, afirmando-se que eles se “adultificaram”
(state that they have become “adultified”)». Mayr não parece com este
trecho
ter
apreendido uma
certa
parte
de
verdade
fundamental
que
subjaz à teoria de Bolk (expurgada necessariamente de tantas das suas imperfeições ou mesmo desacertos), e tão-pouco, e sobretudo, o significado do lento crescimento humano, da persistência juvenil. Dizer que houve
«adultificação»
a nada
conduz.
Todo
o desenvolvimento
não é
outra coisa senão isso mesmo. Devido ao processo de juvenilização, só muito tarde é que o homem atinge a maturidade sexual. O longo desenvolvimento físico e mental, que se intensifica de novo na puberdade, qualquer que tenha sido o seu determinismo, abre possibilidades imensas de educabilidade, que é um dos atributos que melhor caracterizam o homem, e isto numa fase em que simultaneamente o cérebro não cessa de complicar-se e de aperfeicoar-se.
A
fase
jovem
no
homem,
nas
sociedades
modernas,
ocupa,
em média, mais de um terço da vida do indivíduo, pois o crescimento pós-natal só termina por volta dos 20 anos, para uma esperança de vida de 75 anos. (A. H. Schultz, 1949, in De Beer, 1958, p. 74).
Dos 8 aos 12 anos, os grandes símios são, em geral, já adultos ou quase. O chimpanzé, por exemplo, já é adulto cerca dos 11 anos. Em relação ao do homem, o seu cérebro «fixa-se», como referimos, bastante precocemente nestes animais, No homem, porém, distanciando-se
no tempo a maturidade sexual, correlativamente a vida prolongou-se e a velhice foi retardada, de modo que as faculdades mentais atingem, com 163
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
as experiências acumuladas e assimiladas, a sua pujança ao fim de muitos anos. Assim, o prolongamento da vida e da fase de educabilidade permitiu uma
enorme
acumulação
de experiência e a sua
transmissão
às gerações. A juvenilização prolongada veio permitir, também, o desenvolvimento de um psiquismo superior sob a dependência dos adultos, tutela indispensável para a plena realização do indivíduo. A importância fun. damental
da juvenilização do primata humano
reside
na circunstância
de que durante os longos anos em que leva a chegar a adulto, o seu comportamento
é plástico, a aprendizagem
é mais fácil do que
na fase
adulta, onde se atinge uma certa limitação de possibilidades. Na fase juvenil,
o cérebro
humano
modela-se,
automodifica-se,
assimila
facil.
mente novas ideias e imagens e é mais facilmente modificado por elas.
Sem
um longo período de aprendizagem, caracterizada por demorada
infância e adolescência prolongada,
desenvolvimento
seria possível obter o pleno
da inteligência conceptual,
e da vida social humana?
poderia
como
existir
qualquer
da linguagem
articulada
Como é que sem uma longa fase de infância
forma
de
complexidade
social
e cultural?
O trabalho em grupo, a acumulação de saber, a cultura, resultam daí. Com
aprendizagem
de
breve
período
alguma
coisa
haveria
de
surgir
de análogo, mas certamente nada comparável às realizações que se tor-
naram acessíveis ao homem, como indivíduo e como sociedade. Ora, se os factos são esses, não podemos
deixar de reflectir num
ponto que me parece muito significativo: se o retardamento do crescimento ontogenético e da maturidade já era uma tendência característica dos primatas não humanos, poderá pensar-se que no passado apenas duas vias possíveis estivessem abertas neste aspecto à sua evolução: ou uma exageração desse retardamento, ou a sua diminuição. O seu abreviamento não era coisa para mudança
provável porque, como tudo parece sugerir, a pressão devia exercer-se precisamente no sentido do alargamento
da fase de educabilidade e da criação de prolongados vínculos familia-
res. Ássim, apenas restava o caminho do reforço do retardamento, como tentarei
mostrar
a seguir.
Conjecturo,
extrema restrição de possibilidades estaria razoavelmente probabilizado. c) Ontogenia,
assim,
de mudança,
que,
em
face
o primata
de
tão
humano
família e sociedade
O aumento do volume cerebral (que em parte caracteri
za a evolução do homem) e, em certa medida, paralelamente, o da inteligência, está, provavelmente, correlacionado, como se referiu, com o facto de o bebé humano nascer com o cérebro inacabado. Para crianças totalmente dependentes eram necessários pais cada vez mais solícitos e inteligentes, 164
BIOLOGIA Este facto deve
ter determinado
E
SOCIEDADE — 1 uma
forte pressão selectiva nesse sen-
tido, com famílias cada vez mais duráveis. O retardamento do crescimento exigiu maiores cuidados paternos e estes impunham, sem dúvida, adultos mais inteligentes e solícitos, mais apegados à prole e ao pequeno
universo
familiar.
A selecção através das gerações, de indivíduos com
maior capacidade cerebral (em regra ligada à evolução da inteligência), teria, por isso, resultado, provavelmente, destas acções recíprocas
is-filhos, surgidas humanidade
nos sistemas familiares da pré-humanidade
primitiva.
A
cada
retardamento
do crescimento
e da
havia
de
corresponder, logicamente, uma pressão de selecção para pais mais protectores e melhor educadores. Infere-se daqui, também, o seguinte: que cada aumento da capacidade craniana do adulto tinha de resultar de bebés com cérebros mais complexos e plásticos, susceptíveis de irem mais longe no seu desenvolvimento, circunstâncias que, significando
maior
dependência
actuar, também,
das crianças relativamente
no sentido de uma
aos adultos, havia
de
selecção de pais mais inteligentes,
mais hábeis e mais vigilantes. À criança desprotegida acaba, digamos, por exigir, cada vez durante mais tempo, apurados cuidados parentais. Este facto teria estado na base da constituição de famílias mais coesas e mais duradouras. As consequências parecem evidentes: mais longa e eficaz aprendizagem e treinamento dos filhos, assim como teria aumentado
a quantidade e a qualidade dos resultados das experiências individuais
transmitidas às gerações. Outra consequência, provavelmente, foi o maior desenvolvimento da linguagem conceptual-simbólica, que abriu novas perspectivas ao intelecto do símio humanizado e permitiu a evolução rápida de culturas. Crianças totalmente dependentes reclamavam,
repito, pais cada vez mais atentos e mais inteligentes. Tal facto pressionou a evolução nessa direcção, donde teria resultado um progressivo acentuar de características humanas no decurso das gerações. O crescimento sucessivamente mais retardado do cérebro veio permitir que este órgão registasse cada vez maior quantidade de imagens e lembranças e a sua elaboração em ideias e reflexões mais duradouras e aprofunda-
das. Assim, estabeleceu-se um reforçamento recíproco, um circuito de retroacções:
quanto
mais inteligência, mais retardação;
e quanto mais
retardação, mais inteligência. A origem da família humana não é facilmente concebível fora do quadro da retardação da ontogenia nem o é também a evolução dos vínculos psicológicos pais X filhos e as interacções físicas e psicogénicas a que essa evolução conduziu. A lentidão do desenvolvimento marca uma divergência em relação aos símios, diferença que foi um passo decisivo para a emergência da humanidade, como já tive ocasião de acentuar !º. Todos estes fenómenos, que apontam para a realização do ser humano, têm a sua raiz nas peculiaridades da sua ontogenia, tendo sido,
sem dúvida, decisivos para a criação de culturas e técnicas, e para a 165
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
ascensão espiritual do homem. Com o progresso da ciência e a melhoria das condições sociais aumentou-se,
nas sociedades industriais, sobretudo
nas mais progressivas, a duração média da vida humana. Maior número de indivíduos chegam a idades mais avançadas e este facto actua, também, como um importante factor de acumulação de experiências, de evolução cultural. Como ser pensante, de longo crescimento físico e cerebral, receptivo a uma imensa educabilidade, o homem tende a atingir o seu valor pleno em idades relativamente tardias, ao fim de um demorado período de aprendizagem. Distanciou-se, no tempo, a maturadidade reprodutora e mental; correlativamente, a vida foi prolongada e a velhice recuada. À tabela seguinte mostra a posição isolada do homem comparativamente aos outros primatas, no que se refere à duração do crescimento e à longevidade: Período
de
crescimento
(seg. Abbie,
e longevidade
1958)
(Em anos) , Primata
Períod de E
7
25
9
33
20
70
Macaco: aus à ruinimesss nasais Luna
GABÃO ambio ssa tira eso dentada
Orangotango ..cecesemiiemeceressoo ES E E CHDDANDO: . euspes pesso sieiidosçã ilus Homem
al 1 1
moderno (H. sapiens)...
Longevidade
30 35 am
Sem dúvida que outrora o homem tinha uma vida média curta, mas potencialmente tinha possibilidades de maior duração, que só modernamente se tornou um facto. Nos países onde os progressos da civilização científica e tecnológica permitiram combater eficazmente as múltiplas causas de mortalidade, a longevidade humana atinge valores superiores aos da tabela acima. O prolongamento da vida e uma longa fase de aprendizagem determinaram, por sua vez, enorme acumulação de saber e experiência e a sua transmissão cada vez mais enriquecida às gerações. Um melhor conhecimento dos processos ontogenéticos de crescimento e de maturação, das suas fases e oscilações, da plasticidade do
cérebro, dos seus processos íntimos de diferenciação e de assimilação da realidade, poderá permitir uma melhor e mais ampla utilização das capacidades humanas, aprendendo-se a ajustar harmoniosamente o nosso comportamento a ambientes em constante modificação, As investigações nesta
área, ao mesmo
tempo
que
poderão
acrescer
os conhecimentos
sobre a natureza e as causas da «juvenilização», base da nossa condição 166
BIOLOGIA
de seres humanos,
E
SOCIEDADE —1
poderão orientar os sistemas educacionais, e modi-
ficá-los de acordo com a evolução social, com as suas pressões e mudan-
ças. Se o primata humano é um produto simultaneamente biológico e social, resta-lhe mais a esperança de modificar a educação e as instituições socioeconómicas para que o homem se faça a si mesmo, sem nunca estar acabado, renovando-se, do que recorrer a processos de transforma-
ção da herança biológica da humanidade. Além de muito problemáticos quanto a conseguirem-se os efeitos desejados, tais processos são morosos e oferecem o grave perigo de abrir caminho a novas formas de sujeição e degradação. Na lista a seguir estão reunidos alguns dos caracteres essenciais ontogenéticos e comportamentais adquiridos no decurso da evolução dos hominídeos, presumivelmente a partir pelo menos da altura em que a
linha evolutiva que conduziu aos homens se separou do tronco simiesco (antropomorfos) primitivo. Esta comparação entre as características dos dois grupos pretende dar a medida das divergências e novidades adqui-
ridas no ramo que terminou no homem
[Lista baseada numa tabela de
C. O. Lovejoy, publicada por Johanson e Edey mente modifiquei e ampliei;
v. também a nota 13 do capítulo anterior].
LINHA EVOLUTIVA DO HOMEM
LINHA EVOLUTIVA DOS ANTROPOMORFOS Ontogenia com (nidífugas).
Cérebro
Retardação genia.
jovens activos ao nascer
fixa-se
não
precocemente,
(1983), que parcial-
muito
gar vida fetal insuficiente
arboricolas,
sobretudo
essencialmente
nhum todavia terrestre.
Actividade do cio.
sexual
sendo
no
ina-
Maturidade retarcrescente da socia-
limitada
deslocam-se
Habitat
outros
solo,
exclusivamente
terrestre.
ne-
exclusivamente
Sociedades sem constituição nucleares (excepção no
fêmeas
(bebés
Bipedia.
Quadrúpedes. são
onto-
cabados, «fetos»). O cérebro continua
a desenvolver-se. dada. Importância lização.
vivem
da
Primeiro ano de vida pós-natal a prolon-
se
desenvolve.
Uns
acentuada
ao
período
Actividade sexual contínua.
de famílias gibão). As
Sociedades famílias
à procura de ali-
levando à constituição de nucleares. Imobilidade cres-
cente das fêmeas e dos filhos, Possi-
mento, transportando os filhos. Não existe abrigo fixo. Não existe vida de casal,
bilidade de abrigo fixo. Vida de casal.
167
GERMANO
Educação
de
um
DA
só filho de cada
FONSECA
vez.
Educação simultânea de vários filhos. Tendência para fase de longa aprendizagem e de dependência dos pais.
Curta fase de aprendizagem e de dependência materna. existe partilha
Não
d)
4
retardação da do homem
O homem
Partilha
de alimento.
Não existe (ou é insignificante) ção de instrumentos.
SACARRÃO
utiliza-
de
Utilização
ontogenia — componente
alimento. e fabrico
de
instrumentos.
dominante
na
origem
é um ser biologicamente cultural e esta condição pro-
funda é preparada na sua ontogenia, cuja evolução está intimamente ligada a essa condição. Não há homem biológico separado de homem cultural. Qualquer deles é uma falsidade, uma não-existência. Existe aprendizagem intelectual, emocional, moral e até visceral, se assim
se lhe pode chamar. Toda a vida orgânica é disciplinada, regulada por factores culturais. A ontogenia humana tende para a edificação da posição erecta, de um grande e complexo cérebro, possibilita a emergência da racionalidade e da linguagem conceptual, e os alicerces de tudo isto estabelecem-se desde muito cedo na vida embrionária.
Toda a ontogenia humana tem uma cadência embrionária e fetal
até final do primeiro ano de vida pós-natal, crescimento intenso e prolongado que leva, portanto, o feto a ser ao nascer o maior e mais pesado dos primatas, o que tem maior volume cerebral, etc., «feto» na realidade ainda, pelas suas características (o crescimento pós-natal é do mesmo tipo que o crescimento fetal), mas que não pode continuar em ambiente intra-uterino porque, como ser cultural que é, realizando-se por aprendizagem, só em meio social pode continuar a desenvolver-se, e é o que de facto acontece com aquilo a que Portmann com felicidade chamou «gestação social» para significar o desenvolver de um ser «larvar», inacabado, nos braços da mãe (ou de outros adultos) ao seu calor afectivo, protegido por ela, a ouvi-la, a olhá-la, a contactá-la fisicamente. Comparativamente ao dos outros primatas, o tempo embrionário do homem é o mais longo, a permitir uma maior diferenciação de vários órgãos, sobretudo do cérebro. O embrião torna-se feto mais tarde no homem do que no macaco. Neste, a passagem à fase fetal realiza-se aos
41 dias de gestação (25 % da vida pré-natal), mas no homem a trans-
formação
ocorre cerca do nonagésimo
quinto
dia, quer
dizer, quando
perfaz 35,7 Yo de vida pré-natal, Vida embrionária mais prolongada, fase de formação e diferenciação dos órgãos, não só, portanto, mais longa em valor absoluto como em valor relativo (Olivier e Pineau, 168
BIOLOGIA 1958).
O
cérebro
do
bebé
E
SOCIEDADE — 1
humano
continua
a
crescer
consoante
o
modelo da curva do crescimento fetal, a maturação sexual é retardada, e o corpo continua,
também,
a crescer durante muito mais tempo
do
que em qualquer outro primata. Tudo é como que adiado — a reprodução, a fase adulta, a velhice, a morte. É a exageração de um processo que já se manifesta atenuadamente nos outros primatas. Por exemplo, para a capacidade craniana Macaca mulatta atinge, ao nascer, 65 Yo da capacidade definitiva, mas o chimpanzé só alcança 40,5 % eo homem apenas 23 %. Enquanto o gorila e o chimpanzé atingem no princípio do primeiro ano pós-natal 70 % da capacidade craniana definitiva, o homem só obtém valores similares aos 3 anos de idade (dados
em Gould, 1977).
Uma geral e acentuada retardação caracteriza a ontogenia humana, sendo provável que tenha sido ela que deu livre curso à evolução das outras características humanas, ainda que uma e outras se tenham mutuamente influenciado e fortalecido. As suas consequências foram:
a) prolongamento zindo a b)
do rápido crescimento embrionário e fetal, condu-
aumento
das
dimensões
ao nascer,
e c)
a maior
volume
cerebral, d) retenção de configurações juvenis e e) longo crescimento pós-natal e maior longevidade
(o homem
cresce durante cerca de 30 %
da sua vida, a fase adulta é como que adiada).
Um
cérebro complexo, de um ser que praticamente tudo tem que
aprender
para
volvimento
ser humano,
e de educação,
terá
uma
longa
fase de desen-
«persistência juvenil»
de disponibili-
de possuir
uma
dade e de escolhas. Daí, parece, decorrerá a razão da retardação ontoge-
nética, que tudo prolonga, tudo amplia para uma maior dimensão temporal — a infância, a adolescência, a fase adulta, a fase idosa. A família humana não é concebível sem a retardação da ontogenia. A duração da vida individual aumenta, facto que permite acumulação de mais saber, de mais ideias, e a sua transmissão às gerações. À flexibilidade física e mental da infância dura dez anos em íntima dependência e comunhão com os adultos, mas depois, com a chegada da maturidade, essa maleabilidade à educação e ao desenvolvimento intelectual perde-se, ou pelo
menos fica extremamente reduzida. À retardação ontogenética originou o homem como um ser por assim dizer «desprogramado», que se realiza por aprendizagem (será este, digamos, o seu «programa»), em vez de uma criatura que reage em obediência a programas fixos dos instintos,
ou de condutas inflexíveis codificadas nos genes. Ignora-se se foi a retardação da ontogenia a causa básica de tudo isto, ou se foi o aumento do volume e complexidade do cérebro que exigiu a retardação e a socialização do feto. Creio que ambas são simultaneamente causas e efeitos, processos que se reforçam. Retardação ontogenética, bipedia,
funções
da mente,
inteligência
e emoções,
racionali-
dade, forma física humana, o tudo ter de aprender para ser-se humano, 169
CERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
a socialização e culturização das funções do espirito e do cucpo (sabre este ultimo ponto. s. o cap. Mi) — tudo isto não pode ser disposto ama série
linear
cmyuntos
de
causa-efestocausa.
de partes que
Nada
sabemos
dos
devendo
antes
«er
considerado
coma
interaccionam. misterios
das
nossas
origens,
mas
o aumento
do tempo embrionário e fetal. o prolongamento da fase juvenil por retardação progressiva da ontogenia e o aumento da cervbralização. são
processus que devem ter estado associados na origem do homem. Mas esmo 2 retardação da ontogenia e um processo que não aparece bruscamente
com
o homem.
pois ja se manifesta,
primatas superiores não humanos,
ainda
que
minorado,
nos
ecrrio que podemos considerá-la com
o mgnificado de preadaptação ao aumento do volume e complexidade cerebral
e a» restantes
peculiandades
do ser humano.
Permitiu-lhe a
invasão de todos os ambentes porque libertou o homem das limitações ecologueas e cotmportamentas a que estão sujeitos os outros seres vivos.
Na cossistusção bsologuca do homem reside, por assim dizer, um destino
de
abertura
paro
o mundo,
para
a permanente
insatisfação,
para
Labor rdade
4
Modificações seculares
Hoje, como ha trinta emsl amos e mais, o mesmo ser humano tem de adaptar-se, desde que masc, a dilerentes padrões de vida, Todavia, as alterações cada vez esais cópedas o mais profundas que a civilização
actual imprime ao ambiente físico e sociocultural tornam dificil o ajustamento
do
moso
comportamento
e
da
basicamente as mesmas que as do Homo
msa
organicação
biológica,
sapiens do final do paleolítico
superior, a condições ambientes cs continua transformação, que se pro-
cessam cada vez mais velogmente no intervalo de tempo correspondente a cada geração. As transformações da vida social, traduzidas pela maior densidade populacional, por modificações nas dietas alimentares, pelas múltiplas e potentes influências sensoriais ( presentes, sobretudo, nas grandes metrópoles modernas), pela alteração de tudo o que actua fortemente sobre o ser humano desde o nascimento (habitação, paisagem, tudo o que constitui o pequeno universo de objectos e de seres que
o envolvem e modelam), e ainda a acção poderosa dos mass media, e &
maior difusão da leitura e da instrução — tudo isto (e não só isto) tem exercido poderosa influência sobre a parte física e espiritual do ser humano. Tendo a humanidade desenvolvido, gradualmente, no passado, um
ajustamento a ambientes socioculturais relativamente estáveis, faz face, sobretudo desde ha cerca de cento e cinquenta anos, a rupturas violen-
tas do ambiente, que não cessam de processar-se cada vez mais rapida170
a
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — 1
mente em cada geração. À constituição humana tem respondido de várias formas a estes profundos abalos do nosso ambiente secular. Estes fenómenos começaram a gerar-se durante a grande revolução técnica e industrial do século xIx (iniciada já no século xviIl), manifestando-se
principalmente
a partir de 1830, sobretudo por aumento de estatura
e por maturidade sexual mais precoce (aos 12 a 13 anos, enquanto há cento e poucos anos se situava entre os 16 e os 17 anos), com diversas consequências sobre o comportamento psíquico, o temperamento, a inteligência.
Entre
1880
e 1950,
os aumentos
máximos
durante
a adoles-
cência foram, por cada intervalo de dez anos, de cerca de 2 kg no peso e de
2,55 cm
na
estatura.
Este
fenómeno
de aceleração
continua
no
presente. Todavia nos Estados Unidos da América do Norte a estatura ter-se estabilizado, segundo resultados de um inquérito do Centro de Estatística da Saúde. Mas, claro está, será necessário confirmar segu-
ramente se foram na realidade atingidos os limites máximos do potencial hereditário da população americana. Estes fenómenos de aceleração ontogenética devem merecer a maior atenção,
não só pelos seus aspectos
científicos como: pelas suas conse-
quências no plano social, visto que a maturidade intelectual e espiritual não parece ter acompanhado a mesma tendência, pelo que se estabelece, como outrora, no intervalo entre os 16 e os 18 anos de idade, sendo a
maturidade social talvez ainda mais tardia. Este desfasamento entre maturidade sexual e mental parece ter ocorrido similarmente em diferentes
países
da Europa,
na América
do Norte
e no Japão
Tanner, 1962 e 1968; v. também Young, 1971). Têm sido atribuídas várias causas a este fenómeno:
(dados
em
melhoria da
alimentação, melhoria das condições de vida e da educação, subida da
temperatura mundial de 1850 a 1940, e a causas genéticas (diminuição da consaguinidade devido a maiores facilidades de transporte e correspondente cruzamento entre indivíduos de populações até aí isoladas). O factor temperatura não satisfaz como explicação, porque o processo de aceleração prosseguiu depois de 1940 até ao presente. Nenhuma das hipóteses é convincente, ainda que, provavelmente, os factores mencionados tenham participado em maior ou menor escala no fenómeno. A
selecção
ocorre
não
parece
demasiado
actuar
rapidamente
acção 5, As modificações
referidas
no
processo,
para
que
que,
para
possa
no crescimento,
ser
certos
autores,
plausível
na maturidade
essa sexual
e na conduta têm, como é natural, múltiplas implicações médicas, educacionais e sociológicas. Estão em oposição à tendência fundamental que fez divergir a ontogenia humana da ontogenia dos símios não humanos — o prolongamento da infância e da adolescência, e, portanto, da fase de plasticidade
e de adaptação
à vida social, à aprendizagem.
Mas como o fenómeno não parece de modo nenhum ter afectado a larga 171
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
plasticidade do cérebro, que, desde a nascença até à fase adulta (e para além do início deste estado) está permanentemente a fazer-se, a reali. zar-se, é provável que a aceleração ontogenética não comprometa o futuro, pelo menos imediato, da humanidade. Mas que o fenómeno de aceleração tem de inserir-se na vida social e esta modificar-se para o
aceitar,
não
temos
dúvidas
nisso.
À
influência
será
provavelmente
recíproca. Existem razões para crer que os jovens podem
atingir a maturidade
sexual mais cedo sem que tal circunstância prejudique a sua plasticidade para a aprendizagem e para o desenvolvimento cerebral, assim como a sua gradual e harmónica integração social. O que será talvez difícil é, por exemplo, conciliar a sua situação de estudantes com a de casados com filhos — mas isto, segundo creio, poderá solucionar-se pela própria rápida evolução socioeconómica, pela criação de novos valores e por medidas adequadas de auxílio económico e cultural às famílias
jovens. A sociedade terá de ajustar-se a estes imperativos biológicos, a
que não pode talvez subtrair-se, Ademais, a difusão inteligente
sob pena de provocar tensões graves. de práticas anticoncepcionais e um
conhecimento objectivo e realista da vida sexual e das suas implica-
ções sociais poderão ajudar os rapazes e raparigas a harmonizarem as exigências físicas e emocionais resultantes da sua precoce maturidade
sexual, com a realidade social, a modificar, também, o efeito.
As causas da aceleração ontogenética são ainda
sem
dúvida, para
obscuras. Estará
o seu determinismo numa variação subtil e orientada do genoma humano, ocorrendo paralelamente nos vários indivíduos das diferentes populações
afectadas,
mecanismos
sem
intervenção,
de selecção natural? Nem
por
conseguinte,
mesmo
de
aparentes
se sabe ao certo se não
estaremos em presença de um regresso a condições primitivas, anteriores
ao século XIX, como opinam certos antropologistas. Comfort, por exemplo (cit. por Overhage, 1967), está convencido de que a aceleração
actual da ontogenese humana seria o retorno a uma situação normal. do passado.
Para
Maria
Chalma
(1971),
o aumento
da estatura
e a
diminuição da idade da puberdade é um processo cuja tendência vem de longa data, tendo sofrido uma aceleração recente provocada por uma violenta modificação do ambiente, físico e sociocultural. Todos estes fenómenos têm provavelmente causalidade
Sob a mesma
complexa.
aparência escondem-se causas múltiplas. Assim, no que
respeita às populações do terceiro mundo, habitando regiões tropicais, Maurice Guernier (1976), membro do Clube de Roma, afirma que os homens e mulheres são prematuros sexuais (casamentos frequentes com 12 a 14 anos) devido à tendência que têm, desde há milhares de anos, para procriarem o mais cedo possível. O objectivo seria o de se sub-
traírem à elevada mortalidade infantil própria dos trópicos, onde prolife172
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —I
ram doenças numerosas e das mais graves, e terem, assim, conforme seu desejo, a oportunidade de ter alguns filhos que sobrevivam. Para Guer-
nier, esta tendência de procriar cada vez mais precocemente teve como resultado, devido à acção da selecção natural, o facto de actualmente todos os homens e mulheres serem sexualmente activos dos 12 aos 14 anos
e sem
manifestarem
qualquer
preocupação
de planeamento
pro-
criador. Outros processos de transformação do ser humano estariam também
em curso, como modificações na forma do crânio e da face, redução
das dimensões dos dentes, da face, da espessura do crânio e da região mandibular, etc. (cf., por exemplo, Schwidetzky, 1969, 1974) 1º. Estas e outras modificações têm sido designadas como um processo de «gracilização» corporal, pensando-se que as suas origens remontam aos confins da pré-história. Se é assim, será legítimo perguntar se as referidas transformações não serão a continuação do processo de «graciliza-
ção»
do
símio
«brutalizadas»
a
humano
e robustas.
das
partir
suas
formas
arcaicas,
mais
às causas, ignora-se se residem
Quanto
em
processos de reprodução diferencial, se em modificações nas condições de vida. Ou estaremos em presença de um subtil fenómeno de evolução de fundo (semelhante ao que há pouco referimos), ocorrendo paralelamente
em
várias
populações
do
primata
humano
desde
os
confins
do paleolítico? Há quem pense que estão em acção processos de selecção natural a nível organísmico.
tamento,
de tendências
Consideram
haver diferenças de compor-
de atitudes estéticas, de conduta
espirituais,
(pacífica ou agressiva), de grau de inteligência, etc., entre o tipo «grácil» e o tipo «grosseiro», de modo que nas suas relações com a evolução socioeconómica e cultural haveria melhor ajustamento (e por-
tanto selecção) de um ou outro tipo, consoante as circunstâncias. Para
dar um simples apontamento, os indivíduos de tipo «grácil» seriam mais pacíficos e sedentários que os de tipo «grosseiro». À questão é, na realidade, complexa
e complica-se
com
o facto de ter sido igualmente
observado o fenómeno inverso, de «desgracilização» («Desgrazilisation», v. em Schwidetzky, 1969).
173
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
NOTAS
! A ontogenia não deve ser considerada exclusivamente até o organismo atingir
o estado definitivo, Sobretudo
estado
que, em
na espécie humana,
boa
verdade,
a ontogenia
não existe
é o conjunto
como
fase imutável.
das modificações
que o indi-
víduo experimenta até à morte. Esta definição alargada cobre de facto alterações significativas no ser humano, devidas a causas biológicas e sociais em íntima concertação. 2 Tem
vindo
a abandonar-se
registo mais ou menos
a ideia
tradicional
de
a ontogenia
fiel do passado da espécie ou do grupo. Ajuda
ser um
mero
à montagem
do passado, ao seu traçado mais ou menos provável, mas não devemos procurar nela recapitulações, mas antes certas pistas, investigar, pela sua análise, o que se pode ter passado nas ontogenias ancestrais, sugerindo processos que responsáveis pela formação dos vários grupos, sem, naturalmente, esquecer como medida de afinidades. Por outro lado, o progresso nos estudos sobre exige cada vez com mais premência uma explicação da ontogenia, uma
porventura poderão ser o seu valor a evolução teoria geral
do
WI e 1986).
desenvolvimento,
que
ainda
não
existe
(v. meus
1983-a,
1985,
cap.
3 Certa literatura de divulgação propala o mito de que o homem, com o seu cérebro formado de partes evolutivas diferentes (réptil-mamifero-primata), tem reae-
ções e comportamentos «pensa»
como
uma
correspondentes
serpente
ou
um
a essas três idades. Quer dizer, reage ou
gato,
ou
um
macaco.
A parte
reptiliana
do nosso
cérebro seria responsável pelo comportamento agressivo, territorial, ou pela fixação das hierarquias sociais, pela sobrevivência, etc. O mito faz parte da ideologia determinista, que pretende situar a sede dos comportamentos e das emoções em certas áreas do cérebro. Por exemplo, o astrónomo Carl Sagan é um dos apaixonados por estas piruetas determinísticas. Para ele, it is striking how much of our actual behavior [...] can be described in reptilian terms (Sagan, 1977, p. 63). Todos os comportamentos e pensamentos humanos não podem ser reduzidos a certas áreas ou estruturas a constituírem causas separadas e únicas. Pensamos e agimos com a totalidade
do
confronto
«mente»
nosso
ou
corpo,
em
do
nosso
interacção,
do mamífero
arcaico
cérebro
a
todo
«mente»
(sistema
ele humano
reptiliana,
Não
a opor-se
há três
ou
«mentes»
a articularse
em
à
límbico), sede das emoções e motivações,
e ambas à mais recente «mente» dos mamiferos mais evolucionados (neocórtex), cérebro da iniciativa, da inteligência, da liberdade, que culmina no homem. Esta ideia
do cérebro trinitário foi inventada em 1970 por P. D. McLean (The Triune Brain)
e tem estado na origem de muita visão esquemática ou falsa da mente humana, aliás já manifestada antes noutras bases, mas compartilhando um mesmo ponto de vista
reducionista—o do homem programado e fragmentado recente do conceito dos três cérebros, v. Vincent, 1986). 4 O comportamento
natural nas aves é sobretudo uma
(para
uma
abordagem
mistura de actos «progra-
mados» e de aprendizagem (v. meu 1956). Mas mesmo o comportamento instintivo pode ser sujeito a uma certa maleabilidade, em muito menor escala, todavia, do que
nos mamíferos. A espontaneidade e a iniciativa não são as marcas salientes do seu comportamento,
rican,
mas em
todo o caso estes aspectos
existem
(v, Behavior — Sci. Ame
1980, vários artigos sobre este problema), Cf,, também,
o meu artigo «A psi-
cologia animal» (O Primeiro de Janeiro, Maio, 1963), assim como o cap, «Comportamento» que redigi para o Curso de Biologia-2, 3.º ed., 1979, 174
BIOLOGIA * Julian
Huxley
(1953),
«The
World, Menthor Book, pp. 101-111.
E
SOCIEDADE — I
intelligence of birds»
(in Man
in the Modern
é A questão é de facto complicada, porque o ovário é um órgão materno e é nele que se diferencia o óvulo. Há influências da sua estrutura e fisiologia sobre o
óvulo, de modo que o problema da origem do organismo individual não é solucionável se pensarmos em termos de assinalar um começo absoluto. O que se coloca verdadeiramente
à embriologia
e não
tanto
quando
é como
começa
exactamente
e se processa
ele começa,
uma resposta (v. cap. XI, no 2.º vol.). ? Há,
todavia, alguns
o desenvolvimento
do novo
ser
poderá
ter
o que só convencionalmente
tipos de neurónios que se multiplicam no adulto de certos
mamiferos,
o que
observações
(realizadas por L. F. Jarvik, especialista desta questão) parecem indicar
constitui excepção
não haver declínio car-se
mesmo
das funções
certas
à regra
(Privat, 1978). Por outro lado, certas
cerebrais entre os 64 e os 73 anos
melhorias),
inclusivamente
até idades
mais
(podendo
avançadas,
que
linguísticas
não
o enfraquecimento verificado foi nulo ou reduzido (Rabbitt, 1982). 8 Os
sons
vocálicos
humanos
e todas
as
suas
modalidades
verifiem
verbais ou emocionais, assim como o riso e os vários sons e ruídos do ambiente físico e dos outros seres vivos, influenciam, segundo parece, a estrutura do cérebro (hemis-
fério direito e esquerdo) e os esquemas de dominância cerebral. A linguagem materna teria uma
acção fundamental
nestas modificações, determinando o modo
como
cada
um capta e compreende os sons vindos do ambiente. Isto faz que culturas diferentes imprimam diferenças nas funções e dominância dos dois hemisférios cerebrais, como se verificou comparando as reacções de japoneses e europeus a estímulos auditivos. Estes factos, postos em evidência pelo japonês Tadanobu Tsunoda, parecem mostrar que a língua materna transmitida à criança influenciará provavelmente os meca-
nismos emocionais do cérebro, os quais poderão, assim, em grande parte, pelo menos, definir e orientar o tipo de cultura e a própria mentalidade de cada grupo humano e as suas inclinações artísticas e modo de compreender o mundo. Entre a estrutura
dos sons da natureza e a contextura da linguagem haveria certa analogia, que explicaria, pelas alterações provocadas
nos esquemas
cerebrais, muitas das diferenças das
mentalidades, de culturas em ambientes muito diferentes (v. Brabyn, 1982). 9 V., por exemplo,
de Adolf Portmann,
gie und das neue Bild des Menschen,
os seguintes trabalhos:
Rowohlt, Hamburgo;
1956 — Zoolo-
1958 — Vom
Ursprung
des Menschen, Reinhardt, Basileia. Sobre os trabalhos e as ideias do mesmo autor, v. ainda em meu 1977 os caps. IX e X e ainda «The Biological Philosophy of Adolf Portmann» (in M. Grene, Boston Studies in the Philosophy of Science, vol. XXIII, 1974; e também Gould, 1977). O que me parece estar no fundo do pensamento de Portmann é a rejeição do conceito de selecção natural como grande força agenciadora da origem e evolução do homem e a sua proposta que nessa evolução actuariam processos
psicogénicos,
sendo
a
peculiar
ontogenia
humana
uma
resposta
para
as
exigências do desenvolvimento espiritual da espécie, para a necessidade de uma longa aprendizagem física e sobretudo mental. 10 A expansão cerebral deve ter ocorrido muito cedo na linha da evolução humana, mais cedo do que em geral tem sido reconhecido (Martin, 1981). Quanto aos processos em curso, repetem-se factos conhecidos: aceleração do desenvolvimento fetal do cérebro e do corpo, de modo que nas crianças humanas estas partes são duas vezes maiores do que se esperaria que fossem em resultado da duração da gestação (idem). Além fase definitiva
do desenvolvimento fetal acelerado, o cérebro humano aumenta até à quatro vezes o volume que atinge ao nascer. Com o seu cérebro fetal,
o bebé humano é um ser muito mais dependente do que as crias dos outros primatas superiores. Que é que na gravidez humana mantém este acelerado crescimento? Que e que
Eae Nro tando
exasta
no
leite
materno
que
suporta
este formidável
crescimento
pós-natal
do
Estas questões são postas por Martin, que se confessa preocupado, pergun-
se quando
se ministra
às crianças leite de vaca modificado 175
de várias maneiras
GERMANO para as alimentar
sabemos
SACARRÃO
FONSECA
DA
o que
na realidade
estamos
fazendo
em
fetais e juvenis do homem
e dos antropomorfos,
com
as quais
a Buffon
(século xvirr)e a Etienne
pormenores,
v. Portmann,
Geoffroy
1965, e Gould,
Saint-Hillaire,
entre
em
fases teoria
recuar-se mesmo
1836
mais
(para
1977).
12 Processos consequentes ou ligados a essa disposição neoténica 1958, p. 70). Aliás, muitas
as
a sua
elaborou
da fetalização. Outros antes dele já as tinham reconhecido, podendo
desen-
de
termos
volvimento pós-natal do cérebro (v., também, Lewin, 1982-a). 11 Não foi Bolk quem descobriu as semelhanças que existem
outras características
da forma
humana
(v. De Beer,
resultam
directa
ou indirectamente da retardação ontogenética, tais como a forma da cabeça, da face e múltiplos caracteres anatómicos, o tardio completar da ossificação, o modo de copulação, etc. Só no homem é que as epífises dos ossos longos e dedos são ainda cartilaginosos à nascença; só anos mais tarde é que os membros ficam ossificados. Ora, no macaco essa condição humana existe nos fetos de 18 semanas, e os membros estão ossificados no momento do nascimento. Esta retardação ontogenética existe, como se disse (atenuada), noutros primatas. Os antropomorfos (gorila, chimpanzé, etc.) têm ontogenia mais retardada do que os macacos e do que os prossímios e vivem mais tempo do que estes. 3 Admitindo que o ramapiteco tenha estado situado na linha evolutiva que
conduziu ao homem (v. a nota 8 do capítulo anterior). Em qualquer caso a retardação ontogenética e algumas das suas consequências «humanas» já existiriam nos primatas antepassados dos australopitecos. 4 Múltiplos factores devem ter contribuído para a origem do homem. Não é admissível uma só causa. Provavelmente, o ser humano evolucionou por retardação
ontogenética, mas é legítimo supor que a sua origem resultasse de uma conjunção de disposições, de que todavia não sabemos ao certo quais foram nem como actuaram. Ora, na linha daqueles que procuram a causa única, alguns autores pensam que o que marcaria a passagem da natureza para a cultura, do animal não humano para o homem, seria a proibição do incesto, processo que estaria na origem da família
humana (v. Areia, 1980). Conforme a este ponto de vista, são as proibições, as regras negativas, que criam os laços sociais humanos, e não a simples evitação, como sucede em diversas espécies animais. Para Levi-Strauss, «nada seria mais falso do que reduzir
a família
códigos
de proibições e de obrigações,
à sua
base
natural».
Ora,
se este
autor
tem
razão,
quer
dizer
se a passagem da condição animal para a condição humana, das famílias animais para a família humana, só se pode compreender pela aplicação de complicados de interdições
inventadas,
então
(Julgo
eu)
o tabo do incesto no homem não poderá ser simplesmente atribuído a genes responsáveis especificamente por tal comportamento. Pelo menos não há qualquer evidência
directa
ou
indirecta
dessa
circunstância.
Por
outro
lado,
não
tem
qualquer
base
a
afirmação da existência de universais de comportamento, presentes em todos os indivíduos, em todos os tempos e circunstâncias, sem excepção. A genética e a teoria da evolução não podem justificar tal asserção (Maynard-Smith, 1978). E se foram os sistemas de proibições que deram origem à família humana, essa origem é inteiramente cultural. Mas este facto não deve significar que a biologia seja relegada para segundo plano nesse processo. Se, como os factos da ontogenia levam a admitir, O homem é um ser biologicamente cultural, não podemos considerar o tabo do incesto fora do quadro biológico da retardação ontogenética, e do enorme desenvolvimento cerebral a ela ligado, no sentido que tenho desenvolvido (v. meu 1986). A ligação macho-fêmea-filho, o aumento da inteligência para níveis humanos, o advento da
autoconsciência,
abriram o caminho,
inevitavelmente,
ao desabrochar do espírito,
à cultura, à subordinação da natureza às finalidades que o homem impõe a si mesmo, à simbolização, às invenções e manufacturações. É óbvia a necessidade que havia em manter a coesão familiar para fazer a educação dos filhos, num longo processo de protecção e de aprendizagem. Qualquer tentativa incestuosa quebrava essa coesão e harmonia, indispensáveis à longa fase de educação e de socialização, e ainda por 176
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —I
cima com mais de um filho a cuidar. Poderia ainda opor outras objecções. Que o tabo do incesto não é, provavelmente, uma tendência inata universal mostra-o a necessidade
da sua repressão generalizada, da parte da lei e da sociedade. Existe, segundo parece, uma campanha conduzida em certos meios norte-americanos (sexologistas, psicólogos, antropólogos) contra a sua proibição, e a favor de relações sexuais entre crianças e
adultos,
que, dizem, podem
ser benéficas entre membros
de uma
mesma
família,
tudo acompanhado de uma literatura que propaga ideias que põem em dúvida a necessidade da tradicional barreira, ou mesmo se ela será desejável, devido aos sentimentos de culpa, aos medos e à repressão a que arrasta a interdição (v. Time,
Abril, 14, 1980). Tanto esforço proibitivo não se coaduna lá muito bem com a hipótese da existência de genes específicos anti-incesto. As relações sexuais intrafamiliares próximas, ainda que pouco comuns, parecem ser mais frequentes do que em geral ce crê (1 milhão de casos por ano nos Estados Unidos da América do Norte). É para o que também aponta um penetrante trecho de Frank Livingstone (1980), onde discute as causas genéticas e culturais do tabo do incesto.
15 O fenómeno da maior precocidade da puberdade deve conter múltiplos componentes. A influência da urbanização e da multiplicidade de ambientes e de estímulos que ela cria e o contraste com o ambiente rural têm suscitado algumas reflexões. As raparigas citadinas menstruam mais cedo do que as raparigas do campo,
e analogamente
ratos trazidos para o laboratório
e domesticados mostram
algumas
diferenças em relação à situação da vida selvagem, nomeadamente no que respeita ao desenvolvimento mais precoce das glândulas sexuais, havendo talvez, também, um
efeito de iluminação. Fotoperíodos artificialmente mais longos actuariam sobre as glândulas sexuais (por intermédio da pineal) e influenciariam o crescimento, a maturidade e aumentariam a agressividade (v. Hartung, 1978, que dá bibliografia). 16 Além da «gracilização» do esqueleto, têm-se de facto apontado outros processos seculares, como a braquicefalização, com provável acção da selecção, por exemplo mortalidade diferencial ligada a menor resistência a doenças da parte dos dolicocéfalos,
havendo,
também,
o processo
inverso, ou seja, a desbraquicefalização
e aumento de estatura. São numerosos os casos de modificações da forma craniana ocorridos em várias regiões, mas pouco se sabe das suas causas (v. Olivier & Castro e Almeida, 1979, com colab. de H. Tissier).
Bibl.
Univ. 49 — 12
JT
CAPÍTULO CIÊNCIA
As
-1882), 1859,
ideias
FILOSOFIA
resultantes
sobretudo onde
E
do
introduziu
dos
DO
trabalhos
livro 4
Origem
e desenvolveu
como agente de mudança,
V DARWINISMO
de
Charles
das Espécies!, o conceito
Darwin
(1809-
publicado
de selecção
em
natural
provocaram uma profunda revolução cien-
tífica e cultural que ainda não terminou. À atitude do homem perante a questão das suas origens, natureza e destino modificou-se completamente, tomou novos rumos. Ás ciências sociais e humanas foram profundamente afectadas pela nova doutrina, e raros foram os domínios, da filosofia à sociologia, da psicologia à política, da literatura à história, e tantos outros, que não acusaram o embate violento causado pela revo-
lução darwiniana.
Quanto
à religião, o choque
recebido foi enorme,
atingindo-a nos próprios alicerces. À crença no Génesis jamais se recom-
pôs do abalo sofrido. A teologia cedeu
o lugar
à ciência.
À imagem
do homem,
o
seu lugar na natureza, a sua relação com esta, passaram a ser diferentes
do que estabeleciam os textos sagrados, e que até então tinham orientado a nossa visão do mundo e a de nós próprios. O homem deixou de se considerar um
ser à parte do resto da natureza, perdeu a posição de ser
preferido da Criação, de centro e objecto dela. Simplesmente uma espécie entre muitas outras, da ordem dos Primatas e da classe dos Mamíferos, originada pelas mesmas causas materiais que as determinaram,
emergindo
da
bruteza
simiesca,
e depositária
de instintos
que
tornam o homem irresponsável por esses novos demónios que encerra. A própria essência do conceito de mal, principalmente no que respeita às suas origens, foi modificada. Maldade e egoísmo passaram a ser considerados parte integrante da nossa herança animalesca, estão ligados à luta pela existência, são naturais, e por isso mesmo justos. À competição pela sobrevivência do mais apto seria a grande lei da natureza. Dela dependem o sucesso, a conquista dos recursos. O optimismo nas possibilidades de aperfeiçoamento moral e social da humanidade excluía toda a crença numa maldade inata herdada de um passado distante, quando o bruto sub-humano enfrentava com feroz combatividade uma natureza inimiga, crença esta que só surgiu plena com a teoria darwiniana e, sobretudo, com o seu prolongamento ideológico — o darwinismo
social e seus actuais i
Ê
de
K.
Lorenz
e
sucedâneos
outros,
a
e seguimentos
sociobiologia, 179
etc.).
(a escola instintivista
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
Os violentos conflitos suscitados pela publicação da Origem,
tarde do livro The Descent of Man
(1871),
resultaram
e mais
sobretudo
da
ideia de se considerar o homem um mero acidente da vida neste planeta, produto
de contingências
desenvolvidas
num
longo
processo
evolutivo
sem projecto, destituído de causalidade transcendente e accionado por forças materiais. Tese na aparência simples, mas de profundo alcance. Assim: a diversidade individual traduz-se por diferentes capacidades e a morte é, em grande parte, diferenciadora — ceifa em maior
número
os menos
ajustados.
Daqui
resulta
que
são
preservados
indivíduos possuidores de características que favorecem
maior
os
sobrevi-
vência. Vivem mais tempo, reproduzem-se mais do que os indivíduos
portadores de características menos favoráveis. E como os primeiros deixam maior número de descendentes do que os segundos, as características favoráveis tendem a aumentar nas gerações sucessivas, e as
desfavoráveis são eliminadas. O resultado é a transformação
dos orga-
nismos no sentido de uma melhor adaptação às circunstâncias do ambiente. É como nascem muito mais indivíduos do que aqueles que podem sobreviver, na grande «luta pela sobrevivência», na «grande e complexa batalha pela vida» (como lhe chamou Darwin), acumulam-se nos segundos as variações favoráveis, e novas variedades e novas espécies se podem formar. À estes mecanismos de conservação das variações
favoráveis e de rejeição das variações nocivas chamou Darwin seleceão
natural 2.
Não é fácil avaliar em que medida é que o meio social instável ce em febril transformação, como foi quase todo o século xIx, determinou grande parte da estrutura mental do darwinismo e a parte que teve este último mesma
na elaboração de um sistema de valores e justificações dessa sociedade. Não podemos, por outro lado, ignorar o próprio xvIII, que se EEE dor
progresso científico que já vinha do século inúmeras descobertas e em novas ideias acumuladas
até final da
pri. ,
e
fada
meira metade do século xIX, e que Darwin e outros homens ls Tudo isto ajudou à revolução científica e cultural.
A teoria da selecção natural veio corresponder
a uma
necessidade
a de explicar e justificar um mundo em rápida transformação, que ú Igreja já não podia caucionar. Teoria que Darwin elaborou influenciado, talvez, pela visão de uma sociedade de Aplicou à natureza a economia do liberalismo,
dade. Os indivíduos a agirem separadamente,
competição econômica. a moral da nova socie-
a competirem
pelo seu
sucesso, sendo diferentemente dotados para a luta pela existência num mundo de livre concorrência. Cada um a lutar pelo seu próprio êxito 180
A o nd
ma La PP
darwinismo
A Mae dnmo . Lm
do
nd
Génese
dada tt db o
1.
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — 1
na vida. Herbert Spencer (1820-1903), por exemplo, decerto impressio-
nado pelas novas relações económicas e pelo avanço rápido da ciência e da tecnologia, declarou, muito antes da publicação da Origem,
que a
competição era vantajosa entre os homens, portanto um fenómeno de selecção. Bebeu estas ideias, provavelmente, em Thomas Hobbes e certamente no clérigo economista Thomas Malthus. É, aliás, também significativo que Darwin tenha sido influenciado, logo em 1838, pela leitura do ensaio clássico do mesmo Thomas Malthus — An Essay on the Principle of Population as it affects the Future Improvement of Society, publicado em 1798 pela primeira vez. Neste célebre ensaio, o seu autor chama a atenção para as consequências do crescimento geométrico das populações humanas, em contraste com os dos recursos
alimentares, que não aumentam na proporção correspondente. As consequências, diz Malthus, são desastrosas: guerras, fome, miséria das classes inferiores, doenças, mortalidade elevada dos pobres e restabele-
cimento
do equilíbrio. A regulação
é imposta pela natureza. Para o
padre Malthus, a vida é uma luta na qual sobrevivem os melhores,
os
quais
são
recompensados
por
isso
com
riqueza
E Darwin pensou que, se isto acontecia com os homens,
e posição
social.
se a doença e as
guerras eram Os freios que impediam as populações humanas de se tornarem demasiadamente
numerosas em relação aos recursos alimentares
disponíveis, também o mesmo poderia acontecer nas sociedades animais.
Aqueles animais ou plantas cujas variações os tornassem melhor adapta-
dos ao ambiente poderiam transmitir as vantagens adquiridas às gerações sucessivas e gradualmente poderiam as espécies dar novas variedades e estas novas espécies. À grande miséria e fome dos anos 30 e, sobretudo, 40 do seu século eram fenómenos bem apropriados para observar o
malthusianismo
em
acção,
e
Darwin
não
deixou,
provavelmente,
de ser influenciado por esse facto; tanto mais que essa época coincidiu com o período da génese e intensa elaboração da sua teoria. A título de exemplo, recorde-se que no começo do a introdução da batata e a respectiva cultura na Irlanda
consequência todavia,
um
paralisado
rápido devido
aumento
século XIX teve como
da população. Este crescimento: foi,
à doença
da: batateira
(provocada
por
um
fungo). Este facto determinou, por sua vez, um período de fome e mortalidade elevada em 1845. Estas e outras catástrofes que têm afligido a humanidade estão aparentemente de acordo com a teoria de Malthus, doutrina pessimista, que tem sido utilizada para desencorajar, come justamente escreveu J. Bernal, todas as tentativas de melhorar a condição humana.
Não parece difícil calcular a influência de tal ensaio, sobretudo o seu aproveitamento ideológico, escrito em pleno despontar da revolução industrial, obra que, todavia, foi fortemente combatida. As classes
dominantes
e empreendedoras
e as camadas privilegiadas ou em ânsia 181
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
de ascensão encontraram aí, e noutras fontes semelhantes, a justificação
dos seus actos e propósitos e uma
moral
para
capitalismo do ligados à posse Malthus as leis que asseguram
de promoção
as profundas
e de poder,
transformações
que
uma iria
desculpa
imprimir
o
século x1x. Os meios reaccionários e conservadores, da terra, e a própria Igreja, viram nas conclusões de próprias do imobilismo e da fatalidade, e os equilíbrios a sua permanência.
O ensaio de Malthus podia ser interpretado em termos de evolução, ainda que não contivesse indicações nesse sentido, fosse acima de tudo
uma obra sobre o «equilíbrio populacional». Mas as causas da morte por fome e doenças, as razões por que uns morrem, outros sobrevivem, a luta pela existência (luta sem o mesmo sentido que lhe deu Darwin, como adiante se verá), podiam ser encaradas em termos de mudança, de progresso, de «aptos» e de «não aptos». Foi precisamente isto que fez H. Spencer, em 1852, na sua Theory of Population, que aplicou exclusivamente ao ser humano. Como escreveu John Burrow, numa
introdução ao livro de Darwin, Spencer virou completamente do avesso a tese
de
Malthus,
fazendo
dela
a base
da
sua
teoria
do
pro
humano sobre a eliminação dos «incapazes». Uma teoria (a de Malthus) que não implicava transformação e foi elaborada para contrariar as doutrinas iluministas do progresso sem fim, a pretender mostrar que há
limites impostos pela escassez de recursos alimentares relativamente ao crescimento
da população,
essa teoria,
dizia, serviu
de base
a uma
teoria de progresso, onde a competição conduz à eliminação dos «piores». Como se vê, está aí, com toda a nitidez, a ideia da selecção natural, introduzida por H. Spencer antes de Darwin a ter publicado na Origem.
A expressão spenceriana que ficou célebre é a de «sobrevivência dos mais aptos» (survival of the fittest ). A influência que Malthus exerceu sobre Darwin não é, porém, tão
simples
trabalhos
têm
como
uma
análise
sido publicados
superficial
poderia
sobre esta questão,
sugerir.
que
não
Diversos
podemos
desenvolver aqui. Diz Darwin na sua autobiografia (escrita sem intento de a publicar, destinando-a aos filhos) que a leitura do ensaio
de Malthus lhe suscitou prontamente a ideia de selecção natural, ou seja,
de que as características favoráveis dos organismos de cada espécie tendem a ser preservadas, enquanto as desvantajosas seriam eliminadas. Diz ter tido esta intuição em Outubro de 1838, como se verifica pelas suas próprias palavras, num trecho memorável que merece ser transcrito: In
October
1838,
that
is,
fifteen
months
after
I had
begun my systematic inquiry, I happened to read for amusement Malthus on Population and being well prepared to 182
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —
appreciate the struggle for existence which everywhere goes on from long-continued observation of the habits of animals and
plants,
it at once
struck
me
that
under
these
circuns-
tances favourable variation would tend to be preserved and unfavourable ones to be destroyed. The result of this would be the formation of a new species. Here, then, 1 had at last
got a theory by which to work; but I was so anxious to avoid
prejudice, that I determined not for some time to write even
the briefest sketch
of it.
Os seus «cadernos de notas», nos quais Darwin registava e datava os seus pensamentos, mostram, todavia, que a relacionação de Darwin com Malthus é mais complexa, e vários problemas surgem quando se considera a génese do seu pensamento e as influências recebidas. Por exemplo, declara numa carta a A. R. Wallace que foi a prática da domesticação dos animais e plantas que lhe permitiu estabelecer o princípio da selecção aplicá-lo. Nessa
natural
e que
só depois,
ao ler Malthus,
viu como
carta, que tem a data de 16 de Abril de 1859, escreveu
a seguinte passagem: You are right, that I came to the conclusion that selection was the principle of change from the study of domesticated production; and then, reading Malthus, I saw at once how to apply this principle.
Porém, como se referiu, afirma na autobiografia que foi a leitura (por simples divertimento) do ensaio de Malthus que subitamente lhe
fez nascer na mente a teoria da selecção, com a qual finalmente poderia trabalhar. Poder-se-ia deduzir por esta declaração que antes não lhe surgira ainda qualquer ideia acerca do processo. Ora no seu «caderno de notas» (Transmutation Notebook D) há um trecho, datado de 28 de Setembro do mesmo ano (1938), que prova não só que Darwin conhecia o ensaio
de Malthus
como
exprime
aí, de forma
perfeitamente
clara,
a
ideia de selecção natural, aplicada a plantas e animais não domesticados. Apenas transcrevo o seguinte passo, que me parece significativo: /The
final
cause
of all this wedging,
must
be
to sort
out proper structure, & adapt it to change/ — to do that for form,
which,
Malthus
shows 183
is the final effect of this popu-
GERMANO
DA
FONSECA
lousness on the energy of like a hundred thousand of adapted structure into or rather forming gaps by
SACARRÃO
man, One may say there is a force wedges trying to force every kind the gaps in the economy of nature thrusting out weaker ones.
É possível que quando escreveu a Autobiografia, em 1876, Darwin não estivesse bem certo acerca de certos pormenores respeitantes à génese do seu pensamento nos dias já distantes de 1837 a 1839. Ou talvez
quisesse
marcar
(provavelmente
Outubro
como
o termo
de Agosto a Outubro)
de
um
curto
intervalo
em que entreviu as bases e o
significado da selecção natural e de que lhe pareceria a ele talvez inútil explicar os pormenores do desenvolvimento desse conceito numa auto-
biografia que não pensava publicar. Seja como
for, deixe-se este pro-
blema para os historiadores e os darwinólogos, mais interessados e mais
competentes do que eu para dilucidar o problema. Dez meses depois de terminar a sua viagem como naturalista a bordo do navio Beagle, Darwin começou, em Julho de 1837, a registar as suas reflexões na série de «cadernos
de notas» sobre a transmutação
das espécies ?. Quando regressou a Londres, não tinha ainda uma teoria
do processo evolutivo. É certo que já estava reticente sobre a fixidez das espécies e em breve, passados poucos meses, baseado numa massa impressionante de factos, de observações e leituras, pensava que a trans-
formação das espécies era uma
realidade. Não
tinha
era uma
teoria
para a explicar. De 1837 a 1839 viveu um período de intensas leituras
colecções de animais e plantas que conseguiu na viagem, que o levaram
pronta
e directamente
Foram,
também,
variados
campos,
à edificação
do
conceito
da
selecção
natural.
as copiosas e intensas leituras e cogitações nos mais na poesia,
na
economia,
na
filosofia,
e as
reflexões
que elas lhe suscitaram em sectores como a religião, a psicologia, a epistemologia, a antropologia, a moral, e sobre as quais registou posições
pessoais
acerca
desses e de outros
grandes
temas.
Foram
dois anos
de
profundas reflexões filosóficas e metafísicas. Os títulos dos seus «cadernos» e as notas aí inscritas são elucidativos quanto à sua actividade de pesquisa teórica em múltiplos campos, a procurar uma chave, uma compreensão, um caminho. Eis a colecção preciosíssima desses «cadernos», actualmente conservados no «Anderson Room», da University Library da Universidade de Cambridge, na Inglaterra: , Transmutation
Notebook
B (1837 a-1838 a);
Transmutation
Notebook
C
(1938 b); 184
pa el ai
notável trabalho
teórico. Mas não foram apenas os factos e observações que obteve e realizou durante a sua memorável viagem, nem tão-pouco só as vastas
ad ita ns il id
e reflexões. Os seus «cadernos de notas» reflectem um
BIOLOGIA
E
Transmutation
Notebook
D
Transmutation
Notebook
E
Metaphysical Metaphysical
SOCIEDADE —I
(1838 c); (1838 d-1839 a);
Notebook
M
(1838 e);
Notebook
N
(1838 [-1839 b);
Old and Useless Notes about the moral sense & some metaphysical
On
Macculloch,
PSOE
ear
rem
Na mesma
Attributes
(1837 b-1840 a);
& earlier
points writen about the year 1837
of the
(1838
Deity
g).
biblioteca encontram-se igualmente os dois esboços do fundamental,
e viria a ser mais tarde (1859) o livro The Sketch of 1842 e The Essay of 1844.
ou
seja,
não consistiu exclusivamente em
A originalidade do darwinismo
(em resultado de uma acumulação impressionante de
impor a ideia
observações) de que as espécies se transformam e que existe uma continuidade na vida por meio de uma sucessão de formas diversas. Essa ideia já tinha sido emitida por outros homens, noutras épocas. Destes,
CCN
RS e
re
meeeeerrrerrrerraeeemm
:
o mais importante foi, seguramente, Jean Baptiste de Monet de Lamarck
(1744-1829),
que
teoria
do século x1x elaborou uma
já no princípio
eral da evolução. As suas obras capitais são a Philosophie zoologique (1809) e (de 1815 a 1822) L'Histoire naturelle des animaux sans vertêbres.
toda
em
Exprimiu
a sua
extensão
a doutrina
transformista,
se bem que não empregasse nunca a palavra «evolução». Foi ao ponto
de afirmar com insistência que o homem podia derivar de um simio que
tivesse abandonado a vida arborícola, o qual, submetido e pressionado por novas necessidades, passou a levar vida social. Todavia, a seguir, talvez para se proteger das reacções dos teólogos, quase que nega o que dissera antes. Já na antiguidade grega se tinham feito especulações sobre a evolução (v. o cap. 1). Foi o caso, entre outros, de Anaximandro de Mileto (610-547) e de Empédocles de Agrigento (495-435), mas com a falta de documentos não passaram de jogos de ideias a pressentirem a realidade. Depois, na Renascença, houve algumas intuições sob a influência dos escritos gregos, pelos quais foram conhecidas as suas ideias evolucionistas. Vanini (1586-1619) é queimado vivo pela Inquisição em Toulouse por ter admitido que o universo não é o produto de um
espírito,
combinação
mas,
pelo
acidental
a sua origem
contrário,
de
No
átomos.
século
é o resultado
xvirt, Buffon
de
uma
e diversos
enciclopedistas e filósofos da natureza compartilham ideias evolucionistas. À ideia de evolução andava no ar. Buffon, sobretudo, é notoriamente evolucionista, mas com avanços e recuos nas suas ideias, acautelando-se
das condenações e perseguições dos círculos reaccionários. Isto faz que ele não tenha elaborado uma doutrina, um corpo sistemático de pro: posições
sobre
a
evolução,
sob
a
forma
de
uma
teoria
explicativa.
Poder-se-á até dizer que as suas ideias eram instáveis e não parece muito provável que as suas hesitações fossem causadas pelo medo de ser 185
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
perseguido, visto os poderes instituídos não se revelarem muito perigosos
para ele, de modo que é provável que não tivesse necessidade premente de esconder o fundo do seu pensamento. Em todo o caso, uma posição social confortável, o desejo de não estar em contradição com a classe dominante, uma documentação insuficiente, e a influência de uma
sociedade estática, tudo isto deve ter actuado para determinar as suas hesitações,
impedindo-o
de
elaborar
uma
teoria
transformista.
Mau-
pertuis (1698-1759) foi, em certos aspectos, mais longe do que Buffon. Pelo menos foi mais especulativo. Entreviu a importância das variações
hereditárias, estava perfeitamente consciente do papel da selecção. Erasmo Darwin (1731-1803), avô de Charles Darwin, publicou um livro, Zoonomia, transformistas.
disse,
primeiro
que Mas
tratava foi
de medicina,
Lamarck,
estruturou
uma
no
discípulo
teoria
de
qual
manifesta
Buffon,
explicativa
ideias
quem, como
da
evolução,
que
todavia não teve aceitação nos meios científicos por lhe faltar o apoio dos factos, por ser demasiado especulativa e, em muitos aspectos, confusa. Não foi esse o caso de Darwin, que convenceu definitivamente o mundo científico de que a evolução é uma realidade, que pode ser cien-
tificamente evidenciada e explicada. Para isso acumulou um tal peso de evidências científicas que não deixou lugar para mais dúvidas quanto à realidade do processo. Os factos coligidos, as observações que fez, os exemplos em que se baseou, são impecáveis como argumentos a favor da
transmutação das espécies. Não menos importante
foi o estilo sóbrio,
lúcido, penetrante, revelador de extrema prudência e ao mesmo
tempo
exprimindo a grande densidade do pensamento. Quer nos livros, quer nos artigos, Darwin
revelou-se constantemente
como
um
grande
cien-
tista. Nada de estilo declamatório, ou dogmático, de fraseado oco, de mistério, de confusionismo. Obras especulativas e nebulosas sobre o evolucionismo
havia-as
antes
de Darwin,
e por
isso não
se impuseram.
Lamarck não parece ter sido muito original (continuou e desenvolveu
o que cautelosamente Buffon traçara). Nem dade biológica dos caracteres adquiridos
o conceito de hereditarie-
é seu, como
por vezes se cre.
A ideia vem de tempos remotos, e era já admitida entre os gregos da antiguidade. Darwin
foi um
poderoso observador, um
homem
simultaneamente
ligado aos factos que constrangem, capaz de ousadia nas hipóteses e de teorizações de grande alcance, Prudente e audaz, nem os factos lhe tolheram a imaginação e a inteligência, nem esta traiu a fidelidade ao real, ao objectivo, ao testável, e sem nunça
perder altura.
como agnóstico. Esta preparação materialista favoreceu, provavelmente, a concepção da selecção natural como mecanismo de mudança, processo 186
acl
Logo que regressou da sua grande viagem, as suas reflexões meta»
físicas fizeram-no abraçar o materialismo e, do ponto de vista religioso, se não foi inteiramente ateu, daí para o futuro revelou-se certamente
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — 1
de acção que considerou como uma força natural, tal como outras forças físicas. Sejam quais forem as interpretações (e elas são várias e contra-
ditórias por vezes)
que os darwinólogos elaborem sobre a génese do
pensamento de Darwin, o que parece incontestável é que a Origem foi a sua
primeira
e mais
importante
obra
herética,
reflectindo
a opção
filosófica feita talvez entre 1837 e 1839. Mas não é correcto dizer-se que foi o materialismo filosófico que o conduziu à teoria da selecção
natural, que essa doutrina fosse mais influente para a sua elaboração teórica do que os documentos e factos científicos que coligiu e observou durante a sua longa viagem, a qual teve uma profunda acção no seu espírito. Deve
lembrar-se que quando Darwin partiu a bordo do Beagle
era já um homem
com treino científico de elevada qualidade, e quando
chegou de novo a Inglaterra era um cientista com uma experiência inigualável. E mesmo antes de publicar a Origem em 1859, a sua bibliografia era vasta e a sua reputação de homem de ciência universalmente
reconhecida.
uma
interacção
Que
as espécies
A
realidade do seu trabalho intelectual foi a de
fecundíssima
e muito
íntima
de factos
e ideias, em
! constante reciprocidade *. Darwin separou perfeitamente a evolução, como processo, do mecanismo que propôs para a explicar — a selecção natural. Esta constitui a componente mais original e mais revolucionária da grande heresia. derivam
umas
das outras havia naturalistas que já o
pensavam na primeira metade do século xix, de modo que quando surgiu a Origem a surpresa foi mais pela alta craveira da obra, pela imensa acumulação de factos científicos e pela poderosa e irrecusável
argumentação, que rendia os mais obstinados ou cépticos, do que propriamente pela novidade da ideia. Mas com a selecção natural, ou seja,
propondo variações
a existência de uma acção das circunstâncias exteriores sobre congénitas surgidas sem finalidade, já o caso era diferente.
Esta teoria nega a explicação da natureza e do ser humano em termos metafísicos e espirituais. E isto nunca foi perdoado a Darwin. Por mais
voltas que os analistas dêem à sua obra científica, jamais encontram
nela qualquer ambiguidade, qualquer cedência a causas transcendentes. O que nela se verifica é uma proposta constante de acção de forças naturais e físicas. Nunca Darwin apelou para factores que não pudessem ser pensados e trabalhados cientificamente, apoiados em factos, suportados pela observação e pela experiência. Nem mesmo na autobiografia, na sua correspondência, ou nas suas notas, nos seus papéis e anotações, há qualquer desvio em relação ao materialismo filosófico que convictamente escolheu: um permanente rigor científico, numa simbiose perfeita entre pensamento racional e factos e observações acumuladas, Podem as notas que deixou não traduzir todos os meandros do seu fecundo
pensamento,
todas
as influências
recebidas.
Mas
isso importa
pouco, porque não afecta o que a sua obra publicada exprime, com toda 187
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
a claridade da sua inteligência ímpar. Um respeito obsessivo pela objecti-
vidade, e para tudo explicar em termos materialistas, sem evocar misteriosas forças vitais, impulsos orgânicos teleológicos, causas espirituais, etc. Para ele, a mente, o espírito, são produtos da matéria cerebral, são epifenómenos. À matéria é a fonte e o tecido de toda a existência. Darwin sabia que esta doutrina era uma verdadeira heresia, mais inaceitável do que a ideia de evolução, para a qual havia já acomodações e compromissos com a teologia, sem pôr em cheque os textos sagrados. Mas com o materialismo filosófico, a partir do qual concebeu e desenvolveu a teoria da selecção natural, era indispensável esconder o seu pensamento e não o tornar público, nem mesmo os seus aspectos cientificos. E foi talvez esta a razão pela qual prudentemente tardou em publicar a Origem só se resolvendo a isso pela pressão das circunstâncias, nomeadamente pelo facto de Alfred Russell Wallace (1823-1913) ter concebido
de forma independente
a teoria da selecção natural
(mas
sem a força, a projecção e o suporte factual e filosófico que moveram Darwin) e porque também, vinte anos decorridos (de 1839 a 1859), as condições da sociedade e da ciência eram diferentes das que existiam Claro está que, apesar de toda a sua objectividade
e rigor cienti-
fico, isto não significa que não haja na obra de Darwin uma filosofia,
até
uma
espécie
de fé, uma
visão
algo mística
da
natureza,
da sua
grandeza, das múltiplas interdependências e harmonias que ela exibia
car
da transmutação das espécies º.
teoria explicativa
ie a
quando o jovem Darwin começou a sua busca de uma
aos seus olhos. Mas é possível que haja aí também uma certa concessão sua a compensar
a) A
as consequências
da sua grande
heresia.
«sobrevivência dos mais aptos»
Na 1.º edição da Origem, Darwin utiliza a expressão «selecção natural» e o título do cap. IV é apenas «Natural Selection». Aí diz após densos desenvolvimentos e argumentações: This preservation of favourable variations and the rejec-
tion of injurious variations, I call Natural Selection.
188
o: nt cn ii Ci le AN
din
para: «Natural Selection; or The Survival of the Fittest». E o texto acima passou a ser assim redigido na edição definitiva:
dad
Todavia, em edições posteriores, altera o título do mesmo capitulo
BIOLOGIA
This
E
preservation
SOCIEDADE —
of favourable
individual
differences
and variations, and the destruction of those which are injurious, I have called Natural Selection, or the Survival of the Fittest.
No
capitulo
anterior
claramente
explica a escolha da expressão
spenceriana:
I have called tion, if useful, is in order to mark But the expression Survival
of the
this principle, by which each slight variapreserved, by the term Natural Selection, its relation to man's power of selection. often used by Mr. Herbert Spencer of the
Fittest is more
accurate,
and
is sometimes
várias
desvantagens
equally convenient. A
expressão
spenceriana
apresenta,
porém,
relativamente à de selecção natural. É muito menos neutra, mas é per-
feitamente tautológica, e aponta nitidamente para o racismo sob todas
as formas. Regressemos a Malthus. E perfeitamente significativo que fosse um livro basicamente de política e economia que inspirasse Darwin a conceber o princípio da selecção natural, a base teórica que procurava, e sobre a qual poderia agora trabalhar. Todavia, há numerosas passagens na obra de Malthus que se relacionam directamente com a história natural. Algumas não devem ter deixado de impressionar Darwin, como as que respeitam ao facto reconhecido por Malthus de que há espécies de plantas e animais de tal modo prolíferas que rapidamente cobririam todo o planeta se não sofressem uma acção frenadora (é o princípio da
concorrência
vital,
portanto)
da
parte
de outras espécies:
Necessity, that imperous, all-pervading law of nature, restrains them within the prescribed bounds. The race of plants and the race of animals shrink under this great restrictive law, Malthus refere-se à «luta pela existência» (struggle for existence) em relação com a competição social. Mas Darwin deu outro sentido a essa «luta» (aliás, conferiu-lhe até vários sentidos), afastando-se do conceito estreito de representação de uma natureza em permanente luta
sangrenta,
embora
fosse esta a ideia que foi vulgarmente assimilada 189
GERMANO
para
vência
DA
FONSECA
SACARRÃO
Alfred R. Wallace, em 1866, numa carta dirigida a Darwin, insiste que este substitua a expressão «selecção natural» pela de «sobrevi-
dos mais aptos», que considera
mais
correcta, mais inteligível,
e Darwin fe-lo, pensando, igualmente, que a expressão seria mais exacta para traduzir o seu grande princípio, segundo o qual cada ligeira variação é conservada se acaso for útil. Simplesmente a escolha e a
equivalência resultaram pouco felizes, quanto mais não seja pelo carácter
tautológico
da
expressão
adoptada,
como
pelas
confusas
e falsas
implicações a que deu origem no plano político e social, como já referi. É
Quais são, porém, os mais aptos? curioso que Darwin não hesitou em
Qual o critério criticar Herbert
de aptidão? Spencer em
diversos aspectos, com apreciações depreciativas. Por exemplo (veja-se Freeman, 1978): «Such dreadful hypothetical rubbish» (a propósito da
leitura do ensaio de H. S. sobre a população), ou «somehow I never feel any wiser after reading him, but often feel mistified» [sic]; ou ainda:
«If
expense
he
wonderful man
trained
himself
to
[...]»; e, finalmente: Spencer's terms
that Mr.
head
had
observe
more,
even
at
the
[...] of some loss of thinking powers he would have been a «I have so poor a metaphysical & c. always bother me
of equilibration
and make everything less clear»; «with the exception of special points is too hard for me».
general
doctrine;
Tudo isto foi escrito em cartas entre 1680 depois da publicação da Origem. Parece, portanto,
for his style
e 1874, portanto que agradou espe-
cialmente a Darwin a expressão «sobrevivência dos mais aptos», deixando talvez influenciar-se pela sua tendência para personificar a natureza ”, pendor que de certo modo
contraria a sua filosofia materia-
lista e a primazia que atribuía ao acaso na evolução e na constituição do mundo, na produção de ordem, negando que o livre-arbítrio fosse uma
característica
juventude,
humana,
e isto desde
depois da viagem a bordo
Também
os tempos
das
do Beagle
suas
reflexões da
(v. Manier,
1978).
deve ter tido alguma influência na escolha da expressão
supracitada a sua posição de classe e o clima de liberalismo económico
e de livre concorrência económica. Mas isto são meras conjecturas quanto ao determinismo da sua opção spenceriana. Em todo o caso, a ideia de «sobrevivência dos mais aptos» já era utilizada num contexto social como uma trivialidade, não só por contemporâneos de Spencer
e de Darwin, como por autores precedentes, não com essa expressão literal, mas na tradução banal que os mais fracos são vencidos e os mais fortes recebem o prémio do seu esforço. Herbert Spencer introduziu o conceito na sociologia, que com Darwin entrou na biologia, que o
ligou ao conceito de luta pela existência na natureza e lhe deu a categoria
agente
de
teoria
científica,
de transformação
identificando-o
das espécies. 190
à
selecção
natural
como
adia
H. Spencer's
a Cià ad
I did not even understand
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —I
Para Douglas Futuyma (1983), a economia capitalista não precisou de Darwin. Segundo o mesmo autor (e de muitos outros), o conceito de selecção natural tem as suas raizes nas teorias económicas de Adam Smith e de Thomas Malthus, e os economistas têm razão quando dizem que a biologia descobriu afinal o que eles já conheciam há muito. O evolucionismo darwiniano apenas serviu de justificação para logias políticas e sociais, dando a possibilidade de afirmar que
ideoessas
crenças têm a força de uma lei natural. Pode perguntar-se se Darwin, quando
intuiu
o princípio da selecção natural, não se limitou, afinal,
a aplicar à natureza viva, considerada (conforme à ideologia) em constante
luta
pela
existência,
uma
ideia
emitida
por
outrem
e, além
do
mais, um conceito vulgar na economia liberal e no senso popular, ideia que ele teria o mérito de desenvolver como um conceito científico.
Antes de Darwin e de Wallace, outros autores já haviam manifestado ideias que podem considerar-se análogas ao conceito de selecção natural. Na realidade, Darwin teve precursores, como Towsend, Wells (1813 e 1818), Matthew (1831), que tinham deduzido ou aplicado já os conceitos de concorrência e de selecção dos mais aptos em casos
particulares, não citando os próprios clássicos, que, como Aristóteles, tiveram a intuição do princípio de selecção natural (v. adiante). É digno de registo o seguinte trecho da autoria de Patrick Mathew, que já apresenta objectivos de generalização e que, sem' qualquer dúvida, acentua com clareza a noção e a sua importância, e isto muito
antes de ela ter surgido no cérebro de Darwin:
|
$5º
As the field of existence is limited and preoccupied, it is only the hardier, more robust, better suited to circunstance
individuals, who are able to struggle forward to maturity, these inhabiting only the situations to which they have superior adaptation and greater power of occupancy than any other kind;
weaker and less circunstance-suited being prema-
turely destroyed. This principle is in constant action; it regulates the colour, the figure, the capacities and instincts; those individuals in each species whose colour and covering are best suited to concealment or protection from enemies, or defence from inclemencies or vicissitudes of climate, whose figure is best accomodated to health, strength, defence and support;
whose capacities and instincts can best regulate the physical energies to self-advantage according to circunstances — in such immense waste of primary and youthful life those only come forward to maturity from the strict ordeal by which nature tests their adaptation to her standard of perfection and fitness to continue
their kind by reproduction. 191
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
Não deixa de ser fascinante que o naturalista Alfred R. Wallace (1823-1913), muitos anos mais tarde (enquanto Darwin mantinha inéditos os seus manuscritos sobre a teoria da selecção natural), noutro
extremo do planeta, tenha chegado às mesmas conclusões que Darwin (desconhecendo-as) pela leitura do mesmo livro de Malthus e precisamente para matar o tempo, numa ocasião em que estava doente e febril
com um ataque de malária. De repente viu também a solução («then it suddenly flashed upon me that...») e, sendo de uma natureza diferente de Darwin, logo que o ataque lhe deu tréguas, escreveu o seu ensaio em dois dias. Mais adiante voltarei a este ponto. A ideia de selecção natural parece ser antiga. Aristóteles havia-a esboçado nas suas Physical Auscultationes. E alguns autores do século xvilI tinham-na também entrevisto, sendo justo lembrar Maupertuis, que a formulou de forma nítida em 1741. À ideia geral era a de que havia eliminação de incapazes. E não se foi mais longe. O desenvolvimento do conceito como factor de mudança não foi possível porque a isso se opunha a ideia da harmonia estática da natureza conforme ao paradigma clássico da eternidade e imutabilidade do mundo, fixadas por ordem
divina,
conceito
em
oposição,
portanto,
com
a autoridade
dos
textos bíblicos. Além disso, o desenvolvimento da biologia e da geologia era ainda insuficiente para o impor como agente de transformação ao
longo do tempo. Nem o passado tinha na mente dos homens o longo «recuo» necessário que mais tarde no século XIX a geologia veio a revelar, nem os factos e observações eram em quantidade e peso para suscitar ideias
novas
e clarificadoras.
