Biologia e sociedade. v. 1 [1]
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G.Ê ale ARRÃO

e A I G O L HO

d i a BIBLIOTECA UNIVERSITÁRIA

PUBLICAÇÕES EUROPA-AMERICA

DL

arm

GERMANO

«5

DA

6

Eb

1982.0680130

FONSECA

27296 SACARRÃO

capa: O

estúdios

P. E. A.

1989, Germano

da Fonseca

Sacarrão

Direitos reservados por Publicações

Europa-América,

Lda.

Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma ou por qualquer processo, electrónico, mecânico ou fotográfico, incluindo fotocópia, xerocópia ou gravação, sem autorização prévia e escrita do editor. Exceptua-se naturalmente a transcrição de pequenos textos ou passagens para apresentação ou crítica do livro. Esta excepção não deve de modo nenhum ser interpre-

tada

como

sendo extensiva à transcrição

de textos

em recolhas antológicas ou similares donde resulte prejuízo para o interesse pela obra. Os transgressores são passíveis de procedimento judicial

Editor:

Francisco

Lyon

de Castro

PUBLICAÇÕES EUROPA-AMÉRICA, Apartado 8 2726 MEM MARTINS CODEX PORTUGAL Edição

n.º 106049/4657

Execução técnica: Gráfica Europam, Lda., Mira-Sintra — Mem

Depósito

Martins

Legal n.º 22377/88

LDA.

BIBLIOTECA

UNIVERSITÁRIA

OGIA E SOCIEDADE-

RAZÃO DOGMÁTICA Tas

é Cual es la verdad? Desde el punto de vista de la verdadera cultura, no es lo mas decidir. Cultura es, frente a dogma,

importante discussión

permanente.

José

OrTEGA

Y GASsET,

1927

Faith is certainty without proof; science is proof without certainty. AsHLEY

MoNnTAGU,

1978

[...] nature, like the bible, is so diverse that diligent search will yield examples in support of any

principle. Davip

Lackx,

1971

ÍNDICE

Páp.

Prefácio .....ececereseeeeereneerereeenerereeanerceeesananacenarenacerenecenenacerenenascertesa

13

dae tias dio stars REL esenererucapasas

17

Capítulo I — Biologia 1.

Natúrea

e ID CDLogÃo

spasssaanunsancanuicaseamca uuesaçõos

1Z

9. A consciência como referência .............ciicicciistesteeemeseeateras 3. Reducionismo e determinismo biológico ...........ciciiciities 4: Biologia e ideologia do Ocidente ,espmsecsamasaasenaas emsaneents 5. Ideologia e origem da biologia ..........cccssesesseseeseeereneros NOÉ mussi so O OA Ta

é origem

do homem

21 29 36 44 50

Capítulo II — Dois modelos dO MEO 1.

Evolução e antievolução no mundo

2.

Antigos

obstáculos

3. Visão antiga e visão moderna ..... nr geo aa o cad 4. Reacções à imagem de um mundo em mudança ................. Ss. À veligião da. evolução sqaasecaenanauaaderenauai ser mcesa cs qo asim

63 69 qo

usa

87

e

DS

mais o

TI ÃO

RD ue

rar 4 IDEC

a

cr

E

generalizado

53 58

spa

ao evolucionismo

antigo ............siiceos

53

..................

NO Capítulo

scisernaaissciceneeasmae ques es resinas é

q

95

1.

O Símio-Adão, o «primeiro homem»

2.

A

à.

Plneiicidade

4. 5.

A diversidade da dieta alimentar .........ciiissiiiiisitieseis A condição de predador e a teoria do «símio-homicida» .........

110 112

q) O. mito: da muldade Inatk cassnscaiiaseseerenpuaienaa ce ques 6. Caracteres psicológicos e culturais .......esemeseseseseeaeeserecsrso O fia E 6 UG. assina iron rr ir intro css g. Natureza hostil ou paraiso terreal? ,easnsumunaareis cd ER dic

119 122 129 131 134

....ccccsiiiiso

139

Crescimento dos primatas e competição intra-uterina ..........c.... Ambiente físico e social no desenvolvimento do ser humano ......

143 145

questão

das

Capítulo IV — Ontogenia 1. 9.

Origens

DIGA

e outros mitos ...............

98

......scseessenessecesseeessrecssenescennsensrerana

102

O ad rr oemenerroepiscanoe

e socialização

na

evolução

humana

109

Pág.

3.

«Juvenilização» e socialização na origem do ser humano ......... a) O significado da gravidez humana ..........cicciiciss b) Aumento do tempo embrionário e fetal (retardação ontogenética .......cciisrereeeeerereerer tera reseeerraio c) Ontogenia, família e sociedade ..........ciiciisiisiees d) A retardação da ontogenia — componente dominante na origem do homem ...........ccciiseeererrrereeraioo &. Modificações SEGUINNA ora cerserEraGIRORSTOs CHE MASC nata vira NL srs asa iG q

Capítulo V — Ciência 1.

Génese

e filosofia do

do

darwinismo

darwinismo

.........ciisirr

«sia caneminsdasaáio cvs emeaes denied AS Doca

a) A «sobrevivência dos mais aptos» .........iccciiiis b) Biologia sem Darwin ....... ementa rir 2. Aspectos tradicionais da teoria da selecção natural e sua moderbizadãs a)

3.

direto cprnecesiadi cl dóresiaquiEasaitia dire suas comes

Modernização

e

COMICS

as is

een

mea

ERINN da

a) A

revolução

intelectual

doca

e

a a

............csscsittes Ria

b) Saltos ou pequenos passos? .........iceisiiiro c) Diversidade que não se repete idêntica CRC e dee sang 4 agia d) Conceitos de evolução e de progresso ...........o. O abuso de metáforas ........ccecsecereereeseerenereeeresrerrrannio a) A metáfora em Darwin .iccessssisessiiesiiaiociscascansaro, b) A retórica sociobiológica ........cisiiseeernneni One

Capítulo

160 164 168 170 174

179 180 188 195 197 200

Algumas consequências científicas e filosóficas do evolucionismo darwiniano asueies musteruss Ens xs CU CG ANS VOA

4.

155 156

VI — Anti-Darwin.

eve

vaso

vg ds seres

204 206 212 217 221 226 228 229 230 233

......mecessemeereceremerrrremeranaacacarsasarererernarerissos

241

1.

O movimento criacionista na América .......ciccimeresiiiiro a) Darwin em tribunal ..csssesrecreereraresssesceriiaserrrraera,

2.

O

3, 4,

Darwin na pátria de Lamarck ..........esesceerrarirreeiro O darwinismo em Portugal ....... rrenan

241 245 251 257 260 268 269 273

caso

da

Europa

a) Algumas b) A

tradição

.....cssecssesessermssrreerencranadesasasearassarranirs

influências. liceal

À

Universidade

.......iiio

....cccesssesseresseresresreesvenaças Séc

c) As origens da zoologia em Portugal e a sua persistente índole classificatória ........iisreimiirir

275 278

Pág.

e)

Pedagogia

da evolução

e museus

de história

natural

em

ROSE assita OA A f) As comemorações do centenário da morte de Darwin, em 1982,

e a indiferença

portuguesa

........ciiiiiiio

tro1 A

Um grande mito susasass PS O dao Lao. quam saao id a DI SÓ a) Biologia anacrónica e ideologia partidária ............... BD) À tnndada à ABM a seen on perenenas c) «Abalar» a hereditariedade ...cesseeecsseseesseracasersaso E) Esprit de apslBa sro cn IS O GI TT E e) Sessões da Academia ............iiiiiiiciceciereseneeciresess 7» VRRIRO GENERO spread en gd

queda

um srta

ensino Dead

einen

293 295 302 304 307 310 313 314 318

ás nbeghas

323

O drama de Semmeçer -,ssnisasa ssa os asno a a a) Novas fentalivas a dasaia soma sd sa dia cas cada do DA ogia je is Ml ego dl lago a SÓ Sd

326 331 334

VIII — Biologia

339

à.

Capítulo

282

287

Capítulo VII — 4 herança biológica do adquirido e a força da ideologia ...... À. E

281

evolutiva

e explicação

da sociedade

..................

1. Competição e cooperação — Realidades e preconceitos ............ 2. Darwinismo social. Racismo. Fascismo .............iccicsiesereso 3. Um novo darwinismo social — Sociobiologia e biologia da moral 4. Biologia e moral ou a metafísica da desumanação .................. DG qe io DES a O

342 351 360 370 377

PREFÁCIO

O presente livro pretende abordar e discutir num plano crítico e ensaístico algumas ligações que « biologia tem com vários aspectos do comporiamento

social humano

e ainda as cauções

ideologias, a sua fragilidade como ções ou valores, de algum modo,

que dá a certas

suporte ou garante de certas posi-

assim como algumas suas contribuições que podem, iluminar questões respeitantes à condição humana, à

sua origem e à sua evolução. Focará ainda aspectos onde a biologia e a sociologia parecem convergir, quer revelando relações válidas, quer procurando denunciar transformações da biologia em ideologia, quando esta, neste ou naquele quadrante, se alimenta dela.

ou

Existe hoje uma nova cultura assente na biologia, pela qual se tenta uma explicação do homem e da sociedade à luz de um determinismo biológico fortemente reducionista, com longas e profundas im plicações ideológicas e políticas, e suscitando múltiplas reacções idealistas

e metafísicas, tudo obstando a uma visão esclarecida dos problemas. É um processo ainda em pleno desenvolvimento cujas raízes vêm de longe. A ele se têm associado não apenas biólogos, mas igualmente outros cientistas vindos de outros campos, assim como numerosos ensaístas, historiadores da ciência, sociólogos, políticos, literatos, jorna-

listas, filósofos, etc., uns mais felizes, outros menos, na justificação dos seus credos e pontos de vista, exercendo uma selecção nem sempre apurada da documentação científica, e os leigos, além disso, tantas vezes sem um

conhecimento

directo da natureza e limitações da biolo-

gia, de que se servem sem competência ou sem prudência. Sendo biólogos (ou outros cientistas), acontece muitas vezes divulgarem conclusões falsamente comprovadas, ou defenderem interpretações «científicas» que pretendem apoiadas na especialidade que cultivam, umas e outras que aplicam no plano político, atitudes estas que amiúde escondem, conscientemente ou não, posições ideológicas. Procuram

também

na bio-

logia armas para atacar ou defender teorias políticas ou credos religiosos ou,

inversamente,

negam

aquisições

da

ciência

por

serem

contrárias

a fé, etc. Ocupando a biologia uma posição de charneira entre as ciências físico-químicas e as ciências psicológicas e sociológicas (ou, talvez com mais propriedade, as ciências humanas), impõe-se q crítica rigorosa da sua utilização nas interpretações das questões respeitantes a estas ciências, mas sem que tal facto constitua obstáculo a que as ciências 13

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

humanas usufruam do indispensável suporte da biologia, ciência de cujos contributos poderão essas ciências largamente beneficiar em esti-

mulos, sugestões e interpretações que lhes possibilitem a elaboração de novas sínteses renovadoras. Classicamente, a biologia fornece as bases à psicologia e à sociolo-

gia, mas modernamente pretende ir muito mais longe. Por um determinismo biológico estrito, sobretudo apoiado na ecologia, na genética e nas programações hereditariamente fixadas de múltiplos comportamentos sociais dos animais, a biologia visa explicar as acções individuais e sociais humanas, os fenômenos políticos, a evolução das sociedades,

a origem da moral, a própria história, etc. Propõe-se substituir a sociologia, a filosofia; explicar o homem e modificá-lo no corpo e na mente, interferindo directamente nos processos biológicos, até os mais íntimos,

tomando

nas suas mãos a nossa evolução.

objectivos da sociobiologia humana, denunciar e combater. Além

São esses os grandes

cujos excessos e perigos se impõe

disso, a sociobiologia e outros sectores da

biologia evidenciam-nos, com particular clareza, a íntima ligação da ciência com a política, a acção de forças ideológicas e sociais a ditarem, em parte, o caminho à pesquisa, a definirem, de cerio mido, a parte da realidade que pode ou deve ser revelada e como deve ser interpretada As posições ideológicas ou filosóficas facilmente invadem o vasto

campo das ciências humanas e a sua influência estende-se do problema da origem e evolução do homem,

gam-se

conclusões

prematuras,

à questão da sua natureza,

generalizações

abusivas,

etc. Avan-

simples

supo-

sições ou credos, que a ciência não legitima, apesar de a ela recorrerem os seus autores. Impõe-se, assim, a vigilância e a crítica de tais atitudes. É

necessário

denunciar

os usos

e abusos

aquisições científicas e, do mesmo os erros, os biologismos de todos presente

que uma

que

as ideologias

fazem

das

passo, combater a falsa ciência, os matizes. Ter constantemente

coisa é o que a ciência descobre

de aparentemente

certo ou de estimulante, as realidades e conexões que põe em outra coisa o que de falso ou de dogmático é dito em seu

evidência, nome por

cientistas e não cientistas. E sobretudo não perder a noção dos limites

da aplicação e validade da biologia no estudo do homem e da sociedade. A

ciência

não

descobre

verdades

eternas

e absolutas,

nem

cria teorias

ou concepções imutáveis sobre a realidade. É por natureza antidogmática (quando não manietada absolutamente neutral.

por

ideologia),

mesmo

que

nunca

possa

ser

Toda a tentativa de aplicar à sociedade e ao indivíduo os resultados da biologia transmite quase sempre uma ideologia, traduz, em regra, uma atitude política, mesmo que o autor, biólogo ou não biólogo,

não se dê conta disso, mesmo que o não queira. Por isso me parece ser de fundamental importância explicitar os preconceitos, tentar desmontar

as

conexões

da

ciência

com

a 14

sociedade,

revelar

as

ideologias

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — |

subjacentes, as influências em jogo, em suma, submeter à dúvida e à critica toda a referência à biologia moderna, em particular as explicações biológicas da sociedade e do comportamento individual e colectivo.

É necessário, a meu ver, exercer uma crítica rigorosa das proposições e sínteses sociobiológicas, assim como das legitimidades das transposições

do conhecimento

biológico para o vastissimo domínio das ciências do

homem. E também a crítica do dogmatismo e irracionalismo que resultam destas transferências, da politização da biologia, assim como do determinismo biológico reducionista historicamente ligado à ideologia burguesa e seu suporte. A biologia ocupa hoje espaços que tradicionalmente pertenciam ao domínio do sagrado, a outras autoridades, a outras metafísicas, na explicação do homem, na sua orientação moral, na sua visão do

mundo e de si mesmo. Este facto confere-lhe uma importância fundamental como caução para ideologias dominantes e, ao mesmo tempo, um enorme poder, que,

em numerosos sectores, me parece constituir uma séria ameaça à dignidade e à liberdade do ser humano. Com este livro faz-se uma discussão crítica de multiplos aspectos desta vasta problemática, que poderá

ajudar à edificação de uma síntese mais aberta e mais lúcida.

G. F. SAcarRÃOo

Prof. Faculdade de Fauna

—. PL2.

catedrático

de

Zoologia

e Antropologia.

de Ciências de Lisboa. INIC — Centro Portuguesa da Universidade de Lisboa

CAPÍTULO BIOLOGIA

E

I

IDEOLOGIA

Hoje não parece possível debater qualquer problema relativo ao homem sem o considerar à luz da ciência, em particular da biologia, que ocupa aí uma posição verdadeiramente central. Mas a interpretação, socorrida pelo conhecimento objectivo, terá de não perder de vista a

profunda

originalidade

humana.

Absorvidos

em

demonstrar

que

o

homem é um animal, tem-se estado muitas vezes desatentos ao facto de

ele ser um animal sem paralelo entre os outros seres. Não é tanto o que nos aproxima do animal o que devemos procurar, mas principalmente conhecer aquilo em que nos afastamos dele. Em geral, o que se tem feito, sobretudo desde os tempos heróicos do começo do darwinismo,

é acumular testemunhos da animalidade do homem, quando hoje o que parece de facto importante gica, a sua humanidade. À aplicar ao homem factos e dequadas quando utilizadas rificando,

de

modo

é evidenciarmos a sua originalidade biolótendência tem sido, quase constantemente, teorias zoológicas que se têm revelado inapara o explicar, ou, pelo menos, não cla-

nenhum,

a extrema

complexidade

dos fenómenos

e problemas que o estudo da nossa espécie revela. Importantes descobertas realizadas no campo da etologia e da ecologia das sociedades animais têm conduzido certos autores à tentação de fazer a sua transposição pura e simples para as sociedades humanas, na presunção, em grande parte falsa, de que o comportamento social humano obedece aos mesmos determinismos biológicos que actuam nos animais sujeitos às observações e experiências. Terá, por exemplo, fundamento biológico a ideia de que o homem é um símio-assassino, um animal diabolicamente possuído por instintos agressivos, inclinado irresistivelmente por sua natureza à violência e à destruição? E o que deverá entender-se por natureza humana? Não há respostas simples e directas para tais interrogações.

1.

Natureza

e

origem

do

homem

O estudo biológico do homem é relativamente recente. Desenvolveu-se, sobretudo, a partir do advento do darwinismo. Data, portanto,

de há pouco mais de cento e vinte e cinco anos. A biologia, porém, não é a exclusiva fonte onde Bibl.

Univ.

49 —

2

devem

buscar-se os dados e conceitos para 17

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

a compreensão do fenómeno humano, com todas as suas complexidades e enigmas. Nem o conhecimento do homem ficará completo se apenas recorrermos à ciência. Outras contribuições, por exemplo as provenientes

das

religiões,

da

filosofia,

meios indispensáveis somos.

para

das

nos

múltiplas

formas

aproximarmos

da

de

arte,

elucidação

etc.,

são

do

que

Mas sem dúvida que qualquer ensaio de interpretação do que é 0 homem ficará incompleto se for esquecida ou negligenciada a sua condição biológica. Todavia, também não basta aprofundar as origens e modo de viver do homem primitivo, dizer que se tratava de um símio avançado,

com

a sua

indústria

rudimentar,

acumular

dados

sobre

a

biologia do homem actual. Todo o progresso da biologia será insuficiente se

ficar

mas

sim

isolado.

Não

múltiplas

existe

uma

ciências

ciência

e ramos

absoluta,

do

total,

conhecimento

satisfazer a interrogação suprema. É o que pretendem tica,

a linguística,

experimental,

etnologia,

as

religiões,

a psiquiatria,

a antropologia

a filosofia,

a geografia

física

a

e social,

homem,

tentam

a história, a polí-

sociologia,

humana,

do

que

a

a

psicologia

arqueologia

a paleontologia

e a

humana,

a

genética, o estudo da evolução e da ecologia respeitantes ao homem, etc.

Está em voga, como referi atrás, aplicar ao homem e à vida social certas descobertas importantes no domínio do comportamento animal. Em certos círculos biológicos atribui-se um determinismo biológico estrito

ao

comportamento

social,

as

acções

colectivas,

atitude

simplista,

como se tentará mostrar. Haveria, por exemplo, genes para a cooperação. para

o

altruísmo,

outros

para

a

agressividade

destruidora,

para

o

egoísmo, para a dedicação dos pais aos filhos, etc. Em suma, uma colecção de instintos bem definidos, determinados por genes ou conjuntos específicos de genes, cuja existência, porém. falta demonstrar. Daqui têm resultado interpretações abusivas. Os instintos, as pulsões inatas, como a «agressividade», a «territorialidade» e outras manifestações da conduta dos animais em sociedade também

estariam

presentes

na

nossa

espécie.

E

o mesmo

aconteceria

altruísmo, o egoísmo, o amor dos filhos, tudo determinado

com

por genes

O

equivalentes aos que existem no animal. Mas estaremos em presença de fenómenos da mesma natureza no animal e no homem, no que se refere ao seu determinismo e ao seu significado? Repito: terá funda mento biológico a ideia de que o homem é, por natureza, um símio-assassino,

um

animal

possuído

por

irreprimíveis

fatalmente inclinado por herança

instintos

biológica à violência

de

agressividade,

e à destruição?

Como tentarei demonstrar no cap. xt (2.º vol.), a questão da agressividade é muito complexa e não pode ser abordada como se LEatasss de

uma como

disposição simplesmente paralela à do animal. Por outro lado, não será a agressividade tão básica é a cooperação,

como

são as tendências 18

associativas,

no

homem

a propensão

»

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —

para a simpatia, o amor, a entreajuda? E estas qualidades e tendências humanas terão todas elas um determinismo genético, como certos autores pretendem? Será legítimo identificá-las, no seu significado e causalidade, ao que se passa no comportamento social dos animais? Nem

todas

as autoridades

estão

de

acordo,

por

exemplo,

quanto

ao

carácter hereditário total (ou mesmo parcial) da agressividade destruidora no homem. Há quem recuse considerá-la um impulso inscrito no

nosso património hereditário. Outros autores vêem nela o produto de acções sociais, estranhas, portanto, em princípio, à nossa herança biológica, que não seria responsável por esse comportamento. As dificuldades começam com a própria definição do termo, nas suas múltiplas manifestações

no animal

e nos seres humanos.

O homem é um animal eminentemente flexível, educável, tudo o que faz a sua humanidade é simultaneamente biológico e aprendido. Mas, também, se não aprender a ser humano, a sua biologia por si só é incapaz

de

o fazer.

É

ao mesmo

tempo

agente

e produto

de cultura.

Mas igualmente não é menos certo que existem nele limitações a essa flexibilidade, impostas pelos imperativos da sua herança biológica. Minimizar

a

importância

consoante

da

as ideologias,

que se pretende

cultura

ou

é semear

os

falsas

clarificar. Como

condicionalismos interpretações

biológicos,

e obscurecer

terei ocasião de discutir mais

o

longe,

o próprio debate tradicional do inato e do adquirido terá provavelmente mais determinantes ideológicos do que científicos. Os seres vivos são produtos da história, tempo homem entrever

é isso mesmo as

origens

também. do

acumulado,

e o

À perspectiva evolucionista permite-nos

primata

humano,

considerando-o

como

o pro-

duto de um dilatado processo histórico onde será convencional demarcar onde acaba a «animalidade»

e começa a «humanidade». Numa

análise

retrospectiva (evolucional), não parece existir diferença de natureza entre o homem e os primatas que lhe deram origem. À humanação foi, muito provavelmente, um processo gradativo. A posição bípede, a inteligência conceptual, a capacidade de inventar e fabricar instrumentos, provavelmente

também

a linguagem,

primata humano. Não é possível primata não humano e o primata foi provavelmente um fenómeno do «antepassado do homem», do elo de ligação,

não

são atributos

do encadeamento

do

traçar uma fronteira nítida entre o humano. À emergência deste último gradual. E é por isso que a procura «primeiro homem», quer mesmo do

são trabalhos vãos, não apenas

tipo de investigação, mas

exclusivos

pelas dificuldades deste

por razões decorrentes da própria natureza

histórico-evolutivo

(v., o cap. HI).

A ciência sugere-nos fortemente que o homem

moderno

(sapiens)

nasceu em parte da convergência e desenvolvimento de atributos existentes sob forma

rudimentar

nos

primatas

que

dade, de concerto com profundas modificações 19

deram

origem

à humani-

na ontogenia, esboçadas

GERMANO

já, também,

DA

FONSECA

SACARRÃO

nesses primatas símios, e que logo se acentuaram

na sub-

“humanidade primitiva e nos homens arcaicos. Isto, se por um

Jado é

muito importante para podermos dilucidar os fenómenos respeitantes ao

homem em bases realistas, não deve criar o preconceito de que o que caracteriza a nossa espécie é simplesmente a continuidade e hipertrofia de propriedades existentes em estádios infra-humanos. E por uma razão, tantas vezes verificada quando se comparam diferentes níveis de integração, ligados por filiação: novos atributos emergem das interacções dessas propriedades quando associadas e integradas de modos diversos, com interdependências e qualidades inexistentes em estádios anteriores. Este facto não contradiz a teoria da passagem gradual do símio não humano a símio humano, ainda que a sua aceitação não seja geral. À crença religiosa ou a convicção secular adoptam, sobretudo, o conceito da existência de um «primeiro homem» na origem da espécie. E também certas posições actuais de tipo saltacionista exprimem tendências análogas. Não parece difícil, no plano do imaginário, inventar processos (metafísicos e mesmo biológicos) com os quais se possa conceber um modo de criação brusca do primeiro ser humano. Mas a verdade é que a generalidade dos zoólogos, que, pela própria natureza da sua actividade científica,

estão

familiarizados

com

os

problemas

da

evolução,

não

podem propor tais processos criativos. O biólogo profissional, que busca

o conhecimento objectivo, não concebe ou adere a proposições vagas e confusas de criação súbita do homem, fora de um demorado e gradual encadeamento. Proposições que, podendo ser glosadas em vários senti-

dos, com a mesma capacidade de significação, acabam por equivaler-se, perdendo a indispensável consistência e coerência para poderem valer

como hipóteses de trabalho. No

homem

vertebrado

e

é tudo

de

muito

primata

mais

complicado.

inseriram-se

Sobre

múltiplas

um

fundo

de

potencialidades

de

exercer comportamentos e de desenvolver processos evolutivamente mais recentes e mais plásticos, de formar culturas. E a herança biológica

orienta,

e, até certa medida,

limita,

as orientações

que

pode

tomar.

Mas o que é importante notar é que toda a ontogenia do homem, desde os estados precoces da vida embrionária, se dirige para a formação de um animal cultural, que faz a sua história, decide da sua vida. constrói o seu mundo, e não, como os outros animais, destinados

rem

sob

O homem

limitadas

condições

ecológicas,

numa

parcela

desenvolve-se para o mundo existente e para

do

a vive-

mundo.

novos mundos

que concebe e cria. Quero dizer que tudo o que faz a humanidade do homem é preparado durante a ontogenia (no embrião e no feto), « depois,

a partir do momento em

que

nasce,

ao contacto

do

meio

Ontogenia e socialização estão fundidas na realização do se : A

postura

erecta

prepara-se

anatomicamente 20



no

social.

v humano.

segundo

mês

de

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —1

gestação; a preparação para poder falar é também feita na vida fetal, por exemplo na estrutura peculiar da laringe, que é muito diferente da de qualquer outra espécie. Por outro lado, o grande desenvolvimento do cérebro começa também cedo na ontogenia; etc. Em suma, podemos dizer que o homem é o produto simultâneo do biológico

e do

social

(v.

também

os caps.

IV e xi).

O

homem

não é tanto o resultado da interacção dos dois domínios separados, o da natura e o da cultura, como é costume afirmar-se. Nele, os dois com-

ponentes confundem-se, colam-se e interpenetram-se para constituírem o ser humano, impossível de formar-se sem essa intimíssima conjunção. Em toda a vida do homem o biológico e o cultural são, de facto, indissociáveis. O elemento cultural e a socialização não são exclusivos do ser humano, mas é nele que atingiram proporções imensas, sem igual no resto da natureza viva, nomeadamente como factores de criatividade e diversidade individual, substituindo a fixidez, o automatismo. A cul-

o biológico, dirige a reprodução, as relações entre os

tura subordina

homens, fomenta neles ideias sobre si e o mundo que os rodeia. À complexa mente humana realiza-se socialmente e as ideias que concebe

as suas acções,

determinam

que, por esse facto, escapam

ao condicio-

nalismo estrito de qualquer determinismo genético específico.

9.

A

consciência

Voltando

como

ao problema

referência

da origem

do homem,

poderá, claro está,

conceber-se que o primeiro macaco que na remota linha da nossa ascen-

dência conheceu e recusou a morte foi de facto o primeiro ser humano. Mas

nada

nos garante

que

tal conhecimento

fosse súbito, como

uma

revelação que tivesse surgido num único indivíduo. A consciência da morte e a elaboração de todos os processos psicológicos conduzindo o primata humano a «evadir-se» desse reconhecimento (ou a suportá-lo)

são aquisições que me

parecem

demasiado complexas

para se forma-

rem bruscamente. O processo da consciência do próprio perecimente e das ideias e sentimentos que o negam, não posso concebê-los como fenómenos repentinos, de origem individual. Esta recusa da morte está, provavelmente, na origem das religiões que negam o perecimento ou pelo menos

que pretendem

diz J. D. Bernal

torná-lo,

por vários modos,

aceitável. Como

(1972):

Os animais e os seres humanos primitivos morriam, mas

não conheciam a morte: uma vez conhecida, de processos psicológicos foram encontrados 21

todos os tipos para permitir

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

ao homem suportar ou escapar ao conhecimento da morte. O primeiro destes processos foi o enterramento. Com mais presciência que etimologia, Vico fez mesmo derivar a palavra «humano» de inhumare, enterrar. O sepultamento é uma prática muitas vezes considerada como a mais nítida indicação do estatuto humano, sem o que poderíamos pensar tratar-se de uma sociedade simiesca.

Entre

certos

primatas,

a morte

parece

ter,

em

alguns

casos,

pro-

mento

de mãe deixou de reagir a um objecto que já não gritava nem

se mexia. Em todo o caso, a irmã mais velha do bebé chimpanzé apertou o pequeno cadáver contra o peito, e a mãe, saindo por momentos do seu alheamento, arrancou-lho dos braços, mas indiferente, deixou-o cair no chão.

de novo,

aparentemente

Do mesmo modo, a visão de um chimpanzé paralisado dos membros inferiores, arrastando-se penosamente, perturba intensamente os companheiros,

acostumam

que o observam

cheios de pavor,

até que

à estranha situação do companheiro

finalmente

e acalmam-se.

se

Mais

curioso é o caso de um chimpanzé de 3 anos que, após a morte da mãe, sofreu tão profundas perturbações físicas e psicológicas que morreu,

também, ções

pouco depois. Afectado gravemente

com

os

outros,

passou

a

isolar-se

no crescimento,

por

longos

nas rela-

períodos.

O

seu

definhamento parece (na opinião da autora) dever-se mais aos efeitos de uma insegurança social intensamente ressentida do que a má nutri-

ção determinada por falta do leite materno.

Serão de assimilar estes casos a situações

mesmo

humanas

análogas,

até

provocadas por causas idênticas? De uma maneira geral, pode

talvez dizer-se que o bebé humano

e o bebé chimpanzé exigem

contactos

íntimos e normais com a mãe para que beneficiem de um são desenvol. vimento, mas para além disto é prudente

guardar-nos

de comparações

ou assimilações apressadas. As analogias são tentadoras, mas os erros surgem

muitas

vezes

com

elas.

Que

o chimpanzé

possa

ter

uma

certa

consciência de si mesmo é um facto que parece impor-se em face de observações cientificamente conduzidas. Mas essa consciência é frustre, 22

ssa

fundos efeitos fisiológicos e talvez mesmo psicológicos. Devemos por isso evitar as generalizações excessivas e não estabelecer fronteiras inultrapassáveis entre o animal e o homem. Assim, certos macacos podem, por vezes, durante semanas, estreitar o filho morto até este não ser mais do que um farrapo de pele. Entre os chimpanzés vivendo em condições naturais, Jane Lawick-Goodall fez observações importantes, hoje clássicas. Um chimpanzé fêmea perdeu por completo o desvelo pelo filho logo que este morreu, como se ela o soubesse morto, o que não deve provavelmente ser 0 caso, mas sim, talvez, porque o seu comporta-

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — 1

é provavelmente diferente da consciência do homem, corresponderá a experiências interiores de outra ordem. É talvez fonte de confusão que as mesmas palavras sejam utilizadas para coisas ou processos que não são identificáveis, equivalendo-se, na melhor das hipóteses, parcialmente. Com isto não queremos significar que não haja numerosas semelhanças no comportamento entre primatas superiores e o homem; que o chimpanzé não tenha uma consciência de tipo primitivo que não será talvez de aspecto muito diferente da que teria caracterizado um estádio infra-humano

na linha de evolução da nossa espécie;

finalmente, o estudo do psiquismo

do chimpanzé,

que,

revelador de uma

«autoconsciência» como que a ensaiar os seus primeiros passos incertos,

não seja, cia para -Goodall, animais,

apesar de todas as reservas que se impõem, da maior importâna compreensão do homem. Como diz justamente Jane Lawicko chimpanzé eclipsa pelas suas qualidades todos os outros mas é eclipsado por nós, onde as capacidades espirituais são

praticamente

ilimitadas,

matas superiores. Justifica-se que

se as compararmos

se

desenvolva

um

com

pouco

as exibidas pelos pri-

este

tema.

Refiro-me

ao problema da «mente» do animal na sua relação com o mundo, e em especial a questão de se saber se os animais possuem ou não consciência,

qual

a sua

ligação

ou

afinidades

com

a autoconsciência

humana.

Problema a respeito do qual quase tudo se ignora, mas que tem aqui cabimento, merecendo que lhe dediquemos um pouco de atenção, precisamente porque é daqueles onde as ideologias e as posições religiosas e filosóficas mais decidem das soluções propostas e mais influenciam

as atitudes críticas. Esta «biologia do espírito», como já foi designada, está particularmente

apojada

de carga ideológica, sobretudo porque

o

espaço da investigação e das críticas, dos resultados e das sínteses esclarecedoras é ainda muito reduzido e porque a tendência forte de reduzir os processos mentais culares

opõe

a fenómenos

frontalmente

fisiológicos, físico-químicos e mole-

crenças,

políticas

e filosofias.

E

a questão

surge ao longo deste livro, em vários dos seus passos. O aparecimento de estados conscientes em oposição aos inconscientes marcou o aparecimento de qualquer coisa de novo e fundamental no universo. Em

consequência, vem

logo a seguir ao aparecimento

da

vida. Mas a emergência da consciência no reino animal é, como disse Karl Popper, um mistério talvez tão grande como o da origem da vida, Compreender o seu modo de aparecimento, a sua evolução, reduzi-la a simples

processos

neurofisiológicos,

identificá-la à matéria,

lhe

significado

transcendente,

atribuir-lhe a natureza

um

nómeno,

um

simples

seu

reflexo

constitui,

no

conjunto,

filosofia;

provavelmente

de

um

processos

enorme

insolúvel,

pelo 23

orgânicos,

problema

menos

da

etc.,

procurar-

de epifetudo

biologia

no estado

actual

isto

e de

dos

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

conhecimentos. À discussão deste problema imenso, nalguns aspectos, entra, porém,

no quadro

da biologia

dos seus

evolutiva.

A abordagem do problema da consciência do animal levanta numerosas dificuldades. Temos, por exemplo, as que respeitam à própria definição

do conceito

(variável

com

os autores),

à sua

natureza,

à

questão da legitimidade da correspondência entre a mente do animal e a mente humana, e se de facto será correcto aplicar aos não humanos a noção de consciência e, particularmente, o conceito de «mente

cons-

ciente de si». Os animais são seres que recebem, guardam e organizam informa-

ções recebidas. São capazes, em maior ou menor grau, de «perceber» situações, de se adaptarem ao ambiente, exibindo condutas apropriadas às necessidades de sobrevivência e reprodução, comportamentos que se dirigem para atingirem certas finalidades, em sentidos que se desenvolveram durante

a evolução, inscrevendo-se

na sua

substância

here-

ditária como programas mais ou menos fixos de acção, de ajustamento ao meio e aos desafios que as circunstâncias põem. Dir-se-á, então, que têm comportamentos «inteligentes», e sem dúvida que possuem um certo grau de inteligência, no sentido de que apreendem prontamente um problema e respondem com a solução adequada. São numerosos os zoólogos para os quais têm consciência

os ani-

mais de cérebros complexos, sobretudo, entre os vertebrados, as aves e os

mamíferos

e talvez, também,

os cefalópodes,

entre os invertebrados.

Mas a autoconsciência, o «saber-se que se sabe», o «ter-se consciência de si como pessoa», não será uma aquisição exclusivamente humana

e, com ela, a consciência da morte? É provável que sim. Mas poderá afirmar-se que o animal não tem consciência de si e dos seus actos? No chimpanzé não se pode excluir a existência de um esboço muito grosseiro

de autoconsciência,

que

até poderá

ser,

a meu

ver,

de

uma

natureza peculiar, diferente da humana. É um ponto que divide biólo-

gos e filósofos. a

|

Bernard Rensch (1974), por exemplo, pensa não ser provável que autoconsciência seja característica exclusiva da espécie humana.

Acrescenta que observações feitas sobre a psicologia animal permitem, segundo ele, concluir que os animais superiores, em especial os antropomorfos

(chimpanzés, etc.), formam um conceito razoavelmente com-

pleto de si mesmos («of their own self»). Mais vago é Popper (1974), quando diz que poucas dúvidas existem de que os animais possuem por vezes,

ter a consciência

de

um pro-

Conhecem-se numerosos exemplos, quer nos invertebra dos, quer nos vertebrados, de capacidade perceptual (orientação espa cial, etc.) e de aprendizagem.

Estes

factos

conduzem

obviamente

à questão

de

saber se nos animais existe de facto autoconsciência. O pro blema, por

-

mesmo,

blema.

TITS

podendo

24

EE

consciência,

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —1

insolúvel que pareça, não deixa de ser importante.

Para

W.

H. Thorpe

(1974), da Universidade de Cambridge

(Inglaterra), ele é o problema

máximo

a grande

para o reducionista,

de ciência, e mesmo e a «mente»,

maioria

dos filósofos

numerosos neurofisiologistas, estão de acordo em

concebida

de irredutivelmente

visto que

como

diferente

sendo

do

que

a nossa

em

consciência,

ciência

é algo

se entende

como

«corpo animal», como «mecanismo material», dualismo este que está muito difundido nos círculos científicos. Sendo assim, diz o

mesmo autor, coloca-se o problema de saber a partir de que ponto da série zoológica ascendente será legítimo admitir a realidade de uma «consciência».

Claro

está que

tomamos

como

referência o que

pensa-

mos ser a consciência humana individual, o que implica que admitimos a sua equivalência à «consciência» do animal, o que é manifestamente incerto.

É possível que os animais pensem ou sintam um tanto conscientemente todas as vezes que ajustam o seu comportamento para resolver problemas,

nomeadamente

por

aprendizagem.

É

conjectura

o que

o

etologista Donald R. Griffin (1984), professor da Universidade Rockefeller. Esta hipótese

não

pode, porém,

ser refutada,

nem

confirmada.

Nada nos garante que os animais tenham pensamentos e sentimentos, mesmo que, como parece fazer o referido autor, se limite a sua exis-

tência possível aos mamíferos e às aves. Mas ao mesmo tempo não

podemos recusar que estes animais possuam uma certa consciência das situações e uma certa noção de experiências interiores, em particular

quando têm de agir especificamente perante situações novas às quais repentinamente sejam confrontados, enquanto haveria um como que alheamento ou desconhecimento

de si em situações digamos

de rotina,

normais. A plasticidade da adaptação do comportamento a circunstân-

cias novas seria pois um critério para ajuizar da existência de um pensar consciente, Parece legítimo deduzir, com efeito, que a antevisão de soluções para problemas que no animal urge resolver implique a existência

de

pensamentos,

emoções

conscientes,

e

de

actos

de

certa

maneira

Em suma, não existem provas que demonstrem ou neguem a existência de «consciência» nos animais, de possuírem um sentimento de apreciação da sua própria existência, dos seus próprios actos, deeisões, propósitos, emoções, etc, É certo que a memória é um elemento importante da consciência, e os animais possuem-na bem desenvolvida. Se alargarmos a definição de «consciência», incluindo nela a percepção vaga ou grosseira do ambiente, os processos automáticos de reacção aos estímulos, e uma certa experiência interna de natureza emocional, então teremos de admitir essa qualidade como uma característica de todos os animais. Podendo-se nesta definição abranger aquilo que o etologista Otto Koehler (1972) designou por «pensamento não verbal» 25

GERMANO

dos animais, a percepção figurativas; e com momento certo sem

DA

FONSECA

das formas

SACARRÃO

e do espaço,

das suas imagens

tais concepções tomando decisões adequadas no ter havido treino adicional. Mas ao mesmo tempo

Koehler parece não considerar «consciente» o pensar do animal porque afirma que homem:

«a

consciência

de

si próprio»

é o privilégio

Conscious of himself, power over his own

exclusivo

do

drives, a sense

of responsability and duty, freedom of will, morality, religion, art, and

alone.

science

are the

privileges

articulate

creature

(P. 100.)

Parece, assim, que o «pensamento ciente. À expressão é por isso, a meu Tratar-se-ia,

of the

seguindo

o mesmo

autor,

não verbal» não será consver, geradora de confusão.

de

um

processo

comparável

às

actividades que se desenrolam no organismo. Por isso, diz que os animais superiores memorizam pormenores do ambiente e situações concretas e adaptam directamente o seu comportamento a novas condições

do

mundo

exterior,

tal como

os órgãos

do

corpo

desempenham

as

suas funções (pp. 115 e 116). Como um «pensamento» orgânico, processo básico existente nos animais, pelo menos a vermes anelídeos. As definições e concepções amplas, rarefeitas ou nada servem, a não ser para evidenciar a nossa ver, é provável, repito, que animais superiores e

(talvez)

as

aves

possuam

uma

certa

franja

particular os primatas superiores. Mas no homem é provavelmente de outra natureza,

de

partir

do

nível dos

e vagas, para pouco ignorância. A meu como os mamíferos «consciência»,

em

a «consciência de si»

não tem, talvez, paralelo no mundo

animal, ainda que reconheça haver certas semelhanças básicas compartilhadas e de raiz comum, nomeadamente o «pensamento não verbal» (no sentido que lhe deu Koehler) e a que veio depois sobrepor-se e combinar-se com função descritiva consciente

é

apenas

quatro

uma

Por

seu

como

lhe

inconscientes. conjecture»,

ele a auto-reflexão, ligada ao cérebro humano e à da linguagem. O que se apura é que o pensamento

funções

parte

de

chamou)

biológicas:

um

vasto

Popper

Karl

lado,

de

que

dor, prazer,

conjunto

avançou a

consciência

expectativa

de

processos

(«a

a ideia

emergiu

e atenção

(a

wild de

que

me permito acrescentar a memória). E diz, ainda, que a atenção talvez provenha de experiências primitivas de dor e prazer, e que a dor é um fenómeno quase idêntico à consciência. Todas

e a sua

as ideias

origem

e sugestões

escondem

uma

que

se propõem

ignorância 20

explicar

fundamental,

a consciência

Na

realidade,

BIOLOGIA

totalmente

desconhece-se

E

SOCIEDADE —1

e em

até que ponto

que medida

os animais

são conscientes. Podemos conjecturar livremente, mas não saímos da prisão do antropocentrismo, na qual, quanto a este problema, estamos por

Sugerir,

encerrados.

exemplo

feito), que,

já se tem

(como

se o

animal escolhe uma entre várias soluções, particularmente quando essa opção é nova e corresponde a um problema novo, sendo então o animal despertado no seu comportamento e incitado a estar atento, isso quererá dizer

consciência

ele tem

que

da

e dos actos

situação

e escolhas

que

faz. Ou, como disse Popper, quando o animal ensaia a solução de problemas de tipo não rotineiro. Todavia, como todos os organismos, afinal de contas, solucionam problemas, será absurdo pensar, julgo eu, que

um protozoário, uma anémona ou um verme, uma

todos eles, mesmo

peixe, têm consciência, ou seja, percepção do que neles

mosca ou um

se passa e do que intentam fazer.

Também se poderá, claro está, identificar matéria e espírito. Para o zoólogo Bernard Rensch, a matéria tem uma natureza protopsíquica

e a sua evolução equivale à evolução da consciência desde um nível elementar protopsíquico (átomos, moléculas), passando por níveis rudimentares e não estruturados, até ao desenvolvimento de uma autoconsciência cada vez mais completa, cujo grau máximo é atingido no homem. Para outros ainda, o espírito é anterior à matéria e esta é o

seu produto. É, por exemplo, o caso do biólogo e evolucionista Sewall Wright (1964): Mind

is universal,

in their

and

cells, but

present

not only

in all organisms

atomes

in molecules,

and

elementary

particles.

As estão

na

filosofias deste

base

de

Henri

Teilhard

Bergson,

panpsiquismo,

tese

recuo

de

de que

e outros

Chardin tenta

escamotear

as dificuldades de explicar o aparecimento da autoconsciência e das actividades do espírito e, de uma maneira geral, dos processos mentais

nos animais. O filósofo A. N. Whitehead, em 1938, desenvolvera já a ideia de que não só os animais mas também as plantas, as bactérias e a

matéria

inanimada

compartilham

propriedades que estão na base dos

processos mentais (cit. por Griffin, op. cit.). Deste quadro conceptual (identificação de matéria e espírito) resulta o ponto de vista de que os

fisiológicos

fenómenos

e os fenómenos

corpo/alma Mas

um

tal

(nomeadamente

os

que

ocorrem

no

cérebro)

psíquicos são idênticos, e à luz desta hipótese o dualismo

e as

influências

identicismo

não

recíprocas deverá

das

duas

ser entendido

partes como

desaparece.

um

materia-

lismo absoluto (onde os processos psíquicos seriam epifenómenos), mas, 27

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

ao contrário, os seus defensores pensam que «os nossos fenómenos psíquicos são os únicos factos indubitáveis, enquanto a matéria é somente deduzida a partir das percepções com o auxílio de operações lógicas.» (Rensch, op. cit., p. 247).

Está muito generalizada a tendência de explicar o comportamento e o sentir do animal com base no que se passa no ser humano. Um tal antropocentrismo

não

explica

realmente

nada.

É

certo

que

certas

reacções fisiológicas e comportamentais são comuns aos animais superiores e ao homem e legitimam, por isso, comparações e correspondências.

Sendo

as

raízes,

em

parte,

comuns,

poder-se-á

especular

com

equivalências. Em todo o caso, creio que não podemos ir mais longe no estado actual da ciência do que supor a existência de uma consciência grosseira e muito rudimentar nos mamíferos e nas aves (aqui, sobretudo, experiências emocionais)

e talvez, também, nos cefalópodes. Mas

na condição de considerarmos essa consciência primitiva como significando a «inteligência» de um problema ou situação, um experimentar de prazer ou dor, representações do mundo

exterior, etc. Penso que se

impõe a maior reserva nestas equivalências de conceitos, neste projectar do homem no animal. É verdade que os mamíferos experimentam processos psíquicos comparáveis aos que se passam no homem (vêem, ouvem,

têm memória,

sentem

dores, etc.), mas

em

todo o caso existe

um imenso abismo a separar a vida espiritual do homem, a autoconsciência, que parece seu único privilégio, dos processos mentais e subjec-

tivos dos mamíferos e das aves. que

Quanto

aos antropomorfos,

tenham

uma

consciência

em

especial o chimpanzé,

confusa

e

grosseira

da

sua

é provável existência

individual, mas a autoconsciência do homem é algo de radicalmente diferente, é um fenómeno de outra ordem que emergiu provavelmente

na linha evolutiva que conduziu ao ser humano. As reacções de pavor que manifestam os chimpanzés perante cadáveres (de semelhantes seus, ou de outros mamíferos), ou o medo que experimentam perante animais

adormecidos, nada

disso demonstra,

ou sequer indica

claramente,

a meu ver, que eles tenham consciência autêntica da morte. Parecem-me infundadas as afirmações que por vezes se fazem nesse sentido, como, por exemplo, a de que «os chimpanzés têm provavelmente uma intuição

sobre o significado da morte»!

(A. Kortlandt, em Dróscher,

Penso que os seus comportamentos, não só individuais seriam

inteiramente

sentimento

interior

como

1978). sociais,

diversos do que são se acaso neles emergisse e reflexivo

acerca

do

próprio

um

perecimento.

A linha onde se operou a evolução física e espiritual do homem desviou-se de tal modo do tronco evolutivo dos primatas que lhe são mais próximos que se torna muito difícil, diria mesmo impossível, estabelecer

uma

lógica

consistente

de 28

descendência

para

a

enorme

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — I

inovação que foi a autoconsciência profundamente

humana. O saber-se mortal

a diferença fundamental

marca

relativamente aos outros ani-

mais não humanos. É um dos seus sinais de mais profundo significado. 3.

Reducionismo

e determinismo

biológico

Já noutra ocasião me referi aos perigos que resultam de se explicar o comportamento humano recorrendo a um determinismo biológico estrito, ou seja, como resultado último e certo da actividade dos genes, das células, dos tecidos e órgãos que existem em cada indivíduo, e que o próprio comportamento da sociedade equivaleria à soma total desses comportamentos

individuais,

cujas

causas

se

encontrariam

fixas

no

enoma e nos processos físico-químicos elementares do organismo (v. meu 1982). O determinismo biológico explicaria, portanto, o que é e o que faz o homem por um enfiamento de causas que se sucedem as biomoléculas

desde

da hereditariedade,

que

das proprieda-

decidem

des bioquímicas das células, como os neurones do cérebro, até à elabo-

ração das ideias, dos sentimentos, dos actos da vontade, etc. As acções individuais proviriam de propriedades das células e estas dos programas contidos nas moléculas da hereditariedade. A vida social seria a totali-

dade destas acções individuais, por sua vez comandadas pelas moléculas básicas do programa genético. O ideal determinista (materialista mecanicista) estaria aqui realizado. O determinismo biológico é um

prévio

esclarecimento.

fundamentalmente

Na

tipo de explicação que exige um

realidade,

as causas

em

tudo o que

si próprio,

no

faz o homem que

tem

ele é como

ser

biológico, criador de culturas, aberto para o mundo, e nas relações de si mesmo com as circunstâncias que enfrenta. É na sua biologia, durante o seu desenvolvimento embrionário e fetal, que se preparam

as estruturas e funções que mais tarde irão permitir que, por socialização, se faça a edificação do ser humano. Atribuir, portanto, o comportamento social a um determinismo biológico, no sentido de se tratar de uma causalidade que basicamente emana da própria constituição do ser humano, complementada por socialização, é um ponto de vista que não levantaria controvérsia no plano científico, julgo eu. Mas não é neste sentido vago e todavia não falseado que o determinismo biológico deverá

controlo

ser

condenado,

genético

manifestações

mas

sim

quando

e hioquímico-celular

do comportamento

significa

um

estrito e directo

exercido sobre os caracteres

social, em

suma,

que

haveria

e

genes

específicos para esses comportamentos, para o egoísmo, para o altruísmo, para as diferenças entre classes sociais, etc. Ora é este o sentido corrente

da

expressão.

Este

praticado

determinismo

biológico

é

reducionista

e prende-se com a questão mais geral do reducionismo, metodologia em regra associada

ao materialismo

mecanicista. 29

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

O reducionismo é o ponto de vista segundo o qual só se compreende verdadeiramente um fenómeno quando o dividimos até as suas últimas partes, quer dizer, quando

o fragmentamos

até ao mais baixo nível da

sua organização que é acessível à análise. Assim, as propriedades dos conjuntos complexos

(como uma

molécula, uma

célula, um

organismo,

um ecossistema, uma sociedade, etc.) são apreendidas a partir das partes, de que são compostos. Por exemplo, as características das células ou das sociedades seriam a soma das propriedades das suas partes. Para compreender as sociedades humanas bastaria adicionar as características dos comportamentos individuais. E como estes seriam o resultado dos seus genes, a sociedade seria finalmente reduzida e compreendida em termos

de genes e previstas as suas estruturas, modificações e condutas

em função das raízes moleculares que contêm os programas hereditários de cada indivíduo. Devido

ao enorme

sucesso dos

métodos

analíticos,

cada

vez mais

refinados, e também por causa dos êxitos extraordinários conseguidos pela biologia molecular, tem-se assistido à tendência para concluir que em biologia as verdadeiras explicações devem ser procuradas a nível molecular. Mas nem todos pensam assim. Outros há que, pelo contrário,

são da opinião de que reduzir as explicações à raiz física ou química dos fenómenos da vida não contribui para a solução dos problemas

mais importantes da biologia. Mas se estas duas posições extremas são, de facto, de rejeitar, é nas relações entre os factos e teorias da biologia,

e em diversos aspectos da biologia humana e da sociedade, que o reducionismo, na forma de um determinismo biológico estrito, se tem mos trado particularmente

nocivo,

como

suporte

e legitimador

de desigual-

dades, opressões, interesses de classe e atentados à dignidade e liberdade humanas. Como

escrevi noutro lugar, em

1972, a vida do organismo é mais

do que a soma das propriedades e processos que ocorrem nas células ou nas moléculas que o constituem, é mais do que a adição das pro

| ,

priedades das suas partes constitutivas, porque estas interactuam, influenciam-se mutuamente, e destas interdependências resultam novas

propriedades que não existem nas suas partes ou órgãos, células, ete.. quando isoladas. Mas enquanto o reducionismo, como interpretação e solução,

nomeadamente

dos problemas

biológicos

e sociais

humanos,

é de recusar, é importante advertir que como método de análise cient fica é um artifício cujo enorme significado está à vista, com o imenso saber e progresso tecnológico acumulados. Todo o verdadeiro cientista, seja ou não partidário da filosofia reducionista, utiliza esse método nas suas investigações. É o melhor instrumento que até hoje foi inventado para conduzir com sucesso a investigação científica e o melhor

processo de revelar a organização e funcionamento relações

entre

si e com

o ambiente, 30

e portanto

dos seres vivos é as

o método

mais

capas

| |

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —

de contribuir para melhor compreender o mundo e se poderem obter os meios eficazes de o mudar e aperfeiçoar. Mas o reconhecimento do seu inestimável valor nada tem a ver com as suas limitações, perigos e vícios, que aliás são inerentes a qualquer método de análise da realidade. Sobretudo o que não deverá ser confundido é o reducionismo, como instrumento de pesquisa, com as interpretações, teorias e filosofias reducionistas e suas relações com as ideologias construídas à luz desse artifício metodológico ou por ele suportadas. Como justamente lembrou George G. Simpson, um gene nocivo pode estar na origem de uma deficiência mental. Conhecem-se exemplos. Mas a ausência ou presença do gene normal (do seu alelo «são») é que não explicará o funcionamento normal do cérebro. Diversos biólogos se têm referido ao problema do reducionismo na ciência que cultivam. Alguns daqueles que defendem o reducionismo reconhecem que ele tem os seus limites (v., por exemplo, os Medawar,

1983). Por outro lado, a compreensão de um todo nunca é possível, visto que a ciência é selectiva, a pesquisa exerce-se sobre aquelas propriedades dos organismos que oferecem interesse, e sobretudo sobre aqueles processos e estruturas que são acessíveis à metodologia reducionista. O problema do reducionismo apresenta diferentes faces e valores, consoante os domínios nos quais o consideramos. Para Francisco J. Ayala (1974), a questão do reducionismo surge-nos em três espaços diferentes — o ontológico, o metodológico e o epistemológico. Ao discutir o problema, convém distinguir a área respectiva em que ele se insere para evitar mal-entendidos. A grande maioria dos biólogos está de acordo em que os processos físico-químicos subjazem aos fenómenos da vida, nomeadamente a nível atómico e molecular. A nível elementar, as leis da física e da química aplicam-se inteiramente aos processos biológicos que nele se passam. Todos os vitalismos estão hoje em processo de decadência ou extinção na filosofia da biologia desde que se reconheceu que os «princípios» não materiais (enteléquia, «élan vital», etc.) não servem para explicar cientificamente os processos biológicos. Não se aclaram ou dissipam mistérios invocando outros mistérios.

Mas a questão complica-se quando

se consideram

níveis superio-

res de integração (orgânica), onde as leis da física e da química não conseguem explicar (não são aplicáveis a eles) processos biológicos como a selecção natural, a adaptação e tantos outros (v. mais adiante). Mas nem por isso as alternativas ao reducionismo têm de ser os vitalismos. Muitas das críticas ao reducionismo vieram de vitalistas, mas actualmente,

na

biologia,

a

generalidade

dos

anti-reducionistas

não

defende princípios imateriais. São materialistas

(alguns deles apologis-

tas

Lewontin)

do

materialismo

dialéctico,

como 31

Richard

ou

aderem

VE RS

a outros materialismos e são holísticos (organicistas)

stress mag e Na

SACARRÃO

FONSECA

DA

GERMANO

ou emergentistas,

base

em

princípios

vitalistas.

No

presente,

ser

anti-reducionista

Te pj

ou simplesmente biólogos que rejeitam frontalmente as explicações com não

reducionista, sendo por esse facto

UR PPA

derna é profundamente

o

significa que se seja vitalista. À alternativa já não é entre reducionismo e vitalismo. As explicações em biologia exigem de facto mais do que identificações à química. Mas há que reconhecer que a biologia moconsiderada,

muitas vezes, como materialista mecanicista por obedecer à metodologia do reducionismo cartesiano.

toma

o nome

de

materialismo

dialéctico.

Todavia,

de máquina)

e na filosofia

muitos

dos

que

seguem esta última escola afastam-se em muitos pontos do holismo, e a verdade é que numerosos partidários desta última doutrina pouco ou nada têm de comum com o materialismo dialéctico. Mas na prática investigativa nenhum biólogo é, em absoluto, reducionista (mecanicista), nem é completamente holístico. Porém, nas interpretações que elabora, nas aplicações das suas conclusões científicas ao domínio social ou

político,

nas

grandes

sínteses

que

constrói,

ou

no

aproveitamento

rar

e o outro é o materialismo holístico, que na história

RPPN

de trabalho

NEN SP

mos físico-químicos e de reacções mecânicas,

ÇA

Podemos, com Garland Allen (1978), distinguir dois tipos de materialismo. Um é o materialismo mecanicista (explica tudo em ter-

Aí é que se revela a grande influência da sua filosofia básica e inspiradora, do seu método de abordagem

da realidade.

A nível da prática

científica, a maioria dos biólogos não toma, portanto, posições extremas

reducionistas ou anti-reducionistas. Apenas as exigidas pela especialização que cultiva. Biólogos e filósofos comungam na ideia de que a investigação de problemas num dado nível de complexidade exige, de

pa Ra

que delas faz para defesa de ideologias ou filosofias, já não é assim.

facto, a análise de outros níveis do mesmo sistema, quer inferiores, quer

aplicação

RAF

invisíveis à actividade normal dos importa estudar e relacionar, sem compreensão razoavelmente realista

da natureza viva. À nível epistemológico, o problema saber se as leis e teorias com

como o

do reducionismo

numa

consiste em

área ou disciplina

fica serão casos particulares de leis ou teorias de outra plina. No caso afirmativo, dir-se-á que a primeira

cientt-

área ou disci-

disciplina é reduzida

a segunda, que uma ciência pode reduzir-se a outra, que a inclui. Em biologia, a questão está em reconhecer se afinal esta ciência, as suas

teorias e leis, não serão casos particulares das leis físicas ou quimicas, 5º

os

fenómenos

biológicos

não

serão

todos

redutíveis

a

processos

físicos

acne

mundo dos processos e estruturas sentidos (células, moléculas, etc.) o que não será possível obter uma

biológicos

SUTURA a

visível dos fenómenos

sn

o mundo

Pes OP

superiores. Tanto

34

Deere

e químicos; se a biologia é, ou não, uma subárea da quimica e estã, por sua vez, em grande parte, incluída na física 2. À história da ciêncis

BIOLOGIA

está

cheia

destas

tentativas —

E

SOCIEDADE — 1

reduções

e

anti-reduções,

afinidades

e unificações, muitas delas de suma importância. No que respeita à biologia, importa acentuar que a redução desta ciência às ciências físico-químicas não é possível no estado actual dos conhecimentos sobre a natureza viva. É certo que a base da existência de todos os seres vivos é constituída por certas moléculas, como o ADN, o ARN e enzimas, e que da estrutura e actividade destas moléculas parece depender tudo o resto. Isto pode levar à tentação de afirmar que só o estudo molecular dos seres vivos é verdadeiramente significativo para os explicar. Ou seja, que a biologia molecular seria toda a biologia, e com ela poderíamos tentar obter respostas para todas as interrogações. Ora a verdade é que existem numerosos problemas e conceitos em biologia que não cabem nos quadros das leis e fenómenos da física

e da química, ciências, nem exemplo,

não podem

ser definidos em termos próprios a estas

delas poderão vir as soluções adequadas. Refiro-me, por

a conceitos

(e aos problemas

deles decorrentes)

de selecção

natural, adaptação, espécie, ontogenia, população mendeliana, comportamento, relação predador-presa, ecossistema, nível trófico, etc. Mesmo conceitos básicos como o de célula, de órgão ou de organismo não podem ser derivados, concebidos ou definidos à luz de leis ou teorias da

física ou da química, para não referir tantos outros aspectos ligados à evolução dos seres vivos, haver ou não «progresso» na mudança, relações da mente com o mundo, no animal e no homem, etc. A biologia não é pois redutível às ciências físicas e químicas. Esta negação não significa que tenha de admitir-se qualquer princípio vital misterioso, qualquer «princípio organizador» ou «força imaterial», com os quais poderíamos explicar os fenómenos vitais. Mas o que é facto é que os seres vivos têm caracteres e manifestam propriedades que não se encontram no mundo inorgânico ou em qualquer outro sistema que não seja vivo. Apesar desta comprovação, os seres vivos são constituídos rigorosamente pelos mesmos elementos que entram na constituição dos corpos inanimados, e, tal como eles, obedecem às mesmas leis físicas. Todavia, se quisermos abordar o estudo do ser vivo, dividindo-o e analisando cada uma das partes, acontece que as suas características como sistema se perdem. Ora, são estas propriedades do sistema que são irredutíveis à física e à química. Para Ernst Mayr (1982), que atacou o problema do reducionismo em biologia, a análise de sistemas é um

método

válido, mas

as tentativas de uma

«redução»

de conceitos ou de fenómenos puramente biológicos às leis das ciências físicas só raramente, se não nunca, conduzem acerca deles a qualquer progresso sensível na nossa

compreensão,

Acentua,

ainda, a vacuidade,

o carácter ilusório e fútil da abordagem reducionista, o que me parece constituir um Bíbl.

Univ.

49 —

exagero 3

do mesmo

autor. 33

Mas

sejam

possíveis,

ou

não,

GERMANO

reduções,

sejam

problemas

tem

Dobzhansky, Os

elas

DA

FONSECA

completas

certamente

ou

muita

SACARRÃO

incompletas, importância

a

discussão

(v.

destes

também

Ayala

são

claramente

e

1974).

excessos,

defeitos

e perigos

do

reducionismo

apreendidos, por exemplo, com o estudo das adaptações dos organismos (v. meu 1985). O processo da adaptação é daqueles que talvez mais claramente demonstram a impossibilidade total de uma redução do organismo e da evolução aos níveis moleculares.

A

adaptação

tem um

sentido, uma lógica de conservação e continuidade, de cumprimento de um «projecto» obtido por combinação de partes no sentido da sua satisfação, que só um processo de nível mais elevado

( supramolecular ).

actuando sobre variações orgânicas e enfrentando directamente o ambiente, seleccione, reúna e preserve os resultados das escolhas. Este processo é a selecção natural no seu sentido moderno (Simpson. 1969).

Outros casos são o estudo da hereditariedade e do desenvolvimento. Aqui, quando a partir do nível biomolecular se passa para o das sínteses enzimáticas e para os da estrutura

e do metabolismo

celular.

transita-se daquele plano onde o reducionismo compelia a levar tão longe quanto possível as equivalências e causalidades físico-químicas. para o plano «composicional» (Simpson), quer dizer, para a fase da complexidade a partir da qual os fenómenos passam a ser considerados na perspectiva da vida do organismo e das interacções de que é a sede.

Vejamos outros exemplos — dades animais e humanas. São as níveis de integração na biologia. das comunidades ecológicas sem

as comunidades bióticas e as socieentidades que possuem os mais altos Não se pode ensaiar uma explicação conhecermos as espécies que entram

na sua constituição. O mesmo se dá com as sociedades que, para serem explicadas,

é indispensável

conhecer

respectivos. Mas este conhecimento

o comportamento

des

indivíduos

não basta nos dois casos referidos.

Por sua vez, as espécies não são inteiramente explicadas pelos individuos componentes, mas é impossível compreendê-las sem o conheci mento destes últimos. E assim sucessivamente, até aos níveis mais

inferiores, como podem

as células e as partes das células,

ser explicadas sem

irmos

às suas fundações

que

também

moleculares.

não expli-

cação esta que, todavia, também não é completa. Mas o que é verdade do complexo para o simples simples para o lhe chamou o não podem ser celulares e nas espécies ficam

também

o é de

complexo (isto é, na direcção «composicionista», como mesmo autor). Na realidade, os fenómenos moleculares inteiramente explicados pelos que se passam nas partes células, nem os fenómenos que ocorrem ao nível das completamente explicados pelos que caracterizam 25

comunidades ecológicas, mas, por outro lado, também cados sem estas últimas. Quanto

às sociedades Sd

humanas,

não serão explise é certo que

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — 1

o seu comportamento não é a simples soma dos comportamentos individuais, também não parece menos verdadeiro que estes últimos nunca

são inteiramente explicados pela sociedade, mas também não podemos explicá-los sem ela, sem as forças sociais. Isto porque os todos também

afectam as propriedades das partes. Tem sido designado por emergência o fenómeno de aparecimento de novas

propriedades

nos

todos,

que

não

existem

nas partes

respecti-

vas. Popper (1974) diz que vivemos num universo de novidades emergentes, num mundo de evolução emergente, em que as inovações surgidas não podem ser reduzidas a quaisquer estados precedentes. Foi o que aconteceu com o aparecimento da vida, da consciência, do

espírito. George Simpson chama «composicionismo» ao emergentismo, que lhe parece veicular um significado metafísico. O método «composicional» ou emergentista descreve, não explica. Nada tem a ver com o vitalismo e outras metafísicas, e tanto exige o estudo dos todos como o das partes. Trata-se de uma filosofia materialista. Separa-se do holismo

tradicional, materialista,

mas

não

não

da

sua

posições

abraçando

moderna,

corrente

que

é estritamente mais

anteriores,

metafísicas

ou

menos vitalistas. Também é utilizado como seu sinónimo o termo orgaActualmente,

nicismo.

estas designações

todas

afirmam

os todos

que

não podem ser explicados apenas à Iuz da simples adição das propriedades das suas partes, e, mais importante ainda, que o seu estudo deve incidir em todos os níveis, tendo cada nível os seus próprios problemas

e teorias aplicáveis. O «composicionismo» não se opõe ao reducionismo como método, exige-o até. Mas o reducionismo como explicação é muito insuficiente, visto que nos sistemas hierárquicos novos caracteres imprevisíveis surgem nos seus níveis superiores de complexidade. É por isso que os sistemas complexos (como os biológicos) devem ser estudados nível por nível, porque em cada um deles surgem propriedades não existentes nos seus escalões inferiores. Em suma, a biologia tanto é reducionista como «ermegentista», e não

reducionista

como

não

emergentista.

O

reducionismo

extremo

é um malogro porque não dá importância à interacção das partes de um sistema complexo. É necessário ter presente um certo número de princípios. Sem pretensão a ser completo, ou mesmo a fazer um desenvolvimento

desta

questão,

referirei,

em

síntese,

apenas,

os

pontos

seguintes:

1) Um

todo é uma relação de partes que só têm existência real na medida em que as delimitamos no todo, e cujas propriedades nasceram do facto de fazerem parte desse todo, ou seja, das interacções que o definem.

GERMANO

2)

DA

FONSECA

SACARRÃO

Num

todo, cada parte tem, em regra, propriedades diferentes das que apresenta quando isolada do mesmo todo. E o todo que cria essas propriedades das partes. 3) Além da interacção das partes de um sistema, existe interpenetração delas com o todo, porque sujeito e objecto, causas e efeitos, não são entidades separáveis, pelo contrário, alternam. São simultaneamente causas e efeitos, sujeito e objecto (v. Levins e Lewontin, 1985). 4) Os excessos e defeitos do reducionismo podem ser, em parte, remediados equilibrando-os com o «composicionismo», relacionando o ponto de vista químico com o biológico, mantendo

claros os limites e objectivos

destas duas ciên-

cias, mesmo quando ambas se introduzem no estudo do mesmo fenómeno. E sobretudo considerando as várias facetas e interacções desse fenómeno e perspectivando-o em quadros amplos de entendimento. Sendo a natureza viva uma

partes

teia complexissima

em

todos

e entre

de relações

todos

entre

os níveis,

todas

impõe-se,

as

no

estudo de um problema, procurar as interacções possíveis, necessárias à boa compreensão e solução do mesmo pro-

blema.

Redução e «composicionismo» são duas exigências para fazer 0 estudo da biologia, para aceitarmos e apreendermos a realidade da natureza

4.

em

viva

Biologia

e ideologia

e integridade.

aspectos

seus variados

do

Ocidente

Não existe talvez ciência totalmente isenta de ideologia 3 de uma época, ou que não lhe sofra a influência, ou cujas direcções não sejam determinadas por ela. Apesar disso, existe alguma diferença entre «defeitos» próprios da condição da ciência, de esta ser em parte produto

de

condições

vezes

sociais,

distorcida,

e os prejuízos

de justificação

ou

resultantes suporte

de

ela

servir,

tantas

a ideologias.

Talvez seja útil insistir neste ponto. Um dos sinais mais curiosos de certas ideologias e modas intelectuais é a sua pretensão a crédito científico, muitas vezes mesmo a teoria. Para isso amparam-se a uma disciplina da ciência, sustentam-se dela, mas recusam-se à demonstração

científica, à busca, à prova aproveitam

Assim biologia

as

acontece sem

se

do erro. Fabricam

suas

nomenclaturas,

com

diversos sistemas

submeterem

às

mimam

as

e ideologias

normas 36

aparências

da

suas

que

verificação

de

ciênais

exterioridades.

se nutrem e

da

da

neltica

BIOLOGIA

científicas. Quantas

E

SOCIEDADE —

|

ideologias nestas condições não existem, com

ambi-

ções de ampla explicação «científica», a nível da raça, da psicologia, da sociologia, da história, da moral, da condição humana, O mesmo

searam

em

sido o caso

acontece com

modas da

disciplinas da biologia, que se metamorfo-

intelectuais ou em

ecologia

etc,

e sobretudo

ideologias de massa, da

sociobiologia

(forma

como

tem

moderna

e viva do darwinismo social) em tantas das suas levianas transposições para a esfera humana. Tendência que se estende a outros ramos da biologia, numa sorte de cinterdisciplinaridade» ideológica no seio desta ciência. A ponto de a biologia como fonte de mais saber de conhecimento objectivo se confundir com uma «biologia» social e política, que é uma falsificação de ciência. O que Pierre Achard e co-autores (1977) chamaram a «biologização acelerada das questões sociais e políticas». Importa, em suma, distinguir a biologia como sistema de conceitos estruturados nos factos daquela que é utilizada como sistema que se sobrepõe aos factos para servir de garantia a filosofias ou ideologias *.

De resto, não há ciência neutral. À sua pureza é relativa. O facto de os cientistas descobrirem tantas coisas verdadeiras e importantes não significa que tudo o que afirmam em nome da ciência o seja, que não veiculem falsidades, preconceitos, ideologias. Ciência livre de influências políticas, de orientações ideológicas, autenticamente objectiva,

é coisa que não existe. Se confundir ciência e ideologia é sempre um

mal, a verdade é que a primeira não consegue libertar-se inteiramente

da influência da segunda. As convicções sem prova, típicas das ideologias, têm uma força enorme, e são elas muitas vezes que guiam a pesquisa e a desviam para caminhos estéreis ou viciados, ou barram

o caminho à crítica e ao livre exame. À ciência é orientada em regra

para objectivos

de acordo

com

os interesses, as ideologias, as culturas

das classes que detêm o poder. E que o os resultados da sua própria ciência em sua própria ideologia, ou a da classe a cunstâncias em que chega a deformar ou de outrem)

com

justifiquem. O cientista utiliza harmonia, muitas vezes, com a que pertence. E então há ciras conclusões científicas (suas

consciência, ou não, dessa alteração. Num

universo

social totalitário, ou numa civilização fortemente influenciada pela religião, a ciência toma feições e desenvolvimentos diferentes daqueles que surgem em países que oferecem largas possibilidades à discussão livre, à investigação

fundamental

e à aventura das ideias. À ciência,

de facto, é sempre relativa, raramente ou nunca é neutral. O poder político domina-a, infiltra-se nela, é constantemente inspirada pela ideologia, comandada por ela. À inseparabilidade da ciência em relação à política é particularmente evidente quando a pesquisa ou a interpretação à luz da ciência respeita ao homem. É a ideologia burguesa marcou profundamente a ciência moderna, quer lhe tenha servido de veículo, quer de suporte.

reage

37

GERMANO Os

cientistas

têm

DA

as

e religiosas, que amiúde

FONSECA

suas

SACARRÃO

ideologias,

decidem

as

suas

das suas opções

crenças,

políticas

por este ou

aquele

ponto de vista, determinam em parte o sentido das hipóteses que formulam

e, sobretudo,

estão, em

das resistências que opõem (v.

Barber,

1961).

Na

grande

número

de

casos,

na

às novas teorias e descobertas

realidade,

o homem

de

ciência

origem

científicas dificilmente

escapa à influência dos valores da sociedade em que se insere e foi educado e à ideologia da classe social a que pertence. Perante os mesmos factos, os cientistas manifestam opiniões opostas e extraem conclusões absolutamente antagónicas das mesmas experiências e observações. Numerosos biólogos opuseram-se com vigor à teoria da evolução, em particular ao darwinismo, quer na sua forma tradicional, quer moderna. Houve (e há) grandes resistências à teoria da selecção natural.

A

teoria

cromossómica

da

hereditariedade,

a teoria

do

gene,

foram igualmente alvo de fortes ataques e rejeições. Ainda nos anos 20 e 30 havia professores de Biologia que manifestavam fortes dúvidas sobre a realidade dos cromossomas, a sua integridade, o seu papel de veículos

dos factores

hereditários,

etc. Durante

muitos

anos,

a teoria

da hereditariedade dos caracteres adquiridos foi admitida mais por razões de crença do que por argumentos científicos. Este fenómeno de oposição de fundo ideológico continua vivo. As filosofias e políticas

a que os cientistas aderem continuam a influenciar as conclusões dos seus trabalhos, as rejeições ou simpatias que exprimem pelas novas ideias, e a determinar múltiplas contradições que nascem nos seus espíritos. À ciência não é separável da ideologia. Teorias biológicas, por exemplo, sobre a origem da vida, sobre as causas das adaptações, os factores

da

evolução,

origem do homem,

o papel

da

etc., recebem

hereditariedade

ou

do

resistências ou acerbas

ambiente,

a

críticas que

muitas vezes nada têm a ver com a objectividade científica, mas antes

com as ideologias de cada opositor. Grandes nomes da ciência têm exprimido fortes objecções ou mesmo rejeições absolutas de factos e de teorias científicas meramente

(ou predominantemente)

por razões ideo-

lógicas. Em cada época existem certas áreas da ciência que predominam, que atrofiam outras, ou exercem forte influência sobre os seus modelos

explicativos. Muitas vezes é uma questão de moda, mas noutros casos à supremacia resulta da sua maior importância social, do seu significado industrial, económico

e financeiro

(exemplo

da biologia

molecular,

da

engenharia genética, da ecologia), do seu suporte à ideologia do poder, etc. De modo que uma área científica dominante tem tendência a definir

os modelos,

as hipóteses

e os conceitos

de

outras

áreas

ou

disciplinas. Actualmente, na biologia prepondera a biologia molecular, ou seja, a «biologia do invisível» *; e a biologia evolutiva, que é sobre-

tudo a biologia da mudança, da adaptação e da diversidade das estru38

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —1

turas e fenómenos acessíveis à actividade normal dominada pelos conceitos, factos e pressupostos que

dos sentidos, é respeitam à pri-

meira, e valem para ela. Ernst Mayr (1982) tem razão ao chamar a atenção para o grande perigo que existe quando explicações válidas no

âmbito de certas ciências são aplicadas a situações ou problemas para os quais são completamente inadequadas. Isto tem a ver, também, com o problema do valor das explicações baseadas em analogias, que, se em certos casos se revelam

eficazes,

por

via de regra

conduzem

a falsas

e

grosseiras interpretações. Não oferece lugar para dúvidas que o espírito geral de uma época (o Zeitgeist), assim como as filosofias predominantes, as estruturas socioeconómicas existentes, as ideologias de classe, os interesses dos grandes grupos económicos, etc., têm influência sobre o desenvolvimento da ciência, sobre as suas orientações, as áreas que dominam, as teorias que se estabelecem. É, todavia, talvez que a generalidade dos cientistas, nomeadamente

dos biólogos, não atribua significativa impor-

tância a esse facto. Negam que o progresso da biologia esteja dependente de modo expressivo da acção de factores sociais. À biologia, e a ciência em geral, seria algo que pairaria acima do jogo das forças que regem a sociedade, mantendo,

assim, a sua pureza objectiva como instrumento

de procura e encontro da verdade, impermeável às ideologias conspur-

cadoras. Seria o produto da pura actividade do espírito, estranha às exterioridades. A continuação do ideal grego. Os factos mostram, contudo, à saciedade, exactamente o inverso. Se é amplamente reconhecido que a biologia

não

trabalha

mesmo os que proclamam está provado

num

vazio

social, como

aliás o admitem

a sua imaculadidade e independência, e se

que as crenças e filosofias de cada cientista influenciam

vincadamente as suas opções, hipóteses e conclusões, forçoso bém reconhecer que a ideologia de um grupo social ou de uma pode deixar de marcar profundamente a ciência, em especial dos problemas, as teorias elaboradas, as conclusões extraídas vações. Mas não devemos

cair em excessos. Nem

será tamépoca não a escolha das obser-

a ciência progride como

um universo fechado sobre si mesmo, apenas movido por factores pertencentes ao seu próprio âmbito, nem as forças sociais são os únicos agentes no processo. Nem devemos negligenciar nem agigantar outras causas, entre as quais se situam, por exemplo, as posições individuais dos cientistas, as suas ideologias, culturas e psicologias, a que aludi há pouco. Charles Darwin constitui um exemplo significativo. Sem dúvida que na génese da sua teoria entraram múltiplos factores e não apenas a sua posição de classe. À viagem do Beagle, o que durante ela observou em

terras

escolheu,

exóticas, a

maneira

as meditações como

tudo

suscitadas, isto

se

os autores

reflectiu

no

seu

e leituras espírito

que e

o

modo original (e genial) como este reagiu e construiu novas e fecundas 39

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

ideias, teve uma importância decerto considerável na elaboração da teoria darwiniana, não sendo legítimo reduzir a sua obra a uma sim-

ples aplicação à natureza viva do laissez-faire, do individualismo económico característico do sistema capitalista, ainda que não possa negar-se

a sua importante quota-parte para o desenvolvimento darwiniano e como reflexo e justificação de uma

do pensamento

sociedade e dos valo-

res de uma classe em plena ascensão. As considerações precedentes, particularmente no que respeita as influências das ideologias dos cientistas como entraves ao progresso científico, ou como fontes de «má» ciência, não devem criar a ideia

falsa de que eles são pessoas sem «espírito aberto». Pelo contrário, creio que entre os cientistas esta qualidade continua a ser um valor incontestável e frequente. As resistências às inovações, as oposições e influências

ideológicas os defeitos tantas vezes os escalões

ou religiosas, são obstáculos importantes, assim das especializações excessivas, ou o peso da nefasto e devastador, imposto pelos cientistas superiores das hierarquias universitárias ou

como o são autoridade, que ocupam dos grandes

centros de pesquisa. Creio que no âmbito das ciências exactas e experi-

mentais a aceitação é maior do que a resistência e que tanto ela como a objectividade são maiores do que noutras áreas, por exemplo, nas áreas das ciências sociais e humanas. O desenvolvimento da ciência

moderna aí está para o demonstrar. Mas torna-se indispensável alargar o espírito antidogmático e incrementar a vigilância e actuação crítica. Os esforços deverão convergir para reduzir ao máximo a resistência que ainda existe. É um facto que a «abertura de espírito» e o livre exame continuam a ser normas dominantes em ciência, e a crítica livre e a competição entre ideias permitem pôr à prova conceitos e teo-

rias e a submeter hipóteses refutáveis à prova

de erro. O ideal seria

tomar a natureza física e biológica como ela é, ou a natureza social e individual do homem e o seu comportamento em sociedade tal como são, sem nessas naturezas projectar as nossas políticas, os nossos dese-

jos, os nossos valores. É o que pretendem Barber e tantos outros autores, sobretudo aqueles, que formam provavelmente a maioria, que acreditam e proclamam a neutralidade estreme da ciência. É a utopia da objectividade absoluta, que é coisa que não existe, ao que me parece. Em áreas como as das ciências sociais e humanas, as teorias não

passam muitas vezes de pontos de vista consolidados por uma selecção de elementos da realidade que lhe são aparentemente favoráveis, e na escolha de factos ou teorias biológicas convenientes para caucionar a ideologia

subjacente

ou

em

vista,

com

isso

se

constituindo

que poderá chamar-se uma «biologia justificatória». As incontestáveis virtudes da ciência, produto supremo

aquilo

a

do espírito

humano e sua glória, não devem fazer-nos esquecer as suas fragilidades, 40

BIOLOGIA

as suas

utilizações,

a fazerem

E

SOCIEDADE— 1

dela

instrumento

de poder

e em

acordo

com o poder político. As universidades e outros grandes meios científicos criam uma aristocracia do saber e uma ideologia de dominação que, ao mesmo tempo que suportam o poder político e as suas instituições, se distanciam dele para melhor garantirem as suas aparências de pureza

e de objectividade. Este facto acontece em todos os regimes, mas é particularmente nefasto nos regimes totalitários, porque nas democracias pluralistas a existência de poderes e contrapoderes legitimados servem de são correctivo a esse pendor. À ciência faz parte do corpo social, desenvolveu-se nele e não escapa aos nexos, às contradições e aos

movimentos

produzidos pelas forças sociais. Aliás, a ciência criou a

sua própria ideologia, nova religião a que é costume chamar cientismo (o reducionismo é o seu mito fundamental), credo fortemente enraizado em todos os países do mundo, capitalistas ou ditos socialistas, em desenvolvimento ou desenvolvidos. O cientismo é uma ideologia de

poder, moral,

de certezas, O único a filosofia, que tudo

conhecimento verdadeiro, que abarca a invade, num reducionismo absoluto que

tudo pretende explicar e dominar.

O credo assenta em vários mitos que

são outros tantos erros. O cientismo é provavelmente uma das ideologias mais poderosas e perigosas da nossa época, que alimenta toda a ideoloia política moderna, burguesa ou marxista vulgar. Constitui um

«sólido fundo comum à ideologia capitalista e à ideologia comunista sob em

a forma

vigor

na

parte

maior

(Jaubert e Levy-Leblond, 1975). Parte da ideologia do Ocidente,

rectilíneo

à custa

da ciência

dos

com

socialistas»

chamados

países

a sua noção

de progresso

servido de inspiração

e da técnica, tem

ao estudo do reino animal. Os conceitos competitivos e capitalistas for-

jados pela civilização ocidental têm sido confundidos ou assimilados à

natureza ou sancionados luz

de

uma

visão

por esta. Esta natureza, antropomorfizada

económico-concorrencial

e

de

progresso

sem

à

fim,

serve, depois, para explicar o homem ocidental, a sua civilização, os seus valores, a sua condição social. Cultura ocidental, natureza, darwi-

nismo social, moderna teoria genética da evolução, biologia molecular, teoria do código genético, ecologismo, e, finalmente, a sociobiologia são partes de um mesmo todo complexo. Marshall Sahlins (1976), que analisou de perto este problema,

afirma, não sem razão, que se «Adam

Smith produziu uma versão social de Thomas Hobbes, Charles Darwin deu-nos uma versão naturalizada de Adam Smith; em seguida, William

Graham Sumner reinventa Darwin como sociedade e Edward O. Wilson reinventa Sumner como natureza. Desde Darwin, o movimento pendular conceptual acelerou-se. Cada década dá-nos uma noção mais refinada do homem como espécie, e também uma mais refinada espécie de “selecção natural” como homem.» E mais adiante o referido autor acres41

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

centa ainda que lhe parece não sermos capazes de nos libertarmos do perpétuo movimento de vaivém entre «a culturização da natureza e a naturalização da cultura».

Assimilar o mundo da natureza ao mundo da sociedade e vice-versa é uma

forte tendência dos homens

de todas as épocas, mas

introduzir

levianamente essa noção na análise e interpretação científicas é lançar a confusão e levantar obstáculos à compreensão de uma e outra. Já na concepção medieval do mundo a hierarquia de uma sociedade estática se reflectia na hierarquia do próprio universo. E muitos animais serviam, por exemplo, de modelos de força moral, como a formiga com

a sua vida laboriosa e activa, o leão com a sua coragem, o pelicano com a sua abnegação, etc. (cf. Bernal, 1969). As fábulas como género literário, onde os protagonistas são animais, traduzem desde a antiguidade o mesmo pendor, e não faltam testemunhos de que os homens sempre inventaram culturas influenciadas pelas suas ideias sobre a natureza, ou que a imagem que tinham desta reflectia em maior ou menor grau os seus costumes e modos de vida. A ideia de uma sociedade estagnada, imutável, dominada por classes conservadoras e reaccionárias, impõe ou sugere uma natureza que não muda, favorece a eclosão e desenvolvimento de ideias que

apontam para a existência de um universo fixo, hierarquizado, concep-

ção esta que, sob forma teológica, filosófica ou de teoria científica, se harmoniza

com

a estrutura

social e política. Ajustam-se

e mutua-

mente se justificam. Se no passado era a teologia, agora são certas teorias científicas no âmbito da biologia que caucionam sistemas reaccionários e/ou totalitários. À própria teoria da evolução e os modernos estudos

sobre

o comportamento

e, acima

de

tudo,

a selecção

natural,

que entretece todas as ideologias que se apoiam no darwinismo clássico ou actualizado, se servem, é certo, um modelo de sociedade em mu-

dança, podem justificar também políticas de submissão e atropelos à liberdade e dignidade do homem. Humanar

a natureza

e naturizar

o homem

parecem-me,

assim,

duas tendências inevitáveis, existentes com maior ou menor intensidade desde as nossas origens, tendências que não desapareceram com o advento da ciência moderna, antes se acusaram e tomaram nova dimen-

são, sobretudo a partir da altura em que a explicação teológica do homem e da sociedade foi substituída por uma ideologia biológica, que, como

toda

a ideologia,

corresponde

a um

sistema

de

crenças,

a uma

concepção do mundo em dada época e lugar, nutrida ou inspirada por valores,

tradições

socioeconómicas

(ou

sua

e culturais

negação),

dos homens

revoltas,

desse

desejos,

intervalo

e

condições

histórico.

As

grandes teorias biológicas são como todas as teorias científicas — transformam-se

com

o tempo,

têm a sua história e não são estranhas, 42

nas

BIOLOGIA suas

formulações,

às

ideias

E

SOCIEDADE —

dominantes

na

sociedade,

aos

seus

movi-

mentos de fundo e às relações económicas predominantes. Isto em nada diminui as virtudes da ciência, como meio de acesso ao conhecimento objectivo, a sua coerência lógica, os seus métodos, o seu antidogmatismo, o seu carácter inacabado, a sua renovação permanente, a sua ousadia e prudência combinadas para duvidar e rever, para evidenciar erros, para comprovar ou questionar a imagem provisória conseguida da realidade. A maior cautela se impõe, portanto, quando se pretende caucionar com a biologia as ideias e factos políticos e sociais. Nestas tentativas nem sempre o errar é inocente, há por vezes especulação fraudulenta, noutras verificam-se exageros, falsas analogias, metafísicas ocas, generalizações abusivas, etc.

O respeito que ainda merecem a ciência e os seus métodos de pesquisa serve de salvo-conduto para avalizar filosofias e políticas que. se são muito respeitáveis em si mesmas, já não o serão se desse passo as considerarmos mais «científicas» ou «verdadeiras» do que outras não dispondo de tal abonação. O que me parece fecundo é a crítica das ideologias e filosofias à luz das aquisições científicas, e não tanto

o simplesmente creditá-las por estas, e sem se esquecer o facto fundamental de que o conhecimento científico apenas abraça uma

área rela-

tivamente reduzida das questões e factos que interessam aos homens,

não se negando, portanto, de modo nenhum o alto valor da especulação filosófica, cujas virtudes são inegáveis, como meio de o espírito humano obter aquela profundidade e liberdade de imaginação e de crítica que o rigorismo

e limitação

científicas

não permitem,

em

regra,

atingir.

Adopto, em boa parte, as ideias de Bertrand Russell sobre as relações da filosofia com a ciência. Disse ele que «a filosofia consiste em especulações sobre matérias acerca das quais ainda não é possível obter um conhecimento rigoroso», que «ciência é o que nós conhecemos e filosofia o que não conhecemos». Mais adiante, perante a questão que lhe foi posta por Woodrow Wyatt («para que serve a filosofia?»), Russell responde dizendo que a filosofia tem realmente duas utilidades. uma delas sendo a de manter viva a especulação «sobre coisas que ainda não são susceptíveis de tratamento científico; no fim de contas, o conhecimento científico apenas abarca uma parte muito reduzida das coisas que interessam a humanidade,,.» Alargar a imaginação no campo das hipóteses explicativas do mundo é uma das utilidades da filosofia, mas para B. Russell há ainda outra igualmente importante, que consiste em «mostrar que há coisas que pensávamos conhecer e que não conhecemos. Pensar em coisas que poderemos vir a conhecer e por outro lado verificar modestamente o quanto se assemelha a saber e não é saber» (v. Russell, 1960). 43

GERMANO

5.

Ideologia

e origem

DA

da

FONSECA

SACARRÃO

biologia

Outro aspecto respeita as próprias origens da biologia moderna e à influência que a ideologia burguesa parece ter tido nela e no seu desen-

volvimento, a partir do século xvit. É certo que é em grande parte convencional marcar uma época precisa para o começo da biologia como ciência. Por outro lado, parece mais correcto dizer que a biologia nasceu logo no começo do século xix (a palavra «biologia» foi aplicada pela primeira vez em 13800 por Lamarck e Treviranus), mas as suas características como ciência estruturada firmaram-se após o meado do mesmo século, em pleno sucesso da revolução industrial. Seja como for,

burguesia e ciência estão intimamente ligadas, pelo que se justifica partirmos de uma fase mais precoce das suas mútuas influências. A sociedade burguesa, que se originou no seio da sociedade feudal, baseia-se numa visão mecânica do mundo e das coisas (a máquina é o seu símbolo), visão que atinge o seu auge no século XIX com a revolução industrialº do maquinismo, servida e promovida pela ciência, e que nas modernas sociedades industriais continua ainda em pleno desenvolvimento e expansão !. Não é mera coincidência se o relógio mecânico surge e se desenvolve com a emergência de nova classe — a burguesia. Em 1863, numa carta a Engels, Marx diz que «o relógio

é a primeira máquina automática aplicada a fins práticos; toda a teoria da produção e da regularidade do movimento

foi graças a ele que se

desenvolveu». Mas a influência do relógio mecânico (que data do século xr) foi ainda mais longe e mais fundo — ele é o modelo de todas as máquinas e automatismos sociais e não apenas da regularidade

e disciplina do trabalho e produção no âmbito da fábrica *. Para a mentalidade burguesa, o mundo é feito de coisas dispostas numa

certa ordem, com materiais a explorar, a manipular,

a submeter

e a traficar. A eficácia, o cálculo, a clareza da razão e a incessante procura de lucro fazem parte do ideal burguês. A natureza e a humanidade são fonte de matérias-primas

que há que extrair, transformar,

manufacturar para vários fins práticos de poder e enriquecimento da nova classe. As relações humanas orientam-se sobretudo pela utilidade e pelo lucro, e a própria moral reflecte esses padrões de valor. Esta ideologia era certamente incompatível com o sobrenatural, a mística e o teológico, que governavam a sociedade feudal e a mantinham coesa, estática e rigidamente estruturada e hierarquizada. Tudo nela estava

subordinado

à fé, à tradição, ao poder divino. Mas

para

a ideologia

burguesa o mundo é movimento, é uma máquina, e, como ela, formado por um conjunto de peças. Para compreender o mundo faz-se o mesmo que à máquina — desmonta-se, desunem-se as peças e estudam-se separadamente.

Um

tal mundo

oferece-se aos homens 44

activos, engenhosos

e

BIOLOGIA empreendedores.

reguladas benefícios.

O

trabalho

e articuladas Novos

E teve

para

meios

SOCIEDADE —

de

obter

de

ser

organizado,

sempre

navegação

maior

são

as

actividades

eficácia e maiores

inventados,

atende-se

ao

espaço, mede-se o tempo. O mundo alarga-se com a descoberta de novas terras e de novas gentes, com

outros costumes ?. Ao homem

contempla-

tivo da idade feudal sucede no Ocidente o homem inquieto, arrojado e inventivo. O livro impresso tornou os conhecimentos mais facilmente

acessíveis (outrora um monopólio de classe). As lentes ampliadoras permitiram a construção do microscópio e do telescópio. Tudo isto abriu a via

a novas

tecnologias,

novos

maquinismos

e novos

saberes.

For-

mou-se na ideologia burguesa a imagem do universo como uma máquina, modelo que de tal modo se radicou nos espíritos que passou a representar a própria realidade, visto que a ciência se desenvolveu no

século xviI e seguintes à luz deste paradigma (mecânica galilaica, cartesianismo, revolução newtoniana), e com o teste da prática e à luz

(Francis Bacon) º.

da experiência

Rose e Kamin

Lewontin,

abordaram, recentemente, este problema

e dizem, com razão, que, se por um lado a visão burguesa da natureza influenciou a ciência, esta marcou também profundamente essa mesma

visão do mundo

natural. A influência desta imagem

fundamentalmente

exprimiu-se

que,

física,

na

sobre a ciência os

segundo

mesmos

autores, se desenvolveu e se organizou segundo certos princípios redu-

cionistas basilares. A emergência da física moderna (Galileu, depois Newton) «atomizou o mundo natural, impôs-lhe uma ordem» e reduziu-o a um «mundo de massas absolutas e interactuantes segundo leis invariáveis

tão

regulares

como

um

mecanismo

de relógio».

A emergência da biologia moderna nasceu sob a influência da mesma visão mecânica e automática do mundo que a física tinha consagrado e que correspondia à mentalidade burguesa e a legitimava. O seu impulsionador foi René Descartes (1596-1650). À sua física e a sua biologia são puramente lista da época

sobre o mundo,

mecanistas, Para

na esteira da visão fisica-

Descartes, os animais

e os homens

eram também simplesmente máquinas. O mundo da matéria bruta e da matéria animada foi por ele comparado a uma máquina (bête machine ),

mas tinha de haver uma certa ligação entre o homem puramente mecanico, movendo-se segundo princípios físicos, e a sua vontade e espírito racional habitando no seu interior, o que foi resolvido por ele de forma extraordinária. Afirmou com a maior seriedade e convicção que a alma

se alojava numa pequena glândula — a glândula pineal — situada no cimo do encéfalo. Seria aí a sede, ou pelo menos o ponto de entrada da alma (J. D. Bernal). Por estranho que pareça, há hoje neurocientistas que apontam não só para um tal dualismo corpo máquina-alma,

como o solucionam

à maneira cartesiana 45

(ver o cap. Xi no 2.º vol.).

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

E mesmo para Karl Popper a estranha ideia de Descartes de localizar a alma na glândula pineal não lhe parece absurda. Em 1974 escreveu: 1 also suggested that Descartes's conjecture that locates the human soul in the pineal gland may not be as absurd, as it has often been represented. Voltando

a Descartes, o corpo

de um

animal

ou

de

um

homem

é para ele «como um relógio ou qualquer outro autómato (isto é, qualquer outra máquina que se mova por si própria)». Foi esta imagem cartesiana do mundo análogo a uma máquina que veio a dominar na ciência e «a actuar como uma metáfora fundamental a legitimar a concepção burguesa do mundo» (Lewontin et al.). À máquina simboliza as novas relações de produção da burguesia, e com o modelo mecânico que Descartes aplica aos animais e ao homem fica completada a imagem física do mundo, até aí abrangendo apenas a matéria inanimada. As consequências desta extensão à natureza viva foram múltiplas. A total separação do corpo-máquina da alma acantonada na glândula pineal permitirá doravante aos cientistas trabalharem sem serem perturbados por obstáculos de natureza religiosa, visto que passará a haver

duas entidades bem distintas na natureza — a matéria, sujeita às leis mecânicas

da física, e a alma

(ou espírito), entidade

imaterial criada

por Deus, a comandar o corpo no seu habitáculo — a glândula pineal. Este dualismo teve as suas vantagens. Tendo sido cuidadosamente concebido, não suscitou ataques teológicos

(ainda

que

houvesse

violentos

protestos das universidades), e mesmo em vida de Descartes foi aceite na França católica. Diga-se de passagem que o dualismo cartesiano não

se assemelha ao dualismo escolástico. À sua influência no pensamento

científico e filosófico em França é um tema discutido, que não interessa

desempenha uma função observável, cado pela soma das partes, dos seus respectivas propriedades. Tendência sabemos, porque se explica o ser

e o conjunto, o organismo, é explimais pequenos constituintes e suas nitidamente reducionista, como já vivo-máquina em termos das suas

peças (órgãos, células, moléculas) que o compõem. Mas o modelo mecânico não deixou de apresentar dificuldades, e muitos aspectos do ser vivo ficaram inexplicáveis. À existência de uma alma no homem ajudava

a resolver os problemas, e quanto

aos animais

havia

o recurso

à vontade divina, que presidia à harmonia do universo e lhe regulava os movimentos. O dualismo foi, portanto, a solução cartesiana, e a 46

im

as

suas partes (órgãos), e cada parte é estudada separadamente. Cada uma

iene rá

desarticulando

pa AR aa pr des

os seres vivos

pt

estudam-se

o eU à 00 Pe

se faz nas máquinas,

Ae

como

tmemerva

abordar aqui. O modelo mecânico foi prontamente aplicado aos seres vivos. Tal

BIOLOGIA verdade

é que,

sob uma

E

forma

SOCIEDADE — 1

ou outra, persistiu

até aos

nossos

dias,

inclusivamente em casos de pretendidos materialismos (reducionistas), e em concepções do homem-máquina, onde é forte a tendência de introduzir um componente metafísico na explicação do ser humano e da

natureza viva. À razão deste facto parece residir numa recusa praticamente

universal, mais ou menos

transparente, em

considerar

o homem

apenas como um conglomerado de moléculas em movimento. Seja como for, desde Descartes que o dualismo infecta e atormenta o pensamento ocidental. Mas diga-se de passagem, e na sequência do contexto anterior, que nem todos os biólogos são dualistas ou estritamente materia-

listas-reducionistas,

a

quer dizer, considerando, nesta última posição,

consciência e o espírito como

simples epifenómenos, a exprimirem

um

conjunto de actividades do próprio cérebro. Bernard Rensch, por exemplo, não distingue matéria de espírito e pensa que toda a matéria é de natureza protopsíquica. Esta ideia do espírito a penetrar a matéria, a confundir-se, a identificar-se com ela, encontra-se, a meu ver, noutros evolucionistas, como em Teilhard de Chardin, por exemplo. E no fundo

não será esta metafísica que estará implícita em, pelo menos, alguns materialismos absolutos? Uma das consequências do dualismo foi tornar compatíveis a teologia e o materialismo reducionista, apesar dos violentos choques

que por diversas ocasiões ocorreram entre a Igreja e as filosofias e biologias materialistas, e dos predomínios que uma ou outra destas posições

opostas obtiveram, consoante as vantagens que ofereciam em cada fase

histórica. Mas a compatibilidade dos dois credos revelou-se útil à ideologia

das

dualidade

classes

dominantes

matéria/espírito

burguesas

permite

físicos, como máquinas, e ao mesmo

e ao

capitalismo

tratar os homens

como

porque

a

objectos

tempo confere fé na imortalidade

da alma, esperança de salvação e de compensações divinas (a bem-aventurança no Céu) para as misérias e injustiças sofridas, e um permanente medo de castigos para os pecados !!. O dualismo persiste, continua a emergir sob várias máscaras. A biologia continua marcada por um forte determinismo reducionista. cuja expressão talvez mais extrema seja revelada na sociobiologia. Neurofisiologistas de nomeada proclamam a existência de uma região do cérebro em comunicação directa com o espírito (conscious self), e à

qual obedeceria toda a maquinaria cerebral 2. Quanto aos sociobiologistas, afirmam que, para além do império dos genes, existe no homem uma

vontade

livre, um

querer.

Estas hipóteses-cedências

são perfeita-

mente justificadas porque os determinismos reducionistas criam, quando aplicados ao corpo social, dificuldades enormes no sentido em que, por exemplo, retiram qualquer responsabilidade aos homens pelos seus

actos, considera-os simples autómatos dirigidos pelos genes, absolve os criminosos

e os tiranos,

etc. De

maneira 47

que

os sociobiologistas,

como

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

E. O. Wilson e seus seguidores, declaram que o homem possui livre-arbítrio, guarda o poder de dirigir livremente as suas acções. Em suma, que é livre de actuar contra as imposições dos seus genes. Mas estas renúncias estão em contradição com a doutrina sociobiológica, são pseudo-abdicações. São formas de dualismo cartesiano. O reducionismo

conduz,

assim,

inevitavelmente,

aliás

bem

Se as sínteses interpretativas da natureza viva e do homem

con-

vincaram os autores atrás apontados É. tinuarem

a ser realizadas em

termos

ao

dualismo,

reducionistas,

como

ou seja,

atendendo

a que as causas residem nos seus mais pequenos constituintes, seremos conduzidos a falsas interpretações e à elaboração de teorias incorrectas

sobre o ser humano e a sociedade. Teorias que caucionam racismos, discriminações sociais e servem de suporte pseudocientífico a múltiplas formas de perseguição e aviltamento. Porque o corpo do homem (e o dos outros organismos) não é simplesmente um mosaico de partes e acções derivadas cada uma delas de outras partes da sua constituição hereditária

(genes) —e,

de modo

semelhante,

a sociedade

não

é a soma

dos

comportamentos dos componentes individuais, nem estes são redutíveis a genes ou conjuntos de genes particulares, nem somos seres em parte biológicos, parte sociais, mas, ao invés, somos simultaneamente biológicos

e sociais,

com

negação

frontal

do

programa

reducionista,

que

atomiza o ser vivo, separa as causas e isola os efeitos, o que leva à elaboração de teorias comprovadamente falsas ou absurdas, quando nessa base se elaboram as sínteses. À metodologia da ciência exige que o processo de análise seja permanentemente acompanhado por verdadei-

ras sínteses, quer dizer, que não se tomem as abstracções (a que conduz o pensar reducionista) rica e complexa.

pensável

para

por toda a realidade, que é infinitamente mais

O reducionismo é uma

a pesquisa

científica,

estratégia e metodologia

mas

como

A larga aceitação do reducionismo como uma

filosofia

é um

indis-

erro.

filosofia credível resulta

do facto de a ciência ser tecnicamente reducionista. Para Viktor Franki o reducionismo é hoje uma máscara para o niilismo, é ele o verdadeiro

niilismo O

(eit. por W.

magquinismo-reducionismo

científico-industriais

logia,

H. Thorpe,

propósitos

(burguesas

e legitimações,

1974).

caracteriza ou

as

totalitárias)

da

sociedade

modernas

sociedades

herdeiras

na sua ideo-

burguesa

tradicional.

Com meios imensamente mais poderosos, as modernas classes dominantes prosseguem cada vez com mais eficácia na sua tarefa de extrair, separar e transformar os recursos da natureza viva e inanimada com vista a retirar sempre maiores utilidades e benefícios para satisfação dos interesses dessas mesmas classes. Os próprios seres humanos não escapam a esse movimento, no qual são tratados como objectos físicos lucrosamente trados

ou

utilizáveis, susceptíveis de serem

transformados

pelas minorias 48

que

convenientemente

tomaram

e detêm

ades-

o poder.

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — T

Ora a biologia continua a modelar-se por uma visão da natureza que engloba o antigo paradigma mecanista divisor e dualista, reforçado pela

visão

darwinismo

competitiva,

da

e reducionista,

pela

sociobiologia.

natureza

caução para a mesma

Como

é feita em

resses das classes dominantes;

pelo

século

reduto

onde

«a inter-

as filosofias

e inte-

construída serve de

sociedade, e de base para a explicação da condição

Charles

em

com

e depois a imagem por

Darwin

escrevi noutro lugar,

consonância

humana» (v. meu 1982). Com a teoria da evolução último

caucionada

(cujas raízes se podem situar em Thomas Hobbes) e mais

recentemente pretação

exploradora

meado

ainda

do

selecção

se refugiava

x1x

foi

natural

sustentada

fortemente

o cristianismo

como

abalado

por o

ideologia

dominante da sociedade ocidental, de modo que a caução para a ideologia burguesa e para a ordem social dominante já não podia firmar-se na religião, mas sim só na ciência, de modo que esta, e, particularmente,

a biologia, passaram então a ocupar inteiramente o domínio da teologia e o espaço do sagrado. À teoria da selecção natural, o reducionismo

fisiológico e a biologia molecular (com o geneticismo) constituem hoje, e mais do que nunca, os pilares fundamentais de uma biologia mecânica, materialista e atomizada, em perfeita harmonia com a sociedade

dade)

Bibl.

científico-industrial

dos nossos

dias, cada uma

a influenciar e a reflectir-se na outra.

Univ. 49 — 4

49

(biologia e socie-

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

NOTAS

1 As evidências acumuladas são em regra fragmentárias e demasiado frágeis. Por exemplo, a interpretação de Galdikas (1980) respeitante ao orangotango não convence de modo nenhum. A propensão para considerar a psicologia dos antropomorfos actuais como um estádio da linha evolutiva na qual se desenvolveu a psicolo-

gia do homem está, creio eu, na origem destas correspondências em extremo simplistas e provavelmente

falsas.

2 Jacques Loeb (1858-1924), em 1911, com o seu trabalho 4 Concepção Mecanística da Vida foi um dos principais defensores da ideia mecanista de que todos os fenómenos da vida podem ser reduzidos às leis da física e da química, na esteira da tradição da escola materialista berlinense de 1850. 3 Compreendo a expressão como o conjunto de predilecções e crenças políticas, religiosas, filosóficas, morais, de um partido, sociedade ou classe social, ideias que são nelas predominantes numa dada fase histórica e que legitimam, comandam e ajudam a manter a ordem económica, cultural e social. Biologia e ideologia andam mais do que nunca enlaçadas. A biologia saiu da fase de relativa inocência e situou-se, em pleno, no centro da filosofia, da sociologia, das ideologias morais e políticas.

4 Pierre Thuillier, historiador de ciência e um dos autores que se têm dedicado nas suas obras a negar a pura objectividade e a pura neutralidade da ciência, critica

a sua posição de divindade transcendente, denunciando o mito da ciência como suprema sabedoria, criadora da felicidade plena, de um novo modelo de sociedade, geradora de uma nova moral. No essencial estou de acordo com estas ideias. Com efeito, a ciência é uma realidade cultural como as outras, e a posição em assim considerá-la deve-se particularmente à ideologia que domina o Ocidente desde a Renascença, a qual conferiu à ciência um carácter sagrado, que é indispensável não

pôr em questão, visto se tratar de um poderoso e indiscutível instrumento manipulador da natureza física e espiritual do homem, ao serviço das ideologias políticas e económicas dominantes nas modernas sociedades industriais. 5 Sobre as duas dimensões «visível» e «invisível da biologia, v. no 2.º vol. o cap. xt. E também Portmann (1960).

6 O industrialismo invenção

começou

mais

cedo, no século

dos teares mecânicos e da máquina

7 Em

vez de constituir

um

organismo,

xvirt

(Inglaterra),

com

a

a vapor. o mundo

natural

é para

a Renascença

uma máquina, no sentido literal e exacto do termo, uma coordenação de partes e de corpos conjugados,

impelidos para um

fim definido por um

espírito

inteligente que

lhe é exterior, tudo articulado, constituído por peças, que se movem segundo leis fixas (ideia cristã de um Deus criador engenhoso e omnipotente). Toda a vida material e espiritual passou a ser influenciada pela concepção mecanista, a partir sobretudo do século

xvII com

a revolução

burguesa.

R. Collingwood

(1981)

abordou

este tema

comparando a antiguidade grega e romana com a Renascença. Os Gregos e os Romanos só em certas ocasiões usavam máquinas, as catapultas e os relógios de água não eram tão importantes na sua vida de todos os dias que influenciassem fortemente a sua visão do mundo e as relações que tinham com ele. Mas no século XVI a máquina de imprimir, o moinho de vento, o relógio, o carrinho de mão e um sem-número de outras máquinas utilizadas pelos mineiros e engenheiros fixaram modos de viver diários e portanto

hábitos de pensar

a visão do mundo

e do próprio

e interpretar

homem.

as coisas que alteravam

O maquinismo 50

modelou

por

completo

a consciência

e a

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —

inteligência do Europeu. Em regra, é fácil ver como trabalha uma máquina, como se forma, para que serve, como se utiliza, As analogias surgem a todo o passo entre o

mundo das máquinas e o mundo da natureza e do homem. E assim (citando o mesmo autor) «como um relojoeiro ou um fabricante de moinhos de vento estão para um relógio ou um moinho de vento, assim está Deus para a natureza». Analogias que alimentam

uma

metafísica,

impõem

uma

ordem

no

mundo,

tudo

valores nascentes da grande revolução burguesa em marcha. 8 Lewis Mumford (1973), referindo-se ao relógio, diz

que

em

acordo

com

a máquina

os

que

mecanizou o tempo regulou não só as actividades do quotidiano como passou a sincronizar as acções humanas,

não já com o nascer e pôr do Sol, mas sim com os movi-

mentos dos ponteiros do relógio, introduzindo no trabalho e em todos os aspectos da vida do homem o domínio temporal, a fragmentação do dia, transformando-se num poderoso sistema de controlo que o homem ocidental difundiu no planeta. 9 A grande revolução burguesa, com as exigências prementes e permanentes de escoamento para os seus produtos, de procura de matérias-primas, alargamento de

mercados e obtenção de cada vez maiores lucros, obrigou à invasão e exploração de todos os lugares do planeta. Os descobrimentos e o colonialismo resultaram em grande parte disso. Neste movimento de expansão, impulsionado pelo próprio mecanismo da produção, e que agora se exprime numa tentativa de conquista e exploração do

espaço exterior, está interessada toda a civilização científico-industrial (burguesa e socialista). Esta dinâmica obriga a que tudo mude continuamente (donde os conceitos

de evolução, de «progresso», etc.), «num mundo que não esteja catalogado de uma vez para sempre, como podia pensar Aristóteles» (Sonnati, 1884). Mundo estagnado, imutável como ele era na visão feudal. Esta dinâmica de mudança encontra-se actualmente contrariada por uma «harmonia».

certa ideologia ecológica, de «equilíbrio», «estabilidade»,

19 Toda a ciência moderna é mecanista, sempre o foi desde as suas origens no

século XVII, a natureza para ela é como uma máquina cujas partes trabalham segundo leis

que

revelar.

é necessário

comparados

De

acordo

com

esta

concepção,

os seres

vivos

foram

a máquinas e esta descomunal metáfora jamais abandonou o estudo da

natureza viva. Mais tarde, quando na biologia surgiu o novo conceito de vida, ele foi logo mecanizado, e, apesar das enormes dificuldades que daí resultaram (e das reacções suscitadas), a biologia continuou mecanista, os seres vivos considerados máquinas, e acentuou-se o predomínio do reducionismo mecanista ou cartesiano na

explicação dos fenómenos biológicos, visando a sociedade máquina. 11 Alexandre dupla

exigência:

Koyrê

diz, com

«necessidade

razão, que há no pensamento

de certeza religiosa, necessidade

de Descartes uma

de certeza científica».

Ora, tendo a física cartesiana destruído o cosmo da Idade Média, da ordem perfeita, da hierarquia perfeita, numa escala de perfeição que vai da matéria inanimada até

Deus, e sendo esse universo substituído por outro inteiramente mecânico, composto unicamente de extensão e movimento, mundo onde já não há lugar nem para o homem nem para Deus, segue-se que para um homem profundamente religioso como Descartes a solução estava em separar completamente o espírito da máquina, para

tornar

compatíveis

as

duas certezas —a

científicamecânica

(ligada

à revolução

burguesa e inspirada por ela) e a religiosa, não sendo concebivel no universo cartesiano a existência de fenómenos estranhos ao maquinismo e ao pensamento do homem, quer dizer, de fenómenos de vida, nem mesmo a ideia de vida. À sua tendência

para

explicar

o mundo

dos seres

vivos

em

termos

da nova

física, em

termos

mecânicos, marcou profundamente o destino da biologia. Só no século xix é que o estreito e rígido dualismo cartesiano matéria/espírito foi em parte quebrado, tendo ficado mais complicado com a crescente autonomia das ciências da vida. E desde então, com o aparecimento da trindade matéria-vida-espírito como entidades distinguíveis, o esforço filosófico tem consistido em conciliá-las «ou suprimir uma ou outra

delas), mas o dualismo cartesiano persiste como metafísica, continuando a apoquentar a filosofia e a própria ciência.

51

GERMANO i2 Para

mais

pormenores,

DA

FONSECA

v. cap.