Além
disso,
na
sociedade
ainda
não
se
tinham operado as transformações necessárias para que se formasse um terreno favorável à germinação e desenvolvimento de conceitos de mudança devida a causas materiais. Uma economia rural e aristocrática,
dominada pela religião, não era nada favorável a pensar em termos de evolução e a impor uma ideia de tempo e de historicidade, conceitos naturalmente ligados. No século xIx, porém, a ideia da selecção natural estava, por assim
dizer, implícita nas sima transformação caracterizaram esta e sociólogo Herbert
novas relações e estruturas da sociedade em rapidiísindustrial, com todas as violências e misérias que fase histórica de profunda instabilidade. O filósofo Spencer escrevera, muito antes de aparecer a público
a Origem, de Darwin, que a selecção era a força reguladora da evolução
social e que a competição entre os homens concorria poderosamente para o seu progresso. Foi a Malthus colher a ideia de selecção, e toda a sua filosofia da evolução exprime o optimismo da época, um compromisso com a Igreja e as forças conservadoras (era necessário harmonizar o passado com o abalo social provocado pela industrialização), confiança
absoluta no progresso e nas ciências que o promovem, e no aperfeiçoamento humano que dele decorre.
| 192
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — 1
O conceito de selecção natural tem, a meu ver, a aparência de uma verdade evidente, que não exige demonstração *. Subjaz em toda a análise superficial da natureza e da sociedade fundada numa filosofia de mudança
e de concorrência. Darwin
teve, porém, o enorme mérito de
utilizar esse truísmo como chave teórica que lhe ia permitir criar uma obra inigualável como manancial de factos, de sugestões e de total revolução da biologia, edificando a genial síntese científica que é o transformismo
darwiniano.
Toda
a sua obra é um
monumento
admirá-
vel à ciência e ao espírito humano. É provável que todo o trabalho aprofundado e livre de naturalista tivesse mais tarde ou mais cedo de chegar à noção (ainda que de forma não explicitada) de selecção natural. Não, talvez, o naturalista arqui-
vista e de gabinete, mas aquele que projectava a reflexão sobre vastas e variadas colecções, e sobretudo sobre uma grande massa de observações feitas na natureza, com experiências pessoais directas de trabalho de campo
em
regiões
propícias
Foi este o caso de Darwin
e diversas
do
ponto
de
vista
geográfico.
e de Wallace, entre os quais houve o mais
perfeito paralelismo de ideias no que respeita à teoria da selecção natural («I never saw a more striking coincidence», escreveu Darwin a
Lyell). Mas para que tal acontecesse era sobretudo necessário um ambiente social propício (em activa transformação, como referi) que não existia pela mesma época no resto da Europa, se compararmos passava
se
o que
no
continente
com
o processo
social
em
curso
na
Inglaterra. Além de que, em França, a forte reacção religiosa que se seguiu à Revolução Francesa foi um obstáculo à aceitação do evolucionismo, ao desenvolver do lamarckismo, a que devemos juntar a forte oposição
de Cuvier,
fixista, como
se sabe, mas, por outro lado, homem
renovador pelos seus notáveis trabalhos de anatomia
Outros
estudiosos,
não
naturalistas,
leram
comparada.
igualmente
Malthus
e talvez fossem até mais tocados pela noção de selecção quando tinham
cc
a expressão «sobrevivência dos mais aptos», que Darwin depois adoptou. Mas não foi Spencer o inspirador da teoria da selecção natural, visto que Darwin lançou as bases fundamentais desta última entre 1837 e 1840, muitos anos antes do aparecimento da obra onde o primeiro lançou a expressão que ficou célebre. A ideia de delimitação dos quantitativos populacionais, devida a concorrência, com as trágicas consequências decorrentes, era uma ideia que haveria de nascer numa sociedade em que os novos meios de pro-
*
CON
O=
alimentado pela selecção dos mais capazes, tendo inventado, como disse,
> dp Te
preocupações sociológicas, dado o vasto campo de observação que constituía a Inglaterra de então. Foi o caso de Herbert Spencer e da sua escola, autor que antes de ser publicada a obra de Darwin, e independentemente deste, defendeu um evolucionismo progressista da sociedade
dução Bibl.
e de relações
Univ.
49 — 13
económicas
impunham 193
a competição
como
um
dos
DA
GERMANO
FONSECA
SACARRÃO
guesa — cuja ambição era explorar (e dirigir) o mundo e criar riqueza,
e colocar a ciência, a tecnologia e as descobertas ao serviço desse fim supremo — não parecerá estranho que a ideia de competição andasse no ar, que surgisse nos espíritos menos opacos ou mais ousados. E mais:
que essa competição fosse observada na natureza (vista agora com outros olhos) e que se pensasse que as sociedades humanas fossem movidas pela «grande luta pela existência», com o seu cortejo de misérias, onde a fome, a doença e as guerras eram «travões» inevitáveis ao cres-
cimento demográfico. Foi em tal contexto social que Darwin desenvolveu as suas ideias e é legítimo pensar-se que foi por ele influenciado. Todavia, as conclusões de Malthus não agradaram a diversos políticos, economistas e teólogos, e mesmo alguns biólogos chegariam a afirmar que elas não se aplicavam à espécie humana. O próprio Darwin era da opinião de que essas conclusões respeitavam mais a outros organismos do que ao homem. j Se parece inegável que Darwin utilizou diversas ideias de Malthus, a verdade é que as desenvolveu de forma muito diferente. Darwin introduziu a ideia de melhoria com a mudança, de progresso imediato, onde Malthus via uma fatalidade inerente à trágica condição humana, dé luta pela existência, cujos remédios para ele pareciam ser sobretudo de ordem moral. Darwin reflectia a ideologia burguesa progressista.
A luta pela vida conduz transformam
e
fortes, melhor morrem.
Houve,
a selecção
aperfeiçoam
ajustados, assim, em
natural, pela
constantemente,
triunfam
em
e sobrevivem,
Darwin,
com o progressivismo do século em
um
optimismo
qual
as espécies se
que
os
indivíduos
enquanto que
que viveu e com
os
débeis
está de acordo
o meio
imediato
em que foi criado. Darwin possuía inegável génio («Newton da história natural», como lhe chamou Wallace), mas a sua obra espelha, também,
o clima
intelectual
e socioeconómico
do seu: tempo,
e que
gradual
mente o influenciou. Viveu na melhor época para produzir a sua obra. Se vivesse noutro tempo, ela não seria a mesma, nem o génio de Darwin.
se teria manifestado em todo o seu vigor, Julian Huxley especulou, há dezoito anos, sobre este problema. Se Darwin tivesse nascido um século mais cedo (em 1709), ou um século mais tarde (em 1909), teria sido,
respectivamente, segundo Huxley, um bom naturalista amador (mas sem significativa influência, quer no plano das descobertas de factos fundamentais, quer no do pensamento científico), ou um ecologista profissional de certo relevo, No primeiro
não chegara para a sua obra, no segundo 194
caso, o tempo
histórico ainda
caso ele já tinha sido ultra:
estorma mal Yada dt
a contemplação de um mundo estático e harmónico onde não se intervém. Mas com a revolução industrial e o predomínio da classe bur-
alho
seus agentes fundamentais de acção. Nas sociedades de mudança lenta, rurais c feudais, toda a estrutura mental da sociedade está voltada para
“BIOLOGIA
passado.
O
que
houve,
a meu
E
SOCIEDADE — 1
ver, em
Darwin, foi uma
harmonia
per-
«sobrevivência
dos
feita entre o génio, a posição de classe e a época. A mais
ideia aptos»
original surge,
de
assim,
selecção repito,
natural como
ou
um
de
conceito
truístico-tautológico, e julgo ser muito curioso que simplista, que se repete sob forma diferente (quem
de
certo
modo
um tal conceito há-de sobreviver
senão os mais aptos?) se tenha transformado numa teoria de profundissimas consequências, como foi a doutrina darwinista. Esta utilização
de uma comprovação banalíssima, na aparência, de que quem sobrevive são os sobreviventes, aplicando e desenvolvendo essa ideia, demonstra a grande superioridade de Darwin e os caminhos caprichosos da ciência
quando abertos por indivíduos invulgares.
As ideias de Darwin sobre a selecção natural e os factos acumulados
demonstrativos do processo evolutivo, que expôs no seu livro clássico, assim como mais tarde no livro The Descent of Man (1871), abalaram profundamente o sistema de valores até aí dominante e a mentalidade dos contemporâneos e continuadores, nas suas atitudes perante a socie-
dade e a natureza humana. Foram poderosos estímulos para se encarar o mundo e o homem
de forma inteiramente diferente. Em boa verdade,
tudo se propiciava para isso, e, se não existissem essas obras, o processo
de transformação
mental
induzida
dar-se, ainda e a filosofia resolutamente e Darwin, os
da sociedade
pelas
novas
não
deixaria de ocorrer, a revolução
estruturas
socioeconómicas
haveria
de
que provavelmente com outro ritmo e outra velocidade, evolucionista, como base de visão do mundo, penetraria no pensamento sociológico e biológico, mesmo que Marx dois grandes promotores do novo paradigma, não tivessem
existido.
b) Biologia sem
Darwin
Vale talvez a pena ensaiar uma breve especulação. Sem Darwin, que forma teria hoje a biologia? Sem dúvida que o transformismo acabaria por triunfar. O evolucionismo devido a causas materiais teria provavelmente surgido como teoria científica, já que os tempos estariam mais cedo ou mais tarde suficientemente amadurecidos para se chegar, por conjugação de esforços, a convergências de ideias e de observações,
em suma, a conclusões de certo modo similares às de Darwin e de Wallace. A acumulação de factos e a sua interpretação teriam resultado de um trabalho mais colectivo, e não apenas o produto quase exclusivo de um Darwin um tanto isolado. A ideia de evolução estava historicamente determinada no sentido
de que a paleontologia, a anatomia comparada e a embriologia seguiriam o seu curso, como
fruto do esforço de muitos homens, para não referir 195
GERMANO
outras
disciplinas.
DA
FONSECA
SACARRÃO
À citologia, a genética, a ecologia, em
breve se jun-
ao postulado da objectividade, com rejeição das essências e de uma intencionalidade suprema na natureza. No que respeita à parte mais importante de todo o edifício explicativo darwiniano — a teoria da selecção natural —, é possível que o conceito, a elaborar-se, não tivesse a força científica que lhe conferiu Darwin e que se traduzisse por expressões mais neutras, mas não menos objectivas, talvez mesmo mais. Creio que acabaria por impor-se o conceito de reprodução diferencial, que
traduz
o processo
selector,
como
veio
a reconhecer-se
dic de
quais seriam feitas doravante recorrendo a causas materiais, conforme
o
tariam ao vasto conjunto das conquistas da biologia. O positivismo na ciência biológica logo haveria de impor-se e, consequentemente, obter-se-ia o total afastamento da teologia das explicações dos fenómenos, as
moderna-
mente.
A biologia sem Darwin
a primazia
ao conceito
poderia, portanto, não ter dado de começo
de selecção,
embora
incluísse
uma
referência
a esse princípio. Poderiam até alguns biólogos anglo-saxões inspirar-se em Herbert Spencer, e a expressão «sobrevivência dos mais aptos» obter certa importância. Mas com ou sem a expressão «selecção natural» talvez que a biologia sem Darwin pusesse em evidência outros processos explicativos e que o evolucionismo científico se desenvolvesse mais liberto de uma referência constante ao seleccionismo. Mas não estou
muito convencido deste facto. Afinal, se Wallace descobriu a selecção natural independentemente de Darwin, também outros zoólogos o poderiam fazer º. Por outro lado, os princípios e valores da economia liberal burguesa, que influenciariam a génese do darwinismo, não deixariam, na ausência de Darwin, de estar presentes na elaboração de uma teoria
da mudança, onde a competição, por esse facto, seria, provavelmente, o princípio fundamental. Por isso penso que a teoria da evolução incluiria, em qualquer caso, o conceito de reprodução diferencial, mas provavelmente a fazer parte de uma doutrina onde outros factores teriam um lugar importante, em que o ambiente seria considerado como o agente da reprodução orientada neste ou naquele sentido, portanto onde as
condições exteriores agiriam em variações
hereditárias,
ou, melhor,
interacção e interpenetração com as com
a totalidade
do organismo
em
desenvolvimento. Mas, dado o tipo de cultura e a estrutura económica da sociedade, a «lei do mais forte» procuraria suporte e justificação na biologia, mas na ausência das expressões metafóricas «selecção natural», «sobrevivência dos mais aptos», etc., a invadirem a ciência biológica,
é perfeitamente legítimo admitir que o esteio fosse um tanto frágil comparativamente à enorme força que lhe foi concedida pelo darwi-
nismo tradicional, força que tenta perdurar, como o demonstra a grande ambição sociobiológica (v. o cap, vil e meu 1982), A teoria científica obteria, talvez, maior objectividade e mais clareza, enquanto as ideolo196
: vêt a
j
t
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —1
gias perderiam essa preciosíssima caução, da qual se têm largamente servido à revelia de Charles Darwin, que não pode ser responsabilizado pelos abusos e distorções feitos à sua teoria, na forma das suas aplicações e projecções na sociologia e na política. Estas considerações em nada diminuem o mérito da revolução darwiniana, a mais profunda e fundamental
de
todas
as revoluções
intelectuais da história da humanidade.
Numa sociedade com outras raízes culturais, com outra história, é quase certo que o darwinismo, se acaso nascesse, não se desenvolveria. Mas
não, creio eu, numa sociedade empresarial e competitiva, onde o oportunismo e o egoísmo são filosofias e conceitos científicos. E talvez que a ideia spenceriana da «sobrevivência dos mais aptos» acabasse por ser captada pelos naturalistas e cientificamente consagrada.
2.
Aspectos e sua
da teoria
da selecção
natural
só introduziu
a ideia, hoje
unanimemente
tradicionais
modernização
Charles
Darwin
não
aceite nos meios científicos, de que a evolução é um processo real, como pela sua teoria da selecção natural deu uma interpretação racional das causas da transformação dos organismos, que constitui hoje o mais
sólido e fecundo princípio unificador da biologia. À importância da sua teoria foi tal que modificou totalmente a biologia e tudo o que respeita
ao homem e à cultura do nosso tempo.
A estrutura lógica da selecção natural baseia-se em factos indis-
cutíveis e em inferências que se impõem se considerarmos com lucidez
e sem preconceitos os seus pontos fundamentais. As proposições básicas da doutrina são surpreendentemente simples e é talvez a sua patente e iniludível materialidade que fez dela uma grande heresia. Essas proposições podem ser distribuídas pelos pontos seguintes:
1)
Os
organismos produzem mais descendentes do que aqueles que eventualmente podem sobreviver. Como o número de indivíduos de cada espécie de organismos é aproximadamente
2)
constante,
deve
haver, por conseguinte,
em
cada
geração, uma mortalidade elevada. Os indivíduos de cada espécie não são idênticos entre si. Os indivíduos variam, mostram a existência de variações em todos
os seus
caracteres,
em
múltiplas
direcções,
e estas
variações são, em grande parte, herdadas pelos descendentes. Portanto: grande número de descendentes, todos diferentes uns dos outros. 3)
Em
consequência
do facto precedente,
alguns
variantes
serão,
em média, melhor sucedidos do que outros na competição 197
SACARRÃO
FONSECA
DA
GERMANO
pela sobrevivência, e os progenitores (que vão dar origem
à geração imediata) serão naturalmente seleccionados entre aqueles indivíduos da espécie que exibem variações que permitem uma adaptação mais efectiva às condições do ambiente. E estes indivíduos sobrevivem e reprodu-
zem-se. 6d 4) Como as semelhanças hereditárias entre pais e filhos são um lam
que
segue-se
facto,
por selecção
as
variações
nas
subsequentes
gerações
nas
natural
se: acumu-
favoráveis
populações das espécies e a adaptação assim realizada pelos progenitores aperfeiçoa-se sucessivamente por transformações graduais no decurso dessas gerações, e eventual mente novas variedades e novas espécies se formarão a partir das preexistentes. As como
duas
primeiras
proposições
foram
realidades, mas as duas últimas eram
reconhecidas deduções,
por
Darwin
inferências sem
si
Etuscse
ide,
base empírica testável. Simplesmente, a coerência dessas hipóteses era tal que todo o mundo vegetal e animal com a sua enorme diversidade aparecia a nova luz. O seu valor explicativo era enorme. Com o posterior avanço da biológia, em particular da genética, e com as inúmeras
observações e experiências que têm sido empreendidas, essas proposições têm toda a coerência e legitimidade, correspondem a algo de real, ainda
que outros factores de transformação evolutiva tenham sido propostos ou revelados.
A base do pensamento de Darwin é a de que as formas modernas de seres vivos descendem,
por transformações
sucessivas e graduais, de
formas preexistentes que, por sua vez, foram precedidas por outras formas ancestrais, num vasto movimento não teleológico, sem propósito definido,
sem
sem relação animais.
plano,
directa
onde
com
as variações
dos
as necessidades
indivíduos
imediatas
são
acidentais,
das plantas e dos | à
A teoria darwiniana foi mais tarde (já neste século, sobretudo) corrigida em muitos aspectos e ampliada substancialmente noutros. Se q conceito
básico
foi
selecção
natural
é, em
estabelecido muitos
por
Darwin,
aspectos,
a forma
diferente
da
moderna
clássica.
da
Mas
a
herança fundamental perdura, a filosofia que lhe está inerente conti» nua, e as consequências profundas de tal revolução cultural e científica ainda não estão esgotadas. Longe disso. A forma actual do darwinismo . é conhecida pelo nome de teoria sintética, que reúne e sintetiza dados . e evidências provenientes das mais diversas disciplinas, donde e sua força
explicativa
e a sua
capacidade
de
renovação.
À
teoria
também
é conhecida por neodarwinismo: (aliás impropriamente) e simplesmente
por teoria biológica da evolução. As ideias originais de: Darwin 198
eram
|
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —I
insuficientes para explicar cabalmente a origem de novas espécies. A origem
das variações e a natureza da hereditariedade eram no seu tempo
ignoradas. À teoria sintética é, porém, a herdeira do darwinismo tradicional, que ela continuou, desenvolveu e corrigiu à medida que foram surgindo novos factos e novas ideias. Na sua forma simples e esquemática, a teoria moderna sustenta que a evolução resulta sobretudo da acumulação de pequenas variações genéticas (mutações, recombinações) que são distribuídas e orientadas principalmente pela selecção natural. A correcção fundamental incidiu sobretudo no que respeita às fontes e à natureza da variação, à base física da hereditariedade, aos seus mecanismos e suportes materiais, à sua frequência e transmissão. E não é pouco, ainda que não fosse só nisso que foi emendada. O que é extraordinário é que Darwin edificasse uma teoria científica de tamanha envergadura e numa época em que se desconheciam as leis da hereditariedade, em que nada se sabia sobre cromossomas e os genes, como suportes e determinantes dos caracteres hereditários, etc. Nada se sabia quanto à natureza das variações, que umas são hereditárias (mutações) e outras não são transmissíveis aos descendentes, respostas
e dependem
relacionadas
com
em
regra
influências
de
as condições
externas.
do
ambiente,
Estas e muitas
são
outras
aquisições, como as descobertas paleontológicas, a integração da selecção
darwiniana
com
a genética mendeliana,
dando origem a uma
nova
disciplina, a genética das populações, e o desenvolvimento de múltiplos sectores da biologia, deram a forma actual à teoria biológica da evolução. A adesão de Darwin, mais acentuadamente para o fim da vida, ao princípio da hereditariedade dos caracteres adquiridos resultou no fundo da ignorância do seu tempo acerca da origem e natureza das variações. A cedência que Darwin fez a tal princípio em detrimento da selecção pareceu residir também no seu desejo de subtrair a teoria às
críticas de que era alvo. À hereditariedade biológica dos caracteres
adquiridos era um velhíssimo conceito, que explicava a adaptação em moldes menos heréticos do que a selecção natural: a adaptação nasce do próprio organismo, que se esforça por se ajustar às solicitações e alterações do ambiente, de modo que o organismo se modifica no bom sentido, devido a causas que estão em si mesmo. Depois de um certo eclipse do darwinismo tradicional, a teoria sintética da evolução teve também o mérito de mostrar o pleno valor da mensagem fundamental de Darwin, que a evolução é devida a causas materiais, que não traduz progresso para um dado fim, não obedece a um plano. O movimento unificador teve a sua consagração e o seu ponto mais alto no final da década de 50, em 1958, ano em que se celebrou
o centenário
das
duas
comunicações
simultâneas
de Darwin
e de Wallace sobre a selecção natural. Às críticas que hoje suporta, longe de evidenciarem o declínio absoluto da teoria, como por vezes 199
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
se pretende, mostram, pelo contrário, o seu pleno vigor e a sua enorme
riqueza, mesmo que, e é isso que provavelmente acontecerá, venham a descobrir-se novos factos e se formulem novas ideias que retirem à doutrina moderna grande parte da sua importância. As reacções à teoria da selecção natural constituem
uma
necessi-
dade imperiosa para o progresso da ciência. O darwinismo, na sua forma actual, afasta-se enormemente em numerosos aspectos da sua feição original. Mas o estudo da evolução continua a seguir o impulso inicial que lhe imprimiu o eminente naturalista e as investigações modernas mostram que era correcta a linha geral da sua doutrina no que respeita à origem e evolução das espécies. Depois de Darwin não houve mais dúvidas nos círculos científicos sobre a realidade do processo evolutivo. É sobre as suas causas que existem divergências, dúvidas, hesitações. A grande maioria dos biólogos adere, porém, inteiramente à teoria da selecção natural e continua-se a trabalhar intensamente na esperança de a corroborar ou refutar. Entretanto, o grande princípio unificador da biologia continua a ser a teoria da evolução por selecção natural. Até que Darwin impôs à comunidade científica a convicção do transformismo, o conceito de selecção natural permaneceu uma noção um pouco obscura, vulgar, de certo modo intuitiva; e alguns autores se lhe referiram, como atrás se mencionou, sem todavia aplicarem a
ideia de forma explicitada como processo de mudança, como causa de adaptação evolutiva. Aliás, a noção estava também implícita na filosofia
popular, na sabedoria dos simples. O povo já sabia que os fracos estão em inferioridade, que a lei é a do mais forte, que Deus selecciona, que os criadores seleccionam, que os animais mais vigorosos e dominadores
vencem os mais fracos, etc. À «grande ideia» nasceu em Darwin quando lhe ocorreu utilizá-la como processo de origem e evolução das espécies, como
um
processo materialista de mudança
que veio substituir a sabe-
doria suprema com que Deus presidia ao destino das espécies. Converteu uma verificação banal numa complexa teoria científica. Ao fazê-lo, pensou afastar definitivamente da biologia toda a metafísica religiosa, toda a influência do espiritualismo. a) Modernização e críticas Só há relativamente pouco tempo é que se verificou que o conceito
de selecção mesmo
natural
processo
abrange
geral,
Este
diversos ponto,
aspectos
ainda
que
bem de
distintos
grande
não pode ocupar a nossa atenção aqui. Modernamente,
de
um
importância,
pode traduzir-se
o processo da selecção natural dizendo que é um mecanismo de reprodução diferencial (ou preferencial) de variantes genéticos. Em certos ambientes,
alguns
destes variantes
genéticos, 200
assim
como
os caracteres
BIOLOGIA por
eles
determinados,
são
E
mais
SOCIEDADE —I úteis
aos
indivíduos
que
os possuem
do que o são outros variantes. E os organismos possuidores das variações
de maior valor adaptativo deixam, em regra, mais descendência do que os organismos que têm variações de valor adaptativo inferior, em relação ao mesmo ambiente. O resultado será um aumento da frequência das primeiras
nas
sucessivas
gerações
e, eventualmente,
a sua
difusão por
toda a população que ocupa esse ambiente particular. É um processo de reprodução preferencial e de sobrevivência diferencial dos organismos
que constituem uma população, um meio de estatisticamente se exerçer a eficiência
reprodutora
a favor dos indivíduos que por acaso são
suidores das variações genéticas com maior valor adaptativo (cf. Ayala, 1975). Mas a selecção natural está longe de ser um processo unicamente estabilizador ou criador, mantendo o tipo médio da espécie, ou inovando
novas estruturas. É também um processo eliminador que conduz à extinção. E não têm conta o número de variedades, de espécies e grupos de espécies que têm desaparecido no decurso da história da vida. As adaptações são, em regra, estados precários, imperfeitos, e a quase totalidade dos ensaios adaptativos têm conduzido a becos sem saída, quanto mais não seja pela própria instabilidade dos ambientes. Supõe-se casos a selecção natural se atrasa, por assim dizer,
que em numerosos
em relação às mudanças e consequentes pressões do ambiente, o que
poderá ser uma causa importante das extinções de espécies. Mas não a única, nomeadamente no que respeita às maciças destruições de diversos
grupos constituídos por numerosas espécies, para as quais terá de haver causa
uma
nenhuma A
comum
e se
têm
proposto
várias
teorias,
se
fixar
sobretudo
com
sem
como plenamente satisfatória.
teoria
da
selecção
natural
tem
sido criticada,
as acusações de circularidade e de impossibilidade de ser empiricamente testável. Dizer que a selecção natural é a «sobrevivência dos mais aptos» é de facto uma tautologia. Mas é a definição que é tautológica, não a doutrina que corresponde provavelmente a um processo bem real. Para David Hull, a acusação de tautologia é o mais sério e persistente criticismo que tem sido, ao longo da sua história, lançado sobre o princípio da selecção natural, De facto, dizer que «o adaptado» sobrevive é uma tautologia porque «estar adaptado», no sentido evolucional, é ter uma
eficiente capacidade de sobrevivência e de reprodução !º. Quem há-de, pois, sobreviver senão os mais adaptados? Sobrevivem os sobreviventes! Definir selecção natural como exprime
«a sobrevivência
sendo a «sobrevivência dos mais aptos»
dos que
sobrevivem»,
o que é, na realidade,
uma descarada tautologia. Estas críticas têm sido feitas sobretudo por filósofos da ciência, mas o acordo é hoje praticamente unânime entre os biólogos para se concluir que as definições de selecção natural não
têm necessariamente de padecer de circularismos. Há muitas definições 201
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
do processo. E se elas são úteis para a comunicação, não é com elas, naturalmente, que se submete uma hipótese ou teoria à prova do erro. A sobrevivência é obviamente um resultado de adaptação, mas não
é necessariamente a própria definição de adaptado. Não há dúvida de que há características nos indivíduos de uma população que serão mais favoráveis do que outras em face de modificações
do ambiente. E esta
realidade determina diferentes capacidades de ajustamento ao ambiente, e são estes diferentes valores adaptativos das variações que acidentalmente ocorrem que determinam diferentes valores da sobrevivência e, portanto, diferenças na capacidade e na direcção da reprodução. John Maynard Smith diz, com razão, que lhe parece absurdo proclamar que a teoria é tautológica, ainda que esteja pronto a admitir que muitas vezes é formulada tautologicamente. Não são de facto as definições que atestam o valor de uma teoria, que garantem o seu valor explicativo, e muito menos os resultados positivos resultantes do contraste experimental a que é submetida. Uns indivíduos estão melhor adaptados do
que
outros.
Diversas
experiências
e
observações
permitem. pôr
em evidência caracteres mais adaptativos ou menos adaptativos num conjunto de indivíduos que ocupam dado ambiente, podendo acompanhar-se
o seu
destino
e a sua
frequência
estabelecer critérios de adaptabilidade
na
população.
independentes
Isto
permite
da sobrevivência
e da eficácia reprodutora. E quando se define selecção natural sem ser por critérios de sobrevivência ou de eficácia reprodutora, a tautologia desaparece. Os biólogos têm apontado e utilizado caracteres que supõem,
a priori, adaptativos; e a experiência e a observação vieram corroborar
os seus pressupostos como válidos.
|
de
Este último ponto conduz-me à outra crítica que é a não testabilidade
da
bases
selecção
natural.
experimentais
da
Está
fora
selecção
da
natureza
natural.
deste
Mas
é
hoje
livro
uma
expor
as
questão
assente pela generalidade dos biólogos que a teoria da selecção natural pode
ser
sujeita
a testes
empíricos,
e existem
diversas
técnicas para
demonstrar experimentalmente a selecção natural em acção, quer em laboratório, quer em condições naturais, Sempre que se conseguem. as
técnicas apropriadas, e que os exemplos
estudo,
tem
sido
demonstrado
que
escolhidos são favoráveis. ao
alterações
no
ambiente
físico
ou.
biológico modificam a relação organismos/meio e consequentemente as
probabilidades para reprodução e sobrevivência. Recentemente
diversos autores avançaram
a teoria de que grande
parte das modificações evolutivas são devidas a processos de acaso à nível biomolecular. É a teoria neutralista da evolução molecular, Significa que os genes podem difundir numa população ou desaparecer por razões de puro acaso e não devido ao seu valor selectivo, que seria nulo: Por muito aliciantes e importantes que sejam os modelos que suportam. a teoria
neutralista
(que,
aliás, não 202
nega
a acção
da selecção. natural
BIOLOGIA a nível
organísmico
E
SOCIEDADE —1
e comportamental),
os resultados
de experiências
conduzidas na natureza e em laboratório não lhe são muito favoráveis e, em
diversos
casos, evidenciam
incompatibilidade
entre os resultados
obtidos experimentalmente e as previsões da teoria neutralista. Todavia, tem
suscitado
numerosas
investigações,
exactamente
para
com
elas
se
submeter à prova empírica se a evolução das proteínas evolve por processos estocásticos, o que tem tido hipótese da selecção natural, quer
a enorme vantagem de reforçar a a nível molecular, quer a outros
níveis.
O valor explicativo da selecção natural é tão vasto e aborda tantos níveis de organização que só por isto o conceito tem uma extraordinária legitimidade. Tudo o que se conhece sobre os seres vivos é consistente com o darwinismo moderno ou teoria sintética. Isto não significa que
ele seja a última palavra, que não haja outros factores em acção, inúsem
interrogações
meras
a reve-
satisfatória, que não venham
resposta
lar-se outros processos tão ou mais importantes do que a selecção natural, que
o domínio
do humano
não comporte
outras complexidades,
a
que a teoria ainda não deu, ou não pode dar, resposta, etc. Sobretudo, falta
da selecção
a importância
qual
conhecer
natural
na
natureza,
e não que se duvide que ela exista. Falta conhecer, por exemplo, qual a
fracção da variabilidade genética observada que é mantida pelo jogo da (1974), uma das grandes autorida-
selecção natural. Richard Lewontin
des nestes
selection goes
razão, dizendo:
com
interroga-se,
problemas,
much
«How
in nature?»
Se a teoria
da
selecção
natural
fosse falsa, seria provavelmente
fácil refutá-la pela observação do que são e do que fazem os organismos !!. E poderiam
ser realizadas experiências com o mesmo
objectivo.
Nem todos os autores estão de acordo sobre este ponto fundamental,
mas
não
são
alguns
e, recentemente,
muitos,
dos
mais
cépticos
têm
recuado nas suas posições. Mas estas críticas à selecção natural devem ser tomadas em devida conta, ainda que sejam sobretudo não-biólogos, como o filósofo Karl Popper, que se mostram mais críticos, dizendo, por exemplo, que a adaptação e a selecção são vacuidades. Mas Karl Popper não está muito bem informado sobre biologia, não é um biólogo, e este facto não lhe permite ter uma visão correcta dos factos. Os não-biólogos têm tendência a preocuparem-se com palavras, com conceitos abstractos, com generalidades, com definições, quando penetram na
área da biologia, que não conhecem ou conhecem mal. Os mais cépticos dizem que não sabem se a teoria é verdadeira ou falsa e Lewontin já A
meu
inteiramente
ver,
a
falsa.
deira. Talvez o mais
pensam,
assim
esteve entre os que é menos extrema 2,
teoria
É
não
muito
é
nem
provável
interessante
actualmente
mas
inteiramente
que
a sua posição
verdadeira
seja parcialmente
nem
verda-
seja o facto de a teoria da selecção 203
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
natural possuir uma estrutura lógica que lhe dá sempre a faculdade de ser possível, quer dizer, de ser um fenómeno ocorrendo na natureza. Se não é observável, é porque os métodos ou as circunstâncias o não permitem. E nesta óptica tudo poderá ser então explicável em termos de selecção. Isto pode fazer crer que a teoria seja impossível de refutar. Por outro lado, a sua tenaz resistência a todos os ataques pode
ser con-
siderada como uma demonstração da sua validade e vigor. Recentemente parece ganhar força a convicção sobre o valor da sobre a sua realidade (mensurável) na natureza Endler, 1986: ref. in Jones, 1986).
3.
Algumas consequências científicas do evolucionismo darwiniano
selecção natural e (v., por exemplo,
e filosóficas
O materialismo filosófico foi sempre mais temido, mais repudiado e combatido do que a ideia de evolução. É ele o grande inimigo. Assim aconteceu na época em que viveu Darwin, assim acontece hoje também.
Com o evolucionismo há sempre a possibilidade de estabelecer compro-
missos, fazer atenuações, de lhe introduzir mistério, desígnio, inspiração divina.
diria
Mas
mesmo
opõe-se
com
o materialismo
insuperáveis,
à teleologia,
as
porque
dificuldades
não
aos propósitos
são
consente
muito
factores
transcendentes,
aos
maiores,
espirituais,
«élans vitais»,
aos vitalismos de todas as cores. Há quem proponha, é certo, filosofias vitalistas em que a matéria é divinizada, e essa foi, por certo, a base da
filosofia de Teilhard de Chardin, a qual sem dúvida lembra a metafíisica de Bergson, com a sua espiritualização da matéria, o élan criador
que a atravessa e a modela. Mas
religião e materialismo
rejeitam-se
mutuamente, a oposição é absoluta e qualquer ensaio de compromisso conduz inelutavelmente à espiritualização, ao ultra-humano, ao sagrado, e acaba por surgir, mesmo quando dissimulada, a tradicional dualidade
matéria-espírito, Ora
que o materialismo filosófico
neste aspecto fundamental
Darwin
não
recusa.
deixou
margem
para
dúvidas. Para o grande naturalista, não só a evolução não obedece a um
propósito, não visa um fim, nem traduz progresso, como a selecção natural é um processo puramente materialista, impossível de ser iludido, a não ser por habilidade teológica. A ausência de plano e de finalidade na evolução provém da própria estrutura e dinâmica do mecanismo da selecção natural. É este o grande obstáculo, tanto maior
quanto é certo que na contextura do darwinismo a evolução como processo está indissoluvelmente ligada à teoria explicativa
da mudança.
Como disse com justeza John Burrow, a propósito das consequências da
publicação da Origem, podia tolerar-se a evolução desde que o processo fosse interpretado como intencional, mas a selecção natural, que é uma 204
BIOLOGIA
combinação
E
SOCIEDADE —1
de tentativas/erros, é que não era possível aceitar. Era esse
o grande e intragável escolho (não a evolução como processo) que impe-
dia (e tem impedido) todas as tentativas de abastardar ou, pelo menos, de adoçar o grande amargo da mensagem materialista do darwinismo. Força ao mesmo tempo depuradora e criativa, a selecção natural actua por uma conjunção de processos de acaso (as variações hereditárias surgem sem relação com a necessidade da adaptação dos organismos ao ambiente, não são respostas a ele) e de reprodução orientada pelo meio, quer dizer, os indivíduos que, em
média, possuem as característi-
cas que melhor os ajustam ao ambiente onde vivem reproduzem-se mais, deixam mais descendentes (e transmitem por esse facto essas características características
às sucessivas gerações), do que aqueles que possuem menos vantajosas. À evolução tem assim, por base, o
acaso orientado pelo ambiente físico e biótico. E sendo assim não pode obedecer
a um
plano,
e transcendente
supremo
a qualquer
desígnio.
Para os darwinistas, a evolução é oportunista, invenção em cada momento, surpresa. Domina o imprevisto, embora (como actualmente se
reconhece cada vez mais) as morfologias e a história abram certas vias à mudança, impossibilitem outras e imponham determinadas orientações às transformações a A
ordem
que
aos nossos
olhos
parece
existir na natureza
é uma
complexa trama de compromissos e interdependências sempre em mu-
dança, de esforços individuais pela sobrevivência, quer dizer, pela adaptação às circunstâncias do mundo, em que cada um tenta subtrair-se à morte, à destruição, e procura um modo temporário de durar e se prolongar na descendência. Os indivíduos variam, diferem uns dos outros por pequenas
mas
numerosas
diferenças,
em
grande
parte
congênitas.
Mas as variações só por si não determinam mudança, não engendram novas variedades, novas espécies, novos grupos. Só o fazem se forem
apanhadas estatisticamente nas malhas da selecção, ou seja, quando as circunstâncias do meio favorecem a existência dos organismos seus
possuidores. Uma teoria tão simples e realista passou a explicar as maravilhas da natureza, que a tradição religiosa ensinava serem provas da omnipresença e infinita bondade divinas. Mesmo as teologias que admitem uma evolução planeada pelo Criador sentem-se frustradas e ameacadas pela teoria da selecção natural. São perfeitamente compreensíveis, portanto, as violentas reacções numa sociedade que de longa data teve por base uma filosofia que exige uma finalidade nos acontecimentos, uma marcha para um fim supremo, um desígnio na história, princípios espirituais em acção, uma
com
a publicação
dualidade espírito-matéria. O abalo começou
da Origem.
1859, mas ainda não terminou !*.
em
205
GERMANO
a)
A
revolução
DA
FONSECA
SACARRÃO
intelectual
Apesar de esse livro não respeitar ao homem, nem mesmo o incluir,
todos os que o leram viram imediatamente as tremendas consequências
que
ele iria ter para
a questão
das nossas
origens
e da
nossa
posição
quanto
é certo
em relação à natureza. Por aqui se pode avaliar a mensagem revolucios nária de tal obra. Mas
isto é tanto mais
surpreendente
que Darwin teve o cuidado de omitir toda a referência ao ser humano, quer na sua poderosa argumentação, quer nos factos em que se apoiou. Todavia, quase no fim, num breve parágrafo, pensa que o futuro: abrirá largas perspectivas à investigação, referindo-se em particular à psicologia. E, discretamente, subtilmente, escreveu logo a seguir: «light will be thrown on the origin of man and his history» (1.2 ed.). Na edição definitiva, porém, já pode ler-se «Much light [.:.]», tendo o resto da frase ficado intacto. Sabendo-se que Darwin desde-a
juventude se preocupava com a questão das nossas origens e natureza,
e acumulava numerosos dados e reflexões, a omissão deste problema: na Origem foi certamente intencional, consciente como estava: de que o texto como o escreveu era já suficientemente explosivo sem: alusões. à nossa espécie. A explicação profundamente mecanista da evolução que aí é feita com a teoria da selecção natural convidava: irresistivel.
mente a incluir o homem no mesmo destino dos outros seres:
Stephan Jay Gould, paleontologista e historiador da ciência, pensa, como outros autores, que Darwin aplicou uma
consistente. filosofia.
materialista à sua interpretação da natureza. É provável que Darwin
não fosse em todos meandros
do seu pensamento verdadeiramente
um:
materialista, pelo seu anti-reducionismo, pelo seu gosto: pela metáfora
e por
um
certo
antropomorfismo
aplicado
à natureza,
pelos
sinais e
significados que via nos fenómenos, etc. (v.,-por' exemplo, Manier, 1978). Mas a sua teoria da selecção natural é puramente materialista.
Por outro lado, nas reflexões que anotou nos seus «cadern os de notas»,
confessa-se materialista, confidenciando mesmo
que deve «evitar mostrar até que ponto crê no materialismo». Para ele, a matéria é a háse
de toda a existência; e a mente, o espírito, Deus, são: palavras “que apenas traduzem os resultados da extraordinária complexidade do sistema
nervoso.
Disse
mesmo
que
o «cérebro
segrega
o pensamento
tal
como o fígado segrega a bílis» («brain secretes thought as liver secretes
bilis» )É.
Enquanto
o conceito
aptos permaneceu
como
de
uma
selecção
ou
de
sobrevivência dos mais
ideia banal, era fácil atribuir.lhe: uma
causalidade divina, expressão da vontade de um eriador, omnisciente: e bom. E foi o que se fez e o que continua a fazer-se, Mas como teoria científica, na forma que lhe deu Darwin, a sua estrutura materialista não
pode,
repito,
ser
iludida.
E
foi 206
provavelmente
isto
que
impediu
º
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —1
desde logo a sua aceitação generalizada nos meios científicos, que obstou a que se introduzisse profundamente na cultura ocidental. O evolucio-
nismo podia ser «desmaterializado», podia-se pô-lo de acordo com os valores tradicionais. Mas como fazê-lo aceitando a selecção natural, que
afirma, sem rodeios, que a adaptação é o produto de variações acidentais orientadas pelos acasos do ambiente?
Aceitar a teoria da selecção natu-
ral como causa universal, ou quase, da mudança é aceitar do mesmo passo que a evolução é um processo devido exclusivamente a causas
materiais, destituído de plano, de finalidade, não traduzindo progresso
fixo e inevitável, movimento da matéria no qual todos os seres organizados e o homem são o produto de um jogo de possibilidades, de «tentativas /erros» em que acasos múltiplos (as variações acidentais dos diversos indivíduos) são mais ou menos variáveis consoante as condições do meio externo. Combatida, a teoria entrou em crise para o final do século e nos primeiros decénios deste, para, finalmente, triunfar plenamente no final dos anos 40 aos anos 70, sendo corrigida, ampliada e de certa
maneira confirmada. Ão seu sucesso seguiu-se recentemente nova crise, com novas críticas e dúvidas sobre o seu valor explicativo geral. A sociobiologia, porém, veio colocar a selecção natural no centro das atenções, não só da biologia
conhece
como
actualmente
da
antropologia,
grande
da sociologia, etc.
desenvolvimento
e expansão.
À teoria
É objecto
de numerosas investigações nos mais variados sectores. Mas a par disto está sujeita a críticas severas, surgindo outras teorias.
ver, parte da cultura do mundo
A meu
valores que
a estruturam,
que vêm
ocidental e alguns dos
de passado longínquo, continuam
a não poder facilmente acomodar-se à teoria da selecção natural, que contraria frontalmente algumas metafísicas persistentes. É bem certo
que serve de caução a outras, mas a custa de extrapolações tão abusivas,
por vezes, que, perdendo seriedade, se transformam na sua própria caricatura. Tem sido afirmado, e com certa razão, que o que distingue a
biologia das ciências físicas é a evolução por selecção natural. Não será só essa a diferença, mas é provavelmente uma das mais significativas. Um dos aspectos mais importantes da grande revolução que essa teoria determinou
foi a de que os projectos
e as finalidades
imediatas
que
estão ligadas à própria existência dos organismos passaram a ser explicados em termos puramente físicos e não por causas teológicas e metafísicas, como até aí. Na realidade, todo o organismo representa aparentemente um projecto, cumpre um programa hereditário, os seus órgãos
têm uma finalidade imediata, as suas várias partes trabalham para um fim
imediato,
numa
harmonia
funcional,
Perante
uma
estrutura
des-
coberta num organismo, o biólogo põe imediatamente a questão: «para que serve?», «qual a sua finalidade?», Esta teleologia científica nada 207
GERMANO
tem a ver com
DA
FONSECA
a teleologia metafísica, para
devidas a acção divina, a um insecto
para
SACARRÃO
ele
voar,
patas
a qual as adaptações
princípio espiritual, Deus ao
cavalo
para
ele
correr,
deu
são
asas ao
pulmões
ao
homem para ele respirar. Os fins a determinarem os meios. À revolução começou quando Darwin explicou todas as adaptações, não como produtos da vontade do Criador, mas como a expressão de uma relação entre os organismos ou suas partes e os ambientes em que vivem, determinada
por causas naturais, sendo a principal a selecção natural. O organismo é um «projecto» e todas as suas partes trabalham para a sua efectivação. À biologia não tem sentido fora desta procura permanente da finalidade imediata de um órgão ou parte do organismo dotada de uma função particular. Esta propriedade há muito reconhecida distingue os seres vivos «de todos os sistemas presentes no universo», como escreveu Jacques Monod, propriedade que ele designou por teleonomia. Para o mesmo autor os seres vivos são objectos dotados de um projecto. Isto não era nenhuma novidade. George Gaylord Simpson já tinha antes de Monod discutido com muita penetração as peculiaridades dos seres vivos, e os contrastes existentes entre a biologia
e as outras ciências, em particular as ciências físicas. E precisamente no que respeita a este ponto disse que as ciências físicas excluíram rigidamente a teleologia, que o critério de utilidade não é em nenhum sentido explicativo e que os resultados não estão ligados às causas por qualquer factor que traduza propósito. As ciências físicas tinham de afastar tudo isto para se transformarem em ciências, para afastarem a superstição, o obscurantismo. Curiosamente, na biologia os problemas e as soluções apresentam-se regularmente, para não dizer sempre, com aparência teleológica, no que respeita à função ou significado para o organismo de tudo o que existe ou se passa no seu íntimo, ou no que se refere às reacções que o organismo desenvolve relativamente às condi-
ções do mundo que o rodeia. Os processos que se passam no organismo,
e entre ele e o ambiente, não podem ser explicados pela descrição exclusiva de reacções químicas que estão na sua base, reacções que não têm
qualquer
sentido
se não
as considerarmos
em
conjunção
com
os
organismos, com as suas funções e adaptações. Daqui o não surpreender
a inclinação para formular explicações finalistas na biologia.
Tudo
parece
e não
convidar
a isso. Uma
das consequências
do darwinismo,
das menores, foi precisamente o passar a interpretar-se por causas físicas o fenómeno universal da adaptação dos organismos, a relação entre a organização dos seres vivos e as condições do ambiente em que vivem, em fazer em termos científicos a explicação dos seus aspectos teleológicos, em evidenciar a razão, jecto» que se desenrola num
natureza e finalidade imediata do « organismo ou num ecossistema, As ha
naturais passaram a ser as únicas responsáveis pela origem, maodificações
e adaptações
dos
organismos,
sem 208
apelo
a causas
metafísicas,
a
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —1
interpretações transcendentes, a um Deus criador omnipresente e bom. O darwinismo, ao explicar por leis naturais a teleonomia, transformou a biologia numa ciência completa. Esta foi, talvez, a origem
da grande heresia que ainda hoje se procura disfarçar ou frontalmente rejeitar. A religião ilude-a ou afasta-a como pode. Os oponentes são
muitos entre os profanos, menos entre os biólogos profissionais. Filósofos, escritores, políticos, amadores de ciência, não escondem, por vezes,
a
aversão.
sua
Popper,
Karl
sem
dúvida
uma
grande
figura
confessa que para ele o neodarwinismo
da filosofia contemporânea,
moderno (a teoria sintética) é um «programa metafísico» de pesquisa, sem valor científico em si, que nada nos diz directamente sobre a natu-
reza (ver crítica a Popper em Ruse, 1981). Ronald Reagan, por seu «a teoria bíblica da criação, não é uma
lado, declara que
teoria, mas
sim a história bíblica da criação», e que devia, também, ser ensinada nas escolas simultaneamente com a teoria da evolução. Sobre esta é uma
última afirma que
teoria que os cientistas têm combatido
nos
últimos anos, teoria que já não acreditam ser tão infalível como pen-
savam antes que fosse (ver Ruse, op. cit., p. XIII). Tudo isto é afirmado com toda a convicção e seriedade, e muitos outros o fazem também, mas
talvez
sem
a franqueza
do presidente
americano
(v. o cap. VI).
are of the
highest
Outra das consequências da obra de Darwin foi a ideia de que as diferenças entre os indivíduos são congénitas (pelo menos em grande parte), não sendo muitas das semelhanças e diferenças entre eles devidas ao meio físico ou social, mas sim à hereditariedade. Escreveu ele no seu livro clássico: These
individual
differences
impor-
tance for us, for they are often inherited, as must be familiar to every selection
one; and they thus afford materials for natural to act on and accumulate in the same manner as
man accumulates in any given direction individual differences in his domestic production. Isto teve efeitos de importância na medida em que introduziu um certo desencanto no que respeitava às possibilidades de aperfeiçoamento do homem por modificações sociais e políticas, e retirou grande parte do optimismo quanto à própria noção de liberdade e de igualdade entre os homens. Com Darwin introduziu-se a crença de que o homem é portador de instintos herdados de um passado de bruteza animal, sendo como que vítima de comportamentos de agressividade, crueldade e dominação desenvolvidos na fase de símio e de outras que a precederam. Mas da constatação do mesmo facto outros efeitos surgiram de enorme importância. Bibl. Univ.
49 — 14
209
GERMANO
DA
FONSECA
No plano científico e mesmo filosófico variabilidade que caracteriza os seres vivos, e de fundamental. Darwin foi o primeiro e significado dessa variabilidade que confere
SACARRÃO
é imensa a importância da é qualquer coisa de único a demonstrar a existência aos sistemas vivos um grau
de individualidade absoluta, pois não há, pode dizer-se, dois indivíduos iguais !*. Nem dois indivíduos, nem duas células, nem dois órgãos, nem duas espécies, nem dois ecossistemas há idênticos. Este facto, que é fundamental para a compreensão da teoria da selecção natural, contra-
ria frontalmente o pensar essencialista tradicional, de raiz platónica, segundo o qual o mundo é composto de tipos ou essências invariantes, sem termos de passagem. As suas expressões variáveis, na realidade
observadas, seriam imperfeições ou aproximações
a essências
cavalo. Ora Darwin
de as coisas e seres
forma
ideais. Todos os cavalos são cópias imperfeitas varreu o conceito tradicional
a essas
do protótipo
serem formas fixas num mundo imutável, a exprimir o «Plano do Cria: dor». Desenvolveu uma nova visão do mundo, em que o tempo tem um
sentido e tudo muda com ele. Nasceu uma nova maneira de pensar, que
contrariava
absolutamente
o pensamento
e Darwin culminam um movimento
platónico-aristotélico.
Marx
de pensamento que tendia à recusa
das «essências» e à introdução do tempo e da diversidade como realida-
des interligadas para explicar a estrutura e comportamento
dos indiví-
duos e das sociedades ” (v. também o cap. II, em especial as pp. 58 a 69 e a nota 15 do mesmo capítulo). O filósofo Karl Popper (1966)
platónico
no
seguinte
exprimiu
bem
o essencialismo
trecho:
|
I use the name methodological essencialism to characterize the view, held by Plato and many of his followers. that it is the task of pure knowledge or «science» to discover and to describe the nature of things, i. e. their hidden reality or essence. It was Plato's peculiar belief that the essence of sensiblle things can be found in other and more real things —
in their primogenitors or Forms. (P. 31.)
Aristóteles e outros essencialistas desviaram-se de Platã
noutro aspecto da mesma
questão, mas
todos
anta
Ra
o objectivo do conhecimento é descobrir a natureza secreta (ou forma) ou essência das coisas. E as essências são reveladas ou descritas pelas
definições. Ora Darwin veio romper com esta filosofia ao introduzir a ideia de que a realidade não é constituída por um conglomerado de partes entre as quais não haveria intermediários. Destruiu as próprias bases da tradição platónica, ou seja, a inexistência de ligações e transi210
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — 1
ções entre as partes, a fragmentação da realidade, a ideia de comparti-
mentar
e fixar o que
A mensagem
afinal é movimento
do darwinismo
nega
a redução
e transformação da diversidade
gradual. orgânica
a
modelos morfológicos sempre abstractos ou quase, a configurações morfológico-estáticas, a tipos, a invariantes. Só com Darwin é que o pensamento evolucionista se libertou do peso das essências, que são inconciliáveis com a ideia de mudança gradual, a qual impõe a existência de relações de continuidade entre as essências, mas que por este facto lhes recusa qualquer realidade. O idealismo de considerar categorias e suas essências, ou normas, de procurar invariantes como realidades fixas e imutáveis, passou a ser
frontalmente inconciliável com o transformismo científico. A diversidade, o constante movimento de mudança, passou imediatamente a ser mais importante do que os tipos, do que as definições, do que a natureza oculta das coisas, obstáculo metafísico que se opunha à exploração dos novos horizontes que o darwinismo veio possibilitar. Ora, se o mundo é formado por invariantes, não há entre eles, entre as essências, qual-
quer
forma
intermediária,
únicas
as
visto
variações
possíveis
mais
não serem do que imperfeições, desvios relativamente a essas essências,
sem
haver,
repito,
termos
graduais
a estabelecer
a passagem
de umas
para outras dessas naturezas ocultas e separadas das coisas. Mas foi pre-
cisamente com isto que Darwin cortou definitivamente, o que tornou possível aceitar a ideia de evolução gradual devida a causas físicas e naturais. É certo que se deve a Lamarck o postulado de que a evolução
é um processo gradual e contínuo, mas a sua combinação com a ideia darwiniana de ascendência comum (que Lamarck não teve) exerceu muito mais profundas influências e deu lugar a grande controvérsia, que ainda hoje não terminou. À ascendência comum introduziu imediatamente o homem no processo, e isto, como se sabe, provocou grande hostilidade, que aliás ainda se manifesta. Se, como Darwin mostrou, os indivíduos são diferentes entre si devido a variações acidentais, se a mudança é devida a modificações em
populações em que o que é significativo são os variantes individuais, que pouco diferem entre si, mas todavia o suficiente para gradualmente modificar o conjunto, nascendo uma nova variedade, e desta uma nova espécie por meio de fases intermediárias, logo se vê que o essencialismo
sofreu um rude e definitivo golpe, pois entrava em conflito com a realidade observada. A população passou a constituir a base do pensamento
transformista, e toda a biologia passou a conceber a evolução como modificações graduais ocorrendo em populações de organismos. Acumular, como Darwin esforçadamente fez, evidências (indirectas, mas nem por isso menos decisivas) e argumentos de que a evolução se realiza de espécie para espécie através de populações intermediárias é uma
ideia
absolutamente
incompatível
com 241
a filosofia essencialista.
Cada
GERMANO
DA
espécie corresponderia a um
FONSECA
tipo, uma
SACARRÃO
essência. E novas
espécies só
podiam nascer por criação ou arranque singular, como exigia a filosofia
precedente. b)
Saltos ou pequenos passos?
O ponto de vista gradualista da evolução tem sido combatido por
alguns biólogos, que lhe opõem a concepção saltacionista. O saltacionismo tradicional pretende que a evolução se faz por mudanças bruscas e espontâneas em organismos excepcionais, por meio de mutações especiais de grande efeito que, de maneira
abrupta, sem fases de transição,
originam uma nova espécie muito diferente da anterior de tal modo que se formam novas classes ou novos tipos de organismo radicalmente diversos dos precedentes. Imaginaram-se mutações de natureza especial,
que nunca foram observadas. É os saltacionistas, quer tradicionais, quer actuais, apoiam-se, sobretudo, em leituras do registo fóssil, nas suas
insuficiências e, em particular, nas grandes
descontinuidades
que esse
registo evidencia quanto à origem das espécies e dos grupos supra-específicos, que surgiriam sem fases de transição a separá-los. O gradualismo seria ilusório ou, quando muito, de pouco significado para a evolução.
Logo de começo, o darwinismo teve de enfrentar ataques ao gra
dualismo.
Thomas
Henry
Huxley,
amigo
e fervoroso
partidário
das
ideias de Darwin, divergia dele neste ponto. Em Novembro de 1859,
Huxley escreveu uma carta ao amigo dizendo-lhe que ele tinha arcado
com uma dificuldade desnecessária por adoptar sem qualquer reserva o. princípio Natura non facit saltum. Huxley defendia o saltacionismo.
Mais tarde, Hugo de Vries e outros biólogos desenvolveram concepções
análogas que dominaram a biologia evolutiva no primeiro quartel deste
século. Mas depois a ideia ressurgiu. Nos anos 40 teve em Richard
Goldschmidt (geneticista eminente) um poderoso advogado, com a sua
teoria das «mutações sistémicas». Uma mutação deste tipo imaginado refundiria completamente o genoma de um indivíduo, constituindo-se,
desse
modo,
um
novo
grupo
que
teria, assim,
origem
numa
anomalia
ou monstruosidade viável com valor evolutivo. É a teoria do hopeful monster (como lhe chamou). A anomalia surgiria bruscamente, como uma alteração embrionária que daria origem a um novo tipo de orga-
nismo.
As transformações que ocorrem no seio das populações actuais (estudadas pelos geneticistas das populações e pelos ecologistas) seriam a «microevo lução»,
enquanto as origens das grandes
adaptações
e das
grandes descontinuidades evolutivas, dos grupos superiores, constituiria
a chamada «macroevolução». Ora para os saltacionistas tradicionais ou actuais a «macroevolução» processar-se-ia de modo diferente da «mi 212
BIOLOGIA
croevolução».
haver
fundamentos
que
teve
saltacionista grande
Goldschmidt
de
diferente.
histórico foi O. Schindewolf,
influência
na
difusão
como
processos,
de natureza
de uma
parece
hoje
nem
os dois
desassociar
de evolução
a dois modos
correspondendo
Outro
para
sérios
SOCIEDADE — I
tempo
no
nem
Mas
E
paleontologista (desenvolvida
teoria
entre 1936 e 1950 aproximadamente) explicativa das origens das cate-
gorias de todos os níveis por intermédio, também, de mutações com profundos
efeitos
e extensos
nasceriam, num
no organismo,
que
de tal modo
só passo, novos tipos de organização.
delas
Tais «megamu-
tações» são também meramente conjecturais. A defesa da evolução saltacional e a negação do gradualismo nunca desapareceram da biologia. Esses propósitos exprimem-se actualmente na teoria dos «equilíbrios intermitentes» (punctuated equilibria) de N. Eldredge
e S. J. Gould
segundo
(1972),
a qual
há
«saltos»
na
intervalos evolução, momentos de rápida mudança, separados por longos onal 8. As direcci em que as espécies não exibem, ou quase, mudança após uma espécies e os grupos superiores surgiriam bruscamente, e longa fase de stasis extinguem-se com o mesmo aspecto com que apareceram. Seria isto o que os documentos paleontológicos revelariam. Mas há excepções, e a interpretação de que tais documentos evidenciam que a evolução
instantes
de
não
é continuadamente
revolução
gradual, mas
genético-embrionária,
separados
que se faz por
por
enormes
não tem o acordo de todas as auto-
intervalos de estabilidade, também
ridades em biologia evolucionista e em paleontologia ?. Pelo contrário, a maioria está contra. O que parece provável é que a evolução possa ser um processo ora rápido, ora lento, ou, na aparência, inexistente
durante intervalos mais ou menos longos. Não existe discordância rela-
tivamente aos fundamentos do evolucionismo darwiniano. Portanto, se questão o registo fóssil revela ou não evolução gradual é, sobretudo, uma
da controvérsia reside no facto de
de escala ?. O ponto fundamental os «punctuacionalistas»
sustentarem
que
as descontinuidades
entre
os
grupos, que surgem na documentação fóssil, traduzirem a formação súbita, ou quase, de novos tipos muito diferentes de organismos, verda-
deiros saltos nas morfologias, donde nasceriam novas espécies ou cate-
gorias «superiores», a partir de indivíduos excepcionais. Um grande passo evolutivo devido a um só indivíduo (ou alguns raros). É a modernização do hopeful monster de Goldschmidt. Para o próprio Gould (1977 a), a macroevolução processa-se por meio de «monstros prometedores», que por acaso se revelam com êxito para a emergência de novos grupos ou de novas adaptações 21, Claramente ou não, volta-se ao conceito de a macroevolução se realizar por meios diferentes da
microevolução: um indivíduo isolado e modificado ser a origem de uma
nova grande adaptação (por exemplo, passagem da vida aquática à vida 213
GERMANO
terrestre) ou de mamíferos, etc., A evolução ral, actual, mas
DA
FONSECA
SACARRÃO
um novo grupo de nível «superior» (insectos, aves, o próprio homem ). é, provavelmente, um processo gradual à escala tempocom aparência saltacional à escala do tempo geológico.
A teoria «punctacional» não refuta, a meu ver, a hipótese de a evolução
ser um fenómeno gradual, que se desenrola a diferentes velocidades. Pode haver períodos de mudança gradual lenta, longas fases sem mudança, ou quase, ou então rápidas transformações, em que estados grada-
tivos se sucedem em curtos intervalos, em múltiplas espécies, onde as extinções acabam por dar a aparência de fundas descontinuidades. Mas o
problema
permanece.
Se na
realidade
há,
ou
não,
saltos
bruscos
nas
morfologias, sem estados intermediários, como pretendem os saltacionistas, é uma questão que aguarda solução. À discussão torna-se, por vezes, confusa, até porque a argumentação dos adversários do gradualismo é, em diversos casos, ambígua, ou se aproximando das posições ne E nianas (teoria sintética) ou se afastando delas. Não quero, também, deixar de dizer que o que se observa em tantíssimos casos é precisamente
aà existência de transições graduais entre os grupos, desde os «inferiores» aos «superiores», o que não se ajusta à ideia de um processo evolutivo de natureza saltacional 2. Na base das divergências entre as concepções gradualista e saltacional da origem das espécies existem provavelmente oposições de ordem ideológica,
diferentes
filosofias.
Para
Stephen
Gould,
o gradualismo
é um produto cultural do Ocidente, com a sua ideologia liberal profun-
damente enraizada na cultura, e segundo a qual o progresso contínuo é obtido por meio de reformas lentas e suaves. Com a decadência das monarquias
ligadas
a uma
estrutura
século das luzes a terminar Gould),
os cientistas
componente
com
começaram
normal da ordem
uma
estática
da
sociedade
fase revolucionária
a considerar
à mudança
universal, e aplicaram
e
com
o
(diz ainda. como
uma
6 novo conceito
a natureza. As classes cultas defendiam o programa liberal da transfer . mação lenta e gradual, e teria sido esta doutrina que foi aplicada à natureza. Quer dizer, uma espécie de reformismo social foi transmudado para um reformismo biológico. Faz-se, em suma, a ligação entre a utili
dade política de uma ideologia, que recusa e combate toda a mudança
súbita e radical da sociedade, e a origem das espécies, embora: se reconheça que essa conexão não tenha estado necessariamente consciente
1
SR
no espírito de Lyell ou de Darwin, os grandes campeões do gradualismo
na geologia e na natureza viva?, Quanto ao neo-saltacionismo, ele exprimiria outra ideologia, e isto é claramente proclamado: pelos: seus | principais defensores,
Com
efeito, para
Gould
a teoria «punctacional».
acorda-se com a filosofia marxista das mudanças
descontinuas, com as
leis dialécticas reformuladas por Engels a partir da filosofia hegeliana, leis
que
são,
segundo
o mesmo
autor, 214
estritamente
«punctacionaisa,
ci
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —I
como seja a transformação de quantidade em qualidade. Escreveu, por exemplo: The dialectical laws are explicitly punctational. They speak, for example, of the «transformation of quantity into quality». This may sound like mumbo jumbo, but it suggests that change occurs in large leaps following a slow accumulation of stresses that a system resists until it reaches the breaking point [...]. Eldredge and I were fascinated to learn that many Russian paleontologists support a model similar to our punctuated equilibria. (1980, pp. 184-185.)
Mais tarde repete as mesmas considerações ideológicas e a concordância
do
neo-saltacionismo
dialéctico, expressando-se
(«punctacional»)
com
o
materialismo
em francês:
Plusieurs hommes de politique utiliserent le raisonnement gradualiste pour plaider en faveur de réformes lentes plutôt que pour une attitude révolutionnaire [...]. D'autres philosophies de transformation ont une tradition respectable
et représentent I'orthodoxie en d'autres pays. Les lois dia-
lectiques de Hegel sont explicitement punctuationnelles. Le livret officiel de Marxisme-Léninisme en Russie démontre la «loi de transformation de quantité en qualité» se servant des exemples de l'eau qui bout soudainement aprês un long stage en état liquide, on de la révolution ouvrieêre brusquement déchaineé apres une longue période d'opression. [Gould (1982),
cit. Thaler
(1983),
p. 147].
L. Thaler critica Gould dizendo que o exemplo da água que ferve tanto pode indicar descontinuidade como continuidade (como na autoclave), mas para o mesmo autor o mais surpreendente é a comparação da especiação com a ebulição do mesmo líquido, analogia que considera incorrecta, tal como a que respeita à revolução operária após longo período de opressão. A origem das espécies, lembra Thaler, não obedece a «lei da transformação da quantidade em qualidade». Há algo de essencialista, penso eu, na posição que considera haver ausência de estados transicionais entre as espécies. Essencialistas eram, também, os saltacio-
nistas tradicionais, com os arquétipos e a origem súbita de novos tipos de organização. É praticamente impossível escapar a forte ambiguidade se insistirmos em opor dois pontos de vista bem extremados que traduzem confusão de escalas, temporal e de velocidade de mudança. 215
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
A posição científica de Gould pode obedecer a razões ideológicas (é ele que o diz), mas não é a ideologia marxista-leninista que decidirá, em última análise, do futuro da teoria neo-saltacionista, que de novo irrompeu na biologia com a teoria da evolução «punctacional» 2. Quem julgará do seu acerto ou desacerto será a comunidade científica, com a acumulação
de factos, o livre exame,
a crítica e a circulação de ideias
sem barreiras a opor-se-lhe. Como disse P. Bowler (1984), o sucesso ou o fracasso da interpretação «punctacionista» vai depender da sua capacidade de convencer, ou não, a vasta maioria dos cientistas de que
é um guia mais frutuoso para a investigação 2. O saltacionismo, quer tradicional, quer «punctacional», pode ser associado a várias ideologias — ao marxismo, como se viu, mas, também, a uma filosofia essencialista (conciliar a filosofia de mudança
com as «essências»), ao espiritualismo, à tentativa (consciente ou não) de introduzir o mistério e o milagre na evolução. Ideologias contrapostas a sustentarem
uma
mesma
posição
científica.
Se as espécies
e os
grupos «superiores» surgem bruscamente, se as adaptações complexas se constituem por um único passo de mudança, sem fases gradativas, o essencialismo fica salvo e o processo proposto é imediatamente tomado como suporte para as fantasias dos criacionistas. Se a evolução é uma
série de breves transformações separadas por longas fases de estabilidade, então
(e não apenas para os criacionistas)
genética
«punctacional»
poderão
ser
os momentos
tomados
como
de revolução
actos
de
criação
divina. Stephen Gould, Steven Stanley (1979, 1981) e outros neo-saltacionistas esforçam-se por demonstrar que a sua doutrina não abre a via ao criacionismo, nem
lhe fornece
argumentos
antievolucionistas e anti-
darwinianos. Mas, apesar disso, o que é facto é que os criacionistas rejubilam com o modelo «punctacional», que se acaso se apoia, para alguns, no materialismo dialéctico, concede, porém, argumentos para metafísicas opostas. É certo que o modelo «punctacional» é suficientemente sério para merecer toda a atenção dos cientistas, e só o futuro decidirá do seu destino. Os seus autores propõem, e neste aspecto terão provavelmente razão, que a especiação se faz por processos darwinianos
em momentos de crise adaptacional (Mayr e outros já o tinham dito),
em
populações
muito
diminutas
e localizadas,
e com
intervenção
da
selecção natural. Mas no modelo neo-saltacionista o importante para os antidarwinistas e para a activa corrente ideológica antievolucionista não é naturalmente isso. Do que eles prontamente se apropriam, como
arma, é que a evolução seja encarada pelos biólogos como um processo
fortemente descontínuo, espaçado, cortado por momentos de criação. súbita. Ora é isto o que tem sido afirmado, e é isso que falta demons-
trar que ocorra com tal frequência que a evolução gradual seria um processo ocasional, o que muito provavelmente não será o caso. 216
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —I
Temos, assim, que um problema que à primeira vista podia pare-
cer exclusivamente científico, dependente apenas da objectividade e da pureza dos factos, é afinal influenciado por ideologias, o que não sur-
preenderá. Gould é perfeitamente aberto sobre este ponto, confessando
a inoperação marxista na elaboração do seu neo-saltacionismo e dos seus ataques ao gradualismo. Mas a teoria dos «equilíbrios intermitentes»
não é uma boa teoria, embora tenha diversos méritos por traduzir, provavelmente, uma parte da realidade (se lhe retirarmos a metafísica estimular saltacional), e sobretudo por impulsionar a pesquisa, por
outra leitura da documentação fóssil e sugerir novas articulações com
os dados obtidos no estudo das espécies vivas actuais. Mas, por muito
inseparáveis que sejam ciência e ideologia, a primeira, se for falsa, acabará por não resistir aos ensaios de refutação que lhe forem dirigidos, e, ao cabo, a ideologia protectora
erá remover
não lhe poderá
os obstáculos que se levantam
valer, nem
lhe
à sua comprovação e
aceitação pela comunidade científica internacional. Mesmo o vínculo ideológico que Gould estabelece com o marxismoJeninismo
não
parece
nem
necessário
nem
coerente
e muito
menos
óbvio, como pode verificar-se pela utilização que os criacionistas fazem do neo-saltacionismo, na convicção de que toda a teoria de mudança descontínua sobre a origem das espécies implica a existência de milagres
(v. Bowler, op. cit.).
O mais provável é que a teoria «punctacionalista», longe de se opor ao neodarwinismo,
venha
a ser incluída nele e absorvida por ele,
e que a genética das populações e a embriologia expliquem
(como já
vem acontecendo) as descontinuidades do registo fóssil (reais ou aparentes) e os fenómenos de stasis (v., por exemplo, Lewin, 1986). Não será pela teoria «punctacional» que o edifício teórico do darwinismo moderno (teoria sintética) sofrerá qualquer abalo. Quando muito (e não
será pouco), poderá, pelas consequências decorrentes, ver alargada a sua
capacidade explicativa e o seu suporte na realidade. As oposições ideo-
lógicas e/ou filosóficas terão, talvez, de procurar outras vias de confronto e outros apoios ou legitimidades para as metafísicas.
c) Diversidade que não se repete idêntica
No final do século xvilI começa a impor-se a ideia de mudança. A classificação pré-darwiniana dos objectos naturais, das plantas e dos animais, com as suas categorias inferiores subordinadas às categorias superiores, no fundo identificada às classes sociais e reflectindo-as, exprimia ao seu nível uma sociedade fixa, baseada na ordem natural
do mundo, não traduzindo progresso nem mudança. 217
GERMANO
A
Revolução
Francesa,
DA
FONSECA
o declínio
SACARRÃO
das
monarquias
e da
religião,
a revolução industrial em marcha, o liberalismo económico em progresso, as viagens, o colonialismo, tudo isto determinou ideias de mudança, a introdução do tempo histórico na sociedade e na natureza. As estruturas e os costumes modificaram-se com a rapidez e este facto introduziu uma visão histórico-evolutiva. Às sociedades fechadas medie-
a extraordinária importância da variabilidade dos seres vivos. Para muitos filósofos e cientistas não biólogos, este fenómeno ou é incom-
preensível ou não acertam no seu significado. A diversidade biológica é
incompatível com o espírito essencialista tradicional e exige, também, um
modo
de pensar diferente do que é habitual nas ciências que tratam
fundamentalmente com invariantes, com fenómenos de «repetitividade». Ora a diversidade dos sistemas biológicos a todos os níveis, que enfrenta
a infinita variabilidade das condições do ambiente, obriga ao ensaio de múltiplas soluções (de sobrevivência e de adaptação), que não se repetem idênticas. À evolução é irreversível. É sobre as variações dos caracteres individuais, que surgem de maneira foriuita, sem relação
com
as necessidades do organismo,
que actua a selecção natural. Não
havendo dois organismos ou duas populações idênticas, é óbvio que os resultados da acção da selecção sobre elas também não podem ser idênticos. É esta uma das razões pelas quais os biólogos são, em regra, pouco inclinados a aceitar a existência de seres vivos noutros planetas,
como os terrestres. É altamente improvável que se constituam noutros mundos, mesmo em planetas de tipo terrestre, as mesmas sequências históricas, rigorosamente idênticas em todos os pormenores e elos cau-
sais às que se desenrolaram no nosso planeta, incluindo a evolução química até ao nascimento dos primeiros organismos; improvável que haja uma coincidência de todos os eventos aleatórios (sabendo-se o importante papel dos processos de acaso para a evolução biológica), de
um perfeito paralelismo nos encadeamentos históricos, nos acidentes ocorridos, nas variações e na sua selecção. É por não se atender devidamente à natureza da evolução biológica que tão facilmente se admite
a existência de inteligências extraterrestres, em formas
humanóides, ou
de
que
de seres vivos diferentes, mas que afinal mais não são do que desvios configurações
terrestres *. Por
muita
imaginação
haja,
todas
as criaturas fantasiadas, inclusivamente na literatura de ficção cientifica, são basicamente construídas segundo os modelos terrestres. E não
se dão conta da improbabilidade,
que
toca o absoluto,
de ocorrerem
as
mesmas histórias evolutivas em planetas diferentes. A não ser se admi-
tirmos um grande princípio espiritual inteligente a comandar a evolução da vida no universo, o que, claro está, sai dos quadros da ciência. 218
ã
“8á ã
Fla vias À Uns du temaD
vais sucederam as sociedades abertas, aquelas onde rapidamente e livremente ocorrem mudanças. Quem não está familiarizado com a biologia evolutiva não alcança
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —I
Não é decerto isso que está na mente de diversos astrónomos e de outros Fred Hoyle Noutro
alguns estará.
a biologia. Mas em
com
familiarizados
cientistas não
(1980), por exemplo, embarca em tais divagações. com
argumentos
alguns
desenvolvi
lugar
tentei
os quais
mostrar que é em extremo improvável que existam noutros pontos do vivos de tipo terrestre, e praticamente zero a proba-
organismos
cosmo
bilidade de haver seres semelhantes a humanos ?. Não pode excluir-se, naturalmente, que a vida possa ter surgido noutros planetas idênticos ao planeta terrestre. Mas para que haja nesses planetas seres de tipo terrestre, incluindo humanóides, com os seus variados instintos e comportamentos, seria necessário que todos eles tivessem, durante largos
biliões de anos, a mesmíssima composição e a mesmissima história que
a Terra, exactamente em todos os seus pormenores, quer geológicos, quer
histórico dos processos evolutivos
o encadeamento
e que
climáticos,
fosse em todos eles idêntico, que das interacções organismos/ambientes
resultassem as mesmas cronologias de contingências ?. O que actualmente são os organismos (insectos, aves, homens, etc.) e como fun-
cionam
depende
de tudo o que aconteceu ao longo de um
muitas
centenas
de milhões
de
tem)
todas
sequências
de anos, em
as «invenções»
se sucederam
que
passado de
(que não se repe-
e acumularam.
As
coincidências de todas as contingências ocorridas nas sequências terres-
tres (nos organismos e nos ambientes), necessárias para originar seres impro-
vivos de tipo terrestre noutros lugares do cosmo, são altamente váveis, se não mesmo nulas na prática, de se repetir.
de seres inteligentes, de autocons-
A existência noutros mundos
situação que a biologia evolu-
ciência, de civilizações superiores, é uma
dificilmente
tiva
obscuras, contradizem
Tais
admitir.
poderá
vezes
muitas
especulações,
as conclusões dessa ciência. Por exemplo, é pra-
ticamente nula a probabilidade de uma evolução extraterrestre originar um sistema nervoso como o do homem. Há demasiadas crenças e ideologias nesta questão da inteligência extraterrestre. É o caso da crença na
«grande
escala
que
natureza»,
da
continua
a exigir
(agora
num
contexto de mudança) que consideremos o homem no topo da evolução, como o ser mais aperfeiçoado e mais inteligente, de modo que também
noutros mundos as civilizações superiores terão de ser o termo das evoluções aí decorridas.
São sobretudo astrónomos e físicos (com alguns biologistas moleculares e microbiologistas) que defendem a possibilidade da existência de seres extraterrestres. É o caso de Sagan, de Hoyle e de outros astrónomos. O primeiro, autor de Cosmos, é sem dúvida um brilhante divulga-
dor e perseverante defensor das pesquisas para procurar estabelecer uma eventual
com
comunicação
logos
evolucionistas
como
Th.
não
Dobzhansky,
se
G.
inteligências dá
o
mesmo,
G. Simpson, 219
extraterrestres. e as
Ernst
Com
maiores
Mayr,
os bió-
autoridades,
François
Jacob
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
e outros, são claramente contrárias à ideia de haver seres vivos de tipo
terrestre fora do nosso planeta. Entre milhões e milhões de espécies de plantas e animais, só uma desenvolveu a inteligência humana e a consciência de si, e isto ao fim de mais de 3 biliões de anos de evolução da vida. Tal circunstância, que evidencia a enorme improbabilidade do aparecimento da inteligência num planeta que oferece as condições exactas para a sua emergência, sugere-nos, do mesmo passo, que noutros mundos a improbabilidade ainda seja maior, havendo a acrescentar outras razões de peso para que ela seja praticamente nula ou quase, a algumas das quais já atrás aludi (v. os importantes artigos de Simpson, 1961 e 1964, e também Mayr, 1985). Para Jacob (1977),a probabilidade é praticamente zero para que sistemas que porventura possam existir no cosmo tenham evolucionado para algo que possa assemelhar-se a seres humanos. À biologia de Hoyle e de outros astrônomos e físicos não convence. São fiéis a uma perspectiva determinística dos fenómenos, de modo que, como disse Mayr, estão convictos de que o que
se passou na Terra aconteceu, igualmente, em planetas de outros sistemas solares. Ora os biólogos, sabendo que a evolução do homem,
do
insecto,
esteve
escalonada
por
um
número
imenso
de
ou
aconteci-
mentos, cada um dos quais resultado de um jogo complexo de probabilidades a ligarem o destino das variações acidentais dos organismos às. contingências do ambiente, não aderem
a tal ponto de vista.
Não se nega em absoluto a possibilidade de existir vida inteligente
extraterrestre ?. O é, para todos os impor-se, ou seja, milhões, ou mais,
que se conclui é que a probabilidade dessa existência efeitos práticos, vizinha de zero. Um facto parece que a inteligência autêntica é, no conjunto dos 100 de espécies que apareceram na Terra, um aconteci-
mento extremamente raro, isolado e de modo nenhum sendo uma característica básica da evolução animal. A diversidade nunca se repete idêntica, e, mesmo no caso da evolução convergente (por exemplo, olhos nos moluscos e nos vertebrados), a semelhança de construção é super..
ficial e esconde
profundas
diferenças”.
A
evolução
convergente de
estruturas resulta de análogas interacções dos organismos com ambien
tes semelhantes, interacções que se impõem provável o desenvolvimento
de tal modo
das convergências
que tornam
respectivas '!. Ora se 6
nascimento de morfologias e funções análogas se apresenta em tantos casos como acontecimentos muito prováveis na evolução, já o mesmo não aconteceu com a inteligência autêntica, que só apareceu na linha . do homem
ao cabo de mais de 3 biliões de evolução da vida.
220
BIOLOGIA
d)
Conceitos Com
a palavra
do usual. Em
«evolução»
dá-se
um
facto
curioso.
o fez empregou-a num
Darwin
rara-
contexto diferente
1744, o biólogo alemão Albrecht von Haller inventou o o aplicar
para
«evolução»
termo
SOCIEDADE —I
de evolução e de progresso
a utilizou e quando
mente
E
na
teoria
da preformação 2, precisa-
mente para descrever o crescimento das miniaturas da forma adulta, e nesse tempo se pensava estarem incluídas no ovo ou no espermatozóide, teoria fantástica que fez correr rios de tinta de controvérsia (uns afirmavam
que essas formas existiam só no ovo, outros que só no
espermatozóide ) . Aplicava-se
aos animais e também
ao homem.
Neste
último caso, os homúnculos estavam encaixados uns nos outros, desde Adão ou Eva (consoante a ideia de estarem, respectivamente, nos testículos ou nos ovários), à espera, em cada geração, de se desdobrarem, de se revelarem e de crescerem *, mas era um crescimento sem mudança
de forma. Outra escola oposta, a dos epigenetistas, negava que os indiví-
duos estivessem preformados no ovo ou no espermatozóide e afirmava que
a forma adulta resultava de uma edificação progressiva (ou epigénese) a partir de um simples ovo, minúscula porção de matéria viva aparentemente
indiferenciada.
E eram
estes que estavam
na razão. Mas
no
século XVIII quase todos os biólogos eram preformacionistas. Compreen-
de-se o preformacionismo no contexto da sua época. À doutrina estava de acordo com a ideia de que tudo estava fixado desde a criação do mundo, com a teoria de que as espécies eram imutáveis. Não poderia
conceber-se uma transformação tão profunda como a que dá origem a um homem a partir de uma microscópica gota de matéria viva, sem forma nem
órgãos nela aparentes, com toda a edificação complexissima
de órgãos, funções, com a génese do cérebro, etc. A ideia de uma ordem da natureza estava em perfeita harmonia com a ordem social estática, com
um
mundo
sem
mudanças,
onde
tudo estava previsto e regulado
por acção divina. Por isso os epigenetistas, que estavam na razão, foram os incompreendidos e ficaram sós com as suas ideias consideradas aberrantes.
Haller escolheu com cuidado o termo «evolução» porque se aplicava bem latim
à formação
«desenrolar»,
de gerações. Com «desdobrar».
efeito, evolvere significava em
E de facto o delicado ser em
minia-
tura, acantonado e comprimido, só «esperava» por aumentar de tamanho até atingir as dimensões definitivas. Mas a evolução do embrião, assim concebida, era um sério obstáculo ao darwinismo, ou seja, à modificação
da descendência originando novas variedades e novas espécies. Se todas as gerações humanas estavam preformadas e empacotadas nos ovários de Eva, é óbvio que era inadmissível que quaisquer acções no ambiente natural ou do próprio organismo viessem alterar o curso preestabelecido 221
GERMANO
da história do homem.
DA
FONSECA
SACARRÃO
A preformação não só dava um suporte sólido
à crença bíblica como afastava qualquer ideia de mudança. Como é que então um termo que exprimia um antievolucionismo rigido surge de repente a traduzir
transformação?
Como
lução», no sentido que lhe deu Haller, se transformou
é que a «evo-
numa
palavra
com um significado completamente oposto, pergunta Gould? Ora sucede que na primeira metade do século xIX o preformacionismo estava em
plena decadência e por volta de 1859, aquando da publicação da Origem,
o conceito
dava
os
últimos
suspiros.
À
sua
morte
deveu-se
a
várias circunstâncias, entre as quais devo mencionar o estabelecimento, em
1839,
da
«teoria
celular»,
feita
por
Schleiden
(1804-1881)
e
Schwann (1810-1882), e sobretudo o facto de a formação de um novo organismo resultar do desenvolvimento de uma célula, o ovo, facto que foi revelado por Von Baer (1792-1876), o fundador da embriologia. Como disse Bernal, a teoria celular tornou inteligível o crescimento
do indivíduo, e a selecção natural fez o mesmo para a génese das espécies.
Finalmente,
decisivo
nas
o
velhas
uso
generalizado
teorias,
do
revelando
microscópio
complexidades
deu
que
um golpe
não
se
suspeitavam e que tiveram de ser explicadas de modo inteiramente diverso. Foi o que aconteceu com os fenómenos de desenvolvimento a
partir da fecundação do óvulo pelo espermatozóide. Ora aconteceu que se a teoria da preformação morria no meio do século, a palavra «evolução» como que renascia para tomar um sentido inteiramente novo. Como a nova ideia era a transformação, a mudança a todos os níveis, no biológico, no social, no cultural, no económico,
no industrial, aproveitou-se a palavra «evolução» para traduzir a inovação. Mas inovação a significar progresso, num sentido diferente do que lhe deu Haller. Evolução a traduzir uma sucessão ordenada de formas e acontecimentos, desde um estado simples até estados gra-
dualmente mais complexos. Como nos lembra Gould, citando o Oxford English Dictionary, a origem deste significado remonta a 1647, a um
poema de H. More. «Evolution of outward forms spread in the world's vast spright
[spirit]».
E o mesmo
dicionário lá diz que é o «processo
de desenvolvimento desde um estado rudimentar até um estado maduro ou completo». Quer dizer, engloba o conceito de desenvolvimento progressivo, está intimamente ligado a uma noção de progresso. De mado que a expressão «evolução» tornou-se, no tempo de Darwin, uma palavra comum do que lhe
da língua inglesa, mas com um sentido muito deu Haller. O curioso, porém, é que Darwin
diferente só muito
raramente se serviu das palavras «evolução» ou «evolver» (to evolve), e na Origem fê-lo na última linha, sendo mesmo a última palavra da obra («from so simple a beginning endless forms most beautiful and most wonderful have been, and are being evolved») *. 270) mai uid 4
AN
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —I
Como afirmei noutro lugar, Darwin rejeitava que a transformação das espécies traduzisse qualquer lei absoluta de progresso, de um estado
inferior para um superior (expressões estas que dizia querer evitar). Daí talvez a extrema raridade da utilização das palavras evolution ou to evolve. Para ele, o mais ínfimo organismo pode estar tão excelentemente adaptado ao ambiente em que vive como o homem está ao seu,
que para Darwin a complexidade de estrutura não era sinal
de modo
de superioridade
ou de progresso
no sentido próprio
Ape-
pouco vacilante por vezes, e até
mostrava-se um
sar de tudo, Darwin
deste termo.
contraditório. A expressão que Darwin frequentemente utilizava para significar mudança era descent with modification, e também transmu-
tation para transformação relativamente
espécie noutra espécie. Expressões
de uma
neutras, não comprometidas,
via, não fez o mesmo
e por isso vantajosas. Toda-
no que respeita à selecção natural.
Quem contribuiu de maneira decisiva para que a palavra evolution
entrasse na linguagem
(e depois se generalizasse a outras lín-
inglesa
guas) como sinónimo de «descent with modification» foi Herbert Spen-
cer, o filósofo e extraordinário vulgarizador, que fez da evolução a lei geral do universo
e da vida. Em
anos, devido à sua influência,
poucos
toda a gente falava de evolução, e isto em grande parte devido ao seu
talento excepcional para as grandes generalizações. Para a sua filosofia
muito contribuiu a sociedade do seu tempo. Tendo nascido em 1820,
viveu em plena revolução industrial, numa sociedade voltada para o progresso. E para um bom vitoriano, como ele, necessariamente que não havia melhor princípio do que o progresso para orientar a sucessão dos
fenómenos sociológicos, económicos e naturais. Nos seus First Principles (1862) definiu essa lei universal da seguinte maneira: «A evolução é uma
integração de matéria e uma
concomitante
dissipação de movi-
mento, durante a qual a matéria passa da homogeneidade indefinida e incoerente para uma heterogeneidade definida e coerente; e no decorrer da qual o movimento sofre uma transformação paralela» *. Depois, nos seus Principles of Biology (1864-1867), utilizou largamente o termo
evolution. Esta obra, que foi muito popular, contribuiu fortemente para difundir e implantar a palavra. Para Spencer, a vida «é um continuo ajustamento de relações internas a relações externas», uma «cooperação entre
as forças
do
organismo
e as forças
ajustava perfeitamente (nota Gould)
século
xIX
vitorianos
existiam facilmente
sobre
noção
que
se
à maior parte dos conceitos que no
a evolução
igualavam
do ambiente»,
orgânica,
transformações
porque
os cientistas
orgânicas
a progresso
orgânico. E como a maioria dos evolucionistas via nas transformações orgânicas um processo dirigido no sentido do aumento de complexi-
dade, ou seja, no sentido do próprio homem, o ajustamento do termo geral propagandeado
ção que
dele
por Spencer
não entrou em
deu. 223
conflito com
a defini-
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
Todavia, enquanto ocorria todo este processo, em que as transformações orgânicas dos seres vivos passavam a significar progresso, processo condensado na palavra doravante soberana e praticamente exclusiva para sua tradução — evolution —, Darwin permanecia isolado, visto que para ele as modificações orgânicas conduzem apenas a adaptação local e imediata dos organismos, entre si e com o ambiente, sendo estranho (e até contrário) à ideia da evolução exprimir progresso, no sentido do simples e inferior para o complexo e superior. Repudiava um ideal abstracto de progresso, definido pela complexidade estrutural ou por heterogeneidade crescente no sentido de um aperfeiçoamento generalizado. Darwin, de facto, foi avesso ao conceito de progresso como
expressão da evolução biológica, mas há que reconhecer que afinal o darwinismo traduz constantemente essa mesma ideia. A palavra «evolução» teve imediata aceitação, e foi logo utilizada
pela comunidade científica e pelos não cientistas. Em 1883, a Cassell's Concise Cyclopaedia consagra já a expressão como significando «a produção gradual de uma estrutura ou sistema complexo e altamente orga-
nizado a partir de alguma forma fundamental simples». E desenvolve os principais pontos da teoria da evolução com base na Origem, ainda que,
repita-se,
contexto
não
haja
nesta
última
obra
usual. Diz-se, ainda, na mesma
utilização
enciclopédia
da
palavra
no
que development
é expressão mais rigorosa do que evolution. Seja como for, este vocábulo passou sem demora, com o seu novo significado transformista, para as línguas portuguesa, francesa, alemã, etc., o que também teve a vantagem
de uma
pronta unificação de entendimento
ceito passou para o futuro a traduzir.
que o con-
Spencer fez da evolução uma teoria do progresso, enquanto Darwin não pensava exactamente assim, como já se referiu %. A adaptação para este último ocorria em relação a dado ambiente, a dada situação. Por outro lado, não considerava que o homem fosse o extremo de uma evolução desde os seres inferiores aos superiores, o representante máximo
do progresso dos seres organizados e susceptível de contínuo aperfeiçoa-
mento pela eliminação dos «incapazes», dos «desadaptados». Quer dizer
que
Darwin
não
acreditava
numa
ideia
de
progresso
expressa
pela
evolução e tendo o homem no cimo de uma escala de aperfeiçoamento. As modificações conduzem a adaptação crescente dos organismos ao ambiente, mas não pensava que o homem
fosse superior à amiba, visto
que ambos estão bem adaptados ao seu ambiente, de modo que não tem sentido
dizer
que
o ser humano
é «superior»
e a amiba
«inferior».
de Robert Chambers). E pode ler-se na 1.º edição da Origem
que Darwin
Recomendou a si próprio: «Never use the words higher and lower» (que anotou à margem no exemplar do livro The Vestiges of Creation, não acreditava em qualquer lei de progresso imposta aos organismos. Num desses passos escreveu: «Il believe in no fixed law of deve224
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — 1
lopment...» E mais adiante acentua de novo: «l believe, as was remar-
ked in the last chapter, in no law of necessary development.»
Foram os outros cientistas da época e os leigos que ligaram estrei-
tamente o conceito de evolução com o de progresso, tornando-os prati-
camente sinónimos. E o vínculo persistiu até à actualidade, embora
alguns biólogos evolucionistas o desaprovem em maior ou menor grau. nascida
teoria da evolução
uma
que
Certamente
numa
sociedade
em
haveria de plena mudança como aquela em que viveu Herbert emSpencer cada época fazer conduzir a esse resultado. O hábito enraizado de a leitura da natureza de acordo com a
lógica e a dinâmica da sociedade
humana, e depois, de caucionar a mesma sociedade com os factos e pro-
cessos evidenciados pela natureza, só podia levar a identificar evolução a progresso. À tendência começara timidamente no século XviI, mas
o imobilismo (relativo) social ainda não permitira fazer a grande equivalência. Mesmo Darwin, apesar do seu esforço em se libertar da
crença num progresso ideal, a ligar todas as formas de vida, equivaJendo progresso a complexidade de organização, não conseguiu totalmente,
ver, esse objectivo,
a meu
nem
pôde
subtrair-se inteiramente
dessa tendência. Isso mesmo pode ser verificado, por exemplo, quase no final do texto da 1.º edição da Origem,
quando escreveu:
Thus, from the war of nature, from famine and death,
the most exalted object which we are capable of conceiving, namely, the production of the higher animals, directly follows
(p. 459).
Por incluir o conceito de progresso, o emprego da palavra «evolução»
gerou
grande
confusão
e desentendimento.
Parte
da comunidade
científica seguiu o ponto de vista de Darwin, não considerando a evolução a implicar forçosamente progresso. Mas muitos outros, provavelmente a maioria, assim como o comum dos cidadãos, passaram a ver na
evolução uma
marcha
para um determinado fim, uma direcção para
maior eficiência, maiores
dimensões, mais inteligência, psiquismo mais
complexo, tomando-se como padrão ou meta o ser humano, que seria, deste modo, um extremo do movimento evolutivo. Daqui resultaram diversos preconceitos nocivos. Aplicado, por exemplo, esse significado as raças humanas, logo houve quem falasse de raças mais evolucionadas
e menos evolucionadas, significando, portanto, que umas seriam superiores, outras inferiores! O mesmo se fez quanto à origem e evolução do homem, quanto às nações, às culturas, às classes sociais, etc., com todas
as consequências infelizes e perigosas que se conhecem. O colonialismo encontrou aí suporte e justificação, as raças mais evolucionadas, «superiores», tendo o «direito» de submeter e «civilizar» as raças «inferiores» Bibl. Univ. 49 — 15
225
GERMANO
menos
evoluídas.
DA
FONSECA
O darwinismo
SACARRÃO
social foi, portanto,
em
parte
um
pro-
duto do que exprimia o termo «evolução». E o que ele exprimia (progresso, superioridade, etc.) apoiou largamente a sua doutrina e os seus
excessos. Darwin não pode ser culpabilizado por isso, tendo sido mesmo
contrário às pretensões do darwinismo social. Muitos biólogos e não biólogos continuam a vincular intimamente evolução e progresso, a identificar em absoluto os dois conceitos. Assim o fizeram Julian Huxley, um
dos mais proeminentes biólogos deste século, que influen-
ciou
fortemente
que
o precederam
o pensamento
ou
transformista
vieram
na
moderno,
sua esteira
(v. no
e tantos
cap.
outros
II, vários
passos). Teilhard de Chardin, com a sua ideia de evolução para Deus, fortaleceu
nota
e tentou
justificar
a
mesma
identificação
(idem,
cap.
1,
17).
Stephen Gould só em parte terá razão quando diz que os cientistas, ao seleccionarem uma palavra corrente que significa progresso, contribuíram
para estabelecer uma
a expressão darwiniana
incompreensão fundamental,
«descendência
com
modificação»,
substituindo
menos eufó-
nica, decerto, mas mais rigorosa. Mas a utilização generalizada da palavra «evolução» talvez não seja, a meu ver, inteiramente responsável pelos desentendimentos e abusos a que deu lugar. Creio que é, talvez,
mais
conforme
mudança
aos factos concluir
que
a progresso estava implícita
a tendência
na própria
para
identificar
transformação
da
sociedade europeia que vinha processando-se desde a Renascença, acentuando-se no século xvilI e, finalmente, fazendo sofia e dinâmica da revolução industrial e das
parte da própria filosociedades industriais
modernas que dela descenderam. A escolha da palavra correspondeu à necessidade de traduzir um conceito preexistente de transformação já ligado
a progresso.
Não
foi, portanto,
a expressão
«evolução»
que
o
corrompeu, embora tenha contribuído em parte para o adulterar e difun-
dir. Certamente que só teria havido vantagem em ficarmos com as expressões relativamente neutras «descendência com modificação»,
«transmutação das espécies», ou outras igualmente não comprometidas
e destituídas de implicação ideológica. Mas a terminologia científica não é de modo nenhum estranha às ideologias dominantes, ou a um certo
sentido prático ou cómodo sacrifica a objectividade. 4.
O
abuso
de
de comunicar
ideias,
e que
tantas
depende
em
vezes
metáforas
O conhecimento
que formamos
da realidade
grande
parte da linguagem, da sua estrutura e forma, das palavras inventadas,
dos significados atribuídos, das analogias fantasiosas. O meio cultural, o tipo de sociedade, os valores
dominantes, 226
marcam
profundamente
a
BIOLOGIA
terminologia,
e esta,
por
sua
E
SOCIEDADE —I
vez,
influencia
fortemente
os conceitos
e o sentido da interpretação dos fenómenos. Nas páginas anteriores, em várias ocasiões se nos deparou
analogias
e das metáforas
a importância
na linguagem
das fundamentalíssima
científica da biologia ”.
O abuso de metáforas é fonte de incompreensões e de falseamentos e o mesmo acontece, em regra, quando a mesma palavra passa na
sucessão temporal a designar objectos ou processos diversos, embora a
multiplicação terminológica não seja de modo nenhum recomendável, sobretudo quando as diferenças que se vão obtendo no conhecimento
de dada coisa ou fenómeno correspondem ao seu progressivo dilucidamento. Muito mais nociva é, porém, a utilização abusiva de metáforas, como hoje se verifica na biologia. Certos sectores desta ciência assentam
hoje numa retórica tão metaforizada que as suas relações com o real me
parecem falseadas. com reflexos perigosos sobretudo a nível da sua inte
gração na cultura e no ensino a todos os níveis. Artigos sérios em jor-
Esbicos». como se pode ver num artigo editorial de apresentação a outro artigo sobre a origem do comportamento sexual [ «Lesbian Essrds»:
m
vol. gy,7 (4):257, 1982]. Psychoneuroendocrinolo
A luz do espírito é um exemplo de expressão metafórica em que.
o ). do onári como diz Cândi de Figueiredo (Dici da Língua Portuguesa «a significação natural de uma palavra é substituída por ouira sgnif-
cação. que lhe não é aplicável, senão por comparação subentendida>. Or=. se o uso de metáforas parece ser, por vezes, uma necessidade em
biologia. o seu abuso é condenável e deve ser denunciado por conduzir
frequentemente a confusão. por instilar no leitor desprevenido falsos comesitos. sentidos errados. distorções da realidade É certo que a
metifora revela-se util em diversas situações, ou porque encurta uma
a 2 etizMas deserição. ou porque condensa ou sint um pensamento. metáfora não é só analogia de significações, de objectos, de fenómenos. com à metáfora pretende-se ir mais longe: descrever e penetrar na res dade biológica, apreender-lhe o sentido profundo. Aí reside o perigo de
Conlicoe casa csageis. É cota que sges
SEqanadS
é
us progresso do conhecimento científico, à ampliação do mundo cultaral, é uma necessidade permanente, e seguramente que um dos meios mais meportantes para o fazer é o recurso à metifora Em biologia, aus noutros ramos do saber, hã ideias para » formula dasção quais tabrzas palavras adequadas, de modo que em regra se procuram outras á exesenies comferindolhes um siguificado alargado mas tantas veses tis estranõo à essência da ideia ou feniemeno descrito que o sem sguExcado fuxa faboo, om varmo de conteúdo o termo utilizado E a sm repe cães desemndado ess no resultado de se dar aparência de cousa rea) m» 2H
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
que começou por ser ingênua ou tendenciosa analogia. E, assim, estas aproximações
e identificações geram
muitas
vezes perigosas metáforas
e lances de retórica. Impõe-se que se combata este vício. Mas, estranhamente, são raras as referências críticas que o denunciam de forma inequívoca. É por vezes elas respeitam exclusivamente
ao seu papel na
história das ideias *. a) 4 metáfora em Darwin
Inúmeros
exemplos deste descomedimento
podem
ser observados
na sociobiologia. Mas não é só nesta disciplina que o facto se verifica.
Pode dizer-se que largos sectores da biologia estão corrompidos por esse mal. A utilização abusiva da metáfora provém, em grande parte, da dupla
fizar
tendência generalizada
a sociedade
humana.
de antropomorfizar
Charles
Darwin
a natureza
utilizou
e zoomor-
constantemente
algumas metáforas na elaboração da sua teoria. Deve notar-se que ele tinha consciência desse facto, mas não, talvez, das ambiguidades da sua utilização. Por exemplo, chama a atenção do leitor para o valor explicativo da expressão «luta pela vida» (struggle for existence), que confessa utilizar metaforicamente, num sentido largo. A expressão «selec-
ção natural» é igualmente metafórica, à qual Darwin emprestou uma espécie
de acção providencial
organismo
a trabalhar
para
a melhoria
todas as vezes que tem ocasião para isso, numa
ciosa, sem se dar por ela, como ele escreveu. Darwin refere-se à selecção natural como um
de cada
acção silen-
No seu esboço de 1842, «ser infinitamente mais
sagaz do que o homem (não um criador omnisciente)», que exerceria o seu poder selector e a sua providência ao serviço de «certos fins», durante milhares de anos. Tudo isto demonstraria em Darwin uma
espécie de compromisso, na explicação da natureza, entre o positivismo,
a que conscientemente obedeceu, e o seu pendor pronunciado para o antropomorfismo, para personalizar a natureza ?. Já referi que Alfred R. Wallace pressionou Darwin a utilizar a expressão «sobrevivência dos
mais aptos» em vez de «selecção a
natureza.
Simplesmente,
a
natural», metáfora
expressão
que personifica
spenceriana,
que
Darwin
usou largamente, tem causado grande confusão, muito maior do que a que tem a expressão «selecção natural». Modelos matemáticos
podem
evitar, por vezes, expressões infelizes ou inadequadas na comunicação, mas a sua utilização é limitada, e na base da sua inspiração podem estar diversos comprometimentos. Além disso, o seu emprego faz-se,
sobretudo, nas áreas das especializações a que são particularmente aplicáveis.
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — I
b) 4 retórica sociobiológica A Além
sociobiologia da
venerável
está hoje
inundada
«sobrevivência
gias», os «egoísmos»,
do
por
mais
expressões apto»,
metafóricas.
temos
as
«estraté-
os «altruísmos», as «malevolências», os genes
«maus», «bons», «inteligentes» e «egoístas»; a «batalha» dos genes, o «escravo», a «exploração», a «fêmea adúltera», a «violação», o «marido enganado», O «intrujar», a «timidez», os «custos» e os «benefícios»,
e tantas outras metáforas aplicadas a biomoléculas e a animais, num desenfreado
antropocentrismo *!.
Em
substituição
do
vocábulo
«al-
truísmo» foi proposta a expressão «social donorism» (G. C. Williams e D. C. Williams), mais neutra, com menos carga emocional. Mas o resultado foi, segundo parece, nulo. Existe uma tendência, em muitos casos não premeditada, para projectar comportamentos humanos na
sociedade animal, e vice-versa, o que pode, a meu ver, explicar a resistência à utilização de termos directos e de sentido neutro.
A cultura, a política, a tecnologia, também inspiram metáforas, como (além das precedentes) «progresso», «sucesso», «guerra», «com«investimento»,
petição»,
«código»,
«informação»,
«mensagem»,
«má-
quinas egoístas», etc. Mas os genes não são egoístas, nem altruistas. Para ê então utilizar expressões que só conduzem a confusão? Já chegam
os mal-entendidos com certas expressões clássicas *. A
sociobiologia,
que
parece
não
poder
exprimir-se
sem
o recurso
excessivo à metáfora, vai destilando significações deturpadas, sobretudo quando
aborda
a
esfera
do
homem.
Aqui,
distanciando-se
do
rigor
investigativo e dos limites da hipótese refutável a que, em regra, obedece nos trabalhos da especialidade, já não se sabe, muitas vezes, se a expressão é metafórica, ou se é esse o seu sentido real. A meu ver,
quanto mais a biologia abarca o social e introduz o homem nas suas interpretações, a mais metáforas tem de recorrer e mais ideológica se torna. Uma formiga é «altruísta» na medida em que a sua desvantagem genética implica vantagem genética para outra formiga. Mas altruísmo (humano)
é outra coisa: nele existe sempre uma componente consciente
e uma intenção de prestar auxílio a outrem. E não chegamos a nenhum lugar se considerarmos «intenções» e «valores» no animal. Se assim fosse, a moral não seria um problema exclusivamente humano, como é. Por outro lado, nem todo o altruísmo humano implica necessariamente sacrifício para o altruísta, nem o egoísmo exige que haja nocividade para o semelhante. Nas analogias que se podem estabelecer entre os comportamentos dos animais, para se manterem vivos, e as formas da conduta humana, subjaz, provavelmente, um grande mistério, mas tal
facto não justifica natureza diferente.
que
se aproximem
229
ou
identifiquem
processos
de
GERMANO
c)
Necessidade
DA
de saneamento
FONSECA
SACARRÃO
semântico
O ideal seria que a comunicação científica em biologia não incluísse expressões metafóricas. Mas se não parece possível deixar de recorrer ao emprego de metáforas e analogismos na comunicação entre
especialistas e no próprio trabalho de investigação, haverá a maior
equívocos
cautela,
sobriedade
e clareza
na
sua
utilização,
e falsas interpretações não adulterem
que exigir para
que
a objectividade
os
e o
significado das interpretações. Karl Popper não me parece ter exagerado
quando
disse
que
em
muitas
obras
sobre
evolução
e sobre
história
é muitas vezes impossível descobrir onde termina a metáfora e começa a teoria séria. Onde a metaforização atinge grandes proporções e formas particularmente abusivas é, sobretudo, naquela larga zona ciência-ideologia, e nas transposições múltiplas da biologia para as ciências humanas, para as áreas imensas da cultura e da filosofia, ou quando
se estabe-
lecem relações entre o homem e os outros animais, particularmente a nível de comportamento social e da estrutura das sociedades. Peri existe quando o abuso da metáfora
induz a darmos
significados a fenó-
menos que, na realidade, eles não têm, ou não está provado que tenham. É, por exemplo, o que acontece, muitas vezes, quando, sem senso critico, se estabelecem certas homologias e filiações entre o comportamento do animal e o do homem, sem avançar a suspeita de podermos estar em
presença
de analogias.
Isto será devido à tendência
de projectar na
natureza
ideias e sentimentos que insensivelmente conduzem
depois a
crer fazerem parte dela. À uma expressão neutra prefere-se um vocábulo já comprometido
noutro
contexto,
e que se julga
ser útil fora
dele.
Simplesmente, o que sucede frequentes vezes é que esse vocábulo deslocado origina falsas interpretações. Um equilíbrio impõe-se, a meu ver, entre a arte de comunicar ideias e a exigência de objectividade e rigor,
evitando-se as ambiguidades e a falsa doutrinação. Toda a natureza é comparada a uma máquina, metáfora que inspira há quatro séculos a visão da natureza, e toda a biologia se tem desenvolvido penetrada desse mito. As estruturas científicas reflectem as relações económicas e a ideologia dominante. Por exemplo, no ensino secundário a célula é muitas vezes comparada a uma fábrica, com suas linhas de monta-
gem, matérias-primas, produção e distribuição de produtos. Exemplos
deste tipo não têm conta *.
Metáforas falsas, sem sentido, são frequentes. O dualismo cartesiano da alma e do corpo pode originar o ponto de vista segundo o qual
as doenças mentais não são verdadeiras doenças porque a insanidade mental não pode ter origem numa degenerescência ou mau funciona-
mento do corpo, visto que a doença autêntica só ataca a matéria, o organismo, e não a alma. E então a expressão «doença mental» seria 230
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — I
Szasz, professor de Psiquiatria na
metafórica. É o que pensa Thomas
Universidade de Nova Iorque *.
Metáfora abusiva e sobretudo sem sentido porque assenta em bases
equívocas
ou falsas é também
identifica
os três folhetos
derme) objecto
a que estabelece René Thom *º quando
embrionarios
(ectoderme,
mesoderme,
endo-
(=endoderme), verbo (=mesoderme) e fundamentos embriológicos são simplistas
à trindade sujeito (=ectoderme). Os
e demasiado generalizantes, tudo em grandes linhas; e, além do mais, inexactos. Por exemplo, não existe no vertebrado uma estrutura ternária claramente constituída pelos três folhetos primordiais indiferencia-
dos, e com potencialidades organogenéticas bem segregadas. As coisas não se passam assim, e são mais complicadas do que a visão esquemá-
tica do matemático metáfora fazer-se
dizendo «uma
francês exprime. Quando
que
«comporta
embriologia
sentido»
comparada
Thom
porque
dos vertebrados
justifica a sua
com
ela ' poderá
e dos insectos,
por exemplo», comete várias imprecisões. Anoto apenas uma — a de que «nos insectos não há praticamente endoderme», facto que não é correcto. Daqui resulta que a sua interpretação da imaginada diferença fica sem base. Reconheço que uma biologia inteiramente expurgada de expressões metafóricas não será talvez possível. Mas será sempre preferível o recurso a expressões neutras ou directas, literais e inequivocas. À metá-
fora deve ser usada com muita parcimónia, utilizando as suas virtudes, mas evitando os seus defeitos. Em ciência, as palavras são instrumentos de clareza, fundamentados na realidade, tentando descrevê-la. A metáfora, que poderia ajudar a isso, fá-lo muitas vezes com desmedida e até transviadamente. Com ela aspira-se a penetrar na essência das coisas
para as explicar. Os simbolismos, as alegorias e as personalizações, que são variantes, extensões ou cascatas de metáforas, estabelecem a confu-
são e a falta de clareza dos conceitos. Prefere-se metaforizar em vez de
enveredar pelo sentido real e directo dos fenómenos. A palavra «progresso», por exemplo, é aplicada em biologia evolutiva quase sempre com sentido metaforizado. Traduz uma realidade duvidosa, é palavra deslocada
do
seu
significado
real.
De
facto, a ideia
de progresso
é,
muito provavelmente, antropocêntrica, como pensava J. B. S. Haldane, contrariamente, aliás, à opinião de outros biólogos (como Julian
Huxley), mas não à de Charles Darwin. Conferencistas, popularizadores e escritores de ciência prestam um péssimo serviço quando utilizam um estilo empolado, com recurso constante
a analogias,
a figuras
de retórica, a comparações
abusivas,
ocas de sentido, num metaforizar excessivo. Em grandes áreas, como na teoria da evolução, ou em disciplinas como na ecologia, na etologia, na antropologia, na sociobiologia, etc., muitos autores são tentados pelas
analogias, pela imagem
sem fundamento na realidade, pelas hipóteses 231
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
baseadas em metáforas, ou por explicações que mais não são do que metáforas. À preocupação essencialista (tipológica) de utilizar a ciência para revelar as essências, a natureza real e secreta das coisas para as explicar, conduz quase inevitavelmente a interpretações que, parcial ou totalmente, são metáforas ou de natureza metafórica. Após ter depurado a biologia de interpretações divinas, o darwinismo introduziu o hábito irresistível de fazer a leitura do homem em termos de animal. Este método tem implicado analogias, equivalências e valores que são, muitas vezes, estranhos à objectividade científica. Com a sociobiologia atingiu-se o ponto mais alto deste movimento, e o
abuso
da
metáfora
constitui um
dos seus
meios
mais
penetrar na cultura e no ensino, e de corromper uma
poderosos
de
e outro. «Meta-
forizar bem é descobrir o que é semelhante», dizia Aristóteles (cit. P. Ricoeur). Será. A verdade, porém, é que o estabelecimento
de aproxi-
mações e correspondências entre o comportamento animal e o comportamento
humano
tem
conduzido
(e
continua
a
conduzir)
a
muito
equívoco e a muito erro. É as provas estão feitas quanto à extrema debilidade dos juízos baseados em simples analogias, tão ao gosto da ideologia
científica e dos seus mitos. Impõe-se,
semântico de vastos sectores da biologia.
232
por isso, o saneamento
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — I
NOTAS
1 O título completo é The Origin of Species by Means of Natural Selection/or
the Preservation of Favoured Races in the Struggle for Life. 2 Segundo parece, é por volta de 1840 que Darwin adopta o termo «selecção» (escrevendo em nota à margem de leitura) para exprimir as suas ideias sobre a origem das espécies. Mas num contexto perfeitamente similar já Patrick Matthew, em 1831, se tinha referido ao natural process of selection, e só mais tarde é que Darwin escreveu «natural means of selection» no seu Essay de 1844 (não publicado em vida de Darwin) (v. Limoges, 1970, p. 105). Em 1860, Darwin reconhece a Matthew a prioridade da ideia, mas não, aparentemente, a do termo designativo. (C. Darwin, «Natural selection», Gardeners” Chronicle and Agricultural Gazette, 16, 921 de Abril, 1860, pp. 362-363, in P. Barrett, 1977). 3 Para alguns aspectos da génese do darwinismo poderão consultar-se três arti-
gos que publiquei em 1982 e 1986 com o título de «Apontamentos sobre o Darwinismo»
(Naturalia), Idem, meu
1986 a.
4 Durante a sua viagem e nos três anos subsequentes à data do seu regresso a Inglaterra (Outubro de 1836), Darwin foi gradualmente modificando a sua atitude filosófica e científica, até ao acabamento da construção teórica por volta de 1840 nos seus alicerces fundamentais, sendo influenciado por múltiplas causas que actuaram no seu espírito: factos observados na natureza, leituras variadas, filosóficas, literárias,
científicas, etc., reflexões e críticas, um longo trabalho de paciente compilação biblio-
gráfica, estudo das colecções da viagem, contactos com especialistas que as analisaram, etc., tudo agiu nele para o conduzir à grande síntese teórica (v. o meu artigo «Sobre o método em Darwin», 1986, Prelo).
S Em 1858 foi apresentada à Linnean Society of London (1 de Julho) uma comunicação conjunta constituída por dois textos respectivamente de Darwin e de Wallace em que ambos assentavam os pontos capitais da teoria da transformação das espécies por selecção natural, a que tinham chegado independentemente um do outro e em lugares diferentes e distantes. Outra notável contribuição de Wallace foi um
livro sobre a distribuição dos animais
(1876)
que firmou a biogeografia como uma
ciência, e a que pouco de importância fundamental
à
distribuição
regional
das
aves
e
mamíferos
foi acrescentado no que respeita
terrestres,
que
foi
o
seu
tema
principal. Wallace, porém, não escreveu nada que possa comparar-se à Origem, e as suas ideias sobre a evolução do homem (da inteligência, do espírito) traduzem uma visão mística das origens humanas, apesar de ser um hiperseleccionista que aplicava o princípio da selecção natural com uma rigidez e absolutismo que Darwin nunca manifestou, muito ao contrário, Foi Darwin que revolucionou a biologia com o seu livro fundamental, e não Wallace com o seu artigo apresentado à Linnean Society,
como aliás o próprio reconheceu em carta dirigida a Darwin (v. Dobzhansky, 1974,
p. 326, Gould, 1980, George, 1980). 6 V. R. Dawkins, The Extended
7 Ou
Phenotype,
pp. 178-179.
talvez porque a expressão veiculasse mais facilmente
a sua teoria, tor-
nando-a mais aliciante e mais inteligível pelo vulgo. é Como que um lugar-comum, sublimado e transformado em lei científica fundamental da natureza viva, No seu sentido vulgar e generalizado, o conceito pode
aplicar-se a tudo o que se quiser (ou quase), ao mundo 233
físico, à competição entre
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
diferentes forças gravitacionais, aos processos inorgânicos, ao universo molecular, aos diversos engenhos e máquinas, à sociologia, à história, às hipóteses científicas, à vida de todos os dias, etc. É uma trivialidade na vida social de qualquer nível o conceito de que o que é melhor tende a substituir o menos bom. Neste sentido vulgar, truístico e alargado a todas as ciências e ao quotidiano, o conceito esvai-se. É necessário, por isso, limitá-lo à natureza viva, ou seja, aos sistemas que se auto-reproduzem
e que
variam
Dobzhansky,
(mutações)
(v.
também
G.
Montalenti
e B.
Rensch
in
Ayala
e
1974).
? E não apenas Wallace, como se referiu noutro lugar. Também o mendelismo o seu trabalho até 1900. Só atingiram um
sem Mendel
haveria de nascer, como de facto aconteceu, após longos anos em que teve, para todos os efeitos práticos, uma influência nula, desde 1866 quando os conhecimentos sobre a reprodução e a biologia celular certo nível é que o mendelismo teve o seu momento para surgir, para
ser compreendido e integrado. Só a partir de 1900 é que as «leis de Mendel» foram aplicadas
ao conjunto
das plantas
e dos
animais,
originando
uma
nova
disciplina
científica — a genética, ou ciência da hereditariedade. 10 A questão não é tão simples porque uma elevada aptidão reprodutora pode
ter
consequências
desadaptativas
li O que não teoria
tem
(v. meu
1985).
acontecido, sendo
ter resistido a todos
os ataques
de salientar
e críticas
que
o fácto significativo
lhe
têm
sido dirigidas
de. a desde
1859, o que parece atestar o vigor e validade do conceito. i2 Muitos dos cépticos sobre a realidade ou eficácia da selecção natural utilizam
frequentemente
este conceito.
13 V. meu 1985, onde se tenta mostrara importância fundamental da ontogenia
e da história
como
factores que
constrangem
os organismos
a seguirem
certas vias
de mudança. Nem a mecânica da selecção natural (que mais não é do que reprodução diferencial)
nem
o acaso chegam
para explicar a origem das espécies e das adapta-
ções. É necessário contar com a influência das estruturas preexistentes e da história como fontes e condição da criatividade nos seres vivos.
14 V. a nota 15 do cap. II. 15 V. o meu artigo «Apontamentos
sobre o darwinismo — 3. Leituras e refle-
xões de Charles Darwin na gestação da sua teoria» ló Nem mesmo os gémeos monozigóticos ou mesmo óvulo, e têm, portanto, os mesmos genes, idênticos, inclusivamente no plano físico (v. o cap.
(Vaturalia, 1986). monovulares, que provêm de um se podem considerar na realidade Iv e o cap. x1).
7 A biologia clássica assenta no método aristotélico de agrupar o que é semelhante, descrever caracteres comuns a dado tipo de organismo de maneira a apreender a sua «essência». Assim nasceu a classificação dos organismos com todas as suas filosofias e compilações. A ruptura com a tradição ocorreu sobretudo quando Darwin procurou uma explicação racional para as diferenças entre indivíduos da mesma
espécie fora do quadro metafísico do essencialismo, quando eliminou a barreira tipológica que opunha entre si as espécies como unidades fixas, Esta «biologia das diferenças» só veio a concretizar-se e a desenvolver-se com o nascimento da genética cujo
pólo
j'ai
deux
experimental vaches,
je
é oposto
ne
ao da biologia
m'intéresse
pas
comme
tradicional.
généticien
Escreveu à
leurs
Haldane:
«Si
similarités
Je
constate leurs differénces; je demande si elles sont héréditaires, ou bien dues à des
différences d'élevage» (La méthode dans la génétique, 1961, p. 41). Acrescenta ainda que o geneticista procura explicações causais para as diferen-
ças, que é um problema muito menos simples do que parecia de começo, dado que é extremamente difícil distinguir entre o que é hereditário e o que é devido aos alia
do meio. CUT. 18 Mais
tarde desenvolvida
e concretizada 234
noutro
artigo g de G ould
e Eldredge
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — 1
1 A evolução
a nível das ontogenias
(embriogéneses)
mente, a formação
de súbitas e protundas
descontinuidades morfofuncionais.
não consente, provavel-
Para
alguns aspectos deste problema, v. o meu artigo «Saltos ou pequenos passos na evolução das ontogenias?» (1986). Idem, 1987 b. 2 Segundo algumas autoridades, seriam raros os depósitos geológicos suficientemente
contínuos
cronologias
figurarem
para
milhares de anos, que são curtas durações
de
modo
que
as
espécies
que
nelas
se
superiores
algumas
a
centenas
de
do ponto de vista do tempo geológico, são
originam
similares
entre
si, de
acordo
com os restos fossilizados que deixaram e com o pouco tempo decorrido para desenvolverem significativas divergências em relação às que as precederam. Será por isso que não se observam mudanças transicionais para níveis mais elevados (família,
ordem, classe, etc.), já que as transformações requeridas necessitariam de cronoiogias
de vários milhões de anos, e os depósitos geológicos contínuos não abrangem intervalos tão longos? Sendo assim, poderá então pensar-se que as fases de mudança gradual mas rápida possam oferecer imagens paleontológicas de aparente descontinuidade. Nestas circunstâncias, o que parece instantâneo aos neo-saltacionistas pode ter durado, na realidade, centenas de milhares de anos. Existem, também, sequências fósseis que não se ajustam ao esquema «punctacional» dos neo-saltacionistas, além de que diversas hipóteses têm sido opostas ou propostas para interpretar as descontinuidades dos registos fósseis e as longas fases de estase morfológica neles aparentes. Defendo há anos o ponto de vista de que o «saltacionismo» poderia traduzir fases de evolução
muito rápida, com séries de estados intermediários, e nesse caso não haveria oposição
ao gradualismo, como pretendem os «punctacionalistas». Quer dizer, seria um «rápido gradualismo» (fast gradualism ), como o designou em 1984 Adrian Lister. Além dos trabalhos já mencionados no corpo do texto e nas notas relativas a este tema, poderão, ainda, consultar-se as seguintes fontes: Lewin (1980), Stebbins e Ayala (1981, 1985),
Devillers e Blanc (1981), Martin (1982), Maynard-Smith (1982, a, b, c), Mayr e outros (1982), Lewinton (1983), Lister (1984), Penny (1985). 21 V. o seu artigo com o sugestivo título «The return of hopeful monsters».
V. também o artigo de Bruce Wallace («Reflections on the still hopeful monster», 1985). Se se atenta no problema da origem e evolução dos parasitas extremos, verifica-se, a meu ver, a altíssima improbabilidade de ela se fazer por saltos morfológicos (v. meu 1983, pp. 123-139). 2 Formas «compromissos» dão, talvez, melhor a ideia do seu significado. São certas espécies actualmente existentes ou sobretudo já extintas, onde coexistem
caracteres particularmente nítidos de duas categorias taxonómicas que se consideram
evolutivamente ligadas, sendo uma derivada da outra. A paleontologia tem revelado diversas destas formas «compósitas». Lembremos o caso clássico da Archaeopteryx, com caracteres de «réptil» e «ave», mas não sendo já «réptil» nem ainda «ave» típica moderna conforme os padrões estabelecidos para esses agrupamentos. E o de
outras com caracteres de «réptil» e de «mamífero», mas não podendo já pertencer
aos «répteis» nem podendo ainda identificar-se aos «mamíferos» verdadeiros. Não há qualquer «salto» na série de formas transicionais que fazem a passagem de certos répteis primitivos para os mamíferos, pelo menos naqueles caracteres detectáveis na documentação fóssil (Tassy, 1983). Grupos, quando abundantes em documentos fósseis, e bem estudados, revelam, por vezes, imagens de evolução gradual, como acontece, por exemplo, com os mamíferos roedores (v. Thaler, 1983). No fundo todos os organismos são compostos de caracteres arcaicos e modernos. Os australopitecos podem, também, considerar-se como formas «intermédias» aos símios e aos homens, possuindo caracteres de uns e outros. A razão disto está no facto de a evolução ser um processo histórico, onde as novas características são sobretudo obtidas por trans-
formação provavelmente gradual do que já existe, a evolução per saltum (em que o novo tipo de organismo surge subitamente diferente, sem fases intermediárias), sendo
formas
provavelmente
«transicionais»
excepcional
no
se conhecem
conjunto
da
evolução
dos
seres
vivos.
Outras
entre peixes e anfíbios, entre anfíbios e répteis, 235
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
o mesmo acontecendo entre os invertebrados. Como as categorias taxonómicas (filos, classes, ordens, etc.) são artefactos, parece disparate discutir a sua origem na evolução. De qualquer modo, a origem dos respectivos organismos não se fez, provavel. mente, por «saltos» evolutivos (v. meu 1955). 23 No espírito de Darwin não houve só influências, conscientes ou não, do sistema económico da época e dos valores burgueses de que se nutriam as classes cultas de então. Há que lembrar que a concepção gradualista da evolução, que forma
o esteio
fundamental
em
que
toda
a sua
obra
se
apoia,
nasceu
empiricamente
na
Primavera de 1837 e se consolidou depois definitivamente, a partir do estudo de materiais trazidos da viagem feito por especialistas reputados, nomeadamente as con-
clusões a que chegou o ornitólogo John Gould, que não era evolucionista, acerca de espécies de aves das Galápagos (v. o meu artigo «Sobre o método em Darwin», Prelo, 1986). Naturalmente que a influência de Lyell e a cultura anglo-saxónica assimilada (por exemplo, a tradicional aversão a súbitas convulsões e ao abstractismo) a sua
tiveram
parte na
das
génese
Darwin
conduziram
que
ideias
evolução por «saltos». Mas não houve só ideologia no processo, porque uma forte e permanente tendência a pensar sobre realidades. Estas
da
à rejeição
Darwin tinha considerações
igualmente se aplicam à teoria da selecção natural, intimamente ligada, em Darwin, à concepção de não descontinuidade na mudança, não sendo, portanto, de aceitar com exclusividade a opiniões esquemática de autores como Gould quando afirmam que na
formulação da selecção natural Darwin se limitou a fazer a transferência do laissez-
-faire de Adam Smith para a economia da natureza; e que tal facto resultou, não da zoologia das Galápagos, mas sim das suas leituras e reflexões filosóficas, sociológicas e económicas, que fez com particular intensidade entre 1836 e 1839 (v., do mesmo autor, Darwin novelized, 1981). Sem dúvida que Darwin foi influenciado pela sociedade do seu tempo, pelos valores da classe a que pertencia, e o darwinismo
reflecte em parte a ideologia da época em que viveu. Mas não resultou só disso. Nem sabemos qual a quota-parte que lhe cabe. A realidade do trabalho intelectual de Darwin traduz uma interacção fecundíssima de factos e ideias dos mais variados quadrantes e quem explicar o darwinismo apenas à luz de mitos políticos particulares ou de realidades socioeconómicas não apreende a sua complexidade e muito menos a sua natureza. Se Darwin não tivesse saído de Inglaterra para a sua viagem científica a bordo do Beagle, teria o darwinismo nascido? (v. atrás «biologia sem Darwin»).
24 A ideologia da evolução «saltacional» é aplicada noutros campos sem ligação aparente
com
a elaborada
teoria
«punctacional»
da biologia,
mas
apresentando
toda-
via óbvias semelhanças com ela no aspecto fundamental de que a momentos «revolucionários» se seguem longos intervalos de estabilidade. Mesmo fora da biologia, a
doutrina apresenta-se com rosto de científica, como se expressasse a única realidade da mudança, como se traduzisse a verdadeira noção de evolução (social humana, ou outra) (v., por exemplo, Danzin e Prigogine, 1982). 25 A origem do homem, as várias formas sub-humanas transitando para humanas, suportam, provavelmente, mais a hipótese gradualista do que a hipótese salta-
cional, por muito que se esforcem em demonstrar o contrário os defensores desta última. Mas não se podem excluir na evolução do homem as rápidas evoluções, separadas por períodos mais ou menos longos de estabilidade relativa. Deverá, porém, notar-se
que,
respeitam
quer
para
a caracteres
o caso
isolados,
do
homem,
quer
para
nomeadamente
fósseis, mada se sabendo do resto da organização (partes
moles,
fisiologia,
comportamento,
gradual (v. nota 3 do cap. II).
etc.)
as outras
aqueles
que
as
estases
evidenciados
que, na realidade, é quase e que
poderia
26 A antiga ideia segundo a qual existiam realmente isso há cinco séculos)
espécies,
são
seres terrestres extravagantes
evidenciar
nos
tudo
evolução.
(não havia dúvidas sobre
e monstruosos
persiste
hoje, mas
transposta a imaginação da sua existência para outros mundos, mito em que à mesma a fantasia
combina
partes
de seres que
afinal
236
não
são essencialmente
diferentes
dos
BIOLOGIA seres
terrestres
normais,
podendo
E
SOCIEDADE — I
reconhecer-se
nessas
formas
de insectos, vertebrados, mamíferos ou de seres humanos Tinkering,
1977).
costumes,
dos
Mesmo
as especulações
extraterrestres
terminam
sobre
por
estranhas
que
elas
são
(v. F. Jacob, Evolution and
a moral, a ciência, a sexualidade,
imaginar
formas
outras) que não diferem essencialmente dos humanos terrestres.
de
conduta
moral
os
(e
41 V. no meu livro 4 Vida e o Ambiente (1981), as pp. 99 a 111. 28 No artigo «Chance, necessity and plan in living systems», o zoólogo Otto Koehler disse que, se imaginarmos que as duas células-filhas resultantes da divisão da primeira célula se separavam, indo cada uma povoar metade do planeta terrestre, e se, desde então, as duas metades do planeta, sob idênticas condições, se movimen-
tassem, também separadas, em volta do Sol, mesmo nesse caso não se poderia esperar encontrar,
na
outra
metade,
lizados. As duas meias
amibas,
salamandras,
cães da
Terras
teriam
(é praticamente
John
Eccles
(Human
ções. E o neurobiólogo
Terra
Nova,
homens
civi-
quase certo) diferentes evolu-
Mystery,
p. 72),
que
também
admite a existência de vida extraterrestre, diz ser notável o facto de a surgido, em 3 biliões de anos, uma única vez na Terra, facto tanto mais rio quanto é certo que se trata de um planeta em que tudo existe e se o aparecimento de vida. Planeta no qual a evolução biológica obedece
não
vida só ter extraordináajusta para a processos
que não se encontram no mundo dos fenómenos que os físicos estudam, como acentuam Mayr e outros biólogos evolucionistas (v. Lewin, 1982). 29 Nem
de vida inteligente, nem
de vida elementar tal como a observamos nos
microrganismos. G. G. Simpson, no seu já hoje clássico artigo «The non prevalence of humanoids», diz que poderá existir vida noutros mundos, em sistemas ou organismos com outras composições e formas diferentes das da vida terrestre, mas nesse caso pode acontecer que os não reconheçamos como vivos, ou então teremos de rever a nossa concepção sobre o que é a vida. O mesmo autor passa em revista as numerosas
improbabilidades que se acumulam quando se pretende responder à questão da existência de vida inteligente noutros planetas. À própria concepção sobre o que é a vida,
ou como
defini-la, revela a existência de obstáculos insuperáveis. Em
4
Vida e o
Ambiente tentei mostrar que a vida não se pode definir, como de resto tantos biólogos já o haviam reconhecido. Mas o problema continua a pôr-se em biofilosofia, ainda
que as definições sejam em si mesmas aspectos secundários. Mas importa, creio eu, reflectir em certos aspectos da filosofia de Adolf Portmann, quando nos diz que a realidade do ser vivo é um todo que não captamos pela desmontagem das partes que constituem os sistemas mais simples de organização, que nos níveis de descomplexidade, como o da esponja, do protozoário ou da bactéria, não aumenta a simplicidade, pois esses escalões de simplicidade continuam a patentear-nos o problema da compreensão do ser vivo, sem nos aproximarmos da solução. Para compreender a vida, a planta não é mais fácil, mas, ao contrário, mais dificilmente compreensível.
30 31 32 34-38 e
V. meu 19824, pp. 76-86. V. meu 1985, pp. 71-92. S, J. Gould, Darwin's Dilema: The Odissey of Evolution, in Gould (1977 b): 201-206. Teoria da preformação que conduziu à teoria do encaixamento dos
germes.
A
passava
na embriogénese.
mais que
palavra existiram
«evolução» As
foi
ou haveriam
tendo sido esses germes
aplicada
primeiras
de existir
criados ao mesmo
La Formation de VÉtre). 33 V. as notas 3 e 9 do cap. II. 3 O termo
«evolução»
de desenvolvimento
no
fêmeas
seu
sentido
conteriam
até à extinção
tempo
foi primeiramente
etimológico
os germes
de
ao todos
que
se
os ani-
das espécies respectivas,
e encerrados nos ovários (v. Rostand,
utilizado num
contexto
embriológico,
(quer dizer, com os termos a significar «descobrir», «desenrolar»,
“tirar do invólucro»). O desenvolvimento do embrião (em sentido etimológico, a significar sair gradualmente o embrião dos seus vários invólucros) continuou, mesmo
depois de banido o velho conceito da preformação, a servir de modelo para a nova concepção da transformação das espécies. Mas agora, no contexto evolucional, surge 237
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
intimamente ligado à noção de progresso, precisamente porque o desenvolvimento embrionário era um modelo de aperfeiçoamento sucessivo, de complexificação para
um fim determinado. E assim como o crescimento do embrião é um modelo de progresso, também os seres vivos e as suas transformações desenvolvimento para um fim predestinado. Às primeiras lução» têm um significado análogo exactamente porque a movimento progressivo da vida para o ponto máximo da
exprimem um padrão de aplicações do termo «evoembriogénese recapitula o criação, que é o homem
(v. Bowler, 1984). Quer dizer, a palavra «evolução» transita da embriologia para a sua concepção transformista, mas não se desligou do conceito de progresso que está implícito no crescimento do embrião a partir do ovo, facto que os naturalistas sempre reconheceram. E foram Darwin e Herbert Spencer zaram o progressivismo, tornando-o ilimitado, mas
aceitar
que
a transformação
das
espécies
que ultrapassaram e universaliDarwin foi sempre contrário a
contivesse
um
significado
de
progresso
devido às dificuldades da aplicação desta noção à biologia. Segundo MacBride declara no seu livro Sobre a Evolução, Charles Lyell teria aplicado nos seus Principles of Geology (antes de Spencer, portanto), a palavra «evolução» aos processos graduais de transformação geológica da superfície terrestre. Para significados do termo «evolução» v., por exemplo, Vuilleumier (1984) e Cuvillier (1984).
35 W. Durant, História da Filosofia, Livros do Brasil, Lisboa. 36 Já se abordou no cap. II o problema do progresso na evolução. Não é possível estabelecer uma noção objectiva de progresso aplicada às espécies e às estruturas biológicas, se dermos à expressão um sentido valorativo, e não apenas o de sinónimo
de pura mudança. Ora, no seu sentido correntemente adoptado de transformação com o significado de aperfeiçoamento de movimento para uma melhor situação ou estado, ou que o mais complexo traduz progresso, sendo mais perfeito do que o mais simples, tal conceito de progresso não parece aplicável aos fenómenos da vida na sua globalidade, nem mesmo à evolução dos seres vivos. É provável que a ideia de progresso na natureza viva se tenha alimentado em parte da forte influência da
Sp
ou pelo seu comportamento, com outros mais simples, mas apesar disso não me parece que possamos escapar facilmente da conclusão de que, nesse caso, o conceito de progresso é perfeitamente antropocêntrico. Não é, talvez, por isso, legítimo basear na evolução da natureza viva qualquer teoria social sobre o progresso, e sejam quais forem as teorias sobre as suas causas, lamarckianas (hereditariedade biológica do uso) ou darwinianas (selecção natural de variações aleatórias). Podem, todavia,
id
scala naturae (a perfeição crescente) e do conceito de progresso dos filósofos das Luzes. Em certos sentidos adoptados poder-se-á considerar haver progresso, como quando compararmos certos tipos de organismos mais elevados pela sua organização,
estabelecer-se diversos critérios de progresso, e conforme a tais normas pôr em evi-
dência sequências evolutivas mais ou menos longas, traduzindo adaptações particulares, resistências adquiridas, maior independência relativamente ao ambiente (e seu controlo), tendência ao expansionismo ecológico dos seres vivos, estruturas ou compor-
tamentos sucessivamente mais complexos, etc. E, quer nas plantas, quer nos animais, abundam,
também, os retrocessos, as degradações e simplificações, muitas adaptações
a terminarem em extinções, etc. Existem várias definições é tipos de progresso e a
evolução
biológica
não
parece
ser,
na
realidade,
caracterizada
por
uma
tendência
universal para aperfeiçoamento ou melhoria, embora possamos evidenciar nela diversas linhas de progresso, de acordo com normas ou valores prescritos. Em geral, os critérios de progresso dos biólogos são retirados dos valores morais e das estruturas económicas da sociedade de eficiência, de sucesso
empresarial e industrial, na reprodução, utilização
como acontece com os critérios optimal do tempo ou dos recur-
238
DR
trabalhos de Simpson (1949), Popper (1961), Ayala (1974 a), Mayr (1982), Bowler (1984), Lewontin (1985). 37 V, sobre o abuso da metáfora na biologia os meus artigos de 1984 e 1896. sendo este texto o do segundo artigo, com algumas alterações.
E
sos, etc. Para mais dados sobre este problema poderão consultar-se, por exemplo, os
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — I
38 Ernst Mayr (1982), por exemplo, um dos construtores da moderna teoria da evolução, não parece ter apreendido todo o significado da metáfora na interpretação biológica actual (apenas salientando a sua importância na história da ciência) e sobretudo as suas nocividades
e abusos tão correntes. Mesmo
assim, é uma
excepção.
Importa lembrar que muitas vezes a explicação de um fenómeno (e o seu futuro como teoria) depende em grande parte de se encontrar a metáfora mais conveniente para o traduzir, o que, naturalmente, poderá, como tem acontecido, obscurecer ou falsear a sua realidade.
3? Penso que a metáfora em Darwin era mais uma poderosa arma, de que ele se serviu para argumentar e convencer da validade da sua teoria. Talvez que, tendo uma visão global da natureza c sendo sensível às interdependências complexas, à grande harmonia e grandeza que nela via, desejava explicar essa unidade orgânica por uma força natural, como a gravitação. Mas, com a sua profunda intuição ecoló-
gica e a sua inaptidão para as matemáticas e para o frio mecanicismo, compreende-se o seu pendor para o antropomorfismo, para o uso de metáforas para exprimir o que sentia e o que pensava.
um
Para Manier (1978), a representação da teoria por metáforas e alegorias foi aspecto crucial e absolutamente central da realização do projecto científico de
Darwin. Era talvez irresistível nele fazer a leitura da natureza em termos humanos, tal como interpretava o homem em termos do animal, mas afastando desta relação
a interferência de qualquer influência divina. Além de selection e struggle, Manier cita, igualmente, como metáforas darwinianas, chance, contrivance, economy e outras. Emite ainda a opinião segundo a qual, se Darwin não utilizasse metáforas, mas sim uma
expressão
directa, literal, o seu significado
científico não
teria sido transmitido.
Para este autor, elas tinham uma dimensão afectiva e cognitiva (científica), sendo os dois aspectos interdependentes, «de uma maneira que impede o rigor histórico de
qualquer interpretação que os isole um do outro» (p. 173).
4 V. Dawkins (1982), pp. 179-181. 41 V. meu 1982 — 4 Biologia do Egoísmo. 42 Seria fastidioso dar exemplos da invasão de falsas metáforas na biologia. A entomologia do século XIX forneceu, por exemplo, abundantes metáforas à actual sociobiologia. É o caso de «realeza» e «escravatura» nas formigas «Lewontin
et al., 1984, p. 250). Também num texto especializado de ecologia dos insectos o autor se refere à «guerra constante», a «inimigos», a «ataque», a «preocupação essencial» (de cada indivíduo em se reproduzir), ao «vencedor desta corrida aos arma-
mentos», etc. (v. Price, Insect Ecology, 1975). É no citado livro de Lewontin et al. que pode encontrar-se
sociobiologia. Também
alguma
crítica muito pertinente ao mau
uso de metáforas na
Thuilher (Petit Savant Illustré, p. 17) nos diz que metáforas
de origem religiosa são numerosas nos discursos peri/para/e metacientíficos. «À la belle époque» da termodinâmica, escreve o mesmo autor, esperava-se a «ressurreição» dos mundos, mas no tempo presente fala-se de «cruzada» ecológica. V., também, Ruse (1981), pp. 220-222.
43 Ficamos a saber (pelos físicos e outros não biólogos) que o ser vivo é uma
«máquina termodinâmica», ou então uma «pilha termodinâmica», e sobretudo que o homem «está mais próximo de uma pilha de combustível do que de uma máquina
de Carnot»
[extr. de J. P, Peixoto (1985), pp. 38 e 49]. Mas o problema da utili-
zação de energia pelos seres vivos e da não contradição com o segundo princípio da
termodinâmica pode ser apresentado sem recurso abusivo a metáforas (v. Curso de Biologia, Sacarrão e Tavares, 2.º ed., 1978, pp. 23-25). O velho sonho mecanicista ou materialista-reducionista, de reduzir toda a biologia às leis da física nunca foi realizado. A partir do meio do século x1x, alguns fisiologistas julgavam explicar inteiramente o homem pela química. Mas as dificuldades nunca deixaram de aumentar. À interpretação do ser vivo e das suas manifestações, como
239
a regulação, a adapta-
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
ção e a evolução, não pode ser feita apenas com referência às leis e parâmetros físico-químicos. À evolução biológica significa, por muitos dos seus aspectos, um distanciamento progressivo e gradual da importância que têm as leis físico-químicas, v. g. na selecção natural, na evolução do comportamento, etc. (v. Ayala, 1974, e meu
1985, pp. 10-14). Mesmo nas plantas e nos mais simples organismos, a explicação físico-química não soluciona o enigma. Será necessária, mas está longe de ser suficiente. 4 In G. Stent (1978) — Paradoxes tal ilness as a metaphor» (1973).
45 Parábolas e Catástrofes (1985).
240
of Progress.
V. também
Th. Szasz, «Men-
CAPÍTULO
VI
ANTI-DARWIN
1.
na
criacionista
movimento
O
América
É nos Estados Unidos da América do Norte que, sem qualquer dúvida,
forjado
se tem
parte
enorme
do progresso espectacular
que
tem experimentado a biologia neste século. Os biólogos americanos aceitaram quase de imediato o evolucionismo, visto que dez anos
após a publicação da Origem entre os grandes apenas restava Louis Agassiz ! teimosamente criacionista a combatê-lo. Apesar do seu enorme prestígio científico, Agassiz (nascido na Suíça, de onde emigrou para os Estados Unidos em 1846) ficou praticamente só na luta inglória contra as novas e avassaladoras ideias, que abalavam desde os alicerces o universo científico e cultural, menos, claro está, as ideias fixas de Agassiz em oposição a todas as evidências. Até à sua morte, em 1873, manteve
rigidamente a mesma
posição. Pensava que as espécies (escreveu ele)
são «instituídas pela inteligência divina» e que é por elas que tomamos
divina. Em
consciência da mensagem
suma, para ÁAgassiz as espécies
continuavam a ser entidades estáticas, criadas como tais por Deus. E todavia Agassiz foi um notável homem de ciência. Além de ter sido o guia e inspirador dos estudos de história natural nos Estados Unidos,
foi uma grande autoridade mundial no domínio da paleontologia e da taxonomia dos peixes. Morto Agassiz, o evolucionismo difundiu e tornou-se popular, ainda que com forte tendência lamarckista, e sobretudo teleológica (cristã), circunstância a que não será estranha a influência dos teólogos. Com efeito, nem a teologia nem a comunidade científica se resignavam a recusar a existência de qualquer finalidade na evolução, que significava
a morte
de
Deus.
Como
escreveu
D. Hull, Darwin,
ao mostrar
a vacuidade da teleologia, chocou os intelectuais do século xIx. E muitos
dos
melhores
e outros)
não
filósofos
tomavam
americanos
muito
a sério
(William
Herbert
James,
Spencer,
John
Dewey
o campeão
do evolucionismo em todos os campos. Mas John Fiske era profundamente spenceriano e o Metaphysical Club de Chicago era o ponto de atracção
do
evolucionismo
para
os
filósofos
americanos.
Simultanea-
mente, o darwinismo social penetrou rapidamente nos Estados Unidos, Bibl.
Univ.
49 —
16
241
GERMANO
onde
tomou
aspectos
DA
FONSECA
aberrantes,
facto
SACARRÃO
compreensível
numa
sociedade
em rápida expansão industrial, marcada pelo individualismo e por forte
competitividade no
(v. Russett,
1976).
Apesar de certas resistências da parte de intelectuais e dos teólogos, que se refere, sobretudo, à mensagem materialista do darwinismo,
pode dizer-se que no começo deste século a ideia de evolução se generalizara,
mas
biológica
ligada,
como
convinha,
dos caracteres
adquiridos
aos
conceitos
de
e de finalidade,
hereditariedade
ambos
lhe confe-
rindo a necessária maleabilidade para tornar essa ideia adaptável aos preconceitos de certas classes políticas e sociais e aos credos religiosos.
Depois,
no
recebeu
nos Estados Unidos
decorrer
do século,
até ao presente,
substanciais
a teoria
da
desenvolvimentos,
evolução
a teoria da
selecção natural foi notavelmente renovada e aperfeiçoada e o darwinismo
tomou
a
forma
moderna
de
uma
enorme
e
fecunda
síntese
teórica que abraça toda a biologia. Muitas das grandes inovações nesse campo, não apenas no domínio dos factos como nos das ideias, nasceram nos Estados Unidos.
Ora, sendo assim, não deixa de surpreender que seja neste mesmo
país que o evolucionismo, e em particular o darwinismo, receba os maiores ataques públicos, e que a oposição religiosa à teoria, longe de enfraquecer, se tenha mesmo exacerbado. À cento e vinte e oito anos
da publicação do explosivo livro que foi a Origem, que
as
violentas
reacções
ao
darwinismo
quase
poder-se-ia pensar
que
só
interessariam
ao historiador de ciência, que seriam fenómenos de um longínquo passado, sem dúvida interessante para estudo, mas a reflectirem um debate
há muito extinto. Houve sempre, é inegável, uma surda oposição ao darwinismo da parte de círculos religiosos e de diversos sectores politicos ou intelectuais. Mas nos Estados Unidos o ataque toma a forma de luta aberta contra o evolucionismo darwiniano, quer negar que tanto o mundo inanimado como os seres vivos tudo o homem sejam o resultado de um longo e natural
histórico
de
sucessivas
transformações.
os «fundamentalistas», um com cerca de 30 milhões
na
Bíblia,
a qual
deve
Os
principais
dizer, a e sobreprocesso
opositores
são
sector protestante muito activo, que conta de membros?. Para estes, a verdade está
ser interpretada
à letra,
no
sentido
rigoroso
e exacto das suas palavras sagradas. A sua cruzada contra Darwin vem de 1860, logo em seguida à publicação do livro maldito. Além disso, o criacionismo, para os fundamentalistas, é uma verdadeira ciência; que como tal deve ser ensinada nas escolas secundárias, em
pé de igualdade com o evolucionismo: concedendo-lhe a mesma importância e o mesmo tempo de escolaridade que destinam ao ensino da evolução, e que os compêndios escolares lhe consagrem espaço comparável ao que empregam para o darwinismo, de modo a procede 242
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — I
rem a uma ampla interpretação do Génesis e da criação bíblica. Pretendem, em suma, que os textos escolares apresentem, numa espécie de frente a frente, o evolucionismo darwiniano e a criação conforme à tradição bíblica. É óbvio que o ponto sensível de toda esta questão reside sobretudo na interpretação da origem do homem, de modo que o darwinismo é o grande inimigo a abater, visto que é ele que dá uma solução científica ao problema, ao considerar a emergência do ser humano sem intervenção de quaisquer forças de ordem espiritual ou transcendente.
O evolucionismo só constitui perigo por ser explicado por causas naturais, sobretudo pelo mecanismo da selecção natural, processo que, como
sabemos,
actua
evolucionismo
sobre
variações
científico
acidentais
e é, portanto,
dos organismos.
contra
ele que
É este
se ergue
o
a opo-
sição religiosa. Mas o evolucionismo como processo, separado do darwinismo, é relativamente inofensivo, porque, sendo puramente descritivo, por assim dizer desmaterializado, está aberto às interpretações trans-
cendentes, aparenta uma certa obscuridade e mistério e pode, assim, ser divinizado. De maneira que o evolucionismo sem Darwin não choca as pessoas religiosas nem aqueles intelectuais que consideram a existência de um sentido na evolução, um desígnio na mudança, um propósito
na história. Lecomte du Nouy, Teilhard de Chardin, Henri Bergson,
Lucien Cuénot e tantos outros, eram evolucionistas, mas o seu evolucio-
nismo estava todo impregnado de espiritualidade, de causas imateriais, de forças transcendentes. O que nunca se perdoa ao darwinismo foi o ele ter tratado o homem como um qualquer animal, e não como um ser superior, um ser eleito, rei da criação, feito por Deus, possuidor de uma
alma imortal, de um sopro sagrado de vida. A possibilidade de espiritualizar o evolucionismo darwiniano surgiu logo a seguir à publicação da Origem. É talvez por isso que o grande combate ao darwinismo durou pouco tempo na sua forma aguda. Tanto mais que no tempo de Darwin a teoria de selecção natural não tinha grande aceitação nos círculos científicos, situação que perdurou até final do século e passou para o actual. No primeiro quartel deste século, a teoria entrou em franco declínio, e (como disse noutro lugar) só nos anos 30 e 40 é que penetrou profundamente na biologia, atingindo o seu apogeu
para
o final dos anos
a publicação da Origem. gride impulsionada pela Darwin permanece mais inspiradora de uma nova As críticas a que
hoje
um
século após
E sem dúvida que actualmente a biologia proteoria da selecção natural, a mensagem de viva do que nunca e constitui até a fonte disciplina — a sociobiologia (v. meu 1982).
é sujeita,
as dúvidas
da sua aplicação, o próprio evoluir rigor dos métodos
50, precisamente
quanto
à universalidade
que o conceito está sofrendo,
e nas modalidades e processos de actuação, 243
no
não lhe
GERMANO retiram
DA
nada ao vigor, nem
FONSECA
SACARRÃO
lhe corrompem
a pureza filosófica original,
Não surpreende, pois, que o evolucionismo seja aceite sem grande relutância,
ou pelo menos
lucionismo A
sem
tolerado,
causalidade
aversão
ao
mesmo
pela
Igreja,
mas
aqui
um
evo-
darwiniana.
evolucionismo
provém,
portanto,
do
facto
de
ele
estar intimamente ligado à interpretação darwiniana, Confundir, como tantas vezes se faz em obras ligeiras, ou de divulgação, evolução como
descrição de formas sucessivas, com o problema das suas causas, tem dado origem a numerosos mal-entendidos, É certo que a confusão é, em parte,
legítima,
visto que
em
Darwin
o processo
e as
causas
surgem
inseparáveis, ainda que ele estivesse perfeitamente consciente da sua não
equivalência.
porque
não
E a teoria moderna
seria uma
da
evolução
segue
teoria científica se se limitasse
a tradição,
à fria
descrição
das transformações orgânicas. Não creio haver descrição pura e objeetiva da evolução porque qualquer ligação de formas e de processos a a sua exposição necessariamente obriga pressupõe uma certa hipótese, mesmo
modos
vaga,
quanto
ao seu
determinismo,
possíveis do seu encadeamento.
uma
certa
escolha
entre
Mas para os fundamentalistas não existe evolução: o Génesis é que
diz a verdade:
o universo tem 6000 anos, e não uma
idade compreen-
dida entre 13 e 20 000 milhões de anos, como hoje nos dizem os astrónomos; para os criacionistas, as séries de fósseis e a moderna datação
geológica são bagatelas, sem qualquer significado; o mundo foi criado por Deus em seis dias, todos os animais foram criados no mesmo dia, e o homem é o ser à parte da natureza, criado em separado dela. Repudiam qualquer ideia de evolução, mesmo que as transformações obedeçam a um plano divino como a teologia e a Igreja têm muitas vezes sustentado, adaptando-se, assim, às circunstâncias e ao progresso da ciência, Os fundamentalistas formam, como disse, um sector muito activo, mas constituem, apesar disso, uma minoria no seio da vasta comunidade religiosa dos Estados Unidos, A sua mais imediata aspiração é que o criacionismo
seja
reconhecido
como
ciência,
e sobretudo
que
o seu
ensino seja ministrado nas escolas e universidades, e que estas irradiem a sua mensagem e promovam o seu desenvolvimento «científico». Existem até vários institutos consagrados à «pesquisa» criacionista, como o Crention Science Research Center, localizado em San Diego, na Califórnia, e o Institute for Creation Research, e outros, Em 1963 lar foi fundada uma sociedade com a finalidade de accionar e estimu
a «investigação» no âmbito da teoria criacionista, a qual passou a d
|
a
minar-se Creation Research Society, sediada igualmente na Califórnia, precisamente
no Estado onde
existem
as mais
famosas
universidades.
Presidentes, directores e membros destes institutos não são gente qual. 244
2 i
BIOLOGIA
quer. Todos
E
SOCIEDADE —I
têm estudos específicos, títulos académicos, são doutores
em Genética, ou então engenheiros, ou bioquímicos, etc. É-lhes exigido
que possuam um doutoramento em Ciências ou pelo menos um diploma
universitário º.
a) Darwin
em
tribunal
O fervor criacionista conforme ao dogma do Génesis, assim como a batalha
contra
o
evolucionismo,
e as
exigências
para
conquistar
espaço nos compêndios escolares e no ensino, têm dado lugar a processos
e
julgamentos
célebres
em
tribunais
norte-americanos.
O
clima
para estes processos é preparado de maneira simplista entre o público, acusando-se a teoria de Darwin de ofender a consciência religiosa dos cristãos com a afirmação de que «o homem descende do macaco». Por isso passou a designar-se a luta travada como «guerra do macaco», a qual, com altos e baixos de intensidade, já dura há mais de sessenta anos. Claro está que a teoria de Darwin, quanto à origem do homem, não pode, sob pena de grave atropelo e deformação, traduzir-se desse modo tão profundamente esquemático e inexacto. É uma caricatura e nada mais. Mas produz o efeito desejado, e é isso que conta para os fundamentalistas. Um dos célebres processos desenrolou-se em 1925, no Estado de Tenessi, em Dayton. Este Estado aprovara uma lei que declarava explicitamente ser ilegal ensinar uma teoria que estivesse em oposição com o que diz a Bíblia quanto à criação divina do homem, nomeadamente que o ser humano descende de uma forma animal inferior, incorrendo
em grave delito qualquer docente universitário ou de qualquer escola pública que o fizesse. O evolucionista era considerado, muitas vezes, como sinónimo de ateu e anarquista. Alguns membros da ACLU (American Civil Liberties Union) provocaram o processo para fazer impedir a aplicação da lei. Um professor, de nome John Thomas Scopes, fez-se acusar desse delito, visto que, ensinando o darwinismo, era, por conse-
guinte, culpado. O debate foi violento e apaixonado. O réu foi defendido por
um
advogado
famoso,
(contra o darwinismo) tante fanático *.
chamado
Clarence
Darrow,
e a acusação
esteve a cargo de Jennings Bryan, um protes-
Após apaixonados debates, o tribunal condenou o réu ao pagamento
de uma multa de 100 dólares. Os criacionistas tinham aparentemente vencido, mas o escândalo público resultante do próprio julgamento, da condenação da ciência, do apoio da lei ao dogma contra o livreexame,
foi, sem
tarde, o Supremo
dúvida,
favorável
Tribunal
aos evolucionistas.
do mesmo 245
Estado anulou
Dois
anos
a sentença.
mais
Os
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
criacionistas, entretanto, não abandonaram a perseguição e as exigências, tentando demonstrar que a própria ciência é matéria de fé e que toda a realidade revelada pelo darwinismo é meramente conjectural. O facto de os tribunais serem chamados a pronunciar-se sobre o valor e alcance da ciência em face da fé religiosa, ou que decidam sobre a importância, maior ou menor, de uma e de outra, ou sobre o que deve, ou não, ser consentido, ensinado e pesquisado, é já decerto
um atropelo à liberdade do espírito e um mau serviço prestado à inteligência. Só favorece o obscurantismo e a perseguição. Em 1928, o Estado de Arcansas votou uma lei com a qual proibia qualquer ensino da teoria da evolução, não sendo, também, consentido revelar aos alunos a existência de tal doutrina. Um processo contra tal estado de coisas foi intentado muito mais tarde, sendo a lei abolida por decisão do Supremo Tribunal, em 1968. Muitas escolas, porém, perante estas dificuldades, têm tendência a renunciar ao ensino da biologia, evolutiva, ou então fazem-no de forma insuficiente e cautelosa.
Os ataques ao evolucionismo não se limitaram aos Estados mais conservadores, onde muitos cidadãos entendem que a Bíblia contém o
essencial da cultura. Estendeu-se, igualmente, à Califórnia, um dos Estados mais avançados, onde se localizam as universidades mais célebres do mundo e onde o futuro chega mais depressa do que noutro lado. A Junta de Educação da Califórnia decidiu que, havendo dois pontos: de vista sobre a origem do homem (darwinista e criacionista), deveensinados.