13 Para explicar o comportamento ceito de máquina.

Mas

XII,

no

SACARRÃO 2.º

vol.

dos seres vivos, Descartes

ao fazê-lo instilou também

o de finalismo,

introduziu quer

o con-

dizer, um

ser

vivo é uma organização pensada com vista a determinado fim. Ora as máquinas são demasiadamente rígidas no seu planeamento e estruturação para poderem ser comparadas a seres vivos, nos quais a regulação e a adaptação são fenómenos que não têm paralelo no mundo físico. Os seres vivos não são produtos de planos previamente

fixados,

mas,

ao contrário,

são

resultados

de

história,

de

um

passado

que

em parte persiste neles, mas que é remodelado e reconstruído para gradualmente constituir novas formas, novas estruturas e novas funções; histórias que neles se exprimem nas ontogenias e nas filogenias (v. meu 1985). Nada disto acontece, porém, nos corpos inanimados da natureza, ou nas máquinas, nas pedras, nos planetas ou

nas

estrelas,

ainda

que

no

universo

físico

tenha

havido

sucessões

históricas,

em

qualquer caso extremamente menos complicadas e de outra ordem. Seja como for, parece que a história não tinha nenhum papel na física newtoniana ou galilaica, e é curioso que Descartes, ao fazer dos seres vivos máquinas, introduziu para sempre na biologia o conceito de objectivo, o propósito, a utilidade, a finalidade, apesar de ele e Galileu terem considerado tais conceitos como estranhos ao domínio da ciência positiva (v. também Mumford, vol. 2, 1974). A visão mecanista teve, por isso, consequências que contrariavam o pensamento original.

52

CAPÍTULO DOIS

MODELOS

11 DO

MUNDO

A publicação da 4 Origem das Espécies, por Charles Darwin, em 1859, é um acontecimento de transcendente importância, pois marca o início de uma revolução (já esboçada antes, sem dúvida)

científica e filosófica a que muitos já têm chamado «revolução darwiniana». Uma das consequências mais decisivas da teoria da evolução foi a introdução de uma componente histórica na biologia, provocando a ruptura com a tradição platónico-aristotélica, com a sua imagem de um mundo estático, agregado de objectos sem relações uns com os outros, mundo

com as suas essências e as suas eternas verdades, as suas

espécies fixas, produtos invariáveis, criados separadamente.

1.

Evolução

e a antievolução

no

mundo

antigo

A ideia de evolução já tinha sido formulada por diversos pensadores na antiga Grécia. Por exemplo, Empédocles de Agrigento (c. 440 a. C.), de onde

era natural

(no Sul da Sicília), refere-se à adaptação

dos seres às condições físicas do ambiente em que vivem, em termos que, segundo parece, não desagradariam a um lamarckista. A sua teoria da evolução, se é com certeza muito extravagante em certos aspectos, a verdade é que tem um carácter materialista e de modernidade, tanto

mais importante sendo este facto quanto é certo que só para o final do século xvil e sobretudo em meados do século xIx é que o conceito ressurge apoiado, agora, em irrefutáveis documentos científicos. Tal como os seus antecessores jónicos, Empédocles concebeu a transformação dos seres sem recorrer à intervenção de divindades ou de qualquer secreto desígnio de natureza divina. Aliás, a sua explicação do mundo apoia-se no mesmo ponto de vista dos seus antecessores,

continuando assim o pensamento que caracterizou a escola jónica, cuja tendência era a concepção de um mundo dinâmico de «contínua e mútua transformação de elementos materiais» (Bernal, 1969). O mundo ordenado,

fixo,

imutável,

é uma

invenção

da

filosofia

(Platão, Aristóteles), apegada à ideia da ordem dispostas sem alteração num universo estático, 53

grega

natural

posterior

das

coisas,

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

provinham

Para Empédocles e os filósofos jónios, os organismos

da matéria inerte, sofrendo transformações variadas antes de atingirem

a configuração definitiva do presente. Pensou que os seres que não se adaptavam a novas condições do meio pereciam, o que sugere uma evolução por selecção natural. Para Empédocles, os vários órgãos e par-

tes do corpo tinham origens completamente independentes, só posteriormente se ligavam para constituir os organismos. Aristóteles (que o cita) ! escarnece das ideias de Empédocles, o que não surpreende dada a sua posição adversa ao atomismo

e a todas as teorias

da

mudança,

filósofo que veio culminar o pensamento criador dos antigos Gregos, seguindo-se-lhe um intervalo de dois mil anos, onde a sua autoridade foi imensa, travando o progresso, mais pelas condições históricas, que não propiciaram o surgimento de filósofos que o negassem, do que pela sua obra, aliás magnificamente ajustada à concepção de um mundo estagnado, pleno, acabado, divinamente ordenado e hierarquizado por vontade divina. Esta imagem, como veremos mais adiante, corresponde ao modelo da mundo antigo, que, com arrastado declínio, perdurou, em diversos dos seus aspectos, até ao século XIX. Pensou Empédocles que, originariamente, os seres mortais possuíam todas as formas, em combinações bizarras e monstruosas: «Havia cabeças sem pescoço, braços sem espáduas, olhos sem rostos, membros

soltos em busca de ligação. Essas coisas juntaram-se ao acaso. Houve criaturas

vacilantes

direcção

diferente, criaturas de corpo bovino

com

mãos

inúmeras,

outras

com

e face

faces

e seios

humana

contrário. Houve hermafroditas com natureza de homem

ou

em

ao

e de mulher,

mas estéreis. Por fim, só algumas formas sobreviveram» (trecho extraído de Bertrand Russell, 1977). Esta ligação de partes far-se-ia em várias combinações, resultando umas

vezes monstros,

outras vezes

seres viáveis

e normais,

acidental-

mente compostas da maneira conveniente, mas quando isto não acontecia as criaturas formadas pereciam, enquanto as primeiras sobreviviam. Como já referi, está aqui aparentemente expressa uma evolução por

selecção natural, com sobrevivência dos mais aptos. Segundo Empédocles, a origem dos seres organizados precedida do aparecimento independente

teria sido

das suas várias partes, depois

reunidas pelo amor. Assim se teriam formado, como produtos da terra, os animais e os homens. As plantas surgiram primeiro da terra, apresentando grandes semelhanças com os animais (v. também Voilquin, 1964). É de notar que antes de os fundadores da escola atomista (abertamente materialista), Leucipo e Demócrito, terem desenvolvido as suas ideias, Empédocles elaborou uma articulação entre o atomismo e a evolução por selecção natural, apesar do seu carácter vago, da sua tosca estrutura e larga fantasia, ideias que vieram até nós através dos poucos 54

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —1

fragmentos existentes da sua obra, conhecida, aliás, pelas citações que dela fez Aristóteles. Como disse Bertrand Russell (op. cit.), Empédocles «rejeitou o monismo e considerou o curso da natureza devido ao acaso

e à necessidade e não ao fim. Nesse aspecto, a sua filosofia foi mais científica do que a de Parménides, Platão e Aristóteles. Em

outros aspectos,

é certo, aceitou superstições vulgares; mas nisto não foi pior do que homens de ciência muito mais recentes». Diga-se, de passagem, que a

expressão acontece

«acaso no

e necessidade», como

mundo,

é

devida

a

causa de tudo o que existe e

Demócrito,

expressão

que

Jacques

Monod utilizou para titular o seu famoso livrinho. A teoria atomista teve uma poderosa influência na ciência, mas

foi sempre travada pelas influências imensas de Platão e Aristóteles, com as suas doutrinas das «ideias», das «formas» e «essências» ?, teorias que só vieram a declinar com o Renascimento, que viu nascer uma filosofia que, na opinião de Bertrand Russell, «readquiriu o vigor e a independência que caracterizam os pré-socráticos». Seria injusto, porém, atribuir à influência de Aristóteles a exclu-

siva responsabilidade da feição antievolucionista que perdurou até ao século XIX. A questão é mais complexa, e o que será, talvez, mais

conforme à realidade será dizer que houve ajustamento da sua metafísica às condições sociais e religiosas que se desenvolveram até ao Renascimento. E não haveria até uma certa influência positiva do filósofo-naturalista na receptividade posterior ao transformismo? Penso

que não, mas

julgo

(1962)

ser isso o que pensa Moody

quando

se

refere à contribuição de Aristóteles para o pensamento evolutivo, nomeadamente à sua ideia de haver uma completa gradação na natureza. Assim, o estado mais inferior é o inorgânico. Por metamorfose, os seres orgânicos derivam do estado inorgânico. Concebeu assim Aristóteles uma escala natural (scala naturae) tendente para a perfeição, tendo na base os minerais, seguindo-se-lhe o mundo orgânico, constituído por três estados: (1) plantas; (2) plantas-animais, grupo de transição no

qual introduziu as esponjas, as anémonas-do-mar e outros celenterados;

(3) o dos animais, cuja característica era a sensibilidade. Para os animais elaborou uma série gradativa, indo dos mais simples aos mais complexos, colocando o homem no topo da escala, que, ao contrário

das genealogias mais tarde construídas pelos filogenetistas pós-darwinianos (árvores filogenéticas), era linear, sem quaisquer ramificações: minerais, as plantas, destas, através dos pólipos, passa a todos os outros animais,

a

culminar,

finalmente,

de formas sucessivamente «escala

da

natureza»

no

homem,

num

desdobrar

directo

mais complexas e perfeitas, reflectindo uma

cada

vez

mais

esmerada

nos

seus

componentes,

que veio a influenciar todo o pensamento imobilista sobre os seres vivos até Lamarck ?. Este,

dade

parece

ter

em

1809,

concebido

foi o primeiro naturalista que

a primeira 55

«árvore

genealógica»

na reali-

de

tipo

GERMANO «moderno»,

entrando

em

DA conta

FONSECA com

SACARRÃO

formas

de

vida

extintas,

ou

seja,

após cerca de vinte séculos depois de Aristóteles ter ideado a sua escala dos seres, com absoluta indiferença pela questão dos fósseis, cujo verdadeiro significado já Xenófanes havia reconhecido muitos anos antes. A concepção de Aristóteles sobre a existência de uma gradação na natureza entre os seus diversos estados e formas de complexidade não teve qualquer efeito aparente sobre o desenvolvimento do pensamento evolucionista, ainda que se admita às vezes que talvez tivesse contribuído indirectamente para isso muito mais tarde, provavelmente quando do sistema aristotélico nasceram os primeiros sistemas de classificação pré-darwinianos, traduzindo ainda, escolasticamente, a ordem divina da natureza *. Mas não tenho isso como muito certo, nem

mesmo

como

provável. As contribuições que Aristóteles fez para a classificação e a anatomia só vieram a ser consideradas nos tempos modernos quando, de facto, já tinham sido superadas ou eram de pouca ou nenhuma utilidade para o progresso científico e filosófico. Chegaram demasiado tarde, enquanto, pelo contrário, a sua metafísica constituiu um obstáculo permanente.

À

sua

scala

naturae,

exprimindo

uma

completa

gradação

na natureza, poderia tê-lo conduzido à ideia de evolução (reforçada com a sua extraordinária intuição de naturalista), desenvolvendo e aprofun-

dando o que os seus predecessores Heraclito e, sobretudo, Empédocles

tinham avançado. Mas não o fez. Pelo contrário, exaltou a sua certeza de que o mundo é imutável, que nada nele muda, que as espécies são eternamente perfeitas ou imperfeitas, conceito indispensável à sua ideia da

existência

de

diferentes

graus

de perfeição.

Veremos

mais

adiante

que a ideia da fixidez das espécies mudou no decurso da história, até que finalmente se estabeleceu, firmemente, com o darwinismo, o

conceito da sua origem e transformação por causas materiais. Na ausência de documentos científicos, o evolucionismo do pensamento grego tinha forçosamente de ser especulativo e vago. Aliás, o espírito da época, as motivações que provêm da tradição cultural, os conhecimentos dos homens e a estrutura da sociedade, as relações entre as classes sociais, os processos técnicos e tantos outros factores são elementos em grande parte determinativos da orientação científica e filo-

sófica. Houve com os Gregos um aspecto que resultou provavelmente das condições históricas em que nasceu a sua civilização, e que teve um papel preponderante no rumo e natureza da sua filosofia e da sua cul-

tura. Grandes mestres na arte do raciocínio dedutivo e na utilização do argumento descobriram a matemática e inventaram a geometria, mas eram em geral adversos ao método científico, que pela busca e observação de factos particulares conduz indutivamente ao estabelecimento

dos princípios e leis. O seu pensamento 56

era fortemente motivado

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —

1

pela «crença helénica na dedução a partir de axiomas luminosos, deri-

vados do espírito filosófico» (B. Russel, op. cit.). Foi este aspecto cu ja acção foi tão decisiva na orientação da sua filosofia.

Antes de Empédocles houve um filósofo, Heraclito (c. 500 a. C.), de Éfeso, da mesma escola do naturalismo jónico, cuja visão do mundo constitui a base do evolucionismo do século xx e a que Charles Darwin, em meados do século xIx, deu plena comprovação e verdadeira estrutura científica. Heraclito foi o filósofo materialista da mudança, do movimento perpétuo, da ideia de que tudo flui expressa na sua (suposta) conhecida divisa panta rhei. O evolucionismo moderno encontra nele os seus primórdios conceptuais, pois dizia, segundo citações de Platão e Aristóteles, de que «nada é e tudo evolve», de que «nada é constante». Introduziu igualmente a ideia dos opostos, que se combinam para produzir movimentos que resultam em harmonia, sendo o mundo uno, mas resultando de diversidade, não podendo haver unidade se não houver contrários para oporem tensões e se combinarem. Esta seria a primeira indicação de uma filosofia dialéctica, origem remota da filosofia de Hegel. Parece, porém, que a concepção da combinação dos opostos é um pouco mais antiga. Uma das mais remotas manifestações da teorização dialéctica do pensamento ocidental encontra-se em Ana-

ximandro (c. 611-547 a. C.), de Mileto, para quem «os elementos do

universo são mantidos unidos por meio de uma oposição — o ar é frio, o fogo é quente, e assim por diante» (J. F. Rychlak). Mais tarde, Heraclito diz que a luta é o princípio de mudança, causa do encadeamento dos fenómenos através do tempo, e que tal oposição é fundamental para a vida. Para Empédocles, os antagónicos dialécticos são «a luta e o amor», causa da sequência dos fenómenos. O essencial do pensamento dialéctico, tal como o exprimiram Anaximandro e Heraclito, constitui o fundo do conceito moderno de evolução, visto terem esboçado a ideia da unidade do mundo vivo, da transformação dos seres vivos, originando novas formas, e ainda a

concepção da sua origem à custa de elementos materiais. O sentido altamente especulativo dos Gregos tem um bom exemplo no plano biológico na ideia de Anaximandro de que os homens primeiro teriam sido peixes, que abandonando a pele teriam passado a viver em terra. É uma pura especulação sem qualquer base factual, mas com algum fundamento de cunho moderno, visto que a evidência actual, baseada pelo menos na anatomia comparada e na embriologia, indica que os peixes constituem na realidade um

estado da evolução dos vertebrados e por-

tanto do homem. Xenófanes, que foi, em parte, contemporâneo de Anaximandro, julga-se ter sido o primeiro a reconhecer que os fósseis, tal como ossos

petrificados no seio das rochas, representam restos de animais extintos. 57

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

A ideia era verdadeira, mas nasceu, segundo tudo indica, da pura imaginação do seu autor. Pensou, também, que os fósseis de animais marinhos existentes em áreas emersas indicam que as mesmas estiveram

outrora cobertas por mares 2.

Antigos

obstáculos

(Moody, op. cit.). ao

evolucionismo

generalizado

Até ao século viii, a ideia de evolução existia nalguns homens da Igreja, como São Gregório de Nissa (ec. 335-395), Santo Agostinho (c. 354-430) e outros. Os capítulos da Bíblia respeitantes à origem do

homem não deviam ser tomados à letra (Santo Agostinho; S. Tomás de Aquino,

1225-1274).

Para estes homens,

a evolução

do mundo

rea-

liza-se em obediência a leis divinas. Deus, ao criar o mundo, fez também

as leis da sua transformação, criando as espécies em potência, que depois se sucedem. As ideias destes evolucionistas, se assim se lhes podem chamar, tiveram reduzida ou nenhuma influência. A autoridade sem paralelo de Aristóteles, geminada com a autoridade dos textos bíblicos sobre a criação do mundo, atrasou por mais de dois mil anos o firme estabelecimento da ideia de evolução.

No longo período em que dominou a filosofia escolástica, as ideias

sobre as espécies modificaram-se, sendo curioso que durante esta fase histórica, em que o mundo era considerado como eternamente imutável,

as espécies ora eram consideradas como criações da mente,

sem exis-

tência objectiva, ou, pelo contrário, eram supostas entidades reais, mas

susceptíveis de se transformarem noutras com a maior facilidade. Acreditava-se entre o vulgo nas hibridações mais fantasiosas, de onde resultavam

novas

espécies,

e por

geração

espontânea

tinha-se

como

certo

que surgiam plantas e animais superiores, ideia que durou até quase ao momento em que Darwin publicou 4 Origem das Espécies. Deve também ser lembrado que Aristóteles e Teofrasto, respectivamente na zoologia e na botânica, nunca conceberam as espécies como entidades imutáveis, sobretudo o segundo (Zirkle, 1959). Teofrasto afirmou, por exemplo, que as plantas mudavam de espécie quando transplantadas

para diferentes regiões e que as modificações eram causadas pelo facto de crescerem em solo e clima diferentes. As espécies eram, portanto, variáveis. Teofrasto pensava o mesmo para as espécies de animais e que nestes as transformações eram até mais frequentes do que nas plantas pelo facto de se deslocarem, sujeitando-se a mais variáveis condições de ambiente.

em

víbora

Descreveu, por exemplo,

quando

Aristóteles

não

secam referiu

os charcos tantas

a transformação

em

que

da cobra-d'água

vive a primeira.

modificações

como

o seu

sucessor,

mas pode dizer-se que nunca considerou as espécies como unidades permanentes e imutáveis. Esta contradição entre a concepção de um 58

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —

mundo eterno e a modificação das espécies é só aparente. Para os antigos, e durante muitos séculos, até pelo menos meados do século xvrir. os naturalistas eo

homem

comum

não pensavam

que as espécies fossem

unidades imutáveis. Houve variações neste ponto de vista, os conceitos eram

muitas

espécies

são

vezes

confusos,

ideias

mas

sobretudo

a realidade

lineanas

e constância

e relativamente

absoluta

das

recentes

em

relação ao transformismo, pois datam principalmente do meio do século xvilI. Este facto foi significativo para a eclosão do transformismo

científico e do seu antecessor — o lamarckismo. A realidade das espéideia

era uma

cies não

até

comum

ou eram

ao século XVIII;

criações

da mente ou eram formas efémeras; e acreditava-se, além disso, numa à variação

circunscrita

limitada,

evolução

facto

das espécies,

não

que

impedia a aceitação da criação divina para todos os animais e plantas. A fixidez das espécies, a sua permanência tal como foram criadas por Deus, tomou vulto no século xvrrr, sobretudo com a grande autoridade

de

e

Lineu,

grande

século

do

parte

nos

predominou

que

em

xIx,

círculos religiosos e científicos. Referi há pouco que não existe contradição entre a concepção de um mundo eterno e imutável e a ideia da modificabilidade das espécies. Em primeiro lugar porque as espécies eram consideradas como meras aparências, escondendo uma realidade íntima e transcendente (a essência) que não era tocada, componente platónico-aristotélica, que se intui pelo intelecto. Ora foi a associação mística entre o essencialismo e o

cristianismo que constituiu o grande obstáculo à emergência da concepção evolucionista e racional do mundo. Não era possível conciliar um mundo

de essências

possibilidade

de

natureza íntima

sem

imutáveis,

se relacionarem,

relação umas

as outras,

com

de se continuarem,

e misteriosa das coisas, com um mundo

sem

a

escondendo em mudança.

À concepção das obscuras essências, essas inalteráveis propriedades das moderno,

coisas, sucedeu no mundo

inaugurado com a revolução cien-

tífica, o conceito das relações e afinidades físicas entre os objectos, desligadas de considerações metafísicas ou teológicas sobre a sua natureza íntima. Com esta profunda ruptura ficou o caminho aberto para a aceitação do evolucionismo racional como fenómeno

universal devido a

causas materiais e liberto do preconceito de que é o fim que determina os meios. Enquanto não se deu esta metamorfose no pensamento (só completada,

cap.

v),

aliás, com

a espécie

era

a revolução

uma

darwiniana,

aparência

mera

que

como

mostrarei

podia

mudar

no

sem

que a sua essência fosse atingida.

Durante mais de vinte séculos, as espécies foram consideradas como unidades efémeras, incertas, susceptíveis de variarem, testemunhando uma

capacidade

de alteração

extremamente

limitada,

que

não

atingia

o seu fundo transcendente (a sua essência), o qual garantia a imutabilidade de todas as coisas da natureza. E quando no século XVII 59

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

e na primeira metade do século xix a realidade e a estabilidade das espécies foram conceitos dominantes, a oposição fundamental entre os criacionistas e os precursores do evolucionismo científico residia igual-

mente, sob uma ou outra forma, na questão das «essências». Por exemplo, Lyell não acreditava que os caracteres essenciais pudessem variar; tal facto só podia dar-se com os caracteres não essenciais, e nunca admi-

tiu, como fez Lamarck, que entre os géneros e as espécies pudesse haver estados de transição, ou simplesmente formas intermediárias. Para ele e tantos outros, como Louis Agassiz, Cuvier, etc., a natureza era formada por tipos fixos, criados de uma só vez, susceptíveis de degenerar e parecer, mas não de evolver.

No século xvr, o nosso P.º Gaspar Afonso escreveu «[...] animais em que a natureza se quer mostrar tão magnífica

que há

e poderosa

que, deixando de ser os que são de uma espécie, se passam e convertem em outras» *. Não creio que o seu autor tivesse uma visão transformista geral

da natureza,

mas,

como

tantos

outros

do seu

tempo,

nutria

apenas

um evolucionismo parcial e «inofensivo», que não atingia o fundo das formas, os vigamentos imutáveis da natureza viva e do mundo físico. Para os antigos, as espécies eram demasiado caóticas para servirem de

unidades de evolução e estarem na origem dos maiores agrupamentos. E os naturalistas dos cem anos que precederam a publicação de A Ori-

gem das Espécies estavam tão fortemente condicionados pelo determinismo teológico que os conhecimentos positivos que entretanto se tinham acumulado acerca da estabilidade e realidade das espécies (em consequência do progresso dos estudos sobre as floras e as faunas europeia e exótica) os levou a recusar o evolucionismo e a proclamarem não só a imutabilidade das espécies como a origem de cada uma como um acto único de criação divina. A variabilidade observada nelas era um desvio em relação ao «tipo» ou «essência» de cada uma. O obstáculo

místico continuava, apesar de certos abalos sofridos com alguns «precursores» da grande revolução darwiniana, como Buffon (mas que em parte se acomodou e transigiu), como Lamarck (que não possuía autoridade para convencer os seus contemporâneos) e alguns mais, além de haver que contar, igualmente, com a reacção religiosa e conservadora

que se seguiu à Revolução Francesa, que relegou para segundo plano, no

espírito

dogmas

dos

bíblicos

naturalistas,

sobre

tudo

a criação

o que

representasse

do mundo

pôr

em

e do homem.

causa

Em

os

França,

que na época era o centro da fermentação política e da cultura e ciência europeias, Cuvierº tinha imenso prestígio (aliás, merecido e qualidade dos seus trabalhos em anatomia comparada)

pelo valor e com ele

susteve os impulsos que porventura existissem para se oporem ao pensamento tradicional.

Outro duradouro obstáculo metafísico ao evolucionismo foi o chamado princípio da plenitude, assim designado, por A. Lovejoy em 60

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — 1

1960, e cuja origem remonta a Platão. O princípio da escala da natureza ou da «escala dos seres» está intimamente ligado ao princípio da plenitude, segundo o qual existem todos os tipos possíveis de organismos,

de tal modo que nessa grande «cadeia de seres», do mais imperfeito ao mais perfeito, não há lugar para mais nenhum. O Criador, sendo infinitamente bom e perfeito, tem necessidade de criar o universo e de

preenchê-lo com

todos os seres e coisas possíveis, e no maior número

possível delas, e todas boas. E as extinções obviamente são impossíveis.

É evidente que esta ideia se opõe a qualquer princípio que implique

mudança,

evolução,

transformação

e descendência.

Segundo

esse

modo

de pensar, não pode haver lacunas na grande cadeia dos seres,

onde

não



lugar

para

novas

criações,

pois

todos

os elos

possíveis

estão ocupados. Segundo alguns autores, o princípio da plenitude não teria constituído um obstáculo tão importante à ideia de evolução como o foi o essencialismo. Uma das suas consequências teria sido a crença de que a evolução procede por lentas e graduais transformações, e assim se eria remover a dificuldade, tantas vezes evocada pelos criacionistas,

da identidade ou estreita semelhança entre os organismos cujos restos datavam de há quatro mil anos (túmulos do Egipto), identidade a favor da fixidez das formas de plantas e animais, numa época em que a geologia e a paleontologia ainda não tinham fornecido o recuo temporal indispensável à génese do conceito de evolução. E Lamarck tinha decerto razão quando argumentava que a semelhança de formas não era de surpreender dada a extrema lentidão da evolução e o pouco tempo decorrido para mais profundas alterações. Depois descobriram-se cada

vez mais descontinuidades entre as espécies, e, sobretudo, entre as categorias supra-específicas. A grande «escada da natureza» já não era a perfeição imaginada: faltavam degraus”. Quem estava principalmente

em

dificuldade

plenitude

com

espaços

portar

culdades. ou

teorias

Mas

por

metafísicas,

mais

progressivos,

se

qual

pensava

não

comodamente scala

naturae

com-

as difi-

obsessionados

menos

a imutável

interpretaram

da

conciliar o princípio

ignoraram

Uns

preencher.

alguns

a

natureza,

da

hiatos

esses

queriam

que

aqueles

eram

com numa

perspectiva transformista, as semelhanças indicando afinidades, descen-

dência. O escalonamento gradual que lhe estava implícito indicaria então que a evolução não procede por saltos, mas sim por lentas e pautadas progressões. Para outros, a saída foi um acordo ainda mais radicado

na

imutáveis.

tradição:

Isto

as

espécies

aconteceu

relacionar esse facto expansão colonialista,

foram

no século

declaradas

entidades

XVIII, e creio que

reais

seja legitimo

com as condições de um mundo europeu em consequência em grande parte directa das des-

cobertas iniciadas por Portugal e Castela no século xv. De

facto,

avanço

e

a

hipótese

da 61

necessidade

dessa

ideia.

Como

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

haveriam os produtos dos três reinos da natureza, afanosamente procurados nas novas terras ricas, de ser inventariados, identificados e

possuídos, se as espécies fossem entidades fugazes e sujeitas a caprichosa diversidade? Lembremos neste contexto que a classificação dos objectos naturais foi a actividade dominante do século xvili em relação precisamente com a exploração das terras exóticas, prenhes de riquezas fabulosas ou de objectos estranhos aos olhos vindos de horizontes estreitos, como os do Europeu de então. À classificação desenvolveu-se com a ascensão da burguesia e com a sua expansão económica colonialista e com a filosofia da espécie real e imutável, bem definida e caracterizada. Esta última concepção era indispensável, não só como base dessas classificações, como concedia a objectividade indispensável aos produtos obtidos, permitia a catalogação de uma diversidade imensa de espécies, ao lado da qual a flora e fauna da Europa eram modestíssimas. Além disto, não se rompia com a tradição da Igreja; pelo contrário, ainda mais se firmava a omnipresença do Criador declarando as espécies sua obra imutável e concedendo-lhes uma posição central na classificação, considerada como expressão de ordem da natureza, reveladora do plano divino. No século xvrrl e parte do xix a classificação dos organismos desenvolveu-se confortavelmente num mundo que ainda era pensado como imutável, onde o tempo ainda não tinha um sentido de mudança. Nasceu nele e para ele. Quando se tentou, porém, acomodá-la a novo paradigma entre

de um universo em mudança,

aparências

intencionalidade contradições,

e essências,

assim

como

divina que o marca,

tendo

na base

que varreu a velha oposição a

invariância

surgiram

a inconciliação

do

real

as dificuldades

absoluta

entre

e a

e as

o fluir das

coisas e as «essências» imutáveis. Daí o esforço tentado desde o nasci-

mento do darwinismo em fazer que a classificação e o conceito de espécie continuassem como as traves mestras da ciência biológica, esforçando-se

os taxonomistas

por

conciliar

o que

afinal

pertencia

a

dois sistemas conceptuais inconciliáveis. Surgiu uma crise ao decidir-se enxertar

no

novo

modelo

do mundo

o que

nascera

e frutificara

na

visão antiga. Assim, considerando-se as espécies como realidades objectivamente definíveis, mas simultaneamente entidades dinâmicas em contínua transformação, abriu-se caminho a um interminável conflito

metafísico sobre a natureza real da classificação e da espécie, com os seus numerosos teóricos e escolas, onde tem avultado a tendência de obstar à decadência da venerável ciência da classificação, revitalizando-a com todos os conceitos e técnicas que lhe dêem a aparência de estar perfeitamente integrada na própria mudança. Tudo isto deu como resultado

a sua transmutação,

em

certos sectores

anticlassificação ou antitaxonomia,

mais

transcendendo em

progressivos,

em

muito os objec-

tivos tradicionais da classificação, perseguidos pela grande maioria dos 62

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — 1

taxonomistas actuais (para maior desenvolvimento deste tema, v. meus 1978, 1980). A classificação das plantas e dos animais, que no século xvilI atingiu um extraordinário desenvolvimento, estava ainda muito influen-

ciada pela visão antiga de um mundo harmonioso. Para Lineu, a clasreproduzia

sificação

o plano

perfeitamente

ficos eram

da criação

e os seus fundamentos

escolásticos, impregnados,

como estavam,

de

da criação

aristotélico, considerando as espécies produtos

essencialismo

filosó-

divina, realidades isoladas numa natureza imutável. A classificação, com as suas categorias inferiores subordinadas às categorias superiores, traduzia de certa maneira as classes sociais; e, reflectindo-as, exprimia, ao seus nível, uma sociedade fixa, baseada na ordem natural do mundo,

oposta ao progresso e à mudança. Daí a sua crise, surgida com o darwicom

nismo,

a concepção

de um

universo em

permanente

movimento.

Este facto não surpreenderá, visto que a ordem estática dos elementos foi consagrada por Aristóteles. Este filósofo recusou, como referimos,

a escola materialista e dinâmica da primeira fase da filosofia grega, opondo-se, assim, à inconstância, tendo sido sempre fiel ao conceito

de subordinação de partes não activamente relacionadas. O predomínio da classificação, como expressão de uma ordem inalterável da natureza, que se manteve até ao darwinismo nascente, entrou assim em crise quando declinou a imagem do mundo antigo. A classificação adaptou-se logo à concepção moderna, mas conserva

ainda, em certos aspectos, uma estrutura arcaica, que lhe vem da sua não idade de ouro. Com o darwinismo surgiram contradições que ainda terminaram, como bem mostram a profusão de teorias, conceitos e esco-

las que tentam

harmonizar o que pertence

superá-las, tentando

a dois

sistemas conceptuais antagónicos. Nos ensaios a que aludi acima desenvolvi estes aspectos, respeitan-

tes ao significado e natureza da classificação biológica. Aí tentei mostrar que a classificação tem uma componente essencialista, e que, além disso, ou por causa disso, leva à compartimentação da realidade biológica em mudança. Esta formalização da realidade biológica tem sido

um obstáculo a uma mais profunda compreensão dos organismos, das suas inter-relações e evolução, e mesmo à elaboração de uma adequada filosofia

do ser vivo. O próprio

conceito moderno

de espécie

(conceito

biológico, como é designado) transforma-se, em regra, na prática, num conceito fenético-essencialista,

3.

Visão O

antiga

abalar

dos

ou menos

mais

e visão

moderna

obstáculos

maiores

explicitado.

ao evolucionismo

essências, o princípio da plenitude e a teologia cristã — 63



a teoria

começou

das

com

GERMANO

a Renascença, culo

xIx

as

DA

FONSECA

SACARRÃO

precipitou-se nos séculos XVII e XVIII, até que condições

históricas

e as

transformações

no sé-

económicas

e

tecnológicas operadas na sociedade, que entrou em crises mais rápidas de mudança, esperavam apenas por um Darwin que lhes concedesse a honorabilidade e credibilidade científicas, que pusesse cobro aos derradeiros ecos de um passado bem morto. Não estou certo do carácter providencialista dos homens, e, assim, se não fora Darwin,

o século xIX

haveria de ser o palco da grande revolução do transformismo, porque a ciência já era, em meados do século xIx, mais um produto colectivo do que o resultado de inteligências ou vocações isoladas *. O aluimento do modelo antigo deveu-se a vários factores, cientificos, sociais e tecnológicos. Um mundo rural e religioso, de pequenas comunidades isoladas, onde tudo parecia ordenado e imutável, em que os homens pouco comunicavam e muito pouco ou nada conheciam de outros

homens

vivendo

sob

outras

latitudes,

com

outros

costumes

e

ideias, foi gradualmente substituído por outro nascido de um conjunto de condições que vão desde as formidáveis consequências dos Descobrimentos, da invenção da imprensa, da crise suscitada pela Reforma, até à expansão comercial, às novas tecnologias e relações económicas, tudo isto desarticulando a ordem

social estabelecida,

introduzindo

a mobili-

dade, a invenção, e, como reflexo, conduzindo os homens a olharem com

outras ideias a scala naturae, e, por consequência, a «verem» nesta um dinamismo, uma expressão de movimento e diversidade a que até aí estavam por assim dizer cegos ?. Acentuou-se rapidamente a intervenção

na natureza, o homem ocidental apoderou-se dela, já não era a «grande cadeia de seres» para contemplar, para lhe admirar a ordem e a perfeição, mas sim para explorar, utilizar, transformar, dando nos nossos dias,

como

reflexo

contrário,

o

chamado

«movimento

ecologista»,

romântico nas origens, mas na realidade agora mais económico e político, em todo o caso assimilado e reorientado pelas nações industriais,

que em vão procuram um compromisso viável entre o aproveitamento e conservação dos recursos naturais e a crescente exploração

industrial,

agrícola e oceânica, e como ideal o fruir de todos os bens produzidos por uma

humanidade

em plena explosão demográfica,

natureza rica e impoluta. Podemos considerar agora

a existência

de

duas

instalada numa

concepções

ou

modelos do mundo. O modelo do mundo antigo e o do mundo moderno !º. Não há limites entre eles; a passagem da visão antiga para a

moderna foi gradual, e dido por uma filosofia caracterizado pela ideia tituído por formas fixas

também vimos que o modelo antigo foi precemais próxima da actual. O modelo antigo era de que o mundo era eterno e imutável, conspor determinação divina, onde o tempo quase

não tem significado, onde qualquer evolução cósmica não existe. Dominava a concepção de que a fé é sempre superior à razão, no sentido, 64

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —

como diz Bernal, de que há coisas que só a razão por si só nunca pode

descobrir. As respostas são conhecidas antecipadamente, mas a revelação e a razão nunca entram em colisão: cada uma

tem o seu domínio

próprio, uma ideia que ainda hoje forma a base da doutrina religiosa. místicas

fixas, a esconder

de formas

Mundo

essências, as propriedades

repetiam-se eternamente as mesmas, não havia lugar para novas, tudo havendo de integrar-se em modelos invariáveis e universais. Já se fez referência ao caso das espécies. Neste sistema de conceitos, as espécies

suas (de specere, ver, atentar) de um objecto eram simplesmente as aparências, não a sua «essência» íntima (Zirkle). As aparências, por

eram

consequência, eram

eternas,

espécies no

não

sentido

as configurações

moderno,

as entidades

como

mudança,

para

lugar

havia

aparentes.

o homem

siderava-se

E

enganadoras.

a

para

de origem

imutável,

das

evolução

as aparências,

pois só se modificavam

Paralelamente

«essenciais»

à fixidez

da

divina,

cujo

natureza,

con-

espírito,

por-

tanto, é capaz, por revelação, de apreender o verdadeiro significado dos

fenómenos naturais e o plano do Criador. A arte também traduzia fiel-

mente a concepção antiga. Nas palavras de A. Katzir (1972), «a arte reflectia o paradigma, e a sua expressão serena tentava representar o eterno, as propriedades imutáveis do homem e da natureza». visão

Esta

do mundo

teve

antigo

o seu apogeu

a

toda

durante

época medieval. Mas não terminou com ela; a sua influência, já em

arrastada fase de crise, foi até meio do século XIX, e os seus ecos mundo longínquos ainda hoje se fazem sentir. Era uma imagem de um bem nutrido de teologia e de fé religiosa, solidamente apoiado em Aristóteles,

o grande

paladino

da ordem,

e de quem

Bernal

disse

ter

sido «o filósofo do senso comum, quase do lugar-comum», o que talvez

seja um

juizo

demasiado

severo.

O

mesmo

autor acrescentou,

ainda,

que, tal como fazia Hitler, Aristóteles nunca disse nada que as pessoas não acreditassem já, tendo sido mais um lógico e um cientista do que um filósofo moralista. Por seu lado, Russell escreveu: Qualquer filósofo notável, e mais ainda Aristóteles, deve estudar-se com referência aos predecessores e aos sucessores. No primeiro aspecto, o mérito de Aristóteles é enorme; no segundo, o demérito igualmente enorme; mas deste são mais

responsáveis os sucessores. Ele veio no fim do período criador do pensamento

grego e durante dois mil anos o mundo

não

produziu filósofo que o igualasse. Durante esse período, a sua autoridade foi quase tão indiscutida como a da Igreja, e em ciência como em filosofia tornou-se obstáculo sério ao progresso. Desde o começo do século XVII, quase todo o avanço intelectual começou por um ataque a alguma doutrina aristo-

Bibl, Univ.

49 — 5

65

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

télica; em lógica ainda hoje assim é. Mas teria sido igualmente desastroso, pelo menos, se qualquer dos predecessores (excepto talvez Demócrito) tivessem adquirido igual autoridade. Para sermos justos, devemos começar por esquecer a excessiva fama póstuma e a igualmente excessiva póstuma condenação !!. A

ciência

e a filosofia

modernas,

e

com

elas

o

evolucionismo

darwiniano, modificaram profundamente a visão antiga de um mundo harmonioso, estável, criado por um acto divino. À rígida subordinação

de partes permanentes tinha, na concepção antiga, a sua equivalência

na hierarquia da sociedade. Aquela reflectia esta. E a esta convinha aquela. Esta correspondência aparece nitidamente na sociedade medieval. Na visão moderna vamos encontrar um

sistema de conceitos e um

tipo de sociedade que de certa maneira também se correspondem, se influenciam mutuamente, mas de outra maneira. Uma concepção nascente de mundo em mudança, de invenção e transformação, competitivo e repleto de contradições estava, de facto, desajustado

a uma

sociedade

de regime senhorial, de proprietários rurais, de vassalagem e enfeudação, rigidamente dirigida pela fé cristã, apropriada ao imobilismo. Mas

já não

acontecia

o mesmo

em

relação

ao

capitalismo

industrial,

ajustado a uma concepção de mudança e que nela via em parte a justificação para a sua existência, para a sua moral, para os seus empreen-

dimentos 2. Não

seríamos

verdadeiros

se

opuséssemos

à visão

evolucionista

moderna um passado onde esta noção não tinha lugar. A história das ideias sobre a evolução revela-nos que poucas vezes se justifica a afirmação absoluta da não existência de transformações, pelo menos ao nível da espécie, que todavia não teve constantemente um

mesmo

signi-

ficado. Mesmo nas épocas onde se julgava o universo imutável, havia a ideia de um evolucionismo tímido, a noção de que as espécies se mudavam em outras, mas o essencialismo metafísico, os dogmas religiosos, em particular o da Criação, determinavam um forte condicionamento nos espíritos que os impedia a irem mais longe. E ficavam-se pelas aparências (que essas, sim, mudavam) não se pondo, claro está, em

questão a realidade e imutabilidade das «essências».

A visão moderna, marcada pelo princípio de um

mundo

em mu-

dança permanente, implantou-se rapidamente a partir da segunda metade do século xIx (a ruptura começara já no século XVIII ), penetrando profundamente no pensamento filosófico, nas ciências e em

todas as manifestações da vida social, não esquecendo, igualmente, no plano da interpretação histórica e sociológica, a obra de Marx e de Engels, com as suas ideias sobre os factores que presidem à evolução 66

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —1

das sociedades humanas desde as origens. A biologia, com Charles Darwin, e a sociologia (pelo menos nos seus aspectos mais progressivos ) tornaram-se ciências materialistas e históricas e influenciaram rapida-

mente todas as esferas do pensamento e da criação científica, artística e sociológica. À teoria da relatividade veio finalmente embaciar as últimas

imagens

do mundo

antigo,

atacando

os seus pilares

sagrados

— o espaço e o tempo absolutos —, e assim se desvaneceram, também, as ideias sobre a natureza dos átomos, não já como objectos de estrutura material fixa e bem determinada, mas conceptualizados agora em novos quadros mentais, com a ajuda de modelos matemáticos complicados. À ruptura não foi repentina, como já referi. À parturição da imagem moderna foi lenta e gradual no seu trabalho de desfazer dos antigos, de exumar valores esquecidos e descobrir

e novas

leis

que

rasgaram

pouco

a pouco

a autoridade novos factos

os horizontes

do

mundo

moderno. Charles Darwin, com a sua gigantesca acumulação de factos e a sua poderosa e objectiva argumentação científica, deu um golpe definitivo na velha imagem do mundo, ainda repleta de ideias e preconceitos arcaicos.

Atingiu

em

pleno

o próprio

conceito de humanidade,

feriu

fundamente os conceitos religiosos e morais, o dogma da criação, da origem do homem; deu à ciência a possibilidade de desacreditar a auto-

ridade dos textos bíblicos; e com isto foi toda a origem, natureza e destino do homem

que

passaram

a ser vistos a uma

nova

luz, como

as

resultantes de um processo de longa evolução devida a causas materiais, contrariando assim frontalmente a autoridade teológica e as enraizadas crenças de vinte séculos, que todavia não tinham sofrido tão formidável abalo com a revolução de Copérnico-Galileu. Com o darwinismo nasceu

uma

ciência

do homem,

encarado

doravante como

um

animal

de ori-

gens humildes, irmanado aos outros seres, produto da Terra como eles, e com eles originado de formas primitivas muito simples, por um processo de gradual evolução. Surgiu a ideia de progresso sem fim, agora estribada em considerações científicas, indo buscar-se à biologia a sua fundamentação, prestigiada pelo nome de Darwin e seus continuadores, se bem que o grande naturalista não a perfilhasse inteiramente

(veja-se o cap, V) É, A ideia de progresso, nas condições socioeconómicas do século XIX, estava intimamente ligada à ideia de competição, e sem dúvida que a teoria da evolução nasceu, em parte, sob a influência de um clima social onde se procurava uma justificação para a exploração capitalista, ou pelo menos foi largamente utilizada para isso. Na visão antiga, a biologia reflectia

a imagem

de uma

natureza estática, criada

de uma

vez para sempre por Deus, e, como tal, podia legitimar a rígida hierarquia social, a concepção harmoniosa da sociedade, a ordem firme que existia em tudo. Ainda nos séculos XVII e xvill, a ordem da natureza 67

á GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

era proclamada, nos seus múltiplos aspectos, como uma prova do trabalho divino, servindo de exemplo e de orientação para a vida social. No

de

competição,

de

de progresso,

mágicos

ceitos

os

com

armado

evolucionista,

o biologismo

paradigma,

novo

também,

passou,

selecção, reflectindo agora um processo de mudança,

de

vida,

pela

luta

con-

a servir de guia e justificação intelectual e ética à nova sociedade, com todos os erros e abusos inerentes.

Para a eclosão da visão moderna foi de fundamental importância o progresso da geologia, com as novas noções sobre a idade da Terra. Foi abandonada a falsa ideia de uma criação recente (seis mil anos)

e começou a impor-se a ideia de uma muito longa idade !*. Este facto a

teve enormes consequências, a mais importante sendo provavelmente

de permitir explicar, com muito mais longo tempo disponível e por processos graduais, a origem e transformação não só do relevo geográfico como das plantas e dos animais. O elemento temporal foi decisivo. Foi ele que em grande parte permitiu a Darwin negar com sólidos argumentos científicos o criacionismo, recusar o antropocentrismo, colo-

cando o homem na grande corrente do movimento evolutivo, e não fora dele como

até aí; e permitir,

à luz dos factos,

o velho

afastar

dogma

das «essências» dos escolásticos, rejeitando essas qualidades íntimas das que, por serem

coisas,

e eternas,

imutáveis

sério obs-

um

constituíam

táculo à formação da ideia de transformação gradual de umas coisas em outras, separadas

como

estavam

pelas suas essências

a impossi-

ocultas

bilitarem continuidades e descendências. Esta revolução mental não está ainda acabada, restam fragmentos poderosos da visão antiga |. A

teologia

por

operando,

tenta-se século

de teleologia

e o conceito

formas;

novas

motivo

dessa

xx, a revolução

revolução;

regresso. De

aqui e ali um

e estão

procuram-se

facto,

neste

a tomar

ainda

que

direcções,

outras

último

se vão

quartel

do

as

suas

ou de suscitar profundas

con-

está longe

darwiniana

possibilidades de abrir novos caminhos trovérsias.

tomaram

às lentas modificações

a religião adapta-se

É, por exemplo, o que se passa com

de

ter esgotado

o nascimento

da socio-

biologia, elevada a ramo fundamental da biologia evolutiva, e com a qual se pretende explicar as acções sociais humanas à luz da sociobiologia animal e dos mecanismos genéticos e ecológicos e comportamentais

que

estão

na

sua

base,

e com

a soberana

intervenção

da

selecção

natural. Como disse E. O. Wilson (1975), um dos principais chefes de fila da nova escola, «a formulação de uma teoria da sociobiologia cons-

titui, na minha opinião, um dos grandes problemas da biologia a serem tratados nos próximos vinte ou trinta anos». Este problema está no centro da grande controvérsia de se saber se o homem é um animal pré-programado ou se, pelo contrário, a sua realização como indivíduo e como ser social escapa ao estrito condicinalismo de mecanismos genéticos. Se tem, em suma, larga margem para a liberdade, ou se é um 68

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — 1

ser tão condicionado pelos genes e pelos processos que se passam nas células do seu organismo que a responsabilidade pelo seu destino só poderá exercer-se por manipulação e aperfeiçoamento do seu próprio património hereditário. Tudo isto, e inclusivamente o próprio conceito de selecção natural, está hoje sujeito a profunda crítica e revisão. Debate-se, além disso, se a evolução é um processo gradual

(como sem-

pre pensou Darwin) ou, pelo contrário, intermitente. Estes e outros aspectos serão discutidos neste livro, nos capítulos subsequentes. 4.

Reacções

à imagem

de

um

mundo

em

mudança

A nova visão do mundo é marcada pela filosofia evolucionista, que deu não só novas e radicais direcções à ciência, em particular à biologia e à sociologia, como penetrou em todos os aspectos do saber e da cultura humanas. Novos quadros conceptuais estão porém em elaboração, e assiste-se, aqui e além, a uma procura de pontos de apoio que lembram posições semelhantes à visão antiga, com as suas estruturas e leis invariáveis. Há

sempre

uma

certa reacção

ao movimento,

à mudança,

e por

isso o evolucionismo científico suscita, muitas vezes, numerosas reservas,

suspeitas e distorções. E isto apesar de ser este século que fez, como

escreveu

Katzir,

«do

princípio

de

Heraclito

panta

rhei

(“tudo

flui”)

a base da sua visão do mundo. Não somente a vida e a sociedade» (continua o mesmo autor) «estão num estado de perfeito fluxo, como os próprios átomos sofrem transmutações, ao longo de biliões de anos, e o cosmo

no

seu

conjunto

transforma-se

e evoluciona

a um

ritmo

espantoso. Mesmo as leis da natureza — os verdadeiros alicerces da crença do homem, os pilares de todos os fenómenos observados e das expressões da sabedoria cósmica — parecem mudar com o tempo». Na opinião do mesmo autor, há tendência para a elaboração de uma nova síntese que apresenta certas semelhanças com «o mundo organizado da antiga posição». Parece devotar-se uma atenção cada vez maior «à relação, à composição e à estrutura. O aspecto estrutural das relações materiais afasta numerosas barreiras que separavam a arte e as humanidades, por um lado, das ciências naturais, pelo outro, e permite uma nova unificação a um nível mais elevado que a integração clás-

sica». Esta nova síntese viria, para o mesmo autor, a seguir ao desmoronar do mundo materialista. O que me parece traduzir uma reacção idealista,

no

fundo

sempre

contrária

ao

evolucionismo,

traduzindo

o

pendor do espírito para encontrar pontos de apoio, uma certa segurança na invariabilidade do real, uma visão do mundo mais estática; eom formas, com leis e estruturas estáveis, e até com uma promessa de

espiritual ascensão, em

suma,

com

intencionalidade, 69

que compensaria,

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

talvez, a angústia ressentida pela verificação de um

permanente fluir.

Monod, por exemplo, no seu livro L'Hasard et la Nécessité,

não esconde

a sua simpatia pela existência de entidades imutáveis na estrutura do Universo.

Livro

pequeno

nas

dimensões,

mas

extremamente

penetrante,

ele é, de certo modo, um inteligente discurso de apologia as pretensões reducionistas da biologia molecular, com a qual o autor edifica uma teoria sobre o destino e significado do homem. Obra muito brilhante, sem dúvida, mas discutível, quer quanto à legitimidade de certas deduções, quer no que respeita ao bem fundado de certos conceitos ou noções que se sabe serem controversas e estarem sujeitas a revisão, ou mesmo se tendo demonstrado já não corresponderem aos factos. Trata-se, sobretudo, de uma obra que propõe uma ideologia, e como tal enferma, a meu ver, de generalizações e esquematismos que podem enlear o leitor leigo ou desprevenido, que passa, assim, sem

talvez se dar conta, do domínio da biologia para o da filosofia, com muito do que neste último há de especulativo, de indemonstrado ou de indemonstrável. Alguns significativos trechos do livro de Monod mostram claramente um quadro conceptual com analogias com o paradigma clássico, no sentido de existirem realidades imutáveis na própria estrutura do mundo. Diz Monod, por exemplo, que «a estratégia fundamental da ciência na análise dos fenómenos é a descoberta de invariantes» (p. 134). E mais adiante declara que «há e permanecerá na ciência um

elemento platónico de que não pode ser separada

sem

a destruir.

Na diversidade infinita dos fenómenos singulares, a ciência não pode procurar senão invariantes». Em seguida, reportando-se a um período pré-darwiniano, evoca Cuvier e Goethe para dizer que havia nesses grandes naturalistas «uma ambição “platónica” na procura sistemática de invariantes anatómicas». Cuvier era fixista e Goethe um dos mestres da morfologia idealista, da busca da ideia absoluta, da unidade de plano, dos arquétipos, do plano divino da natureza, que caracterizaram a Naturphilosophie desde o princípio do século xix na Alemanha,

tra-

vando-se, assim, com estas ideias místicas, a liberdade do espírito para aceitar o conceito de evolução, e que estudos existentes e diversas observações já fortemente sugeriam. Na opinião de Monod, os biólogos modernos não prestam, talvez, a merecida justiça «ao génio dos homens que, sob a assombrosa

dos

variedade

seres vivos, souberam

menos

um

número

das morfologias

reconhecer

finito de planos

senão

uma

anatómicos,

riante no seio do grupo que caracteriza»

(p. 135).

e dos modos

“forma” cada

um

de vida

única,

pelo

deles

inva-

A biologia moderna revela novas provas da existência de «formas»

universais. Assim, continua Monod, a espécie mantém, invariante, através das gerações, a norma estrutural que a caracteriza e a diferencia,

cuja causa está na reprodução «do texto escrito sob a forma de sequên70

BIOLOGIA

cia de nucleótidos no ADN», E afirma

ADN»,

categoricamente

E

SOCIEDADE — 1

que garante a invariabilidade da espécie.

que «o invariante biológico fundamental

é o

(p. 138) e que «todas as propriedades dos seres vivos assentam

num mecanismo fundamental de conservação molecular. Para a teoria moderna, a evolução não é de modo nenhum

uma propriedade dos seres

vivos, pois ela tem a sua raiz nas próprias imperfeições do mecanismo conservador»

(pp.

151

e 152;

itálicos

do autor).

Ora a realidade biológica aí está para demonstrar que a evolução é a própria condição dos seres organizados, porque sem um permanente

fluir para novas formas face das constantes não é nem

mação,

mais

sendo

e funções como poderia a vida subsistir em

mudanças

nem

dos ambientes? importante

menos

da contradição

O processo conservador

do que o processo de transfor-

que se põe a todo o momento

entre o

passado (transmitido pelo mecanismo conservador) e as exigências do presente que resulta a evolução, isto é, saídas para novas soluções adaptativas, ou para novas extinções que, por sua vez, estimularão

novas direcções do processo. À evolução é um movimento em que o passado

se

nega,

mas

ao

tempo

mesmo

tende

a conservar-se,

o

sendo

resultado um brotar de novas formas que se apoiam em formas precedentes, num

Também

vasto

encadeamento histórico.

para Monod,

o organismo persegue uma

finalidade — a

invariância reprodutora. Esta e outras afirmações traduzem uma tentativa de explicação da biologia à luz de uma filosofia, dando o autor o

aspecto que é a primeira, como ciência, que confere legitimidade e suporte à segunda, quando é o inverso que faz. À sua posição é sem

dúvida idealista, de resto bem evidenciada pela sua própria termino-

logia, v. g. quando

se refere às funções cognitivas das moléculas,

finalidade dos organismos, de antropomorfismo,

como

à

ao projecto que realizam, atitude penetrada bem

justamente

notou

Jane

Oppenheimer

(1972). Por outro lado, conceber a biosfera, a emergência do homem

e a sua complexíssima história como produtos do ADN

(o «conservató-

rio do acaso») e da selecção natural (sem quanto a este conceito reconhecer as incertezas e as ambiguidades) traduz, a meu ver, um biologismo triunfante, um tanto dogmático e certamente esquemático. Estabelecer qualquer teoria geral sobre a vida, com aspectos de suficiência dogmática, como transparece nos propósitos de Monod, oferece os seus perigos. Por exemplo, a sua afirmação fundamental de que «o que é verdadeiro para a bactéria o é também para o homem» já não pode sustentar-se, em face das provas posteriormente acumuladas sobre a organização do genoma e sobre a estrutura e o modo de acção dos genes dos organismos superiores

(v. meu

1985).

Não me parece necessário entrar em mais particularidades para se notar na filosofia natural exposta por Monod uma certa semelhança ou simpatia com certos aspectos da visão clássica, dada a sua ideologia 71

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

dos invariantes na estrutura do universo. Razão tinha, já em 1961, Oparin ao afirmar o seu cepticismo quanto às possibilidades de alterações induzidas no ADN, dizendo que «nunca poderemos transformar um

elefante numa mosca ou uma

em

face dos dados recentes,

uma

mosca num bactéria

num

elefante» elefante

(p.

190), ou,

ou

vice-versa.

A vida dos organismos não é um jogo invariante de biomoléculas, nem a evolução a simples eliminação e escolha, pela selecção

natural,

res-

pectivamente dos «erros» e «tentativas» desse jogo (mutações). Monod, ao pretender explicar com tal esquema reducionista toda a biologia, o homem, o pensamento, a sociedade, a história, a ética, etc., transformou

imprudentemente a biologia numa ideologia peremptória, não se dando talvez conta das dificuldades em identificar a mesma ciência (que, como qualquer outra, é por natureza entretecida de verdades transitórias,

e é

anti-sentenciosa)

a uma

filosofia

natural

dogmática

com

pretensões a ser uma explicação definitiva e universal. Outro autor, C. Portelli (1975), avança uma hipótese que dá bem, a meu ver, também, a medida da tendência de encontrar à luz da biolo-

gia molecular e da teoria do código genético uma entidade perene, fonte da vida em todo o universo, determinando o seu progressivo aperfeiçoamento. Para o mesmo autor, os ciclos de evolução do universo

e da vida estão ligados de tal modo que, se acaso interpreto correcta-

mente a sua hipótese, a vida desenvolvida num dos ciclos do universo, e a informação que ela aí acumulou, passam, aquando de um ciclo cósmico, para o universo seguinte, através da «origem»

novo deste

último (v. também Berger, 1976). O código genético actual representa para Portelli a mensagem proveniente de sistemas vivos que existiam num universo que precedeu o actual, mensagem essa portadora de toda a informação necessária para dirigir o aparecimento da vida no nosso universo, e com a capacidade de determinar

vivos. O código genético um código mais perfeito coeternidade da matéria existiria uma constante

a evolução

dos seres

actual contido no ADN produzirá, por sua vez, no próximo ciclo do universo. Como que uma e da vida. Temos assim que, segundo Portelli, universal, que passaria de um para outro uni-

verso, de cada vez fazendo ressurgir aí a vida e sempre

perfeita, pois a mensagem

contida no ADN

de forma

mais

seria cada vez mais rica de

possibilidades. Trata-se de uma pura vista de espírito. Fica de lado a difícil questão da origem do código genético e sugere-se a coeternidade

da matéria e da vida, ideia que não é nova.

Esta procura de invariantes num mundo em constante transmutação parece

ser uma

compensação

para a perda

da visão antiga em

um

mundo em permanente transformação. É uma reacção idealista. Lem-

bra uma reacção análoga àquela (e aliás no mesmo quadro geral) que Popper (1961) denunciou nos partidários do historicismo nas ciências sociais. Em todos haveria medo à mudança, um inconsciente con72

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — |

servadorismo, relutância em aceitar que, quer na evolução biológica, quer na social, não se possa predizer o seu curso futuro, que não existam leis da história ou que o progresso não seja determinado por leis imutáveis. Procura afinal de «essências», ou seja, daquilo que fica inalterável durante a mudança.

O mesmo autor mostrou igualmente que o reducionismo filosófico, além de ser um erro, é devido ele próprio à pretensão de tudo reduzir a uma explicação final em termos de essências e substâncias aristotélicas, quer dizer, a uma explicação definitiva, para além da qual não é possível haver

mais

elucidação,

nem

será necessário que

haja, o que,

no fim de contas, é impossível, porque há sempre em cada redução alegada um «Porquê?» infindável (v. Popper, 1974). Nesta ordem de ideias, conjecturo que o reducionismo poderá também englobar as tentativas, conscientes ou não, de captar o que seria finalmente imutável num mundo em constante transformação — ou seja, as essências. Mas os erros ou os sucessos do reducionismo são (como acentuou o filósofo antes mencionado) fonte de novos problemas e de grande enriquecimento teórico. Mas existem ainda outros aspectos na sociedade que traduzem provavelmente a tendência para considerar o mundo e a sociedade como estáveis, onde nada haveria para profundamente melhorar. Por exem-

plo, a moda de imaginar a presença de «civilizações inteligentes» dispersas no universo, de uma «inteligência universal», com possibilidades admitidas de comunicação e entendimento, pressupõe que exista identidade, ou quase, nos processos cognitivos e nas funções da mente, que por

toda

a

parte

seriam

as

mesmas,

e,

portanto,

uma

mesma

meta

tecnológica teria sido atingida em todos os mundos pela evolução da vida (v., no cap. V esta mesma questão). Esta crença insere-se na mesma ideologia de estabilidade e harmonia necessitada pelos actuais sistemas político-económicos,

tanto das nações

burguesas

como

dos países onde

impera o capitalismo de Estado e o socialismo totalitário. Em todos a estabilidade surge como uma situação especialmente mais importante do que as mudanças, particularmente as mutações socioeconómicas bruscas,

violentas e revolucionárias. A fase de progresso, de mudança e de instabilidade exigidas pela ascensão da burguesia, sobretudo nos séculos XviII e XIX, foi substituída, neste século, por uma fase de resistência por

parte do sistema capitalista (privado e estatal), que se julga naturalmente eficaz e insubstituível, donde a exigência de novas cauções ideo-

lógicas que entram em conflito, já se vê, com ideologias científicas dominantes, nomeadamente com as noções de evolucionismo e de progresso. Também a ideologia da harmonia e do equilíbrio dinâmico na natureza, noções que reinam na ecologia científica e nos movimentos ecológicos (políticos, românticos, etc.), traduz, provavelmente, a mesma 73

GERMANO

tendência,

DA

eco talvez de uma

FONSECA

SAGCARRÃO

situação social

que

se desejaria

estabili-

zada e que se pretenderia demonstrar que o é no plano político e económico. Richard Lewontin (1985) escreveu que «as bem sucedidas revo-

luções do século xvill corriam o risco de ser seguidas

por

outras.

A resistência da burguesia, então dominante, a um ulterior progresso social requeria novas legitimações ideológicas». E acrescenta que «a ideologia do equilíbrio e da estabilidade dinâmica caracteriza tanto a teoria moderna da evolução quanto a teoria político-económica burguesa», que «os organismos estão no seu óptimo esperado ou perto dele» e que, «embora as espécies surjam ou se extingam, nada realmente novo acontece na evolução». E junta, ainda, que «não há progresso porque não há nada a melhorar. A selecção natural apenas impede que as espécies se atrasem muito relativamente a um ambiente em lenta mas contínua evolução». Pensa haver uma «surpreendente analogia» entre essa dinâmica da natureza viva «e a pretensão de que a moderna sociedade de mercado é a organização mais racional possível, e de que, embora os indivíduos possam ascender ou decair na hierarquia social com base nos seus méritos específicos, existe um equilíbrio dinâmico das classes sociais, ocorrendo as mudanças

sociais ou tecno-

lógicas apenas em função da necessidade de fazer frente à degeneração

do ambiente». Esta visão crítica é provavelmente acertada, mas é limitada. A meu ver, aplica-se ao conjunto das modernas sociedades industriais, quer às democracias burguesas, quer aos regimes políticos totalitários. A sua análise de que existe uma tendência para dar supremacia a uma biologia de estabilidade e de equilíbrios dinâmicos parece-me de incluir no contexto do que pode assumir-se como traduzindo reacções à imagem de um mundo em mudança, as quais, como tentei mostrar, parecem resultar de causas diversas. A realidade biológica ou social é demasiado

complicada para consentir ser reduzida a esquemas. O paralelismo ideológico pode traduzir apenas a existência de cenários independentes, quer dizer, a reacção idealista aos conceitos de mudança

podendo

não

depender de necessidades de legitimação ideológica de natureza política. 5.

A

religião

da evolução

O impacte do evolucionismo científico (darwiniano) foi, como se sabe, enorme, não apenas na biologia e na ciência em geral, como na

filosofia e em todos os aspectos e manifestações da vida social e até política. O novo modelo do mundo criado pela revolução industrial induziu

nalguns homens de ciência uma nova visão da realidade — visão tem74

BIOLOGIA

poral, visão de mudança, sequência foi o criarem-se vida. O darwinismo, com vivência dos mais aptos», de conceitos. Este passou, modelo de sociedade. Por

E

SOCIEDADE — 1

e por isso mesmo visão de progresso. A connovos modelos científicos da natureza e da a sua teoria da selecção natural e da «sobreconstituiu a pedra angular do novo sistema por sua vez, a explicar e justificar o novo outro lado, o evolucionismo darwiniano foi,

na sua origem e desenvolvimento, em parte influenciado pela estrutura socioeconómica

nascente.

que era necessário,

as

características

Parece ter surgido exactamente na época

visto que uma

competitivas

do século xIX poderia

sociedade em mudança

e de

encontrar

brutal

exploração

em

rápida e com

do

capitalismo

na nova doutrina a sua própria justifi-

cação, a sua filosofia, os meios para purificar, por assim dizer, a sua consciência. Claro está que vários poderes se viram ameaçados com a revolução darwiniana, tais como a Igreja, os grandes proprietários rurais e outros meios conservadores fortemente apegados aos simbolismos da sociedade, às suas tradições e mitos e aos privilégios recebidos.

Não

é meu

intento ensaiar aqui uma

análise exaustiva das conse-

quências desta revolução mental. Ela não seria, todavia, despropositada, em

descrença

face da

conhecimento e preconceito

actual na ciência e dos ataques

aos valores

do

objectivo em si, em que se confunde análise científica (v. o cap. V). É o caso das pretendidas bases científicas

de muitos dogmas e princípios que recorrem ao evolucionismo científico

para obterem a solidez racional de que carecem, que não será mais que ilusória, para não dizer mesmo, em muitos casos, mistificação pura. O como

evolucionismo tanto tem servido para apoiar os materialismos as doutrinas espiritualistas. E não se hesita em harmonizá-lo

quer com os princípios transcendentes da existência de uma finalidade na natureza

e na

vida, quer

com

o mecanicismo

ou com

as teorias

do

acaso como fontes criadoras. Tanto se socorrem dele os Teilhards, como

os Monods, os Oparins ou os Bergsons. Ultrapassam-se os limites da ciência. Cada um filosofa, defende a sua ideologia, subjectiva o real. Já não é só de ciência o debate. O capitalismo e os totalitarismos não deixaram de aproveitar o filão para obterem o substrato teórico de que careciam. Uns dão a primazia ao espírito, outros à matéria; esta, numa acepção

metafísica,

ainda

que

muitas

vezes negada,

com

algo de ine-

rente e determinante de progresso infindável, como se o mundo estivesse destinado à perfeição e a matéria vocacionada para isso. Outros, ainda, dão nova vivacidade ao antropocentrismo e afirmam a existência de «humanidades» em planetas distantes, capazes de se entenderem (portanto com inteligências análogas) como se a evolução tivesse sido pré-programada no universo, obra de um espírito modelador da matéria para configurações semelhantes, para um mesmo fim que julgam ser a hominização à escala universal. É o retorno à ideia tradicional de que o homem

é o centro e fim de toda a criação. 75

GERMANO

O evolucionismo

DA

FONSECA

científico tem

SACARRÃO

sido, portanto,

deformado

e per-

vertido, ajustando-o, conscientemente ou não, ao modelo desejado, acontecendo que, podendo ser lido em todos os sentidos, perde em consistência o que ganha em vacuidade e confusão !*. Ao serviço de diversas tendências e escolas, o evolucionismo científico tem sido politizado com cores e sinais que variam consoante o clima económico e social e os interesses das classes dominantes. Foi combatido por meios religiosos, por vezes parecendo assimilado, mas sempre aberta ou veladamente

combatido.

Tentou-se,

também,

fazer

dele

o

estandarte

de

uma ideologia, a justificação de uma moral. Ora o evolucionismo como filosofia, inserido numa doutrina, ou assimilado por uma mística ou política, tanto pode servir a libertação do homem como a sua sujeição. Diferentes cores políticas e sistemas económicos lêm-se amparado a um vago evolucionismo e sobretudo à teoria da selecção natural (falseada, já se vê, quando transportada para esses domínios) ou a um oco lamarckismo, para justificar objectivos, atitudes, reformas da sociedade,

ou até decisões atentatórias

da liberdade e dignidade.

Foi,

por

exemplo, o caso do chamado «darwinismo social», grande mistificação de vasta repercussão, que se estendeu inclusivamente à justificação das

ideologias fascistas, nomeadamente das teorias expansionistas do nazismo e outras. Por outro lado, num pólo oposto, Sir Julian Huxley acreditava (como, se verá adiante) muito sinceramente num humanismo cientifico, inspirado na evolução biológica e no princípio da selecção natural,

julgando perfeitamente possível a edificação de uma filosofia total da evolução que explicasse e guiasse os destinos humanos, para um progresso

sem

limites

que

dizia expresso

no próprio

processo

evolutivo.

São numerosas as tentativas para, a partir do evolucionismo científico, construir sistemas mais ou menos filosóficos, vendo-se na evolu-

ção um movimento transcendente, fonte e guia da moral, onde o homem pode encontrar suportes para as suas interrogações metafísicas,

evolucionismo que uns vêem sem sentido, nem finalidade, regido pelas leis da

matéria

e do acaso,

outros,

pelo

contrário,

afirmam-no

miste-

rioso, orientado por forças espirituais, com origem num Criador, vindo de Deus, ou caminhando para Deus, ou força caprichosa em invenção

permanente,

movida

por um

impulso

transcendente

que

atravessa

a

matéria e a modela, havendo todas as combinações destas tendências, mas os mais «optimistas» (materialistas ou espiritualistas) afiançando que o mundo caminha para a perfeição, evolução a significar progresso, ascensão. São filosofias de «esperança», talvez úteis, ou inevitáveis, não o nego. Mas não é da sua inevitabilidade que pretendo agora ocupar-me. O evolucionismo científico, transmutado em religião ou em filosofia, em doutrina transcendente caucionada por ele, perde genuidade, e sem autenticidade científica estiola, transforma-se em retórica. Não confundir, portanto, o evolucionismo como fonte e estímulo da pesquisa 76

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —I

científica, com a sua metamorfose religiosa ou filosófica (ou pseudofilosófica), é portanto um requisito indispensável para se lhe entender o significado. Ora o que acontece é que é a sua feição deturpada que é,

em regra, divulgada ou discutida. Não é possível enumerar todos os autores que têm tentado a transformação do evolucionismo em ideologia, dando-lhe muitos deles um carácter de misticidade. Desde Ernst Haeckel a Teilhard de Chardin, de

Herbert

Spencer

a Lecomte

Noiiy,

du

de

Henri

Bergson

a Julian

Huxley, a Jacques Monod e a tantos outros, todas as interpretações convergem para um objectivo metafísico. Dos

biologistas

Julian

profissionais,

Huxley

foi,

talvez,

o mais

influente, o mais original e o mais brilhante divulgador do evolucionismo

científico e filosófico neste século. E Teilhard de Chardin, em

certos aspectos na esteira do bergsonismo, foi, por seu lado, talvez o que

mais espiritualizou e divinizou o processo da evolução, afastando-o da ciência, mas socorrendo-se desta, sendo ele próprio um distinto paleontologista e antropologista. A sua filosofia esteve muito em voga (agora provavelmente a sofrer um certo declínio) e constituiu uma verdadeira

(como foi o bergsonismo), atraindo espíritos de várias

moda intelectual

tendências ”. O primeiro foi uma das personalidades científicas mais em evidência neste século. Após uma longa e fecundissima vida, faleceu em 14 de Fevereiro de 1975, com 87 anos.

O período em que Julian Huxley foi director-geral da Unesco (aliás, o primeiro desta organização mundial) foi daqueles da sua vida

em que despendeu mais energia e actividade. Disso foi testemunha Joseph Needham, seu colega e notável colaborador (que tinha a seu cargo a divisão de Ciências Naturais) e que lembra esses tempos pio-

neiros (a seguir à II Guerra Mundial) e as conferências diárias inesquecíveis com André Thomas para a cultura e Knoyu-Shou para a educação.

Diversos

autores,

ideias e teorias sobre ao destino do homem

Herbert

Spencer,

têm

pode chamar-se

aquilo a que

tentando

evolucionismo», com o mundo.

desde

construir

uma

doutrina

expressado uma

várias

«filosofia do

que sirva de guia

e de possível solução ao problema da sua relação

Julian Huxley foi dos homens modernos que mais tra-

balharam esta ideia, tendo desenvolvido essa filosofia evolucionista em diversas das suas obras, num humanismo baseado no darwinismo, com

uma ética construída a partir dele, com uma certeza inabalável no progresso humano, que lhe advinha da própria verificação e inter-

pretação dos processos biológicos. Como o humanismo evolucionista huxleyano é dos mais elaborados e aquele que mais influenciou fortemente a filosofia natural de gerações de biologistas e serviu de guia aos divulgadores,

vale a pena expor a doutrina, a partir, sobretudo, de

um ensaio pouco conhecido que o seu autor escreveu em 1946, e que 77

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

provocou forte contestação quando foi submetido à comissão preparatória para a Unesco e à I Conferência-Geral da mesma organização, particularmente porque a exposição tinha um carácter anti-religioso. Esse

estudo

intitulava-se

4

Unesco,

os

Seus

Fins

e a

Sua

Filosofia,

Para não ferir susceptibilidades, o texto não foi publicado por recusa

da Conferência-Geral. Trinta anos após (em 1976), a mesma Unesco publica Filosofia de Huxley, trabalho praticamente desconhecido do grande público durante esse longo tempo. Mas o fundo dessa doutrina, nos seus aspectos humanistas, já era conhecido de outros escritos do mesmo autor. Do artigo em questão extraí as passagens que se seguem, e farei, no final, alguns comentários a seu respeito, tentando mostrar o carácter idealista dessa filosofia baseada numa fé profunda na biologia evolucionista como fonte da ética e guia do destino humano. Para Julian Huxley, o humanismo que está na base dessa filosofia deve ter carácter mundial e ser sobretudo um humanismo científico que «não pode todavia ser materialista, mas deve abraçar tanto os aspectos espirituais e intelectuais como os materiais da existência; deve

esforçar-se por consegui-lo baseando-se numa filosofia verdadeiramente monista, procurando a unidade de todos esses aspectos». Trata-se, portanto, para o autor, de um humanismo evolucionista, tanto mais impor-

tante quanto é certo que «o ponto de vista evolucionista fornece a ligação entre as ciências naturais necessidade de pensar de maneira

e a história humana; ensina-nos a dinâmica, em termos de velocidade

e direcção, e não de forma estática, em termos de posição momentânea e de resultado quantitativo; não semente nos faz compreender

e nos mostra as raízes biológicas dos valores humanos,

mas

a origem

ainda, na

massa aparentemente neutra dos fenómenos naturais, permite estabelecer, para estes valores, certos fundamentos e certos critérios exteriores». Para Julian Huxley, a filosofia geral da Unesco deve ser, portanto, cum

humanismo

científico universal, unificando

os diferentes

aspectos

da vida humana e inspirando-se na evolução». A

evolução

cobre múltiplos

processos

que

ocorrem

no

universo,

onde J. Huxley distingue três domínios diferentes: o inorgânico ou inanimado, o orgânico ou biológico e o social ou humano. Deixando de parte o primeiro, o autor refere-se ao segundo dizendo que neste dominio

«o aparecimento

das duas propriedades

fundamentais

da

matéria

viva: faculdade de reprodução e de variação (mutação), deu à vida um método de a selecção evolução». mais eficaz

transformação absolutamente novo e muito mais poderoso: natural. Daí resultou uma enorme aceleração do ritmo da No domínio humano surgiu, porém, um novo método, ainda como motor de transformações. Enquanto no domínio bio-

lógico surgiu a selecção natural, na esfera da espécie humana a tradição

cumulativa

(produto

da 78

palavra

e do

pensamento

apareceu concep-

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —I

tual), «que constitui o fundamento desta hereditariedade social graças a qual as sociedades humanas se transformam e se desenvolvem». E como neste processo de acumulação e de transmissão existe escolha,

não

há dúvida

de que

«a luta pela existência, que

selecção natural, é, cada

vez mais,

está na base

substituída por uma

da

selecção cons-

ciente, por uma luta entre as ideias e os valores no seio da consciência». Ora para o autor mencionado este novo método especificamente humano

acelera

muito

mais

ainda

o ritmo

possível da evolução,

passou

que

do domínio biológico, onde teria entretanto esgotado as suas possibilidades, para o humano, onde prossegue a sua marcha para novos des-

tinos, sobretudo por transformações a operarem-se na organização social, nas máquinas de trabalho e no domínio das ideias. É nestes aspectos que a evolução humana se evidencia com maior intensidade e força. Logo em seguida, Julian Huxley refere-se ao conflito que opõe constantemente do

presente

a natureza

e a formação

histórica de

novas

de cada organismo adaptações

como

às exigências

solução

possível

desse conflito. Esta oposição, para Julian Huxley, «faz imediatamente

pensar na tese, antítese e síntese da filosofia hegeliana e na “fusão dos contrários” da filosofia marxista, que se funda na precedente. De facto, o materialismo dialéctico foi a primeira tentativa profunda de filosofia

evolucionista». Todavia, para Julian Huxley, o materialismo dialéctico baseou-se quase exclusivamente em princípios de evolução social e não

biológica, nasceu demasiado cedo, ou seja, antes da acumulação e verificação científica da grande soma de factos que mais tarde permitiram

as grandes generalizações teóricas do transformismo.

Para a sua filosofia total da evolução, Julian Huxley considera absolutamente necessária a prova da existência de uma direcção na evolução, que traduza inequivocamente um movimento de progresso. Ora para o autor é a biologia que nos permite «descobrir uma direcção na evolu-

ção, tomada no seu conjunto, e de forma nenhuma limitada ao pequeno

domínio da vida humana,

uma

direcção à qual o termo de progresso

pode perfeitamente aplicar-se». Como provas de progresso lembra, logo a seguir, a complexidade crescente dos organismos, a tendência progressiva no domínio biológico e humano de modificar o ambiente, a tendência para uma maior independência do organismo em relação ao meio, uma direcção no sentido de um acréscimo das capacidades mentais, e finalmente,

já na

esfera

humana,

e somente

nela,

«uma

preensão e uma realização crescentes dos valores intrínsecos», se tornou agora a característica mais importante do progresso.

com-

a qual

Afirma mais adiante que o homem «é o único herdeiro do progresso da evolução» e que «tem o apanágio dos progressos futuros eventuais». E o seu destino evolutivo «pode resumir-se muito simplesmente: é fazer o máximo de progresso num mínimo de tempo». E ainda que «a chave do progresso humano [...] é a tradição cumulativa, a

oque

79

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

existência de um fundo comum de ideias capaz de se perpetuar e de evolver, e este facto teve por consequência imediata que o tipo de organização social tornou-se o factor essencial dos progressos

humanos,

ou pelo menos o quadro que lhe impõe os limites». Da direcção da evolução, do conceito de progresso que dela resulta (para J. Huxley), tira

este

autor

toda

cultural comum,

uma

ética.

Afirma,

que evolucione

como

assim,

um

que

todo,



de

sem

um

partes

fundo

opostas

que entrem em conflito, é que emerge progresso; e defende a ideia de que quanto mais se unificar a tradição humana mais rápida será

a possibilidade de progresso. Um fundo cultural único para toda a humanidade é que será fonte de progresso (v. mais adiante). Daqui segue-se que, para Julian Huxley, o melhor meio de chegar a este resultado é a unificação política. O forte pendor antropocêntrico da sua filosofia leva-o a afirmar que o homem é o tipo de organismo mais elevado da evolução, que nele se perpetua a corrente do progresso para novos destinos e que a posição do homem no cimo da nova scala naturae não deve torná-lo «culpado de vaidade antropocêntrica», pois mais não faz do que «enunciar um facto biológico». Mais longe aborda o problema de como concilia o princípio democrático da igualdade humana com o facto biológico da desigualdade humana de origem hereditária. A igualdade democrática significaria igualdade

de

diferentes

dons

herança

oportunidades,

e

e capacidades

genética.

Julian Huxley

a

desigualdade

naturais

do

biológica

homem

analisa brevemente

incide

nos

transmitidos

por

a parte

da

here-

ditariedade nas desigualdades físicas, mentais e morais dos seres humanas, reconhecendo que em geral é difícil saber qual a participação da hereditariedade

nessas manifestações,

mas

crê que

haverá

determi-

nismo genético para parte delas. Pensa que uma das grandes tarefas que se impõem será a de «conciliar o princípio da igualdade democrática com o facto da desigualdade biológica». Para isso, uma das soluções será «o nascimento de uma cultura mundial única, possuindo a sua filosofia, o seu fundo comum de ideias e um amplo objectivo». Para o final do seu trabalho, o autor tece um certo número de considerações sobre os meios de evitar o confronto ideológico que opõe o Ocidente e o Leste, duas filosofias traduzidas por uma concepção americana

de vida em contraste com a concepção russa, o cristianismo

contra o marxismo,

o individualismo contra o colectivismo, etc., o que,

diga-se desde já, traduz uma esquematização a esconder uma muito

mais complexa.

Pensa

que a solução pacífica

político só pode ser feita no quadro de um

de uma

filosofia unificada, afirmando

só ser realizada

como

deve

realizar-se 80

desse

humanismo

realidade

antagonismo

evolucionista,

que essa conciliação pode não «em

consequência

da

inexorável

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —I

dialéctica da evolução». Ignora se a síntese se fará antes ou depois de

outra guerra, mas realizando-a rapidamente evitar-seá um conflito armado que «faria recuar a humanidade de várias séculos». Parece-lhe ser

esta

uma

Unesco».

tarefa

Por meu

que

«deve

constituir

o objectivo

primordial

lado, devo dizer que me parece puramente

da

irrealista

a ideia de que a uniformidade ideológica garante a paz entre os homens,

mas este é um ponto que não desenvolverei por não me interessar para a discussão

dos problemas

que me

propus

abordar. Não

sendo

possível

transcrever todos os aspectos do artigo de Julian Huxley, limitar-me-ei aos fundamentos da sua exposição, na parte sobretudo que se relaciona com

a biologia

e com

a fundamentação

que

nela

procura

para

ideologia científica burguesa (v. parte final da nota 18). O artigo de Julian Huxley não contém nada de novo respeita

à biologia.

A

sua

originalidade

reside

no realce

a sua

no que

que



ao

evolucionismo, no entusiasmo e profunda fé que nele deposita como solução para todos os grandes males que afligem a humanidade e sobretudo no apoio que vai buscar ao evolucionismo biológico e à selecção natural para com eles construir aquilo que chamou um «novo humanismo científico», e a partir dele de uma nova filosofia de vida, de uma nova medida de valores, de uma segura paz política e de um grande desígnio para orientar para o bem supremo a evolução do homem,

sempre no caminho

do aperfeiçoamento se a receita recomendada for

seguida

todos

à

risca

por

os

povos.

Certamente

que

Julian

Huxley

foi um grande máitre à penser, um grande cientista que deixou notáveis contribuições em diversos sectores da biologia, e um grande divulgador do evolucionismo,

da mesma

Huxley. Foi, sem

dúvida, um

envergadura

do seu ilustre avô, Thomas

dos mais importantes líderes da moderna

teoria da evolução (teoria sintética), que ajudou a edificar, e como cientista está certamente entre os primeiros deste século. Mas isto não evitou, naturalmente, que a sua admiração intelectual pela evolução biológica o conduzisse a uma exaltação apaixonada pelo evolucionismo, com o qual procurou edificar uma filosofia total da evolução. Assim se compreende,

talvez,

que

não

tenha

reconhecido

os limites

entre

a

biologia como ciência e a ideologia que procurava erigir, garantida por essa mesma ciência. A chave de toda

a sua

ideologia

é a noção

de que

existe uma

direcção na evolução que traduz progresso e que este facto é provado pela biologia evolucionista. Ora a verdade é que a biologia não prova objectivamente tal facto. Não prova nem nega explicitamente. Evidentemente que, sendo a vida um processo temporal, é impossível conside-

rá-la independentemente

de uma

sequência

de fenómenos.

Mas

que

esse sequência constitua necessariamente um progresso, só o será por definição ou em relacão a qualquer critério em relação ao qual essa

sequência Bibl. Univ.

histórica 49 — 6

adquira

um

significado. 81

Se a evolução

se tradu-

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

zisse em cada caso por unilinearidade filogenética, talvez se justificasse

a ideia de a evolução traduzir progresso, mas é exactamente

o que os

factos negam. Em geral existiram multiplicidades de linhas evolutivas a partir de uma base ancestral, ramificações adaptativas a todos os níveis, a que as extinções dão uma ilusão de sequência numa única

linha de descendência. Por outro lado, mesmo quando não se possuem documentos

que

demonstrem,

ou

indiquem,

sem

significativa

contes-

tação, as filogenias mais prováveis (o que é raro se considerarmos o conjunto do reino animal), a tendência é para dispor as espécies ou grupos de espécies em sequências temporais graduais, com base em critérios convencionados. E estas sequências são, como se vê, simples sugestões,

meras

hipóteses,

derivações. Além

e nada

têm,

em

regra,

a

ver

com

disso, os critérios para avaliar tais seriações

reais

são em

regra frágeis. Concluir por progresso na evolução em tais condições é quase sempre ilusório. Toda a questão de haver progresso na evolução deriva da nossa posição de seres humanos em relação ao problema. Quase todas as aná-

lises do processo evolutivo são feitas com base num antropocentrismo a que dificilmente se pode escapar. É perfeitamente compreensível fazê-lo, mas já não é legítimo concluir que evolução é sinónimo de progresso, que é sempre e necessariamente progresso. E até conforme

aos critérios humanos pode traduzir ou não progresso. O homem desde há muitos séculos que se vê como símbolo de perfeição, como termo de uma evolução material e/ou espiritual, como produto de um desígnio transcendente,

ou

como

resultado,

ou

como

o

estado

material

mais

aperfeiçoado da grande corrente da vida, na qual os outros seres ficaram para trás. A meu ver, a questão do progresso da evolução não é uma questão propriamente biológica, no sentido em que não se mostra como uma propriedade básica da vida, aparente em todas as suas manifestações. É antes, se não estou em erro, o resultado da aplicação dos múltiplos critérios humanos de progresso. Que «pensaria» o insecto ou a ave se lhes fosse dado olhar o mundo da evolução biológica e ajuizar da sua posição na corrente que lhes deu origem? Quais os critérios do insecto ou da ave? Outra afirmação idealista de Huxley, e não só idealista, mas contrariada pela realidade, é aquela em que afirma (p. 23) que «outra característica geral do progresso é a de permitir sempre um progresso

ulterior, de nunca

se introduzir num

beco sem

saída».

Se, como

me

parece, o autor se refere igualmente ao domínio da biologia, os factos opõem-se a tal proposição, e nesse caso não poderá a ciência biológica

a existência

de

um

progresso

permanente

nas

sociedades

humanas. Nem caucionar nem refutá-lo. O problema, além do mais, torna-se confuso, posto que os bloqueamentos das sociedades escondem, 82

e rm poeta nerenemereeeer

caucionar

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —I

muitas vezes, reais progressos em profundidade, e o haver progresso ou

retrocesso depende muitas vezes de opinião ou de pressupostos ligados a ideologias. Mais uma vez se verifica a necessidade de proceder com cautela

nos ensaios

de ligação

da biologia com

a sociologia.

Outros pontos do artigo de Julian Huxley são muito discutíveis; de outros discordo frontalmente, como seja quando advoga uma

mundial

única,

com

a sua

filosofia,

a sua

uniformidade

ou quando, ao referir-se à diversidade humana

cultura

ideológica;

e à parte que a here-

ditariedade desempenha no determinismo de muitas qualidades que enumera, afirma, por exemplo, que uns seres humanos «são amáveis e

bons, outros cruéis e egoístas», introduzindo assim a ideia de uma possível base genética para esses aspectos, estando ainda seguro de que «pelo menos uma parte da diferença é de origem genética», proposição sem segura base científica, e sobretudo respeitando a aspectos morais e

temperamentais onde as dificuldades começam logo quando se pretende

saber o que ou

se entende

«egoista»,

ou

inequivocamente

«cruel»,

ou

por um

«brilhante»,

ou

indivíduo

«obtuso»

«bom»,

(termos

de

Huxley) £. E todo esse fatalismo hereditário (mesmo atenuado) para o comportamento

moral

tem

o perigo

de justificar múltiplos

precon-

ceitos reaccionários, como terei ocasião de discutir noutros passos deste livro. O mesmo se poderia dizer para a sua afirmação «a luta pela existência que está na base da selecção natural», que seria justificável nos

tempos pioneiros do darwinismo, mas não em 1946, preconceito cujas

consequências foram perniciosas para a compreensão do processo evolutivo, estando na origem de muitas posições fanáticas no domínio da

de alimento ao darwinismo social, que

política, servindo

(não é de

mais afirmá-lo) corresponde a um darwinismo corrompido, tantas vezes

a legitimar as opressões de classe. À teima de ver a selecção natural a

operar em todos os domínios (sem a menor demonstração minimamente satisfatória) conduziu Huxley à ideia de que essa luta pela existência,

promotora

de selecção natural, é substituída por uma

ciente, uma

«selecção cons-

luta entre as ideias e os valores no seio da consciência».

Há mais autores na esteira de Julian Huxley que pensam similarmente sobre o conceito

em

substância

de selecção

o que

obtém

natural,

em

tornando-o

tão elástico que perde

latitude.

Toda a filosofia total da evolução, no sentido que lhe deu Huxley, perde conteúdo e significado quando se verifica que a sua trave mestra — que a evolução biológica é progresso — não é de modo nenhum garantida pela biologia evolucionista. Há progressos, de acordo com certos critérios, não progresso num único sentido. Filosofia generosa, filosofia de esperança, sem dúvida, a ser tomada ou negada por razões de fé, mas onde a biologia tem de desvirtuar-se para garantir essa ideologia, essa

religião,

que

o

autor

apelidou 83

de

«humanismo

evolucionista».

GERMANO

tem,

Razão

a meu

DA

FONSECA

ver, o conhecido

SACARRÃO

biólogo

Peter

quando

Medawar,

escreveu que tão grande era o entusiasmo de Huxley pela ideia de evolução que passou para o final da sua vida a tratar o evolucionismo

como uma espécie de religião secular ”. O

evolucionismo

darwiniano,

como

teoria

científica

da

natureza

e da vida, não deve confundir-se com os desvios e desfigurações

a que

o sujeitam as necessidades de justificação de sistemas políticos ou os interesses e privilégios de classe, ou o desejo de construir com ele (ou apoiado nele) uma religião ou uma filosofia que dê resposta a interrogações metafísicas sobre a relação do homem consigo e com o mundo. É por igual estranho às deturpações que lhe têm infligido políticos, filósofos, escritores e vulgarizadores ignorantes. Apelar para causas transcendentes ou para hipóteses inverificáveis está fora do domínio da ciência, e, enquanto novos dados não lançarem

luz sobre os enigmas

numerosos que persistem, há que limitarmo-nos ao método científico, no quadro racional da busca de novos factos e da sua interpretação por meio de hipóteses legítimas, inseridas num contexto lógico-factual, ou comprovados pela observação e/ou pela experiência. Torna-se assim necessário delinear os contornos da ciência, no caso presente as fronteiras da biologia evolutiva, assinalar os limites em que podem formular-se hipóteses legítimas, e até que ponto podemos ensaiar sugestões científicas, tendo o cuidado de fazer a distinção entre as questões que apelam para respostas científicas ou filosóficas ou ambas. Mas ter presente que fora dos limites da ciência o biólogo penetra do domínio da filosofia ou nos caminhos nebulosos das ideologias, da paraciência ou da ficção científica, que já não é o seu. O obscurantismo surge quando, deliberadamente ou não, se mistura ciência com ideologia e com fé, quando a crença e o dogmatismo subvertem a dúvida e o conhecimento objectivo. Neste e noutros aspectos, Darwin

será sempre

um

exemplo

de probidade científica absoluta. Nunca os seus trabalhos científicos foram conscientemente motivados por outro objectivo que não fosse a procura cautelosa da verdade, num tactear prudente da realidade, meta que ele perseguiu recorrendo ao mais puro rigor dos factos e dos méto-

dos, edificando uma obra que é um monumento ao espírito humano. Que a sua posição de classe e a época em que nasceu determinassem,

em grande parte, a sua obra não é de duvidar. Mas esse é outro problema, que deixaremos para um outro capítulo. Sem dúvida que as controvérsias suscitadas pela teoria da evolução

parecem mostrar que muita gente tem dificuldades em aceitar a evolução da natureza e do homem como um processo puramente sem origem e finalidade divinas, sem espiritualidade, sem

material, qualquer

sentido religioso ?. Assim se explicam as múltiplas interpretações metafísicas que têm sido propostas à teoria e pondo-a de acordo com a teologia. A Igreja suavizou os seus ataques, mas diversas seitas protes84

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — |

tantes, em particular os fundamentalistas, rejeitam em absoluto a evolução sob qualquer forma. A velha oposição ao darwinismo reacendeu-se em grande parte devido à importância crescente da biologia nas ciências humanas, em especial na psicologia e na sociologia, que não podem já ignorar as contribuições fundamentais desta ciência no domínio do comportamento social. À convicção de muitos biólogos e não biológos de que

a agressividade,

a competição,

a territorialidade, a natureza

e a

génese de comportamentos egoístas ou altruístas são da responsabilidade quase absoluta da hereditariedade, e que as tendências inatas do homem têm a sua raiz remota numa herança biológica recebida do seu passado animalesco, têm sem dúvida contribuído muito para lançar a confusão no espirito de cidadãos desprevenidos. Ora essa ideia está muito longe de

ser

tão

simples,

e

se,

sem

dúvida,

contém

algo

de

verdadeiro,

toda ela não é uma verdade. Em globo é falsa. O reducionismo que nela subjaz tem conduzido a deformações, a erros de perspectiva que é necessário desfazer. As múltiplas potencialidades de realização humana permitem o aperfeiçoamento moral e a livre ascensão a uma dignidade por escolhas deliberadas. O homem não é joguete dos seus genes, nem escravo directo da sua herança biológica.

A evolução biológica e social não nos mostra que o homem é escravo de fatalidades biológicas, mas sim que é um ser todo ele com ibilidades para ser livre e responsável, mas cuja liberdade e responsabilidade têm de ser obra sua. Assim o indica a extraordinária evolução

da

sua

inteligência

neodarwinismo

e da

extremista,

autoconsciência. nomeadamente

A

ampla

difusão

de

um

da ideologia sociobiológica.

reducionista e sectária, com pretensões a substituir a filosofia e a sociologia, a moral e a própria religião, provoca muitas vezes reacções igualmente sectárias e irracionais da parte dos que, muito justamente, se recusam a considerar o homem um simples «símio inteligente» e egoísta, provido de instintos inflexíveis de agressividade, para o qual não haveria lugar para a esperança nem futuro de dignidade. Existe hoje em certas áreas uma acentuada reacção religiosa contra a evolução,

contra

o

darwinismo

científico,

particularmente

contra

a

selecção natural, processo que teria uma importância menor na evolução. Como outras épocas, esta é caracterizada pela trindade, fanatismo, terrorismo e repressão. Assim, não surpreende a hostilidade dirigida ao espírito de livre exame e ao trabalho científico não comprometido. A selecção natural poderá ter importância secundária, mas esse facto terá de ser suportado por estudos aprofundados, conduzidos na natureza, que dêem base segura à presunção. Ora tais estudos faltam. Os que têm sido empreendidos estão longe de ser suficientes. E têm sido desacreditados, talvez sem razão. É esta uma das grandes exigências actuais da biologia — investigações sobre a selecção natural na natureza. INão serão argumentos político-religiosos que poderão servir para refutar a 85

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

teoria da selecção natural. Nem, ao invés, que alguns trabalhos experimentais constituam fundamentos para justificar uma crença dogmática na mesma teoria. Sobretudo muito há ainda a esperar do estudo da embriologia evolutiva e causal, e de investigações sobre o cérebro e os processos mentais, quer no homem, quer nos animais. Estas áreas poderão contribuir substancialmente para um alargamento das pers-

SPTV

Dee USOS



pectivas da teoria moderna da evolução.

86

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — 1

NOTAS

1 Aristóteles é justamente

considerado como o primeiro naturalista digno deste

nome (v. meu 1958). Até Charles Darwin, ninguém mais do que ele contribuiu para a compreensão da natureza viva. Os seus conhecimentos biológicos eram vastos e exactas muitas das suas observações. Possuía uma óptima informação sobre a fauna da Grécia (reconheceu, segundo parece, quinhentas e vinte espécies). Elaborou,

pela primeira vez, uma classificação de acordo com a anatomia, os hábitos e até com certos aspectos embriológicos e fisiológicos, expressos, por exemplo, em diversos caracteres com os quais distinguiu os peixes dos mamíferos. Crismou grupos zoológicos com apelativos que ficaram para sempre na linguagem científica. Descreveu a biologia de numerosos animais marinhos, observou o desenvolvimento do choco e

da galinha.

Reconheceu

a partenogénese

das abelhas, etc. É admirável

o que con-

seguiu com a sua habilidade e poder de observação. Desprovido de instrumentos ópticos e numa época praticamente sem tradição de conhecimentos positivos na área das ciências da vida, legou-nos uma soma considerável de factos verdadeiros que só no transcurso dos últimos dois séculos puderam ser confirmados como exactos. 2 Há diferenças entre as formas ou ideias de Platão e o essencialismo de Aristóteles, ainda que o segundo se tenha directamente inspirado no primeiro. Enquanto para Platão as formas ou ideias são exteriores e anteriores às coisas sensíveis, Aristóteles não as concebe com existência à parte das coisas, as quais, portanto, não se distanciam das ideias, mas, ao contrário, se movem no sentido dos seus fins ou causas finais, as quais identifica com as suas formas ou essências. À forma ou

essência

(termo

dos tomistas)

isso, todo o movimento cialidades

ocultas

está na coisa e não é anterior e exterior a ela. Por

ou mudança

inerentes

à

se traduz pela concretização efectiva de poten-

«essência»

de

uma

coisa.

Porém,

as

«essências»

ou

formas aristotélicas são idênticas à «alma» ou «natureza» de Platão, como aliás declarou Aristóteles, e para ambos (e seus seguidores) a intuição intelectual é o meio de descobrir e apreciar as essências. A essência é a totalidade ou a fonte das potencialidades próprias de uma coisa,

sendo aristotélica a ideia de que a «essência» (imutável) de uma coisa só é revelada pelas suas modificações, e portanto

a

sua

da coisa respectiva só é possível uma subitamente

uma

que

«essência»,

mostram a

qual

os diversos aspectos e possibilidades não

muda

durante

o processo

de

da coisa,

modificação

(dados segundo Popper, 1961, 1966). Para a escola essencialista mudança real profunda por meio de um salto que transforme «essência»

ou

«tipo»

noutra

«essência»

ou

«tipo»,

visto

que

uma

«essência» é sempre a mesma, ainda que se dêem modificações superficiais e acidentais na coisa. Transformação gradual não é possível pela simples razão de que as diferenças entre as «essências» são de uma natureza (metafísica) inteiramente diversa das variações operadas no âmbito de cada «essência» ou «tipo», de modo que não há possibilidade de passagem insensível de uma para outra. É o que acontece com a espécie (v. a nota 15 deste capítulo). Segundo a filosofia idealista platónico“aristotélica, a espécie não existe a nível dos indivíduos que a compõem, mas antes num nível diferente e mais profundo da realidade. É uma estrutura idealizada, uma forma que a define, e não o que aparentemente conslitui os indivíduos, os seus caracteres, as suas variações. Lamarck (com a motivação psicológica do animal) e Geoffroy-Saint Hillaire tentaram explicar a passagem de uma forma material de um “tipo»

para

outra

forma

de

outro

«tipo»,

mas 87

não

conseguiram

edificar

uma

teoria

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

coerente e aceitável. Essa revolução intelectual iria ser a obra de Darwin, que, tendo mostrado que a evolução é um processo gradual, tal facto torna-o inconciliável com o — tudo dogma do essencialismo. Em biologia não há classes de entidades idênticas é variável no espaço e no tempo, quer a nível da organização visível, quer «invisivel», de modo que a evolução não envolve as «classes», as categorias v. g. espécies), mas sim as variantes (diferenças entre os indivíduos e suas partes). Veja-se, mais adiante, o cap. V.

3 A great chain of being, como Arthur Lovejoy, no seu clássico livro, designou a grande cadeia ascendente dos seres, desde os mais infimos até ao mais perfeito, teve consequências históricas de grande significado para a biologia, não só da Renascença como dos séculos XVII e XVIII e começo do XIX, nomeadamente os principios da hierarquia e da gradação e quase continuidade entre os organismos. Ora a hierarquia da natureza, considerada como um dado divino, justificava a imutável hierarquia

social, a existência de classes superiores e inferiores, e do mesmo

passo o seu imobi-

lismo. É de notar que na «escala dos seres» os vários elos são extremamente vizinhos, mas não se interpenetram. Que a scula naturae tivesse subentendida a noção de evolução é uma pura vista de espírito, provavelmente equívoca, a traduzir um ponto

de vista inverificável. Contra essa noção estão os dois mil anos durante os quais a ideia de evolução não surgiu à luz, o que mostra a ineficácia da «escala dos seres». Quando, para o final do século xvirI e sobretudo no começo do século xIX, a escala ascendente, agora transformada literalmente em «escada», começou a ser desmem-

brada e «temporalizada»

(na expressão de A. Lovejoy)

e se iniciou a transposição

para um quadro conceptual de mudança mais ou menos confessada, a hierarquia, a continuidade e o progressivismo (sem mudança) nela aparentes, isso aconteceu não por meditação sobre a scala, mas por uma multidão de razões científicas, económicas e sociológicas que estavam a preparar activamente o clima intelectual. Dizer

que a scala inclui algo que ninguém viu durante séculos e ela nunca evidenciou é, a meu ver, pura retórica. Nos séculos XVIII-XIX, entre as várias forças em jogo no processo de ruptura e de outro entendimento da «grande escala da natureza», parecem-me ser de mencionar: as extinções de espécies (facto que punha em cheque a perfeição da «escala», e portanto a perfeição divina, o que para muitos era impensável); a entrada em cena da geologia, a mostrar a existência de transformações lentas e graduais na modelação da superfície terrestre e a evidenciar um grande recuo temporal na idade da Terra (e não os seis mil anos tradicionais, ou menos), circunstância que permitiu que se tivessem dado modificações profundas e contínuas nas plantas e nos animais; os avanços

extraordinários

obtidos

no

conhecimento

das

floras

e das

faunas

das

mais

diversas regiões, o que, pela riqueza e variedade de espécies, fornecia dados e levantava problemas que já não eram compatíveis com o plano da natureza sob a forma de uma cadeia de seres estática, unilinear e ininterrupta, onde cada espécie tem o seu lugar fixo e eterno, à qual subjaz a velha noção aristotélico-teológica de que a causa é mais importante do que o efeito, querendo isto dizer, no caso em análise, que, sendo cada forma da série linear de seres superior à que a precede, não pode obviamente

ser originada dela, isto fazendo da evolução um

processo impossível

de ocorrer.

Deve ainda acrescentar-se que uma sociedade em mobilidade e transformação profunda, com a que estava a nascer da revolução industrial, a romper com os velhos

privilégios senhoriais, a quebrar as antigas barreiras

que

separavam

as classes,

tinha certamente de ter efeitos ruinosos para uma concepção rígida do mundo assente na teologia natural, regulada pelo poder divino. Se a sociedade já não era o reflexo da

ordem

divina,

se a burguesia

aspirava

por

mudança

e por

progresso,

pela

explo-

ração da natureza (e não, como até aí, a sua contemplação), como poderiam manter-se velhos conceitos estáticos, como o de plano divino da natureza, sob a forma de sistema linear hierárquico fechado, de uma «cadeia de seres» em que encontra predeterminado, inclusivamente os germes de todas as espécies e 88

tudo se também

BIOLOGIA os da espécie

humana,

e encapsulados

em

E

estes igualmente

séries,

uns

nos

SOCIEDADE —I preformados

outros,

à

desde

espera

de

geração?

O progresso das observações científicas e uma

paravam,

portanto,

o caminho

ralizado,

quer

teoria

da

para

a aceitação

científica.

Com

a

da

a primeira

se

feitos desenvolveram-se

à custa

dos menos

Eva,

em

cada

sociedade em mudança

evolução,

revolução

quer

industrial

burguesia passou para a scala algo de profundamente blasfémico: derivam

mulher,

desenvolverem

perfeitos, os escalões

do

e

conceito

a

pregene-

ascensão

da

os seres mais per-

superiores

da «escala»

dos inferiores.

4 Por exemplo, os degraus na «escada dos seres» não comunicam

entre si. Se

estão tão vizinhos uns dos outros, é para que todas as formas possíveis de seres possam estar aí representadas, com todos os intermediários possíveis. A sua proximidade

tão íntima não traduz dependência, comunicabilidade, continuidade. As espécies existem, mas não se transformam umas nas outras. Uma forma intermediária é criação própria, independente, que não vem de outra, nem engendra outra. Cada

uma uma

com a sua «essência», essa entidade oculta e misteriosa, que ainda hoje atrai filósofos e biólogos, buscam algo que não existe. O plano da natureza fixa, sendo de origem divina, não podia consentir descendência de espécies. Simplesmente, por criar Deus as coisas e os seres, não precisa de os derivar uns dos degradação, degenerescência. Aplicou-se esta ideia às raças aos símios, etc.

5 Segundo Balthasar Osório (v. meu

outros. Poderá haver é humanas não brancas,

1953, p. 85).

6 George Louis Leclerc, conde de Buffon (1707-1788); Jean-Baptiste Pierre Antoine de Monet de Lamarck (Chevalier), (1744-1829); Georges Chrétien Léopold

(1769-1832).

Cuvier (barão),

7 Os evolucionistas

darwinianos

preencheram

essas lacunas com

formas

(a estabelecer possivelmente a ligação, mas com profundas imprecisões)

fósseis

ou com for-

mas idealizadas de transição, arquétipos, etc.

8 Como escreveu Bowler (1984), só a partir do momento em que se considerou

que todo o universo físico estava em mudança

é que se tornou possível imaginar que

os seres vivos também estivessem realmente num estado de transformação natural. Todo o ímpeto do evolucionismo foi para a supressão da necessidade de crer na intervenção divina para explicar a existência e a própria estrutura das espécies. Mas

aconteceu em seguida em

termos

de

que passou a explicar-se o novo conceito de mudança

planificação

divina,

como

criação

de

Deus,

e mesmo

Darwin

contínua

admitiu

esta ideia ainda que apenas aplicada à origem das leis gerais que regulam a evolução da vida e não para os pormenores das transformações que escapariam ao planeamento

divino. A selecção natural, todavia, constituía uma

enorme

dificuldade

porque

era

inadmissível que uma teoria baseada no jogo da «tentativa-erro», de que resultava a «sobrevivência dos mais capazes» numa dura «luta pela existência» pudesse constituir um processo criado e comandado por Deus (v. o cap. v). À partir do momento

em que foi excluída qualquer intervenção sobrenatural na génese das espécies (obra sobretudo de Darwin) é que o problema da sua origem ficou aberto para ser abordado

cientificamente. ? A teoria preformacionista dos germes (v. a nota 3) veio alterar um pouco a compreensão da «cadeia dos seres», devido a que no século xviIIL os filósofos da natureza

Charles

Bonnet

e J. B.

Robinet

consideravam

a estrutura

da

natureza

não

já como absolutamente estática, mas em que cada elemento da cadeia surgiu um a seguir a outro no decurso da história da Terra, mas agora estando tudo predeterminado pelo sistema dos germes. Não havia porém evolução (descendência). A esta introdução da componente tempo chamou Lovejoy (1964) a «temporalização» da cadeia (v. Bowler,

1984),

10 Consoante os pontos de vista, poderiam considerar-se outros modelos. Aqui, tomo como base da visão do mundo o conceito de evolução numa perspectiva biológico-social.

89

GERMANO li Recentemente

têm-se

DA

FONSECA

verificado

SACARRÃO

tentativas

para

reconhecer

ainda

maior

importância a Aristóteles, sobretudo o facto de ele ter compreendido os seres vivos de uma maneira que se aproximaria da visão actual, particularmente a propriedade

O eidos de Aristóteles (que não é o mesmo de Platão) é um princípio teleonómico que realizaria no pensamento desse filósofo exactamente o mesmo que o «programa genético» na concepção do biólogo moderno. E então, ou o ADN dos genes é a «essência», ou Aristóteles nem mesmo teria sido um essencialista, ou o seu essencialismo era melhor do que o de Platão (Mayr, 1982, Bernier, 1984, Ghiselin, 1985).

Mas os autores que, como Mayr, fazem a reabilitação de Aristóteles, e advogam a «essência» para o filósofo seria o mesmo

que o «programa

genético»

da

que

Desen rremtaeo supra omite

de os seres vivos cumprirem um projecto, serem sistemas teleonómicos, realizarem afinal um programa que hoje a biologia afirma estar contido no ADN dos genes. O conceito actual de programa genético (ou de genótipo) equivaleria ao de «essência»

biologia

moderna não me parece que tenham razão. A comparação não é legítima (e tem muito de metafísica); e a conclusão é falsa porque o desenvolvimento de um organismo não é realmente a simples concretização de um «programa interno», como o «motor imóvel» que desencadeia a formação do organismo. Pelo contrário, o desenvolvimento é um processo histórico onde em cada fase há comparticipação, há

simultaneidade de acção de múltiplos agentes — de genes, dos ambientes que se sucedem, dos processos e estruturas do próprio organismo que vão surgindo no tempo, das orientações impostas pelas várias e consecutivas morfologias realizadas, do que o

organismo total faz, das acções que cria, dos meios que constrói, e como tudo isso depois se repercute no mesmo organismo até à sua morte. Se a extensão e qualidade das observações biológicas de Aristóteles são factos incontestáveis, isso não significa que a sua metafísica não constituísse um obstáculo, sobretudo pelo seu método essencialista de que o objectivo

da ciência

é encontrar e

compreender a natureza de cada coisa, o «tipo»» ideal dela, a sua «essência» secreta. Mesmo o seu conceito de «escala da natureza» poderia tê-lo conduzido a uma certa noção de evolução (noção que não seria nova), mas não o fez porque estava

absolutamente convicto de que nada no mundo mudava. 2 A burguesa

progresso

teoria

da evolução

e a expressão

traduz

as

representa

em

e desenvolvimento

contradições

(v. Lewontin et al., 1984).

nascidas

grande

da sua

no

parte

ideologia.

âmbito

da

a

glorificação

E mesmo

sua

da

o seu

imagem

do

visão

ulterior

mundo

3 A ideia de progresso biológico é muito antiga (Aristóteles, etc.), muito anterior ao estabelecimento da teoria científica da evolução, mas só a partir desta é que o conceito foi relacionado com o transcurso temporal. Só com a noção de evolução da vida como um processo materialmente histórico é que as velhas noções de «inferior» e «superior» obtiveram novo significado, tal como a própria ideia quase intuitiva de progressão e mesmo de progresso. heresia. Buffon

atreveu-se

a calcular 168 000 anos, mas em privado pensava ser muito mais antiga, meio milhão de anos e mais, mas Immanuel Kant foi mais longe nos seus cálculos sobre a idade do mundo, que para Lyell seria ilimitada, enquanto Darwin a considerava na ordem dos vários milhares de milhões de anos (Mayr, 1982). 15 Charles Darwin foi um dos primeiros pensadores a provocar uma mudança radical na maneira tradicional de pensar a natureza. De tipológico ou essencialista, o método passou a ser populacional, quer dizer, a realidade são os indivíduos, com as suas qualidades e variações materiais, e não o «tipo», a «essência», essa propriedade oculta de uma «classe» de objectos inanimados ou de seres vivos, compartilhad | a por todos os seus com ponentes, nos quais as variações singulares seriam desvios dessa natureza metafísica (ver, adiante, o cap. v). Sem uma tal revolução 90

e

14 A ideia da antiguidade da Terra passou por diversas vicissitudes. A Igreja

estimou 4000 a. C., sendo qualquer desvio considerado uma

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — 1

no pensamento, a teoria científica da evolução não poderia talvez surgir. São as diferenças materiais entre os indivíduos que é necessário estudar e não as entidades ideais, «essências» ou «tipos». Os indivíduos de uma espécie, por exemplo, são diferentes uns dos outros, e não há a uni-los qualquer transcendência, intencionalidade ou predestinação que lhe marque o destino e a posição, como sucede no pensamento

tradicional. As diferenças que manifestam são da mesma ordem das diferenças entre as espécies.

Na concepção tradicional, que durou de Aristóteles até meio do século xIX, as variações entre os indivíduos com uma mesma «essência» tinham importância secundária, eram consideradas como anomalias ou desvios, ou acidentes em relação ao «tipo», e eram metafisicamente diferentes das variações entre os «tipos». Enquanto

não foi ultrapassado este obstáculo intelectual, não estava aberto o caminho para a biologia

evolucionista

moderna.

Esta

revolução

no

modo

de

pensar

não

a

fizeram

os «precursores» do evolucionismo científico, como Maupertuis, Buffon, Geoffroy Saint-Hillaire e outros, nem mesmo Lamarck. Foi essa revolução a grande viragem

no pensamento, e não a ideia de evolução, que já era admitida antes da publicação de A Origem das Espécies. A visão criacionista-essencialista era ainda demasiado forte e os tempos

pouco

amadurecidos

para

que

nessa altura

se fizesse a completa

modificação dessa visão. A revolução consistiu na rejeição do idealismo platónico-aristotélico

natureza

consequências

e as

viva

segundo

um

profundas

esta ruptura

que

de onde

processo

estavam

teve

a explicação

para

da

a

a interioridade,

retiradas

teologia e a metafísica tradicionais. Para Darwin (ao contrário de todos os seus antecessores e contemporâneos), a evolução resulta de uma alteração na proporção de variantes preexistentes à direcção adaptativa (os indivíduos diferem uns dos outros à

anteriormente

variação

surge

adaptar. Quer e desuso

«necessidade»

em

da

indivíduo

cada

adaptação),

dizer, a variação para Lamarck

dos órgãos,

enquanto

para

enquanto

resposta

como

é anterior

mesma

a

ressentida

é adaptativa e é uma

a variação

Darwin

Lamarck

para

à necessidade

de

se

reacção ao uso

à adaptação

e não

tem relação causal com ela, o que é radicalmente diferente de tudo o que até aí tinha sido proposto. Introduziu na evolução o método absolutamente revolucionário da «tentativa-erro»

(R. Lewontin)

(v. o cap. v). E que já não é a espécie propria-

mente o objecto de estudo, mas sim os indivíduos e as populações.