Esta
decisão,
à qual
não
foi
estranha
a
influência da Creation Research Society, representa um triunfo para os criacionistas pela simples razão de que a ciência e o dogma foram colocados no mesmo plano, equivalem-se. A teoria da evolução passaria,
assim, a ser simples matéria opinativa, a confundir-se com a fé, não existindo provas materiais da sua veracidade. Com esta estratégia, os criacionistas pretendem esvaziar o darwinismo do seu conteúdo cientifico, dando-lhe o significado de um credo, a pegar ou largar consoante
as inclinações de cada um. À já mencionada Creation Research Society foi fundada por dez indivíduos, tendo à cabeça Walter E. Lammerts
e William
J. Tinkle.
Esta
instituição
oferece
cursos
secundários
e de
graduação sobre criacionismo e desenvolve um certo número de activi:
dades, tais como: difusão de livros, panfletos e consultas sobre o criacionismo, debates radiofónicos, promove investigações para encontrar provas da existência da arca de Noé e do dilúvio, testemunhos da coexis tência do homem, trilobites e dinossauros, prova de uma criação recente: do universo e da Terra, admitindo-se que esta última tem apenas uns 10 000 anos de idade, aproximadamente *. Desde 1964 que esta socies
dade publica uma revista trimestral que se propõe divulgar factos que dêem suporte a interpretações literais da Bíblia, e lançou q primeiro compêndio de biologia sobre «criacionismo científico» destinado às. 246
iii
ambos
bonitos
ser
ida asia
riam
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — 1
escolas secundárias públicas. Haveria, assim, uma biologia criacionista a par de uma biologia evolutiva! As Escrituras como fonte da verdade
científica. Refutar
o evolucionismo
é o objectivo
fundamental
desta pseudo-
ciência, desta forma original de fanatismo. A habilidade dos fundamentalistas tem consistido em denunciar todos os pontos fracos da doutrina evolucionista, em tirar proveito das polémicas entre os cientistas, em utilizar as dificuldades e insuficiências explicativas da teoria para, com tudo isso, mostrar que a única alternativa lógica, a única ssibilidade que nos fica aberta é a aceitação da versão judaico-cristã da Bíblia no que se refere à Criação. Que a teoria tem dificuldades, ninguém
negará.
O
não
Que
há
acordo
entre
os
cientistas
a
quanto
múltiplos problemas particulares da teoria da evolução, ninguém o contesta. Por isso os criacionistas «científicos» não têm dificuldade em
encontrar pontos de discórdia, lacunas e imprecisões na teoria da evolução para construir toda uma argumentação artificiosa, conduzida para a conclusão de que o criacionismo é a única saída para tais escolhos, os quais seriam a prova de que o evolucionismo até contém provas contra si próprio, que os cientistas não aproveitam, nem até nelas reparam, por estarem tão obstinadamente imbuídos do dogma evolucionista que ficam cegos a tais evidências. Como diz Laurie Godfrey, que lucidamente denunciou esta táctica, os «cientistas criacionistas» não propõem modelos alternativos de criação, não os submetem a testes, não os sujeitam à prova da realidade. Existe, por exemplo, a possibilidade lógica, admitida na doutrina do evolucionismo moderno, de a vida poder ter surgido independentemente em épocas diferentes, não só na Terra como em vários pontos do universo. Mas, continua
Godfrey, fazer ciência não é a actividade nem a ocupação dos ccientis-
tas» criacionistas. O seu único objectivo é destruir a credibilidade do evolucionismo e da teoria neodarwinista junto do público. Todas as dificuldades
da
teoria,
todas
as controvérsias,
são imediatamente
pro-
clamadas na imprensa como novas provas da fragilidade da teoria da evolução. De modo que a táctica de descobrir polémicas no próprio âmbito da biologia evolutiva equivale, afinal, singularmente, a descobrir (diz Godfrey) que os biólogos evolucionistas são culpados de fazer
ciência, quer dizer, de praticarem o pecado de porem questões, de experimentarem,
de fazerem o exame
crítico dos factos e das ideias, de dis-
cutirem explicações alternativas. Os neocatastrofistas ou «punctuacionalistas», como Gould, Eldredge e seus seguidores, são evolucionistas darwinianos, nada têm a ver
com os criacionistas. Nem científico
sério
ao
o saltacionismo pode dar qualquer suporte
criacionismo
dos
fundamentalistas,
se bem
que
eu
admita que muitos dos seus defensores possam ter preconceitos metafísicos ou ideológicos, a subjazer a esse ponto de vista. 247
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
O carácter dogmático do criacionismo científico está patente em muitos outros aspectos que seria ocioso enumerar. Inclui tópicos que contêm
refutações
do
evolucionismo,
ou
evidências
«científicas»
de
criação recente da Terra e do universo, ou uma «geologia diluviana» segundo a qual numerosos depósitos geológicos fossiliferos seriam o resultado de um único fenómeno catastrófico — o dilúvio de que escapou o patriarca Noé e a sua arca (continuo a reportar-me ao citado artigo de Godfrey). Mas fecundas teorias científicas, como a das placas tectónicas, a realidade da deriva dos continentes, são temas inaceitáveis.
Trabalhos de campo, investigações laboratoriais, não são com os cria-
cionistas. Disso muito pouco se ocupam. Pelo contrário, o seu esforço Pensam
o desacreditar
que, feito o descrédito
do
da teoria,
evolucionismo o criacionismo
fica triunfante e estabelecido como único recurso. Estranha lógica: a depreciação de uma teoria constituir a comprovação da que se lhe opõe, como
se não houvesse
outras versões criacionistas, outras modali-
Ad
darwiniano.
é dirigido para
EA
único
Car
praticamente
dades possíveis, para o evolucionismo, outras formas dogmáticas e meta-
físicas e outras alternativas imagináveis no âmbito da ciência. O que não agrada, o que se opõe frontal e claramente à versão bíblica da criação e aos princípios da doutrina fundamentalista, é silenciado, não
se fazem referências a essas incomodidades, como
sejam o papel do
acaso, pois nada ou quase nada acontece por acidente, segundo os criacionistas, para quem o aleatório nos processos biológicos simplesmente se decreta não existir. E com habilidades sofismadoras montam uma
rede complicada de argumentação.
Das polémicas
entre cientistas
e das teorias em voga na biologia, os criacionistas bíblicos retiram as partes que parecem ajustar-se, ou pelo menos não contradizerem, a doutrina dogmática e as Escrituras, mas cujo sentido isolado passa muitas vezes a ser oposto aquele que têm quando inseridas no contexto das respectivas fontes. É assim que a genética da especiação, conforme ao esquema de Gould, Eldredge, Stanley e de outros, não é referida mais onde
propriamente de uma população marginal) noutras espécies, e a selecção natural actua como factor da mudança e como seu
agente orientador. Por outro lado, confundem (propositadamente ou não) o catastrofismo pré-darwiniano com o neocatastrofismo ou «punctuacionalismo», o que é lamentável, visto que não há quaisquer relações ou sombras de equivalência entre os dois conceitos. Religião e ciência partem de bases antípodas. Na religião (e nas ideologias) parte-se da fé e buscam-se (ou inventam-se) factos que a possam sustentar. Em ciência parte-se da hipótese e procuram-se factos para a refutar, No primeiro caso começa-se em algo de revelado, e, portanto, de incontestável; e no segundo, de ideias que materialmente se
submetem
à prova
do erro, que
se tenta demonstrar 248
que
são falsas.
Di
como deve, ou seja, como base da transformação de uma espécie (ou
BIOLOGIA
São
domínios
A
ciência
É
portanto
de
não
natureza
se ocupa
abusivo,
E
SOCIEDADE — 1
diversa,
inconfundíveis
de divindades,
e
de
certo
modo
e
incombináveis.
não se serve
de divindades.
caricato,
criar
uma
«ciência
criacionista» ou uma «biologia criacionista» nutrida das Sagradas Escrituras. A fé nada aproveita, pelo contrário, julgo eu, com estas extravagâncias. Em religião é excomungado tudo o que nega ou põe em causa a fé e os dogmas da crença religiosa. Mas em ciência tudo é posto em causa — a hipótese, o facto que lhe dá suporte, a teoria que se edifica, tudo é suspeito de ser falso, enganador, ilusório ou corrompido. Não há dogmas, tudo é criticável, nada é intocável. De modo que «criacionismo científico» é expressão sem sentido, visto ser constituída por dois vocábulos semanticamente antagónicos, que não podem combinar-se. A não ser que alguém entenda poder haver criacionismo científico sem ciência! Longe de se atenuar, a campanha dos fanáticos fundamentalistas
tem-se intensificado. Em Sacramento, na Califórnia, um processo ruidoso tem o seu desfecho em 6 de Março de 1981. A família Segra-
ves,
representada Center,
Research
Estado
da
por
de San
Califórnia,
filho por consentir que
Diego,
que
director
Segraves,
Kelly
intentou
de
acusou
numa
escola
uma
violar
do
Creation
acção jurídica
a liberdade
Science
contra
religiosa
o
do
pública fosse ensinada a evolução
das espécies conforme à teoria de Darwin e não de acordo com a versão
bíblica da Criação. O tribunal rejeitou a queixa, considerando-a infun-
dada, quer dizer, decidiu que o ensino do evolucionismo não infringia a lei. Em todo o caso, a vitória dos evolucionistas ficou um tanto emba-
ciada porque o juiz ordenou que um texto já existente fosse difundido por todo o Estado para acautelar os professores contra todo o «dogmatismo» (Thuiller, 1981). Esta prevenção, ainda que perfeitamente
justa no seu conteúdo, é de certo modo uma concessão aos criacionistas,
que a interpretam como significando que a teoria moderna da evolução não é de modo nenhum a única explicação para a origem do homem, que ela não representa mais do que uma interpretação puramente teórica, entre outras possíveis. Ou seja, que a moderna teoria biológica da evolução é uma religião no sentido em que tenta explicar o que está para além do mundo das aparências, isto é, o sagrado e o misterioso das nossas origens, e também
o da evolução das espécies e do seu apa-
recimento no mundo. Em suma, a ciência não pode desapear a verdade
revelada no Génesis, sendo isto o que os criacionistas pretendem, ao mesmo tempo que, com essa vitória, favorecem a formação de um clima de descrédito relativamente ao ensino da teoria da evolução. A pressão das forças religiosas e reaccionárias contra o evolucionismo científico reflectiu-se na retracção de numerosos professores em
fazer um
ensino livre, e sobretudo
os textos
de
biologia
para
escolas.
249
teve consequências Por
outro
lado,
nefastas sobre
diversos
Estados
GERMANO
DA
FONSECA
tomam disposições para dificultar ou cionismo nas escolas públicas. Essas meio de leis oficialmente promulgadas, tanto veladas, ou como reflexo de um
SACARRÃO
impedir o livre ensino do evoluiniciativas não se exercem por mas sob a forma de pressões um clima social adverso da parte de
certos grupos ou seitas influentes ou mais activas. Em pelo menos,
ensina-se o criacionismo
paralelo
em
bíblica,
com
catorze Estados,
nas escolas conforme
científica
a teoria
a mensagem
nomeada-
evolução,
da
mente no que se refere à origem do homem, Em cerca de vinte Estados, os criacionistas lutam por conseguir legislação que obrigue a que nas escolas se faça o ensino da Criação conforme aos ditames dos textos dicional
e contou
Esta luta tem-se exacerbado
sagrados.
do presidente Ronald
Reagan,
que
até com
o apoio incon-
a esse propósito
declarou:
Well, it is a theory, it is a scientific theory only, and it has in recent years been challenged in the world of science and is not yet believed in the scientific
community
to be as
infallible as it once was believed. But if it was going to be taught in the schools, then I think that also the biblical theory of creation, which is not a theory but the biblical story of creation, should also be taught. (In Ruse, 1981.)
É este um bom exemplo de como o valor e o significado da ciência
podem
ser
tão ligeiramente
abordados
por
um
político.
Além
da
ignorância demonstrada quanto à situação actual da teoria da evolução.
Ficamos, porém, a saber que Reagan enfileira com os fanáticos do criacionismo ao advogar que o seu ensino deve ser feito nas escolas
simultaneamente com a teoria da evolução. É curiosa a passagem quando afirma
que
a teoria
bíblica
da
criação
não
é uma
teoria,
história bíblica da criação, o que parece significar que
mas
sim a
é ela que nos
revela o que realmente se passou quanto às origens do homem e dos outros seres e não a teoria científica da evolução, que, segundo Reagan, até está actualmente desacreditada, o que é falso. É lamentável que um político da sua envergadura e responsabilidade produza declarações desta natureza, Não por pensar desta ou daquela maneira, mas antes pela deformação e incompreensão da ciência e da sua função social.
O criacionismo
«científico» não é um
ser menosprezado.
profundos. certa
Deturpa-se
incidental,
Por exemplo, na Califórnia, que para muitos
maneira
cionismo
fenómeno
que deva
Pelo contrário, as suas repercussões podem
o futuro
científico o ensino,
foi
das modernas
considerado
obscurecem-se 250
sociedades
como
uma
ter efeitos
prefigura
industriais,
doutrina
as mentalidades,
de
o evolu-
dogmática.
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —1
Parecia que a partir de 1968, ano em que o Supremo Tribunal dos Estados Unidos declarou as leis antievolucionistas contrárias à Constituição (onde se consagra o princípio fundamental da separação da Igreja do Estado), a campanha entraria em declínio. Ora foi exactamente o inverso que aconteceu. Muitos Estados adoptam livros com um evolucionismo mitigado, há comissões para selecções de textos nestas condições, difundem-se directrizes a professores para que façam intervir o «criacionismo científico» nas especulações sobre a origem da vida
e do homem. Tem havido resistências, por exemplo, da parte de associações de professores de Biologia, mas o facto subsiste. Finalmente, uma lei do Estado de Arcansas instituiu o «criacionismo científico» nas escolas em perfeito paralelismo com o evolucionismo, lei da iniciativa do governador estatal e aprovada pelas duas Câmaras (Representantes e Senado). Esta união das duas assembleias do Estado em medida de tal natureza é facto único na escalada fundamentalista.
Isto passou-se
em 1981. Esta lei foi, no entanto, no ano seguinte, considerada inconsjuiz William titucional, com um inequívoco e histórico veredicto do Overton.
b)
Génesis
O A
nos
oposição
de
escolares
livros
à ciência
biologia
a favor da Bíblia tem sido feita não
só em
processos nos tribunais, mas igualmente nos manuais escolares (em vinte e sete Estados), nos quais se procura fazer vingar o credo criacionista, e no ensino ministrado
nas escolas.
Os criacionistas pretendem implantar-se nas escolas, obter espaço nos livros escolares, ser investidos da dignidade de científicos, e tudo isto com objectivos certamente políticos, resultantes de uma visão conservadora da sociedade alicerçada em sólidos princípios de uma moral, de uma certa ordem moral (conservadora-reaccionária). À mistura surgem grandes interesses materiais, nomeadamente no mercado livreiro, que acompanha a onda de irracionalismo, mercado que movimenta anualmente centenas de milhões de dólares. Por exemplo, a Califórnia, onde o criacionismo estabeleceu uma
das suas mais activas frentes de batalha,
detém nada menos do que 10 % do mercado nacional de compêndios escolares dos Estados Unidos (Maio, 1982). Certos sectores mais conservadores e reaccionários vão ao ponto de acusar o darwinismo de suportar
ou
segundo
eles,
incentivar
a degradação
da moral,
desde
o consumo
da
droga ao aborto, passando pelo comunismo e outros grandes males que, afligem
a sociedade.
É natural que professores universitários americanos, quando inter-
rogados sobre esta questão, procurem minimizá-la, ou por patriotismo ou porque num grande país, onde a liberdade exercida pelos cidadãos 251
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
toma, por vezes, aspectos extravagantes, estas manifestações não tenham, a seus olhos, a amplitude ou a repercussão sobre a liberdade de pensamento e a cultura que nós, de longe, poderemos calcular. Todavia, a leitura das revistas científicas onde amiúde se relatam exemplos deste fanatismo em escalada, diversos livros, os protestos suscitados nos próprios Estados Unidos, a actividade da ACLU,
a ressonância escandalosa
dos julgamentos nos tribunais, assim como as críticas à teoria da evolução, ou comentários aos debates, que se publicam com frequência em magazines populares, em jornais diários e até em revistas sérias, e a relutância dos autores e editores de manuais escolares em abordar com
suficiência o evolucionismo moderno, tudo isto mostra que o problema é importante.
Em 1974 tive ocasião de perguntar pessoalmente a um reputado professor de uma universidade americana qual era, segundo ele, a extensão dos ataques que no seu país se faziam ao neodarwinismo. Respondeu-me com optimismo que o fenómeno era extremamente localizado, sem interesse e sem qualquer efeito nocivo sobre o ensino ou à investigação, nem tinha qualquer repercussão sobre as universidades. Não
tenho
dúvidas
de
que
as
boas
universidades
não
são
atingidas.
Mas também me parece que o meu interlocutor pretendeu omitir o que poderia embaciar a boa imagem do seu país. E por isso nada mais adiantou. Ou estaria ele mal informado? Não é provável, se atendermos a que
se trata
de
um
problema
tão
falado
e discutido
nos
Estados
Unidos. A pressão social exercida pelos fundamentalistas nos anos 20 teve
como resultado a tendência de autores e editores restringirem referências ao evolucionismo e à teoria de Darwin. É provável, como acentuou
o paleontólogo
George
Simpson,
que
não fosse o caso Dayton,
atrás
referido, a causa deste recuo generalizado, mas, ao contrário, que ambos
os fenómenos fossem determinados por uma atmosfera de reaccionarismo anti-intelectual
associado
anos
como
20.
tendo-se
Seja mesmo
evolução,
do
uns
que o tema
a nível
do
de
que
não merecia uma
Dayton,
outros.
mais
acentuados
antievolucionista das
70, e actualmente
julgamento
mais
bíblico,
for, o movimento
intensificado
estudantes nos anos Antes
ao literalismo
escolas
e dos
a controvérsia os livros
Em
todo
o
forte atenção e um
caso,
continuou, | textos
continua
escolares
nos
para
viva.
discutiam a
pode
amplo
dizer-se
desenvolvi
mento. Uns livros eram mais evolucionistas do que outros. No livro de.
Smallwood, Reveley e Baley (New Biology, 1924), que tinha grande expansão (talvez o texto mais adoptado nessa época), a evolução era
tratada apenas em cerca de duas páginas e não continha qualquer . referência à origem do homem. Outro compêndio, da autoria de Peabody e Hunt (Biology and Human Welfare, 1924), nem à evolução se referia, tema que fora excluído do texto. Depois de 1925, a situação . 252
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — 1
de facto agravou-se. Grabiner e Miller, num artigo publicado na revista Science, em 1974, dão uma regra para identificar livros escolares depois desta data: basta procurar nos índices ou nos glossários a palavra «evolução»: é quase certo que a não encontramos. Nalguns livros,
editados logo em 1926, procedeu-se a essa eliminação. Outros passaram a ser
substancialmente
espaço
o
de certos compêndios
menos
a
solução
ideias evolucionistas, mas
fazendo
ou
consagrado
a
discutiam
que
ou
tema,
ao
quanto
reticentes
mais
reduziram
ele.
Curiosa
é
destes (de Baker utilizado nos anos
o vocábulo «evolução» Num Biology, 1933), aliás o mais
r não mencionar — Dynamic e Mills
mais
30, os autores terminam o capítulo final, em que tratam do tema escal-
dante, com a afirmação verdadeiramente extraordinária de que «a teoria de Darwin,
tal como
já não é geralmente aceite»
a de Lamarck,
(May,
1982). Mesmo hoje há diversas evidências de que nas edições dos mais importantes livros escolares para o ensino secundário surgem numerosas provas de que se continua a fazer cortes e certas eliminações de maneira
a reduzir o relevo da teoria da evolução. Um exemplo, entre outros, é o das recentes edições da conhecida editora Harcourt Brace, onde se
omitiram todas as referências a Charles Darwin, ou (num caso) subtraiu-se do índice a palavra «evolução». E isto passa-se numa empresa
editorial que entre 1930 e 1960 se opôs às pressões antievolucionistas. Outro
exemplo
cujos autores
secundário,
livro escolar
um
é o de
de biologia para
o ensino
(Otto e Towle), na edição de 1977, reduzi-
ram de um terço o texto que na edição de 1973 destinavam à evolução. Mas um dos sintomas talvez mais expressivos de todo este movimento reaccionário-clerical e anticientífico é a inclusão nos livros escolares do criacionismo conforme ao Génesis, soante a outros mitos criacionistas.
ou, de uma maneira geral, conÉ o que fazem, por exemplo, os
livros Biology: An Inguiry Into the Nature of Life (Allyn e Bacon, eds., nas (Houghton
1974
de
edições
Miflin, ed., 1980)
The
e Biology:
e 1977)
o criacionismo,
cou-se
o fresco
mas
e num
não
of Life
livro de Smalwood e Gren, publi-
cado em 1974. E o mais estranho é que ensinam dizer)
Science
o defendem.
Em
(se assim podemos 1972,
um
mesmo
compêndio escolar foi publicado em duas versões: uma para o Estado da Califórnia, outra como edição nacional. Nesta edição figurava-se o paleoantropologista L. S. B. Leakey, a quem se devem grandes progressos no conhecimento da pré-história humana e das origens da nossa espécie. Na edição californiana, em vez do retrato de Leakey, publida
Capela
Sistina,
sobre
a criação
humana,
tal como
a representou Miguel Ângelo. Esta substituição simboliza rigorosamente as duas faces de controvérsia que opõe o Génesis à versão transformista
darwiniana;
o desejo de considerar os dois aspectos como igualmente
explicativos da origem
do homem,
e que como tal sejam considerados
253
GERMANO
pelos
1979).
professores,
Mas
outros
quer sinais
DA
nas são
FONSECA
aulas, talvez
quer mais
SACARRÃO
nos
livros
escolares
elucidativos.
(Wade,
Assim,
Biology:
A Search for Order in Complexity (Zondervan) foi escrito por Moore, professor na Universidade Estadual de Michigão e fundador da Creation Research Society. O livro chegou a ser oficialmente aprovado (com outros seis) como texto de biologia, por uma comissão estadual de Indiana, em 1975, ainda que dois anos depois fosse excluído, devido ao seu sectarismo.
por comissões
Continua,
de outros
todavia,
Estados
na situação
(Alabama,
de compêndio
Geórgia,
aprovado
Oclaoma
e Ore-
gão). Em dezanove dos cinquenta Estados existem regras para selecção de compêndios para o ensino secundário nas escolas públicas. Claro está que em muitas obras de biologia para o ensino não há quaisquer limitações ao evolucionismo nem à teoria de Darwin. É sobretudo nos Estados do Sul que se verificam as censuras e as limitações. Além disso,
não deve ignorar-se que os manuais escolares não eram muitas vezes (sobretudo até aos anos 60) escritos por biólogos profissionais, mas sim por professores sem especialização, apenas interessados na orientação pedagógica e na difusão de conceitos muito gerais e por isso mesmo facilmente
adulteráveis quando
tratados por professores sem
formação
científica em biologia.
Há quem pense que a disputa antievolucionista nos Estados Unidos da América do Norte poderia estar atenuada a partir de 1980 e que o movimento criacionista estaria em decadência. Este facto seria atestado pela publicação de alguns livros introdutórios ao estudo da biologia, que conteriam apenas breves referências às teorias criacionistas. Mas a conclusão não pode ser essa. É certo que a partir da década de 60 se
verificou uma nítida reacção. Foi o caso, sobretudo, da instituição de um programa de biologia evolucionista completamente renovado, desig-
nado por «Biological Sciences Curriculum Study», mais conhecido pela
abreviatura
BSCS.
Professores
universitários
mento reformador, e foram publicados manuais
intervieram
neste movi-
que davam largo desen-
volvimento à teoria biológica da evolução e ao neodarwinismo. Estes compêndios, apesar dos protestos de vários sectores conservadores e clericais, irromperam nas escolas secundárias americanas, talvez em metade delas. Apesar destas inovações e reformas, «a guerra do símio» não terminou, muito ao contrário *.
Os criacionistas inventaram
novo plano de ataque quando recla-
maram, como já referi atrás, tempo igual nas escolas e espaço igual nos
compêndios para aquilo a que deram o nome de «criacionismo cientí-
fico», com os seus doutores, as suas «sociedades científicas», os seus «institutos de investigação» e, por certo, os seus «investigadores»!... Todo este movimento é muito complexo, pois envolve determinantes religiosos,
políticos,
interesses
editoriais, 254
tradições,
etc.
Há
quem
atribua
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —I
grande parte da responsabilidade por esta situação às próprias universidades, que não se têm de nenhuma maneira interessado pelo ensino da ciência
nas
escolas
secundárias,
e,
também,
aos
editores,
que
estão
quase sempre mais interessados na quantidade de livros vendidos do que na qualidade destes últimos. Outros ainda atribuem as culpas aos políticos, que manipulam
sentimentos religiosos e preconceitos antievo-
lucionistas para obterem mais votos nas campanhas eleitorais. Por mim, penso na grande força que a tradição religiosa ainda possui e que se apodera quase totalmente do senso crítico de muitos cidadãos mal informados, sobretudo nas condições particulares da sociedade americana, com
a sua
de credo,
liberdade
a sua
multiplicidade
de seitas e o seu
respeito dogmático pelas raízes protestantes da nação. Para Grabiner e Miller, a maior tragédia entre todas é que os manuais escolares tenham baixado de nível no que respeita ao ensino da evolução sem que ninguém desse por isso. Entretanto, continua a controvérsia da criação versus evolução. Publicam-se
livros em
que
se comparam
os dois aspectos, mas
tanto
quanto sei essas obras não são em regra escritas por biólogos profissionais
de
reconhecida
autoridade.
Fazem,
em
geral,
um
mau
serviço,
porque se trata de autores que não estão a par do progresso da biologia, de modo que o leitor não fica informado nem capacitado para ajuizar do significado da oposição entre a teologia natural e a ciência objectiva, dois mundos à parte.
Para um crente em Deus, o criacionismo e as interpretações que dele resultam poderão ser perfeitamente legítimos, tanto ou mesmo mais legítimos do que as inferências feitas por um homem de ciência e utiliza rigorosamente o método científico de pesquisa. Mas o primeiro defende uma ideologia, ou seja, uma doutrina que ele procura impor aos factos, enquanto o segundo recorre à dúvida permanente como método de pesquisa e toma como referência os factos naturais. Isto não significa que a ciência não seja influenciada pelas ideologias. De facto, as atitudes dogmáticas, os preconceitos e auto-suficiência sempre constituíram ameaças para a ciência. Quando os neodarwinistas se tornam hiperevolucionistas, dogmáticos e sentenciosos, além do grande mal que isso representa como obstáculo ao progresso científico, outra
consequência
tida;
e,
será a de darem
força ao movimento
criacionista
pseudocientífico e a todas as oposições irracionalistas. Os criacionistas e igualmente muitas pessoas mal informadas supõem que as críticas que o criacionismo «científico» faz ao evolucionismo são de tal forma demolidoras que as julgam fatais. Essas críticas podem resumir-se nos pontos seguintes: a evolução nunca foi observada; não pode ser experimentalmente demonstrada nem repefinalmente,
que
seria
uma
teoria
não
refutável
no
sentido
popperiano. Ora a verdade é que a biologia moderna contradiz inequi255
GERMANO
vocamente
estas afirmações
DA
FONSECA
com
enorme
SACARRÃO
soma
de sólidos factos e ina-
tacáveis argumentos. O criacionismo não tem nada de uma ciência, e o seu esforço incide precisamente em mostrar que as dificuldades do evolucionismo darwiniano são uma prova do seu fracasso. Como não
pusesse
imensidade
os fundamentos
causa
em
desta
teoria.
contrário,
Pelo
fo
gos na biologia evolutiva têm sido feitos, como não podia deixar de ser, em grande parte à custa da remoção de hipóteses incorrectas. Não é possível provar que uma teoria (ou uma hipótese) é verdadeira, mas sim que ela é ou pode ser falsa. A prova do erro a que se submetem as hipóteses constitui um dos meios pelos quais se provoca o avanço científico. E assim tem progredido e se tem consolidado a teoria moderna da evolução. Até hoje ainda não houve experiência ou facto que
asi
visto que os avan-
uma
de factos naturais não teriam qualquer sentido fora dela.
A
faz mais do que isso, não nos dá novidade nenhuma,
evolutiva,
é contribuir
fomentar
para
a confusão e o obscurantismo ”. A realidade da evolução nada tem a ver com as suas causas. Se há fenómeno que não suscita dúvidas entre os
cientistas competentes, é precisamente evolução *. Nada
a realidade e materialidade da quadro
tem sentido em biologia fora de um
de mu-
Existem vários sintomas de que o movimento criacionista não esmoreceu, muito pelo contrário. Contra ele diversas autoridades cien-
tíficas publicam
livros e prossegue
(sobretudo
a censura
no Texas)
contra os programas e os livros de ensino da biologia nas escolas (Jukes, 1984, 1986, 1986 a). O Departamento de Educação do Estado do Texas estabeleceu, por exemplo, que a apresentação da teoria da evolução deve
ser feita de maneira a não prejudicar outras teorias sobre as origens. Por outro lado, fazem-se
opiniões,
estatísticas,
inquéritos, publicam-se
e a confusão
no público
não
diminui.
Em
confrontam-se
certas regiões, a
maioria das pessoas inquiridas pretende que o criacionismo penetre nas escolas e uma porção significativa delas (10 %-16
Yo) prefere o modelo
criacionista e que seja ele o único a ser ensinado. Mas o problema parece ser sobretudo de ignorância. Segundo M. Zimmerman (que realizou um inquérito
de
junto
estudantes),
a ignorância
relativamente
ao
darwi-
nismo e ao método científico, assim como do que é na realidade o criacionismo «científico», seria responsável pelo facto de muita gente
pensar que é um atentado às liberdades impedir o ensino da «ciência da criação» nas escolas. À rejeição do criacionismo aumenta com o acréscimo de conhecimentos em biologia, conhecimentos que por sua vez conduzem
à aceitação
Sei., 1986). Um estudantes
da evolução
universitários
(entre
os 256
18
Ohio
(v. Zimmerman,
outro inquérito recente (1986) e
os
22
Journ.
revelou que em mil anos
de
idade)
da
escamas Pai a
É
dança, de permanente criatividade. Mas não criação a partir de nada, como proclamam os fanáticos do denominado «criacionismo científico».
o ni
à biologia
e opô-lo
confrontá-lo
a Ai TRT NEAR PRA
Pretender conferir ao criacionismo o estatuto de uma ciência, e com isso
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —I
Califórnia, Texas e Connecticut, mais de metade eram criacionistas. Mas os estudantes mais aplicados, mais instruídos e liberais (no sentido olítico do termo) eram, pelo contrário, darwinistas (New Scientist, 6,
Nov., 1986). Mesmo sem qualquer pressão legal acontece que em Ohio 15 % das escolas secundárias tomam uma posição favorável relativamente ao ensino do criacionismo (Zimmerman, 1987).
2.
da Europa
O caso
Pode pôr-se a questão de saber porque é que na Europa não existem hoje, em regra, oposições activas e espectaculares ao ensino da evolução e ao darwinismo. Porque é que na Europa o criacionismo é praticamente inexistente? Uma das razões que normalmente se invoca
é a forte tradição protestante nos Estados Unidos, muito maior do que na Europa. No Norte da Europa, ao domingo, apenas 3 % a 5 % dos protestantes vão à igreja, enquanto nos Estados Unidos (sondagem
51 Yo da totalidade dos jovens entre os 13 e os 19 anos assis-
Gallup) tem
ao serviço
seriam
religioso
dominical.
É, destes, um
op. cit.). Esta
(cit. May,
fundamentalistas
terço, pelo menos,
será uma
razão
forte, mas creio que haveria outras, entre as quais me parece legítimo
relevo
pôr em
as seguintes.
será, creio eu, a descentralização
Uma
política e administrativa do país, a sua estrutura federativa. Cada Estado tem completa independência em muitos aspectos. Fazem as suas próprias leis, em matéria civil e criminal, desde que não estejam em oposição com o que estabelece a Constituição dos Estados Unidos. É o que acontece com a educação, que obedece a leis estaduais. Esta descentralização corresponde a uma forte participação dos cidadãos na vida local, com
acção muito mais directa nos negócios públicos do que aconteceria se
a educação,
por exemplo,
com
todos os seus complexos problemas,
dependesse exclusivamente de um distante poder central. Cada Estado, local, conserva tradições, defende prerrogativas. cada comunidade
A atmosfera é de inteira liberdade, que toma, por vezes, formas extravagantes,
com
uma
tradição de acentuado
individualismo.
Este facto,
associado à facilidade de associação, à multiplicidade de seitas (cerca de
oitenta), à densidade religiosa, facilita as intervenções dos cidadãos na educação e na forma como esta é exercida. Uma religião fragmentada em um grande número de igrejas e de seitas, como se verifica nos Estados Unidos, multiplica
as frentes de defesa dos dogmas
e aumenta
a eficácia da luta.
A oposição
aberta
ao evolucionismo
darwiniano
numa
época já
distante do seu nascimento não deixa de ser um caso social interessante. Devemos procurar, talvez, as suas causas em grande parte nas peculiaridades
da
sociedade
Bibl, Univ. 49 — 17
americana,
nas 257
suas
origens,
nas
suas
tradições,
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
no modo de viver dos seus cidadãos. Não só na vigorosa tradição protestante, como na ampla descentralização institucional, no enraizado hábito da participação dos cidadãos na política e na administração locais e numa
irresistível
tendência
para
o
associativismo,
para
a
livre
dis-
cusão, e, acima de tudo, para a salvaguarda das liberdades fundamentais, apesar de vários acidentes e movimentos contrários que a têm contrariado ao longo da sua história. Nação sempre voltada para o futuro, provavelmente a mais inovadora, a mais tecnológica, a mais científica, é em todo o caso curioso que seja nela que se verificam as maiores reacções contra a teoria da evolução. Não é que na Europa os sectores religiosos e conservadores não sejam, fundamentalmente, antidarwinistas.
Simplesmente,
a centralização
das
instituições
não
facilita
de
modo nenhum a participação dos cidadãos, além de que a tradição protestante é provavelmente muito menos forte do que é nos Estados Unidos, onde a componente puritana não só alimentou as primeiras raízes da nação
como
marcou
profundamente
a moral
e os costumes.
Existe uma fatal oposição entre o conservantismo inerente a toda a condição religiosa e qualquer teoria biológica da evolução que exclua o sagrado. E é este antagonismo que se observa nos Estados Unidos com aquela vivacidade e franqueza social que são características da grande nação americana, ao passo que na Europa a incompatibilidade não é aparente, ou porque a estrutura social e religiosa é diferente ou porque um certo compromisso ou ajustamento se estabeleceu e abafou os antagonismos mais evidentes. À divinização da evolução foi um deles. No fundo da generalidade das consciências creio haver uma oposição à ideia de que o homem é um animal destituído de qualquer transcendência, grado.
sem
Podem
um
simples
«macaco
nu»,
sem
essas pessoas tolerar a evolução,
nenhum
mas
não
carácter
sa-
a animalidade
mistério, sem algo que a transcenda.
A Europa, em todo o caso, não está completamente imune, e há sintomas que poderão dar ao debate ideológico contra o darwinismo ortodoxo uma amplitude inesperada. É o caso de na Inglaterra ter havido há alguns anos uma acesa polémica sobre as implicações ideológicas do cladismo, da teoria do «equilíbrio intermitente» (evolução «punctacional»)
e do neo-saltacionismo,
de que
quência. No que se refere ao cladismo moderno
é em
parte
a conse-
(«transformado»)
ele
põe em evidência relações entre grupos (pela construção de esquemas ditos-cladogramas) e nada nos diz do processo evolutivo que provocou essas relações, nem dos prováveis antepassados comuns das formas respectivas. Nega-se a isso. Às doutrinas descontinuístas encaixam razoavel-
mente
bem
nas suas dicotomias filéticas e na
sua noção
limitada
de
parentesco evolutivo. Não favorece também a teoria neodarwiniana e é utilizado pelo criacionismo «científico». Este, com o seu dogma da criação a partir de nada, agarra, portanto, com as duas mãos uma taxonomia 258
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — I
que se recusa a reconstruir filiações directas e a evidenciar (em teoria, naturalmente) formas que possam ser antepassados comuns a elas, por
não haver suporte científico para isso. A controvérsia incidiu sobretudo nas repercussões ideológicas da seguinte questão: é a evolução um processo continuo e gradual, ou, pelo contrário, é descontinuo? A polémica
a que me refiro resultou de uma exposição comemorativa do centenário da instalação do British Museum (Natural History) em South Ken-
sington, feita no mesmo estabelecimento, e respeitante aos dinossauros e à origem do homem, em 1981 ?, Houve quem acusasse o cladismo de dar suporte ao marxismo e até ao criacionismo, por fornecer uma perspectiva
descontínua da evolução, o que seria contrário ao darwinismo, que não
admite saltos no processo da mudança. Conforme à concepção marxista, a história humana bruscas, revoluções.
essas mensagem
caracteriza-se por saltos qualitativos, mudanças Ora o cladismo, para certos autores, transmitiriá
ao traduzir uma na
Ver-se-ia,
biológica.
deformadora
darwiniana,
no ensino
concepção descontínua uma
divulgação,
sua
intromissão
da evolução e
abusiva
da biologia evolutiva, a contrariar a mensagem
toda ela a apontar para a evolução gradual, por pequenas
Para alguns defensores do gradualismo,
e sucessivas transformações.
a divulgação de uma tal doutrina constituiria uma verdadeira heresia, com o British Museum a atraiçoar a sua missão educacional ao adulterar
o darwinismo,
ou
voluntariamente
para,
não,
insinuar
ideo-
certas
logias "º. No
que
se refere
ao suporte
do
criacionismo,
ele resultaria,
por
um lado, das dúvidas lançadas sobre a teoria neodarwiniana da evolução, a qual, acusada de (suposta) fragilidade em vários aspectos fundamentais,
seria uma
teoria impossível
de confirmar ou de refutar, quer
dizer, não seria uma verdadeira teoria científica; pelo outro, do suporte
que
lhe
concepção
é concedido
pela
se alçar
ao nível
descontínua
da evolução.
Se os
novos grupos se formam bruscamente e se o evolucionismo (ou o darwinismo) é uma teoria metafísica, o criacionismo não precisa de mais nada
para
da ciência
(na opinião, claro, dos cria-
cionistas e daqueles que eles convencem). Outros perigos para a educação do público e dos estudantes viriam, também (segundo os críticos), da infiltração da ideologia marxista e, igualmente, de o «descontinuísmo» abalar a validade da teoria darwiniana pela apresentação tendenciosa. Não posso denunciar aqui os pormenores dos excessos e deturpações
nascidos num debate que ultrapassa os limites da crítica científica para se situar na área dos dogmatismos e das retóricas próprias às ideologias. Debate que, como tantos outros, prova que ciência e ideologia se interpenetram. O que acontece, por vezes, é que os cientistas e as instituições ao serviço
da ciência
exageram
as suas 259
motivações
ideológicas,
levan-
GERMANO
DA
FONSECA
do-os a excessos e distorções. Há
SACARRÃO
«punctacionistas»
que não são nem
marxistas nem cladistas, e na realidade as teorias respectivas não estão necessariamente relacionadas, ainda que na sua base existam inspi-
rações de natureza ideológica. Importa ainda dizer que existe em Londres uma Biblical Creation Society (BCS) opondo-se a uma Association for the Protection of Evolution (APÉ), que fazem debates, conferências, etc. Um dos membros da sociedade criacionista é um geneticista da Universidade de Glásgua (C. Darnbrough), o qual diz acreditar na evolução, mas na sua conferência afirma o contrário, ou antes, que as espécies só evolveram desde o dilúvio. A BCS, todavia, parece guardar uma certa distância em relação ao movimento criacionista americano, mas é, por sua vez, criticada
por
um
movimento
Movement. É um Lewis, 1984) 1.
rival,
criacionismo
o
da
em
denominada
Creation
perfeito confusão
q A
Q j
Science
(v. Howgate
e
quais
chamar
se repetem.
a atenção
para
Além
dos
alguns
trabalhos
artigos
consultar-se, por exemplo, Dickson
já mencionados,
e livros. Dos
(1981), Broad
primeiros
(1981),
importa poderão
Numbers
(1982), anónimo (Nature, 295:85), Lewin (1982 b). Entre os livros, podem apontar-se as obras de Ruse (1981, algumas referências), Kitcher (1982), Newell (1983), Futuyma (1983), Montagu (1984), com uma série de artigos específicos, Durant (1985), este último sobre a evolução nas suas relações com a crença religiosa, mas com um capitulo especialmente devotado ao criacionismo «científico». Importa, também, referir as análises e comentários de Maddox
Ruse (1983) e Thompson Darwin
na
pátria
de
(1982), Hull
(1983),
Lamarck
se verifica uma certa oposição renovada da parte de certos meios ou pessoas. Por exemplo, nas polémicas apaixonadas em volta do problema do aborto subjazem preconceitos antievolucionistas da parte de muitos
opositores, em especial pontos de vista antidarwinistas.
Em
França, até muito recentemente, cientistas de nome manifes-
taram, mais ou menos claramente, tendências «espiritualistas», recusando a ausência de um propósito transcendente na evolução. Pode-
mos citar autores como Lucien Cuénot (um dos melhores zoólogos deste século), A. Vandel e o grande zoólogo que foi P. P. Grassé. Fizeram
críticas ao darwinismo
tradicional ou modernizado, 260
particularmente à
edi RU
mente imune ao surgimento de novos ímpetos antievolucionistas, como
VOS
a Europa não está hoje completa-
OE PRO
Não só (como dizia há pouco)
ii
aiii
3.
(1983).
A ii
das
is
A bibliografia sobre o movimento criacionista é já imensa e não é possível, nem desejável, fazer listas intermináveis das fontes, muitas
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —I
selecção natural, a que subtraem a importância que os trabalhos modernos lhe deram a partir dos anos 30. Quando se publicam artigos ou livros antievolucionistas em França, também eles conhecem algum
sucesso junto do grande público. Foi o que, por exemplo, aconteceu ainda em 1943, quando veio a lume o livro L'évolution régressive, de Salet e Lafont (Bouanchaud, 1976). Claro está que os biólogos franceses são evolucionistas, sem dúvida. O que
existe
é uma
tradição
de certo modo
antidarwinista,
ou pelo
menos um darwinismo muito reticente no que respeita ao valor da selecção natural como factor promotor de evolução e de adaptação dos organismos ao meio. Os Franceses não esquecem Lamarck, há patrioticamente uma certa simpatia pela sua figura e pelas suas ideias, e isto tem contribuído, também, para que se tenha mantido uma tradição a
favor do papel do meio, da hereditariedade biológica dos caracteres adquiridos, o que tem contribuído para que se instaurasse uma certa impermeabilidade ao darwinismo, um certo obstáculo à sua plena assimilação.
Ernst Mayr
dos arquitectos da síntese moderna,
(1980), um
refere que as ideias neolamarckianas se desenvolveram vigorosamente em França quase até à actualidade. cerca de quarenta
Criou-se mesmo
e cinco a cinquenta
anos, em
em dada época, há certo clima
França, um
antievolucionista. Sob pretexto de aliviar o peso dos programas escolares de ciências naturais, suprimiu-se o ensino do evolucionismo (Bouanchaud, op. cit.). Na mesma
abertamente, divinizado.
época, as obras de Teilhard de Chardin não circulavam
se bem
que
se tratasse
de um
Isto revela a existência, como
evolucionismo
diz Bouanchaud,
religioso,
de um certo
ambiente intelectual, e que seria imprudente afirmar que a evolução não é por ninguém posta em dúvida. Deverá notar-se, também, a forte influência que nisto tudo teve a filosofia de Bergson, não só entre as élites literárias, como também em especialistas e professores de Ciências Naturais. Com o seu misterioso factor, o célan vital», a explicar a evolução, Bergson influenciou a grande maioria dos biólogos franceses, inclusivamente os mais ilustres, influência que se alargou a Teilhard de Chardin, todos tendo avançado com argumentações que foram colher no autor da Evolution créatrice. Um dos mais influentes e conhecidos zoólogos franceses foi o Prof, P, P, Grassé, que no decurso da sua longa vida atacou sem descanso o conceito de selecção natural e o darwinismo.
Muita da nossa formação cultural e científica em Portugal, no âmbito das ciências naturais, é de origem francesa, e isto talvez explique, em
parte, a nossa apatia pelo darwinismo (v. adiante). Todos os intelectuais franceses são fortemente influenciados pela filosofia e há tendência da parte de notáveis biólogos, como Cuénot, Vandel e tantos outros, para terem uma
visão unitária e metafísica da biologia e do mundo, e acima
de tudo dos grandes problemas, como é o caso da evolução e da adapta261
GERMANO
ção. O mesmo
DA
FONSECA
SACARRÃO
se pode dizer dos alemães, e este facto estabelece um
contraste entre a maneira como é concebido o evolucionismo na Europa
e nos países anglo-saxónicos, onde a tradição filosófica é diferente. A meio do século xix, os grandes biólogos eram europeus, particularmente
alemães:
K.
Von
Baer,
Schleiden,
Virchow,
Leuckart,
Johannes Miiller, Leydig e tantos outros, e todavia não foi deles que veio a solução para o problema da evolução, que foi encontrada por dois amadores de ciência ingleses, Darwin e Wallace, ambos entusiastas
e experientes naturalistas. Pode surpreender que não fosse na Europa continental, com todo o seu enorme prestígio científico de então, que surgisse
a revolução
científica
e cultural
que
coube
ao
darwinismo
realizar. À razão disto estaria no facto de a Europa ser dominada nessa altura pelo essencialismo, filosofia que é incompatível com a noção de evolução gradual. Na Inglaterra, porém, o clima filosófico era outro, caracterizado pelo empiricismo. Ora numa sociedade pragmática, com uma filosofia que diz que todo o conhecimento deriva da experiência, não haveria os obstáculos que na Europa uma longa tradição platónico-aristotélica levantava empirista,
(v. o cap. 11). «Haveria
pragmática,
como
a da
Inglaterra
de ser numa do
século
sociedade
xIx,
aberta
à
inovação, não se ensimesmando com “essências”, com a natureza secreta das coisas e dos seres vivendo como formas fixas num mundo imutável
conforme ao “plano do Criador”, que se desenvolveria uma nova visão, em que o tempo tem um sentido, em que tudo muda com ele» (v. meu 1978). Na Alemanha foram preconceitos filosóficos que em grande medida constituíram um forte obstáculo à plena aceitação do neodarwi-
nismo
(Hamburger,
1980). Houve,
porém,
excepções, como Bernard
Rensch, G. Heberer e tantos outros, que mais tarde deram uma contri-
buição assinalável para o sucesso da moderna teoria evolucionista nesse país. O peso da metafísica fazia que as complexidades das adaptações não pudessem ser explicadas pelo recurso ao papel da selecção natural. É
relativamente
frequente
verificar-se
na
obra
dos
grandes
zoólogos
alemães uma necessidade de se apoiarem em bases metafísicas, de associarem ao pensamento científico uma visão metafísica das coisas. Esta
tendência metafísica da biologia evolutiva alemã tem as suas raizes em filósofos como Herder, Schelling, Kant, em Goethe, em Carus. É a
Natur philosophie alemã, que desde o princípio do século x1x influenciou a busca dos arquétipos, a procura da ideia absoluta ou do plano divino
da natureza.
Foi
o começo
inventada por Goethe
da grande
(v. Bernal,
ênfase
da
1969). Daqui
morfologia,
palavra
resultou que, subja-.
cente às discussões científicas sobre a evolução, existia, nos bió alemães, esse pendor irresistível para a metafísica, como disse Hambur:
ger, «uma necessidade subconsciente generalizada para combinar o pen:
samento
científico com
uma
concepção metafísica
tanschauung). 262
do mundo»
(Wel-
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — 1
Na
oposição ao darwinismo, tanto na sua forma tradicional como na fase moderna, actuaram múltiplos factores, históricos, educacionais,
económicos, etc. Mas sem dúvida que o obstáculo tipológico foi dos mais
importantes. O pensamento essencialista tem fortes raízes nos países católicos, como a França, como Portugal e outros, de tradição platónico-
“aristotélica, e uma parte da aversão ao evolucionismo darwiniano poderá provir daí. Ernest Boesiger, que conhece bem a história recente da biologia francesa, escreveu, em 1974:
France today (1974) is a kind of living fossil in the rejection of modern evolutionary theories: about 95 per cent of all biologists and philosophers are more or less opposed to Darwinism.
De
para
então
cá a situação melhorou,
mas
talvez
não se alterou
substancialmente.
Foram importantes excepções sobretudo Georges Teissier e Philippe país onde o L'Héritier, que romperam a tradição antidarwiniana num neolamarckismo
quase
floresceu
até
ao
presente,
conforme
afirmou
Ernst Mayr. Paul Lemoine, em plena fase de criação da teoria neodarwiniana (teoria sintética), que foi professor e director do Museum de
VHistoire Naturelle em Paris, escreveu na Encyclopédie Française, no volume publicado em 1937, que a teoria da evolução seria em breve abandonada, que não havia factos a favor dessa teoria, que a evolução é uma espécie de dogma, e outras estranhas afirmações. A fechar o volume,
«Que
nas
escreveu
conclusões,
Lemoine
valent les théories de PÉvolution?»:
o seguinte,
com
o
título
Or le tome v de "'Encyclopédie Française marquera certainement une date dans lhistoire de nos idées sur Pévolution: il ressort de sa lecture que cette théorie semble à la veille d'être abandonnée. (582-583.) [...] On ne saurait mieux dire que les données de la génétique n'apportent aucun argument, bien au contraire, en favyour de la notion d'évolu-
tion.
(Idem.)
montrent,
moins
[...]
Or, les données de la paléontologie dé-
au contraire, qu'il n'y a pas eu évolution, tout au
évolution
des grands
groupes.
(582-584.)
[...]
H
résult de cet exposé que la théorie de Vévolution est impossible. Au fond, malgré les apparences, personne n'y croit plus. [...] (582-588.) [...] Lºévolution est une sorte de dogme auquel les prêtres ne croient plus mais qu'ils maintiennent pour leur peuple. (Idem.) 263
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
Estas e outras afirmações do mesmo jaez, que entusiasmariam o fundamentalista mais exigente (tanto mais que perpassa em todo o texto
de
Lemoine
uma
crença
em
mitos
criacionistas),
a brilharem
numa
enciclopédia com que o génio francês pretendia na ocasião iluminar o mundo, não podiam ser mais infelizes, pela bazófia, pela superficialidade, pelo atropelo dos factos e do método científico, pelo chauvinismo. Infelizes, também, porque pretendiam exprimir e sintetizar os desenvolvimentos e opiniões explanadas em capítulos anteriores da mesma obra pelos grandes patrões da biologia francesa, que nessa época pontificavam, como Caullery, Grassé, Cuénot, Rostand, Arambourg, Guyénot, Jeannel, os quais, a acreditar no que nos diz Lemoine, seriam evo-
lucionistas que não acreditavam
na evolução, como
quem
vende um
produto adulterado, mas enaltecendo as suas virtudes à clientela. Que eu saiba, esses professores eminentes não lavraram publicamente qualquer protesto, nem negaram as conclusões do confrade, o que me leva a
crer que todos os grandes patrões da ciência francesa estavam de acordo,
pelo menos num ponto: na sua animosidade à teoria da evolução. Em todo o caso, porém, neodarwinismo,
isto não me
parece provável.
A
misturada com a necessidade de uma
aversão era ao filosofia natural
que satisfizesse simultaneamente a tradição essencialista, a exigência de mistério,
de
intervenção
de factores
psicológicos,
conforme
ao bergso-
nismo, e, do mesmo passo, colocasse em lugar de honra Lamarck, um francês, Darwin
enfim,
e Wallace.
lismo, de uma que
que
faz
do
pudesse
relegar
A biologia francesa
para tem
a sombra
os
um
secreto de vita-
desejo
metafísica do organismo/ambiente,
evolucionismo.
Herança
que
vem,
em
anglo-saxões
nas interpretações grande
parte,
de
Bergson, mas não só daí. Monod (1970) escreveu o seguinte a propósito da forte influência de Bergson: dans
ma
jeunesse,
on
ne
pouvait
espérer
réussir
au
bachot
à moins d'avoir lu 1 Evolution créatrice. É curioso que, também para Monod, a evolução não seria, de forma
nenhuma, uma propriedade dos seres vivos, visto que se trataria de um fenómeno
resultante dos acidentes
que
atingem
o ADN,
o invariante
biológico fundamental ou princípio conservador (v., atrás, o cap. II). Mas tem uma manifesta simpatia pela filosofia bergsoniana, que muito o seduziu
certamente:
Pour autant je ne considere pas Vattitude de Bergson comme insignifiante, bien au contraire. La révolte, consciente 264
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —I
on pas, contre le rationnel, le respect accordé à "Id de "Ego sont des marques de notre temps (sans spontanéité créatrice). Si Bergson avait employé moins claire, un style plus «profond», on le
jourd'hui. (P. 45.) Para
seja,
Monod,
novidade
moderna,
para
evolução
absoluta,
não
é «revelação»,
o que o aproxima
ele, estaria de acordo
com
mas
sim
de Bergson.
aux dépens parler de la une langue relirait au-
criação,
ou
E a teoria
a sua filosofia bergsoniana
nesse ponto essencialíssimo: Cette convergence apparente entre les voies de la métaphysique bergsonienne et celles de la science serait-elle encore Veffet d'une pure coincidence? Peut-être pas: Bergson, en artiste et poete qu'il était, tres bien informé par ailleurs des sciences naturelles de son temps, ne pourrait manquer d'être sensible à ['éblouissante richesse de la biosphêre, à la variété prodigieuse des formes et des comportements qui s'y déploient,
et qui paraissent témoigner presque directement, en effet, d'une prodigalité créatrice trainte. (P. 151.)
inépuisable, libre de toute con-
Boesiger refere, também, que outros dos obstáculos sérios ao desenvolvimento da moderna teoria da evolução em França foi a própria estrutura das universidades francesas, do Museu de História Natural e
dos diversos centros de investigação. Os lugares de professor dependem da aprovação de comissões universitárias ou de comissões de organismos de investigação, cuja força é enorme, sendo fortemente influenciadas por professores poderosos. Sobretudo os membros e chefes dessas comissões consultivas têm enorme influência. Quem pode obter um lugar se se opuser a um patrão? Como todos os professores poderosos estão de acordo na sua aversão à teoria sintética da evolução, resultava dessa
circunstância a existência de uma barreira quase absoluta contra concorrentes intrusos que poderiam perturbar a harmonia reinante. Boesiger conta que Teissier obteve um lugar de professor na Sorbona em 1945, não por ser favorito de um poderoso professor-patrão, mas como recompensa pelas suas actividades na Resistência durante a guerra, oportunidade única, porque um pouco mais tarde, por exemplo em 1948,
já não
poderia
ocorrer.
Teissier foi, assim,
uma
excepção,
facto
que se deveu à situação política e social da França no final da guerra 2. 265
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
À tradição cartesiana impera no espírito francês. O amor da crítica
e da clareza das ideias conduziu por vezes ao abandono de problemas que a razão apontava não terem demonstração possível. O mendelismo no primeiro quartel do século parecia obscuro, complicado, enquanto o lamarckismo,
simples
se
(Labbé,
era
vago,
1929).
surgia,
todavia,
Esta resistência
como
francesa
uma
ideia
à genética
clara
e
impediu
igualmente a plena aceitação do neodarwinismo. Resistência cujas causas residem em parte provavelmente na influência predominante do espírito metafísico e abstracto sobre o espírito positivo e prático da segunda metade do século xIx, facto que prejudicou fortemente o desenvolvimento da biologia evolutiva francesa. Poder-se-á então ver aí uma das razões da tenaz oposição que foi feita em França à teoria de Darwin. Isto mesmo foi reconhecido em 1922 por um grande zoólogo francês, Maurice Caullery (cit. Labbé, op. cit.). O nacionalismo exacerbado e o apego
forte às tradições
e às forças
do passado,
e certamente
muitos
outros factores ligados à estrutura económica e cultural e à história, entrarão também, de maneira muito complicada, a constituir o feixe de entraves ao neodarwinismo. Talvez que o darwinismo só pudesse ser concebido por um inglês, e a genética, por seu lado, só poderia desen-. volver-se num ambiente de grande pragmatismo e liberdade intelectual como
existia (e existe) nos meios
de pesquisa norte-americanos É.
Mais recentemente, Vuilleumier (1984) analisou também a situação da biologia evolutiva em França. À sua opinião coincide em muitos aspectos com a de Boesiger. Por exemplo, concorda com este autor quanto ao facto de o neodarwinismo ter no passado uma representação muito fraca em França. E acrescenta que a evolução raramente foi e é tratada de forma global no mesmo país. Escreveu, por exemplo: there appears to be much specialized compartmentalization among biologists who write about evolution [...]. They may: get an evolutionary perspective in genetics, or a selectionist. view of paleontology, but they will not be overwhelmed by a recognition
of the
unifying
nature
of evolution
French biologists who have writen on evolution sider themselves primarily evolutionists working lity [...]. It may be symptomatic that there is no the Study of Evolution in France, whereas there for the study of ecology. (P. 156.) Se
não
há
uma
Revue
consagradas
à ecologia.
actualmente
em
França
d'évolution,
Mas, um
apesar
existem,
de
porém,
tudo,
pode
[...]
most
do not cons in a speciaSociety for is a society Em
diversas
revistas
dizer-se
que
há
interesse real pelo estudo da evolução, não 266
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — 1
apenas da parte de alguns, mas da generalidade dos biólogos franceses.
Além desse interesse generalizado, diversos biólogos franceses dedicam-se à investigação fundamental em evolução, e alguns são neodarwinistas em maior ou menor grau. Mas o neodarwinismo não é, em regra, apreen-
dido na sua plenitude e nos seus recentes desenvolvimentos (Vuilleumier, op. cit., pp. 156-156). Este facto não surpreende quando se sabe
que a França foi o país do Ocidente onde se verificou a maior resistência ao
darwinismo.
Curiosamente,
porém,
se
o centenário
da
morte
de
Darwin, em 1982, foi assinalado em França com diversos colóquios e publicações, estes factos não teriam sido nem reconhecidos nem aprecia-
dos como significativos pelos biólogos franceses, muitos dos quais se teriam até confessado envergonhados com a pouca importância que teria sido dada ao acontecimento e com a pobreza das manifestações roduzidas. À razão disto, teriam eles explicado, seria a persistência de um
fundo
de lamarckismo,
de concerto com sentimentos antibritânicos
e com influência da Igreja (Wasserung e Rose, 1984). As razões ideológicas ou culturais poderão explicar em parte a razão do fraco reconhecimento do darwinismo e da moderna «teoria sintética», de que só seriam captados os aspectos esquemáticos e superficiais.
Este
facto
neodarwinismo
reforçaria
o sentimento
dos
de
Franceses
que
o
constituiria um edifício teórico muito frágil. É prová-
vel que o fundo sociocultural e filosófico tenha desenvolvido historica-
mente um clima intelectual em França contrário à plena aceitação e aprofundamento do neodarwinismo e à filosofia que ele veicula ou que nele subjaz. Ninguém sabe se este distanciamento da biologia francesa relativamente
ao
darwinismo,
e
o
facto
de
ela
não
ter
contribuído
de maneira significativa para a elaboração da síntese evolucionista moderna, não poderá revelar-se de futuro como vantajosa, nomeadamente por estabelecer uma disponibilidade que pode abrir novas vias de interpretação que contribuam para a reformação da teoria neodarwiniana.
A síntese moderna desenvolveu-se sobretudo nos Estados Unidos da América do Norte. É um produto do rápido desenvolvimento da biologia moderna, que em grande parte ocorreu nesse país, associado à livre iniciativa e ao enorme
desenvolvimento industrial. Mais, talvez,
do que qualquer outra causa imediata, devemos apontar o formidável número de departamentos e laboratórios universitários, excelentes bibliotecas, activos centros de pesquisa, número elevado de biólogos especializados
nos
de uma
mais
sociedade
diversos
que
não
sectores,
etc. E o desembaraço
está inflluenciada
tradições.
267
por pesadas
intelectual
e longas
GERMANO 4.
O
darwinismo
em
DA
FONSECA
SACARRÃO
Portugal *
Está por fazer o estudo aprofundado
científicas da evolução tiveram em lução
que
as teorias
Portugal, particularmente
a revo-
darwiniana.
Em em
da influência
Portugal a revolução industrial tardou a penetrar, fazendo-o
minguadas
infiltrações, pelo que o País não sofreu as transforma-
ções de fundo que essa remodelação da sociedade provocou noutros lugares. Por isso não surpreenderá que o darwinismo científico (não a sua vertente vulgar ou deformada) mais não tenha sido do que mera curiosidade, e apenas episodicamente divulgado. Nem existia clima intelectual e económico para o compreender e assimilar, nem a nossa sociedade marasmática precisava dele ou simpatizava com ele. A revolução darwiniana foi, como é sabido, um factor de extrema
importância para a edificação da biologia moderna e para a construção de uma
nova
concepção
do homem
e da sua posição
no mundo.
Essa
revolução é, em grande parte, o reflexo da profunda transformação, em marcha,
da sociedade,
relações económicas
que
varreu
e de modos
pensar, outros hábitos e valores,
velhos
conceitos,
de produção, etc. Toda
velhos
sistemas
de
modos
de
criou novos
a estrutura
moral
do Oci-
dente foi abalada; a teologia entrou em crise profunda, e o abalo foi tão violento que ainda não se recompôs do choque sofrido !*. Charles Darwin teve o enorme mérito de nos dar a visão de uma natureza viva
em mudança, e sobretudo de lhe conferir rigor científico e a comprovação lógica e experimental, suportada por uma imponente massa de documentos. Ora tendo ficado o Portugal do século xix como que num mundo à parte do que se passava na Europa em matéria de industrialização, ciência e empreendimento burguês, a influência do darwinismo, da sua imagem do mundo, não podia, isolada dessa metamorfose social, modificar em Portugal a vida intelectual, a mentalidade das élites, o
ensino, a cultura e a Universidade, num país onde poderosas forças conservadoras e reaccionárias se opunham a todas as ideias de mudança. Tocou
certas
camadas,
certos
aspectos,
mas
sempre
em
escala
minima,
superficial, com alguma cultura importada e imitação de figurinos estrangeiros, em particular franceses, ainda que houvesse, é certo, alguns homens inovadores, com imaginação e inteligência, que todavia clamaram num deserto de indiferenças. a
No domínio da cultura, da arte e da Universidade predominava influência francesa. Ora, pelo menos até à II Guerra Mundial, a
França nunca foi receptiva ao darwinismo científico, e este facto deve * Publicado,
(IN-CM),
com
o mesmo
título
e com
n.º 7, 1985. 268
algumas
alterações,
na
revista
Prelo
BIOLOGIA
ter concorrido,
para
também,
E
SOCIEDADE —I
pela
indiferença
a generalizada
teoria
da evolução, que sempre existiu entre nós, e para criar uma cómoda
impermeabilidade na nossa cultura e nas nossas universidades em rela-
ção a ela.
a) Algumas
influências. A Universidade
Em Portugal, os sectores conservadores nunca tiveram necessidade
de combater de forma directa e pública a influência do transformismo darwiniano pela simples razão de que a doutrina da evolução nunca ganhou relevo nas nossas escolas secundárias ou superiores. Os nossos meios científicos pouco ou nada se interessavam por ele. É certo porém que teve uma influência incontestável nos meios histórico-literários
e políticos portugueses depois de 1865 2. O evolucionismo de Herbert
Spencer e o monismo de Ernst Haeckel, arauto apaixonado do darwi-
nismo
influenciaram
Alemanha,
na
poetas,
escritores,
ensaístas,
poli-
ticos, de entre os quais há que destacar Antero. As gerações do último deste século assimilam
quartel do século XIX e dos começos
o evolu-
cionismo spenceriano à mistura com um darwinismo um tanto confuso e deturpado, debilmente científico, mas de ampla repercussão em certos círculos
da
burguesia
vinham
de
fora,
instruída.
relativas
naturais promotoras
Novas
progresso,
a origens,
de permanente
questões,
mudança,
novas
perspectivas,
de causas
à acção
em oposição à tradição
ideológica e religiosa, mas tudo isto amalgamado num darwinismo mal definido ou falso. Com a obra de Darwin surgiu uma nova imagem da realidade e do homem, que influenciou a literatura, a filosofia, a psicologia, a sociologia. O darwinismo inseriu-se nas correntes positivistas e materialistas da segunda metade do século XIX e começo deste século; corren-
tes que de certa maneira eram apoiadas pela doutrina evolucionista 'º.
Mas o evolucionismo cultivado pelos positivistas era agnóstico ou ateu e sobretudo anticatólico, e a reacção logo surgiu, acabando-se num compromisso ideológico católico, numa conciliação da religião com a evolução, que é a própria negação do darwinismo. Quer dizer, aceitou-se «o transformismo
desde
que
reconheça
a existência de Deus,
dado
na
Igreja haver lugar para um monismo espiritualista segundo o qual as
espécies actuais são o resultado de uma evolução. Esta doutrina é, alias,
a de Pio X na Encíclica Pascendi, como é a de Pio XII, na Encíclica
Humani sistema
Generis, ainda que o evolucionismo não seja considerado um irrefutável,
nem
mesmo
no
campo
das
ciências
naturais» BR,
Este «evolucionismo teísta» nem é científico e muito menos darwinista. A posição teológica serviu de modelo para corrigir o darwinismo nas 269
GERMANO
escolas,
vetirarlho
o carácicr
dito radical da biologia, pesam
DA
FONSECA
materialista,
O
não
podia
passar
transformismo
fazendo-se
Desta filosofia resultaram
sobre a nossa cultura, O problema
À teologia:
SAGARRÃO
para
científico
da
com
ela o descrés
prejuízos que ainda
vida, da criação,
pertencia
a ciência. entrou
timidamente
versidades o por lá ficou minguado e esquecido,
nas
Mesmo
nossas
uni.
mais tarde, dos
anos 30 aos anos 60, em que a biologia evolutiva deu os seus grandes passos, que a fizeram passar à sua forma moderna, durante esse longo intervalo nada aconteceu entre nós, Og cursos universitários eram pra
ticamente
mudos
sobre o evolucionismo
moderno.
E porque a biologia evolutiva nunca teve o desenvolvimento que devia ter nas nossas universidades, em parte por isso nunca pôde fazer-se com ela a inseminação da nossa maneira de pensar, baseada numa cultura literária. E uma universidade impenetrável à revolução científica iniciada pelo darwinismo teve consequências atrofiantes noutros níveis; e a filosofia, a cultura, o ensino, a divulgação científica, ressentem-se fortemente da ausência desse movimento fecundante. A nossa
cultura e criatividade têm sido predominantemente de natureza histórico-literária, com uma débil investigação científica na área das ciências exactas e experimentais. Por isso um humanismo científico dificilmente poderá desenvolver-se entre nós de forma fecunda e equilibrada en-
quanto nos debatermos com os crónicos obstáculos que têm obstado à instauração de um espírito científico activo, mormente
no que respeita
à investigação e ao ensino na área das ciências naturais, em particular da biologia, cujas vicissitudes e atrasos melhor conhecemos. Nos últimos anos têm-se verificado certos sinais animadores, parecendo existir um arranque
não
só
a nível
da
administração
pública
como
nas
escolas
superiores, e com altos e baixos no ensino secundário. Concedem-se mais meios, abrem-se mais oportunidades, mas nem uns nem outras produzirão efeitos significativos se a evolução da própria sociedade não favorecer
e estimular
essas
vontades
de
renovação.
Sofremos
ainda
o
peso de um passado em que o reconhecimento do valor e necessidade da investigação científica não passava de boas intenções, de palavras. As nossas universidades não desenvolveram nem o clima, nem as estruturas, nem os meios para impulsionar com vigor a criatividade e lançar com largueza as sementes da mentalidade científica. Não surpreenderá, assim, que entre nós a biologia jamais tenha recebido o impulso fecundo
do
movimento
de
pensamento
que
aparentemente
nasceu
com a obra de Darwin, mas que na realidade devemos inserir numa evolução cultural mais ampla desenvolvida nos séculos xviI-XVIII. A tra« dição da indiferença ainda é entre nós poderosa. E uma biologia evolus tiva, como factor renovador da cultura, continua ausente. Estou bem consciente de que existem causas de natureza mais profunda na origem do nosso atraso científico, com os inevitáveis 270
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — IT
reflexos no domínio cultural, entre outros. Essas causas devem, talvez, procurar-se nas características peculiares da nossa história, nas condições do nosso colonialismo, tipo paternalista-parasitário, no modo como
se processou o desenvolvimento
das nossas estruturas socioeconómicas
e nas resultantes da nossa posição geográfica, em especial do isolamento
daí resultante relativamente ao espaço europeu. No século xIX, a burguesia impôs a sua civilização, a sua ciência, as suas indústrias, as suas conquistas, mas quase que não em Portugal, onde uma verdadeira sociedade burguesa nunca teria existido, porque se conseguiu
nunca
fazer entrar neste país a revolução industrial, fora
alguns surtos sem contínuo crescimento e expansão 8, E sem esquecer outros aspectos retardadores, nomeadamente as perseguições da Igreja, sempre diligente e implacável. Por outro lado, o estabelecimento da Companhia de Jesus em Portugal marcou, também, de maneira inde-
lével, a cultura e a mentalidade dos Portugueses ?. O atraso científico
resulta, assim, de múltiplas causas, mas em qualquer caso deve estar relacionado
com
a nossa
crónica
dilação
da industrialização
do País,
não podendo haver ciência de bom nível num país onde a revolução
industrial ficou gorada. Ainda hoje se fazem esforços para fazer o arrane necessário à europeização
do País e para sacudir os pesados lastros
herdados da antiga sociedade portuguesa. À apregoada falta natural de vocação do Português para a especulação teórica e para a investigação científica é uma maneira cómoda de eliminar o problema e de nos resignarmos ao atraso. Atribuir culpas ao que está dentro de nós foi sempre mais cómodo e conveniente do que ver as causas dos males nas circunstâncias sociais e sobretudo em actuar para removê-las. A inabilidade poderá existir, o que ela não será é uma fatalidade biológica. Se é ponto assente que o darwinismo vulgar teve uma certa influência nos meios literários portugueses depois de 1865, a verdade é que essa
mesmo
influência
foi débil, não foi aos fundos
da sociedade,
não
teve o poder de revolucionar a mentalidade do País. Daqui resultou que ficámos impossibilitados de com ele construir uma cultura moderna e uma escola que acompanhasse a revolução científica já em marcha há muito por toda a Europa e Estados Unidos da América do Norte
no final do século xix. Esta situação havia necessariamente de reflectir-se no nível do nosso ensino, sempre
anémico ou arcaico, indiferente
ou falseado, no que respeita à biologia, e do mesmo modo, ou talvez mais acentuadamente, à própria criação científica que o transformismo praticamente em nada influenciou. Fora um certo diletantismo ou a curiosidade intelectual ocasional de um Arruda Carlos
Furtado ?, de um Albino Giraldes ?! e mais tarde de um
França 2, Mendes
Correia ? e poucos
mais, o darwinismo
cien-
tífico foi regularmente considerado como algo de incerto e distante, em
que
não
valia a pena
pensar.
Sobretudo 271
a investigação científica z00-
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
mente o darwinismo; não houve, nem há, aversão profunda a ele. O que me parece existir é uma enorme indiferença, como que um alheamento
a A
gica, nunca se tomou a sério o facto de que nada em biologia faz sentido a não ser à luz da história evolutiva, de uma problemática de mudança e de adaptação. Nunca foi possível criar cursos regulares sobre a evolução dos seres organizados, institucionalizar com profundidade e continuidade o ensino da biologia evolutiva e, sobretudo, criar uma escola de pesquisa científica onde a problemática evolutiva estivesse entranhada nas matérias abordadas, em cada questão posta, onde cada tópico, por diminuto que seja, na aparência, tem uma história a desmontar e um significado ou causa a descobrir. Entre nós não se rejeita activa-
RR
lógica e botânica ficou alheia a ele, não se penetrou dele. Em Portugal nunca se deu importância à realidade fundamental da evolução bioló-
de quem não compreende o seu significado, ou o pressente como algo de inútil ou de incómodo que é útil afastar. Daqui proviria a interpretação em regra distorcida, que regularmente se faz entre nós do transformismo científico, nomeadamente das suas implicações educacionais e sociais. E assim se compreende também, a meu ver, que os organismos
e os fenómenos da vida sejam com demasiada frequência encarados, no ensino
e na
investigação,
como
entidades
separadas
lhe deu origem, ou seja, fora do seu encadeamento
e a investigação
ainda não se libertaram
da
realidade
que
histórico. O ensino
inteiramente
desta
óptica
arcaica.
A biologia é uma ciência de natureza muito peculiar que a diferencia profundamente das outras ciências exactas, em especial das físicas
e químicas.
Contrariamente
ao
que
pensam
muitos
importantes características da biologia, da qual resultam tantas das suas
die
ciências
autores de compêndios e divulgadores de ciência, a biologia não é quimica, nem física (nem matemática) dos seres vivos. Uma das mais diferenças, que a opõem à física e à química, consiste na circunstância de não haver dois indivíduos iguais, duas populações ou duas espécies iguais, dois ecossistemas idênticos. A individualidade impera nos sistemas biológicos. Esta variabilidade enorme e universal dos sistemas vivos
afasta a biologia das ciências físicas, onde os objectos e os fenómenos são (sob idênticas condições) invariáveis, são tipos invariantes, e não, como na biologia, indivíduos, cada um com diferentes características
parável à evolução cósmica. Outra característica que distingue a biolo-
"eim a
gia
Cad
(v. Simpson, 1969 a). Daqui resulta que a evolução biológica não é comdas ciências físicas respeita
à muito
maior
complexidade
dos seres
vivos relativamente aos objectos de que se ocupa o físico ou o químico, à maneira
como se dipõem os materiais que os compõem
(organização)
e ao carácter eminentemente histórico dos seres vivos, em oposição à natureza em geral não histórica (ou menos histórica) das ciências 272
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —I
físicas e químicas. Outros fenómenos são exclusivamente biológicos, tais como
a
hereditariedade,
a
ontogenia,
a selecção
natural,
a
adapta-
ção, etc., os quais não têm equivalentes no mundo dos objectos e processos que o físico ou o químico estuda, nem podem ser exclusivamente explicados no âmbito das disciplinas que cultivam.
b)
A
tradição
liceal
Durante
longos
anos, nos liceus, a teoria da evolução esteve redu-
zida, no essencial, a um pobre apêndice desactualizado e medíocre, que finalizava
um
por
«transformismo
Mas
teista».
hoje
o evolucionismo
científico não tem muito melhor posição no ensino secundário, anão enxertado num programa sem nexo, mal articulado e amiúde mal concebido.
Não
é legítimo
afirmar,
com
efeito,
que
após
o 25
de Abril
o ensino da biologia tenha progredido substancialmente. A difícil pedagogia desta ciência, a sua inteligente articulação com as outras ciências, em especial as ciências humanas, está por fazer. À situação é menos
fechada, abrem-se, talvez, algumas boas perspectivas, mas a confusão reinante a nível pedagógico impede qualquer melhoria significativa da educação biológica. Por outro lado, persiste a tradição de que as ciências
exactas e experimentais, e em especial a biologia, não são um elemento
fundamental da cultura do homem moderno, de modo que dessas ciências apenas se ministram algumas noções consideradas indispensáveis a certos cursos e carreiras relacionadas profissionalmente com essas ciên-
cias. Resulta daí que alguma formação educativa que possa resultar do
ensino actual da biologia apenas aproveitará a uma fracção mínima da nossa juventude, devido à estrutura actual dos planos de estudo, e à posição limitada e secundária que neles ocupa a biologia. Em termos práticos, portanto, pode afirmar-se que a biologia não influencia a cultura do Português.
Esta situação provém anos do regime
de uma longa tradição. Durante os longos
anterior ao 25 de Abril nunca houve dificuldade em
impor uma zoologia e botânicas descritivas e classificatórias e em afastar do ensino
o darwinismo,
reduzido como estava a uma
breve caricatura
a fechar o programa, rematado pelo «transformismo teíista» a que há pouco aludi. Era fácil fabricar e impor programas e métodos de ensino para se fazer o silêncio ou alimentar a indiferença acerca da evolução
e do problema da origem e evolução do homem. A sua tarefa foi facilitada também
sempre
com o facto de o ensino das ciências naturais ser desde
muito
praticamente
deficiente
e a referência
ao evolucionismo
científico
nula, na boa tradição francesa das descrições anatómicas
e do classificatorismo, que importámos e absorvemos (aliás mal) dos Perrier e outros consagrados da época. Os programas de biologia acomoBibl. Univ.
49 — 18
273
iai
tífico moderno, pelas quais não foi influenciado, o que não surpreende, visto que a Universidade também estava manietada pelo poder político, apesar de nela haver vários professores que teimosamente lutavam por modernizar a ciência e a cultura do seu país. Durante muitos anos fixaram-se regras para o ensino do que designaram pomposamente por «filosofia biológica» nos liceus, regras que limitavam a acção do professor, ao qual não era consentido fazer apreciações sobre a matéria que pudessem considerar-se «como manifestações
da sua opinião» 2. A «filosofia biológica» era o «evolucionismo científico», que, com essa designação vaga, passava por coisa muito incerta, a expor sem discussão ou profundidade, «com muita cautela e sem exageros». O poder político pretendia assim claramente afastar do conhecimento a parte fundamental da biologia, aquilo que dá sentido, profundidade e unidade a esta ciência. Outros aspectos eram igualmente omitidos. À reprodução dos organismos, por exemplo,
que cons-
tituía um tema particularmente sensível. Não a das plantas ou a dos protozoários, que era desenvolvida, e até com pormenores absolutamente desnecessários. O silêncio incidia inteiramente, ou quase, sobre a reprodução dos vertebrados superiores e do homem, sobre a esfera sexual, a gravidez humana, o desenvolvimento do homem, etc. Em compensação, o aluno aprendia pormenores incríveis sobre o sexo e a reprodução do pinheiro ou da açucena. À reprodução da rã, com a fecundação externa e o carácter mais distante da sua reprodução, ainda era tolerada, mas
ir mais longe, na direcção do humano,
propósito da dissecação de uma
não podia
ave ou de um
admitir-se.
Só a
mamífero 5 o professor
aludia a certos pontos da reprodução, mas um tal ensino era necessariamente muito superficial, desconexo e promotor de confusão. Obviamente, comparar aspectos da reprodução nos animais e no homem faria surgir imediatamente da
nossa
espécie,
além,
próprio conhecimento, homem. Para
o final
questões incómodas
dos
claro
mesmo anos
60
está,
de
sobre a origem se
considerar
elementaríssimo, e nos
começos
e a evolução
inconveniente
o
da biologia sexual do dos
anos
70,
a situação
parecia modificar-se no sentido de poder instituir-se um ensino menos arcaico, com novos métodos e novos tópicos, mas as intenções e os esfor-
ços despendidos por alguns professores ficaram aquém das esperanças inicialmente postas na tarefa de renovação. Algo ficou, mas logo se perdeu na balbúrdia das programações e reprogramações, e com a persistente presença dos obstáculos crónicos. Houve professores (e há) que reagem e se esforçam por atrair a atenção dos alunos para o darwi-
nismo científico, mas estes casos isolados não resolvem as graves deficiências
existentes
na
nossa
metodologia 274
da biologia.
Só
de
há
poucos
SE
daram-se na perfeição ao nosso ambiente cultural, literário e clerical, completamente estranho as correntes renovadoras do pensamento cien-
ia
SACARRÃO
Iaias
FONSECA
siSR ro
DA
sa
GERMANO
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —I
anos para cá é que a sociedade portuguesa parece estar a libertar-se da visão
antiga,
que
suportou
até
demasiadamente
tarde.
Consequência,
talvez, do nosso atraso industrial, de um colonialismo que entorpecia a metrópole, e de estruturas arcaicas da sociedade. Temos de caminhar para a grande reforma de todo o ensino, sem perder mais tempo em ensaiar variantes de disposições antiquadas, que mudam as aparências
sem
tocar o fundo.
c) As origens da classificatória
zoologia
em
Portugal
e a sua persistente
índole
Podemos estabelecer três fases no que respeita às origens dos estudos zoológicos em Portugal %. A primeira é a dos missionários e cronistas, intimamente ligada ao período das Descobertas e às conquistas e consolidação
política
dos territórios ultramarinos
(séculos xv e xvi).
A segunda fase surge mais tarde, no último quartel do século xvrII,
em parte como consequência da reforma pombalina da Universidade e da fundação da Academia Real das Ciências. Para a zoologia, esta fase foi pobre e de curta duração. Mas há o exemplo excepcional do natu-
ralista-explorador Alexandre Rodrigues Ferreira, enviado para o Brasil, de onde remeteu colecções para o Gabinete Real da Ajuda, e também a fundação de um Gabinete de História Natural na Universidade de Coimbra,
com
a criação e oficialização dos estudos de História Natural
dos três reinos, para cuja direcção foi chamado Domingos Vandelli, da Universidade de Pádua, que a exerceu até à data da sua morte, em
1816. Mas o ensino na Universidade de Coimbra não produziu os frutos
esperados. E a maior parte do labor de Rodrigues Ferreira ficou perdida pelo descaminho
e destruição
das colecções enviadas. Para a botânica
é justo lembrar os nomes do abade José Correia da Serra e de Félix de Avelar Brotero, que tiveram acção relevante. A terceira fase começou
a meio do século XIX com
a entrada do
Dr. Barbosa du Bocage para a jovem Escola Politécnica de Lisboa. Sob o seu enérgico impulso a zoologia descritiva-classificatória começa a desenvolver-se como disciplina científica, com trabalhos originais de mérito da sua autoria e posteriormente, também, de colaboradores seus, funda o Museu Zoológico, e tudo isto com o reconhecimento dos meios científicos estrangeiros pela sua notável obra. Em breve, para o final do século, também em Coimbra e no Porto a zoologia classificatória entraria em fase de desenvolvimento, respectivamente com Paulino de Oliveira e Augusto Nobre. Mas a origem e desenvolvimento da zoologia portuguesa no século xIXx processaram-se à margem do darwinismo científico. Os interesses convergiram para a inventariação faunística, para a identificação 275
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
das espécies, para as diagnoses, as listas de nomes, as colecções exóticas,
Por um
lado, era a continuação
se cumpriu
da tradição
do século
xviII, que
entre nós na altura própria, e, por outro
não
lado, era uma
consequência do colonialismo do século xIx. É certo que a classificação constituía ao tempo uma actividade científica de enorme prestígio e de indiscutível
valor,
e grandes
zoólogos
do
século
XIX
exerciam-na
com
entusiasmo. Mas o que caracterizou a zoologia portuguesa é que, nela, o nomear,
si mesmos,
o classificar, o inventariar, o etiquetar,
constituíam
fins em
ao invés do que passou a acontecer após a publicação de
A Origem das Espécies, de Charles Darwin. Identificar
e classificar levantava
problemas
de
origens,
de afini-
dades, de filiação dos organismos. Mas não cá. Por outro lado, a classificação passou a reflectir problemáticas nascidas noutras zoologia, que já estavam florescentes na Europa culta, e que
áreas da entre nós
não existiam ou mal se esboçavam. Na realidade, os começos da zoologia
portuguesa ocorreram num período de profunda revolução no pensamento científico, cultural e sociológico europeu. O Museu de Zoologia da Escola Politécnica de Lisboa foi fundado por Bocage no mesmo ano em que foi publicada 4 Origem das Espécies. Mas, enquanto lá fora o
transformismo
fez
avançar
espectacularmente
múltiplas disciplinas e frentes, dando
sidade
pelas
Portugal
extraordinárias
a ausência
de
ao investigador uma
perspectivas
tradição
a biologia
que
científica,
no
de
suas
febril curio-
lhe foram seio
nas
abertas, em
uma
sociedade
arcaica e colonialista, fez que fossem a inventariação e a classificação os objectivos praticamente exclusivos dos nossos esforços, que incidiram particularmente sobre a fauna do ultramar, enquanto outros aspectos
essenciais das ciências naturais eram totalmente negligenciados. Disciplinas da biologia que no século xIX estavam em pleno desenvolvimento lá fora não surgiram em Portugal. Para o final do século xIX, e até quase
meio do século xx, certas áreas da biologia
a citologia, a histologia, a embriologia)
certos
médicos
investigadores.
Lembro,
foram
por
(como
a fisiologia,
introduzidas
exemplo,
por via de
Miguel
Bom-
barda, Mark Athias, Augusto Celestino da Costa. Mas foram os zoólogos
que se sentiram atraídos por essas novas disciplinas. nismo científico foi quase inexistente. No século passado não teve qualquer influência significativa na Universidade de Coimbra e nos meios onde se cultivavam Politécnica
de Lisboa
as ciências naturais, assim
e na Academia
Politécnica
do
como
na Escola
Porto,
que
acid
Na Universidade e na investigação científica, a influência do darwi-
mais
tarde, em 1911, foram transformadas em Faculdades de Ciências com a reforma do ensino empreendida pela República, sem dúvida a mais
fecunda efectuada em Portugal. Na Escola Politécnica de Lisboa, no quartel do século passado,
ministrava-se
o ensino
das ciências
naturais e nela se localizava, como anexo, o Museu 276
Zoológico.
pata
id
último
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —
A figura dominante da zoologia portuguesa no século x1X foi a do
Prof. José Vicente Barbosa du Bocage (1823-1907), fundador do Museu de Zoologia da Escola Politécnica, que mais tarde passou a ter o seu nome. Era primo do célebre poeta do mesmo nome. Com enorme pro-
jecção científica dentro e fora do País, pelas suas mãos passou uma das mais variadas e ricas colecções de fauna africana do século, que estudou
com inexcedível competência. Os seus trabalhos de identificação e clas-
sificação são, alguns deles, hoje clássicos. Publicou cento e setenta e sete
trabalhos científicos, o primeiro, datado de 1857, sobre uma colecção de
de conchas das ilhas da Madeira e Porto Santo, e o último, datado de sobre
1901,
as
aves
arquipélago
do
de
Cabo
Verde.
Ora, apesar de a sua vida de intenso labor científico ter decorrido
no período mais fecundo e agitado do darwinismo, o grande naturalista português passou ao lado do darwinismo, que não parece tê-lo impressionado.
Nem
reflectiram.
o combateu,
Barbosa
nem
du Bocage
o defendeu,
nem
os seus
foi contemporâneo
trabalhos
de Darwin,
o
e em
1859 (ano da publicação de 4 Origem das Espécies) já era, há oito anos, lente proprietário da 8.º cadeira (Zoologia) da Escola Politécnica, correspondendo-se com as grandes figuras da zoologia do seu tempo. Mas
não com
espólio
Darwin,
arquivado
no
segundo parece, conforme Museu
(incompleto,
sem
se depreende dúvida)
e do
do seu que
se
conhece acerca dos correspondentes do grande naturalista inglês ?. Barbosa du Bocage viveu e trabalhou durante o meio século que viu o triunfo do darwinismo e a profunda revolução científica e cultural a que deu origem. Sem dúvida que o naturalista português conhecia a obra de Darwin. Apesar de o ensino da zoologia ter um conteúdo bastante pobre e limitado, é necessário não esquecer que os meios postos à disposição da Escola e do Museu eram muito reduzidos, tal como os quadros docentes e técnicos. Era na 8.º cadeira que se concentrava todo o ensino da zoologia. O programa era constituído por duas partes: «Anatomia» e «Fisiologia Comparativa», estudada fundamentalmente nos mamíferos e centrada no homem, e «Zoologia», que consistia na descrição e classificação dos animais, com predomínio das espécies da fauna portuguesa e daquelas que ofereciam interesse económico (aclimatação das espécies lhões, etc.). Ao todo, grama consagra, como
Do
pouco
especulação
no País, criação artificial de ostras e mexiumas oitenta lições. Em 1872, todavia, o proremate, uma pequena parte à teoria de Darwin.
interesse
teórica,
de Bocage
diz-nos
discípulos e colaboradores
alguma
pelas teorias científicas, ou pela coisa
um
dos seus
mais
íntimos
que foi Balthazar Osório, naturalista e direc-
tor do Museu da Politécnica e professor de Zoologia da mesma Escola. Osório aponta alguns factos que levam a concluir que Bocage não se interessaria em interpretar factos da zoogeografia, ou de relações entre espécies ou variedades da mesma espécie (por comparação de pormenoaim
GERMANO
res da morfologia)
DA
FPONSEGA
SAGARRÃO
no quadro do transformismo,
À problemática
darwi-
viana não parecia atraí-lo *, À natureza dos seus trabalhos poderia inei-
tá-lo a isso, trabalhos que eram substancialmente de zoologia descritiva, fundamentalmente de identificação e classificação, mas em que a pro-
veniência dos exemplares permitia marcar a distribuição geográfica o poderia levantar, naturalmente, problemas sobre o seu determinismo,
Foi um dos seus colaboradores, o jovem açoriano e naturalista do Museu da Politécnica, Francisco de Arruda Furtado, o único zoólogo, talvez, que ainda em vida de Darwin, manifestou um interesse maior pelo
darwinismo, trocando correspondência muito interessante com Darwin, respeitante, principalmente, a problemas sobre a origem da fauna e da flora do seu arquipélago. Darwin deu-lhe conselhos, propôs-lhe um plano de trabalho, do qual, porém, nada resultou, provavelmente devido a falta de meio de trabalho ou questões de saúde do jovem naturalista português, precocemente falecido. (V. meu 1986 a). d)
Colonialismo e classificação À
progressiva
expansão
económica
da
Europa,
em
resultado
da
ascensão da burguesia como nova classe, conduziu à intensificação dos estudos de história natural, à exploração dos recursos naturais em terras ricas e distantes, com propósitos de dominação imperialista, às grandes
viagens e à nomeação e ordenação dessas grandes massas de materiais colhidos e trazidos para a Europa, organizados em colecções de estudo. O colonialismo foi, por toda a parte, o grande impulsionador da classificação zoológica e botânica, que no século xvilt era a mais importante actividade científica devido à necessidade de inventariar e descrever a enorme quantidade de objectos naturais que se iam descobrindo e acumulando. No mesmo século, o animal faz a sua entrada na civilização (como disse F. Dagognet). Os séculos xvII e XvIII são os séculos
dos
viajantes.
A
consolidação
das
novas
terras
descobertas,
as
travessias dos mares, o incremento comercial que daí decorreu, abriu um universo de coisas nunca vistas. À grande massa de materiais trazi-
dos para a Europa obrigava à sua sistematização, à elaboração de coleeções, etc. Mas como as plantas desempenhavam um papel mais relevante na economia e na vida social, a classificação vegetal foi mais elaborada,
mais
importante e mais precoce, Lineu inventou um método prático para impor ordem e comodi-
dade em
tão vastos conjuntos
homens
cada
vez
nomes,
apor
uma
mais
de uma
abundante
etiqueta,
tarefa
natureza
viva que
e diversa, imensa
se revelava
Classificar de
rigor
e
implica
aos
dar
racionalidade
que consumiu as energias de quase todos os naturalistas dos séculos XVII, xvinI e x1x. À grande tarefa parecia estar terminada no século xix, mas 278
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —1
com a obra de Darwin surgem novos conceitos e novas interpretações da sociedade e da natureza, e o problema que logo apareceu foi o de como harmonizar a concepção de a classificação exprimir uma ordem natural fixa, com as novas ideias de uma natureza viva em mudança permanente
onde
as espécies
não
são entidades
imutáveis.
Conciliar
o
que fixa e segmenta a realidade, a cristaliza em sistemas formais, com as novas ideias de impermanência e de transmutação das espécies. Como congraçar
o que pertence
tradição ainda
não está solucionada,
(a filogenia)
a história evolutiva
A con-
a sistemas conceptuais antagónicos? visto que um
sistema que traduza
é provavelmente utópico. É um pro-
jecto que talvez pertença ao domínio do imaginário porque as relações que os organismos contraem entre si no espaço e no tempo são de tal modo complexas que uma classificação não poderá nunca traduzir a história evolutiva de um grupo. Foi esta ruptura introduzida pelo darwinismo que tem constituído um dos grandes quebra-cabeças dos taxonomistas, que pretendem encontrar saída para a contradição. Isto porque a classificação biológica nasceu e desenvolveu-se num mundo e ara um mundo considerado como eterno e imutável. Antes da publi-
cação de 4 Origem a classificação pretendia traduzir o Plano da Cria-
ção, mas depois deste célebre livro de Darwin passou a querer-se que passasse a exprimir a história evolutiva. A criação de museus de história natural, as expedições geográficas, o acúmulo de colecções, são consequências da expansão europeia e da revolução industrial, e em Portugal alguma coisa se passou de similar, ainda que em muito pequena escala, mas com maior dependência das colónias. O Museu Zoológico da Politécnica foi, em boa parte, um reflexo do nosso colonialismo africano. Fizeram-se algumas expedições geográficas em África (Serpa Pinto, Capelo e Ivens, etc.) e a metrópole recebeu colecções de plantas e de animais, algumas das quais foram importantes para a época, nomeadamente a que Anchieta enviou de
África para Barbosa du Bocage.
Em Portugal, a botânica e a zoologia originaram-se e desenvolveram-se na estreita dependência da ocupação colonial e das crises políticas resultantes
da
cobiça
alheia.
Alheados
das correntes
científicas
euro-
peias e das consequências enormes do darwinismo científico, era para O ultramar que se volvia a atenção dos raros cultores das ciências naturais. E
por
não
exigir
técnicas,
científica complicada,
nem
especiais,
nem
novas,
nem
formação
a classificação foi de imediato a actividade pra-
ticamente exclusiva dos naturalistas portugueses, com intuitos meramente inventariadores, de elaboração de listas das espécies existentes em certas regiões, que com Bocage foram excelentemente identificadas e relacionadas com a geografia. Este labor começou tarde entre nós, pois só veio a verificar-se, sobretudo, a partir do começo da segunda metade do século XIX. 279
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
Às poucas expedições, os poucos exploradores e naturalistas viajantes que tivemos, a classificação dos produtos naturais na metrópole e o seu depósito nos museus e mais tarde, já neste século, noutras instituições, os trabalhos etnográficos, antropológicos, etc., tudo isso obede-
ceu, em regra, a imperativos de ordem política e económica resultantes da exploração colonial, de marcar presença e de justificá-la com a aparência de ocupação científica, e que teve um
dos seus pontos altos com
Bocage. Esta política de incrementar o estudo dos produtos naturais e das populações nativas teve novo arranque nos anos 40 neste século (após longos decénios de esmorecimento) com a reorganização da Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais (criada em 1936). E com a criação, mais tarde, de universidades e de institutos de investi-
gação em Angola e Moçambique, a botânica e a zoologia receberam novo impulso para prosseguirem na sua tarefa tradicional de identificação e inventariação
classificatória dos recursos naturais
das colónias. E a
classificação não deixaria, desde o início, de marcar também profundamente, a actividade das mesmas disciplinas na metrópole, em cujas universidades e escolas a biologia dificilmente ensaiava outros caminhos. Entre nós, a tradição inventariadora
e classificadora processou-se:
no século xIX à margem das grandes correntes de ideias que percorriam a Europa. À botânica e a zoologia portuguesas ficaram quase permanen-
temente
alheias à grande
revolução
darwiniana
e ao extraordinário
desenvolvimento científico que se verificou na Europa e nos Estados Unidos da América do Norte a partir da publicação de 4 Origem das Espécies. É certo que antes deste acontecimento já havia enorme progresso científico no âmbito da biologia, mas que também não teve qual-
quer influência significativa entre nós. À botânica e a zoologia limitaram-se entre nós a ser disciplinas meramente inventariadoras e classificadores, cultivadas por um reduzidíssimo número de naturalistas, e
mesmo neste aspecto a situação ainda hoje é muito deficiente. Classificar os organismos à luz do transformismo científico pode provocar questões interessantes, estimular hipóteses, mas
entre nós raramente
essa activi-
dade se traduziu em problemática darwiniana. Um pioneirismo permanente.
A
classificação
nasceu,
entre
nós,
do
colonialismo,
dele e quase só viveu para ele”. Atrasámo-nos.
Ficámos
dependeu
sobretudo
arquivistas. A classificação absorveu quase todas as energias dos poucos cultores de qualidade, mas ficou, em regra, estática e constituiu
a base
e a cúpula de todo o nosso sistema educacional e investigativo no liceu e na Universidade no sector das ciências naturais, em particular na botânica e na zoologia. O panorama
considerado darwinismo
profundas
actual da zoologia portuguesa
tem, a meu
ver, de ser
na perspectiva de um passado colonialista, indiferente ao científico, passado aliás de termo recente e cujas marcas
só o tempo
e a evolução 280
provavelmente
europeizante
da
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —1
sociedade portuguesa poderão, pouco a pouco, dissipar. É certo que se desenvolveram em
dúvida,
sem
ou acentuaram
novas linhas de investigação, e existem, proble-
certos sectores, pólos de interesse pela moderna
mática darwiniana, mas o ensino, a investigação biológica e a cultura portuguesa ainda permanecem praticamente estranhos à revolução aos
darwiniana,
seus
prolongamentos,
desvios
e superações,
revolução
que por toda a parte está muito longe ainda de ter terminado.
e)
da evolução
Pedagogia
Como
de história
e museus
natural em
Portugal
disse, com certa razão, Jean Brun, «nada é mais aristotélico
do que um museu de história natural». Uma natureza compartimentada, categorizada, hierarquizada, eis o grande artifício do museu de história natural. Do classificar e identificar resultaria o conhecimento. A realidade profunda das diferenças é negligenciada, dando a primazia à aparência, à forma. Mas há museus modernos que há muito ultrapasA nós faltaram-nos
estas limitações tradicionais.
saram
sempre museus
onde se fizesse o estudo e a pedagogia da evolução. À sua importância
como factor de cultura e de modernização da biologia seria obviamente enorme.
sempre como
Mas
a situação
precária: meros
abandonados
armazéns
dando algumas
dos museus
de história natural portugueses foi
pelos poderes públicos, permaneceram
de produtos
dos três reinos da natureza, guar-
raridades ou curiosidades, património agora extrema-
mente empobrecido em consequência do incêndio devastador de 18 de Março de 1978 que destruiu as secções zoológica (Museu Bocage) e minerológica do Museu Nacional de História Natural, anexo à Faculdade de Ciências de Lisboa. Estes museus mais não têm sido do que depósitos (defeituosos) de frascos (com exemplares), peles, esqueletos, e animais empalhados. Como centros de educação ficaram como que parados no tempo. Reacções a esta situação não receberam qualquer apoio dos sucessivos governos anteriores ao 25 de Abril. Mas a mudança de regime não parece ter modificado a situação. Enquanto os nossos museus de história natural não se penetrarem de uma perspectiva de mudança e não se orientarem nas suas reestruturações para exercerem uma cautelosa e criteriosa pedagogia da evolução (e da ecologia), certo será que não passarão de armazéns melhor ou pior organizados e arrumados. Evitem-se, porém, as improvisações e os atamancamentos, na pressa de apresentar mudança e novidades ?.
281
GERMANO
f)
As
comemorações
e a indiferença
do
DA
FONSECA
centenário
da
SACARRÃO
morte
de
Darwin,
em
portuguesa
1982,
A recente publicação de um guia das comemorações efectuadas por esse mundo fora é um eloquente documento sobre o actual interesse científico e social pelo darwinismo *!, Os autores desse trabalho dizem que os esforços colectivos exigem um planeamento igualmente colectivo, de modo que a dedicação demonstrada pela memória de Darwin reflecte o interesse da colectividade pela personalidade e pela obra do grande naturalista, que Ernst Mayr considera como o mais revolucionário dos cientistas que a história conheceu. A ausência de Portugal neste guia não surpreenderá: em 1982 nada de significativo foi realizado entre nós a assinalar a efeméride, o que é perfeitamente natural acontecer num país onde o darwinismo nunca
suscitou
um
real interesse
na
círculos
intelectuais
e científicos.
chegam
para criar um
movimento
E
comunidade,
os
em
empenhos
particular
nos
esporádicos
não
colectivo. É certo que países como a
Suíça e a Suécia não efectuaram, segundo parece, comemorações sobre Darwin, mas as causas deste facto não serão necessariamente as mesmas que as nossas. Aliás, entre nós, em 1958 e 1959, datas de dois centenários fundamentais darwinianos, também nada se passou. Em Dezembro
de 1981 fechei um artigo com o seguinte trecho:
«No próximo ano
(1982) passa o primeiro centenário da morte de C. D. Entre nós [...] irá suceder o que aconteceu em 1958 e 1959 (efemérides respeitan-
tes ao 1.º centenário do nascimento do darwinismo e da publicação da
Origem)?
alheios
Ficarão
as nossas
universidades,
os
nossos
meios
culturais,
ao acontecimento?» 2. De facto, ficaram!
O número de reuniões, conferências, simpósios, colóquios, publicações colectivas (em revistas, livros, etc.) e outras manifestações promovidas
em
1982
no
estrangeiro
é simplesmente
impressionante
pelo volume, pela qualidade, pela diversidade. Excluíram-se de referência os artigos isolados ou as publicações que, ainda que relativos ao darwinismo, não tivessem objectivos comemorativos. Um facto impor-
tante é o de as comemorações se terem realizado em países de diferentes regimes
e ideologias, como
os Estados
Unidos
da América
e a União
Soviética, a França e a República Popular da China e tantos outros. Entre as conclusões que os autores extraem da enorme série de actos comemorativos, realço as seguintes. Em primeiro lugar, é de salientar o carácter espontâneo das comemorações, o facto havido centros nacionais ou internacionais de coordenação
de não ter das activi-
dades comemorativas, excepto nalguns países socialistas. E foram várias centenas as conferências e os artigos publicados por especialistas em todo o mundo, o que dá uma boa perspectiva da maneira como se considera hoje o darwinismo
e a sua influência 282
na sociedade
actual.
Existe hoje,
BIOLOGIA como
escrevem
os
autores,
E
um
SOCIEDADE — 1
interesse
tão profundo
pela
pessoa
de
Darwin e pelo darwinismo que já está em moda falar-se a seu propósito
da existência de uma «indústria Darwin». A ela se dedicam activamente filósofos, historiadores, cientistas, políticos e sociólogos. Muitos dos mais importantes simpósios comemorativos de 1982 foram
organizados
por não-biologistas,
como
sucedeu, por exemplo,
em
Florença, na Itália 2. Aliás, a Itália foi o país onde se efectuaram mais simpósios e a maior quantidade de publicações alusivas ao centenário. Esta popularidade e entusiasmo que existe em Itália pelo darwinismo é, como
dizem
os
autores,
«extremamente
recente»,
provavelmente
nas-
cida nos últimos dez ou doze anos. Imediatamente a seguir à Itália vem a Espanha,
onde
o número
das
comemorações
em
1982
foi também
extraordinário e decerto inesperado. O interesse pelo darwinismo seria também, aí, igualmente recente. Outro facto que merece menção é o de as comemorações não dizerem apenas respeito ao darwinismo científico, mas igualmente (e por vezes com maior relevo) ao seu relacionamento com a política e a ideo-
logia. A simpatia pela doutrina tem raízes ideológicas profundas. Enquanto na generalidade dos países de língua inglesa (Reino Unido, Estados Unidos, etc.) o interesse vai mais, ou apenas, para o aspecto puramente científico do darwinismo, na maior parte dos países de outras
línguas o interesse é duplo — científico e político. Discute-se e trabao seu
lha-se
aspecto
científico,
mas
faz-se,
o marxismo.
a discussão
também,
das
Isto não significa que seja
relações do darwinismo
com
legítima a aproximação,
e válidas as inferências filosóficas e políticas
dessa aliança intelectual. Esse é outro problema. O facto importante é que a ligação Darwin-Marx foi especialmente evidente em Espanha e Itália, onde os museus fizeram exposições comemorativas e as autoridades locais organizaram e promoveram conferências. Ambos os países se libertaram de muitos anos de ditadura fascista e as forças socialistas
passaram então a ter campo livre para agirem e se desenvolverem. Por exemplo em Itália, um importante patrocinador dos simpósios sobre Darwin
foi o Instituto
Gramsci, do nome
do fundador do PCI.
Para-
lelamente, em Espanha, foram também elementos da esquerda política que estiveram na origem das comemorações darwinianas. Foi o caso de Barcelona, sob administração socialista, Mas deve dizer-se que não houve qualquer combinação ou coordenação entre Italianos e Espanhóis para levar a efeito as comemorações, Em
França
e na Grécia verifica-se, também,
um
aumento
de inte-
resse pelo darwinismo científico e político, e os autores pensam que as causas devem ser similares às que provavelmente estão a actuar em Espanha
e Itália —ou
seja, que o darwinismo
é uma
teoria
da mu-
dança e como tal transmite uma mensagem de libertação e de progresso social, É bem
certo que se discute, desde que Darwin 283
publicou
a sua
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
polémica obra, se darwinismo e marxismo têm pontos de contacto, fundamentações recíprocas, analogias reais. Mas a realidade da aproximação é, em si mesma, um fenómeno interessante que merece atenção
e estudo. Para os autores do artigo a que me estou reportando e comentando,
o marxismo não basta para explicar o grande interesse pelo darwinismo que se verifica em Itália e Espanha. A explicação deve estar antes (para os autores) na sua libertação, não só do fascismo, que durante muitos anos coarctou duramente a liberdade política e cultural, como do domínio ideológico exercido pela igreja católica durante séculos. O centenário de Darwin em Espanha e Itália foi apropriado como um ponto simbólico de junção do materialismo, do liberalismo e do agnosticismo, dizem os autores do artigo. Para os intelectuais de esquerda, ser darwinista é admitir
que o mundo
se transforma,
bolo da possibilidade de mudança
e «o darwinismo
é o sím-
política». E na Grécia e na França,
com as suas políticas semelhantes às da Espanha e da Itália, com histórias
culturais
darwinismo
análogas
tem,
às destes
para os mesmos
países,
autores,
o interesse causas
crescente
similares. Nos
pelo países
comunistas de Leste, porém, se bem que Darwin seja considerado como «um herói oficial do materialismo dialéctico soviético», as celebrações foram, segundo os autores mencionados, relativamente tranquilas e limi-
tadas, comparativamente ao que se passou na Itália, Espanha e França. A conclusão geral dos autores é que o interesse pelo darwinismo nestes países seria devido à ascensão da esquerda, em especial do marxismo,
em
oposição
à histórica
dominação
ideológica
da
Igreja
e das
forças da direita. É esta uma das conclusões principais que os autores extraem das comemorações de 1982, mas nem todos os especialistas da filosofia do darwinismo pensam assim. Antes
de
terminar,
há
um
ponto,
porém,
que
me
suscita
um
comentário, e que parece refutar a tese dos autores referidos. É o caso
de Portugal. De certo modo, o nosso país está numa situação similar à dos outros países latinos europeus, em especial a Espanha e a Itália. Tal como aconteceu à Espanha, também Portugal suportou uma longa fase de ditadura, com pleno domínio da ideologia conservadora e católica. E todavia, depois do 25
de Abril,
a indiferença
pelo darwinismo
da parte de intelectuais, da escola, da classe culta, continua a ser, na prática, absoluta. Nem pelas suas implicações políticas, sociais, filosóficas, nem
como teoria científica, o darwinismo se fixa e se expande em
Portugal. Nem
como símbolo de mudança
à pesquisa científica, nada
política, nem como estímulo
A indiferença pelo darwinismo deve estar, provavelmente, relaciocom o nível de desenvolvimento cultural e científico. Nesta
perspectiva poderá entender-se que as culturas de Itália, Espanha e Portugal, ainda que nascidas de uma raiz comum, não tiveram decerto 284
BIOLOGIA
o mesmo além
E
SOCIEDADE —I
ritmo de desenvolvimento, tendo nós ficado muito para trás,
da intervenção
de outras causas internas e externas mais profun-
das e de diversa natureza, que marcaram a evolução própria da sociedade portuguesa até aos nossos dias. Às razões históricas da nossa indiferença pelo darwinismo parece-me constituir um problema interessante, merecedor de análise. Entretanto, o darwinismo científico está mais vivo (e polémico) do que nunca. Os seus prolongamentos filosóficos ou desvios ideológicos nunca foram tão vigorosos e discutidos. À moderna teoria da evolução biológica expansão
assenta solidamente no darwinismo, independentemente da por que está passando a teoria, e de novas perspectivas que
se abrem.
Na realidade, a explicação darwiniana generalizou-se e apro-
fundou-se
para
limites
nunca
atingidos antes e evolui ensaiando
novos
caminhos. Apesar do empenho de diversos biólogos portugueses, existem numerosos campos de investigação onde ainda não entrámos e outros onde apenas raros estudiosos aplicam o seu labor. Falta-nos uma sólida tradição científica em biologia evolutiva e um aumento substancial de competências e de meios de trabalho. Se a classificação e a problemática da identificação de subespécies, espécies, etc., são de facto de indiscutível importância (prática, mas não só), tal circunstância não deve permitir
que fiquemos alheios a outras áreas. E contudo, diga-se de passagem, mesmo no espaço da taxonomia, a que estamos tradicionalmente apegados, o progresso conseguido tem sido muito insuficiente, embora existam trabalhos publicados de muito mérito e investigadores de comprovado valor profissional. A zoologia é uma ciência que experimentou avanços espectaculares em múltiplos sectores do conhecimento biológico, mas nada nela tem sentido se não considerarmos os fenómenos numa dinâmica de ontogenia e de história, de mudança /«estabilidade», não falando de outros pontos fulcrais. Problemas há para os quais ainda se procuram respostas, como
o de saber reconhecer
as «reais afinidades evolutivas»
entre
os organismos, ou quais as relações autênticas entre adaptação e evolu-
ção, ou ainda qual a extensão e importância da selecção na natureza, ou o problema da «mente» do animal e do ser humano na sua relação com o mundo, ou a questão, ainda insolúvel, da causalidade ontogenética, ou a de fazer a síntese das duas dimensões, «visível» e «invisível»,
ou seja dos fenómenos aparentes à actividade normal dos sentidos com os
que
se
passam
a
nível
submicroscópico
e, sobretudo,
molecular.
E, também, a crítica do dogmatismo e do irracionalismo e politização da biologia, assim como do determinismo biológico, historicamente
associado à ideologia da burguesia (e seu cúmplice). A sociobiologia é o seu produto final.
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
Todos estes avanços, interrogações, problemas à espera de solução, e ideologias, são outros tantos pontos de convergência da zoologia moderna no seu caminhar para a edificação de uma nova filosofia do ser vivo. À revolução darwiniana continua a ser o motor deste movi-
mento, ainda que, certamente, dê lugar mais tarde a novas concepções e a novas teorias sobre a natureza viva. Mas para Portugal poder, de algum modo, contribuir para o progresso da moderna biologia evolutiva terá, entre outras condições, de abandonar a sua tradicional indiferença
pelo darwinismo científico *.
286
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —I
NOTAS
1 Jean-Louis Rodolphe Agassiz (1807-1873), geólogo e zoólogo suíço, naturalizado
norte-americano,
fixou-se nos Estados
Unidos
em
1846, onde
a sua influência
foi decisiva para o desenvolvimento dos estudos zoológicos. 2 O
movimento
religioso
conhecido
como
«Fundamentalismo»
começou,
como
refere William Overton, no século xix nos Estados Unidos como resposta do protestantismo evangélico ao darwinismo e às modificações sociais e religiosas, responsáveis,
segundo o mesmo movimento, por ataques à Bíblia e por provocarem o declínio dos valores tradicionais [v. W. R. Overton in Montagu (1984)]. Os fundamentalistas retirariam a sua designação do título do 12.º volume de uma enciclopédia de pensa-
mento evangelista The Fundamentals, financiada pelo magnate do petróleo Lyman Stewart. Entre 1910 e 1915 mais de cem mil adeptos receberam gratuitamente desses folhetos com o referido título. Eram protestantes conservadores que se opunham à teologia
liberal.
As
conexões
políticas
eram
óbvias, levando
muitos
americanos,
no
após-guerra, a considerar a existência de ameaçadoras ligações entre darwinismo, bolchevismo e militarismo alemão com o liberalismo religioso e político. (V. Marsden, 1981 e 1984, Maddox, 1982, e Durant — Darwinism and Divinity: a Century of Debate,
1985, p. 26, in Durant,
1985).
3 O termo «criacionismo científico» (scientific creationism) apareceu por volta de 1965, a seguir à publicação de The Genesis Flood, em 1961, de Whitcomb e Morris [v. W. R. Overton in Montagu (1984)]. Os livros BSCS, que acentuavam fortemente a importância do evolucionismo darwiniano e que invadiram as escolas americanas, devem ter suscitado a ressurgência do criacionismo, agora com mais virulência, e reclamando-se de «científico», e acusando a evolução de ser uma religião, quando muito uma hipótese sem fundamento. Para a emergência do criacio-
nismo «científico» e seus motivos (1985), pp. 181-204.
históricos, v. Eileen Barker
(1985)
in Durant
4 A oposição de William Jennings Bryan à evolução e ao darwinismo parece ter resultado fundamentalmente de preconceitos políticos. Escreveu, por exemplo ( Seven Questions in Dispute, 1924), que a sua objecção à evolução não vinha de uma convicção de que ela não fosse verdadeira, mas sim da circunstância de ser causa de grandes danos morais a quem aceitasse esse conceito (para mais pormenores, v.
Durant, 1985, pp. 23-25). 5 No que respeita à data da Criação, há por vezes divergências relativamente aos 6000 anos ou, mais exactamente, aos 4004 a. C. que o arcebispo James Ussher calculou no século xvrrr. Os modernos criacionistas não são rígidos a este respeito, mas não transigem quanto à curta amplitude temporal: para eles a idade da Terra
e a Criação são acontecimentos
que teriam ocorrido apenas há poucos milhares
de
anos [v. Mayr (1982), Bowler (1984)]. Se a história da Terra fosse tão breve, a evolução não disporia de dimensão temporal para produzir a complexidade e diversidade
das adaptações constituídas nos seres vivos. Mas o facto real é que a sua duração
é imensa, cifrando-se em cerca de 5 biliões de anos (e a vida terrestre em cerca de 3,9 biliões), sendo esta uma realidade contra a qual se quebram as investidas antievolucionistas, Por isso é tão vital para os criacionistas fundamentalistas que a Terra e a vida tenham sido criadas prontamente há poucos milhares de anos. 9 Existe um certo nexo entre o aparecimento do BSCS e o criacionismo (v. a nota
3),
Os
novos
programas
BSCS
surgiram
287
em
seguida
ao lançamento
do
satélite
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
Sputnik pela União Soviética em 1957. Tornou-se imperioso modernizar o ensino da ciência nas escolas oficiais e situar a evolução biológica em quadros mais amplos do que o fora feito até aí. Atrair a atenção dos cidadãos para o cosmo, fantasiando até novas civilizações, ou pelo menos a sua possibilidade de existência, e uma evolução
universal da vida. Nasceu uma biologia espacial, uma exobiologia, como foi designada,
que, como alguém disse, é a única ciência que nasceu antes do seu objecto, porquanto todos os esforços para provar a presença de vida fora da Terra têm resultado infrutíferos. Mas o mito é mantido; e para isso foi necessário fazer sair a ciência da evolução das universidades e dos domínios secretos dos especialistas para se proceder à educação do cidadão comum e do público em geral, preparando-o para a nova era espacial. Com isso ganhou-se e de certo modo perdeu-se. Houve espectaculares avanços tecnológicos
e
científicos,
mas,
por
outro
lado,
as
enormes
somas
gastas
planos de conquista do espaço, que poderiam ser utilizadas para melhorar ções
das
populações
humanas
mais
desfavorecidas,
e
as
perspectivas
com
os
as condi-
abertas
para
novas e mais dispendiosas corridas aos armamentos e a tecnologias de destruição maciça mais sofisticadas levam a duvidar se o saldo será de facto positivo. O que parece acontecer é que se criam e se movimentam poderosíssimos interesses militar“industriais antagonistas e com rumo à guerra pela própria dinâmica interna desses gigantescos grupos. 7 Elaborar uma teoria científica não evolucionista, assente em milagres, que dê um sentido e uma interpretação a toda a enorme massa de factos astronómicos,
geológicos e biológicos, que a ciência tem evidenciado e explicado num quadro conceptual de mudança, é tarefa impossível. 8 A evolução, para o biólogo profissional, é uma realidade material que penetra toda a problemática, dá sentido a todos os fenómenos biológicos, suporta todas as interpretações, quer as que respeitam às grandes questões como aos minúsculos
problemas. Não se trata, portanto, de arranjar «provas» para essa realidade, nem a
sua aceitação depende de determinadas circunstância
de o biólogo reconhecer
experiências ou demonstrações, mas antes da os seus efeitos, e sobretudo
dessa mesma
reali-
dade subjazer a todos os processos que se desenrolam na natureza viva, que perde significado se a pensarmos fora de um quadro científico de mudança. Deste modo, como disse Peter Medawar, o «anti-evolutionism is of the same stature as flat-carthism» (cit. em Barker, 1985). Importa salientar que nada ou quase nada em
ciência pode ser definitivamente provado provado
nem
aceite como
(quase uma
sempre)
no sentido verdadeiro da expressão. Nem
directamente
realidade provável
observado.
não porque
Um
processo
seja directamente
ou
estrutura
observado
é
ou com-
provado, mas sobretudo porque resulta de uma conjunção de factos e hipóteses logica-
mente ligados e testados ou testáveis. O grau de certeza (no que respeita a uma teoria) pode ser tal que tenha para nós o valor de uma verdade, mesmo assim sempre relativa e provavelmente provisória.
? Ano do centenário das instalações do Museu, mas o debate começou, na realidade, em 1978, com a inauguração das novas exposições de dinossauros, e depois em 1980, com as relativas à posição do homem na natureza, havendo além disso catálogos para as explicações e exibição de filmes (cf. Halstead, 1981). V. meu 1987 b.
10 A controvérsia durou meses e reflectiu-se sobretudo em cartas dos evolucionistas ao editor da revista Nature e aí publicadas. A maioria dos biólogos evolucionistas não está de acordo com os cladistas e pensa que a ciência não pode escusar-se
a propor hipóteses, quer sobre as causas do processo evolutivo que originam as espécies, quer sobre os seus antepassados mais prováveis. Deixar estes problemas histórico-evolutivos envoltos em mistério por não ser possível submeter à prova directa as hipóteses respectivas é atitude anticientífica, sobretudo porque, se não podemos testar o passado, é possível refutar essas como tanta vez se tem feito, e também e podem
conduzir
à descoberta
hipóteses por múltiplos modos indirectos, porque as hipóteses orientam a pesquisa
de numerosos
288
factos,
quer
no
esforço
de as refutar,
BIOLOGIA quer
no
de
as
suportar.
À
E
SOCIEDADE —I
popperiana
bitola
não
tem
valor
absoluto
tanto
mais
que não é nada fácil afirmar que dada hipótese é de certeza insusceptível de refutação. No estudo de problemas concretos, o darwinismo e as hipóteses a que dá origem
têm sido submetidos a múltiplas provas e têm permitido formular predições testaveis.
A teoria da evolução é refutável porque podemos conceber múltiplas observações que seria a presença iniludível de restos huma-
a tornariam inviável, como por exemplo
nos nas rochas do precâmbrico. Mesmo interrompida como está, a cadeia de evidências
(paleontológicas) mostra uma exacta correlação (sem excepção) entre estrutura orgânica e tempo. A teoria da selecção natural tem sido testada, os exemplos de selecção comprovada aumentam constantemente, e é sempre possível que a prática
futura venha esclarecer ou dar novo sentido ao processo que não é nada simples. Falta conhecer os seus nexos e a sua verdadeira extensão na natureza.
Quanto aos cladistas, sem dúvida que, se afirmam que a evolução é impossível de confirmar e que os cladogramas não traduzem o curso das transformações, então não surpreenderá que os criacionistas «científicos» reclamem para a sua religião o estatuto de ciência, o que certamente é um delirante contra-senso. Consulte-se, por
exemplo, Eldredge (1981), Wade (1981), Thuillier (1981, pp. 167-184), Halstead (1981), Bowler (1984). 11 Não é fácil calcular o número de pessoas que na Grã-Bretanha têm credos mais
ou menos
segundo
mas
«fundamentalistas»,
certas estimativas não deve ultra-
passar algumas centenas de milhares. São em todo o caso diversas as seitas (Testemunhas de Jeová, Assembleia de Deus, etc.) que rejeitam vigorosamente a teoria da evolução e que abraçam em absoluto a palavra do Génesis e acreditam no seu significado
literal. Mas
enquanto
nos Estados
Unidos
da América
certos meios
oficiais,
v. g. de Dalas (Texas), pressionam para que a história de Adão e Eva no Paraíso seja ensinada como se tratasse de um facto histórico, na Inglaterra (em Hertfordshire), na mesma ocasião (1977), o director de um departamento de educação religiosa é destituído das suas funções por se recusar a ensinar, conforme os progra-
mas, que essa mesma história fosse um mito, já que ele acreditava na interpretação
literal do Génesis e queria que as crianças dela tomassem conhecimento. Este facto daria de certo modo a medida da diferença entre a situação nos Estados Unidos e na
Grã-Bretanha (v. Eileen Parker in Durant, 1985). 122 A glória incontestável da ciência francesa, hoje patente, em tantos sectores de ponta, foi antecedida por uma fase de declínio (no que respeita à biologia) até à II Guerra Mundial. Pierre Rousseau, ao traçar alguns dos seus aspectos, é por vezes cáustico. Na altura da II Guerra Mundial, o autor, ao referir-se ao atraso das ciências biológicas, diz, por exemplo: En 1939, pour tout dire en gros, l'Histoire Naturelle de papa continuait, somnolente et poussitreuse. Plus que dans toute autre discipline, limage caricaturale y subsistait: celle du vieux savant coiffé de sa calotte et passant ses jours à étiqueter et à classer [...] Même le phénomêne de Iévolution était encore parfois contesté — par exemple, en 1929, par Louis Vialleton et, en 1937, par Paul Lemoine, directeur du
Muséum.
(P. 53.)
E na p. 291: . Car que faisaient-ils, ces chercheurs des années 40 à 50? De la systématique, de la classification, des créations ou des retouches de catégories Bibl. Univ.
49 — 19
zoologiques
ou
botaniques 289
[...]
on
en
inventait
des
classifi-
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
cations fondées sur [évolution et la phylogeneze, on divisait les classes en familles de plus en plus nombreuses [...]. En zoologie comme en botanique, le développement d'une systématique hypertrophiée et purement littérale, [...] (P. 291.)
Foram um
as próprias virtudes do espírito cartesiano que
obstáculo,
tornando-se
num
racionalismo
acabaram
estrito e desconfiado.
por
A
constituir
biologia
evolu-
tiva acabaria por triunfar graças ao pragmatismo e ao empirismo anglo-saxão, que todavia não impediram a elaboração de uma grande síntese, e onde o culto da razão e da teoria não descurou as lições da experiência. 3 É sintomático que só em 1946 fosse, pela primeira vez, criada uma cadeira
de
Genética
numa
faculdade
francesa,
e,
também,
que
não
há
muitos
anos
um
professor de Zoologia na Sorbona criticava a biologia molecular «et ses oripeaux nucléiques» (sic) (cf. Lwoff, 1984). As razões da oposição francesa ao darwinismo o mesmo à evolução são, repito, muito variadas. Não é fácil explicar como é que cientistas como L. Vialleton (anatomista conhecido) ou P. Lemoine puderam concluir que a evolução é pura ilusão. Como é que, por exemplo, se admitia uma evolução limitada em certos grupos, mas se recusava que o mesmo fenómeno pudesse (o papel ocorrer numa escala ampla. Factores políticos, filosóficos, religiosos da Igreja foi considerável) e outros impediram que a doutrina vencesse as quase
inexpugnáveis
darwiniano
barreiras
e académicas
culturais
que
se
O
opunham.
lhe
da tentativa/erro, como explicação básica da natureza
método
viva e do homem,
nunca encontrou ambiente intelectual na pátria de Lamarck. Interpretações vitalistas, «tendências internas», «élans criadores», «progressivismo inerente aos seres vivos», são metafísicas
alheias ao evolucionismo
filosofia estranha ao pensamento
francês
14 V. o meu livro 4 Biologia sobre o darwinismo», 1, 2, 3.
darwiniano,
[v. Bowler
do Egoismo
que
na realidade
(1983)].
e os meus
«Apontamentos
artigos
15 A. J. Saraiva e O. Lopes — História da Literatura Portuguesa, ló Teófilo Braga publicou
(O Occidente,
vol. 109, n.º 123,
veicula uma
1882)
1.
um
curioso
artigo a propósito do falecimento de Charles Darwin, que ocorrera pouco antes, no mesmo ano. Nele escreveu, por exemplo, que «as doutrinas de Darwin revolucionaram
a consciência humana, pondo em discussão questões suscitadas pelos grandes espiritos do fim do século xvirI [...] e abafadas pela reacção neocatholica [...] da qual Cuvier e Blainville foram [...] os instrumentos retrógrados».
17 V. Pinharanda Gomes — 4 Renascença Portuguesa (1984). 8 V. M. Godinho — 4 Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa 19 Rómulo de Carvalho — A Astronomia em Portugal no Século XVIII
(1971). (1985).
20 Francisco de Arruda Furtado, naturalista do Museu da Politécnica (Lisboa),
morreu prematuramente em 1887, com 36 anos de idade. Trocou correspondência com Charles Darwin (v. meus artigos «Apontamentos sobre o darwinismo — 2» e «Sobre o método em Darwin e a episódica relação com Arruda Furtado» (1986). 21 Albino Augusto Giraldes de Morais (1825-1888) foi professor da Universidade de Coimbra. Publicou em 1878 O Darwinismo ou a Origem das Espécies (con ferência que não chegou a efectuar-se no Clube Conimbricence), trabalho superficial e único
do autor,
sobre
o tema.
O opúsculo respectivo
foi incluído
em
Questões
de
Philosophia Natural, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1878. 22 Carlos França foi médico e naturalista do Museu da Politécnica (Museu Bocage) desde 1904. 23 António A. E. Mendes Correia (1888-1960) foi professor da Universidade
do
Porto
e deixou
obra
notável
como
antropologista
e vasta bibliografia
da especiali-
dade. Interessou-se pela problemática evolucionista do homem. Ainda como assistente publicou em 1915, por exemplo, um Resumo de Lições de Antropologia, onda aborda 290
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — I
com sobriedade e mentalidade científica o problema da origem do homem e da sua posição entre os primatas. Em 1920 publicou «As novas ideias sobre a evolução»
(A Águia, vol. 17, n.º 99-100) e em 1924 o livro Homo
(1926, 2.º ed.), Atlântida,
Coimbra. 24 V. Diário do Governo, 1 série, n.º 247, de 22 de Outubro de 1948, e Programas do Ensino Liceal, Imprensa Nacional, 1962. 25 Quando eram feitas dissecções, porque a verdade é que os trabalhos práticos nem sempre fizeram parte dos programas oficiais. Ora eram suprimidos, ora eram estabelecidos. Por outro lado, as dissecções eram feitas em grupo, com um animal a servir para vários alunos, ou mesmo para a turma inteira. (Falta de verba, falta de
instalações, etc., a mesma
história de sempre.)
o
WawW
Vs
vm
26 V. o meu artigo «As origens dos estudos zoológicos portugueses» (1953). 27 Não é, porém, absolutamente certo que Bocage não tenha entrado em con-
tacto com Darwin. A correspondência de C. D. parece um filão inesgotável, que está a revelar
de novo
28 V.
Balthazar
Osório — Elogio
de corres-
a publicação de três volumes
com
riqueza
a sua enorme
pondência [v. Freeman (1978)].
Histórico
do
Ilustre Naturalista
e Professor
J. V. Barbosa du Bocage. 29 Em Portugal tem dominado um classificatorismo de gabinete e prateleira, de estreiteza
coleccionista,
longe
assim,
e, mesmo
de atingir, em
regra,
em
quantidade
e qualidade, os níveis mínimos desejáveis, circunstância que se reflectiu, por exemplo, na situação lamentável dos nossos museus de história natural. Os talentos e as
boas vontades que, sem qualquer dúvida, temos tido, ainda não conseguiram inverter
a situação e fazer pegar e crescer solidamente uma zoologia causal moderna. Se não lhe for dado
sentido e profundidade, o classificar e identificar será meia-ciência ou
quase-ciência. V, meu 1987 b. 30 Y. também os meus artigos «A obra do Dr. Barbosa du Bocage e «Algumas
(1972)
de história natural»
«Museus
(1968),
linhas programáticas para a reor-
ganização do Museu de História Natural» (1982) [títulos abreviados]. A pedagogia da evolução não deve infiltrar simples teorias como coisas certas, nem um museu de ciência deve ser concebido como um altar da ciência, como actividade pura e neutra. V. meu 1987 b. 31 Richard J. Wassersug e Michael R. Rose— «A Reader's Guide and Retrospective to the 1982 Darwin Centennial». [Q. R. Biol., 59 (L): 417-436, 1984]. — 1» (1982). 32 «Apontamentos sobre o darwinismo
33 The Darwinian
Heritage
Itália), obra a ser publicada em dois
(Florença,
volumes. 3 Não é um facto incontroverso que a indiferença portuguesa pelo darwinismo seja tão-somente um problema de atraso cultural e científico-industrial relativamente
aos outros países, nomeadamente aos mais afins, como a Espanha e a Itália. Haverá
na nossa apatia algo de análogo ao que se passa no Japão, onde se verificaria um pro-
cesso de forte rejeição do darwinismo? Segundo Beverly Halstead (/Vature, 317: 587-589, 1985), o antidarwinismo no Japão tem as suas causas nas características da sociedade japonesa — nomeadamente na supremacia do grupo sobre o indivíduo, na visão que
o Japonês
sociedade,
baseada
tem na
e do homem,
do mundo cooperação
e
na
na estrutura e hierarquia da sua
obediência,
numa
generalizada
ausência
de disputa e crítica intelectual: como é próprio de uma comunidade que, apesar do seu gigantesco progresso e modernidade tecnológica (e não só), esconde uma rígida estrutura feudal autoritária. £ certo que no Japão o darwnismo científico é assimilado em grupos universio tários,
cujo
nível
científico
é
comparável
ao
que
de
melhor
existe
no
Ocidente.
O centenário da morte de Darwin não foi aliás esquecido neste país, ainda que a lembrança fosse marcada pela sobriedade. Mas fora dos círculos científicos, e se bem que a competição individual seja duríssima no Japão (mas execrada pelo japonês 291
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
comum), e que o darwinismo social tenha sido adoptado pelos detentores do poder no país (classe política, grupos industriais, casta militar, etc.) no final do século passado e até ao final da II Guerra Mundial, o darwinismo continuava e continua estranho ao modo de sentir e de pensar dos Japoneses. Existe mesmo uma teoria antidarwiniana da autoria do Prof. K. Imanishi, de 83 anos de idade, cujos livros,
que
divulgam
toda
ela cooperação
(desde
1941)
a sua doutrina
e mutualismo,
negando
(anti-seleccionista, a competição,
etc.),
anti-individualista, são
extremamente
populares, e o seu autor considerado um génio equivalente a Darwin, ainda que, na
realidade,
consoante
sociedade
portuguesa
a opinião
de
Halstead,
a
sua
teoria
da
evolução
seja
uma
italiana,
ete.?
«visão poética» boa para iludir uma comunidade que preza a harmonia, a cooperação, o espírito de grupo, mas detesta a realidade que é obrigada a suportar. Virá a indiferença portuguesa pelo darwinismo analogamente de uma estrutura profunda da que
a demarca
nitidamente
da
espanhola,
da
Talvez analogia apenas na impermeabilidade como que visceral, mas não mais. Lembrarei, por exemplo, que, ao invés do Japão, não existe em Portugal qualquer
interesse pelas teorias de evolução antidarwinianas, ou por teorias de mudança de qualquer outro tipo, e tão-pouco vocação popular pela filosofia natural. Se o mutacionismo devriesiano prevaleceu anacronicamente nos compêndios do ensino secundário em Portugal foi devido provavelmente ao seu apelo ao «milagre», à criação súbita
das espécies, com repúdio da evolução gradual darwiniana e da sua mecânica da «tentativa/erro», que é a própria essência da selecção natural, força que contraria frontalmente toda a esperança no transcendente e na existência de uma natureza viva teológica.
292
CAPÍTULO A
HERANÇA
VII
BIOLÓGICA DO ADQUIRIDO DA IDEOLOGIA
E
A
FORÇA
À medida que tendem a predominar as filosofias idealistas, que os e de anticiência são evidentes, o conheci-
de irracionalismo
sintomas
mento objectivo e crítico guarda todo o seu valor como baluarte onde o espírito humano pode defender-se dos males que o corrompem — o obscurantismo,
metafísicas
as
dogmáticas,
as
ideologias
os
impostas,
vaticínios, as paraciências, as «ciências» ocultas, a superstição, a retórica,
o
os
oco,
verbalismo
charlatanismos.
E
o
sendo
conhecimento
científico combatido no que ele tem talvez de mais nobilitante (a ascensão e libertação do espírito), não deixam, apesar disso, de lhe copiar as
aparências os que, conscientemente ou não, fazem por degradá-lo. Lem-
bremos apenas a revivescência do criacionismo científico» e do lamarckismo, este último não digo como campo de pesquisa científica (o que é certamente desejável), mas como preconceito e concepção fortemente politizada, como se verá a seguir. Basta recordar o enorme e complexo debate levantado pela doutrina do mitchurinismo-lysenkismo (de fundo lamarckista), controvérsia de larga e profunda repercussão política, que pertence já à história da ciência. A teoria da evolução tem passado por diversas vicissitudes desde que Darwin lhe estabeleceu os verdadeiros fundamentos, com os quais originou a biologia moderna. Com esta teoria a biologia obteve a necessária unidade e consistência, tornando-se numa verdadeira ciência. Desde a publicação da Origem, de Darwin, diversos incidentes têm
caracterizado o desenvolvimento da teoria, não só como processo, mas sobretudo no que respeita às causas do fenómeno. O famoso caso Lysenko vem a propósito das diversas vicissitudes por que passou o darwinismo
na
sua
fase
crítica
de
modernização,
período
em
que
a
genética lhe forneceu novas bases e potencialidades de desenvolvimento, consolidando a doutrina da selecção natural e contribuindo para a sua aceitação plena. Com efeito, no tempo de Darwin, o transformismo triunfou,
mas
a teoria
da
selecção
natural
não
teve grande
aceitação.
No final do século x1x, e durante o primeiro quartel deste século, o conceito entrou em acentuado declínio, em boa parte devido ao cepticismo muitos
de
grande
parte
evolucionistas
no
dos
primeiros
mutacionismo 293
mendelianos devriesiano
e à convicção (e
doutrinas
de aná-
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
logas), segundo o qual as novas espécies e novos grupos surgem bruscamente por grandes mutações, assim se postergando, ou quase, o papel
da selecção natural. Este ponto de vista saltacionista opunha-se ao conceito darwiniano de evolução gradual com utilização da numerosa variabilidade existente nas populações. Além disso, uma questão fundamental dominava o panorama do evolucionismo entre 1860 e 1940: a hereditariedade biológica dos caracteres adquiridos. Podia-se ser mais ou menos partidário do gradualismo darwiniano, por vezes mesmo autores pendiam para um ponto de vista saltacionista, mas a crença que dominava a cena científica era a aceitação quase generalizada desse tipo de hereditariedade: quer dizer, a possibilidade de as adaptações adquiridas pelos organismos (por acção específica e directa do ambiente, pelo uso ou desuso dos órgãos, por aquisição de novos hábitos e comportamentos em face das circunstâncias do meio, etc.) serem imediatamente
inscritas na substância hereditária e passarem aos descendentes, onde se manifestariam tal qual (na forma e na função)
elas se desenvolveram
no organismo dos progenitores. Crença velha, que vem dos antigos gregos, que Darwin aceitou sobretudo na parte final da sua vida, como compensação, talvez, para o que de aleatório havia nas variações de que se alimentava a selecção natural, e que a religião oficial sempre rejeitou. Entretanto August Weissmann (1834-1914) estabelecera o neodarwinismo !, doutrina caracterizada sobretudo pela rejeição absoluta de qualquer tipo de hereditariedade dos caracteres adquiridos, repudiando em absoluto o lamarckismo. Esta forma mais moderna do darwinismo deu um golpe profundo nas ideias tradicionais e foi adoptada imediatamente por darwinistas como Wallace (no seu livro Darwinismo, de 1889) e também por outros darwinistas. Mas a brecha aberta no velho e sólido edifício da hereditariedade biológica do adquirido não foi suficiente para o deitar abaixo. Nos anos 30, a genética veio finalmente apoiar o darwinismo, cujo ponto fraco, aliás reconhecido pelo próprio Darwin, era o desconhecimento da natureza e causa das varia-
ções exibidas pelos organismos. Ronald Fisher, Sewall Wright, J. B. S. Haldane
união
do
e o russo
S. S. Chetverikof,
darwinismo
tradicional
e alguns
com
outros,
a genética
promoveram
e
constituíram
a
as
selecção
natural,
e
não
sobre
a
variabilidade
sem
raiz
hereditária,
induzida como resposta do organismo às condições do meio, o dogma da
hereditariedade
biológica
dos
caracteres
adquiridos
deixou
de. se
impor e passou para a história das ideias. Muitos biólogos continuaram, porém, a ser-lhe fiéis, e, como
guiu
libertar-se dele?. Mas
já vimos,
a nova 294
a biologia
francesa
biologia evolutiva
não conse
avançou
rapida-
di di
bases a partir das quais foi edificada a moderna teoria da evolução (teoria sintética). E como foi aparentemente demonstrado que são as pequenas variações que têm valor evolutivo, que é sobre elas que opera a
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — 1
mente a partir do momento em que o darwinismo, e mais particularmente a teoria da selecção natural, passou a apoiar-se na genética, a explicar-se por ela, a avançar com ela ?. Como a selecção só pode exercer-se sobre variações do património hereditário (mutações, recombinação genética) e não sobre simples
modificações do organismo causadas pelo meio, ou pelo uso ou desuso dos órgãos, a hereditariedade biológica de caracteres adquiridos ficou fora do darwinismo e jamais pôde integrar-se nele como até aí. E como falharam todas as experiências e observações empreendidas para legitimar esse tipo de hereditariedade, além de não poder conceber-se um mecanismo plausível para que um novo hábito, uma nova forma ou carácter induzidos pelo ambiente, sejam inscritos como tais nos cromossomas, a hereditariedade biológica do adquirido passou, a partir dos anos
40,
ideológica, ou uma
necessidade
uma
a ser mais
teimosia,
ou
uma uma
maneira de recusar ou diminuir o neodarwinismo, ou também manifestação de insciência, mais isso tudo, de facto, do que
com
o conceito,
um conceito científico *. Antropólogos, sociólogos, filósofos, políticos, escritores, psicólogos, perfilham, muitos deles, essa teoria, fácil de entender pelos leigos. Há, é certo, biólogos que continuam a simpatizar tentam,
e alguns
ao método
recorrendo
experimental,
conseguir evidências para a sua existência. Estes estão em bom caminho, visto que não pode recusar-se que surjam novidades de muito interesse que ou façam luz sobre fenómenos hereditários de tipo lamarckiano ou revelem
outros aspectos de interesse. Mas, até que isso possa acontecer,
a teoria da hereditariedade biológica dos caracteres adquiridos é uma teoria obsoleta, pertence à história da biologia, e nada mais. Certos tipos de hereditariedade
factores
do
ionizantes,
(radiações
ambiente
ou mutações induzidas por
extracromossómica,
temperatura,
etc.),
nada
têm a ver com o dogma referido, ainda que por vezes sejam citados como tal (v. meu, 1985). Os
casos
Lysenko
que
e Kammerer,
adiante
serão mencionados,
e outros porventura da mesma natureza, devem ser interpretados, pelo menos em parte, na sua perspectiva mais correcta, ou seja, à luz da mencionada separação entre darwinismo e hereditariedade biológica dos caracteres, feita a partir dos anos
teoria da selecção
1.
Um
grande
natural
com
30, devido
à apontada
harmonia
da
o mendelismo.
mito
O lamarckismo
como
doutrina
geral pode ser resumido
nas duas
proposições seguintes: a) a necessidade cria o órgão apropriado e o uso fortifica-o e desenvolve-o de maneira considerável. A falta de uso, pelo contrário, conduz à atrofia ou desaparecimento dos órgãos; b) os 295
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
caracteres adquiridos, sob a influência das condições externas, e pelo uso e não-uso dos órgãos, são transmitidos às gerações seguintes. São, portanto, hereditários º.
O uso e não-uso de um órgão, determinando respectivamente o seu desenvolvimento ou a sua atrotia, correspondem a realidades em regra facilmente observáveis. Todavia, o valor do lamarckismo como teoria da evolução assenta, entre outras condições que não vêm para o caso, na possibilidade de as modificações induzidas serem transmitidas às
gerações seguintes. Esta possibilidade tem sido, porém, constantemente refutada, e experiências ensaiadas para demonstrar esse tipo de hereditariedade têm dado resultados negativos. E outras que pareciam apoiá-lo provou-se basearem-se em erros de método ou em métodos inadequados ou grosseiros. A hereditariedade dos caracteres adquiridos não foi uma ideia original em Lamarck e ele próprio nunca a reivindicou como tal. Era desde remotos tempos uma crença fortemente enraizada nos espíritos, pelo menos desde os cientistas gregos da antiguidade que a aceitavam como uma verdade evidente. Já na idade do bronze ela surge na mitologia, a explicar a cor da pele dos Negros, antecedendo assim em muito
as
primeiras
ideias
sobre
a
evolução
(Zirkle) º.
Nunca
se
sentiu,
segundo parece, qualquer necessidade em a apoiar ou demonstrar com
4 Ê
do final do século x1x, sendo depois numerosas as experiências feitas
4
ainda
que
tentativas
deste tipo não tenham terminado, havendo sempre quem pretenda obter
provas claras e decisivas. Quanto a Lamarck, pensava que havia tantos
factos que demonstravam a hereditariedade dos caracteres adquiridos que a sua realidade não podia ser posta em dúvida. Darwin admitiu-a, igualmente, e fez dela a base das suas concepções sobre a transmissão dos caracteres adaptativos resultantes da acção da selecção natural. E o preconceito perdurou soberano, apesar de fortemente contestado por alguns autores como Weissmann. As ideias de Lamarck não tiveram a aceitação dos contemporâneos, não no que respeitava à ideia da hereditariedade dos caracteres adquiridos
(que
era, repito, crença generalizada),
mas
quanto
ao que ele
afirmava sobre a génese das transformações, nomeadamente ao esforço do animal em responder às necessidades e adaptar-se a elas devido àquilo a que chamou sentiment intérieur, que actuava mecanicamente sobre todas as partes do corpo, só raras vezes havendo
para Lamarck
moti-
vação por ideias (homem e raros animais superiores). Além do ridículo a que se expôs com certas explicações ingénuas (como a da ave ribeirinha que, «querendo fazer que o seu corpo não mergulhe no líquido, fará
adquirir às patas o hábito de se alongarem»), a debilidade do suporte : factual
e experimental
em
que apoiou 296
a sua
teoria tornou-a
de dificil
id
neste século, sobretudo na sua primeira metade,
Con
provas experimentais. Estas tentativas são relativamente recentes, datam
BIOLOGIA
aceitação pelos ficou entre duas
seus
E
SOCIEDADE — 1
contemporâneos '. Lamarck
épocas, ousando
foi um
homem
que
ideias novas sem se libertar inteira-
mente de velhos conceitos, alguns deles já obsoletos na sua época, ou pelo menos de valor duvidoso. Talvez que o seu mal fosse ter explicado a evolução a partir de factores internos de significado nebuloso (desejo, sentiment intérieur), e não por causas exteriores ao organismo, materiais e observáveis, como foi o caso, mais tarde, da competição e da selecção natural, da «luta pela vida», com luta e morte, excessos populacionais e recursos do meio, tudo conceitos e situações que a sociedade
experimenta
e pode,
portanto,
facilmente,
assimilar
integrados
numa
explicação lógica e coerente com a realidade. Darwin, ao combinar
a
variação com o acaso, abriu perspectivas inteiramente novas, profunda-
mente diferentes das de Lamarck. Mas o materialismo e racionalismo
da época em que viveu Lamarck, com os germes da ciência moderna em
desenvolvimento,
com
os primeiros grandes movimentos
da revolu-
ção industrial, tudo isto, pelo menos, tornava inaceitáveis as proposições dogmáticas, nebulosas e ingénuas. Foi sobretudo a partir do começo dos anos 30, em que, repito, se efectuou a síntese do darwinismo com o mendelismo e a teoria do gene,
que o velho preconceito entrou em crise e rápido declínio nos meios científicos. Até ao final do último quartel do século XIX, raros seriam
os naturalistas que duvidavam da perfeita validade do encanecido princípio. Actualmente, moldando-se
às exigências
mais ou menos
sob forma
persiste
da biologia moderna,
disfarçada
e
como pode verificar-se
em certos opositores ao evolucionismo darwiniano, como foi, por exemplo, Pierre P. Grassé. A teoria de Lamarck na sua forma modernizada
foi designada no final do século XIX por neolamarckismo, socorrendo-se
de dados da biologia molecular, aliás sem sucesso signi-
ultimamente
ficativo. Isto não significa que se possa excluir a possibilidade de certas
influências exteriores modificarem a natureza dos genes. Conhecem-se influências sobre a sobrevivência, modificando, portanto, indirectamente a constituição
hereditária
da
população
em
causa,
ou
certas
acções
directas sobre os genes por meio de substâncias químicas variadas, de radiações e outros agentes físicos. A acção de certos agentes exteriores sobre os genes é uma realidade (agentes químicos mutagénicos, por exemplo). Mas os efeitos produzidos não têm relação obrigatória com as necessidades do organismo. Podem revelar-se com valor de sobrevivência, mas em regra os seus efeitos são negativos ou nocivos. Ora os efeitos lamarckianos implicam a ideia contrária — a de que as modificações dos genes sejam respostas específicas e apropriadas às suas exigências,
sobretudo
que
a adaptação
surge pronta,
directa, no orga-
nismo, e que só posteriormente se fixe no genoma. Diferente é o que se passa com a variabilidade genética devida as mutações, que se acumula nas populações naturais. Ela constitui um 297
GERMANO
vasto
reservatório
depende
DA
FONSECA
de disponibilidades
SACARRÃO
de orientação
evolutiva,
a qual
de complexas interacções estabelecidas em cada momento
o organismo
(com
as limitações que
lhe impõem
a sua
entre
natureza
e a
sua história) e o ambiente em que vive. Mas estas modificações graduais que se operam nas populações, onde a reprodução diferencial desempenha provavelmente um papel preponderante, nada tem a ver com a fixação de caracteres adquiridos (específicos de forma e de estrutura, na função, hábitos, comportamento, etc.) nas biomoléculas
que consti-
tuem os genes. É inconcebível, e jamais foi observado, que tais «representações»
se inscrevam
nos genes, como
«imagens»
miniaturais
transmutando-se em certas sequências de bases do ADN voltassem
na
geração
Esta «compressão»
seguinte
no ADN
a
expressar-se
(ou ARN)
no
de uma
que,
(ou do ARN),
organismo
«forma»,
adulto.
uma
«fun-
ção», «ideia» ou «adaptação» adquiridas pelo organismo não deixa, a meu ver, de ter certa semelhança com a teoria da preformação dos séculos XVII e XviII, segundo a qual o ovo (ou o espermatozóide) continha uma
miniatura do adulto, com todos os seus órgãos
(v. o cap. HH).
E possível que haja aí uma ligação conceptual. ou de suma
niões.
existe
Se
tal
importância tipo
de
consoante
hereditariedade,
os problemas ele
deve
processo de
ou as opi-
constituir
um
processo de transcendente significado na evolução. Mas o duplo consenso da lógica e da experimentação conduz à rejeição da doutrina. É absurdo, com efeito, que uma aquisição orgânica, como uma calosidade ( já expressa antes do nascimento), ou psíquica (um novo comporta-
a
diminuta
ser um
e std A
é tudo ou nada, não podendo
ia Co a
O lamarckismo
mento), se fixe como forma ou como acto no património macromole-
cular
hereditário
do
indivíduo
e
surja
nos
seus
descendentes
como
produto dos genes, reforçada e aperfeiçoada pelo hábito e experiência do animal, que a cada geração mais acentua essa disposição. Que actos voluntários e adaptativos repetidos durante gerações se fixem
como
instintos
nas
biomoléculas
da
hereditariedade
será
um
novo
aspecto do preformacionismo do século das luzes, que tanto obsessionou
gerações de naturalistas e filósofos. Também a ideia (falsa) que o desenvolvimento
do
organismo
individual é a realização de um programa de edificação inscrito no ADN dos genes parece-me ser em parte um aspecto modernizado do velho preformacionismo, que não desapareceu inteiramente da biologia.
O embriologista profissional sabe, porém, que a ontogénese é um todo muito complicado. É o resultado de condições presentes no ovo (genes, citoplasma, etc.) e de outras que se vão estabelecendo durante o desenvolvimento, onde cada estado é efeito do anterior e causa do seguinte, e de íntimas interacções com factores do ambiente: quer dizer, prefor mação
e epigénese
são dois aspectos de um
mesmo
processo
de realiza-
ção, que não é legítimo opor, nem cristalizar, em concepções dogmáticas 298
“E
BIOLOGIA ou
unilaterais.
também
À
E
organização
SOCIEDADE —1
básica
do
ovo
depende,
por
outro
lado,
de fenómenos ocorridos durante a ovulogénese e da estrutura
e fisiologia do ovário, de modo que a geração é um continuum, onde só
por
definição
autonomia
do
ou
por relação
a certos níveis
comportamento,
da
(plano
autoconsciência,
do social),
etc.)
será
da
possível
assinalar um início ao indivíduo, circunstância que retira qualquer valor absoluto à concepção preformacionista, no aspecto de o indivíduo estar programado
no microcosmo
ovular.
Apesar de rejeitada pela moderna biologia evolutiva, a hipótese da hereditariedade biológica dos caracteres adquiridos não desapareceu por completo da ciência e, também, de domínios não científicos, como da filosofia política, sendo tacitamente admitida como uma realidade
axiomática por numerosos intelectuais e aparente lógica e simplicidade *. E tem biólogos e outros cientistas. À simpatia exigências doutrinárias, em sujeições a O
lamarckismo
é, pois,
falso como
pelo homem comum, pela sua os seus prosélitos entre alguns tem muitas vezes a origem em ideologias. teoria
da hereditariedade.
Os
caracteres biológicos adquiridos na vida do indivíduo não se transmitem aos descendentes. Considerem-se, por exemplo, as calosidades adquiridas nas mãos pelo trabalho. Não há mecanismo biológico que possa transpor para as moléculas do ADN a substância e configuração de um calo,
que na geração seguinte o mesmo ADN dos genes reporia no mesmo ponto do corpo. Às calosidades hereditárias de certos mamíferos e aves
(como a avestruz) que surgem no embrião (antes, portanto, da necessi-
dade) constituem problemas que, como tantos outros, desafiam o poder explicativo da teoria da selecção natural. Se esta não satisfaz completamente, pelo menos abre perspectivas novas de análise, baseia-se num conjunto considerável de factos científicos, resiste aos testes, ou é com-
provada por via experimental, ou até pode em parte esclarecer problemas
difíceis,
lamarckismo
como
referidos
os
e a teoria
acima,
tudo
coisas
da hereditariedade
biológica
positivas
dos
que
o
caracteres
adquiridos não podem fazer º.
Importa ainda realçar outro aspecto que parece significativo. Se o lamarckismo é uma teoria inadequada para dar conta da hereditariedade biológica, já não acontece o mesmo noutro plano com a chamada
herança cultural º. Aqui a transmissão de ideias, costumes, modos de
agir, faz-se por um processo «lamarckiano», onde as aquisições geração podem ser transmitidas intactas às gerações seguintes. que aquela parte do comportamento que não é biologicamente que não provém de processos inatos, é transmitida por um
de uma Digamos herdada, processo
lamarckiano.
A teoria da hereditariedade dos caracteres adquiridos tem, repito, a seu favor a extrema
do vulgo.
Ora,
simplicidade,
resulta do senso comum,
do pensar
se isso é assim, é porque as pessoas prontamente esta299
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
belecem uma analogia entre a vida social e a hereditariedade, entre a transmissão de bens materiais e culturais no seio da família ou do grupo social, e a hereditariedade
dos caracteres biológicos.
Herdar
é receber
por herança, adquirir por parentesco ou hereditariedade, diz o dicionário. Os dois vocábulos, «herança» e «hereditariedade», têm a mesma raiz. Herdam-se bens materiais dos pais, tradições, ideias, costumes;
vícios e virtudes são transmitidos pela família, pela sociedade, e esta hereditariedade de coisas e ideias que a tradição impõe e as leis regulam estende-se, logo de início, por facílima analogia, aos caracteres do corpo e da mente. O modelo social serviu, como
tantas vezes acon-
tece, para fazer a leitura da natureza. Existe talvez, ainda, outra razão para
a situação de favor
que a
teoria desfrutou (e ainda logra), resistindo tenazmente ao peso da lógica e da experimentação desde há quase um século. É que no lamarckismo
existe um optimismo fundamental — o da natureza viva,
o homem e as sociedades serem entidades moldáveis, possíveis de rápido aperfeiçoamento
por
acções educativas
e transformações
consequentes
no indivíduo e no grupo. Mas se as mutações ocorrem ao acaso, ou seja, no sentido de não terem relação obrigatória com as necessidades do organismo na sua adaptação ao ambiente (como exige o darwinismo), se a selecção natural colhe deste amontoado de variações aquelas que no momento se acham capazes de aumentar, pouco que seja, a sobrevivência e a adaptação as condições externas presentes, então o mundo não terá um sentido supremo, a história não obedecerá a qualquer mecânica
intrínseca, não há caminhar para uma finalidade. O sucesso reprodutor é o único e imediato objectivo na grande luta pela existência !!. O lamar-
ckismo,
porém,
caracteres
implica
com o seu postulado fundamental
adquiridos
a concepção
por
acção
de uma
directa
natureza
do homem.
Às coisas, porém,
bioquímica
e a biologia molecular,
do
de se herdarem
ambiente
físico
facilmente moldável
não são tão simples.
dando origem
Hoje,
a uma
e
os
social,
à vontade
a genética, a
engenharia
ao mundo e à consciência e harmonizar com o que o dos nossos mais enraizados deve ser recompensado e a
esperança num mundo progressivo possuído de uma finalidade própria. Esta, talvez, a razão por que os humanistas e os que querem fazer rapidamente um «homem novo» manifestem forte simpatia pela hereditariedade biológica dos caracteres adquiridos. Mudar a sociedade equi300
dai teta Ao JADE ET
modo reconfortante, que dá um sentido do homem no seu esforço de se aperfeiçoar rodeia (v. Gould 1980 a). Reforça dois preconceitos — a crença de que o esforço
E o
O lamarckismo permite estabelecer analogias tranquilizadoras entre o modelo social e o modelo da natureza. É uma doutrina de certo
SA
biológico e social, aí estão para o demonstrar.
Ve
biológica em extremo sofisticada, em grande parte coroamento do mendelismo, e poderosa arma de intervenção e modificação dos universos
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — I
valeria, em poucas gerações, a mudar o homem, o que estaria perfeitade
mente
acordo
a dialéctica
com
a interacção
com
materialista,
do
organismo e do ambiente para dela resultar um novo carácter do indi-
víduo. Esta asserção geral não é negada por nenhum biólogo, mas, como
muitas vezes acontece, as generalidades escondem nebulosas e até anta-
gónicas interpretações. O carácter simplista da teoria permite especular
com desenvoltura acerca das possibilidades de transformar a constituição hereditária dos homens, com base em físico e social, e em conformidade como defendem os seus adeptos, o no intervalo de poucas gerações. O
acções determinadas pelo ambiente com essas acções. Daqui se infere, poder-se transformar a sociedade fazer-se um «homem novo» (com
nova constituição hereditária), sem possibilidade de regresso à condição
anterior. Mas os efeitos da educação e dos condicionamentos socioculturais, mesmo prolongados, não são biologicamente herdáveis. Os lamarckistas
na
oposição
a natureza
excluem
natureza/cultura
e admitem
optimisticamente que O ambiente bem escolhido e dirigido é capaz de melhorar o físico e a mente. Este ponto de vista foi muito popular no final do século XIX e princípio deste século, tendo sido
na América
abraçado por diversos políticos e filósofos. Homens de esquerda fizeram dele também
foram
o seu
ardorosos
credo.