16 Para além de ser uma teoria biológica, o evolucionismo tem uma influência considerável nos sentimentos e acções do homem, como acentuou Mary Midgley (1985), que chamou à evolução um mito («is the creation-mythe of our age»),

se bem que não queira com isso afirmar que é uma falsa teoria, mas sim que possui um grande poder simbólico, que é independente do facto de ser ou não ser verdadeira.

Não há dúvida de que o evolucionismo tem várias leituras, boas e más, pode exercer uma

acção

deformante

e ser

captado

e utilizado

pelas

mais

diversas

ideologias

e

metafísicas. Pode-se tirar dele e caucionar com ele tudo o que se quiser. Por exem-

plo, sempre existiram e existem tentativas de espiritualizar o darwinismo (e mais recentemente a sociobiologia) e ajustá-lo à fé (v. meu 1982, p. 105). Até há pouco mais de duzentos anos, era da religião que se tirava a moral e era com ela que se interpretava a natureza; depois passou-se a tentar edificar a moral a partir do evolucionismo darwiniano, já que este cada vez mais ocupava O lugar do sagrado, Assim se poderá compreender que a religião, a ideologia política e o

evolucionismo biológico sejam quase indissociáveis. Tanto ele é uma expressão puramente e nada

materialista, mais,

como

forma um

de movimento

movimento

para

da matéria, Deus,

como

sem

finalidade

exaltou

Teilhard

transcendente, de

Chardin.

Seja ou não em parte devido a esta extrema facilidade de utilização ideológica, a verdade é que têm resultado infrutíferas as tentativas de construir sistemas éticos derivados dos princípios científicos da evolução biológica, e que esta possa constituir uma referência para a defesa ou edificação de valores humanos. Nem a sabedoria nem a moral podem ser retiradas do evolucionismo biológico, como firme, única 91

GERMANO e

infalível

referência,

como

DA

FONSECA

tentaram

vários

SACARRÃO

pensadores,

entre

os

quais

sobressai

Sir Jutian Huxley, precisamente porque tudo e os seus contrários podem ser extraídos dele. 17 São numerosas as tentativas empreendidas para conciliar a evolução com a religião. A mais elaborada, e, para muitos, a mais conseguida,

é talvez

a de

Teilhard

de Chardin (Le Phénomene Humain, 1955), para quem a evolução da vida era um processo universal de progressiva espiritualização. Julian Huxley interessou-se muito por esta filosofia, tendo até escrito um prefácio para a tradução inglesa do livro acima

referido,

mas

outros

cientistas

de

nomeada

foram,

pelo

contrário,

muito

severos nas suas críticas (v. g. Peter Medawar) e também numerosos teólogos (cit. Bowler, 1984). Sobre Teilhard de Chardin vejam-se, por exemplo, os artigos de François Russo

e de Yves Coppens publicados em Le Courrier de VUnesco, Novembro de 1981. E igualmente o trabalho de Ana Luísa Janeira (1978) sobre a interpretação do pensamento

científico

e da metafísica

da obra

de Teilhard,

sua

origem

e desenvolvi-

mento, contendo abundante bibliografia. Iê Julian Sorell Huxley (1887-1975), na época em que escreveu o seu ensaio (1946), situa-se ao lado daqueles que preconizam medidas eugenistas para obter a melhoria do ser humano («par des mesures eugénistes concertées, si nous décidons délibérément d'améliorer cette capacité»), nomeadamente a capacidade mental inata do homem. É possível que estivesse imbuído de uma certa dose de geniticismo, no que se refere, por exemplo, à inteligência, e que depositasse seguras esperanças nas medidas eugenistas para colocar o homem e a sociedade em melhores bases. Este hereditarianismo, no que respeita ao desenvolvimento psíquico humano, é a expressão de uma constante demarcação relativamente ao idealismo filosófico e à teologia, em

defesa de um materialismo científico e da edificação de uma sociedade toda impregnada

de

ciência,

como

aliás outros

ilustres

biológos

seus

contemporâneos

também

manifestavam, como H.-J. Muller e J. B. S. Haldane (este com variantes da opinião), na sua luta para expurgar a ciência e a sociedade de todas as influências idealísticas e religiosas.

Na sua autobiografia (Memories, 11, 1973), Julian Huxley refere-se a esse ensaio interditado, giosa, nem

justificando que a Organização não podia assentar numa doutrina reliem qualquer dos sistemas filosóficos reconhecidos, porque não havia

unanimidade num caso nem noutro, mas apenas doutrinas e ideologias que se opunham entre si. Persiste na mesma ideia de que a Unesco devia trabalhar no quadro do que apelidou humanismo científico, que, na sua opinião, se fundava em factos incontroversos

da

biologia

evolutiva

darwiniana,

que

se

prolonga

em

progresso

na

esfera humana, com o domínio do ambiente e das forças naturais pelo homem. Após fazer a história da entrega do seu ensaio à comissão, e da recusa absoluta do historiador Sir Ernest Baker (membro da mesma comissão) em autorizar a sua publicação, por ajuizar que a Unesco não podia adoptar uma posição ateísta, traduzida pelo humanismo

científico,

Huxley

confessa

que

«retrospectivamente

crê que

ele

[Baker]

tinha razão» vorque seria desastroso subordinar a actividade da Unesco a qualquer doutrina fosse qual ela fosse, ainda que a Unesco tenha trabalhado numa perspectiva humanista (v. Le Courrier de "Unesco, Outubro de 1985). Para mim, o humanismo científico de Huxley corresponde em parte, se não mesmo no todo, a um ponto alto e optimista da ideologia burguesa (reconstrução económica, reajustamento político, em seguida à II Guerra Mundial), uma espécie de sublimação actualizada do darwinismo, ainda sem os excessos que viria a ter o seu mais recente rebento — a sociobiologia. 19 C. H. Waddington, biólogo respeitado, era igualmente um entusiasta do

evolucionismo, afirmando, por exemplo, que «devemos

aceitar a direcção da evolução

como

accept

boa

simplesmente

porque

ela é boa»

(«we

must

the direction

tion as good simply because it is good», in Science and Ethics, K. Popper, 1961). 92

of evolu-

1942, p. 17, cit. de

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — I

2? Em Portugal, o evolucionismo científico jamais mereceu qualquer atenção séria, nem da parte de profanos, nem da parte da Universidade (v. o cap. v e meu 1985). Por vezes, desperta a atenção de um ou outro estudioso ou curioso, mas quase sempre visando objectivos religiosos ou anti-religiosos. Por exemplo, no livro de F. Neto de Carvalho (que, como diz, não é cientista) intitulado O Homem Ponta de Lança do Universo, Livr. Almedina, Coimbra, 1977), que se garante com certos dados científicos, nomeadamente da biologia, todo o seu discurso é um acto de fé

no evolucionismo,

movimento

filosofia obscura. Na

última

no qual acredita haver um página

pode

sentido, traduzindo

ler-se, por exemplo,

à guisa

uma

de conclusão:

«Acredito, por isso, que a evolução tem um sentido que nos conduz a um equilíbrio de convivência que todos desesperadamente buscamos», e tudo conforme a um «Princípio que anima o Universo e constitui o seu elemento aglutinador», como escreve quase logo a seguir. Enfim, repete-se a velha história: uns acreditam que vida e matéria não são separáveis, outros, pelo contrário, que a vida corresponde a algo de misterioso e inefável que anima a matéria. Para a biologia actual, a evolução tem o valor de um facto incontroverso, mas no quadro das suas interpretações cabem confusamente todas

as metafísicas.

93

CAPÍTULO A

HI

HUMANAÇÃO

Qualquer tentativa de levantar um pouco que seja o véu que encobre o determinismo biológico das acções sociais dos homens, do seu comportamento individual e colectivo, exige uma referência, ainda que

breve,

à história,

ao

desenvolvimento

das

complexas

inter-relações

da evolução física e comportamental, e com alusão, também, aos outros

mamíferos, em especial aos primatas superiores que lhe são mais próximos (chimpanzé, gorila, etc.). Quando a organização do corpo do homem é comparada à dos outros mamíferos,

torna-se

evidente

que

ele pertence à ordem

dos pri-

matas. É curioso comprovar que desde a antiguidade sempre se reconheceu

a estreita

semelhança

entre

o homem

e os símios, mas

só com

a

aceitação generalizada do darwinismo é que as similitudes foram cientificamente explicadas por parentesco e descendência. Durante séculos, nunca surgiu, com toda a transparência, na mente dos homens, que as

semelhanças entre eles e os macacos indicassem parentesco e origem a partir de um tronco comum. Ou, se tal se deu, a ideia era tímida e logo

refutada pela poderosa autoridade dos textos sagrados ou por preconceitos idealistas, todos a negar a existência de um dinamismo de mudança na natureza. Os símios seriam formas imperfeitas, degradadas, e não uma fase do movimento evolutivo que originou o homem. Já muito antes da publicação de A Origem das Espécies, de Charles Darwin, se haviam observado semelhanças mais ou menos íntimas

entre os mais variados grupos de plantas e de animais, quer entre formas adultas, quer entre estados embrionários. Estes últimos são particularmente significativos para a formulação de hipóteses de descendência. Com efeito, no século XvIII e na primeira metade do século XIX já se sabia que certos órgãos passam, durante o desenvolvimento embrionário, por estados semelhantes aos estados definitivos desses mesmos órgãos

noutros

grupos

inferiores.

Assim

acontece

praticamente

com

todos os grupos de animais multicelulares (metazoários). E o homem não foge à regra. Entre os vegetais conhecem-se também numerosos exemplos. A interpretação desses fenómenos de semelhança não era feita,

porém,

num

espírito

transformista.

E

todavia

não

temos

hoje

dúvidas de que a semelhança entre os embriões de todos os vertebrados 95

GERMANO só

pode,

logicamente,

DA

FONSECA

conduzir

à

SACARRÃO

conclusão

de

que

tal

facto

indica

parentesco e comunidade de origem. Havia ideias que constituíam obstáculo a essa interpretação e que só foram varridas definitivamente pelo impacte do livro de Darwin. A preocupação de muitos naturalistas da segunda metade do século xvir e da primeira metade do século XIX consistia principalmente na procura

da «unidade de plano» na natureza. À ideia transformista transparecia por vezes muito tímida nessas especulações, mas era ainda confusa ou

influenciada por velhas reminiscências aristotélicas. Por exemplo, Meckel (1806), na Alemanha, e Serres (1824), em França, precedidos por

Kielmeyer

(1793),

pensam

que

a

ontogenia

sucessão de estados transitórios que reproduzem nente

de grupos

inferiores

da escala

animal

do

homem

é uma

a organização perma-

(«lei

do paralelismo»).

Esta concepção, porém, era quase exclusivamente idealista e transportada a exageros. Havia nela uma intuição transformista, mascarada, porém, pela ideia da «unidade de plano». Nestas especulações dos natu-

ralistas pré-darwinianos

suas

relações

descendência

com

sobre a sucessão dos estados da ontogenia

a anatomia

tal como

comparada

ela surge

autêntica

não em

existia

Darwin.

uma A

nas

ideia

de

«unidade

de

plano» é que seria a causa das semelhanças e não o resultado de parentesco evolutivo ou de descendência. Este último conceito só mais tarde

é que surge com nitidez com a aceitação do transformismo. A ideia-base em Meckel e em Serres era a da «escala dos seres»

(a série ontogenética

e a escala dos seres seriam paralelas). Esta ideia inspirou-se na concepção de G. Bonnet (1764), um conceito, de resto, com raízes aristotélicas e com

intermediários prováveis em

capítulo

anterior).

Outros

W. Harvey e em John Hunter

naturalistas

seguiam

a «escola

dos

(v. o

factos»

de Cuvier, mas negavam ainda mais o transformismo do que os anteriores. Merece referência especial Von Baer, um grande naturalista que lançou

os

alicerces

da

embriologia.

Em

1828

estabeleceu

um

certo

número de princípios muito importantes. Um deles, por exemplo, diz que os estados embrionários ou juvenis de um indivíduo não se assemelham sim

às formas

adultas

dos indivíduos

aos estados embrionários

ou juvenis

dos grupos

desses

inferiores, mas

indivíduos.

Esta obser-

vação fundamental ainda hoje forma uma das bases do significado da embriologia para a evolução. É evocada sempre que é necessário recorrer ao testemunho

organismos. Não

Mas

da embriologia

Von

para apoiar o processo

Baer era fixista, sobretudo

evolutivo dos

para o fim da vida.

deixa de ser singular que tais proposições, conhecidas por «leis de

Von Baer», se aproximam muito das ideias actuais sobre o significado da ontogenia para a evolução. Bastaria adaptá-las à «linguagem»

formista, e foi o que se fez com o triunfo do darwinismo. Von descritivo

Baer da

enunciou realidade,

os seus sem

princípios

preocupações 96

num

espírito

especulativas

trans-

puramente

sobre

as rela-

BIOLOGIA

ções da embriologia com

E

SOCIEDADE — I

a evolução ou a filogenia; e poderia tê-lo

feito, se não fora o obstáculo mental que consistia em encarar a natureza em

termos

Darwin

(1864),

estáticos.

Fritz

estabeleceu

Miúller,

de forma

no seu famoso

fecunda

livrinho

Fiir

as novas relações entre

a ontogenia e a filogenia, à luz já da profunda revolução introduzida pelo darwinismo.

Darwin

varreu

das mentes os últimos obstáculos ao

evolucionismo, fazendo admitir prontamente que as semelhanças de estrutura indicam relações de parentesco e de origem e que os vários graus de diferenças e de semelhanças traduzem vários graus de paren-

tesco. A

estreita

semelhança

do

homem

com

os

símios



havia

sido

reconhecida por Aristóteles. No século xvilr, Lineu (Carolus Linnaeus)

inclui o homem o podemos

e os símios no mesmo grupo (os «Primates»). Assim

verificar na

10.º edição da sua obra fundamental

Systema

Naturae (1758), que serve de base para o estabelecimento da nomenSímios e homens

clatura zoológica.

na ordem

dos Primatas e na classe

A ordem sofreu alterações, tendo mais tarde sido dela

dos Mamíferos.

retirada outros mamíferos aí incluídos por Lineu (como os morcegos),

tornando-se por isso mais homogénea e mais de acordo com o transfor-

mismo, que é, por princípio, incompatível com grupos taxonomicamente heterogéneos,

ou

seja,

incluindo

subgrupos

com

diferentes

histórias

evolutivas, e sobretudo com diferentes origens. Claro está que há gru-

s assim constituídos (grupos polifiléticos), ou por razões práticas, ou por falta de dados para se construir uma classificação mais de acordo com a história evolutiva, ou por desacordo entre os especialistas, etc. Mas

em

princípio

uma

categoria

taxonómica

deve

ser mono-

filética (isto é, comunidade de origem para as espécies que nele estão incluídas). Segundo o ilustre naturalista sueco, todos os seres humanos pertencem a uma só espécie, Homo sapiens (o homem sábio). As várias

raças humanas não seriam mais do que variantes dessa grande espécie. A inclusão num mesmo grupo dos homens e dos macacos foi um evento de grande alcance, num sistema de classificação cuja influência no mundo científico passou a ser enorme. Para Lineu, o mundo era obra de Deus e a classificação reflectia o plano dessa criação, obedecendo

à filosofia essencialista, Apesar disso, a aproximação dos homens e dos símios

influenciou

reflexo

de possíveis

outros

naturalistas, que viram

afinidades,

e preparou,

na aproximação

portanto,

o

as mentalidades

para uma aceitação do darwinismo, que logo deu uma explicação racional e materialista deste e de outros factos até ai envolvidos nas confusões e obscuridades da escolástica e da teologia. À reunião do homem

e dos símios no mesmo Bibl.

Univ.

49 — 7

grupo obedeceu, sem dúvida, a critérios de 97

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

semelhança, de níveis aproximados de complexidade e de perfeição corpórea, mas para Lineu nada disto significava parentesco evolutivo, medida de afinidades ou descendência. 1.

O

Símio-Adão,

o «primeiro

homem»

e

outros

mitos

No século xvilt, o célebre naturalista Buffon (1707-1788) representou na sua Histoire Naturelle a imagem de um feto de macaco (cercopiteco) que impressionou vivamente os estudiosos seus contemporâneos. Tal facto mostra que, pelo menos da parte de Buffon (e pelo que se conhece das suas tendências evolucionistas), havia um parentesco próximo entre todos os macacos e o homem. À escolha do estado fetal foi motivada precisamente pela ideia de que a cabeça do macaco tem grandes semelhanças com a do homem. Como escreveu Adolf Portmann (1965): «No século xvim, a ideia que tinham existido “sub-homens” influenciou igualmente a tese do símio antropóide, considerado durante longo tempo como um irmão imperfeito, como um homem silvestre, o piteco, e que Lineu denominou Homo Eram variantes do homem, criaturas pacíficas, mas esta

nocturnus.» ideia, como

justamente lembra o mesmo autor, foi substituída no século xIx, sob a influência do darwinismo nascente, pela concepção de considerar

os símios antropóides como bestas selvagens e cruéis, devido à ideia dominante na época de uma rude luta pela existência que caracterizaria a natureza. Mais tarde, essas ideias modificaram-se no

que

respeita

aos

símios

antropóides,

quer

às

de novo,

formas

de

quer

transição

entre o escalão animal e o escalão humano, se assim se pode dizer por uma questão de simplicidade de explicação. Mas a moderna etologia animal, com os seus conceitos de cooperação social, de lutas ritualizadas e não destruidoras, de agressão atenuada, veio, em parte, corrigir os exageros tradicionais sobre o carácter sangrento e violento da luta pela

existência.

Mas

a influência

novos alentos e novos rumos.

primitiva

não

se perdeu;

antes

ganhou

As ideias sobre «o homem original», sobre a sua condição física, cor da pele, comportamento moral, posição e superioridade em relação à natureza, etc., foram modeladas pelo cristianismo, mais propriamente pela tradição judaico-cristã e greco-pagã. Mas enquanto na primeira 0

«homem

original»

é o reflexo

da

perfeição

ideal todavia perdido em consequência

divina,

do pecado

criado

original,

como

tal,

na segunda

ele é um produto da Terra e não de um Deus omnipotente. «Já muito antes do século xvilt, considerava-se que esse ideal era representado pelo branco do tipo designado *caucásico”. As Escrituras davam tal facto como certo, e contavam a história da arca de Noé, cujos vestígios

Em

98

orgao

no Cáucaso ainda são procurados na actualidade por cientistas crentes».

BIOLOGIA

E mais adiante

Portmann

E

SOCIEDADE —I

acrescenta que «aos olhos dos Ocidentais,

a raça caucásica parecia ser a mais bela e a mais próxima da harmonia perfeita das formas» e que a cor da pele «era naturalmente a cor

“autêntica”, assim como

der e Kant confirmam»

o declaram Blumenbach

e Buffon, e que Hen-

(cit. de Portmann, op. cit.).

Toda esta mistura de concepções e tradições religiosas e estéticas do Ocidente ainda hoje pesa sobre as ideias que se forjam sobre a imagem da humanidade primitiva e seus precursores. Por um lado, a imagem de Adão e Eva no Paraíso, ideal da forma de vida autêntica que se perdeu após a queda. Por outro, a ideia mística de um Adão andrógino,

criação

de

criação

divina

anterior.

e súbita,

vivendo

A

imagem

em

do

homem

original,

condições idílicas,

de

moralmente

puro e inocente, contribuiu profundamente para a modelação espiritual do Ocidente cristão, e foi, até ao advento do darwinismo, como justamente nos diz Portmann, «reforçada por argumentos filosóficos e im-

pregnados de elementos místicos». Esta concepção tradicional colide

ainda

hoje

em

tantos

pontos

com a teoria da evolução que explica certa confusão existente a respeito da origem e evolução do homem, e a persistência de certos conceitos,

como sejam o da procura de testemunhos físicos homem. A mitologia antiga e a filosofia de certos primeira fase, contribuíram, como já referimos para a idealização de um mundo em mudança, partir da matéria inerte, e desta aos organismos e

e naturais do primeiro pensadores gregos da no capítulo anterior, com uma evolução a finalmente ao homem.

Ora esta concepção opunha-se à tradição judaico-cristã, orientada noutro

sentido, com o mundo, as coisas e os seres criados por um Deus omni-

potente,

que

neles

intervém,

e não

pensando

a Terra

como

a fonte

directa do homem e de tudo o que vive. Com o darwinismo associado

a esta amálgama

de tradições nasceu necessariamente

a ideia de uma

humanidade originada em formas inferiores e brutais, e a ideia do homem como o produto de uma evolução progressiva, caminhando para a perfeição, mas de mistura com a velha concepção cristã do primeiro ser humano (equivalente do Adão), que pudesse constituir o

ponto de partida de uma ascensão espiritual em continuo progresso, e para muitos movida por inspiração divina. Adiante mostrarei o infundado da concepção do primeiro homem. Mas há um ponto para o qual Portmann

também

chamou

a atenção e que a meu ver merece registo,

ainda que não esteja de acordo com parte do seu pensamento. A propósito da revolução intelectual ainda não terminada, resultante da nova concepção sobre o homem nascida na segunda metade do século XIX, escreveu o mencionado autor: «Com a técnica ocidental,

propagada universalmente, impõe-se também o modo de pensar que engendrou esta técnica e que subverte as formas primitivas do mundo 99

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

de outrora. Esta metamorfose fez desaparecer a alta concepção que se fazia do homem primitivo e que teria podido servir de protótipo para uma regra da existência. O estado precursor animal, que as ciências naturais lhe substituíram, não podendo já assumir a função de modelo, implica todavia uma perigosa presunção, a de que o homem representa um progresso em relação ao animal, e que ele está no direito de se envaidecer por ter atingido um grau superior de evolução.»

Não creio

que um modelo de homem primitivo criado por Deus pudesse ser de algum proveito para orientar os homens. Aí está para o demonstrar o falhanço do modelo religioso ocidental que não evitou comportamentos infamantes de que está bem recheada a história do homem ocidental, com as perseguições e ódios raciais, e com os imensos crimes do colonialismo

e da escravatura.

Quanto

ao segundo

ponto,

é possível

que Portmann tenha razão, mas não me parece que possa saber-se se é esse o sentimento

geral da humanidade,

se de facto os homens

se sen-

tem superiores ao animal (e vaidosos por esse facto) por resultarem de formas

inferiores.

Lembrarei

apenas

neste

contexto

que,

segundo

a

Bíblia, a Terra foi povoada por animais e plantas para poderem servir o homem, e neste aspecto cristã para colocar o homem

tudo se conjugou também na doutrina em posição de superioridade absoluta em

relação ao resto da criação. Por outro lado, nem

toda a humanidade

é ou foi cristã, e as ideias sobre a natureza variam muito com as diferentes

culturas,

no espaço e no tempo.

Aliás, a concepção de que o tipo ideal humano é o homem branco conduziu imediatamente à ideia da sua superioridade, preconceito de

que ele se apropriou, passando a fazer parte da cultura, com todas as suas consequências, entre as quais a justificação para a prática da escra-

vatura e para a exploração colonialista. Quem detém o poder, quem utiliza e explora o semelhante, constrói ou procura uma teoria legitimadora, bem ou mal elaborada, justificações religiosas, ideologias políticas e cauções pseudocientíficas que actuam em descargo da consciência e bom fundamento das acções. E não se julgue que a teoria da evolução,

atestando a origem humilde de todos os homens, não pode ser ideologi-

camente moldada num sentido de discriminação racial ou de opressão, como o foi muitas vezes, com a indiferença ou a complacência da Igreja de Cristo. Aliás, a afirmação de que o homem progresso em relação ao animal traduz ideologia, que

retirar

do

evolucionismo

Lamarck

darwiniano

como

dos

foi mais explícito do que Buffon

textos no que

representa um tanto podemos

sagrados. respeita à con-

dição natural do homem. Logo em 1809 encara a possibilidade de o ser humano descender de grandes símios. Refere-se, também, a um «orango

de Angola», que considera denciar

«o mais

as suas estreitas semelhanças

perfeito dos animais» com

o homem,

mas

para evinão

que este animal esteja realmente a sofrer um processo de transformação 100

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — 1

em ser humano. Tinha a ideia de que a organização do corpo humano é o produto de remotas modificações nas suas acções e hábitos. A partir

de um

tipo quadrúmano,

Lamarck

explica

a sua transformação

em

bimano pelo abandono do estado arborícola e, portanto, fazendo uso dos pés exclusivamente para a marcha. Estimulado por diversas necessi-

dades, esse ser hipotético tomaria, pouco a pouco, a postura vertical, e aprenderia a falar para comunicar. As necessidades psicologicamente ressentidas provocariam as necessárias (e adaptativas) modificações orgânicas. É

curioso

no

mismo a respeito

entanto

que

do homem,

Lamarck

mostrava

nomeadamente

um

sombrio

pelos malefícios

pessi-

que ele

provoca no equilíbrio da natureza, e pelas destruições das suas riquezas,

em florestas, em solos férteis, etc., vaticinando um verdadeiro desastre a que

hoje

podemos

chamar

«ecológico»,

eliminando-se

o homem

a si

próprio após ter aniquilado a Terra, transformada em planeta inabitá-

vel. Apesar deste negro augúrio, Lamarck considerava o homem o ser mais surpreendente e admirável que habitava a Terra (v. referências em Burkhardt, Jr., 1977). Lamarck é provavelmente o primeiro autor a dizer, de forma relativamente clara, que o homem provém de formas inferiores extintas,

mas esta ideia só foi retomada e desenvolvida após a publicação de A Origem das Espécies por Darwin, em 1859. Com esta obra lançaram-se as sementes

para

base aliás muito

O aprofundamento

e clarificação

dessa

ideia,

numa

teórica, visto as bases factuais serem ainda incertas.

Na realidade, os documentos do passado eram praticamente nulos para convencer os meios científicos e profanos. Fósseis de restos humanos ou infralhumanos quase não existiam, ou eram postos em dúvida

quanto ao seu significado. Todavia, a publicação de A Origem (onde o seu autor apenas diz que o processo do transformismo por selecção natural esclarecerá o problema da origem e da história do homem) lançou rapidamente cientistas como T. H. Huxley e A. Wallace na Inglaterra, E. Haeckel na Alemanha e Carl Vogt em Genebra (e outros ainda, como L. Biichner, F, Rolle, etc.), entre 1859 e 1871, a aplicarem

a doutrina de Darwin ao problema da origem da humanidade. Então, Darwin, como que encorajado por estas obras, mas ainda hesitante por temer avolumar a indignação pública já suscitada pelas suas doutrinas,

publica em 1871 o livro The Descent of Man, onde desenvolve então largamente as suas ideias sobre esse tema escaldante. Aí estabeleceu Darwin

que, tal como

os outros organismos, o Homo

sapiens é um

pro-

duto de evolução a partir de formas inferiores totalmente diversas, transformação realizada por processos naturais e sob a influência directora da selecção natural. E o grande naturalista conclui que o homem e os grandes símios actuais descendem de símios primitivos já extintos. 101

FN ES

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

Dois homens notáveis contribuíram largamente para dar grande expansão e desenvolvimento científico ao problema. Um foi Th. H. Huxley, que já referi, que publicou, em 1863, o seu clássico livro

Man's

Place in Nature.

E o outro foi Ernst

Haeckel,

na

Alemanha,

que abordou o mesmo tema na sua Natiirliche Schôpfungsgeschichte (1868). Para o final do século, o problema da origem e evolução do homem era um problema inteiramente científico, tendo Haeckel] afirmado no IV Congresso Internacional de Zoologia, efectuado em Cam-

bridge, em

1898, que «a origem

do homem

a partir de uma

série de

pelo

vaga hipótese;

primatas extintos já não pode considerar-se uma

contrário, é um facto histórico bem estabelecido». Nesta

data já se

conheciam há anos os restos de Pithecanthropus erectus!, forma humana arcaica a estabelecer, na opinião da época, a ligação entre os

símios e o homem

moderno, de que Haeckel tinha imaginado

a exis-

tência em 1806, e que cinco anos mais tarde o achado dos restos desta

forma humana feita por E. Dubois veio afinal confirmar a existência. O próprio nome descoberta

Pithecanthropus

foi inventado

antes da

surpreendente.

antevisão

restos, numa

dos respectivos

por Haeckel

Desde o final do século x1x, os conhecimentos sobre o passado do homem

enriqueceram-se enormemente

e o problema

das origens, apesar

de todas as incógnitas que o envolvem, tem suscitado sugestões de base científica que têm alargado e aprofundado as perspectivas sobre a emergência do homem e o seu destino. As considerações que se seguem não pretendem constituir qualquer resumo sobre um problema tão complexo, mas tão-somente pôr em evidência aqueles aspectos que poderão ajudar

a compreender,

em

parte,

em

que

consiste

a originalidade

do

símio humano. E sobretudo mostrar que a ideia do «primeiro homem»

não corresponde aos factos que a ciência tem revelado, que não houve um

Símio-Adão,

mas

sucessão

histórica

numa

sim

uma onde

qual foi o ser humano original. 2. em

A questão

das

gradual não

emergência

é possível

da

assinalar

humanidade, concretamente

origens

Os primeiros homens foram provavelmente precedidos por primatas

que

coexistiam

caracteres já nitidamente

humanos

e caracteres

de

é muito

abarcando

mais

complicada

necessariamente,

se

considerarmos

tamabém,

102

os múltiplos

a

taxonomia

restos

dos

humanos

re Sande

DANE PPS PUT

ordem

extintos,

A VMUIAINTIPA RE

homem e também outras formas mais primitivas, sobretudo os lémures « os táraios

A

amo:

* O grupo actual dos primatas inclui os símios (macacos é grandes símios) e 0

Ir

antropomorfos *, Os australopitecos são, de certo modo, a comprovação deste facto,

BIOLOGIA

que não tenham

mesmo

dade. Estes primatas

E

SOCIEDADE — 1

sido eles os antepassados directos da humani-

formam

grupo muito complexo, conforme

um

o demonstra o estudo dos seus numerosos restos. Constituíam um grupo de primatas superiores que viveram na África do Sul e na África Oriental. Os restos mais antigos de hominídeos têm cerca de 5-6 milhões

de anos. Mas se são ou não de verdadeiros australopitecos ninguém o sabe. Como as opiniões divergem, muitas vezes, quanto ao significado dos restos encontrados, os limites da sua antiguidade são incertos. O que parece certo é que os australopitecos viveram pelo menos desde há 4 milhões de anos até há cerca de 1,5 milhões de anos. Eram primatas de pequena estatura (entre 1,20 m e 1,60 m, com peso do corpo oscilando entre 20 kg e 65 kg, que se assemelhavam mais a antropomorfos do que ao homem actual, ainda que, por outro lado, estejam, do ponto de vista evolutivo, mais relacionados com o homem do que com aqueles. A capacidade craniana situava-se entre a dos antropomorfos e a do homem, oscilando entre os 435 cc e os 600 cc. Marchavam na posição vertical. A dentadura é de tipo humano, assim como a bacia, e outros que nos caracteres do esqueleto, como a posição mais anterior do

antropomorfos do buraco occipital, facto que está intimamente ligado à à bipedia. Os membros eram; quase humanos e o pé está adaptado posição marcha bípede. Eram. portanto bípedes e marchavam em

|

vertical.

Tem-se admitido a existência de dois grupos distintos de australo-

pitecos,

provavelmente «robusta»,

e a forma

representando duas espécies: a forma «grácil» designados,

tecnicamente

Australopithecus africanus

respectivamente,

por

(Dart, 1925) e Australopithecus robustus

(Broom, 1938). A forma «grácil», mais progressiva (omniívora), assemelhar-se-ia mais ao género Homo, enquanto a «robusta» (vegetariana) teria mais afinidades com os antropomorfos. Os australopitecos do grupo

«grácil» eram sobretudo caçadores e trabalhavam muito grosseiramente a pedra e o osso, que utilizavam como instrumentos. Viviam provavelmente em ambiente mais ou menos árido, em pradarias secas, com

pouca vegetação, ao contrário da forma «robusta», que viveu em condições de certa humidade, em áreas de arborização pouco densa. O tipo de alimentação reflecte as condições ecológicas dominantes. Em amseco,

a forma

do alimento

vegetal,

biente

manos

com

uma

«grácil»

sido forçada,

teria

em

face

da

escassez

a nutrir-se de insectos, aves, répteis (provavel-

classificação complicada. Entre os símios distinguem-se os macacos

do Novo Mundo (longa cauda por vezes preensora, vivendo na América, do Uruguai ao Sul do México) e os macacos do Velho Mundo, entre os quais ocupam um nivel » superior os grandes símios (sem (chimpanzé, gorila, orangotango,

mais

quentes

da

África

cauda) gibão).

ou da Ásia.

designados também por «antropomorfos Vivem quase exclusivamente nas regiões

103

GERMANO

mente vez

de ovos)

mais

DA

e pequenos

predominante

FONSECA

mamíferos.

com

o aumento

SACARRÃO

Esta dieta passou da

aridez.

É

lógico

a ser cada supor

que

tais condições de ambiente exercessem pressão sobre as condições de existência destes primatas sub-humanos. Pressão que se exerceu de forma a terem sobrevivido em maior número os indivíduos mais inteligentes,

mais

hábeis

pela difícil procura

em

solucionar

de alimento,

os inúmeros

actuando

problemas

a selecção

natural

dos indivíduos mais imaginativos na concepção de armas mais eficazes para capturar mais facilmente as presas. australopitecos era já muito superior aos dos primatas sados e tinha um volume superior ao do cérebro dos actuais, e isto para uma massa corpórea que era neles vezes menor. Utilizavam provavelmente uma certa forma emitindo sons com determinados significados. não

levantados

a favor

e armadilhas O cérebro dos seus antepasantropomorfos quatro a seis de linguagem,

Formavam na sua vida social comunidades de caçadores (o que significa que tivessem comportamento de carnívoros), facto que

impunha a necessidade de trocar ideias, planear actividades em comum e conceber, de forma rudimentar, decerto, planos para a caça em grupo. Mas, como veremos mais adiante, a actividade da caça não era provavelmente exclusiva num

animal que era predominantemente

omniívoro.

Se os australopitecos mais progressivos não foram os antepassados

directos

dos primeiros

homens,

representam,

pelo menos,

um

ramo

muito próximo da base de onde emergiu gradualmente a linhagem humana. Mas há quem ponha em dúvida que os australopitecos representem um estado de evolução da humanidade, constituindo a transição entre o complexo queniapitecos-ramapitecos (hominídeos arcaicos) e os

primeiros

representantes

do

género

Homo

(Homo

habilis).

locomoção

não teria, talvez, as características da locomoção

moderno;

e que,

além

disso, paralelamente

aos

A

sua

do homem

australopitecos,

teriam

existido homens semelhantes ao Homo erectus. Este ponto de vista não corresponde, porém, às conclusões da maior parte dos trabalhos que têm sido empreendidos. Com efeito, pensa-se que a série Australopithecus africanus > Homo habilis > Homo erectus (pitecantropo) —> Homo sapiens corresponde a quatro escalões fundamentais da evolução humana, série esquemática, sem dúvida, mas a exprimir uma certa realidade, que não devemos entender estritamente como uma evolução linear,

mas

antes

como

quatro

estádios

de

organização.

Não é improvável que os australopitecos se situassem na linha que conduziu ao homem. Não há nada de fundamental na sua organização e comportamento que se oponha à ideia de que a humanidade tenha passado por um estádio semelhante, representado por primatas bípedes, com dentadura humana, com cérebro mais pequeno do que 0 do homem, mas mais volumoso do que o dos antropomorfos, de inte-

ligência

superior

à destes

últimos,

104

autores

de

uma

cultura

bastante

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —. 1

rudimentar, sem dúvida, e capazes de apreenderem relações de causa e

efeito. Importante é o facto de que a invenção e fabrico de instrumentos precedeu o homem. O mesmo se pode dizer da locomoção bípede da dentadura de tipo humano e, provavelmente, da linguagem e da

lentidão de crescimento ligada a longa fase de juvenilidade e de aprendizagem (v. mais adiante). À linguagem, por exemplo, se era rudimen-

tarissima, significa, porém, que não houve um hiato absoluto em relação à emergência da linguagem articulada tipicamente humana. Esta transição gradual para a humanidade suportada pela documentação fóssil mais moderna, indicando que o que ia fazer original-

mente o homem

já existia sob uma

forma ou outra nos primatas que

o precederam, torna impossível marcar o momento em que surge o primeiro

homem,

ou

assinalar

em

determinados

restos

um

testemunho

da sua primeira presença, da sua configuração física, e inclusivamente

provas do começo das suas características psicossociais subitamente nascidas. Assinalar a origem do primeiro homem é tão improvável de acontecer que se pode afirmar que a busca do primeiro primata humano

é mais um pseudoproblema do que uma questão real. O que modernamente

se sabe do determinismo

do processo evolutivo, dos mecanismos

de encadeamento

histórico, que se desenvolve gradativa-

genético-ecológicos que estão na sua base, opõe-se à hipótese de haver um «primeiro homem», porque a evolução biológica é um processo de continuidade,

mente, ainda que rapidamente, por vezes. A inovação que surge em cada fase insere-se na condição que a

precede, num encadeamento onde o passado subsiste mais ou menos profundamente modificado. Cada mudança é condicionada pelas alte-

rações

precedentes

O modo

como

e determina,

por

sua

vez,

as que

lhe

sucedem.

se realiza a evolução em cada caso depende

assim

da estrutura que lhe deu realidade e fora da qual não tem existência (cf. meu

1985) 2. O homem

não estava predestinado, mas sem dúvida

que os vários escalões infra-humanos determinaram o que ele é, con-

servando-se sempre nele vastos testemunhos do passado, que podemos hoje descobrir na organização e comportamento (em parte) do ser humano: o seu passado longínquo pisciforme, ou o seu passado mais recente de mamífero, ou o ainda mais próximo de primata. Idealizemos que se dispunha de todas as séries de documentos, de todos os elos e provas anatómicas e culturais ao longo do vasto segmento temporal decorrido desde, pelo menos, os primatas proconsulídeos ou dos ramapitecos do miocénico superior (ao longo de cerca de 20 a 25 milhões de anos). É quase certo que nessa cadeia de todas as formas e indústrias, passando gradualmente (como somos obrigados a intuir em face da documentação que se tem acumulado) da forma primata-símio para o símio humano moderno, com todas as combinações

e estados intermediários, não seria possível fixar aquele elo em que o 105

GERMANO

termo

DA

de «autêntico homem»

FONSECA

pudesse

SACARRÃO

pela primeira

vez ser aplicado.

Atente-se, por exemplo, nas interpretações a respeito do célebre Homo habilis, que para uns é já um homem, enquanto para outros tratar-se-ia

de um autralopiteco avançado. A complicar o problema está o facto de que a humanação do símio não seguiu provavelmente um curso linear. Pelo contrário, diversas linhas evolutivas se devem ter formado e extinguido, à excepção daquela, mais progressiva, mais plástica, que, reunindo

os atributos um

tanto dispersos por outras formas de primatas, consumou a humanação. À série que conduziu à humanidade é apreciada a posteriori, numa espécie de finalismo póstumo. Os que discordam deste ponto de vista talvez devam atentar no facto de que as tendências ocultas, as ortogéneses misteriosas, tão apreciadas pelos evolucionistas idealistas, são quase sempre o resultado de uma combinação de dois factores — um espírito preconcebido, pronto a pôr em evidência destinos previamente demarcados, e a necessidade lógica do espírito humano de ligar fenómenos ou formas em sequências lineares. George G. Simpson (1965), ao discutir a ambiguidade do termo «ortogénese», interroga-se sobre se existe algo de intrínseco nos organismos ou na evolução que determine tendências a prosseguir indefinidamente, sem desvios, para direcções determinadas, e independentes das constrangências do ambiente. O peso dos factos e uma poderosa argumentação da parte deste e de outros autores levam à conclusão de que as ortogéneses não obedecem provavelmente a causas

inatas a apontarem para determinadas finalidades que impulsionem a evolução numa dada direcção, independentemente das imposições e contingências

do ambiente.

À

evolução

é em

grande

parte

invenção.

E com razão observa: «Certamente que qualquer grupo de objectos pode ser disposto em séries graduais de acordo com um critério. O resultado naturalmente que nada diz sobre a maneira como se desenvolveram as características dos objectos ou fenómenos seriados, a não ser que o critério utilizado

seja verdadeiramente

filogenético

e correctamente

esta-

belecido» (idem, p. 269). Em muitos dos trabalhos e livros que relatam e discutem os acha-

dos sobre o passado da humanidade existe, a meu ver, subjacente à frieza dos métodos e mesmo ao mais puro racionalismo e objectividade dos seus autores, a ideia de pôr em evidência a imagem do primeiro homem, como se a tradição cristã do «homem original» continuasse

no íntimo da nossa cultura a ser a fonte mais ou menos

interpretações.

Esta

tendência

verifica-se

regularmente

em

oculta das obras

de

divulgação. No livro de Jules Carles Le Premier Homme (1970), o próprio título anuncia essa preocupação, e no texto o autor várias vezes tenta explicar (um tanto confusamente, aliás) como apareceu o primeiro homem, invocando a mutação decisiva que bruscamente teria feito surgir de repente um ser humano possuidor de razão, capas 106

BIOLOGIA

SOCIEDADE — 1

apoiar-se em dados da ciência

esta posição não pode

de reflectir. Ora

no que se conhece sobre o processo da evolução

nem

antropológica,

E

biológica, ou no comportamento

primatas

dos

e dos outros mamíferos.

O que se sabe do psiquismo destes animais, em particular dos primatas

como o chimpanzé, não suporta a tese do brusco aparecimento no homem da inteligência reflexiva. O mesmo preconceito pode ser facilmente observado noutros autores, mesmo quando abordam o problema da génese da humanidade em termos de evolução gradual, e de acordo (pelo menos aparente) com o jogo complexo da mutação-acidente e da selecção natural. Se o método os incita a considerar uma evolução gradual de populações, um enraizado preconceito leva-os a discutir se tal ou tal fóssil deve ou não

ser considerado

como

ser humano,

o primeiro

representando

mesmo

considerando-o como sob a forma de grupo. Numa outra posição encontramos aqueles zoólogos, antropólogos, divulgadores ou simples amadores de ciência que negligenciam, de uma forma ou outra, o significado causal do encadeamento histórico, e, mais de acordo com a tradição, imaginam uma origem brusca do ser humano, mas atribuindo-a a profundas modificações cromossómicas, ou de qualquer tipo de mutação

resultassem

de onde

misteriosa,

repentinamente

mitivos

dois seres de sexo diferente, o Adão

advento

imediato

em

certos símios pri-

e a Eva.

Para uns,

a

metamorfose envolveria a brusca mudança da configuração física e o Para

outros,

seria

de

uma

de

razão,

só a parte

ideias

espiritual

sobre

o bem

que repentinamente

e o mal. surgiria

num ponto da sucessão de várias formas físicas historicamente ligadas. E aquela que se veria prontamente possuída de capacidade espiritual, do poder de pensar e escolher em termos de moral, seria a do primeiro ser humano *. À luz da ciência não é compreensível que um primata sub-humano

sofra uma tão profunda metamorfose física ou espiritual, como se fosse um acto de criação, ou seja, sem um encadeamento histórico gradativo.

E pressuposta a ocorrência, entra-se, para a explicar, nos domínios da invenção e/ou da crença, que já não são os da ciência, a qual nos indica, pelo contrário, ser muitíssimo improvável a formação brusca, de uma só vez, do ser humano, origem súbita para a qual seria necessário conceber processos que pertencem não ao mundo das evidências ou

probabilidades científicas, mas ao do imaginário. Por exemplo, a ideia de bruscas e profundas refundições do genoma (rearranjos cromossómicos) é aproveitada para servir de base a tais especulações. É a hipótese

que

desenvolve,

por

exemplo,

o geneticista

Jean

de

Grouchy.

Segundo o mesmo autor, um primitivo casal de símios seria atingido

pelas mesmas alterações cromossómicas, as quais, sendo por esse facto improváveis de ocorrer em tal situação de simultaneidade, levam à 107

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

sugestão (para o autor) de se tratar de um casal de gémeos. Adão e Eva seriam então gémeos, originados por um acidente cromossómico. Rossion (1978), que comenta num artigo o livro de Grouchy, conclui que toda a evolução se teria passado como se houvesse um princípio director. A mesma tendência de rejeitar a concepção darwiniana da evolução gradual transparece gios deixados por homens

noutros trabalhos de interpretação de vestíde passado remoto. Por exemplo, em artigo

intitulado «Les premiers pas de lhomme», o seu autor refere-se a seis pegadas com três milhões e meio de anos descobertas em Laetoli, na Tanzânia, por Andrew Hill. O interesse deste facto está, segundo o autor da notícia, na circunstância de o indivíduo que as fez na areia caminhar na posição vertical e ter um modo de andar próximo do homem moderno. Os pés eram no entanto «mais curtos e largos do que os dos homens actuais e a arcada plantar não era muito desenvolvida». Mas o problema para o autor é sobretudo o de saber se as pegadas eram de australopitecos ou se já seriam de homens. Esforço vão, a meu ver, pois a realidade é complexa e não se conforma às nossas categorias mentais,

no

caso

presente,

mente, Regine Dalnoki

ao

mito

(1979)

do

«homem

original».

Posterior-

refere-se também a este tema e publica

fotografias dos vestígios de pés e um relato das investigações. Refere-se

o artigo mais completamente a duas séries de vestígios na mesma região, uma constituída por vinte vestígios de pés e outra por vinte e sete, que ficaram marcados numa velhíssima camada de lama de poeira vulcãnica. O autor segue a mesma linha de pensamento ao dizer que se trata de vestígios deixados «por um dos primeiros humanos». A dúvida consiste em saber se as passadas eram de um indivíduo do género Australopithecus ou se já são de indivíduos pertencentes ao género Homo (tratar-se-ia de um indivíduo masculino e de outro feminino). O preconceito

persiste e a própria

taxonomia

criada

para

clarificar os

documentos convida a abraçá-lo. Na realidade, inventaram-se os géneros

Australopithecus e Homo e depois procuram-se testemunhos que correspondam a essas categorias. Ora estas denominações traduzem descontinuidades artificiais que fazemos no encadeamento histórico-evolutivo das formas, artifícios cómodos e indispensáveis para abordar a realidade. Eles são em parte responsáveis pelo mito do «primeiro homem» entre diversos antropologistas. Assim, o autor que antes citâmos, ao referir-se

a Australopithecus afarensis*, diz que é o nome

dado a «ce premier

humain» que teria vivido primeiro na Tanzânia há 3,6 a 3,8 milhões de anos, e depois na Etiópia, de há 3,3 milhões de anos a 2,6 milhões

de anos. Os vestígios de passos seriam deste australopiteco? A questão provavelmente

não

tem

solução

real,

dependendo

fundamentalmente

das nossas convenções classificatórias e das definições dos géneros e espécies pelos quais distribuímos os vários restos fósseis. 108

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — I

Pelas razões que tenho vindo a aduzir, não é naturalmente possível

referenciar a demarcação que assinale o começo da humanação do símio. E não só pelas razões a continua decerto em nossos dias e as direcções síveis, apesar de algumas modificações estarem, rendo.

Mas

ignora-se

destas

a sua

qual

a futura configuração do homem. 3.

da

e importância

amplitude

para

física

Plasticidade Apesar

ou o fim do processo que aludi. A evolução que toma são imprevisegundo parece, ocor-

sua

fragilidade

física

aparente,

o

homem

é

um

ser

extraordinariamente resistente. A sua capacidade de resistência e de adaptação é demonstrada pela sua dispersão pelas mais diversas latitudes

e ambientes, onde conseguiu sobreviver pobre de instintos, sem meios próprios de defesa, a não ser a inteligência, que de resto de pouco lhe

serviria sem vida em grupo, na ausência de estreita colaboração dos seus membros. O ser humano não está adaptado especialmente a

nenhum modo de vida particular; está, por assim dizer, disponível, desarmado, não especializado. Mas esta condição fez em grande parte

o seu sucesso.

Se o compararmos

com

outros animais, logo se verifica

a diferença. O gorila é mais forte, o cavalo é mais veloz, o peixe nada

melhor, etc., e assim poderíamos continuar a citar exemplos sem conta em relação aos quais o ser humano está em inferioridade quando o compararmos com as especializações mais marcantes de cada espécie

animal. Nenhum dos animais, porém, faz é capaz de fazer por si só e em cooperação. orgânicos para determinados fins específicos As especializações biológicas herdadas pelos

tudo aquilo que o homem O animal tem dispositivos (a asa, a barbatana, etc.). genes e induzidas por eles

duram, em geral, milhões de anos a desenvolverem-se plenamente por evolução, enquanto no ser humano a adaptação ao meio se faz pela

invenção e fabrico de ferramentas e sua transmissão por tradição cultu-

ral. Os dispositivos inventados ficam, ao contrário do que acontece no animal,

exteriores

ao

organismo:

adquirem-se

e

aperfeiçoam-se

no

espaço de poucos anos. À evolução por herança biológica é portanto incomparavelmente mais lenta do que por evolução cultural. O homem ficou fisicamente «descomprometido», mas capaz de inventar e fabricar todo o instrumental necessário para se adaptar ao mundo— e isto no espaço de uma ou poucas gerações, ou prontamente no caso de soluções rápidas de problemas por meio da invenção de técnicas simples ou improvisações súbitas. O homem é um animal que inventa as especializações, não está biologicamente sujeito a elas porque não se desenvolvem nele, não estão nele programadas. Fica assim disponível para utilizar todas as adaptações, sem por isso se limitar organicamente (v. no 2.º vol. 109

GERMANO

o cap.

XII).

Com

DA

FONSECA

o ser humano

surgiu

SACGCARRÃO

portanto

um

fenómeno

novo

de grande e rapidíssimo poder de transformação do mundo e do próprio

homem — a evolução cultural.

À ausência comportamento.

de especialização O

seu

sucesso,

física associa-se

como

espécie,

a flexibilidade

deveu-se,

por

do

isso, pro-

vavelmente à sua enorme capacidade de adaptação física aos mais variados ambientes e condições, à sua inteligência e imaginação, que conceberam técnicas e culturas de superação das dificuldades, e à sua forte tendência para a vida em grupo, para a cooperação social. Claro

está que noutros primatas existe igualmente vida em grupo, cooperação

social, c um pouco de quase tudo (mas em menor grau) o que caracteriza o homem. Mas neste deu-se uma combinação originalíssima dessas e de outras qualidades, num grau muito mais elevado, sem a rigidez maior ou menor do animal, e sem o carácter de estar plenamente realizado. como acontece neste último.

4.

A

diversidade

da

dieta

alimentar

Tomemos por exemplo a alimentação. O ser humano

e esta propriedade

de se adaptar perfeitamente

é omnívoro

às dietas mais

variadas

foi igualmente um factor importante de sobrevivência. O seu aparelho

digestivo não é especializado para servir apenas a determinado tipo de dieta. Como

os dos macacos, os seus dentes são os de um

animal omni-

voro. Todas as dietas lhe convém, que variam conforme as circunstân-

cias. Investigações orientação

das

sobre as superfícies dentárias, o seu

estrias

têm

revelado

alimentação dos primatas e do homem

alguns

factos

desgaste e a

sobre

o modo

de

pré-histórico. Existe correlação

entre o comprimento e a orientação das estrias e a alimentação cárnea ou vegetariana. O estudo das estrias permite, portanto, distinguir as

dietas, vegetariana ou carnívora. Aliás, a usura dentária reflecte não só o tipo de alimentação como, também, a forma como é confeccionado

o alimento. Antes da revolução introduzida pela agricultura, os homens

eram omnívoros, dependendo o tipo de alimentação do tipo de ambiente

em que viviam e, portanto, dos recursos oferecidos por este. Os homens da idade pré-agrícola

viviam da colheita directa, de modo que a humanidade de então não se pode dizer que fosse vegetariana ou carnivora. A alimentação

era mista;

quando

abundava

a caça, eram

carnívoros,

mas em períodos de escassez de caça ou de pesca os homens lançavam mão de tudo, das presas mais diversas, ou da colheita de vegetais. Em

dias de fome, ervas, raízes, insectos, répteis, etc., tudo isto servia

para a mitigar.

Certas particularidades foram

postas em

evidência

pelos métodos

referidos. Por exemplo, o método para comer carne no homem HO

de há

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —I

700 000 anos (e mais) seria o de cortar a parte excedente fora da boca com sílex ou, mais tarde, com uma faca, como de resto ainda hoje se faz. A orientação das marcas deixadas sob a forma de estrias nos seis dentes anteriores da mandíbula de Mauer (Homo heidelber gensis ) indica que este homem arcaico comia carne, e fazia-o com a mão direita. Aliás, os caninos eram utilizados como instrumento auxiliar das

mãos, como se deduz do comprimento e orientação das estrias (dados extraídos dos trabalhos de P. F. Puech, de J. R. E. Mills, de A. S. «Do mesmo modo para o homem,

Ryan e outros). Escreveu o primeiro:

uma grande parte do desgaste dos dentes é devida ao modo de preparação

do

A

alimento.

exposta

carne

ao vento,

os alimentos

cozinhados

sobre as cinzas, contêm grande quantidade de partículas abrasivas; é preciso, portanto, no estudo da alimentação e do desgaste dos dentes,

distinguir entre o cozinhado e o cru, o assado e o cozido.» Outros auto-

res estudaram mastigação, e

o desgaste das faces oclusivas que regista o esforço da

tal facto levou à solução do «enigma posto pela evolução

dentária do homem:

a extensão dos métodos de preparação do alimento

fora da boca, desde o plistocénico inferior, tendo gradualmente mido

o esforço

que

a dentadura

supri-

devia produzir».

Segundo La Barre (1960), os mamíferos antepassados do homem comiam insectos; e os primatas seus antepassados aprenderam a comer mesmo plantas, incluindo os seus frutos. Nos tempos plistocénicos, talvez já antes, como voros, como o

diz o mesmo autor, os primeiros homens eram carnídemonstram as armas utilizadas para matar animais.

Este ponto de vista não é provavelmente legítimo (v. mais adiante). A verdade,

porém,

é que

a variabilidade

da dieta humana

permitiu

a

invasão dos mais diversos ambientes, concedendo ao homem a ocupação

de vastíssimos espaços ecológicos. Esta possibilidade para se adaptar às mais variadas dietas tem sobretudo uma base cultural. Depende de hábitos tradicionais e não de qualquer disposição ou determinismo genético. Certamente que a própria plasticidade é de natureza genética.

Mas o pronto ajustamento a esta ou aquela dieta é um imperativo cultural, não resulta de qualquer estruturação anatómica específica, nem

é uma

imposição

climático ou

da hereditariedade. Qualquer

cultural,

uma

migração

mudança

para obter novas

no ambiente

condições

de

vida, não impede os homens de se ajustarem a novos tipos de alimentação. O esquimó, eminentemente carnívoro, consome algumas plantas como alimento, e os povos do Oriente, em cuja dieta predomina o arroz, alimentam-se também de alguma carne e peixe. As diferenças alimentares entre as chamadas raças humanas são de natureza económico-cultural e mada têm a ver, provavelmente, com quaisquer exigências

fisiológicas ou anatómicas inatas.

A alimentação humana esteve sempre associada a uma forte componente cultural e provavelmente esta associação desenvolveu-se grasi

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

dualmente com a passagem do primata símio a primata humano. O facto de o homem ter uma ampla flexibilidade alimentar, podendo viver com os mais variados tipos de dietas, permitiu-lhe atravessar períodos críticos e subsistir onde outras espécies mais exclusivistas teriam perecido. Certos regimes alimentares andam ligados a uma mística, têm um carácter

religioso,

de

salvação.

As

civilizações,

as

classes

sociais,

são

marcadas por diferenças alimentares por vezes profundas, e, se as razões económicas são factores importantes neste aspecto, não são os únicos que estão na base dos hábitos alimentares dos homens. O homem primitivo não se dedicou jamais a um tipo único de alimento. O homem é por natureza omniívoro, ou, talvez melhor dizendo, tudo nele permite

e concorre (a anatomia, a fisiologia, a psicologia) para poder sobreviver com os mais variados regimes alimentares, monótonos ou variados, vegetariano ou carnívoro, comendo insectos, raizes, frutos, sempre ou

intermitentemente. Teimar, como fazem alguns autores (v. a seguir), em considerar os homens primitivos como caçadores especializados,

com hábitos e psicologia de carnívoro, não está de acordo com a sua disposição

de omnívoro,

que é afinal um

aspecto,

da sua não-especialização, da sua adaptabilidade,

der de múltiplas

maneiras

5.

de

A

condição

ao problema

predador

aliás

significativo,

no sentido de respon-

da sobrevivência é.

e a teoria

do

«símio-homicida»

O fenómeno da dieta alimentar dos primeiros homens e do homem actual tem outras implicações ao nível do determinismo do comportamento social humano. Há duas tendências gerais, a meu ver, que se

opõem: uma pretende explicar o comportamento humano comparando-o com os comportamentos de diversos tentando a aplicação a todos da mesma

animais, procurando analogias, causa; noutra é-se adverso a esse

ponto de vista: o comportamento humano, o que ele tem de fundamental, teria resultado de uma longa evolução psicossocial na linha humana

e

não

seria,

portanto,

o

reflexo

e

a

amplificação

de

uma

herança comportamental do animal. Segundo uma convicção que emerge do primeiro ponto de vista, o homem teria um comportamento de carnívoro; donde a sua forte tendência para um modo de ser caçador, conduta especializada para matar com rapidez e eficácia, etc. Desta condição de predador retirar-se-iam diversas consequências no plano social, ou seja, a de que o homem

é um

símio-assassino, que mata os

indivíduos da sua própria espécie. Segundo esta concepção, aliás muito popularizada, a condição de predador

dos

primeiros

homens

explicaria

muitas

das

qualidades,

sobretudo psicológicas, do ser humano. Conforme este ponto de vista, os primeiros homens difeririam dos outros primatas (que são sobretudo 112

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — I

vegetarianos) por serem caçadores e terem desenvolvido, por um fenómeno de convergência evolutiva, caracteres de carnívoro”. Diversos autores têm proposto e defendido esta doutrina, tais como Raymond

Dart, Robert Ardrey, Konrad Lorenz (o mais influente), Desmond Morris, Sherwood L. Washburn e outros. Segundo a teoria advogada, o homem tem natureza de «símio-caçador» e o facto de ser um predador homicida explicaria todo o seu comportamento social. Haveria provas incontestáveis de que o comportamento humano teria desenvolvido

caracteres que são típicos dos mamíferos

carnívoros. Essas caracterís-

ticas seriam, para os defensores da teoria, as seguintes: compartilhar o alimento, constituir reservas alimentares, matar mais do que o indis-

pensável

para

comer,

manifestar

agressividade

e aversão por outras

espécies que não são presas, prática do canibalismo, etc. (v. Thomson, 1975). Ora a verdade é que estas afirmações têm muito pouca consis-

tência. Partem do pressuposto de que o comportamento de predador teria sido herdado dos australopitecos antepassados do homem, do seu

tipo de alimentação, do seu modo de vida. Não existem, porém, quais-

quer

seguros

dados

sobre

a existência

de

primatas supostos antecessores do homem

tendências

assassinas

nestes

(conforme à hipótese origi-

nalmente elaborada por Dart), nem nos homens mais arcaicos. As evidências indirectas apontam noutro sentido. Toda a reconstituição do modo de vida das fases sub-humanas primitivas

e humanas

é frágil

sempre

e quase

assenta

em

cadeias

de

pressupostos. Nem mesmo se sabe qual o estado da evolução humana em que teria sido adquirido o suposto comportamento de predador exclusivo. Afirmar, apenas com o recurso a analogias, que o homem é um «primata assassino» é negligenciar o valor incomensurável da evolução cultural do ser humano, nomeadamente o significado da autoconsciência. Esquece-se o longo processo da evolução psicológica humana e o facto fundamental de o homem ser simultaneamente autor e produto da sua própria história. Para conciliar o ponto de vista de o homem possuir «natureza de carnívoro» com o facto de não ter mecanismos inibidores que travem o impulso

homicida,

como

acontece

nos

carnívoros

autênticos,

inven-

tou-se a história de que essa natureza teria degenerado, que já nascera adulterada (K. Lorenz). Este etologista chega a lastimar que o homem não seja um «carnívoro» completo, de natureza feroz e ao mesmo tempo subordinada.

Uma outra indicação do fracasso da teoria é que nem mesmo os principais defensores do determinismo biológico do comportamento social humano se põem de acordo quanto a aspectos essenciais. Por exemplo, E. O, Wilson (1975), o fundador da sociobiologia, discorda frontalmente de Lorenz e da sua escola. Não está de acordo com a teoria

de o homem Bibl. Univ.

49 — 8

ser um

símio-homicida, 113

que considera suspeita,

Para

o

GERMANO

mesmo

autor,

o homem

DA

não

FONSECA

SACARRÃO

é intrinsecamente

violência e do assassínio dos seus

semelhantes,

propenso

à prática

ideia esta

da

tão do agrado

de K. Lorenz, Raymond Dart e outros, e cujas raízes podemos encontrar no darwinismo social e de certa maneira, até, no próprio Darwin. Para Wilson, assim como para a generalidade dos sociobiologistas, o assassínio é mais comum noutros vertebrados do que no ser humano; e, se nos compararmos com o leão, o tigre e outros carnívoros aparentados, podemos mesmo considerar que os homens são naturalmente inclinados à amizade, à simpatia mútua, à conduta pacífica. Esta opinião não é nova entre os biólogos, tendo sido defendida pelos Russells (v. a seguir). Se imaginarmos, escreve Wilson, que um zoólogo marciano visita a Terra e aqui observa, durante longo tempo, o comportamento dos homens, poderá perfeitamente concluir que somos dos mamíferos

mais

agressões

ou

observações

duzem

pacíficos,

com

homicídios

base

no

cálculo

por indivíduo

efectuadas na natureza

do

e por

invalidam

número

unidade

de

de

sérias

tempo.

a tese de Lorenz

As

e con-

a um ponto de vista oposto ao deste autor.

Dois autores, Claire Russell e W. M. S. Russell,

cuja opinião faz

autoridade, abordaram o problema de violência no homem numa obra a que deram o sugestivo título de Violence, Monkeys and Man (1968). Apesar de passados vinte ancs, a obra conserva ainda interesse. Os seus autores introduziram o estudo da etologia humana em 1955, por ocasião de uma conferência internacional, disciplina que depois, através deles e de muitos outros, veio a desenvolver-se num campo de

promissoras pesquisas. Mas que ainda está no começo, poder-se-á afirmar. Dizem os Russells que aqueles que acusam o homem de exprimir maior violência do que os macacos argumentam que tal facto resulta da sua condição de caçador, enquanto os macacos seriam pacíficos vegetarianos. À especialização para caçar teria produzido uma agressividade inata no homem, de modo que o ser humano, por esse condicionalismo hereditário, nunca poderá constituir sociedades pacíficas como são as sociedades de macacos

na natureza.

Ora, segundo

os Russells, há

duas razões que se opõem a tal ponto de vista. Por um lado, os dentes humanos não são os característicos de um animal carnívoro. Pelo outro,

a distinção

do

homem

como

caçador

em

relação

aos

macacos

como vegetarianos não é absoluta. Na realidade, conhecem-se as obser-

vações clássicas de Jane Goodall, que estudou os chimpanzés no seu ambiente natural. Estes primatas podem capturar, matar e comer pequenos macacos; e todavia não deixam, por esse facto, de ser animais perfeitamente pacíficos em condições naturais. O que parece certo é que

os macacos são capazes de variar facilmente

de dieta consoante

as eh

cunstâncias. Oportunistas, aplicados à colheita de alimento. E o homen mais do que qualquer outro primata. tI4

Mesmo

que

4.

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — I

africanus

e

A.

robustus

(que

atrás

referimos)

sejam espécies distintas (o que já foi contestado), o modo de vida destes primatas, que estariam na base do tronco evolutivo da humanidade, não está tão bem

conhecido

que legitime estabelecer diferenças de regimes

alimentares que não dêem lugar a dúvidas. À conclusão de que africanus (mais vizinho ou mesmo na continuidade da linha evolutiva humana) era carnívoro não convence totalmente, nem pela forma e tamanho dos dentes (pré-molares e molares), nem pelos restos de esqueletos de animais juntos. As maiores dimensões dos molares de robustus relativamentes a africanus também

não são um sinal certo do herbivo-

rismo do primeiro, nomeadamente

a indicar mais extensas superfícies

de mastigação do abundante alimento vegetal, o que não seria, por con-

traste, o caso de africanus. Mas, tal como foi sugerido, o maior tamanho dos dentes de robustus seria um resultado das maiores dimensões do corpo deste primata, uma circunstância que também ocorre noutros mamíferos. Quanto aos pequenos dentes de africanus, eles são, em valor absoluto, até maiores do que os dentes do homem, apesar de este ser três vezes mais pesado (Gould, 1977 b). A conclusão provavelmente legítima será a de que À. africanus era uma espécie basicamente vegetariana, mas simultaneamente omnivora. São mais imaginadas do que reais as evidências a favor da ideia de que os antepassados do homem

seriam carnívoros, dos quais teríamos recebido a herança da sua psicolo-

gia de símio predador e sanguinário. Relacionado com o problema que temos vindo a considerar, surge-nos necessariamente a questão do canibalismo no ser humano, encarado muitas vezes como prova de tendências homicidas inatas desenvolvidas no símio humano na sua evolução para o predatorismo e por conseguinte para os hábitos de carnívoro destituído de mecanismos biológicos inibidores das suas tendências. O canibalismo é um procedimento largamente existente no reino animal, mesmo entre os vertebrados superiores. É natural que este comportamento tenha sido explorado por diversos autores que compartilham o ponto de vista de o ser humano ser uma espécie sanguinária. O canibalismo existiria desde os alvores da humanidade. Neste aspecto não parece haver desacordo fundamental. No seu possível relacionamento com a agressividade homicida é que há divergência. Segundo os defensores desta última tese, o canibalismo seria prática dominante, por inclinação inata, em diversas sociedades humanas através da história, uma espécie de passatempo (como disse Ardrey). Isto é decerto muito exagerado. Que existiu canibalismo nas primeiras

populações

humanas

e através

de toda a pré-história

e his-

tória não é de duvidar. Basta pensar nos períodos de fome, e nos nossos dias o canibalismo pode surgir em situações extremas, até entre homens civilizados actuais, como aconteceu em 1972, por ocasião de um desastre, em que um

avião caiu nos Andes 115

(Chile). Os sobreviventes conse-

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

guiram salvar-se comendo carne dos companheiros mortos. Mas há mais

exemplos deste tipo. E a imprensa relata por vezes canibalismo ocasional, como

prática ritual.

Não é de duvidar que em condições primitivas o canibalismo possa ter funcionado por vezes de recurso para sobreviver, em face de raridade ocasional de proteínas, ou como ritual com um sentido religioso, pelo qual quem come carne humana assimila a energia vital da vítima

e outras virtudes. Claro está que o rito sagrado pode ser considerado como uma adaptação favorecendo a sobrevivência, como uma justificação cultural a encobrir a necessidade de suprir a extrema pobreza em proteínas e como preparação para períodos de miséria alimentar. Até mesmo no desastre de avião de 1972, acima referido, houve algo deste género, uma espécie de justificação de natureza religiosa, traduzindo-se em

comunhão

nítida entre

vivos

e mortos

por meio

do canibalismo,

segundo relato feito posteriormente pelos sobreviventes. Em todo o caso, a proibição do canibalismo é um produto de condicionamento social e não biológico, e quando se exerce (em caso de morte iminente, etc.)

logo toma a aparência de uma prática com sentido religioso, em sacrificios rituais, de recusa da morte

(a vítima continuaria a viver por ser

incorporada como alimento), sentido de tradição e respeito, etc. Em diversos casos, todavia (não direi em todos, mas há quem o pense), a razão fundamental para o acto poderá ter significado alimentar. A antropofagia pré-histórica teria um

análogo significado cultural,

mas não é de rejeitar que por vezes se traduzisse numa prática aberta de compensação

alimentar, de sobrevivência. E quer ritualizada neste ou

naquele sentido, parece legítima a hipótese de considerar o canibalismo

como uma

adaptação

(ou preadaptação?)

cuja importância não seria talvez de pouco

com

valor de sobrevivência,

alcance nos tempos

pré-his-

tóricos sob condições de excessiva miséria alimentar, e que afinal ainda hoje pode mostrar-se operante em ocasiões excepcionais. Os fortes preconceitos morais que se opõem à sua prática não devem ter existido nos recuados tempos pré-históricos: o sabor repulsivo da carne humana (desenvolvido pela educação) e as coacções da moral não deviam embaraçar grandemente os nossos longínquos antepassados. Devo lembrar. porém, que a existência de uma vida de fome e de privações de toda

a espécie nas sociedades de primeiros homens

é um ponto de vista que

provavelmente não tem muita consistência (v. adiante).

Em Homo erectus há indicações de canibalismo: crânios abertos na base por comedores de cérebros. No homem de Neandertal aconteceria

o mesmo.

À causa da morte parece ter sido

(pelo menos

num

caso,

que não oferece dúvida) uma violenta pancada na região temporal. Isto parece indicar um comportamento ritual. É uma crença entre os comedores

de cérebros

de que

quem

come

o cérebro

adquire

o poder

e as qualidades da vítima. É este, segundo A. C€. Blanc, o mais antigo 116

E

BIOLOGIA

tipo

de

SOCIEDADE — 1

e que

conhecido,

religiosa

cerimónia

E

crença

tal

ainda

básica

subsiste na moderna religião, como o prova o ritual da transsubstancia-

ção cristã (cf. Kurtén, 1972). Não é nada provável que o canibalismo na espécie humana seja o agressividade inata, de uma ferocidade congénita. No

resultado de uma

Dicionário da Lingua Portuguesa, de Cândido de Figueiredo, considera-se o canibal como significando também homem feroz. Os chimpan-

zés só ocasionalmente é que comem os seus próprios filhos, mortos ou pertencentes

a outro grupo,

que

seja prática

Ora

isto

existente a

suporta

não

mas

isto é raro e não parece igualmente

noutras

tese

de

espécies

actuais

australopitecos

os

de grandes

símios.

normalmente

serem

antropófagos por imposição do seu hipotético comportamento inato de símio-caçador. Mas, se o foram, tal facto não demonstra que o compor-

tamento resultasse de um determinismo genético estrito ligado a uma (também discutível) hereditariedade de caçador e de carnívoro. Carne, por certo, era uma

componente

da

sua

alimentação,

mas

é mais

con-

forme aos dados actuais da ciência não considerar as primeiras popula-

ções

humanas

e

seus

antepassados

imediatos

como

exclusivamente

carnívoros. Nem o seriam na dieta, e muito menos o seu comportamento era limitado por essa actividade. A flexibilidade do ser humano apela

para outro tipo de interpretação. O problema do canibalismo está longe de estar esgotado. Recentemente, o antropologista William Arens, num livro intitulado The

Man-Eating

Myth,

defende

uma

posição extrema:

nega que o caniba-

lismo tenha existido como prática regular. Afirma que se trata mito utilizado pelo Ocidente para justificar a escravatura e o lismo. Para certos sociobiólogos, o canibalismo humano prova a cia de uma agressividade inata, enquanto alguns antropólogos que

ele funciona

como

um

processo

ritualístico

de recusa

de um coloniaexistênpensam

da morte,

porquanto a vítima continuaria a viver transmutando-se em alimento. Mas, quanto a Arens, julgo que ele exagera ao negar a veracidade de diversos testemunhos de antropofagia, Por outro lado, a biologia não dá suporte à tese de que a agressividade é um comportamento específico,

necessariamente inscrito no património hereditário da espécie, desenvolvido desde os tempos em que o símio sub-humano adoptou, por imposição ecológica, o comportamento de caçador. À selecção natural teria sido o factor em jogo no processo. Por meu lado, penso que o que é hereditário no homem é a sua própria flexibilidade, a sua capacidade de aprender, de nunca se realizar como um ser definido e definitivo. E no caso da agressividade será o mesmo: pode-se ser condicionado a ser agressivo ou pacífico, a matar, a justificar a conduta, simbolizando-a, ritualizando-a. A tese da flexibilidade herdável abre mais vastas perspectivas do que a teoria da existência de genes específicos para agressi117

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

vidade, para altruísmo, para cooperação social, etc. No cap. 1x desenvolver-se-á este ponto. Outra consequência nefasta desta ideologia,

desta crença

suposta-

mente apoiada na ciência, de que o homem é produto da sua «natureza» de predador, joguete de automatismos que vemos em acção nos animais, é, a meu

ver, a existência de um fatalismo na nossa condição, a justifi-

cação da alienação, das desigualdades, opressões e violências, de que há raças naturais de senhores e de escravos, que há uma maldade inata, etc.

Nesta argumentação contra a hipótese exclusivista do homem primata-predador poderia citar documentos e testemunhos vários que também a recusam. Mumford, por exemplo, desenvolve com fundamento e inteligentemente a ideia de que «a sociedade humana assenta, desde o começo, não sobre uma economia de caça, mas sim de colheita, e em quase toda a duração da sua existência o homem dependeu da colheita de alimento para a sua alimentação quotidiana. Nestas condições, a excepcional curiosidade do homem, o seu engenho, a sua facili-

dade de aprender, as suas capacidades de memorização, foram utilizados e postos à prova. Constantemente ocupado em colher e escolher, em identificar e seleccionar, em explorar, em vigiar os filhos, em ocupar-se

dos seus semelhantes — tudo isso fez mais pelo desenvolvimento da inteligência humana do que o talhar intermitente de instrumentos» (vol. 1, pp. 136-137). A

teoria do homem-caçador

original

não

se ajusta

ao facto

de o

regime alimentar da humanidade ser em todas as épocas omniívoro e principalmente vegetariano, na dependência das circunstâncias, dos recursos do meio, da época, das culturas estabelecidas e herdadas. Pelo menos, não se acomoda à tese de o símio humano assassino resultar da sua

condição

de

carnívoro

original,

hipótese

sem

dúvida

frágil.

Que

pudesse agir como predador parece muito provável. Mas que este facto tenha determinado uma natureza agressiva e assassina, que ainda hoje.

por herança biológica, é a marca fundamental do homem, tudo parece contradizê-lo. É mais simples admitir que o comportamento de caça é motivado por causas exteriores ao ser humano do que por um determinismo biológico inscrito nos genes. Que esta última teoria seja inspirada

e divulgada por K, Lorenz não surpreenderá. E o facto de ter recebido o Prémio Nobel não lhe confere autoridade para além da sua especia-

lidade, que não é a antropologia. Sabe-se, porém, que este biologista apoiou

de certo modo

o nazismo,

e não

escondeu

a necessidade

de

seleccionar rigorosamente os seres humanos superiores, e promover & eliminação dos indivíduos inferiores (v., o cap. vir). Mesmo os instru-

mentos das primeiras populações humanas ou sub-humanas «armas»,

mas

sim

utensílios

para

procurar

alimento,

ou

não seriam para

fazer

armadilhas. Esses utensílios grosseiros seriam testemunhos muito pobres 118

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — I

do engenho humano. Deduzir a inteligência e a imaginação dos homens primitivos apenas pelos instrumentos que nos legaram conduz a uma visão estreita do seu modo de vida e da sua habilidade técnica. Donde a ideia perfeitamente aceitável de os homens serem capazes de inventar uma «tecnologia» variada e rica antes de fabricarem rudes instrumentos de pedra ou de osso. E que os objectos, em vez de servirem só ou predominantemente de «armas», seriam adjuvantes do corpo, cujas partes (dentes, mãos, pés) já executariam trabalhos de grande habilidade técnica. Como

diz Mumtford

(op. cit.), a maior descoberta do homem

no começo da sua carreira, o seu primeiro artefacto modelável, foi o seu próprio corpo. Com ele, servido por um cérebro altamente imaginoso, operou uma profusão de proezas técnicas, com as mãos, as unhas, os dentes, os pés, tudo isto antes de utilizar os instrumentos grosseiros de

pedra ou osso. Considerar os primeiras homens como seres brutos, que, inventando

rudes «armas» actividade

de

de pedra ou de osso, se entregavam constantemente matar

para

presas

estimulados pelas condições

e

subsistir,

a sua inteligência,

a imaginação

é, provavelmente,

uma

teoria

e o engenho

simplista

posteriormente,



que

exigidas por esta mesma

actividade, é que

puderam

e cómoda,

à

desenvolver-se,

mas

inadequada.

Numerosos factos postos em evidência pelo estudo de populações actuais,

com modos

de vida de tipo primitivo, mostram

que existe um

hiato

profundo entre a habilidade técnica dos homens e aquilo que pode ser deduzido da simples observação de instrumentos Jíticos. Nenhum calhau lascado, machado de pedra ou tosco instrumento de pedra pode servir

de indicação acerca das realizações técnicas da fase primitiva humana ou pré-humana, da sua riqueza e variedade. À teoria do símio-assassino está longe de satisfazer como teoria científica. a)

O

mito

da

maldade

inata

A tese da maldade inata enraíza em mais do que um preconceito. Um é o de que os primeiros homens viveram em ambiente de miséria, onde só os mais fortes e cruéis sobreviveriam em luta com a natureza inimiga e os seres que a habitam. Mas pode muito bem ter acontecido que fosse

outro

o ambiente,

que

oferecesse

aos estados

infra-humanos

e aos primeiros homens caça e pesca abundantes, frutos variados, em suma, uma natureza generosa em clima ameno (v. adiante). É compreensível que o homem das modernas sociedades industriais, que exploram intensivamente os recursos naturais para satisfazer necessidades sempre crescentes, considere naturalmente indigente o modo de viver dos primitivos seres humanos, situando-o no limite da sobrevivência,

como

se

esses

remotos 119

homens

tivessem

de

procurar

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

debelar uma fome crónica. Todavia, a condição do homem original em luta permanente com a natureza hostil tem mais a aparência de ser uma inferência preconceituosa do que uma asserção cientificamente fundamentada. O que parece mais provável é que o homem primitivo adaptasse judiciosamente as suas necessidades aos recursos naturais, e que as teses da «penúria» e da «abundância» se fundem para dar lugar a uma situação provavelmente mais próxima da uberdade. Comparar modos de vida, privações e canseiras à luz dos valores das socie-

dades da era industrial pouco ou nenhum valor tem como método científico. Outro preconceito, talvez a mais importante causa da aceitação da ideia de o homem

ser um

homicida nato, é, como

lembrou

Montagu, o

facto de esta ideia se ajustar a crenças já existentes. Aquilo em que se acredita justifica essa ideia e ao mesmo tempo é justificado por ela. Para o mesmo autor, o homem-assassino é simplesmente a versão actual secular da velha ideia do pecado original que ferreamente

ciado a imaginação

do homem

“homicida, geneticamente

ocidental. A doutrina

determinado,

tem influen-

actual do símio-

dos etologistas instintivistas é a

tradução para os tempos actuais da antiquíssima história religiosa que nos diz que os homens nascem, vivem e morrem pecadores. Ela é mesmo anterior à civilização judaico-cristã porque noutros povos

também

teria

havido necessidade de explicar a existência do mal, concebendo-se, então, igualmente a noção da queda: o homem primeiro teria sido bom e inocente, o mundo era um paraíso, mas tendo o homem caído em tentação e perdido a inocência, jamais voltou à condição da candura ori-

ginal E o Velho Testamento juntou a isto o conceito de vício:

de depravação,

Eis — que eu fui gerado na iniquidade; e em pecado me concebeu minha Mãe. [Velho

O conceito de maldade

Testamento,

e de depravação

salmo

LI, 5]

inatas, de uma

humani-

dade pecadora, foi largamente difundido e incrustado na mente do homem ocidental. E mesmo as crianças não escaparam ao ferrete, consideradas como «criaturas naturalmente depravadas» (isto em 1835), e mesmo neste século opiniões (abalizadas, imagine-se) atribuem-lhes tantas máculas, vícios e perversões que (como escreveu Edward Glover, decano dos psicanalistas ingleses) «o bebé normal é para todos os efeitos

práticos

um

consideravam

criminoso

nato»

as crianças

(cit.

de

e as mulheres

Montagu, como

tradição judaico-cristã deu outra dimensão a ruindade

e o vício

como

maldição. 120

seres

1976).

Os

inferiores,

ao estigma,

Gregos mas

introduziu-lhe

8

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — I

Elisabeth Badinter (1980) diz que Santo Agostinho se referia à criança como um ser que se o deixassem fazer o que lhe agradasse não haveria crime que não praticasse. À criança, segundo o estudo da mesma autora, é acusada dos maiores pecados. E acrescenta que o pensamento agostiniano reinou longo tempo na história da pedagogia, reflectindo-se na dureza para com a criança. Descartes também considerou a criança como uma criatura inferior, fonte permanente de erros, de falsas ideias, e lamentou que o homem

tenha de passar pelo estado infantil. O desprezo pela criança, o medo até que ela inspira, tem pois raízes religiosas, sendo uma maldição lançada sobre a humanidade. Isto sobretudo era o que se pensava, particularmente,

nos séculos XVII a XIX, com

altos e baixos

de opinião.

Mas não desapareceu por completo. A natureza corrompida da criança obrigava a um trabalho aturado de educação, com a justificação, por isso mesmo,

dos castigos corporais mais duros.

A ideologia burguesa concebe nos séculos xvil e xvilI a ideia da criança-máquina,

que a medicina

consideraria, naturalmente, suscepti-

vel de reparar facilmente e de moldar aos desejos e normas dos adultos. Aliás, a ideia corrente era a de que a criança é uma máquina, um brinquedo mecânico. Ora, sendo a criança encarada como a prova da

natureza vil e imunda do homem, no seu estado por assim dizer livre, espontâneo, compreende-se que até muito dentro do século xIx não existisse medicina infantil, ainda que no século xvil tenha havido um certo interesse médico

1872,

por ela. O termo

«pediatria»

apenas

surge em

segundo a autora acima referida. A maldade como característica inerente à substância biológica do

homem,

ficada

à sua

com

natureza

a revolução

foi reforçada

profunda,

darwiniana

(o homem

e pretensamente

herdou

justi-

e desenvolveu

instintos do seu passado animalesco), a que depois se associou Freud, que ainda penetrou mais fundo na espeleologia das perversões humanas, dos instintos

(sexual e de morte), tendo culminado em 1930 num

seu

pessimismo total sobre o homem. O darwinismo social (e agora a sociobiologia) e a psicanálise (que não é bem ciência) dão-se as mãos, neste campo, e com a doutrina religiosa tradicional tendem a fundir-se numa enfatuada biologia do espírito com base no reducionismo sociobiológico, todos a reforçarem, com o peso da ciência e da meia-ciência, a crença generalizada de que o homem é uma criatura brutal, congenitamente perversa e violenta. Os biólogos (etólogos, sociobiólogos, etc.), que hoje

proclamam que o homem é o lobo do homem, que ele é o macaco nu-homicida, não fazem mais do que dar consistência pseudocientífica a uma longa e profunda tradição religiosa, que o darwinismo e o freudismo fortaleceram (e ao mesmo tempo substituíram e embaralharam) e prepararam para ser tomada como uma verdade. Perante uma crença

tão funda nos espíritos, não se torna fácil demonstrar que a tradição 121

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

veicula uma mensagem falsa, porque foi sempre muito difícil contrariar a veracidade daquilo em que a generalidade das pessoas já acredita,

como judiciosamente lembra o autor a que me Com

estas ideias feitas é difícil lutar para

tenho reportado, convencer

que

a edu-

cabilidade do homem possibilita que se modifique e oriente em múltiplas direcções o seu comportamento,

mesmo

aquela fracção do mesmo

que poderá ter uma componente hereditária. À constituição genética do homem, contrariamente à dos outros animais, é fortemente modificável pela socialização, pela tradição cultural. Mas, como terei a ocasião de

desenvolver em vários pontos deste livro, não devemos separar biologia e sociedade

na

formação

do

homem.

O

ser

humano,

não

é

de

mais

insistir, é o produto da acção conjunta do biológico e do social, de interpenetração íntima da sua ontogenia com a cultura. Qualquer tentativa de apreciar o peso relativo de uma ou de outra, de considerá-las como entidades distintas em interacção, conduz a uma visão falseada da realidade humana,

do que já foi chamado,

com

toda

a propriedade,

o Homo humanus (v. Montagu). A história produz o homem, mas essa história é a fusão de várias histórias biológicas e culturais, quer a nível da formação do indivíduo, quer da sociedade.

6.

Caracteres

psicológicos

e culturais

As qualidades únicas do cérebro humano

estão na origem

adaptabilidade ao mundo físico e social. O homem

da nossa

é um animal pobre

de instintos e não surpreende que o seja, visto que a ampla acomodação

as circunstâncias do mundo exterior não seria nada fácil num ser de conduta rígida. Possuindo autoconsciência e o mais elevado poder de reflexão e de imaginação, a programação inata do comportamento, deixando estreita margem para a iniciativa individual, seria fonte de grande embaraço e de extrema confusão. É fácil verificar a incompatibilidade entre comportamento pré-programado, inteligência e reflexão. O desenvolver de um comportamento plástico e de uma inteligência superior teria de ser acompanhado da drástica redução da esfera instintiva. Imaginação e conduta rígida não poderiam coexistir. A partir das formas sub-humanas, que podemos conceber assemelhando-se, nos aspectos físico e comportamental,

a australopitecos,

ou

talvez mesmo a Ramapithecus * (é necessário aguardar por documentos fósseis mais representativos deste último), a inteligência e a reflexão consciente desenvolveram-se gradualmente com cérebros sucessivamente

mais complexos. Estas faculdades não maneira repentina. Diversos mamíferos

mesmas

faculdades.

São particularmente

surgiram, provavelmente, de manifestam certos sinais das importantes

os resultados

experiências conduzidas nos chimpanzés, que nos demonstram 122

de

a exis

BIOLOGIA

tência,

neste

primata

tão

E

SOCIEDADE —I

vizinho

do

ser humano,

da

capacidade

de

conceber e fabricar instrumentos e uma certa compreensão do princípio da causalidade. Capacidade muito rudimentar, sem dúvida, mas não menos real, e sobretudo com uma dinâmica lógica de tipo humano. Este primata pode, além disso, aprender uma linguagem simples, podendo combinar frases e por elas comunicar com o ser humano ou com outros chimpanzés º. Estas experiências conduzidas em chimpanzés têm revelado aspectos interessantes, indicativos de que o cérebro destes primatas trabalha conforme certos esquemas lógicos do homem e é capaz de alguma abstracção. Por isso é de admitir que a inteligência e o poder de reflexão no homem sejam, em parte, processos já existentes nos mamíferos em estado rudimentar, particularmente nos primatas.

E que através das formas sub-humanas evolvessem rapidamente para a psicologia e a inteligência

próprias

velmente

problema

gradual.

Mas

o

do homem. não

é

O processo foi prova-

tão

simples

e

a

equiva-

lência à aprendizagem da linguagem humana pelos chimpanzés é posta

em dúvida. Por este facto tem havido, parece, uma generalizada renúncia

a este

tipo

de

investigações,

devido

à ambiguidade

dos

resultados

obtidos. Os próprios animais ensinados foram colocados noutros lugares, havendo problemas com a sua readaptação *. Com o desenvolver da linguagem articulada, veículo de ideias e de conhecimentos (e mais tarde com o seu registo sob forma simbólica) surgiu a tradição acumulada,

característica

absoluta

do

homem,

não

existente

em

qualquer

outro animal. Em certos animais é verdade que podemos observar um determinado grau de aprendizagem recebida da experiência dos adultos, assimilada durante a fase juvenil. Mas isto nada é comparável ao que se passa no homem. Porque não se trata apenas de receber do adulto a experiência deste. O processo é cumulativo;

é uma torrente de saber

e experiência que cada ser humano transmite ao que lhe sucede. No animal, o processo é repetitivo; a experiência não se avoluma, a tradição não é modificada; não há inteligência inovadora, nem meios de a fazer perdurar

ou registar. No ser humano,

pelo contrário, é saber

que se acumula, que cresce e se multiplica de geração em geração. Formidável

corrente

cultural

inteligência, enriquecida

que

atravessa

as gerações,

produzida

pela

pela diversidade individual e registada pela

linguagem articulada, pela escrita, pela arte. Já me referi à adaptação do ser humano

às mais

diversas

dietas

alimentares. O seu poder de adaptabilidade revela-se igualmente no que respeita aos climas tão variados que pôde suportar e sob os quais pôde viver desde os tempos mais remotos, Esta adaptabilidade climática não se realiza apenas pelas condições especialíssimas do seu organismo, que

lhe permite

viver em

desertos secos e quentes ou gelados, nas altas

montanhas, em planícies férteis, na espessura da floresta tropical húmida, etc. A larga acomodação climática e as longas e extensíssimas 123

GERMANO

migrações

DA

FONSECA

empreendidas pelos homens,

SACARRÃO

transitando

de climas árcticos

para tropicais ou temperados, ou vice-versa, só foram

habilidade zes

técnica e pela invenção

de servirem

de meios

das mais

de adaptação

possíveis pela sua

diversas

ao ambiente.

culturas, Estão

neste

capacaso

os vestuários, as ferramentas, as construções de abrigos e habitações mais elaboradas, a extrema plasticidade dos hábitos alimentares, etce.,

tudo consoante as pressões ambienciais e as repercussões na sua mente imaginativa. Pelo seu engenho, pelo seu de comunicação pela linguagem, associada à mais elevada ajustou-se às mais diversas situações, tirou amplo partido

que tiveram grande poder sociabilidade, delas, conce-

beu e fabricou instrumentos, vestuários, abrigos, procedeu ção de trabalho pelos membros

conquista

do grupo, etc. Um

do planeta, neste vencer

da natureza

à distribui-

factor decisivo nesta

e nas

transformações

que desde cedo nela começou a operar foi (é sempre útil lembrá-lo) a sua enorme

capacidade de educabilidade, de longe superior à de qual.

quer

animal,

outro

estando

condenado

a quase

tudo

aprender.

Ora

a

evolução para tudo ou quase tudo aprender não poderia coexistir com um

comportamento onde a maioria das acções estivesse biologicamente

determinada pela hereditariedade. Volto ao ponto que deixei atrás: se o homem passou a realizar-se pela educação, a parte instintiva do seu ser passou

a ser mínima,

visto que

a evolução

para

a educabilidade

obrigou obviamente à flexibilidade das respostas comportamentais. Por tudo isto, o ser humano modifica as circunstâncias e é transformado por elas, comprovação na aparência banal, tal a sua evidência, mas que

não parece ser suficientemente meditada, pois se assim fosse creio que

se evitariam

os equívocos

que

muitas

vezes

surgem

quando

se aborda

o problema do papel da hereditariedade e do ambiente como determinantes

das acções humanas.

Apesar de algumas básicas semelhanças as

sociedades

de

primatas

difícil estabelecer princípios

não-humanos

gerais

que devem

e as

seguros

que

sociedades

existir entre humanas,

se apliquem

é

a umas

e a outras e que resultam de disposições inatas respectivas. E ainda é mais difícil extrair do que se passa nas sociedades de primatas não “humanos dados que com segurança se possam aplicar às sociedades humanas. Montagu (1976) refere-se a este problema afirmando mesmo que não podemos basear-nos no comportamento dos primatas não-huma-

nos para justificar as estruturas sociais humanas, nem explicar aspectos do nosso sistema social, apelando para o velho argumento de que eles

fazem parte de uma qualquer mítica «herança de primata». Acrescenta

ainda que «o comportamento de cada espécie tem de ser compreendido

mete

em serem ente Rae

em

relação ao seu próprio ambiente.

Se desejamos

resolver problemas

especificamente humanos, como a guerra, então temos de considerar problemas do ambiente humano tais como o poder do complexo industrial-militar, os nacionalismos, a educação, o racismo, a miséria e tam124

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — 1

tos outros. Talvez que a mais importante lição a tirar do estudo dos primatas seja a de que pertencemos a uma ordem de animais cujo

comportamento e organização social não são estáticos, mas modificam-se em resposta aos desafios do ambiente. Os primatas são animais adaptáveis, e os seres humanos

são-no muito mais do que todos os outros

representantes do grupo. Esta é, possivelmente, a mais esperançosa lição entre

todas

as que

podem

extrair-se

dos estudos

feitos nos

primatas».

Trabalhos modernos sobre a estrutura social nos primatas vieram demonstrar que muitos aspectos do comportamento que se julgavam geneticamente programados dependem de facto de factores ecológicos e ontogenéticos, aspectos que desaparecem desde que os animais são

introduzidos noutro contexto social !!. Os modos de relações sociais determinam as condutas das fêmeas e, por via destas, o comportamento dos

Ambiente,

filhos.

causas

em

sendo

Jogo,

Por

dois primeiros.

é uma (v.

qualidade

Kummer,

tipo

de

particularmente

inata, é transmitida Ropartz,

são

a acção

dos

social de cada indivíduo

não

pelas mães aos jovens macacos Estes

1979).

genéticos,

analisar

importante

a categoria

exemplo,

1979,

social, factores

estrutura

dão

dados

um

suporte

às

afirmações atrás mencionadas por Montagu. Diversas

investigações

vieram

demonstrar

o

estreito

parentesco

genético entre o homem e os grandes símios. E Bruce e Ayala, a quem se devem importantes resultados, afirmam

que estes últimos conduzem

a um paradoxo: por um lado, somos muito diferentes dos antropomorfos, quer na morfologia, quer no comportamento, e pelo outro a diferenciação genética que nos separa deles é mínima, sendo da mesma ordem da que se observa entre as espécies gémeas (isto é, indistintas do ponto de vista morfológico) da mosca-do-vinagre (Drosophila). Admitem a hipótese de que as diferenças em relação aos grandes símios sejam sobretudo devidas a fenómenos de regulação genética !?. Se, como parece concluir-se, o parentesco é extremamente estreito, poderia inferir-se que, no que respeita ao comportamento social, haveria

grandes semelhanças e que as acções sociais humanas seriam em grande medida esclarecidas à medida que progredissem os conhecimentos sobre as sociedades de primatas não-humanos. Ora não é isto que se verifica por enquanto, e não há dúvida de que é um enigma extremamente interessante que com tão íntimo parentesco na constituição hereditária existam tão enormes diferenças dos pontos de vista anató-

mico, adaptativo e comportamental além de outros importantes aspectos psicológicos que tão profundamente nos separam dos primatas actualmente mais próximos de nós. Apesar

de

todas

as

dificuldades

de

interpretação,

pode

todavia

afirmar-se que no homem a tendência à vida em grupo é uma condição primitiva e que o seu sentimento social foi provavelmente fortalecido pelo temor

da solidão, solidão psíquica 125

|

sobretudo.

As características da

GERMANO

DA

FONSECA

psicologia humana

desenvolveram-se em

estimulo

ao

desabrochar

Nasce-se

com

pleno

a capacidade

das

de

SACARRÃO

sociedade,

que

potencialidades

desenvolver

funcionou

do

ser

linguagem,

tal

de

humano.

como

se

nasce com a capacidade de nos tornarmos humanos. Isto significa, em certa medida, que não se nasce «ser humano», mas sim como «animal

capaz de o ser». Outro

elemento

de sucesso residiu

no comportamento

do homem,

provavelmente o menos rígido de entre todos os animais. Se a extrema flexibilidade física do seu organismo e a do seu comportamento foram dois decisivos factores de sobrevivência, além de possuir um psiquismo sumamente plástico, reduzidamente instintivo (os seus impulsos inatos, que os tem, não são em regra bem definidos e imediatamente expressos em

comportamentos

específicos, como

no

animal),

e uma

inteligência

superior, o primata humano desenvolveu também autoconsciência, capa-

cidade de previsão, de se interrogar sobre o seu destino, sobre a morte. A

autoconsciência

fez

nascer

o medo

metafísico,

a recusa

da

morte,

o que abriu logo o caminho ao desenvolvimento de sentimentos religiosos, ao sentido

de mistério — tudo

passo sob forma ainda rudimentar

isto tendo

talvez

surgido

pelo menos

com

o Homo

ou sob forma ainda pouco definida no Homo

passo

a

erectus,

habilis e talvez em

certos

australopitecos mais progressivos, seus prováveis antecessores imediatos. Em rigor, não existem instintos no homem, no sentido que é proprio conferir-lhe: ou seja, como reacções complexas, fixas, predeterminadas e automáticas em relação a certos estímulos do ambiente. O ser humano desenvolveu respostas, não reacções rígidas e automáticas

se repetiriam em face das mesmas circunstâncias exteriores. A evolução do homem ocorreu sob condições que o pressionaram constantemente para encontrar a solução adequada para problemas suscitados pelo meio físico e cultural. Consequentemente, evolveu para uma nova esfera de adaptação «na qual o seu comportamento é dominado por respostas aprendidas, e não por reacções predeterminadas» (Montagu). A mais poderosa pressão selectora veio do ambiente sociocultural, moldando o ser humano não só culturalmente como fisicamente. Os poucos comportamentos

inatos que

existem

no

homem

senão todos, ser modificados, reorientados,

podem,

muitos

introduzidos em

deles,

novos com-

plexos de aprendizagem, plasmados com as fortes influências socioculturais,

de

humanos.

onde Esta

resultará

a aparência

«instintividade»,

da

a existir,

não não

instintividade

dos

seres

é caracterizada,

como

nos outros animais, por mecanismos nervosos mais ou menos complexos e

fixos,

constituídos

por

múltiplos

automatismos

inscritos

no

genes

e libertados por processos internos neurofisiológicos e por causas exter-

nas. Ou seja: tudo parece conduzir à ideia de que o ser humano é destituído de rígidos processos automáticos e pré-programados que caracterizam em grande parte a conduta dos outros animais. Os que possuirá 126

BIOLOGIA representam

talvez

muito

E

SOCIEDADE — 1

pouca

coisa

comparativamente

à

imensa

capacidade de modificabilidade de um ser que quase tudo terá de aprender, pelo menos (e já é muito) tudo o que é fundamental para

se tornar humano. Neste aspecto, a evolução cavou um fosso profundiíssimo que iria para o futuro separar o destino do ser humano do dos outros animais. Isto não significa que não haja uma certa componente genética no comportamento social do homem, que a ontogenia seja estranha a ele; mas sim que o biológico e o social são co-determinantes na realização do ser humano, impossível de compreender fora dessa dualidade (v. o cap. xm) É. É fácil de deduzir que uma conduta da natureza dos automatismos não seria possível coexistir com a enorme riqueza que confere a plastici-

dade física e psicológica do ser humano, a dade de aprendizagem, o estar condenado a pela educação. Será útil que, ao considerar (que também existem, claro está, em maior animais, em particular nos mamíferos, mas comparável ao atingido no homem, tanto mente, nas consequências), será útil, dizia,

sua quase infinita capacitudo aprender, a realizar-se estas qualidades humanas ou menor grau em muitos em nenhum deles em grau no modo como, principalque não percamos de vista

o problema complicado das pulsões inatas no homem, e todos aqueles

processos que, por herança biológica, desempenham uma importante função na vida do ser humano, inclusive no seu comportamento. É o

caso, por exemplo, das funções do complexo hipotalamico-hipofisário e de diversos outros mecanismos neurofisiológicos. Mas pode dizer-se, sem receio de cair em erro, que o ser humano é um animal muito pobre

de «instintos», no sentido de que o seu comportamento não se exprime por esquemas hereditariamente fixados, de tal modo que não seriam

contrário,

Pelo

modificáveis.

aqueles

componente

aqueles

que possam

ter uma

homem

introduz-se,

geralmente,

comportamentos

seus

genética)

(mesmo

ser sempre

podem

alterados, recusados, regulados ou reorientados por acção cultural. O problema da extensão e dos limites do comportamento inato no (op.

por

cit.)

natureza

por

entender-se

declarou

natureza

infinitamente

certa

o debate

todo

em

humana

(v. meu

1982).

que

ignorava

o que

vez

sobre

o que

Bertrand se devia

Russell entender

humana,

Em

todo

o caso, para ele essa natureza

maleável.

Os

seres

humanos

modificam-se

deve

era

consoante

a

maneira como são tratados, e considerou disparatada a ideia de que a natureza humana não possa ser modificada. Esta resposta de Russell

respeitava ao problema de a guerra fazer ou não parte da natureza humana. David Barash cita uma frase interessante de Simone de Beauvoir

a

propósito

igualmente

da

natureza

humana,

frase

que,

a

meu

ver, é feliz na medida em que caracteriza o ponto de vista da extrema medificabilidade do homem: «lêtre dont Pêtre est de n'être pas», e que sem dúvida não é aplicável provavelmente aos outros animais. Por 127

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

muitos

instintos e condutas

programadas

nascer,

as suas

de escolha

capacidades

que o homem

e de adaptação

possuísse ao seriam

muito

inferiores às que lhe confere a sua situação de ser que só se realiza por aprendizagem e socialização, em que as possibilidades de resposta e de criatividade são ilimitadas comparativamente aos automatismos da

conduta, mesmo quando estes são em certa capacidade de aprendizagem pelo animal. o que o homem faz ou é capaz de fazer é poder estar nele programado. Nos capítulos

medida modificáveis e exista O cérebro humano e tudo demasiado complicado para 1X, XI e sobretudo x11 voltarei

a esta questão.

Após esta rápida digressão por certos aspectos do determinismo do comportamento do ser humano, referirei outros caracteres. O ger humano possui muito mais curiosidade, maior poder de imitação, de atenção e de memória do que os outros animais superiores. À linguagem revela-se como o meio mais importante

para manter

ou transformar a

cultura. Surgiu a imaginação, que se desenvolveu prodigiosamente, assim como o sentido da arte, da beleza. Forma sentimentos religiosos, crenças em poderes sobrenaturais. À riqueza psíquica aumenta então enormemente. Alarga e aprofunda a personalidade por meio da sua imensa força imaginativa, das suas faculdades de criação artística, dos seus sonhos. Antevê os seus actos, prevê as consequências, nasce o

reconhecimento da responsabilidade pelos efeitos resultantes da sua conduta, raiz provável do senso moral, do apego a valores, dos juízos sobre o que é bom e o que é mau. Esta capacidade de pensar e escolher em termos de bem e de mal é simultaneamente inata e aprendida. O seu mecanismo básico faz parte da nossa herança biológica, mas o desenvol-

vimento, a orientação que tomam no indivíduo e na sociedade dependem de educação e da estrutura social,

individual

plasticidade do comportamento

A imensa

teve ainda

outras consequências. Por exemplo, permitiu que, por educação, se formem as especializações mais diversas, como se verifica actualmente

nas sociedades humanas mais complexas, que obviamente não poderiam tais num

surgir como mentalmente

a

mecanismos

comportamento

cujo

animal

fixos,

inatos

cuja

obedecesse

estrutura

social

fundaresul-

biológico. A não ser em sociedades

tasse de um estrito determinismo

de estruturas fixas (como nos insectos), o que não é o caso das humanas. Além

disso, a própria evolução

sociais foi rapidíssima

porque

das culturas,

não se efectuou

herança biológica, mas sim pelos processos

técnicas e estruturas

pelos mecanismos

da herança

da

cultural. Nela

não intervêm os genes, mas sim a educação, no sentido mais lato deste

termo. A transmissão de conhecimentos, técnicas e formas de comportamento fez nascer diferentes culturas e variadíssimas estruturas sociais. A razão fundamental reside no facto de o homem ser um animal social de características únicas, A palavra e a cooperação ligaram entre si os

q

128

BIOLOGIA membros

dos

agrupamentos

E

SOCIEDADE —

primitivos,

cada

um

comunicando

aos

outros as suas experiências, legadas, depois, de geração em geração. Pensamento, linguagem conceptual, cooperação social, plasticidade de adaptação

e extrema

educabilidade foram os meios mais importantes de

sucesso para as primeiras comunidades de homens. A selecção natural actuou aí, provavelmente, a favor dos homens mais hábeis, mais comunicativos, mais imaginosos, mais cooperantes, mais inteligentes na caça, na confecção

de armadilhas,

na sua capacidade

de manipular

e inven-

tar instrumentos, na protecção e coesão da família, tudo qualidades que actuaram,

provavelmente,

como

factores

decisivos

de

sobrevivência.

É fácil concluir que a pressão para mudar se exerceu exactamente no sentido de um alargamento da fase juvenil de aprendizagem, indispensável numa espécie desarmada de instintos, que depende, para sobreviver, de

7.

O

mais

inteligência

físico

e

o

e de mais

saber.

cultural

Importa também salientar outro aspecto, ou seja, que as características físicas ou anatómicas do homem estão em nítida relação com o seu

comportamento,

com

as suas

actividades

e realizações.

Todos

os

caracteres especificamente humanos, sejam físicos, psicológicos ou culturais, interactuam e integram-se num todo que define o humano. Por um lado, não fora a flexibilidade individual do comportamento

e seria impossível constituir por aprendizagem as mais diversas especializações necessárias à vida das sociedades humanas em constante modificação e adaptação a novas circunstâncias, o que exige a formação de novas classes e tipos profissionais. Ora sem a larga margem para educabilidade que caracteriza o ser humano não poderiam ocorrer as permanentes reestruturações e readaptações das sociedades humanas. Por

outro lado, a linguagem humana depende sobretudo de uma estrutura cerebral complexa, da qualidade e número dos neurónios, das suas intrincadas associações, da complexidade das vias nervosas e também de certos dispositivos anatómicos e fisiológicos (estrutura da laringe, cordas

vocais bem

diferenciadas, etc.).

As complexas máquinas das actuais sociedades industriais, caracterizadas por um grande avanço científico e tecnológico, do mesmo modo que os utensílios simples que o Homo

sapiens inventou e fabricou há

uns trinta mil ou quarenta mil anos, só puderam ser criadas por um ser dotado de elevado poder de raciocínio e poderosa imaginação, mas necessariamente

dotado, também,

de extraordinária habilidade manual,

capaz de executar com a mão movimentos não só extremamente delicados como rigorosos e perfeitamente coordenados. Todavia, a mão do

homem Bibl.

Univ.

é o instrumento 49 —

9

de um

cérebro 129

superior, que

concebe,

que

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

antevé utensílios destinados a cumprir determinada finalidade. A mão do chimpanzé não pode executar o que faz a mão humana não só por causa da sua estrutura, que, em

certos aspectos, é diferente

(ainda que

basicamente semelhante à mão humana), como, sobretudo, por este primata ser destituído de um psiquismo elevado, determinado por um cérebro e um sistema nervoso de grau superior, que não é o seu. Por

outro lado, a invenção

de instrumentos

não

depende

exclusi-

vamente de habilidade manual nem de um cérebro superior. Ela não poderia concretizar-se num animal cujas mãos estivessem também ao serviço da locomoção, mas, pelo contrário, libertas totalmente dessa função,

transformadas

agora em

órgãos de tacto, de preensão e manejo

de objectos. Estas actividades, por sua vez, suscitam novas ideias, novas relacionações,

numa

interacção

fecunda

com

complexos

centros

cere-

brais. Como órgão preensor, a mão passou a substituir as mandíbulas (não inteiramente, mas em todo o caso para o mais importante). Mãos

e cérebro devem-se ter mutuamente influenciado. Esta profunda alteração funcional na evolução dos primatas antecessores da humanidade

conduziu, progressivamente, à redução das mandíbulas e da dentadura (em particular dos caninos) e à transformação e encurtamento da região

facial e predomínio correlativo da região craniana. Além disso, o bipedismo dos primeiros seres humanos, aliás já existente nos antepassados sub-humanos, abriu largas possibilidades de desenvolvimento à intekgência, em ligação com a progressiva evolução das indústrias, e à socialização. Libertas as mãos da locomoção, estes órgãos ficaram disponíveis para o transporte dos filhos e de alimento, para o manejo e fabrico de instrumentos, etc. !*. Poder-se-á conceber, então, que todas as mutações,

e regulações

combinações

génicas

que

fossem

favoráveis

ao desenvolvimento cerebral, e nomeadamente da inteligência, tenham sido, logo de começo, rapidamente preservadas pela selecção natural. porquanto, como é fácil deduzir, a sobrevivência e adaptação do homem (e dos primatas infra-humanos que imediatamente o precederam) dependiam,

fundamentalmente,

capacidade.

dessa

Correlativamente,

como disse, a capacidade craniana atingiu, gradualmente, valores maiores, o que implicou, entre outras, modificações na arquitectura óssea

do

duos

mais

crânio. hábeis,

À

selecção mais

exercer-se-ia

natural

na

inteligentes,

sua

a favor

capacidade

dos indivt-

de manipular

e inventar instrumentos, qualidades essas que actuariam como factores decisivos

de sobrevivência

em

seres

como

os humanos,

destituidos de

especializações que especificamente os protegessem dos numerosos perigos provenientes

do ambiente

natural

e social. O sucesso

deveu-se provavelmente ao facto de não ser um para viver sob determinadas condições.

130

do homem

animal especializado

BIOLOGIA

8.

Natureza

hostil

ou

E

SOCIEDADE — 1

paraíso

terreal?

Uma noção que o darwinismo tradicional, sobretudo os seus aspectos popularizados e deturpados respeitantes à noção de luta pela vida, imprimiu nos espíritos foi a de que os primeiros grupos humanos levavam

uma

existência em luta permanente e sacrificada com

mentos físicos, com num

constante

uma

esforço

os ele-

natureza adversa, contra os outros animais, por

sobreviver.

À

selecção

natural

actuaria

a favor dos homens cujas invenções técnicas concedessem, por exemplo, qualquer vantagem na caça, no confronto físico entre os homens, ou entre estes e os animais; e sobreviveriam sobretudo os indivíduos mais

resistentes, mais brutais. Ora isto pode ter sido assim, mas não está demonstrado que o fosse. Os preconceitos têm mais força nesta questão que os dados da ciência. Se a África Oriental ou Central (nomeadamente a região Centro-Oriental) foi, como hoje há tendência a admitir, o berço da humanidade (não podendo excluir-se que haja outros cen-

tros de origem

em

África ou no Médio

Oriente), há quem

avance

a hipótese de que as primeiras fases da evolução humana, decisivas para o desenvolvimento mental, se tivessem processado numa região tropical ou subtropical, rica de alimento, num paraíso terreal favorecendo

a vida

fácil, propensa

à imaginação,

intensificar-se mais

do que

a invenção

atingiria níveis que

abriram o caminho

faculdade

que

poderia

até

racional, a qual só mais tarde às técnicas.

Julgo que os valores dominantes nas sociedades industriais e com-

petitivas do Ocidente, assim como a interpretação socialista marxista, que confere posição dominante aos instrumentos materiais de produção na determinação da evolução humana, aceitam logicamente a primeira hipótese (vida dura em natureza hostil), rejeitando a segunda (vida edénica). É extremamente provável que a evolução da humanidade pré“histórica tenha sido dominada pela invenção de tecnologias e culturas que adaptaram o símio humano às múltiplas vicissitudes e perigos que o espreitavam de todos os lados. A maior dúvida persiste, porém, no que respeita às primeiras fases da hominização, às condições que presidiram à metamorfose da configuração física e ao desenvolvimento da mente humana e à modificação de grande parte da sua herança simiesca, À incessante e intensa actividade do cérebro humano, pletórico

de energia mental, exigiu que logo desde o início os homens e seus antecessores imediatos pudessem dar livre curso à torrente nervosa que os invadia, estando isso talvez na origem da sua conversão em múltiplas culturas e modos de acção, desde o trabalho e a invenção de técnicas, aos jogos, à arte, à dança, aos sonhos, ete, À mente do homem prolonga,

modificada, a mente dos símios seus antepassados. À tendência humana

para a imitação, a sua intensa curiosidade exploradora, sem objectivos utilitários, são qualidades que já existiam neles e que de certo modo se 131

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

encontram também nos símios actuais, apesar de todas as reservas que imponho às comparações para delas deduzir filiações ou homologias.

Lewis Mumford (1973) referiu-se ao facto de o historiador holandês, J. Huizinga, no seu livro Homo ludens, ter sugerido, à luz

de numerosas provas, que mais do que o trabalho, foi o jogo o elemento formador no seio da cultura humana, e que o domínio das quimeras constituiu a mais séria actividade dos homens. «Segundo esta tese», escreveu o primeiro autor, «o ritual e a mímica, os desportos, os jogos e o teatro libertaram o homem das suas insistentes ligações ani-

mais;

e nada melhor o poderia

demonstrar,

cerimónias primitivas onde o homem

espécie

de animal.