Bernard
defensores
S. Freud
Shaw,
do lamarckismo,
e Arthur
mesmo
numa
Koestler
altura em
que a teoria já estava em franco e rápido declínio no âmbito da biolo1984).
outros escritores pensavam como eles (v. Bowler,
gia. Muitos
Uma visão do homem e da sociedade como produtos de um processo
evolutivo que se desenrola como uma sucessão de acidentes sem sentido, pelo
mecanismo
darwiniano
da
natural-
determinava,
tentativa/erro,
mente, reacções emocionais e ideológicas, provocando o apelo e a ligação criador beneao lamarckismo, mais compatível com a existência de um volente (como que continuando a teologia natural), fazendo da vida uma força criadora e os seres vivos e o homem de certo modo responanimadora sáveis pelo seu destino, o que traduziria uma filosofia mais
do que aquela que subjaz ao darwinismo, de um materialismo desesperançado. Daqui os esforços que sempre se fizeram e continuam a fazer para introduzir no darwinismo componentes de antiacaso, de espiritualidade, tentando mesmo harmonizá-lo com a teologia. Teilhard du Chardin, se não atacou o darwinismo (aceitou-o em parte), tentou,
pelo menos, reconciliá-lo com o lamarckismo. Dando uma importância fundamental
assimila à finalidade), coloca-se do lado do neolamarckismo
carácter de antiacaso.
la
com
o seu
Escreveu:
Bien
compris,
J'«anti-hasard»
simple
négation,
mais
au
néo-lamarckien
coptráire-+ se /
Ne
MIN
R
——
(que ele
à força espiritual, ao carácter psíquico da vida
présente
n'est pas comme
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
Cutilisation du hasard darwinien. Entre les deux facteurs, il y
a
complémentarité
fonctionnelle — on
pourrait
dire
«sym-
biose» 2,
Darwinista completo não o foi de uma evolução apoiada na ciência tianismo, divinizando a matéria, e supremo objectivo, como o derradeiro
Teilhard, com a sua idealização moderna, mas inspirada no erisconsiderando o homem como q momento evolutivo (hominização
da matéria) numa marcha para o espírito. Uma biologia evolutiva múástica servida por um extraordinário brilhantismo verbal. Roger Garaudy, o conhecido teórico marxista, não se poupou a uma incondicional admiração por Teilhard, em quem vê, «em todos os planos, um anunciador do futuro» !?. Estes (e outros exemplos numerosos) mostram-nos os caminhos estranhos que a crença e a ideologia abrem através do darwinismo, tentanto modificá-lo e moldá-lo às conveniências dogmáticas.
2.
O
caso
Lysenko
Trofim Denisovich Lysenko nasceu em 1898 e faleceu em 20 de Novembro de 1976. A história bizarra deste homem constitui um dos capítulos mais estranhos
da história recente da biologia.
Foi o ditador
da biologia nos anos 30 e 40, sobretudo durante o regime de Estaline, 1953,
com
a sua influência continuou
o amparo
e impulso
recebidos
após
de
a morte
Nikita
deste, em
Khruchitcher::
A sua estrela empalideceu, porém, quando este político foi afastado, em:
1964,
tendo
sido destituído
dos
cargos
administrativos
que
ocupava.
Lysenko ganhou, de começo, prestígio ao defender o método da vernalização, que consiste em expor plantas ou sementes a condições artificiais análogas às suportadas no Inverno, nomeadamente a temperaturas baixas, de modo a tornar mais curta a fase que antecedea floração ou a germinação. O processo é utilizado especialmente em raças de Inverno de trigo, com arroz, etc. Em climas de Invernos longos e rigorosos, a vernalização revela-se particularmente útil. Sementeiras normalmente
feitas no Outono
podem
então
ser feitas na Primavera,
se as sementes forem submetidas a condições de frio artificial. A técnica:
de Lysenko consistia na imersão da semente em água que depois era
gelada, mas o método já era conhecido e praticado desde há muito. tempo
noutros países, Com
a descoberta de novas raças de trigo, a
Eis
tica foi abandonada nos Estados Unidos da América do Norte (Zirklo).
Ê Ê F É E E
Lysenko afirmou que com a vernalização podia modificar a hereditariedade e obter novas raças de trigo, o que não foi de modo nenhum. provado. E também de, com a mesma técnica, conseguir melhores 302
Dera iria
que o apoiou, mas
BIOLOGIA
facto
de cereais,
colheitas
E
SOCIEDADE —I
igualmente
que
Mas
não foi alcançado.
os
políticos apoiaram Lysenko, em grande parte, talvez, porque este pro-
clamava que obtivera variedades novas de trigo por vernalização e, também, por afirmar ter modificado caracteres das plantas por alteração das condições de cultura, em especial com a técnica de enxertia.
Uma ideia fervorosamente defendida por Lysenko [ que a foi buscar a Mitchurine (v., adiante, a p. 310) ] é a de que os caracteres heredi-
tários são transmitidos por meio de «sucos» ou «humores» e que as transformações operadas se mantêm perfeitamente estáveis nas gerações sucessivas. Este facto seria verdadeiro não só para as plantas como para
os animais e estaria comprovado nas plantas no caso dos híbridos de enxerto, também designados híbridos vegetativos. Uma espécie de planta (enxerto) formas,
(cavalo), há reunião de tecidos das duas
é enxertada noutra
outra forma surgiria, estabili-
há troca de propriedades, e uma
zada e com propriedades novas. À criação de híbridos de enxerto já tinha há muito sido praticada, mas foi abandonada como tentativa de criar espécies ou variedades novas. Os híbridos obtidos por Lysenko
em tomates, por este processo, não seriam autênticos hibridos. Estes e outros casos obtidos nos animais cabem no quadro geral dos fenómenos
conhecidos impugnam
pelo nome de qguimeras e mosaicos, que de modo nenhum a genética nem os factos conhecidos sobre a transmissão
dos caracteres hereditários como pretendia a escola de Mitchurine-Lysenko. Apesar dos malogros na prática, Lysenko elaborou a sua teoria biológica e conseguir desacreditar na URSS a teoria cromossómica da here-
sobre a genética mendeliana. As investi-
ditariedade e lançar o anátema
gações em genética foram suspensas, investigadores foram destituidos das suas posições, cessou o ensino da genética entre 1948 e 1964 e novos
textos foram
escritos
de acordo com
e publicados,
biologia
a nova
mitchurinista-lysenkista. A aversão à genética começara muito mais cedo, nos anos 30, em particular contra as investigações em genética humana, acusada de justificar ou conduzir ao racismo, ou contra a aplicação dos princípios da genética à sociedade. O resultado foi que já em 1936 os estudos sobre genética humana foram suspensos. O cientista N. I. Vavilov
(1887-1943),
com grande reputação internacio-
homem
nal, sob a direcção do qual a investigação genética fez grandes progressos na URSS, foi preso em 1940 e exilado para a Sibéria, e anos depois morreu na prisão. A sua reabilitação foi feita mais tarde, em meados dos anos
50, quando
a credibilidade em
esmoreceu
Lysenko,
sobretudo
por ele ser considerado responsável por as quintas colectivas não cultivarem
milho
pessoal. Lysenko
híbrido,
não
contra
começou
o
qual
isolado
ele
tinha
tomado
a sua campanha
forte
a favor
posição
de
uma
biologia extravagante. Era o cabeça de fila de um grupo, mas foi forte303
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
mente apoiado por 1. 1. Prezent, um teórico do materialismo dialéctico e seu intérprete filosófico, que criticava certos aspectos da biologia. Ele e Lysenko criticaram e ridicularizaram a genética mendeliana e outros aspectos da biologia, tendo dessa colaboração nascido um livro onde se expunham já os fundamentos da teoria de Lysenko sobre o desenvolvimento das plantas. a) Biologia anacrónica e ideologia partidária Trofim Lysenko, agrónomo russo, era partidário convicto da hereditariedade biológica dos caracteres adquiridos, e a partir desta crença absoluta, que foi beber ao seu mestre Mitchurine, arboricultor famoso,
proclamou
o repúdio dos cromossomas e dos genes como
suportes da
hereditariedade, negou o mendelismo, as mutações do material hereditário e o seu papel para a evolução. Decretou, em suma, a falsidade da
genética. A questão é, porém, mais dramática e teve consequências de
enorme
alcance. O lysenkismo foi um
movimento
de grande
impor-
tância, não apenas por traduzir uma directa e lamentável intromissão do poder e da ideologia na ciência, com todos os erros e violências con-
sequentes, mas sobretudo porque, apoiado firmemente no poder político, cresceu e perseguiu a comunidade científica. E, assim, o que era falso passou a ser verdadeiro por simples decisão do poder político partidário. Era necessário que os cientistas se curvassem ao poder político, que a
ideologia esmagasse a ciência e a pusesse a fazer milagres na economia (na
agricultura,
sobretudo)
conforme
à ortodoxia.
Sem
o
absoluto
suporte político e ditatorial conferido a Lysenko pelo Partido Comunista Soviético o movimento resultaria minguado e provavelmente não pas-
saria de trocas de pontos de vista sem futuro em círculos da especialidade. Era mais um caso de pseudociência, interessante quando muito
para figurar nos arquivos da história, mas sem interesse para o cidadão não iniciado, sem intervir nas crenças e políticas, e sobretudo sem que
dele
resultasse
a repressão
científica
e policial
que
foi exercida
sem
tréguas durante anos sobre a biologia soviética. Mas como este sector científico passou a ser dirigido pela batuta lysenkista, estalou uma viva oposição em relação à genética e à biologia evolutiva ocidental. Seguiram-se protestos violentos da parte da comunidade cientifica internacio-
nal, representada por alguns dos nomes mais prestigiosos da biologia das décadas de 30 e 40. Esta grande
temente
heresia, que nasceu
se extinguiu em
por volta de
1964, foi um
complexo
1935
e que
movimento
aparen-
ligado à
ideologia partidária e, consoante tem sido afirmado, às condições precárias do desenvolvimento cado
de terminar
com
da agricultura soviética e ao desejo justifi-
elas, modernizando 304
e intensificando
a produção
BIOLOGIA neste
sector
fundamental
da
E
SOCIEDADE —1
economia.
Não
estão,
porém,
bem
escla-
SE
recidas todas as causas e aspectos do fenómeno. Sem dúvida que na sua base existem experiências e ideias, segundo as quais os caracteres adquiridos passam para os descendentes, reavivando-se, portanto, o velho dogma. Lysenko já foi considerado o Lamarck do século xx, o que, quanto a mim, é uma comparação mais do que abusiva, pois o primeiro não tinha o valor nem a originalidade do segundo, além de que este não arvorou a sua teoria em panaceia política, nem com ela pensou
revolucionar
jamais
em
cem-se
diversas
a agricultura ou perseguir os colegas.
grandes
mistificações
é, provavelmente, o que ganhou por
É
fanatismo.
maior
mas
o caso
Lysenko
maiores proporções e o que se traduziu inventou
o nazismo
que
certo
científicas,
Conhe-
uma
antropologia
para uso próprio e serviu-se fraudulentamente da ciência para instaurar uma falsa biologia racial, e à sua sombra praticou genocídios e horrores
de difícil paralelo na história. Mas foi uma mistificação colectiva, toda ela emanando afinal da própria ideologia fascista. O caso Lysenko é
muito diferente. Tratava-se de um homem ambicioso e sectário, de origem camponesa, com uma cultura científica pouco profunda, um tanto místico, mas possuidor de excelente treino como agrónomo prático, e que um certo sucesso na profissão e um conjunto de circunstâncias particulares içaram até à área do poder. E não deve esquecer-se que quase toda a fase vitoriosa do lysenkismo foi abarcada pelos anos direcções
noutras
dirigidas
os quais
durante
da guerra,
dos governantes
as preocupações
importantes do que
mais
estavam
as querelas
cien-
tíficas sobre a validade ou não validade da genética para a melhoria da foram feridas
toda
uma
anos
esforço
pelo
absorvidos de
os
mesmo
E
agricultura.
nação
ao
subsequentes
gigantesco
devastada
pela
da
fim
da
conflagração
reconstrução
demência
de
e sarar
do imperialismo
alemão.
O lisenkismo caracterizou-se fundamentalmente pela negação da genética e de todas as suas consequências para o darwinismo. Sem dúvida que Lysenko se dizia darwinista, mas apenas na medida em gue as variações dos organismos fossem devidas à acção do meio e trans-
mitidas à descendência. Quer dizer:
para ele, todo o darwinismo
que
recusasse a hereditariedade dos caracteres adquiridos era falso, era idealista e reaccionário. É por isso que o lysenkismo pode também ser considerado
como
um
movimento
contra
o neodarwinismo,
contra
o
nascimento da síntese moderna, que nessa crucial década de 30 ensaiava
os primeiros
e seguros
passos. Aliás, Darwin
nunca
concedeu
impor-
tância fundamental à hereditariedade biológica dos caracteres adquiridos e se o lysenkismo, que adoptou as teorias de Mitchurine, como se verá mais adiante), se considera «darwinista», é uma preferência ape-
nas táctica, de pura conveniência para se integrar numa doutrina materialista respeitada e universalmente aceite. Mas é um darwinismo forteBibl. Univ. 49 — 20
305
GERMANO
mente
DA
FONSECA
SACARRÃO
abastardado !'. George G. Simpson
(1969),
um
dos edificadores
da moderna síntese evolucionista, clarifica bem o problema no seguinte trecho, que transcrevo da tradução francesa da sua obra por G. Lender: Deux principales théories matérialistes de Vévolution dominerent pendant la derniere partie du xixº siecle: le Neo-Lamarckisme et le Darwinisme qui évolua en Neo-Dar-
winisme à mesure que les discussions entre les deux
écoles
progresserent. Les Néo-Lamarckistes attribuaient les tramsformations évolutives dans les organismes à Vheérédité de modifications acquises durant leur vie, ces modificatiom: étant le résultat
de leur
activité
et de
Vinfluence
du
milieu.
4
Darwin, ayant travaillé avant de connaitre le mécanisme de Vhérédité, accepta Jhérédité comme vraie, mais il montra qu'elle ne pouvait être qu'une partie secondaire du processus de Vévolution
qui exige
aussi
d'autres
causes
plus
générales.
Cette objection à la théorie néo-lamarckiste a été soulignée par des travaux postérieurs et toute la théorie fut finalement renversée
d'une
maniére
définitive
lorsqu'une
plus approfondie de Vhérédité montra caractêres acquis ne se produit pas. Le
contrôle
de cette
théorie
a été
que
connaissanee
Yhérédité
si approfondi
|;
| i |
des
et les
résultats probants ont été si opposés à la théorie, que le Néo-Lamarckisme est devenu une impasse pour la phupart des évolutionnistes avertis jusqu'a son étonnante réssurreetion, le Mitchourinisme, en Union Soviétique; cette réssurrection a été faite par des biologistes officiels réactionnaires incompétents,
mais
politiquement
puissants.
Depuis
cette
époque, la biologie de Vévolution a été désignée sous le nom de
«Darwinisme»
en
Russie:
pour
être
idéologiquement
.:
Darwi.
|
acceptable, le Mitchourinisme a été présenté comme nisme,
parce
acquis.
En
importance des
que
Darwin
réalité Darwin
secondaire
caractéres
acquis
acceptait
lhérédité
considérait
que
et sa conviction a un
rôle
que
quelconque
de
caractêres
ce fait avait ume
la transmission appartient
à la
petite partie de ses opinions qu'il faut actuellement considiérer comme
étant nettement erronées.
C'est rétrograder seiem-
tifiquement que de faire revivre le Néo-Lamarekisme et c'est une tricherie sur les termes que de le qualifier de Darwi nisme.
(P.
9.)
306
2;
BIOLOGIA
b)
4
a
trindade
E
SOCIEDADE —1I
abater
Para Lysenko, a trindade Mendel-Weissmann-Morgan era o grande inimigo a abater, cujo idealismo e mentiras era indispensável denunciar. Mendel descobriu as leis que presidem à transmissão dos factores
hereditários, ou seja, dos cromossomas e dos genes neles localizados. Weissmann mostrou a existência de uma independência entre a linha germinal (que produz as células reprodutoras) e o resto do organismo (soma), de tal modo que as modificações neste último não se transmitem às células reprodutoras, nem se fixam nos genes. Esta teoria provocou uma grande clarificação conceptual e foi um dos degraus que conduziram à teoria cromossómica da hereditariedade e à moderna genética. Os exageros do weissmanismo foram devidos a indivíduos que entre as gerações é assegurada por
não eram biólogos. A continuidade
tecidos embrionários e pelas células germinais deles derivadas. A concepção de uma separação de funções entre as células diferenciadas, que
constituem o corpo (soma), e as células germinais (não especializadas),
que constituem o germe, e mantêm potencialidades organizadoras, e das
quais
o novo
portanto,
provém,
organismo,
foi a contribuição
funda-
mental de Weissmann. Reconhecer esta separação (que não é absoluta) entre duas partes que fazem parte do mesmo conjunto, mas têm des-
tinos ontogenéticos diferentes, foi um dos grandes passos que rasgaram o caminho
à moderna
altamente
problemática
biologia evolutiva, na medida a hereditariedade
em que tornou adquiridas
das modificações
pelo soma, pois não é este que transmite os factores hereditários à nova
geração, e a experiência e a lógica mostram que as configurações e os
hábitos adquiridos não são transponíveis do corpo para as células repro-
dutoras. Compreende-se, assim, que Weissmann tenha vibrado um golpe
mortal na hereditariedade biológica dos caracteres adquiridos. Lysenko e outros advogados desta teoria-crença pretendem, no fundo, voltar à pangenesis, teoria em voga no final do século XIX, que precedeu a teoria
da hereditariedade,
eromossómica dos antigos
gregos,
sobretudo
em
doutrina Demócrito,
que já nascera
na mente
velha, portanto,
de dois
mil anos. Na essência, essa teoria diz-nos que cada órgão, cada parte do organismo, envia partículas, «moléculas» representativas (ou pangenes) deles, com as suas propriedades e configurações, e que tais partículas convergem todas para as células reprodutoras, nomeadamente para o sémen quando introduzido na fêmea no acto da copulação, como pensava o filósofo grego. Para ele, a intensidade do orgasmo explicava-se
pela pronta arremetida e simultânea de todos os pangenes todos os pontos do corpo para o sémen. Darwin
vindos de
recorreu à teoria da hereditariedade biológica dos caracte-
res adquiridos
e fez
reviver
da existência de gémulas,
a velha
teoria de Demócrito,
sob a forma
como sendo as partículas representativas de 307
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
como
cada órgão e produzidas neles exactamente nos elementos
Tais partículas entrariam características
dos
órgãos.
Ora
reprodutores
era
isto
uma
pangenes.
os velhos
transportando
tentativa
de
as a
explicar
hereditariedade dos caracteres adquiridos, as variações e as semelhanças relativamente aos progenitores, a razão de os filhos se parecerem com
os pais e serem diferentes entre si, visto que os caracteres do corpo e as suas modificações por acção directa do meio, do uso e do desuso eram
captados e transportados nessas misteriosas gémulas, zindo-se nas células germinais
as quais, introdu-
(espermatozóides e óvulos), transmitiam
à descendência esses caracteres. Esta concepção da hereditariedade, em que se misturam, em todas as proporções, dois plasmas contendo as gémulas de cada progenitor, dominou o pensamento biológico até final do século xix. Diga-se de passagem que a teoria dos pangenes, renovada por Darwin, é a sua contribuição medíocre, teoria para a qual não havia qualquer suporte sério. É de crer que a ideia de hereditariedade do adquirido se impusesse de tal modo aos espíritos que raros eram os que concebiam outro modo de hereditariedade. E Darwin vergou-se a essa crença comum e decidiu dar-lhe uma aparência científica º. Ora o que é o lysenkismo senão a exaltação sectária da bolorenta teoria dos pangenes, arvorada em dogma sagrado? Repare-se, por exemplo, no trecho do seu relatório quando ele afirma que a transmissão hereditária
do corpo»
nas células germinais do organismo (v., mais adiante, a p. 316, onde se transcreve a referida passagem de Lysenko, que o autor teve o cuidado de sublinhar inteiramente para assim evidenciar a enorme imporApesar de Darwin adquiridos,
a Origem
gia
tância que lhe atribuiu).
and
se faz por «inclusão das substâncias da parte modificada
ter admitido não
contém
a hereditariedade dos
fantasias
pangenéticas.
caracteres Mas
isto é,
de
variações
hereditárias
acidentais,
sem
relação
necessária
com
as
necessidades do organismo nem com as condições do ambiente, variações que o ambiente selecciona ou elimina, tudo aspectos que desagradam aos lamarckistas ortodoxos ou desviados, e às ideologias que se nutrem do mesmo princípio dogmático. Será talvez por isso que
Lysenko
acusa Darwin
de ter cometido
uma
série de grandes
erros,
nomeadamente que a selecção seja um processo a traduzir uma relação concorrencial e competitiva dos organismos pela sobrevivência, de que
teria recebido a inspiração em Malthus. Mas Darwin ditariedade dos nes, que é uma
adoptou a here-
caracteres adquiridos, reformulou a teoria dos pangetentativa de fundamentar cientificamente esse conceito
milenário. E fê-lo no seu livro Variation of Animals and Plants under Domestication (capítulo sobre «Pangenesis»), obra que Lysenko cer 308
pesei
por assim dizer, secundário, porque a teoria revolucionária é a que estabelece o conceito científico de selecção natural, com a noção impliícita e fundamentalíssima da existência nas populações de organismos
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —1
tamente
não devia desconhecer, homem
agrícola.
O
inglês
erro
inspirado
natural
e admitir
devotado como era à prática
fundamental
de Darwin
em
para elaborar
Malthus
como
um
seria o ter-se o naturalista
a sua teoria da selecção
facto a competição
na natureza
viva. Mas
está demonstrado que as coisas não são assim tão simples e esquemáticas. A dívida de Darwin a Malthus tem aspectos diferentes dos que correntemente lhe são atribuídos !º. Por outro lado, não será legítimo perguntar: como se pode aceitar
implicitamente, darwinismo
sem,
e o conceito de selecção natural, como faz Lysenko,
o darwinismo
sem
competitivos
fenómenos
admitir
naturais?
é o
Que
de selecção de variantes na luta pela exis-
o conceito
que o que os mitchurinistas e lysenkistas prefe-
tência? Afigura-se-me
riam era um darwinismo sem Darwin, colocando no lugar deste um Lamarck. Chego assim à conclusão de que a não aceitação absoluta,
incondicional, da hereditariedade dos caracteres adquiridos é que teria ponto
sido, no
a grande
de Lysenko,
de vista
falta de Darwin.
O seu
grande pecado teria consistido em não considerar a origem das espécies um
como
resultante
fenómeno
das
directa
acção
da
condições
do
ambiente, cujos efeitos logo passariam à descendência. Mas também aqui não devemos esquematizar. À crítica ao darwinismo científico tem
fundas razões ideológicas ””.
No
tempo
de Darwin
houve
quem
realizasse experiências para
testar a sua teoria dos pangenes ou gémulas. Um sentido
foi realizado por seu primo,
celebrado
havia
de
como
ser
homem
dos trabalhos nesse
Francis Galton de
ciência.
que
(1871), Num
outro
tão
artigo
publicado no mesmo ano (intitulado «Pangenesis»), Darwin defende a sua teoria. Galton provara, por meio de experiências de intertransfu-
são entre diferentes variedades de coelho, que não podia haver as tais «gémulas» no sangue. Darwin responde no artigo referido afirmando que nunca dissera que essas partículas existiam no sangue, mas pensa que elas impregnam todos os tecidos do organismo e difundem através deles, de célula para célula, independentemente dos vasos sanguíneos. Galton conclui que a teoria da pangénese é falsa, mas a isto Darwin responde que a conclusão é um pouco precipitada («is a lutle hasty» ). É
curiosa
a passagem
de
Darwin,
no
mesmo
artigo,
quando
diz que,
se Galton tivesse provado a existência de elementos reprodutores no sangue dos animais superiores, que fossem simplesmente separados, ou reunidos pelas glândulas reprodutoras, certamente teria feito uma descoberta fisiológica da maior importância. Continuava, portanto, aferrado à ideia das gémulas. Mas reconhece que a teoria apresenta diversos pontos vulneráveis e que, portanto, a vida da hipótese dos pangenes continua ameaçada, mas que não é desta vez, afirma, que lhe dão o golpe de misericórdia. Darwin não é, portanto, dogmático, admite poder estar errado, mas está firme nas suas ideias, neste caso com bases 309
GERMANO
bem
frágeis,
o
que
não
DA
era
FONSECA
seu
SACARRÃO
hábito.
Note-se
também
a
diferença
c)
«Abalar»
escritas
Si
ge
A a
td
AA "ia
ad fr
dm
is Si
entre o espírito de Darwin, aberto à dúvida e reconhecendo a fraqueza da sua teoria das cgémulas» por apresentar «so many vulnerable points», e a teimosia sectária de Lysenko e seus parceiros, que retiravam o critério de verdadeiro ou de falso dos dogmas ideológicos e políticos, e não dos factos que constrangem. Quanto aos outros componentes da trindade amaldiçoada, não vou espraiar-me em explicações. Mendel descobriu as leis que presidem à transmissão dos factores hereditários (genes), que se combinam intactos de geração em geração, e Morgan elaborou a teoria do gene, demonstrou a sua presença nos cromossomas, lançando as bases da genética moderna. São grandes passos na história da biologia, que não é este o lugar para desenvolver e particularizar. a hereditariedade
Lysenko foi buscar o essencial das suas ideias a Ivan Mitchurine (1855-1935), arboricultor de muito valor e o fundador de uma dou-
trina — o mitchurinismo. Muitos biólogos soviéticos seguiram as ideias de
Mitchurine,
mas
o representante
mais
famoso
da
sua
escola
foi
v. g. temperatura).
modificações
adquiridas
À
hereditariedade
passariam
torna-se
à descendência.
«ins-
aspecto divergente relativamente ao lamarckismo reside no próprio significado do vocábulo «hereditariedade». Julian Huxley escreveu & propósito (1950, pp. 28-29): «[...] os mitchurinistas servem-se de termo hereditariedade para designar o que os geneticistas ocidentais chamam, em geral, constituição hereditária, a fim de evitarem a com fusão com a hereditariedade considerada como processo geral. Fazem
-no,
segundo
parece,
para
evitar 310
qualquer
ideia
de
base
tim
Outro
material
E
ambiente,
e as
pu
do
Ego
ques
tável»
iii
curso de outros seus discípulos. Esta teoria é, como tenho referido nas páginas anteriores, uma versão pouco modificada do lamarckismo, sendo o seu pilar fundamental a hereditariedade biológica dos caraeteres adquiridos. É mesmo quase só isso, visto que, sem o velho postulado, o lysenkismo nada é, o que não aconteceu com a teoria de Lamarck, que foi inovadora noutros aspectos fundamentais. O mitchurinismo distingue-se do lamarckismo sobretudo por dois aspectos. Um consiste em atribuir grande importância a um fenómeno a que Lysenko chamou «sacudidela» ou «abalo» da hereditariedade (shaken heredity ou hérédité ébranlée). Significam essas expressões que há rompimento da estabilidade normal da constituição hereditária de um organismo, provocado, por exemplo, por via experimental (cho-
acta
Lysenko, que, baseado nela, elaborou uma teoria com a colaboração de I. T. Prezent, filósofo do materialismo dialéctico, e ainda com o con-
BIOLOGIA
especializada
da
E
hereditariedade,
SOCIEDADE — 1
tal
como
ela
pelo
descoberta
foi
neomendelismo». Para os mitchurinistas, a hereditariedade (cito as pró-
prias palavras
de Lysenko,
1948;
e cf. também
Lysenko,
1943)
«é
inerente não somente aos cromossomas como a cada uma das partículas
do organismo vivo». Por outro lado, ela é suposta ser um processo da
mesma
dos co natureza que o vulgar metabolismo, o ciclo químico
vivos que implica, entre outros aspectos, a assimilação ou edificação, a partir de substâncias relativamente simples de matéria viva, e a compostos desassimilação ou decomposição posterior da matéria viva em
mais simples. E é ainda Lysenko que diz (loc. cit.): «A hereditariedade
é determinada pelo tipo específico de metabolismo. Basta mudar o tipo
de metabolismo
num
organismo
modificação
vivo para obter uma
da
hereditariedade.»
A transmissão hereditária para o mitchurinismo-lysenkismo é, porde tanto, inconcebível sem o reconhecimento absoluto da hereditarieda
biológica dos caracteres adquiridos. É este o ponto crucial de toda E,a de Lysenko estão. O trecho seguinte, que extraio do relatório referido: é elucidativo quanto a alguns dos aspectos que tenho Os representantes da genética mendeliana-morganista não somente são incapazes de obter modificações dirigidas da hereditariedade
em
definidas
direcções
como
negam
catego-
ricamente a possibilidade de modificação da hereditariedade de maneira adequada às condições do ambiente. Ora a doutrina de Mitchurine diz-nos que podemos modificar a hereditariedade, em plena concordância com a acção efectiva das condições de vida. Um caso elucidativo respeita às experiências de transformação de trigos de Primavera em trigos de Outono ou então trigos de Outono em trigos ainda mais tardios, nas regiões da Sibéria, por exemplo, onde os Invernos são rigogorosos. Estas experiências têm um interesse não só teórico
como têm um grande interesse prático para obtenção de estirpes resistentes ao frio. Já se obteve uma série de formas de trigo de Inverno a partir de estirpes primaveris, que não são inferiores,
no
que
respeita
à
resistentes estirpes naturalmente na prática.
Algumas
resistência
ao
frio,
às
mais
resistentes e já conhecidas
são até superiores.
Numerosas experiências demonstram que quando se procede à eliminação de um certo tipo de hereditariedade já de há muito estabelecido, não se obtém prontamente uma nova hereditariedade estável e solidamente implantada, Na maior 311
GERMANO
parte
dos
casos,
DA
o que
FONSECA
SACARRÃO
se
são
obtém
organismos
de
natureza
plástica que 1. Mitchurine apelidou de natureza «abalada», Organismos com natureza «abalada» são os vegetais nos quais se eliminou o conservantismo e se enfraqueceu o selectivo em relação às condições do meio ambiente. Nestes vegetais, em lugar da hereditariedade conservadora, é pre
servada ou surge neles apenas uma tendência para dar certa preferência a determinadas condições. Pode obter-se o «abalo» de um organismo vegetal: 1.º 2.º 3.º
Por via de enxerto, ou seja pela reunião dos tecidos de plantas de diferentes espécies. Agindo sobre as condições do ambiente em certos momentos em que se realiza tal ou tal processo do desenvolvimento do organismo. Por cruzamento, sobretudo entre espécies ou variedades nitidamente diferenciadas no que respeita ao habitat ou à origem.
Os melhores biologistas, e em primeiro lugar, sobretudo, I. Mitchurine,
atribuíram
sempre
uma
grande
importância
prática à obtenção de organismos vegetais com hereditariedade
«abalada». As espécies vegetais plásticas com hereditariedade instável, obtida por qualquer dos métodos antes enumerados, devem de futuro ser cultivadas de geração em geração sob aquelas condições de exigência de meio ou de adaptação que
a
aséE
queremos induzir e perpetuar nas referidas espécies.
É óbvio, portanto, que o mitchurinismo-lysenkismo armadura
lógica, pelos seus alicerces
teóricos
e pelos
é, pela sua
Ê
resultados
3é
espera, fundamentalmente lamarckista. É um lamarckismo prático virado para a transformação da agricultura. Lamarck, por um lado, nunca parece ter-se interessado por quaisquer implicações práticas do princípio da hereditariedade biológica dos caracteres adquiridos (quer no domínio da agricultura, quer no campo social), como fundamente para
acreditar
em
tal
tipo
de
hereditariedade
(v.
Burkhardt,
1977).
O lysenkismo apresenta, pois, desvios relativamente
ckismo
tradicional, mas sem ele não é nada. Além
i
4
!
Jr.,
$
ao lamar-
disso, para Lamarek,
o organismo não é um corpo passivo a ser simplesmente moldado pele meio no bom sentido requerido: aprende, por assim dizer, a utilizar os recursos, a estabelecer novas condições, a reagir ao ambiente. O que é falso no lamarckismo não é a reacção dos seres vivos ao ambiente.
mas sim que eles possam alterar a sua hereditariedade sempre 312
à
no sem
4
É
É
â5
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE -— I
tido imediatamente favorável, de modo a transmitir à descendência a reacção específica (uma nova morfologia, uma nova função, etc.) adquirida. Foi nesta teoria obsoleta que se apoiou toda a teoria e prá-
tica de Lysenko, toda a sua biologia aberrante. d)
«Esprit
de systeme»
Lysenko,
porém,
aproxima-se
de Lamarck
noutro ponto. Ambos
são impacientes construtores de sistemas assentes em fracas fundações, do esprit de systême, que é isso mesmo (v. Burkhardt, Jr., op. cit.). Esta tendência para construir sistemas, com «factos» duvidosos, de que não há o cuidado de testar a validade, tem constituído um sério
obstáculo ao progresso da ciência. Homens do
seu
fanatismo,
quando
acertam,
acertam
razão do que a maioria. Mas também mais
frequente),
erram
como Lamarck, por causa enormemente,
quando erram
enormemente,
têm
mais
(o que é muito
desastrosamente
(v.
também
Cain, 1977). O seu sucesso não é uma resultante do espírito científico, do método científico. Acertam independentemente da ciência, e a maioria das vezes contra ela. É por isso que o esprit de systême, o crank, constitui um sério travão ao progresso científico. O seu grande motor é a teimosia, a crença enraizada e inamovível, muitas vezes (mas não em Lamarck)
tem o seu grande
alimentada, empurrada, pela fraude. Lamarck
lugar na história da ciência”. Foi um naturalista
ilustríssimo, com uma obra notável. Mas a sua filosofia natural, as suas ideias sobre a natureza da vida, a sua teoria da evolução, não conven-
ceram os seus pares, e não foi um homem à frente do seu tempo. As grandes perspectivas, as grandes sínteses, «les grandes vues», estavam sempre a apaixonar o seu espírito. Buffon também era assim, e a biologia francesa foi influenciada muito pelo «esprit de systême» de Lamarck. No tempo de Lamarck, a procura paciente dos factos e a sua contraprova experimental já eram uma característica dominante. Neste aspecto, Cuvier é um grande exemplo, um grande inspirador, partidário do rigor da observação e da estrita colagem aos factos, cuja crescente acumulação
constituía
neos, Lamarck
o supremo
objectivo,
Para
os seus contemporá-
tinha pouco crédito porque as suas ideias não tinham
os fundamentos geológicos, físicos ou químicos do seu tempo, nem eram apresentados
trabalho
com
aquela
sobriedade
que
é uma
das garantias
de
um
científico.
Quanto a Lysenko, ele não foi apenas crank, um fanático construtor de teorias, sem qualquer solidez, nem raizes nos factos científicos
do seu tempo. Comete-se, porém, uma injustiça quando os aproximamos
por isso, e não se salienta aquilo que tanto os afasta. Lysenko foi motivado por ambição, por sujeição partidária, por ideologia, por paranóia 313
ri CASA
FONSECA
SAGARRÃO
EG
DA
extraordinariamente
(1980 a):
Lysenko's
debate with
the outset, a legitimate
repressivo.
the Russian
scientific
Como
disse
Gould
Mendelians
was at
argument.
Later,
he held
on through fraud, deception, manipulation, and murder-that is the tragedy. O verdadeiro sentido e as verdadeiras causas do drama provocado pelo mitchurinismo-lysenkismo não são simples nem fáceis de apurar, e a prova disto reside nas múltiplas análises, estudos e justificações que
se têm
feito acerca
desse movimento,
num
tema
que
não parece
estar esgotado e continua a suscitar a curiosidade. Sem pretender introduzir-me no exame aprofundado do problema, julgo todavia útil fazer uma pequena síntese das opiniões expendidas sobre as mais importantes razões
que
provocaram
e alimentaram
a controvérsia.
Importa,
para
isso, registar alguns aspectos do que se passou na Academia das Ciências Agrárias. e)
Sessões
da Academia
A Academia Lenine das Ciências Agrárias foi o teatro onde se desenvolveram alguns aspectos deste grande drama e conjuração: Na sessão de Dezembro de 1936, reunida em Moscovo, Lysenko, Prezent e associados dirigiram os seus primeiros ataques em forma contra Vavilov (na ocasião vice-presidente da Academia), contra as teorias e práticas da genética. Seguiu-se a eliminação de Vavilov; e a partir daí Lysenko e os seus parceiros obtiveram o completo domínio
da biolo-
gia na União Soviética, quer no domínio da investigação, quer no sector do ensino. O Congresso Internacional de Genética a realizar em Moscovo em 1937 foi anulado pelas autoridades soviéticas e mais tarde transposto para Edimburgo (1939), congresso para o qual Vavilov fora eleito presidente. O seu renome como cientista era devido, em
grande parte, aos seus trabalhos sobre a origem, distribuição e diversidade das plantas cultivadas em várias partes do mundo. Fi O segundo acto ocorreu na reunião da Academia em Outubro de 1939. Lysenko
defenderam
atacou pessoalmente Vavilov e outros cientistas, que se
como
puderam,
numa
sessão que mais se assemelhou 314
a um
pe RO Deay
near SD até DAP UER
pensamento
o scbas
de
sic do
suas funções ?. A doutrina político-ccientífica» passou a ser um sistema
ida lipo o Ie Pad
e muito provavelmente por fraude, tendo, além disso, provocado e ins: tigado a perseguição de cientistas, que foram presos ou demitidos das
E paE
D o SS
GERMANO
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —1
julgamento do que a uma reunião científica. Após esta trágica sessão,
Lysenko e o seu grupo lograram poder absoluto sobre a biologia em
todo o país. No ano seguinte consumou-se a eliminação de Vavilov. O terceiro acto veio com a reunião da mesma Academia em
1948,
onde Lysenko (que presidiu), Prezent e outros fizeram uma acusação final e definitiva dos mendelianos sobreviventes e eliminaram as últimas resistências. Lysenko apresentou o seu famoso relatório inaugural sobre o estado da ciência biológica, com as suas ideias e teorias biológicas à mistura. O relatório inaugural foi aprovado no meio de aplausos entusiásticos, com os académicos de pé, com discursos inflamados a apoiar Lysenko, alguns a discordarem dele, e o muito mais que é conhecido e está publicado. Houve posteriormente retractações e confissões de culpa, expressas em cartas dirigidas ao Partido e a Estaline, com promessas de ajudar ao desenvolvimento do mitchurinismo, etc. Foi tudo na
publicado
e as comunicações
Pravda,
e textos oficiais da reunião
Nesse relatório foram reunidos e publicados em russo, inglês e francês. explana
os seus
a sua metafísica e as suas ideias científicas,
ataques,
numa longa diatribe que nos revela que os factos pouco contavam em face da ideologia e que o materialismo dialéctico nas suas mãos ficava suficientemente elástico para lá caberem os seus argumentos, as suas
paixões e a sua confusa biologia. Passo a transcrever algumas passagens onde é evidente que a hereverdade
dos
biológica
ditariedade
isso sejam apresentados quaisquer
que para
indiscutível, sem
uma
é proclamada
adquiridos
caracteres
argumentos ou factos científicos. A teoria materialista da evolução dos organismos vivos implica a necessidade de reconhecer a transmissão hereditária das características individuais adquiridas por um organismo sob condições definidas da sua existência, teoria que é impensável se não se admite a hereditariedade dos caracteres adquiridos. Weissmann, contudo, refutou esta posição materialista. Na sua obra Conferências sobre a Teoria da Evolução,
Weissmann tal
forma
declara que «não só não existem provas de uma
de
hereditariedade,
como
ela
é inconcebível
do
ponto de vista teórico». Baseando-se em declarações precedentes do mesmo teor, Weissmann declara que «assim foi declarada guerra ao princípio de Lamarck sobre os efeitos modificadores
directos
do
uso
e do
desuso,
e que
tal
facto
marcou realmente o começo da luta que ainda hoje prossegue entre os neolamarckistas e os neodarwinistas, tal como foram
designados
pelas
partes
315
adversas».
(P.
9.)
GERMANO E
mais
DA
FONSECA
SACARRÃO
adiante:
Primeiramente, as posições bem conhecidas das condições externas na formação do organismo vivo e a hereditariedade dos caracteres adquiridos, em oposição à metafísica
do neodarwinismo (ou weissmanismo), não são de modo nenhum erradas. Pelo contrário, são inteiramente verdadeiras
e científicas. (P. 12.) E logo a seguir: Nós, os representantes niana, afirmamos
da tendência
que a hereditariedade
soviética
mitehari-
dos caracteres
adqui-
ridos pelas plantas e pelos animais no decurso do seu desenvolvimento é possível e necessária. (P. 13.) E
ainda:
As modificações
da hereditariedade
resultam,
de o desenvolvimento do organismo se fazer externas que, em certa medida ou outra, não às exigências
naturais
de dada forma
em
sob condições correspondem
orgânica.
Modificações nas condições de vida provocam modi ficações no tipo de desenvolvimento dos organismos vegetais. O tipo de desenvolvimento alterado é, assim, a causa fundamental da modificação da hereditariedade *. Todos os organismos que não podem modificar-se de acordo com as novas condições de vida não conseguem sobreviver e não deixam descendência. (Pp. 27 e 28.) E logo abaixo: O grau de transmissão hereditária das alterações depende
do grau de inclusão das substâncias da parte modificada
E
do
* Os itálicos são de T. Lysenko.
316
nd
oem
BIOLOGIA
corpo em
E
SOCIEDADE — 1
toda a cadeia do processo que conduz à formação
das células reprodutoras do organismo, sexuais ou vegetativas. (Pp.
também:
O id
E
28-29.)
A hereditariedade é o efeito da concentração da acção das condições do ambiente externo assimiladas pelo organismo numa
série de gerações
precedentes.
(P. 31.)
Mais adiante se verá que, segundo o mitchurinismo-lysenkismo, a hereditariedade de um organismo pode experimentalmente ser «abalada», ficando num estado de instabilidade que depois se estabilizará de acordo
as novas
com
de meio, dando um
condições
organismo
de
outra espécie. E com tais «sacudidelas» ou «abalos» o homem está em condições de rapidamente mudar umas espécies noutras espécies. Lysenko,
nas
suas
forma verdadeiramente tários:
conclusões,
lidas no último
extraordinária, que
dia, começa
desta
de comen-
não necessita
Camaradas, antes de passar às conclusões, julgo ser meu
dever fazer a declaração seguinte. Num dos papéis que me passaram perguntam-me qual é a apreciação do comité central do Partido acerca do meu relatório. Respondo: o comité central examinou o meu relatório e aprovou-o. Quero agora apresentar algumas conclusões sobre a presente sessão.»
Lysenko atingiu nesta memorável reunião de Agosto de 1948 o cume da sua influência e poder. Recebeu várias e altas condecorações (repetidas
Ordens
Socialista,
etc.),
de
foi
Lenine
eleito
e Prémios
para
Estaline,
a Academia
das
Herói
do
Ciências
Trabalho
da
URSS
e também para a da Ucrânia, e para presidente da Academia Lenine das Ciências Agrárias de 1938 a 1956 e 1961 a 1962. Era um verdadeiro ídolo, um semideus, cuja palavra era sagrada, cujas ideias e proclamações, por muito bizarras ou incríveis que fossem, eram indiscutíveis e inalteráveis.
Do ponto de vista profissional, Lysenko começou como especialista do Departamento de Fisiologia do Instituto de Selecção e Genética de Odessa (1929 a 1934), mas ascendeu rapidamente ao lugar de director 317
GERMANO
da mesma foi
instituição
director
do
DA
(1935
Instituto
de
FONSECA
SACARRÃO
a 1938);
e finalmente,
Genética
da
de
Academia
1940
das
a 1965,
Ciências
da
URSS.
f)
Varias
causas
Em face do triunfo do mitchurinismo-lysenkismo, várias questões complexas surgem, a exigir resposta. Julian Huxley contribuiu lucidamente para lhes dar resposta, num livro notável, publicado em 1950, se bem que não tenha esgotado o tema nem dissipado todas as dúvidas.
Várias obras foram depois publicadas sobre o mesmo tema, muitas delas de muito mérito. Como se compreende (pergunta Huxley) que, sendo a ciêneia soviética em geral de alto nível, a Academia das Ciências da URSS tenha dado a sua bênção ao mitchurinismo-lysenkismo, doutrina duvidosa, sem as características de uma
teoria científica?
E sobretudo que
tenha feito a condenação científica da genética mendeliana, que fez as suas irrecusáveis provas, ciência que estava em permanente progresso, e universalmente reconhecida como um dos ramos mais vigorosos e promissores da biologia? Será porque era essa a determinação do Partido e a Academia teve de submeter-se-lhe? Se foi assim, surge nova dúvida. Por que razão se conferiu toda a protecção oficial ao mitehurinismo-lysenkismo?
Será porque
Lysenko
tinha
protectores
poderosos
nos círculos políticos? Mas então pergunta-se: por que razão esses politicos deram absoluta preferência ao lamarckismo e anatematizaram o mendelismo, e isto durante mais de vinte anos? Como explicar que não tenham dado ouvidos a conselheiros científicos que, sem pressão política, lhes teriam facilmente revelado as falsidades e ilusões do
lysenkismo, e que, afinal de contas, uma zir bons
resultados
práticos»?
«má
Estas questões
ciência não pode producomplexas
pedem
respos-
tas complicadas que muitos autores já deram e desenvolveram. Se às opiniões e críticas dos diversos autores juntarmos a vantagem
que representa o tempo decorrido desde a queda de Lysenko, e de que o presente, implacável e friamente, demonstra os imensos erros e deturpações cometidos, poderemos, com tal recuo temporal, formular uma pequena súmula das razões fundamentais que provavelmente actuaram
na
génese
e triunfo
do
dogma
lysenkista.
Agrupo-as
nos
seguintes
pontos:
1) Dificuldades
crónicas da agricultura
e, portanto,
necessidade
premente de obter resultados práticos rápidos no domínio deste vasto sector económico, 318
BIOLOGIA
2)
Um
E
SOCIEDADE —I
poder político totalitário que orienta e domina a comunidade científica e determina, para muitos aspectos, o que é
verdadeiro e o que é falso, em conformidade com os interesses do Estado e com a ideologia do partido que o sustém, e ainda com as crenças dominantes nos círculos oficiais, em relação mais ou menos
directa com
essa ideo-
logia e com a filosofia que a suporta. 3)
Uma
ideologia
que
rejeita
o determinismo
e a desigualdade
genética, a sua aparente fatalidade, e dá toda a ênfase à acção do meio como factor da evolução, que o homem deliberadamente pode transformar rapidamente e, com
4)
ele, a própria sociedade e a natureza, com prontos resultados práticos. simplicidade do lamarckismo, que contém em si mesma a promessa de rápidas soluções, de poder intervir e modifi-
A
car a hereditariedade biológica das espécies, em particular
criando novas variedades e espécies agrícolas. Essa simplicidade faz que a doutrina seja facilmente compreendida e adoptada pelo poder político e pelos trabalhadores, numa sociedade onde o ambiente ideológico pressupõe a necessidade de uma pronta assimilação da ciência e da arte por todos os cidadãos, a fim de todo o povo participar no esforço nacional de produção e de renovação. 5) A personalidade de Lysenko, homem teimoso, um tanto miístico, ambicioso e de poucos escrúpulos, tendo a seu favor um certo sucesso profissional inicial que à partida lhe deu um
bom
crédito
(no domínio sobretudo da fisiologia
vegetal aplicada à agricultura). Em
suma,
económicos,
o fenómeno
ideológicos,
lysenkista resultou da acção de factores
políticos,
sociais
e individuais
que
operaram
de maneira convergente e muito complexa, e onde nem tudo está aclarado. Lysenko tirou habilmente partido do sistema ideológico altamente organizado do Estado soviético de então, no interior do qual ele soube
mover-se, influenciar e orientar a biologia para o destino que está implicito nesse sistema: que a ciência é um meio de obter resultados práticos e realizar a transformação da sociedade e da natureza. O seu erro e as suas culpas não consistiram em seguir esse sistema, mas sim em fazer
pseudociência, em repudiar o método científico e, sobretudo, em considerar que o triunfo das suas ideias implicava a perseguição dos seus colegas geneticistas e de todos os biólogos que não seguissem o seu credo.
A questão, como acima disse, é complicada e não creio que tenha sido
perfeitamente
dilucidada.
Muitos
Re
319
factores
maiores
ou
menores
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
entraram em jogo. Um patriotismo forte, a necessidade de uma grande nação de regime socialista querer demarcar-se dos países capitalistas, afirmando a superioridade da sua ciência, dos seus técnicos e das suas realizações práticas, tiveram, sem dúvida, um certo papel. Um imenso país, riquissimo em recursos, caracterizado por múltiplos climas, e com uma natureza em extremo variada, quando dirigido por uma forte
ideologia revolucionária de transformação rápida da sociedade, tenderá a distanciar-se dos outros sistemas. Este gigantismo é favorável à eclosão de experiências ousadas e de grande dimensão; e todas estas dimensões fora do comum tornam também difícil assinalar onde começa
o erro e quando se instala a fraude e permitem iludir e aliciar políticos poderosos. Ademais, o clima de culto da personalidade como aquele em que
viveu
Lysenko
provavelmente
durante,
sobretudo,
a fase
da
sua
ascensão
a sua quota-parte significativa na embrulhada
tica que se desenrolou,
tanto mais
que
Estaline
teve
dramá-
(convicto lamarckista,
ao que parece) apoiou a grande experiência agrícola de Lysenko e sancionou, se não mesmo
A rada,
inspirou, essa «nova» biologia.
crença na hereditariedade por influência
de Lysenko,
dos caracteres
adquiridos,
conside-
doutrina oficial, a única verdade, a
fonte de uma nova biologia, fez que, quando da queda de Lysenko,
e 1948
tivessem
soviética teria emparceirado
fundamentais
Dobzhansky,
de
Huxley,
Haldane,
livremente
e tantos outros, na edificação
constitui a moderna
URSS
continuado,
condignamente Whight,
na
Fisher,
com
a contr
os trabalhos
Simpson,
da poderosa
neste Mayr,
sintese que
teoria da evolução biológica.
Tem interesse, julgo eu, transcrever alguns comentários feitos por dois biólogos ingleses de renome internacional, com simpatias pele comunismo. Assim, um dos mais importantes geneticistas e evolucionistas deste século foi, certamente, o Prof. J. B. Haldane. Marxista cons fesso, escreveu o seguinte em 1951:
É todavia certo que a maior parte dos caracteres adquis ridos não são herdados. Apesar das muitas tentativas feitas, ainda não se verificou qualquer exemplo deste fenômeno. nos metazoários,
do que
uma
onde
o carácter
transmitido
tenha persistido mais
geração.
Haldane é, todavia, um tanto reticente («On ne peut pas dani dire qu'en principe la transformation Lamarckienne est impossible», 320
RR DR
1925
obtidos
K
buição
entre
Se os progressos
ha sd
domínio
do postulado.
spo D bo EI
e irracional
se não fora o peso ideológico
eo atear PR
buição soviética poderia ter sido enorme
A
em 1965, a biologia evolucionista, tão forte na URSS e tão rica de nomes ilustres, estivesse atrasada vinte anos (Adams, 1980). A contri-
BIOLOGIA
idem).
Parece-lhe
provável
E
SOCIEDADE — 1
que
Lysenko,
actuando
pela vernalização
sobre os vértices vegetativos do trigo, tenha podido modificar alguns dos
seus caracteres hereditários. Mas é preciso reparar que Haldane apenas aceitou essa eventualidade, que pensou poder ser provável nas plantas, onde as células germinais são extremamente sensíveis ao meio ambiente, facto que nega nos animais, como aliás é bem conhecido. E essa influência não é forçosamente do tipo «carácter adquirido», visto que modificaria alguns caracteres hereditários que poderiam, ou não, revelar-se úteis para o fim em vista, ou seja, obter novas estirpes de trigo mais
resistentes ou de melhor rendimento. Ora a modificação de genes por acções exteriores (raios X, choques de temperatura, etc.) era facto já bem conhecido por toda a parte e bem comprovado. Mas isto nada tem a ver com o conceito de herança biológica de caracteres adquiridos. Haldane, porém, verga-se um tanto à ideologia, esquivando-se a apreciar as opiniões de Lysenko e de seus discípulos, ou a pronunciar-se sobre a condenação oficial da genética mendeliana em obediência às directrizes
de
um
partido
neodarwinismo, que
(cf.
Huxley,
também
que
a
e
Mas
hereditariedade
é de reconhecer
Aceita,
portanto,
mendeliana
possui
(como os lysenkistas afirmavam
base material e não metafísica
tinha).
1950).
se declara em absoluto a favor do neomendelismo e do
que Haldane uma
político
a existência dos genes conforme
a teoria
do gene de Morgan, e considera absolutamente injustificados os ataques que
marxistas»
«círculos
dirigiram
contra
a genética
mendeliana.
Recusou, assim, implicitamente, qualquer fundamento ao Iysenkismo, doutrina que negou a existência de genes, e portanto a sua importância
como base material da hereditariedade. Esta posição de Haldane aparece-nos hoje como óbvia, mas em 1950 a situação era muito diferente
tanto mais que ainda não era ideia corrente que os genes fossem constituídos por ADN, que eram porções desta molécula gigante, além de muitos outros factos de muita importância. À genética mendeliana
estava no encalço dessa descoberta que revolucionou a biologia, estava
portanto na via certa, o que não acontecia às velharias dogmáticas do lamarckismo-lysenkismo, que ficou fora da modernidade, de onde nada retirou para oferecer ao futuro, como o tempo decorrido amplamente provou. A biologia molecular e a engenharia genética dos nossos dias são desenvolvimentos, são os naturais prolongamentos do darwinismo-mendelismo-morganismo, e de modo algum os frutos da estafada teoria da hereditariedade biológica dos caracteres adquiridos, que ficou estéril, e já o era, como o mundo científico mais progressivo muito bem sabia nas décadas de 30 e 40. O outro
cientista
inglês
a que
desejo referir-me
foi o Prof. J. D.
Bernal, cristalógrafo, físico e historiador da ciência. Este, pelo contrário, faz a defesa do mitchurinismo-lysenkismo e justifica a existência de uma ciência burguesa em oposição a uma ciência soviética. Para Julian Bibl. Univ. 49 — 21
321
E ic
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
Huxley (1950), porém, Bernal escamoteou as questões fundamentais do debate, que são a da liberdade da ciência, a «da legitimidade da
condenação e extermínio pelo poder político de uma importante área da ciência como sendo falsa, anticientífica e antipatriótica», e aínda a da «validade científica dos resultados obtidos, e dos métodos utilizados
pelos mitchurinistas». Isto para além dos aspectos repressivos e nosos do lysenkismo. Para Huxley, o artigo de Bernal é um apologético especioso, ainda que brilhante, e não uma discussão cial» do problema, e aponta factos em apoio desta afirmação. É curioso que cerca de quinze anos mais tarde, em 1965,
crimi«texto impar-
Bernal
ainda se mostrou, em parte, defensor do lysenkismo e dos seus métodos,
numa ocasião em que a controvérsia já tinha acabado, quando estava demonstrado o absurdo da doutrina e reabilitados os geneticistas soviévigorosamente estabelecida e se conhecia a estrutura e a constituição química do gene. É por isso que não deixa de ser estranha a posição de Bernal, que só por um forte apego à ideologia me parece explicável, ainda que
se mostre, a meu
validade do do-se-lhe:
ver, mais comedido
mitchurinismo-lysenkismo.
Diz,
e menos
por
da Si
toda a parte, nessa altura, já a genética mendeliana e molecular estava
ah 15 e nad
ticos e retomada a investigação e o ensino da genética na URSS. Por
convicto da
exemplo,
referin-
That controversy has now died down in the light of later
E
seria o lugar
apropriado,
tratando-se
da
sua
célebre
Science
m
History, aliás uma obra sob vários aspectos notável.
Jacques Monod, Prémio Nobel (1965), em 1948 laboratório no Instituto Pasteur e estava muito longe atingido o cume
investigações nucleicos, ARN,,
da
com
da sua carreira
e descobertas regulação as quais
(com
génica a genética
de homem
de ciência, com
F, Jacob) e da
era chefe de ainda de ter
no
domínio
demonstração
e a biologia
da
as suas
dos ácidos realidade
molecular
deram
do um
significativo passo em frente, Ora, a respeito dos trabalhos de Lysenko, a sua posição já nessa ocasião foi nítida e cortante,
num
artigo no
de 15 de Setembro do citado ano. Diz Monod:
«La
cast ea pat ia E
jornal Combat
SD
das.
a
monstração, e, sobretudo, que passe em silêncio as perseguições efectua-
ao Pg de cad Ds SR
de lamentar que não diga uma palavra acerca da intromissão do poder político na liberdade da ciência, que não faça qualquer ao facto absurdo de a ideologia decidir do que é verdadeiro ou com absoluto desprezo pelo método científico de análise e de-
io De É
É directa alusão falso,
(P. 957.)
322
À PAS Riad ad ag
understanding.
BIOLOGIA
E
SOGIEDADE — 1
victoire de Lysenko n'a aucun caractere scientifique», e ainda «[...] Non, la victoire de Lyssenko, si elle n'est pas scientifique, n'en est pas moins essentiellement idéologique, dogmatique [...]», ou ainda ams
«Par quels moyens,
Lyssenko
par quels enchantements,
a-t-il pu con-
quérir les plus hautes autorités du régime, les persuader d'assurer son
triomphe, acculer ses adversaires à la demission ou à Vabjuration? On ne peut admeitre d'un
ou
policiêre
que cela soit uniquement marchandage
politique.
le résultat d'une intrigue
D'ailleurs aucun
des grands
interêts politiques du régime n'est en jeu dans cette affaire», concluindo
que se trata de um «grotesque et lamentable affaire», que prova «la mortelle déchéance dans laquelle est tombée en URSS la pensée socia-
ss
lz
liste». Estes passos são registados por Louis Aragon num longo artigo
deste poeta e comunista, publicado na revista Europe (Outubro de 1948), onde, apesar de confessar a sua total ignorância em biologia, faz a apologia do lysenkismo com uma argumentação um tanto abstrusa
e com exercícios de habilidade verbal, criticando, além de Monod, Jean
Rostand, que também não se mostrou nada inclinado a aceitar o lysenkismo, tendo dito que «on ne renverse pas une théorie scientifique. comme on renverse un ministere» (p. 12). As teorias de Lysenko, com a sua mistura de ideologia, prática e aspectos biológicos, não deixaram de impressionar negativamente mui-
biólogos,
tos outros Prenant,
que
marxistas,
mesmo em
o encontrou
1950,
aconteceu
como
tendo
(diz)
com
Marcel
ficado «atordoado»
com a conversa que teve com ele ?!. Em Portugal, a repercussão da controvérsia foi praticamente nula, mas não era desconhecida. Numa tradução portuguesa da obra inglesa
The Ouíline Cosmos
of Science,
(Lisboa)
em
editada
1949,
há
em
várias
volumes
quatro
notas
do
tradutor
pelas Edições
introduzidas
no texto, em que se defende a teoria de Lysenko (v. vol. nr). Mas, além desta ou de algumas outras fugazes ou nebulosas referências, o assunto não mereceu atenção, tanto mais que o regime político vigente, com a censura sempre alerta, não permitia a exposição e discussão franca e livre das ideias. Em todo o caso, não deixa de ser significativa a indiferença dos meios científicos e universitários portugueses.
g)
4
queda
A estrela de Lysenko começou a extinguir-se após a morte de Estaline. Kruchtchev, que era seu amigo pessoal, continuou a dar-lhe apoio, mas os malogros da agricultura eram demasiado evidentes para poderem ser iludidos. Kruchtchev enviava missões ao estrangeiro para aprenderem os métodos americanos de selecção do milho, que constitui, 323
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
como se sabe, um dos mais brilhantes sucessos práticos da genética. Em 1965, Lysenko foi exonerado de director do Instituto de Genética da
das Ciências, e o centenário de Mendel, que foi tão combaMoscovo
e na Che-
E actualmente a acusação de charlatanismo que lhe é aposta pode ser observada com frequência na literatura científica (v., por exemplo,
Stebbins, 1980). A sua queda foi assinalada por diversas atribulações, como,
por
exemplo,
a extinção
da
revista
Agrobiologiya,
director. Pode dizer-se que Lysenko foi o único homem
de
que
a
And
tido e ridicularizado, foi solenemente celebrado em
coslováquia. O lysenkismo acabou por ser oficialmente condenado 2. Não pode deixar de se pôr a hipótese de Lysenko ter habilmente induzido em erro as autoridades soviéticas que superintendiam nos problemas da produtividade agrícola, como uma explicação, pelo menos parcial, para o enorme sucesso e duração da sua carreira de ditador da biologia soviética. Segundo alguns autores, os lysenkistas seriam ainda numerosos e com influência na URSS, mas sem dúvida que a genética moderna e a biologia molecular fazem aí progressos nítidos, como adiante se referirá. A personalidade de Lysenko é certamente complexa e sobretudo a sua ascendência e supremacia não são facilmente explicáveis. A sua honestidade como cientista e como homem foi posta em dúvida, inclusivamente na URSS, onde comissões de inquérito provaram a existência de extensas fraudes patentes em relatórios onde se indicavam crescentes aumentos na produção agrícola. Mas a impostura não se confinou aos relatórios, estender-se-ia, igualmente, às próprias experiências com as quais pretendeu suportar as suas teorias científicas.
era
que à custa de
ciência suspeita e de ideologia foi capaz de estabelecer doutrina pseudocientífica, uma espécie de religião de Estado, um sistema conceptual
opressivo, com o qual se pretendia criar o «homem novo». Favorecido
pao ad ti
Academia
por um sistema político totalitário, o mesmo sistema provocou a sua queda e esquecimento. Em 1963 foi demitido de quase todas as suas funções por decisão ministerial e em 1965 caiu em plena desgraça, não completa, aliás, pois ainda lhe foi conservada a posição de membro da Academia das Ciências, que conservou até à morte, fez pesquisa no
lugares
cimeiros,
sobre a biologia soviética, havia a crença fora da URSS
estava
em
vias
de resolver
os grandes
problemas
de que este pais
alimentares
e salvar
da fome o resto do mundo; em suma, que com os miraculosos híbridos e variedades do mitchurinismo-lysenkismo se iria conseguir uma prodigiosa revolução agrícola. Mas os resultados não foram 324
Dias pie
em
esses. A grande
cia a nabiá Pap
amigos
ici stitid
Instituto até final e tinha
sendo curioso, porém, que, após ter tombado em desventura, não mais foi publicado qualquer trabalho seu com resultados experimentais (Lerner e Libby, 1976). Por volta de 1950, quando Lysenko exercia o seu poder absoluto
ig a
seu próprio
BIOLOGIA
experiência
lysenkista
E
SOCIEDADE — |
é considerada,
por alguns,
como
uma
grande
revolução cultural abortada, que correu mal devido às causas e efeitos particulares do estalinismo 2. O movimento foi demasiado complexo no seu determinismo social e político para que possa atribuir-se a sua causa
a um factor isolado. Nem o que se passou pode apenas ser imputado à inépcia e fanatismo de Lysenko e seus partidários. Se tivesse havido a possibilidade
de
rápida
e livremente
criticar e rejeitar as teorias
de
Lysenko, decerto que as consequências seriam outras. Ora são precisamente as razões políticas, sobretudo, por que isso não pôde ser feito que conferem ao problema toda a sua complicada e dramática dimensão. Nos
vimentos
anos
50
e 60,
a genética
fora
espectaculares
entretanto
experimentou
do ADN,
desde a estrutura
da URSS,
desenvol-
à
descoberta do código genético, à teoria da regulação génica, à fundação e desenvolvimento
da
etc.
molecular,
genética
culares revelações da biologia moderna,
Entre
as mais
especta-
certamente que a mais revolu-
cionária é a decifração da linguagem pela qual a informação genética
ou hereditária
se transmite,
em acções na célula,
de
como
é que
a estrutura
qual
essa linguagem
rigorosa
química
se traduz
do material
hereditário, ou seja dos genes, etc. Estas e outras revelações de enorme alcance estabeleceram
molecular,
era uma
em
definitivo o triunfo da genética e da biologia
cujas perspectivas
pseudociência
não deixam
de alargar-se. O lysenkismo
e ficou na história como
um
triste aconteci-
mento, onde o charlatanismo andou de mãos dadas com a repressão. Entretanto, foi a genética no Ocidente que contribuiu para a grande «revolução verde» no sector dos cereais, e N. E. Borlang recebeu, em
1970, o Prémio Nobel como orientador das investigações no programa sobre o trigo. Grupos
de cientistas das mais variadas
disciplinas cola-
boraram nestas investigações tipicamente interdisciplinares. Além de geneticistas, trabalharam coordenadamente patologistas, agrónomos, bioquímicos, economistas, especialistas de solos, etc. O milho híbrido é um dos maiores triunfos da agricultura americana. Estas e outras realizações têm na base os princípios da genética e da evolução que precisamente foram combatidos e rejeitados pelo lysenkismo. Por outro lado, as possibilidades abertas pela engenharia genética são imensas. Ciência ainda nos seus começos, abre perspectivas de intervenção na hereditariedade das espécies de interesse económico, introduzindo-lhe novos genes, ou modificando
o seu
património
genético,
ou
provocando,
por
intro-
dução de certos genes em microrganismos, como bactérias, a produção industrial de certas substâncias específicas produzidas por esses genes, como é já o caso da insulina. O homem não escapará a estas intervenções no que respeita a mal-formações físicas e mentais, ainda que aqui o problema se apresente com aspectos certamente muito mais delicados e complicados (v. no 2.º vol. o cap. XI). 325
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
Encerrado o caso Lysenko, a URSS entrou rapidamente nas novas vias abertas pela genética e pela biologia moleculares, ocupando com as suas investigações um lugar cimeiro, pela quantidade e qualidade
do trabalho realizado *. O programa de engenharia genética na URSS está a ser vigorosamente orientado para a agricultura e, como parte desse programa, foi fundado pelo menos um novo instituto de investi. gação, o Instituto de Ciências do Solo e Fotossíntese, em Puschino. É este um dos muitos esforços e iniciativas tomados para lutar contra as dificuldades alimentares que por exemplo no Inverno de 1982 não diminuíram, pois de 240 milhões de toneladas de cereais que constituía o objectivo a atingir, esperar-se-iam apenas 170 milhões (v. Rich, 1982). O que parece provável é que os extraordinários progressos feitos pela biologia genética e moleculares fora da União Soviética aceleras-
sem o declínio de Lysenko. À retórica já não se mostrava
capaz de
esconder o simplismo e os erros do lysenkismo.
3.
O
drama
de
Kammerer
A crença na hereditariedade
dos caracteres
adquiridos
e o caso
Lysenko lembram imediatamente outro caso famoso, o de Kammerer. Em primeiro lugar, porque são de longe os dois mais notórios defensores deste dogma, e, depois, porque estão ambos ligados a aspectos análogos, o primeiro à repressão da liberdade da ciência e o segundo ao problema das fraudes científicas, o que implica sectarismo, política, relações com
as exigências ideológicas. São os dois mais famosos lamarckistas de século xx, ainda que difiram grandemente de Lamarck, não só nas motivações científicas, como na posição que ocuparam relativamente aos respectivos meios científicos onde desenvolveram as suas ideias. Mas a verdade é que todos os lamarckistas, antigos ou modernos, têm de comum a crença na hereditariedade biológica dos caracteres adquiridos. Seria deslocado e longo, mesmo que o fizesse resumidamente, relatar as experiências mais importantes que têm sido ensaiadas desde há
muito
tempo,
sobretudo
a partir
do final
do
século
x1x.
Todavia,
E
tiveram grande repercussão as empreendidas por Kammerer, bió austríaco, com as quais afirmou ter demonstrado a hereditariedade dos caracteres adquiridos. Paul
Kammerer
era,
no
começo
do
século,
professor
em
Viena
qual realizou experiências. Este sapo, que não é aquático, foi obrigado, 326
duel Mataas at
balhos. Trata-se da espécie Alytes obstetricans (o sapo-parteiro), sobre a
luta
coberta de fraude no exemplar apresentado como prova dos seus tra-
E! ada,
e considerado por muitos um competente e dedicado zoólogo até à des-
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —I
nas experiências, a reproduzir-se na água. Poucos ovos sobreviveram
a
tão desfavoráveis condições. Mas Kammerer disse ter obtido nos machos,
após várias gerações de reprodução em meio aquático, umas formações espiculares córneas («escovas copuladoras») na margem dos dedos das mãos, e que a espécie não possuiria. Estas formações rugosas existem
em
de
espécies
diversas
aquáticos
sapos
relacionadas com a fixação do macho
estarem
afirmado
e tem-se
à fêmea durante o acasalamento.
Nos Alytes terrestres, as «escovas copuladoras» ter-se-iam atrofiado e desaparecido, dado que a fêmea tem o corpo seco e o macho mais facilmente se fixa a ela sem escorregar. O reaparecimento de tais formações
(na suposição de que os Alytes ticas com tais rugosidades nas após gerações de vida aquática merer, a prova da realidade da adquiridos.
O
carácter
terrestres descendem de espécies aquámãos) nos machos de A. obstetricans forçada constituía, na opinião de Kamhereditariedade biológica dos caracteres
questão
em
ter-se-ia inscrito, ao fim
de
várias
gerações, na própria substância hereditária e como tal seria transmitido à descendência. Ora os factos são susceptíveis de outra interpretação. Por um lado, descobriu-se na natureza um Alytes terrestre com «escovas copuladoras» e, segundo parece, alguns indivíduos anómalos apresentam a mesma
rudimentar.
formação sob forma acontecido
os
que
Alytes
de
À ser assim, pode perfeitamente
Kammerer
tivessem,
também,
ter
«escovas
copuladoras» e o carácter não seria, portanto, induzido pelas condições de vida aquática a que o autor submeteu os animais (Blanc e outros,
1980). É de certo modo no mesmo sentido que Stephen Gould (1972, 1980) considerou o problema. Se aceitarmos os resultados de Kamme-
rer, como
ele
os
descreveu,
pode
dizer-se,
como
diz
Gould,
que
ele
afinal realizou uma boa experiência darwiniana. Quer dizer que Kam-
meerer fez um trabalho de selecção inconsciente. Os sapos da experiên-
cia teriam desenvolvido «escovas copuladoras» e a falsificação, realizada com tinta-da-china, apenas teria acentuado um carácter potencialmente existente na património hereditário. Não haveria, portanto, qualquer
demonstração de um efeito lamarckiano. Não é este o lugar para entrar em pormenores ou desenvolvimentos técnicos. O leitor interessado poderá obter uma noção dos trabalhos atrás referidos num livro de Arthur Koestler (1973), todo ele ardorosamente a defender Kammerer
e o postulado da hereditariedade dos caracteres adquiridos. Um dos pontos fracos das experiências com que se tem tentado demonstrar efeitos lamarckianos é o facto de elas serem susceptíveis de mais do que uma
interpretação. Valeria a pena repetir as experiên-
cias de Kammerer, não só porque há pontos obscuros na questão como porque, mesmo num quadro darwiniano, pode haver factos interessantes
a revelar.
Aliás,
Koestler
insiste
no 327
mesmo
facto e Stephen
Gould
GERMANO
DA
FONSECA
apoia-o. Julgo que há toda uma
SACARRÃO
metodologia
a inslaurar
e novos
testes
a fazer. Kammerer
empreendeu
outras
experiências
com
sempre com a mesma preocupação. Fez, por exemplo, salamandras
(Salamandra
salamandra
e
outros
animais,
experiências em
Salamandra
atra),
com
as
quais afirmou ter demonstrado a transmissão aos descendentes de caracteres adquiridos pelos progenitores, após ter submetido indivíduos das duas espécies a determinadas condições de luz, temperatura e humidade. O facto triste foi que, depois de alguns anos de discussões de Kammerer e seus partidários com os darwinistas e mendelianos antilamarckistas, e de o investigador austríaco ter propagandeado as suas afirmações por toda a parte, em publicações e conferências, descobriu-se
que,
em
vez
da
excrescência
nupcial,
experimentalmente
induzida,
existia uma cor escura devida a uma injecção de tinta-da-china. O exemplar que tinha sido apresentado como prova estava falsificado. Kammerer
foi logo acusado de intrujão, mas, segundo Koestler, parece
que o infeliz teria sido sobretudo vítima de uma conjuração política odiosa, sendo um militante nazi o presumido autor da vergonhosa acção. Kammerer alimentava profundas convicções socialistas e na Universidade de Viena, em 1925-1926, o nazismo estava em expansão 2. Por outro lado, o especialista G. K. Noble, que observou e denunciou a
fraude,
teve acesso ao exemplar
que
Kammerer
consentiu
(estando
ausente na altura) que fosse visto e manipulado. Este facto não encaixa bem na ideia de ter sido ele o autor da fraude. Culpado ou não (e parece que não foi), semanas depois de ter rebentado tão enorme escândalo, que abalou fortemente a comunidade científica internacional, Kammerer suicidava-se,
a
23
de
Setembro
de
1926.
Em
carta
deixada
Przibram, director do Instituto onde trabalhava Kammerer,
a
Hans
este último
jura que não foi o autor da fraude. Na realidade, parece que as razões em ter posto fim à vida seriam estranhas à denúncia do acto fraudulento. Tratar-se-ia de um acto de desespero, mais por causa de amores não compreendidos (da parte de uma artista vienense) e por problemas de dinheiro do que por não poder suportar o peso de uma desonra. Em todo o caso, se devemos conceder a Kammerer o benefício da dúvida no caso do sapo-parteiro, há que reconhecer que a sua idoneidade como
cientista,
particularmente
a sua
lucidez
crítica,
não
estavam
à
mesma altura da sua inteligência. Outros resultados seus já tinham sido igualmente postos em dúvida por outros cientistas de reconhecida autori-
dade e prestígio, segundo os quais Kammerer era propenso a acomodar os factos, de modo a eles se ajustarem completamente às suas ideias preconcebidas respeitantes à hereditariedade biológica dos caracteres adqui-
ridos.
Isto
fortemente
fez
que
os seus
trabalhos
passassem
suspeitos por toda a parte. O mesmo
a ser
aconteceu
considerados com
as suas
obras de divulgação. Por exemplo, a respeito do seu livro Rejuvenation 328
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE
—1
and the prolongation of Human Efficiency, publicado em 1923, a propósito da defesa aí feita do método de «rejuvenescimento» de Steinach. escreveu Gould que não está convencido de a sua capacidade crítica corresponder à sua inteligência penetrante, As dúvidas, portanto, sobre o valor científico dos trabalhos de Kammerer estendem-se ao conjunto da sua obra. No que se refere (continua o mesmo
autor) à hereditariedade dos
caracteres adquiridos, não será de estranhar que, num tantos
outros
positivos?
falharam,
Resultados
Kammerer
que ninguém
tenha
«obtido»
problema onde
sempre
resultados
confirmou, sujeitos a fortes dúvi-
das, a erros de método e, para cúmulo, associados a uma das mais graves
e ridículas fraudações da história da ciência? Será, então, de surpreender que, após os factos e suspeitas que se referiram, os resultados das
experiências de Kammerer não merecessem mais crédito à comunidade científica, mesmo que alguns pudessem conter (e inclino-me para isso)
factos e observações dignos de atenção? Quando os resultados dos seus
trabalhos sobre a hereditariedade dos caracteres adquiridos foram publicados na prestigiadíssima revista Archiv fiir Entwichlungsmechanik der Organismen, o alto nível desta publicação deu-lhes não só ampla difusão como chamou logo a atenção da comunidade científica internacional para eles. Concedeu aos seus trabalhos imediatamente aquela
reputação que levou a encarar com confiança e seriedade as observações e conclusões publicadas. Na
URSS,
Kammerer
foi
considerado
um
herói
e um
mártir
(Gould, 1972). No mesmo ano em que morreu devia tomar posse da direcção científica de um laboratório da Academia das Ciências de Moscovo. Não é de surpreender. Kammerer estava no ano trágico da sua morte no auge de uma carreira. Com o seu ardor socialista e sobretudo
talvez pelo seu renome por ter «provado» a hereditariedade dos caracteres adquiridos, fenómeno que, como se viu, estava na base do mitchuri-
nismo-lysenkismo, ele era imensamente apreciado na União Soviética, onde o entusiasmo pelos seus trabalhos era enorme em certos meios. Theodozius Dobzhansky (1980) relata-nos a este respeito o seguinte. Por obra de Smirnov, jovem e brilhante zoólogo da Universidade de
Moscovo, Kammerer fora convidado para tomar a direcção de um laboratório no qual ambos poderiam trabalhar a fim de estabelecer a veracidade do lamarckismo,
doutrina a respeito da qual ambos
não tinham
a mais pequena dúvida. A morte do malogrado professor austríaco impediu a concretização desse plano, A morte de Kammerer foi muito sentida na URSS e o seu drama serviu de motivo para um filme (A Salamandra).
Esta película foi exibida por toda a União Soviética
durante vários anos (o que significou a consagração do lamarckismo como doutrina oficial) integrada no espírito do movimento mitchuri329
GERMANO
nista
que
breve
ser banida.
biologia
dominava lysenkista
Koestler,
DA
FONSECA
SACARRÃO
a biologia
soviética,
da
Kammerer
tornou-se,
e a vítima
homem
de
de uma
letras,
qual
a genética
do mesmo
trágica
pensou,
passo,
iria em
um
herói
da
perseguição.
como
tantos
outros,
que
o
lamarckismo poderia facultar uma filosofia mais optimista da vida do que o darwinismo, que não era uma viva
e da
sua
evolução.