Longo

tempo

acrescento

eu, do que

as

representava o papel de uma outra

antes de ter adquirido

o poder

de

transformar o meio natural, o homem havia criado um meio miniatura, o domínio simbólico do jogo, onde cada função da vida podia ser remodelada num estilo estritamente humano, como num jogo.» Diz ainda

Mumford que a tese do Homo ludens de Huizinga era tão surpreendente que chegou a chocar o seu tradutor, que, por isso, alterou intencionalmente a afirmação do mesmo autor, quando este diz que «toda a cultura

é uma forma de jogo», transformando-a na noção convencional e mais

evidente de que «o jogo forma um elemento da cultura». Mais

adiante,

Mumford

contesta

a

ideia

de

que

o

homem

se

caracteriza sobretudo por ser um animal fabricante de instrumentos, em suma, a pretensão de que os instrumentos materiais de produção dominariam

todas

as

outras

actividades

humanas.

«Há

boas

razões

para crer que o cérebro do homem, desde a origem, foi mais importante do que as mãos, e que a dimensão deste cérebro não resultou unicamente

do facto de o homem

fabricar e utilizar instrumentos;

que o

ritual, a linguagem e a organização social, que não deixaram o menor vestígio

material,

ainda

que

estivessem

constantemente

presentes

em

cada civilização, foram sem dúvida os mais importantes artefactos do homem logo a partir dos primeiros estados; e que, bem longe de conquistar a natureza ou de remodelar o seu ambiente, o primeiro cuidado do homem

primitivo foi utilizar o seu sistema

nervoso

hiperdesenvolvido,

intensamente activo, e dar forma a um eu humano separado do seu eu animal de origem, pela fabricação de símbolos — os únicos instrumentos que podiam ser construídos a partir dos recursos do seu próprio corpo: À

sonhos, imagens e sons.» meu

ver, não existe oposição

faber e a do Homo

ludens.

actuais da ciência admitir Nem houve exclusivamente

Não

necessária

entre

a tese

creio que seja conforme

do Homo

aos dados

qualquer delas com exclusão da outra. áspera luta pela existência, que consti»

tuiu provavelmente um elemento importante da hominização, nem poderá esquecer-se que nessa luta pela vida a imaginação talvez tivesse um

poder

tão grande

ou mesmo

maior, 132

do que

a invenção

racional,

|

BIOLOGIA que

está

na

base

da

E

SOCIEDADE — 1

tecnologia

grosseira

do

começo,

imaginação

a determinar um comportamento complexo de adaptação e de que os rudes utensílios líticos não foram senão um dos aspectos de um viver já assaz complicado, simples adjuvantes de uma conduta já rica de manifestações

humanas.

O

ambiente

de

clima

tropical

ou

subtropical

provavelmente permitia e até convidava a uma vida fácil, tranquila, com alimento abundante à disposição, onde tudo, sem dúvida, convidaria ao desenvolver da imaginação criadora e de actividades não orientadas para a luta rude e sem tréguas. Mas mesmo nesse «paraíso terreal»

a humanação não foi, provavelmente, um processamento idílico, com permanente doçura de viver, preguiça, destemor, facilidade. Os primeiros

homens

viviam

num

mundo

de

animais

e de

contingências,

onde, portanto, a rudeza, a força física, a astúcia e a mínima invenção técnica

para

matar

ou

dominar

a presa

ou

os elementos

muias ocasiões, decisivos factores de sobrevivência. Que

eram,

em

esses primeiros

homens não foram apenas carnívoros é o mais certo. Que a imaginação

fecunda deva ter precedido a invenção tecnológica, e que a inteligência não deve ter esperado

por esta para

atingir valores de criação, é legí-

timo aceitá-lo. Mas se o berço da humanação foi uma região paradisíaca, isso não obstaria a que os seres humanos estivessem perante necessidades que

aguçassem

a invenção

racional,

sem

deixar

naturalmente

de,

pelas próprias condições de amenidade climática, de riqueza alimentar,

desfrutarem

de largos intervalos

de

onde poderiam

«ócio»

dar livre

curso a outras actividades que não fossem as de caça, nas quais, aliás,

projectariam e satisfariam o seu prodigioso poder imaginativo e o seu pendor religioso. Preferir

a tese do

«paraíso

terreal original», onde

a humanação

se teria realizado livre das duríssimas obrigações da luta pela existência, dando

a primazia

ao sonho,

à arte, à magia,

etc., é uma

ideia

talvez

preconcebida a esconder possivelmente apego a forças espirituais na evolução da humanidade, como que um ajustamento à doutrina cristã da criação. Defender uma humanação em clima rude, cheio de perigos,

onde só homens duros, violentos e resistentes, agressivos e inventores de armas

eficazes

poderiam

vencer

em

luta

feroz

contra

uma

natureza

inimiga povoada de inimigos, está de acordo com a ideologia burguesa, que considera a força do trabalho, a competitividade criadora, o progresso sem fim e a evolução tecnológica do Ocidente como grandes realizações da história da humanidade, de que as modernas sociedades industriais capitalistas ou socialistas constituem a suprema expressão. Os dois pontos de vista não se excluem mutuamente. Ambos

“am

+

a meu

traduzem,

ver, cenários possíveis e combinados de uma realidade longínqua

que tentamos reconstituir com a escassa factualidade que possuímos e com a coerência que nos é permitida pela estrutura da lógica cien-

tífica *º. 133

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

NOTAS

1 O pitecantropo

(o homem-símio)

foi incluído, com

outras formas, no Homo

erectus. Há tendência, por vezes, em eliminar esta designação «espécies»

arcaicas

humanas,

entre

os símios

ancestrais

e abranger

e o homem

todas as

moderno,

numa

única e grande espécie — Homo sapiens (Saint-Blanquat, 1984). Mas tal solução não traria grande proveito, por agora, porque enquanto houver formas humanas diversas, exibindo diferenças significativas e separadas no tempo, será necessário apor-lhes uma etiqueta

e um

nome.

Entre

outras,

foram

incluídas

em

Homo

erectus

o sinantropo

(homem da China), o homem de Olduvai (África Oriental) etc. Esta espécie apresentava grande área de distribuição, compreendendo quase todo o Velho Mundo. 2 No meu livro 4 Adaptação e a Invenção do Futuro (1985) desenvolvi o ignificado

daquilo

que

designei

por

pressão

histórica,

como

factor

orientador

da

mudança, conceito que também poderá apelidar-se (com certas vantagens) pressão filogenética. Os caminhos que toma a evolução são fortemente orientados e limitados pelas estruturas e processos preexistentes. O conceito de preadaptação é um: dos aspectos desta realidade. De facto, as direcções que a evolução pode tomar não são ilimitadas, a organização preexistente determina em grande parte as vias a seguir e as configurações que é possível desenvolver. Por outro lado, nem a mutação a nível biomolecular,

nem

a sua expressão

no organismo,

se realizam

inteiramente

ao acaso.

A estrutura preexistente e a pressão histórica favorecem ou em parte impõem determinadas direcções à mudança e marcam os limites do possível, quer no seio do genoma, quer a nível do organismo, como tenho sugerido várias vezes. A evolução não inova a partir do nada, trabalha sobre o preexistente, e as modificações surgem por razões arquitecturais, ontogenéticas e históricas, de concerto com a pressão das contingências externas (selecção). À participação da estrutura lução biológica não têm merecido a atenção que merecem.

e da

história

na

evo-

3 Os partidários da origem súbita das espécies consideram que o homem nasceu a partir de uma pequena população isolada de um australopiteco, cuja espécie continuaria a existir geograficamente separada dos primeiros homens nascidos dessa

população da mesma espécie. Não pensam que o homem

É

se tenha originado logo na

sua forma final (sapiens), mas que nesse passo original grande parte da forma humana se teria constituído numa só geração, visto que para os «punctuacionalistasa

não há evolução gradual espécie > espécie, É óbvio que a teoria «punctuacionalista», ou

dos

«equilíbrios

intermitentes»

(v.,

adiante,

o

cap.

V),

«trouxe

a

alegria

aos corações dos criacionistas», como declarou um dos seus defensores, que não é criacionista (v. Stanley, 1981). No fundo esconde-se a mesma preocupação de marcar

de anos de idade, baptizado mesma espécie (Johanson e aparecimento do homem na respeita aos documentos da a seu respeito, que têm sido

«Lucy», e ainda de novos restos esqueléticos incluídos na Edey, 1983). Marcará «Lucy» o momento evolutivo do Terra? A controvérsia e até a confusão existentes no que nossa evolução, e as respectivas e diversas interpretagões propostas, impõem uma atitude de prudente reserva, Há

numa

nem

GPL

como um acontecimento súbito.

4 Trata-se de um esqueleto do hominídeo mais completo (a mulher-macaco de Afar, na Etiópia) descoberto em 1974 por Donald Johanson com 3 a 4 milhões

rir np

o aparecimento do homem

tantos pressupostos e fundamentações com pretensões a provas que as conclusões são todas problemáticas. Será «Lucy» o antepassado de todos os hominideos? Se mesmo evolutiva

se sabe definir com

rigor em

que consiste

um

ses

134 A

perspectiva

BIOLOGIA humano, gradual e gicos) de 5 O Mary

E

SOCIEDADE — 1

o que não surpreenderá, naturalmente, se a evolução é um movimento não uma série de bruscas inovações separadas por longos intervalos (geolóestabilidade. artigo de Regine Dalnoki menciona que o nome Á, afarensis foi dado por

Leakey,

o que

é incorrecto

(v. Johanson,

White

e Coppens,

1978;

e Johanson

e Edey, 1983, pp. 315-330). Por outro lado, também não é admissível referir-se à mesma espécie como «ce premier humain», tratando-se de um autralopiteco como é a opinião unânime. Quanto à idade deste australopiteco arcaico, parece ser ainda mais antigo por terem sido encontrados restos datados de há 4 milhões de anos (Chaline, 1982). O que parece indubitável é que em Laetoli (lanzânia) há pegadas deixadas em

cinzas

vulcânicas

que

caíram



cerca

de

3,5

milhões

de

anos

(Hay

e Leakey,

1982). Eram pés de homens ou de infra-humanos? Serão vestígios de precursores dos homens primitivos ou já o seriam destes últimos? Nenhuns artefactos foram encontrados (os mais antigos conhecidos datam de há 2 milhões de anos), e acredita-se que esses hominídeos tivessem cérebro de símio com postura erecta de tipo humano. Libertas já as mãos da locomoção, estaria, assim, aberto o caminho ao desenvolvimento da inteligência e ao fabrico de instrumentos. A postura erecta seria o facto fundamen-

tal que teria provocado o desenvolvimento em cadeia de todas as principais transformações

posteriores que caracterizaram a humanação.

Mas as origens humanas

não são

facilmente redutíveis a um tal esquema.

6 Marvin Harris, antropólogo da Universidade da Florida, em artigo publicado

em 1986, defende a ideia de que o homem não foi feito para uma dieta sem carne. Refere que os homens do paleolítico, vivendo como recolectores-caçadores em clima temperado durante os cem mil anos que precederam a domesticação de plantas e animais, tiravam do consumo de carne cerca de 35 Jo das suas caiorias. Mas, ainda que isto possa ser certo, não deixa de ser uma coisa problemática, e é legítimo

duvidar dela como generalização. Ainda

segundo

dados

citados pelo mesmo

autor, o organismo

dos nossos ante-

passados estaria adaptado a consumir cerca de 788 g de carne por dia, dez vezes mais do que o americano médio (dos Estados Unidos da América do Norte) consome no mesmo intervalo. O autor exalta o valor do consumo de carne. Seria a expressão de

uma tendência para a qual o homem estaria geneticamente programado (o que provavelmente

é inexacto),

além

de valer como

indicativo de posição social. Quer dizer,

apetência natural misturada com aspectos culturais. o mesmo autor tece ainda considerações sobre o papel do consumo cárneo no acréscimo da longevidade. Mas atribuir este último facto ao aumento do consumo de carne não parece correcto porque, como é bem sabido, as classes de mais elevada posição social têm menor mortalidade não porque de factores

comam mais carne (ainda que o façam), mas sim por todo um favoráveis decorrentes do seu status e dos seus privilégios.

conjunto

A questão da nutrição humana não se compreenderá apenas à luz dos factos biológicos e bioquímicos. Se teoricamente todos os seres humanos têm essencialmente as mesmas exigências alimentares, e sofrem de modo semelhante de múltiplas deficiências, na prática

há um

imenso

número

de populações

que se mantêm

em

boa

saúde com dietas consideradas insuficientes pelos nutricionistas, dietas que são de fome pelos padrões por exemplo norte-americanos, Muitas destas populações «primitivas» desenvolveram práticas de ajustamento aos recursos disponíveis que lhes permitem encontrar o sustento necessário. Há conjunção de adaptações biológicas e sociais. Por outro lado, muitos destes povos mudam rapidamente de dieta de acordo com as circunstâncias; e as necessidades fisiológicas são tão importantes como o são a tradição, as práticas sociais e os tabos. À dentadura, a anatomia do aparelho digestivo,

mostram que o homem foi omnívoro durante a sua longa história evolutiva, talvez predominantemente herbívoro de começo, transitando depois para dietas mais abun-

dantes

em

carne durante

o paleolítico;

mas

foi sempre

variável

no regime

e na

escolha dos meios de subsistência (v. dados no importante livro de Dubos, particularmente no seu cap, WI),

135

DA

GERMANO Os grande

SACARRÃO

FONSECA

dieta caracterizada por como fonte alimentar

hominídeos mais arcaicos devem ter seguido uma diversidade com exploração de rizomas e raízes 1975,

(Kolata,

1981,

e Teleki,

Harding

Lovejoy,

em

de

salto

Novo

1982).

regime

ocorreu com a invenção da agricultura, nomeadamente a cultura de cereais. O homem é altamente adaptável do ponto de vista da nutrição, e qualquer con-

clusão rígida a este respeito, como de certo modo é a de Marvin Harris, está conde-

a afastar-se da realidade. 7 Não existem quaisquer evidências que os hominídeos arcaicos (australopitecos) caçassem. Várias indicações conduzem à conclusão segundo a qual a actividade da caça não era significativa do ponto de vista nutritivo nos antepassados infra-humanada

nos e nos primeiros homens. Parece agora bem estabelecida a noção de que o homem

foi sempre omnívoro; e quando caçou fê-lo apenas como actividade adjuvante para outras fontes alimentares (v. Lovejoy, 1981 e 1982). O que dominou sempre na evolução humana foi a flexibilidade da dieta e a adaptação cultural às circunstâncias,

num

revelar de potencialidades intermináveis

(v. nota anterior).

8 É possível que o ramapiteco (donde teria derivado o orangotango) esteja fora da linha evolutiva humana (v. Science, 1982, 297:541-546, e Andrews, 1982) e que a divergência desta última seja mais recente, tendo o homem e os antropomorfos (chimpanzé, gorila, etc.) uma base comum datando de há pouco mais de 6 milhões de anos, como parece indicar Australopithecus afarensis, com marcha bípede e estação vertical humana, mas com cabeça de «chimpanzé». Mas nesta questão das origens as conjecturas proliferam. Pode pôr-se sempre a hipótese de afarensis também estar fora da linha humana, sendo um caso de paralelismo evolutivo, enquanto outro

tronco seria responsável pela origem de Homo habilis > Homo erectus. Significaria ela que Australopithecus não estaria na linha histórica do homem, mas sim a ela, a divergência, humana

nesse

caso,

de

seria muito

Homo

remota.

a evolução

Aliás,

pode ter-se dado em várias linhas paralelas, facto que não está em

desacordo

com o que nos ensina a genética e a adaptação. Em todo o caso, as diferenças ontogenéticas para a bipedia e o desenvolvimento cerebral parecem ter constituído a divergência de arranque, tendo na base uma acentuada retardação da ontogenia (v. o próximo capítulo).

9 A «linguagem», que se tem feito aprender aos chimpanzés é feita de símbolos geométricos (lexigramas), ou é gestual, havendo ainda outras técnicas mais complicadas, com utilização de computador. Allen e Beatrice Gardner, por exemplo,

ensinaram

a linguagem gestual dos surdo-mudos

«Washoe».

Estabeleceu-se

uma

comunicação

chimpanzé

ao famoso

americanos

homem-animal.

Tem

criticada

sido

a

equivalência destes sistemas de comunicação à linguagem humana. Tratar-se-ia, antes, de uma aperfeiçoada domesticação. A grande flexibilidade do chimpanzé e a sua estreita aproximação evolutiva à linha humana permite-lhe aprender um processo de comunicação que se assemelha na estrutura semântica e gramatical à linguagem humana, mas estas analogias podem induzir a ir mais longe do que será legítimo na comparação (v., por exemplo, CGlasersfeld, 1978, MeGonigle, 1980, Marx, 1980, Maury, 1980, e Petter, 1984).

Id

V. The Sciences, Novembro-Dezembro,

E

1986,

p. 65

(análise

do livro de

Linden: Silent Partners: The Legacy of the Ape Language Experiments). 1 A estrutura social dos chimpanzés parece ser única entre os mamiferos. Cada bando move-se constantemente à procura de frutos e outros alimentos na área do respectivo território, e a comunidade fragmenta-se ou agrupa-se consoante a disponibilidade em alimento. Há exogamia das fêmeas, mas não dos machos. A forma de organização seria típica das sociedades humanas na fase de recolectores-caçadores (Ghighieri, 1985). Em todo o caso, as diferenças são consideráveis porque não há (entre outras divergências) vida de casal, nem sua fixação em «lar», com criação simultânea de vários filhos. I2 A

e o gorila

estreita

semelhança

mostra,

entre

outros

genética

aspectos,

que

que 136

existe

entre

a evolução

o

homem

morfológica

e

q

chimpanzé

e a evolução

BIOLOGIA

bioquímica

nos

genes

estruturais

E

são

SOCIEDADE — 1

de

certo

modo

independentes,

processam-se

a velocidades diferentes, o que põe novos problemas sobre a origem e a evolução do homem. As maiores diferenças genéticas entre o homem e os antropomorfos residem provavelmente no sistema regulador, mas é de crer que outros processos também

intervenham que dêem conta das profundas diferenças existentes entre o ser humano

e os primatas mais próximos (v. King e Wilson, 1975, Miller, 1977, Cherry, Case e Wilson, 1978, e Lovejoy, 1981). 8 O próprio «instinto» maternal, sempre invocado como um dos grandes exemplos de impulsos irresistíveis e automáticos, seria um mito (Badinter, 1980). Para esta autora, ele é antes um sentimento que pode ou não existir, pode surgir ou desaparecer, contingências que dependem de causas variadas. «Tout depend de la

mere, de son histoire, de Histoire. Non, il n'y a pas de loi universelle en cette matiere qui échappe au déterminisme naturel. L'amour maternel ne va pas de soi. II est “en plus'» (idem, p. 369).

única e universal. Não existe fundamento natural para o amor

nismo

humano,

uma

conduta

para se admitir unicamente

um

determi-

noutros aspectos do comportamento

há, neste como

Não

maternal, mas

não creio que se possa excluir a biologia.

Penso que o amor de mãe, como tudo o que é humano, terá de ser aprendido, mas as suas raízes vêm do que há de mais profundo na substância biológica humana. Não actua apenas a influência cultural. Trata-se, a meu ver, de um sentimento desenvolvido por acção conjunta de factores biológicos e sociais, co-determinado

pelas duas componentes intimamente fundidas. 14 O antropólogo C. O. Lovejoy (1981) é da opinião que na linha hominideana (Australopithecus-Homo) existiu uma relação muito íntima entre o bipedalismo e a estratégia reprodutora. A sua teoria sobre a origem do homem é baseada nessa dualidade. Como foi referido neste capítulo III, a bipedia surgiu nos hominídeos arcaicos, muito antes do aparecimento dos primeiros homens. Lembro que há 4 milhões de anos Australopithecus afarensis era bípede e tinha já a dentadura algo modificada no sentido humano. Claro que a dita antecedência não é absolutamente certa, porque não podemos excluir a possibilidade de a linha humana existir nessa altura à parte do stock arcaico australopitecóide. Mas não há quaisquer documentos que façam suspeitar seriamente dessa eventualidade, de modo que a asserção guarda toda a sua

A

legitimidade.

bipedia

nasceu,

antes

portanto,

Ora,

do fabrico de instrumentos.

para Lovejoy, os antropóides arcaicos (e os actuais) tinham uma estratégia sexual e reprodutora que determinou o seu reconhecido declínio, o que é bem testemunhado no presente pelo seu reduzido número de espécies e de indivíduos e a sua estreita limitação geográfica. Em linguagem técnica diz-se que eram estrategistas K. Mas eram-no em demasia, e teria sido esta a causa da sua decadência. À estratégia reprodutora pode tomar duas modalidades: ou a espécie produz grande número de ovos,

mas

relativamente

com

pouco

consumo

de energia

(investindo pouco

como

se diz

metaforicamente em ecologia evolutiva), e esta é estratégia r; ou o número de ovos produzidos é extremamente reduzido, mas o investimento biológico-energético com cada ovo, e seu desenvolvimento, é elevado, e temos a estratégia k. Há todas as combinações e intermediários na escala r—k e não refiro outras complicações e factores em jogo. Para efeitos de simplicidade, pode dizer-se que as estratégias r—k traduzem afinal uma relação entre fecundidade e sobrevivência, um equilíbrio em que a

quantidade

de

ovos

produzidos

condições

das

depende

protecção que receberão dos progenitores. Os antropomorfos, como o chimpanzé

ou

o gorila

hostis

do

o orangotango,

ou

e

ambiente

da

apenas

geram um filho cada cinco ou seis anos, o que, segundo Lovejoy, é uma estrategia k excessiva, sendo ela que tem sido a causa da decadência do grupo, e não a acção

humana, remoto,

ainda

certos

que

talvez

antropóides

declínio — enveredaram miocénicos quadrúpedes

a tenha

apressado.

pré-hominídeos

não

Mas,

seguindo

seguiram

a

Lovejoy, mesma

em

passado

estratégia

de

a fundo pela bipedia, separando-se dos restantes auntropóides ou arborícolas, modo de locomoção, com o qual, numa série 137

DA

GERMANO

FONSECA

SAGARRÃO

de movas aquisições orgânicas e comportamentais, desenvolveram uma estratégia menos k, quer dizer — diminuição drástica do intervalo entre os nascimentos (sendo,

o resultado, portanto, a possibilidade de criar mais do que um filho ao mesmo tempo), actividade sexual contínua, atracção permanente dos machos pelas fêmeas, as quais exibiam maior riqueza, individualização e constância dos seus sinais, susceptíveis de agradar aos primeiros (nascimento da simpatia, do amor?), cooperação do macho na vida do casal, com uma fémea que ele escolhe desinteressando-se das outras, o que significa o nascimento da família nuclear, todos estes factores e aquisições a reforçarem-se mutuamente em ciclos de retroacção. Não haveria sucessão linear de causas, nenhuma das aquisições precederia as outras. Tudo a encaixar, a reforçar-se

reciprocamente. Talvez a bipedia esteja na base de todo este desenrolar de processos e combinações para assegurar uma melhor estratégia reprodutora do que a que tinham os outros antropóides quadrúpedes ou arborícolas. O ponto de vista (darwiniano-sociobiologista)

utilidade, que todas as partes do organismo

de Lovejoy é que tudo tem uma

se constituíram

por

que é ela a força criadora de tudo o que determinou a humanação dos

exageros

O

deste

credo

adaptacionista-seleccionista,

ponto forte do autor

referido no

v. meus

que respeita

1982,

à origem

selecção

natural,

(Para uma crítica 1986).

do

homem

é a

modificação da estratégia reprodutora r—k, que é por ela que se assegura a sobrevivência e transmissão dos «bons» genes. Para a edificação da sua teoria, o autor constrói todos os cenários necessários e intermediários. É um facto a bipedia dos hominídeos

arcaicos de há 4 milhões de anos. Também é provavelmente certo que houve evolução do comportamento social e gradualmente à linha da bipedia, a monogamia, a sabemos é dos comos e dos

reprodutor de certos antropóides ancestrais para se passar evolução humana. As aquisições ocorreram, existem: a educação simultânea de vários filhos, etc. O que nada porquês do seu aparecimento, e é isso o que Lovejoy tenta

resolver com a sua teoria, Para mim, a sua maior fragilidade parece-me ser o desinteresse manifestado

pelo fenómeno

da retardação

ontogenética

(e suas

consequências

evolutivas prováveis), retardamento que me parece ser, na realidade, uma das bases

de onde devemos partir para tentar penetrar nos mistérios das nossas origens. Nunca saberemos como se originou o homem, mas os modelos a conceber não poderão abstrair do enorme significado das características da evolução ontogenética dos

primatas superiores não humanos e do homem. 15 V. Portmann (1965), Sahlins (1976),

Perlês

(1987).

Em

fase

mais

recente (paleolítico superior) também não há indicações seguras do passado, mas é provável que os caçadores primitivos tenham vivido numa relativa abundância de recursos, cortada por fases de crise alimentar.

136

CAPÍTULO ONTOGENIA

E SOCIALIZAÇÃO

IV NA

EVOLUÇÃO

HUMANA

Em regra, designa-se por ontogenia o conjunto das transformações embrionárias e pós-embrionárias pelas quais passa um organismo desde

a fase de ovo até atingir a forma adulta !. Abrange todo o desenvolvimento físico, assim como o aperfeiçoamento

dos processos psicológicos

ou comportamentais do indivíduo, em combinação íntima e co-determinante de causas biológicas, de factores físicos do ambiente e de causas

A ontogenia apresenta-se mais ou menos complicada consoante os pos. A ela estão ligados, ou por ela suscitados, numerosos problemas biológicos da maior importância. Um dos mais significativos é o das suas relações com a evolução, em que medida é que a embriologia pode contribuir para o esclarecimento de múltiplos problemas da filo-

genia, como que revelando as prováveis fases da história do desenvol-

vimento evolutivo de uma espécie ou de um grupo de espécies ?. Assim, surge neste quadro o significado da ontogenia da nossa espécie. Qualquer ensaio de explicação da origem e evolução do homem ficará sem dúvida incompleto se não se considerar a sua ontogenia, quer em si mesma, quer numa perspectiva comparativa, no quadro dos mamíferos ou mais especialmente no âmbito dos primatas. Poderá mesmo afirmar-se que é o progresso nos conhecimentos sobre a ontogenia humana que contribuirá para o rasgar de mais amplas perspectivas ao problema da evolução humana, como em certa medida já aconteceu. Para isso dever-se-ão

articular

as

contribuições

vindas

de vários

campos,

num

quadro mais amplo de relacionações interdisciplinares, visando uma síntese onde a ontogenia evolutiva terá o seu lugar. E não deixa de ser estranho que a problemática ontogenética não tenha merecido a atenção que será necessário consagrar-lhe em todo o estudo sobre a origem e a evolução do ser humano. Na verdade, se queremos abordar o problema de saber em que medida é que a biologia poderá explicar certas características do comportamento social humano, sem dúvida que teremos de contar com a ontogenia, que ocupará no seu estudo uma posição verdadeiramente determinante, por exemplo no que respeita aos fenómenos da protecção paterna, nas relações pais X filhos, nas particularidades do crescimento humano, na preparação da forma humana

durante

a vida

embrionária,

etc. 139

GERMANO

DA

FONSECA

O problema do comportamento cífico, exige que se faça uma ainda

portamento

animal.

de complicação

tismos.

A natureza

evolutiva:

reflexos

inatos.

social humano, se bem que espeque breve articulação com o com-

do comportamento

na base,

Nas

SACARRÃO

nas formas

formas

mais

varia

simples,

elevadas

com

meros

em

o grau automa-

organização,

mecanismos instintivos complexos e aprendizagem, com maior ou menor desenvolvimento de um ou outro destes componentes. No homem, plena emergência da razão. que de resto coexiste nele com alguns processos inatos e uma vastissima capacidade de aprendizagem. Isto é uma esquematização um tanto grosseira da realidade, porque (por exemplo) até nas formas simples, unicelulares, há alguma capacidade para aprendizagem, e há animais complexos, como os insectos e as aves, onde dominam os esquemas estereotipados de condutas herdadas. De modo que a complexidade de organização não está necessariamente ligada a capacidade elevada de modificação do comportamento inato por aprendizagem. Por outro lado, torna-se difícil hoje considerar os instintos como entidades bem definidas e fixas, inteiramente de origem hereditária nos seus pormenores, de tal modo existe interacção de causas internas e externas, com introdução, portanto, nos esquemas inatos de múltiplas

variações devidas à experiência do animal. Os comportamentos

instin-

tivos são, então, mais ou menos modificáveis, e a própria plasticidade,

por mais ampla que seja, possui em si mesma uma base hereditária. O psiquismo humano provém de uma longa evolução que enraiza no psiquismo muito rudimentar dos primatas sub-humanos. Não quero significar com isto que a actividade mental e o comportamento do homem nos seus aspectos tão variados (e variáveis) apenas resultem do aperfeiçoamento do psiquismo grosseiro dos primatas da sua linha ancestral. Pelo contrário, é provável que a parte mais importante e original da evolução psíquica tenha decorrido já na fase propriamente humana

da

evolução,

mas

ainda

muito

arcaica.

Por

outro

lado,

não

tem sentido dizer-se que o ser humano foi marcado na sua origem por um salto brusco e prodigioso que passou o psiquismo grosseiro do animal para a espiritualidade que assinalou o advento do primeiro homem, portador da razão superior, produto da mutação misteriosa a marcar

um

destino transcendente.

Como

já referi anteriormente,

não

é nada provável que se tenha dado um tal salto evolutivo do não-homem

para o homem (v. o cap. HI). Mas o nosso comportamento enraíza ainda mais fundo, no comportamento dos mamiferos, e mais longe numa base comum

aos vertebrados

superiores. As homologias de partes e funções do encéfalo e do cérebro e a

consideração

das

suas

diferenças

entre

os

vários

grupos

anfíbios, répteis, aves, mamíferos), e destas em relação superiores e ao homem, obriga a essa conclusão. Mas uma 140

(peixes,

aos primatas tal conclusão

BIOLOGIA não significa que

a mente

E

SOCIEDADE — 1

humana

seja muito

simplesmente

a amplia-

ção de faculdades existentes nos outros primatas e nos outros vertebrados *. Pelo contrário. À complexificação do cérebro humano fez surgir novas

qualidades

existem

quaisquer

em

do homem longo

uma

e níveis de integração e de adaptação

outros vertebrados e que conferem

que

ao cérebro

posição única. Às fases intermediárias perderam-se

encadeamento

histórico

do nosso passado

não

de mamífero

no

e de pri-

mata.

A organização corpórea e a conduta do ser humano nasceram ambas de um longo processo histórico de milhões de anos. A visão do passado

(aquela

organização eventos

que

actual

evolutivos

nos

dos

é permitida

seres

capitais,

pelo estudo

vivos) tais

como

dos

mostra-nos

que

a origem

dos

fósseis

na

e pela

ausência

eucariotas

de

e dos

metazoários, a origem dos vertebrados, a formação de patas nos primeiros tetrápodes, a passagem da adaptação à vida aquática para adaptação à vida terrestre, à génese do ovo terrestre de casca, da pla-

centa, e de tantos outros aspectos da evolução ontogénica, anátomo-fisiológica e organopsíquica dos vertebrados, sem estes e igualmente uma infinidade

de outros

acontecimentos,

o homem

não

se teria realizado,

animal que é, sem dúvida, o resultado, a tantos títulos originalíssimo, dessa evolução. Como criatura histórica, como o são todos os outros organismos, não seria o que é sem as transformações ocorridas numa longuíssima

série de antepassados,

cujas estruturas e funções

ram condições para a sua emergência. O corpo do homem

marcas

profundas

desse

tetrápode, de pré-amniota,

longo

passado:

de cordado,

constitui-

conserva as

de vertebrado,

de

de amniota, de mamífero, de primata, numa

sucessão de formas das mais remotas para as mais recentes. Ora, sendo a evolução um processo dinâmico em que entram em jogo causas materiais, em permanente conjunção e interpenetração de factores biológicos e ambienciais, poder-se-á talvez então dizer, numa

análise retrospectiva,

que o homem é um ser necessário (no sentido de que não seria o que é sem o encadeamento histórico que o originou), mas não predestinado. Claro que a biologia não pode provar a não predestinação do ser humano, mas se admitirmos que a evolução obedece a um projecto, logo entramos em grave conflito com as aquisições científicas. O homem é um produto de história, não do acaso. Na ausência da história (e da selecção associada ao seu encadeamento) ou os seres vivos se consti-

tuiriam por simples acaso (o que é em extremo improvável), ou haveria

que admitir a acção de causas metafísicas, criadoras e orientadoras de toda a evolução, até aos mais ínfimos pormenores, o que não está no

ambito da ciência (v. meu 1985). Não podemos substituir a objectividade da metodologia científica pela metafísica. A hipótese da não predestinação do ser humano é mais fecunda do ponto de vista científico do que a crença no seu destino transcendente e programado.

|

141

GERMANO

DA

FONSECA

É útil neste passo apresentar

alguns

SACARRÃO

pontos

respeitantes

ao com-

portamento dos vertebrados superiores, a evolução do qual serviu de base ao desenvolvimento ulterior do psiquismo dos primatas e do homem. Os vertebrados superiores (aves e mamíferos) mostram significativas diferenças no que respeita ao comportamento, quando se considera a amplitude da sua modificabilidade, a capacidade de aprendizagem e de resolver problemas, o que põe necessariamente a questão

magna da emergência da iniciativa individual e da aptidão à reflexão, O comportamento nas aves é dominado por mecanismos estereoti-

pados. Esta preponderância de processos inatos não significa que estes animais não mostrem inúmeros exemplos de complexos ajustamentos ao meio e de múltiplas reacções na aparência racionais. São susceptíveis de aprendizagem e possuem, sem dúvida, capacidade para desenvolverem uma maior ou menor iniciativa individual perante as situações que se lhe oferecem — mas não é esta, de facto, a tónica do grupo. Não estando, em regra, nas aves o conteúdo emocional da conduta associado

a

uma

«razão»

(como

sucede

nos

mamíferos

superiores),

ele atinge, talvez por isso, um máximo de intensidade, que provavelmente constitui uma compensação para a incapacidade (relativa) desses animais em se ajustarem a situações novas do ambiente com aquela ampla plasticidade que o comportamento de forte raiz inteligente con-

fere. Tudo se passa como se as aves tivessem um profundo interesse emocional pelos seus ovos e filhos e por tantos outros aspectos do seu

mundo; mas tudo leva a crer que esse interesse é uma fixação predominantemente de natureza instintiva; é por assim dizer sentido e nãosado*.

É

um

comportamento,

em

suma,

«irracional»

e

de

forma

nenhuma, como justamente pensou Julian Huxley, «um instinto intimamente geminado com a razão, a memória, o amor individual e a consciência do passado, do presente e do futuro, como veio a suceder

com a atracção que os humanos sentem pelos filhos» *. Nos

mamíferos,

contrariamente

às aves

e aos

outros

animais,

O

comportamento tende acentuadamente para uma libertação em relação aos automatismos do instinto, tende para o desenvolvimento da iniciativa e do arbítrio individual, qualidades básicas intimamente ligadas ao comportamento inteligente. Esta abertura à liberdade e à iniciativa individual (à formação da personalidade), de tão extraordinárias consequências para o nascimento do fenómeno humano, dependeu, em grande parte, de uma

evolução

do encéfalo, particularmente

dos

hemisférios

cerebrais, onde novas regiões se formaram, responsáveis por essas qualidades. Daqui a sua importância fundamental como base de onde partiu a evolução para o cérebro do homem, onde as tendências refe ridas atingiram o ácume e se criaram novas expressões é novas imagens

e interpretações do mundo, sem paralelo, pela quantidade e natureza, nos animais não humanos. 142

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — 1

Na nossa espécie, a protecção da progénic apoia-se numa longa evolução ontogenética dos amniotas, a qual de certo modo prolonga. Amplamente liberta dos automatismos do comportamento, a protecção

exercida pelos pais realiza-se no primata humano num plano consciente e actua como um factor fundamental movimento evolutivo, de perspectivas e o homem, e titubeante

da evolução do homem. Neste tão largas para os mamíferos

o emocional ligou-se ao racional, o qual, ainda confuso em muitos mamíferos, mas menos nos antropomorfos,

começará a patentear-se com maior nitidez e intensidade nos primatas infra-humanos que antecederam vicinalmente os homens mais arcaicos, e mais completamente depois, para finalmente atingir a sua plena expressão

no

homem

moderno,

que,

provavelmente,

continuará

no seu

processo de mudança.

1.

Crescimento

dos

primatas

e competição

intra-uterina

Não podemos deixar de ligar os fenómenos relativos ao crescimento humano com o que se passa nos outros primatas. Assim, é significativo que o retardamento do crescimento e da maturidade seja uma peculiaridade não só do homem como também de muitos outros primatas. Além

disso, esse crescimento

é caracterizado, nuns e noutros, por um

rápido incremento na puberdade, após um longo período relativamente equilibrado. Relembremos, para comparação, que nos outros mamíferos a maturidade sexual é atingida durante o crescimento activo, ou logo após este ter terminado. Exemplos do primeiro caso encontram-se em numerosos pequenos roedores e do segundo em coelhos e diversos ruminantes (dados segundo Tanner; Young, 1971). Várias consequências no plano social resultam deste tipo de prolongado crescimento nos primatas. Por um lado, parece haver vantagem que os jovens atravessem um longo período, que, pela sua duração, permita uma aprendizagem eficaz por meio de jogos (no homem sendo mais

duradoura,

mais

rica, mais

elaborada),

inclusivamente

do ponto

de vista da disciplina, da obediência, da assimilação das regras sociais, etc. Sendo os jovens frágeis e de pequeno tamanho, estes objectivos são facilmente atingidos, tanto mais que é diminuto o número de crias

(em regra, um filho por cada parto). Por outro lado, há maior economia de alimento em sustentar jovens de pequeno tamanho durante o longo tempo de crescimento do que se atingissem rapidamente pesos próximos dos do adulto e sendo ao mesmo tempo, por assim dizer, improdutivos por viverem uma prolongada fase de aprendizagem. Quanto ao grande arranque do crescimento na idade púbere, ele produz rapidamente

adultos

dominadores,

mais novos, obtendo

que tomam

sob o seu cuidado a protecção

a sua sujeição. 143

dos

É curioso o facto de o crescimento

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

nesta fase ser mais acentuado nos machos do que nas fêmeas, o que está

talvez de acordo com a função dos primeiros na hierarquia do sistema social. Sem querer reduzir estes fenómenos complexos a simples mecanis-

mos neuro-hormonais, parece, todavia, que o conjunto formado pelo sistema hipotalámico-hipofisário e estrogéneos seja em parte responsável] pela sua causalidade e regulação, associado na base a um certo determinismo geneticamente programado. A ampla intensificação destes fenómenos de retardamento de crescimento no homem marcou decidi-

damente

a peculiaridade

da

sua

evolução

e do

seu

modo

de

viver

social, como terei a ocasião de expor mais adiante. Outro aspecto da ontogenia dos primatas, com significado para o nosso ponto de vista, é o do número de filhos por parto. A necessidade de protecção exigida pelo bebé humano para sobreviver, os longos cuidados impostos e a sua demorada aprendizagem seriam incompatíveis com a ocorrência de partos múltiplos. Segue-se daqui ser legítimo concluir que o retardamento do crescimento não poderia dar-se num mamífero que tivesse normalmente diversos filhos de cada vez. Ora a espécie humana tem, em regra, um filho por cada parto e esta condição do primata humano é, também, como

tantas outras, uma

característica dos

outros primatas. Donde se pode inferir que a uniparidade tenha sido um carácter já existente nos primatas não humanos que originaram o símio humano. A maioria dos mamíferos é multípara, sobretudo os de pequenas dimensões (dez, quinze e mais filhos de cada vez nos roedores, por exemplo). Nascimentos múltiplos ocorrem na quase generalidade dos casos nos outros vertebrados e nos invertebrados, aqui nos anfíbios e peixes frequentemente com posturas de centenas, milhares e mesmo milhões de ovos de uma só vez. Haldane especulou sobre a relação entre a rapidez de crescimento e o número de embriões, sugerindo haver forte pressão de selecção intra-uterina. À concorrência pré-natal conduziria, segundo o mesmo autor, numerosos embriões a abortar ou a serem reabsorvidos, de modo

que haveria selecção a favor daqueles que mais rapidamente se desenvolvessem

e

diferenciassem,

sendo

a

intensificação

do

crescimento

transferida para o período pós-natal. Daqui pode talvez depreender-se que a longa fase de juvenilização, que provavelmente deu origem ao primata

humano,

com

as suas consequências

sobre

o desenvolvimento

de um cérebro plástico, sede do pensamento conceptual e motor da linguagem articulada, nunca poderiam evolver em mamíferos de partos múltiplos, dado que, neste caso, a tendência seria exactamente a inversa (crescimento breve) devido à competição intra-uterina dos embriões (pelo espaço, por melhor nutrição, etc.). De resto, o retardamento do

crescimento e da maturidade, matas,

também

não

seria

que caracteriza aliás o grupo

provavelmente 144

possível,

se

todos

dos prios

seus

BIOLOGIA

representantes

não

humanos

E

SOCIEDADE — |

(lémures,

macacos,

antropomorfos)

não

dessem em regra ao mundo um filho por cada parto. Verificamos aqui, uma vez mais, que o que faz o homem resulta em grande parte de imposições já esboçadas, com maior ou menor desenvolvimento, nos primatas não humanos.

2.

Ambiente físico do ser humano

e

social

no

desenvolvimento

Em geral, considera-se que o desenvolvimento do ser humano começa no momento em que se constitui o ovo. Todavia, a biologia não pode marcar um começo em termos absolutos, porque as influências sobre o desenvolvimento do futuro organismo já se exercem antes da fecundação, no ovário. E se é legítimo assinalar o começo individual com a fecundação, atendendo a que é a partir daí que se faz a participação dos genes do pai (veiculados pelo espermatozóide), a verdade é que os determinantes do desenvolvimento e o dinamismo organizador do germe se estabelecem antes da ovulação e da penetração do espermatozóide, no decurso da importante fase conhecida por ovulogénese *. Do ponto de vista biológico, as potencialidades da vida individual, o que em

em do aí ser

parte

orientará

o

seu

destino,

residem

não



no

ovo

virgem

como

elementos seus precursores. No cap. x1 (2.º vol.) voltareià questão começo da vida do ser humano a propósito do problema do aborto, e se verá que a definição do momento em que começa a vida de cada humano pertence mais ao domínio da ética, do direito e das preo-

cupações metafísica e teológicas.

O desenvolvimento do ser humano fornece inúmeros exemplos de como a realização do indivíduo se processa por uma solidariedade permanente

e íntima

da constituição biológica

(genes, células, tecidos

e suas propriedades bioquímicas, etc.) e das condições do ambiente externo, da qual resulta em cada momento a configuração morfológica e a expressão funcional do organismo e das suas partes. O primeiro ambiente (externo) do ser humano é intra-uterino, tal como também lhe são exteriores todas as condições do ambiente interno da mãe, com

o qual está em contacto por via sanguínea durante a gestação. Por outro lado, a acção do mundo exterior sobre o organismo da mãe e sobre o seu comportamento não deixam de influenciar, para melhor ou para pior, o ser em desenvolvimento. Entre as condições desfavoráveis ocupam lugar proeminente a má nutrição, as doenças infecciosas, as perturbações

emocionais,

traumatismos

vários,

fadiga

excessiva,

intoxicações

diversas, etc. Impõe-se, por isso, a mais extrema prudência no que respeitaa tomar medicamentos durante a gravidez, devendo assegurar-se us futuras mães um viver acautelado e saudável, com boa dieta aliBibl.

Univ.

49 —

10

145

GERMANO

DA

FONSECA

SAGARRÃO

mentar. À não ser por absoluta necessidade, e sob controlo de médico especialista, a futura mãe não deverá absorver qualquer droga, mesmo ligeira. O embrião ou o feto (assim chamado a partir do terceiro mês de

gestação)

deve

ser

protegido

de

possíveis

acções

de

substâncias

químicas, radioactivas ou não, dos raios X, etc. Todos os medicamentos que

tomar

podem,

em

princípio,

atravessar

a placenta

e

introduzir-se

no embrião ou no feto. E como praticamente nada se sabe de concreto sobre a possível acção da quase totalidade das drogas que se ingerem

(como

actuam

e o que

provocam),

a mais

elementar

prudência

se

impõe. O caso da talidomida é elucidativo. Como os conhecimentos sobre a farmacologia fetal são muito deficientes, deve encarar-se sempre com

a maior reserva a administração

de medicamentos

aparentemente

inofensivos. São conhecidos acidentes no recém-nascido devidos a diversos medicamentos (efeitos de sulfamidas, de antibióticos, etc.). Mães viciadas por droga (morfina, heroína, metadona, LSD, etc.) causam diversos danos ao recém-nascido, alguns deles de muita gravidade, como a «síndrome de privação», que pode provocar a morte. têm como

Além

dos factores acima

i

ente importância sobre o desenvolvimento a idade da mãe

enunciados,

e o número

período mais favorável para uma

outros factores

do ambiente

da criança, tais

de filhos que já teve. Parece

mulher ser mãe

que o

se situa em média,

entre os 22 e os 28 anos. Todas as hormonas indispensáveis ao desenvolvimento

feminino

do

está

novo

nas

ser

atingiram

melhores

um

condições

nível

para

óptimo.

a

O

função

organismo

reprodutora.

Antes dos 17 anos nenhuma destas condições se encontra plenamente realizada. Os acidentes de gravidez

(nado-mortos,

etc.)

são mais fre-

quentes antes desta idade. Também após os 29 anos de idade se eleva lentamente a percentagem de acidentes de parto, assim como de riscos para o feto e para a criança. É após os 35 anos de idade é rápido o aumento

de

recém-nascidos

anómalos,

em

particular

de

crianças

so-

frendo da síndrome de Down, mais vulgarmente conhecida por «mon-

golismo», anomalia que é hereditária. Também parece haver relação entre o número de partos que teve uma mulher, a sobrevivência da

criança e a frequência de anomalias fetais. Numa longa série de partos,

os primeiros e os últimos filhos têm menos probabilidades de sobreviver do que

os restantes

irmãos.

Nas

primíparas,

em

média,

são

menores

o peso e a estatura das crianças do que nas multíparas. Estes e outros dados são de ordem estatística, de modo que há grande número de crianças que nascem depois de a mãe ter 35 anos de idade, ou que são

os primeiros e os últimos de uma série de filhos, e que todavia gozam de perfeitíssima saúde à nascença. É por isto, e por razões de liberdade

da pessoa, que tais dados não devem em si mesmos constituir um obstáculo à maternidade antes ou depois da melhor fase da vida para procriar. 146

BIOLOGIA

Os

genes

regulam

criança

adquire

melhor

em

tantemente

E

SOCIEDADE — 1

diversos

reacções

comportamentos

e formas

de

e impulsos,

agir que

se definem

mas cada

a vez

face dos estímulos físicos, psicológicos e sociais que consrecebe

mundo

do

com

exterior,

os

quais

se

o organismo

combina, se interpenetra. Ora estes componentes adquiridos são muito mais amplos na espécie humana do que nos outros animais, não devendo

por

isso

transposição

o homem

para

humano

o comportamento

interpretar-se

simplesmente

se passa nos animais, mesmo

do que

pela que

estes sejam os outros primatas, apesar do indubitável parentesco que têm com o ser humano.

(a chamada

do sistema nervoso

do desenvolvimento

O começo

neurulação) produz-se no embrião humano do vigésimo primeiro ao vigésimo nono dia de vida intra-uterina. Ainda que existam influências intra-uterinas sobre o seu desenvolvimento, é todavia depois do

nascimento que o ambiente é decisivo para a diferenciação rapidíssima

do sistema nervoso durante o primeiro ano de vida pós-natal, prolongando-se ainda o seu desenvolvimento por todo o período da infância. Verificou-se no gato e em macacos que certas estruturas cerebrais e cer-

tos grupos de neurónios estão programados para responder só de certa maneira a determinadas formas. «Cada grupo de neurónios trata provavelmente

um

de

aspecto

muito

preciso,

neuronal

e o conjunto

do

córtex cerebral integra estas informações diferentes fazendo um tratamento estatístico. Ora o desenvolvimento deste sistema não parece ser determinado geneticamente, dependendo muito das estimulações as quais é submetido. Isto foi demonstrado com experiências de restrição selectiva do espaço visual numa “fase crítica” do desenvolvimento» (Pierre Royer). No que respeita, porém, à espécie humana, existem ainda profundas lacunas nos conhecimentos sobre o desenvolvimento do sistema nervoso. É uma questão ainda pouco conhecida e que de futuro deve revelar factos de grande importância. O cérebro humano, para se diferenciar normalmente, poder analisar o mundo e responder-lhe adequadamente, necessita desse mesmo mundo. É preciso ter presente este facto para se compreender a interpenetração do inato e do adquirido, e a extrema dificuldade ou mesmo a impossibilidade de separar o que é de um ou de outro domínio. A partir aproximadamente dos 20 anos de idade, o ser humano perde diariamente numerosos neurónios (elementos estes que não se multiplicam), mas este facto não significa que a diferenciação neuronal não prossiga em certos aspectos até mais tarde e que não se estabeleçam

novas

e

múltiplas

conexões”.

Aliás,

a

reserva

de

neurónios

psicomotores cerebrais é tal que o cérebro pode ser perfeitamente funcional e fonte de novas ideias e de positiva adaptação ao real até idades por vezes avançadas, como o demonstram

e nas ciências. Além

inúmeros exemplos nas artes

da hereditariedade, os factores psicossociais têm 147

GERMANO

um

papel

extremamente

DA

FONSECA

importante

no

SACARRÃO

envelhecimento

precoce

tardio das funções centrais do sistema nervoso. No homem,

ou

a sua acção

é provavelmente muito mais significativa do que nos outros mamíferos. Da complexa interacção da ontogenia e dos factores físicos e sociocultu-

rais vai emergir a personalidade biológica, o carácter e o modo de pensar, de sentir e de agir de cada indivíduo perante o mundo. Pouco se conhece das influências particulares ambienciais, do modo como modelam a personalidade de cada indivíduo, da sua maior ou menor importância no processo de realização do ser humano. O que parece certo é que cada indivíduo nasce com potencialidades inatas «indefinidas», não expressas na sua natureza e significado. Só se definem em contacto e em contraste com o ambiente físico e social imediato,

e isto tanto se aplica aos aspectos físicos como materiais. A sociedade e todo o conjunto do ambiente e do estilo de vida onde o indivíduo está mergulhado desde que vem ao mundo desempenham, assim, um papel de primeira plana na revelação e desenvolvimento daquilo a que poderá então chamar-se, por comodidade de expressão, natureza humana, não que esta seja algo de fixo e de aclarado, mas antes o que em cada momento exprime o modo de ser peculiar do homem quando lhe é permitido o livre e saudável desabrochar das suas tendências imensas para a educabilidade.

Já vimos que a adaptabilidade do homem lhe permitiu sobreviver através de toda a sua longa história, cujos antecedentes infra-humanos podemos situar talvez no nível ramapiteco-australopiteco. Vegetariano ou omnívoro, subsistindo a comer insectos, ou apenas frutos, vive com todas as dietas, em todos os lugares, sob todos os climas e altitudes, solitário ou em compactas aglomerações, resistente a todos os regimes, abraça as crenças religiosas mais diversas, e crente, ateu ou agnóstico, não serão estas diferenças de credo que afectarão a sua sobrevivência

serenidade; mais

diversas

exprime-se culturas.

e física do ambiente,

nas mais Quanto

variadas maior

maior riqueza

línguas,

fragmenta-se

for a diversidade

individual

ou a sua

nas

sociocultural

se revela. A monotonia

e uniformização são fataisà livre expansão das múltiplas e inesperadas

expressões da personalidade humana. As sociedades que entorpecem e se fixam em esquemas únicos e despóticos são fatais a si próprias, rapidamente se desagregam; não permitem

a ampla e fecunda diversi-

dade humana, fonte de criação e de liberdade. Cito aqui a metáfora de René Dubos, defensor incansável da diversidade do ambiente social,

quando se refere ao «mais importante objectivo» que é o de «proporcionar numerosos tipos de terreno que permitirão o germinar de semena ideia de que natureza humana é uma boceta cheia de misteriosas e magníficas propriedades que apenas esperam por serem reveladas. 148

dopia tj asi

tes que ainda estão dormentes na natureza humana». A metáfora talvez não seja inteiramente feliz pela simples razão de que parece veicular

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — 1

Em certo sentido poderá em parte ser isso, mas a natureza humana, se assim queremos chamar-lhe, só surge realizando-se, e apresenta-se sempre como coisa incompleta. Na sua origem não estão enigmáticos primórdios

do espírito, nem configurações ou «programas» a aguardarem desenvol-

vimento e expressão. Mas Dubos tem decerto razão ao chamar a atenção

para

a necessidade

de

se assegurar

a diversidade

do

ambiente

social.

Se pouco sabemos de como é que as influências externas orientam

e desenvolvem a formação da personalidade, do temperamento e da inteligência do indivíduo, não se duvida de que essas acções do meio

social são decisivas, incluindo as particularidades da paisagem imediata, rústica ou urbana, dos objectos, da configuração do meio físico envolvente do indivíduo e dos seres que o habitam. É durante os primeiros anos de vida pós-natal que estas influências adquirem enorme importância, exercendo-se num corpo incompletamente diferenciado, com um cérebro plástico à nascença, capaz de responder e adaptar-se de muitas maneiras ao ambiente e aos estímulos que dele recebe, adqui-

rindo múltiplas modelações, até que com os anos perde a flexibilidade e se «fixa». O mesmo

acontece durante a infância às estruturas anatómicas, à

fisiologia do organismo, aos esquemas da conduta. Escreveu René Dubos (op. cit.) que «uma criança criada em Roma fica constantemente exposta à paisagem, horizontes, sons e odores característicos da sua bela cidade; o seu desenvolvimento é condicionado pelos estímulos

procedentes dos palácios, igrejas, parques, etc. Ela pode não se dar conta das respostas que nascem nela por efeito dessas repetidas experiências, mas formarão parte da sua constituição biológica, que a torna permanentemente

diferente do que ela seria se o seu desenvolvimento

tivesse ocorrido em Londres, Paris ou Nova Iorque. Ainda que eu tenha despendido quase dois terços da minha vida nos Estados Unidos, os meus gostos, atitudes e respostas continuam a ser condicionados pelas recordações dos estímulos que modelaram o meu ser físico e biológico durante o tempo em que cresci numa pequena aldeia francesa e mais tarde em Paris. Na verdade, a criança é o pai do homem» *. Em resumo: do confronto do programa genético e do organismo plástico humano infantil com

os múltiplos estímulos e acções do ambiente, e da interacção

e interpenetração destes componentes, por um lado, o organismo flexível, munido o ambiente

de

diversas

físico e social,

potencialidades nasce,

e, pelo

outro,

o ser humano,

o seu

de realização,

gradualmente,

recorte do mundo e o seu mundo próprio. Com o nascimento, o ser humano faz a primeira e dramática experiência de vida independente do ponto de vista biológico. Não inteiramente,

claro

está

(a

sua

dependência

dos

adultos

é ainda

intensa),

mas em todo o caso sob condições novas em relação à vida intra-uterina, onde a sua dependência biológica era total. Após o nascimento, com 149

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

efeito, fica sujeito a condições totalmente diferentes. Do meio líquido, onde estava, passa a viver em meio aéreo e com autonomia respiratória.

A transição é brusca e violenta do ponto de vista ecológico, pois se a sua vida intra-uterina decorria em meio aquático (líquido amniótico), passa de repente a estar mergulhado numa atmosfera e a respirar pelos pulmões. Antes recebia o oxigénio e os alimentos do organismo materno, por via da circulação sanguínea em ligação com a mãe; agora recebe directamente o ar, e o seu aparelho digestivo passa a receber o alimento e a entrar em pleno funcionamento. Antes estava protegido e em embiente

termicamente

constante,

favorável

ao

seu

desenvolvimento.

Depois de nascer, sofre repentinamente o embate de um ambiente de temperatura variável e de valores em regra mais baixos do que aqueles que suportara. Estas bruscas transformações no seu ambiente são acom-

panhadas de novos e numerosos factores hostis que ameaçam constantemente a sua sobrevivência: doenças, condições familiares e socioeconómicas de

desfavoráveis, múltiplos acidentes, etc. Da calma, monotonia e segurança uterinas passa para um mundo aventuras e perigos. O modo de vida aéreo exige transformações

e novas adaptações complexas no plano orgânico e psicológico, na função cardiorrespiratória, na função digestiva, renal, etc., com implantação de acções reguladoras. Tudo isto torna o recém-nascido autónomo

em relação à mãe, mas tal autonomia é apenas relativa: se desaparecem muitas

dependências, outras se estabelecem.

mente

autónoma,

nem

por

isso deixa

de

A criança,

constituir

se é organica-

novos

elos

com

a

mãe. Depende dela na alimentação, na protecção, aquecimento, no desenvolvimento psíquico, realizando-se como ser social e desabrochando a sua humanidade ao contacto com o seu meio social, nas relações com os outros. Realiza-se por socialização, havendo neste processo períodos mais favoráveis do que outros. A criança é particularmente influenciável, segundo parece, no período que está compreendido entre o nas: cimento e cerca dos 5-6 anos. Quando vem ao mundo, o bebé humano não anda nem fala; é incapaz de procurar alimento, de compreender o que o rodeia, etc. Não pode sobreviver pelos próprios meios, Depende totalmente dos cuidados maternos e é por intermédio da mãe (e em geral dos seres humanos que a rodeiam) que a criança ensaia os primeiros contactos com o ambiente físico e sociocultural. O primeiro ano de vida é de fundamental impor tância para o seu desenvolvimento.

Como

que

prolonga

uma

vida em-

brionária insuficiente para atingir as características essenciais da nossa condição de seres humanos, que só surgem em regra mais ou menos expressos para 0 final, ou pouco depois, desse período; a posição erecta, a linguagem articulada conceptual e a manipulação de instrumentos (ver, adiante, a p. 156). Com efeito, no primeiro ano de vida o crescimento

tem um

aspecto embrionário:

faz-se em 150

ritmo rápido

(triplica pelo

BIOLOGIA menos o peso da nascença)

E

SOCIEDADE — 1

e o cérebro e os órgãos dos sentidos desenvol-

vem-se ampla e intensamente para a percepção e compreensão do mundo imediato. À criança adquire a capacidade de estar em posição erecta: esboçam-se os primeiros ensaios de linguagem articulada, conforme ao modelo do seu meio social; e tenta o manejo de objectos. Estas características, para se desenvolverem normalmente, exigem aprendizagem, contactos com outros seres humanos, não só no primeiro ano como nos seguintes. Sem contactos e influências humanas, a criança não falará, não andará em posição erecta, não desenvolverá a mente. Perturbações

graves do ambiente sociocultural e económico têm, por isso, consequên-

cias nefastas sobre o desenvolvimento da criança, como sejam, por exemplo, falta de afeição e de carinhos, que pode comprometer de maneira mais ou menos

grave

todo o curso da existência.

Parece

estar provado

que um ambiente de grande calor humano e de constante afeição pela criança tem influência benéfica não só sobre a sua saúde psíquica como até sobre

o seu harmonioso

desenvolvimento

e sadio

que

físico, ainda

haja significativas diferenças individuais.

Numerosos estudos têm sido empreendidos para averiguar quais as interacções que se estabelecem na união dos pais aos filhos, e os comportamentos complicados que se desenvolvem entre eles, trabalhos que mas sobretudo aos outros primatas

não respeitam só a espécie humana,

e demais mamíferos, onde obviamente as possibilidades de observação e experimentação

são imensamente

mais

amplas. Um

facto que parece

bem estabelecido respeita, por exemplo, aos casos de separação forçada.

Para grande parte dos jovens mamíferos a separação forçada da mãe é

uma

traumática

experiência

os macacos

e desorganizadora

(Cairns,

1977).

Entre

(Rhesus), esta separação causa sérias perturbações, e não só

no filho como

na mãe e nos indivíduos que presenciam a separação. naturalmente

porque

é benéfica

para

ambos,

ao desenvolvimento

não

só da esfera emocional

A ligação pais-filhos

aos

primeiros permite a ampla aplicação dos seus processos afectivos, é uma estimulação

como

da

inteligência, e um meio de estruturação social. E sem dúvida que é decisiva para a sobrevivência dos filhos. Na nossa espécie pode haver uma certa adaptação ao isolamento, mas posteriormente pode já não ser

possível a adaptação a um ambiente social normal, enquanto nos macacos haveria um pronto ajustamento às condições normais. O bebé humano pode sofrer graves perturbações se for separado da mãe, quer o apartar

se faça

aos

6-7

meses,

quando

a mãe

é reconhecida

como

objecto de amor, quer mesmo mais cedo, quando se constituem os primeiros laços com a mãe. Como refere o psicólogo René Zazzo, a criança emagrece, e às perturbações de ordem física vêm juntar-se outras de natureza psicológica. O seu desenvolvimento psicológico é como que suspenso e pode mesmo regressar. À criança acusa, portanto, muito precocemente a perda de um ambiente favorável ao seu desenvolvimento 1514

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

normal, físico e psicológico, um ambiente feito de calor, de sons, de odores, de balouçar, etc., que lhe é dado pela mãe. Estes factos não se apli-

cam a todas as crianças. Por razões que falta averiguar ao certo, há crianças que não sofrem as consequências dramáticas de uma separação materna.

Existem

várias fases de sensibilidade

da criança

até aos

3-4

anos.

Entre os 18 meses e os 3 anos seria um período privilegiado de sociali-

zação, durante o qual «os pais podem fazer do seu filho exactamente o que eles esperam», como escreveu Michele Masson. A meu ver, isto é um exagero da autora, que não parece dar-se conta de que a fase de plasticidade infantil tem os seus limites impostos pela constituição biológica da criança, que não é um objecto de cera moldável aos desejos da sociedade, e ainda bem que assim é. Mas não resta dúvida de que após um período de extrema educabilidade a criança atinge a fase de maturação cerebral (entre os 4 e os 6 anos), a partir da qual a flexibilidade vai decrescendo e a diferenciação cerebral, os modelos recebidos durante a sua formação, vão determinar em grande medida as escolhas e as reacções do indivíduo perante o mundo. Por outro lado, o processo

de

socialização

é,

também,

fundamental

nos

primeiros

dezoito

meses de vida pós-natal. A humanidade do homem, o seu comportamento como ser humano, tudo o que sobretudo o demarca do animal, tem

de ser aprendido.

que

a cultura

Isto não significa que haja

actue isoladamente,

mas

antes

separação

(como

tenho

de causas,

insistido)

que a realidade é a participação conjunta do biólogo e do social. Como deixei acentuado no cap. 1, a preparação da originalidade humana é, nos seus traços fundamentais, feita precocemente na ontogenia, no decurso do desenvolvimento embrionário e fetal. O comportamento adquirido passou a ser a marca profunda do homem, o que enriquece o seu presente e prepara o seu futuro. À cultura e a socialização são as fontes da liberdade, que permitiram ao homem subtrair-se às fortes constrangências do seu passado animal — não inteiramente aos limites e obrigações da biologia, mas outorgando-lhe a faculdade de escapar às imposições dos instintos e aos determinismos estritos dos seus genes. O domínio da sexualidade da criança tem recebido também uma particular atenção. Esta ontogénese da sexualidade é extremamente complicada. Depende de numerosos factores (genéticos, hormonais, somáticos, psicológicos, sociais).

Como

tudo o que

respeita

ao domínio

humano, o comportamento sexual é fortemente influenciado pela edu-

cação e pelos modelos sociais. Basta que ponderemos a enorme influência da cultura e do ambiente social, com o seu cortejo de estímulos, de ideias e valores morais dominantes, para se avaliar do imenso fosso que separa a complicada esfera da sexualidade humana da sexualidade dos outros mamiferos. Sabe-se, também, que as hormonas sexuais actuam na infância e que na puberdade têm os seus começos de actividade mais 152

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —1

cedo do que outrora, como veremos adiante, Estes estudos sobre a ontogénese

da

sexualidade

apresentam

ligações

com

outros

aspectos

do

desenvolvimento físico e mental, e as pesquisas neste campo abrem cada vez mais novas perspectivas. A

vida

da

criança,

até

ao

ano,

revela

factos

interessantes.

Por

exemplo, antes do final do primeiro mês de idade a criança é capaz de distinguir o odor emanado pela mãe, pelo seu vestuário, o qual não confunde com o de outra pessoa. À voz materna, os sorrisos, o calor, os odores que dela difundem, o contacto físico com ela, a quantidade de afecto recebido, tudo isso, que constitui um ambiente de amor e de

segurança, tem um efeito tranquilizante sobre o pequeno ser, e é neste limitado mundo que se realiza pouco a pouco a formação da personali-

dade própria, e isto já a partir do primeiro mês de vida pós-natal. Os efeitos da hereditariedade misturam-se com os do meio físico e com os factores socioafectivos, culturais e económicos. E esta co-determinação sobrepõe-se à simples influência das potencialidades hereditárias. A natureza dos cuidados que a mãe dispensa à criança, a influência dos seres humanos que a rodeiam, que com ela entram em relação, são, por isso,

componentes decisivos do seu ambiente desde o momento em que vem ao mundo. Várias pesquisas têm mostrado que no que respeita à ligação à mãe

não



uniformidade

nas

respostas

da criança.

A

expressão

da

fixação varia muito de criança para criança, como já foi referido. Enquanto, por exemplo, umas suportam mal a partida da mãe, outras não. Se umas crianças manifestam comportamento afectuoso e activo quando se encontram nos braços maternos, outras mostram uma atitude ambivalente em relação ao contacto físico, ou então parecem ficar indi-

ferentes.

Algumas

enquanto

outras

1979).

Em

crianças mostram

todo

o caso,

acolhem agitação

no

fim

do

com (cf.

prazer o regresso Ainsworth,

primeiro

ano

Bell de

e

vida

da mãe, Stayton, pós-natal,

todas as crianças sãs mostram sinais evidentes de fixação à mãe. E parece,

também,

que

durante

os

primeiros

quatro

a seis

anos

de

vida

o comportamento da mãe ou de toda a pessoa que cuida da criança tem grande influência sobre o seu desenvolvimento físico e mental. À mãe

desempenha neste sistema de relações um papel fundamental. Num ambiente favorável, a criança desenvolve gradualmente o «sentimento» social, o sentido de cooperação humana, que é outra das características essenciais da espécie, cuja elaboração se faz sob a influência dos pais primeiro e continuando posteriormente com a educação escolar e os con-

tactos sociais. A melhor educação, diz-se, será aquela que permite a livre expansão

das potencialidades

de

cada

indivíduo,

sendo

isto um

bem

para o desenvolvimento integral da sua personalidade e uma fonte de progresso e de bem-estar social. Mas que sabemos nós das potencialida153

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

des de cada indivíduo ao nascer? Que significa isso? E alguma vez poderá haver livre expansão dessas supostas potencialidades? Como o

saberemos? Em

e do

toda

ambiente

a discussão

na

sobre os efeitos

realização

relativos

do ser humano

da

hereditariedade

é costume

recorrer

às

conclusões resultantes das observações conduzidas no estudo dos gémeos uniovulares, também designados por homozigóticos (MZ), ou seja,

daqueles que resultam de um único ovo. Por processos que seria longo referir, um ovo separa-se em porções, cada uma delas dando um novo indivíduo. E por resultarem todos de um mesmo

ovo fecundado por um

único espermatozóide, esse indivíduos têm todos a mesma

constituição

hereditária. Esta circunstância permite portanto, em teoria, avaliar os

efeitos das diferenças de ambiente e de educação, sem a interferência de diferenças hereditárias. As diferenças que porventura apresentarem os gémeos uniovulares são portanto devidas a efeitos do meio físico e social em que se desenvolveram. Claro está que, dadas as circunstâncias referidas, têm sobretudo particular interesse os casos em que os

gémeos são separados desde a nascença e crescem e são educados em

ambientes diversos. Os

estudos

comparativos

sobre

os

gémeos

uniovulares

permitem

concluir que, para a maioria dos caracteres físicos, a influência da here-

ditariedade parece ser mais forte do que a do ambiente, E que a inteli-

gência, o temperamento, a emotividade, são fortemente sensíveis às condições de ambiente e da educação. Diferenças nítidas têm sido verificadas no que respeita à intensidade e qualidade das emoções, à capacidade de adaptação ao ambiente físico e social, ao interesse intelectual e ao

nível da inteligência. Estes factos não significam que a génese do com-

portamento e da inteligência não tenham um substrato biológico. Querem

antes significar que, nestes e noutros aspectos do desenvolvimento individual, existe maior plasticidade na sua realização, uma cooperação

provavelmente mais complexa entre o ser biológico e o meio sociocultural em

que se desenvolve a criança. As semelhanças

uniovulares

são

em

geral

maiores

do

que

nos

entre

gémeos

os gémeos

pluriovulares

(crianças nascidas de diferentes óvulos, portanto com diferente hereditariedade, cuja gestação é simultânea). Há forte concordância nos caracteres físicos nos primeiros e acentuada discordância nos segundos como

é de esperar. Na

esfera mental

e do comportamento

já os fadios

são diferentes: a flexibilidade é a regra, se bem que a concordância aqui pareça ser maior entre os gémeos uniovulares do que nos pluriovulares, mas as razões disso são complicadas e incertas. Mas gémeos unio-

vulares completamente separados e crescendo em ambientes diferentes

podem

mostrar

observada

discordâncias

psicológicas

entre os gémeos pluriovulares.

da

mesma amplitude

A maior

concordância

que

a

tem

sido observada, por exemplo, nas tendências para o crime, o alcoolismo,

154

BIOLOGIA

a prostituição e outras formas

E

SOCIEDADE — 1

de delinquência, Mas

a criminalidade

entre os gémeos uniovulares, em relação aos pluriovulares, não significa

que exista qualquer predestinação para o crime, que certos indivíduos venham ao mundo geneticamente inclinados para violarem a lei ou a moral.

Muito

pouco

ou nada se sabe

quanto à existência de um

deter-

minismo biológico do comportamento originado nos genes, mesmo se considerarmos os grandes criminosos, insusceptíveis de qualquer recuperação, incapazes de sentirem quaisquer sentimentos de arrependimento ou de responsabilidade pelos seus actos anti-sociais. Há que ter em conta, também, quer no caso da criminalidade, quer noutros casos, que os gémeos uniovulares têm, em geral, uma vida social comum (mesmas

companhias, frequentam os mesmos locais, etc.), o que não é tão frequente entre os pluriovulares, que têm tendência a procurar convivências diferentes. Tais diferenças de ambiente social poderiam explicar a maior incidência da criminalidade entre os primeiros. Não se pode excluir certa concordância de factores psicológicos talvez de base here-

ditária que, sem significarem predestinação específica para o crime (que é um fenómeno social, determinado por causas sociais) poderiam propiciar certo tipo de conduta

do ambiente mais

ou de reacção perante certas condições

social (que as estimularia), que conduziria ao crime, ou

geralmente

que

entrariam

em

conflito

com

sistemas políticos ou

com determinados valores da sociedade. No cap. xI haverá a ocasião de voltar ao método dos gémeos quando se discutir o problema da hereditariedade

3.

da inteligência.

«Juvenilização»

e socialização

na

origem

do

ser

humano

A ontogenia do homem ocupa um lugar à parte no conjunto dos mamíferos. Pelo elevado grau de cerebralização que caracteriza a nossa espécie e pelo que se observa nos outros primatas, a ontogenia humana devia originar jovens nidífugas, quer dizer, recém-nascidos activos que logo levassem vida autónoma *. Ora não é este o caso. Às condições em que nasce o ser humano são totalmente dessemelhantes relativamente às dos outros mamíferos que originam jovens nidífugas.

* Chamam-se

nidífugas

aos jovens que nascem num

estado bem desenvolvido,

capazes de levarem vida independente ou quase, Os nidícolas estão na situação inversa, nascem num estado por assim dizer inacabado, tendo de viver durante algum tempo na dependência absoluta dos pais, para completarem activamente o seu desenvolvimento (cf. meu 1977).

155

GERMANO

a)

DA

FONSECA

SACARRÃO

O significado da gravidez humana

Com efeito, o bebé humano, quando vem ao mundo, não anda nem fala, é incapaz de procurar alimento, de compreender o que o rodeia, etc,

É totalmente dependente dos cuidados maternos. Será que o desenvol.

vimento intra-uterino é de duração insuficiente? Tendência para um vir ao mundo num estado fetal, que seria propício à humanação do

primata? Quais as razões biológicas desta situação? Impõe-se aqui uma pequena pausa para expor alguns aspectos da evolução ontogenética dos mamíferos que parecem esclarecer, pelo menos em parte, a originalidade da ontogenia humana. Verifica-se nos mamíferos que a evolução ontogenética seguiu um curso peculiar: a formas multíparas com rápidas gestações, dando ao mundo

jovens nidícolas de crescimento acelerado

(insectívoros, muitos

roedores, etc.) sucederam-se, na evolução do grupo, formas com um ou muito poucos filhos por cada parto, com longas gestações, e dando nascimento a jovens já bem diferenciados e activos (nidífugas). Os mamíferos superiores, como os ungulados, os cetáceos, os primatas, estão neste último caso: formam jovens nidífugas, que nascem muito activos e desenvolvidos, com os centros nervosos e os órgãos dos sentidos

perfeitamente diferenciados, sendo capazes de acompanhar os pais logo

após nascerem. Os comportamentos inatos básicos da espécie são nestes mamíferos

prontamente

operantes.

A maior

duração

do tempo

de gra-

videz é uma característica destes grupos superiores de mamíferos (isto é. evolutivamente mais modernos), caracterizados por elevada cerebralização. Tal facto veio permitir (em parte) o nascimento de jovens nidifugas. Esta como que tendência evolutiva dos mamíferos pareceria que deveria nos primatas vir a terminar no homem numa situação que correspondesse, por assim dizer, à sua máxima expressão: bebés humanos activos logo ao nascer, relativamente independentes dos pais, com comportamentos bem definidos, socialmente bem integrados, assaz despertos

para o mundo, como resultado necessariamente

(devido ao seu cérebro

mais complexo, à sua posição psicossocial mais elevada) de uma gestação longa, muito mais longa do que a éjue caracteriza os restantes primatas.

Todavia, não é esta a realidade. À gravidez humana apenas é, em regra, ligeiramente mais longa do que a dos grandes símios. Segundo foi esti-

mado,

a nossa gestação deveria andar pelos vinte e um-vinte e dois

meses, na lógica e estratégia da referida

«tendência

evolutiva»

a que

acima me referi. E, a fim de conciliar o modo ontogenético humano com a dinâmica do processo evolutivo invocado, Adolf Portmanna comsiderou que o primeiro ano de vida pós-natal do homem tem caracteris ticas fetais. Logo, os nove meses da gravidez humana mais os doze meses de «vida embrionária» pós-natal dão precisamente os vinte e um meses 156

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —I

exigidos pelas estimativas fetais, por uma comparação do nosso desenvolvimento com o dos símios superiores. Para

Portmann,

o

bebé

humano

tem

as

características

de

um

nidícola. Um ser flexível como o ser humano, que só se faz em contacto com

o social, nasce

num

estado por assim dizer inacabado, para exacta-

mente poder realizar-se por aprendizagem e contactos sociais nascimento. Assim se compreenderia o nascimento precoce

após o do ser

humano. Para ir mais longe, houve que prolongar uma condição fetal, mas agora não no útero, mas em contacto com a riqueza física e social

do mundo externo. Daqui resulta a exigência de nascermos inacabados, «interrompendo-se», por assim dizer, uma gestação que devia durar vinte e um meses. O intenso ritmo dos crescimentos fetais (tal como hoje pode observar-se no primeiro ano de vida pós-natal) e o elevado

à nascença

que daí provém não permitiriam uma gestação para

além dos nove meses

(quarenta semanas), a não ser que o organismo

da mulher sofresse profundas remodelações. Por exemplo, se o crescimento prosseguisse no útero para além dos nove meses de gestação. que atingiria a cabeça não consentiria parturições normais.

o tamanho

A razão biológica profunda da origem humana escapa-nos, e qual-

quer teoria até à data proposta parece-me constituir mais uma descrição

de situações do que uma verdadeira explicação. Em todo o caso, pela

teoria de Portmann parece poderem compreender-se as razões do prematuro nascimento do ser humano e as características e, sobretudo, o significado do primeiro ano de vida pós-natal. É provável que nessa teoria exista uma parte substancial da verdade. Pelo menos enlaça com coerência e lógica

circunstâncias

de outro modo

que

ainda

não

foi possível

explicar de maneira satisfatória. À teoria de Portmann foge aos quadros

ortodoxos

do

darwinismo,

darwinianos,

dade

de

se

como

conhecerem

mas

tem

suscitado

o interesse profundo

de

S. J. Gould, que aponta para a necessi-

melhor

os

trabalhos

do consagrado

zoólogo

suíço º.

É possível que as dificuldades anatómicas em dar à luz fetos volumosos e similares no peso e configuração aos actuais bebés de doze meses determinassem a prematuridade do nascimento do ser humano, já que seria talvez demasiado complicado e demorado (pelas profundas alterações requeridas) o processo evolutivo de readaptar o organismo materno para tal fim. Se de facto o prolongado desenvolvimento humano,

que dura vinte anos, é, como parece, uma característica sem a

qual o ser humano concluir também

que

não poderia

talvez ter surgido, somos levados a

a uniparidade foi uma condição necessária para

que se originasse essa ontogenia profundamente retardada. E neste caso a hipótese de Haldane, que atrás apresentei, parece legitima: a uniparidade nos primatas permitiu o retardamento do crescimento, daqui decorrendo a socialização do jovem; e tal «tendência», que é própria 157

GERMANO

DA

FONSECA

dos primatas, atingiu o seu máximo

SACARRÃO

na espécie humana.

Ou

seja, logo

que esse tipo de crescimento obrigou gradualmente à precocidade do termo da gestação para poder prosseguir fora do útero, a socialização do jovem atingia o nível humano. Ela prossegue durante ainda muitos anos,

mas

o cunho

modelador

cultural

é mais

quatro a seis anos de vida pós-natal, período

forte

nos

no decurso

primeiros

do qual

se

exercem decisivamente os contactos sociais, actuam de maneira intensa os estímulos do mundo físico, o universo das cores, dos sons, dos contactos, dos ritmos, etc., em suma, um período em que se inicia, por

assim dizer, a aprendizagem da condição humana, mem

e em que se expri-

as características do nosso ser profundo, as quais tomam

direcções

conforme às influências emanadas do meio e recebidas da educação. A elevada posição evolutiva do ser humano e certas características fundamentais da espécie (complexo desenvolvimento cerebral e dos órgãos dos sentidos, aquisição da locomoção bípede,

da linguagem

arti-

culada, manejo de objectos, fabrico de instrumentos, etc.) exigiriam, segundo tudo leva a crer, uma gravidez de longa duração para, no momento do nascimento, existirem logo como tais num bebé nidífuga. Mas seria tudo isto concebível num animal que obtivesse essas qualidades durante essa prolongada ontogénese intra-uterina? Talvez. Mas então seria de prever que a sua configuração física, a sua conduta, a sua percepção

do mundo,

atingissem

sub-humano,

supe-

rior ao dos grandes símios certamente, mas ainda imensamente

longe

da riqueza e diversidade psíquica

um

nível apenas

do ser humano,

mesmo

das formas

mais primitivas. E porquê? Creio que a resposta está no facto de a edi-

ficação

de

nervoso

central,

um

ser tão complexo e que

na

é ao mesmo

estrutura tempo

tão

e funções flexível,

se realizar de múltiplos modos, como é o homem,

socialização, ao contacto de um mundo

do tão

sistema capaz

de

só poder fazer-se por

de diversidade,

que contraste

com a extrema monotonia e pobreza do meio uterino. Será talvez nesta

perspectiva (que apenas esquematicamente aponto)

que poderemos en-

contrar o significado, que Portmann nos revelou, de a gravidez humana ficar aquém do que seria necessário, se compararmos a sua duração com a dos grandes símios, que são os primatas actuais evolutivamente mais próximos

de

nós.

mente a mesma

Na

realidade,

a gravidez

humana

tem

aproximada-

duração do que a do orangotango e cerca de um

mês

mais do que a do chimpanzé. À seguinte tabela mostra, comparativamente,

o

a duração

homem:

da gravidez em

diversos

tipos de primatas,

incluindo

BIOLOGIA

E

Duração

(seg.

SOCIEDADE — | da

Abbie,

gestação

1958) Semanas

o COD

A ser nes er

RR e dra DESES ES a

d

24 30

Orangofango casuunsos os cesso dceuas eee Go Siza da Gota esmero mermo Sire oniirrs tino asma Emememavs su CR o rar FD

39 37 34

Homem

40

moderno

(H. sapiens)

....................

O primeiro ano de vida da espécie humana teria por isso o significado de prolongar uma vida embrionária insufiente. Sob a tutela materna

e abundantemente

alimentado,

o bebé

humano

é, como

um

«feto», um ser em activo crescimento (um nidícola secundário) a exigir cuidados de toda a espécie. Durante o primeiro ano de vida pós-natal, o crescimento processa-se em ritmo intenso, o peso à nascença pelo menos triplica no final desse período, o cérebro e os órgãos dos sentidos desenvolvem-se amplamente para a percepção e compreensão do mundo imediato. Ao rápido crescimento humano do primeiro ano de vida sucede, depois, um crescimento mais lento, enquanto nos antropomorfos,

como o gorila, é o inverso que se passa: o peso aumenta mais rapidamente depois dos três anos de vida pós-natal, sendo superior ao do homem. Há assim uma prematuridade do bebé humano à nascença, sobretudo no que respeita ao seu grau de cerebralização (Portmann, 1944). Ele mantém durante o primeiro ano de vida características fetais — que se traduzem, em especial, por grande velocidade de crescimento, rápido aumento de peso e diferenciação intensa dos centros nervosos e dos órgãos dos sentidos, sobretudo até aos 6 anos de idade.

Ao fim de um ano de vida pós-natal, o chimpanzé tem o cérebro aca-

bado, pelo menos terminou o seu crescimento. Todavia, no bebé humano, à nascença, o cérebro tem cerca da quarta parte do tamanho que terá no estado adulto. Ora, para termos uma ideia das diferenças de crescimento de um órgão de tão fundamental importância como é o cérebro, quando neste aspecto se compara o homem com os símios, bastará dizer que nestes últimos o cérebro «adianta-se» e à nascença chega a atingir já cerca de três quartas partes do volume adulto do órgão. Mas no

homem

o cérebro é um

órgão que, por assim dizer, «se atrasa» até à

nascença; depois cresce e diferencia-se rapidamente até aos 6 anos, esti-

mulado pelo mundo

físico e social !º, E o processo não pára aqui:

O

desenvolvimento continua, mais lento, durante muitos anos, e para além

da fase de maturidade sexual, o que não é o caso dos símios, que, como o chimpanzé, quando estão capazes de procriar já o seu cérebro se fixou 159

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

definitivamente seis a sete anos antes. Aliás, se o homem um

cérebro

volumoso

e complexo,

mas

continuasse

desenvolvesse

o seu

crescimento

a obedecer ao esquema simiesco, como seriam possíveis partos com volumes cerebrais à nascença, mesmo que fossem apenas da ordem dos cerca de

70 %

do tamanho

que o órgão

atinge

no estado

adulto,

como

acon-

tece nos símios? Repito: só com profundas alterações anátomo-fisiológicas na mulher que acompanhassem, gradualmente, a evolução para maior volume cerebral. Mas isso não aconteceu, nem me parece que,

se o processo se tivesse iniciado, pudesse prosseguir com êxito até final. Se fosse, porém, esse o caso, é razoável prever que não poderia ter existido o processo de longa aprendizagem (portanto, de plasticidade à influência social) que foi decisivo para se dar o advento da humanidade. Com cérebros precocemente fixados, mesmo volumosos e complexos, esse primata símio seria provavelmente mais inteligente do que os actuais antropomorfos,

mas

nunca

poderia

humanar-se.

Os actuais antropóides nascem num estado que corresponde ao do bebé

humano

com

1 ano de idade. São autênticos

nidífugas,

enquanto

no homem uma edificação mais complexa exige, como mostrei, um suplemento de desenvolvimento que se realiza intensamente durante o primeiro ano de idade, não já no útero, mas nos braços da mãe. As características fundamentais da nossa espécie desenvolvem-se durante esse intervalo em intima associação com o ambiente social, representado pelos cuidados maternos e pelo ambiente que estes criam à nascença.

No

decurso

deste

primeiro

ano

do

bebé

humano,

a protecção

exercida pelos adultos atinge a sua expressão mais alta, que nenhum outro animal iguala, continuando esta acção protectora nos anos seguintes. Outros aspectos respeitantes ao ambiente físico e social são igualmente significativos, como já tive ocasião de referir neste capítulo. É provável

que tudo isto tenha

tido

(e continue

a ter)

uma

grande

importância para a nossa evolução. O homem está sujeito a quase tudo aprender, a realizar-se pela educação. Aprende a andar, a falar, a pensar, a sentir. Ser-se humano

resulta, afinal, de um

processo

de culturi-

zação do biológico, que não tem paralelo em qualquer outro organismo. Daqui provém a responsabilidade do homem pela sua própria humanidade.

b)

Aumento

do tempo

embrionário

e fetal

(retardação

ontogenética)

Diversos autores, na esteira da teoria da «fetalização» da antropogenia, de Louis Bolk (1926), aliás simplista e injustificada em nume-

rosos aspectos, reconhecendo que o homem possui numerosos caracteres que são embrionários nos outros antropóides (e não nos adultos destes),

admitem que a nossa espécie tenha sido originada por neotenia, isto é, por um

processo que, por retardação 160

do desenvolvimento,

conservaria

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — I

nos indivíduos adultos dos descendentes numerosos

vamente

embrionários

actualmente

o essencial

ou

juvenis !!. Alguns

da teoria, por

do-se também em dados hipotéticas na regulação

caracteres primiti-

investigadores

vezes refutada,

apoiam

de Bolk,

apoian-

genéticos, nomeadamente em modificações dos genes. Por exemplo, segundo Gould

(1977), um retardamento na sequência da expressão génica teria causado a lentidão

mento

já se manifesta

humano. mente

do desenvolvimento

Com

do que

nos

do primata

primatas,

efeito, os primatas os outros

mas

é mais

atingem

mamíferos;

humano.

Esse

retarda-

acentuado

a maturidade

e entre os primatas

no

mais

ser

lenta-

não humanos,

os antropomorfos (chimpanzé, gorila, orangotango, gibão) fazem-no ainda mais lentamente do que as outras espécies menos progressivas do grupo. As conclusões que Gould extrai do retardamento do desenvolvimento (prolongamento do período de aprendizagem) não são, porém, novas,

e

vários

autores

em

sentido

semelhante

se

lhe

têm

referido

(cf. meus 1957, 1977, 1977-a). A persistência no adulto humano da flexão craniana embrionária é uma característica «infantil» do primata humano que teve, provavel-

mente, profundas consequências para a nossa evolução (cf. Bolk, 1926; De Beer, 1968; meu, 1977-a). O ângulo que a cabeça embrionária faz

com o tronco é recto em todos os embriões de mamíferos e em quase todos os vertebrados. Mas esta flexão craniana desaparece, durante o desenvolvimento

de

todos

os mamíferos,

mas

não

no

do

homem.

primeiros, o maior eixo cefálico fica por isso em continuidade linha vertebral, enquanto com

a linha

vertebral,

no homem

facto

que

a cabeça forma um

só se verifica

Nos

com

a

ângulo recto quando

claramente

se

observa a orientação do encéfalo embrionário humano em relação à linha da medula espinhal. Nestas condições a linha de mira só poderia ficar horizontal com a bipedia; e foi o que aconteceu. Por outro lado a conservação do ângulo fetal determinou a posição mais anterior do buraco occipital, que, no embrião, se estabelece simultaneamente com a flexão craniana. A conservação

do ângulo fetal abriu, assim, o caminho

ao desen-

volvimento evolutivo da posição vertical e libertou, portanto, as mãos para múltiplas e novas funções: para o manejo e fabrico de instrumen-

tos,

para

o

transporte

caça, etc.), etc. Cérebro

dos

filhos

complexo,

e do

alimento

desenvolvido

(e

sua

por uma

colheita,

mais

longa

aprendizagem, bipedia, mãos livres, tudo isso proveio, em grande parte,

da persistência e prolongamento das cadências próprias do crescimento embrionário

e pós-natal,

e da retenção da flexão craniana,

que

ainda

determinou outras importantes consequências !2, Quer dizer, resultou de um retardamento geral da ontogenia humana. Pergunta-se:

quando

ocorreu

na

linha

evolutiva

da humanidade

(incluindo o seu tronco infra-humano) o pronunciado retardamento de Bibl. Univ.

49 — 11

161

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

toda a embriogénese e da vida fetal e a retenção da flexão craniana, alongamento que se continuou numa fase pós-natal de crescimento e de aprendizagem? Quando é que se estabeleceu a ampliação da infância e da adolescência? Quando é que a fase de brincar, de inventar, de ser-se

À

curioso, começou a prolongar-se e, por conseguinte, a permitir a apren-

dizagem de culturas e de técnicas, e a ser-se receptivo ao ensino dos

pais? Todos estes fenómenos estão interligados. Como o tipo de crescimento humano, apesar de diferente, se insere no quadro geral do crescimento dos primatas, nunca será provavelmente possível saber qual foi o primata símio que representou o «primeiro homem». Segundo algumas opiniões, porém, a retardação da ontogenia e o consequente alonga-

| |

mento da infância e da adolescência deve ter começado nos ramapitecos (há 10 a 20 milhões de anos), esse acontecimento «profetizando» a vida

4

cultural É. A vida em sociedade, a linguagem sob forma rudimentar (sons específicos constituindo um sistema de comunicação), a cultura, desenvolveram-se, gradualmente, no fundo dos tempos pré-históricos, de mistura com os outros atributos anátomo-fisiológicos que fizeram o primata humano. Se os ramapitecos já tinham de facto uma maturidade mais retardada (com a extensibilidade da adolescência e maior periodo

|

de aprendizagem), ocorre perguntar: seriam hominídeos? Ainda que alguns autores se inclinem para esta hipótese (Coppens, por exemplo,

remonta parece

as origens do grupo a 25 a 30 milhões que se avance, significativamente,

com

de anos),

não me

estas especulações, que

traduzem 6 desejo persistente de assinalar descontinuidades na evolução dos primatas, de forma a datar e como que testemunhar o nascimento do fenómeno humano. Por causa do encadeamento histórico-evolutivo, os atributos humanos resultam

de um

processo

de desenvolvimento

de

caracteres existentes em primatas de há 20 milhões de anos (e talvez mais), e nestas circunstâncias a procura do escalão que assinale o surgimento do primeiro homem constitui, a meu ver, um falso problema, como já referi anteriormente. O retardamento do desenvolvi

mento nos primatas superiores precedeu a sua transformação posterior; nas

suas

várias

orientações

e

diferenciações,

uma

tendência

que

se

ampliou e atingiu o seu máximo com a retardação do crescimento do ser humano. Se compararmos o crescimento dos primatas com o dos restantes mamíferos, à excepção do homem, verifica-se que os primeiros vivem

162

anterior à

a origem

do

Criadaa In dftista speed

é, portanto, muito

e como que a preparou. Mas

bo

cada caso. À origem do fenómeno

emergência do ser humano,

TO

em

ao peso definitivo do corpo,

|

Dario a) a

é o do ser humano, em relação (sempre)

|

to Tae? rato co DS

mais tempo e chegam mais lentamente à maturidade do que os segundos com tamanho de corpo comparável. Muitos mamíferos não primatas atingem a puberdade com cerca de 30 % do seu peso definitivo enquanto no chimpanzé esse valor quase atinge os 60 %, valor este que

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — 1

homem só se deu quando esse retardamento (de concerto com outras condições) passou a ter consequências que gradualmente transformaram o

«símio

australopitecóide»

num

«símio

humano».

Aliás,

segundo

algumas estimativas, a sequência Australopithecus africanus > erectus

>

Homo

sapiens

corresponde

a uma

progressiva

Homo

fixação

de

proporções juvenis na fase adulta, e isto à medida que aumenta a capacidade craniana e se reduz a região mandibular. As formas jovens conhecidas de australopitecos (v. g. Taung) preanunciam as proporções

posteriores da fase adulta, de modo que não foi preciso inventar uma configuração juvenil (necessária à hipótese de derivação evolutiva) para um antepassado hipotético, como opinaram autores como Schindewolf, Buxton e De Beer e outros (cf. Gould, op. cit., pp. 358, 366 e 372).

Diversos autores têm manifestado a sua discordância da teoria de Bolk, sem dúvida com certa justificação, mas não parecem, por outro lado, ter reconhecido devidamente o valor da retardação do crescimento

para a realização do ser humano. Contrapondo-se à ideia da «juvenili-

zação» prolongada do primata, com o seu ponto máximo no ser humano,

Ernst Mayr, por exemplo, diz que «desde que os bebés humanos têm de ter cérebros tão extremamente volumosos, poder-se-á dizer exactamente o inverso do que disse Bolk, afirmando-se que eles se “adultificaram”

(state that they have become “adultified”)». Mayr não parece com este

trecho

ter

apreendido uma

certa

parte

de

verdade

fundamental

que

subjaz à teoria de Bolk (expurgada necessariamente de tantas das suas imperfeições ou mesmo desacertos), e tão-pouco, e sobretudo, o significado do lento crescimento humano, da persistência juvenil. Dizer que houve

«adultificação»

a nada

conduz.

Todo

o desenvolvimento

não é

outra coisa senão isso mesmo. Devido ao processo de juvenilização, só muito tarde é que o homem atinge a maturidade sexual. O longo desenvolvimento físico e mental, que se intensifica de novo na puberdade, qualquer que tenha sido o seu determinismo, abre possibilidades imensas de educabilidade, que é um dos atributos que melhor caracterizam o homem, e isto numa fase em que simultaneamente o cérebro não cessa de complicar-se e de aperfeicoar-se.

A

fase

jovem

no

homem,

nas

sociedades

modernas,

ocupa,

em média, mais de um terço da vida do indivíduo, pois o crescimento pós-natal só termina por volta dos 20 anos, para uma esperança de vida de 75 anos. (A. H. Schultz, 1949, in De Beer, 1958, p. 74).

Dos 8 aos 12 anos, os grandes símios são, em geral, já adultos ou quase. O chimpanzé, por exemplo, já é adulto cerca dos 11 anos. Em relação ao do homem, o seu cérebro «fixa-se», como referimos, bastante precocemente nestes animais, No homem, porém, distanciando-se

no tempo a maturidade sexual, correlativamente a vida prolongou-se e a velhice foi retardada, de modo que as faculdades mentais atingem, com 163

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

as experiências acumuladas e assimiladas, a sua pujança ao fim de muitos anos. Assim, o prolongamento da vida e da fase de educabilidade permitiu uma

enorme

acumulação

de experiência e a sua

transmissão

às gerações. A juvenilização prolongada veio permitir, também, o desenvolvimento de um psiquismo superior sob a dependência dos adultos, tutela indispensável para a plena realização do indivíduo. A importância fun. damental

da juvenilização do primata humano

reside

na circunstância

de que durante os longos anos em que leva a chegar a adulto, o seu comportamento

é plástico, a aprendizagem

é mais fácil do que

na fase

adulta, onde se atinge uma certa limitação de possibilidades. Na fase juvenil,

o cérebro

humano

modela-se,

automodifica-se,

assimila

facil.

mente novas ideias e imagens e é mais facilmente modificado por elas.

Sem

um longo período de aprendizagem, caracterizada por demorada

infância e adolescência prolongada,

desenvolvimento

seria possível obter o pleno

da inteligência conceptual,

e da vida social humana?

poderia

como

existir

qualquer

da linguagem

articulada

Como é que sem uma longa fase de infância

forma

de

complexidade

social

e cultural?

O trabalho em grupo, a acumulação de saber, a cultura, resultam daí. Com

aprendizagem

de

breve

período

alguma

coisa

haveria

de

surgir

de análogo, mas certamente nada comparável às realizações que se tor-

naram acessíveis ao homem, como indivíduo e como sociedade. Ora, se os factos são esses, não podemos

deixar de reflectir num

ponto que me parece muito significativo: se o retardamento do crescimento ontogenético e da maturidade já era uma tendência característica dos primatas não humanos, poderá pensar-se que no passado apenas duas vias possíveis estivessem abertas neste aspecto à sua evolução: ou uma exageração desse retardamento, ou a sua diminuição. O seu abreviamento não era coisa para mudança

provável porque, como tudo parece sugerir, a pressão devia exercer-se precisamente no sentido do alargamento

da fase de educabilidade e da criação de prolongados vínculos familia-

res. Ássim, apenas restava o caminho do reforço do retardamento, como tentarei

mostrar

a seguir.

Conjecturo,

extrema restrição de possibilidades estaria razoavelmente probabilizado. c) Ontogenia,

assim,

de mudança,

que,

em

face

o primata

de

tão

humano

família e sociedade

O aumento do volume cerebral (que em parte caracteri

za a evolução do homem) e, em certa medida, paralelamente, o da inteligência, está, provavelmente, correlacionado, como se referiu, com o facto de o bebé humano nascer com o cérebro inacabado. Para crianças totalmente dependentes eram necessários pais cada vez mais solícitos e inteligentes, 164

BIOLOGIA Este facto deve

ter determinado

E

SOCIEDADE — 1 uma

forte pressão selectiva nesse sen-

tido, com famílias cada vez mais duráveis. O retardamento do crescimento exigiu maiores cuidados paternos e estes impunham, sem dúvida, adultos mais inteligentes e solícitos, mais apegados à prole e ao pequeno

universo

familiar.

A selecção através das gerações, de indivíduos com

maior capacidade cerebral (em regra ligada à evolução da inteligência), teria, por isso, resultado, provavelmente, destas acções recíprocas

is-filhos, surgidas humanidade

nos sistemas familiares da pré-humanidade

primitiva.

A

cada

retardamento

do crescimento

e da

havia

de

corresponder, logicamente, uma pressão de selecção para pais mais protectores e melhor educadores. Infere-se daqui, também, o seguinte: que cada aumento da capacidade craniana do adulto tinha de resultar de bebés com cérebros mais complexos e plásticos, susceptíveis de irem mais longe no seu desenvolvimento, circunstâncias que, significando

maior

dependência

actuar, também,

das crianças relativamente

no sentido de uma

aos adultos, havia

de

selecção de pais mais inteligentes,

mais hábeis e mais vigilantes. À criança desprotegida acaba, digamos, por exigir, cada vez durante mais tempo, apurados cuidados parentais. Este facto teria estado na base da constituição de famílias mais coesas e mais duradouras. As consequências parecem evidentes: mais longa e eficaz aprendizagem e treinamento dos filhos, assim como teria aumentado

a quantidade e a qualidade dos resultados das experiências individuais

transmitidas às gerações. Outra consequência, provavelmente, foi o maior desenvolvimento da linguagem conceptual-simbólica, que abriu novas perspectivas ao intelecto do símio humanizado e permitiu a evolução rápida de culturas. Crianças totalmente dependentes reclamavam,

repito, pais cada vez mais atentos e mais inteligentes. Tal facto pressionou a evolução nessa direcção, donde teria resultado um progressivo acentuar de características humanas no decurso das gerações. O crescimento sucessivamente mais retardado do cérebro veio permitir que este órgão registasse cada vez maior quantidade de imagens e lembranças e a sua elaboração em ideias e reflexões mais duradouras e aprofunda-

das. Assim, estabeleceu-se um reforçamento recíproco, um circuito de retroacções:

quanto

mais inteligência, mais retardação;

e quanto mais

retardação, mais inteligência. A origem da família humana não é facilmente concebível fora do quadro da retardação da ontogenia nem o é também a evolução dos vínculos psicológicos pais X filhos e as interacções físicas e psicogénicas a que essa evolução conduziu. A lentidão do desenvolvimento marca uma divergência em relação aos símios, diferença que foi um passo decisivo para a emergência da humanidade, como já tive ocasião de acentuar !º. Todos estes fenómenos, que apontam para a realização do ser humano, têm a sua raiz nas peculiaridades da sua ontogenia, tendo sido,

sem dúvida, decisivos para a criação de culturas e técnicas, e para a 165

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

ascensão espiritual do homem. Com o progresso da ciência e a melhoria das condições sociais aumentou-se,

nas sociedades industriais, sobretudo

nas mais progressivas, a duração média da vida humana. Maior número de indivíduos chegam a idades mais avançadas e este facto actua, também, como um importante factor de acumulação de experiências, de evolução cultural. Como ser pensante, de longo crescimento físico e cerebral, receptivo a uma imensa educabilidade, o homem tende a atingir o seu valor pleno em idades relativamente tardias, ao fim de um demorado período de aprendizagem. Distanciou-se, no tempo, a maturadidade reprodutora e mental; correlativamente, a vida foi prolongada e a velhice recuada. À tabela seguinte mostra a posição isolada do homem comparativamente aos outros primatas, no que se refere à duração do crescimento e à longevidade: Período

de

crescimento

(seg. Abbie,

e longevidade

1958)

(Em anos) , Primata

Períod de E

7

25

9

33

20

70

Macaco: aus à ruinimesss nasais Luna

GABÃO ambio ssa tira eso dentada

Orangotango ..cecesemiiemeceressoo ES E E CHDDANDO: . euspes pesso sieiidosçã ilus Homem

al 1 1

moderno (H. sapiens)...

Longevidade

30 35 am

Sem dúvida que outrora o homem tinha uma vida média curta, mas potencialmente tinha possibilidades de maior duração, que só modernamente se tornou um facto. Nos países onde os progressos da civilização científica e tecnológica permitiram combater eficazmente as múltiplas causas de mortalidade, a longevidade humana atinge valores superiores aos da tabela acima. O prolongamento da vida e uma longa fase de aprendizagem determinaram, por sua vez, enorme acumulação de saber e experiência e a sua transmissão cada vez mais enriquecida às gerações. Um melhor conhecimento dos processos ontogenéticos de crescimento e de maturação, das suas fases e oscilações, da plasticidade do

cérebro, dos seus processos íntimos de diferenciação e de assimilação da realidade, poderá permitir uma melhor e mais ampla utilização das capacidades humanas, aprendendo-se a ajustar harmoniosamente o nosso comportamento a ambientes em constante modificação, As investigações nesta

área, ao mesmo

tempo

que

poderão

acrescer

os conhecimentos

sobre a natureza e as causas da «juvenilização», base da nossa condição 166

BIOLOGIA

de seres humanos,

E

SOCIEDADE —1

poderão orientar os sistemas educacionais, e modi-

ficá-los de acordo com a evolução social, com as suas pressões e mudan-

ças. Se o primata humano é um produto simultaneamente biológico e social, resta-lhe mais a esperança de modificar a educação e as instituições socioeconómicas para que o homem se faça a si mesmo, sem nunca estar acabado, renovando-se, do que recorrer a processos de transforma-

ção da herança biológica da humanidade. Além de muito problemáticos quanto a conseguirem-se os efeitos desejados, tais processos são morosos e oferecem o grave perigo de abrir caminho a novas formas de sujeição e degradação. Na lista a seguir estão reunidos alguns dos caracteres essenciais ontogenéticos e comportamentais adquiridos no decurso da evolução dos hominídeos, presumivelmente a partir pelo menos da altura em que a

linha evolutiva que conduziu aos homens se separou do tronco simiesco (antropomorfos) primitivo. Esta comparação entre as características dos dois grupos pretende dar a medida das divergências e novidades adqui-

ridas no ramo que terminou no homem

[Lista baseada numa tabela de

C. O. Lovejoy, publicada por Johanson e Edey mente modifiquei e ampliei;

v. também a nota 13 do capítulo anterior].

LINHA EVOLUTIVA DO HOMEM

LINHA EVOLUTIVA DOS ANTROPOMORFOS Ontogenia com (nidífugas).

Cérebro

Retardação genia.

jovens activos ao nascer

fixa-se

não

precocemente,

(1983), que parcial-

muito

gar vida fetal insuficiente

arboricolas,

sobretudo

essencialmente

nhum todavia terrestre.

Actividade do cio.

sexual

sendo

no

ina-

Maturidade retarcrescente da socia-

limitada

deslocam-se

Habitat

outros

solo,

exclusivamente

terrestre.

ne-

exclusivamente

Sociedades sem constituição nucleares (excepção no

fêmeas

(bebés

Bipedia.

Quadrúpedes. são

onto-

cabados, «fetos»). O cérebro continua

a desenvolver-se. dada. Importância lização.

vivem

da

Primeiro ano de vida pós-natal a prolon-

se

desenvolve.

Uns

acentuada

ao

período

Actividade sexual contínua.

de famílias gibão). As

Sociedades famílias

à procura de ali-

levando à constituição de nucleares. Imobilidade cres-

cente das fêmeas e dos filhos, Possi-

mento, transportando os filhos. Não existe abrigo fixo. Não existe vida de casal,

bilidade de abrigo fixo. Vida de casal.

167

GERMANO

Educação

de

um

DA

só filho de cada

FONSECA

vez.

Educação simultânea de vários filhos. Tendência para fase de longa aprendizagem e de dependência dos pais.

Curta fase de aprendizagem e de dependência materna. existe partilha

Não

d)

4

retardação da do homem

O homem

Partilha

de alimento.

Não existe (ou é insignificante) ção de instrumentos.

SACARRÃO

utiliza-

de

Utilização

ontogenia — componente

alimento. e fabrico

de

instrumentos.

dominante

na

origem

é um ser biologicamente cultural e esta condição pro-

funda é preparada na sua ontogenia, cuja evolução está intimamente ligada a essa condição. Não há homem biológico separado de homem cultural. Qualquer deles é uma falsidade, uma não-existência. Existe aprendizagem intelectual, emocional, moral e até visceral, se assim

se lhe pode chamar. Toda a vida orgânica é disciplinada, regulada por factores culturais. A ontogenia humana tende para a edificação da posição erecta, de um grande e complexo cérebro, possibilita a emergência da racionalidade e da linguagem conceptual, e os alicerces de tudo isto estabelecem-se desde muito cedo na vida embrionária.

Toda a ontogenia humana tem uma cadência embrionária e fetal

até final do primeiro ano de vida pós-natal, crescimento intenso e prolongado que leva, portanto, o feto a ser ao nascer o maior e mais pesado dos primatas, o que tem maior volume cerebral, etc., «feto» na realidade ainda, pelas suas características (o crescimento pós-natal é do mesmo tipo que o crescimento fetal), mas que não pode continuar em ambiente intra-uterino porque, como ser cultural que é, realizando-se por aprendizagem, só em meio social pode continuar a desenvolver-se, e é o que de facto acontece com aquilo a que Portmann com felicidade chamou «gestação social» para significar o desenvolver de um ser «larvar», inacabado, nos braços da mãe (ou de outros adultos) ao seu calor afectivo, protegido por ela, a ouvi-la, a olhá-la, a contactá-la fisicamente. Comparativamente ao dos outros primatas, o tempo embrionário do homem é o mais longo, a permitir uma maior diferenciação de vários órgãos, sobretudo do cérebro. O embrião torna-se feto mais tarde no homem do que no macaco. Neste, a passagem à fase fetal realiza-se aos

41 dias de gestação (25 % da vida pré-natal), mas no homem a trans-

formação

ocorre cerca do nonagésimo

quinto

dia, quer

dizer, quando

perfaz 35,7 Yo de vida pré-natal, Vida embrionária mais prolongada, fase de formação e diferenciação dos órgãos, não só, portanto, mais longa em valor absoluto como em valor relativo (Olivier e Pineau, 168

BIOLOGIA 1958).

O

cérebro

do

bebé

E

SOCIEDADE — 1

humano

continua

a

crescer

consoante

o

modelo da curva do crescimento fetal, a maturação sexual é retardada, e o corpo continua,

também,

a crescer durante muito mais tempo

do

que em qualquer outro primata. Tudo é como que adiado — a reprodução, a fase adulta, a velhice, a morte. É a exageração de um processo que já se manifesta atenuadamente nos outros primatas. Por exemplo, para a capacidade craniana Macaca mulatta atinge, ao nascer, 65 Yo da capacidade definitiva, mas o chimpanzé só alcança 40,5 % eo homem apenas 23 %. Enquanto o gorila e o chimpanzé atingem no princípio do primeiro ano pós-natal 70 % da capacidade craniana definitiva, o homem só obtém valores similares aos 3 anos de idade (dados

em Gould, 1977).

Uma geral e acentuada retardação caracteriza a ontogenia humana, sendo provável que tenha sido ela que deu livre curso à evolução das outras características humanas, ainda que uma e outras se tenham mutuamente influenciado e fortalecido. As suas consequências foram:

a) prolongamento zindo a b)

do rápido crescimento embrionário e fetal, condu-

aumento

das

dimensões

ao nascer,

e c)

a maior

volume

cerebral, d) retenção de configurações juvenis e e) longo crescimento pós-natal e maior longevidade

(o homem

cresce durante cerca de 30 %

da sua vida, a fase adulta é como que adiada).

Um

cérebro complexo, de um ser que praticamente tudo tem que

aprender

para

volvimento

ser humano,

e de educação,

terá

uma

longa

fase de desen-

«persistência juvenil»

de disponibili-

de possuir

uma

dade e de escolhas. Daí, parece, decorrerá a razão da retardação ontoge-

nética, que tudo prolonga, tudo amplia para uma maior dimensão temporal — a infância, a adolescência, a fase adulta, a fase idosa. A família humana não é concebível sem a retardação da ontogenia. A duração da vida individual aumenta, facto que permite acumulação de mais saber, de mais ideias, e a sua transmissão às gerações. À flexibilidade física e mental da infância dura dez anos em íntima dependência e comunhão com os adultos, mas depois, com a chegada da maturidade, essa maleabilidade à educação e ao desenvolvimento intelectual perde-se, ou pelo

menos fica extremamente reduzida. À retardação ontogenética originou o homem como um ser por assim dizer «desprogramado», que se realiza por aprendizagem (será este, digamos, o seu «programa»), em vez de uma criatura que reage em obediência a programas fixos dos instintos,

ou de condutas inflexíveis codificadas nos genes. Ignora-se se foi a retardação da ontogenia a causa básica de tudo isto, ou se foi o aumento do volume e complexidade do cérebro que exigiu a retardação e a socialização do feto. Creio que ambas são simultaneamente causas e efeitos, processos que se reforçam. Retardação ontogenética, bipedia,

funções

da mente,

inteligência

e emoções,

racionali-

dade, forma física humana, o tudo ter de aprender para ser-se humano, 169

CERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

a socialização e culturização das funções do espirito e do cucpo (sabre este ultimo ponto. s. o cap. Mi) — tudo isto não pode ser disposto ama série

linear

cmyuntos

de

causa-efestocausa.

de partes que

Nada

sabemos

dos

devendo

antes

«er

considerado

coma

interaccionam. misterios

das

nossas

origens,

mas

o aumento

do tempo embrionário e fetal. o prolongamento da fase juvenil por retardação progressiva da ontogenia e o aumento da cervbralização. são

processus que devem ter estado associados na origem do homem. Mas esmo 2 retardação da ontogenia e um processo que não aparece bruscamente

com

o homem.

pois ja se manifesta,

primatas superiores não humanos,

ainda

que

minorado,

nos

ecrrio que podemos considerá-la com

o mgnificado de preadaptação ao aumento do volume e complexidade cerebral

e a» restantes

peculiandades

do ser humano.

Permitiu-lhe a

invasão de todos os ambentes porque libertou o homem das limitações ecologueas e cotmportamentas a que estão sujeitos os outros seres vivos.

Na cossistusção bsologuca do homem reside, por assim dizer, um destino

de

abertura

paro

o mundo,

para

a permanente

insatisfação,

para

Labor rdade

4

Modificações seculares

Hoje, como ha trinta emsl amos e mais, o mesmo ser humano tem de adaptar-se, desde que masc, a dilerentes padrões de vida, Todavia, as alterações cada vez esais cópedas o mais profundas que a civilização

actual imprime ao ambiente físico e sociocultural tornam dificil o ajustamento

do

moso

comportamento

e

da

basicamente as mesmas que as do Homo

msa

organicação

biológica,

sapiens do final do paleolítico

superior, a condições ambientes cs continua transformação, que se pro-

cessam cada vez mais velogmente no intervalo de tempo correspondente a cada geração. As transformações da vida social, traduzidas pela maior densidade populacional, por modificações nas dietas alimentares, pelas múltiplas e potentes influências sensoriais ( presentes, sobretudo, nas grandes metrópoles modernas), pela alteração de tudo o que actua fortemente sobre o ser humano desde o nascimento (habitação, paisagem, tudo o que constitui o pequeno universo de objectos e de seres que

o envolvem e modelam), e ainda a acção poderosa dos mass media, e &

maior difusão da leitura e da instrução — tudo isto (e não só isto) tem exercido poderosa influência sobre a parte física e espiritual do ser humano. Tendo a humanidade desenvolvido, gradualmente, no passado, um

ajustamento a ambientes socioculturais relativamente estáveis, faz face, sobretudo desde ha cerca de cento e cinquenta anos, a rupturas violen-

tas do ambiente, que não cessam de processar-se cada vez mais rapida170

a

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — 1

mente em cada geração. À constituição humana tem respondido de várias formas a estes profundos abalos do nosso ambiente secular. Estes fenómenos começaram a gerar-se durante a grande revolução técnica e industrial do século xIx (iniciada já no século xviIl), manifestando-se

principalmente

a partir de 1830, sobretudo por aumento de estatura

e por maturidade sexual mais precoce (aos 12 a 13 anos, enquanto há cento e poucos anos se situava entre os 16 e os 17 anos), com diversas consequências sobre o comportamento psíquico, o temperamento, a inteligência.

Entre

1880

e 1950,

os aumentos

máximos

durante

a adoles-

cência foram, por cada intervalo de dez anos, de cerca de 2 kg no peso e de

2,55 cm

na

estatura.

Este

fenómeno

de aceleração

continua

no

presente. Todavia nos Estados Unidos da América do Norte a estatura ter-se estabilizado, segundo resultados de um inquérito do Centro de Estatística da Saúde. Mas, claro está, será necessário confirmar segu-

ramente se foram na realidade atingidos os limites máximos do potencial hereditário da população americana. Estes fenómenos de aceleração ontogenética devem merecer a maior atenção,

não só pelos seus aspectos

científicos como: pelas suas conse-

quências no plano social, visto que a maturidade intelectual e espiritual não parece ter acompanhado a mesma tendência, pelo que se estabelece, como outrora, no intervalo entre os 16 e os 18 anos de idade, sendo a

maturidade social talvez ainda mais tardia. Este desfasamento entre maturidade sexual e mental parece ter ocorrido similarmente em diferentes

países

da Europa,

na América

do Norte

e no Japão

Tanner, 1962 e 1968; v. também Young, 1971). Têm sido atribuídas várias causas a este fenómeno:

(dados

em

melhoria da

alimentação, melhoria das condições de vida e da educação, subida da

temperatura mundial de 1850 a 1940, e a causas genéticas (diminuição da consaguinidade devido a maiores facilidades de transporte e correspondente cruzamento entre indivíduos de populações até aí isoladas). O factor temperatura não satisfaz como explicação, porque o processo de aceleração prosseguiu depois de 1940 até ao presente. Nenhuma das hipóteses é convincente, ainda que, provavelmente, os factores mencionados tenham participado em maior ou menor escala no fenómeno. A

selecção

ocorre

não

parece

demasiado

actuar

rapidamente

acção 5, As modificações

referidas

no

processo,

para

que

que,

para

possa

no crescimento,

ser

certos

autores,

plausível

na maturidade

essa sexual

e na conduta têm, como é natural, múltiplas implicações médicas, educacionais e sociológicas. Estão em oposição à tendência fundamental que fez divergir a ontogenia humana da ontogenia dos símios não humanos — o prolongamento da infância e da adolescência, e, portanto, da fase de plasticidade

e de adaptação

à vida social, à aprendizagem.

Mas como o fenómeno não parece de modo nenhum ter afectado a larga 171

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

plasticidade do cérebro, que, desde a nascença até à fase adulta (e para além do início deste estado) está permanentemente a fazer-se, a reali. zar-se, é provável que a aceleração ontogenética não comprometa o futuro, pelo menos imediato, da humanidade. Mas que o fenómeno de aceleração tem de inserir-se na vida social e esta modificar-se para o

aceitar,

não

temos

dúvidas

nisso.

À

influência

será

provavelmente

recíproca. Existem razões para crer que os jovens podem

atingir a maturidade

sexual mais cedo sem que tal circunstância prejudique a sua plasticidade para a aprendizagem e para o desenvolvimento cerebral, assim como a sua gradual e harmónica integração social. O que será talvez difícil é, por exemplo, conciliar a sua situação de estudantes com a de casados com filhos — mas isto, segundo creio, poderá solucionar-se pela própria rápida evolução socioeconómica, pela criação de novos valores e por medidas adequadas de auxílio económico e cultural às famílias

jovens. A sociedade terá de ajustar-se a estes imperativos biológicos, a

que não pode talvez subtrair-se, Ademais, a difusão inteligente

sob pena de provocar tensões graves. de práticas anticoncepcionais e um

conhecimento objectivo e realista da vida sexual e das suas implica-

ções sociais poderão ajudar os rapazes e raparigas a harmonizarem as exigências físicas e emocionais resultantes da sua precoce maturidade

sexual, com a realidade social, a modificar, também, o efeito.

As causas da aceleração ontogenética são ainda

sem

dúvida, para

obscuras. Estará

o seu determinismo numa variação subtil e orientada do genoma humano, ocorrendo paralelamente nos vários indivíduos das diferentes populações

afectadas,

mecanismos

sem

intervenção,

de selecção natural? Nem

por

conseguinte,

mesmo

de

aparentes

se sabe ao certo se não

estaremos em presença de um regresso a condições primitivas, anteriores

ao século XIX, como opinam certos antropologistas. Comfort, por exemplo (cit. por Overhage, 1967), está convencido de que a aceleração

actual da ontogenese humana seria o retorno a uma situação normal. do passado.

Para

Maria

Chalma

(1971),

o aumento

da estatura

e a

diminuição da idade da puberdade é um processo cuja tendência vem de longa data, tendo sofrido uma aceleração recente provocada por uma violenta modificação do ambiente, físico e sociocultural. Todos estes fenómenos têm provavelmente causalidade

Sob a mesma

complexa.

aparência escondem-se causas múltiplas. Assim, no que

respeita às populações do terceiro mundo, habitando regiões tropicais, Maurice Guernier (1976), membro do Clube de Roma, afirma que os homens e mulheres são prematuros sexuais (casamentos frequentes com 12 a 14 anos) devido à tendência que têm, desde há milhares de anos, para procriarem o mais cedo possível. O objectivo seria o de se sub-

traírem à elevada mortalidade infantil própria dos trópicos, onde prolife172

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —I

ram doenças numerosas e das mais graves, e terem, assim, conforme seu desejo, a oportunidade de ter alguns filhos que sobrevivam. Para Guer-

nier, esta tendência de procriar cada vez mais precocemente teve como resultado, devido à acção da selecção natural, o facto de actualmente todos os homens e mulheres serem sexualmente activos dos 12 aos 14 anos

e sem

manifestarem

qualquer

preocupação

de planeamento

pro-

criador. Outros processos de transformação do ser humano estariam também

em curso, como modificações na forma do crânio e da face, redução

das dimensões dos dentes, da face, da espessura do crânio e da região mandibular, etc. (cf., por exemplo, Schwidetzky, 1969, 1974) 1º. Estas e outras modificações têm sido designadas como um processo de «gracilização» corporal, pensando-se que as suas origens remontam aos confins da pré-história. Se é assim, será legítimo perguntar se as referidas transformações não serão a continuação do processo de «graciliza-

ção»

do

símio

«brutalizadas»

a

humano

e robustas.

das

partir

suas

formas

arcaicas,

mais

às causas, ignora-se se residem

Quanto

em

processos de reprodução diferencial, se em modificações nas condições de vida. Ou estaremos em presença de um subtil fenómeno de evolução de fundo (semelhante ao que há pouco referimos), ocorrendo paralelamente

em

várias

populações

do

primata

humano

desde

os

confins

do paleolítico? Há quem pense que estão em acção processos de selecção natural a nível organísmico.

tamento,

de tendências

Consideram

haver diferenças de compor-

de atitudes estéticas, de conduta

espirituais,

(pacífica ou agressiva), de grau de inteligência, etc., entre o tipo «grácil» e o tipo «grosseiro», de modo que nas suas relações com a evolução socioeconómica e cultural haveria melhor ajustamento (e por-

tanto selecção) de um ou outro tipo, consoante as circunstâncias. Para

dar um simples apontamento, os indivíduos de tipo «grácil» seriam mais pacíficos e sedentários que os de tipo «grosseiro». À questão é, na realidade, complexa

e complica-se

com

o facto de ter sido igualmente

observado o fenómeno inverso, de «desgracilização» («Desgrazilisation», v. em Schwidetzky, 1969).

173

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

NOTAS

! A ontogenia não deve ser considerada exclusivamente até o organismo atingir

o estado definitivo, Sobretudo

estado

que, em

na espécie humana,

boa

verdade,

a ontogenia

não existe

é o conjunto

como

fase imutável.

das modificações

que o indi-

víduo experimenta até à morte. Esta definição alargada cobre de facto alterações significativas no ser humano, devidas a causas biológicas e sociais em íntima concertação. 2 Tem

vindo

a abandonar-se

registo mais ou menos

a ideia

tradicional

de

a ontogenia

fiel do passado da espécie ou do grupo. Ajuda

ser um

mero

à montagem

do passado, ao seu traçado mais ou menos provável, mas não devemos procurar nela recapitulações, mas antes certas pistas, investigar, pela sua análise, o que se pode ter passado nas ontogenias ancestrais, sugerindo processos que responsáveis pela formação dos vários grupos, sem, naturalmente, esquecer como medida de afinidades. Por outro lado, o progresso nos estudos sobre exige cada vez com mais premência uma explicação da ontogenia, uma

porventura poderão ser o seu valor a evolução teoria geral

do

WI e 1986).

desenvolvimento,

que

ainda

não

existe

(v. meus

1983-a,

1985,

cap.

3 Certa literatura de divulgação propala o mito de que o homem, com o seu cérebro formado de partes evolutivas diferentes (réptil-mamifero-primata), tem reae-

ções e comportamentos «pensa»

como

uma

correspondentes

serpente

ou

um

a essas três idades. Quer dizer, reage ou

gato,

ou

um

macaco.

A parte

reptiliana

do nosso

cérebro seria responsável pelo comportamento agressivo, territorial, ou pela fixação das hierarquias sociais, pela sobrevivência, etc. O mito faz parte da ideologia determinista, que pretende situar a sede dos comportamentos e das emoções em certas áreas do cérebro. Por exemplo, o astrónomo Carl Sagan é um dos apaixonados por estas piruetas determinísticas. Para ele, it is striking how much of our actual behavior [...] can be described in reptilian terms (Sagan, 1977, p. 63). Todos os comportamentos e pensamentos humanos não podem ser reduzidos a certas áreas ou estruturas a constituírem causas separadas e únicas. Pensamos e agimos com a totalidade

do

confronto

«mente»

nosso

ou

corpo,

em

do

nosso

interacção,

do mamífero

arcaico

cérebro

a

todo

«mente»

(sistema

ele humano

reptiliana,

Não

a opor-se

há três

ou

«mentes»

a articularse

em

à

límbico), sede das emoções e motivações,

e ambas à mais recente «mente» dos mamiferos mais evolucionados (neocórtex), cérebro da iniciativa, da inteligência, da liberdade, que culmina no homem. Esta ideia

do cérebro trinitário foi inventada em 1970 por P. D. McLean (The Triune Brain)

e tem estado na origem de muita visão esquemática ou falsa da mente humana, aliás já manifestada antes noutras bases, mas compartilhando um mesmo ponto de vista

reducionista—o do homem programado e fragmentado recente do conceito dos três cérebros, v. Vincent, 1986). 4 O comportamento

natural nas aves é sobretudo uma

(para

uma

abordagem

mistura de actos «progra-

mados» e de aprendizagem (v. meu 1956). Mas mesmo o comportamento instintivo pode ser sujeito a uma certa maleabilidade, em muito menor escala, todavia, do que

nos mamíferos. A espontaneidade e a iniciativa não são as marcas salientes do seu comportamento,

rican,

mas em

todo o caso estes aspectos

existem

(v, Behavior — Sci. Ame

1980, vários artigos sobre este problema), Cf,, também,

o meu artigo «A psi-

cologia animal» (O Primeiro de Janeiro, Maio, 1963), assim como o cap, «Comportamento» que redigi para o Curso de Biologia-2, 3.º ed., 1979, 174

BIOLOGIA * Julian

Huxley

(1953),

«The

World, Menthor Book, pp. 101-111.

E

SOCIEDADE — I

intelligence of birds»

(in Man

in the Modern

é A questão é de facto complicada, porque o ovário é um órgão materno e é nele que se diferencia o óvulo. Há influências da sua estrutura e fisiologia sobre o

óvulo, de modo que o problema da origem do organismo individual não é solucionável se pensarmos em termos de assinalar um começo absoluto. O que se coloca verdadeiramente

à embriologia

e não

tanto

quando

é como

começa

exactamente

e se processa

ele começa,

uma resposta (v. cap. XI, no 2.º vol.). ? Há,

todavia, alguns

o desenvolvimento

do novo

ser

poderá

ter

o que só convencionalmente

tipos de neurónios que se multiplicam no adulto de certos

mamiferos,

o que

observações

(realizadas por L. F. Jarvik, especialista desta questão) parecem indicar

constitui excepção

não haver declínio car-se

mesmo

das funções

certas

à regra

(Privat, 1978). Por outro lado, certas

cerebrais entre os 64 e os 73 anos

melhorias),

inclusivamente

até idades

mais

(podendo

avançadas,

que

linguísticas

não

o enfraquecimento verificado foi nulo ou reduzido (Rabbitt, 1982). 8 Os

sons

vocálicos

humanos

e todas

as

suas

modalidades

verifiem

verbais ou emocionais, assim como o riso e os vários sons e ruídos do ambiente físico e dos outros seres vivos, influenciam, segundo parece, a estrutura do cérebro (hemis-

fério direito e esquerdo) e os esquemas de dominância cerebral. A linguagem materna teria uma

acção fundamental

nestas modificações, determinando o modo

como

cada

um capta e compreende os sons vindos do ambiente. Isto faz que culturas diferentes imprimam diferenças nas funções e dominância dos dois hemisférios cerebrais, como se verificou comparando as reacções de japoneses e europeus a estímulos auditivos. Estes factos, postos em evidência pelo japonês Tadanobu Tsunoda, parecem mostrar que a língua materna transmitida à criança influenciará provavelmente os meca-

nismos emocionais do cérebro, os quais poderão, assim, em grande parte, pelo menos, definir e orientar o tipo de cultura e a própria mentalidade de cada grupo humano e as suas inclinações artísticas e modo de compreender o mundo. Entre a estrutura

dos sons da natureza e a contextura da linguagem haveria certa analogia, que explicaria, pelas alterações provocadas

nos esquemas

cerebrais, muitas das diferenças das

mentalidades, de culturas em ambientes muito diferentes (v. Brabyn, 1982). 9 V., por exemplo,

de Adolf Portmann,

gie und das neue Bild des Menschen,

os seguintes trabalhos:

Rowohlt, Hamburgo;

1956 — Zoolo-

1958 — Vom

Ursprung

des Menschen, Reinhardt, Basileia. Sobre os trabalhos e as ideias do mesmo autor, v. ainda em meu 1977 os caps. IX e X e ainda «The Biological Philosophy of Adolf Portmann» (in M. Grene, Boston Studies in the Philosophy of Science, vol. XXIII, 1974; e também Gould, 1977). O que me parece estar no fundo do pensamento de Portmann é a rejeição do conceito de selecção natural como grande força agenciadora da origem e evolução do homem e a sua proposta que nessa evolução actuariam processos

psicogénicos,

sendo

a

peculiar

ontogenia

humana

uma

resposta

para

as

exigências do desenvolvimento espiritual da espécie, para a necessidade de uma longa aprendizagem física e sobretudo mental. 10 A expansão cerebral deve ter ocorrido muito cedo na linha da evolução humana, mais cedo do que em geral tem sido reconhecido (Martin, 1981). Quanto aos processos em curso, repetem-se factos conhecidos: aceleração do desenvolvimento fetal do cérebro e do corpo, de modo que nas crianças humanas estas partes são duas vezes maiores do que se esperaria que fossem em resultado da duração da gestação (idem). Além fase definitiva

do desenvolvimento fetal acelerado, o cérebro humano aumenta até à quatro vezes o volume que atinge ao nascer. Com o seu cérebro fetal,

o bebé humano é um ser muito mais dependente do que as crias dos outros primatas superiores. Que é que na gravidez humana mantém este acelerado crescimento? Que e que

Eae Nro tando

exasta

no

leite

materno

que

suporta

este formidável

crescimento

pós-natal

do

Estas questões são postas por Martin, que se confessa preocupado, pergun-

se quando

se ministra

às crianças leite de vaca modificado 175

de várias maneiras

GERMANO para as alimentar

sabemos

SACARRÃO

FONSECA

DA

o que

na realidade

estamos

fazendo

em

fetais e juvenis do homem

e dos antropomorfos,

com

as quais

a Buffon

(século xvirr)e a Etienne

pormenores,

v. Portmann,

Geoffroy

1965, e Gould,

Saint-Hillaire,

entre

em

fases teoria

recuar-se mesmo

1836

mais

(para

1977).

12 Processos consequentes ou ligados a essa disposição neoténica 1958, p. 70). Aliás, muitas

as

a sua

elaborou

da fetalização. Outros antes dele já as tinham reconhecido, podendo

desen-

de

termos

volvimento pós-natal do cérebro (v., também, Lewin, 1982-a). 11 Não foi Bolk quem descobriu as semelhanças que existem

outras características

da forma

humana

(v. De Beer,

resultam

directa

ou indirectamente da retardação ontogenética, tais como a forma da cabeça, da face e múltiplos caracteres anatómicos, o tardio completar da ossificação, o modo de copulação, etc. Só no homem é que as epífises dos ossos longos e dedos são ainda cartilaginosos à nascença; só anos mais tarde é que os membros ficam ossificados. Ora, no macaco essa condição humana existe nos fetos de 18 semanas, e os membros estão ossificados no momento do nascimento. Esta retardação ontogenética existe, como se disse (atenuada), noutros primatas. Os antropomorfos (gorila, chimpanzé, etc.) têm ontogenia mais retardada do que os macacos e do que os prossímios e vivem mais tempo do que estes. 3 Admitindo que o ramapiteco tenha estado situado na linha evolutiva que

conduziu ao homem (v. a nota 8 do capítulo anterior). Em qualquer caso a retardação ontogenética e algumas das suas consequências «humanas» já existiriam nos primatas antepassados dos australopitecos. 4 Múltiplos factores devem ter contribuído para a origem do homem. Não é admissível uma só causa. Provavelmente, o ser humano evolucionou por retardação

ontogenética, mas é legítimo supor que a sua origem resultasse de uma conjunção de disposições, de que todavia não sabemos ao certo quais foram nem como actuaram. Ora, na linha daqueles que procuram a causa única, alguns autores pensam que o que marcaria a passagem da natureza para a cultura, do animal não humano para o homem, seria a proibição do incesto, processo que estaria na origem da família

humana (v. Areia, 1980). Conforme a este ponto de vista, são as proibições, as regras negativas, que criam os laços sociais humanos, e não a simples evitação, como sucede em diversas espécies animais. Para Levi-Strauss, «nada seria mais falso do que reduzir

a família

códigos

de proibições e de obrigações,

à sua

base

natural».

Ora,

se este

autor

tem

razão,

quer

dizer

se a passagem da condição animal para a condição humana, das famílias animais para a família humana, só se pode compreender pela aplicação de complicados de interdições

inventadas,

então

(Julgo

eu)

o tabo do incesto no homem não poderá ser simplesmente atribuído a genes responsáveis especificamente por tal comportamento. Pelo menos não há qualquer evidência

directa

ou

indirecta

dessa

circunstância.

Por

outro

lado,

não

tem

qualquer

base

a

afirmação da existência de universais de comportamento, presentes em todos os indivíduos, em todos os tempos e circunstâncias, sem excepção. A genética e a teoria da evolução não podem justificar tal asserção (Maynard-Smith, 1978). E se foram os sistemas de proibições que deram origem à família humana, essa origem é inteiramente cultural. Mas este facto não deve significar que a biologia seja relegada para segundo plano nesse processo. Se, como os factos da ontogenia levam a admitir, O homem é um ser biologicamente cultural, não podemos considerar o tabo do incesto fora do quadro biológico da retardação ontogenética, e do enorme desenvolvimento cerebral a ela ligado, no sentido que tenho desenvolvido (v. meu 1986). A ligação macho-fêmea-filho, o aumento da inteligência para níveis humanos, o advento da

autoconsciência,

abriram o caminho,

inevitavelmente,

ao desabrochar do espírito,

à cultura, à subordinação da natureza às finalidades que o homem impõe a si mesmo, à simbolização, às invenções e manufacturações. É óbvia a necessidade que havia em manter a coesão familiar para fazer a educação dos filhos, num longo processo de protecção e de aprendizagem. Qualquer tentativa incestuosa quebrava essa coesão e harmonia, indispensáveis à longa fase de educação e de socialização, e ainda por 176

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —I

cima com mais de um filho a cuidar. Poderia ainda opor outras objecções. Que o tabo do incesto não é, provavelmente, uma tendência inata universal mostra-o a necessidade

da sua repressão generalizada, da parte da lei e da sociedade. Existe, segundo parece, uma campanha conduzida em certos meios norte-americanos (sexologistas, psicólogos, antropólogos) contra a sua proibição, e a favor de relações sexuais entre crianças e

adultos,

que, dizem, podem

ser benéficas entre membros

de uma

mesma

família,

tudo acompanhado de uma literatura que propaga ideias que põem em dúvida a necessidade da tradicional barreira, ou mesmo se ela será desejável, devido aos sentimentos de culpa, aos medos e à repressão a que arrasta a interdição (v. Time,

Abril, 14, 1980). Tanto esforço proibitivo não se coaduna lá muito bem com a hipótese da existência de genes específicos anti-incesto. As relações sexuais intrafamiliares próximas, ainda que pouco comuns, parecem ser mais frequentes do que em geral ce crê (1 milhão de casos por ano nos Estados Unidos da América do Norte). É para o que também aponta um penetrante trecho de Frank Livingstone (1980), onde discute as causas genéticas e culturais do tabo do incesto.

15 O fenómeno da maior precocidade da puberdade deve conter múltiplos componentes. A influência da urbanização e da multiplicidade de ambientes e de estímulos que ela cria e o contraste com o ambiente rural têm suscitado algumas reflexões. As raparigas citadinas menstruam mais cedo do que as raparigas do campo,

e analogamente

ratos trazidos para o laboratório

e domesticados mostram

algumas

diferenças em relação à situação da vida selvagem, nomeadamente no que respeita ao desenvolvimento mais precoce das glândulas sexuais, havendo talvez, também, um

efeito de iluminação. Fotoperíodos artificialmente mais longos actuariam sobre as glândulas sexuais (por intermédio da pineal) e influenciariam o crescimento, a maturidade e aumentariam a agressividade (v. Hartung, 1978, que dá bibliografia). 16 Além da «gracilização» do esqueleto, têm-se de facto apontado outros processos seculares, como a braquicefalização, com provável acção da selecção, por exemplo mortalidade diferencial ligada a menor resistência a doenças da parte dos dolicocéfalos,

havendo,

também,

o processo

inverso, ou seja, a desbraquicefalização

e aumento de estatura. São numerosos os casos de modificações da forma craniana ocorridos em várias regiões, mas pouco se sabe das suas causas (v. Olivier & Castro e Almeida, 1979, com colab. de H. Tissier).

Bibl.

Univ. 49 — 12

JT

CAPÍTULO CIÊNCIA

As

-1882), 1859,

ideias

FILOSOFIA

resultantes

sobretudo onde

E

do

introduziu

dos

DO

trabalhos

livro 4

Origem

e desenvolveu

como agente de mudança,

V DARWINISMO

de

Charles

das Espécies!, o conceito

Darwin

(1809-

publicado

de selecção

em

natural

provocaram uma profunda revolução cien-

tífica e cultural que ainda não terminou. À atitude do homem perante a questão das suas origens, natureza e destino modificou-se completamente, tomou novos rumos. Ás ciências sociais e humanas foram profundamente afectadas pela nova doutrina, e raros foram os domínios, da filosofia à sociologia, da psicologia à política, da literatura à história, e tantos outros, que não acusaram o embate violento causado pela revo-

lução darwiniana.

Quanto

à religião, o choque

recebido foi enorme,

atingindo-a nos próprios alicerces. À crença no Génesis jamais se recom-

pôs do abalo sofrido. A teologia cedeu

o lugar

à ciência.

À imagem

do homem,

o

seu lugar na natureza, a sua relação com esta, passaram a ser diferentes

do que estabeleciam os textos sagrados, e que até então tinham orientado a nossa visão do mundo e a de nós próprios. O homem deixou de se considerar um

ser à parte do resto da natureza, perdeu a posição de ser

preferido da Criação, de centro e objecto dela. Simplesmente uma espécie entre muitas outras, da ordem dos Primatas e da classe dos Mamíferos, originada pelas mesmas causas materiais que as determinaram,

emergindo

da

bruteza

simiesca,

e depositária

de instintos

que

tornam o homem irresponsável por esses novos demónios que encerra. A própria essência do conceito de mal, principalmente no que respeita às suas origens, foi modificada. Maldade e egoísmo passaram a ser considerados parte integrante da nossa herança animalesca, estão ligados à luta pela existência, são naturais, e por isso mesmo justos. À competição pela sobrevivência do mais apto seria a grande lei da natureza. Dela dependem o sucesso, a conquista dos recursos. O optimismo nas possibilidades de aperfeiçoamento moral e social da humanidade excluía toda a crença numa maldade inata herdada de um passado distante, quando o bruto sub-humano enfrentava com feroz combatividade uma natureza inimiga, crença esta que só surgiu plena com a teoria darwiniana e, sobretudo, com o seu prolongamento ideológico — o darwinismo

social e seus actuais i

Ê

de

K.

Lorenz

e

sucedâneos

outros,

a

e seguimentos

sociobiologia, 179

etc.).

(a escola instintivista

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

Os violentos conflitos suscitados pela publicação da Origem,

tarde do livro The Descent of Man

(1871),

resultaram

e mais

sobretudo

da

ideia de se considerar o homem um mero acidente da vida neste planeta, produto

de contingências

desenvolvidas

num

longo

processo

evolutivo

sem projecto, destituído de causalidade transcendente e accionado por forças materiais. Tese na aparência simples, mas de profundo alcance. Assim: a diversidade individual traduz-se por diferentes capacidades e a morte é, em grande parte, diferenciadora — ceifa em maior

número

os menos

ajustados.

Daqui

resulta

que

são

preservados

indivíduos possuidores de características que favorecem

maior

os

sobrevi-

vência. Vivem mais tempo, reproduzem-se mais do que os indivíduos

portadores de características menos favoráveis. E como os primeiros deixam maior número de descendentes do que os segundos, as características favoráveis tendem a aumentar nas gerações sucessivas, e as

desfavoráveis são eliminadas. O resultado é a transformação

dos orga-

nismos no sentido de uma melhor adaptação às circunstâncias do ambiente. É como nascem muito mais indivíduos do que aqueles que podem sobreviver, na grande «luta pela sobrevivência», na «grande e complexa batalha pela vida» (como lhe chamou Darwin), acumulam-se nos segundos as variações favoráveis, e novas variedades e novas espécies se podem formar. À estes mecanismos de conservação das variações

favoráveis e de rejeição das variações nocivas chamou Darwin seleceão

natural 2.

Não é fácil avaliar em que medida é que o meio social instável ce em febril transformação, como foi quase todo o século xIx, determinou grande parte da estrutura mental do darwinismo e a parte que teve este último mesma

na elaboração de um sistema de valores e justificações dessa sociedade. Não podemos, por outro lado, ignorar o próprio xvIII, que se EEE dor

progresso científico que já vinha do século inúmeras descobertas e em novas ideias acumuladas

até final da

pri. ,

e

fada

meira metade do século xIX, e que Darwin e outros homens ls Tudo isto ajudou à revolução científica e cultural.

A teoria da selecção natural veio corresponder

a uma

necessidade

a de explicar e justificar um mundo em rápida transformação, que ú Igreja já não podia caucionar. Teoria que Darwin elaborou influenciado, talvez, pela visão de uma sociedade de Aplicou à natureza a economia do liberalismo,

dade. Os indivíduos a agirem separadamente,

competição econômica. a moral da nova socie-

a competirem

pelo seu

sucesso, sendo diferentemente dotados para a luta pela existência num mundo de livre concorrência. Cada um a lutar pelo seu próprio êxito 180

A o nd

ma La PP

darwinismo

A Mae dnmo . Lm

do

nd

Génese

dada tt db o

1.

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — 1

na vida. Herbert Spencer (1820-1903), por exemplo, decerto impressio-

nado pelas novas relações económicas e pelo avanço rápido da ciência e da tecnologia, declarou, muito antes da publicação da Origem,

que a

competição era vantajosa entre os homens, portanto um fenómeno de selecção. Bebeu estas ideias, provavelmente, em Thomas Hobbes e certamente no clérigo economista Thomas Malthus. É, aliás, também significativo que Darwin tenha sido influenciado, logo em 1838, pela leitura do ensaio clássico do mesmo Thomas Malthus — An Essay on the Principle of Population as it affects the Future Improvement of Society, publicado em 1798 pela primeira vez. Neste célebre ensaio, o seu autor chama a atenção para as consequências do crescimento geométrico das populações humanas, em contraste com os dos recursos

alimentares, que não aumentam na proporção correspondente. As consequências, diz Malthus, são desastrosas: guerras, fome, miséria das classes inferiores, doenças, mortalidade elevada dos pobres e restabele-

cimento

do equilíbrio. A regulação

é imposta pela natureza. Para o

padre Malthus, a vida é uma luta na qual sobrevivem os melhores,

os

quais

são

recompensados

por

isso

com

riqueza

E Darwin pensou que, se isto acontecia com os homens,

e posição

social.

se a doença e as

guerras eram Os freios que impediam as populações humanas de se tornarem demasiadamente

numerosas em relação aos recursos alimentares

disponíveis, também o mesmo poderia acontecer nas sociedades animais.

Aqueles animais ou plantas cujas variações os tornassem melhor adapta-

dos ao ambiente poderiam transmitir as vantagens adquiridas às gerações sucessivas e gradualmente poderiam as espécies dar novas variedades e estas novas espécies. À grande miséria e fome dos anos 30 e, sobretudo, 40 do seu século eram fenómenos bem apropriados para observar o

malthusianismo

em

acção,

e

Darwin

não

deixou,

provavelmente,

de ser influenciado por esse facto; tanto mais que essa época coincidiu com o período da génese e intensa elaboração da sua teoria. A título de exemplo, recorde-se que no começo do a introdução da batata e a respectiva cultura na Irlanda

consequência todavia,

um

paralisado

rápido devido

aumento

século XIX teve como

da população. Este crescimento: foi,

à doença

da: batateira

(provocada

por

um

fungo). Este facto determinou, por sua vez, um período de fome e mortalidade elevada em 1845. Estas e outras catástrofes que têm afligido a humanidade estão aparentemente de acordo com a teoria de Malthus, doutrina pessimista, que tem sido utilizada para desencorajar, come justamente escreveu J. Bernal, todas as tentativas de melhorar a condição humana.

Não parece difícil calcular a influência de tal ensaio, sobretudo o seu aproveitamento ideológico, escrito em pleno despontar da revolução industrial, obra que, todavia, foi fortemente combatida. As classes

dominantes

e empreendedoras

e as camadas privilegiadas ou em ânsia 181

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

de ascensão encontraram aí, e noutras fontes semelhantes, a justificação

dos seus actos e propósitos e uma

moral

para

capitalismo do ligados à posse Malthus as leis que asseguram

de promoção

as profundas

e de poder,

transformações

que

uma iria

desculpa

imprimir

o

século x1x. Os meios reaccionários e conservadores, da terra, e a própria Igreja, viram nas conclusões de próprias do imobilismo e da fatalidade, e os equilíbrios a sua permanência.

O ensaio de Malthus podia ser interpretado em termos de evolução, ainda que não contivesse indicações nesse sentido, fosse acima de tudo

uma obra sobre o «equilíbrio populacional». Mas as causas da morte por fome e doenças, as razões por que uns morrem, outros sobrevivem, a luta pela existência (luta sem o mesmo sentido que lhe deu Darwin, como adiante se verá), podiam ser encaradas em termos de mudança, de progresso, de «aptos» e de «não aptos». Foi precisamente isto que fez H. Spencer, em 1852, na sua Theory of Population, que aplicou exclusivamente ao ser humano. Como escreveu John Burrow, numa

introdução ao livro de Darwin, Spencer virou completamente do avesso a tese

de

Malthus,

fazendo

dela

a base

da

sua

teoria

do

pro

humano sobre a eliminação dos «incapazes». Uma teoria (a de Malthus) que não implicava transformação e foi elaborada para contrariar as doutrinas iluministas do progresso sem fim, a pretender mostrar que há

limites impostos pela escassez de recursos alimentares relativamente ao crescimento

da população,

essa teoria,

dizia, serviu

de base

a uma

teoria de progresso, onde a competição conduz à eliminação dos «piores». Como se vê, está aí, com toda a nitidez, a ideia da selecção natural, introduzida por H. Spencer antes de Darwin a ter publicado na Origem.

A expressão spenceriana que ficou célebre é a de «sobrevivência dos mais aptos» (survival of the fittest ). A influência que Malthus exerceu sobre Darwin não é, porém, tão

simples

trabalhos

têm

como

uma

análise

sido publicados

superficial

poderia

sobre esta questão,

sugerir.

que

não

Diversos

podemos

desenvolver aqui. Diz Darwin na sua autobiografia (escrita sem intento de a publicar, destinando-a aos filhos) que a leitura do ensaio

de Malthus lhe suscitou prontamente a ideia de selecção natural, ou seja,

de que as características favoráveis dos organismos de cada espécie tendem a ser preservadas, enquanto as desvantajosas seriam eliminadas. Diz ter tido esta intuição em Outubro de 1838, como se verifica pelas suas próprias palavras, num trecho memorável que merece ser transcrito: In

October

1838,

that

is,

fifteen

months

after

I had

begun my systematic inquiry, I happened to read for amusement Malthus on Population and being well prepared to 182

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —

appreciate the struggle for existence which everywhere goes on from long-continued observation of the habits of animals and

plants,

it at once

struck

me

that

under

these

circuns-

tances favourable variation would tend to be preserved and unfavourable ones to be destroyed. The result of this would be the formation of a new species. Here, then, 1 had at last

got a theory by which to work; but I was so anxious to avoid

prejudice, that I determined not for some time to write even

the briefest sketch

of it.

Os seus «cadernos de notas», nos quais Darwin registava e datava os seus pensamentos, mostram, todavia, que a relacionação de Darwin com Malthus é mais complexa, e vários problemas surgem quando se considera a génese do seu pensamento e as influências recebidas. Por exemplo, declara numa carta a A. R. Wallace que foi a prática da domesticação dos animais e plantas que lhe permitiu estabelecer o princípio da selecção aplicá-lo. Nessa

natural

e que

só depois,

ao ler Malthus,

viu como

carta, que tem a data de 16 de Abril de 1859, escreveu

a seguinte passagem: You are right, that I came to the conclusion that selection was the principle of change from the study of domesticated production; and then, reading Malthus, I saw at once how to apply this principle.

Porém, como se referiu, afirma na autobiografia que foi a leitura (por simples divertimento) do ensaio de Malthus que subitamente lhe

fez nascer na mente a teoria da selecção, com a qual finalmente poderia trabalhar. Poder-se-ia deduzir por esta declaração que antes não lhe surgira ainda qualquer ideia acerca do processo. Ora no seu «caderno de notas» (Transmutation Notebook D) há um trecho, datado de 28 de Setembro do mesmo ano (1938), que prova não só que Darwin conhecia o ensaio

de Malthus

como

exprime

aí, de forma

perfeitamente

clara,

a

ideia de selecção natural, aplicada a plantas e animais não domesticados. Apenas transcrevo o seguinte passo, que me parece significativo: /The

final

cause

of all this wedging,

must

be

to sort

out proper structure, & adapt it to change/ — to do that for form,

which,

Malthus

shows 183

is the final effect of this popu-

GERMANO

DA

FONSECA

lousness on the energy of like a hundred thousand of adapted structure into or rather forming gaps by

SACARRÃO

man, One may say there is a force wedges trying to force every kind the gaps in the economy of nature thrusting out weaker ones.

É possível que quando escreveu a Autobiografia, em 1876, Darwin não estivesse bem certo acerca de certos pormenores respeitantes à génese do seu pensamento nos dias já distantes de 1837 a 1839. Ou talvez

quisesse

marcar

(provavelmente

Outubro

como

o termo

de Agosto a Outubro)

de

um

curto

intervalo

em que entreviu as bases e o

significado da selecção natural e de que lhe pareceria a ele talvez inútil explicar os pormenores do desenvolvimento desse conceito numa auto-

biografia que não pensava publicar. Seja como

for, deixe-se este pro-

blema para os historiadores e os darwinólogos, mais interessados e mais

competentes do que eu para dilucidar o problema. Dez meses depois de terminar a sua viagem como naturalista a bordo do navio Beagle, Darwin começou, em Julho de 1837, a registar as suas reflexões na série de «cadernos

de notas» sobre a transmutação

das espécies ?. Quando regressou a Londres, não tinha ainda uma teoria

do processo evolutivo. É certo que já estava reticente sobre a fixidez das espécies e em breve, passados poucos meses, baseado numa massa impressionante de factos, de observações e leituras, pensava que a trans-

formação das espécies era uma

realidade. Não

tinha

era uma

teoria

para a explicar. De 1837 a 1839 viveu um período de intensas leituras

colecções de animais e plantas que conseguiu na viagem, que o levaram

pronta

e directamente

Foram,

também,

variados

campos,

à edificação

do

conceito

da

selecção

natural.

as copiosas e intensas leituras e cogitações nos mais na poesia,

na

economia,

na

filosofia,

e as

reflexões

que elas lhe suscitaram em sectores como a religião, a psicologia, a epistemologia, a antropologia, a moral, e sobre as quais registou posições

pessoais

acerca

desses e de outros

grandes

temas.

Foram

dois anos

de

profundas reflexões filosóficas e metafísicas. Os títulos dos seus «cadernos» e as notas aí inscritas são elucidativos quanto à sua actividade de pesquisa teórica em múltiplos campos, a procurar uma chave, uma compreensão, um caminho. Eis a colecção preciosíssima desses «cadernos», actualmente conservados no «Anderson Room», da University Library da Universidade de Cambridge, na Inglaterra: , Transmutation

Notebook

B (1837 a-1838 a);

Transmutation

Notebook

C

(1938 b); 184

pa el ai

notável trabalho

teórico. Mas não foram apenas os factos e observações que obteve e realizou durante a sua memorável viagem, nem tão-pouco só as vastas

ad ita ns il id

e reflexões. Os seus «cadernos de notas» reflectem um

BIOLOGIA

E

Transmutation

Notebook

D

Transmutation

Notebook

E

Metaphysical Metaphysical

SOCIEDADE —I

(1838 c); (1838 d-1839 a);

Notebook

M

(1838 e);

Notebook

N

(1838 [-1839 b);

Old and Useless Notes about the moral sense & some metaphysical

On

Macculloch,

PSOE

ear

rem

Na mesma

Attributes

(1837 b-1840 a);

& earlier

points writen about the year 1837

of the

(1838

Deity

g).

biblioteca encontram-se igualmente os dois esboços do fundamental,

e viria a ser mais tarde (1859) o livro The Sketch of 1842 e The Essay of 1844.

ou

seja,

não consistiu exclusivamente em

A originalidade do darwinismo

(em resultado de uma acumulação impressionante de

impor a ideia

observações) de que as espécies se transformam e que existe uma continuidade na vida por meio de uma sucessão de formas diversas. Essa ideia já tinha sido emitida por outros homens, noutras épocas. Destes,

CCN

RS e

re

meeeeerrrerrrerraeeemm

:

o mais importante foi, seguramente, Jean Baptiste de Monet de Lamarck

(1744-1829),

que

teoria

do século x1x elaborou uma

já no princípio

eral da evolução. As suas obras capitais são a Philosophie zoologique (1809) e (de 1815 a 1822) L'Histoire naturelle des animaux sans vertêbres.

toda

em

Exprimiu

a sua

extensão

a doutrina

transformista,

se bem que não empregasse nunca a palavra «evolução». Foi ao ponto

de afirmar com insistência que o homem podia derivar de um simio que

tivesse abandonado a vida arborícola, o qual, submetido e pressionado por novas necessidades, passou a levar vida social. Todavia, a seguir, talvez para se proteger das reacções dos teólogos, quase que nega o que dissera antes. Já na antiguidade grega se tinham feito especulações sobre a evolução (v. o cap. 1). Foi o caso, entre outros, de Anaximandro de Mileto (610-547) e de Empédocles de Agrigento (495-435), mas com a falta de documentos não passaram de jogos de ideias a pressentirem a realidade. Depois, na Renascença, houve algumas intuições sob a influência dos escritos gregos, pelos quais foram conhecidas as suas ideias evolucionistas. Vanini (1586-1619) é queimado vivo pela Inquisição em Toulouse por ter admitido que o universo não é o produto de um

espírito,

combinação

mas,

pelo

acidental

a sua origem

contrário,

de

No

átomos.

século

é o resultado

xvirt, Buffon

de

uma

e diversos

enciclopedistas e filósofos da natureza compartilham ideias evolucionistas. À ideia de evolução andava no ar. Buffon, sobretudo, é notoriamente evolucionista, mas com avanços e recuos nas suas ideias, acautelando-se

das condenações e perseguições dos círculos reaccionários. Isto faz que ele não tenha elaborado uma doutrina, um corpo sistemático de pro: posições

sobre

a

evolução,

sob

a

forma

de

uma

teoria

explicativa.

Poder-se-á até dizer que as suas ideias eram instáveis e não parece muito provável que as suas hesitações fossem causadas pelo medo de ser 185

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

perseguido, visto os poderes instituídos não se revelarem muito perigosos

para ele, de modo que é provável que não tivesse necessidade premente de esconder o fundo do seu pensamento. Em todo o caso, uma posição social confortável, o desejo de não estar em contradição com a classe dominante, uma documentação insuficiente, e a influência de uma

sociedade estática, tudo isto deve ter actuado para determinar as suas hesitações,

impedindo-o

de

elaborar

uma

teoria

transformista.

Mau-

pertuis (1698-1759) foi, em certos aspectos, mais longe do que Buffon. Pelo menos foi mais especulativo. Entreviu a importância das variações

hereditárias, estava perfeitamente consciente do papel da selecção. Erasmo Darwin (1731-1803), avô de Charles Darwin, publicou um livro, Zoonomia, transformistas.

disse,

primeiro

que Mas

tratava foi

de medicina,

Lamarck,

estruturou

uma

no

discípulo

teoria

de

qual

manifesta

Buffon,

explicativa

ideias

quem, como

da

evolução,

que

todavia não teve aceitação nos meios científicos por lhe faltar o apoio dos factos, por ser demasiado especulativa e, em muitos aspectos, confusa. Não foi esse o caso de Darwin, que convenceu definitivamente o mundo científico de que a evolução é uma realidade, que pode ser cien-

tificamente evidenciada e explicada. Para isso acumulou um tal peso de evidências científicas que não deixou lugar para mais dúvidas quanto à realidade do processo. Os factos coligidos, as observações que fez, os exemplos em que se baseou, são impecáveis como argumentos a favor da

transmutação das espécies. Não menos importante

foi o estilo sóbrio,

lúcido, penetrante, revelador de extrema prudência e ao mesmo

tempo

exprimindo a grande densidade do pensamento. Quer nos livros, quer nos artigos, Darwin

revelou-se constantemente

como

um

grande

cien-

tista. Nada de estilo declamatório, ou dogmático, de fraseado oco, de mistério, de confusionismo. Obras especulativas e nebulosas sobre o evolucionismo

havia-as

antes

de Darwin,

e por

isso não

se impuseram.

Lamarck não parece ter sido muito original (continuou e desenvolveu

o que cautelosamente Buffon traçara). Nem dade biológica dos caracteres adquiridos

o conceito de hereditarie-

é seu, como

por vezes se cre.

A ideia vem de tempos remotos, e era já admitida entre os gregos da antiguidade. Darwin

foi um

poderoso observador, um

homem

simultaneamente

ligado aos factos que constrangem, capaz de ousadia nas hipóteses e de teorizações de grande alcance, Prudente e audaz, nem os factos lhe tolheram a imaginação e a inteligência, nem esta traiu a fidelidade ao real, ao objectivo, ao testável, e sem nunça

perder altura.

como agnóstico. Esta preparação materialista favoreceu, provavelmente, a concepção da selecção natural como mecanismo de mudança, processo 186

acl

Logo que regressou da sua grande viagem, as suas reflexões meta»

físicas fizeram-no abraçar o materialismo e, do ponto de vista religioso, se não foi inteiramente ateu, daí para o futuro revelou-se certamente

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — 1

de acção que considerou como uma força natural, tal como outras forças físicas. Sejam quais forem as interpretações (e elas são várias e contra-

ditórias por vezes)

que os darwinólogos elaborem sobre a génese do

pensamento de Darwin, o que parece incontestável é que a Origem foi a sua

primeira

e mais

importante

obra

herética,

reflectindo

a opção

filosófica feita talvez entre 1837 e 1839. Mas não é correcto dizer-se que foi o materialismo filosófico que o conduziu à teoria da selecção

natural, que essa doutrina fosse mais influente para a sua elaboração teórica do que os documentos e factos científicos que coligiu e observou durante a sua longa viagem, a qual teve uma profunda acção no seu espírito. Deve

lembrar-se que quando Darwin partiu a bordo do Beagle

era já um homem

com treino científico de elevada qualidade, e quando

chegou de novo a Inglaterra era um cientista com uma experiência inigualável. E mesmo antes de publicar a Origem em 1859, a sua bibliografia era vasta e a sua reputação de homem de ciência universalmente

reconhecida.

uma

interacção

Que

as espécies

A

realidade do seu trabalho intelectual foi a de

fecundíssima

e muito

íntima

de factos

e ideias, em

! constante reciprocidade *. Darwin separou perfeitamente a evolução, como processo, do mecanismo que propôs para a explicar — a selecção natural. Esta constitui a componente mais original e mais revolucionária da grande heresia. derivam

umas

das outras havia naturalistas que já o

pensavam na primeira metade do século xix, de modo que quando surgiu a Origem a surpresa foi mais pela alta craveira da obra, pela imensa acumulação de factos científicos e pela poderosa e irrecusável

argumentação, que rendia os mais obstinados ou cépticos, do que propriamente pela novidade da ideia. Mas com a selecção natural, ou seja,

propondo variações

a existência de uma acção das circunstâncias exteriores sobre congénitas surgidas sem finalidade, já o caso era diferente.

Esta teoria nega a explicação da natureza e do ser humano em termos metafísicos e espirituais. E isto nunca foi perdoado a Darwin. Por mais

voltas que os analistas dêem à sua obra científica, jamais encontram

nela qualquer ambiguidade, qualquer cedência a causas transcendentes. O que nela se verifica é uma proposta constante de acção de forças naturais e físicas. Nunca Darwin apelou para factores que não pudessem ser pensados e trabalhados cientificamente, apoiados em factos, suportados pela observação e pela experiência. Nem mesmo na autobiografia, na sua correspondência, ou nas suas notas, nos seus papéis e anotações, há qualquer desvio em relação ao materialismo filosófico que convictamente escolheu: um permanente rigor científico, numa simbiose perfeita entre pensamento racional e factos e observações acumuladas, Podem as notas que deixou não traduzir todos os meandros do seu fecundo

pensamento,

todas

as influências

recebidas.

Mas

isso importa

pouco, porque não afecta o que a sua obra publicada exprime, com toda 187

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

a claridade da sua inteligência ímpar. Um respeito obsessivo pela objecti-

vidade, e para tudo explicar em termos materialistas, sem evocar misteriosas forças vitais, impulsos orgânicos teleológicos, causas espirituais, etc. Para ele, a mente, o espírito, são produtos da matéria cerebral, são epifenómenos. À matéria é a fonte e o tecido de toda a existência. Darwin sabia que esta doutrina era uma verdadeira heresia, mais inaceitável do que a ideia de evolução, para a qual havia já acomodações e compromissos com a teologia, sem pôr em cheque os textos sagrados. Mas com o materialismo filosófico, a partir do qual concebeu e desenvolveu a teoria da selecção natural, era indispensável esconder o seu pensamento e não o tornar público, nem mesmo os seus aspectos cientificos. E foi talvez esta a razão pela qual prudentemente tardou em publicar a Origem só se resolvendo a isso pela pressão das circunstâncias, nomeadamente pelo facto de Alfred Russell Wallace (1823-1913) ter concebido

de forma independente

a teoria da selecção natural

(mas

sem a força, a projecção e o suporte factual e filosófico que moveram Darwin) e porque também, vinte anos decorridos (de 1839 a 1859), as condições da sociedade e da ciência eram diferentes das que existiam Claro está que, apesar de toda a sua objectividade

e rigor cienti-

fico, isto não significa que não haja na obra de Darwin uma filosofia,

até

uma

espécie

de fé, uma

visão

algo mística

da

natureza,

da sua

grandeza, das múltiplas interdependências e harmonias que ela exibia

car

da transmutação das espécies º.

teoria explicativa

ie a

quando o jovem Darwin começou a sua busca de uma

aos seus olhos. Mas é possível que haja aí também uma certa concessão sua a compensar

a) A

as consequências

da sua grande

heresia.

«sobrevivência dos mais aptos»

Na 1.º edição da Origem, Darwin utiliza a expressão «selecção natural» e o título do cap. IV é apenas «Natural Selection». Aí diz após densos desenvolvimentos e argumentações: This preservation of favourable variations and the rejec-

tion of injurious variations, I call Natural Selection.

188

o: nt cn ii Ci le AN

din

para: «Natural Selection; or The Survival of the Fittest». E o texto acima passou a ser assim redigido na edição definitiva:

dad

Todavia, em edições posteriores, altera o título do mesmo capitulo

BIOLOGIA

This

E

preservation

SOCIEDADE —

of favourable

individual

differences

and variations, and the destruction of those which are injurious, I have called Natural Selection, or the Survival of the Fittest.

No

capitulo

anterior

claramente

explica a escolha da expressão

spenceriana:

I have called tion, if useful, is in order to mark But the expression Survival

of the

this principle, by which each slight variapreserved, by the term Natural Selection, its relation to man's power of selection. often used by Mr. Herbert Spencer of the

Fittest is more

accurate,

and

is sometimes

várias

desvantagens

equally convenient. A

expressão

spenceriana

apresenta,

porém,

relativamente à de selecção natural. É muito menos neutra, mas é per-

feitamente tautológica, e aponta nitidamente para o racismo sob todas

as formas. Regressemos a Malthus. E perfeitamente significativo que fosse um livro basicamente de política e economia que inspirasse Darwin a conceber o princípio da selecção natural, a base teórica que procurava, e sobre a qual poderia agora trabalhar. Todavia, há numerosas passagens na obra de Malthus que se relacionam directamente com a história natural. Algumas não devem ter deixado de impressionar Darwin, como as que respeitam ao facto reconhecido por Malthus de que há espécies de plantas e animais de tal modo prolíferas que rapidamente cobririam todo o planeta se não sofressem uma acção frenadora (é o princípio da

concorrência

vital,

portanto)

da

parte

de outras espécies:

Necessity, that imperous, all-pervading law of nature, restrains them within the prescribed bounds. The race of plants and the race of animals shrink under this great restrictive law, Malthus refere-se à «luta pela existência» (struggle for existence) em relação com a competição social. Mas Darwin deu outro sentido a essa «luta» (aliás, conferiu-lhe até vários sentidos), afastando-se do conceito estreito de representação de uma natureza em permanente luta

sangrenta,

embora

fosse esta a ideia que foi vulgarmente assimilada 189

GERMANO

para

vência

DA

FONSECA

SACARRÃO

Alfred R. Wallace, em 1866, numa carta dirigida a Darwin, insiste que este substitua a expressão «selecção natural» pela de «sobrevi-

dos mais aptos», que considera

mais

correcta, mais inteligível,

e Darwin fe-lo, pensando, igualmente, que a expressão seria mais exacta para traduzir o seu grande princípio, segundo o qual cada ligeira variação é conservada se acaso for útil. Simplesmente a escolha e a

equivalência resultaram pouco felizes, quanto mais não seja pelo carácter

tautológico

da

expressão

adoptada,

como

pelas

confusas

e falsas

implicações a que deu origem no plano político e social, como já referi. É

Quais são, porém, os mais aptos? curioso que Darwin não hesitou em

Qual o critério criticar Herbert

de aptidão? Spencer em

diversos aspectos, com apreciações depreciativas. Por exemplo (veja-se Freeman, 1978): «Such dreadful hypothetical rubbish» (a propósito da

leitura do ensaio de H. S. sobre a população), ou «somehow I never feel any wiser after reading him, but often feel mistified» [sic]; ou ainda:

«If

expense

he

wonderful man

trained

himself

to

[...]»; e, finalmente: Spencer's terms

that Mr.

head

had

observe

more,

even

at

the

[...] of some loss of thinking powers he would have been a «I have so poor a metaphysical & c. always bother me

of equilibration

and make everything less clear»; «with the exception of special points is too hard for me».

general

doctrine;

Tudo isto foi escrito em cartas entre 1680 depois da publicação da Origem. Parece, portanto,

for his style

e 1874, portanto que agradou espe-

cialmente a Darwin a expressão «sobrevivência dos mais aptos», deixando talvez influenciar-se pela sua tendência para personificar a natureza ”, pendor que de certo modo

contraria a sua filosofia materia-

lista e a primazia que atribuía ao acaso na evolução e na constituição do mundo, na produção de ordem, negando que o livre-arbítrio fosse uma

característica

juventude,

humana,

e isto desde

depois da viagem a bordo

Também

os tempos

das

do Beagle

suas

reflexões da

(v. Manier,

1978).

deve ter tido alguma influência na escolha da expressão

supracitada a sua posição de classe e o clima de liberalismo económico

e de livre concorrência económica. Mas isto são meras conjecturas quanto ao determinismo da sua opção spenceriana. Em todo o caso, a ideia de «sobrevivência dos mais aptos» já era utilizada num contexto social como uma trivialidade, não só por contemporâneos de Spencer

e de Darwin, como por autores precedentes, não com essa expressão literal, mas na tradução banal que os mais fracos são vencidos e os mais fortes recebem o prémio do seu esforço. Herbert Spencer introduziu o conceito na sociologia, que com Darwin entrou na biologia, que o

ligou ao conceito de luta pela existência na natureza e lhe deu a categoria

agente

de

teoria

científica,

de transformação

identificando-o

das espécies. 190

à

selecção

natural

como

adia

H. Spencer's

a Cià ad

I did not even understand

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —I

Para Douglas Futuyma (1983), a economia capitalista não precisou de Darwin. Segundo o mesmo autor (e de muitos outros), o conceito de selecção natural tem as suas raizes nas teorias económicas de Adam Smith e de Thomas Malthus, e os economistas têm razão quando dizem que a biologia descobriu afinal o que eles já conheciam há muito. O evolucionismo darwiniano apenas serviu de justificação para logias políticas e sociais, dando a possibilidade de afirmar que

ideoessas

crenças têm a força de uma lei natural. Pode perguntar-se se Darwin, quando

intuiu

o princípio da selecção natural, não se limitou, afinal,

a aplicar à natureza viva, considerada (conforme à ideologia) em constante

luta

pela

existência,

uma

ideia

emitida

por

outrem

e, além

do

mais, um conceito vulgar na economia liberal e no senso popular, ideia que ele teria o mérito de desenvolver como um conceito científico.

Antes de Darwin e de Wallace, outros autores já haviam manifestado ideias que podem considerar-se análogas ao conceito de selecção natural. Na realidade, Darwin teve precursores, como Towsend, Wells (1813 e 1818), Matthew (1831), que tinham deduzido ou aplicado já os conceitos de concorrência e de selecção dos mais aptos em casos

particulares, não citando os próprios clássicos, que, como Aristóteles, tiveram a intuição do princípio de selecção natural (v. adiante). É digno de registo o seguinte trecho da autoria de Patrick Mathew, que já apresenta objectivos de generalização e que, sem' qualquer dúvida, acentua com clareza a noção e a sua importância, e isto muito

antes de ela ter surgido no cérebro de Darwin:

|

$5º

As the field of existence is limited and preoccupied, it is only the hardier, more robust, better suited to circunstance

individuals, who are able to struggle forward to maturity, these inhabiting only the situations to which they have superior adaptation and greater power of occupancy than any other kind;

weaker and less circunstance-suited being prema-

turely destroyed. This principle is in constant action; it regulates the colour, the figure, the capacities and instincts; those individuals in each species whose colour and covering are best suited to concealment or protection from enemies, or defence from inclemencies or vicissitudes of climate, whose figure is best accomodated to health, strength, defence and support;

whose capacities and instincts can best regulate the physical energies to self-advantage according to circunstances — in such immense waste of primary and youthful life those only come forward to maturity from the strict ordeal by which nature tests their adaptation to her standard of perfection and fitness to continue

their kind by reproduction. 191

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

Não deixa de ser fascinante que o naturalista Alfred R. Wallace (1823-1913), muitos anos mais tarde (enquanto Darwin mantinha inéditos os seus manuscritos sobre a teoria da selecção natural), noutro

extremo do planeta, tenha chegado às mesmas conclusões que Darwin (desconhecendo-as) pela leitura do mesmo livro de Malthus e precisamente para matar o tempo, numa ocasião em que estava doente e febril

com um ataque de malária. De repente viu também a solução («then it suddenly flashed upon me that...») e, sendo de uma natureza diferente de Darwin, logo que o ataque lhe deu tréguas, escreveu o seu ensaio em dois dias. Mais adiante voltarei a este ponto. A ideia de selecção natural parece ser antiga. Aristóteles havia-a esboçado nas suas Physical Auscultationes. E alguns autores do século xvilI tinham-na também entrevisto, sendo justo lembrar Maupertuis, que a formulou de forma nítida em 1741. À ideia geral era a de que havia eliminação de incapazes. E não se foi mais longe. O desenvolvimento do conceito como factor de mudança não foi possível porque a isso se opunha a ideia da harmonia estática da natureza conforme ao paradigma clássico da eternidade e imutabilidade do mundo, fixadas por ordem

divina,

conceito

em

oposição,

portanto,

com

a autoridade

dos

textos bíblicos. Além disso, o desenvolvimento da biologia e da geologia era ainda insuficiente para o impor como agente de transformação ao

longo do tempo. Nem o passado tinha na mente dos homens o longo «recuo» necessário que mais tarde no século XIX a geologia veio a revelar, nem os factos e observações eram em quantidade e peso para suscitar ideias

novas

e clarificadoras.

Além

disso,

na

sociedade

ainda

não

se

tinham operado as transformações necessárias para que se formasse um terreno favorável à germinação e desenvolvimento de conceitos de mudança devida a causas materiais. Uma economia rural e aristocrática,

dominada pela religião, não era nada favorável a pensar em termos de evolução e a impor uma ideia de tempo e de historicidade, conceitos naturalmente ligados. No século xIx, porém, a ideia da selecção natural estava, por assim

dizer, implícita nas sima transformação caracterizaram esta e sociólogo Herbert

novas relações e estruturas da sociedade em rapidiísindustrial, com todas as violências e misérias que fase histórica de profunda instabilidade. O filósofo Spencer escrevera, muito antes de aparecer a público

a Origem, de Darwin, que a selecção era a força reguladora da evolução

social e que a competição entre os homens concorria poderosamente para o seu progresso. Foi a Malthus colher a ideia de selecção, e toda a sua filosofia da evolução exprime o optimismo da época, um compromisso com a Igreja e as forças conservadoras (era necessário harmonizar o passado com o abalo social provocado pela industrialização), confiança

absoluta no progresso e nas ciências que o promovem, e no aperfeiçoamento humano que dele decorre.

| 192

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — 1

O conceito de selecção natural tem, a meu ver, a aparência de uma verdade evidente, que não exige demonstração *. Subjaz em toda a análise superficial da natureza e da sociedade fundada numa filosofia de mudança

e de concorrência. Darwin

teve, porém, o enorme mérito de

utilizar esse truísmo como chave teórica que lhe ia permitir criar uma obra inigualável como manancial de factos, de sugestões e de total revolução da biologia, edificando a genial síntese científica que é o transformismo

darwiniano.

Toda

a sua obra é um

monumento

admirá-

vel à ciência e ao espírito humano. É provável que todo o trabalho aprofundado e livre de naturalista tivesse mais tarde ou mais cedo de chegar à noção (ainda que de forma não explicitada) de selecção natural. Não, talvez, o naturalista arqui-

vista e de gabinete, mas aquele que projectava a reflexão sobre vastas e variadas colecções, e sobretudo sobre uma grande massa de observações feitas na natureza, com experiências pessoais directas de trabalho de campo

em

regiões

propícias

Foi este o caso de Darwin

e diversas

do

ponto

de

vista

geográfico.

e de Wallace, entre os quais houve o mais

perfeito paralelismo de ideias no que respeita à teoria da selecção natural («I never saw a more striking coincidence», escreveu Darwin a

Lyell). Mas para que tal acontecesse era sobretudo necessário um ambiente social propício (em activa transformação, como referi) que não existia pela mesma época no resto da Europa, se compararmos passava

se

o que

no

continente

com

o processo

social

em

curso

na

Inglaterra. Além de que, em França, a forte reacção religiosa que se seguiu à Revolução Francesa foi um obstáculo à aceitação do evolucionismo, ao desenvolver do lamarckismo, a que devemos juntar a forte oposição

de Cuvier,

fixista, como

se sabe, mas, por outro lado, homem

renovador pelos seus notáveis trabalhos de anatomia

Outros

estudiosos,

não

naturalistas,

leram

comparada.

igualmente

Malthus

e talvez fossem até mais tocados pela noção de selecção quando tinham

cc

a expressão «sobrevivência dos mais aptos», que Darwin depois adoptou. Mas não foi Spencer o inspirador da teoria da selecção natural, visto que Darwin lançou as bases fundamentais desta última entre 1837 e 1840, muitos anos antes do aparecimento da obra onde o primeiro lançou a expressão que ficou célebre. A ideia de delimitação dos quantitativos populacionais, devida a concorrência, com as trágicas consequências decorrentes, era uma ideia que haveria de nascer numa sociedade em que os novos meios de pro-

*

CON

O=

alimentado pela selecção dos mais capazes, tendo inventado, como disse,

> dp Te

preocupações sociológicas, dado o vasto campo de observação que constituía a Inglaterra de então. Foi o caso de Herbert Spencer e da sua escola, autor que antes de ser publicada a obra de Darwin, e independentemente deste, defendeu um evolucionismo progressista da sociedade

dução Bibl.

e de relações

Univ.

49 — 13

económicas

impunham 193

a competição

como

um

dos

DA

GERMANO

FONSECA

SACARRÃO

guesa — cuja ambição era explorar (e dirigir) o mundo e criar riqueza,

e colocar a ciência, a tecnologia e as descobertas ao serviço desse fim supremo — não parecerá estranho que a ideia de competição andasse no ar, que surgisse nos espíritos menos opacos ou mais ousados. E mais:

que essa competição fosse observada na natureza (vista agora com outros olhos) e que se pensasse que as sociedades humanas fossem movidas pela «grande luta pela existência», com o seu cortejo de misérias, onde a fome, a doença e as guerras eram «travões» inevitáveis ao cres-

cimento demográfico. Foi em tal contexto social que Darwin desenvolveu as suas ideias e é legítimo pensar-se que foi por ele influenciado. Todavia, as conclusões de Malthus não agradaram a diversos políticos, economistas e teólogos, e mesmo alguns biólogos chegariam a afirmar que elas não se aplicavam à espécie humana. O próprio Darwin era da opinião de que essas conclusões respeitavam mais a outros organismos do que ao homem. j Se parece inegável que Darwin utilizou diversas ideias de Malthus, a verdade é que as desenvolveu de forma muito diferente. Darwin introduziu a ideia de melhoria com a mudança, de progresso imediato, onde Malthus via uma fatalidade inerente à trágica condição humana, dé luta pela existência, cujos remédios para ele pareciam ser sobretudo de ordem moral. Darwin reflectia a ideologia burguesa progressista.

A luta pela vida conduz transformam

e

fortes, melhor morrem.

Houve,

a selecção

aperfeiçoam

ajustados, assim, em

natural, pela

constantemente,

triunfam

em

e sobrevivem,

Darwin,

com o progressivismo do século em

um

optimismo

qual

as espécies se

que

os

indivíduos

enquanto que

que viveu e com

os

débeis

está de acordo

o meio

imediato

em que foi criado. Darwin possuía inegável génio («Newton da história natural», como lhe chamou Wallace), mas a sua obra espelha, também,

o clima

intelectual

e socioeconómico

do seu: tempo,

e que

gradual

mente o influenciou. Viveu na melhor época para produzir a sua obra. Se vivesse noutro tempo, ela não seria a mesma, nem o génio de Darwin.

se teria manifestado em todo o seu vigor, Julian Huxley especulou, há dezoito anos, sobre este problema. Se Darwin tivesse nascido um século mais cedo (em 1709), ou um século mais tarde (em 1909), teria sido,

respectivamente, segundo Huxley, um bom naturalista amador (mas sem significativa influência, quer no plano das descobertas de factos fundamentais, quer no do pensamento científico), ou um ecologista profissional de certo relevo, No primeiro

não chegara para a sua obra, no segundo 194

caso, o tempo

histórico ainda

caso ele já tinha sido ultra:

estorma mal Yada dt

a contemplação de um mundo estático e harmónico onde não se intervém. Mas com a revolução industrial e o predomínio da classe bur-

alho

seus agentes fundamentais de acção. Nas sociedades de mudança lenta, rurais c feudais, toda a estrutura mental da sociedade está voltada para

“BIOLOGIA

passado.

O

que

houve,

a meu

E

SOCIEDADE — 1

ver, em

Darwin, foi uma

harmonia

per-

«sobrevivência

dos

feita entre o génio, a posição de classe e a época. A mais

ideia aptos»

original surge,

de

assim,

selecção repito,

natural como

ou

um

de

conceito

truístico-tautológico, e julgo ser muito curioso que simplista, que se repete sob forma diferente (quem

de

certo

modo

um tal conceito há-de sobreviver

senão os mais aptos?) se tenha transformado numa teoria de profundissimas consequências, como foi a doutrina darwinista. Esta utilização

de uma comprovação banalíssima, na aparência, de que quem sobrevive são os sobreviventes, aplicando e desenvolvendo essa ideia, demonstra a grande superioridade de Darwin e os caminhos caprichosos da ciência

quando abertos por indivíduos invulgares.

As ideias de Darwin sobre a selecção natural e os factos acumulados

demonstrativos do processo evolutivo, que expôs no seu livro clássico, assim como mais tarde no livro The Descent of Man (1871), abalaram profundamente o sistema de valores até aí dominante e a mentalidade dos contemporâneos e continuadores, nas suas atitudes perante a socie-

dade e a natureza humana. Foram poderosos estímulos para se encarar o mundo e o homem

de forma inteiramente diferente. Em boa verdade,

tudo se propiciava para isso, e, se não existissem essas obras, o processo

de transformação

mental

induzida

dar-se, ainda e a filosofia resolutamente e Darwin, os

da sociedade

pelas

novas

não

deixaria de ocorrer, a revolução

estruturas

socioeconómicas

haveria

de

que provavelmente com outro ritmo e outra velocidade, evolucionista, como base de visão do mundo, penetraria no pensamento sociológico e biológico, mesmo que Marx dois grandes promotores do novo paradigma, não tivessem

existido.

b) Biologia sem

Darwin

Vale talvez a pena ensaiar uma breve especulação. Sem Darwin, que forma teria hoje a biologia? Sem dúvida que o transformismo acabaria por triunfar. O evolucionismo devido a causas materiais teria provavelmente surgido como teoria científica, já que os tempos estariam mais cedo ou mais tarde suficientemente amadurecidos para se chegar, por conjugação de esforços, a convergências de ideias e de observações,

em suma, a conclusões de certo modo similares às de Darwin e de Wallace. A acumulação de factos e a sua interpretação teriam resultado de um trabalho mais colectivo, e não apenas o produto quase exclusivo de um Darwin um tanto isolado. A ideia de evolução estava historicamente determinada no sentido

de que a paleontologia, a anatomia comparada e a embriologia seguiriam o seu curso, como

fruto do esforço de muitos homens, para não referir 195

GERMANO

outras

disciplinas.

DA

FONSECA

SACARRÃO

À citologia, a genética, a ecologia, em

breve se jun-

ao postulado da objectividade, com rejeição das essências e de uma intencionalidade suprema na natureza. No que respeita à parte mais importante de todo o edifício explicativo darwiniano — a teoria da selecção natural —, é possível que o conceito, a elaborar-se, não tivesse a força científica que lhe conferiu Darwin e que se traduzisse por expressões mais neutras, mas não menos objectivas, talvez mesmo mais. Creio que acabaria por impor-se o conceito de reprodução diferencial, que

traduz

o processo

selector,

como

veio

a reconhecer-se

dic de

quais seriam feitas doravante recorrendo a causas materiais, conforme

o

tariam ao vasto conjunto das conquistas da biologia. O positivismo na ciência biológica logo haveria de impor-se e, consequentemente, obter-se-ia o total afastamento da teologia das explicações dos fenómenos, as

moderna-

mente.

A biologia sem Darwin

a primazia

ao conceito

poderia, portanto, não ter dado de começo

de selecção,

embora

incluísse

uma

referência

a esse princípio. Poderiam até alguns biólogos anglo-saxões inspirar-se em Herbert Spencer, e a expressão «sobrevivência dos mais aptos» obter certa importância. Mas com ou sem a expressão «selecção natural» talvez que a biologia sem Darwin pusesse em evidência outros processos explicativos e que o evolucionismo científico se desenvolvesse mais liberto de uma referência constante ao seleccionismo. Mas não estou

muito convencido deste facto. Afinal, se Wallace descobriu a selecção natural independentemente de Darwin, também outros zoólogos o poderiam fazer º. Por outro lado, os princípios e valores da economia liberal burguesa, que influenciariam a génese do darwinismo, não deixariam, na ausência de Darwin, de estar presentes na elaboração de uma teoria

da mudança, onde a competição, por esse facto, seria, provavelmente, o princípio fundamental. Por isso penso que a teoria da evolução incluiria, em qualquer caso, o conceito de reprodução diferencial, mas provavelmente a fazer parte de uma doutrina onde outros factores teriam um lugar importante, em que o ambiente seria considerado como o agente da reprodução orientada neste ou naquele sentido, portanto onde as

condições exteriores agiriam em variações

hereditárias,

ou, melhor,

interacção e interpenetração com as com

a totalidade

do organismo

em

desenvolvimento. Mas, dado o tipo de cultura e a estrutura económica da sociedade, a «lei do mais forte» procuraria suporte e justificação na biologia, mas na ausência das expressões metafóricas «selecção natural», «sobrevivência dos mais aptos», etc., a invadirem a ciência biológica,

é perfeitamente legítimo admitir que o esteio fosse um tanto frágil comparativamente à enorme força que lhe foi concedida pelo darwi-

nismo tradicional, força que tenta perdurar, como o demonstra a grande ambição sociobiológica (v. o cap, vil e meu 1982), A teoria científica obteria, talvez, maior objectividade e mais clareza, enquanto as ideolo196

: vêt a

j

t

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —1

gias perderiam essa preciosíssima caução, da qual se têm largamente servido à revelia de Charles Darwin, que não pode ser responsabilizado pelos abusos e distorções feitos à sua teoria, na forma das suas aplicações e projecções na sociologia e na política. Estas considerações em nada diminuem o mérito da revolução darwiniana, a mais profunda e fundamental

de

todas

as revoluções

intelectuais da história da humanidade.

Numa sociedade com outras raízes culturais, com outra história, é quase certo que o darwinismo, se acaso nascesse, não se desenvolveria. Mas

não, creio eu, numa sociedade empresarial e competitiva, onde o oportunismo e o egoísmo são filosofias e conceitos científicos. E talvez que a ideia spenceriana da «sobrevivência dos mais aptos» acabasse por ser captada pelos naturalistas e cientificamente consagrada.

2.

Aspectos e sua

da teoria

da selecção

natural

só introduziu

a ideia, hoje

unanimemente

tradicionais

modernização

Charles

Darwin

não

aceite nos meios científicos, de que a evolução é um processo real, como pela sua teoria da selecção natural deu uma interpretação racional das causas da transformação dos organismos, que constitui hoje o mais

sólido e fecundo princípio unificador da biologia. À importância da sua teoria foi tal que modificou totalmente a biologia e tudo o que respeita

ao homem e à cultura do nosso tempo.

A estrutura lógica da selecção natural baseia-se em factos indis-

cutíveis e em inferências que se impõem se considerarmos com lucidez

e sem preconceitos os seus pontos fundamentais. As proposições básicas da doutrina são surpreendentemente simples e é talvez a sua patente e iniludível materialidade que fez dela uma grande heresia. Essas proposições podem ser distribuídas pelos pontos seguintes:

1)

Os

organismos produzem mais descendentes do que aqueles que eventualmente podem sobreviver. Como o número de indivíduos de cada espécie de organismos é aproximadamente

2)

constante,

deve

haver, por conseguinte,

em

cada

geração, uma mortalidade elevada. Os indivíduos de cada espécie não são idênticos entre si. Os indivíduos variam, mostram a existência de variações em todos

os seus

caracteres,

em

múltiplas

direcções,

e estas

variações são, em grande parte, herdadas pelos descendentes. Portanto: grande número de descendentes, todos diferentes uns dos outros. 3)

Em

consequência

do facto precedente,

alguns

variantes

serão,

em média, melhor sucedidos do que outros na competição 197

SACARRÃO

FONSECA

DA

GERMANO

pela sobrevivência, e os progenitores (que vão dar origem

à geração imediata) serão naturalmente seleccionados entre aqueles indivíduos da espécie que exibem variações que permitem uma adaptação mais efectiva às condições do ambiente. E estes indivíduos sobrevivem e reprodu-

zem-se. 6d 4) Como as semelhanças hereditárias entre pais e filhos são um lam

que

segue-se

facto,

por selecção

as

variações

nas

subsequentes

gerações

nas

natural

se: acumu-

favoráveis

populações das espécies e a adaptação assim realizada pelos progenitores aperfeiçoa-se sucessivamente por transformações graduais no decurso dessas gerações, e eventual mente novas variedades e novas espécies se formarão a partir das preexistentes. As como

duas

primeiras

proposições

foram

realidades, mas as duas últimas eram

reconhecidas deduções,

por

Darwin

inferências sem

si

Etuscse

ide,

base empírica testável. Simplesmente, a coerência dessas hipóteses era tal que todo o mundo vegetal e animal com a sua enorme diversidade aparecia a nova luz. O seu valor explicativo era enorme. Com o posterior avanço da biológia, em particular da genética, e com as inúmeras

observações e experiências que têm sido empreendidas, essas proposições têm toda a coerência e legitimidade, correspondem a algo de real, ainda

que outros factores de transformação evolutiva tenham sido propostos ou revelados.

A base do pensamento de Darwin é a de que as formas modernas de seres vivos descendem,

por transformações

sucessivas e graduais, de

formas preexistentes que, por sua vez, foram precedidas por outras formas ancestrais, num vasto movimento não teleológico, sem propósito definido,

sem

sem relação animais.

plano,

directa

onde

com

as variações

dos

as necessidades

indivíduos

imediatas

são

acidentais,

das plantas e dos | à

A teoria darwiniana foi mais tarde (já neste século, sobretudo) corrigida em muitos aspectos e ampliada substancialmente noutros. Se q conceito

básico

foi

selecção

natural

é, em

estabelecido muitos

por

Darwin,

aspectos,

a forma

diferente

da

moderna

clássica.

da

Mas

a

herança fundamental perdura, a filosofia que lhe está inerente conti» nua, e as consequências profundas de tal revolução cultural e científica ainda não estão esgotadas. Longe disso. A forma actual do darwinismo . é conhecida pelo nome de teoria sintética, que reúne e sintetiza dados . e evidências provenientes das mais diversas disciplinas, donde e sua força

explicativa

e a sua

capacidade

de

renovação.

À

teoria

também

é conhecida por neodarwinismo: (aliás impropriamente) e simplesmente

por teoria biológica da evolução. As ideias originais de: Darwin 198

eram

|

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —I

insuficientes para explicar cabalmente a origem de novas espécies. A origem

das variações e a natureza da hereditariedade eram no seu tempo

ignoradas. À teoria sintética é, porém, a herdeira do darwinismo tradicional, que ela continuou, desenvolveu e corrigiu à medida que foram surgindo novos factos e novas ideias. Na sua forma simples e esquemática, a teoria moderna sustenta que a evolução resulta sobretudo da acumulação de pequenas variações genéticas (mutações, recombinações) que são distribuídas e orientadas principalmente pela selecção natural. A correcção fundamental incidiu sobretudo no que respeita às fontes e à natureza da variação, à base física da hereditariedade, aos seus mecanismos e suportes materiais, à sua frequência e transmissão. E não é pouco, ainda que não fosse só nisso que foi emendada. O que é extraordinário é que Darwin edificasse uma teoria científica de tamanha envergadura e numa época em que se desconheciam as leis da hereditariedade, em que nada se sabia sobre cromossomas e os genes, como suportes e determinantes dos caracteres hereditários, etc. Nada se sabia quanto à natureza das variações, que umas são hereditárias (mutações) e outras não são transmissíveis aos descendentes, respostas

e dependem

relacionadas

com

em

regra

influências

de

as condições

externas.

do

ambiente,

Estas e muitas

são

outras

aquisições, como as descobertas paleontológicas, a integração da selecção

darwiniana

com

a genética mendeliana,

dando origem a uma

nova

disciplina, a genética das populações, e o desenvolvimento de múltiplos sectores da biologia, deram a forma actual à teoria biológica da evolução. A adesão de Darwin, mais acentuadamente para o fim da vida, ao princípio da hereditariedade dos caracteres adquiridos resultou no fundo da ignorância do seu tempo acerca da origem e natureza das variações. A cedência que Darwin fez a tal princípio em detrimento da selecção pareceu residir também no seu desejo de subtrair a teoria às

críticas de que era alvo. À hereditariedade biológica dos caracteres

adquiridos era um velhíssimo conceito, que explicava a adaptação em moldes menos heréticos do que a selecção natural: a adaptação nasce do próprio organismo, que se esforça por se ajustar às solicitações e alterações do ambiente, de modo que o organismo se modifica no bom sentido, devido a causas que estão em si mesmo. Depois de um certo eclipse do darwinismo tradicional, a teoria sintética da evolução teve também o mérito de mostrar o pleno valor da mensagem fundamental de Darwin, que a evolução é devida a causas materiais, que não traduz progresso para um dado fim, não obedece a um plano. O movimento unificador teve a sua consagração e o seu ponto mais alto no final da década de 50, em 1958, ano em que se celebrou

o centenário

das

duas

comunicações

simultâneas

de Darwin

e de Wallace sobre a selecção natural. Às críticas que hoje suporta, longe de evidenciarem o declínio absoluto da teoria, como por vezes 199

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

se pretende, mostram, pelo contrário, o seu pleno vigor e a sua enorme

riqueza, mesmo que, e é isso que provavelmente acontecerá, venham a descobrir-se novos factos e se formulem novas ideias que retirem à doutrina moderna grande parte da sua importância. As reacções à teoria da selecção natural constituem

uma

necessi-

dade imperiosa para o progresso da ciência. O darwinismo, na sua forma actual, afasta-se enormemente em numerosos aspectos da sua feição original. Mas o estudo da evolução continua a seguir o impulso inicial que lhe imprimiu o eminente naturalista e as investigações modernas mostram que era correcta a linha geral da sua doutrina no que respeita à origem e evolução das espécies. Depois de Darwin não houve mais dúvidas nos círculos científicos sobre a realidade do processo evolutivo. É sobre as suas causas que existem divergências, dúvidas, hesitações. A grande maioria dos biólogos adere, porém, inteiramente à teoria da selecção natural e continua-se a trabalhar intensamente na esperança de a corroborar ou refutar. Entretanto, o grande princípio unificador da biologia continua a ser a teoria da evolução por selecção natural. Até que Darwin impôs à comunidade científica a convicção do transformismo, o conceito de selecção natural permaneceu uma noção um pouco obscura, vulgar, de certo modo intuitiva; e alguns autores se lhe referiram, como atrás se mencionou, sem todavia aplicarem a

ideia de forma explicitada como processo de mudança, como causa de adaptação evolutiva. Aliás, a noção estava também implícita na filosofia

popular, na sabedoria dos simples. O povo já sabia que os fracos estão em inferioridade, que a lei é a do mais forte, que Deus selecciona, que os criadores seleccionam, que os animais mais vigorosos e dominadores

vencem os mais fracos, etc. À «grande ideia» nasceu em Darwin quando lhe ocorreu utilizá-la como processo de origem e evolução das espécies, como

um

processo materialista de mudança

que veio substituir a sabe-

doria suprema com que Deus presidia ao destino das espécies. Converteu uma verificação banal numa complexa teoria científica. Ao fazê-lo, pensou afastar definitivamente da biologia toda a metafísica religiosa, toda a influência do espiritualismo. a) Modernização e críticas Só há relativamente pouco tempo é que se verificou que o conceito

de selecção mesmo

natural

processo

abrange

geral,

Este

diversos ponto,

aspectos

ainda

que

bem de

distintos

grande

não pode ocupar a nossa atenção aqui. Modernamente,

de

um

importância,

pode traduzir-se

o processo da selecção natural dizendo que é um mecanismo de reprodução diferencial (ou preferencial) de variantes genéticos. Em certos ambientes,

alguns

destes variantes

genéticos, 200

assim

como

os caracteres

BIOLOGIA por

eles

determinados,

são

E

mais

SOCIEDADE —I úteis

aos

indivíduos

que

os possuem

do que o são outros variantes. E os organismos possuidores das variações

de maior valor adaptativo deixam, em regra, mais descendência do que os organismos que têm variações de valor adaptativo inferior, em relação ao mesmo ambiente. O resultado será um aumento da frequência das primeiras

nas

sucessivas

gerações

e, eventualmente,

a sua

difusão por

toda a população que ocupa esse ambiente particular. É um processo de reprodução preferencial e de sobrevivência diferencial dos organismos

que constituem uma população, um meio de estatisticamente se exerçer a eficiência

reprodutora

a favor dos indivíduos que por acaso são

suidores das variações genéticas com maior valor adaptativo (cf. Ayala, 1975). Mas a selecção natural está longe de ser um processo unicamente estabilizador ou criador, mantendo o tipo médio da espécie, ou inovando

novas estruturas. É também um processo eliminador que conduz à extinção. E não têm conta o número de variedades, de espécies e grupos de espécies que têm desaparecido no decurso da história da vida. As adaptações são, em regra, estados precários, imperfeitos, e a quase totalidade dos ensaios adaptativos têm conduzido a becos sem saída, quanto mais não seja pela própria instabilidade dos ambientes. Supõe-se casos a selecção natural se atrasa, por assim dizer,

que em numerosos

em relação às mudanças e consequentes pressões do ambiente, o que

poderá ser uma causa importante das extinções de espécies. Mas não a única, nomeadamente no que respeita às maciças destruições de diversos

grupos constituídos por numerosas espécies, para as quais terá de haver causa

uma

nenhuma A

comum

e se

têm

proposto

várias

teorias,

se

fixar

sobretudo

com

sem

como plenamente satisfatória.

teoria

da

selecção

natural

tem

sido criticada,

as acusações de circularidade e de impossibilidade de ser empiricamente testável. Dizer que a selecção natural é a «sobrevivência dos mais aptos» é de facto uma tautologia. Mas é a definição que é tautológica, não a doutrina que corresponde provavelmente a um processo bem real. Para David Hull, a acusação de tautologia é o mais sério e persistente criticismo que tem sido, ao longo da sua história, lançado sobre o princípio da selecção natural, De facto, dizer que «o adaptado» sobrevive é uma tautologia porque «estar adaptado», no sentido evolucional, é ter uma

eficiente capacidade de sobrevivência e de reprodução !º. Quem há-de, pois, sobreviver senão os mais adaptados? Sobrevivem os sobreviventes! Definir selecção natural como exprime

«a sobrevivência

sendo a «sobrevivência dos mais aptos»

dos que

sobrevivem»,

o que é, na realidade,

uma descarada tautologia. Estas críticas têm sido feitas sobretudo por filósofos da ciência, mas o acordo é hoje praticamente unânime entre os biólogos para se concluir que as definições de selecção natural não

têm necessariamente de padecer de circularismos. Há muitas definições 201

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

do processo. E se elas são úteis para a comunicação, não é com elas, naturalmente, que se submete uma hipótese ou teoria à prova do erro. A sobrevivência é obviamente um resultado de adaptação, mas não

é necessariamente a própria definição de adaptado. Não há dúvida de que há características nos indivíduos de uma população que serão mais favoráveis do que outras em face de modificações

do ambiente. E esta

realidade determina diferentes capacidades de ajustamento ao ambiente, e são estes diferentes valores adaptativos das variações que acidentalmente ocorrem que determinam diferentes valores da sobrevivência e, portanto, diferenças na capacidade e na direcção da reprodução. John Maynard Smith diz, com razão, que lhe parece absurdo proclamar que a teoria é tautológica, ainda que esteja pronto a admitir que muitas vezes é formulada tautologicamente. Não são de facto as definições que atestam o valor de uma teoria, que garantem o seu valor explicativo, e muito menos os resultados positivos resultantes do contraste experimental a que é submetida. Uns indivíduos estão melhor adaptados do

que

outros.

Diversas

experiências

e

observações

permitem. pôr

em evidência caracteres mais adaptativos ou menos adaptativos num conjunto de indivíduos que ocupam dado ambiente, podendo acompanhar-se

o seu

destino

e a sua

frequência

estabelecer critérios de adaptabilidade

na

população.

independentes

Isto

permite

da sobrevivência

e da eficácia reprodutora. E quando se define selecção natural sem ser por critérios de sobrevivência ou de eficácia reprodutora, a tautologia desaparece. Os biólogos têm apontado e utilizado caracteres que supõem,

a priori, adaptativos; e a experiência e a observação vieram corroborar

os seus pressupostos como válidos.

|

de

Este último ponto conduz-me à outra crítica que é a não testabilidade

da

bases

selecção

natural.

experimentais

da

Está

fora

selecção

da

natureza

natural.

deste

Mas

é

hoje

livro

uma

expor

as

questão

assente pela generalidade dos biólogos que a teoria da selecção natural pode

ser

sujeita

a testes

empíricos,

e existem

diversas

técnicas para

demonstrar experimentalmente a selecção natural em acção, quer em laboratório, quer em condições naturais, Sempre que se conseguem. as

técnicas apropriadas, e que os exemplos

estudo,

tem

sido

demonstrado

que

escolhidos são favoráveis. ao

alterações

no

ambiente

físico

ou.

biológico modificam a relação organismos/meio e consequentemente as

probabilidades para reprodução e sobrevivência. Recentemente

diversos autores avançaram

a teoria de que grande

parte das modificações evolutivas são devidas a processos de acaso à nível biomolecular. É a teoria neutralista da evolução molecular, Significa que os genes podem difundir numa população ou desaparecer por razões de puro acaso e não devido ao seu valor selectivo, que seria nulo: Por muito aliciantes e importantes que sejam os modelos que suportam. a teoria

neutralista

(que,

aliás, não 202

nega

a acção

da selecção. natural

BIOLOGIA a nível

organísmico

E

SOCIEDADE —1

e comportamental),

os resultados

de experiências

conduzidas na natureza e em laboratório não lhe são muito favoráveis e, em

diversos

casos, evidenciam

incompatibilidade

entre os resultados

obtidos experimentalmente e as previsões da teoria neutralista. Todavia, tem

suscitado

numerosas

investigações,

exactamente

para

com

elas

se

submeter à prova empírica se a evolução das proteínas evolve por processos estocásticos, o que tem tido hipótese da selecção natural, quer

a enorme vantagem de reforçar a a nível molecular, quer a outros

níveis.

O valor explicativo da selecção natural é tão vasto e aborda tantos níveis de organização que só por isto o conceito tem uma extraordinária legitimidade. Tudo o que se conhece sobre os seres vivos é consistente com o darwinismo moderno ou teoria sintética. Isto não significa que

ele seja a última palavra, que não haja outros factores em acção, inúsem

interrogações

meras

a reve-

satisfatória, que não venham

resposta

lar-se outros processos tão ou mais importantes do que a selecção natural, que

o domínio

do humano

não comporte

outras complexidades,

a

que a teoria ainda não deu, ou não pode dar, resposta, etc. Sobretudo, falta

da selecção

a importância

qual

conhecer

natural

na

natureza,

e não que se duvide que ela exista. Falta conhecer, por exemplo, qual a

fracção da variabilidade genética observada que é mantida pelo jogo da (1974), uma das grandes autorida-

selecção natural. Richard Lewontin

des nestes

selection goes

razão, dizendo:

com

interroga-se,

problemas,

much

«How

in nature?»

Se a teoria

da

selecção

natural

fosse falsa, seria provavelmente

fácil refutá-la pela observação do que são e do que fazem os organismos !!. E poderiam

ser realizadas experiências com o mesmo

objectivo.

Nem todos os autores estão de acordo sobre este ponto fundamental,

mas

não

são

alguns

e, recentemente,

muitos,

dos

mais

cépticos

têm

recuado nas suas posições. Mas estas críticas à selecção natural devem ser tomadas em devida conta, ainda que sejam sobretudo não-biólogos, como o filósofo Karl Popper, que se mostram mais críticos, dizendo, por exemplo, que a adaptação e a selecção são vacuidades. Mas Karl Popper não está muito bem informado sobre biologia, não é um biólogo, e este facto não lhe permite ter uma visão correcta dos factos. Os não-biólogos têm tendência a preocuparem-se com palavras, com conceitos abstractos, com generalidades, com definições, quando penetram na

área da biologia, que não conhecem ou conhecem mal. Os mais cépticos dizem que não sabem se a teoria é verdadeira ou falsa e Lewontin já A

meu

inteiramente

ver,

a

falsa.

deira. Talvez o mais

pensam,

assim

esteve entre os que é menos extrema 2,

teoria

É

não

muito

é

nem

provável

interessante

actualmente

mas

inteiramente

que

a sua posição

verdadeira

seja parcialmente

nem

verda-

seja o facto de a teoria da selecção 203

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

natural possuir uma estrutura lógica que lhe dá sempre a faculdade de ser possível, quer dizer, de ser um fenómeno ocorrendo na natureza. Se não é observável, é porque os métodos ou as circunstâncias o não permitem. E nesta óptica tudo poderá ser então explicável em termos de selecção. Isto pode fazer crer que a teoria seja impossível de refutar. Por outro lado, a sua tenaz resistência a todos os ataques pode

ser con-

siderada como uma demonstração da sua validade e vigor. Recentemente parece ganhar força a convicção sobre o valor da sobre a sua realidade (mensurável) na natureza Endler, 1986: ref. in Jones, 1986).

3.

Algumas consequências científicas do evolucionismo darwiniano

selecção natural e (v., por exemplo,

e filosóficas

O materialismo filosófico foi sempre mais temido, mais repudiado e combatido do que a ideia de evolução. É ele o grande inimigo. Assim aconteceu na época em que viveu Darwin, assim acontece hoje também.

Com o evolucionismo há sempre a possibilidade de estabelecer compro-

missos, fazer atenuações, de lhe introduzir mistério, desígnio, inspiração divina.

diria

Mas

mesmo

opõe-se

com

o materialismo

insuperáveis,

à teleologia,

as

porque

dificuldades

não

aos propósitos

são

consente

muito

factores

transcendentes,

aos

maiores,

espirituais,

«élans vitais»,

aos vitalismos de todas as cores. Há quem proponha, é certo, filosofias vitalistas em que a matéria é divinizada, e essa foi, por certo, a base da

filosofia de Teilhard de Chardin, a qual sem dúvida lembra a metafíisica de Bergson, com a sua espiritualização da matéria, o élan criador

que a atravessa e a modela. Mas

religião e materialismo

rejeitam-se

mutuamente, a oposição é absoluta e qualquer ensaio de compromisso conduz inelutavelmente à espiritualização, ao ultra-humano, ao sagrado, e acaba por surgir, mesmo quando dissimulada, a tradicional dualidade

matéria-espírito, Ora

que o materialismo filosófico

neste aspecto fundamental

Darwin

não

recusa.

deixou

margem

para

dúvidas. Para o grande naturalista, não só a evolução não obedece a um

propósito, não visa um fim, nem traduz progresso, como a selecção natural é um processo puramente materialista, impossível de ser iludido, a não ser por habilidade teológica. A ausência de plano e de finalidade na evolução provém da própria estrutura e dinâmica do mecanismo da selecção natural. É este o grande obstáculo, tanto maior

quanto é certo que na contextura do darwinismo a evolução como processo está indissoluvelmente ligada à teoria explicativa

da mudança.

Como disse com justeza John Burrow, a propósito das consequências da

publicação da Origem, podia tolerar-se a evolução desde que o processo fosse interpretado como intencional, mas a selecção natural, que é uma 204

BIOLOGIA

combinação

E

SOCIEDADE —1

de tentativas/erros, é que não era possível aceitar. Era esse

o grande e intragável escolho (não a evolução como processo) que impe-

dia (e tem impedido) todas as tentativas de abastardar ou, pelo menos, de adoçar o grande amargo da mensagem materialista do darwinismo. Força ao mesmo tempo depuradora e criativa, a selecção natural actua por uma conjunção de processos de acaso (as variações hereditárias surgem sem relação com a necessidade da adaptação dos organismos ao ambiente, não são respostas a ele) e de reprodução orientada pelo meio, quer dizer, os indivíduos que, em

média, possuem as característi-

cas que melhor os ajustam ao ambiente onde vivem reproduzem-se mais, deixam mais descendentes (e transmitem por esse facto essas características características

às sucessivas gerações), do que aqueles que possuem menos vantajosas. À evolução tem assim, por base, o

acaso orientado pelo ambiente físico e biótico. E sendo assim não pode obedecer

a um

plano,

e transcendente

supremo

a qualquer

desígnio.

Para os darwinistas, a evolução é oportunista, invenção em cada momento, surpresa. Domina o imprevisto, embora (como actualmente se

reconhece cada vez mais) as morfologias e a história abram certas vias à mudança, impossibilitem outras e imponham determinadas orientações às transformações a A

ordem

que

aos nossos

olhos

parece

existir na natureza

é uma

complexa trama de compromissos e interdependências sempre em mu-

dança, de esforços individuais pela sobrevivência, quer dizer, pela adaptação às circunstâncias do mundo, em que cada um tenta subtrair-se à morte, à destruição, e procura um modo temporário de durar e se prolongar na descendência. Os indivíduos variam, diferem uns dos outros por pequenas

mas

numerosas

diferenças,

em

grande

parte

congênitas.

Mas as variações só por si não determinam mudança, não engendram novas variedades, novas espécies, novos grupos. Só o fazem se forem

apanhadas estatisticamente nas malhas da selecção, ou seja, quando as circunstâncias do meio favorecem a existência dos organismos seus

possuidores. Uma teoria tão simples e realista passou a explicar as maravilhas da natureza, que a tradição religiosa ensinava serem provas da omnipresença e infinita bondade divinas. Mesmo as teologias que admitem uma evolução planeada pelo Criador sentem-se frustradas e ameacadas pela teoria da selecção natural. São perfeitamente compreensíveis, portanto, as violentas reacções numa sociedade que de longa data teve por base uma filosofia que exige uma finalidade nos acontecimentos, uma marcha para um fim supremo, um desígnio na história, princípios espirituais em acção, uma

com

a publicação

dualidade espírito-matéria. O abalo começou

da Origem.

1859, mas ainda não terminou !*.

em

205

GERMANO

a)

A

revolução

DA

FONSECA

SACARRÃO

intelectual

Apesar de esse livro não respeitar ao homem, nem mesmo o incluir,

todos os que o leram viram imediatamente as tremendas consequências

que

ele iria ter para

a questão

das nossas

origens

e da

nossa

posição

quanto

é certo

em relação à natureza. Por aqui se pode avaliar a mensagem revolucios nária de tal obra. Mas

isto é tanto mais

surpreendente

que Darwin teve o cuidado de omitir toda a referência ao ser humano, quer na sua poderosa argumentação, quer nos factos em que se apoiou. Todavia, quase no fim, num breve parágrafo, pensa que o futuro: abrirá largas perspectivas à investigação, referindo-se em particular à psicologia. E, discretamente, subtilmente, escreveu logo a seguir: «light will be thrown on the origin of man and his history» (1.2 ed.). Na edição definitiva, porém, já pode ler-se «Much light [.:.]», tendo o resto da frase ficado intacto. Sabendo-se que Darwin desde-a

juventude se preocupava com a questão das nossas origens e natureza,

e acumulava numerosos dados e reflexões, a omissão deste problema: na Origem foi certamente intencional, consciente como estava: de que o texto como o escreveu era já suficientemente explosivo sem: alusões. à nossa espécie. A explicação profundamente mecanista da evolução que aí é feita com a teoria da selecção natural convidava: irresistivel.

mente a incluir o homem no mesmo destino dos outros seres:

Stephan Jay Gould, paleontologista e historiador da ciência, pensa, como outros autores, que Darwin aplicou uma

consistente. filosofia.

materialista à sua interpretação da natureza. É provável que Darwin

não fosse em todos meandros

do seu pensamento verdadeiramente

um:

materialista, pelo seu anti-reducionismo, pelo seu gosto: pela metáfora

e por

um

certo

antropomorfismo

aplicado

à natureza,

pelos

sinais e

significados que via nos fenómenos, etc. (v.,-por' exemplo, Manier, 1978). Mas a sua teoria da selecção natural é puramente materialista.

Por outro lado, nas reflexões que anotou nos seus «cadern os de notas»,

confessa-se materialista, confidenciando mesmo

que deve «evitar mostrar até que ponto crê no materialismo». Para ele, a matéria é a háse

de toda a existência; e a mente, o espírito, Deus, são: palavras “que apenas traduzem os resultados da extraordinária complexidade do sistema

nervoso.

Disse

mesmo

que

o «cérebro

segrega

o pensamento

tal

como o fígado segrega a bílis» («brain secretes thought as liver secretes

bilis» )É.

Enquanto

o conceito

aptos permaneceu

como

de

uma

selecção

ou

de

sobrevivência dos mais

ideia banal, era fácil atribuir.lhe: uma

causalidade divina, expressão da vontade de um eriador, omnisciente: e bom. E foi o que se fez e o que continua a fazer-se, Mas como teoria científica, na forma que lhe deu Darwin, a sua estrutura materialista não

pode,

repito,

ser

iludida.

E

foi 206

provavelmente

isto

que

impediu

º

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —1

desde logo a sua aceitação generalizada nos meios científicos, que obstou a que se introduzisse profundamente na cultura ocidental. O evolucio-

nismo podia ser «desmaterializado», podia-se pô-lo de acordo com os valores tradicionais. Mas como fazê-lo aceitando a selecção natural, que

afirma, sem rodeios, que a adaptação é o produto de variações acidentais orientadas pelos acasos do ambiente?

Aceitar a teoria da selecção natu-

ral como causa universal, ou quase, da mudança é aceitar do mesmo passo que a evolução é um processo devido exclusivamente a causas

materiais, destituído de plano, de finalidade, não traduzindo progresso

fixo e inevitável, movimento da matéria no qual todos os seres organizados e o homem são o produto de um jogo de possibilidades, de «tentativas /erros» em que acasos múltiplos (as variações acidentais dos diversos indivíduos) são mais ou menos variáveis consoante as condições do meio externo. Combatida, a teoria entrou em crise para o final do século e nos primeiros decénios deste, para, finalmente, triunfar plenamente no final dos anos 40 aos anos 70, sendo corrigida, ampliada e de certa

maneira confirmada. Ão seu sucesso seguiu-se recentemente nova crise, com novas críticas e dúvidas sobre o seu valor explicativo geral. A sociobiologia, porém, veio colocar a selecção natural no centro das atenções, não só da biologia

conhece

como

actualmente

da

antropologia,

grande

da sociologia, etc.

desenvolvimento

e expansão.

À teoria

É objecto

de numerosas investigações nos mais variados sectores. Mas a par disto está sujeita a críticas severas, surgindo outras teorias.

ver, parte da cultura do mundo

A meu

valores que

a estruturam,

que vêm

ocidental e alguns dos

de passado longínquo, continuam

a não poder facilmente acomodar-se à teoria da selecção natural, que contraria frontalmente algumas metafísicas persistentes. É bem certo

que serve de caução a outras, mas a custa de extrapolações tão abusivas,

por vezes, que, perdendo seriedade, se transformam na sua própria caricatura. Tem sido afirmado, e com certa razão, que o que distingue a

biologia das ciências físicas é a evolução por selecção natural. Não será só essa a diferença, mas é provavelmente uma das mais significativas. Um dos aspectos mais importantes da grande revolução que essa teoria determinou

foi a de que os projectos

e as finalidades

imediatas

que

estão ligadas à própria existência dos organismos passaram a ser explicados em termos puramente físicos e não por causas teológicas e metafísicas, como até aí. Na realidade, todo o organismo representa aparentemente um projecto, cumpre um programa hereditário, os seus órgãos

têm uma finalidade imediata, as suas várias partes trabalham para um fim

imediato,

numa

harmonia

funcional,

Perante

uma

estrutura

des-

coberta num organismo, o biólogo põe imediatamente a questão: «para que serve?», «qual a sua finalidade?», Esta teleologia científica nada 207

GERMANO

tem a ver com

DA

FONSECA

a teleologia metafísica, para

devidas a acção divina, a um insecto

para

SACARRÃO

ele

voar,

patas

a qual as adaptações

princípio espiritual, Deus ao

cavalo

para

ele

correr,

deu

são

asas ao

pulmões

ao

homem para ele respirar. Os fins a determinarem os meios. À revolução começou quando Darwin explicou todas as adaptações, não como produtos da vontade do Criador, mas como a expressão de uma relação entre os organismos ou suas partes e os ambientes em que vivem, determinada

por causas naturais, sendo a principal a selecção natural. O organismo é um «projecto» e todas as suas partes trabalham para a sua efectivação. À biologia não tem sentido fora desta procura permanente da finalidade imediata de um órgão ou parte do organismo dotada de uma função particular. Esta propriedade há muito reconhecida distingue os seres vivos «de todos os sistemas presentes no universo», como escreveu Jacques Monod, propriedade que ele designou por teleonomia. Para o mesmo autor os seres vivos são objectos dotados de um projecto. Isto não era nenhuma novidade. George Gaylord Simpson já tinha antes de Monod discutido com muita penetração as peculiaridades dos seres vivos, e os contrastes existentes entre a biologia

e as outras ciências, em particular as ciências físicas. E precisamente no que respeita a este ponto disse que as ciências físicas excluíram rigidamente a teleologia, que o critério de utilidade não é em nenhum sentido explicativo e que os resultados não estão ligados às causas por qualquer factor que traduza propósito. As ciências físicas tinham de afastar tudo isto para se transformarem em ciências, para afastarem a superstição, o obscurantismo. Curiosamente, na biologia os problemas e as soluções apresentam-se regularmente, para não dizer sempre, com aparência teleológica, no que respeita à função ou significado para o organismo de tudo o que existe ou se passa no seu íntimo, ou no que se refere às reacções que o organismo desenvolve relativamente às condi-

ções do mundo que o rodeia. Os processos que se passam no organismo,

e entre ele e o ambiente, não podem ser explicados pela descrição exclusiva de reacções químicas que estão na sua base, reacções que não têm

qualquer

sentido

se não

as considerarmos

em

conjunção

com

os

organismos, com as suas funções e adaptações. Daqui o não surpreender

a inclinação para formular explicações finalistas na biologia.

Tudo

parece

e não

convidar

a isso. Uma

das consequências

do darwinismo,

das menores, foi precisamente o passar a interpretar-se por causas físicas o fenómeno universal da adaptação dos organismos, a relação entre a organização dos seres vivos e as condições do ambiente em que vivem, em fazer em termos científicos a explicação dos seus aspectos teleológicos, em evidenciar a razão, jecto» que se desenrola num

natureza e finalidade imediata do « organismo ou num ecossistema, As ha

naturais passaram a ser as únicas responsáveis pela origem, maodificações

e adaptações

dos

organismos,

sem 208

apelo

a causas

metafísicas,

a

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —1

interpretações transcendentes, a um Deus criador omnipresente e bom. O darwinismo, ao explicar por leis naturais a teleonomia, transformou a biologia numa ciência completa. Esta foi, talvez, a origem

da grande heresia que ainda hoje se procura disfarçar ou frontalmente rejeitar. A religião ilude-a ou afasta-a como pode. Os oponentes são

muitos entre os profanos, menos entre os biólogos profissionais. Filósofos, escritores, políticos, amadores de ciência, não escondem, por vezes,

a

aversão.

sua

Popper,

Karl

sem

dúvida

uma

grande

figura

confessa que para ele o neodarwinismo

da filosofia contemporânea,

moderno (a teoria sintética) é um «programa metafísico» de pesquisa, sem valor científico em si, que nada nos diz directamente sobre a natu-

reza (ver crítica a Popper em Ruse, 1981). Ronald Reagan, por seu «a teoria bíblica da criação, não é uma

lado, declara que

teoria, mas

sim a história bíblica da criação», e que devia, também, ser ensinada nas escolas simultaneamente com a teoria da evolução. Sobre esta é uma

última afirma que

teoria que os cientistas têm combatido

nos

últimos anos, teoria que já não acreditam ser tão infalível como pen-

savam antes que fosse (ver Ruse, op. cit., p. XIII). Tudo isto é afirmado com toda a convicção e seriedade, e muitos outros o fazem também, mas

talvez

sem

a franqueza

do presidente

americano

(v. o cap. VI).

are of the

highest

Outra das consequências da obra de Darwin foi a ideia de que as diferenças entre os indivíduos são congénitas (pelo menos em grande parte), não sendo muitas das semelhanças e diferenças entre eles devidas ao meio físico ou social, mas sim à hereditariedade. Escreveu ele no seu livro clássico: These

individual

differences

impor-

tance for us, for they are often inherited, as must be familiar to every selection

one; and they thus afford materials for natural to act on and accumulate in the same manner as

man accumulates in any given direction individual differences in his domestic production. Isto teve efeitos de importância na medida em que introduziu um certo desencanto no que respeitava às possibilidades de aperfeiçoamento do homem por modificações sociais e políticas, e retirou grande parte do optimismo quanto à própria noção de liberdade e de igualdade entre os homens. Com Darwin introduziu-se a crença de que o homem é portador de instintos herdados de um passado de bruteza animal, sendo como que vítima de comportamentos de agressividade, crueldade e dominação desenvolvidos na fase de símio e de outras que a precederam. Mas da constatação do mesmo facto outros efeitos surgiram de enorme importância. Bibl. Univ.

49 — 14

209

GERMANO

DA

FONSECA

No plano científico e mesmo filosófico variabilidade que caracteriza os seres vivos, e de fundamental. Darwin foi o primeiro e significado dessa variabilidade que confere

SACARRÃO

é imensa a importância da é qualquer coisa de único a demonstrar a existência aos sistemas vivos um grau

de individualidade absoluta, pois não há, pode dizer-se, dois indivíduos iguais !*. Nem dois indivíduos, nem duas células, nem dois órgãos, nem duas espécies, nem dois ecossistemas há idênticos. Este facto, que é fundamental para a compreensão da teoria da selecção natural, contra-

ria frontalmente o pensar essencialista tradicional, de raiz platónica, segundo o qual o mundo é composto de tipos ou essências invariantes, sem termos de passagem. As suas expressões variáveis, na realidade

observadas, seriam imperfeições ou aproximações

a essências

cavalo. Ora Darwin

de as coisas e seres

forma

ideais. Todos os cavalos são cópias imperfeitas varreu o conceito tradicional

a essas

do protótipo

serem formas fixas num mundo imutável, a exprimir o «Plano do Cria: dor». Desenvolveu uma nova visão do mundo, em que o tempo tem um

sentido e tudo muda com ele. Nasceu uma nova maneira de pensar, que

contrariava

absolutamente

o pensamento

e Darwin culminam um movimento

platónico-aristotélico.

Marx

de pensamento que tendia à recusa

das «essências» e à introdução do tempo e da diversidade como realida-

des interligadas para explicar a estrutura e comportamento

dos indiví-

duos e das sociedades ” (v. também o cap. II, em especial as pp. 58 a 69 e a nota 15 do mesmo capítulo). O filósofo Karl Popper (1966)

platónico

no

seguinte

exprimiu

bem

o essencialismo

trecho:

|

I use the name methodological essencialism to characterize the view, held by Plato and many of his followers. that it is the task of pure knowledge or «science» to discover and to describe the nature of things, i. e. their hidden reality or essence. It was Plato's peculiar belief that the essence of sensiblle things can be found in other and more real things —

in their primogenitors or Forms. (P. 31.)

Aristóteles e outros essencialistas desviaram-se de Platã

noutro aspecto da mesma

questão, mas

todos

anta

Ra

o objectivo do conhecimento é descobrir a natureza secreta (ou forma) ou essência das coisas. E as essências são reveladas ou descritas pelas

definições. Ora Darwin veio romper com esta filosofia ao introduzir a ideia de que a realidade não é constituída por um conglomerado de partes entre as quais não haveria intermediários. Destruiu as próprias bases da tradição platónica, ou seja, a inexistência de ligações e transi210

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — 1

ções entre as partes, a fragmentação da realidade, a ideia de comparti-

mentar

e fixar o que

A mensagem

afinal é movimento

do darwinismo

nega

a redução

e transformação da diversidade

gradual. orgânica

a

modelos morfológicos sempre abstractos ou quase, a configurações morfológico-estáticas, a tipos, a invariantes. Só com Darwin é que o pensamento evolucionista se libertou do peso das essências, que são inconciliáveis com a ideia de mudança gradual, a qual impõe a existência de relações de continuidade entre as essências, mas que por este facto lhes recusa qualquer realidade. O idealismo de considerar categorias e suas essências, ou normas, de procurar invariantes como realidades fixas e imutáveis, passou a ser

frontalmente inconciliável com o transformismo científico. A diversidade, o constante movimento de mudança, passou imediatamente a ser mais importante do que os tipos, do que as definições, do que a natureza oculta das coisas, obstáculo metafísico que se opunha à exploração dos novos horizontes que o darwinismo veio possibilitar. Ora, se o mundo é formado por invariantes, não há entre eles, entre as essências, qual-

quer

forma

intermediária,

únicas

as

visto

variações

possíveis

mais

não serem do que imperfeições, desvios relativamente a essas essências,

sem

haver,

repito,

termos

graduais

a estabelecer

a passagem

de umas

para outras dessas naturezas ocultas e separadas das coisas. Mas foi pre-

cisamente com isto que Darwin cortou definitivamente, o que tornou possível aceitar a ideia de evolução gradual devida a causas físicas e naturais. É certo que se deve a Lamarck o postulado de que a evolução

é um processo gradual e contínuo, mas a sua combinação com a ideia darwiniana de ascendência comum (que Lamarck não teve) exerceu muito mais profundas influências e deu lugar a grande controvérsia, que ainda hoje não terminou. À ascendência comum introduziu imediatamente o homem no processo, e isto, como se sabe, provocou grande hostilidade, que aliás ainda se manifesta. Se, como Darwin mostrou, os indivíduos são diferentes entre si devido a variações acidentais, se a mudança é devida a modificações em

populações em que o que é significativo são os variantes individuais, que pouco diferem entre si, mas todavia o suficiente para gradualmente modificar o conjunto, nascendo uma nova variedade, e desta uma nova espécie por meio de fases intermediárias, logo se vê que o essencialismo

sofreu um rude e definitivo golpe, pois entrava em conflito com a realidade observada. A população passou a constituir a base do pensamento

transformista, e toda a biologia passou a conceber a evolução como modificações graduais ocorrendo em populações de organismos. Acumular, como Darwin esforçadamente fez, evidências (indirectas, mas nem por isso menos decisivas) e argumentos de que a evolução se realiza de espécie para espécie através de populações intermediárias é uma

ideia

absolutamente

incompatível

com 241

a filosofia essencialista.

Cada

GERMANO

DA

espécie corresponderia a um

FONSECA

tipo, uma

SACARRÃO

essência. E novas

espécies só

podiam nascer por criação ou arranque singular, como exigia a filosofia

precedente. b)

Saltos ou pequenos passos?

O ponto de vista gradualista da evolução tem sido combatido por

alguns biólogos, que lhe opõem a concepção saltacionista. O saltacionismo tradicional pretende que a evolução se faz por mudanças bruscas e espontâneas em organismos excepcionais, por meio de mutações especiais de grande efeito que, de maneira

abrupta, sem fases de transição,

originam uma nova espécie muito diferente da anterior de tal modo que se formam novas classes ou novos tipos de organismo radicalmente diversos dos precedentes. Imaginaram-se mutações de natureza especial,

que nunca foram observadas. É os saltacionistas, quer tradicionais, quer actuais, apoiam-se, sobretudo, em leituras do registo fóssil, nas suas

insuficiências e, em particular, nas grandes

descontinuidades

que esse

registo evidencia quanto à origem das espécies e dos grupos supra-específicos, que surgiriam sem fases de transição a separá-los. O gradualismo seria ilusório ou, quando muito, de pouco significado para a evolução.