Com
explicação
o lamarckismo,
aceitável
da natureza
seres
não
os
vivos
são
máquinas automaticamente programadas pelos seus genes a responder as pressões do ambiente, sujeitas ao jogo puramente mecânico da tenta-
tiva-erro [cf. Bowler (1984]. Com tais pressupostos convictamente firmados, não pôde abordar a história dramática dos sapos Alytes de uma forma mais aberta e desapaixonada. Todas as fraudes e ciências suspeitas são temas necessariamente nebulosos,
difíceis de pôr a claro;
e a partir de certo limite não valem
o tempo gasto em penetrar mais nesses confusos labirintos. O próprio Koestler, escritor de talento e homem
muito inteligente, não convence
quando
discute temas de biologia, particularmente quando, no propó-
sito
reabilitar
de
Kammerer,
pretende
demonstrar
que
os
caracteres
adquiridos pelos progenitores são transmitidos aos filhos. Perso
estranha, e decerto curiosa, Koestler faz fliri com o lamarckismo (como alguém disse) e preocupa-se muito com «ocultismos», no sentido de «paraciência», ou, antes, de «não-ciência», como a telepatia, a parapsicologia, a telecinese, etc. *. Muito bom para temas artísticos, mas frágil
bagagem para a discussão científica. E. Abeberg, professor de Genética
na Universidade de Yale, escreveu a propósito do livro de Koestler que
o seu
autor
é parcial
no
caso
Kammerer
e que
«descrevendo
apenas
alguns aspectos das funções dos ácidos nucleicos, dá a impressão de que a genética molecular e o lamarckismo poderiam, afinal, não ser incompatíveis. O facto de o livro ser escrito num estilo agradável, com todo o
fascínio que exerce um
romance
policial científico,
nocivo para o leitor pouco informado»
torna-o
ainda
(cit. por Bouanchaud,
mais
op. cit.).
Kammerer não é (longe disso) um caso único na história da ciência, já suficientemente profusa em fraudes científicas. Se é dos exemplos mais dramáticos, não é, porém, o mais importante. Há o
escândalo gador
do Dr. William
americano
pintou
Summerlin, a
pele
de
em
1974, em
ratinhos
para
que este investi-
fazer
acreditar
no
sucesso de enxertos que realizara entre indivíduos cinzentos e brancos. Há o caso do Dr. Cyril Burt, mestre prestigioso da psicologia britânica, que inventou dados sobre o QI de gémeos verdadeiros (homozigóticos), fraude
imensa,
em que, com
dados
inteiramente
«fabricados»,
fornecia
a «prova» de que a inteligência é uma faculdade que deve tudo à hereditariedade e nada ao ambiente. Só depois da sua morte
1971, é que a gigantesca
trapaça
foi descoberta
1980). V. também, o cap. XI, no 2.º volume.
(aos 88 anos),
(Blanc
e outros,
330 des >
em
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —
O charlatanismo parece não ser um fenómeno raro em ciência como hoje amplamente se reconhece, ainda que difícil de evidenciar. Em todo o caso, cerca de 90 % de cientistas inquiridos declararam conhecer operações de batota nas áreas da sua especialidade, conforme uma sondagem levada a efeito em 1976 pela revista New Scientist. A maior protecção, talvez, para o charlatanismo é o suporte político de regimes totalitários que impedem ou dificultam a denúncia de falsidades quando estas, por exemplo, caucionam as ideologias do partido único no poder ou convêm em dado momento aos seus desígnios. O drama Kammerer, se esfriou por uns tempos os entusiasmos dos lamarckistas no Ocidente, não abrandou as convicções no postulado e manteve alguns dos seus campeões bem activos. Na Inglaterra, E. W. MacBride, professor de Zoologia no Imperial College of Science and Technology (Londres), de 1913 a 1934, foi um grande defensor do lamarckismo e, consequentemente, um ardente advogado das teses de Kammerer.
De começo embriologista, MacBride tornou-se partidário da
teoria da recapitulação de E. Haeckel, e foi este princípio que o levou a ser acérrimo defensor do princípio da hereditariedade dos caracteres Com efeito, a recapitulação, na ontogenia, das adaptações adquiridos. das fases adultas que se sucederam na história da espécie (filogenia) pressupõe, para MacBride e outros lamarckistas, que essas fases sejam
inscritas na hereditariedade, e assim passem a revelar-se no desenvolvimento do ovo, como que comprimidas na ontogenia. A filogenia seria,
causa
portanto,
da
ontogenia,
conceito
que
sabemos
hoje
ser
errado. Pelo contrário, a evolução da ontogenia é que deve ser a causa
da
para
ser
Quanto à França, ela foi, sobretudo até à II Guerra Mundial,
um
filogenia 7.
abordada forte
deixemos
Mas
esta
questão,
algo
complicada
aqui.
baluarte
do
lamarckismo,
e este
facto,
entre
outros,
atrasou
o
desenvolvimento do darwinismo neste país. O Partido Comunista Francês, foi, entre os congéneres europeus, aquele que mais propagandeou o mitchurinismo-lysenkismo, não sei se por alinhamento com o que se passava na URSS, se por Lamarck ser francês. Talvez operassem as duas razões (v. Boesiger, 1980. V. também, o capítulo precedente. a)
Novas
tentativas
A convicção no conceito de que os caracteres adquiridos podem ser hereditários resistiu longo tempo à negação das experiências, às fraudes ou erros de método, à extrema fragilidade dos seus fundamentos cientificos e lógicos. Com o progresso da genética e da biologia evolutiva, a crença na hereditariedade biológica do uso esmoreceu muito. Mas os seus defensores estavam sempre à espreita de algo que desse suporte ao 331
GERMANO
velho
credo.
Assim,
DA
quando
FONSECA
uma
SACARRÃO
publicação
francesa
afirmou
que
injectando ADN de uma variedade de patos noutra variedade dos mesmos animais se provocam modificações hereditárias nos descendentes desta última, houve
mas
ao
mesmo
(como referem Lerner e Libby)
tempo
grande
consternação
no
grande entusiasmo,
sector
lysenkista.
Até
em Portugal houve um certo alvoroço entre alguns partidários aparentes de um
lamarckismo
confuso, que nunca
chegou
a expressar-se.
Como o ADN era a substância dos genes existentes nos cromossomas e nos núcleos das células, esta circunstância negava qualquer fundamento aos ataques de Lysenko à genética e à hereditariedade mendeliana.
A frustração levou ao empreendimento de experiências onde o sangue introduzido era destituído de glóbulos sanguíneos e portanto de ADN.
Os
resultados,
neste
caso,
seriam
ainda
melhores,
conforme
anunciavam os seus autores. Todavia, os resultados esperados de todas estas experiências não foram confirmados. Possivelmente, certos dados supostos positivos foram obtidos na condição híbrida dos animais receptores (Lerner e Libby, op. cit.). Quer na URSS, quer fora dela, as injecções de sangue ou de ADN nos organismos que foram ensaiados nunca deram resultados coneludentes. Este facto não significa que não possa modificar-se a estrutura hereditária de organismos superiores por inserção de material genético do exterior. As biotécnicas actuais estão já a abrir largas perspectivas nesse sentido. Isolar genes e introduzir genes de um organismo noutro é já uma prática ao alcance da ciência (v. no 2.º vol. o cap. x1). Mas isto é muito diferente do que Lysenko proclamou, porque as manipulações genéticas actuais são o desenvolvimento natural da genética e do mendelismo tradicionais, de que constituem, aliás, a prova iniludível da sua
realidade. Assim, é compreensível a frustração dos lamarckistas de tout
bord quando se demonstrou que os genes são de cíficos de ADN existente nos cromossomas. De Weissman e Morgan, até Watson e Grick (que um novo modelo para a estrutura da molécula genética não deixou de se afirmar sempre como
facto segmentos espeMendel, passando por em 1953 propuseram de ADN) e outros, a uma das mais impor
tantes ciências em permanente e espectacular progresso. Mas
o lamarckismo
não está morto,
nem
mesmo
nos laboratórios,
nem nas teorizações de alguns biólogos evolucionistas, a maioria não para o seguir, mas para o recusar, ou dele se distanciarem. Em especial, o fenómeno da imunidade biológica parece representar um caso de hereditariedade de um carácter adquirido, e todavia parece que não há ai qualquer tipo de processo lamarckiano, apesar de alguns autores terem feito investigações à luz das quais teriam provado a sua realidade, como
é o caso de E. J. Steele e R. M. Gorezynski, trabalhos que, em todo o
caso, são de tomar em consideração. Este novo lamarckismo, com origem 332
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — |
em Steele (1979), não veio alterar a situação do lamarckismo como teoria obsoleta, mas nunca esquecida (v. Bowler, 1984, Lewin, 1981 a) ”.
Outras observações e experiências têm conduzido à ideia de que os seres vivos possam variar os seus genes de acordo com as condições impostas
pelo ambiente ?. O processo, todavia, não é lamarckista pela simples razão de que as modificações surgem primeiro nos genes, sendo portanto estranhas à essência dessa teoria, que exige que a variação genética (na linha germinal) seja sempre posterior à variação adquirida no soma (corpo). Mas é perfeitamente admissível que a concertação íntima genes-organismo-ambiente, ainda tão mal conhecida, revele aspectos interessantes, por exemplo fenómenos de regulação a nível genómico-ontogenético, e que se abram novas perspectivas de interpretação.
333
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
NOTAS
! Expressão muito utilizada, também (aliás, impropriamente), para designar a síntese moderna da evolução (teoria sintética), por esta assentar fundamentalmente no conceito de selecção natural (v. Dicionário de Biologia, Publicações Europa-América). 2 Em França, o estudo racional e experimental dos fenómenos evolutivos fot mais tardio do que nos países anglo-saxões.
3 O fulcro do darwinismo
não é a hereditariedade
dos
caracteres
adquiridos,
mas sim a selecção de variações fortuitas hereditárias exibidas pelas populações
rais. A aceitação da hereditariedade dos caracteres adquiridos concessão
que sempre
que
ele
fez,
compelido
pela
ignorância
constituiu o grande problema
a sua aparente adesão ao lamarckismo
acerca
que o preocupou.
foi mais uma
da
por
natureza
da
natu-
foi uma variação,
E, para o final da vida,
consequência
dirigiam e, sobretudo, das lacunas nos conhecimentos
Darwin
da época
das críticas que lhe
quanto
às causas das
variações nos descendentes do que propriamente a expressão de uma forte convicção. Para Darwin, a principal fonte da variação residia no processo da reprodução e. menos
na
influência
directa
do
clima
ou
nos
Basta o facto de considerar este problema qual
a ignorância
era
profunda
para
se
efeitos
como deduzir
uma que
do
uso
magna era
e desuso
questão
um
tanto
dos
órgãos.
a respeito da frouxo
o seu
apegamento ao lamarckismo. É certo que na Origem há várias referências à here ditariedade biológica dos adquiridos e aos efeitos do uso e desuso, mas mais uma anuência suplementar, secundária relativamente ao carácter
isso parece acidental e
espontâneo e prontamente hereditário de variações exibidas pelos indivíduos de cada população natural. As críticas à selecção natural eram quase todas apoiadas nessa ignorância acerca das causas das variações, e compreende-se, assim, que Darwin, nas últimas edições do seu livro fundamental, tenha dado mais importância à teoria da hereditariedade
dos caracteres adquiridos do que
houvera
feito de começo.
Para
ele,
as variações são hereditárias, acidentais, surgem independentemente de qualquer desígnio, sem ligação específica e directa com os factores do ambiente. E a evolução faz-se pela acumulação gradual dessas pequenas variações, que lentamente provocam a transformação de uma espécie noutra espécie. Curiosamente, quando, dezoito anos
após a morte de Darwin, foram redescobertas as leis de Mendel e se verificou que à
hereditariedade
resultava
da
acção
e combinação
de
partículas
cromossómicas — as
genes, que guardavam a sua integridade através das gerações (não se misturande, não se abastardando), logo surgiram fortes críticas à teoria da selecção natural, que entrou em descrédito. As mutações descontínuas e bem perceptíveis, de grande efeito, aparentemente capazes de bruscamente fazerem passar uma espécie a outra, obtiveram largo crédito, e tinham suporte físico e lógico no mendelismo. Por isso fizerama passar para segundo plano, ou repudiaram-na mesmo completamente, a teoria darwi-
niana das variações subtis, que gradualmente se acumulam e dão origem, sem des continuidades aparentes, a novas espécies, Para o mutacionismo, então uascente, &
natureza dá saltos, de modo que o velho aforismo Natura non facit saltus, tão cam a Darwin, foi rejeitado. Só anos mais tarde é que se reconheceu a existência de genes
e mutações de efeitos diminutos ou quase imperceptíveis e das consequentes pequenas
variações sujeitas à acção da selecção natural, de modo que a evolução gradual darwk niana encontrou nessas demonstrações um suporte decisivo. As «grandes» mutações 334
BIOLOGIA de
efeitos
drásticos,
surgiam
em
E
SOCIEDADE — |
regra,
com
carácter
destruidor,
e, por
outro
lado,
o lamarckismo sustentava-se da separação entre a genética e o darwinismo. Mas logo que a síntese se realizou, o saltacionismo
e o lamarckismo,
tal como o princípio da
hereditariedade biológica dos caracteres adquiridos, conheceram um imediato declínio.
* Certos desvios do comportamento individual como reacções ao meio físico ou social (com aquisições de novos hábitos, escolha de novos ambientes, etc.) podem originar reprodução diferencial, e deste facto resultar evolução, mas isto não é um processo lamarckiano, porque nele a variação precede a aquisição evolutiva, mesmo
que acaso
venha
adaptação,
essa variação, desenvolvendo-se, a corresponder a uma
quer dizer, a dar «resposta» a uma necessidade (v., por exemplo, no meu livro Adaptação, 1985, o conceito de preadaptação). $ Não é correcto assimilar a doutrina de Lamarck a vários autores que posteriormente advogaram o princípio da hereditariedade biológica dos caracteres adquiridos.
Serão
«lamarckianos»
hereditária, que
o mesmo
seguirem
por
apenas
é, aliás, uma
exigência
é Species bejore Darwin (1959). 7 V. Burkhardt, Jr, The Spirit of System 8 Entre
os
cientistas
sociais,
de
princípio
transmissão
da doutrina.
fundamental
(1977).
o lamarckismo
entrou
em
declínio
mesmo
ante-
riormente à sua eliminação pela biologia (Bowler, 1984). Com o advento da genética, os sociólogos passaram a adoptar a conclusão de que o controlo dos indivíduos e dos grupos é obra dos genes e do ambiente, com inclinação para um ou outro destes componentes consoante a ideologia de cada um. Mas a realidade é mais complexa do que ver no comportamento social o resultado de acções de causas separadas, umas agindo no interior do organismo, outras exteriormente a ele, como jogo de forças isoladas e convergentes a agirem sobre o organismo integral (julgado passivo), de que se procuraria a resultante exibida e o respectivo doseamento genético e ambiencial
(v., por exemplo, o meu
Prelo, 1987).
artigo «Determinismo
biológico e flexibilidade humana»,
9 O conceito realista de que a ontogénese não é um directo desenrolar de configurações inscritas no código genético do ovo coloca em grande dificuldade a teoria da hereditariedade biológica dos caracteres adquiridos. Assim como a infor-
mação não passa das proteínas para o ADN, assim, também, as morfologias e funções adquiridas pelo indivíduo devidas ao uso, ao desuso, ao hábito, à aclimatação, etc., não transitam para o ADN dos genes ou para qualquer outra parte do ovo, nem aí se fixam como imagens miniaturizadas das modificações adquiridas. Podem conce-
ber-se ou evidenciar-se certos mecanismos de tipo aparentemente lamarckiano
(imu-
nológicos, por exemplo, como se tem tentado), mas tudo converge para a conclusão que tais mecanismos, a existirem, serão provavelmente de importância muito secundária no quadro da evolução dos organismos. Nem a lógica, nem a biologia, nem talvez
a imaginação,
consentem
conceber
um
processo
de
hereditariedade
biológica
uso que seja compatível com a realidade epigenética patenteada pela ontogenia, ar
onde os genes fazem
parte de um
complicado
sistema regulador da célula-ovo, cuja
origem é a incógnita fundamental (v. meu 19834). o Importa,
todavia,
notar
que
herança
biológica
e herança
cultural
são pro-
see
tetos
cestos intimamente ligados, que se interpenetram e influenciam de maneira muito profunda. Não são entidades isoladas. Lembro, por exemplo, que na evolução do m os caracteres biológicos e culturais
tudo que
o homem
é um
ser
actuam
biologicamente
em
cultural.
estreita concertação Onde
termina
no
e sobrehomem
o iológico e começa o cultural? . dói ax prontamente : ni u No lamarckismo, as variações são adaptativas, enquanto no aa concepção é outra: as variações nada têm a ver (do ponto de vista » ou da sua origem) directamente com as necessidades do organismo, e só pelo jogo seleccionista cioniatz da tentativa/erro . e A E 1989 poderão, na sequência das gerações, desenvolver
335
gradualmente
uma
DA que
O
adaptação.
FONSECA
SACARRÃO
Freud
Sigmund
(12-4:1975).
3 V. Paris Match
outro importante partidário do lamarckismo, nesse princípio.
dit,
a vraiment
que
o
pp. 45-46).
(até final
foi
indiví-
certos
a outros
relação
em
se estabelece
duos e a diferença que, a cada geração, não têm. 2 V. Claude Cuénot (Ce que Teilhard
de
reprodutor
é o sucesso
conta
ETs
GERMANO
vida)
sua
da
tendo elaborado algumas teorias assentes
4 O que parece é que o darwinismo autêntico nunca se fixou na União Soviéa hostilidade da filosofia marxista
se lhe deparou
tica, onde
respeitante
a ideologia dominante,
selecção natural, a qual, de acordo com
da sociedade capitalista. A única opção era adoptar um
à teoria da
reflectia os valores melhor
sempre
lamarckismo,
adaptável à doutrina política, de modo que, nos anos 30, Lysenko entrou em cena no bom momento (crise agrícola, etc.) para o introduzir na filosofia oficial do partido (cf. Bowler, 1984). I5 Do lamarckismo, Darwin aceitou a parte relativa à hereditariedade biológica do adquirido (que, como se viu, não é original em Lamarck), tendo rejeitado a explicação
de
nismo
para atingir sempre maior
que
a evolução
das
espécies
é motivada
complexidade
por
um
impulso
interno
do
orga-
e perfeição.
ló A influência de Malthus sobre Darwin não é um tema simples. Pelo menos, não pode ser encarada na forma esquemática usual, ou seja, que Darwin deve a Malthus a génese súbita do conceito de selecção natural. O que Darwin (e Wallace parece dever(em) a Malthus é a ideia de dimensão populacional, nas suas relações e variações com o potencial reprodutor. Hoje sabe-se que as conclusões de Darwin foram até opostas às de Malthus. Uma diferença que parece fundamental é que, enquanto
uma
Darwin,
teoria
Malthus,
por
a partir
de mudança, seu lado,
não
dos
diferentes
de formação continha
valores
de
nada
de
novas
sobrevivência
espécies
de dinâmico
e de
individual,
e de
novas
inovador
na
criou
adaptações, sua
teoria
social, nada que contivesse um conceito de evolução, que rompesse com as «essências»
e abrisse o caminho à modificabilidade sem limites (v., o cap. v). 17 Lysenko e seus partidários afirmavam a incompatibilidade da genética com o materialismo dialéctico, com a dialéctica da natureza, tal como a desenvolveu Engels, que negou a teoria da selecção natural. O gene invariante e a competição como ferça motora da evolução social não podiam, nesse quadro filosófico e dogmático, ser aceites como realidades. Por isso Lysenko repetia constantemente que a biologia mitchurinista «demonstrava» a hereditariedade do adquirido. E, presos na lógica ideológica a que a filosofia marxista os constrangia, os geneticistas soviéticos estavam previamente derrotados. A teoria do gene, agente invariante, que se mantém inalterável através
das gerações, é inconciliável com os princípios do materialismo dialéctico (v. também Monod, 1970, p. 58, e Lecourt, 1976, p. 74). Não é de estranhar, portanto, que Lysenko e os seus acólitos insistissem em ver erros em Darwin, sobretudo na sintese que a genética provocou ao enriquecer e dar uma base sólida ao darwinismo, apoiando-o solidamente na genética das populações. A única alternativa era um lamarckismo serôdio, e sobretudo aceitar sem reservas a hereditariedade biológica dos caracteres adquiridos, para quem queria inventar uma biologia compatível com a ortodoxia. Os marxistas vulgares rejeitam no darwinismo diversos aspectos, por exemplo que
exista competição generalizada entre as espécies e os indivíduos.
Ora o darwinismo
assenta na ideia fundamental de que a variação aleatória individual conduz a compenatural,
e, se essa
ideia
é falsa, o darwinismo
fica
tantes a Marx e a Lenine, e associando-lhe mesmo o lamarckismo. Pelos vistos, para certos marxistas, a abortada
prai?
a selecção
dd Ut
possível
teoria da hereditariedade biológica dos caracteres adqui336
Cs = Tibia atoa
e torna
desdead
tição
reduzido a zero. Actualmente persiste a tendência nos círculos marxistas para discutir e interpretar o darwinismo à luz do materialismo dialético, para o adaptar à ideologia, de acordo com a Dialéctica da Natureza, de Engels, com referências cons»
BIOLOGIA ridos
continua
de pé, resistindo
E
SOCIEDADE — 1
a todos os ataques
levantam (cf. Wasserung e Rose, 1984). 8 V., de Lysenko, 1948 e 19484). (Outubro,
entrevista
1948)
contém
concedida
outros
por Lysenko,
dados,
O
como
o urtigo
e evidências
mesmo sejam
número
que
da
a discussão
de Aragon
contra
revista
do
ela
se
Europe
relatório,
«De la libre discussion
uma
des
idées», etc.
9 Lamarck é em regra mencionado pelos seus aspectos negativos, mas importa lembrar as suas grandes contribuições positivas, entre as quais não será pouco registar o conceito de evolução gradual, o facto de ter concebido a primeira teoria estruturada da evolução, o acentuar a grande antiguidade da Terra, a importância
dos factores do meio ambiente e do comportamento, o ter pensado a evolução como um grande movimento natural a abranger todos os seres, incluindo o homem, o que, dada a época em que viveu, representava um acto de coragem, como justamente
também lembrou Mayr (1982). 20 Jacques Monod não poupa palavras quando afirma, em 1970, que Lysenko «n'était un homme de science, mais un charlatan ou un paranoiaque; sans doute
les deux»
(cit. Lecourt,
1976, p. 74). V. também
Medawar
e Medawar,
1983,
e
também Stine (1977). 22 La Pensée, 1957, 72:23-26, cit. Bouanchaud (1976). 2 O lysenkismo e suas variantes ainda recentemente tinha numerosos adeptos na URSS; e a China, pelo menos até há alguns anos, parecia, também, orientar-se para a mesma
doutrina.
233 Sobre esta tese de o lysenkismo ter tido o carácter de uma revolução cultural falhada, v. Levins e Lewontin (Dialectical Biologist, 1985). Marxistas, os autores escreveram que o movimento lysenkista «cut short the pioneering work of soviet genetics and set it back a generation [...] For soviet liberals, it is a classic warning of the dangers of bureaucratic and ideological distortions of science, part of their
case for an apolitical technocracy»
(p. 165). A história deste movimento e das suas
causas está longe de estar esgotada para os historiadores das ideias, que variam na interpretação que dele dão consoante a ideologia ou o prisma limitado ou amplo através do qual encaram o processo. Mas uma discussão que se confine aos aspectos
científicos será totalmente inadequada, visto que no lysenkismo os aspectos não científicos são mais numerosos e de muito mais peso. Um aspecto interessante do Iysenkismo
é o facto
de
se tratar
de um
movimento
do passado
mas
com
nítidas
e importantes implicações ideológicas actuais, sendo por isso um campo frutuoso de estudo. Além das fontes citadas sobre o lysenkismo, registe-se, ainda, a que escreveu Dominique Lecourt (Lysenko, 1976).
2% É inútil e deslocado referir aqui pormenores. V., por exemplo, «Biology unbounded», de Yu. A. Ovchinnikov, e «Bumper crops in any weather», de R. G. Butenko (Science in USSR, n.º 6, 1981). 25 Esta
presumida
rer sobre
intriga
nazi
a hereditariedade
teria
o intuito
biológica
de
desacreditar
dos caracteres
as
adquiridos,
«provas»
de
teoria incon-
veniente por se opor às teorias raciais do nazismo. Mas a verdade manda que se diga que
o
racismo
também
se
acomoda
bem
com
o
lamarckismo:
a
«inferioridade»
racial seria um carácter adquirido por acção de um meio físico e sociocultural degra-
dado, carácter que na sequência das gerações se fixaria na hereditariedade. Voltando
ao caso Kammerer, invejoso, que
foi também
o tentaria
sugerido que
desacreditar,
indivíduo
o autor da fraude que
seria um
colega
se diz ter sido posteriormente
internado num hospital psiquiátrico. Importa também notar que o anti-sovietismo de Koestler não foi incompatível
nem
com o apaixonado socialismo de Kammerer,
nem
com o favor que a doutrina da hereditariedade biológica dos caracteres adquiridos teve na URSS, teoria da qual, todavia, Koestler como Lysenko foram inflexiveis defensores, Ideologias diferentes apoiam-se algumas vezes na mesma «ciência». Dibl. Univ. 49 — 292
337
GERMANO 2% V.
cípio
da
Cooper,
Nature,
hereditariedade
DA
FONSECA
258:21-22,
biológica
diversas inteligências. 7 O leitor interessado
poderá
dos
1975.
Como
caracteres
consultar
sobre
SACARRÃO aconteceu
adquiridos
com
Koestler, o prim-
continua
este problema,
entre
a
fascinar outras, às
seguintes fontes: Sacarrão (1952), De Beer (1958), Gould (1977). : 28 V. também, Steele (1979, 1981), Daudin (1981), Maynar-Smith (1982 aj Robertson (1982), Howard (1982) e Nature, 289:631-632. 2 V. no meu livro Adaptação e a Invenção do Futuro (1985) a parte intitulada > « Uma nova vaga?», pp. 159-165. e
CAPÍTULO BIOLOGIA
EVOLUTIVA
E
VIII
EXPLICAÇÃO
DA
SOCIEDADE
É provável que a ideia da evolução (darwiniana) se tenha, em parte, gerado pela observação da prática social do capitalismo, pelas transformações
que
operou,
tendo-se traduzido,
a nível científico, por
uma teoria explicativa das relações dos seres vivos na natureza. O darwinismo, porém, provocou reacções e interpretações que não foram por toda a parte idênticas. Tem um certo interesse a opinião que Karl Marx manifestou pelo livro 4 Origem das Espécies. Não abordarei o problema da correspondência trocada entre Darwin e Marx, nem a possibilidade discutida de uma das cartas do primeiro ser falsa ou, pelo menos, não dirigida a Marx, e tão-pouco a interferência de Edward Aveling (genro de Marx), etc. Parece certo que Marx jamais se encontrou com Darwin. Todavia, manifestou grande admiração pela sua obra, tendo-lhe oferecido um exemplar da 2.º edição de Das Kapital (vol. 1, 1873) com
uma dedicatória («da parte do seu sincero admirador»). Considerou a Origem um livro muito importante, escrevendo que lhe convinha «como base da luta histórica das classes». Mas tanto Marx como Engels punham fortes reservas quanto à aplicação do darwinismo, em particular da selecção natural, à história da condição humana e das relações sociais. Por exemplo, no que se refere à «luta de classes», Marx pensava muito justamente que não era possível considerá-la como um mero
prolongamento da selecção natural, que o homem não pode ser interpretado em toda a sua dimensão e complexidade por analogias com o que se passa nos animais. Para Marx, o darwinismo projecta na natureza o malthusianismo e os princípios da economia liberal da Inglaterra vitoriana. Numa carta célebre dirigida a Engels, este pensamento de Marx surge em toda a sua clareza: É extraordinário como Darwin reconhece entre os animais e plantas a sua sociedade inglesa, com a divisão do trabalho, a competição, a exploração de novos mercados, a «invenção» e a «luta pela existência» de Malthus. É a bellum omnium contra omnes de Hobbes (a guerra de todos contra
todos) 1, 339
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
Engels parece ter ido mais longe, talvez mesmo não fosse tão admirador da obra de Darwin como o foi Marx. Foi provavelmente mais reticente, mas isto pouco importa, a não ser ao historiador das
relações complexas entre Marx-Engels e a doutrina de Darwin. Engels, por exemplo, escreveu: Toda a teoria darwinista da luta pela existência é simplesmente a transferência da sociedade para a natureza viva, da teoria de Hobbes sobre a guerra de todos contra todos e da teoria económica burguesa da concorrência, assim como da teoria da população de Malthus. Uma vez realizada essa manobra forçada (cuja legitimidade absoluta, em particular no que respeita à doutrina de Malthus, é muito problemática), é muito fácil transferir de novo essas teorias da história da natureza para a da sociedade; e é ingenuidade de mais pretender
ter demonstrado
assim que
essas
afirmações
são leis
naturais e eternas da sociedade. (Engels, Dialéctica da Natureza. )
Claro está que o facto de Darwin receber inspiração do ambiente socioeconómico e cultural do seu tempo e da sociedade em que estava inserido para a elaboração da sua teoria não significa necessariamente que esta seja falsa. Vem a propósito lembrar um trecho do socialista alemão Karl Kautsky, escrito em 1902: O facto de uma ideia ter a sua origem nada
classe, ou estar de acordo
com
os seus
numa
determi-
interesses,
prova nada quanto ao facto de ser falsa ou verdadeira Gould, 1980 a).
não
(cit.
O que está em causa, a meu ver, é saber se na natureza existe ou não concorrência entre organismos, competição, luta pela vida, e se existe ou não selecção. Apesar de ter desenvolvido noutros pontos deste livro alguns destes aspectos, e ter dado as respostas que julgo mais adequadas, posso resumir aqui a minha posição. Na natureza existe uma reprodução diferencial que faz que a contribuição dos organismos para a composição
hereditária das gerações sucessivas ocorra em
das direcções, correlacionadas com
a própria variabilidade
determina-
dos indivi-
duos e com as condições do ambiente. A isto tem-se chamado
selecção
natural. É um processo provavelmente real, mas não é o único factor promotor
da evolução ?. Quanto à competição, será tema
que abordarei
a seguir. Mas ao lado de fenómenos competitivos há na natureza uma 340
4
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — 1
imensidade de fenómenos de cooperação, de que só recentemente se começou a reconhecer a sua enorme importância. Mas quer este mutualismo
tão
generalizado,
quer
as concorrências,
têm
um
significado
mais descritivo, e sobretudo metafórico. Podemos estabelecer certas analogias
com
os
mesmos
fenómenos
nas
sociedades
humanas,
mas
tais
semelhanças são superficiais, não traduzem homologia, não significam, por exemplo, que compartilhemos necessariamente com os animais genes para a cooperação, ou para a competição; em suma, não legitimam as transferências fáceis da natureza viva para a sociedade humana, ou
que as características desta (por exemplo, o tipo de economia burguesa) sirvam para fazer uma correcta leitura científica da natureza. É tão-pouco que as leis que regem as sociedades animais caucionem os com-
portamentos sociais do homem no sentido de considerá-los provenientes da mesma raiz, de serem o seu prolongamento natural. A principal crítica marxista, e também a de diversos historiadores, parece-me ser o malthusianismo no que a teoria da selecção natural é o
contra o darwinismo tradicional, al a teoria assentaria. Pensa-se
resultado da luta pela existência, conceito que Darwin foi buscar a Malthus. Há uma certa verdade nisto, mas a questão é mais complicada, e parece-me (como apontei noutro lugar) que a inspiração que Darwin
recebeu
de
Malthus
é, digamos,
mais
naturalística
e limitada
do que política e económica, e provavelmente até essa influência não foi
tão
decisiva
para
a
da
elaboração
teoria
como
se tem
pensado º.
A ideia de luta pela existência era velha de séculos; os efeitos da sobrepopulação eram discutidos também antes de Malthus, ainda que sem a força que este lhe imprimiu. Darwin tinha um profundo conhecimento da bibliografia e não foi, portanto, especificamente Malthus quem determinou a eclosão da ideiá de selecção natural, tanto mais que parece
provado
que,
no
momento
em
que
leu o trabalho
de Malthus,
o seu espírito já tinha amadurecido algumas ideias-chave, nomeadamente o conceito anti-individualista do processo evolutivo, ou seja, que a evolução se opera pela transformação de populações e não pela acção de certos indivíduos privilegiados (v. o cap. V). Ora o pensamento populacional era (como acentuou Ernst Mayr) completamente estranho a Malthus. De maneira que foram as observações de Malthus (em particular a elevada fecundidade relacionada com a limitação dos recursos
e a alta mortalidade consequente) que tomaram um significado novo à luz do conceito populacional concebido por Darwin, ou seja, a enorme importância da variação individual, com a consequência de que a mudança é um processo estatístico *. Estas ideias, que foram fundamentalíssimas para a elaboração da teoria, não foram inspiradas por Malthus, mas sim pelos estudos e observações que Darwin fez sobre a criação
de
raças
domésticas
(de
longa
tradição)
e dos
resultados
obtidos pela selecção artificial. O que teria sido decisivo em Darwin foi 341
GERMANO
a passagem
do pensar
DA
tipológico
FONSECA
SACARRÃO
(essencialista)
ao pensar
em
termos
de populações e sua variabilidade. Foi esta a grande revolução mental que está na origem da biologia evolutiva moderna, Claro está que nada disto exclui a influência da ideologia da sociedade burguesa e das relações económicas dominantes na génese das ideias de Darwin, mas a sua transferência para a natureza viva não foi directa nem simples como muitas vezes se pretende que foi. Houve um longo e complicado processo de elaboração naturalística dessas influências, traduzidas em teoria científica, e suportada por uma imensidade de dados de observação. no mais puro rigor científico e honestidade intelectual. A importância da Origem das Espécies para Marx e Engels devia residir sobretudo no seu absoluto materialismo e no facto de Darwin ter negado a existência de qualquer plano na natureza. Uma matéria viva destituída de qualquer propriedade especial de natureza transcendente, cuja evolução seguia um curso não programado, eram disposições que decerto agradariam aos dois grandes mestres do materialismo do século xix. Mas não foi só isso: também a importância decisiva da história e a legitimação da própria luta de classes pela concorrência vital. Mas se o darwinismo abalou profundamente os alicerces da moral e da religião, se influenciou fortemente a sociologia, a política e a psi-
cologia, a verdade é que estes e outros aspectos de suma relevância não interessavam directamente a Darwin. Os aspectos biológicos e rigorosamente científicos da sua teoria eram para ele os únicos que importavam. Mas a sociedade estava madura para que'a doutrina provocasse essas revoluções profundas nos espíritos, não só por obra do conceito de evolução como processo como também por interferência da teoria da selecção natural nos seus aspectos, digamos, vulgares. Creio que Darwin procedeu, com a sua obra, à sistematização e conceptualização cientificas da profunda transformação social e económica que estava ocorrendo como vaga de fundo irresistível no próprio tecido social e que ia permitir (sobretudo a Darwin) interpretar a realidade com novas ideias, revelando aspectos da natureza viva até aí mantidos ocultos por outro paradigma. 1.
Competição
e cooperação — Realidades
e
preconceitos
A enorme repercussão das ideias de Darwin deve-se sobretudo ao seu impacte nas relações sociais e na interpretação moral a que elas conduziram no plano político e económico. A ideia favorita que, ao que parece, mais influenciou as especulações de certos economistas, políticos e sociólogos foi a de competição como expressão da «luta pela vida». Uma das razões deste facto deve talvez atribuir-se à enorme influência 342
BIOLOGIA
que
teve o darwinismo
E
SOCIEDADE — 1
popularizado
por Thomas
Henry
Huxley,
com
a sua imagem de uma natureza feroz, de «unhas e dentes sangrentos». em oposição, aliás, ao fundo do pensamento de Darwin, cuja imagem da natureza e da vida era mais profunda. A redacção da Origem com
as próprias expressões aí consagradas
(«luta pela vida», «selecção natu-
ral», «sobrevivência dos mais aptos» e tantas outras), se não exprímia,
pelo menos acomodava-se ao clima socioeconómico da sociedade vitoriana em que se desenvolveu o pensamento de Darwin. Não é de admirar, portanto, que a divulgação destas ideias científicas resultasse, em regra, num darwinismo grosseiro, ajustado às convulsões sociais, aos valores nascentes com a revolução industrial, identificando-se com o
progresso mecânico e económico conduzido pela burguesia. Um dos conceitos que mais necessidade há em aclarar é o de competição, não só no aspecto especializado, no âmbito investigativo, como no das suas transferências para o domínio do ensino, do jornalismo científico e político,
da filosofia, da biologia, etc., onde as suas meta-
morfoses semânticas o afastam muito da realidade. As expressões clássicas de «luta pela vida» e de «sobrevivência dos mais aptos» têm-se prestado às mais falsas ou abusivas interpretações se com elas se quiser significar, como tantas vezes se tem pretendido, luta física brutal e
sangrenta pela sobrevivência. Tais ideias, Darwin não as concebeu com
o exagero que se verifica em tantos dos seus prosélitos profanos. Na natureza não é de modo
nenhum
frequente uma competição sangrenta
no âmbito da mesma espécie, conduzindo à destruição, por meio de combate, dos indivíduos «débeis» pelos indivíduos mais «fortes». Por outro lado, a morte como resultado de concorrência entre indivíduos de espécies diferentes apresenta-se, sobretudo, como um fenómeno rela-
cionado com diferentes condições de nutrição. E no seio de cada espécie a competição
individual
é indirecta,
traduzindo-se,
acima
de tudo,
em
número de descendentes, em quantidade de indivíduos que transmitem as gerações seguintes as características hereditárias da geração antecedente. Isto tanto se aplica aos vegetais como aos animais. É uma competição «silenciosa» que nada tem a ver com o significado do termo na linguagem corrente. Estes factos são hoje bem conhecidos dos zoólogos familiarizados com os modernos resultados da ciência do comportamento animal. Maynard Smith e Price (1973) exprimiram a situação dizendo que os conflitos intra-específicos são geralmente do tipo limited war, que só raramente causam danos apreciáveis aos antagonistas que se enfrentam. Não se trata de luta violenta no sentido vulgar do termo. São combates dissimulados, «fúrias» inofensivas, em que os poderosos meios ofensivos (dentes, cornos, garras, etc.) não são utilizados, como exigiria, a meu ver, a lógica humana em tais situações. Os combates não
vão, em geral, além de ameaças, que bastam para resolver as querelas. Se, durante
as disputas,
os carnívoros 343
fizessem
uso constante entre eles
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
dos seus poderosos dentes e mandíbulas, já teriam talvez desaparecido ou quase. Em
muitas espécies de animais superiores existe um
de ameaças» e um sistema
de
integrados num
«sistema de sinais de submissão» que
hierarquias,
as
mantêm
«código
comunitárias
relações
num
estado de relativo equilíbrio e harmonia. Ora a selecção natural actua a favor destes equilíbrios comunitários,
que são, em
parte, o seu resul.
tado. Em cativeiro estes equilíbrios alteram-se profundamente. Há autores que afirmam que a competição não deve ser
um
fenómeno tão importante na natureza como em geral se pensa é. Outros
manifestam uma opinião oposta e conferem grande relevo ao processo. O problema tem de ser encarado sob diversos ângulos. Um dos que me parecem mais merecedores de atenção é o do próprio significado da expressão competição. Muita confusão poderá ser evitada se o sentido em que é utilizado for devidamente clarificado. Sobretudo num domínio como a biologia, onde os raciocínios por analogia (quase sempre frágeis) e as metaforizações são extremamente frequentes, com todas as
consequências obscurecedoras daí resultantes. Se conferirmos ao termo «competição» o sentido realista de que as
formas
mais
estáveis
tendem
a substituir
formas
menos
estáveis,
e que os vários organismos manifestam diferentes graus de utilização dos recursos do ambiente, de onde resultam substituições e deslocações
de alguns deles, logo se verá, julgo eu, que o terreno ficará, talvez, aclarado para a discussão do problema. De modo que poder-se-á dizer que há competição quando, das interacções de duas espécies, uma delas tem um efeito inibidor sobre o crescimento da outra. É um processo em que dois ou mais organismos do mesmo nível trófico de um ecossistema manifestam as mesmas exigências relativamente aos recursos limitados do ambiente, e sempre que essas instâncias não podem ser satisfeitas pelas disponibilidades existentes. Ou seja, haverá competição quando há necessidade de algo que não é suficiente para todos, o que causa nos indivíduos interessados (da mesma espécie ou de espécies diferentes)
um
certo embaraço
da acção,
um
estorvo
à livre utilização
dos
referidos recursos. Daqui resulta que em múltiplas circunstâncias cada organismo exerce uma acção de travão à expansão de outro organismo. Mas esta acção faz-se por múltiplos modos e não devemos considerar esta acção
limitativa
sob
a forma
de lutas
directas
ou
de acções
de
extermínio, que são fenómenos raríssimos e de nulo significado quando se considera o conjunto da biosfera. A referida acção de travão existe sobretudo porque cada espécie ocupa (na comunidade de que faz parte) uma função particular e um certo espaço físico. À esta dupla posição física e funcional é costume chamar nicho ecológico, ainda que o seu significado seja uma questão ainda muito discutida pelos ecologistas. Existe competição quando os indivíduos tendem a consumir ou utilizar 344
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —
os mesmos recursos espaciais, nutritivos e outros, do ambiente, ou seja, quando tendem a ocupar o mesmo nicho ecológico, como se diz em lin-
guagem técnica. Ora, o que se observa na natureza é que cada espécie ocupa
um
nicho
particular,
cies, e o resultado
tem
exigências
diferentes
desta situação é minimizar
das
outras
a competição
espé-
ou
mesmo
anulá-la. As espécies excluem-se, não entram em competição dividem o habitat e os recursos disponíveis. Há como que uma
porque concer-
tação
entre
as espécies
para
recursos que lhe bastam,
que
cada
uma
cresça
à custa
de
certos
e que não são utilizados pelas espécies
vizi-
nhas. Sem provas bem evidentes não se pode afirmar que as espécies hoje adaptadas aos vários ambientes e ocupando nichos próprios estejam em competição. Estes factos não significam que as espécies actuais se tenham instalado e adaptado sem competição. Na fase jovem da espécie, ao inserir-se ela no espaço físico, é provável que tivesse havido fenômenos de concorrência com outras exprimindo-se por uma mais eficaz utilização dos recursos, de modo que deslocou outra ou outras espécies ou inibiu a sua expansão ou o seu aproveitamento útil do ambiente. Mas a tendência que parece universal é para não haver um estado contínuo de competitividade, é para a anular ou tornar mínima. A fragmentação do ambiente em nichos ecológicos tem precisamente esse significado: quebrar a competição conduzindo a uma divisão dos recursos ou uma situação de coexistência, de tolerância mútua, como parece ser a situação em muitos casos que foram estudados. Penso que o fenómeno de formação de novas espécies (especiação) conduz a esse
resultado: cada espécie que nasce é um ensaio para utilizar o ambiente de maneira diferente, é uma experiência para sobreviver, ocupando um novo nicho, diferente do que ocupava a espécie materna. À especiação tem, assim, o significado de tentativa de a vida poder coexistir e continuar-se. Se acontecer que o novo nicho é compartilhado por outra espécie, por estar ocupado por ela, desta situação resultará, provavelmente, competição,
com
eliminação,
em
curto prazo, de uma
das espécies
em
causa. Mas este resultado não é fatal, porque se conhecem situações de coexistência, por exemplo por haver entrada constante de individuos da forma que está a ser excluída, mantendo-se,
assim, um
estado que
nou-
tras condições não seria possível de maneira duradoura.
A
fragmentação
a competição,
favorece
dos
recursos
do
a coexistência
ambiente,
além
de
das espécies porque
minimizar impõe
uma
certa disciplina e economia à utilização dos mesmos recursos. O facto de cada espécie ter a sua dieta própria, o seu comportamento particular, tem aí a sua razão de ser. No limite, se cada espécie de uma comunidade usufruir de recursos que lhe sejam exclusivos (ou quase),
que lhes baste para se manterem nula
ou
quase.
Migrações,
e perpetuarem,
reduções
dicas ou não), escolhas de novos nichos 345
numéricas
a concorrência de
individuos
será
( perio-
(v. g. novas dietas alimentares ),
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
são, entre outras, soluções para quebrar a competição entre as espécies. Mas a concorrência de duas espécies pelos mesmos recursos não parece
ser suportável de maneira prolongada e ao cabo termina pela eliminação ou deslocação de uma
uma
gradual
delas. Esta eliminação
diminuição
dos quantitativos
em
traduz-se,
populacionais
regra, por
no
decurso
de sucessivas gerações.
A diversidade das populações na natureza é um meio de anular ou tornar mínima a competição, porque ela corresponde a preferências diferentes, a comportamentos diversos, os quais têm como resultado
que cada grupo populacional tem o seu estilo próprio de vida, a sua dieta preferida, o seu espaço físico — e tudo isto logicamente enfraquece a competição, que se torna inútil porque os recursos estão repartidos. Julgo que não é crível uma natureza viva cujas espécies teriam as mesmas exigências relativamente às oportunidades e recursos oferecidos pelo ambiente, por exemplo recursos alimentares, entre tantos
outros. À tendência na natureza parece ser o estabelecer de uma certa concertação entre as espécies num arranjo que possibilite a sua coexistência. O que actualmente observamos na natureza, na maior parte dos casos estudados, é exactamente uma competitividade atenuada ou nula, expressa pela multiplicidade de nichos, em princípio cada espécie com seu nicho ecológico. Não é concebível uma multidão de espécies
com
as mesmas
exigências alimentares,
a preferirem
o mesmo
tipo
exacto de alimento, a utilizarem do mesmo modo os recursos do ambiente. Esta observada coexistência, sem concorrência aparente ou real,
foi certamente
precedida por fases de competição,
como
acentuei
pouco, a que se seguiria uma propendência para a minimizar,
com
há ou
sem eliminação de espécies concorrentes. De modo que as espécies actuais são as formas resultantes dessas fases competitivas, a que se seguirão outras fases de instabilidade, que, aliás, decorrem no presente,
muitas vezes sem nos darmos conta das graduais modificações que se vão operando, a que podem seguir-se períodos de crise, com forte instabilidade do ambiente e das espécies. Mas, seja como for, podemos talvez
dizer que a quebra de competição é a meta adaptacionista, e isto contraria frontalmente o mito de uma natureza «de unhas e dentes sangrentos», como um imenso teatro de lutas permanentes, com a vitória dos fortes e o esmagar dos fracos. Esta é uma das grandes efabulações criadas pela biologia vulgar, que os-cronistas do cientismo biológico se têm encarregado de propalar. Aliás, não é nada fácil pôr em evidência na natureza processos de competição, Por um lado, porque a selecção natural parece favorecer a quebra de concorrência; e, além disso, porque a competição, quando existe, 6, em regra, um fenómeno sem a espectacularidade que a expressão convida a imaginar, isto sem
346
io cito a
né ARNS A Drasit dr Sa Dl
irmos até ao ponto de aderirmos à opinião daqueles autores que põem em dúvida a própria existência do fenómeno. No; sentido que foi defi-
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — 1
nido atrás, o fenómeno parece existir. O problema poderá pôr-se de outro modo. Não há, decerto, competição perante recursos largamente
abundantes, que excedem em muito
as exigências dos organismos, No
meio terrestre não há competição pelo oxigénio. Os animais aquáticos não competem, em geral, pela água. Fazem-no em situações especiais
de sobrepovoamento e outras. Os peixes marinhos não entram em competição pela água do mar, muitas vezes também não o fazem em relação ao plâncton. Também as várias espécies de aves não entram em competição pelo ar. E em muitas situações acontece o mesmo quanto a outros factores do meio físico ou biótico. Mas não é legítimo recusar realidade a situações em que dois organismos competem por recursos que são insuficientes para ambos. Todavia seria falta de perspectiva o pensar-se que a competição é o fenómeno dominante das interacções bióticas. As relações mutualistas e as variadíssimas formas que tomam os fenómenos de reciprocidade entre os organismos (mesmo os de natureza não propriamente simbiótica) ocupam uma posição capital na natureza, se não mesmo superior às dos fenómenos de competição. Duas espécies que utilizam os mesmos recursos que não são suficientes para ambas tendem a desenvolver processos que evitem a concorrência. À tendência competitiva inicial opõe-se uma tendência anticompetitiva
que parece, em regra, exprimir-se por diferenciação de nichos ecoló-
gicos. Cada uma a ocupar função diferente, a utilizar alimento diverso, ou outro espaço, ou tempo diferente no aproveitamento dos recursos, etc. Esta oposição dinâmica de disposições é um dos motores da estruturação e evolução das comunidades naturais. A ela se deve, talvez, a dificuldade que o naturalista experimenta em observar e acompanhar casos de competição entre espécies. A condição natural parece ser uma disposição generalizada para anular a competitividade entre as espécies. Como as diferenças entre as espécies e as variedades (subespécies ou raças) são de quantidade e não de natureza, não havendo qualquer essência
secreta
ou
transcendente
a
estabelecer
uma
fronteira
entre
esses níveis de integração populacional, acontece que não tem qualquer fundamento a ideia, tantas vezes propagandeada em círculos ideológicocientíficos, de que não existe concorrência na natureza entre indivíduos da mesma espécie, ou seja, que não existiria competição intra-específica. Ora a ideia é falsa, a não ser que a selecção natural e a tendência à
multiplicação e à sobrevivência sejam uma completa ilusão. O que acontece é que os defensores da referida ideia (aliás, não zoólogos) se
esquecem, neste como em tantos outros exemplos análogos, que «luta pela vida» é uma expressão metafórica cujo sentido real é o da sobre-
vivência diferencial de indivíduos de diferente constituição hereditária que existem no seio da mesma população. Afirmar, como se tem feito, 347
GERMANO que
é burguesa
DA
FONSECA
toda a biologia que admite
SACGCARRÃO a realidade
da concorrência
intra-específica é fazer prova de ignorância e (o que é pior) de utilizar a ideologia como medida do que é falso ou verdadeiro. Como já tive ocasião de discutir anteriormente, a excessiva metaforização da biologia tem sido um dos factores mais importantes de incompreensão, e este facto é sobretudo evidente na área de conexão desta ciência com as
ciências
humanas,
na sua transmutação
em
biologismo
triunfante, a
RESENDE
no caso da competição, essa influência exista. Mas negar a existência de um fenómeno só porque colide com as exigências de uma ideologia antiburguesa é outra coisa muito diferente. As causas ideológicas de um conceito científico não constituem prova contra ou a favor da sua realidade. Parece-me útil insistir no facto de que competição não significa luta violenta, impacte físico ou cruel concorrência, vitória do mais forte. Se coelhos, por serem mais fecundos ou mais resistentes a determinadas doenças, deixam mais descendência do que outros nas condições inversas, não significa esse facto luta directa. O mesmo se pode dizer da concorrência entre plantas pelo espaço, pela água, pela luz
MNA
criar ou caucionar ideologias. Isto não significa que a maior ou menor ênfase que se confere à competição (e a tantos outros fenómenos biológicos) não seja influenciada pelos valores da sociedade. Admito que,
solar. Plantas a crescerem num mesmo local não têm a mesma capacidade
para utilizar a humidade
do solo, ou para captar
a energia
lumi-
nosa; ou então um animal que, multiplicando-se mais rapidamente, utiliza recursos que ficam insuficientes para outro, etc. Por outro lado, nem
sempre
a selecção natural, ou seja, a reprodução
diferencial, é o
Há todas as razões para pensar que o mutualismo é um fenômeno de enorme importância na evolução da natureza viva*. Existe forte tendência nos seres vivos para se associarem, para reunirem recursos, para cooperarem, para se fundirem até, sendo esta disposição um importante meio de enriquecimento e complexificação da vida, de que só relativamente há pouco tempo começou a verificar-se o seu enorme 348
pc ênitdid
resultado de fenómenos competitivos. Pelo contrário, existem abundantes provas de cooperação entre indivíduos da mesma espécie, ou de espécie diferente, que conduzem a reprodução não-ao-acaso, portanto a selecção. Muitas comunidades de organismos vegetais e animais, onde a cooperação é a regra, foram o resultado de selecção natural. Esta favorece, em numerosos casos, a cooperação e a associação entre organismos. É justo lembrar que Darwin chamou numerosas vezes a atenção para os fenómenos de cooperação entre os organismos, incluindo na espécie humana. Vários autores retomaram as ideias e observações de Darwin sobre a entreajuda. Houve mesmo pensadores que desenvolveram politicamente estas ideias, como foi o caso do anarquista e aristocrata russo, o príncipe Piotr A. Kropotkine (1842-1921).
BIOLOGIA
significado.
Existem
que ocorrem,
entre
na
natureza
organismos
afinidade,
exprimindo-se
niveis.
Interacçoes
As
de estreito parentesco,
E
em
de
múltiplas parentesco
fenómenos
cooperantes
como
a cooperação na esfera da não aparentados. Há aves criar no ninho os filhotes associação simbiótica são
SOCIEDADE — 1
não
de
expressões remoto
de
ou
mutualismo
existem
apenas
entreaiuda
sem
a
entre
ia
todos
os
animais
é o caso das relações pais-filhos. Mesmo
reprodução pode efectuar-se entre indivíduos não relacionadas com outras que auxiliam a destas últimas. A tendência à cooperação e à aspectos pelo menos tão importantes como a
tendência à competição. Certas espécies, por exemplo, que se julgava serem competidoras reconheceu-se estarem ligadas por acções mutualistas que se exprimem de forma indirecta. O estudo teórico e empírico do mutualismo nas suas múltiplas expressões e modalidades será, provavelmente, um dos grandes temas num futuro próximo. As interacções cooperantes
receberam
menos de competição.
sempre
muito
menos
atenção
do
que
os
fenó-
E aí talvez a ideologia burguesa seja responsável
pela preferência. Em grande parte, uma consequência do reflexo que o tipo de relações reza
viva.
Em
económicas todo
o
caso,
da sociedade tem sobre o estudo parece
estar
a operar-se
uma
da natu-
mudança
de
perspectiva quanto a estas questões, mudança provavelmente resultante de um maior desenvolvimento de estudos conduzidos directamente na natureza. A meu ver, podemos até considerar a biosfera como um
gigantesco sistema cooperativo e não sobretudo como uma arena imensa
de concorrências e lutas. As perspectivas dependem, talvez, das filosofias adoptadas e da altitude com que se visam os fenómenos, da leitura
que deles fazemos à luz de analogias vulgares. Assim parece acontecer
com as expressões «competição», «luta pela vida» e tantas outras metá-
foras úteis à comunicação científica, mas expressões nocivas quando tomadas num contexto vulgar ou ideológico. É na realidade difícil fugir-se à tendência de ler a natureza conforme os valores e conceitos dominantes na sociedade, de nela projectar a sociedade e vice-versa. Talvez mesmo não seja possível. A própria escolha dos problemas, a sua equacionação, dependem da maneira como os homens vivem, das tradições que os guiam, dos valores que forjam, do clima socioeconómico
em que se desenvolvem, dos poderes a que estão submetidos e que afinal decidem das opções que lhes é possível tomarem. Como na grande teia ecológica nada está isolado, nada é fixo e dudo uma vez por todas, podemos talvez considerar a natureza viva como uma gigantesca série de interdependências alimentares e outras, em sucessivos equilíbrios, e desequilíbrios, em mudança permanente. Relações onde se agregam e combinam competições e entreajudas, lutas e cooperações.
A
ideia de uma
natureza
cruel, «de
unhas
e dentes
grentos», onde a luta pela existência seria o motor da mudança,
san-
provém,
julgo eu, de uma leitura preconceituosa dos fenómenos naturais. É uma 349
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
imensa e perigosa metáíora que só tem obscurecido a compreensão ecológica e evolutiva da vida. O especialista pode não ser iludido por ela, mas, tal como a ciência orienta a filosofia (e é orientada por ela), também acontece ser absorvida pela cultura e pelas ideologias; e como estas influenciam depois a ciência, em
tal trânsito de ideias e reciproci-
dades muitos erros e distorções se instalam por causa dos abusos das ana
logias e das crismas metafóricas. Uma natureza «cooperativa», tem igualmente, um sentido em parte metafórico, mas ajuda a compreender a realidade viva como uma imensa teia multidimensional, em parte
influencia
muitas
outras
de
muitos
modos,
e onde
que cada
predominam
as situações de compromisso, onde sistemas opostos tendem a tomar situações de equilíbrio, a tolerarem-se mutuamente, mesmo em casos de competição ou de parasitismo. Sendo elevado o grau de cooperação que existe na natureza, quer no plano individual, quer populacional, não deixa de causar certa surpresa o facto de as relações mutualísticas serem
pouco
aparentes
e até de
demonstração
difícil.
Já
J. D.
Bernal
dizia há vinte anos que o velho conceito de «luta pela existência» estava a ser substituído pelo de cooperação entre os organismos. A relação herbívoros-carnívoros faria parte do sistema cooperativo, visto que a condição de uma espécie-presa depende da sua relacionação com a espécie-predadora. Nenhuma espécie pode talvez multiplicar-se livre-
mente ou desaparecer sem afectar outras, de modo que as interdependências limitam os quantitativos e asseguram um certo equilíbrio. Esta questão é, naturalmente, mais complicada, e o próprio conceito de equilíbrio mereceria um reparo. Em bom rigor científico, «equilíbrio natural» é coisa que não existe, se bem
que a utilização
da expressão
tenha certamente utilidade prática para traduzir um certo grau de estabilidade transitória e superficial respeitante a este ou aquele aspecto das comunidades de organismos”. Claro está que Bernal já não terá razão quando refere que a competição só tem lugar em situações excepcionais de sobrepovoamento, sobretudo quando se socorre do testemunho
de um biólogo incompetente e suspeito como foi Lysenko.
Partir da
ideologia para afirmar ou negar a realidade de um processo é decerto um procedimento em perfeita contradição com o método científico. No caso da competição, será necessário primeiro desantropomorfizar a expressão e situá-la no seu significado simplesmente tradutor de factos de observação sem intenções de generalizar. A biologia está impregnada
de expressões utilizadas como analogias do que se passa na esfera humana, mas os raciocínios analógicos são débeis e perigosos pela confusão que introduzem na interpretação quer da natureza viva, quer do comportamento do ser humano.
350
o mio
BIOLOGIA 2.
Darwinismo
social.
E
SOCIEDADE — 1
Racismo.
Fascismo
Um darwinismo popularizado, ajustado à nova sociedade e nascido, como vimos, sob a sua influência, foi logo aproveitado para a suportar, não só teoricamente, como preendedores, ao mesmo tempo que latifundiários, etc.) o recusavam.
nos seus aspectos práticos e emmeios conservadores (religiosos,
Herbert Spencer, um dos principais teóricos optimistas do evolucionismo progressista socioeconómico, e intérprete, por assim dizer, do liberalismo
económico,
da livre iniciativa,
do laissez-faire,
inventou
a
conhecida expressão «darwinismo social», doutrina que iria ter largas e poderosas influências, sobretudo na Inglaterra e nos Estados Unidos da América do Norte *. Competição e progresso eram as ideias mágicas que estavam na base de todo este clima intelectual da sociedade. A pri-
meira conduzia ao segundo. Antes de Darwin, já Spencer, como referi, havia defendido
um
evolucionismo
universal,
coerente e ordenado;
e.
por isso mesmo, esta teoria da mudança do simples para o complexo, em obediência a forças equilibradas em acção na matéria, restabelecia, de certa maneira, a anterior imagem
harmonia
divina,
que tão bem
de um mundo
se exprimia numa
estático, reflexo da
ordem
da natureza
e dos seus seres, criados por Deus. O darwinismo social é um produto ideológico da teoria científica
elaborada por Darwin. Consiste essencialmente na utilização e desenvolvimento dos conceitos de «luta pela existência» e de «sobrevivência
dos mais aptos» para criar uma certa filosofia da sociedade servindo, também,
para
caucionar
as injustiças, as desigualdades sociais, o libe-
ralismo selvagem, as opressões. À expansão colonialista encontrou na doutrina as suas justificações e os seus fundamentos, uma espécie de «moral». O racismo, que se espalhou pela Europa e pela América, no
também,
apoiou-se,
darwinismo
social,
e foi
em
parte
fortalecido
por ele. O genocídio dos índios americanos, a exploração e aviltamento social dos Negros, o colonialismo escravizador, exigiam uma justificação para satisfazer a moral e colocar as consciências bem consigo mesmas. O domínio do Branco apoiou-se na teoria da sua superioridade em relação aos povos colonizados. Os genocídios tinham uma base «científica».
Albert
Jacquard
(1978)
resumiu
bem
a situação
na
passagem
seguinte:
Na século
Inglaterra xIX
fazem-se
industrializada fortunas
graças
da
segunda aos
lucros
metade
do
tirados
de
minas ou fábricas onde os operários recebem salários que mal chegam para lhes permitir sobreviver e, por economia, algu351
GERMANO
mas a luz
crianças que do
dia
uma
DA
trabalham vez
a religião é senhora
rência supremo. ser evitado.
FONSECA
por
das
nas galerias semana.
almas
Daí que
Além
disso,
SACARRÃO
das
Nessa
certo mal-estar
o ponto
participa,
sujeição
aqueles
de povos
que
a vivem.
inteiros,
Mas
considerados
refe-
possa
juntamente
colonial,
essa
vêem
porém,
de
dificilmente
com outras nações europeias, na aventura tante para
só
sociedade,
e constitui
a Inglaterra
minas
aventura
inferiores
tão exalconduz
aos
à
povos
de raça branca, cujo êxito parece definitivo. Ora, numa sociedade impregnada de uma religião que prega o amor do pró-
ximo, atitude tão dominadora
pode
causar
problemas.
Mas
eis que um cientista afirma que o progresso do mundo
vive
é o resultado da «luta pela vida» [...]. «Ao Juízo de Deus» da Idade Média sucede o «juízo da selecção natural». Se os Brancos dominam os Negros, é porque são melhores, e é
normal, é bom para a espécie suplantem os segundos º. No darwinismo
tífica
humana,
que
social, a selecção natural seria a justificação cien-
(que o próprio Darwin
nunca
apoiou)
de múltiplas
e opressões, da feroz competição entre os homens, fortes,
os
mais
capazes
no
intelecto,
niente), sairiam vitoriosos, enquanto gados
e condenados
os primeiros
à situação
no
engenho,
em na
injustiças
que
os mais
moral
(conve-
os fracos e ineptos seriam esma-
de massa
informe
e medíocre
por essa lei natural e implacável. E gradualmente
vencida
a espécie encami-
nhar-se-ia para o aperfeiçoamento, para a selecção de indivíduos cada vez mais engenhosos, mais lutadores e mais empreendedores. Ora, nas sociedades humanas,
os resultados deste processo,
eticamente
execrável,
são exactamente os inversos: as guerras e as prepotências, a miséria e as
injustiças, não conduzem à selecção dos melhores, mas
sim ao oposto,
ao aviltamento, a destruição física e moral dos seres humanos
de todas
as idades. Processos naturais nunca poderão caucionar ordens sociais que impliquem desigualdades, violências e opressões de uns homens sobre outros homens. As políticas de exploração do homem pelo homem não são consequência de qualquer ordem ou lei natural. Mesmo se houvesse, de facto, efeitos selectivos, as «qualidades» premiadas na competição seriam exactamente as que não honram a espécie: a cruel dade, a exploração do ser humano, a manha, o desprezo pelo semelhante. Por muito que se queira procurar e sofismar, não há nada no mundo
vegetal ou animal que possa apoiar esta falsíssima presunção, que exige permanente desmistificação. Escreveram-se várias obras em defesa do darwinismo social. Politicos, homens
de negócios,
filósofos, 352
sociólogos,
psicólogos,
escritores
e
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — 1
outros intelectuais foram aí buscar justificações, beber ideias estimular a imaginação !º. Com elas se alimentaram diversas ideologias e se fortificaram justificações que perduram e se ampliaram com a sociobiologia humana. Não devemos também esquecer que, para o final do século xIx,
Francis Galton (1822-1911)
inventou o termo eugenia, ciência que se
propõe o melhoramento dos animais e do próprio homem, por meio de
uniões apropriadas e de outros métodos, conduzindo, assim, a uma higiene hereditária e ao aperfeiçoamento das qualidades hereditárias, tanto do ponto de vista físico como mental. No contexto ideológico do darwiuismo social, a eugenia teve frequentemente propósitos racistas e de superioridade de castas, que utilmente serviram objectivos políticos de expansão
imperialista
e
de
dominação
económica.
Os
trabalhos
de
Galton (que aplicou métodos estatísticos ao estudo da hereditariedade humana) e os dos seus continuadores tiveram grande influência no desenvolvimento de preconceitos sociais sobre a superioridade mental dos indivíduos das classes possuidoras e dominantes, que seriam mais inteligentes e capazes, em oposição às classes baixas e prolíferas, consideradas biologicamente inferiores. À mesma influência se exerceu sobre os preconceitos de superioridade racial. Francis Galton acreditava na superioridade dos Nórdicos. Muitos políticos e intelectuais foram res-
ponsáveis
pela
expansão
do
racismo.
Thomas
Jefferson
e Abrahan
Lincoln alimentavam preconceitos sobre a inferioridade dos Negros. O culto da «raça» ariana na Europa e os preconceitos sobre a superio-
ridade dos conquistadores louros sobre os povos de pele escura da Pérsia e da Índia traduziu-se numa oposição entre povos nórdicos, que seriam os arianos, e os semitas, a qual culminou no nazismo. Uma tal confusão entre grupos linguísticos e raças ainda não desapareceu. Lerner
e
Libby
(1976)
puseram
em
evidência,
de
forma
com-
parativa, na seguinte tabela, o número de linchamentos nos Estados Unidos da América do Norte, de brancos e negros, segundo dados disponíveis a partir de 1882: Vítimas
anos
1882-1808.
de linchamentos Estados Unido =
Ma
595
440
1080
assempemeearemerero eres
76
94
1802
aaunstnemmsmessseosemeees
69
162
61
620
39
416
.............
1918-1927 49 — 23
Negros
anpuiiremsrer
1906-1915
Bibl. Univ.
nos
353
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
Segundo certas autoridades, o racismo na América do Norte seria obra de intelectuais e também de biólogos do passado, mas, come refes rem os mesmos autores, haveria hoje uma radical mudança de atitu de
a este respeito:
campos
quer
de acção
nuns,
quer
intelectual,
noutros,
e igualmente
os preconceitos
nos
raciais
mais
quase
desapareste
ram. Todavia, ainda não se sabe até que ponto é que a massa
dãos
americanos,
quer
no
Sul,
quer
no
Norte
do
país,
diversas
dos cida
acompanha
4
mudança operada na classe intelectual e científica !. O próprio Darvwim
julgava haver raças atrasadas, que se extinguiriam
perante
a concorrêm-
cia exercida pelas civilizações complexas de outras raças, E julgava ser necessário que o homem fosse sujeitado a uma dura concorrência e que se fizessem «desaparecer todas as leis e todos os costumes que impedem
os
mais
também
capazes
de
triunfar».
historiadores,
Ignorantes,
filósofos e literatos,
teorias raciais e propósitos eugenistas,
que
fanáticos
e
difundiram
místicos,
mas
e desenvolveram
certamente
serviam
os inte-
resses do colonialismo e justificavam a exploração brutal de grandes massas de homens, que acompanhou a industrialização durante o século XIX, e que neste século se prolongou até à II Guerra Mundial 2. Uma das obras que mais serviram de justificação pseudocientífica as vagas do racismo foi a do escritor e diplomata francês conde J h-
da
história
(1853-1854), em branca,
inteligência, teriam
mestiçamento
sido desses
da
que o seu autor sustentou
sobretudo
dos
beleza
e da
provocadas «puros»
arianos,
pelos
com
que
força É.
Todas
elementos
outros
povos
a superio-
possuiriam
as
o exelu-
desgraças
estrangeiros
da
e pelo
acentuadamente
infe-
riores. Obra divulgada e assimilada em plena expansão do evolucionismo darwinista
cia na
e da sua aberraçã— o o darwinismo
Alemanha
foi enorme.
Richard
social —,
Wagner
a sua
influén-
e os pangermanistas
serviram-se das ideias de Gobineau para demonstrar a superioridade dos Alemães e divulgar as suas doutrinas racistas. E sabemos onde isso terminou — na loucura hitleriana, na «antropologia» nazi, na doutrina fascista do Lebensraum, no expansionismo imperialista italiano da ditadura fascista de Mussolini e de modo geral no expansionismo coloniao | lista europeu !. O racismo desenvolve-se em nome de pretensas verdades cientificas. Nunca é de mais denunciar a peste ainda Jonge (demasiado longe) de a ter ceitos que modela a mente colectiva. não estão livres de ser contaminados.
Prémio Nobel de Fisiologia e Medicina,
por Jacquard,
1978):
354
racista, tanto mais que estamos extirpado do sistema de precomMesmo cientistas de reputação Foi o caso de Konrad Lorena,
que em
1940
afirmou
(citado
EVADEO E
sivo
da raça
des
'
ridade
intitulada Essai sur Vinégalité
sis
races humaines
(1816-1882)
ba de!,
-Arthur de Gobineau
BIOLOGIA
Deveríamos,
E
SOCIEDADE —I
para preservar
a raça, estar atentos à eli-
minação dos seres moralmente inferiores de forma ainda mais
severa do que a actual [...]. Devemos — e temos o direito disso — contar com os melhores dentre nós e encarregá-los de proceder à selecção que determinará a prosperidade ou o ani-
quilamento do nosso povo º. Albert Jacquard comenta este passo dizendo que «estas palavras de Konrad Lorenz tinham sido escritas na Alemanha, em 1940, quando os campos de extermínio já funcionavam, constitui mais uma circunstância agravante». O passo transcrito revela, sem dúvida, preconceitos racistas. Basta
atentar
nas referências
aos «melhores
dentre
nós»,
ao
preservar da raça pela «eliminação dos seres moralmente inferiores» e ainda à maneira mais «severa» do que na altura se fazia (em 1940) para não se ter dúvidas quanto ao facto de que Konrad Lorenz acreditava que os métodos de selecção animal aplicados ao homem produziriam o aperfeiçoamento da raça, e que para ele esta não era de forma nenhuma uma entidade mítica. O passo referido de Konrad Lorenz foi escrito num artigo que pretendia ser científico, da sua autoria, publicado em 1940 na revista Zeistschrift fiir angewandte Psychologie und
Charakterkunde. Aos protestos que se levantaram contra a atribuição do Prémio Nobel a quem produzia tais afirmações respondeu Konrad Lorenz dizendo que a doutrina nazi era «falsa», declarando textualmente: «Os meus argumentos dessa época foram mal compreendidos e num certo sentido muito mal interpretados» (citado por Thuillier, 1981). Creio que Konrad Lorenz, quando produziu as afirmações acima transcritas, estava perfeitamente convencido de que há raças «melhores» e «piores» e indivíduos congenitamente «superiores» e «inferiores»;
e que
obter o mesmo
por
selecção
imposta
sobre
os seres
humanos
se pode
resultado que a selecção natural alcança na natureza
viva, ou seja, a eliminação dos «menos aptos» e a sobrevivência e apu-
ramento dos «mais aptos» !*. Por outro lado, o clima ideológico e sociocultural do nazismo, em que estava inserido, e no qual se movimentava livremente, convidava o seu espírito, já predisposto para tais preconceitos, com o seu biologismo simplista, a fazer tais afirmações pseudocientíficas e a tomar a ideologia por ciência, estando provavelmente convicto de que as suas ideias eram perfeitamente científicas. Grande observador (e amante) dos animais na natureza, foi sempre um darwinista fervoroso, com forte tendência a interpretar o comportamento humano como um simples prolongamento do comportamento animal, explicado pelas mesmas leis e submetido à mesma mecânica seleccio-
nista, tudo no mais estrito determinismo genético. As suas ideias sobre 355
GERMANO
DA
FONSECA
as raízes e a natureza do comportamento
SACARRÃO
agressivo
no homem
provêm
da mesma tendência de zoomorfizar os seres humanos. Ora isto acomodava-se
bem
às teses ideológicas
e ultra-esquemáticas
do
nazismo,
ao
culto da força, à supremacia dos fortes, à fatalidade de os fracos perece-
rem na luta pela vida (como ele cria ser a lei nos animais), à ideologia do «espaço vital», ao preconceito de que
a selecção
natural
actua
para
o bem das espécies, de onde a ideia, também falsa, e perigosa, de que tudo se deve sacrificar ao bem da nossa espécie, ou da pátria, ou do partido, ou da raça, sacrifícios que se traduzem, inevitavelmente, pelo atropelo dos direitos dos homens, por opressões e crimes de toda a ordem. Um grosseiro darwinismo, baseado na «luta pela existência» e na vitória do mais forte, que já tinha estimulado a difusão do racismo na Europa e na América, também servia para justificar a ideologia
nazi, com os seus dogmas de «superioridade» e «inferioridade» racial, e o estúpido preconceito de «pureza»
da raça, conceitos
sinistros e, em
grande parte, responsáveis pela bestialidade da «solução final» aplicada aos judeus. O racismo, directamente ligado ao darwinismo social, que não é senão
um
dos seus mais importantes
aspectos, ou, antes, uma
das suas
sublimações, persiste nos nossos dias. Não só tem constituído um instrumento político em Estados totalitários e alimento forte dos nacionalismos, como se estendeu aos Estados onde o afrontamento de raças se traduz em preconceitos de cor, em diferenças mindo, sobretudo, interesses económicos e de
de cultura, dominação.
mas expriO conceito
de raça (com o grande mito da «raça») é, por um erro grosseiro, identificado com o de povo, civilização, nação. Este, preconceito, do qual se têm praticado as maiores
violências, crimes
à sombra
e infâmias,
tem
servido de justificação ao anti-semitismo, à segregação racial praticada pelos Brancos, nas regiões onde eles dominam povos de cor, e às violências eugénicas do regime hitleriano, onde a perseguição atingiu características de loucura, pelas deliberadas e frias determinações de extermínio colectivo. A ideologia racista deve considerar-se como um mal profundo, que não toma, apenas, os aspectos clássicos por que é mais conhecida. Alimenta, igualmente, as ideias de superioridade dos grupos e classes sociais (de dimensão diversa), possuidoras e privilegiadas, em relação aos explorados e inferiorizados; a dominação do sexo masculino sobre o feminino, com os preconceitos de superioridade dos primeiros a relegarem as mulheres para posições de subalternidade, e onde em tudo isto não têm faltado as «razões» biológicas para justificar as consequentes diferenças sociais, suportes que são, naturalmente, falsos. Aqui, a dominação é, em geral, menos ressentida do que seria para desejar, um dos motivos, entre vários, sendo, provavelmente, o forte e diferente condicionamento educacional das crianças de um e outro sexo, que, logo nos 356
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —1
primeiros anos, os pais, a escola, a Igreja e a moral corrente, assim como
todo o clima social e económico, se encarregam de estabelecer. Em certos meios e épocas de grande instabilidade, como a actual, o sistema educacional oscila nas suas bases e o condicionameno referido enfraquece. Mas não tenho dúvidas de que diversas das apregoadas «libertações»
da
mulher
são,
afinal,
novas
formas
de sujeição
ao
sistema.
Nas sociedades animais, as hierarquias sociais têm origem biológica, enquanto nas humanas as desigualdades são devidas a causas culturais e sobretudo a posição de classe !”, No caso do sexo, os privilégios decorrentes de se ser homem já não são propriamente de classe (ou não só), mas principalmente do estatuto que a sociedade estabelece no que respeita às suas obrigações, direitos e deveres —- o que não acontece no animal, onde a dominação
do macho
(ou da fêmea, conforme os casos)
corresponde, sobretudo, a um comportamento recebido por herança biológica. E, por mais que se proclame a existência de uma natureza masculina (ou feminina) recebida inteira dos genes, a análise científica dos factos aí está para negá-lo. Quando, portanto, se invocam pretensas
leis naturais nas sociedades humanas para explicar as condições em que se firmam as igualdades e desigualdades, ou os privilégios de família ou de classe, ou os favores e posses das fortunas, ou as diferenças de educação e cultura, e, por conseguinte, que as condições dos deserdados decorrem
de implacáveis leis biológicas, comete-se, deliberadamente
ou
não, um enorme erro. Mais uma vez se verifica o que há de abusivo em interpretar as sociedades humanas pelo que se passa nas sociedades animais.
É evidente
que
este propósito
serve,
em
geral,
os interesses
reaccionários.
Voltando ao problema racial clássico. Nos Estados Unidos da América
do
Norte,
por
exemplo,
a Lei
da
Imigração
de
1924
reflectiu
preconceitos raciais. Em 1922 chegou a recomendar-se a esterilização dos marginais e desadaptados sociais (desde os débeis mentais e deficientes físicos, aos vagabundos alcoólicos e mendigos), o que traduz o propósito de aplicar grosseiramente, já se vê (e por vezes com aspectos ridículos), a ideia de selecção natural à sociedade. A pobreza e a imoralidade seriam hereditárias; haveria em grande número de indivíduos a fatalidade congénita de ser pobre ou fraco do ponto de vista físico ou mental, tudo ideias reaccionárias, pretensamente justificadas pelo darwinismo social. A recomendação mencionada não chegou a concretizar-se completamente na sua forma legal e obrigatória. Em todo o caso, a esterilização compulsiva foi instituída legalmente em várias nações
europeias e americanas
prática
proibida
afectados,
mações
pela
sobretudo,
físicas,
(v. cap. x1). Em
lei. As por
pela
assim, que pessoas com
esterilizações
doenças
epilepsia,
mentais,
por
Portugal e noutros países é incidem em
exemplo,
doenças nervosas tenham 357
sobre
certos casos
pretendendo
indivíduos por
malfor-
evitar-se,
a seu cargo a educação
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
de crianças. À natureza das intervenções varia, e existe sempre
o perigo,
com as mutações político-sociais, de tomar aspectos aberrantes e criminosos. Basta pensarmos que a expressão «inadaptado social» se presta a todas interpretações, como acontece quando uma proposição ganha em popularidade (e por vezes em significado político) o que perde em rigor de conteúdo. Quanto mais repetida, mais se afasta da sua genuinidade. Durante o regime nazi, a esterilização atingiu o carácter extremista e violento que se conhece. À esterilização compulsiva, a meu ver, im-
posta pelo Estado-Nação omnipotente, é um
atentado à dignidade e à
liberdade humanas. Como prática de higiene social, é de efeitos duvidosos. Mesmo praticada em larga escala, não atinge o seu objéctivo — a eliminação dos genes nocivos na espécie humana. Aliás, os seus fundamentos científicos são de valor duvidoso. A esterilização tem propósitos de higiene social, mas não é difícil reconhecer que se trata de um produto ideológico da teoria social-darwinista. Tem de ser encarada no quadro geral do racismo (contrariado por toda a ciência biológica), que é presa fácil de políticos ao serviço de nacionalismos, que inelutavelmente vivem de ideias de superioridade
e, portanto, de dominação.