Logo de começo, o darwinismo teve de enfrentar ataques ao gra

dualismo.

Thomas

Henry

Huxley,

amigo

e fervoroso

partidário

das

ideias de Darwin, divergia dele neste ponto. Em Novembro de 1859,

Huxley escreveu uma carta ao amigo dizendo-lhe que ele tinha arcado

com uma dificuldade desnecessária por adoptar sem qualquer reserva o. princípio Natura non facit saltum. Huxley defendia o saltacionismo.

Mais tarde, Hugo de Vries e outros biólogos desenvolveram concepções

análogas que dominaram a biologia evolutiva no primeiro quartel deste

século. Mas depois a ideia ressurgiu. Nos anos 40 teve em Richard

Goldschmidt (geneticista eminente) um poderoso advogado, com a sua

teoria das «mutações sistémicas». Uma mutação deste tipo imaginado refundiria completamente o genoma de um indivíduo, constituindo-se,

desse

modo,

um

novo

grupo

que

teria, assim,

origem

numa

anomalia

ou monstruosidade viável com valor evolutivo. É a teoria do hopeful monster (como lhe chamou). A anomalia surgiria bruscamente, como uma alteração embrionária que daria origem a um novo tipo de orga-

nismo.

As transformações que ocorrem no seio das populações actuais (estudadas pelos geneticistas das populações e pelos ecologistas) seriam a «microevo lução»,

enquanto as origens das grandes

adaptações

e das

grandes descontinuidades evolutivas, dos grupos superiores, constituiria

a chamada «macroevolução». Ora para os saltacionistas tradicionais ou actuais a «macroevolução» processar-se-ia de modo diferente da «mi 212

BIOLOGIA

croevolução».

haver

fundamentos

que

teve

saltacionista grande

Goldschmidt

de

diferente.

histórico foi O. Schindewolf,

influência

na

difusão

como

processos,

de natureza

de uma

parece

hoje

nem

os dois

desassociar

de evolução

a dois modos

correspondendo

Outro

para

sérios

SOCIEDADE — I

tempo

no

nem

Mas

E

paleontologista (desenvolvida

teoria

entre 1936 e 1950 aproximadamente) explicativa das origens das cate-

gorias de todos os níveis por intermédio, também, de mutações com profundos

efeitos

e extensos

nasceriam, num

no organismo,

que

de tal modo

só passo, novos tipos de organização.

delas

Tais «megamu-

tações» são também meramente conjecturais. A defesa da evolução saltacional e a negação do gradualismo nunca desapareceram da biologia. Esses propósitos exprimem-se actualmente na teoria dos «equilíbrios intermitentes» (punctuated equilibria) de N. Eldredge

e S. J. Gould

segundo

(1972),

a qual



«saltos»

na

intervalos evolução, momentos de rápida mudança, separados por longos onal 8. As direcci em que as espécies não exibem, ou quase, mudança após uma espécies e os grupos superiores surgiriam bruscamente, e longa fase de stasis extinguem-se com o mesmo aspecto com que apareceram. Seria isto o que os documentos paleontológicos revelariam. Mas há excepções, e a interpretação de que tais documentos evidenciam que a evolução

instantes

de

não

é continuadamente

revolução

gradual, mas

genético-embrionária,

separados

que se faz por

por

enormes

não tem o acordo de todas as auto-

intervalos de estabilidade, também

ridades em biologia evolucionista e em paleontologia ?. Pelo contrário, a maioria está contra. O que parece provável é que a evolução possa ser um processo ora rápido, ora lento, ou, na aparência, inexistente

durante intervalos mais ou menos longos. Não existe discordância rela-

tivamente aos fundamentos do evolucionismo darwiniano. Portanto, se questão o registo fóssil revela ou não evolução gradual é, sobretudo, uma

da controvérsia reside no facto de

de escala ?. O ponto fundamental os «punctuacionalistas»

sustentarem

que

as descontinuidades

entre

os

grupos, que surgem na documentação fóssil, traduzirem a formação súbita, ou quase, de novos tipos muito diferentes de organismos, verda-

deiros saltos nas morfologias, donde nasceriam novas espécies ou cate-

gorias «superiores», a partir de indivíduos excepcionais. Um grande passo evolutivo devido a um só indivíduo (ou alguns raros). É a modernização do hopeful monster de Goldschmidt. Para o próprio Gould (1977 a), a macroevolução processa-se por meio de «monstros prometedores», que por acaso se revelam com êxito para a emergência de novos grupos ou de novas adaptações 21, Claramente ou não, volta-se ao conceito de a macroevolução se realizar por meios diferentes da

microevolução: um indivíduo isolado e modificado ser a origem de uma

nova grande adaptação (por exemplo, passagem da vida aquática à vida 213

GERMANO

terrestre) ou de mamíferos, etc., A evolução ral, actual, mas

DA

FONSECA

SACARRÃO

um novo grupo de nível «superior» (insectos, aves, o próprio homem ). é, provavelmente, um processo gradual à escala tempocom aparência saltacional à escala do tempo geológico.

A teoria «punctacional» não refuta, a meu ver, a hipótese de a evolução

ser um fenómeno gradual, que se desenrola a diferentes velocidades. Pode haver períodos de mudança gradual lenta, longas fases sem mudança, ou quase, ou então rápidas transformações, em que estados grada-

tivos se sucedem em curtos intervalos, em múltiplas espécies, onde as extinções acabam por dar a aparência de fundas descontinuidades. Mas o

problema

permanece.

Se na

realidade

há,

ou

não,

saltos

bruscos

nas

morfologias, sem estados intermediários, como pretendem os saltacionistas, é uma questão que aguarda solução. À discussão torna-se, por vezes, confusa, até porque a argumentação dos adversários do gradualismo é, em diversos casos, ambígua, ou se aproximando das posições ne E nianas (teoria sintética) ou se afastando delas. Não quero, também, deixar de dizer que o que se observa em tantíssimos casos é precisamente

aà existência de transições graduais entre os grupos, desde os «inferiores» aos «superiores», o que não se ajusta à ideia de um processo evolutivo de natureza saltacional 2. Na base das divergências entre as concepções gradualista e saltacional da origem das espécies existem provavelmente oposições de ordem ideológica,

diferentes

filosofias.

Para

Stephen

Gould,

o gradualismo

é um produto cultural do Ocidente, com a sua ideologia liberal profun-

damente enraizada na cultura, e segundo a qual o progresso contínuo é obtido por meio de reformas lentas e suaves. Com a decadência das monarquias

ligadas

a uma

estrutura

século das luzes a terminar Gould),

os cientistas

componente

com

começaram

normal da ordem

uma

estática

da

sociedade

fase revolucionária

a considerar

à mudança

universal, e aplicaram

e

com

o

(diz ainda. como

uma

6 novo conceito

a natureza. As classes cultas defendiam o programa liberal da transfer . mação lenta e gradual, e teria sido esta doutrina que foi aplicada à natureza. Quer dizer, uma espécie de reformismo social foi transmudado para um reformismo biológico. Faz-se, em suma, a ligação entre a utili

dade política de uma ideologia, que recusa e combate toda a mudança

súbita e radical da sociedade, e a origem das espécies, embora: se reconheça que essa conexão não tenha estado necessariamente consciente

1

SR

no espírito de Lyell ou de Darwin, os grandes campeões do gradualismo

na geologia e na natureza viva?, Quanto ao neo-saltacionismo, ele exprimiria outra ideologia, e isto é claramente proclamado: pelos: seus | principais defensores,

Com

efeito, para

Gould

a teoria «punctacional».

acorda-se com a filosofia marxista das mudanças

descontinuas, com as

leis dialécticas reformuladas por Engels a partir da filosofia hegeliana, leis

que

são,

segundo

o mesmo

autor, 214

estritamente

«punctacionaisa,

ci

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —I

como seja a transformação de quantidade em qualidade. Escreveu, por exemplo: The dialectical laws are explicitly punctational. They speak, for example, of the «transformation of quantity into quality». This may sound like mumbo jumbo, but it suggests that change occurs in large leaps following a slow accumulation of stresses that a system resists until it reaches the breaking point [...]. Eldredge and I were fascinated to learn that many Russian paleontologists support a model similar to our punctuated equilibria. (1980, pp. 184-185.)

Mais tarde repete as mesmas considerações ideológicas e a concordância

do

neo-saltacionismo

dialéctico, expressando-se

(«punctacional»)

com

o

materialismo

em francês:

Plusieurs hommes de politique utiliserent le raisonnement gradualiste pour plaider en faveur de réformes lentes plutôt que pour une attitude révolutionnaire [...]. D'autres philosophies de transformation ont une tradition respectable

et représentent I'orthodoxie en d'autres pays. Les lois dia-

lectiques de Hegel sont explicitement punctuationnelles. Le livret officiel de Marxisme-Léninisme en Russie démontre la «loi de transformation de quantité en qualité» se servant des exemples de l'eau qui bout soudainement aprês un long stage en état liquide, on de la révolution ouvrieêre brusquement déchaineé apres une longue période d'opression. [Gould (1982),

cit. Thaler

(1983),

p. 147].

L. Thaler critica Gould dizendo que o exemplo da água que ferve tanto pode indicar descontinuidade como continuidade (como na autoclave), mas para o mesmo autor o mais surpreendente é a comparação da especiação com a ebulição do mesmo líquido, analogia que considera incorrecta, tal como a que respeita à revolução operária após longo período de opressão. A origem das espécies, lembra Thaler, não obedece a «lei da transformação da quantidade em qualidade». Há algo de essencialista, penso eu, na posição que considera haver ausência de estados transicionais entre as espécies. Essencialistas eram, também, os saltacio-

nistas tradicionais, com os arquétipos e a origem súbita de novos tipos de organização. É praticamente impossível escapar a forte ambiguidade se insistirmos em opor dois pontos de vista bem extremados que traduzem confusão de escalas, temporal e de velocidade de mudança. 215

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

A posição científica de Gould pode obedecer a razões ideológicas (é ele que o diz), mas não é a ideologia marxista-leninista que decidirá, em última análise, do futuro da teoria neo-saltacionista, que de novo irrompeu na biologia com a teoria da evolução «punctacional» 2. Quem julgará do seu acerto ou desacerto será a comunidade científica, com a acumulação

de factos, o livre exame,

a crítica e a circulação de ideias

sem barreiras a opor-se-lhe. Como disse P. Bowler (1984), o sucesso ou o fracasso da interpretação «punctacionista» vai depender da sua capacidade de convencer, ou não, a vasta maioria dos cientistas de que

é um guia mais frutuoso para a investigação 2. O saltacionismo, quer tradicional, quer «punctacional», pode ser associado a várias ideologias — ao marxismo, como se viu, mas, também, a uma filosofia essencialista (conciliar a filosofia de mudança

com as «essências»), ao espiritualismo, à tentativa (consciente ou não) de introduzir o mistério e o milagre na evolução. Ideologias contrapostas a sustentarem

uma

mesma

posição

científica.

Se as espécies

e os

grupos «superiores» surgem bruscamente, se as adaptações complexas se constituem por um único passo de mudança, sem fases gradativas, o essencialismo fica salvo e o processo proposto é imediatamente tomado como suporte para as fantasias dos criacionistas. Se a evolução é uma

série de breves transformações separadas por longas fases de estabilidade, então

(e não apenas para os criacionistas)

genética

«punctacional»

poderão

ser

os momentos

tomados

como

de revolução

actos

de

criação

divina. Stephen Gould, Steven Stanley (1979, 1981) e outros neo-saltacionistas esforçam-se por demonstrar que a sua doutrina não abre a via ao criacionismo, nem

lhe fornece

argumentos

antievolucionistas e anti-

darwinianos. Mas, apesar disso, o que é facto é que os criacionistas rejubilam com o modelo «punctacional», que se acaso se apoia, para alguns, no materialismo dialéctico, concede, porém, argumentos para metafísicas opostas. É certo que o modelo «punctacional» é suficientemente sério para merecer toda a atenção dos cientistas, e só o futuro decidirá do seu destino. Os seus autores propõem, e neste aspecto terão provavelmente razão, que a especiação se faz por processos darwinianos

em momentos de crise adaptacional (Mayr e outros já o tinham dito),

em

populações

muito

diminutas

e localizadas,

e com

intervenção

da

selecção natural. Mas no modelo neo-saltacionista o importante para os antidarwinistas e para a activa corrente ideológica antievolucionista não é naturalmente isso. Do que eles prontamente se apropriam, como

arma, é que a evolução seja encarada pelos biólogos como um processo

fortemente descontínuo, espaçado, cortado por momentos de criação. súbita. Ora é isto o que tem sido afirmado, e é isso que falta demons-

trar que ocorra com tal frequência que a evolução gradual seria um processo ocasional, o que muito provavelmente não será o caso. 216

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —I

Temos, assim, que um problema que à primeira vista podia pare-

cer exclusivamente científico, dependente apenas da objectividade e da pureza dos factos, é afinal influenciado por ideologias, o que não sur-

preenderá. Gould é perfeitamente aberto sobre este ponto, confessando

a inoperação marxista na elaboração do seu neo-saltacionismo e dos seus ataques ao gradualismo. Mas a teoria dos «equilíbrios intermitentes»

não é uma boa teoria, embora tenha diversos méritos por traduzir, provavelmente, uma parte da realidade (se lhe retirarmos a metafísica estimular saltacional), e sobretudo por impulsionar a pesquisa, por

outra leitura da documentação fóssil e sugerir novas articulações com

os dados obtidos no estudo das espécies vivas actuais. Mas, por muito

inseparáveis que sejam ciência e ideologia, a primeira, se for falsa, acabará por não resistir aos ensaios de refutação que lhe forem dirigidos, e, ao cabo, a ideologia protectora

erá remover

não lhe poderá

os obstáculos que se levantam

valer, nem

lhe

à sua comprovação e

aceitação pela comunidade científica internacional. Mesmo o vínculo ideológico que Gould estabelece com o marxismoJeninismo

não

parece

nem

necessário

nem

coerente

e muito

menos

óbvio, como pode verificar-se pela utilização que os criacionistas fazem do neo-saltacionismo, na convicção de que toda a teoria de mudança descontínua sobre a origem das espécies implica a existência de milagres

(v. Bowler, op. cit.).

O mais provável é que a teoria «punctacionalista», longe de se opor ao neodarwinismo,

venha

a ser incluída nele e absorvida por ele,

e que a genética das populações e a embriologia expliquem

(como já

vem acontecendo) as descontinuidades do registo fóssil (reais ou aparentes) e os fenómenos de stasis (v., por exemplo, Lewin, 1986). Não será pela teoria «punctacional» que o edifício teórico do darwinismo moderno (teoria sintética) sofrerá qualquer abalo. Quando muito (e não

será pouco), poderá, pelas consequências decorrentes, ver alargada a sua

capacidade explicativa e o seu suporte na realidade. As oposições ideo-

lógicas e/ou filosóficas terão, talvez, de procurar outras vias de confronto e outros apoios ou legitimidades para as metafísicas.

c) Diversidade que não se repete idêntica

No final do século xvilI começa a impor-se a ideia de mudança. A classificação pré-darwiniana dos objectos naturais, das plantas e dos animais, com as suas categorias inferiores subordinadas às categorias superiores, no fundo identificada às classes sociais e reflectindo-as, exprimia ao seu nível uma sociedade fixa, baseada na ordem natural

do mundo, não traduzindo progresso nem mudança. 217

GERMANO

A

Revolução

Francesa,

DA

FONSECA

o declínio

SACARRÃO

das

monarquias

e da

religião,

a revolução industrial em marcha, o liberalismo económico em progresso, as viagens, o colonialismo, tudo isto determinou ideias de mudança, a introdução do tempo histórico na sociedade e na natureza. As estruturas e os costumes modificaram-se com a rapidez e este facto introduziu uma visão histórico-evolutiva. Às sociedades fechadas medie-

a extraordinária importância da variabilidade dos seres vivos. Para muitos filósofos e cientistas não biólogos, este fenómeno ou é incom-

preensível ou não acertam no seu significado. A diversidade biológica é

incompatível com o espírito essencialista tradicional e exige, também, um

modo

de pensar diferente do que é habitual nas ciências que tratam

fundamentalmente com invariantes, com fenómenos de «repetitividade». Ora a diversidade dos sistemas biológicos a todos os níveis, que enfrenta

a infinita variabilidade das condições do ambiente, obriga ao ensaio de múltiplas soluções (de sobrevivência e de adaptação), que não se repetem idênticas. À evolução é irreversível. É sobre as variações dos caracteres individuais, que surgem de maneira foriuita, sem relação

com

as necessidades do organismo,

que actua a selecção natural. Não

havendo dois organismos ou duas populações idênticas, é óbvio que os resultados da acção da selecção sobre elas também não podem ser idênticos. É esta uma das razões pelas quais os biólogos são, em regra, pouco inclinados a aceitar a existência de seres vivos noutros planetas,

como os terrestres. É altamente improvável que se constituam noutros mundos, mesmo em planetas de tipo terrestre, as mesmas sequências históricas, rigorosamente idênticas em todos os pormenores e elos cau-

sais às que se desenrolaram no nosso planeta, incluindo a evolução química até ao nascimento dos primeiros organismos; improvável que haja uma coincidência de todos os eventos aleatórios (sabendo-se o importante papel dos processos de acaso para a evolução biológica), de

um perfeito paralelismo nos encadeamentos históricos, nos acidentes ocorridos, nas variações e na sua selecção. É por não se atender devidamente à natureza da evolução biológica que tão facilmente se admite

a existência de inteligências extraterrestres, em formas

humanóides, ou

de

que

de seres vivos diferentes, mas que afinal mais não são do que desvios configurações

terrestres *. Por

muita

imaginação

haja,

todas

as criaturas fantasiadas, inclusivamente na literatura de ficção cientifica, são basicamente construídas segundo os modelos terrestres. E não

se dão conta da improbabilidade,

que

toca o absoluto,

de ocorrerem

as

mesmas histórias evolutivas em planetas diferentes. A não ser se admi-

tirmos um grande princípio espiritual inteligente a comandar a evolução da vida no universo, o que, claro está, sai dos quadros da ciência. 218

ã

“8á ã

Fla vias À Uns du temaD

vais sucederam as sociedades abertas, aquelas onde rapidamente e livremente ocorrem mudanças. Quem não está familiarizado com a biologia evolutiva não alcança

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —I

Não é decerto isso que está na mente de diversos astrónomos e de outros Fred Hoyle Noutro

alguns estará.

a biologia. Mas em

com

familiarizados

cientistas não

(1980), por exemplo, embarca em tais divagações. com

argumentos

alguns

desenvolvi

lugar

tentei

os quais

mostrar que é em extremo improvável que existam noutros pontos do vivos de tipo terrestre, e praticamente zero a proba-

organismos

cosmo

bilidade de haver seres semelhantes a humanos ?. Não pode excluir-se, naturalmente, que a vida possa ter surgido noutros planetas idênticos ao planeta terrestre. Mas para que haja nesses planetas seres de tipo terrestre, incluindo humanóides, com os seus variados instintos e comportamentos, seria necessário que todos eles tivessem, durante largos

biliões de anos, a mesmíssima composição e a mesmissima história que

a Terra, exactamente em todos os seus pormenores, quer geológicos, quer

histórico dos processos evolutivos

o encadeamento

e que

climáticos,

fosse em todos eles idêntico, que das interacções organismos/ambientes

resultassem as mesmas cronologias de contingências ?. O que actualmente são os organismos (insectos, aves, homens, etc.) e como fun-

cionam

depende

de tudo o que aconteceu ao longo de um

muitas

centenas

de milhões

de

tem)

todas

sequências

de anos, em

as «invenções»

se sucederam

que

passado de

(que não se repe-

e acumularam.

As

coincidências de todas as contingências ocorridas nas sequências terres-

tres (nos organismos e nos ambientes), necessárias para originar seres impro-

vivos de tipo terrestre noutros lugares do cosmo, são altamente váveis, se não mesmo nulas na prática, de se repetir.

de seres inteligentes, de autocons-

A existência noutros mundos

situação que a biologia evolu-

ciência, de civilizações superiores, é uma

dificilmente

tiva

obscuras, contradizem

Tais

admitir.

poderá

vezes

muitas

especulações,

as conclusões dessa ciência. Por exemplo, é pra-

ticamente nula a probabilidade de uma evolução extraterrestre originar um sistema nervoso como o do homem. Há demasiadas crenças e ideologias nesta questão da inteligência extraterrestre. É o caso da crença na

«grande

escala

que

natureza»,

da

continua

a exigir

(agora

num

contexto de mudança) que consideremos o homem no topo da evolução, como o ser mais aperfeiçoado e mais inteligente, de modo que também

noutros mundos as civilizações superiores terão de ser o termo das evoluções aí decorridas.

São sobretudo astrónomos e físicos (com alguns biologistas moleculares e microbiologistas) que defendem a possibilidade da existência de seres extraterrestres. É o caso de Sagan, de Hoyle e de outros astrónomos. O primeiro, autor de Cosmos, é sem dúvida um brilhante divulga-

dor e perseverante defensor das pesquisas para procurar estabelecer uma eventual

com

comunicação

logos

evolucionistas

como

Th.

não

Dobzhansky,

se

G.

inteligências dá

o

mesmo,

G. Simpson, 219

extraterrestres. e as

Ernst

Com

maiores

Mayr,

os bió-

autoridades,

François

Jacob

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

e outros, são claramente contrárias à ideia de haver seres vivos de tipo

terrestre fora do nosso planeta. Entre milhões e milhões de espécies de plantas e animais, só uma desenvolveu a inteligência humana e a consciência de si, e isto ao fim de mais de 3 biliões de anos de evolução da vida. Tal circunstância, que evidencia a enorme improbabilidade do aparecimento da inteligência num planeta que oferece as condições exactas para a sua emergência, sugere-nos, do mesmo passo, que noutros mundos a improbabilidade ainda seja maior, havendo a acrescentar outras razões de peso para que ela seja praticamente nula ou quase, a algumas das quais já atrás aludi (v. os importantes artigos de Simpson, 1961 e 1964, e também Mayr, 1985). Para Jacob (1977),a probabilidade é praticamente zero para que sistemas que porventura possam existir no cosmo tenham evolucionado para algo que possa assemelhar-se a seres humanos. À biologia de Hoyle e de outros astrônomos e físicos não convence. São fiéis a uma perspectiva determinística dos fenómenos, de modo que, como disse Mayr, estão convictos de que o que

se passou na Terra aconteceu, igualmente, em planetas de outros sistemas solares. Ora os biólogos, sabendo que a evolução do homem,

do

insecto,

esteve

escalonada

por

um

número

imenso

de

ou

aconteci-

mentos, cada um dos quais resultado de um jogo complexo de probabilidades a ligarem o destino das variações acidentais dos organismos às. contingências do ambiente, não aderem

a tal ponto de vista.

Não se nega em absoluto a possibilidade de existir vida inteligente

extraterrestre ?. O é, para todos os impor-se, ou seja, milhões, ou mais,

que se conclui é que a probabilidade dessa existência efeitos práticos, vizinha de zero. Um facto parece que a inteligência autêntica é, no conjunto dos 100 de espécies que apareceram na Terra, um aconteci-

mento extremamente raro, isolado e de modo nenhum sendo uma característica básica da evolução animal. A diversidade nunca se repete idêntica, e, mesmo no caso da evolução convergente (por exemplo, olhos nos moluscos e nos vertebrados), a semelhança de construção é super..

ficial e esconde

profundas

diferenças”.

A

evolução

convergente de

estruturas resulta de análogas interacções dos organismos com ambien

tes semelhantes, interacções que se impõem provável o desenvolvimento

de tal modo

das convergências

que tornam

respectivas '!. Ora se 6

nascimento de morfologias e funções análogas se apresenta em tantos casos como acontecimentos muito prováveis na evolução, já o mesmo não aconteceu com a inteligência autêntica, que só apareceu na linha . do homem

ao cabo de mais de 3 biliões de evolução da vida.

220

BIOLOGIA

d)

Conceitos Com

a palavra

do usual. Em

«evolução»

dá-se

um

facto

curioso.

o fez empregou-a num

Darwin

rara-

contexto diferente

1744, o biólogo alemão Albrecht von Haller inventou o o aplicar

para

«evolução»

termo

SOCIEDADE —I

de evolução e de progresso

a utilizou e quando

mente

E

na

teoria

da preformação 2, precisa-

mente para descrever o crescimento das miniaturas da forma adulta, e nesse tempo se pensava estarem incluídas no ovo ou no espermatozóide, teoria fantástica que fez correr rios de tinta de controvérsia (uns afirmavam

que essas formas existiam só no ovo, outros que só no

espermatozóide ) . Aplicava-se

aos animais e também

ao homem.

Neste

último caso, os homúnculos estavam encaixados uns nos outros, desde Adão ou Eva (consoante a ideia de estarem, respectivamente, nos testículos ou nos ovários), à espera, em cada geração, de se desdobrarem, de se revelarem e de crescerem *, mas era um crescimento sem mudança

de forma. Outra escola oposta, a dos epigenetistas, negava que os indiví-

duos estivessem preformados no ovo ou no espermatozóide e afirmava que

a forma adulta resultava de uma edificação progressiva (ou epigénese) a partir de um simples ovo, minúscula porção de matéria viva aparentemente

indiferenciada.

E eram

estes que estavam

na razão. Mas

no

século XVIII quase todos os biólogos eram preformacionistas. Compreen-

de-se o preformacionismo no contexto da sua época. À doutrina estava de acordo com a ideia de que tudo estava fixado desde a criação do mundo, com a teoria de que as espécies eram imutáveis. Não poderia

conceber-se uma transformação tão profunda como a que dá origem a um homem a partir de uma microscópica gota de matéria viva, sem forma nem

órgãos nela aparentes, com toda a edificação complexissima

de órgãos, funções, com a génese do cérebro, etc. A ideia de uma ordem da natureza estava em perfeita harmonia com a ordem social estática, com

um

mundo

sem

mudanças,

onde

tudo estava previsto e regulado

por acção divina. Por isso os epigenetistas, que estavam na razão, foram os incompreendidos e ficaram sós com as suas ideias consideradas aberrantes.

Haller escolheu com cuidado o termo «evolução» porque se aplicava bem latim

à formação

«desenrolar»,

de gerações. Com «desdobrar».

efeito, evolvere significava em

E de facto o delicado ser em

minia-

tura, acantonado e comprimido, só «esperava» por aumentar de tamanho até atingir as dimensões definitivas. Mas a evolução do embrião, assim concebida, era um sério obstáculo ao darwinismo, ou seja, à modificação

da descendência originando novas variedades e novas espécies. Se todas as gerações humanas estavam preformadas e empacotadas nos ovários de Eva, é óbvio que era inadmissível que quaisquer acções no ambiente natural ou do próprio organismo viessem alterar o curso preestabelecido 221

GERMANO

da história do homem.

DA

FONSECA

SACARRÃO

A preformação não só dava um suporte sólido

à crença bíblica como afastava qualquer ideia de mudança. Como é que então um termo que exprimia um antievolucionismo rigido surge de repente a traduzir

transformação?

Como

lução», no sentido que lhe deu Haller, se transformou

é que a «evo-

numa

palavra

com um significado completamente oposto, pergunta Gould? Ora sucede que na primeira metade do século xIX o preformacionismo estava em

plena decadência e por volta de 1859, aquando da publicação da Origem,

o conceito

dava

os

últimos

suspiros.

À

sua

morte

deveu-se

a

várias circunstâncias, entre as quais devo mencionar o estabelecimento, em

1839,

da

«teoria

celular»,

feita

por

Schleiden

(1804-1881)

e

Schwann (1810-1882), e sobretudo o facto de a formação de um novo organismo resultar do desenvolvimento de uma célula, o ovo, facto que foi revelado por Von Baer (1792-1876), o fundador da embriologia. Como disse Bernal, a teoria celular tornou inteligível o crescimento

do indivíduo, e a selecção natural fez o mesmo para a génese das espécies.

Finalmente,

decisivo

nas

o

velhas

uso

generalizado

teorias,

do

revelando

microscópio

complexidades

deu

que

um golpe

não

se

suspeitavam e que tiveram de ser explicadas de modo inteiramente diverso. Foi o que aconteceu com os fenómenos de desenvolvimento a

partir da fecundação do óvulo pelo espermatozóide. Ora aconteceu que se a teoria da preformação morria no meio do século, a palavra «evolução» como que renascia para tomar um sentido inteiramente novo. Como a nova ideia era a transformação, a mudança a todos os níveis, no biológico, no social, no cultural, no económico,

no industrial, aproveitou-se a palavra «evolução» para traduzir a inovação. Mas inovação a significar progresso, num sentido diferente do que lhe deu Haller. Evolução a traduzir uma sucessão ordenada de formas e acontecimentos, desde um estado simples até estados gra-

dualmente mais complexos. Como nos lembra Gould, citando o Oxford English Dictionary, a origem deste significado remonta a 1647, a um

poema de H. More. «Evolution of outward forms spread in the world's vast spright

[spirit]».

E o mesmo

dicionário lá diz que é o «processo

de desenvolvimento desde um estado rudimentar até um estado maduro ou completo». Quer dizer, engloba o conceito de desenvolvimento progressivo, está intimamente ligado a uma noção de progresso. De mado que a expressão «evolução» tornou-se, no tempo de Darwin, uma palavra comum do que lhe

da língua inglesa, mas com um sentido muito deu Haller. O curioso, porém, é que Darwin

diferente só muito

raramente se serviu das palavras «evolução» ou «evolver» (to evolve), e na Origem fê-lo na última linha, sendo mesmo a última palavra da obra («from so simple a beginning endless forms most beautiful and most wonderful have been, and are being evolved») *. 270) mai uid 4

AN

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —I

Como afirmei noutro lugar, Darwin rejeitava que a transformação das espécies traduzisse qualquer lei absoluta de progresso, de um estado

inferior para um superior (expressões estas que dizia querer evitar). Daí talvez a extrema raridade da utilização das palavras evolution ou to evolve. Para ele, o mais ínfimo organismo pode estar tão excelentemente adaptado ao ambiente em que vive como o homem está ao seu,

que para Darwin a complexidade de estrutura não era sinal

de modo

de superioridade

ou de progresso

no sentido próprio

Ape-

pouco vacilante por vezes, e até

mostrava-se um

sar de tudo, Darwin

deste termo.

contraditório. A expressão que Darwin frequentemente utilizava para significar mudança era descent with modification, e também transmu-

tation para transformação relativamente

espécie noutra espécie. Expressões

de uma

neutras, não comprometidas,

via, não fez o mesmo

e por isso vantajosas. Toda-

no que respeita à selecção natural.

Quem contribuiu de maneira decisiva para que a palavra evolution

entrasse na linguagem

(e depois se generalizasse a outras lín-

inglesa

guas) como sinónimo de «descent with modification» foi Herbert Spen-

cer, o filósofo e extraordinário vulgarizador, que fez da evolução a lei geral do universo

e da vida. Em

anos, devido à sua influência,

poucos

toda a gente falava de evolução, e isto em grande parte devido ao seu

talento excepcional para as grandes generalizações. Para a sua filosofia

muito contribuiu a sociedade do seu tempo. Tendo nascido em 1820,

viveu em plena revolução industrial, numa sociedade voltada para o progresso. E para um bom vitoriano, como ele, necessariamente que não havia melhor princípio do que o progresso para orientar a sucessão dos

fenómenos sociológicos, económicos e naturais. Nos seus First Principles (1862) definiu essa lei universal da seguinte maneira: «A evolução é uma

integração de matéria e uma

concomitante

dissipação de movi-

mento, durante a qual a matéria passa da homogeneidade indefinida e incoerente para uma heterogeneidade definida e coerente; e no decorrer da qual o movimento sofre uma transformação paralela» *. Depois, nos seus Principles of Biology (1864-1867), utilizou largamente o termo

evolution. Esta obra, que foi muito popular, contribuiu fortemente para difundir e implantar a palavra. Para Spencer, a vida «é um continuo ajustamento de relações internas a relações externas», uma «cooperação entre

as forças

do

organismo

e as forças

ajustava perfeitamente (nota Gould)

século

xIX

vitorianos

existiam facilmente

sobre

noção

que

se

à maior parte dos conceitos que no

a evolução

igualavam

do ambiente»,

orgânica,

transformações

porque

os cientistas

orgânicas

a progresso

orgânico. E como a maioria dos evolucionistas via nas transformações orgânicas um processo dirigido no sentido do aumento de complexi-

dade, ou seja, no sentido do próprio homem, o ajustamento do termo geral propagandeado

ção que

dele

por Spencer

não entrou em

deu. 223

conflito com

a defini-

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

Todavia, enquanto ocorria todo este processo, em que as transformações orgânicas dos seres vivos passavam a significar progresso, processo condensado na palavra doravante soberana e praticamente exclusiva para sua tradução — evolution —, Darwin permanecia isolado, visto que para ele as modificações orgânicas conduzem apenas a adaptação local e imediata dos organismos, entre si e com o ambiente, sendo estranho (e até contrário) à ideia da evolução exprimir progresso, no sentido do simples e inferior para o complexo e superior. Repudiava um ideal abstracto de progresso, definido pela complexidade estrutural ou por heterogeneidade crescente no sentido de um aperfeiçoamento generalizado. Darwin, de facto, foi avesso ao conceito de progresso como

expressão da evolução biológica, mas há que reconhecer que afinal o darwinismo traduz constantemente essa mesma ideia. A palavra «evolução» teve imediata aceitação, e foi logo utilizada

pela comunidade científica e pelos não cientistas. Em 1883, a Cassell's Concise Cyclopaedia consagra já a expressão como significando «a produção gradual de uma estrutura ou sistema complexo e altamente orga-

nizado a partir de alguma forma fundamental simples». E desenvolve os principais pontos da teoria da evolução com base na Origem, ainda que,

repita-se,

contexto

não

haja

nesta

última

obra

usual. Diz-se, ainda, na mesma

utilização

enciclopédia

da

palavra

no

que development

é expressão mais rigorosa do que evolution. Seja como for, este vocábulo passou sem demora, com o seu novo significado transformista, para as línguas portuguesa, francesa, alemã, etc., o que também teve a vantagem

de uma

pronta unificação de entendimento

ceito passou para o futuro a traduzir.

que o con-

Spencer fez da evolução uma teoria do progresso, enquanto Darwin não pensava exactamente assim, como já se referiu %. A adaptação para este último ocorria em relação a dado ambiente, a dada situação. Por outro lado, não considerava que o homem fosse o extremo de uma evolução desde os seres inferiores aos superiores, o representante máximo

do progresso dos seres organizados e susceptível de contínuo aperfeiçoa-

mento pela eliminação dos «incapazes», dos «desadaptados». Quer dizer

que

Darwin

não

acreditava

numa

ideia

de

progresso

expressa

pela

evolução e tendo o homem no cimo de uma escala de aperfeiçoamento. As modificações conduzem a adaptação crescente dos organismos ao ambiente, mas não pensava que o homem

fosse superior à amiba, visto

que ambos estão bem adaptados ao seu ambiente, de modo que não tem sentido

dizer

que

o ser humano

é «superior»

e a amiba

«inferior».

de Robert Chambers). E pode ler-se na 1.º edição da Origem

que Darwin

Recomendou a si próprio: «Never use the words higher and lower» (que anotou à margem no exemplar do livro The Vestiges of Creation, não acreditava em qualquer lei de progresso imposta aos organismos. Num desses passos escreveu: «Il believe in no fixed law of deve224

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — 1

lopment...» E mais adiante acentua de novo: «l believe, as was remar-

ked in the last chapter, in no law of necessary development.»

Foram os outros cientistas da época e os leigos que ligaram estrei-

tamente o conceito de evolução com o de progresso, tornando-os prati-

camente sinónimos. E o vínculo persistiu até à actualidade, embora

alguns biólogos evolucionistas o desaprovem em maior ou menor grau. nascida

teoria da evolução

uma

que

Certamente

numa

sociedade

em

haveria de plena mudança como aquela em que viveu Herbert emSpencer cada época fazer conduzir a esse resultado. O hábito enraizado de a leitura da natureza de acordo com a

lógica e a dinâmica da sociedade

humana, e depois, de caucionar a mesma sociedade com os factos e pro-

cessos evidenciados pela natureza, só podia levar a identificar evolução a progresso. À tendência começara timidamente no século XviI, mas

o imobilismo (relativo) social ainda não permitira fazer a grande equivalência. Mesmo Darwin, apesar do seu esforço em se libertar da

crença num progresso ideal, a ligar todas as formas de vida, equivaJendo progresso a complexidade de organização, não conseguiu totalmente,

ver, esse objectivo,

a meu

nem

pôde

subtrair-se inteiramente

dessa tendência. Isso mesmo pode ser verificado, por exemplo, quase no final do texto da 1.º edição da Origem,

quando escreveu:

Thus, from the war of nature, from famine and death,

the most exalted object which we are capable of conceiving, namely, the production of the higher animals, directly follows

(p. 459).

Por incluir o conceito de progresso, o emprego da palavra «evolução»

gerou

grande

confusão

e desentendimento.

Parte

da comunidade

científica seguiu o ponto de vista de Darwin, não considerando a evolução a implicar forçosamente progresso. Mas muitos outros, provavelmente a maioria, assim como o comum dos cidadãos, passaram a ver na

evolução uma

marcha

para um determinado fim, uma direcção para

maior eficiência, maiores

dimensões, mais inteligência, psiquismo mais

complexo, tomando-se como padrão ou meta o ser humano, que seria, deste modo, um extremo do movimento evolutivo. Daqui resultaram diversos preconceitos nocivos. Aplicado, por exemplo, esse significado as raças humanas, logo houve quem falasse de raças mais evolucionadas

e menos evolucionadas, significando, portanto, que umas seriam superiores, outras inferiores! O mesmo se fez quanto à origem e evolução do homem, quanto às nações, às culturas, às classes sociais, etc., com todas

as consequências infelizes e perigosas que se conhecem. O colonialismo encontrou aí suporte e justificação, as raças mais evolucionadas, «superiores», tendo o «direito» de submeter e «civilizar» as raças «inferiores» Bibl. Univ. 49 — 15

225

GERMANO

menos

evoluídas.

DA

FONSECA

O darwinismo

SACARRÃO

social foi, portanto,

em

parte

um

pro-

duto do que exprimia o termo «evolução». E o que ele exprimia (progresso, superioridade, etc.) apoiou largamente a sua doutrina e os seus

excessos. Darwin não pode ser culpabilizado por isso, tendo sido mesmo

contrário às pretensões do darwinismo social. Muitos biólogos e não biólogos continuam a vincular intimamente evolução e progresso, a identificar em absoluto os dois conceitos. Assim o fizeram Julian Huxley, um

dos mais proeminentes biólogos deste século, que influen-

ciou

fortemente

que

o precederam

o pensamento

ou

transformista

vieram

na

moderno,

sua esteira

(v. no

e tantos

cap.

outros

II, vários

passos). Teilhard de Chardin, com a sua ideia de evolução para Deus, fortaleceu

nota

e tentou

justificar

a

mesma

identificação

(idem,

cap.

1,

17).

Stephen Gould só em parte terá razão quando diz que os cientistas, ao seleccionarem uma palavra corrente que significa progresso, contribuíram

para estabelecer uma

a expressão darwiniana

incompreensão fundamental,

«descendência

com

modificação»,

substituindo

menos eufó-

nica, decerto, mas mais rigorosa. Mas a utilização generalizada da palavra «evolução» talvez não seja, a meu ver, inteiramente responsável pelos desentendimentos e abusos a que deu lugar. Creio que é, talvez,

mais

conforme

mudança

aos factos concluir

que

a progresso estava implícita

a tendência

na própria

para

identificar

transformação

da

sociedade europeia que vinha processando-se desde a Renascença, acentuando-se no século xvilI e, finalmente, fazendo sofia e dinâmica da revolução industrial e das

parte da própria filosociedades industriais

modernas que dela descenderam. A escolha da palavra correspondeu à necessidade de traduzir um conceito preexistente de transformação já ligado

a progresso.

Não

foi, portanto,

a expressão

«evolução»

que

o

corrompeu, embora tenha contribuído em parte para o adulterar e difun-

dir. Certamente que só teria havido vantagem em ficarmos com as expressões relativamente neutras «descendência com modificação»,

«transmutação das espécies», ou outras igualmente não comprometidas

e destituídas de implicação ideológica. Mas a terminologia científica não é de modo nenhum estranha às ideologias dominantes, ou a um certo

sentido prático ou cómodo sacrifica a objectividade. 4.

O

abuso

de

de comunicar

ideias,

e que

tantas

depende

em

vezes

metáforas

O conhecimento

que formamos

da realidade

grande

parte da linguagem, da sua estrutura e forma, das palavras inventadas,

dos significados atribuídos, das analogias fantasiosas. O meio cultural, o tipo de sociedade, os valores

dominantes, 226

marcam

profundamente

a

BIOLOGIA

terminologia,

e esta,

por

sua

E

SOCIEDADE —I

vez,

influencia

fortemente

os conceitos

e o sentido da interpretação dos fenómenos. Nas páginas anteriores, em várias ocasiões se nos deparou

analogias

e das metáforas

a importância

na linguagem

das fundamentalíssima

científica da biologia ”.

O abuso de metáforas é fonte de incompreensões e de falseamentos e o mesmo acontece, em regra, quando a mesma palavra passa na

sucessão temporal a designar objectos ou processos diversos, embora a

multiplicação terminológica não seja de modo nenhum recomendável, sobretudo quando as diferenças que se vão obtendo no conhecimento

de dada coisa ou fenómeno correspondem ao seu progressivo dilucidamento. Muito mais nociva é, porém, a utilização abusiva de metáforas, como hoje se verifica na biologia. Certos sectores desta ciência assentam

hoje numa retórica tão metaforizada que as suas relações com o real me

parecem falseadas. com reflexos perigosos sobretudo a nível da sua inte

gração na cultura e no ensino a todos os níveis. Artigos sérios em jor-

Esbicos». como se pode ver num artigo editorial de apresentação a outro artigo sobre a origem do comportamento sexual [ «Lesbian Essrds»:

m

vol. gy,7 (4):257, 1982]. Psychoneuroendocrinolo

A luz do espírito é um exemplo de expressão metafórica em que.

o ). do onári como diz Cândi de Figueiredo (Dici da Língua Portuguesa «a significação natural de uma palavra é substituída por ouira sgnif-

cação. que lhe não é aplicável, senão por comparação subentendida>. Or=. se o uso de metáforas parece ser, por vezes, uma necessidade em

biologia. o seu abuso é condenável e deve ser denunciado por conduzir

frequentemente a confusão. por instilar no leitor desprevenido falsos comesitos. sentidos errados. distorções da realidade É certo que a

metifora revela-se util em diversas situações, ou porque encurta uma

a 2 etizMas deserição. ou porque condensa ou sint um pensamento. metáfora não é só analogia de significações, de objectos, de fenómenos. com à metáfora pretende-se ir mais longe: descrever e penetrar na res dade biológica, apreender-lhe o sentido profundo. Aí reside o perigo de

Conlicoe casa csageis. É cota que sges

SEqanadS

é

us progresso do conhecimento científico, à ampliação do mundo cultaral, é uma necessidade permanente, e seguramente que um dos meios mais meportantes para o fazer é o recurso à metifora Em biologia, aus noutros ramos do saber, hã ideias para » formula dasção quais tabrzas palavras adequadas, de modo que em regra se procuram outras á exesenies comferindolhes um siguificado alargado mas tantas veses tis estranõo à essência da ideia ou feniemeno descrito que o sem sguExcado fuxa faboo, om varmo de conteúdo o termo utilizado E a sm repe cães desemndado ess no resultado de se dar aparência de cousa rea) m» 2H

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

que começou por ser ingênua ou tendenciosa analogia. E, assim, estas aproximações

e identificações geram

muitas

vezes perigosas metáforas

e lances de retórica. Impõe-se que se combata este vício. Mas, estranhamente, são raras as referências críticas que o denunciam de forma inequívoca. É por vezes elas respeitam exclusivamente

ao seu papel na

história das ideias *. a) 4 metáfora em Darwin

Inúmeros

exemplos deste descomedimento

podem

ser observados

na sociobiologia. Mas não é só nesta disciplina que o facto se verifica.

Pode dizer-se que largos sectores da biologia estão corrompidos por esse mal. A utilização abusiva da metáfora provém, em grande parte, da dupla

fizar

tendência generalizada

a sociedade

humana.

de antropomorfizar

Charles

Darwin

a natureza

utilizou

e zoomor-

constantemente

algumas metáforas na elaboração da sua teoria. Deve notar-se que ele tinha consciência desse facto, mas não, talvez, das ambiguidades da sua utilização. Por exemplo, chama a atenção do leitor para o valor explicativo da expressão «luta pela vida» (struggle for existence), que confessa utilizar metaforicamente, num sentido largo. A expressão «selec-

ção natural» é igualmente metafórica, à qual Darwin emprestou uma espécie

de acção providencial

organismo

a trabalhar

para

a melhoria

todas as vezes que tem ocasião para isso, numa

ciosa, sem se dar por ela, como ele escreveu. Darwin refere-se à selecção natural como um

de cada

acção silen-

No seu esboço de 1842, «ser infinitamente mais

sagaz do que o homem (não um criador omnisciente)», que exerceria o seu poder selector e a sua providência ao serviço de «certos fins», durante milhares de anos. Tudo isto demonstraria em Darwin uma

espécie de compromisso, na explicação da natureza, entre o positivismo,

a que conscientemente obedeceu, e o seu pendor pronunciado para o antropomorfismo, para personalizar a natureza ?. Já referi que Alfred R. Wallace pressionou Darwin a utilizar a expressão «sobrevivência dos

mais aptos» em vez de «selecção a

natureza.

Simplesmente,

a

natural», metáfora

expressão

que personifica

spenceriana,

que

Darwin

usou largamente, tem causado grande confusão, muito maior do que a que tem a expressão «selecção natural». Modelos matemáticos

podem

evitar, por vezes, expressões infelizes ou inadequadas na comunicação, mas a sua utilização é limitada, e na base da sua inspiração podem estar diversos comprometimentos. Além disso, o seu emprego faz-se,

sobretudo, nas áreas das especializações a que são particularmente aplicáveis.

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — I

b) 4 retórica sociobiológica A Além

sociobiologia da

venerável

está hoje

inundada

«sobrevivência

gias», os «egoísmos»,

do

por

mais

expressões apto»,

metafóricas.

temos

as

«estraté-

os «altruísmos», as «malevolências», os genes

«maus», «bons», «inteligentes» e «egoístas»; a «batalha» dos genes, o «escravo», a «exploração», a «fêmea adúltera», a «violação», o «marido enganado», O «intrujar», a «timidez», os «custos» e os «benefícios»,

e tantas outras metáforas aplicadas a biomoléculas e a animais, num desenfreado

antropocentrismo *!.

Em

substituição

do

vocábulo

«al-

truísmo» foi proposta a expressão «social donorism» (G. C. Williams e D. C. Williams), mais neutra, com menos carga emocional. Mas o resultado foi, segundo parece, nulo. Existe uma tendência, em muitos casos não premeditada, para projectar comportamentos humanos na

sociedade animal, e vice-versa, o que pode, a meu ver, explicar a resistência à utilização de termos directos e de sentido neutro.

A cultura, a política, a tecnologia, também inspiram metáforas, como (além das precedentes) «progresso», «sucesso», «guerra», «com«investimento»,

petição»,

«código»,

«informação»,

«mensagem»,

«má-

quinas egoístas», etc. Mas os genes não são egoístas, nem altruistas. Para ê então utilizar expressões que só conduzem a confusão? Já chegam

os mal-entendidos com certas expressões clássicas *. A

sociobiologia,

que

parece

não

poder

exprimir-se

sem

o recurso

excessivo à metáfora, vai destilando significações deturpadas, sobretudo quando

aborda

a

esfera

do

homem.

Aqui,

distanciando-se

do

rigor

investigativo e dos limites da hipótese refutável a que, em regra, obedece nos trabalhos da especialidade, já não se sabe, muitas vezes, se a expressão é metafórica, ou se é esse o seu sentido real. A meu ver,

quanto mais a biologia abarca o social e introduz o homem nas suas interpretações, a mais metáforas tem de recorrer e mais ideológica se torna. Uma formiga é «altruísta» na medida em que a sua desvantagem genética implica vantagem genética para outra formiga. Mas altruísmo (humano)

é outra coisa: nele existe sempre uma componente consciente

e uma intenção de prestar auxílio a outrem. E não chegamos a nenhum lugar se considerarmos «intenções» e «valores» no animal. Se assim fosse, a moral não seria um problema exclusivamente humano, como é. Por outro lado, nem todo o altruísmo humano implica necessariamente sacrifício para o altruísta, nem o egoísmo exige que haja nocividade para o semelhante. Nas analogias que se podem estabelecer entre os comportamentos dos animais, para se manterem vivos, e as formas da conduta humana, subjaz, provavelmente, um grande mistério, mas tal

facto não justifica natureza diferente.

que

se aproximem

229

ou

identifiquem

processos

de

GERMANO

c)

Necessidade

DA

de saneamento

FONSECA

SACARRÃO

semântico

O ideal seria que a comunicação científica em biologia não incluísse expressões metafóricas. Mas se não parece possível deixar de recorrer ao emprego de metáforas e analogismos na comunicação entre

especialistas e no próprio trabalho de investigação, haverá a maior

equívocos

cautela,

sobriedade

e clareza

na

sua

utilização,

e falsas interpretações não adulterem

que exigir para

que

a objectividade

os

e o

significado das interpretações. Karl Popper não me parece ter exagerado

quando

disse

que

em

muitas

obras

sobre

evolução

e sobre

história

é muitas vezes impossível descobrir onde termina a metáfora e começa a teoria séria. Onde a metaforização atinge grandes proporções e formas particularmente abusivas é, sobretudo, naquela larga zona ciência-ideologia, e nas transposições múltiplas da biologia para as ciências humanas, para as áreas imensas da cultura e da filosofia, ou quando

se estabe-

lecem relações entre o homem e os outros animais, particularmente a nível de comportamento social e da estrutura das sociedades. Peri existe quando o abuso da metáfora

induz a darmos

significados a fenó-

menos que, na realidade, eles não têm, ou não está provado que tenham. É, por exemplo, o que acontece, muitas vezes, quando, sem senso critico, se estabelecem certas homologias e filiações entre o comportamento do animal e o do homem, sem avançar a suspeita de podermos estar em

presença

de analogias.

Isto será devido à tendência

de projectar na

natureza

ideias e sentimentos que insensivelmente conduzem

depois a

crer fazerem parte dela. À uma expressão neutra prefere-se um vocábulo já comprometido

noutro

contexto,

e que se julga

ser útil fora

dele.

Simplesmente, o que sucede frequentes vezes é que esse vocábulo deslocado origina falsas interpretações. Um equilíbrio impõe-se, a meu ver, entre a arte de comunicar ideias e a exigência de objectividade e rigor,

evitando-se as ambiguidades e a falsa doutrinação. Toda a natureza é comparada a uma máquina, metáfora que inspira há quatro séculos a visão da natureza, e toda a biologia se tem desenvolvido penetrada desse mito. As estruturas científicas reflectem as relações económicas e a ideologia dominante. Por exemplo, no ensino secundário a célula é muitas vezes comparada a uma fábrica, com suas linhas de monta-

gem, matérias-primas, produção e distribuição de produtos. Exemplos

deste tipo não têm conta *.

Metáforas falsas, sem sentido, são frequentes. O dualismo cartesiano da alma e do corpo pode originar o ponto de vista segundo o qual

as doenças mentais não são verdadeiras doenças porque a insanidade mental não pode ter origem numa degenerescência ou mau funciona-

mento do corpo, visto que a doença autêntica só ataca a matéria, o organismo, e não a alma. E então a expressão «doença mental» seria 230

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — I

Szasz, professor de Psiquiatria na

metafórica. É o que pensa Thomas

Universidade de Nova Iorque *.

Metáfora abusiva e sobretudo sem sentido porque assenta em bases

equívocas

ou falsas é também

identifica

os três folhetos

derme) objecto

a que estabelece René Thom *º quando

embrionarios

(ectoderme,

mesoderme,

endo-

(=endoderme), verbo (=mesoderme) e fundamentos embriológicos são simplistas

à trindade sujeito (=ectoderme). Os

e demasiado generalizantes, tudo em grandes linhas; e, além do mais, inexactos. Por exemplo, não existe no vertebrado uma estrutura ternária claramente constituída pelos três folhetos primordiais indiferencia-

dos, e com potencialidades organogenéticas bem segregadas. As coisas não se passam assim, e são mais complicadas do que a visão esquemá-

tica do matemático metáfora fazer-se

dizendo «uma

francês exprime. Quando

que

«comporta

embriologia

sentido»

comparada

Thom

porque

dos vertebrados

justifica a sua

com

ela ' poderá

e dos insectos,

por exemplo», comete várias imprecisões. Anoto apenas uma — a de que «nos insectos não há praticamente endoderme», facto que não é correcto. Daqui resulta que a sua interpretação da imaginada diferença fica sem base. Reconheço que uma biologia inteiramente expurgada de expressões metafóricas não será talvez possível. Mas será sempre preferível o recurso a expressões neutras ou directas, literais e inequivocas. À metá-

fora deve ser usada com muita parcimónia, utilizando as suas virtudes, mas evitando os seus defeitos. Em ciência, as palavras são instrumentos de clareza, fundamentados na realidade, tentando descrevê-la. A metáfora, que poderia ajudar a isso, fá-lo muitas vezes com desmedida e até transviadamente. Com ela aspira-se a penetrar na essência das coisas

para as explicar. Os simbolismos, as alegorias e as personalizações, que são variantes, extensões ou cascatas de metáforas, estabelecem a confu-

são e a falta de clareza dos conceitos. Prefere-se metaforizar em vez de

enveredar pelo sentido real e directo dos fenómenos. A palavra «progresso», por exemplo, é aplicada em biologia evolutiva quase sempre com sentido metaforizado. Traduz uma realidade duvidosa, é palavra deslocada

do

seu

significado

real.

De

facto, a ideia

de progresso

é,

muito provavelmente, antropocêntrica, como pensava J. B. S. Haldane, contrariamente, aliás, à opinião de outros biólogos (como Julian

Huxley), mas não à de Charles Darwin. Conferencistas, popularizadores e escritores de ciência prestam um péssimo serviço quando utilizam um estilo empolado, com recurso constante

a analogias,

a figuras

de retórica, a comparações

abusivas,

ocas de sentido, num metaforizar excessivo. Em grandes áreas, como na teoria da evolução, ou em disciplinas como na ecologia, na etologia, na antropologia, na sociobiologia, etc., muitos autores são tentados pelas

analogias, pela imagem

sem fundamento na realidade, pelas hipóteses 231

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

baseadas em metáforas, ou por explicações que mais não são do que metáforas. À preocupação essencialista (tipológica) de utilizar a ciência para revelar as essências, a natureza real e secreta das coisas para as explicar, conduz quase inevitavelmente a interpretações que, parcial ou totalmente, são metáforas ou de natureza metafórica. Após ter depurado a biologia de interpretações divinas, o darwinismo introduziu o hábito irresistível de fazer a leitura do homem em termos de animal. Este método tem implicado analogias, equivalências e valores que são, muitas vezes, estranhos à objectividade científica. Com a sociobiologia atingiu-se o ponto mais alto deste movimento, e o

abuso

da

metáfora

constitui um

dos seus

meios

mais

penetrar na cultura e no ensino, e de corromper uma

poderosos

de

e outro. «Meta-

forizar bem é descobrir o que é semelhante», dizia Aristóteles (cit. P. Ricoeur). Será. A verdade, porém, é que o estabelecimento

de aproxi-

mações e correspondências entre o comportamento animal e o comportamento

humano

tem

conduzido

(e

continua

a

conduzir)

a

muito

equívoco e a muito erro. É as provas estão feitas quanto à extrema debilidade dos juízos baseados em simples analogias, tão ao gosto da ideologia

científica e dos seus mitos. Impõe-se,

semântico de vastos sectores da biologia.

232

por isso, o saneamento

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — I

NOTAS

1 O título completo é The Origin of Species by Means of Natural Selection/or

the Preservation of Favoured Races in the Struggle for Life. 2 Segundo parece, é por volta de 1840 que Darwin adopta o termo «selecção» (escrevendo em nota à margem de leitura) para exprimir as suas ideias sobre a origem das espécies. Mas num contexto perfeitamente similar já Patrick Matthew, em 1831, se tinha referido ao natural process of selection, e só mais tarde é que Darwin escreveu «natural means of selection» no seu Essay de 1844 (não publicado em vida de Darwin) (v. Limoges, 1970, p. 105). Em 1860, Darwin reconhece a Matthew a prioridade da ideia, mas não, aparentemente, a do termo designativo. (C. Darwin, «Natural selection», Gardeners” Chronicle and Agricultural Gazette, 16, 921 de Abril, 1860, pp. 362-363, in P. Barrett, 1977). 3 Para alguns aspectos da génese do darwinismo poderão consultar-se três arti-

gos que publiquei em 1982 e 1986 com o título de «Apontamentos sobre o Darwinismo»

(Naturalia), Idem, meu

1986 a.

4 Durante a sua viagem e nos três anos subsequentes à data do seu regresso a Inglaterra (Outubro de 1836), Darwin foi gradualmente modificando a sua atitude filosófica e científica, até ao acabamento da construção teórica por volta de 1840 nos seus alicerces fundamentais, sendo influenciado por múltiplas causas que actuaram no seu espírito: factos observados na natureza, leituras variadas, filosóficas, literárias,

científicas, etc., reflexões e críticas, um longo trabalho de paciente compilação biblio-

gráfica, estudo das colecções da viagem, contactos com especialistas que as analisaram, etc., tudo agiu nele para o conduzir à grande síntese teórica (v. o meu artigo «Sobre o método em Darwin», 1986, Prelo).

S Em 1858 foi apresentada à Linnean Society of London (1 de Julho) uma comunicação conjunta constituída por dois textos respectivamente de Darwin e de Wallace em que ambos assentavam os pontos capitais da teoria da transformação das espécies por selecção natural, a que tinham chegado independentemente um do outro e em lugares diferentes e distantes. Outra notável contribuição de Wallace foi um

livro sobre a distribuição dos animais

(1876)

que firmou a biogeografia como uma

ciência, e a que pouco de importância fundamental

à

distribuição

regional

das

aves

e

mamíferos

foi acrescentado no que respeita

terrestres,

que

foi

o

seu

tema

principal. Wallace, porém, não escreveu nada que possa comparar-se à Origem, e as suas ideias sobre a evolução do homem (da inteligência, do espírito) traduzem uma visão mística das origens humanas, apesar de ser um hiperseleccionista que aplicava o princípio da selecção natural com uma rigidez e absolutismo que Darwin nunca manifestou, muito ao contrário, Foi Darwin que revolucionou a biologia com o seu livro fundamental, e não Wallace com o seu artigo apresentado à Linnean Society,

como aliás o próprio reconheceu em carta dirigida a Darwin (v. Dobzhansky, 1974,

p. 326, Gould, 1980, George, 1980). 6 V. R. Dawkins, The Extended

7 Ou

Phenotype,

pp. 178-179.

talvez porque a expressão veiculasse mais facilmente

a sua teoria, tor-

nando-a mais aliciante e mais inteligível pelo vulgo. é Como que um lugar-comum, sublimado e transformado em lei científica fundamental da natureza viva, No seu sentido vulgar e generalizado, o conceito pode

aplicar-se a tudo o que se quiser (ou quase), ao mundo 233

físico, à competição entre

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

diferentes forças gravitacionais, aos processos inorgânicos, ao universo molecular, aos diversos engenhos e máquinas, à sociologia, à história, às hipóteses científicas, à vida de todos os dias, etc. É uma trivialidade na vida social de qualquer nível o conceito de que o que é melhor tende a substituir o menos bom. Neste sentido vulgar, truístico e alargado a todas as ciências e ao quotidiano, o conceito esvai-se. É necessário, por isso, limitá-lo à natureza viva, ou seja, aos sistemas que se auto-reproduzem

e que

variam

Dobzhansky,

(mutações)

(v.

também

G.

Montalenti

e B.

Rensch

in

Ayala

e

1974).

? E não apenas Wallace, como se referiu noutro lugar. Também o mendelismo o seu trabalho até 1900. Só atingiram um

sem Mendel

haveria de nascer, como de facto aconteceu, após longos anos em que teve, para todos os efeitos práticos, uma influência nula, desde 1866 quando os conhecimentos sobre a reprodução e a biologia celular certo nível é que o mendelismo teve o seu momento para surgir, para

ser compreendido e integrado. Só a partir de 1900 é que as «leis de Mendel» foram aplicadas

ao conjunto

das plantas

e dos

animais,

originando

uma

nova

disciplina

científica — a genética, ou ciência da hereditariedade. 10 A questão não é tão simples porque uma elevada aptidão reprodutora pode

ter

consequências

desadaptativas

li O que não teoria

tem

(v. meu

1985).

acontecido, sendo

ter resistido a todos

os ataques

de salientar

e críticas

que

o fácto significativo

lhe

têm

sido dirigidas

de. a desde

1859, o que parece atestar o vigor e validade do conceito. i2 Muitos dos cépticos sobre a realidade ou eficácia da selecção natural utilizam

frequentemente

este conceito.

13 V. meu 1985, onde se tenta mostrara importância fundamental da ontogenia

e da história

como

factores que

constrangem

os organismos

a seguirem

certas vias

de mudança. Nem a mecânica da selecção natural (que mais não é do que reprodução diferencial)

nem

o acaso chegam

para explicar a origem das espécies e das adapta-

ções. É necessário contar com a influência das estruturas preexistentes e da história como fontes e condição da criatividade nos seres vivos.

14 V. a nota 15 do cap. II. 15 V. o meu artigo «Apontamentos

sobre o darwinismo — 3. Leituras e refle-

xões de Charles Darwin na gestação da sua teoria» ló Nem mesmo os gémeos monozigóticos ou mesmo óvulo, e têm, portanto, os mesmos genes, idênticos, inclusivamente no plano físico (v. o cap.

(Vaturalia, 1986). monovulares, que provêm de um se podem considerar na realidade Iv e o cap. x1).

7 A biologia clássica assenta no método aristotélico de agrupar o que é semelhante, descrever caracteres comuns a dado tipo de organismo de maneira a apreender a sua «essência». Assim nasceu a classificação dos organismos com todas as suas filosofias e compilações. A ruptura com a tradição ocorreu sobretudo quando Darwin procurou uma explicação racional para as diferenças entre indivíduos da mesma

espécie fora do quadro metafísico do essencialismo, quando eliminou a barreira tipológica que opunha entre si as espécies como unidades fixas, Esta «biologia das diferenças» só veio a concretizar-se e a desenvolver-se com o nascimento da genética cujo

pólo

j'ai

deux

experimental vaches,

je

é oposto

ne

ao da biologia

m'intéresse

pas

comme

tradicional.

généticien

Escreveu à

leurs

Haldane:

«Si

similarités

Je

constate leurs differénces; je demande si elles sont héréditaires, ou bien dues à des

différences d'élevage» (La méthode dans la génétique, 1961, p. 41). Acrescenta ainda que o geneticista procura explicações causais para as diferen-

ças, que é um problema muito menos simples do que parecia de começo, dado que é extremamente difícil distinguir entre o que é hereditário e o que é devido aos alia

do meio. CUT. 18 Mais

tarde desenvolvida

e concretizada 234

noutro

artigo g de G ould

e Eldredge

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — 1

1 A evolução

a nível das ontogenias

(embriogéneses)

mente, a formação

de súbitas e protundas

descontinuidades morfofuncionais.

não consente, provavel-

Para

alguns aspectos deste problema, v. o meu artigo «Saltos ou pequenos passos na evolução das ontogenias?» (1986). Idem, 1987 b. 2 Segundo algumas autoridades, seriam raros os depósitos geológicos suficientemente

contínuos

cronologias

figurarem

para

milhares de anos, que são curtas durações

de

modo

que

as

espécies

que

nelas

se

superiores

algumas

a

centenas

de

do ponto de vista do tempo geológico, são

originam

similares

entre

si, de

acordo

com os restos fossilizados que deixaram e com o pouco tempo decorrido para desenvolverem significativas divergências em relação às que as precederam. Será por isso que não se observam mudanças transicionais para níveis mais elevados (família,

ordem, classe, etc.), já que as transformações requeridas necessitariam de cronoiogias

de vários milhões de anos, e os depósitos geológicos contínuos não abrangem intervalos tão longos? Sendo assim, poderá então pensar-se que as fases de mudança gradual mas rápida possam oferecer imagens paleontológicas de aparente descontinuidade. Nestas circunstâncias, o que parece instantâneo aos neo-saltacionistas pode ter durado, na realidade, centenas de milhares de anos. Existem, também, sequências fósseis que não se ajustam ao esquema «punctacional» dos neo-saltacionistas, além de que diversas hipóteses têm sido opostas ou propostas para interpretar as descontinuidades dos registos fósseis e as longas fases de estase morfológica neles aparentes. Defendo há anos o ponto de vista de que o «saltacionismo» poderia traduzir fases de evolução

muito rápida, com séries de estados intermediários, e nesse caso não haveria oposição

ao gradualismo, como pretendem os «punctacionalistas». Quer dizer, seria um «rápido gradualismo» (fast gradualism ), como o designou em 1984 Adrian Lister. Além dos trabalhos já mencionados no corpo do texto e nas notas relativas a este tema, poderão, ainda, consultar-se as seguintes fontes: Lewin (1980), Stebbins e Ayala (1981, 1985),

Devillers e Blanc (1981), Martin (1982), Maynard-Smith (1982, a, b, c), Mayr e outros (1982), Lewinton (1983), Lister (1984), Penny (1985). 21 V. o seu artigo com o sugestivo título «The return of hopeful monsters».

V. também o artigo de Bruce Wallace («Reflections on the still hopeful monster», 1985). Se se atenta no problema da origem e evolução dos parasitas extremos, verifica-se, a meu ver, a altíssima improbabilidade de ela se fazer por saltos morfológicos (v. meu 1983, pp. 123-139). 2 Formas «compromissos» dão, talvez, melhor a ideia do seu significado. São certas espécies actualmente existentes ou sobretudo já extintas, onde coexistem

caracteres particularmente nítidos de duas categorias taxonómicas que se consideram

evolutivamente ligadas, sendo uma derivada da outra. A paleontologia tem revelado diversas destas formas «compósitas». Lembremos o caso clássico da Archaeopteryx, com caracteres de «réptil» e «ave», mas não sendo já «réptil» nem ainda «ave» típica moderna conforme os padrões estabelecidos para esses agrupamentos. E o de

outras com caracteres de «réptil» e de «mamífero», mas não podendo já pertencer

aos «répteis» nem podendo ainda identificar-se aos «mamíferos» verdadeiros. Não há qualquer «salto» na série de formas transicionais que fazem a passagem de certos répteis primitivos para os mamíferos, pelo menos naqueles caracteres detectáveis na documentação fóssil (Tassy, 1983). Grupos, quando abundantes em documentos fósseis, e bem estudados, revelam, por vezes, imagens de evolução gradual, como acontece, por exemplo, com os mamíferos roedores (v. Thaler, 1983). No fundo todos os organismos são compostos de caracteres arcaicos e modernos. Os australopitecos podem, também, considerar-se como formas «intermédias» aos símios e aos homens, possuindo caracteres de uns e outros. A razão disto está no facto de a evolução ser um processo histórico, onde as novas características são sobretudo obtidas por trans-

formação provavelmente gradual do que já existe, a evolução per saltum (em que o novo tipo de organismo surge subitamente diferente, sem fases intermediárias), sendo

formas

provavelmente

«transicionais»

excepcional

no

se conhecem

conjunto

da

evolução

dos

seres

vivos.

Outras

entre peixes e anfíbios, entre anfíbios e répteis, 235

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

o mesmo acontecendo entre os invertebrados. Como as categorias taxonómicas (filos, classes, ordens, etc.) são artefactos, parece disparate discutir a sua origem na evolução. De qualquer modo, a origem dos respectivos organismos não se fez, provavel. mente, por «saltos» evolutivos (v. meu 1955). 23 No espírito de Darwin não houve só influências, conscientes ou não, do sistema económico da época e dos valores burgueses de que se nutriam as classes cultas de então. Há que lembrar que a concepção gradualista da evolução, que forma

o esteio

fundamental

em

que

toda

a sua

obra

se

apoia,

nasceu

empiricamente

na

Primavera de 1837 e se consolidou depois definitivamente, a partir do estudo de materiais trazidos da viagem feito por especialistas reputados, nomeadamente as con-

clusões a que chegou o ornitólogo John Gould, que não era evolucionista, acerca de espécies de aves das Galápagos (v. o meu artigo «Sobre o método em Darwin», Prelo, 1986). Naturalmente que a influência de Lyell e a cultura anglo-saxónica assimilada (por exemplo, a tradicional aversão a súbitas convulsões e ao abstractismo) a sua

tiveram

parte na

das

génese

Darwin

conduziram

que

ideias

evolução por «saltos». Mas não houve só ideologia no processo, porque uma forte e permanente tendência a pensar sobre realidades. Estas

da

à rejeição

Darwin tinha considerações

igualmente se aplicam à teoria da selecção natural, intimamente ligada, em Darwin, à concepção de não descontinuidade na mudança, não sendo, portanto, de aceitar com exclusividade a opiniões esquemática de autores como Gould quando afirmam que na

formulação da selecção natural Darwin se limitou a fazer a transferência do laissez-

-faire de Adam Smith para a economia da natureza; e que tal facto resultou, não da zoologia das Galápagos, mas sim das suas leituras e reflexões filosóficas, sociológicas e económicas, que fez com particular intensidade entre 1836 e 1839 (v., do mesmo autor, Darwin novelized, 1981). Sem dúvida que Darwin foi influenciado pela sociedade do seu tempo, pelos valores da classe a que pertencia, e o darwinismo

reflecte em parte a ideologia da época em que viveu. Mas não resultou só disso. Nem sabemos qual a quota-parte que lhe cabe. A realidade do trabalho intelectual de Darwin traduz uma interacção fecundíssima de factos e ideias dos mais variados quadrantes e quem explicar o darwinismo apenas à luz de mitos políticos particulares ou de realidades socioeconómicas não apreende a sua complexidade e muito menos a sua natureza. Se Darwin não tivesse saído de Inglaterra para a sua viagem científica a bordo do Beagle, teria o darwinismo nascido? (v. atrás «biologia sem Darwin»).

24 A ideologia da evolução «saltacional» é aplicada noutros campos sem ligação aparente

com

a elaborada

teoria

«punctacional»

da biologia,

mas

apresentando

toda-

via óbvias semelhanças com ela no aspecto fundamental de que a momentos «revolucionários» se seguem longos intervalos de estabilidade. Mesmo fora da biologia, a

doutrina apresenta-se com rosto de científica, como se expressasse a única realidade da mudança, como se traduzisse a verdadeira noção de evolução (social humana, ou outra) (v., por exemplo, Danzin e Prigogine, 1982). 25 A origem do homem, as várias formas sub-humanas transitando para humanas, suportam, provavelmente, mais a hipótese gradualista do que a hipótese salta-

cional, por muito que se esforcem em demonstrar o contrário os defensores desta última. Mas não se podem excluir na evolução do homem as rápidas evoluções, separadas por períodos mais ou menos longos de estabilidade relativa. Deverá, porém, notar-se

que,

respeitam

quer

para

a caracteres

o caso

isolados,

do

homem,

quer

para

nomeadamente

fósseis, mada se sabendo do resto da organização (partes

moles,

fisiologia,

comportamento,

gradual (v. nota 3 do cap. II).

etc.)

as outras

aqueles

que

as

estases

evidenciados

que, na realidade, é quase e que

poderia

26 A antiga ideia segundo a qual existiam realmente isso há cinco séculos)

espécies,

são

seres terrestres extravagantes

evidenciar

nos

tudo

evolução.

(não havia dúvidas sobre

e monstruosos

persiste

hoje, mas

transposta a imaginação da sua existência para outros mundos, mito em que à mesma a fantasia

combina

partes

de seres que

afinal

236

não

são essencialmente

diferentes

dos

BIOLOGIA seres

terrestres

normais,

podendo

E

SOCIEDADE — I

reconhecer-se

nessas

formas

de insectos, vertebrados, mamíferos ou de seres humanos Tinkering,

1977).

costumes,

dos

Mesmo

as especulações

extraterrestres

terminam

sobre

por

estranhas

que

elas

são

(v. F. Jacob, Evolution and

a moral, a ciência, a sexualidade,

imaginar

formas

outras) que não diferem essencialmente dos humanos terrestres.

de

conduta

moral

os

(e

41 V. no meu livro 4 Vida e o Ambiente (1981), as pp. 99 a 111. 28 No artigo «Chance, necessity and plan in living systems», o zoólogo Otto Koehler disse que, se imaginarmos que as duas células-filhas resultantes da divisão da primeira célula se separavam, indo cada uma povoar metade do planeta terrestre, e se, desde então, as duas metades do planeta, sob idênticas condições, se movimen-

tassem, também separadas, em volta do Sol, mesmo nesse caso não se poderia esperar encontrar,

na

outra

metade,

lizados. As duas meias

amibas,

salamandras,

cães da

Terras

teriam

(é praticamente

John

Eccles

(Human

ções. E o neurobiólogo

Terra

Nova,

homens

civi-

quase certo) diferentes evolu-

Mystery,

p. 72),

que

também

admite a existência de vida extraterrestre, diz ser notável o facto de a surgido, em 3 biliões de anos, uma única vez na Terra, facto tanto mais rio quanto é certo que se trata de um planeta em que tudo existe e se o aparecimento de vida. Planeta no qual a evolução biológica obedece

não

vida só ter extraordináajusta para a processos

que não se encontram no mundo dos fenómenos que os físicos estudam, como acentuam Mayr e outros biólogos evolucionistas (v. Lewin, 1982). 29 Nem

de vida inteligente, nem

de vida elementar tal como a observamos nos

microrganismos. G. G. Simpson, no seu já hoje clássico artigo «The non prevalence of humanoids», diz que poderá existir vida noutros mundos, em sistemas ou organismos com outras composições e formas diferentes das da vida terrestre, mas nesse caso pode acontecer que os não reconheçamos como vivos, ou então teremos de rever a nossa concepção sobre o que é a vida. O mesmo autor passa em revista as numerosas

improbabilidades que se acumulam quando se pretende responder à questão da existência de vida inteligente noutros planetas. À própria concepção sobre o que é a vida,

ou como

defini-la, revela a existência de obstáculos insuperáveis. Em

4

Vida e o

Ambiente tentei mostrar que a vida não se pode definir, como de resto tantos biólogos já o haviam reconhecido. Mas o problema continua a pôr-se em biofilosofia, ainda

que as definições sejam em si mesmas aspectos secundários. Mas importa, creio eu, reflectir em certos aspectos da filosofia de Adolf Portmann, quando nos diz que a realidade do ser vivo é um todo que não captamos pela desmontagem das partes que constituem os sistemas mais simples de organização, que nos níveis de descomplexidade, como o da esponja, do protozoário ou da bactéria, não aumenta a simplicidade, pois esses escalões de simplicidade continuam a patentear-nos o problema da compreensão do ser vivo, sem nos aproximarmos da solução. Para compreender a vida, a planta não é mais fácil, mas, ao contrário, mais dificilmente compreensível.

30 31 32 34-38 e

V. meu 19824, pp. 76-86. V. meu 1985, pp. 71-92. S, J. Gould, Darwin's Dilema: The Odissey of Evolution, in Gould (1977 b): 201-206. Teoria da preformação que conduziu à teoria do encaixamento dos

germes.

A

passava

na embriogénese.

mais que

palavra existiram

«evolução» As

foi

ou haveriam

tendo sido esses germes

aplicada

primeiras

de existir

criados ao mesmo

La Formation de VÉtre). 33 V. as notas 3 e 9 do cap. II. 3 O termo

«evolução»

de desenvolvimento

no

fêmeas

seu

sentido

conteriam

até à extinção

tempo

foi primeiramente

etimológico

os germes

de

ao todos

que

se

os ani-

das espécies respectivas,

e encerrados nos ovários (v. Rostand,

utilizado num

contexto

embriológico,

(quer dizer, com os termos a significar «descobrir», «desenrolar»,

“tirar do invólucro»). O desenvolvimento do embrião (em sentido etimológico, a significar sair gradualmente o embrião dos seus vários invólucros) continuou, mesmo

depois de banido o velho conceito da preformação, a servir de modelo para a nova concepção da transformação das espécies. Mas agora, no contexto evolucional, surge 237

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

intimamente ligado à noção de progresso, precisamente porque o desenvolvimento embrionário era um modelo de aperfeiçoamento sucessivo, de complexificação para

um fim determinado. E assim como o crescimento do embrião é um modelo de progresso, também os seres vivos e as suas transformações desenvolvimento para um fim predestinado. Às primeiras lução» têm um significado análogo exactamente porque a movimento progressivo da vida para o ponto máximo da

exprimem um padrão de aplicações do termo «evoembriogénese recapitula o criação, que é o homem

(v. Bowler, 1984). Quer dizer, a palavra «evolução» transita da embriologia para a sua concepção transformista, mas não se desligou do conceito de progresso que está implícito no crescimento do embrião a partir do ovo, facto que os naturalistas sempre reconheceram. E foram Darwin e Herbert Spencer zaram o progressivismo, tornando-o ilimitado, mas

aceitar

que

a transformação

das

espécies

que ultrapassaram e universaliDarwin foi sempre contrário a

contivesse

um

significado

de

progresso

devido às dificuldades da aplicação desta noção à biologia. Segundo MacBride declara no seu livro Sobre a Evolução, Charles Lyell teria aplicado nos seus Principles of Geology (antes de Spencer, portanto), a palavra «evolução» aos processos graduais de transformação geológica da superfície terrestre. Para significados do termo «evolução» v., por exemplo, Vuilleumier (1984) e Cuvillier (1984).

35 W. Durant, História da Filosofia, Livros do Brasil, Lisboa. 36 Já se abordou no cap. II o problema do progresso na evolução. Não é possível estabelecer uma noção objectiva de progresso aplicada às espécies e às estruturas biológicas, se dermos à expressão um sentido valorativo, e não apenas o de sinónimo

de pura mudança. Ora, no seu sentido correntemente adoptado de transformação com o significado de aperfeiçoamento de movimento para uma melhor situação ou estado, ou que o mais complexo traduz progresso, sendo mais perfeito do que o mais simples, tal conceito de progresso não parece aplicável aos fenómenos da vida na sua globalidade, nem mesmo à evolução dos seres vivos. É provável que a ideia de progresso na natureza viva se tenha alimentado em parte da forte influência da

Sp

ou pelo seu comportamento, com outros mais simples, mas apesar disso não me parece que possamos escapar facilmente da conclusão de que, nesse caso, o conceito de progresso é perfeitamente antropocêntrico. Não é, talvez, por isso, legítimo basear na evolução da natureza viva qualquer teoria social sobre o progresso, e sejam quais forem as teorias sobre as suas causas, lamarckianas (hereditariedade biológica do uso) ou darwinianas (selecção natural de variações aleatórias). Podem, todavia,

id

scala naturae (a perfeição crescente) e do conceito de progresso dos filósofos das Luzes. Em certos sentidos adoptados poder-se-á considerar haver progresso, como quando compararmos certos tipos de organismos mais elevados pela sua organização,

estabelecer-se diversos critérios de progresso, e conforme a tais normas pôr em evi-

dência sequências evolutivas mais ou menos longas, traduzindo adaptações particulares, resistências adquiridas, maior independência relativamente ao ambiente (e seu controlo), tendência ao expansionismo ecológico dos seres vivos, estruturas ou compor-

tamentos sucessivamente mais complexos, etc. E, quer nas plantas, quer nos animais, abundam,

também, os retrocessos, as degradações e simplificações, muitas adaptações

a terminarem em extinções, etc. Existem várias definições é tipos de progresso e a

evolução

biológica

não

parece

ser,

na

realidade,

caracterizada

por

uma

tendência

universal para aperfeiçoamento ou melhoria, embora possamos evidenciar nela diversas linhas de progresso, de acordo com normas ou valores prescritos. Em geral, os critérios de progresso dos biólogos são retirados dos valores morais e das estruturas económicas da sociedade de eficiência, de sucesso

empresarial e industrial, na reprodução, utilização

como acontece com os critérios optimal do tempo ou dos recur-

238

DR

trabalhos de Simpson (1949), Popper (1961), Ayala (1974 a), Mayr (1982), Bowler (1984), Lewontin (1985). 37 V, sobre o abuso da metáfora na biologia os meus artigos de 1984 e 1896. sendo este texto o do segundo artigo, com algumas alterações.

E

sos, etc. Para mais dados sobre este problema poderão consultar-se, por exemplo, os

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — I

38 Ernst Mayr (1982), por exemplo, um dos construtores da moderna teoria da evolução, não parece ter apreendido todo o significado da metáfora na interpretação biológica actual (apenas salientando a sua importância na história da ciência) e sobretudo as suas nocividades

e abusos tão correntes. Mesmo

assim, é uma

excepção.

Importa lembrar que muitas vezes a explicação de um fenómeno (e o seu futuro como teoria) depende em grande parte de se encontrar a metáfora mais conveniente para o traduzir, o que, naturalmente, poderá, como tem acontecido, obscurecer ou falsear a sua realidade.

3? Penso que a metáfora em Darwin era mais uma poderosa arma, de que ele se serviu para argumentar e convencer da validade da sua teoria. Talvez que, tendo uma visão global da natureza c sendo sensível às interdependências complexas, à grande harmonia e grandeza que nela via, desejava explicar essa unidade orgânica por uma força natural, como a gravitação. Mas, com a sua profunda intuição ecoló-

gica e a sua inaptidão para as matemáticas e para o frio mecanicismo, compreende-se o seu pendor para o antropomorfismo, para o uso de metáforas para exprimir o que sentia e o que pensava.

um

Para Manier (1978), a representação da teoria por metáforas e alegorias foi aspecto crucial e absolutamente central da realização do projecto científico de

Darwin. Era talvez irresistível nele fazer a leitura da natureza em termos humanos, tal como interpretava o homem em termos do animal, mas afastando desta relação

a interferência de qualquer influência divina. Além de selection e struggle, Manier cita, igualmente, como metáforas darwinianas, chance, contrivance, economy e outras. Emite ainda a opinião segundo a qual, se Darwin não utilizasse metáforas, mas sim uma

expressão

directa, literal, o seu significado

científico não

teria sido transmitido.

Para este autor, elas tinham uma dimensão afectiva e cognitiva (científica), sendo os dois aspectos interdependentes, «de uma maneira que impede o rigor histórico de

qualquer interpretação que os isole um do outro» (p. 173).

4 V. Dawkins (1982), pp. 179-181. 41 V. meu 1982 — 4 Biologia do Egoísmo. 42 Seria fastidioso dar exemplos da invasão de falsas metáforas na biologia. A entomologia do século XIX forneceu, por exemplo, abundantes metáforas à actual sociobiologia. É o caso de «realeza» e «escravatura» nas formigas «Lewontin

et al., 1984, p. 250). Também num texto especializado de ecologia dos insectos o autor se refere à «guerra constante», a «inimigos», a «ataque», a «preocupação essencial» (de cada indivíduo em se reproduzir), ao «vencedor desta corrida aos arma-

mentos», etc. (v. Price, Insect Ecology, 1975). É no citado livro de Lewontin et al. que pode encontrar-se

sociobiologia. Também

alguma

crítica muito pertinente ao mau

uso de metáforas na

Thuilher (Petit Savant Illustré, p. 17) nos diz que metáforas

de origem religiosa são numerosas nos discursos peri/para/e metacientíficos. «À la belle époque» da termodinâmica, escreve o mesmo autor, esperava-se a «ressurreição» dos mundos, mas no tempo presente fala-se de «cruzada» ecológica. V., também, Ruse (1981), pp. 220-222.

43 Ficamos a saber (pelos físicos e outros não biólogos) que o ser vivo é uma

«máquina termodinâmica», ou então uma «pilha termodinâmica», e sobretudo que o homem «está mais próximo de uma pilha de combustível do que de uma máquina

de Carnot»

[extr. de J. P, Peixoto (1985), pp. 38 e 49]. Mas o problema da utili-

zação de energia pelos seres vivos e da não contradição com o segundo princípio da

termodinâmica pode ser apresentado sem recurso abusivo a metáforas (v. Curso de Biologia, Sacarrão e Tavares, 2.º ed., 1978, pp. 23-25). O velho sonho mecanicista ou materialista-reducionista, de reduzir toda a biologia às leis da física nunca foi realizado. A partir do meio do século x1x, alguns fisiologistas julgavam explicar inteiramente o homem pela química. Mas as dificuldades nunca deixaram de aumentar. À interpretação do ser vivo e das suas manifestações, como

239

a regulação, a adapta-

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

ção e a evolução, não pode ser feita apenas com referência às leis e parâmetros físico-químicos. À evolução biológica significa, por muitos dos seus aspectos, um distanciamento progressivo e gradual da importância que têm as leis físico-químicas, v. g. na selecção natural, na evolução do comportamento, etc. (v. Ayala, 1974, e meu

1985, pp. 10-14). Mesmo nas plantas e nos mais simples organismos, a explicação físico-química não soluciona o enigma. Será necessária, mas está longe de ser suficiente. 4 In G. Stent (1978) — Paradoxes tal ilness as a metaphor» (1973).

45 Parábolas e Catástrofes (1985).

240

of Progress.

V. também

Th. Szasz, «Men-

CAPÍTULO

VI

ANTI-DARWIN

1.

na

criacionista

movimento

O

América

É nos Estados Unidos da América do Norte que, sem qualquer dúvida,

forjado

se tem

parte

enorme

do progresso espectacular

que

tem experimentado a biologia neste século. Os biólogos americanos aceitaram quase de imediato o evolucionismo, visto que dez anos

após a publicação da Origem entre os grandes apenas restava Louis Agassiz ! teimosamente criacionista a combatê-lo. Apesar do seu enorme prestígio científico, Agassiz (nascido na Suíça, de onde emigrou para os Estados Unidos em 1846) ficou praticamente só na luta inglória contra as novas e avassaladoras ideias, que abalavam desde os alicerces o universo científico e cultural, menos, claro está, as ideias fixas de Agassiz em oposição a todas as evidências. Até à sua morte, em 1873, manteve

rigidamente a mesma

posição. Pensava que as espécies (escreveu ele)

são «instituídas pela inteligência divina» e que é por elas que tomamos

divina. Em

consciência da mensagem

suma, para ÁAgassiz as espécies

continuavam a ser entidades estáticas, criadas como tais por Deus. E todavia Agassiz foi um notável homem de ciência. Além de ter sido o guia e inspirador dos estudos de história natural nos Estados Unidos,

foi uma grande autoridade mundial no domínio da paleontologia e da taxonomia dos peixes. Morto Agassiz, o evolucionismo difundiu e tornou-se popular, ainda que com forte tendência lamarckista, e sobretudo teleológica (cristã), circunstância a que não será estranha a influência dos teólogos. Com efeito, nem a teologia nem a comunidade científica se resignavam a recusar a existência de qualquer finalidade na evolução, que significava

a morte

de

Deus.

Como

escreveu

D. Hull, Darwin,

ao mostrar

a vacuidade da teleologia, chocou os intelectuais do século xIx. E muitos

dos

melhores

e outros)

não

filósofos

tomavam

americanos

muito

a sério

(William

Herbert

James,

Spencer,

John

Dewey

o campeão

do evolucionismo em todos os campos. Mas John Fiske era profundamente spenceriano e o Metaphysical Club de Chicago era o ponto de atracção

do

evolucionismo

para

os

filósofos

americanos.

Simultanea-

mente, o darwinismo social penetrou rapidamente nos Estados Unidos, Bibl.

Univ.

49 —

16

241

GERMANO

onde

tomou

aspectos

DA

FONSECA

aberrantes,

facto

SACARRÃO

compreensível

numa

sociedade

em rápida expansão industrial, marcada pelo individualismo e por forte

competitividade no

(v. Russett,

1976).

Apesar de certas resistências da parte de intelectuais e dos teólogos, que se refere, sobretudo, à mensagem materialista do darwinismo,

pode dizer-se que no começo deste século a ideia de evolução se generalizara,

mas

biológica

ligada,

como

convinha,

dos caracteres

adquiridos

aos

conceitos

de

e de finalidade,

hereditariedade

ambos

lhe confe-

rindo a necessária maleabilidade para tornar essa ideia adaptável aos preconceitos de certas classes políticas e sociais e aos credos religiosos.

Depois,

no

recebeu

nos Estados Unidos

decorrer

do século,

até ao presente,

substanciais

a teoria

da

desenvolvimentos,

evolução

a teoria da

selecção natural foi notavelmente renovada e aperfeiçoada e o darwinismo

tomou

a

forma

moderna

de

uma

enorme

e

fecunda

síntese

teórica que abraça toda a biologia. Muitas das grandes inovações nesse campo, não apenas no domínio dos factos como nos das ideias, nasceram nos Estados Unidos.

Ora, sendo assim, não deixa de surpreender que seja neste mesmo

país que o evolucionismo, e em particular o darwinismo, receba os maiores ataques públicos, e que a oposição religiosa à teoria, longe de enfraquecer, se tenha mesmo exacerbado. À cento e vinte e oito anos

da publicação do explosivo livro que foi a Origem, que

as

violentas

reacções

ao

darwinismo

quase

poder-se-ia pensar

que



interessariam

ao historiador de ciência, que seriam fenómenos de um longínquo passado, sem dúvida interessante para estudo, mas a reflectirem um debate

há muito extinto. Houve sempre, é inegável, uma surda oposição ao darwinismo da parte de círculos religiosos e de diversos sectores politicos ou intelectuais. Mas nos Estados Unidos o ataque toma a forma de luta aberta contra o evolucionismo darwiniano, quer negar que tanto o mundo inanimado como os seres vivos tudo o homem sejam o resultado de um longo e natural

histórico

de

sucessivas

transformações.

os «fundamentalistas», um com cerca de 30 milhões

na

Bíblia,

a qual

deve

Os

principais

dizer, a e sobreprocesso

opositores

são

sector protestante muito activo, que conta de membros?. Para estes, a verdade está

ser interpretada

à letra,

no

sentido

rigoroso

e exacto das suas palavras sagradas. A sua cruzada contra Darwin vem de 1860, logo em seguida à publicação do livro maldito. Além disso, o criacionismo, para os fundamentalistas, é uma verdadeira ciência; que como tal deve ser ensinada nas escolas secundárias, em

pé de igualdade com o evolucionismo: concedendo-lhe a mesma importância e o mesmo tempo de escolaridade que destinam ao ensino da evolução, e que os compêndios escolares lhe consagrem espaço comparável ao que empregam para o darwinismo, de modo a procede 242

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — I

rem a uma ampla interpretação do Génesis e da criação bíblica. Pretendem, em suma, que os textos escolares apresentem, numa espécie de frente a frente, o evolucionismo darwiniano e a criação conforme à tradição bíblica. É óbvio que o ponto sensível de toda esta questão reside sobretudo na interpretação da origem do homem, de modo que o darwinismo é o grande inimigo a abater, visto que é ele que dá uma solução científica ao problema, ao considerar a emergência do ser humano sem intervenção de quaisquer forças de ordem espiritual ou transcendente.

O evolucionismo só constitui perigo por ser explicado por causas naturais, sobretudo pelo mecanismo da selecção natural, processo que, como

sabemos,

actua

evolucionismo

sobre

variações

científico

acidentais

e é, portanto,

dos organismos.

contra

ele que

É este

se ergue

o

a opo-

sição religiosa. Mas o evolucionismo como processo, separado do darwinismo, é relativamente inofensivo, porque, sendo puramente descritivo, por assim dizer desmaterializado, está aberto às interpretações trans-

cendentes, aparenta uma certa obscuridade e mistério e pode, assim, ser divinizado. De maneira que o evolucionismo sem Darwin não choca as pessoas religiosas nem aqueles intelectuais que consideram a existência de um sentido na evolução, um desígnio na mudança, um propósito

na história. Lecomte du Nouy, Teilhard de Chardin, Henri Bergson,

Lucien Cuénot e tantos outros, eram evolucionistas, mas o seu evolucio-

nismo estava todo impregnado de espiritualidade, de causas imateriais, de forças transcendentes. O que nunca se perdoa ao darwinismo foi o ele ter tratado o homem como um qualquer animal, e não como um ser superior, um ser eleito, rei da criação, feito por Deus, possuidor de uma

alma imortal, de um sopro sagrado de vida. A possibilidade de espiritualizar o evolucionismo darwiniano surgiu logo a seguir à publicação da Origem. É talvez por isso que o grande combate ao darwinismo durou pouco tempo na sua forma aguda. Tanto mais que no tempo de Darwin a teoria de selecção natural não tinha grande aceitação nos círculos científicos, situação que perdurou até final do século e passou para o actual. No primeiro quartel deste século, a teoria entrou em franco declínio, e (como disse noutro lugar) só nos anos 30 e 40 é que penetrou profundamente na biologia, atingindo o seu apogeu

para

o final dos anos

a publicação da Origem. gride impulsionada pela Darwin permanece mais inspiradora de uma nova As críticas a que

hoje

um

século após

E sem dúvida que actualmente a biologia proteoria da selecção natural, a mensagem de viva do que nunca e constitui até a fonte disciplina — a sociobiologia (v. meu 1982).

é sujeita,

as dúvidas

da sua aplicação, o próprio evoluir rigor dos métodos

50, precisamente

quanto

à universalidade

que o conceito está sofrendo,

e nas modalidades e processos de actuação, 243

no

não lhe

GERMANO retiram

DA

nada ao vigor, nem

FONSECA

SACARRÃO

lhe corrompem

a pureza filosófica original,

Não surpreende, pois, que o evolucionismo seja aceite sem grande relutância,

ou pelo menos

lucionismo A

sem

tolerado,

causalidade

aversão

ao

mesmo

pela

Igreja,

mas

aqui

um

evo-

darwiniana.

evolucionismo

provém,

portanto,

do

facto

de

ele

estar intimamente ligado à interpretação darwiniana, Confundir, como tantas vezes se faz em obras ligeiras, ou de divulgação, evolução como

descrição de formas sucessivas, com o problema das suas causas, tem dado origem a numerosos mal-entendidos, É certo que a confusão é, em parte,

legítima,

visto que

em

Darwin

o processo

e as

causas

surgem

inseparáveis, ainda que ele estivesse perfeitamente consciente da sua não

equivalência.

porque

não

E a teoria moderna

seria uma

da

evolução

segue

teoria científica se se limitasse

a tradição,

à fria

descrição

das transformações orgânicas. Não creio haver descrição pura e objeetiva da evolução porque qualquer ligação de formas e de processos a a sua exposição necessariamente obriga pressupõe uma certa hipótese, mesmo

modos

vaga,

quanto

ao seu

determinismo,

possíveis do seu encadeamento.

uma

certa

escolha

entre

Mas para os fundamentalistas não existe evolução: o Génesis é que

diz a verdade:

o universo tem 6000 anos, e não uma

idade compreen-

dida entre 13 e 20 000 milhões de anos, como hoje nos dizem os astrónomos; para os criacionistas, as séries de fósseis e a moderna datação

geológica são bagatelas, sem qualquer significado; o mundo foi criado por Deus em seis dias, todos os animais foram criados no mesmo dia, e o homem é o ser à parte da natureza, criado em separado dela. Repudiam qualquer ideia de evolução, mesmo que as transformações obedeçam a um plano divino como a teologia e a Igreja têm muitas vezes sustentado, adaptando-se, assim, às circunstâncias e ao progresso da ciência, Os fundamentalistas formam, como disse, um sector muito activo, mas constituem, apesar disso, uma minoria no seio da vasta comunidade religiosa dos Estados Unidos, A sua mais imediata aspiração é que o criacionismo

seja

reconhecido

como

ciência,

e sobretudo

que

o seu

ensino seja ministrado nas escolas e universidades, e que estas irradiem a sua mensagem e promovam o seu desenvolvimento «científico». Existem até vários institutos consagrados à «pesquisa» criacionista, como o Crention Science Research Center, localizado em San Diego, na Califórnia, e o Institute for Creation Research, e outros, Em 1963 lar foi fundada uma sociedade com a finalidade de accionar e estimu

a «investigação» no âmbito da teoria criacionista, a qual passou a d

|

a

minar-se Creation Research Society, sediada igualmente na Califórnia, precisamente

no Estado onde

existem

as mais

famosas

universidades.

Presidentes, directores e membros destes institutos não são gente qual. 244

2 i

BIOLOGIA

quer. Todos

E

SOCIEDADE —I

têm estudos específicos, títulos académicos, são doutores

em Genética, ou então engenheiros, ou bioquímicos, etc. É-lhes exigido

que possuam um doutoramento em Ciências ou pelo menos um diploma

universitário º.

a) Darwin

em

tribunal

O fervor criacionista conforme ao dogma do Génesis, assim como a batalha

contra

o

evolucionismo,

e as

exigências

para

conquistar

espaço nos compêndios escolares e no ensino, têm dado lugar a processos

e

julgamentos

célebres

em

tribunais

norte-americanos.

O

clima

para estes processos é preparado de maneira simplista entre o público, acusando-se a teoria de Darwin de ofender a consciência religiosa dos cristãos com a afirmação de que «o homem descende do macaco». Por isso passou a designar-se a luta travada como «guerra do macaco», a qual, com altos e baixos de intensidade, já dura há mais de sessenta anos. Claro está que a teoria de Darwin, quanto à origem do homem, não pode, sob pena de grave atropelo e deformação, traduzir-se desse modo tão profundamente esquemático e inexacto. É uma caricatura e nada mais. Mas produz o efeito desejado, e é isso que conta para os fundamentalistas. Um dos célebres processos desenrolou-se em 1925, no Estado de Tenessi, em Dayton. Este Estado aprovara uma lei que declarava explicitamente ser ilegal ensinar uma teoria que estivesse em oposição com o que diz a Bíblia quanto à criação divina do homem, nomeadamente que o ser humano descende de uma forma animal inferior, incorrendo

em grave delito qualquer docente universitário ou de qualquer escola pública que o fizesse. O evolucionista era considerado, muitas vezes, como sinónimo de ateu e anarquista. Alguns membros da ACLU (American Civil Liberties Union) provocaram o processo para fazer impedir a aplicação da lei. Um professor, de nome John Thomas Scopes, fez-se acusar desse delito, visto que, ensinando o darwinismo, era, por conse-

guinte, culpado. O debate foi violento e apaixonado. O réu foi defendido por

um

advogado

famoso,

(contra o darwinismo) tante fanático *.

chamado

Clarence

Darrow,

e a acusação

esteve a cargo de Jennings Bryan, um protes-

Após apaixonados debates, o tribunal condenou o réu ao pagamento

de uma multa de 100 dólares. Os criacionistas tinham aparentemente vencido, mas o escândalo público resultante do próprio julgamento, da condenação da ciência, do apoio da lei ao dogma contra o livreexame,

foi, sem

tarde, o Supremo

dúvida,

favorável

Tribunal

aos evolucionistas.

do mesmo 245

Estado anulou

Dois

anos

a sentença.

mais

Os

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

criacionistas, entretanto, não abandonaram a perseguição e as exigências, tentando demonstrar que a própria ciência é matéria de fé e que toda a realidade revelada pelo darwinismo é meramente conjectural. O facto de os tribunais serem chamados a pronunciar-se sobre o valor e alcance da ciência em face da fé religiosa, ou que decidam sobre a importância, maior ou menor, de uma e de outra, ou sobre o que deve, ou não, ser consentido, ensinado e pesquisado, é já decerto

um atropelo à liberdade do espírito e um mau serviço prestado à inteligência. Só favorece o obscurantismo e a perseguição. Em 1928, o Estado de Arcansas votou uma lei com a qual proibia qualquer ensino da teoria da evolução, não sendo, também, consentido revelar aos alunos a existência de tal doutrina. Um processo contra tal estado de coisas foi intentado muito mais tarde, sendo a lei abolida por decisão do Supremo Tribunal, em 1968. Muitas escolas, porém, perante estas dificuldades, têm tendência a renunciar ao ensino da biologia, evolutiva, ou então fazem-no de forma insuficiente e cautelosa.

Os ataques ao evolucionismo não se limitaram aos Estados mais conservadores, onde muitos cidadãos entendem que a Bíblia contém o

essencial da cultura. Estendeu-se, igualmente, à Califórnia, um dos Estados mais avançados, onde se localizam as universidades mais célebres do mundo e onde o futuro chega mais depressa do que noutro lado. A Junta de Educação da Califórnia decidiu que, havendo dois pontos: de vista sobre a origem do homem (darwinista e criacionista), deveensinados.

Esta

decisão,

à qual

não

foi

estranha

a

influência da Creation Research Society, representa um triunfo para os criacionistas pela simples razão de que a ciência e o dogma foram colocados no mesmo plano, equivalem-se. A teoria da evolução passaria,

assim, a ser simples matéria opinativa, a confundir-se com a fé, não existindo provas materiais da sua veracidade. Com esta estratégia, os criacionistas pretendem esvaziar o darwinismo do seu conteúdo cientifico, dando-lhe o significado de um credo, a pegar ou largar consoante

as inclinações de cada um. À já mencionada Creation Research Society foi fundada por dez indivíduos, tendo à cabeça Walter E. Lammerts

e William

J. Tinkle.

Esta

instituição

oferece

cursos

secundários

e de

graduação sobre criacionismo e desenvolve um certo número de activi:

dades, tais como: difusão de livros, panfletos e consultas sobre o criacionismo, debates radiofónicos, promove investigações para encontrar provas da existência da arca de Noé e do dilúvio, testemunhos da coexis tência do homem, trilobites e dinossauros, prova de uma criação recente: do universo e da Terra, admitindo-se que esta última tem apenas uns 10 000 anos de idade, aproximadamente *. Desde 1964 que esta socies

dade publica uma revista trimestral que se propõe divulgar factos que dêem suporte a interpretações literais da Bíblia, e lançou q primeiro compêndio de biologia sobre «criacionismo científico» destinado às. 246

iii

ambos

bonitos

ser

ida asia

riam

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — 1

escolas secundárias públicas. Haveria, assim, uma biologia criacionista a par de uma biologia evolutiva! As Escrituras como fonte da verdade

científica. Refutar

o evolucionismo

é o objectivo

fundamental

desta pseudo-

ciência, desta forma original de fanatismo. A habilidade dos fundamentalistas tem consistido em denunciar todos os pontos fracos da doutrina evolucionista, em tirar proveito das polémicas entre os cientistas, em utilizar as dificuldades e insuficiências explicativas da teoria para, com tudo isso, mostrar que a única alternativa lógica, a única ssibilidade que nos fica aberta é a aceitação da versão judaico-cristã da Bíblia no que se refere à Criação. Que a teoria tem dificuldades, ninguém

negará.

O

não

Que



acordo

entre

os

cientistas

a

quanto

múltiplos problemas particulares da teoria da evolução, ninguém o contesta. Por isso os criacionistas «científicos» não têm dificuldade em

encontrar pontos de discórdia, lacunas e imprecisões na teoria da evolução para construir toda uma argumentação artificiosa, conduzida para a conclusão de que o criacionismo é a única saída para tais escolhos, os quais seriam a prova de que o evolucionismo até contém provas contra si próprio, que os cientistas não aproveitam, nem até nelas reparam, por estarem tão obstinadamente imbuídos do dogma evolucionista que ficam cegos a tais evidências. Como diz Laurie Godfrey, que lucidamente denunciou esta táctica, os «cientistas criacionistas» não propõem modelos alternativos de criação, não os submetem a testes, não os sujeitam à prova da realidade. Existe, por exemplo, a possibilidade lógica, admitida na doutrina do evolucionismo moderno, de a vida poder ter surgido independentemente em épocas diferentes, não só na Terra como em vários pontos do universo. Mas, continua

Godfrey, fazer ciência não é a actividade nem a ocupação dos ccientis-

tas» criacionistas. O seu único objectivo é destruir a credibilidade do evolucionismo e da teoria neodarwinista junto do público. Todas as dificuldades

da

teoria,

todas

as controvérsias,

são imediatamente

pro-

clamadas na imprensa como novas provas da fragilidade da teoria da evolução. De modo que a táctica de descobrir polémicas no próprio âmbito da biologia evolutiva equivale, afinal, singularmente, a descobrir (diz Godfrey) que os biólogos evolucionistas são culpados de fazer

ciência, quer dizer, de praticarem o pecado de porem questões, de experimentarem,

de fazerem o exame

crítico dos factos e das ideias, de dis-

cutirem explicações alternativas. Os neocatastrofistas ou «punctuacionalistas», como Gould, Eldredge e seus seguidores, são evolucionistas darwinianos, nada têm a ver

com os criacionistas. Nem científico

sério

ao

o saltacionismo pode dar qualquer suporte

criacionismo

dos

fundamentalistas,

se bem

que

eu

admita que muitos dos seus defensores possam ter preconceitos metafísicos ou ideológicos, a subjazer a esse ponto de vista. 247

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

O carácter dogmático do criacionismo científico está patente em muitos outros aspectos que seria ocioso enumerar. Inclui tópicos que contêm

refutações

do

evolucionismo,

ou

evidências

«científicas»

de

criação recente da Terra e do universo, ou uma «geologia diluviana» segundo a qual numerosos depósitos geológicos fossiliferos seriam o resultado de um único fenómeno catastrófico — o dilúvio de que escapou o patriarca Noé e a sua arca (continuo a reportar-me ao citado artigo de Godfrey). Mas fecundas teorias científicas, como a das placas tectónicas, a realidade da deriva dos continentes, são temas inaceitáveis.

Trabalhos de campo, investigações laboratoriais, não são com os cria-

cionistas. Disso muito pouco se ocupam. Pelo contrário, o seu esforço Pensam

o desacreditar

que, feito o descrédito

do

da teoria,

evolucionismo o criacionismo

fica triunfante e estabelecido como único recurso. Estranha lógica: a depreciação de uma teoria constituir a comprovação da que se lhe opõe, como

se não houvesse

outras versões criacionistas, outras modali-

Ad

darwiniano.

é dirigido para

EA

único

Car

praticamente

dades possíveis, para o evolucionismo, outras formas dogmáticas e meta-

físicas e outras alternativas imagináveis no âmbito da ciência. O que não agrada, o que se opõe frontal e claramente à versão bíblica da criação e aos princípios da doutrina fundamentalista, é silenciado, não

se fazem referências a essas incomodidades, como

sejam o papel do

acaso, pois nada ou quase nada acontece por acidente, segundo os criacionistas, para quem o aleatório nos processos biológicos simplesmente se decreta não existir. E com habilidades sofismadoras montam uma

rede complicada de argumentação.

Das polémicas

entre cientistas

e das teorias em voga na biologia, os criacionistas bíblicos retiram as partes que parecem ajustar-se, ou pelo menos não contradizerem, a doutrina dogmática e as Escrituras, mas cujo sentido isolado passa muitas vezes a ser oposto aquele que têm quando inseridas no contexto das respectivas fontes. É assim que a genética da especiação, conforme ao esquema de Gould, Eldredge, Stanley e de outros, não é referida mais onde

propriamente de uma população marginal) noutras espécies, e a selecção natural actua como factor da mudança e como seu

agente orientador. Por outro lado, confundem (propositadamente ou não) o catastrofismo pré-darwiniano com o neocatastrofismo ou «punctuacionalismo», o que é lamentável, visto que não há quaisquer relações ou sombras de equivalência entre os dois conceitos. Religião e ciência partem de bases antípodas. Na religião (e nas ideologias) parte-se da fé e buscam-se (ou inventam-se) factos que a possam sustentar. Em ciência parte-se da hipótese e procuram-se factos para a refutar, No primeiro caso começa-se em algo de revelado, e, portanto, de incontestável; e no segundo, de ideias que materialmente se

submetem

à prova

do erro, que

se tenta demonstrar 248

que

são falsas.

Di

como deve, ou seja, como base da transformação de uma espécie (ou

BIOLOGIA

São

domínios

A

ciência

É

portanto

de

não

natureza

se ocupa

abusivo,

E

SOCIEDADE — 1

diversa,

inconfundíveis

de divindades,

e

de

certo

modo

e

incombináveis.

não se serve

de divindades.

caricato,

criar

uma

«ciência

criacionista» ou uma «biologia criacionista» nutrida das Sagradas Escrituras. A fé nada aproveita, pelo contrário, julgo eu, com estas extravagâncias. Em religião é excomungado tudo o que nega ou põe em causa a fé e os dogmas da crença religiosa. Mas em ciência tudo é posto em causa — a hipótese, o facto que lhe dá suporte, a teoria que se edifica, tudo é suspeito de ser falso, enganador, ilusório ou corrompido. Não há dogmas, tudo é criticável, nada é intocável. De modo que «criacionismo científico» é expressão sem sentido, visto ser constituída por dois vocábulos semanticamente antagónicos, que não podem combinar-se. A não ser que alguém entenda poder haver criacionismo científico sem ciência! Longe de se atenuar, a campanha dos fanáticos fundamentalistas

tem-se intensificado. Em Sacramento, na Califórnia, um processo ruidoso tem o seu desfecho em 6 de Março de 1981. A família Segra-

ves,

representada Center,

Research

Estado

da

por

de San

Califórnia,

filho por consentir que

Diego,

que

director

Segraves,

Kelly

intentou

de

acusou

numa

escola

uma

violar

do

Creation

acção jurídica

a liberdade

Science

contra

religiosa

o

do

pública fosse ensinada a evolução

das espécies conforme à teoria de Darwin e não de acordo com a versão

bíblica da Criação. O tribunal rejeitou a queixa, considerando-a infun-

dada, quer dizer, decidiu que o ensino do evolucionismo não infringia a lei. Em todo o caso, a vitória dos evolucionistas ficou um tanto emba-

ciada porque o juiz ordenou que um texto já existente fosse difundido por todo o Estado para acautelar os professores contra todo o «dogmatismo» (Thuiller, 1981). Esta prevenção, ainda que perfeitamente

justa no seu conteúdo, é de certo modo uma concessão aos criacionistas,

que a interpretam como significando que a teoria moderna da evolução não é de modo nenhum a única explicação para a origem do homem, que ela não representa mais do que uma interpretação puramente teórica, entre outras possíveis. Ou seja, que a moderna teoria biológica da evolução é uma religião no sentido em que tenta explicar o que está para além do mundo das aparências, isto é, o sagrado e o misterioso das nossas origens, e também

o da evolução das espécies e do seu apa-

recimento no mundo. Em suma, a ciência não pode desapear a verdade

revelada no Génesis, sendo isto o que os criacionistas pretendem, ao mesmo tempo que, com essa vitória, favorecem a formação de um clima de descrédito relativamente ao ensino da teoria da evolução. A pressão das forças religiosas e reaccionárias contra o evolucionismo científico reflectiu-se na retracção de numerosos professores em

fazer um

ensino livre, e sobretudo

os textos

de

biologia

para

escolas.

249

teve consequências Por

outro

lado,

nefastas sobre

diversos

Estados

GERMANO

DA

FONSECA

tomam disposições para dificultar ou cionismo nas escolas públicas. Essas meio de leis oficialmente promulgadas, tanto veladas, ou como reflexo de um

SACARRÃO

impedir o livre ensino do evoluiniciativas não se exercem por mas sob a forma de pressões um clima social adverso da parte de

certos grupos ou seitas influentes ou mais activas. Em pelo menos,

ensina-se o criacionismo

paralelo

em

bíblica,

com

catorze Estados,

nas escolas conforme

científica

a teoria

a mensagem

nomeada-

evolução,

da

mente no que se refere à origem do homem, Em cerca de vinte Estados, os criacionistas lutam por conseguir legislação que obrigue a que nas escolas se faça o ensino da Criação conforme aos ditames dos textos dicional

e contou

Esta luta tem-se exacerbado

sagrados.

do presidente Ronald

Reagan,

que

até com

o apoio incon-

a esse propósito

declarou:

Well, it is a theory, it is a scientific theory only, and it has in recent years been challenged in the world of science and is not yet believed in the scientific

community

to be as

infallible as it once was believed. But if it was going to be taught in the schools, then I think that also the biblical theory of creation, which is not a theory but the biblical story of creation, should also be taught. (In Ruse, 1981.)

É este um bom exemplo de como o valor e o significado da ciência

podem

ser

tão ligeiramente

abordados

por

um

político.

Além

da

ignorância demonstrada quanto à situação actual da teoria da evolução.

Ficamos, porém, a saber que Reagan enfileira com os fanáticos do criacionismo ao advogar que o seu ensino deve ser feito nas escolas

simultaneamente com a teoria da evolução. É curiosa a passagem quando afirma

que

a teoria

bíblica

da

criação

não

é uma

teoria,

história bíblica da criação, o que parece significar que

mas

sim a

é ela que nos

revela o que realmente se passou quanto às origens do homem e dos outros seres e não a teoria científica da evolução, que, segundo Reagan, até está actualmente desacreditada, o que é falso. É lamentável que um político da sua envergadura e responsabilidade produza declarações desta natureza, Não por pensar desta ou daquela maneira, mas antes pela deformação e incompreensão da ciência e da sua função social.

O criacionismo

«científico» não é um

ser menosprezado.

profundos. certa

Deturpa-se

incidental,

Por exemplo, na Califórnia, que para muitos

maneira

cionismo

fenómeno

que deva

Pelo contrário, as suas repercussões podem

o futuro

científico o ensino,

foi

das modernas

considerado

obscurecem-se 250

sociedades

como

uma

ter efeitos

prefigura

industriais,

doutrina

as mentalidades,

de

o evolu-

dogmática.

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —1

Parecia que a partir de 1968, ano em que o Supremo Tribunal dos Estados Unidos declarou as leis antievolucionistas contrárias à Constituição (onde se consagra o princípio fundamental da separação da Igreja do Estado), a campanha entraria em declínio. Ora foi exactamente o inverso que aconteceu. Muitos Estados adoptam livros com um evolucionismo mitigado, há comissões para selecções de textos nestas condições, difundem-se directrizes a professores para que façam intervir o «criacionismo científico» nas especulações sobre a origem da vida

e do homem. Tem havido resistências, por exemplo, da parte de associações de professores de Biologia, mas o facto subsiste. Finalmente, uma lei do Estado de Arcansas instituiu o «criacionismo científico» nas escolas em perfeito paralelismo com o evolucionismo, lei da iniciativa do governador estatal e aprovada pelas duas Câmaras (Representantes e Senado). Esta união das duas assembleias do Estado em medida de tal natureza é facto único na escalada fundamentalista.

Isto passou-se

em 1981. Esta lei foi, no entanto, no ano seguinte, considerada inconsjuiz William titucional, com um inequívoco e histórico veredicto do Overton.

b)

Génesis

O A

nos

oposição

de

escolares

livros

à ciência

biologia

a favor da Bíblia tem sido feita não

só em

processos nos tribunais, mas igualmente nos manuais escolares (em vinte e sete Estados), nos quais se procura fazer vingar o credo criacionista, e no ensino ministrado

nas escolas.

Os criacionistas pretendem implantar-se nas escolas, obter espaço nos livros escolares, ser investidos da dignidade de científicos, e tudo isto com objectivos certamente políticos, resultantes de uma visão conservadora da sociedade alicerçada em sólidos princípios de uma moral, de uma certa ordem moral (conservadora-reaccionária). À mistura surgem grandes interesses materiais, nomeadamente no mercado livreiro, que acompanha a onda de irracionalismo, mercado que movimenta anualmente centenas de milhões de dólares. Por exemplo, a Califórnia, onde o criacionismo estabeleceu uma

das suas mais activas frentes de batalha,

detém nada menos do que 10 % do mercado nacional de compêndios escolares dos Estados Unidos (Maio, 1982). Certos sectores mais conservadores e reaccionários vão ao ponto de acusar o darwinismo de suportar

ou

segundo

eles,

incentivar

a degradação

da moral,

desde

o consumo

da

droga ao aborto, passando pelo comunismo e outros grandes males que, afligem

a sociedade.

É natural que professores universitários americanos, quando inter-

rogados sobre esta questão, procurem minimizá-la, ou por patriotismo ou porque num grande país, onde a liberdade exercida pelos cidadãos 251

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

toma, por vezes, aspectos extravagantes, estas manifestações não tenham, a seus olhos, a amplitude ou a repercussão sobre a liberdade de pensamento e a cultura que nós, de longe, poderemos calcular. Todavia, a leitura das revistas científicas onde amiúde se relatam exemplos deste fanatismo em escalada, diversos livros, os protestos suscitados nos próprios Estados Unidos, a actividade da ACLU,

a ressonância escandalosa

dos julgamentos nos tribunais, assim como as críticas à teoria da evolução, ou comentários aos debates, que se publicam com frequência em magazines populares, em jornais diários e até em revistas sérias, e a relutância dos autores e editores de manuais escolares em abordar com

suficiência o evolucionismo moderno, tudo isto mostra que o problema é importante.

Em 1974 tive ocasião de perguntar pessoalmente a um reputado professor de uma universidade americana qual era, segundo ele, a extensão dos ataques que no seu país se faziam ao neodarwinismo. Respondeu-me com optimismo que o fenómeno era extremamente localizado, sem interesse e sem qualquer efeito nocivo sobre o ensino ou à investigação, nem tinha qualquer repercussão sobre as universidades. Não

tenho

dúvidas

de

que

as

boas

universidades

não

são

atingidas.

Mas também me parece que o meu interlocutor pretendeu omitir o que poderia embaciar a boa imagem do seu país. E por isso nada mais adiantou. Ou estaria ele mal informado? Não é provável, se atendermos a que

se trata

de

um

problema

tão

falado

e discutido

nos

Estados

Unidos. A pressão social exercida pelos fundamentalistas nos anos 20 teve

como resultado a tendência de autores e editores restringirem referências ao evolucionismo e à teoria de Darwin. É provável, como acentuou

o paleontólogo

George

Simpson,

que

não fosse o caso Dayton,

atrás

referido, a causa deste recuo generalizado, mas, ao contrário, que ambos

os fenómenos fossem determinados por uma atmosfera de reaccionarismo anti-intelectual

associado

anos

como

20.

tendo-se

Seja mesmo

evolução,

do

uns

que o tema

a nível

do

de

que

não merecia uma

Dayton,

outros.

mais

acentuados

antievolucionista das

70, e actualmente

julgamento

mais

bíblico,

for, o movimento

intensificado

estudantes nos anos Antes

ao literalismo

escolas

e dos

a controvérsia os livros

Em

todo

o

forte atenção e um

caso,

continuou, | textos

continua

escolares

nos

para

viva.

discutiam a

pode

amplo

dizer-se

desenvolvi

mento. Uns livros eram mais evolucionistas do que outros. No livro de.

Smallwood, Reveley e Baley (New Biology, 1924), que tinha grande expansão (talvez o texto mais adoptado nessa época), a evolução era

tratada apenas em cerca de duas páginas e não continha qualquer . referência à origem do homem. Outro compêndio, da autoria de Peabody e Hunt (Biology and Human Welfare, 1924), nem à evolução se referia, tema que fora excluído do texto. Depois de 1925, a situação . 252

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — 1

de facto agravou-se. Grabiner e Miller, num artigo publicado na revista Science, em 1974, dão uma regra para identificar livros escolares depois desta data: basta procurar nos índices ou nos glossários a palavra «evolução»: é quase certo que a não encontramos. Nalguns livros,

editados logo em 1926, procedeu-se a essa eliminação. Outros passaram a ser

substancialmente

espaço

o

de certos compêndios

menos

a

solução

ideias evolucionistas, mas

fazendo

ou

consagrado

a

discutiam

que

ou

tema,

ao

quanto

reticentes

mais

reduziram

ele.

Curiosa

é

destes (de Baker utilizado nos anos

o vocábulo «evolução» Num Biology, 1933), aliás o mais

r não mencionar — Dynamic e Mills

mais

30, os autores terminam o capítulo final, em que tratam do tema escal-

dante, com a afirmação verdadeiramente extraordinária de que «a teoria de Darwin,

tal como

já não é geralmente aceite»

a de Lamarck,

(May,

1982). Mesmo hoje há diversas evidências de que nas edições dos mais importantes livros escolares para o ensino secundário surgem numerosas provas de que se continua a fazer cortes e certas eliminações de maneira

a reduzir o relevo da teoria da evolução. Um exemplo, entre outros, é o das recentes edições da conhecida editora Harcourt Brace, onde se

omitiram todas as referências a Charles Darwin, ou (num caso) subtraiu-se do índice a palavra «evolução». E isto passa-se numa empresa

editorial que entre 1930 e 1960 se opôs às pressões antievolucionistas. Outro

exemplo

cujos autores

secundário,

livro escolar

um

é o de

de biologia para

o ensino

(Otto e Towle), na edição de 1977, reduzi-

ram de um terço o texto que na edição de 1973 destinavam à evolução. Mas um dos sintomas talvez mais expressivos de todo este movimento reaccionário-clerical e anticientífico é a inclusão nos livros escolares do criacionismo conforme ao Génesis, soante a outros mitos criacionistas.

ou, de uma maneira geral, conÉ o que fazem, por exemplo, os

livros Biology: An Inguiry Into the Nature of Life (Allyn e Bacon, eds., nas (Houghton

1974

de

edições

Miflin, ed., 1980)

The

e Biology:

e 1977)

o criacionismo,

cou-se

o fresco

mas

e num

não

of Life

livro de Smalwood e Gren, publi-

cado em 1974. E o mais estranho é que ensinam dizer)

Science

o defendem.

Em

(se assim podemos 1972,

um

mesmo

compêndio escolar foi publicado em duas versões: uma para o Estado da Califórnia, outra como edição nacional. Nesta edição figurava-se o paleoantropologista L. S. B. Leakey, a quem se devem grandes progressos no conhecimento da pré-história humana e das origens da nossa espécie. Na edição californiana, em vez do retrato de Leakey, publida

Capela

Sistina,

sobre

a criação

humana,

tal como

a representou Miguel Ângelo. Esta substituição simboliza rigorosamente as duas faces de controvérsia que opõe o Génesis à versão transformista

darwiniana;

o desejo de considerar os dois aspectos como igualmente

explicativos da origem

do homem,

e que como tal sejam considerados

253

GERMANO

pelos

1979).

professores,

Mas

outros

quer sinais

DA

nas são

FONSECA

aulas, talvez

quer mais

SACARRÃO

nos

livros

escolares

elucidativos.

(Wade,

Assim,

Biology:

A Search for Order in Complexity (Zondervan) foi escrito por Moore, professor na Universidade Estadual de Michigão e fundador da Creation Research Society. O livro chegou a ser oficialmente aprovado (com outros seis) como texto de biologia, por uma comissão estadual de Indiana, em 1975, ainda que dois anos depois fosse excluído, devido ao seu sectarismo.

por comissões

Continua,

de outros

todavia,

Estados

na situação

(Alabama,

de compêndio

Geórgia,

aprovado

Oclaoma

e Ore-

gão). Em dezanove dos cinquenta Estados existem regras para selecção de compêndios para o ensino secundário nas escolas públicas. Claro está que em muitas obras de biologia para o ensino não há quaisquer limitações ao evolucionismo nem à teoria de Darwin. É sobretudo nos Estados do Sul que se verificam as censuras e as limitações. Além disso,

não deve ignorar-se que os manuais escolares não eram muitas vezes (sobretudo até aos anos 60) escritos por biólogos profissionais, mas sim por professores sem especialização, apenas interessados na orientação pedagógica e na difusão de conceitos muito gerais e por isso mesmo facilmente

adulteráveis quando

tratados por professores sem

formação

científica em biologia.

Há quem pense que a disputa antievolucionista nos Estados Unidos da América do Norte poderia estar atenuada a partir de 1980 e que o movimento criacionista estaria em decadência. Este facto seria atestado pela publicação de alguns livros introdutórios ao estudo da biologia, que conteriam apenas breves referências às teorias criacionistas. Mas a conclusão não pode ser essa. É certo que a partir da década de 60 se

verificou uma nítida reacção. Foi o caso, sobretudo, da instituição de um programa de biologia evolucionista completamente renovado, desig-

nado por «Biological Sciences Curriculum Study», mais conhecido pela

abreviatura

BSCS.

Professores

universitários

mento reformador, e foram publicados manuais

intervieram

neste movi-

que davam largo desen-

volvimento à teoria biológica da evolução e ao neodarwinismo. Estes compêndios, apesar dos protestos de vários sectores conservadores e clericais, irromperam nas escolas secundárias americanas, talvez em metade delas. Apesar destas inovações e reformas, «a guerra do símio» não terminou, muito ao contrário *.

Os criacionistas inventaram

novo plano de ataque quando recla-

maram, como já referi atrás, tempo igual nas escolas e espaço igual nos

compêndios para aquilo a que deram o nome de «criacionismo cientí-

fico», com os seus doutores, as suas «sociedades científicas», os seus «institutos de investigação» e, por certo, os seus «investigadores»!... Todo este movimento é muito complexo, pois envolve determinantes religiosos,

políticos,

interesses

editoriais, 254

tradições,

etc.



quem

atribua

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —I

grande parte da responsabilidade por esta situação às próprias universidades, que não se têm de nenhuma maneira interessado pelo ensino da ciência

nas

escolas

secundárias,

e,

também,

aos

editores,

que

estão

quase sempre mais interessados na quantidade de livros vendidos do que na qualidade destes últimos. Outros ainda atribuem as culpas aos políticos, que manipulam

sentimentos religiosos e preconceitos antievo-

lucionistas para obterem mais votos nas campanhas eleitorais. Por mim, penso na grande força que a tradição religiosa ainda possui e que se apodera quase totalmente do senso crítico de muitos cidadãos mal informados, sobretudo nas condições particulares da sociedade americana, com

a sua

de credo,

liberdade

a sua

multiplicidade

de seitas e o seu

respeito dogmático pelas raízes protestantes da nação. Para Grabiner e Miller, a maior tragédia entre todas é que os manuais escolares tenham baixado de nível no que respeita ao ensino da evolução sem que ninguém desse por isso. Entretanto, continua a controvérsia da criação versus evolução. Publicam-se

livros em

que

se comparam

os dois aspectos, mas

tanto

quanto sei essas obras não são em regra escritas por biólogos profissionais

de

reconhecida

autoridade.

Fazem,

em

geral,

um

mau

serviço,

porque se trata de autores que não estão a par do progresso da biologia, de modo que o leitor não fica informado nem capacitado para ajuizar do significado da oposição entre a teologia natural e a ciência objectiva, dois mundos à parte.

Para um crente em Deus, o criacionismo e as interpretações que dele resultam poderão ser perfeitamente legítimos, tanto ou mesmo mais legítimos do que as inferências feitas por um homem de ciência e utiliza rigorosamente o método científico de pesquisa. Mas o primeiro defende uma ideologia, ou seja, uma doutrina que ele procura impor aos factos, enquanto o segundo recorre à dúvida permanente como método de pesquisa e toma como referência os factos naturais. Isto não significa que a ciência não seja influenciada pelas ideologias. De facto, as atitudes dogmáticas, os preconceitos e auto-suficiência sempre constituíram ameaças para a ciência. Quando os neodarwinistas se tornam hiperevolucionistas, dogmáticos e sentenciosos, além do grande mal que isso representa como obstáculo ao progresso científico, outra

consequência

tida;

e,

será a de darem

força ao movimento

criacionista

pseudocientífico e a todas as oposições irracionalistas. Os criacionistas e igualmente muitas pessoas mal informadas supõem que as críticas que o criacionismo «científico» faz ao evolucionismo são de tal forma demolidoras que as julgam fatais. Essas críticas podem resumir-se nos pontos seguintes: a evolução nunca foi observada; não pode ser experimentalmente demonstrada nem repefinalmente,

que

seria

uma

teoria

não

refutável

no

sentido

popperiano. Ora a verdade é que a biologia moderna contradiz inequi255

GERMANO

vocamente

estas afirmações

DA

FONSECA

com

enorme

SACARRÃO

soma

de sólidos factos e ina-

tacáveis argumentos. O criacionismo não tem nada de uma ciência, e o seu esforço incide precisamente em mostrar que as dificuldades do evolucionismo darwiniano são uma prova do seu fracasso. Como não

pusesse

imensidade

os fundamentos

causa

em

desta

teoria.

contrário,

Pelo

fo

gos na biologia evolutiva têm sido feitos, como não podia deixar de ser, em grande parte à custa da remoção de hipóteses incorrectas. Não é possível provar que uma teoria (ou uma hipótese) é verdadeira, mas sim que ela é ou pode ser falsa. A prova do erro a que se submetem as hipóteses constitui um dos meios pelos quais se provoca o avanço científico. E assim tem progredido e se tem consolidado a teoria moderna da evolução. Até hoje ainda não houve experiência ou facto que

asi

visto que os avan-

uma

de factos naturais não teriam qualquer sentido fora dela.

A

faz mais do que isso, não nos dá novidade nenhuma,

evolutiva,

é contribuir

fomentar

para

a confusão e o obscurantismo ”. A realidade da evolução nada tem a ver com as suas causas. Se há fenómeno que não suscita dúvidas entre os

cientistas competentes, é precisamente evolução *. Nada

a realidade e materialidade da quadro

tem sentido em biologia fora de um

de mu-

Existem vários sintomas de que o movimento criacionista não esmoreceu, muito pelo contrário. Contra ele diversas autoridades cien-

tíficas publicam

livros e prossegue

(sobretudo

a censura

no Texas)

contra os programas e os livros de ensino da biologia nas escolas (Jukes, 1984, 1986, 1986 a). O Departamento de Educação do Estado do Texas estabeleceu, por exemplo, que a apresentação da teoria da evolução deve

ser feita de maneira a não prejudicar outras teorias sobre as origens. Por outro lado, fazem-se

opiniões,

estatísticas,

inquéritos, publicam-se

e a confusão

no público

não

diminui.

Em

confrontam-se

certas regiões, a

maioria das pessoas inquiridas pretende que o criacionismo penetre nas escolas e uma porção significativa delas (10 %-16

Yo) prefere o modelo

criacionista e que seja ele o único a ser ensinado. Mas o problema parece ser sobretudo de ignorância. Segundo M. Zimmerman (que realizou um inquérito

de

junto

estudantes),

a ignorância

relativamente

ao

darwi-

nismo e ao método científico, assim como do que é na realidade o criacionismo «científico», seria responsável pelo facto de muita gente

pensar que é um atentado às liberdades impedir o ensino da «ciência da criação» nas escolas. À rejeição do criacionismo aumenta com o acréscimo de conhecimentos em biologia, conhecimentos que por sua vez conduzem

à aceitação

Sei., 1986). Um estudantes

da evolução

universitários

(entre

os 256

18

Ohio

(v. Zimmerman,

outro inquérito recente (1986) e

os

22

Journ.

revelou que em mil anos

de

idade)

da

escamas Pai a

É

dança, de permanente criatividade. Mas não criação a partir de nada, como proclamam os fanáticos do denominado «criacionismo científico».

o ni

à biologia

e opô-lo

confrontá-lo

a Ai TRT NEAR PRA

Pretender conferir ao criacionismo o estatuto de uma ciência, e com isso

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —I

Califórnia, Texas e Connecticut, mais de metade eram criacionistas. Mas os estudantes mais aplicados, mais instruídos e liberais (no sentido olítico do termo) eram, pelo contrário, darwinistas (New Scientist, 6,

Nov., 1986). Mesmo sem qualquer pressão legal acontece que em Ohio 15 % das escolas secundárias tomam uma posição favorável relativamente ao ensino do criacionismo (Zimmerman, 1987).

2.

da Europa

O caso

Pode pôr-se a questão de saber porque é que na Europa não existem hoje, em regra, oposições activas e espectaculares ao ensino da evolução e ao darwinismo. Porque é que na Europa o criacionismo é praticamente inexistente? Uma das razões que normalmente se invoca

é a forte tradição protestante nos Estados Unidos, muito maior do que na Europa. No Norte da Europa, ao domingo, apenas 3 % a 5 % dos protestantes vão à igreja, enquanto nos Estados Unidos (sondagem

51 Yo da totalidade dos jovens entre os 13 e os 19 anos assis-

Gallup) tem

ao serviço

seriam

religioso

dominical.

É, destes, um

op. cit.). Esta

(cit. May,

fundamentalistas

terço, pelo menos,

será uma

razão

forte, mas creio que haveria outras, entre as quais me parece legítimo

relevo

pôr em

as seguintes.

será, creio eu, a descentralização

Uma

política e administrativa do país, a sua estrutura federativa. Cada Estado tem completa independência em muitos aspectos. Fazem as suas próprias leis, em matéria civil e criminal, desde que não estejam em oposição com o que estabelece a Constituição dos Estados Unidos. É o que acontece com a educação, que obedece a leis estaduais. Esta descentralização corresponde a uma forte participação dos cidadãos na vida local, com

acção muito mais directa nos negócios públicos do que aconteceria se

a educação,

por exemplo,

com

todos os seus complexos problemas,

dependesse exclusivamente de um distante poder central. Cada Estado, local, conserva tradições, defende prerrogativas. cada comunidade

A atmosfera é de inteira liberdade, que toma, por vezes, formas extravagantes,

com

uma

tradição de acentuado

individualismo.

Este facto,

associado à facilidade de associação, à multiplicidade de seitas (cerca de

oitenta), à densidade religiosa, facilita as intervenções dos cidadãos na educação e na forma como esta é exercida. Uma religião fragmentada em um grande número de igrejas e de seitas, como se verifica nos Estados Unidos, multiplica

as frentes de defesa dos dogmas

e aumenta

a eficácia da luta.

A oposição

aberta

ao evolucionismo

darwiniano

numa

época já

distante do seu nascimento não deixa de ser um caso social interessante. Devemos procurar, talvez, as suas causas em grande parte nas peculiaridades

da

sociedade

Bibl, Univ. 49 — 17

americana,

nas 257

suas

origens,

nas

suas

tradições,

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

no modo de viver dos seus cidadãos. Não só na vigorosa tradição protestante, como na ampla descentralização institucional, no enraizado hábito da participação dos cidadãos na política e na administração locais e numa

irresistível

tendência

para

o

associativismo,

para

a

livre

dis-

cusão, e, acima de tudo, para a salvaguarda das liberdades fundamentais, apesar de vários acidentes e movimentos contrários que a têm contrariado ao longo da sua história. Nação sempre voltada para o futuro, provavelmente a mais inovadora, a mais tecnológica, a mais científica, é em todo o caso curioso que seja nela que se verificam as maiores reacções contra a teoria da evolução. Não é que na Europa os sectores religiosos e conservadores não sejam, fundamentalmente, antidarwinistas.

Simplesmente,

a centralização

das

instituições

não

facilita

de

modo nenhum a participação dos cidadãos, além de que a tradição protestante é provavelmente muito menos forte do que é nos Estados Unidos, onde a componente puritana não só alimentou as primeiras raízes da nação

como

marcou

profundamente

a moral

e os costumes.

Existe uma fatal oposição entre o conservantismo inerente a toda a condição religiosa e qualquer teoria biológica da evolução que exclua o sagrado. E é este antagonismo que se observa nos Estados Unidos com aquela vivacidade e franqueza social que são características da grande nação americana, ao passo que na Europa a incompatibilidade não é aparente, ou porque a estrutura social e religiosa é diferente ou porque um certo compromisso ou ajustamento se estabeleceu e abafou os antagonismos mais evidentes. À divinização da evolução foi um deles. No fundo da generalidade das consciências creio haver uma oposição à ideia de que o homem é um animal destituído de qualquer transcendência, grado.

sem

Podem

um

simples

«macaco

nu»,

sem

essas pessoas tolerar a evolução,

nenhum

mas

não

carácter

sa-

a animalidade

mistério, sem algo que a transcenda.

A Europa, em todo o caso, não está completamente imune, e há sintomas que poderão dar ao debate ideológico contra o darwinismo ortodoxo uma amplitude inesperada. É o caso de na Inglaterra ter havido há alguns anos uma acesa polémica sobre as implicações ideológicas do cladismo, da teoria do «equilíbrio intermitente» (evolução «punctacional»)

e do neo-saltacionismo,

de que

quência. No que se refere ao cladismo moderno

é em

parte

a conse-

(«transformado»)

ele

põe em evidência relações entre grupos (pela construção de esquemas ditos-cladogramas) e nada nos diz do processo evolutivo que provocou essas relações, nem dos prováveis antepassados comuns das formas respectivas. Nega-se a isso. Às doutrinas descontinuístas encaixam razoavel-

mente

bem

nas suas dicotomias filéticas e na

sua noção

limitada

de

parentesco evolutivo. Não favorece também a teoria neodarwiniana e é utilizado pelo criacionismo «científico». Este, com o seu dogma da criação a partir de nada, agarra, portanto, com as duas mãos uma taxonomia 258

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — I

que se recusa a reconstruir filiações directas e a evidenciar (em teoria, naturalmente) formas que possam ser antepassados comuns a elas, por

não haver suporte científico para isso. A controvérsia incidiu sobretudo nas repercussões ideológicas da seguinte questão: é a evolução um processo continuo e gradual, ou, pelo contrário, é descontinuo? A polémica

a que me refiro resultou de uma exposição comemorativa do centenário da instalação do British Museum (Natural History) em South Ken-

sington, feita no mesmo estabelecimento, e respeitante aos dinossauros e à origem do homem, em 1981 ?, Houve quem acusasse o cladismo de dar suporte ao marxismo e até ao criacionismo, por fornecer uma perspectiva

descontínua da evolução, o que seria contrário ao darwinismo, que não

admite saltos no processo da mudança. Conforme à concepção marxista, a história humana bruscas, revoluções.

essas mensagem

caracteriza-se por saltos qualitativos, mudanças Ora o cladismo, para certos autores, transmitiriá

ao traduzir uma na

Ver-se-ia,

biológica.

deformadora

darwiniana,

no ensino

concepção descontínua uma

divulgação,

sua

intromissão

da evolução e

abusiva

da biologia evolutiva, a contrariar a mensagem

toda ela a apontar para a evolução gradual, por pequenas

Para alguns defensores do gradualismo,

e sucessivas transformações.

a divulgação de uma tal doutrina constituiria uma verdadeira heresia, com o British Museum a atraiçoar a sua missão educacional ao adulterar

o darwinismo,

ou

voluntariamente

para,

não,

insinuar

ideo-

certas

logias "º. No

que

se refere

ao suporte

do

criacionismo,

ele resultaria,

por

um lado, das dúvidas lançadas sobre a teoria neodarwiniana da evolução, a qual, acusada de (suposta) fragilidade em vários aspectos fundamentais,

seria uma

teoria impossível

de confirmar ou de refutar, quer

dizer, não seria uma verdadeira teoria científica; pelo outro, do suporte

que

lhe

concepção

é concedido

pela

se alçar

ao nível

descontínua

da evolução.

Se os

novos grupos se formam bruscamente e se o evolucionismo (ou o darwinismo) é uma teoria metafísica, o criacionismo não precisa de mais nada

para

da ciência

(na opinião, claro, dos cria-

cionistas e daqueles que eles convencem). Outros perigos para a educação do público e dos estudantes viriam, também (segundo os críticos), da infiltração da ideologia marxista e, igualmente, de o «descontinuísmo» abalar a validade da teoria darwiniana pela apresentação tendenciosa. Não posso denunciar aqui os pormenores dos excessos e deturpações

nascidos num debate que ultrapassa os limites da crítica científica para se situar na área dos dogmatismos e das retóricas próprias às ideologias. Debate que, como tantos outros, prova que ciência e ideologia se interpenetram. O que acontece, por vezes, é que os cientistas e as instituições ao serviço

da ciência

exageram

as suas 259

motivações

ideológicas,

levan-

GERMANO

DA

FONSECA

do-os a excessos e distorções. Há

SACARRÃO

«punctacionistas»

que não são nem

marxistas nem cladistas, e na realidade as teorias respectivas não estão necessariamente relacionadas, ainda que na sua base existam inspi-

rações de natureza ideológica. Importa ainda dizer que existe em Londres uma Biblical Creation Society (BCS) opondo-se a uma Association for the Protection of Evolution (APÉ), que fazem debates, conferências, etc. Um dos membros da sociedade criacionista é um geneticista da Universidade de Glásgua (C. Darnbrough), o qual diz acreditar na evolução, mas na sua conferência afirma o contrário, ou antes, que as espécies só evolveram desde o dilúvio. A BCS, todavia, parece guardar uma certa distância em relação ao movimento criacionista americano, mas é, por sua vez, criticada

por

um

movimento

Movement. É um Lewis, 1984) 1.

rival,

criacionismo

o

da

em

denominada

Creation

perfeito confusão

q A

Q j

Science

(v. Howgate

e

quais

chamar

se repetem.

a atenção

para

Além

dos

alguns

trabalhos

artigos

consultar-se, por exemplo, Dickson

já mencionados,

e livros. Dos

(1981), Broad

primeiros

(1981),

importa poderão

Numbers

(1982), anónimo (Nature, 295:85), Lewin (1982 b). Entre os livros, podem apontar-se as obras de Ruse (1981, algumas referências), Kitcher (1982), Newell (1983), Futuyma (1983), Montagu (1984), com uma série de artigos específicos, Durant (1985), este último sobre a evolução nas suas relações com a crença religiosa, mas com um capitulo especialmente devotado ao criacionismo «científico». Importa, também, referir as análises e comentários de Maddox

Ruse (1983) e Thompson Darwin

na

pátria

de

(1982), Hull

(1983),

Lamarck

se verifica uma certa oposição renovada da parte de certos meios ou pessoas. Por exemplo, nas polémicas apaixonadas em volta do problema do aborto subjazem preconceitos antievolucionistas da parte de muitos

opositores, em especial pontos de vista antidarwinistas.

Em

França, até muito recentemente, cientistas de nome manifes-

taram, mais ou menos claramente, tendências «espiritualistas», recusando a ausência de um propósito transcendente na evolução. Pode-

mos citar autores como Lucien Cuénot (um dos melhores zoólogos deste século), A. Vandel e o grande zoólogo que foi P. P. Grassé. Fizeram

críticas ao darwinismo

tradicional ou modernizado, 260

particularmente à

edi RU

mente imune ao surgimento de novos ímpetos antievolucionistas, como

VOS

a Europa não está hoje completa-

OE PRO

Não só (como dizia há pouco)

ii

aiii

3.

(1983).

A ii

das

is

A bibliografia sobre o movimento criacionista é já imensa e não é possível, nem desejável, fazer listas intermináveis das fontes, muitas

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —I

selecção natural, a que subtraem a importância que os trabalhos modernos lhe deram a partir dos anos 30. Quando se publicam artigos ou livros antievolucionistas em França, também eles conhecem algum

sucesso junto do grande público. Foi o que, por exemplo, aconteceu ainda em 1943, quando veio a lume o livro L'évolution régressive, de Salet e Lafont (Bouanchaud, 1976). Claro está que os biólogos franceses são evolucionistas, sem dúvida. O que

existe

é uma

tradição

de certo modo

antidarwinista,

ou pelo

menos um darwinismo muito reticente no que respeita ao valor da selecção natural como factor promotor de evolução e de adaptação dos organismos ao meio. Os Franceses não esquecem Lamarck, há patrioticamente uma certa simpatia pela sua figura e pelas suas ideias, e isto tem contribuído, também, para que se tenha mantido uma tradição a

favor do papel do meio, da hereditariedade biológica dos caracteres adquiridos, o que tem contribuído para que se instaurasse uma certa impermeabilidade ao darwinismo, um certo obstáculo à sua plena assimilação.

Ernst Mayr

dos arquitectos da síntese moderna,

(1980), um

refere que as ideias neolamarckianas se desenvolveram vigorosamente em França quase até à actualidade. cerca de quarenta

Criou-se mesmo

e cinco a cinquenta

anos, em

em dada época, há certo clima

França, um

antievolucionista. Sob pretexto de aliviar o peso dos programas escolares de ciências naturais, suprimiu-se o ensino do evolucionismo (Bouanchaud, op. cit.). Na mesma

abertamente, divinizado.

época, as obras de Teilhard de Chardin não circulavam

se bem

que

se tratasse

de um

Isto revela a existência, como

evolucionismo

diz Bouanchaud,

religioso,

de um certo

ambiente intelectual, e que seria imprudente afirmar que a evolução não é por ninguém posta em dúvida. Deverá notar-se, também, a forte influência que nisto tudo teve a filosofia de Bergson, não só entre as élites literárias, como também em especialistas e professores de Ciências Naturais. Com o seu misterioso factor, o célan vital», a explicar a evolução, Bergson influenciou a grande maioria dos biólogos franceses, inclusivamente os mais ilustres, influência que se alargou a Teilhard de Chardin, todos tendo avançado com argumentações que foram colher no autor da Evolution créatrice. Um dos mais influentes e conhecidos zoólogos franceses foi o Prof, P, P, Grassé, que no decurso da sua longa vida atacou sem descanso o conceito de selecção natural e o darwinismo.

Muita da nossa formação cultural e científica em Portugal, no âmbito das ciências naturais, é de origem francesa, e isto talvez explique, em

parte, a nossa apatia pelo darwinismo (v. adiante). Todos os intelectuais franceses são fortemente influenciados pela filosofia e há tendência da parte de notáveis biólogos, como Cuénot, Vandel e tantos outros, para terem uma

visão unitária e metafísica da biologia e do mundo, e acima

de tudo dos grandes problemas, como é o caso da evolução e da adapta261

GERMANO

ção. O mesmo

DA

FONSECA

SACARRÃO

se pode dizer dos alemães, e este facto estabelece um

contraste entre a maneira como é concebido o evolucionismo na Europa

e nos países anglo-saxónicos, onde a tradição filosófica é diferente. A meio do século xix, os grandes biólogos eram europeus, particularmente

alemães:

K.

Von

Baer,

Schleiden,

Virchow,

Leuckart,

Johannes Miiller, Leydig e tantos outros, e todavia não foi deles que veio a solução para o problema da evolução, que foi encontrada por dois amadores de ciência ingleses, Darwin e Wallace, ambos entusiastas

e experientes naturalistas. Pode surpreender que não fosse na Europa continental, com todo o seu enorme prestígio científico de então, que surgisse

a revolução

científica

e cultural

que

coube

ao

darwinismo

realizar. À razão disto estaria no facto de a Europa ser dominada nessa altura pelo essencialismo, filosofia que é incompatível com a noção de evolução gradual. Na Inglaterra, porém, o clima filosófico era outro, caracterizado pelo empiricismo. Ora numa sociedade pragmática, com uma filosofia que diz que todo o conhecimento deriva da experiência, não haveria os obstáculos que na Europa uma longa tradição platónico-aristotélica levantava empirista,

(v. o cap. 11). «Haveria

pragmática,

como

a da

Inglaterra

de ser numa do

século

sociedade

xIx,

aberta

à

inovação, não se ensimesmando com “essências”, com a natureza secreta das coisas e dos seres vivendo como formas fixas num mundo imutável

conforme ao “plano do Criador”, que se desenvolveria uma nova visão, em que o tempo tem um sentido, em que tudo muda com ele» (v. meu 1978). Na Alemanha foram preconceitos filosóficos que em grande medida constituíram um forte obstáculo à plena aceitação do neodarwi-

nismo

(Hamburger,

1980). Houve,

porém,

excepções, como Bernard

Rensch, G. Heberer e tantos outros, que mais tarde deram uma contri-

buição assinalável para o sucesso da moderna teoria evolucionista nesse país. O peso da metafísica fazia que as complexidades das adaptações não pudessem ser explicadas pelo recurso ao papel da selecção natural. É

relativamente

frequente

verificar-se

na

obra

dos

grandes

zoólogos

alemães uma necessidade de se apoiarem em bases metafísicas, de associarem ao pensamento científico uma visão metafísica das coisas. Esta

tendência metafísica da biologia evolutiva alemã tem as suas raizes em filósofos como Herder, Schelling, Kant, em Goethe, em Carus. É a

Natur philosophie alemã, que desde o princípio do século x1x influenciou a busca dos arquétipos, a procura da ideia absoluta ou do plano divino

da natureza.

Foi

o começo

inventada por Goethe

da grande

(v. Bernal,

ênfase

da

1969). Daqui

morfologia,

palavra

resultou que, subja-.

cente às discussões científicas sobre a evolução, existia, nos bió alemães, esse pendor irresistível para a metafísica, como disse Hambur:

ger, «uma necessidade subconsciente generalizada para combinar o pen:

samento

científico com

uma

concepção metafísica

tanschauung). 262

do mundo»

(Wel-

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — 1

Na

oposição ao darwinismo, tanto na sua forma tradicional como na fase moderna, actuaram múltiplos factores, históricos, educacionais,

económicos, etc. Mas sem dúvida que o obstáculo tipológico foi dos mais

importantes. O pensamento essencialista tem fortes raízes nos países católicos, como a França, como Portugal e outros, de tradição platónico-

“aristotélica, e uma parte da aversão ao evolucionismo darwiniano poderá provir daí. Ernest Boesiger, que conhece bem a história recente da biologia francesa, escreveu, em 1974:

France today (1974) is a kind of living fossil in the rejection of modern evolutionary theories: about 95 per cent of all biologists and philosophers are more or less opposed to Darwinism.

De

para

então

cá a situação melhorou,

mas

talvez

não se alterou

substancialmente.

Foram importantes excepções sobretudo Georges Teissier e Philippe país onde o L'Héritier, que romperam a tradição antidarwiniana num neolamarckismo

quase

floresceu

até

ao

presente,

conforme

afirmou

Ernst Mayr. Paul Lemoine, em plena fase de criação da teoria neodarwiniana (teoria sintética), que foi professor e director do Museum de

VHistoire Naturelle em Paris, escreveu na Encyclopédie Française, no volume publicado em 1937, que a teoria da evolução seria em breve abandonada, que não havia factos a favor dessa teoria, que a evolução é uma espécie de dogma, e outras estranhas afirmações. A fechar o volume,

«Que

nas

escreveu

conclusões,

Lemoine

valent les théories de PÉvolution?»:

o seguinte,

com

o

título

Or le tome v de "'Encyclopédie Française marquera certainement une date dans lhistoire de nos idées sur Pévolution: il ressort de sa lecture que cette théorie semble à la veille d'être abandonnée. (582-583.) [...] On ne saurait mieux dire que les données de la génétique n'apportent aucun argument, bien au contraire, en favyour de la notion d'évolu-

tion.

(Idem.)

montrent,

moins

[...]

Or, les données de la paléontologie dé-

au contraire, qu'il n'y a pas eu évolution, tout au

évolution

des grands

groupes.

(582-584.)

[...]

H

résult de cet exposé que la théorie de Vévolution est impossible. Au fond, malgré les apparences, personne n'y croit plus. [...] (582-588.) [...] Lºévolution est une sorte de dogme auquel les prêtres ne croient plus mais qu'ils maintiennent pour leur peuple. (Idem.) 263

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

Estas e outras afirmações do mesmo jaez, que entusiasmariam o fundamentalista mais exigente (tanto mais que perpassa em todo o texto

de

Lemoine

uma

crença

em

mitos

criacionistas),

a brilharem

numa

enciclopédia com que o génio francês pretendia na ocasião iluminar o mundo, não podiam ser mais infelizes, pela bazófia, pela superficialidade, pelo atropelo dos factos e do método científico, pelo chauvinismo. Infelizes, também, porque pretendiam exprimir e sintetizar os desenvolvimentos e opiniões explanadas em capítulos anteriores da mesma obra pelos grandes patrões da biologia francesa, que nessa época pontificavam, como Caullery, Grassé, Cuénot, Rostand, Arambourg, Guyénot, Jeannel, os quais, a acreditar no que nos diz Lemoine, seriam evo-

lucionistas que não acreditavam

na evolução, como

quem

vende um

produto adulterado, mas enaltecendo as suas virtudes à clientela. Que eu saiba, esses professores eminentes não lavraram publicamente qualquer protesto, nem negaram as conclusões do confrade, o que me leva a

crer que todos os grandes patrões da ciência francesa estavam de acordo,

pelo menos num ponto: na sua animosidade à teoria da evolução. Em todo o caso, porém, neodarwinismo,

isto não me

parece provável.

A

misturada com a necessidade de uma

aversão era ao filosofia natural

que satisfizesse simultaneamente a tradição essencialista, a exigência de mistério,

de

intervenção

de factores

psicológicos,

conforme

ao bergso-

nismo, e, do mesmo passo, colocasse em lugar de honra Lamarck, um francês, Darwin

enfim,

e Wallace.

lismo, de uma que

que

faz

do

pudesse

relegar

A biologia francesa

para tem

a sombra

os

um

secreto de vita-

desejo

metafísica do organismo/ambiente,

evolucionismo.

Herança

que

vem,

em

anglo-saxões

nas interpretações grande

parte,

de

Bergson, mas não só daí. Monod (1970) escreveu o seguinte a propósito da forte influência de Bergson: dans

ma

jeunesse,

on

ne

pouvait

espérer

réussir

au

bachot

à moins d'avoir lu 1 Evolution créatrice. É curioso que, também para Monod, a evolução não seria, de forma

nenhuma, uma propriedade dos seres vivos, visto que se trataria de um fenómeno

resultante dos acidentes

que

atingem

o ADN,

o invariante

biológico fundamental ou princípio conservador (v., atrás, o cap. II). Mas tem uma manifesta simpatia pela filosofia bergsoniana, que muito o seduziu

certamente:

Pour autant je ne considere pas Vattitude de Bergson comme insignifiante, bien au contraire. La révolte, consciente 264

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —I

on pas, contre le rationnel, le respect accordé à "Id de "Ego sont des marques de notre temps (sans spontanéité créatrice). Si Bergson avait employé moins claire, un style plus «profond», on le

jourd'hui. (P. 45.) Para

seja,

Monod,

novidade

moderna,

para

evolução

absoluta,

não

é «revelação»,

o que o aproxima

ele, estaria de acordo

com

mas

sim

de Bergson.

aux dépens parler de la une langue relirait au-

criação,

ou

E a teoria

a sua filosofia bergsoniana

nesse ponto essencialíssimo: Cette convergence apparente entre les voies de la métaphysique bergsonienne et celles de la science serait-elle encore Veffet d'une pure coincidence? Peut-être pas: Bergson, en artiste et poete qu'il était, tres bien informé par ailleurs des sciences naturelles de son temps, ne pourrait manquer d'être sensible à ['éblouissante richesse de la biosphêre, à la variété prodigieuse des formes et des comportements qui s'y déploient,

et qui paraissent témoigner presque directement, en effet, d'une prodigalité créatrice trainte. (P. 151.)

inépuisable, libre de toute con-

Boesiger refere, também, que outros dos obstáculos sérios ao desenvolvimento da moderna teoria da evolução em França foi a própria estrutura das universidades francesas, do Museu de História Natural e

dos diversos centros de investigação. Os lugares de professor dependem da aprovação de comissões universitárias ou de comissões de organismos de investigação, cuja força é enorme, sendo fortemente influenciadas por professores poderosos. Sobretudo os membros e chefes dessas comissões consultivas têm enorme influência. Quem pode obter um lugar se se opuser a um patrão? Como todos os professores poderosos estão de acordo na sua aversão à teoria sintética da evolução, resultava dessa

circunstância a existência de uma barreira quase absoluta contra concorrentes intrusos que poderiam perturbar a harmonia reinante. Boesiger conta que Teissier obteve um lugar de professor na Sorbona em 1945, não por ser favorito de um poderoso professor-patrão, mas como recompensa pelas suas actividades na Resistência durante a guerra, oportunidade única, porque um pouco mais tarde, por exemplo em 1948,

já não

poderia

ocorrer.

Teissier foi, assim,

uma

excepção,

facto

que se deveu à situação política e social da França no final da guerra 2. 265

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

À tradição cartesiana impera no espírito francês. O amor da crítica

e da clareza das ideias conduziu por vezes ao abandono de problemas que a razão apontava não terem demonstração possível. O mendelismo no primeiro quartel do século parecia obscuro, complicado, enquanto o lamarckismo,

simples

se

(Labbé,

era

vago,

1929).

surgia,

todavia,

Esta resistência

como

francesa

uma

ideia

à genética

clara

e

impediu

igualmente a plena aceitação do neodarwinismo. Resistência cujas causas residem em parte provavelmente na influência predominante do espírito metafísico e abstracto sobre o espírito positivo e prático da segunda metade do século xIx, facto que prejudicou fortemente o desenvolvimento da biologia evolutiva francesa. Poder-se-á então ver aí uma das razões da tenaz oposição que foi feita em França à teoria de Darwin. Isto mesmo foi reconhecido em 1922 por um grande zoólogo francês, Maurice Caullery (cit. Labbé, op. cit.). O nacionalismo exacerbado e o apego

forte às tradições

e às forças

do passado,

e certamente

muitos

outros factores ligados à estrutura económica e cultural e à história, entrarão também, de maneira muito complicada, a constituir o feixe de entraves ao neodarwinismo. Talvez que o darwinismo só pudesse ser concebido por um inglês, e a genética, por seu lado, só poderia desen-. volver-se num ambiente de grande pragmatismo e liberdade intelectual como

existia (e existe) nos meios

de pesquisa norte-americanos É.

Mais recentemente, Vuilleumier (1984) analisou também a situação da biologia evolutiva em França. À sua opinião coincide em muitos aspectos com a de Boesiger. Por exemplo, concorda com este autor quanto ao facto de o neodarwinismo ter no passado uma representação muito fraca em França. E acrescenta que a evolução raramente foi e é tratada de forma global no mesmo país. Escreveu, por exemplo: there appears to be much specialized compartmentalization among biologists who write about evolution [...]. They may: get an evolutionary perspective in genetics, or a selectionist. view of paleontology, but they will not be overwhelmed by a recognition

of the

unifying

nature

of evolution

French biologists who have writen on evolution sider themselves primarily evolutionists working lity [...]. It may be symptomatic that there is no the Study of Evolution in France, whereas there for the study of ecology. (P. 156.) Se

não



uma

Revue

consagradas

à ecologia.

actualmente

em

França

d'évolution,

Mas, um

apesar

existem,

de

porém,

tudo,

pode

[...]

most

do not cons in a speciaSociety for is a society Em

diversas

revistas

dizer-se

que



interesse real pelo estudo da evolução, não 266

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — 1

apenas da parte de alguns, mas da generalidade dos biólogos franceses.

Além desse interesse generalizado, diversos biólogos franceses dedicam-se à investigação fundamental em evolução, e alguns são neodarwinistas em maior ou menor grau. Mas o neodarwinismo não é, em regra, apreen-

dido na sua plenitude e nos seus recentes desenvolvimentos (Vuilleumier, op. cit., pp. 156-156). Este facto não surpreende quando se sabe

que a França foi o país do Ocidente onde se verificou a maior resistência ao

darwinismo.

Curiosamente,

porém,

se

o centenário

da

morte

de

Darwin, em 1982, foi assinalado em França com diversos colóquios e publicações, estes factos não teriam sido nem reconhecidos nem aprecia-

dos como significativos pelos biólogos franceses, muitos dos quais se teriam até confessado envergonhados com a pouca importância que teria sido dada ao acontecimento e com a pobreza das manifestações roduzidas. À razão disto, teriam eles explicado, seria a persistência de um

fundo

de lamarckismo,

de concerto com sentimentos antibritânicos

e com influência da Igreja (Wasserung e Rose, 1984). As razões ideológicas ou culturais poderão explicar em parte a razão do fraco reconhecimento do darwinismo e da moderna «teoria sintética», de que só seriam captados os aspectos esquemáticos e superficiais.

Este

facto

neodarwinismo

reforçaria

o sentimento

dos

de

Franceses

que

o

constituiria um edifício teórico muito frágil. É prová-

vel que o fundo sociocultural e filosófico tenha desenvolvido historica-

mente um clima intelectual em França contrário à plena aceitação e aprofundamento do neodarwinismo e à filosofia que ele veicula ou que nele subjaz. Ninguém sabe se este distanciamento da biologia francesa relativamente

ao

darwinismo,

e

o

facto

de

ela

não

ter

contribuído

de maneira significativa para a elaboração da síntese evolucionista moderna, não poderá revelar-se de futuro como vantajosa, nomeadamente por estabelecer uma disponibilidade que pode abrir novas vias de interpretação que contribuam para a reformação da teoria neodarwiniana.

A síntese moderna desenvolveu-se sobretudo nos Estados Unidos da América do Norte. É um produto do rápido desenvolvimento da biologia moderna, que em grande parte ocorreu nesse país, associado à livre iniciativa e ao enorme

desenvolvimento industrial. Mais, talvez,

do que qualquer outra causa imediata, devemos apontar o formidável número de departamentos e laboratórios universitários, excelentes bibliotecas, activos centros de pesquisa, número elevado de biólogos especializados

nos

de uma

mais

sociedade

diversos

que

não

sectores,

etc. E o desembaraço

está inflluenciada

tradições.

267

por pesadas

intelectual

e longas

GERMANO 4.

O

darwinismo

em

DA

FONSECA

SACARRÃO

Portugal *

Está por fazer o estudo aprofundado

científicas da evolução tiveram em lução

que

as teorias

Portugal, particularmente

a revo-

darwiniana.

Em em

da influência

Portugal a revolução industrial tardou a penetrar, fazendo-o

minguadas

infiltrações, pelo que o País não sofreu as transforma-

ções de fundo que essa remodelação da sociedade provocou noutros lugares. Por isso não surpreenderá que o darwinismo científico (não a sua vertente vulgar ou deformada) mais não tenha sido do que mera curiosidade, e apenas episodicamente divulgado. Nem existia clima intelectual e económico para o compreender e assimilar, nem a nossa sociedade marasmática precisava dele ou simpatizava com ele. A revolução darwiniana foi, como é sabido, um factor de extrema

importância para a edificação da biologia moderna e para a construção de uma

nova

concepção

do homem

e da sua posição

no mundo.

Essa

revolução é, em grande parte, o reflexo da profunda transformação, em marcha,

da sociedade,

relações económicas

que

varreu

e de modos

pensar, outros hábitos e valores,

velhos

conceitos,

de produção, etc. Toda

velhos

sistemas

de

modos

de

criou novos

a estrutura

moral

do Oci-

dente foi abalada; a teologia entrou em crise profunda, e o abalo foi tão violento que ainda não se recompôs do choque sofrido !*. Charles Darwin teve o enorme mérito de nos dar a visão de uma natureza viva

em mudança, e sobretudo de lhe conferir rigor científico e a comprovação lógica e experimental, suportada por uma imponente massa de documentos. Ora tendo ficado o Portugal do século xix como que num mundo à parte do que se passava na Europa em matéria de industrialização, ciência e empreendimento burguês, a influência do darwinismo, da sua imagem do mundo, não podia, isolada dessa metamorfose social, modificar em Portugal a vida intelectual, a mentalidade das élites, o

ensino, a cultura e a Universidade, num país onde poderosas forças conservadoras e reaccionárias se opunham a todas as ideias de mudança. Tocou

certas

camadas,

certos

aspectos,

mas

sempre

em

escala

minima,

superficial, com alguma cultura importada e imitação de figurinos estrangeiros, em particular franceses, ainda que houvesse, é certo, alguns homens inovadores, com imaginação e inteligência, que todavia clamaram num deserto de indiferenças. a

No domínio da cultura, da arte e da Universidade predominava influência francesa. Ora, pelo menos até à II Guerra Mundial, a

França nunca foi receptiva ao darwinismo científico, e este facto deve * Publicado,

(IN-CM),

com

o mesmo

título

e com

n.º 7, 1985. 268

algumas

alterações,

na

revista

Prelo

BIOLOGIA

ter concorrido,

para

também,

E

SOCIEDADE —I

pela

indiferença

a generalizada

teoria

da evolução, que sempre existiu entre nós, e para criar uma cómoda

impermeabilidade na nossa cultura e nas nossas universidades em rela-

ção a ela.

a) Algumas

influências. A Universidade

Em Portugal, os sectores conservadores nunca tiveram necessidade

de combater de forma directa e pública a influência do transformismo darwiniano pela simples razão de que a doutrina da evolução nunca ganhou relevo nas nossas escolas secundárias ou superiores. Os nossos meios científicos pouco ou nada se interessavam por ele. É certo porém que teve uma influência incontestável nos meios histórico-literários

e políticos portugueses depois de 1865 2. O evolucionismo de Herbert

Spencer e o monismo de Ernst Haeckel, arauto apaixonado do darwi-

nismo

influenciaram

Alemanha,

na

poetas,

escritores,

ensaístas,

poli-

ticos, de entre os quais há que destacar Antero. As gerações do último deste século assimilam

quartel do século XIX e dos começos

o evolu-

cionismo spenceriano à mistura com um darwinismo um tanto confuso e deturpado, debilmente científico, mas de ampla repercussão em certos círculos

da

burguesia

vinham

de

fora,

instruída.

relativas

naturais promotoras

Novas

progresso,

a origens,

de permanente

questões,

mudança,

novas

perspectivas,

de causas

à acção

em oposição à tradição

ideológica e religiosa, mas tudo isto amalgamado num darwinismo mal definido ou falso. Com a obra de Darwin surgiu uma nova imagem da realidade e do homem, que influenciou a literatura, a filosofia, a psicologia, a sociologia. O darwinismo inseriu-se nas correntes positivistas e materialistas da segunda metade do século XIX e começo deste século; corren-

tes que de certa maneira eram apoiadas pela doutrina evolucionista 'º.

Mas o evolucionismo cultivado pelos positivistas era agnóstico ou ateu e sobretudo anticatólico, e a reacção logo surgiu, acabando-se num compromisso ideológico católico, numa conciliação da religião com a evolução, que é a própria negação do darwinismo. Quer dizer, aceitou-se «o transformismo

desde

que

reconheça

a existência de Deus,

dado

na

Igreja haver lugar para um monismo espiritualista segundo o qual as

espécies actuais são o resultado de uma evolução. Esta doutrina é, alias,

a de Pio X na Encíclica Pascendi, como é a de Pio XII, na Encíclica

Humani sistema

Generis, ainda que o evolucionismo não seja considerado um irrefutável,

nem

mesmo

no

campo

das

ciências

naturais» BR,

Este «evolucionismo teísta» nem é científico e muito menos darwinista. A posição teológica serviu de modelo para corrigir o darwinismo nas 269

GERMANO

escolas,

vetirarlho

o carácicr

dito radical da biologia, pesam

DA

FONSECA

materialista,

O

não

podia

passar

transformismo

fazendo-se

Desta filosofia resultaram

sobre a nossa cultura, O problema

À teologia:

SAGARRÃO

para

científico

da

com

ela o descrés

prejuízos que ainda

vida, da criação,

pertencia

a ciência. entrou

timidamente

versidades o por lá ficou minguado e esquecido,

nas

Mesmo

nossas

uni.

mais tarde, dos

anos 30 aos anos 60, em que a biologia evolutiva deu os seus grandes passos, que a fizeram passar à sua forma moderna, durante esse longo intervalo nada aconteceu entre nós, Og cursos universitários eram pra

ticamente

mudos

sobre o evolucionismo

moderno.

E porque a biologia evolutiva nunca teve o desenvolvimento que devia ter nas nossas universidades, em parte por isso nunca pôde fazer-se com ela a inseminação da nossa maneira de pensar, baseada numa cultura literária. E uma universidade impenetrável à revolução científica iniciada pelo darwinismo teve consequências atrofiantes noutros níveis; e a filosofia, a cultura, o ensino, a divulgação científica, ressentem-se fortemente da ausência desse movimento fecundante. A nossa

cultura e criatividade têm sido predominantemente de natureza histórico-literária, com uma débil investigação científica na área das ciências exactas e experimentais. Por isso um humanismo científico dificilmente poderá desenvolver-se entre nós de forma fecunda e equilibrada en-

quanto nos debatermos com os crónicos obstáculos que têm obstado à instauração de um espírito científico activo, mormente

no que respeita

à investigação e ao ensino na área das ciências naturais, em particular da biologia, cujas vicissitudes e atrasos melhor conhecemos. Nos últimos anos têm-se verificado certos sinais animadores, parecendo existir um arranque

não



a nível

da

administração

pública

como

nas

escolas

superiores, e com altos e baixos no ensino secundário. Concedem-se mais meios, abrem-se mais oportunidades, mas nem uns nem outras produzirão efeitos significativos se a evolução da própria sociedade não favorecer

e estimular

essas

vontades

de

renovação.

Sofremos

ainda

o

peso de um passado em que o reconhecimento do valor e necessidade da investigação científica não passava de boas intenções, de palavras. As nossas universidades não desenvolveram nem o clima, nem as estruturas, nem os meios para impulsionar com vigor a criatividade e lançar com largueza as sementes da mentalidade científica. Não surpreenderá, assim, que entre nós a biologia jamais tenha recebido o impulso fecundo

do

movimento

de

pensamento

que

aparentemente

nasceu

com a obra de Darwin, mas que na realidade devemos inserir numa evolução cultural mais ampla desenvolvida nos séculos xviI-XVIII. A tra« dição da indiferença ainda é entre nós poderosa. E uma biologia evolus tiva, como factor renovador da cultura, continua ausente. Estou bem consciente de que existem causas de natureza mais profunda na origem do nosso atraso científico, com os inevitáveis 270

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — IT

reflexos no domínio cultural, entre outros. Essas causas devem, talvez, procurar-se nas características peculiares da nossa história, nas condições do nosso colonialismo, tipo paternalista-parasitário, no modo como

se processou o desenvolvimento

das nossas estruturas socioeconómicas

e nas resultantes da nossa posição geográfica, em especial do isolamento

daí resultante relativamente ao espaço europeu. No século xIX, a burguesia impôs a sua civilização, a sua ciência, as suas indústrias, as suas conquistas, mas quase que não em Portugal, onde uma verdadeira sociedade burguesa nunca teria existido, porque se conseguiu

nunca

fazer entrar neste país a revolução industrial, fora

alguns surtos sem contínuo crescimento e expansão 8, E sem esquecer outros aspectos retardadores, nomeadamente as perseguições da Igreja, sempre diligente e implacável. Por outro lado, o estabelecimento da Companhia de Jesus em Portugal marcou, também, de maneira inde-

lével, a cultura e a mentalidade dos Portugueses ?. O atraso científico

resulta, assim, de múltiplas causas, mas em qualquer caso deve estar relacionado

com

a nossa

crónica

dilação

da industrialização

do País,

não podendo haver ciência de bom nível num país onde a revolução

industrial ficou gorada. Ainda hoje se fazem esforços para fazer o arrane necessário à europeização

do País e para sacudir os pesados lastros

herdados da antiga sociedade portuguesa. À apregoada falta natural de vocação do Português para a especulação teórica e para a investigação científica é uma maneira cómoda de eliminar o problema e de nos resignarmos ao atraso. Atribuir culpas ao que está dentro de nós foi sempre mais cómodo e conveniente do que ver as causas dos males nas circunstâncias sociais e sobretudo em actuar para removê-las. A inabilidade poderá existir, o que ela não será é uma fatalidade biológica. Se é ponto assente que o darwinismo vulgar teve uma certa influência nos meios literários portugueses depois de 1865, a verdade é que essa

mesmo

influência

foi débil, não foi aos fundos

da sociedade,

não

teve o poder de revolucionar a mentalidade do País. Daqui resultou que ficámos impossibilitados de com ele construir uma cultura moderna e uma escola que acompanhasse a revolução científica já em marcha há muito por toda a Europa e Estados Unidos da América do Norte

no final do século xix. Esta situação havia necessariamente de reflectir-se no nível do nosso ensino, sempre

anémico ou arcaico, indiferente

ou falseado, no que respeita à biologia, e do mesmo modo, ou talvez mais acentuadamente, à própria criação científica que o transformismo praticamente em nada influenciou. Fora um certo diletantismo ou a curiosidade intelectual ocasional de um Arruda Carlos

Furtado ?, de um Albino Giraldes ?! e mais tarde de um

França 2, Mendes

Correia ? e poucos

mais, o darwinismo

cien-

tífico foi regularmente considerado como algo de incerto e distante, em

que

não

valia a pena

pensar.

Sobretudo 271

a investigação científica z00-

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

mente o darwinismo; não houve, nem há, aversão profunda a ele. O que me parece existir é uma enorme indiferença, como que um alheamento

a A

gica, nunca se tomou a sério o facto de que nada em biologia faz sentido a não ser à luz da história evolutiva, de uma problemática de mudança e de adaptação. Nunca foi possível criar cursos regulares sobre a evolução dos seres organizados, institucionalizar com profundidade e continuidade o ensino da biologia evolutiva e, sobretudo, criar uma escola de pesquisa científica onde a problemática evolutiva estivesse entranhada nas matérias abordadas, em cada questão posta, onde cada tópico, por diminuto que seja, na aparência, tem uma história a desmontar e um significado ou causa a descobrir. Entre nós não se rejeita activa-

RR

lógica e botânica ficou alheia a ele, não se penetrou dele. Em Portugal nunca se deu importância à realidade fundamental da evolução bioló-

de quem não compreende o seu significado, ou o pressente como algo de inútil ou de incómodo que é útil afastar. Daqui proviria a interpretação em regra distorcida, que regularmente se faz entre nós do transformismo científico, nomeadamente das suas implicações educacionais e sociais. E assim se compreende também, a meu ver, que os organismos

e os fenómenos da vida sejam com demasiada frequência encarados, no ensino

e na

investigação,

como

entidades

separadas

lhe deu origem, ou seja, fora do seu encadeamento

e a investigação

ainda não se libertaram

da

realidade

que

histórico. O ensino

inteiramente

desta

óptica

arcaica.

A biologia é uma ciência de natureza muito peculiar que a diferencia profundamente das outras ciências exactas, em especial das físicas

e químicas.

Contrariamente

ao

que

pensam

muitos

importantes características da biologia, da qual resultam tantas das suas

die

ciências

autores de compêndios e divulgadores de ciência, a biologia não é quimica, nem física (nem matemática) dos seres vivos. Uma das mais diferenças, que a opõem à física e à química, consiste na circunstância de não haver dois indivíduos iguais, duas populações ou duas espécies iguais, dois ecossistemas idênticos. A individualidade impera nos sistemas biológicos. Esta variabilidade enorme e universal dos sistemas vivos

afasta a biologia das ciências físicas, onde os objectos e os fenómenos são (sob idênticas condições) invariáveis, são tipos invariantes, e não, como na biologia, indivíduos, cada um com diferentes características

parável à evolução cósmica. Outra característica que distingue a biolo-

"eim a

gia

Cad

(v. Simpson, 1969 a). Daqui resulta que a evolução biológica não é comdas ciências físicas respeita

à muito

maior

complexidade

dos seres

vivos relativamente aos objectos de que se ocupa o físico ou o químico, à maneira

como se dipõem os materiais que os compõem

(organização)

e ao carácter eminentemente histórico dos seres vivos, em oposição à natureza em geral não histórica (ou menos histórica) das ciências 272

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —I

físicas e químicas. Outros fenómenos são exclusivamente biológicos, tais como

a

hereditariedade,

a

ontogenia,

a selecção

natural,

a

adapta-

ção, etc., os quais não têm equivalentes no mundo dos objectos e processos que o físico ou o químico estuda, nem podem ser exclusivamente explicados no âmbito das disciplinas que cultivam.

b)

A

tradição

liceal

Durante

longos

anos, nos liceus, a teoria da evolução esteve redu-

zida, no essencial, a um pobre apêndice desactualizado e medíocre, que finalizava

um

por

«transformismo

Mas

teista».

hoje

o evolucionismo

científico não tem muito melhor posição no ensino secundário, anão enxertado num programa sem nexo, mal articulado e amiúde mal concebido.

Não

é legítimo

afirmar,

com

efeito,

que

após

o 25

de Abril

o ensino da biologia tenha progredido substancialmente. A difícil pedagogia desta ciência, a sua inteligente articulação com as outras ciências, em especial as ciências humanas, está por fazer. À situação é menos

fechada, abrem-se, talvez, algumas boas perspectivas, mas a confusão reinante a nível pedagógico impede qualquer melhoria significativa da educação biológica. Por outro lado, persiste a tradição de que as ciências

exactas e experimentais, e em especial a biologia, não são um elemento

fundamental da cultura do homem moderno, de modo que dessas ciências apenas se ministram algumas noções consideradas indispensáveis a certos cursos e carreiras relacionadas profissionalmente com essas ciên-

cias. Resulta daí que alguma formação educativa que possa resultar do

ensino actual da biologia apenas aproveitará a uma fracção mínima da nossa juventude, devido à estrutura actual dos planos de estudo, e à posição limitada e secundária que neles ocupa a biologia. Em termos práticos, portanto, pode afirmar-se que a biologia não influencia a cultura do Português.

Esta situação provém anos do regime

de uma longa tradição. Durante os longos

anterior ao 25 de Abril nunca houve dificuldade em

impor uma zoologia e botânicas descritivas e classificatórias e em afastar do ensino

o darwinismo,

reduzido como estava a uma

breve caricatura

a fechar o programa, rematado pelo «transformismo teíista» a que há pouco aludi. Era fácil fabricar e impor programas e métodos de ensino para se fazer o silêncio ou alimentar a indiferença acerca da evolução

e do problema da origem e evolução do homem. A sua tarefa foi facilitada também

sempre

com o facto de o ensino das ciências naturais ser desde

muito

praticamente

deficiente

e a referência

ao evolucionismo

científico

nula, na boa tradição francesa das descrições anatómicas

e do classificatorismo, que importámos e absorvemos (aliás mal) dos Perrier e outros consagrados da época. Os programas de biologia acomoBibl. Univ.

49 — 18

273

iai

tífico moderno, pelas quais não foi influenciado, o que não surpreende, visto que a Universidade também estava manietada pelo poder político, apesar de nela haver vários professores que teimosamente lutavam por modernizar a ciência e a cultura do seu país. Durante muitos anos fixaram-se regras para o ensino do que designaram pomposamente por «filosofia biológica» nos liceus, regras que limitavam a acção do professor, ao qual não era consentido fazer apreciações sobre a matéria que pudessem considerar-se «como manifestações

da sua opinião» 2. A «filosofia biológica» era o «evolucionismo científico», que, com essa designação vaga, passava por coisa muito incerta, a expor sem discussão ou profundidade, «com muita cautela e sem exageros». O poder político pretendia assim claramente afastar do conhecimento a parte fundamental da biologia, aquilo que dá sentido, profundidade e unidade a esta ciência. Outros aspectos eram igualmente omitidos. À reprodução dos organismos, por exemplo,

que cons-

tituía um tema particularmente sensível. Não a das plantas ou a dos protozoários, que era desenvolvida, e até com pormenores absolutamente desnecessários. O silêncio incidia inteiramente, ou quase, sobre a reprodução dos vertebrados superiores e do homem, sobre a esfera sexual, a gravidez humana, o desenvolvimento do homem, etc. Em compensação, o aluno aprendia pormenores incríveis sobre o sexo e a reprodução do pinheiro ou da açucena. À reprodução da rã, com a fecundação externa e o carácter mais distante da sua reprodução, ainda era tolerada, mas

ir mais longe, na direcção do humano,

propósito da dissecação de uma

não podia

ave ou de um

admitir-se.

Só a

mamífero 5 o professor

aludia a certos pontos da reprodução, mas um tal ensino era necessariamente muito superficial, desconexo e promotor de confusão. Obviamente, comparar aspectos da reprodução nos animais e no homem faria surgir imediatamente da

nossa

espécie,

além,

próprio conhecimento, homem. Para

o final

questões incómodas

dos

claro

mesmo anos

60

está,

de

sobre a origem se

considerar

elementaríssimo, e nos

começos

e a evolução

inconveniente

o

da biologia sexual do dos

anos

70,

a situação

parecia modificar-se no sentido de poder instituir-se um ensino menos arcaico, com novos métodos e novos tópicos, mas as intenções e os esfor-

ços despendidos por alguns professores ficaram aquém das esperanças inicialmente postas na tarefa de renovação. Algo ficou, mas logo se perdeu na balbúrdia das programações e reprogramações, e com a persistente presença dos obstáculos crónicos. Houve professores (e há) que reagem e se esforçam por atrair a atenção dos alunos para o darwi-

nismo científico, mas estes casos isolados não resolvem as graves deficiências

existentes

na

nossa

metodologia 274

da biologia.



de



poucos

SE

daram-se na perfeição ao nosso ambiente cultural, literário e clerical, completamente estranho as correntes renovadoras do pensamento cien-

ia

SACARRÃO

Iaias

FONSECA

siSR ro

DA

sa

GERMANO

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —I

anos para cá é que a sociedade portuguesa parece estar a libertar-se da visão

antiga,

que

suportou

até

demasiadamente

tarde.

Consequência,

talvez, do nosso atraso industrial, de um colonialismo que entorpecia a metrópole, e de estruturas arcaicas da sociedade. Temos de caminhar para a grande reforma de todo o ensino, sem perder mais tempo em ensaiar variantes de disposições antiquadas, que mudam as aparências

sem

tocar o fundo.

c) As origens da classificatória

zoologia

em

Portugal

e a sua persistente

índole

Podemos estabelecer três fases no que respeita às origens dos estudos zoológicos em Portugal %. A primeira é a dos missionários e cronistas, intimamente ligada ao período das Descobertas e às conquistas e consolidação

política

dos territórios ultramarinos

(séculos xv e xvi).

A segunda fase surge mais tarde, no último quartel do século xvrII,

em parte como consequência da reforma pombalina da Universidade e da fundação da Academia Real das Ciências. Para a zoologia, esta fase foi pobre e de curta duração. Mas há o exemplo excepcional do natu-

ralista-explorador Alexandre Rodrigues Ferreira, enviado para o Brasil, de onde remeteu colecções para o Gabinete Real da Ajuda, e também a fundação de um Gabinete de História Natural na Universidade de Coimbra,

com

a criação e oficialização dos estudos de História Natural

dos três reinos, para cuja direcção foi chamado Domingos Vandelli, da Universidade de Pádua, que a exerceu até à data da sua morte, em

1816. Mas o ensino na Universidade de Coimbra não produziu os frutos

esperados. E a maior parte do labor de Rodrigues Ferreira ficou perdida pelo descaminho

e destruição

das colecções enviadas. Para a botânica

é justo lembrar os nomes do abade José Correia da Serra e de Félix de Avelar Brotero, que tiveram acção relevante. A terceira fase começou

a meio do século XIX com

a entrada do

Dr. Barbosa du Bocage para a jovem Escola Politécnica de Lisboa. Sob o seu enérgico impulso a zoologia descritiva-classificatória começa a desenvolver-se como disciplina científica, com trabalhos originais de mérito da sua autoria e posteriormente, também, de colaboradores seus, funda o Museu Zoológico, e tudo isto com o reconhecimento dos meios científicos estrangeiros pela sua notável obra. Em breve, para o final do século, também em Coimbra e no Porto a zoologia classificatória entraria em fase de desenvolvimento, respectivamente com Paulino de Oliveira e Augusto Nobre. Mas a origem e desenvolvimento da zoologia portuguesa no século xIXx processaram-se à margem do darwinismo científico. Os interesses convergiram para a inventariação faunística, para a identificação 275

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

das espécies, para as diagnoses, as listas de nomes, as colecções exóticas,

Por um

lado, era a continuação

se cumpriu

da tradição

do século

xviII, que

entre nós na altura própria, e, por outro

não

lado, era uma

consequência do colonialismo do século xIx. É certo que a classificação constituía ao tempo uma actividade científica de enorme prestígio e de indiscutível

valor,

e grandes

zoólogos

do

século

XIX

exerciam-na

com

entusiasmo. Mas o que caracterizou a zoologia portuguesa é que, nela, o nomear,

si mesmos,

o classificar, o inventariar, o etiquetar,

constituíam

fins em

ao invés do que passou a acontecer após a publicação de

A Origem das Espécies, de Charles Darwin. Identificar

e classificar levantava

problemas

de

origens,

de afini-

dades, de filiação dos organismos. Mas não cá. Por outro lado, a classificação passou a reflectir problemáticas nascidas noutras zoologia, que já estavam florescentes na Europa culta, e que

áreas da entre nós

não existiam ou mal se esboçavam. Na realidade, os começos da zoologia

portuguesa ocorreram num período de profunda revolução no pensamento científico, cultural e sociológico europeu. O Museu de Zoologia da Escola Politécnica de Lisboa foi fundado por Bocage no mesmo ano em que foi publicada 4 Origem das Espécies. Mas, enquanto lá fora o

transformismo

fez

avançar

espectacularmente

múltiplas disciplinas e frentes, dando

sidade

pelas

Portugal

extraordinárias

a ausência

de

ao investigador uma

perspectivas

tradição

a biologia

que

científica,

no

de

suas

febril curio-

lhe foram seio

nas

abertas, em

uma

sociedade

arcaica e colonialista, fez que fossem a inventariação e a classificação os objectivos praticamente exclusivos dos nossos esforços, que incidiram particularmente sobre a fauna do ultramar, enquanto outros aspectos

essenciais das ciências naturais eram totalmente negligenciados. Disciplinas da biologia que no século xIX estavam em pleno desenvolvimento lá fora não surgiram em Portugal. Para o final do século xIX, e até quase

meio do século xx, certas áreas da biologia

a citologia, a histologia, a embriologia)

certos

médicos

investigadores.

Lembro,

foram

por

(como

a fisiologia,

introduzidas

exemplo,

por via de

Miguel

Bom-

barda, Mark Athias, Augusto Celestino da Costa. Mas foram os zoólogos

que se sentiram atraídos por essas novas disciplinas. nismo científico foi quase inexistente. No século passado não teve qualquer influência significativa na Universidade de Coimbra e nos meios onde se cultivavam Politécnica

de Lisboa

as ciências naturais, assim

e na Academia

Politécnica

do

como

na Escola

Porto,

que

acid

Na Universidade e na investigação científica, a influência do darwi-

mais

tarde, em 1911, foram transformadas em Faculdades de Ciências com a reforma do ensino empreendida pela República, sem dúvida a mais

fecunda efectuada em Portugal. Na Escola Politécnica de Lisboa, no quartel do século passado,

ministrava-se

o ensino

das ciências

naturais e nela se localizava, como anexo, o Museu 276

Zoológico.

pata

id

último

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —

A figura dominante da zoologia portuguesa no século x1X foi a do

Prof. José Vicente Barbosa du Bocage (1823-1907), fundador do Museu de Zoologia da Escola Politécnica, que mais tarde passou a ter o seu nome. Era primo do célebre poeta do mesmo nome. Com enorme pro-

jecção científica dentro e fora do País, pelas suas mãos passou uma das mais variadas e ricas colecções de fauna africana do século, que estudou

com inexcedível competência. Os seus trabalhos de identificação e clas-

sificação são, alguns deles, hoje clássicos. Publicou cento e setenta e sete

trabalhos científicos, o primeiro, datado de 1857, sobre uma colecção de

de conchas das ilhas da Madeira e Porto Santo, e o último, datado de sobre

1901,

as

aves

arquipélago

do

de

Cabo

Verde.

Ora, apesar de a sua vida de intenso labor científico ter decorrido

no período mais fecundo e agitado do darwinismo, o grande naturalista português passou ao lado do darwinismo, que não parece tê-lo impressionado.

Nem

reflectiram.

o combateu,

Barbosa

nem

du Bocage

o defendeu,

nem

os seus

foi contemporâneo

trabalhos

de Darwin,

o

e em

1859 (ano da publicação de 4 Origem das Espécies) já era, há oito anos, lente proprietário da 8.º cadeira (Zoologia) da Escola Politécnica, correspondendo-se com as grandes figuras da zoologia do seu tempo. Mas

não com

espólio

Darwin,

arquivado

no

segundo parece, conforme Museu

(incompleto,

sem

se depreende dúvida)

e do

do seu que

se

conhece acerca dos correspondentes do grande naturalista inglês ?. Barbosa du Bocage viveu e trabalhou durante o meio século que viu o triunfo do darwinismo e a profunda revolução científica e cultural a que deu origem. Sem dúvida que o naturalista português conhecia a obra de Darwin. Apesar de o ensino da zoologia ter um conteúdo bastante pobre e limitado, é necessário não esquecer que os meios postos à disposição da Escola e do Museu eram muito reduzidos, tal como os quadros docentes e técnicos. Era na 8.º cadeira que se concentrava todo o ensino da zoologia. O programa era constituído por duas partes: «Anatomia» e «Fisiologia Comparativa», estudada fundamentalmente nos mamíferos e centrada no homem, e «Zoologia», que consistia na descrição e classificação dos animais, com predomínio das espécies da fauna portuguesa e daquelas que ofereciam interesse económico (aclimatação das espécies lhões, etc.). Ao todo, grama consagra, como

Do

pouco

especulação

no País, criação artificial de ostras e mexiumas oitenta lições. Em 1872, todavia, o proremate, uma pequena parte à teoria de Darwin.

interesse

teórica,

de Bocage

diz-nos

discípulos e colaboradores

alguma

pelas teorias científicas, ou pela coisa

um

dos seus

mais

íntimos

que foi Balthazar Osório, naturalista e direc-

tor do Museu da Politécnica e professor de Zoologia da mesma Escola. Osório aponta alguns factos que levam a concluir que Bocage não se interessaria em interpretar factos da zoogeografia, ou de relações entre espécies ou variedades da mesma espécie (por comparação de pormenoaim

GERMANO

res da morfologia)

DA

FPONSEGA

SAGARRÃO

no quadro do transformismo,

À problemática

darwi-

viana não parecia atraí-lo *, À natureza dos seus trabalhos poderia inei-

tá-lo a isso, trabalhos que eram substancialmente de zoologia descritiva, fundamentalmente de identificação e classificação, mas em que a pro-

veniência dos exemplares permitia marcar a distribuição geográfica o poderia levantar, naturalmente, problemas sobre o seu determinismo,

Foi um dos seus colaboradores, o jovem açoriano e naturalista do Museu da Politécnica, Francisco de Arruda Furtado, o único zoólogo, talvez, que ainda em vida de Darwin, manifestou um interesse maior pelo

darwinismo, trocando correspondência muito interessante com Darwin, respeitante, principalmente, a problemas sobre a origem da fauna e da flora do seu arquipélago. Darwin deu-lhe conselhos, propôs-lhe um plano de trabalho, do qual, porém, nada resultou, provavelmente devido a falta de meio de trabalho ou questões de saúde do jovem naturalista português, precocemente falecido. (V. meu 1986 a). d)

Colonialismo e classificação À

progressiva

expansão

económica

da

Europa,

em

resultado

da

ascensão da burguesia como nova classe, conduziu à intensificação dos estudos de história natural, à exploração dos recursos naturais em terras ricas e distantes, com propósitos de dominação imperialista, às grandes

viagens e à nomeação e ordenação dessas grandes massas de materiais colhidos e trazidos para a Europa, organizados em colecções de estudo. O colonialismo foi, por toda a parte, o grande impulsionador da classificação zoológica e botânica, que no século xvilt era a mais importante actividade científica devido à necessidade de inventariar e descrever a enorme quantidade de objectos naturais que se iam descobrindo e acumulando. No mesmo século, o animal faz a sua entrada na civilização (como disse F. Dagognet). Os séculos xvII e XvIII são os séculos

dos

viajantes.

A

consolidação

das

novas

terras

descobertas,

as

travessias dos mares, o incremento comercial que daí decorreu, abriu um universo de coisas nunca vistas. À grande massa de materiais trazi-

dos para a Europa obrigava à sua sistematização, à elaboração de coleeções, etc. Mas como as plantas desempenhavam um papel mais relevante na economia e na vida social, a classificação vegetal foi mais elaborada,

mais

importante e mais precoce, Lineu inventou um método prático para impor ordem e comodi-

dade em

tão vastos conjuntos

homens

cada

vez

nomes,

apor

uma

mais

de uma

abundante

etiqueta,

tarefa

natureza

viva que

e diversa, imensa

se revelava

Classificar de

rigor

e

implica

aos

dar

racionalidade

que consumiu as energias de quase todos os naturalistas dos séculos XVII, xvinI e x1x. À grande tarefa parecia estar terminada no século xix, mas 278

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —1

com a obra de Darwin surgem novos conceitos e novas interpretações da sociedade e da natureza, e o problema que logo apareceu foi o de como harmonizar a concepção de a classificação exprimir uma ordem natural fixa, com as novas ideias de uma natureza viva em mudança permanente

onde

as espécies

não

são entidades

imutáveis.

Conciliar

o

que fixa e segmenta a realidade, a cristaliza em sistemas formais, com as novas ideias de impermanência e de transmutação das espécies. Como congraçar

o que pertence

tradição ainda

não está solucionada,

(a filogenia)

a história evolutiva

A con-

a sistemas conceptuais antagónicos? visto que um

sistema que traduza

é provavelmente utópico. É um pro-

jecto que talvez pertença ao domínio do imaginário porque as relações que os organismos contraem entre si no espaço e no tempo são de tal modo complexas que uma classificação não poderá nunca traduzir a história evolutiva de um grupo. Foi esta ruptura introduzida pelo darwinismo que tem constituído um dos grandes quebra-cabeças dos taxonomistas, que pretendem encontrar saída para a contradição. Isto porque a classificação biológica nasceu e desenvolveu-se num mundo e ara um mundo considerado como eterno e imutável. Antes da publi-

cação de 4 Origem a classificação pretendia traduzir o Plano da Cria-

ção, mas depois deste célebre livro de Darwin passou a querer-se que passasse a exprimir a história evolutiva. A criação de museus de história natural, as expedições geográficas, o acúmulo de colecções, são consequências da expansão europeia e da revolução industrial, e em Portugal alguma coisa se passou de similar, ainda que em muito pequena escala, mas com maior dependência das colónias. O Museu Zoológico da Politécnica foi, em boa parte, um reflexo do nosso colonialismo africano. Fizeram-se algumas expedições geográficas em África (Serpa Pinto, Capelo e Ivens, etc.) e a metrópole recebeu colecções de plantas e de animais, algumas das quais foram importantes para a época, nomeadamente a que Anchieta enviou de

África para Barbosa du Bocage.

Em Portugal, a botânica e a zoologia originaram-se e desenvolveram-se na estreita dependência da ocupação colonial e das crises políticas resultantes

da

cobiça

alheia.

Alheados

das correntes

científicas

euro-

peias e das consequências enormes do darwinismo científico, era para O ultramar que se volvia a atenção dos raros cultores das ciências naturais. E

por

não

exigir

técnicas,

científica complicada,

nem

especiais,

nem

novas,

nem

formação

a classificação foi de imediato a actividade pra-

ticamente exclusiva dos naturalistas portugueses, com intuitos meramente inventariadores, de elaboração de listas das espécies existentes em certas regiões, que com Bocage foram excelentemente identificadas e relacionadas com a geografia. Este labor começou tarde entre nós, pois só veio a verificar-se, sobretudo, a partir do começo da segunda metade do século XIX. 279

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

Às poucas expedições, os poucos exploradores e naturalistas viajantes que tivemos, a classificação dos produtos naturais na metrópole e o seu depósito nos museus e mais tarde, já neste século, noutras instituições, os trabalhos etnográficos, antropológicos, etc., tudo isso obede-

ceu, em regra, a imperativos de ordem política e económica resultantes da exploração colonial, de marcar presença e de justificá-la com a aparência de ocupação científica, e que teve um

dos seus pontos altos com

Bocage. Esta política de incrementar o estudo dos produtos naturais e das populações nativas teve novo arranque nos anos 40 neste século (após longos decénios de esmorecimento) com a reorganização da Junta das Missões Geográficas e de Investigações Coloniais (criada em 1936). E com a criação, mais tarde, de universidades e de institutos de investi-

gação em Angola e Moçambique, a botânica e a zoologia receberam novo impulso para prosseguirem na sua tarefa tradicional de identificação e inventariação

classificatória dos recursos naturais

das colónias. E a

classificação não deixaria, desde o início, de marcar também profundamente, a actividade das mesmas disciplinas na metrópole, em cujas universidades e escolas a biologia dificilmente ensaiava outros caminhos. Entre nós, a tradição inventariadora

e classificadora processou-se:

no século xIX à margem das grandes correntes de ideias que percorriam a Europa. À botânica e a zoologia portuguesas ficaram quase permanen-

temente

alheias à grande

revolução

darwiniana

e ao extraordinário

desenvolvimento científico que se verificou na Europa e nos Estados Unidos da América do Norte a partir da publicação de 4 Origem das Espécies. É certo que antes deste acontecimento já havia enorme progresso científico no âmbito da biologia, mas que também não teve qual-

quer influência significativa entre nós. À botânica e a zoologia limitaram-se entre nós a ser disciplinas meramente inventariadoras e classificadores, cultivadas por um reduzidíssimo número de naturalistas, e

mesmo neste aspecto a situação ainda hoje é muito deficiente. Classificar os organismos à luz do transformismo científico pode provocar questões interessantes, estimular hipóteses, mas

entre nós raramente

essa activi-

dade se traduziu em problemática darwiniana. Um pioneirismo permanente.

A

classificação

nasceu,

entre

nós,

do

colonialismo,

dele e quase só viveu para ele”. Atrasámo-nos.

Ficámos

dependeu

sobretudo

arquivistas. A classificação absorveu quase todas as energias dos poucos cultores de qualidade, mas ficou, em regra, estática e constituiu

a base

e a cúpula de todo o nosso sistema educacional e investigativo no liceu e na Universidade no sector das ciências naturais, em particular na botânica e na zoologia. O panorama

considerado darwinismo

profundas

actual da zoologia portuguesa

tem, a meu

ver, de ser

na perspectiva de um passado colonialista, indiferente ao científico, passado aliás de termo recente e cujas marcas

só o tempo

e a evolução 280

provavelmente

europeizante

da

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —1

sociedade portuguesa poderão, pouco a pouco, dissipar. É certo que se desenvolveram em

dúvida,

sem

ou acentuaram

novas linhas de investigação, e existem, proble-

certos sectores, pólos de interesse pela moderna

mática darwiniana, mas o ensino, a investigação biológica e a cultura portuguesa ainda permanecem praticamente estranhos à revolução aos

darwiniana,

seus

prolongamentos,

desvios

e superações,

revolução

que por toda a parte está muito longe ainda de ter terminado.

e)

da evolução

Pedagogia

Como

de história

e museus

natural em

Portugal

disse, com certa razão, Jean Brun, «nada é mais aristotélico

do que um museu de história natural». Uma natureza compartimentada, categorizada, hierarquizada, eis o grande artifício do museu de história natural. Do classificar e identificar resultaria o conhecimento. A realidade profunda das diferenças é negligenciada, dando a primazia à aparência, à forma. Mas há museus modernos que há muito ultrapasA nós faltaram-nos

estas limitações tradicionais.

saram

sempre museus

onde se fizesse o estudo e a pedagogia da evolução. À sua importância

como factor de cultura e de modernização da biologia seria obviamente enorme.

sempre como

Mas

a situação

precária: meros

abandonados

armazéns

dando algumas

dos museus

de história natural portugueses foi

pelos poderes públicos, permaneceram

de produtos

dos três reinos da natureza, guar-

raridades ou curiosidades, património agora extrema-

mente empobrecido em consequência do incêndio devastador de 18 de Março de 1978 que destruiu as secções zoológica (Museu Bocage) e minerológica do Museu Nacional de História Natural, anexo à Faculdade de Ciências de Lisboa. Estes museus mais não têm sido do que depósitos (defeituosos) de frascos (com exemplares), peles, esqueletos, e animais empalhados. Como centros de educação ficaram como que parados no tempo. Reacções a esta situação não receberam qualquer apoio dos sucessivos governos anteriores ao 25 de Abril. Mas a mudança de regime não parece ter modificado a situação. Enquanto os nossos museus de história natural não se penetrarem de uma perspectiva de mudança e não se orientarem nas suas reestruturações para exercerem uma cautelosa e criteriosa pedagogia da evolução (e da ecologia), certo será que não passarão de armazéns melhor ou pior organizados e arrumados. Evitem-se, porém, as improvisações e os atamancamentos, na pressa de apresentar mudança e novidades ?.

281

GERMANO

f)

As

comemorações

e a indiferença

do

DA

FONSECA

centenário

da

SACARRÃO

morte

de

Darwin,

em

portuguesa

1982,

A recente publicação de um guia das comemorações efectuadas por esse mundo fora é um eloquente documento sobre o actual interesse científico e social pelo darwinismo *!, Os autores desse trabalho dizem que os esforços colectivos exigem um planeamento igualmente colectivo, de modo que a dedicação demonstrada pela memória de Darwin reflecte o interesse da colectividade pela personalidade e pela obra do grande naturalista, que Ernst Mayr considera como o mais revolucionário dos cientistas que a história conheceu. A ausência de Portugal neste guia não surpreenderá: em 1982 nada de significativo foi realizado entre nós a assinalar a efeméride, o que é perfeitamente natural acontecer num país onde o darwinismo nunca

suscitou

um

real interesse

na

círculos

intelectuais

e científicos.

chegam

para criar um

movimento

E

comunidade,

os

em

empenhos

particular

nos

esporádicos

não

colectivo. É certo que países como a

Suíça e a Suécia não efectuaram, segundo parece, comemorações sobre Darwin, mas as causas deste facto não serão necessariamente as mesmas que as nossas. Aliás, entre nós, em 1958 e 1959, datas de dois centenários fundamentais darwinianos, também nada se passou. Em Dezembro

de 1981 fechei um artigo com o seguinte trecho:

«No próximo ano

(1982) passa o primeiro centenário da morte de C. D. Entre nós [...] irá suceder o que aconteceu em 1958 e 1959 (efemérides respeitan-

tes ao 1.º centenário do nascimento do darwinismo e da publicação da

Origem)?

alheios

Ficarão

as nossas

universidades,

os

nossos

meios

culturais,

ao acontecimento?» 2. De facto, ficaram!

O número de reuniões, conferências, simpósios, colóquios, publicações colectivas (em revistas, livros, etc.) e outras manifestações promovidas

em

1982

no

estrangeiro

é simplesmente

impressionante

pelo volume, pela qualidade, pela diversidade. Excluíram-se de referência os artigos isolados ou as publicações que, ainda que relativos ao darwinismo, não tivessem objectivos comemorativos. Um facto impor-

tante é o de as comemorações se terem realizado em países de diferentes regimes

e ideologias, como

os Estados

Unidos

da América

e a União

Soviética, a França e a República Popular da China e tantos outros. Entre as conclusões que os autores extraem da enorme série de actos comemorativos, realço as seguintes. Em primeiro lugar, é de salientar o carácter espontâneo das comemorações, o facto havido centros nacionais ou internacionais de coordenação

de não ter das activi-

dades comemorativas, excepto nalguns países socialistas. E foram várias centenas as conferências e os artigos publicados por especialistas em todo o mundo, o que dá uma boa perspectiva da maneira como se considera hoje o darwinismo

e a sua influência 282

na sociedade

actual.

Existe hoje,

BIOLOGIA como

escrevem

os

autores,

E

um

SOCIEDADE — 1

interesse

tão profundo

pela

pessoa

de

Darwin e pelo darwinismo que já está em moda falar-se a seu propósito

da existência de uma «indústria Darwin». A ela se dedicam activamente filósofos, historiadores, cientistas, políticos e sociólogos. Muitos dos mais importantes simpósios comemorativos de 1982 foram

organizados

por não-biologistas,

como

sucedeu, por exemplo,

em

Florença, na Itália 2. Aliás, a Itália foi o país onde se efectuaram mais simpósios e a maior quantidade de publicações alusivas ao centenário. Esta popularidade e entusiasmo que existe em Itália pelo darwinismo é, como

dizem

os

autores,

«extremamente

recente»,

provavelmente

nas-

cida nos últimos dez ou doze anos. Imediatamente a seguir à Itália vem a Espanha,

onde

o número

das

comemorações

em

1982

foi também

extraordinário e decerto inesperado. O interesse pelo darwinismo seria também, aí, igualmente recente. Outro facto que merece menção é o de as comemorações não dizerem apenas respeito ao darwinismo científico, mas igualmente (e por vezes com maior relevo) ao seu relacionamento com a política e a ideo-

logia. A simpatia pela doutrina tem raízes ideológicas profundas. Enquanto na generalidade dos países de língua inglesa (Reino Unido, Estados Unidos, etc.) o interesse vai mais, ou apenas, para o aspecto puramente científico do darwinismo, na maior parte dos países de outras

línguas o interesse é duplo — científico e político. Discute-se e trabao seu

lha-se

aspecto

científico,

mas

faz-se,

o marxismo.

a discussão

também,

das

Isto não significa que seja

relações do darwinismo

com

legítima a aproximação,

e válidas as inferências filosóficas e políticas

dessa aliança intelectual. Esse é outro problema. O facto importante é que a ligação Darwin-Marx foi especialmente evidente em Espanha e Itália, onde os museus fizeram exposições comemorativas e as autoridades locais organizaram e promoveram conferências. Ambos os países se libertaram de muitos anos de ditadura fascista e as forças socialistas

passaram então a ter campo livre para agirem e se desenvolverem. Por exemplo em Itália, um importante patrocinador dos simpósios sobre Darwin

foi o Instituto

Gramsci, do nome

do fundador do PCI.

Para-

lelamente, em Espanha, foram também elementos da esquerda política que estiveram na origem das comemorações darwinianas. Foi o caso de Barcelona, sob administração socialista, Mas deve dizer-se que não houve qualquer combinação ou coordenação entre Italianos e Espanhóis para levar a efeito as comemorações, Em

França

e na Grécia verifica-se, também,

um

aumento

de inte-

resse pelo darwinismo científico e político, e os autores pensam que as causas devem ser similares às que provavelmente estão a actuar em Espanha

e Itália —ou

seja, que o darwinismo

é uma

teoria

da mu-

dança e como tal transmite uma mensagem de libertação e de progresso social, É bem

certo que se discute, desde que Darwin 283

publicou

a sua

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

polémica obra, se darwinismo e marxismo têm pontos de contacto, fundamentações recíprocas, analogias reais. Mas a realidade da aproximação é, em si mesma, um fenómeno interessante que merece atenção

e estudo. Para os autores do artigo a que me estou reportando e comentando,

o marxismo não basta para explicar o grande interesse pelo darwinismo que se verifica em Itália e Espanha. A explicação deve estar antes (para os autores) na sua libertação, não só do fascismo, que durante muitos anos coarctou duramente a liberdade política e cultural, como do domínio ideológico exercido pela igreja católica durante séculos. O centenário de Darwin em Espanha e Itália foi apropriado como um ponto simbólico de junção do materialismo, do liberalismo e do agnosticismo, dizem os autores do artigo. Para os intelectuais de esquerda, ser darwinista é admitir

que o mundo

se transforma,

bolo da possibilidade de mudança

e «o darwinismo

é o sím-

política». E na Grécia e na França,

com as suas políticas semelhantes às da Espanha e da Itália, com histórias

culturais

darwinismo

análogas

tem,

às destes

para os mesmos

países,

autores,

o interesse causas

crescente

similares. Nos

pelo países

comunistas de Leste, porém, se bem que Darwin seja considerado como «um herói oficial do materialismo dialéctico soviético», as celebrações foram, segundo os autores mencionados, relativamente tranquilas e limi-

tadas, comparativamente ao que se passou na Itália, Espanha e França. A conclusão geral dos autores é que o interesse pelo darwinismo nestes países seria devido à ascensão da esquerda, em especial do marxismo,

em

oposição

à histórica

dominação

ideológica

da

Igreja

e das

forças da direita. É esta uma das conclusões principais que os autores extraem das comemorações de 1982, mas nem todos os especialistas da filosofia do darwinismo pensam assim. Antes

de

terminar,



um

ponto,

porém,

que

me

suscita

um

comentário, e que parece refutar a tese dos autores referidos. É o caso

de Portugal. De certo modo, o nosso país está numa situação similar à dos outros países latinos europeus, em especial a Espanha e a Itália. Tal como aconteceu à Espanha, também Portugal suportou uma longa fase de ditadura, com pleno domínio da ideologia conservadora e católica. E todavia, depois do 25

de Abril,

a indiferença

pelo darwinismo

da parte de intelectuais, da escola, da classe culta, continua a ser, na prática, absoluta. Nem pelas suas implicações políticas, sociais, filosóficas, nem

como teoria científica, o darwinismo se fixa e se expande em

Portugal. Nem

como símbolo de mudança

à pesquisa científica, nada

política, nem como estímulo

A indiferença pelo darwinismo deve estar, provavelmente, relaciocom o nível de desenvolvimento cultural e científico. Nesta

perspectiva poderá entender-se que as culturas de Itália, Espanha e Portugal, ainda que nascidas de uma raiz comum, não tiveram decerto 284

BIOLOGIA

o mesmo além

E

SOCIEDADE —I

ritmo de desenvolvimento, tendo nós ficado muito para trás,

da intervenção

de outras causas internas e externas mais profun-

das e de diversa natureza, que marcaram a evolução própria da sociedade portuguesa até aos nossos dias. Às razões históricas da nossa indiferença pelo darwinismo parece-me constituir um problema interessante, merecedor de análise. Entretanto, o darwinismo científico está mais vivo (e polémico) do que nunca. Os seus prolongamentos filosóficos ou desvios ideológicos nunca foram tão vigorosos e discutidos. À moderna teoria da evolução biológica expansão

assenta solidamente no darwinismo, independentemente da por que está passando a teoria, e de novas perspectivas que

se abrem.

Na realidade, a explicação darwiniana generalizou-se e apro-

fundou-se

para

limites

nunca

atingidos antes e evolui ensaiando

novos

caminhos. Apesar do empenho de diversos biólogos portugueses, existem numerosos campos de investigação onde ainda não entrámos e outros onde apenas raros estudiosos aplicam o seu labor. Falta-nos uma sólida tradição científica em biologia evolutiva e um aumento substancial de competências e de meios de trabalho. Se a classificação e a problemática da identificação de subespécies, espécies, etc., são de facto de indiscutível importância (prática, mas não só), tal circunstância não deve permitir

que fiquemos alheios a outras áreas. E contudo, diga-se de passagem, mesmo no espaço da taxonomia, a que estamos tradicionalmente apegados, o progresso conseguido tem sido muito insuficiente, embora existam trabalhos publicados de muito mérito e investigadores de comprovado valor profissional. A zoologia é uma ciência que experimentou avanços espectaculares em múltiplos sectores do conhecimento biológico, mas nada nela tem sentido se não considerarmos os fenómenos numa dinâmica de ontogenia e de história, de mudança /«estabilidade», não falando de outros pontos fulcrais. Problemas há para os quais ainda se procuram respostas, como

o de saber reconhecer

as «reais afinidades evolutivas»

entre

os organismos, ou quais as relações autênticas entre adaptação e evolu-

ção, ou ainda qual a extensão e importância da selecção na natureza, ou o problema da «mente» do animal e do ser humano na sua relação com o mundo, ou a questão, ainda insolúvel, da causalidade ontogenética, ou a de fazer a síntese das duas dimensões, «visível» e «invisível»,

ou seja dos fenómenos aparentes à actividade normal dos sentidos com os

que

se

passam

a

nível

submicroscópico

e, sobretudo,

molecular.

E, também, a crítica do dogmatismo e do irracionalismo e politização da biologia, assim como do determinismo biológico, historicamente

associado à ideologia da burguesia (e seu cúmplice). A sociobiologia é o seu produto final.

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

Todos estes avanços, interrogações, problemas à espera de solução, e ideologias, são outros tantos pontos de convergência da zoologia moderna no seu caminhar para a edificação de uma nova filosofia do ser vivo. À revolução darwiniana continua a ser o motor deste movi-

mento, ainda que, certamente, dê lugar mais tarde a novas concepções e a novas teorias sobre a natureza viva. Mas para Portugal poder, de algum modo, contribuir para o progresso da moderna biologia evolutiva terá, entre outras condições, de abandonar a sua tradicional indiferença

pelo darwinismo científico *.

286

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —I

NOTAS

1 Jean-Louis Rodolphe Agassiz (1807-1873), geólogo e zoólogo suíço, naturalizado

norte-americano,

fixou-se nos Estados

Unidos

em

1846, onde

a sua influência

foi decisiva para o desenvolvimento dos estudos zoológicos. 2 O

movimento

religioso

conhecido

como

«Fundamentalismo»

começou,

como

refere William Overton, no século xix nos Estados Unidos como resposta do protestantismo evangélico ao darwinismo e às modificações sociais e religiosas, responsáveis,

segundo o mesmo movimento, por ataques à Bíblia e por provocarem o declínio dos valores tradicionais [v. W. R. Overton in Montagu (1984)]. Os fundamentalistas retirariam a sua designação do título do 12.º volume de uma enciclopédia de pensa-

mento evangelista The Fundamentals, financiada pelo magnate do petróleo Lyman Stewart. Entre 1910 e 1915 mais de cem mil adeptos receberam gratuitamente desses folhetos com o referido título. Eram protestantes conservadores que se opunham à teologia

liberal.

As

conexões

políticas

eram

óbvias, levando

muitos

americanos,

no

após-guerra, a considerar a existência de ameaçadoras ligações entre darwinismo, bolchevismo e militarismo alemão com o liberalismo religioso e político. (V. Marsden, 1981 e 1984, Maddox, 1982, e Durant — Darwinism and Divinity: a Century of Debate,

1985, p. 26, in Durant,

1985).

3 O termo «criacionismo científico» (scientific creationism) apareceu por volta de 1965, a seguir à publicação de The Genesis Flood, em 1961, de Whitcomb e Morris [v. W. R. Overton in Montagu (1984)]. Os livros BSCS, que acentuavam fortemente a importância do evolucionismo darwiniano e que invadiram as escolas americanas, devem ter suscitado a ressurgência do criacionismo, agora com mais virulência, e reclamando-se de «científico», e acusando a evolução de ser uma religião, quando muito uma hipótese sem fundamento. Para a emergência do criacio-

nismo «científico» e seus motivos (1985), pp. 181-204.

históricos, v. Eileen Barker

(1985)

in Durant

4 A oposição de William Jennings Bryan à evolução e ao darwinismo parece ter resultado fundamentalmente de preconceitos políticos. Escreveu, por exemplo ( Seven Questions in Dispute, 1924), que a sua objecção à evolução não vinha de uma convicção de que ela não fosse verdadeira, mas sim da circunstância de ser causa de grandes danos morais a quem aceitasse esse conceito (para mais pormenores, v.

Durant, 1985, pp. 23-25). 5 No que respeita à data da Criação, há por vezes divergências relativamente aos 6000 anos ou, mais exactamente, aos 4004 a. C. que o arcebispo James Ussher calculou no século xvrrr. Os modernos criacionistas não são rígidos a este respeito, mas não transigem quanto à curta amplitude temporal: para eles a idade da Terra

e a Criação são acontecimentos

que teriam ocorrido apenas há poucos milhares

de

anos [v. Mayr (1982), Bowler (1984)]. Se a história da Terra fosse tão breve, a evolução não disporia de dimensão temporal para produzir a complexidade e diversidade

das adaptações constituídas nos seres vivos. Mas o facto real é que a sua duração

é imensa, cifrando-se em cerca de 5 biliões de anos (e a vida terrestre em cerca de 3,9 biliões), sendo esta uma realidade contra a qual se quebram as investidas antievolucionistas, Por isso é tão vital para os criacionistas fundamentalistas que a Terra e a vida tenham sido criadas prontamente há poucos milhares de anos. 9 Existe um certo nexo entre o aparecimento do BSCS e o criacionismo (v. a nota

3),

Os

novos

programas

BSCS

surgiram

287

em

seguida

ao lançamento

do

satélite

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

Sputnik pela União Soviética em 1957. Tornou-se imperioso modernizar o ensino da ciência nas escolas oficiais e situar a evolução biológica em quadros mais amplos do que o fora feito até aí. Atrair a atenção dos cidadãos para o cosmo, fantasiando até novas civilizações, ou pelo menos a sua possibilidade de existência, e uma evolução

universal da vida. Nasceu uma biologia espacial, uma exobiologia, como foi designada,

que, como alguém disse, é a única ciência que nasceu antes do seu objecto, porquanto todos os esforços para provar a presença de vida fora da Terra têm resultado infrutíferos. Mas o mito é mantido; e para isso foi necessário fazer sair a ciência da evolução das universidades e dos domínios secretos dos especialistas para se proceder à educação do cidadão comum e do público em geral, preparando-o para a nova era espacial. Com isso ganhou-se e de certo modo perdeu-se. Houve espectaculares avanços tecnológicos

e

científicos,

mas,

por

outro

lado,

as

enormes

somas

gastas

planos de conquista do espaço, que poderiam ser utilizadas para melhorar ções

das

populações

humanas

mais

desfavorecidas,

e

as

perspectivas

com

os

as condi-

abertas

para

novas e mais dispendiosas corridas aos armamentos e a tecnologias de destruição maciça mais sofisticadas levam a duvidar se o saldo será de facto positivo. O que parece acontecer é que se criam e se movimentam poderosíssimos interesses militar“industriais antagonistas e com rumo à guerra pela própria dinâmica interna desses gigantescos grupos. 7 Elaborar uma teoria científica não evolucionista, assente em milagres, que dê um sentido e uma interpretação a toda a enorme massa de factos astronómicos,

geológicos e biológicos, que a ciência tem evidenciado e explicado num quadro conceptual de mudança, é tarefa impossível. 8 A evolução, para o biólogo profissional, é uma realidade material que penetra toda a problemática, dá sentido a todos os fenómenos biológicos, suporta todas as interpretações, quer as que respeitam às grandes questões como aos minúsculos

problemas. Não se trata, portanto, de arranjar «provas» para essa realidade, nem a

sua aceitação depende de determinadas circunstância

de o biólogo reconhecer

experiências ou demonstrações, mas antes da os seus efeitos, e sobretudo

dessa mesma

reali-

dade subjazer a todos os processos que se desenrolam na natureza viva, que perde significado se a pensarmos fora de um quadro científico de mudança. Deste modo, como disse Peter Medawar, o «anti-evolutionism is of the same stature as flat-carthism» (cit. em Barker, 1985). Importa salientar que nada ou quase nada em

ciência pode ser definitivamente provado provado

nem

aceite como

(quase uma

sempre)

no sentido verdadeiro da expressão. Nem

directamente

realidade provável

observado.

não porque

Um

processo

seja directamente

ou

estrutura

observado

é

ou com-

provado, mas sobretudo porque resulta de uma conjunção de factos e hipóteses logica-

mente ligados e testados ou testáveis. O grau de certeza (no que respeita a uma teoria) pode ser tal que tenha para nós o valor de uma verdade, mesmo assim sempre relativa e provavelmente provisória.

? Ano do centenário das instalações do Museu, mas o debate começou, na realidade, em 1978, com a inauguração das novas exposições de dinossauros, e depois em 1980, com as relativas à posição do homem na natureza, havendo além disso catálogos para as explicações e exibição de filmes (cf. Halstead, 1981). V. meu 1987 b.

10 A controvérsia durou meses e reflectiu-se sobretudo em cartas dos evolucionistas ao editor da revista Nature e aí publicadas. A maioria dos biólogos evolucionistas não está de acordo com os cladistas e pensa que a ciência não pode escusar-se

a propor hipóteses, quer sobre as causas do processo evolutivo que originam as espécies, quer sobre os seus antepassados mais prováveis. Deixar estes problemas histórico-evolutivos envoltos em mistério por não ser possível submeter à prova directa as hipóteses respectivas é atitude anticientífica, sobretudo porque, se não podemos testar o passado, é possível refutar essas como tanta vez se tem feito, e também e podem

conduzir

à descoberta

hipóteses por múltiplos modos indirectos, porque as hipóteses orientam a pesquisa

de numerosos

288

factos,

quer

no

esforço

de as refutar,

BIOLOGIA quer

no

de

as

suportar.

À

E

SOCIEDADE —I

popperiana

bitola

não

tem

valor

absoluto

tanto

mais

que não é nada fácil afirmar que dada hipótese é de certeza insusceptível de refutação. No estudo de problemas concretos, o darwinismo e as hipóteses a que dá origem

têm sido submetidos a múltiplas provas e têm permitido formular predições testaveis.

A teoria da evolução é refutável porque podemos conceber múltiplas observações que seria a presença iniludível de restos huma-

a tornariam inviável, como por exemplo

nos nas rochas do precâmbrico. Mesmo interrompida como está, a cadeia de evidências

(paleontológicas) mostra uma exacta correlação (sem excepção) entre estrutura orgânica e tempo. A teoria da selecção natural tem sido testada, os exemplos de selecção comprovada aumentam constantemente, e é sempre possível que a prática

futura venha esclarecer ou dar novo sentido ao processo que não é nada simples. Falta conhecer os seus nexos e a sua verdadeira extensão na natureza.

Quanto aos cladistas, sem dúvida que, se afirmam que a evolução é impossível de confirmar e que os cladogramas não traduzem o curso das transformações, então não surpreenderá que os criacionistas «científicos» reclamem para a sua religião o estatuto de ciência, o que certamente é um delirante contra-senso. Consulte-se, por

exemplo, Eldredge (1981), Wade (1981), Thuillier (1981, pp. 167-184), Halstead (1981), Bowler (1984). 11 Não é fácil calcular o número de pessoas que na Grã-Bretanha têm credos mais

ou menos

segundo

mas

«fundamentalistas»,

certas estimativas não deve ultra-

passar algumas centenas de milhares. São em todo o caso diversas as seitas (Testemunhas de Jeová, Assembleia de Deus, etc.) que rejeitam vigorosamente a teoria da evolução e que abraçam em absoluto a palavra do Génesis e acreditam no seu significado

literal. Mas

enquanto

nos Estados

Unidos

da América

certos meios

oficiais,

v. g. de Dalas (Texas), pressionam para que a história de Adão e Eva no Paraíso seja ensinada como se tratasse de um facto histórico, na Inglaterra (em Hertfordshire), na mesma ocasião (1977), o director de um departamento de educação religiosa é destituído das suas funções por se recusar a ensinar, conforme os progra-

mas, que essa mesma história fosse um mito, já que ele acreditava na interpretação

literal do Génesis e queria que as crianças dela tomassem conhecimento. Este facto daria de certo modo a medida da diferença entre a situação nos Estados Unidos e na

Grã-Bretanha (v. Eileen Parker in Durant, 1985). 122 A glória incontestável da ciência francesa, hoje patente, em tantos sectores de ponta, foi antecedida por uma fase de declínio (no que respeita à biologia) até à II Guerra Mundial. Pierre Rousseau, ao traçar alguns dos seus aspectos, é por vezes cáustico. Na altura da II Guerra Mundial, o autor, ao referir-se ao atraso das ciências biológicas, diz, por exemplo: En 1939, pour tout dire en gros, l'Histoire Naturelle de papa continuait, somnolente et poussitreuse. Plus que dans toute autre discipline, limage caricaturale y subsistait: celle du vieux savant coiffé de sa calotte et passant ses jours à étiqueter et à classer [...] Même le phénomêne de Iévolution était encore parfois contesté — par exemple, en 1929, par Louis Vialleton et, en 1937, par Paul Lemoine, directeur du

Muséum.

(P. 53.)

E na p. 291: . Car que faisaient-ils, ces chercheurs des années 40 à 50? De la systématique, de la classification, des créations ou des retouches de catégories Bibl. Univ.

49 — 19

zoologiques

ou

botaniques 289

[...]

on

en

inventait

des

classifi-

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

cations fondées sur [évolution et la phylogeneze, on divisait les classes en familles de plus en plus nombreuses [...]. En zoologie comme en botanique, le développement d'une systématique hypertrophiée et purement littérale, [...] (P. 291.)

Foram um

as próprias virtudes do espírito cartesiano que

obstáculo,

tornando-se

num

racionalismo

acabaram

estrito e desconfiado.

por

A

constituir

biologia

evolu-

tiva acabaria por triunfar graças ao pragmatismo e ao empirismo anglo-saxão, que todavia não impediram a elaboração de uma grande síntese, e onde o culto da razão e da teoria não descurou as lições da experiência. 3 É sintomático que só em 1946 fosse, pela primeira vez, criada uma cadeira

de

Genética

numa

faculdade

francesa,

e,

também,

que

não



muitos

anos

um

professor de Zoologia na Sorbona criticava a biologia molecular «et ses oripeaux nucléiques» (sic) (cf. Lwoff, 1984). As razões da oposição francesa ao darwinismo o mesmo à evolução são, repito, muito variadas. Não é fácil explicar como é que cientistas como L. Vialleton (anatomista conhecido) ou P. Lemoine puderam concluir que a evolução é pura ilusão. Como é que, por exemplo, se admitia uma evolução limitada em certos grupos, mas se recusava que o mesmo fenómeno pudesse (o papel ocorrer numa escala ampla. Factores políticos, filosóficos, religiosos da Igreja foi considerável) e outros impediram que a doutrina vencesse as quase

inexpugnáveis

darwiniano

barreiras

e académicas

culturais

que

se

O

opunham.

lhe

da tentativa/erro, como explicação básica da natureza

método

viva e do homem,

nunca encontrou ambiente intelectual na pátria de Lamarck. Interpretações vitalistas, «tendências internas», «élans criadores», «progressivismo inerente aos seres vivos», são metafísicas

alheias ao evolucionismo

filosofia estranha ao pensamento

francês

14 V. o meu livro 4 Biologia sobre o darwinismo», 1, 2, 3.

darwiniano,

[v. Bowler

do Egoismo

que

na realidade

(1983)].

e os meus

«Apontamentos

artigos

15 A. J. Saraiva e O. Lopes — História da Literatura Portuguesa, ló Teófilo Braga publicou

(O Occidente,

vol. 109, n.º 123,

veicula uma

1882)

1.

um

curioso

artigo a propósito do falecimento de Charles Darwin, que ocorrera pouco antes, no mesmo ano. Nele escreveu, por exemplo, que «as doutrinas de Darwin revolucionaram

a consciência humana, pondo em discussão questões suscitadas pelos grandes espiritos do fim do século xvirI [...] e abafadas pela reacção neocatholica [...] da qual Cuvier e Blainville foram [...] os instrumentos retrógrados».