O verbalismo e as bases pseudocientíficas
do darwinismo
social
tiveram boa fortuna em diversas obras de sociólogos. Os grandes homens de negócios pensavam que os seus êxitos eram a expressão da grande lei da «sobrevivência dos mais aptos». Em nome destes princípios, e dos seus corolários racistas, vários autores atribuíram a prosperidade das grandes nações industriais, em particular dos Estados Unidos da Ameé-
rica do Norte, às excepcionais qualidades da «raça nórdica». Em
1924,
por exemplo, uma lei americana, a «Johnson Act», favorecia a imigração dos dolicocéfalos louros. j
O longo caminho pensava
que
a natureza
do racismo tinha
(na
antiga
produzido
Grécia,
duas
Aristóteles
categorias
uns destinados à chefia e os restantes à condição
de
já
homens,
de escravos),
sempre
ligado à evolução económica, ficou assinalado, por exemplo, pelas grandes e sangrentas perseguições aos judeus, passando pela história negra da escravatura e pelos extermínios de povos sob dominação expansionista colonial (na América, na África, etc.) e pelo tresloucado racismo fascista e militarista, onde o Estado é o garante da permanência e expansão das raças superiores,
-Nação,
que
destinadas à dominação.
é relativamente
recente,
é
um
Este
dos
mito
mais:
do
Estado-
importantes
obstáculos à cooperação autêntica dos homens a nível mundial, cooperação que se impõe se se quiser, na realidade, solucionar, ao menos em
parte, os grandes problemas desenvolve-se de forma
da humanidade.
gigantesca,
alimentado 358
O militarismo por
esse mito,
moderno e criando
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — 1
a sua própria dinâmica de dominação
destruidora, instaura
a lei do mais forte. Sobretudo depois da II Guerra
Mundial,
cismos e o ressurgir de novas esperanças,
com
nasceu
(e justifica)
a derrota
um
dos fas-
certo pessimismo
ou desinteresse pelo darwinismo social. Mas o evolucionismo continuou a ser fonte de uma filosofia e de uma nova moral onde se poderiam ir buscar os valores necessários para alimentar a grande esperança no futuro do homem, fé no seu progresso sem fim. Julian Huxley propõe uma filosofia evolucionista de raiz materialista 8. A obra de Teilhard de
Chardin,
com
o
seu
evolucionismo
espiritualista,
obtém
sucesso.
Entretanto, o darwinismo científico alcança excelentes progressos pela entrada em cena da genética das populações e pela convergência de disciplinas fundamentais da biologia, todas a consolidarem e modernizarem, pela observação e pela experiência, a teoria da selecção natural. Este
neodarwinismo
confinou-se,
porém,
aos
cializados. A teoria sintética, como
também
teoria moderna
atingiu
dos anos
da selecção
50.
Em
1958
natural,
celebrou-se
círculos
científicos
espe-
passou a ser conhecida o seu apogeu
o centenário
para
a
o final
da comunicação
de
Darwin-Wallace à Sociedade evolucionismo e no conceito
Lineana para manifestar de novo a fé no de «sobrevivência dos mais aptos», agora
traduzido
mais
noutra
linguagem
neutra, mais
técnica, mais
compli-
cada, não tautológica, com terminologias menos assemelhadas a situações observadas em sociedade. Por outro lado, o evolucionismo cientifico matematicizou-se, em grande parte, e com isso tornou-se muito dificilmente acessível ao profano. Mas no que respeita às transposições (e mistificações) para os processos sociais e históricos, aí o processo de transferência não parou. O darwinismo, e particularmente o seu produto mais popularizado, a selecção natural, continua a atrair diversos pensadores não biólogos. Por exemplo o filósofo Karl Popper defende a ideia de que a evolução da ciência se faz, como a das espécies animais e vegetais, por selecção natural, numa identidade perfeita seja,
ou
de processos,
por
uma
«selecção
com
hipóteses»,
das
natural
apelo a noções de sobrevivência das teorias mais aptas na sua luta pela existência,
tudo
conforme
We
ortodoxia
darwiniana:
choose the theory which best holds its own in comtheories;
other
petition
with
lection,
proves
p.
à
itself
the
the one
fittest
to
which,
by
natural
(Popper,
survive.
se-
1972,
108.)
As analogias do tipo das que menciono podem, por vezes, ser úteis (não
o
nego),
como
estimulantes
abuso utilizá-las a eito como +:
.
para
criação
de
processos de demonstração. 359
mas
hipóteses,
“«”
Es
é
Se vejo certo,
ok
“
GERMANO
será provavelmente
DA
FONSECA
mais fecundo
marcar
SACARRÃO
as diferenças
ção biológica e a evolução histórica humana
entre
a evolu-
do que procurar explicar
a segunda pela primeira (ou vice-versa), mesmo tratando-se de aspectos particulares, como é a evolução das ciências. As hipóteses e teorias
científicas válidas num campo limitado tomam quase sempre significações abusivas ou falsas quando utilizadas num contexto diferente daquele em que nasceram. O exemplo do darwinismo parece-me flagrante a este respeito. As desigualdades e as lutas entre classes, os racismos de todos os tipos, os homens
como
vítimas
de forças biológicas
num
tosco darwinismo.
Ideias
tanto mais nocivas quanto é certo que, por servirem os valores e inte-
resses de classes dominantes ou de ideologias de ampla difusão, rapidamente passam para os sistemas educacionais e para a mentalidade colectiva. E as transposições estão longe de ter terminado, como em seguida se verá.
3.
Um da
novo
darwinismo
social —
Sociobiologia
e biologia
moral
No Ocidente existe, desde há longo tempo, mas mais acentuadamente desde o século xvil, uma certa relação entre a interpretação da natureza viva e o sistema económico dominante. À economia capitalista e os êxitos individuais resultantes de competição corresponderiam ao sucesso reprodutor e à selecção do mais apto. Com a evolução da sociedade industrial e científica, o darwinismo social adaptou-se sucessivamente às novas condições. Tomou a forma de um ecologismo que engloba ideologias inspiradas mais ou menos directamente na ciência ecológica. Em breve, porém, esta metamorfose não foi suficiente em face das contradições e múltiplas complexidades do mundo moderno. E a partir, sobretudo, dos anos 70 o darwinismo social completou a sua adaptação desenvolvendo-se numa doutrina mais alargada, muito mais ambiciosa na sua ânsia de tudo explicar, quer na natureza viva, quer na sociedade humana. O ecologismo (exprimindo-se em ecologismo social, em ecopolítica) passou a reflectir o novo estado da sociedade, sobretudo
das sociedades industriais, e as múltiplas contradições de um
mundo
de poucos ricos, com áreas imensas onde vivem grandes massas huma-
nas que vegetam numa miséria degradante, numa oposição cada vez mais flagrante e em extremo escandalosa. Outra forma de ecologismo põe em causa a sociedade industrial, rejeita-a e anseia por um regresso 360
rr)
transferências abusivas que se apoiam
de uma espécie algumas dessas
mp
viva e à substituição entre tantas outras,
een E
luta pela existência na natureza decadente por outra apta, são,
peeteeido
a que nenhuma moral pode opor-se com sucesso, a competição entre classes e indivíduos como um grande mecanismo natural, comparável à
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —I
à ordem natural, a uma espécie de paraíso perdido. As duas atitudes combinam-se por vezes. O regresso à natureza (ao «natural primitivo e puro», que nada significa) atrai, e sem dúvida que a utopia interessa aqueles que alugam ou vendem «paraísos» modernos. Os países ricos, parte menor da humanidade,
todavia detentora da ciência e da técnica,
utilizam em proveito próprio a quase totalidade dos melhores recursos da Terra. De modo que a política ecológica das nações ricas é muito
diferente da que interessa às nações subdesenvolvidas. Nas primeiras proclamam-se os malefícios da explosão demográfica dos países pobres, faz-se doutrinação sobre as possibilidades de harmonizar a voracidade do
capitalismo predador com
as exigências de proteger a natureza
e de
manter ou desenvolver ambientes saudáveis, inventam-se dispendiosas tecnologias de despoluição, etc. Nas áreas de subdesenvolvimento, o que é fundamental e urgentíssimo é o combate à miséria e à ignorância. O problema político e social é mascarado por um ecologismo utópico ou submetido aos grandes interesses das superpotências. A ecopolítica que serve de justificação aos valores das sociedades científicas e industriais é, assim, oposta aquela que poderá convir às áreas pobres do mundo. O ecologismo reflecte as condições socioeconómicas do mundo e os interesses e exigências do poder político e económico. À própria investigação
ecológica
não
é, de
modo
nenhum,
independente
dessas
con-
dições. As direcções que toma, os conceitos que elabora, os projectos de investigação que concebe, são inspirados nelas, obedientes a elas. E as classes dominantes vão ao ecologismo buscar as necessárias justificações e até uma filosofia de vida, uma mentalidade, que insuflam na escola, e que
os mass
media
tentam
instilar nos
cidadãos.
O darwinismo tradicional atingiu entretanto uma fase de profunda modernização entre a década de 30 e a década de 60. Depois, a sua transformação não ficou por aí, e no domínio da explicação do comportamento social dos animais e do homem surgiu nos anos 70 uma nova disciplina — a sociobiologia. O seu inspirador foi Edward O. Wilson, da Universidade de Harvard. Este último desenvolvimento do darwinismo originou, com a ideologia biológica a que deu lugar, uma nova
imagem do darwinismo social (v. meu 1982). As
ideologias
fascizantes,
racistas
e totalitárias,
encontram
neste
novo biologismo determinista-reducionista os suportes e justificações que lhe são necessários para se infiltrarem insidiosamente no tecido social. O Estado arqui-soberano e ditatorial, que escraviza e degrada as consciências, inspira-se, a meu ver, em e manipuladores, quer nas formas
ou dos lamarckismos
todos os biologismos deterministas tradicionais do darwinismo social,
de todos os matizes, ou nas várias formas
moder-
nas destas doutrinas, as quais têm na sociobiologia ideológica a sua expressão melhor conseguida. Que a sociobiologia tenha aspectos posi361
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
tivos, quando cingida pelo método científico, e que veio abrir novas perspectivas ao estudo do comportamento social dos animais, não sou eu que o negará. Mas, tal como aconteceu com o darwinismo, a transposição deste novo biologismo para a sociedade humana acabou por traduzir-se, como o fez o darwinismo social, em conceitos de «superioridade» e «inferioridade», em afirmações que as diferenças de classe
correspondem a diferenças inscritas nos genes, que as culturas diferem por factores hereditários, que a inteligência e o comportamento dos homens devem quase tudo aos genes e pouco ao meio físico-social, que se pode reduzir a política e a moral à biologia, etc. Arvorar qualquer biologismo em religião messiânica, quer ele se fundamente no poder absoluto dos genes, quer nas acções transformadoras de um ambiente todo-poderoso sobre a hereditariedade biológica, corresponde, a meu ver, a uma visão megalómana e perigosa que urge denunciar, porque necessariamente conduz a uma degradação moral. É um reducionismo grosseiro e reaccionário e todas as ideologias que desprezam a pessoa humana aí vão colher inspirações e justificações «científicas». Os fundamentos científicos da sociobiologia podem ser sumarizados da maneira seguinte (v. meu 1982): 1)
Da
totalidade das manifestações do organismo, o comportamento social é uma das componentes fundamentais. Todas as vezes que um comportamento social é geneticamente determinado,
os indivíduos que o exibem
conduzem-se de
maneira a maximizarem a sua «aptidão global» (inclusive fitness), ou seja, a soma da sua «aptidão pessoal» (isto é, o seu sucesso reprodutor) mais a totalidade de todos os
efeitos que ele provoca nas «aptidões» (correspondentes aos mesmos genes) de todos os indivíduos que lhe são aparentados. Este princípio também é conhecido por postulado central da sociobiologia (Barash, 1977). Assim, quando um animal executa um acto altruísta para com um
irmão, por exemplo,
a «aptidão
total» será:
a aptidão
do primeiro animal (que ficou diminuída pela própria conduta altruísta) mais o aumento da aptidão fruída por aquela porção da constituição hereditária do irmão que é compartilhada com o animal altruísta. A parte comum da constituição
hereditária
é a fracção
de genes
dois animais recebem devido a terem a mesma
que
os
ascendên-
cia. Ora, obedecendo o comportamento social a um determinismo biológico (genético), forçoso será concluir que sobre ele actuará a selecção natural. Logo, o comporta-
tamento social é adaptativo na medida em que ajusta da melhor
maneira
os
organismos
362
ao
ambiente,
tal
como
BIOLOGIA
acontece
com
E
SOCIEDADE — 1
as formas, as estruturas e as funções
fisio-
lógicas. O comportamento exprime, assim, se não toda, pelo menos uma parte muito importante do genótipo, isto é, do conjunto dos genes do indivíduo ou do grupo. Os genes mais vantajosos aumentam
a sua representativi-
dade nas sucessivas gerações devido à acção da selecção natural que actua sobre eles por intermédio do comportamento social. À conduta social determina a transmissão aos filhos do maior número de genes comportamentais. daqueles, em suma, que melhor adaptam os organismos ao ambiente. Optimiza a adaptabilidade total do individuo, maximiza a representação dos seus «melhores» genes nas sucessivas
2)
gerações.
Todo o comportamento, desde a reprodução à mais sofisticada conduta em sociedade, visa um objectivo: fazer que os genes, que cada organismo adulto temporariamente transporta,
obtenham
a máxima
representação
nas
gerações
seguintes. Existe, assim, um «egoísmo» genético: os genes são «egoístas», comportam-se como tal, no sentido de que fazem por propagar-se, perpetuar-se, e o meio de que se servem é o organismo, que não vive senão para essa finalidade. É a sua razão de ser, a sua vocação. Os genes com-
petem, e os «melhores»
deles vencem
e são eles os que
passam à geração seguinte. E a evolução biológica é como
uma corrida em que os vencedores são os «melhores» genes, que por o serem se instalam na geração seguinte. Vistas assim as coisas, logo se repara que para a teoria sociobio-
lógica a selecção natural actua sobre os genes por intermédio da maior ou menor ajustabilidade dos indivíduos. O gene é que é a unidade de selecção, e não o organismo individual. Cada individuo é compelido constantemente
a assegurar
o seu
sucesso
reprodutor:
passar
os
seus
melhores genes aos filhos, ou as cópias dos mesmos genes existentes em seus parentes. Para isso o indivíduo actua egoisticamente, porque o que para ele é fundamental é a existência e propagação dos seus «melhores» genes, daqueles que garantem nas melhores condições a sua
sobrevivência individual. E quem o faz actuar assim são os próprios genes, de que ele é escravo, ele, organismo, simples via de passagem na sucessão das gerações. Para os sociobiologistas, todas as vezes que um animal está certo de que os filhos são seus, protege-os,
alimenta-os,
manifesta
um
interesse
extremamente acentuado pelas crias. De acordo com a teoria sociobiolo-
gica, tendo os filhos metade dos cromossomas paternos, haverá, assim, 363
FONSECA
SACARRÃO
215
DA
todo o interesse da parte dos progenitores em assegurar a propagação de genes que são, afinal, cópias dos seus genes. Entre os mamíferos, é as fêmeas que cabe a parte maior do trabalho na reprodução e nos cuidados com as crias, porque, na perspectiva sociobiológica, sendo interna a fecundação, o grau de certeza de que os filhos são delas é absoluto, enquanto nos machos do mesmo grupo isso já é muito relativo e incerto. A explicação
pelos
estende-se
filhos será basicamente
à espécie
a expressão
humana.
da
Assim,
tendência
o amor
biológica
de
garantir a passagem à geração seguinte dos genes que os pais possuem.
Mas este apego é egoísta. Todo o altruísmo é um Como
os
indivíduos
aparentados
têm
egoísmo mascarado.
forçosamente
alguns
genes
em
comum, o altruísta, ao sacrificar-se por um parente, está a concorrer para assegurar a propagação daqueles genes que compartilha com ele. E
em
quantos
mais
comum
parentes
forem
socorridos,
serão propagados. De modo
maior
número
que, como
de
mostrou
genes
William
D. Hamilton, o parentesco genético entre os indivíduos que interactuam
num grupo é um importante factor de evolução das adaptações sociais. Conforme à teoria sociobiológica, o altruísta reduz a sua aptidão genética, quer
dizer, a sua capacidade
(aptidão darwiniana), e aumenta, modo
a os genes idênticos
de sobrevivência
por exemplo,
aos seus que
e/ou
reprodução
a do seu irmão,
este tem
de
aumentarem
a sua
tado a preservação dos mesmos genes que existem no indivíduo
que se
representação na geração seguinte. À conduta altruísta tem por resul«sacrifica», conduta que revela um egoísmo fundamental, não da parte dos indivíduos, mas sim dos genes. O
altruísmo
esquema. Um
no
ser
humano
não
pode
explicar-se
à
luz
deste
dos argumentos consiste no facto de não haver relação
entre vínculos genéticos e vínculos de parentesco
nas sociedades
huma-
nas (v. Sahlins, 1977). Mas outras críticas sérias se podem fazer. Os indivíduos são compelidos pelos genes a maximizarem a sua «aptidão genética global». Mas para isso têm de reconhecer as relações genealógicas, é o seu saber secreto, conforme à teoria, saber que é selectivamente vantajoso !”. Ora como é que as pessoas se apercebem dos mais variados coeficientes de parentesco? Como é que indivíduos que ignoram fracções de parentesco ou que não sabem contar além de três (como em actuais populações primitivas de caçadores e recolectores, afirma Sahlins) poderão avaliar o grau de parentesco do indivíduo cujo comportamento observam e em relação ao qual determinarão o seu comportamento? Mas a ambição da sociobiologia visa mais longe, pois alimenta a aspiração absoluta de explicar todo o comportamento social não só dos animais, mas também do homem, Pretende pôr a nu as raízes da moral, a sua evolução, os porquês da conduta humana em todas as suas mani-
festações, toda a psicologia. Para a sociobiologia existe uma gene.
A força fundamental
da vida seria o impulso 364
moral do
dos genes para se
“rd
an
GERMANO
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —I
auto-reproduzirem e sobreviverem, estando os indivíduos ao serviço dessa exigência, como meros portadores e actores. Obriga cada animal e cada ser humano a dar a primazia à sua própria reprodução, a agir em obediência ao egoísmo dos seus genes, a servir-se da sociedade para satisfazer essa exigência fundamental, a utilizar os outros para reproduzir e expandir os seus genes. Egoismo sociobiológico que mais não seria do que o prolongamento do egoísmo biológico do darwinismo tradicional ou moderno. Na lógica da doutrina darwinista, e do seu prolongamento sociobiológico, a «luta pela existência» e o esforço para sobreviver num mundo de forças inimigas conduzem naturalmente à competição, à selecção dos mais aptos, ao interesse supremo do indivíduo em assegurar a sua própria existência, ao egoísmo como meio e finalidade de estar no mundo. W. D. Hamilton mostrou que o parentesco genético entre os indivíduos que interactuam num grupo é não só um importante factor de evolução das adaptações sociais como um determinante de modos de comportamento. Toda a complexa teia dos comportamentos humanos resultaria do mecanismo básico que consiste na tendência de cada indivíduo transmitir os seus melhores genes aos descendentes, aqueles que,
depois, maior continuidade e sobrevivência garantem a esses genes. Cada tipo de comportamento não visaria outro objectivo: ora sob a forma de «altruísmo», ora de «egoísmo», ora de «malevolência». Os não
genes
visam
Oo indivíduo;
pouco
este
conta.
genes
Os
«interes-
sam-se» apenas por si mesmos. Ora, havendo genes idênticos repartidos
por
indivíduos
(filhos,
parentes
etc.)
etc.,
primos,
sobrinhos,
o
seu
objectivo (desses genes) é assegurar o seu próprio sucesso por meio de comportamentos que: a) ou sacrificam o portador (altruísmo), e possibilitam o êxito dos mesmos genes (cópias) no beneficiário; b) ou asseguram a estes directamente a vitória (maior sobrevivência) à custa de perdas no adversário (egoísmo); c) ou então o portador não benefi-
cia, ou causa prejuízo a si próprio, para, com esse resultado, ser nocivo
a um competidor não aparentado, a fim de aumentar o potencial gené-
tico e a sobrevivência de um parente (malevolência). Haverá evolução quando a «aptidão total» dos genes aumenta. O egoísmo e a malevolência traduzem a «luta pela existência» darwiniana. E se considerarmos
os genes
e não
os indivíduos,
o altruísmo,
que
é uma
forma
disfarçada de egoísmo, será também incluído na luta pela existência, porque esta é, afinal (para a teoria sociobiológica), a luta dos genes pela sua própria existência. O leitor já reparou,
talvez, que
o abuso
da metáfora
atinge,
na
sociobiologia, um nível de grande exagero e nocividade. Podem os sociobiologistas advertir-nos, como fazem, de que a expressão «egoismo» é metafórica, que os animais não têm consciência desta conduta, e o mesmo
nos
contam
sobre
tantas
outras 365
expressões,
a
evidenciarem
GERMANO
descabelado nocivo
no
DA
antropocentrismo. abuso
de
metáforas
FONSECA
Estes (v.
SACARRÃO
avisos no
não
capítulo
evitam v,
o que
onde
há
discuto
de este
ponto). Por outro lado, não obstante as declarações feitas pelos autores, creio que a utilização das expressões «egoísmo», «altruísmo», «malevolência» e tantas outras que fazem parte do arsenal ideológico da sociobiologia,
traduzem
preconceitos
secretos,
nomeadamente
a tendên-
cia irresistível de projectar a sociedade humana na natureza viva, e que o homem teria recebido do animal, dos genes deles herdados, as bases psicológicas e morais do seu comportamento social, individual e colectivo. O «egoísmo» dos genes poderá ser uma metáfora no animal. Mas essa como que inocência do conceito (que os sociobiólogos nos asseguram que tem) perde-se quando o aplicam à esfera humana. Do automatismo predominante no animal passa-se para o nível do comportamento consciencializado
do ser humano,
identificando,
com
a transferência,
analogias e lógicas semelhanças superficiais. E assim a sociobiologia chega à conclusão que pretende: explicar o homem pelo animal e atribuir-lhe uma conduta social e uma moral recebida por herança evolu-
tiva
das outras
espécies.
E
tudo
ficaria unificado:
um
verdadeiro
egoísmo seria o motor da história biológica e social de todos os seres. Ora eu creio que as analogias são fraco argumento para suportar tão absoluta conclusão. A legitimação destas transposições faz-se conforme ao esquema explicativo darwiniano, mas com a sociobiologia foi-se mais longe: ultrapassou-se o nível das populações de indivíduos para se trans-
ferir a causalidade última para as populações de moléculas. Isto aconteceu quando ficou demonstrado que os genes são segmentos específicos da molécula do ADN. A selecção natural passou a actuar (consoante a nova concepção) em vários níveis, inclusive ao nível das acções moleculares. O indivíduo foi destronado da posição soberana que lhe conferia o darwinismo tradicional e moderno, ou seja, até ao princípio da década de 60 deste século. Pretendem os sociobiólogos que o individuo
é um mero transportador de genes, sendo ao nível destes últimos que a competição e a selecção adquirem todo o seu significado de processos fundamentais da evolução, significado que antes se ficava pela concorrência (e outras relações) e selecção entre os organismos individuais, À vida surge assim reduzida à variação
e à selecção dessas
moléculas
básicas que são os genes. No livro que publiquei em 1982 pus em evidência a fragilidade científica em que se baseia a sociobiologia
humana uma da
e as suas falsas conclusões como bases para a edificação de
consistente teoria da sociedade. Por outro lado, as generalizações sociobiologia
aplicadas
à construção
como todas as grandes abstracções: problemas
concretos
e escondem-nos
de uma
ideia
do
366
são
diluem a substância científica dos os
horizontes
imensos
ignorância. Além disso, identificam a realidades humanas cas observadas nos animais 2,
homem da
nossa
certas lógi-
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —1
É inegável o poder potencial da sociobiologia como ciência das sociedades animais e como teoria orientadora e estimuladora de investigações. Mas comete um grave abuso quando pretende, com bases teóricas
muito
discutíveis,
explicar
o comportamento
social
humano
e inclusivamente ambicionando substituir a sociobiologia e todas as ciências humanas. Isto, a que chamei «sociobiologia perversa», não é mais do que um biologismo enfatuado, que aspira ao monopólio da explicação do ser humano,
desde a origem do homem
e da sociabilidade,
da moral e dos valores, às complexidades do comportamento social, à estrutura da sociedade, abarcando a filosofia e a história, querendo ocupar o seu lugar. O reducionismo de que se alimenta é transportado a exageros incríveis, sendo de esperar que depois de todo este ardor entremos em fase de calma, e que do mesmo passo as críticas a que tem sido sujeita possam ser desapaixonadas, sem o ar polémico e por vezes irracional que tomam. A meu ver, a problemática da condição humana, relativamente à natureza viva, tem sido prejudicada pela intenção constante de interpretar o animal em termos de padrões humanos e depois o humano em termos de padrões animais.
Enquanto
não corrigirmos esta inclinação,
pouco se avançará com a filosofia da biologia na sua interpretação do homem. Uma ciência do homem será sempre uma ideologia, e toda a
biologia explicativa do ser humano acaba inevitavelmente por ser politizada.
Por
exemplo,
a sociobiologia
humana,
que
é um
renascer
do
darwinismo social, parece caucionar as ideologias que valorizam a lei do mais forte, considerando-a, portanto, natural e justa. Os intelectuais
assimilam e expandem com
elas
enormes
estas e outras ideias pseudocientíficas, criando
mistificações,
cujas
influências
sobre
os
tiranos
podem revelar-se trágicas. Adolfo Hitler, por exemplo, acreditava fanaticamente no determinismo biológico. É certo que o determinismo reducionista faz parte da busca científica, é um
instrumento
mas,
em
muda
introduzido
na
doutrina
de feição, torna-se
política
ou
ideologias
absoluto, falso e indigno.
Tem
de pesquisa; opressoras,
servido
para
nos mostra
caucionar genocídios e violências sobre os homens, como a história e o presente do racismo. Além de diversas críticas que se podem dirigir à sociobiologia (v. meu
1982), direi apenas aqui que a teoria me parece constituir o
resultado de um longo processo de desenvolvimento do darwinismo *. Com efeito, partindo o darwinismo das interacções organismo-ambiente e da dependência do primeiro relativamente às forças exteriores da natureza,
mensuráveis
e acessíveis à observação,
veio a terminar
numa
metafísica complicada onde as acções principais se passam no domínio do invisível, no mundo secreto das biomoléculas dos genes, às quais
se conferem propriedades misteriosas de competição e de ânsia de vitória nas suas corridas para o sucesso. Um tal reducionismo é pronta367
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
mente utilizado pelus ideologias fascistas e racistas. Traduz, a meu ver, uma mistura de materialismo c metafísica, onde os genes estão animados do uma força vital de natureza obscura, num regresso ao
vitalismo, que aliás nunca deixou de assediar de uma maneira ou outra a biologia, Até a moral dominante nas sociedades industriais, burguesas ou sociototalitárias, recebe ânimo da doutrina, porque a teoria
sociobiológica é fundamentalmente à
competição
entre
os
genes,
elitista, dirigida para
legitimando
a
concorrência
o êxito, para entre
indiví-
duos, entre as nações, entre as raças, entre as classes sociais, numa luta entre «fracos» e «fortes», onde, na óptica sociobiológica, será justo
que
vençam
os últimos.
Como se vê,o velho darwinismo paramentou-se
com
a
moral
do
gene.
social vestiu-se de pato bri Torna-se
indispensável,''como
acentuei em 4 Biologia do Egoísmo, denunciar o que existe de 'infun-= damentado, de falso e de reaccionário na pretensão de a'sociobiologia explicar o comportamento humano. O que em Darwin era oelitismo dos indivíduos passou agora a ser 0 elitismo dos genes, produto ide concorrência. Ora é inegável que o fascismo e o racismo'vêem' nestas proposições a razão «natural» das suas ideologias nefastas, “como E era o caso quando se apoiavam
no darwinismo
social.
DIO
Às teias de associações e relações com benefícios mútuos! que existem nos animais deu Trivers o nome de altruísmo recíproco: Significa que
o gesto altruísta
é rendoso
e que
o seu
autor
espera
(automatica-
mente ou não) uma eventual recompensa em futuro: mais'ou' menos imediato. Os indivíduos de uma população que estabelecem tais: laços de reciprocidade terão aumentado a sua «aptidão darwiniana». "Esta hipótese completa a hipótese hamiltoniana, visto que' o altruísmo reciproco se exerce entre indivíduos sem parentesco genético. Segundo: “Trivers, o altruísmo recíproco no ser humano é uma importante' componente do seu comportamento social. Nas sociedades' humanas, os laços de reciprocidade podem ser conscientes ou inconscientes, mas 'nos animais as associações e relações com benefícios mútuos: são' sobretudo acções automáticas. A extensão à espécie humana: é feita aqui sem qualquer limitação ou reserva. O egoísmo genético e individual toma 'nova
dimensão: ajudando os outros, o indivíduo ajuda-se:a'si próprio. E isto pode estar na origem de certas qualidades: humanas, como gratidão, amizade, rectidão, culpa, agressão moral, indignação, 'ete. Algumas destas disposições suscitariam reciprocidade, e com esta surgiriam' respostas
altruístas e honestas. O sentimento de culpa, por exemplo, seria favorecido (segundo Trivers)
pela selecção natural porque
conduziria
o intru-
jão, para compensar a acção delituosa, a mostrar-se pronto pará o futuro. Diversos biólogos deterministas consideram cia a existência de uma certa predisposição hereditária para pertencer a uma classe 368
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — I
social e para desempenhar certas funções. É o que também pensa E. O. Wilson, sendo essa ideia uma das bases da sociobiologia. Genes responsáveis pelo êxito poderiam concentrar-se nas classes socieconómicas mais
elevadas.
titividade,
Diferenças
separariam
hereditárias
grupos
sociais,
na
inteligência,
económicos,
culturais
na
compee outros.
O mesmo que dizer que o sucesso social pertence aos indivíduos que são portadores de genes para maior inteligência, para maior capacidade de trabalho, etc. 2. Claro está que os «melhores» indivíduos serão aqueles que mais contribuem para a vitalidade e progresso do sistema,
e isto tanto se aplica a uma classe, a um partido ou ao Estado. Como tenho sempre insistido, a base genética desta afirmação está por demonstrar, e tudo converge para concluirmos que ela é simplesmente falsa. As ideologias reaccionárias, as mesmas que proclamam e pretendem convencer que existem raças inteligentes e raças estúpidas, agarram com as duas mãos estas proposições pseudocientíficas. Diversos biólogos de reputação firmada exaltam todos os biologismos determinístico-reducionistas e manipuladores. Alguns não são sociobiólogos declarados, mas uns e outros apregoam o imperialismo dos genes. À biologia duvidosa e suspeita em que se baseiam não trava o seu entusiasmo e os seus excessos. Os genes, a força, a agressão e a sobrevivência são os pilares
reforçados e modernizados em que assenta o novo darwinismo social.
O determinismo biológico ou o determinismo histórico como crenças absolutas, sem aquele carácter dubitativo relativista e cauteloso que deve possuir a ciência, têm constituído perigosas ideologias. Os totalitarismos e terrorismos escondem ou justificam as suas patologias com
essas filosofias. E. O. Wilson afirma que as guerras actuam como forças selectoras e desenvolvem as melhores qualidades humanas. Macfarlane Burnet é um biólogo de grande prestígio (Prémio Nobel 1960), mas é mais extremista ainda do que Wilson. Na sua opinião, os comportamentos sociais e a moral têm causas estritas nos genes. Que é necessário, por isso, aplicar técnicas de intervenção nos seres humanos para os modificar no «bom» sentido. Esta obsessão de modificar o homem, reduzindo-o a rato de laboratório, que perpassa em diversos biólogos, não deixa de nos fazer lembrar as sinistras medidas racistas do nazismo. Todo este biologismo determinista é reaccionário e superlativamente ambicioso porque não se contenta em explicar o comportamento social do homem, a origem da sociedade e outras questões enormes. Vai mais longe: pretende ter posto a descoberto a origem e a natureza do bem e do mal, e julgando saber como modificar a natureza do homem,
preconiza
o
controlo
e
a
manipulação
científica
dos
seres
humanos, Nada lhe escapa. Assim se compreende a ligação de simpatia entre este novo biologismo determinístico e manipulador e os regimes Bibl. Univ.
49 — 24
369
| ei
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
de forças repressivas ilimitadas. Uma engenharia biológica como técnica de submissão e instrumento de poder não deixa de convir às ideologias totalitárias. É por isso que a ideologia sociobiológica tem sido contes-
tada e continuará a sê-lo enquanto considerada
à
luz
de
a humanidade
determinismos
do ser humano
reducionistas
ou
de
for
falsas
ou
abusivas analogias com o que se passa nos animais. A ideologia socio biológica e o criacionismo são dois movimentos
que envenenam
o clima
intelectual da sociedade moderna. 4.
Biologia
e moral
ou
a metafísica
da
desumanação
Toda a sociobiclogia contém um projecto de explicação (e de incorporação) da moral, do bem e do mal, do destino do homem, das regras e obrigações da conduta, das autojustificações, dos valores. Em A Moralidade do Gene E. O. Wilson lembra-nos que o sistema límbico-hipotalâmico é a fonte de todas as nossas emoções (de ódio, amor, culpa, medo, e outras) que invadem a consciência. Sistema que é um
produto de evolução por selecção natural, o que, segundo o mesmo autor, explica não só a ética como os próprios filósofos, a epistemologia e os epistemologistas seja a que nível for ?. Houve evolução do senso
moral, por selecção natural, quer dizer, se concebermos mente,
quando
certo grau,
dos
mesmo
primórdios
reduzido,
da
humanidade,
ou semiconfuso,
que original-
indivíduos
de senso
com
moral
um
tinham
mais probabilidades de se reproduzir do que outros destituídos dessa qualidade. Os indivíduos imorais não tentavam ajudar os seus parentes nem outros indivíduos fora do seu círculo de parentesco, e em consequência disso, eles também não recebiam auxílio dos outros, de modo que não se estabelecia reciprocidade. Importa, porém, notar que não há provas, nem mesmo consistentes indicações, de que a moral seja um
produto da selecção de genes de comportamentos
específicos *. O ho-
mem é um ser responsável, visto que faz escolhas e tem ideias sobre o que está ou considera, certo ou errado, bom ou mau. Mas na óptica sociobiológica, se a moral surgiu com genes que evolucionaram por selecção natural, se o comportamento humano é basicamente adaptativo e possui
a sua raiz em
genes
seleccionados
durante
milhões
de
anos,
então será forçoso concluir que haverá situações em que os individuos não são responsáveis pela sua conduta, pelas suas decisões, pondo-se assim de forma aguda o problema da responsabilidade moral se o indivíduo é de facto vítima dos seus genes, de cuja existência e consequências para si, ele, indivíduo, não é culpado. A moral para os sociobiólogos é então explicada pela selecção parental e pelo altruísmo recíproco num quadro darwiniano, ou seja, pelas vantagens selectivas que desses meca-
nismos resultam para o indivíduo e (o que é fundamental 370
para a teo-
BIOLOGIA
ria) para os genes. À moral sucesso
reprodutor,
e
E
SOCIEDADE —I
é um
meio de adaptação ao serviço do
comportamentos
imorais,
como
mentir,
fariam
parte do arsenal de condutas com as quais o homem asseguraria o seu ajustamento social e a transmissão dos seus melhores genes. A moral é, portanto, explicada em termos de vantagem selectiva para o indivíduo, para seu bem, e este é o seu sucesso reprodutor. Se a lógica da moral é essa, então não há diferença, neste aspecto, entre o homem e o animal; e a moral, no sentido autêntico do termo, não existe, nesse caso.
Naturalmente que um problema tão complexo como a origem e a evolução da moral não fica solucionado recorrendo tão-somente a esses mecanismos biologicamente «egoistas», problema que a sociobiologia, com as ideologias que veicula ou suscita, está longe de explicar. Confesso que sou muito céptico a respeito destas esquematizações e explicações simplistas. Penso que o senso moral é aprendido, como tudo o que faz a nossa humanidade, mas este facto, longe de simplificar
o problema, torna-o mais complicado, não porque a ética seja um produto exclusivo
da cultura, mas
exactamente
o contrário, porque
não é
só isso, porque há que reconhecer o facto extraordinário de o homem ser um animal biologicamente cultural no sentido que explanei nos caps. 1, Il e IV (v. também meu 1986). A capacidade de escolher e de formar padrões éticos só existe no ser humano, capacidade que é simultaneamente inata e aprendida, biológica e social, quero dizer que se prepara na ontogenia, mas só se realiza por aprendizagem, por socialização. Por isso, talvez se possa dizer que, em certo sentido, o homem é um ser biologicamente moral. É moral porque aprende a sê-lo; como fala porque aprende a falar; mas se na realidade tudo o que o faz humano
é aprendido, o que é essencial nesse processo será preparado na sua ontogenia. Como tenho insistido, separar o biológico do cultural ou social
só contribui para nos enredarmos na falsa questão de considerar o inato /adquirido como traduzindo entidades separadas a interagirem, de que se procuram
as contribuições relativas,
É legítimo ter fortes dúvidas acerca do êxito das tentativas de ver uma ética na evolução, que esta deva constituir uma ética humana, como pensou, por exemplo, George Simpson (1949). A ideia persiste
apesar de não ser nova. Com efeito, no século passado, Herbert Spencer esforçou-se em demonstrar estreitas ligações existentes entre evolução e ética, e, como referi em capítulo precedente, neste século os principais
defensores de uma ética evolucionista foram os biólogos Julian Huxley e C. H. Waddington, sem esquecermos Simpson, acima citado, que também
cria firmemente
poder extrair-se princípios morais
do estudo
da evolução da vida e do homem, do seu lugar na natureza, padrões de ética relativista 2, já que estava sujeita a modificações por escolhas humanas, ou por acção da própria evolução biológica do ser humano. 371
GERMANO
Continuando
o esforço
os sociobiólogos, com
DA
FONSECA
destes
SACARRÃO
e de outros
o seu reducionismo
biólogos
extremado
humanistas,
(avolumado
ainda
pelas contribuições científicas e metafísicas vindas da biologia molecular), vão muito mais longe e pretendem a «biologicização» completa das ciências humanas
e da filosofia. O filósofo nada
lucra
em
pensar
a sua filosofia porque tudo se passou, e passa, segundo uma mecânica de competição e selecção entre genes, e de sucesso reprodutor, que produziu a diversidade dos organismos, considerados como simples veículos para esses genes. Esta transposição do centro de interesse, do organismo para o gene, e a redução da filosofia, da psicologia e da sociologia a um determinismo biológico, com base no gene e no neurónio, e nos mecanismos
cerebrais de controlo automático,
parecem-me
constituir o núcleo desta metafísica biológica. A biologia tudo explicaria, tudo caberia nela, e os humanistas
e filósofos
devem
ceder-lhe o
lugar. É Wilson que o diz: [...] the time has come for ethics to be removed tem rarily from the hands of the philosophers and biologicized.
(1975, p. 563.) Importa, porém, salientar que a evolução não pode constituir em si mesma um guia ético. Nem nos evidencia o que é «bom» nem o que é «mau». O homem é que inventou a moral (a partir de capacidade evolvida) e a projecta na natureza viva. Além disso, à luz da lógica sociobiológica (que seria a tradução da lógica da natureza viva), proteger os fracos, os incapacitados, pode ser «mau» para a evolução da espécie, podendo afirmar-se que a reza viva tem consistido, quase sempre, lizar ou desviar o curso da evolução resses e valores (bons ou maus), mas
uma
moral baseada numa
da evolução
acção do homem sobre a natuem impedir, dificultar, neutrabiológica, de acordo com intesem nunca com isso estabelecer
suposta ética da evolução. Por outro lado,
têm-se retirado princípios
normativos
perfeitamente
con-
traditórios. Uns vêem na evolução competição e progresso, outros a expressão de vontade divina, outros direcção para altruísmo e solidariedade, outros ainda simples mudanças sem sentido. Para Kropotkine
(1914), a natureza selvagem evidencia entreajuda, raramente luta pela
existência, mas para Hitler a natureza
reflecte a natureza
suas leis de desigualdade, hierarquia, de subordinação superior (v. nota 14 a este capítulo). As
verdadeiras
teorias que volvimento
causas
da
moral
mas
e as
do inferior ao não
adiro
a
se propõem explicar (como processo exclusivo) o desendo senso moral pela mecânica selectiva a actuar sobre 372
R
escapam-nos,
bruta
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —I
os genes. À capacidade para o homem formar padrões morais é, repito, preparada na sua ontogenia, e nada sabemos da complexíssima e longa duração da evolução da ontogenia humana %, Penso que a formação de uma consciência de si foi o acontecimento fundamental da história evolutiva da humanidade, evento que,
provavelmente, das
condições
a fazer
estará da
escolhas,
na origem
sua
do senso moral, talvez como uma
formação,
a tomar
A
decisões,
autoconsciência
levou
o homem
e, portanto, a ter a noção clara da
própria responsabilidade. O declínio dos automatismos iínatos da conduta, que acompanhou a transição da fase infra-humana para a fase humana, deve ter possibilitado o aparecimento da cultura como o grande meio de adaptação à realidade e de acção sobre ela. Perante a abdicação de genes e mecanismos que, como acontece nos animais, controlavam a conduta social e a adaptação, logo surgiu no trânsito
animal > homem
a premente necessidade de estabelecer normas, proí-
bições, crenças, processos sem os quais não era possível qualquer forma
de sociedade mesmo gadas,
são
elementar. Cultura e ética estão intimamente Ji-
expressões
de uma
mesma
interacção
homem /mundo,
for-
mas de ajustamento e mudança pela coevolução de ambas, desdobramentos de uma consciência de si. À consciência da própria fragilidade, o saber-se mortal, levaria à elaboração de conceitos sobre o que é bom e mau,
certo e errado.
Em
diversos
numerosas
vezes
aspectos, a moralidade implica altruísmo e opõe-se ao egoísmo, mas importa notar que os conceitos socio-
biológicos de «egoísmo» e «altruísmo» não têm equivalência na esfera humana, nem o seu conteúdo é o mesmo que correntemente possuem. Identificá-los é criar enorme e perigosa confusão. Com efeito, as expressões «egoísmo» e «altruísmo» só têm sentido moral quando traduzem intencionalidade, representação consciente. Ora não parece que uma formiga ou um peixe, ou mesmo um mamífero, mesmo um primata não humano, tenham a percepção consciente e controlada de valores morais e das respectivas escolhas; pelo menos procedem como se não a tivessem, quando muito os primatas a nós mais chegados terão, talvez, de certa maneira,
um
senso rudimentaríssimo, ou quase
só instintual de valores, mas não qualquer sentido de procura e comunicação
do
que
poderiam
considerar
ser a verdade,
como
acontece
no
ser humano, que criou um universo complicado de símbolos e valores, que é quase todo o seu mundo, sendo através deles que vê e tenta compreender o mundo, valores que implicam o formar de ideias sobre o que está certo ou errado, assim como de responsabilidade consciente pelas decisões tomadas. Na realidade, o conceito de moralidade está ligado a um estado intencional de quem pratica um acto moral. Mas há quem opine que a biologia não trata de intencionalidades, mas apenas das expressões 373
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
e consequências do comportamento (behavioristas, por exemplo). Ela, portanto, poderá classificar como «morais» múltiplas condutas atendendo apenas aos seus resultados e ignorando totalmente os seus aspectos
intencionais,
mas
nesse
caso
essa
ideia
de
«moral»
não
tem
nada a ver com a moral na sua expressão habitual, É o que acontece com as utilizações sociobiológicas dos termos «egoísmo» e «altruísmo» nos animais, de facto geradores de grande confusão, que em nada ajudam à compreensão da moralidade como fenómeno biológico. Como justamente escreveu G. S. Stent: In ordinary parlance, altruism (having the moral value good) refers to regard by one person for the interests of other persons. And selfishness (having the moral value bad)
refers
to disregard
however,
considers
of the altruism
interests
of
as behavior
others. that
Dawkins,
increases
the
welfare (meaning chances for survival) of someone else to the detriment of the agent's own welfare. And selfishness is behavior that has the opposite consequences. But the altruistic or selfish nature of an act bears no direct, or simple
relation, to its actual consequences. Hence Dawkins”
notions
of altruism and selfishness lie outside the domain of moral discourse.
Konrad
Lorenz
(1978, p. 17.)
e outros autores não negam
intencionalidade
com-
portamental a animais, sobretudo vertebrados, antropomorfismo acentuado principalmente em obras de popularização científica, mas neste caso as dificuldades em determinar uma biologia da moral não me parecem menores. O que parece incontestável é que o conceito socio-
biológico de moral é não só extremamente limitado como não traduz as complexidades do conceito corrente. Seja o que for a que chamemos egoísmo ou altruísmo, tem de haver neles um elemento consciente, análogo na sua natureza e nos seus propósitos ao que se passa no homem, isto para que tenha fundamento
legítimo, e sentido, o seu emprego.
Caso
contrário,
esses
con-
ceitos não traduzirão nada que possamos reconhecer como altruísmo, e muito menos como moral. O perigo dessas metáforas é o de estabefalsas
analogias,
como
é
particularmente
vincado
no
trecho asia
374
visor,
[...] there is a dangerous tendency to slip from the artificial term to the ordinary term, thus moving from
Hi beveçim Ademir eta 0 AS ir
lecer
seguinte:
BIOLOGIA
E
«altruism», meaning at the expense of
SOCIEDADE —
simply «to another's genetic advantage one's own», to «altruism» — proper,
meaning «with regard to another's interests». «Regard» is obviously a mentalistic or intentional term. (Is is important to add that regard requires concern, not just attention.) Thus, when Dawkins (1976) ascribes the property of «altruism» not only to animals but to genes, he should be committed to using only the artificial term, but he slips from one to the other, at a cost of considerable confusion.
notion one's
of
«selfishness»
own
interests»,
means and
«with
must
not
Similarly, the
prominent be
confused
regard with
to any
stipulated homonym which means, simply, «self-benefiting». The word «prominent» here can be disputed, but «sole regard» seems too strong and simply «regard» much too weak. It was argued in our group that altruistic acts do not have to be self-sacrificing, and so selfish acts do not have to be damaging to others. Since «altruism» and «selfishness» are polar (but not exhaustive) concepts, it was questioned whether it makes sense to apply one if the other could not be applied. (Solomon e outros, 1978, p. 297.)
Creio
que o conceito
de moralidade, na sua aplicação habitual,
deverá excluir os animais, porque esse conceito implica escolhas e propósitos autoconscientes, pensar crítico, sentido de valores, consciência
de si, princípios universais, ainda que deva reconhecer-se que há autores que o atribuem aos animais sub-humanos, porque pensam que a moralidade implica fellow-feeling. Em qualquer caso, a sua discussão levanta diversas dificuldades, e decerto há que admitir que uma explicação biológica de toda a moral humana, ou mesmo dos seus aspectos mesmo
mais
significativos,
impraticável,
e que
é actualmente o que
muito
E. O. Wilson
deficiente,
se
não
e outros sociobiólogos
sugerem é não só falso como perigoso em vários dos seus prolongamentos ideológicos. É presunção substituir a filosofia, a antropologia e a psicossociologia pela biologia. Não são simples imperativos evolutivos que determinam as complexidades do comportamento social humano, nem este é condicionado por predisposições inatas com base em
genes
específicos.
É
certo,
porém,
que
existem
pontos
de contacto
entre biologia e ética, que terão de ser examinados pondo em evidência os possíveis nexos e influências recíprocas. Mas as ciências são incapazes de fornecer objectivos morais. Não é na natureza, ou na evolução
da vida, que encontraremos
as fontes da moral.
375
GERMANO
DA
FONSECA
SACARRÃO
x
A integração da biologia molecular na sociobiologia originou
uma
nova visão da natureza viva e do homem. A interpretação da organização e comportamento dos seres vivos é feita com a selecção natural, agente soberano da criatividade biológica, e por intermédio da estrutura e função das moléculas que os constituem. É esta a biologia moderna. A biologia é reduzida às leis da física e da química moleculares, a cultura e a moral à biologia, o comportamento individual e colectivo aos genes, o organismo ao «programa» genético, a evolução a erros de cópia do ADN, a inteligência ao neurónio, aos genes e outras
biomoléculas nele contidas. O espírito é reduzido à matéria, e o sucesso reprodutor constitui o significado e a função suprema da vida 7. Tudo é reduzido e explicado pelas funções e estruturas das biomoléculas. À reprodução do «programa» genético é considerada como causa e objectivo da vida em geral, sendo igualmente causa e destino do homem e da própria ética. Grande parte do significado da biologia moderna
reside nesta metafísica de desumanação.
376
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE —1
NOTAS
1 Cit. Gould (1980): 68. 2 V. meu 1985. 3 V.ocap. ve a nota 16 ao cap. VII. 4 Em certo sentido poderá dizer-se que Malthus foi revivificado e modernizado, quer dizer, introduzido na temática evolucionista. S Mesmo as grandes extinções de espécies não devem ter resultado de fenómenos de competição, processo que provavelmente não terá tido uma importância fundamen-
tal no desaparecimento
das floras e das faunas, este provocado possivelmente
por
causas extraterrestres, como colisões de asteróides e/ou grandes e profundas alterações climáticas, etc. Como causas de evolução, talvez venha a reconhecer-se que as extinções são mais importantes do que a competição, apesar dos nexos que existem entre os dois fenómenos. 6 Nos últimos anos tem-se vindo a reconhecer, pela observação dos animais no seu ambiente natural, que o comportamento de entreajuda é muito mais corrente do
que se pensava, e não me surpreenderia se dentro de alguns anos os fenómenos de simples cooperação e de mutualismo tomassem uma importância fundamental em biologia
evolutiva, no
vasto
quadro
dos processos
de co-evolução,
e muito
mais do
que a competição (v. meu 1983, Weiner, 1986). E até porque novas perspectivas sociais poderão favorecer uma tal modificação do panorama ecológico-evolutivo. É frequente, com efeito, o costume de se escolherem factos ou teorias que favoreçam certos preconceitos ou ideologias e depois
provas acontece
conclusivas com
ou
em
argumentos
a sociobiologia humana.
arvoram-se
determinantes Foi o que
esses factos ou explicações em
de
aconteceu
generalizações. com
É o que
a série de artigos
escritos por Kropotkin (reunidos no livro Mutual Aid, 1914), para quem, apoiando-se nos exemplos que escolheu, só haveria cooperação na natureza viva e muito poucas indicações de luta pela existência (Bowler, 1984). Se fosse outra a sua ideologia, provavelmente os exemplos que escolheria ou os factos que o impressionariam seriam
outros, e a sua visão da natureza humana seria diferente, ou como ponto de partida para as suas opções, ou como resultante delas. 7 É possível que exista algum fundamento ideológico na tendência de considerar modernamente a ecologia e a evolução em termos de equilíbrio, estabilidade dinâmica, optimização. Há competição, extinções de espécies, mas globalmente considera-se haver um equilíbrio e uma adaptação perfeita nos organismos, um e outra que, se não são as melhores situações concebíveis, estão, porém, vizinhas do óptimo,
apenas sendo necessário não deixar corromper
espécies se adaptaram
com impecabilidade.
Umas
ou destruir o ambiente
ao qual as
espécies extinguem-se, atrasaram-se
nesse esforço de optimização de equilíbrio organismo/ambiente (tal como acontece às empresas), mas o sistema biológico de equilíbrio dinâmico tende a estabilizar-se (tal como permanece e se auto-regula o sistema político burguês moderno e suas políticas de equilíbrios, consensos, estabilidades e coisas do género). A política econômica e social para muitos socialistas actuais baseia-se nas exigências de estabilidade e segurança das classes médias e na transformação revolucionária (mais ou menos rápida)
da sociedade O fim do capitalismo fica para um futuro longínquo. Entretanto, advoga-se a coexistência equilibrada dos dois sistemas e suas variantes. As mutações
ideológicas dependem obviamente de interacções muito complexas das tecnologias, da economia e das crises e transformações que operam na sociedade. E da ciência, que as
377
GERMANO reflecte e que as moderna economia
DA
FONSECA
SACARRÃO
influencia. Para alguns autores, a biologia liberal reflectiria a capitalista, sendo a actual sociedade de mercado a organização
mais racional possível, com equilíbrio das classes sociais, sendo as modificações a introduzir apenas orientadas pelas exigências de não deixar degradar o ambiente natural e os seus recursos (v. Levins e Lewontin, 1985). Acrescente-se ainda que «ambiente natural» e «equilíbrio natural» são noções equívocas utilizadas frequentemente e sem as necessárias reservas por popularizadores e ecopolíticos (v. meu
1982, p. 36).
8 Na América,
muitos dos grandes magnatas da finança e da indústria abraça-
ram o darwinismo grosseiro veiculado pelas ideias de Herbert Spencer. A competição, a livre iniciativa, a selecção dos mais aptos, seriam leis naturais implacáveis, de modo que os milionários também seriam um produto da grande lei natural, que diz que
é o mais capaz que deve sobreviver. Assim pensava o sociólogo William Sumner, de Yale («millionaires are the product of natural selection»). Nesta linha de ideias, o progresso só pode resultar de competição, se os indivíduos actuarem livremente, se o Estado não exercer sobre eles qualquer forma de coacção ou de regulamentação. Ora esta doutrina era sumamente agradável aos gigantes da finança e da indústria, sobretudo
americanos.
Para John
D. Rockefeller,
os negócios e seus proventos faziam
parte da grande lei da natureza e de Deus, lei que para ele era a da selecção dos mais capazes. À energia e o progresso dos Estados Unidos da América do Norte, assim como o espírito empreendedor e criativo dos seus habitantes, seriam o resul tado de selecção natural, porque, sendo um povo de imigrantes europeus, só os mais capazes e resistentes se teriam lá fixado e prosperado. Este suporte ao capitalismo não foi tão nefasto, talvez, como a legitimação que o darwinismo social deu às práticas eugenistas, ao «apuramento» racial e principalmente ao nazismo. Um dos aspectos mais estranhos das repercussões sociais do darwinismo vulgar é, de facto, a sua
permanente perversão em múltiplas direcções, opostas tantas vezes, legitimando crenças políticas e filosofias inversas, uma circunstância a que há anos fiz referência (v. prefácio de meu 1977). Veja-se Hofstadter (1944) e Clark (1988) para a França.
? As sociedades impiedosas, como as dos começos do industrialismo, ou naquelas onde dominam políticas de opressão e de apertado controlo dos cidadãos, necessitam de legitimações «científicas» ou religiosas para durarem. Para alguns aspectos modernos do darwinismo social, v. também, Montagu (1976), Stine (1977), Sacarrão (1982), Bowler (1984), Lewontin et al. (1984). 10 Tal como acontece com a evolução como processo, também se faz o darwinismo científico, e sobretudo o darwinismo
social, dizer o que se quiser, servindo para
legitimar posições políticas manifestamente opostas. Se Marx reconhece o que deve à teoria da selecção natural na sua aplicação justificativa à luta de classes, também € certo que teóricos do fascismo se aproveitaram do darwinismo para caucionar o seu ideário. E mesmo se Darwin nunca aderiu ao darwinismo social não é menos verdade que pensou haver «raças inferiores», lamentando que a civilização eliminasse a acção depuradora da selecção natural. Liberalismo e socialismo, ambos adoptaram a teoria da selecção natural para os seus princípios ideológicos (v. Bowler, 1984). Para o primeiro.
a chave do progresso é a competição individual, a sobrevivência dos mais aptos, emquanto para o segundo é a sobrevivência da classe historicamente mais capaz de assegurar o bem-estar
da humanidade.
Mas
as origens
ideológicas
nunca
são tão simples.
Por exemplo, as raízes ideológicas do spencerismo e do nazismo vêm, em parte, de uma combinação de darwinismo social com lamarckismo, mas com resultados muito diversos em cada caso, porque outras influências fortes (históricas, culturais, ete.) entram em jogo, no segundo movimento havendo que contar com uma ideologia germânica especifica, onde se filiam conceitos de raça «superior» com a filosofia hegeliana do Estado,
da subordinação
total do indivíduo a ele, do grande chefe que o simboliza e que
lhe assegura o destino transcendente, etc. Áliás, a combinação darwinismo /lamarckismo foi múltiplas vezes adoptada para fins diversos no liberalismo, no socialismo, 378
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — 1
no nazismo e outros fascismos. Por exemplo, a concepção idealista de Estado, tão extremada nos socialismos e nos fascismos, conduziu à ideia de que o Estado tem
não só o direito, como o dever, de limitar a multiplicação de cidadãos menos capazes
(v. o cap. XII). NH Este ponto de vista é discutível, O racismo tem múltiplas causas, residindo algumas das mais importantes na própria história económica e cultural de uma nação e nas relações de classe e de modos de produção que nela se processam, A acção dos cientistas e de outros intelectuais, por muito peso que possa ter, é provavelmente mais o reflexo de factores sociológicos do que causa, seja a favor, seja contra o
racismo. 2 O escravismo é muito mais antigo do que o racismo, mas os dois movimentos andam por vezes ligados, remontando as origens da conexão pelo menos à descoberta da América, ainda que só mais tarde é que o racismo, ligado à biologia e inspirado por ela, tenha surgido como doutrina racionalizada (v. o cap. X). i3 Um dos legitimadores do racismo moderno. Falso conde, mas grande romântico, Gobineau é sobretudo conhecido pelo infeliz «Ensaio» racista e não pela sua obra literária, onde haveria obras-primas pela qualidade do estilo, na opinião de Angelo
Rinaldi (L'Express, 24-12-1982). 14 Hitler acreditava absolutamente no determinismo biológico, que resultava num biologismo grosseiro e místico, aliás simples prolongamento do darwinismo social gerânico,
com
raízes
em
Ernst
Haeckel,
e considerado
como
cientificamente
verdadeiro pela maioria dos Alemães, incluindo numerosos cientistas (Stein, 1987). Era uma crença miístico-biológica na desigualdade racial, na eterna luta pela sobrevivência do mais forte como a grande lei da natureza, com a legitimidade decorrente
o Estado efectuar uma política baseada na selecção natural e na força física. No seu livro Mein Kampjf, Hitler discute as relações entre a política e a selecção natural, como base para o êxito da política alemã, especialmente nos aspectos demográficos mas suas relações com a escassez generalizada dos recursos naturais e o controlo da procriação pela eliminação a que a natureza submete os menos capazes, as raças mais
fracas, etc. Era isto a «biopolítica» do nacional-socialismo, a essência do nazismo. Para o autor referido, Hitler não inventou a sua biopolítica porque a sociedade alemã estava impregnada dela: «almost every element of Nazi biopolicy was already well established in the German political culture in both a vulgar, man-in-the street sense and, more importantly, among the educated elite who took their views from the representative science of the day» (Stein, p. 253). A ideologia burguesa liberal procurava no darwinismo social uma justificação, uma legitimidade, enquanto na Alemanha constituía o mesmo darwinismo pervertido parte da essência fanática do nazismo, que dele se apropriou como se fosse a verdadeira ciência biológica a indicar o caminho certo à política. Por razões históricas, políticas e outras, o darwinismo vulgar teve diferentes utilizações e desenvolvimentos
nos países anglo-saxónicos e na Alemanha, mas os cientistas e as suas ideologias estão também envolvidos nas biopolíticas e bioéticas respectivas, 15 V. também Thuillier (1981 b). 16 Lorenz continuou sempre a pensar que se deve ser mais darwinista do que o foi Darwin, o que traduz e pode em parte explicar a sua ideologia persistente. Não é que seja condenável um cientista olhar o mundo consoante as suas crenças e a sua política, a sua noção dos valores, Todos o fazem, como acontece com qualquer indiví-
duo. Mas o criticável e perigoso é arvorar especulações sem substância em resultados supostamente
comprovados,
com
indiferença
pelas
consequências
sociais e culturais
daí resultantes. Por exemplo, é falso afirmar que um dado comportamento humano, por ser adaptativo, terá certamente uma base genótica específica e que foi o resultado directo da selecção natural, com descrição dos passos do processo, num historiar puramente fantasioso, mas na aparência lógico, O perigo das generalizações vagas é uma característica daqueles cientistas e/ou popularizadores de ciência que reconheci379
GERMANO damente, ciosas
ou
e sem
não, introduzem substância.
dos sociobiólogos, com
DA
FONSECA
política nessas
É o que
fazem,
por
SACARRÃO
suas
conclusões
exemplo,
a sua visão animalesca
especulativas,
Lorenz
e reducionista
e
do
similares
homem
tendene
tantos
e da socie-
dade
humana. 17 Biologicamente, os homens não são desiguais, mas sim diferentes, ainda que (como anotei noutro passo) as diferenças propriamente biológicas sejam mínimas e superficiais relativamente às semelhanças e às mesmas potencialidades profundas
que existem em todos os homens a
diferente
robustez
física
entre
(v. o capítulo x). É possível que no caso dos sexos o homem
e a mulher
tenha
algo
a
ver
com
as
desigualdades sociais respectivas, reforçando ou caucionando uma situação que direetamente não depende da biologia.
18 Evolucionismo
optimista provavelmente
relacionado
com
a reconstrução
do
após-guerra e com a derrota dos fascismos ('v. o cap. IL). I9 Em diversos animais parece verificar-se uma certa capacidade de reconhecimento dos indivíduos parentes (irmãos, etc.), que seria de origem genética. Mas não há ainda conclusões seguras a este respeito porque seria necessário demonstrar que não se trata de um reconhecimento devido a familiaridade (entreajuda motivada por criação conjunta). Provavelmente, parentesco e familiaridade actuam em conjunto [v., por exemplo, Hopkins (1983), Blaustein e O'Hara (1986)]. 27 A sociedade industrial moderna manipula, divide, substitui, reduz, indo cada
vez mais fundo na análise e na utilização das coisas e dos seres, e a sociobiologia reflecte-o, tal como o darwinismo tradicional reflectia a sociedade industrial do seu tempo. Ás reciprocidades, os nexos, as relações das partes, as co-evoluções, são, em regra, estranhas às interpretações sociobiológicas e ao seu extremado determinismo reducionista. 2 Além do meu livro (1982), v., por exemplo, Ruse (1979), Thuillier (1981), Lewontin et al. (1984), Kay (1986), todos com diversa bibliografia. Para certas
implicações de ordem política da sociobiologia e uma certa defesa da teoria (que não seria reaccionária), v., por exemplo, Masters (1982). Também poderá consultar-se Freedman (1979) para certos aspectos de crítica à sociobiologia, ainda que numa perspectiva de fenómenos de grupo, e que o autor aplique e desenvolva argumentos
sociobiológicos aplicados ao homem. Para problemas específicos no âmbito da sociobiologia e à luz dos seus princípios básicos, pode, também, consultar-se (vários artigos) Current Problems in Sociobiology (1982). Ver também Tort e outros (1985). 2 Existe um certo simplismo na ideia sociobiológica (e não só) de que o processo de culturização e o comportamento social humano estão codificados nos genes. A meu
ver, tudo conduz, porém, a concluir que hereditariedade
e ambiente
actuam
indissociavelmente, que a ontogenia humana é uma sucessão em extremo complexa de íntimas interacções de genes e ambientes variadíssimos. As diferenças culturais não são provavelmente causadas por diferenças genéticas sujeitas aos imperativos da selecção natural, como pretendem, por exemplo, Lumsden e Wilson (1981). Nenhum comportamento social do homem parece estar na dependência directa de um gene específico ou de um grupo determinado de genes. Até ao presente, tal facto ainda não foi demonstrado, nem ninguém ainda sugeriu qualquer metodologia experimental para o fazer. Os indivíduos mudam tão radicalmente o seu comportamento quando passam de umas para outras sociedades que a concepção de que a conduta social é geneticamente dirigida, de forma acentuada, é provavelmente falsa. Como não existem provas decisivas de ordem
experimental,
a seu favor, tudo o que se disser
tda 6º ca à 1 REA e tt a
380
ia
de genes e ambiente parece-me corresponder mais às complexidades evidenciadas, sobretudo ao conceito que aponta para o facto de o homem ser um animal biologica-
ride
parte devida aos genes da que é devida ao ambiente, nenhum destes factores sendo por si só determinante seja do que for no ser humano. À ideia da indissociabilidade
a
a partir dessa base inconsistente é pura especulação «Lewontin et al., 1984). Para mais, não é possível separar num indivíduo, ou em cada um dos seus caracteres, a
BIOLOGIA
E
SOCIEDADE — 1
mente cultural, no sentido que explanei no cap. 1 (v. meus Lewin 1981, e Médioni e Vaysse, 1984).
23 Para
os sociobiólogos, os padrões
éticos provêm
1986
e 1987, e também
directamente
da evolução
biológica, da selecção natural que fez o que é o nosso sistema nervoso, o nosso cérebro,
as
nossas
glândulas,
as
nossas
hormonas,
que
por
sua
vez
determinariam
os
nossos sentimentos e emoções, as quais nos indicam o que é bom e o que é mau, Para o filósofo Peter Singer (1981), a sociobiologia fornece as bases para uma nova explicação da ética, mas pensa que é necessário ir mais longe, ultrapassar as motiva-
ções
biológicas
natureza
de
de base,
seres
Para
sociais
ele, os princípios
dotados
de
razão,
éticos emanam
e não
só
dos
da nossa
determinantes
própria biológicos
proclamados pela sociobiologia. Quer dizer, a razão a compelir os homens a tomar decisões contra o «interesse» dos seus próprios genes, contra as forças da evolução, sem consideração das consequências que essas decisões provocam. Ou seja, contrariando os princípios sociobiológicos. À meu ver, o autor mencionado, ao apoiar o seu ponto de vista na sociobiologia humana, adoptou também as inconsistências e fragilidades desta última. 24 Para E. O. Wilson, a moral tem um significado apenas biológico, sendo a conduta moral aquela que garante a sobrevivência, selecção e transmissão aos des-
cendentes das porções de ADN
que constituem os genes humanos.
Z Pode argumentar-se, como já tem sido feito, que é um mal o relativismo moral, o facto de os conceitos de bem e de mal serem uma questão de opinião, de escolhas realizadas. Mas uma moral de princípios absolutos pode também ser um mal,
não tendo conta as perversões e os crimes que têm sido praticados em nome
quer
da virtude, quer do dever ou da felicidade como fins supremos para o destino do homem, abstracções imensas e fanatizáveis, susceptíveis de múltiplos sentidos e definições. Bertrand Russel (1956) está em certo sentido, a meu ver, na boa razão
quando advoga que os «valores» — quer dizer, o que se considera bom ou mau por si mesmo, independentemente dos seus efeitos— se encontram fora do dominio da ciência,
«[...]
inteiramente
fora
do domínio
do conhecimento
[...]
da decisão
inte-
lectual [...] fora do reino da verdade e da falsidade». Razão em certa medida, porque
as suas afirmações pressupõem a pureza do conhecimento científico, o que, como tenho acentuado, é provavelmente falso. Existe uma complexíssima relação entre os domínios emocional e intelectual, ideológico e científico, e deste com o social e o histórico, todos a influenciarem-se reciprocamente, pelo que não me parece realista separar ética
de ciência, não como processos de fazer e actuar, mas como entidades absolutas, a subjectividade da primeira a opor-se à objectividade da segunda, sem mútuas interferências. A ciência não tem qualquer direito em matéria de ética. Os factos, os fenómenos, os métodos, são uma coisa, as normas de conduta outra. Isto é certo, mas
também
é uma
realidade
que
a prática
e as teorias
científicas
levantam
cons-
tantemente questões éticas e políticas, as quais andam misturadas e relacionadas em maior ou menor grau com a ciência, com a sua actividade, com as suas instituições e com os seus objectivos.
ET
a
26 Há quem pense que a selecção natural teria actuado a favor de seres infra“humanos e humanos primitivos mais solidários, pacíficos e cooperantes e contra os indivíduos isolados, fortes, egoístas, cruéis e violentos. A vantagem selectiva adviria
para os primeiros, para os que se entreajudavam e não para os segundos. Formar-se“iam grupos, a evolução genética trabalhada pela selecção conduziria ao desenvolvimento de simpatia e amizade intragrupal e de hostilidade intergrupos, origem remota do racismo (v. Reynolds et al., 1987). A verdade é que cada autor tira do conceito de selecção
natural
o que
melhor
convém
à sua
ideologia,
ou o que
mais
se harmo-
niza com ela, a especulação é livre, já que tudo se ignora acerca da evolução psicoló-
gica do homem
e da origem do senso moral. Se a selecção natural actuou durante
milhões de anos sobre a nossa evolução, uma diu o homem
de se transmutar
num
conclusão a extrair é que ela não impe-
ser simultaneamente
e violento, obrigado a tudo aprender de «bom» 381
egoísta e altruísta, pacífico
e de «mau»
para se tornar humano,
GERMANO com
uma
processo Poderão
biologia
toda
DA
preparada
FONSECA para
isso.
SACARRÃO
Mas
então
poder-se-á
perguntar:
no
seleccionou-se o quê? À autoconsciência? A liberdade? E porquê? E como? ensaiar-se várias respostas, mas nelas haverá tantos ses que a especulação
se torna gratuita. Será que neste aspecto da evolução do psiquismo superior do homem e do seu comportamento social a teoria da selecção natural, por tudo explicar, acaba por não explicar nada? Por meu lado, inclino-me a pensar que egoísmo e brutalidade primitiva como traços dominantes nos primeiros homens é história inventada. Os
que
acreditam
à sociobiologia
na
existência
de
um
núcleo
vulgar, às suas explicações
para inventar histórias,
tendo
como
de maldade
no
ser humano
aderem
simplistas e universais, à sua capacidade
principais ou mesmo
únicos protagonistas o gene
e a selecção natural.
27 V. Kay (1986). Por esta metafísica poderá dizer-se que o programa genético
a nas Ta
o
cs em
faco
acciona o cérebro humano a cumprir (pelos caminhos mais diversos) o destino de reproduzir e transmitir o ADN dos genes, orientado pela selecção natural, A fonte básica de toda a moral estaria aí, nesse imperativo biológico universal, a que o homem não escaparia.
EM A
PE
332
VOLUME
II
O próximo volume de Biologia e Sociedade terminado constará dos seguintes capítulos: Capítulo
O Homem
Inde-
1x — Agressividade e violência. 1.
Múltiplos
sentidos.
2.
O
de
modo
ser
fume
emergência
animal:
a
origem
do
processo
de
ingestão
e
e da
noção
da agressividade.
3. 4.
Ontogenia, constituição hereditária e agressividade. Instintos e flexibilidade do comportamento.
5. 6.
Instintos e agressividade. O homem com psicologia
7.
Instintivistas e ambientalistas.
8. 9.
Aspectos políticos da Violência e guerra.
0.
Complementos
de carnivoro?
controvérsia
inato/adquirido.
e remates.
Notas
Capítulo x — Raça
e racismo ou o desprezo pelo outro. diversidade humana e os artifícios das taxonomias de raça.
1.
A
2.
A geografia e o clima na diversidade.
3.
O racismo e a falsa referência a) Darwin e o racismo.
b) Cruzamentos c)
Diferenças
à biologia.
inter-raciais.
mentais.
d) Raça e racismo. e) O problema das origens dos racismos. f)
O apelo de Atenas
e outras declarações.
Notas Capítulo
x1 — Biologia social e o mito do super-homem. 1. A biologia como técnica de manipulação da natureza e do homem. a) As duas dimensões. b) Engenharia genética e bioindustrialização. c) Biotécnicas aplicadas às plantas e aos animais. d) Algumas biotécnitas aplicáveis ao ser humano.
2.
3. 4. 5.
Herança a) b) c)
biológica. e sociedade. Os genes e as taras. Francis Galton e a eugenia. Genes, inteligência e sociedade.
d) Neoeugenismo e racismo, A metafísica do embrião humano. As biotécnicas e a moral, Proteger-se o homem.
Notas
Capítulo
xr — Que
é o homem?
1.
A problemática da essencialidade humana — Uma avaliação.
2. 3.
Do advento da autoconsciência. O preconceito sociobiológico.
4.
Determinismo
5.
Natureza
Notas
Bibliografia.
biológico (mecanicista) e o mito do «homem
e cultura — Para
uma
superação.
natural»,
a
obras 1—
O
publicadas Mito
2 — Teoria
do
nesta
Estado,
Ernst
da Literatura,
Austen
colecção: Cassirer
René
Wellek
e
Warren
3 — A Matemática Moderna, Irving Adler 4 — Sociologia das Doenças Mentais, Roger Bastide 5 — Grupo-Análise Terapêutica S. H. Foulkes 6 — Os Grandes Socialistas e a Educação, Maurice Dommanget —O Paradigma Perdido: a Natureza Humana,
Edgar
Morin
8 — Teoria Política e Socialismo, Umberto Cerroni 9— 4s Leis Naturais do Casamento, Wolfgang Wickler 10— O Pensamento Jurídico Soviético, Umberto Cerroni 11 — História da Psicologia — I. Da Antiguidade
a
Bergson,
F.-L.
Mueller
12 — História da Psicologia — II. A Psicologia Contemporânea, F.-L. Mueller
13 — Ditos Portugueses Dignos de Memória, autor desconhecido (actualizacão, introdução e comentários de José H. Saraiva) 14 — História da Africa Negra —1, Joseph
Ki-Zerbo
— II, Jo15 — História da Africa Negra seph Ki-Zerbo J 16 — Elogio da Diferença — A Genética e os Homens, Albert Jacquard | 17— 4 Lógica Moderna, Jean Chauvineau
18 — 4 Hidráulica, 19—
O
Homem
Jean Larras
e a Morte,
]
Edgar
Morin
20 — Introdução à Ciência Administrativa, “Bernard Gournay 21 — Portugal Pré-Histórico — Seu EnO. no Mediterrâneo. quadramento da Veiga Ferreira e Manuel Leitão 22 — O Liberalismo, Georges Burdeau — A 23 — Relações de Poder na Empresa Gestão na Nova Realidade Social, Manuel Pedroso Marques 24 — Traduzir:
Teoremas
para
ção, J. R. Ladmiral 25 — Metodologia e Técnicas F. Di Zenzo Salvatore Pelosi
a
Tradu-
. ; Literárias. e Pietro
26 — O Acaso Monod
27 — A
e
a
Biologia
Necessidade,
do
Egoismo,
Jacques
G.
carrão 28 — O Método — 1. A Natureza reza, Edgar Morin
F.
da
Sa-
Natu-
29) — O Método —2. A Vida da Vida, Edgar Morin 30 — Introdução à História dos Descobrimentos Portugueses, Prof. Luís AIbuquerque
31 — A Química Física em Bioquimica— Teoria e Problemas, Nicholas C. Price e Raymond A. Dwek 32 — Ciência com Consciência, Edgar Morin 33 —
Estatística — Teorias I, Pierre Dagnelie
34 — Manual Campos 35 — 4 Vida
de
e
Métodos —
Bioquímica,
em
Roma
na
Pierre Grimal 36 — Estatística — Teorias
Luís
Antiguidade, e
Métodos —
II, Pierre Dagnelie 37 — Sonetos, Camões 38 — O Problema Epistemológico plexidade,
Edgar
39 — Sociologia, 40 — 4
e
da Com-
Morin
Edgar
Adaptação
S.
a
Morin Invenção
do
Fu-
turo, Germano da Fonseca Sacarrão 41 — A Psicologia Diferencial, Maurice Reuchlin 42 — Política Monetária, Walter Marques 43 — Genética
e Política,
R.
C.
Lewontin,
Steven Rose e Leon J. Kamin 44 — O Método — 3. O Conhecimento do Conhecimento/1, Edgar Morin 45 — A Neurose de Angústia João dos Santos 46 — Biologia Vincent
47 — O Homem
das
Paixões,
perante
lippe Ariês 48 — O Homem perante Philippe Ariês
Jean-Didier
«a Morte — I, Phia
Morte —II,
49 — Biologia e Sociedade — Crítica Razão Dogmática — I, Germano Fonseca
Sacarrão
da da
RR
Trees Tdto denunciar. os
Tolo e abusos que as ideologias
fazem das aquisições Gientíficas edo mesmo passo, combater a falsa ciência, os errosí E bitilogismos. de todos os matizes. ESA SELO CTA presente. Eae coisa é o que a ciência
descobre de aparentemente os À ú ou de estimulante, as realidades
e' conexões
que
põe
IE
Vidência,
outra
coisa
é o'que
de
falso ou dogmático é dito em ETTA nome por cientistas e não cientistas. E sobtetudo não perder a noção dos limites de aplicacão e validade da biologia
no estudo do Homem
e da-sociedade.
A ciência não descobre verdades eternas e absolutas nem cria teorias ou concepções imutáveis sobre a realidade. E, por natureza, antidogmática (quando não manietada por ideologia), mesmo que nunca possa ser absolutamente neutral.» x
a À
Ê
Do'i«Prefácio» Rs
Do mesmo
autor, nesta colecção:
É doa
ee
— A Biologia do Egoísmo — A Adaptação
ISBN 972-1-02694-8
1072'"0
ma
e a Invenção
do Futuro
do
Autor