17 V. Pinharanda Gomes — 4 Renascença Portuguesa (1984). 8 V. M. Godinho — 4 Estrutura da Antiga Sociedade Portuguesa 19 Rómulo de Carvalho — A Astronomia em Portugal no Século XVIII

(1971). (1985).

20 Francisco de Arruda Furtado, naturalista do Museu da Politécnica (Lisboa),

morreu prematuramente em 1887, com 36 anos de idade. Trocou correspondência com Charles Darwin (v. meus artigos «Apontamentos sobre o darwinismo — 2» e «Sobre o método em Darwin e a episódica relação com Arruda Furtado» (1986). 21 Albino Augusto Giraldes de Morais (1825-1888) foi professor da Universidade de Coimbra. Publicou em 1878 O Darwinismo ou a Origem das Espécies (con ferência que não chegou a efectuar-se no Clube Conimbricence), trabalho superficial e único

do autor,

sobre

o tema.

O opúsculo respectivo

foi incluído

em

Questões

de

Philosophia Natural, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1878. 22 Carlos França foi médico e naturalista do Museu da Politécnica (Museu Bocage) desde 1904. 23 António A. E. Mendes Correia (1888-1960) foi professor da Universidade

do

Porto

e deixou

obra

notável

como

antropologista

e vasta bibliografia

da especiali-

dade. Interessou-se pela problemática evolucionista do homem. Ainda como assistente publicou em 1915, por exemplo, um Resumo de Lições de Antropologia, onda aborda 290

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — I

com sobriedade e mentalidade científica o problema da origem do homem e da sua posição entre os primatas. Em 1920 publicou «As novas ideias sobre a evolução»

(A Águia, vol. 17, n.º 99-100) e em 1924 o livro Homo

(1926, 2.º ed.), Atlântida,

Coimbra. 24 V. Diário do Governo, 1 série, n.º 247, de 22 de Outubro de 1948, e Programas do Ensino Liceal, Imprensa Nacional, 1962. 25 Quando eram feitas dissecções, porque a verdade é que os trabalhos práticos nem sempre fizeram parte dos programas oficiais. Ora eram suprimidos, ora eram estabelecidos. Por outro lado, as dissecções eram feitas em grupo, com um animal a servir para vários alunos, ou mesmo para a turma inteira. (Falta de verba, falta de

instalações, etc., a mesma

história de sempre.)

o

WawW

Vs

vm

26 V. o meu artigo «As origens dos estudos zoológicos portugueses» (1953). 27 Não é, porém, absolutamente certo que Bocage não tenha entrado em con-

tacto com Darwin. A correspondência de C. D. parece um filão inesgotável, que está a revelar

de novo

28 V.

Balthazar

Osório — Elogio

de corres-

a publicação de três volumes

com

riqueza

a sua enorme

pondência [v. Freeman (1978)].

Histórico

do

Ilustre Naturalista

e Professor

J. V. Barbosa du Bocage. 29 Em Portugal tem dominado um classificatorismo de gabinete e prateleira, de estreiteza

coleccionista,

longe

assim,

e, mesmo

de atingir, em

regra,

em

quantidade

e qualidade, os níveis mínimos desejáveis, circunstância que se reflectiu, por exemplo, na situação lamentável dos nossos museus de história natural. Os talentos e as

boas vontades que, sem qualquer dúvida, temos tido, ainda não conseguiram inverter

a situação e fazer pegar e crescer solidamente uma zoologia causal moderna. Se não lhe for dado

sentido e profundidade, o classificar e identificar será meia-ciência ou

quase-ciência. V, meu 1987 b. 30 Y. também os meus artigos «A obra do Dr. Barbosa du Bocage e «Algumas

(1972)

de história natural»

«Museus

(1968),

linhas programáticas para a reor-

ganização do Museu de História Natural» (1982) [títulos abreviados]. A pedagogia da evolução não deve infiltrar simples teorias como coisas certas, nem um museu de ciência deve ser concebido como um altar da ciência, como actividade pura e neutra. V. meu 1987 b. 31 Richard J. Wassersug e Michael R. Rose— «A Reader's Guide and Retrospective to the 1982 Darwin Centennial». [Q. R. Biol., 59 (L): 417-436, 1984]. — 1» (1982). 32 «Apontamentos sobre o darwinismo

33 The Darwinian

Heritage

Itália), obra a ser publicada em dois

(Florença,

volumes. 3 Não é um facto incontroverso que a indiferença portuguesa pelo darwinismo seja tão-somente um problema de atraso cultural e científico-industrial relativamente

aos outros países, nomeadamente aos mais afins, como a Espanha e a Itália. Haverá

na nossa apatia algo de análogo ao que se passa no Japão, onde se verificaria um pro-

cesso de forte rejeição do darwinismo? Segundo Beverly Halstead (/Vature, 317: 587-589, 1985), o antidarwinismo no Japão tem as suas causas nas características da sociedade japonesa — nomeadamente na supremacia do grupo sobre o indivíduo, na visão que

o Japonês

sociedade,

baseada

tem na

e do homem,

do mundo cooperação

e

na

na estrutura e hierarquia da sua

obediência,

numa

generalizada

ausência

de disputa e crítica intelectual: como é próprio de uma comunidade que, apesar do seu gigantesco progresso e modernidade tecnológica (e não só), esconde uma rígida estrutura feudal autoritária. £ certo que no Japão o darwnismo científico é assimilado em grupos universio tários,

cujo

nível

científico

é

comparável

ao

que

de

melhor

existe

no

Ocidente.

O centenário da morte de Darwin não foi aliás esquecido neste país, ainda que a lembrança fosse marcada pela sobriedade. Mas fora dos círculos científicos, e se bem que a competição individual seja duríssima no Japão (mas execrada pelo japonês 291

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

comum), e que o darwinismo social tenha sido adoptado pelos detentores do poder no país (classe política, grupos industriais, casta militar, etc.) no final do século passado e até ao final da II Guerra Mundial, o darwinismo continuava e continua estranho ao modo de sentir e de pensar dos Japoneses. Existe mesmo uma teoria antidarwiniana da autoria do Prof. K. Imanishi, de 83 anos de idade, cujos livros,

que

divulgam

toda

ela cooperação

(desde

1941)

a sua doutrina

e mutualismo,

negando

(anti-seleccionista, a competição,

etc.),

anti-individualista, são

extremamente

populares, e o seu autor considerado um génio equivalente a Darwin, ainda que, na

realidade,

consoante

sociedade

portuguesa

a opinião

de

Halstead,

a

sua

teoria

da

evolução

seja

uma

italiana,

ete.?

«visão poética» boa para iludir uma comunidade que preza a harmonia, a cooperação, o espírito de grupo, mas detesta a realidade que é obrigada a suportar. Virá a indiferença portuguesa pelo darwinismo analogamente de uma estrutura profunda da que

a demarca

nitidamente

da

espanhola,

da

Talvez analogia apenas na impermeabilidade como que visceral, mas não mais. Lembrarei, por exemplo, que, ao invés do Japão, não existe em Portugal qualquer

interesse pelas teorias de evolução antidarwinianas, ou por teorias de mudança de qualquer outro tipo, e tão-pouco vocação popular pela filosofia natural. Se o mutacionismo devriesiano prevaleceu anacronicamente nos compêndios do ensino secundário em Portugal foi devido provavelmente ao seu apelo ao «milagre», à criação súbita

das espécies, com repúdio da evolução gradual darwiniana e da sua mecânica da «tentativa/erro», que é a própria essência da selecção natural, força que contraria frontalmente toda a esperança no transcendente e na existência de uma natureza viva teológica.

292

CAPÍTULO A

HERANÇA

VII

BIOLÓGICA DO ADQUIRIDO DA IDEOLOGIA

E

A

FORÇA

À medida que tendem a predominar as filosofias idealistas, que os e de anticiência são evidentes, o conheci-

de irracionalismo

sintomas

mento objectivo e crítico guarda todo o seu valor como baluarte onde o espírito humano pode defender-se dos males que o corrompem — o obscurantismo,

metafísicas

as

dogmáticas,

as

ideologias

os

impostas,

vaticínios, as paraciências, as «ciências» ocultas, a superstição, a retórica,

o

os

oco,

verbalismo

charlatanismos.

E

o

sendo

conhecimento

científico combatido no que ele tem talvez de mais nobilitante (a ascensão e libertação do espírito), não deixam, apesar disso, de lhe copiar as

aparências os que, conscientemente ou não, fazem por degradá-lo. Lem-

bremos apenas a revivescência do criacionismo científico» e do lamarckismo, este último não digo como campo de pesquisa científica (o que é certamente desejável), mas como preconceito e concepção fortemente politizada, como se verá a seguir. Basta recordar o enorme e complexo debate levantado pela doutrina do mitchurinismo-lysenkismo (de fundo lamarckista), controvérsia de larga e profunda repercussão política, que pertence já à história da ciência. A teoria da evolução tem passado por diversas vicissitudes desde que Darwin lhe estabeleceu os verdadeiros fundamentos, com os quais originou a biologia moderna. Com esta teoria a biologia obteve a necessária unidade e consistência, tornando-se numa verdadeira ciência. Desde a publicação da Origem, de Darwin, diversos incidentes têm

caracterizado o desenvolvimento da teoria, não só como processo, mas sobretudo no que respeita às causas do fenómeno. O famoso caso Lysenko vem a propósito das diversas vicissitudes por que passou o darwinismo

na

sua

fase

crítica

de

modernização,

período

em

que

a

genética lhe forneceu novas bases e potencialidades de desenvolvimento, consolidando a doutrina da selecção natural e contribuindo para a sua aceitação plena. Com efeito, no tempo de Darwin, o transformismo triunfou,

mas

a teoria

da

selecção

natural

não

teve grande

aceitação.

No final do século x1x, e durante o primeiro quartel deste século, o conceito entrou em acentuado declínio, em boa parte devido ao cepticismo muitos

de

grande

parte

evolucionistas

no

dos

primeiros

mutacionismo 293

mendelianos devriesiano

e à convicção (e

doutrinas

de aná-

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

logas), segundo o qual as novas espécies e novos grupos surgem bruscamente por grandes mutações, assim se postergando, ou quase, o papel

da selecção natural. Este ponto de vista saltacionista opunha-se ao conceito darwiniano de evolução gradual com utilização da numerosa variabilidade existente nas populações. Além disso, uma questão fundamental dominava o panorama do evolucionismo entre 1860 e 1940: a hereditariedade biológica dos caracteres adquiridos. Podia-se ser mais ou menos partidário do gradualismo darwiniano, por vezes mesmo autores pendiam para um ponto de vista saltacionista, mas a crença que dominava a cena científica era a aceitação quase generalizada desse tipo de hereditariedade: quer dizer, a possibilidade de as adaptações adquiridas pelos organismos (por acção específica e directa do ambiente, pelo uso ou desuso dos órgãos, por aquisição de novos hábitos e comportamentos em face das circunstâncias do meio, etc.) serem imediatamente

inscritas na substância hereditária e passarem aos descendentes, onde se manifestariam tal qual (na forma e na função)

elas se desenvolveram

no organismo dos progenitores. Crença velha, que vem dos antigos gregos, que Darwin aceitou sobretudo na parte final da sua vida, como compensação, talvez, para o que de aleatório havia nas variações de que se alimentava a selecção natural, e que a religião oficial sempre rejeitou. Entretanto August Weissmann (1834-1914) estabelecera o neodarwinismo !, doutrina caracterizada sobretudo pela rejeição absoluta de qualquer tipo de hereditariedade dos caracteres adquiridos, repudiando em absoluto o lamarckismo. Esta forma mais moderna do darwinismo deu um golpe profundo nas ideias tradicionais e foi adoptada imediatamente por darwinistas como Wallace (no seu livro Darwinismo, de 1889) e também por outros darwinistas. Mas a brecha aberta no velho e sólido edifício da hereditariedade biológica do adquirido não foi suficiente para o deitar abaixo. Nos anos 30, a genética veio finalmente apoiar o darwinismo, cujo ponto fraco, aliás reconhecido pelo próprio Darwin, era o desconhecimento da natureza e causa das varia-

ções exibidas pelos organismos. Ronald Fisher, Sewall Wright, J. B. S. Haldane

união

do

e o russo

S. S. Chetverikof,

darwinismo

tradicional

e alguns

com

outros,

a genética

promoveram

e

constituíram

a

as

selecção

natural,

e

não

sobre

a

variabilidade

sem

raiz

hereditária,

induzida como resposta do organismo às condições do meio, o dogma da

hereditariedade

biológica

dos

caracteres

adquiridos

deixou

de. se

impor e passou para a história das ideias. Muitos biólogos continuaram, porém, a ser-lhe fiéis, e, como

guiu

libertar-se dele?. Mas

já vimos,

a nova 294

a biologia

francesa

biologia evolutiva

não conse

avançou

rapida-

di di

bases a partir das quais foi edificada a moderna teoria da evolução (teoria sintética). E como foi aparentemente demonstrado que são as pequenas variações que têm valor evolutivo, que é sobre elas que opera a

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — 1

mente a partir do momento em que o darwinismo, e mais particularmente a teoria da selecção natural, passou a apoiar-se na genética, a explicar-se por ela, a avançar com ela ?. Como a selecção só pode exercer-se sobre variações do património hereditário (mutações, recombinação genética) e não sobre simples

modificações do organismo causadas pelo meio, ou pelo uso ou desuso dos órgãos, a hereditariedade biológica de caracteres adquiridos ficou fora do darwinismo e jamais pôde integrar-se nele como até aí. E como falharam todas as experiências e observações empreendidas para legitimar esse tipo de hereditariedade, além de não poder conceber-se um mecanismo plausível para que um novo hábito, uma nova forma ou carácter induzidos pelo ambiente, sejam inscritos como tais nos cromossomas, a hereditariedade biológica do adquirido passou, a partir dos anos

40,

ideológica, ou uma

necessidade

uma

a ser mais

teimosia,

ou

uma uma

maneira de recusar ou diminuir o neodarwinismo, ou também manifestação de insciência, mais isso tudo, de facto, do que

com

o conceito,

um conceito científico *. Antropólogos, sociólogos, filósofos, políticos, escritores, psicólogos, perfilham, muitos deles, essa teoria, fácil de entender pelos leigos. Há, é certo, biólogos que continuam a simpatizar tentam,

e alguns

ao método

recorrendo

experimental,

conseguir evidências para a sua existência. Estes estão em bom caminho, visto que não pode recusar-se que surjam novidades de muito interesse que ou façam luz sobre fenómenos hereditários de tipo lamarckiano ou revelem

outros aspectos de interesse. Mas, até que isso possa acontecer,

a teoria da hereditariedade biológica dos caracteres adquiridos é uma teoria obsoleta, pertence à história da biologia, e nada mais. Certos tipos de hereditariedade

factores

do

ionizantes,

(radiações

ambiente

ou mutações induzidas por

extracromossómica,

temperatura,

etc.),

nada

têm a ver com o dogma referido, ainda que por vezes sejam citados como tal (v. meu, 1985). Os

casos

Lysenko

que

e Kammerer,

adiante

serão mencionados,

e outros porventura da mesma natureza, devem ser interpretados, pelo menos em parte, na sua perspectiva mais correcta, ou seja, à luz da mencionada separação entre darwinismo e hereditariedade biológica dos caracteres, feita a partir dos anos

teoria da selecção

1.

Um

grande

natural

com

30, devido

à apontada

harmonia

da

o mendelismo.

mito

O lamarckismo

como

doutrina

geral pode ser resumido

nas duas

proposições seguintes: a) a necessidade cria o órgão apropriado e o uso fortifica-o e desenvolve-o de maneira considerável. A falta de uso, pelo contrário, conduz à atrofia ou desaparecimento dos órgãos; b) os 295

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

caracteres adquiridos, sob a influência das condições externas, e pelo uso e não-uso dos órgãos, são transmitidos às gerações seguintes. São, portanto, hereditários º.

O uso e não-uso de um órgão, determinando respectivamente o seu desenvolvimento ou a sua atrotia, correspondem a realidades em regra facilmente observáveis. Todavia, o valor do lamarckismo como teoria da evolução assenta, entre outras condições que não vêm para o caso, na possibilidade de as modificações induzidas serem transmitidas às

gerações seguintes. Esta possibilidade tem sido, porém, constantemente refutada, e experiências ensaiadas para demonstrar esse tipo de hereditariedade têm dado resultados negativos. E outras que pareciam apoiá-lo provou-se basearem-se em erros de método ou em métodos inadequados ou grosseiros. A hereditariedade dos caracteres adquiridos não foi uma ideia original em Lamarck e ele próprio nunca a reivindicou como tal. Era desde remotos tempos uma crença fortemente enraizada nos espíritos, pelo menos desde os cientistas gregos da antiguidade que a aceitavam como uma verdade evidente. Já na idade do bronze ela surge na mitologia, a explicar a cor da pele dos Negros, antecedendo assim em muito

as

primeiras

ideias

sobre

a

evolução

(Zirkle) º.

Nunca

se

sentiu,

segundo parece, qualquer necessidade em a apoiar ou demonstrar com

4 Ê

do final do século x1x, sendo depois numerosas as experiências feitas

4

ainda

que

tentativas

deste tipo não tenham terminado, havendo sempre quem pretenda obter

provas claras e decisivas. Quanto a Lamarck, pensava que havia tantos

factos que demonstravam a hereditariedade dos caracteres adquiridos que a sua realidade não podia ser posta em dúvida. Darwin admitiu-a, igualmente, e fez dela a base das suas concepções sobre a transmissão dos caracteres adaptativos resultantes da acção da selecção natural. E o preconceito perdurou soberano, apesar de fortemente contestado por alguns autores como Weissmann. As ideias de Lamarck não tiveram a aceitação dos contemporâneos, não no que respeitava à ideia da hereditariedade dos caracteres adquiridos

(que

era, repito, crença generalizada),

mas

quanto

ao que ele

afirmava sobre a génese das transformações, nomeadamente ao esforço do animal em responder às necessidades e adaptar-se a elas devido àquilo a que chamou sentiment intérieur, que actuava mecanicamente sobre todas as partes do corpo, só raras vezes havendo

para Lamarck

moti-

vação por ideias (homem e raros animais superiores). Além do ridículo a que se expôs com certas explicações ingénuas (como a da ave ribeirinha que, «querendo fazer que o seu corpo não mergulhe no líquido, fará

adquirir às patas o hábito de se alongarem»), a debilidade do suporte : factual

e experimental

em

que apoiou 296

a sua

teoria tornou-a

de dificil

id

neste século, sobretudo na sua primeira metade,

Con

provas experimentais. Estas tentativas são relativamente recentes, datam

BIOLOGIA

aceitação pelos ficou entre duas

seus

E

SOCIEDADE — 1

contemporâneos '. Lamarck

épocas, ousando

foi um

homem

que

ideias novas sem se libertar inteira-

mente de velhos conceitos, alguns deles já obsoletos na sua época, ou pelo menos de valor duvidoso. Talvez que o seu mal fosse ter explicado a evolução a partir de factores internos de significado nebuloso (desejo, sentiment intérieur), e não por causas exteriores ao organismo, materiais e observáveis, como foi o caso, mais tarde, da competição e da selecção natural, da «luta pela vida», com luta e morte, excessos populacionais e recursos do meio, tudo conceitos e situações que a sociedade

experimenta

e pode,

portanto,

facilmente,

assimilar

integrados

numa

explicação lógica e coerente com a realidade. Darwin, ao combinar

a

variação com o acaso, abriu perspectivas inteiramente novas, profunda-

mente diferentes das de Lamarck. Mas o materialismo e racionalismo

da época em que viveu Lamarck, com os germes da ciência moderna em

desenvolvimento,

com

os primeiros grandes movimentos

da revolu-

ção industrial, tudo isto, pelo menos, tornava inaceitáveis as proposições dogmáticas, nebulosas e ingénuas. Foi sobretudo a partir do começo dos anos 30, em que, repito, se efectuou a síntese do darwinismo com o mendelismo e a teoria do gene,

que o velho preconceito entrou em crise e rápido declínio nos meios científicos. Até ao final do último quartel do século XIX, raros seriam

os naturalistas que duvidavam da perfeita validade do encanecido princípio. Actualmente, moldando-se

às exigências

mais ou menos

sob forma

persiste

da biologia moderna,

disfarçada

e

como pode verificar-se

em certos opositores ao evolucionismo darwiniano, como foi, por exemplo, Pierre P. Grassé. A teoria de Lamarck na sua forma modernizada

foi designada no final do século XIX por neolamarckismo, socorrendo-se

de dados da biologia molecular, aliás sem sucesso signi-

ultimamente

ficativo. Isto não significa que se possa excluir a possibilidade de certas

influências exteriores modificarem a natureza dos genes. Conhecem-se influências sobre a sobrevivência, modificando, portanto, indirectamente a constituição

hereditária

da

população

em

causa,

ou

certas

acções

directas sobre os genes por meio de substâncias químicas variadas, de radiações e outros agentes físicos. A acção de certos agentes exteriores sobre os genes é uma realidade (agentes químicos mutagénicos, por exemplo). Mas os efeitos produzidos não têm relação obrigatória com as necessidades do organismo. Podem revelar-se com valor de sobrevivência, mas em regra os seus efeitos são negativos ou nocivos. Ora os efeitos lamarckianos implicam a ideia contrária — a de que as modificações dos genes sejam respostas específicas e apropriadas às suas exigências,

sobretudo

que

a adaptação

surge pronta,

directa, no orga-

nismo, e que só posteriormente se fixe no genoma. Diferente é o que se passa com a variabilidade genética devida as mutações, que se acumula nas populações naturais. Ela constitui um 297

GERMANO

vasto

reservatório

depende

DA

FONSECA

de disponibilidades

SACARRÃO

de orientação

evolutiva,

a qual

de complexas interacções estabelecidas em cada momento

o organismo

(com

as limitações que

lhe impõem

a sua

entre

natureza

e a

sua história) e o ambiente em que vive. Mas estas modificações graduais que se operam nas populações, onde a reprodução diferencial desempenha provavelmente um papel preponderante, nada tem a ver com a fixação de caracteres adquiridos (específicos de forma e de estrutura, na função, hábitos, comportamento, etc.) nas biomoléculas

que consti-

tuem os genes. É inconcebível, e jamais foi observado, que tais «representações»

se inscrevam

nos genes, como

«imagens»

miniaturais

transmutando-se em certas sequências de bases do ADN voltassem

na

geração

Esta «compressão»

seguinte

no ADN

a

expressar-se

(ou ARN)

no

de uma

que,

(ou do ARN),

organismo

«forma»,

adulto.

uma

«fun-

ção», «ideia» ou «adaptação» adquiridas pelo organismo não deixa, a meu ver, de ter certa semelhança com a teoria da preformação dos séculos XVII e XviII, segundo a qual o ovo (ou o espermatozóide) continha uma

miniatura do adulto, com todos os seus órgãos

(v. o cap. HH).

E possível que haja aí uma ligação conceptual. ou de suma

niões.

existe

Se

tal

importância tipo

de

consoante

hereditariedade,

os problemas ele

deve

processo de

ou as opi-

constituir

um

processo de transcendente significado na evolução. Mas o duplo consenso da lógica e da experimentação conduz à rejeição da doutrina. É absurdo, com efeito, que uma aquisição orgânica, como uma calosidade ( já expressa antes do nascimento), ou psíquica (um novo comporta-

a

diminuta

ser um

e std A

é tudo ou nada, não podendo

ia Co a

O lamarckismo

mento), se fixe como forma ou como acto no património macromole-

cular

hereditário

do

indivíduo

e

surja

nos

seus

descendentes

como

produto dos genes, reforçada e aperfeiçoada pelo hábito e experiência do animal, que a cada geração mais acentua essa disposição. Que actos voluntários e adaptativos repetidos durante gerações se fixem

como

instintos

nas

biomoléculas

da

hereditariedade

será

um

novo

aspecto do preformacionismo do século das luzes, que tanto obsessionou

gerações de naturalistas e filósofos. Também a ideia (falsa) que o desenvolvimento

do

organismo

individual é a realização de um programa de edificação inscrito no ADN dos genes parece-me ser em parte um aspecto modernizado do velho preformacionismo, que não desapareceu inteiramente da biologia.

O embriologista profissional sabe, porém, que a ontogénese é um todo muito complicado. É o resultado de condições presentes no ovo (genes, citoplasma, etc.) e de outras que se vão estabelecendo durante o desenvolvimento, onde cada estado é efeito do anterior e causa do seguinte, e de íntimas interacções com factores do ambiente: quer dizer, prefor mação

e epigénese

são dois aspectos de um

mesmo

processo

de realiza-

ção, que não é legítimo opor, nem cristalizar, em concepções dogmáticas 298

“E

BIOLOGIA ou

unilaterais.

também

À

E

organização

SOCIEDADE —1

básica

do

ovo

depende,

por

outro

lado,

de fenómenos ocorridos durante a ovulogénese e da estrutura

e fisiologia do ovário, de modo que a geração é um continuum, onde só

por

definição

autonomia

do

ou

por relação

a certos níveis

comportamento,

da

(plano

autoconsciência,

do social),

etc.)

será

da

possível

assinalar um início ao indivíduo, circunstância que retira qualquer valor absoluto à concepção preformacionista, no aspecto de o indivíduo estar programado

no microcosmo

ovular.

Apesar de rejeitada pela moderna biologia evolutiva, a hipótese da hereditariedade biológica dos caracteres adquiridos não desapareceu por completo da ciência e, também, de domínios não científicos, como da filosofia política, sendo tacitamente admitida como uma realidade

axiomática por numerosos intelectuais e aparente lógica e simplicidade *. E tem biólogos e outros cientistas. À simpatia exigências doutrinárias, em sujeições a O

lamarckismo

é, pois,

falso como

pelo homem comum, pela sua os seus prosélitos entre alguns tem muitas vezes a origem em ideologias. teoria

da hereditariedade.

Os

caracteres biológicos adquiridos na vida do indivíduo não se transmitem aos descendentes. Considerem-se, por exemplo, as calosidades adquiridas nas mãos pelo trabalho. Não há mecanismo biológico que possa transpor para as moléculas do ADN a substância e configuração de um calo,

que na geração seguinte o mesmo ADN dos genes reporia no mesmo ponto do corpo. Às calosidades hereditárias de certos mamíferos e aves

(como a avestruz) que surgem no embrião (antes, portanto, da necessi-

dade) constituem problemas que, como tantos outros, desafiam o poder explicativo da teoria da selecção natural. Se esta não satisfaz completamente, pelo menos abre perspectivas novas de análise, baseia-se num conjunto considerável de factos científicos, resiste aos testes, ou é com-

provada por via experimental, ou até pode em parte esclarecer problemas

difíceis,

lamarckismo

como

referidos

os

e a teoria

acima,

tudo

coisas

da hereditariedade

biológica

positivas

dos

que

o

caracteres

adquiridos não podem fazer º.

Importa ainda realçar outro aspecto que parece significativo. Se o lamarckismo é uma teoria inadequada para dar conta da hereditariedade biológica, já não acontece o mesmo noutro plano com a chamada

herança cultural º. Aqui a transmissão de ideias, costumes, modos de

agir, faz-se por um processo «lamarckiano», onde as aquisições geração podem ser transmitidas intactas às gerações seguintes. que aquela parte do comportamento que não é biologicamente que não provém de processos inatos, é transmitida por um

de uma Digamos herdada, processo

lamarckiano.

A teoria da hereditariedade dos caracteres adquiridos tem, repito, a seu favor a extrema

do vulgo.

Ora,

simplicidade,

resulta do senso comum,

do pensar

se isso é assim, é porque as pessoas prontamente esta299

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

belecem uma analogia entre a vida social e a hereditariedade, entre a transmissão de bens materiais e culturais no seio da família ou do grupo social, e a hereditariedade

dos caracteres biológicos.

Herdar

é receber

por herança, adquirir por parentesco ou hereditariedade, diz o dicionário. Os dois vocábulos, «herança» e «hereditariedade», têm a mesma raiz. Herdam-se bens materiais dos pais, tradições, ideias, costumes;

vícios e virtudes são transmitidos pela família, pela sociedade, e esta hereditariedade de coisas e ideias que a tradição impõe e as leis regulam estende-se, logo de início, por facílima analogia, aos caracteres do corpo e da mente. O modelo social serviu, como

tantas vezes acon-

tece, para fazer a leitura da natureza. Existe talvez, ainda, outra razão para

a situação de favor

que a

teoria desfrutou (e ainda logra), resistindo tenazmente ao peso da lógica e da experimentação desde há quase um século. É que no lamarckismo

existe um optimismo fundamental — o da natureza viva,

o homem e as sociedades serem entidades moldáveis, possíveis de rápido aperfeiçoamento

por

acções educativas

e transformações

consequentes

no indivíduo e no grupo. Mas se as mutações ocorrem ao acaso, ou seja, no sentido de não terem relação obrigatória com as necessidades do organismo na sua adaptação ao ambiente (como exige o darwinismo), se a selecção natural colhe deste amontoado de variações aquelas que no momento se acham capazes de aumentar, pouco que seja, a sobrevivência e a adaptação as condições externas presentes, então o mundo não terá um sentido supremo, a história não obedecerá a qualquer mecânica

intrínseca, não há caminhar para uma finalidade. O sucesso reprodutor é o único e imediato objectivo na grande luta pela existência !!. O lamar-

ckismo,

porém,

caracteres

implica

com o seu postulado fundamental

adquiridos

a concepção

por

acção

de uma

directa

natureza

do homem.

Às coisas, porém,

bioquímica

e a biologia molecular,

do

de se herdarem

ambiente

físico

facilmente moldável

não são tão simples.

dando origem

Hoje,

a uma

e

os

social,

à vontade

a genética, a

engenharia

ao mundo e à consciência e harmonizar com o que o dos nossos mais enraizados deve ser recompensado e a

esperança num mundo progressivo possuído de uma finalidade própria. Esta, talvez, a razão por que os humanistas e os que querem fazer rapidamente um «homem novo» manifestem forte simpatia pela hereditariedade biológica dos caracteres adquiridos. Mudar a sociedade equi300

dai teta Ao JADE ET

modo reconfortante, que dá um sentido do homem no seu esforço de se aperfeiçoar rodeia (v. Gould 1980 a). Reforça dois preconceitos — a crença de que o esforço

E o

O lamarckismo permite estabelecer analogias tranquilizadoras entre o modelo social e o modelo da natureza. É uma doutrina de certo

SA

biológico e social, aí estão para o demonstrar.

Ve

biológica em extremo sofisticada, em grande parte coroamento do mendelismo, e poderosa arma de intervenção e modificação dos universos

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — I

valeria, em poucas gerações, a mudar o homem, o que estaria perfeitade

mente

acordo

a dialéctica

com

a interacção

com

materialista,

do

organismo e do ambiente para dela resultar um novo carácter do indi-

víduo. Esta asserção geral não é negada por nenhum biólogo, mas, como

muitas vezes acontece, as generalidades escondem nebulosas e até anta-

gónicas interpretações. O carácter simplista da teoria permite especular

com desenvoltura acerca das possibilidades de transformar a constituição hereditária dos homens, com base em físico e social, e em conformidade como defendem os seus adeptos, o no intervalo de poucas gerações. O

acções determinadas pelo ambiente com essas acções. Daqui se infere, poder-se transformar a sociedade fazer-se um «homem novo» (com

nova constituição hereditária), sem possibilidade de regresso à condição

anterior. Mas os efeitos da educação e dos condicionamentos socioculturais, mesmo prolongados, não são biologicamente herdáveis. Os lamarckistas

na

oposição

a natureza

excluem

natureza/cultura

e admitem

optimisticamente que O ambiente bem escolhido e dirigido é capaz de melhorar o físico e a mente. Este ponto de vista foi muito popular no final do século XIX e princípio deste século, tendo sido

na América

abraçado por diversos políticos e filósofos. Homens de esquerda fizeram dele também

foram

o seu

ardorosos

credo.

Bernard

defensores

S. Freud

Shaw,

do lamarckismo,

e Arthur

mesmo

numa

Koestler

altura em

que a teoria já estava em franco e rápido declínio no âmbito da biolo1984).

outros escritores pensavam como eles (v. Bowler,

gia. Muitos

Uma visão do homem e da sociedade como produtos de um processo

evolutivo que se desenrola como uma sucessão de acidentes sem sentido, pelo

mecanismo

darwiniano

da

natural-

determinava,

tentativa/erro,

mente, reacções emocionais e ideológicas, provocando o apelo e a ligação criador beneao lamarckismo, mais compatível com a existência de um volente (como que continuando a teologia natural), fazendo da vida uma força criadora e os seres vivos e o homem de certo modo responanimadora sáveis pelo seu destino, o que traduziria uma filosofia mais

do que aquela que subjaz ao darwinismo, de um materialismo desesperançado. Daqui os esforços que sempre se fizeram e continuam a fazer para introduzir no darwinismo componentes de antiacaso, de espiritualidade, tentando mesmo harmonizá-lo com a teologia. Teilhard du Chardin, se não atacou o darwinismo (aceitou-o em parte), tentou,

pelo menos, reconciliá-lo com o lamarckismo. Dando uma importância fundamental

assimila à finalidade), coloca-se do lado do neolamarckismo

carácter de antiacaso.

la

com

o seu

Escreveu:

Bien

compris,

J'«anti-hasard»

simple

négation,

mais

au

néo-lamarckien

coptráire-+ se /

Ne

MIN

R

——

(que ele

à força espiritual, ao carácter psíquico da vida

présente

n'est pas comme

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

Cutilisation du hasard darwinien. Entre les deux facteurs, il y

a

complémentarité

fonctionnelle — on

pourrait

dire

«sym-

biose» 2,

Darwinista completo não o foi de uma evolução apoiada na ciência tianismo, divinizando a matéria, e supremo objectivo, como o derradeiro

Teilhard, com a sua idealização moderna, mas inspirada no erisconsiderando o homem como q momento evolutivo (hominização

da matéria) numa marcha para o espírito. Uma biologia evolutiva múástica servida por um extraordinário brilhantismo verbal. Roger Garaudy, o conhecido teórico marxista, não se poupou a uma incondicional admiração por Teilhard, em quem vê, «em todos os planos, um anunciador do futuro» !?. Estes (e outros exemplos numerosos) mostram-nos os caminhos estranhos que a crença e a ideologia abrem através do darwinismo, tentanto modificá-lo e moldá-lo às conveniências dogmáticas.

2.

O

caso

Lysenko

Trofim Denisovich Lysenko nasceu em 1898 e faleceu em 20 de Novembro de 1976. A história bizarra deste homem constitui um dos capítulos mais estranhos

da história recente da biologia.

Foi o ditador

da biologia nos anos 30 e 40, sobretudo durante o regime de Estaline, 1953,

com

a sua influência continuou

o amparo

e impulso

recebidos

após

de

a morte

Nikita

deste, em

Khruchitcher::

A sua estrela empalideceu, porém, quando este político foi afastado, em:

1964,

tendo

sido destituído

dos

cargos

administrativos

que

ocupava.

Lysenko ganhou, de começo, prestígio ao defender o método da vernalização, que consiste em expor plantas ou sementes a condições artificiais análogas às suportadas no Inverno, nomeadamente a temperaturas baixas, de modo a tornar mais curta a fase que antecedea floração ou a germinação. O processo é utilizado especialmente em raças de Inverno de trigo, com arroz, etc. Em climas de Invernos longos e rigorosos, a vernalização revela-se particularmente útil. Sementeiras normalmente

feitas no Outono

podem

então

ser feitas na Primavera,

se as sementes forem submetidas a condições de frio artificial. A técnica:

de Lysenko consistia na imersão da semente em água que depois era

gelada, mas o método já era conhecido e praticado desde há muito. tempo

noutros países, Com

a descoberta de novas raças de trigo, a

Eis

tica foi abandonada nos Estados Unidos da América do Norte (Zirklo).

Ê Ê F É E E

Lysenko afirmou que com a vernalização podia modificar a hereditariedade e obter novas raças de trigo, o que não foi de modo nenhum. provado. E também de, com a mesma técnica, conseguir melhores 302

Dera iria

que o apoiou, mas

BIOLOGIA

facto

de cereais,

colheitas

E

SOCIEDADE —I

igualmente

que

Mas

não foi alcançado.

os

políticos apoiaram Lysenko, em grande parte, talvez, porque este pro-

clamava que obtivera variedades novas de trigo por vernalização e, também, por afirmar ter modificado caracteres das plantas por alteração das condições de cultura, em especial com a técnica de enxertia.

Uma ideia fervorosamente defendida por Lysenko [ que a foi buscar a Mitchurine (v., adiante, a p. 310) ] é a de que os caracteres heredi-

tários são transmitidos por meio de «sucos» ou «humores» e que as transformações operadas se mantêm perfeitamente estáveis nas gerações sucessivas. Este facto seria verdadeiro não só para as plantas como para

os animais e estaria comprovado nas plantas no caso dos híbridos de enxerto, também designados híbridos vegetativos. Uma espécie de planta (enxerto) formas,

(cavalo), há reunião de tecidos das duas

é enxertada noutra

outra forma surgiria, estabili-

há troca de propriedades, e uma

zada e com propriedades novas. À criação de híbridos de enxerto já tinha há muito sido praticada, mas foi abandonada como tentativa de criar espécies ou variedades novas. Os híbridos obtidos por Lysenko

em tomates, por este processo, não seriam autênticos hibridos. Estes e outros casos obtidos nos animais cabem no quadro geral dos fenómenos

conhecidos impugnam

pelo nome de qguimeras e mosaicos, que de modo nenhum a genética nem os factos conhecidos sobre a transmissão

dos caracteres hereditários como pretendia a escola de Mitchurine-Lysenko. Apesar dos malogros na prática, Lysenko elaborou a sua teoria biológica e conseguir desacreditar na URSS a teoria cromossómica da here-

sobre a genética mendeliana. As investi-

ditariedade e lançar o anátema

gações em genética foram suspensas, investigadores foram destituidos das suas posições, cessou o ensino da genética entre 1948 e 1964 e novos

textos foram

escritos

de acordo com

e publicados,

biologia

a nova

mitchurinista-lysenkista. A aversão à genética começara muito mais cedo, nos anos 30, em particular contra as investigações em genética humana, acusada de justificar ou conduzir ao racismo, ou contra a aplicação dos princípios da genética à sociedade. O resultado foi que já em 1936 os estudos sobre genética humana foram suspensos. O cientista N. I. Vavilov

(1887-1943),

com grande reputação internacio-

homem

nal, sob a direcção do qual a investigação genética fez grandes progressos na URSS, foi preso em 1940 e exilado para a Sibéria, e anos depois morreu na prisão. A sua reabilitação foi feita mais tarde, em meados dos anos

50, quando

a credibilidade em

esmoreceu

Lysenko,

sobretudo

por ele ser considerado responsável por as quintas colectivas não cultivarem

milho

pessoal. Lysenko

híbrido,

não

contra

começou

o

qual

isolado

ele

tinha

tomado

a sua campanha

forte

a favor

posição

de

uma

biologia extravagante. Era o cabeça de fila de um grupo, mas foi forte303

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

mente apoiado por 1. 1. Prezent, um teórico do materialismo dialéctico e seu intérprete filosófico, que criticava certos aspectos da biologia. Ele e Lysenko criticaram e ridicularizaram a genética mendeliana e outros aspectos da biologia, tendo dessa colaboração nascido um livro onde se expunham já os fundamentos da teoria de Lysenko sobre o desenvolvimento das plantas. a) Biologia anacrónica e ideologia partidária Trofim Lysenko, agrónomo russo, era partidário convicto da hereditariedade biológica dos caracteres adquiridos, e a partir desta crença absoluta, que foi beber ao seu mestre Mitchurine, arboricultor famoso,

proclamou

o repúdio dos cromossomas e dos genes como

suportes da

hereditariedade, negou o mendelismo, as mutações do material hereditário e o seu papel para a evolução. Decretou, em suma, a falsidade da

genética. A questão é, porém, mais dramática e teve consequências de

enorme

alcance. O lysenkismo foi um

movimento

de grande

impor-

tância, não apenas por traduzir uma directa e lamentável intromissão do poder e da ideologia na ciência, com todos os erros e violências con-

sequentes, mas sobretudo porque, apoiado firmemente no poder político, cresceu e perseguiu a comunidade científica. E, assim, o que era falso passou a ser verdadeiro por simples decisão do poder político partidário. Era necessário que os cientistas se curvassem ao poder político, que a

ideologia esmagasse a ciência e a pusesse a fazer milagres na economia (na

agricultura,

sobretudo)

conforme

à ortodoxia.

Sem

o

absoluto

suporte político e ditatorial conferido a Lysenko pelo Partido Comunista Soviético o movimento resultaria minguado e provavelmente não pas-

saria de trocas de pontos de vista sem futuro em círculos da especialidade. Era mais um caso de pseudociência, interessante quando muito

para figurar nos arquivos da história, mas sem interesse para o cidadão não iniciado, sem intervir nas crenças e políticas, e sobretudo sem que

dele

resultasse

a repressão

científica

e policial

que

foi exercida

sem

tréguas durante anos sobre a biologia soviética. Mas como este sector científico passou a ser dirigido pela batuta lysenkista, estalou uma viva oposição em relação à genética e à biologia evolutiva ocidental. Seguiram-se protestos violentos da parte da comunidade cientifica internacio-

nal, representada por alguns dos nomes mais prestigiosos da biologia das décadas de 30 e 40. Esta grande

temente

heresia, que nasceu

se extinguiu em

por volta de

1964, foi um

complexo

1935

e que

movimento

aparen-

ligado à

ideologia partidária e, consoante tem sido afirmado, às condições precárias do desenvolvimento cado

de terminar

com

da agricultura soviética e ao desejo justifi-

elas, modernizando 304

e intensificando

a produção

BIOLOGIA neste

sector

fundamental

da

E

SOCIEDADE —1

economia.

Não

estão,

porém,

bem

escla-

SE

recidas todas as causas e aspectos do fenómeno. Sem dúvida que na sua base existem experiências e ideias, segundo as quais os caracteres adquiridos passam para os descendentes, reavivando-se, portanto, o velho dogma. Lysenko já foi considerado o Lamarck do século xx, o que, quanto a mim, é uma comparação mais do que abusiva, pois o primeiro não tinha o valor nem a originalidade do segundo, além de que este não arvorou a sua teoria em panaceia política, nem com ela pensou

revolucionar

jamais

em

cem-se

diversas

a agricultura ou perseguir os colegas.

grandes

mistificações

é, provavelmente, o que ganhou por

É

fanatismo.

maior

mas

o caso

Lysenko

maiores proporções e o que se traduziu inventou

o nazismo

que

certo

científicas,

Conhe-

uma

antropologia

para uso próprio e serviu-se fraudulentamente da ciência para instaurar uma falsa biologia racial, e à sua sombra praticou genocídios e horrores

de difícil paralelo na história. Mas foi uma mistificação colectiva, toda ela emanando afinal da própria ideologia fascista. O caso Lysenko é

muito diferente. Tratava-se de um homem ambicioso e sectário, de origem camponesa, com uma cultura científica pouco profunda, um tanto místico, mas possuidor de excelente treino como agrónomo prático, e que um certo sucesso na profissão e um conjunto de circunstâncias particulares içaram até à área do poder. E não deve esquecer-se que quase toda a fase vitoriosa do lysenkismo foi abarcada pelos anos direcções

noutras

dirigidas

os quais

durante

da guerra,

dos governantes

as preocupações

importantes do que

mais

estavam

as querelas

cien-

tíficas sobre a validade ou não validade da genética para a melhoria da foram feridas

toda

uma

anos

esforço

pelo

absorvidos de

os

mesmo

E

agricultura.

nação

ao

subsequentes

gigantesco

devastada

pela

da

fim

da

conflagração

reconstrução

demência

de

e sarar

do imperialismo

alemão.

O lisenkismo caracterizou-se fundamentalmente pela negação da genética e de todas as suas consequências para o darwinismo. Sem dúvida que Lysenko se dizia darwinista, mas apenas na medida em gue as variações dos organismos fossem devidas à acção do meio e trans-

mitidas à descendência. Quer dizer:

para ele, todo o darwinismo

que

recusasse a hereditariedade dos caracteres adquiridos era falso, era idealista e reaccionário. É por isso que o lysenkismo pode também ser considerado

como

um

movimento

contra

o neodarwinismo,

contra

o

nascimento da síntese moderna, que nessa crucial década de 30 ensaiava

os primeiros

e seguros

passos. Aliás, Darwin

nunca

concedeu

impor-

tância fundamental à hereditariedade biológica dos caracteres adquiridos e se o lysenkismo, que adoptou as teorias de Mitchurine, como se verá mais adiante), se considera «darwinista», é uma preferência ape-

nas táctica, de pura conveniência para se integrar numa doutrina materialista respeitada e universalmente aceite. Mas é um darwinismo forteBibl. Univ. 49 — 20

305

GERMANO

mente

DA

FONSECA

SACARRÃO

abastardado !'. George G. Simpson

(1969),

um

dos edificadores

da moderna síntese evolucionista, clarifica bem o problema no seguinte trecho, que transcrevo da tradução francesa da sua obra por G. Lender: Deux principales théories matérialistes de Vévolution dominerent pendant la derniere partie du xixº siecle: le Neo-Lamarckisme et le Darwinisme qui évolua en Neo-Dar-

winisme à mesure que les discussions entre les deux

écoles

progresserent. Les Néo-Lamarckistes attribuaient les tramsformations évolutives dans les organismes à Vheérédité de modifications acquises durant leur vie, ces modificatiom: étant le résultat

de leur

activité

et de

Vinfluence

du

milieu.

4

Darwin, ayant travaillé avant de connaitre le mécanisme de Vhérédité, accepta Jhérédité comme vraie, mais il montra qu'elle ne pouvait être qu'une partie secondaire du processus de Vévolution

qui exige

aussi

d'autres

causes

plus

générales.

Cette objection à la théorie néo-lamarckiste a été soulignée par des travaux postérieurs et toute la théorie fut finalement renversée

d'une

maniére

définitive

lorsqu'une

plus approfondie de Vhérédité montra caractêres acquis ne se produit pas. Le

contrôle

de cette

théorie

a été

que

connaissanee

Yhérédité

si approfondi

|;

| i |

des

et les

résultats probants ont été si opposés à la théorie, que le Néo-Lamarckisme est devenu une impasse pour la phupart des évolutionnistes avertis jusqu'a son étonnante réssurreetion, le Mitchourinisme, en Union Soviétique; cette réssurrection a été faite par des biologistes officiels réactionnaires incompétents,

mais

politiquement

puissants.

Depuis

cette

époque, la biologie de Vévolution a été désignée sous le nom de

«Darwinisme»

en

Russie:

pour

être

idéologiquement

.:

Darwi.

|

acceptable, le Mitchourinisme a été présenté comme nisme,

parce

acquis.

En

importance des

que

Darwin

réalité Darwin

secondaire

caractéres

acquis

acceptait

lhérédité

considérait

que

et sa conviction a un

rôle

que

quelconque

de

caractêres

ce fait avait ume

la transmission appartient

à la

petite partie de ses opinions qu'il faut actuellement considiérer comme

étant nettement erronées.

C'est rétrograder seiem-

tifiquement que de faire revivre le Néo-Lamarekisme et c'est une tricherie sur les termes que de le qualifier de Darwi nisme.

(P.

9.)

306

2;

BIOLOGIA

b)

4

a

trindade

E

SOCIEDADE —1I

abater

Para Lysenko, a trindade Mendel-Weissmann-Morgan era o grande inimigo a abater, cujo idealismo e mentiras era indispensável denunciar. Mendel descobriu as leis que presidem à transmissão dos factores

hereditários, ou seja, dos cromossomas e dos genes neles localizados. Weissmann mostrou a existência de uma independência entre a linha germinal (que produz as células reprodutoras) e o resto do organismo (soma), de tal modo que as modificações neste último não se transmitem às células reprodutoras, nem se fixam nos genes. Esta teoria provocou uma grande clarificação conceptual e foi um dos degraus que conduziram à teoria cromossómica da hereditariedade e à moderna genética. Os exageros do weissmanismo foram devidos a indivíduos que entre as gerações é assegurada por

não eram biólogos. A continuidade

tecidos embrionários e pelas células germinais deles derivadas. A concepção de uma separação de funções entre as células diferenciadas, que

constituem o corpo (soma), e as células germinais (não especializadas),

que constituem o germe, e mantêm potencialidades organizadoras, e das

quais

o novo

portanto,

provém,

organismo,

foi a contribuição

funda-

mental de Weissmann. Reconhecer esta separação (que não é absoluta) entre duas partes que fazem parte do mesmo conjunto, mas têm des-

tinos ontogenéticos diferentes, foi um dos grandes passos que rasgaram o caminho

à moderna

altamente

problemática

biologia evolutiva, na medida a hereditariedade

em que tornou adquiridas

das modificações

pelo soma, pois não é este que transmite os factores hereditários à nova

geração, e a experiência e a lógica mostram que as configurações e os

hábitos adquiridos não são transponíveis do corpo para as células repro-

dutoras. Compreende-se, assim, que Weissmann tenha vibrado um golpe

mortal na hereditariedade biológica dos caracteres adquiridos. Lysenko e outros advogados desta teoria-crença pretendem, no fundo, voltar à pangenesis, teoria em voga no final do século XIX, que precedeu a teoria

da hereditariedade,

eromossómica dos antigos

gregos,

sobretudo

em

doutrina Demócrito,

que já nascera

na mente

velha, portanto,

de dois

mil anos. Na essência, essa teoria diz-nos que cada órgão, cada parte do organismo, envia partículas, «moléculas» representativas (ou pangenes) deles, com as suas propriedades e configurações, e que tais partículas convergem todas para as células reprodutoras, nomeadamente para o sémen quando introduzido na fêmea no acto da copulação, como pensava o filósofo grego. Para ele, a intensidade do orgasmo explicava-se

pela pronta arremetida e simultânea de todos os pangenes todos os pontos do corpo para o sémen. Darwin

vindos de

recorreu à teoria da hereditariedade biológica dos caracte-

res adquiridos

e fez

reviver

da existência de gémulas,

a velha

teoria de Demócrito,

sob a forma

como sendo as partículas representativas de 307

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

como

cada órgão e produzidas neles exactamente nos elementos

Tais partículas entrariam características

dos

órgãos.

Ora

reprodutores

era

isto

uma

pangenes.

os velhos

transportando

tentativa

de

as a

explicar

hereditariedade dos caracteres adquiridos, as variações e as semelhanças relativamente aos progenitores, a razão de os filhos se parecerem com

os pais e serem diferentes entre si, visto que os caracteres do corpo e as suas modificações por acção directa do meio, do uso e do desuso eram

captados e transportados nessas misteriosas gémulas, zindo-se nas células germinais

as quais, introdu-

(espermatozóides e óvulos), transmitiam

à descendência esses caracteres. Esta concepção da hereditariedade, em que se misturam, em todas as proporções, dois plasmas contendo as gémulas de cada progenitor, dominou o pensamento biológico até final do século xix. Diga-se de passagem que a teoria dos pangenes, renovada por Darwin, é a sua contribuição medíocre, teoria para a qual não havia qualquer suporte sério. É de crer que a ideia de hereditariedade do adquirido se impusesse de tal modo aos espíritos que raros eram os que concebiam outro modo de hereditariedade. E Darwin vergou-se a essa crença comum e decidiu dar-lhe uma aparência científica º. Ora o que é o lysenkismo senão a exaltação sectária da bolorenta teoria dos pangenes, arvorada em dogma sagrado? Repare-se, por exemplo, no trecho do seu relatório quando ele afirma que a transmissão hereditária

do corpo»

nas células germinais do organismo (v., mais adiante, a p. 316, onde se transcreve a referida passagem de Lysenko, que o autor teve o cuidado de sublinhar inteiramente para assim evidenciar a enorme imporApesar de Darwin adquiridos,

a Origem

gia

tância que lhe atribuiu).

and

se faz por «inclusão das substâncias da parte modificada

ter admitido não

contém

a hereditariedade dos

fantasias

pangenéticas.

caracteres Mas

isto é,

de

variações

hereditárias

acidentais,

sem

relação

necessária

com

as

necessidades do organismo nem com as condições do ambiente, variações que o ambiente selecciona ou elimina, tudo aspectos que desagradam aos lamarckistas ortodoxos ou desviados, e às ideologias que se nutrem do mesmo princípio dogmático. Será talvez por isso que

Lysenko

acusa Darwin

de ter cometido

uma

série de grandes

erros,

nomeadamente que a selecção seja um processo a traduzir uma relação concorrencial e competitiva dos organismos pela sobrevivência, de que

teria recebido a inspiração em Malthus. Mas Darwin ditariedade dos nes, que é uma

adoptou a here-

caracteres adquiridos, reformulou a teoria dos pangetentativa de fundamentar cientificamente esse conceito

milenário. E fê-lo no seu livro Variation of Animals and Plants under Domestication (capítulo sobre «Pangenesis»), obra que Lysenko cer 308

pesei

por assim dizer, secundário, porque a teoria revolucionária é a que estabelece o conceito científico de selecção natural, com a noção impliícita e fundamentalíssima da existência nas populações de organismos

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —1

tamente

não devia desconhecer, homem

agrícola.

O

inglês

erro

inspirado

natural

e admitir

devotado como era à prática

fundamental

de Darwin

em

para elaborar

Malthus

como

um

seria o ter-se o naturalista

a sua teoria da selecção

facto a competição

na natureza

viva. Mas

está demonstrado que as coisas não são assim tão simples e esquemáticas. A dívida de Darwin a Malthus tem aspectos diferentes dos que correntemente lhe são atribuídos !º. Por outro lado, não será legítimo perguntar: como se pode aceitar

implicitamente, darwinismo

sem,

e o conceito de selecção natural, como faz Lysenko,

o darwinismo

sem

competitivos

fenómenos

admitir

naturais?

é o

Que

de selecção de variantes na luta pela exis-

o conceito

que o que os mitchurinistas e lysenkistas prefe-

tência? Afigura-se-me

riam era um darwinismo sem Darwin, colocando no lugar deste um Lamarck. Chego assim à conclusão de que a não aceitação absoluta,

incondicional, da hereditariedade dos caracteres adquiridos é que teria ponto

sido, no

a grande

de Lysenko,

de vista

falta de Darwin.

O seu

grande pecado teria consistido em não considerar a origem das espécies um

como

resultante

fenómeno

das

directa

acção

da

condições

do

ambiente, cujos efeitos logo passariam à descendência. Mas também aqui não devemos esquematizar. À crítica ao darwinismo científico tem

fundas razões ideológicas ””.

No

tempo

de Darwin

houve

quem

realizasse experiências para

testar a sua teoria dos pangenes ou gémulas. Um sentido

foi realizado por seu primo,

celebrado

havia

de

como

ser

homem

dos trabalhos nesse

Francis Galton de

ciência.

que

(1871), Num

outro

tão

artigo

publicado no mesmo ano (intitulado «Pangenesis»), Darwin defende a sua teoria. Galton provara, por meio de experiências de intertransfu-

são entre diferentes variedades de coelho, que não podia haver as tais «gémulas» no sangue. Darwin responde no artigo referido afirmando que nunca dissera que essas partículas existiam no sangue, mas pensa que elas impregnam todos os tecidos do organismo e difundem através deles, de célula para célula, independentemente dos vasos sanguíneos. Galton conclui que a teoria da pangénese é falsa, mas a isto Darwin responde que a conclusão é um pouco precipitada («is a lutle hasty» ). É

curiosa

a passagem

de

Darwin,

no

mesmo

artigo,

quando

diz que,

se Galton tivesse provado a existência de elementos reprodutores no sangue dos animais superiores, que fossem simplesmente separados, ou reunidos pelas glândulas reprodutoras, certamente teria feito uma descoberta fisiológica da maior importância. Continuava, portanto, aferrado à ideia das gémulas. Mas reconhece que a teoria apresenta diversos pontos vulneráveis e que, portanto, a vida da hipótese dos pangenes continua ameaçada, mas que não é desta vez, afirma, que lhe dão o golpe de misericórdia. Darwin não é, portanto, dogmático, admite poder estar errado, mas está firme nas suas ideias, neste caso com bases 309

GERMANO

bem

frágeis,

o

que

não

DA

era

FONSECA

seu

SACARRÃO

hábito.

Note-se

também

a

diferença

c)

«Abalar»

escritas

Si

ge

A a

td

AA "ia

ad fr

dm

is Si

entre o espírito de Darwin, aberto à dúvida e reconhecendo a fraqueza da sua teoria das cgémulas» por apresentar «so many vulnerable points», e a teimosia sectária de Lysenko e seus parceiros, que retiravam o critério de verdadeiro ou de falso dos dogmas ideológicos e políticos, e não dos factos que constrangem. Quanto aos outros componentes da trindade amaldiçoada, não vou espraiar-me em explicações. Mendel descobriu as leis que presidem à transmissão dos factores hereditários (genes), que se combinam intactos de geração em geração, e Morgan elaborou a teoria do gene, demonstrou a sua presença nos cromossomas, lançando as bases da genética moderna. São grandes passos na história da biologia, que não é este o lugar para desenvolver e particularizar. a hereditariedade

Lysenko foi buscar o essencial das suas ideias a Ivan Mitchurine (1855-1935), arboricultor de muito valor e o fundador de uma dou-

trina — o mitchurinismo. Muitos biólogos soviéticos seguiram as ideias de

Mitchurine,

mas

o representante

mais

famoso

da

sua

escola

foi

v. g. temperatura).

modificações

adquiridas

À

hereditariedade

passariam

torna-se

à descendência.

«ins-

aspecto divergente relativamente ao lamarckismo reside no próprio significado do vocábulo «hereditariedade». Julian Huxley escreveu & propósito (1950, pp. 28-29): «[...] os mitchurinistas servem-se de termo hereditariedade para designar o que os geneticistas ocidentais chamam, em geral, constituição hereditária, a fim de evitarem a com fusão com a hereditariedade considerada como processo geral. Fazem

-no,

segundo

parece,

para

evitar 310

qualquer

ideia

de

base

tim

Outro

material

E

ambiente,

e as

pu

do

Ego

ques

tável»

iii

curso de outros seus discípulos. Esta teoria é, como tenho referido nas páginas anteriores, uma versão pouco modificada do lamarckismo, sendo o seu pilar fundamental a hereditariedade biológica dos caraeteres adquiridos. É mesmo quase só isso, visto que, sem o velho postulado, o lysenkismo nada é, o que não aconteceu com a teoria de Lamarck, que foi inovadora noutros aspectos fundamentais. O mitchurinismo distingue-se do lamarckismo sobretudo por dois aspectos. Um consiste em atribuir grande importância a um fenómeno a que Lysenko chamou «sacudidela» ou «abalo» da hereditariedade (shaken heredity ou hérédité ébranlée). Significam essas expressões que há rompimento da estabilidade normal da constituição hereditária de um organismo, provocado, por exemplo, por via experimental (cho-

acta

Lysenko, que, baseado nela, elaborou uma teoria com a colaboração de I. T. Prezent, filósofo do materialismo dialéctico, e ainda com o con-

BIOLOGIA

especializada

da

E

hereditariedade,

SOCIEDADE — 1

tal

como

ela

pelo

descoberta

foi

neomendelismo». Para os mitchurinistas, a hereditariedade (cito as pró-

prias palavras

de Lysenko,

1948;

e cf. também

Lysenko,

1943)

«é

inerente não somente aos cromossomas como a cada uma das partículas

do organismo vivo». Por outro lado, ela é suposta ser um processo da

mesma

dos co natureza que o vulgar metabolismo, o ciclo químico

vivos que implica, entre outros aspectos, a assimilação ou edificação, a partir de substâncias relativamente simples de matéria viva, e a compostos desassimilação ou decomposição posterior da matéria viva em

mais simples. E é ainda Lysenko que diz (loc. cit.): «A hereditariedade

é determinada pelo tipo específico de metabolismo. Basta mudar o tipo

de metabolismo

num

organismo

modificação

vivo para obter uma

da

hereditariedade.»

A transmissão hereditária para o mitchurinismo-lysenkismo é, porde tanto, inconcebível sem o reconhecimento absoluto da hereditarieda

biológica dos caracteres adquiridos. É este o ponto crucial de toda E,a de Lysenko estão. O trecho seguinte, que extraio do relatório referido: é elucidativo quanto a alguns dos aspectos que tenho Os representantes da genética mendeliana-morganista não somente são incapazes de obter modificações dirigidas da hereditariedade

em

definidas

direcções

como

negam

catego-

ricamente a possibilidade de modificação da hereditariedade de maneira adequada às condições do ambiente. Ora a doutrina de Mitchurine diz-nos que podemos modificar a hereditariedade, em plena concordância com a acção efectiva das condições de vida. Um caso elucidativo respeita às experiências de transformação de trigos de Primavera em trigos de Outono ou então trigos de Outono em trigos ainda mais tardios, nas regiões da Sibéria, por exemplo, onde os Invernos são rigogorosos. Estas experiências têm um interesse não só teórico

como têm um grande interesse prático para obtenção de estirpes resistentes ao frio. Já se obteve uma série de formas de trigo de Inverno a partir de estirpes primaveris, que não são inferiores,

no

que

respeita

à

resistentes estirpes naturalmente na prática.

Algumas

resistência

ao

frio,

às

mais

resistentes e já conhecidas

são até superiores.

Numerosas experiências demonstram que quando se procede à eliminação de um certo tipo de hereditariedade já de há muito estabelecido, não se obtém prontamente uma nova hereditariedade estável e solidamente implantada, Na maior 311

GERMANO

parte

dos

casos,

DA

o que

FONSECA

SACARRÃO

se

são

obtém

organismos

de

natureza

plástica que 1. Mitchurine apelidou de natureza «abalada», Organismos com natureza «abalada» são os vegetais nos quais se eliminou o conservantismo e se enfraqueceu o selectivo em relação às condições do meio ambiente. Nestes vegetais, em lugar da hereditariedade conservadora, é pre

servada ou surge neles apenas uma tendência para dar certa preferência a determinadas condições. Pode obter-se o «abalo» de um organismo vegetal: 1.º 2.º 3.º

Por via de enxerto, ou seja pela reunião dos tecidos de plantas de diferentes espécies. Agindo sobre as condições do ambiente em certos momentos em que se realiza tal ou tal processo do desenvolvimento do organismo. Por cruzamento, sobretudo entre espécies ou variedades nitidamente diferenciadas no que respeita ao habitat ou à origem.

Os melhores biologistas, e em primeiro lugar, sobretudo, I. Mitchurine,

atribuíram

sempre

uma

grande

importância

prática à obtenção de organismos vegetais com hereditariedade

«abalada». As espécies vegetais plásticas com hereditariedade instável, obtida por qualquer dos métodos antes enumerados, devem de futuro ser cultivadas de geração em geração sob aquelas condições de exigência de meio ou de adaptação que

a

aséE

queremos induzir e perpetuar nas referidas espécies.

É óbvio, portanto, que o mitchurinismo-lysenkismo armadura

lógica, pelos seus alicerces

teóricos

e pelos

é, pela sua

Ê

resultados



espera, fundamentalmente lamarckista. É um lamarckismo prático virado para a transformação da agricultura. Lamarck, por um lado, nunca parece ter-se interessado por quaisquer implicações práticas do princípio da hereditariedade biológica dos caracteres adquiridos (quer no domínio da agricultura, quer no campo social), como fundamente para

acreditar

em

tal

tipo

de

hereditariedade

(v.

Burkhardt,

1977).

O lysenkismo apresenta, pois, desvios relativamente

ckismo

tradicional, mas sem ele não é nada. Além

i

4

!

Jr.,

$

ao lamar-

disso, para Lamarek,

o organismo não é um corpo passivo a ser simplesmente moldado pele meio no bom sentido requerido: aprende, por assim dizer, a utilizar os recursos, a estabelecer novas condições, a reagir ao ambiente. O que é falso no lamarckismo não é a reacção dos seres vivos ao ambiente.

mas sim que eles possam alterar a sua hereditariedade sempre 312

à

no sem

4

É

É

â5

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE -— I

tido imediatamente favorável, de modo a transmitir à descendência a reacção específica (uma nova morfologia, uma nova função, etc.) adquirida. Foi nesta teoria obsoleta que se apoiou toda a teoria e prá-

tica de Lysenko, toda a sua biologia aberrante. d)

«Esprit

de systeme»

Lysenko,

porém,

aproxima-se

de Lamarck

noutro ponto. Ambos

são impacientes construtores de sistemas assentes em fracas fundações, do esprit de systême, que é isso mesmo (v. Burkhardt, Jr., op. cit.). Esta tendência para construir sistemas, com «factos» duvidosos, de que não há o cuidado de testar a validade, tem constituído um sério

obstáculo ao progresso da ciência. Homens do

seu

fanatismo,

quando

acertam,

acertam

razão do que a maioria. Mas também mais

frequente),

erram

como Lamarck, por causa enormemente,

quando erram

enormemente,

têm

mais

(o que é muito

desastrosamente

(v.

também

Cain, 1977). O seu sucesso não é uma resultante do espírito científico, do método científico. Acertam independentemente da ciência, e a maioria das vezes contra ela. É por isso que o esprit de systême, o crank, constitui um sério travão ao progresso científico. O seu grande motor é a teimosia, a crença enraizada e inamovível, muitas vezes (mas não em Lamarck)

tem o seu grande

alimentada, empurrada, pela fraude. Lamarck

lugar na história da ciência”. Foi um naturalista

ilustríssimo, com uma obra notável. Mas a sua filosofia natural, as suas ideias sobre a natureza da vida, a sua teoria da evolução, não conven-

ceram os seus pares, e não foi um homem à frente do seu tempo. As grandes perspectivas, as grandes sínteses, «les grandes vues», estavam sempre a apaixonar o seu espírito. Buffon também era assim, e a biologia francesa foi influenciada muito pelo «esprit de systême» de Lamarck. No tempo de Lamarck, a procura paciente dos factos e a sua contraprova experimental já eram uma característica dominante. Neste aspecto, Cuvier é um grande exemplo, um grande inspirador, partidário do rigor da observação e da estrita colagem aos factos, cuja crescente acumulação

constituía

neos, Lamarck

o supremo

objectivo,

Para

os seus contemporá-

tinha pouco crédito porque as suas ideias não tinham

os fundamentos geológicos, físicos ou químicos do seu tempo, nem eram apresentados

trabalho

com

aquela

sobriedade

que

é uma

das garantias

de

um

científico.

Quanto a Lysenko, ele não foi apenas crank, um fanático construtor de teorias, sem qualquer solidez, nem raizes nos factos científicos

do seu tempo. Comete-se, porém, uma injustiça quando os aproximamos

por isso, e não se salienta aquilo que tanto os afasta. Lysenko foi motivado por ambição, por sujeição partidária, por ideologia, por paranóia 313

ri CASA

FONSECA

SAGARRÃO

EG

DA

extraordinariamente

(1980 a):

Lysenko's

debate with

the outset, a legitimate

repressivo.

the Russian

scientific

Como

disse

Gould

Mendelians

was at

argument.

Later,

he held

on through fraud, deception, manipulation, and murder-that is the tragedy. O verdadeiro sentido e as verdadeiras causas do drama provocado pelo mitchurinismo-lysenkismo não são simples nem fáceis de apurar, e a prova disto reside nas múltiplas análises, estudos e justificações que

se têm

feito acerca

desse movimento,

num

tema

que

não parece

estar esgotado e continua a suscitar a curiosidade. Sem pretender introduzir-me no exame aprofundado do problema, julgo todavia útil fazer uma pequena síntese das opiniões expendidas sobre as mais importantes razões

que

provocaram

e alimentaram

a controvérsia.

Importa,

para

isso, registar alguns aspectos do que se passou na Academia das Ciências Agrárias. e)

Sessões

da Academia

A Academia Lenine das Ciências Agrárias foi o teatro onde se desenvolveram alguns aspectos deste grande drama e conjuração: Na sessão de Dezembro de 1936, reunida em Moscovo, Lysenko, Prezent e associados dirigiram os seus primeiros ataques em forma contra Vavilov (na ocasião vice-presidente da Academia), contra as teorias e práticas da genética. Seguiu-se a eliminação de Vavilov; e a partir daí Lysenko e os seus parceiros obtiveram o completo domínio

da biolo-

gia na União Soviética, quer no domínio da investigação, quer no sector do ensino. O Congresso Internacional de Genética a realizar em Moscovo em 1937 foi anulado pelas autoridades soviéticas e mais tarde transposto para Edimburgo (1939), congresso para o qual Vavilov fora eleito presidente. O seu renome como cientista era devido, em

grande parte, aos seus trabalhos sobre a origem, distribuição e diversidade das plantas cultivadas em várias partes do mundo. Fi O segundo acto ocorreu na reunião da Academia em Outubro de 1939. Lysenko

defenderam

atacou pessoalmente Vavilov e outros cientistas, que se

como

puderam,

numa

sessão que mais se assemelhou 314

a um

pe RO Deay

near SD até DAP UER

pensamento

o scbas

de

sic do

suas funções ?. A doutrina político-ccientífica» passou a ser um sistema

ida lipo o Ie Pad

e muito provavelmente por fraude, tendo, além disso, provocado e ins: tigado a perseguição de cientistas, que foram presos ou demitidos das

E paE

D o SS

GERMANO

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —1

julgamento do que a uma reunião científica. Após esta trágica sessão,

Lysenko e o seu grupo lograram poder absoluto sobre a biologia em

todo o país. No ano seguinte consumou-se a eliminação de Vavilov. O terceiro acto veio com a reunião da mesma Academia em

1948,

onde Lysenko (que presidiu), Prezent e outros fizeram uma acusação final e definitiva dos mendelianos sobreviventes e eliminaram as últimas resistências. Lysenko apresentou o seu famoso relatório inaugural sobre o estado da ciência biológica, com as suas ideias e teorias biológicas à mistura. O relatório inaugural foi aprovado no meio de aplausos entusiásticos, com os académicos de pé, com discursos inflamados a apoiar Lysenko, alguns a discordarem dele, e o muito mais que é conhecido e está publicado. Houve posteriormente retractações e confissões de culpa, expressas em cartas dirigidas ao Partido e a Estaline, com promessas de ajudar ao desenvolvimento do mitchurinismo, etc. Foi tudo na

publicado

e as comunicações

Pravda,

e textos oficiais da reunião

Nesse relatório foram reunidos e publicados em russo, inglês e francês. explana

os seus

a sua metafísica e as suas ideias científicas,

ataques,

numa longa diatribe que nos revela que os factos pouco contavam em face da ideologia e que o materialismo dialéctico nas suas mãos ficava suficientemente elástico para lá caberem os seus argumentos, as suas

paixões e a sua confusa biologia. Passo a transcrever algumas passagens onde é evidente que a hereverdade

dos

biológica

ditariedade

isso sejam apresentados quaisquer

que para

indiscutível, sem

uma

é proclamada

adquiridos

caracteres

argumentos ou factos científicos. A teoria materialista da evolução dos organismos vivos implica a necessidade de reconhecer a transmissão hereditária das características individuais adquiridas por um organismo sob condições definidas da sua existência, teoria que é impensável se não se admite a hereditariedade dos caracteres adquiridos. Weissmann, contudo, refutou esta posição materialista. Na sua obra Conferências sobre a Teoria da Evolução,

Weissmann tal

forma

declara que «não só não existem provas de uma

de

hereditariedade,

como

ela

é inconcebível

do

ponto de vista teórico». Baseando-se em declarações precedentes do mesmo teor, Weissmann declara que «assim foi declarada guerra ao princípio de Lamarck sobre os efeitos modificadores

directos

do

uso

e do

desuso,

e que

tal

facto

marcou realmente o começo da luta que ainda hoje prossegue entre os neolamarckistas e os neodarwinistas, tal como foram

designados

pelas

partes

315

adversas».

(P.

9.)

GERMANO E

mais

DA

FONSECA

SACARRÃO

adiante:

Primeiramente, as posições bem conhecidas das condições externas na formação do organismo vivo e a hereditariedade dos caracteres adquiridos, em oposição à metafísica

do neodarwinismo (ou weissmanismo), não são de modo nenhum erradas. Pelo contrário, são inteiramente verdadeiras

e científicas. (P. 12.) E logo a seguir: Nós, os representantes niana, afirmamos

da tendência

que a hereditariedade

soviética

mitehari-

dos caracteres

adqui-

ridos pelas plantas e pelos animais no decurso do seu desenvolvimento é possível e necessária. (P. 13.) E

ainda:

As modificações

da hereditariedade

resultam,

de o desenvolvimento do organismo se fazer externas que, em certa medida ou outra, não às exigências

naturais

de dada forma

em

sob condições correspondem

orgânica.

Modificações nas condições de vida provocam modi ficações no tipo de desenvolvimento dos organismos vegetais. O tipo de desenvolvimento alterado é, assim, a causa fundamental da modificação da hereditariedade *. Todos os organismos que não podem modificar-se de acordo com as novas condições de vida não conseguem sobreviver e não deixam descendência. (Pp. 27 e 28.) E logo abaixo: O grau de transmissão hereditária das alterações depende

do grau de inclusão das substâncias da parte modificada

E

do

* Os itálicos são de T. Lysenko.

316

nd

oem

BIOLOGIA

corpo em

E

SOCIEDADE — 1

toda a cadeia do processo que conduz à formação

das células reprodutoras do organismo, sexuais ou vegetativas. (Pp.

também:

O id

E

28-29.)

A hereditariedade é o efeito da concentração da acção das condições do ambiente externo assimiladas pelo organismo numa

série de gerações

precedentes.

(P. 31.)

Mais adiante se verá que, segundo o mitchurinismo-lysenkismo, a hereditariedade de um organismo pode experimentalmente ser «abalada», ficando num estado de instabilidade que depois se estabilizará de acordo

as novas

com

de meio, dando um

condições

organismo

de

outra espécie. E com tais «sacudidelas» ou «abalos» o homem está em condições de rapidamente mudar umas espécies noutras espécies. Lysenko,

nas

suas

forma verdadeiramente tários:

conclusões,

lidas no último

extraordinária, que

dia, começa

desta

de comen-

não necessita

Camaradas, antes de passar às conclusões, julgo ser meu

dever fazer a declaração seguinte. Num dos papéis que me passaram perguntam-me qual é a apreciação do comité central do Partido acerca do meu relatório. Respondo: o comité central examinou o meu relatório e aprovou-o. Quero agora apresentar algumas conclusões sobre a presente sessão.»

Lysenko atingiu nesta memorável reunião de Agosto de 1948 o cume da sua influência e poder. Recebeu várias e altas condecorações (repetidas

Ordens

Socialista,

etc.),

de

foi

Lenine

eleito

e Prémios

para

Estaline,

a Academia

das

Herói

do

Ciências

Trabalho

da

URSS

e também para a da Ucrânia, e para presidente da Academia Lenine das Ciências Agrárias de 1938 a 1956 e 1961 a 1962. Era um verdadeiro ídolo, um semideus, cuja palavra era sagrada, cujas ideias e proclamações, por muito bizarras ou incríveis que fossem, eram indiscutíveis e inalteráveis.

Do ponto de vista profissional, Lysenko começou como especialista do Departamento de Fisiologia do Instituto de Selecção e Genética de Odessa (1929 a 1934), mas ascendeu rapidamente ao lugar de director 317

GERMANO

da mesma foi

instituição

director

do

DA

(1935

Instituto

de

FONSECA

SACARRÃO

a 1938);

e finalmente,

Genética

da

de

Academia

1940

das

a 1965,

Ciências

da

URSS.

f)

Varias

causas

Em face do triunfo do mitchurinismo-lysenkismo, várias questões complexas surgem, a exigir resposta. Julian Huxley contribuiu lucidamente para lhes dar resposta, num livro notável, publicado em 1950, se bem que não tenha esgotado o tema nem dissipado todas as dúvidas.

Várias obras foram depois publicadas sobre o mesmo tema, muitas delas de muito mérito. Como se compreende (pergunta Huxley) que, sendo a ciêneia soviética em geral de alto nível, a Academia das Ciências da URSS tenha dado a sua bênção ao mitchurinismo-lysenkismo, doutrina duvidosa, sem as características de uma

teoria científica?

E sobretudo que

tenha feito a condenação científica da genética mendeliana, que fez as suas irrecusáveis provas, ciência que estava em permanente progresso, e universalmente reconhecida como um dos ramos mais vigorosos e promissores da biologia? Será porque era essa a determinação do Partido e a Academia teve de submeter-se-lhe? Se foi assim, surge nova dúvida. Por que razão se conferiu toda a protecção oficial ao mitehurinismo-lysenkismo?

Será porque

Lysenko

tinha

protectores

poderosos

nos círculos políticos? Mas então pergunta-se: por que razão esses politicos deram absoluta preferência ao lamarckismo e anatematizaram o mendelismo, e isto durante mais de vinte anos? Como explicar que não tenham dado ouvidos a conselheiros científicos que, sem pressão política, lhes teriam facilmente revelado as falsidades e ilusões do

lysenkismo, e que, afinal de contas, uma zir bons

resultados

práticos»?

«má

Estas questões

ciência não pode producomplexas

pedem

respos-

tas complicadas que muitos autores já deram e desenvolveram. Se às opiniões e críticas dos diversos autores juntarmos a vantagem

que representa o tempo decorrido desde a queda de Lysenko, e de que o presente, implacável e friamente, demonstra os imensos erros e deturpações cometidos, poderemos, com tal recuo temporal, formular uma pequena súmula das razões fundamentais que provavelmente actuaram

na

génese

e triunfo

do

dogma

lysenkista.

Agrupo-as

nos

seguintes

pontos:

1) Dificuldades

crónicas da agricultura

e, portanto,

necessidade

premente de obter resultados práticos rápidos no domínio deste vasto sector económico, 318

BIOLOGIA

2)

Um

E

SOCIEDADE —I

poder político totalitário que orienta e domina a comunidade científica e determina, para muitos aspectos, o que é

verdadeiro e o que é falso, em conformidade com os interesses do Estado e com a ideologia do partido que o sustém, e ainda com as crenças dominantes nos círculos oficiais, em relação mais ou menos

directa com

essa ideo-

logia e com a filosofia que a suporta. 3)

Uma

ideologia

que

rejeita

o determinismo

e a desigualdade

genética, a sua aparente fatalidade, e dá toda a ênfase à acção do meio como factor da evolução, que o homem deliberadamente pode transformar rapidamente e, com

4)

ele, a própria sociedade e a natureza, com prontos resultados práticos. simplicidade do lamarckismo, que contém em si mesma a promessa de rápidas soluções, de poder intervir e modifi-

A

car a hereditariedade biológica das espécies, em particular

criando novas variedades e espécies agrícolas. Essa simplicidade faz que a doutrina seja facilmente compreendida e adoptada pelo poder político e pelos trabalhadores, numa sociedade onde o ambiente ideológico pressupõe a necessidade de uma pronta assimilação da ciência e da arte por todos os cidadãos, a fim de todo o povo participar no esforço nacional de produção e de renovação. 5) A personalidade de Lysenko, homem teimoso, um tanto miístico, ambicioso e de poucos escrúpulos, tendo a seu favor um certo sucesso profissional inicial que à partida lhe deu um

bom

crédito

(no domínio sobretudo da fisiologia

vegetal aplicada à agricultura). Em

suma,

económicos,

o fenómeno

ideológicos,

lysenkista resultou da acção de factores

políticos,

sociais

e individuais

que

operaram

de maneira convergente e muito complexa, e onde nem tudo está aclarado. Lysenko tirou habilmente partido do sistema ideológico altamente organizado do Estado soviético de então, no interior do qual ele soube

mover-se, influenciar e orientar a biologia para o destino que está implicito nesse sistema: que a ciência é um meio de obter resultados práticos e realizar a transformação da sociedade e da natureza. O seu erro e as suas culpas não consistiram em seguir esse sistema, mas sim em fazer

pseudociência, em repudiar o método científico e, sobretudo, em considerar que o triunfo das suas ideias implicava a perseguição dos seus colegas geneticistas e de todos os biólogos que não seguissem o seu credo.

A questão, como acima disse, é complicada e não creio que tenha sido

perfeitamente

dilucidada.

Muitos

Re

319

factores

maiores

ou

menores

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

entraram em jogo. Um patriotismo forte, a necessidade de uma grande nação de regime socialista querer demarcar-se dos países capitalistas, afirmando a superioridade da sua ciência, dos seus técnicos e das suas realizações práticas, tiveram, sem dúvida, um certo papel. Um imenso país, riquissimo em recursos, caracterizado por múltiplos climas, e com uma natureza em extremo variada, quando dirigido por uma forte

ideologia revolucionária de transformação rápida da sociedade, tenderá a distanciar-se dos outros sistemas. Este gigantismo é favorável à eclosão de experiências ousadas e de grande dimensão; e todas estas dimensões fora do comum tornam também difícil assinalar onde começa

o erro e quando se instala a fraude e permitem iludir e aliciar políticos poderosos. Ademais, o clima de culto da personalidade como aquele em que

viveu

Lysenko

provavelmente

durante,

sobretudo,

a fase

da

sua

ascensão

a sua quota-parte significativa na embrulhada

tica que se desenrolou,

tanto mais

que

Estaline

teve

dramá-

(convicto lamarckista,

ao que parece) apoiou a grande experiência agrícola de Lysenko e sancionou, se não mesmo

A rada,

inspirou, essa «nova» biologia.

crença na hereditariedade por influência

de Lysenko,

dos caracteres

adquiridos,

conside-

doutrina oficial, a única verdade, a

fonte de uma nova biologia, fez que, quando da queda de Lysenko,

e 1948

tivessem

soviética teria emparceirado

fundamentais

Dobzhansky,

de

Huxley,

Haldane,

livremente

e tantos outros, na edificação

constitui a moderna

URSS

continuado,

condignamente Whight,

na

Fisher,

com

a contr

os trabalhos

Simpson,

da poderosa

neste Mayr,

sintese que

teoria da evolução biológica.

Tem interesse, julgo eu, transcrever alguns comentários feitos por dois biólogos ingleses de renome internacional, com simpatias pele comunismo. Assim, um dos mais importantes geneticistas e evolucionistas deste século foi, certamente, o Prof. J. B. Haldane. Marxista cons fesso, escreveu o seguinte em 1951:

É todavia certo que a maior parte dos caracteres adquis ridos não são herdados. Apesar das muitas tentativas feitas, ainda não se verificou qualquer exemplo deste fenômeno. nos metazoários,

do que

uma

onde

o carácter

transmitido

tenha persistido mais

geração.

Haldane é, todavia, um tanto reticente («On ne peut pas dani dire qu'en principe la transformation Lamarckienne est impossible», 320

RR DR

1925

obtidos

K

buição

entre

Se os progressos

ha sd

domínio

do postulado.

spo D bo EI

e irracional

se não fora o peso ideológico

eo atear PR

buição soviética poderia ter sido enorme

A

em 1965, a biologia evolucionista, tão forte na URSS e tão rica de nomes ilustres, estivesse atrasada vinte anos (Adams, 1980). A contri-

BIOLOGIA

idem).

Parece-lhe

provável

E

SOCIEDADE — 1

que

Lysenko,

actuando

pela vernalização

sobre os vértices vegetativos do trigo, tenha podido modificar alguns dos

seus caracteres hereditários. Mas é preciso reparar que Haldane apenas aceitou essa eventualidade, que pensou poder ser provável nas plantas, onde as células germinais são extremamente sensíveis ao meio ambiente, facto que nega nos animais, como aliás é bem conhecido. E essa influência não é forçosamente do tipo «carácter adquirido», visto que modificaria alguns caracteres hereditários que poderiam, ou não, revelar-se úteis para o fim em vista, ou seja, obter novas estirpes de trigo mais

resistentes ou de melhor rendimento. Ora a modificação de genes por acções exteriores (raios X, choques de temperatura, etc.) era facto já bem conhecido por toda a parte e bem comprovado. Mas isto nada tem a ver com o conceito de herança biológica de caracteres adquiridos. Haldane, porém, verga-se um tanto à ideologia, esquivando-se a apreciar as opiniões de Lysenko e de seus discípulos, ou a pronunciar-se sobre a condenação oficial da genética mendeliana em obediência às directrizes

de

um

partido

neodarwinismo, que

(cf.

Huxley,

também

que

a

e

Mas

hereditariedade

é de reconhecer

Aceita,

portanto,

mendeliana

possui

(como os lysenkistas afirmavam

base material e não metafísica

tinha).

1950).

se declara em absoluto a favor do neomendelismo e do

que Haldane uma

político

a existência dos genes conforme

a teoria

do gene de Morgan, e considera absolutamente injustificados os ataques que

marxistas»

«círculos

dirigiram

contra

a genética

mendeliana.

Recusou, assim, implicitamente, qualquer fundamento ao Iysenkismo, doutrina que negou a existência de genes, e portanto a sua importância

como base material da hereditariedade. Esta posição de Haldane aparece-nos hoje como óbvia, mas em 1950 a situação era muito diferente

tanto mais que ainda não era ideia corrente que os genes fossem constituídos por ADN, que eram porções desta molécula gigante, além de muitos outros factos de muita importância. À genética mendeliana

estava no encalço dessa descoberta que revolucionou a biologia, estava

portanto na via certa, o que não acontecia às velharias dogmáticas do lamarckismo-lysenkismo, que ficou fora da modernidade, de onde nada retirou para oferecer ao futuro, como o tempo decorrido amplamente provou. A biologia molecular e a engenharia genética dos nossos dias são desenvolvimentos, são os naturais prolongamentos do darwinismo-mendelismo-morganismo, e de modo algum os frutos da estafada teoria da hereditariedade biológica dos caracteres adquiridos, que ficou estéril, e já o era, como o mundo científico mais progressivo muito bem sabia nas décadas de 30 e 40. O outro

cientista

inglês

a que

desejo referir-me

foi o Prof. J. D.

Bernal, cristalógrafo, físico e historiador da ciência. Este, pelo contrário, faz a defesa do mitchurinismo-lysenkismo e justifica a existência de uma ciência burguesa em oposição a uma ciência soviética. Para Julian Bibl. Univ. 49 — 21

321

E ic

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

Huxley (1950), porém, Bernal escamoteou as questões fundamentais do debate, que são a da liberdade da ciência, a «da legitimidade da

condenação e extermínio pelo poder político de uma importante área da ciência como sendo falsa, anticientífica e antipatriótica», e aínda a da «validade científica dos resultados obtidos, e dos métodos utilizados

pelos mitchurinistas». Isto para além dos aspectos repressivos e nosos do lysenkismo. Para Huxley, o artigo de Bernal é um apologético especioso, ainda que brilhante, e não uma discussão cial» do problema, e aponta factos em apoio desta afirmação. É curioso que cerca de quinze anos mais tarde, em 1965,

crimi«texto impar-

Bernal

ainda se mostrou, em parte, defensor do lysenkismo e dos seus métodos,

numa ocasião em que a controvérsia já tinha acabado, quando estava demonstrado o absurdo da doutrina e reabilitados os geneticistas soviévigorosamente estabelecida e se conhecia a estrutura e a constituição química do gene. É por isso que não deixa de ser estranha a posição de Bernal, que só por um forte apego à ideologia me parece explicável, ainda que

se mostre, a meu

validade do do-se-lhe:

ver, mais comedido

mitchurinismo-lysenkismo.

Diz,

e menos

por

da Si

toda a parte, nessa altura, já a genética mendeliana e molecular estava

ah 15 e nad

ticos e retomada a investigação e o ensino da genética na URSS. Por

convicto da

exemplo,

referin-

That controversy has now died down in the light of later

E

seria o lugar

apropriado,

tratando-se

da

sua

célebre

Science

m

History, aliás uma obra sob vários aspectos notável.

Jacques Monod, Prémio Nobel (1965), em 1948 laboratório no Instituto Pasteur e estava muito longe atingido o cume

investigações nucleicos, ARN,,

da

com

da sua carreira

e descobertas regulação as quais

(com

génica a genética

de homem

de ciência, com

F, Jacob) e da

era chefe de ainda de ter

no

domínio

demonstração

e a biologia

da

as suas

dos ácidos realidade

molecular

deram

do um

significativo passo em frente, Ora, a respeito dos trabalhos de Lysenko, a sua posição já nessa ocasião foi nítida e cortante,

num

artigo no

de 15 de Setembro do citado ano. Diz Monod:

«La

cast ea pat ia E

jornal Combat

SD

das.

a

monstração, e, sobretudo, que passe em silêncio as perseguições efectua-

ao Pg de cad Ds SR

de lamentar que não diga uma palavra acerca da intromissão do poder político na liberdade da ciência, que não faça qualquer ao facto absurdo de a ideologia decidir do que é verdadeiro ou com absoluto desprezo pelo método científico de análise e de-

io De É

É directa alusão falso,

(P. 957.)

322

À PAS Riad ad ag

understanding.

BIOLOGIA

E

SOGIEDADE — 1

victoire de Lysenko n'a aucun caractere scientifique», e ainda «[...] Non, la victoire de Lyssenko, si elle n'est pas scientifique, n'en est pas moins essentiellement idéologique, dogmatique [...]», ou ainda ams

«Par quels moyens,

Lyssenko

par quels enchantements,

a-t-il pu con-

quérir les plus hautes autorités du régime, les persuader d'assurer son

triomphe, acculer ses adversaires à la demission ou à Vabjuration? On ne peut admeitre d'un

ou

policiêre

que cela soit uniquement marchandage

politique.

le résultat d'une intrigue

D'ailleurs aucun

des grands

interêts politiques du régime n'est en jeu dans cette affaire», concluindo

que se trata de um «grotesque et lamentable affaire», que prova «la mortelle déchéance dans laquelle est tombée en URSS la pensée socia-

ss

lz

liste». Estes passos são registados por Louis Aragon num longo artigo

deste poeta e comunista, publicado na revista Europe (Outubro de 1948), onde, apesar de confessar a sua total ignorância em biologia, faz a apologia do lysenkismo com uma argumentação um tanto abstrusa

e com exercícios de habilidade verbal, criticando, além de Monod, Jean

Rostand, que também não se mostrou nada inclinado a aceitar o lysenkismo, tendo dito que «on ne renverse pas une théorie scientifique. comme on renverse un ministere» (p. 12). As teorias de Lysenko, com a sua mistura de ideologia, prática e aspectos biológicos, não deixaram de impressionar negativamente mui-

biólogos,

tos outros Prenant,

que

marxistas,

mesmo em

o encontrou

1950,

aconteceu

como

tendo

(diz)

com

Marcel

ficado «atordoado»

com a conversa que teve com ele ?!. Em Portugal, a repercussão da controvérsia foi praticamente nula, mas não era desconhecida. Numa tradução portuguesa da obra inglesa

The Ouíline Cosmos

of Science,

(Lisboa)

em

editada

1949,



em

várias

volumes

quatro

notas

do

tradutor

pelas Edições

introduzidas

no texto, em que se defende a teoria de Lysenko (v. vol. nr). Mas, além desta ou de algumas outras fugazes ou nebulosas referências, o assunto não mereceu atenção, tanto mais que o regime político vigente, com a censura sempre alerta, não permitia a exposição e discussão franca e livre das ideias. Em todo o caso, não deixa de ser significativa a indiferença dos meios científicos e universitários portugueses.

g)

4

queda

A estrela de Lysenko começou a extinguir-se após a morte de Estaline. Kruchtchev, que era seu amigo pessoal, continuou a dar-lhe apoio, mas os malogros da agricultura eram demasiado evidentes para poderem ser iludidos. Kruchtchev enviava missões ao estrangeiro para aprenderem os métodos americanos de selecção do milho, que constitui, 323

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

como se sabe, um dos mais brilhantes sucessos práticos da genética. Em 1965, Lysenko foi exonerado de director do Instituto de Genética da

das Ciências, e o centenário de Mendel, que foi tão combaMoscovo

e na Che-

E actualmente a acusação de charlatanismo que lhe é aposta pode ser observada com frequência na literatura científica (v., por exemplo,

Stebbins, 1980). A sua queda foi assinalada por diversas atribulações, como,

por

exemplo,

a extinção

da

revista

Agrobiologiya,

director. Pode dizer-se que Lysenko foi o único homem

de

que

a

And

tido e ridicularizado, foi solenemente celebrado em

coslováquia. O lysenkismo acabou por ser oficialmente condenado 2. Não pode deixar de se pôr a hipótese de Lysenko ter habilmente induzido em erro as autoridades soviéticas que superintendiam nos problemas da produtividade agrícola, como uma explicação, pelo menos parcial, para o enorme sucesso e duração da sua carreira de ditador da biologia soviética. Segundo alguns autores, os lysenkistas seriam ainda numerosos e com influência na URSS, mas sem dúvida que a genética moderna e a biologia molecular fazem aí progressos nítidos, como adiante se referirá. A personalidade de Lysenko é certamente complexa e sobretudo a sua ascendência e supremacia não são facilmente explicáveis. A sua honestidade como cientista e como homem foi posta em dúvida, inclusivamente na URSS, onde comissões de inquérito provaram a existência de extensas fraudes patentes em relatórios onde se indicavam crescentes aumentos na produção agrícola. Mas a impostura não se confinou aos relatórios, estender-se-ia, igualmente, às próprias experiências com as quais pretendeu suportar as suas teorias científicas.

era

que à custa de

ciência suspeita e de ideologia foi capaz de estabelecer doutrina pseudocientífica, uma espécie de religião de Estado, um sistema conceptual

opressivo, com o qual se pretendia criar o «homem novo». Favorecido

pao ad ti

Academia

por um sistema político totalitário, o mesmo sistema provocou a sua queda e esquecimento. Em 1963 foi demitido de quase todas as suas funções por decisão ministerial e em 1965 caiu em plena desgraça, não completa, aliás, pois ainda lhe foi conservada a posição de membro da Academia das Ciências, que conservou até à morte, fez pesquisa no

lugares

cimeiros,

sobre a biologia soviética, havia a crença fora da URSS

estava

em

vias

de resolver

os grandes

problemas

de que este pais

alimentares

e salvar

da fome o resto do mundo; em suma, que com os miraculosos híbridos e variedades do mitchurinismo-lysenkismo se iria conseguir uma prodigiosa revolução agrícola. Mas os resultados não foram 324

Dias pie

em

esses. A grande

cia a nabiá Pap

amigos

ici stitid

Instituto até final e tinha

sendo curioso, porém, que, após ter tombado em desventura, não mais foi publicado qualquer trabalho seu com resultados experimentais (Lerner e Libby, 1976). Por volta de 1950, quando Lysenko exercia o seu poder absoluto

ig a

seu próprio

BIOLOGIA

experiência

lysenkista

E

SOCIEDADE — |

é considerada,

por alguns,

como

uma

grande

revolução cultural abortada, que correu mal devido às causas e efeitos particulares do estalinismo 2. O movimento foi demasiado complexo no seu determinismo social e político para que possa atribuir-se a sua causa

a um factor isolado. Nem o que se passou pode apenas ser imputado à inépcia e fanatismo de Lysenko e seus partidários. Se tivesse havido a possibilidade

de

rápida

e livremente

criticar e rejeitar as teorias

de

Lysenko, decerto que as consequências seriam outras. Ora são precisamente as razões políticas, sobretudo, por que isso não pôde ser feito que conferem ao problema toda a sua complicada e dramática dimensão. Nos

vimentos

anos

50

e 60,

a genética

fora

espectaculares

entretanto

experimentou

do ADN,

desde a estrutura

da URSS,

desenvol-

à

descoberta do código genético, à teoria da regulação génica, à fundação e desenvolvimento

da

etc.

molecular,

genética

culares revelações da biologia moderna,

Entre

as mais

especta-

certamente que a mais revolu-

cionária é a decifração da linguagem pela qual a informação genética

ou hereditária

se transmite,

em acções na célula,

de

como

é que

a estrutura

qual

essa linguagem

rigorosa

química

se traduz

do material

hereditário, ou seja dos genes, etc. Estas e outras revelações de enorme alcance estabeleceram

molecular,

era uma

em

definitivo o triunfo da genética e da biologia

cujas perspectivas

pseudociência

não deixam

de alargar-se. O lysenkismo

e ficou na história como

um

triste aconteci-

mento, onde o charlatanismo andou de mãos dadas com a repressão. Entretanto, foi a genética no Ocidente que contribuiu para a grande «revolução verde» no sector dos cereais, e N. E. Borlang recebeu, em

1970, o Prémio Nobel como orientador das investigações no programa sobre o trigo. Grupos

de cientistas das mais variadas

disciplinas cola-

boraram nestas investigações tipicamente interdisciplinares. Além de geneticistas, trabalharam coordenadamente patologistas, agrónomos, bioquímicos, economistas, especialistas de solos, etc. O milho híbrido é um dos maiores triunfos da agricultura americana. Estas e outras realizações têm na base os princípios da genética e da evolução que precisamente foram combatidos e rejeitados pelo lysenkismo. Por outro lado, as possibilidades abertas pela engenharia genética são imensas. Ciência ainda nos seus começos, abre perspectivas de intervenção na hereditariedade das espécies de interesse económico, introduzindo-lhe novos genes, ou modificando

o seu

património

genético,

ou

provocando,

por

intro-

dução de certos genes em microrganismos, como bactérias, a produção industrial de certas substâncias específicas produzidas por esses genes, como é já o caso da insulina. O homem não escapará a estas intervenções no que respeita a mal-formações físicas e mentais, ainda que aqui o problema se apresente com aspectos certamente muito mais delicados e complicados (v. no 2.º vol. o cap. XI). 325

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

Encerrado o caso Lysenko, a URSS entrou rapidamente nas novas vias abertas pela genética e pela biologia moleculares, ocupando com as suas investigações um lugar cimeiro, pela quantidade e qualidade

do trabalho realizado *. O programa de engenharia genética na URSS está a ser vigorosamente orientado para a agricultura e, como parte desse programa, foi fundado pelo menos um novo instituto de investi. gação, o Instituto de Ciências do Solo e Fotossíntese, em Puschino. É este um dos muitos esforços e iniciativas tomados para lutar contra as dificuldades alimentares que por exemplo no Inverno de 1982 não diminuíram, pois de 240 milhões de toneladas de cereais que constituía o objectivo a atingir, esperar-se-iam apenas 170 milhões (v. Rich, 1982). O que parece provável é que os extraordinários progressos feitos pela biologia genética e moleculares fora da União Soviética aceleras-

sem o declínio de Lysenko. À retórica já não se mostrava

capaz de

esconder o simplismo e os erros do lysenkismo.

3.

O

drama

de

Kammerer

A crença na hereditariedade

dos caracteres

adquiridos

e o caso

Lysenko lembram imediatamente outro caso famoso, o de Kammerer. Em primeiro lugar, porque são de longe os dois mais notórios defensores deste dogma, e, depois, porque estão ambos ligados a aspectos análogos, o primeiro à repressão da liberdade da ciência e o segundo ao problema das fraudes científicas, o que implica sectarismo, política, relações com

as exigências ideológicas. São os dois mais famosos lamarckistas de século xx, ainda que difiram grandemente de Lamarck, não só nas motivações científicas, como na posição que ocuparam relativamente aos respectivos meios científicos onde desenvolveram as suas ideias. Mas a verdade é que todos os lamarckistas, antigos ou modernos, têm de comum a crença na hereditariedade biológica dos caracteres adquiridos. Seria deslocado e longo, mesmo que o fizesse resumidamente, relatar as experiências mais importantes que têm sido ensaiadas desde há

muito

tempo,

sobretudo

a partir

do final

do

século

x1x.

Todavia,

E

tiveram grande repercussão as empreendidas por Kammerer, bió austríaco, com as quais afirmou ter demonstrado a hereditariedade dos caracteres adquiridos. Paul

Kammerer

era,

no

começo

do

século,

professor

em

Viena

qual realizou experiências. Este sapo, que não é aquático, foi obrigado, 326

duel Mataas at

balhos. Trata-se da espécie Alytes obstetricans (o sapo-parteiro), sobre a

luta

coberta de fraude no exemplar apresentado como prova dos seus tra-

E! ada,

e considerado por muitos um competente e dedicado zoólogo até à des-

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —I

nas experiências, a reproduzir-se na água. Poucos ovos sobreviveram

a

tão desfavoráveis condições. Mas Kammerer disse ter obtido nos machos,

após várias gerações de reprodução em meio aquático, umas formações espiculares córneas («escovas copuladoras») na margem dos dedos das mãos, e que a espécie não possuiria. Estas formações rugosas existem

em

de

espécies

diversas

aquáticos

sapos

relacionadas com a fixação do macho

estarem

afirmado

e tem-se

à fêmea durante o acasalamento.

Nos Alytes terrestres, as «escovas copuladoras» ter-se-iam atrofiado e desaparecido, dado que a fêmea tem o corpo seco e o macho mais facilmente se fixa a ela sem escorregar. O reaparecimento de tais formações

(na suposição de que os Alytes ticas com tais rugosidades nas após gerações de vida aquática merer, a prova da realidade da adquiridos.

O

carácter

terrestres descendem de espécies aquámãos) nos machos de A. obstetricans forçada constituía, na opinião de Kamhereditariedade biológica dos caracteres

questão

em

ter-se-ia inscrito, ao fim

de

várias

gerações, na própria substância hereditária e como tal seria transmitido à descendência. Ora os factos são susceptíveis de outra interpretação. Por um lado, descobriu-se na natureza um Alytes terrestre com «escovas copuladoras» e, segundo parece, alguns indivíduos anómalos apresentam a mesma

rudimentar.

formação sob forma acontecido

os

que

Alytes

de

À ser assim, pode perfeitamente

Kammerer

tivessem,

também,

ter

«escovas

copuladoras» e o carácter não seria, portanto, induzido pelas condições de vida aquática a que o autor submeteu os animais (Blanc e outros,

1980). É de certo modo no mesmo sentido que Stephen Gould (1972, 1980) considerou o problema. Se aceitarmos os resultados de Kamme-

rer, como

ele

os

descreveu,

pode

dizer-se,

como

diz

Gould,

que

ele

afinal realizou uma boa experiência darwiniana. Quer dizer que Kam-

meerer fez um trabalho de selecção inconsciente. Os sapos da experiên-

cia teriam desenvolvido «escovas copuladoras» e a falsificação, realizada com tinta-da-china, apenas teria acentuado um carácter potencialmente existente na património hereditário. Não haveria, portanto, qualquer

demonstração de um efeito lamarckiano. Não é este o lugar para entrar em pormenores ou desenvolvimentos técnicos. O leitor interessado poderá obter uma noção dos trabalhos atrás referidos num livro de Arthur Koestler (1973), todo ele ardorosamente a defender Kammerer

e o postulado da hereditariedade dos caracteres adquiridos. Um dos pontos fracos das experiências com que se tem tentado demonstrar efeitos lamarckianos é o facto de elas serem susceptíveis de mais do que uma

interpretação. Valeria a pena repetir as experiên-

cias de Kammerer, não só porque há pontos obscuros na questão como porque, mesmo num quadro darwiniano, pode haver factos interessantes

a revelar.

Aliás,

Koestler

insiste

no 327

mesmo

facto e Stephen

Gould

GERMANO

DA

FONSECA

apoia-o. Julgo que há toda uma

SACARRÃO

metodologia

a inslaurar

e novos

testes

a fazer. Kammerer

empreendeu

outras

experiências

com

sempre com a mesma preocupação. Fez, por exemplo, salamandras

(Salamandra

salamandra

e

outros

animais,

experiências em

Salamandra

atra),

com

as

quais afirmou ter demonstrado a transmissão aos descendentes de caracteres adquiridos pelos progenitores, após ter submetido indivíduos das duas espécies a determinadas condições de luz, temperatura e humidade. O facto triste foi que, depois de alguns anos de discussões de Kammerer e seus partidários com os darwinistas e mendelianos antilamarckistas, e de o investigador austríaco ter propagandeado as suas afirmações por toda a parte, em publicações e conferências, descobriu-se

que,

em

vez

da

excrescência

nupcial,

experimentalmente

induzida,

existia uma cor escura devida a uma injecção de tinta-da-china. O exemplar que tinha sido apresentado como prova estava falsificado. Kammerer

foi logo acusado de intrujão, mas, segundo Koestler, parece

que o infeliz teria sido sobretudo vítima de uma conjuração política odiosa, sendo um militante nazi o presumido autor da vergonhosa acção. Kammerer alimentava profundas convicções socialistas e na Universidade de Viena, em 1925-1926, o nazismo estava em expansão 2. Por outro lado, o especialista G. K. Noble, que observou e denunciou a

fraude,

teve acesso ao exemplar

que

Kammerer

consentiu

(estando

ausente na altura) que fosse visto e manipulado. Este facto não encaixa bem na ideia de ter sido ele o autor da fraude. Culpado ou não (e parece que não foi), semanas depois de ter rebentado tão enorme escândalo, que abalou fortemente a comunidade científica internacional, Kammerer suicidava-se,

a

23

de

Setembro

de

1926.

Em

carta

deixada

Przibram, director do Instituto onde trabalhava Kammerer,

a

Hans

este último

jura que não foi o autor da fraude. Na realidade, parece que as razões em ter posto fim à vida seriam estranhas à denúncia do acto fraudulento. Tratar-se-ia de um acto de desespero, mais por causa de amores não compreendidos (da parte de uma artista vienense) e por problemas de dinheiro do que por não poder suportar o peso de uma desonra. Em todo o caso, se devemos conceder a Kammerer o benefício da dúvida no caso do sapo-parteiro, há que reconhecer que a sua idoneidade como

cientista,

particularmente

a sua

lucidez

crítica,

não

estavam

à

mesma altura da sua inteligência. Outros resultados seus já tinham sido igualmente postos em dúvida por outros cientistas de reconhecida autori-

dade e prestígio, segundo os quais Kammerer era propenso a acomodar os factos, de modo a eles se ajustarem completamente às suas ideias preconcebidas respeitantes à hereditariedade biológica dos caracteres adqui-

ridos.

Isto

fortemente

fez

que

os seus

trabalhos

passassem

suspeitos por toda a parte. O mesmo

a ser

aconteceu

considerados com

as suas

obras de divulgação. Por exemplo, a respeito do seu livro Rejuvenation 328

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE

—1

and the prolongation of Human Efficiency, publicado em 1923, a propósito da defesa aí feita do método de «rejuvenescimento» de Steinach. escreveu Gould que não está convencido de a sua capacidade crítica corresponder à sua inteligência penetrante, As dúvidas, portanto, sobre o valor científico dos trabalhos de Kammerer estendem-se ao conjunto da sua obra. No que se refere (continua o mesmo

autor) à hereditariedade dos

caracteres adquiridos, não será de estranhar que, num tantos

outros

positivos?

falharam,

Resultados

Kammerer

que ninguém

tenha

«obtido»

problema onde

sempre

resultados

confirmou, sujeitos a fortes dúvi-

das, a erros de método e, para cúmulo, associados a uma das mais graves

e ridículas fraudações da história da ciência? Será, então, de surpreender que, após os factos e suspeitas que se referiram, os resultados das

experiências de Kammerer não merecessem mais crédito à comunidade científica, mesmo que alguns pudessem conter (e inclino-me para isso)

factos e observações dignos de atenção? Quando os resultados dos seus

trabalhos sobre a hereditariedade dos caracteres adquiridos foram publicados na prestigiadíssima revista Archiv fiir Entwichlungsmechanik der Organismen, o alto nível desta publicação deu-lhes não só ampla difusão como chamou logo a atenção da comunidade científica internacional para eles. Concedeu aos seus trabalhos imediatamente aquela

reputação que levou a encarar com confiança e seriedade as observações e conclusões publicadas. Na

URSS,

Kammerer

foi

considerado

um

herói

e um

mártir

(Gould, 1972). No mesmo ano em que morreu devia tomar posse da direcção científica de um laboratório da Academia das Ciências de Moscovo. Não é de surpreender. Kammerer estava no ano trágico da sua morte no auge de uma carreira. Com o seu ardor socialista e sobretudo

talvez pelo seu renome por ter «provado» a hereditariedade dos caracteres adquiridos, fenómeno que, como se viu, estava na base do mitchuri-

nismo-lysenkismo, ele era imensamente apreciado na União Soviética, onde o entusiasmo pelos seus trabalhos era enorme em certos meios. Theodozius Dobzhansky (1980) relata-nos a este respeito o seguinte. Por obra de Smirnov, jovem e brilhante zoólogo da Universidade de

Moscovo, Kammerer fora convidado para tomar a direcção de um laboratório no qual ambos poderiam trabalhar a fim de estabelecer a veracidade do lamarckismo,

doutrina a respeito da qual ambos

não tinham

a mais pequena dúvida. A morte do malogrado professor austríaco impediu a concretização desse plano, A morte de Kammerer foi muito sentida na URSS e o seu drama serviu de motivo para um filme (A Salamandra).

Esta película foi exibida por toda a União Soviética

durante vários anos (o que significou a consagração do lamarckismo como doutrina oficial) integrada no espírito do movimento mitchuri329

GERMANO

nista

que

breve

ser banida.

biologia

dominava lysenkista

Koestler,

DA

FONSECA

SACARRÃO

a biologia

soviética,

da

Kammerer

tornou-se,

e a vítima

homem

de

de uma

letras,

qual

a genética

do mesmo

trágica

pensou,

passo,

iria em

um

herói

da

perseguição.

como

tantos

outros,

que

o

lamarckismo poderia facultar uma filosofia mais optimista da vida do que o darwinismo, que não era uma viva

e da

sua

evolução.

Com

explicação

o lamarckismo,

aceitável

da natureza

seres

não

os

vivos

são

máquinas automaticamente programadas pelos seus genes a responder as pressões do ambiente, sujeitas ao jogo puramente mecânico da tenta-

tiva-erro [cf. Bowler (1984]. Com tais pressupostos convictamente firmados, não pôde abordar a história dramática dos sapos Alytes de uma forma mais aberta e desapaixonada. Todas as fraudes e ciências suspeitas são temas necessariamente nebulosos,

difíceis de pôr a claro;

e a partir de certo limite não valem

o tempo gasto em penetrar mais nesses confusos labirintos. O próprio Koestler, escritor de talento e homem

muito inteligente, não convence

quando

discute temas de biologia, particularmente quando, no propó-

sito

reabilitar

de

Kammerer,

pretende

demonstrar

que

os

caracteres

adquiridos pelos progenitores são transmitidos aos filhos. Perso

estranha, e decerto curiosa, Koestler faz fliri com o lamarckismo (como alguém disse) e preocupa-se muito com «ocultismos», no sentido de «paraciência», ou, antes, de «não-ciência», como a telepatia, a parapsicologia, a telecinese, etc. *. Muito bom para temas artísticos, mas frágil

bagagem para a discussão científica. E. Abeberg, professor de Genética

na Universidade de Yale, escreveu a propósito do livro de Koestler que

o seu

autor

é parcial

no

caso

Kammerer

e que

«descrevendo

apenas

alguns aspectos das funções dos ácidos nucleicos, dá a impressão de que a genética molecular e o lamarckismo poderiam, afinal, não ser incompatíveis. O facto de o livro ser escrito num estilo agradável, com todo o

fascínio que exerce um

romance

policial científico,

nocivo para o leitor pouco informado»

torna-o

ainda

(cit. por Bouanchaud,

mais

op. cit.).

Kammerer não é (longe disso) um caso único na história da ciência, já suficientemente profusa em fraudes científicas. Se é dos exemplos mais dramáticos, não é, porém, o mais importante. Há o

escândalo gador

do Dr. William

americano

pintou

Summerlin, a

pele

de

em

1974, em

ratinhos

para

que este investi-

fazer

acreditar

no

sucesso de enxertos que realizara entre indivíduos cinzentos e brancos. Há o caso do Dr. Cyril Burt, mestre prestigioso da psicologia britânica, que inventou dados sobre o QI de gémeos verdadeiros (homozigóticos), fraude

imensa,

em que, com

dados

inteiramente

«fabricados»,

fornecia

a «prova» de que a inteligência é uma faculdade que deve tudo à hereditariedade e nada ao ambiente. Só depois da sua morte

1971, é que a gigantesca

trapaça

foi descoberta

1980). V. também, o cap. XI, no 2.º volume.

(aos 88 anos),

(Blanc

e outros,

330 des >

em

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —

O charlatanismo parece não ser um fenómeno raro em ciência como hoje amplamente se reconhece, ainda que difícil de evidenciar. Em todo o caso, cerca de 90 % de cientistas inquiridos declararam conhecer operações de batota nas áreas da sua especialidade, conforme uma sondagem levada a efeito em 1976 pela revista New Scientist. A maior protecção, talvez, para o charlatanismo é o suporte político de regimes totalitários que impedem ou dificultam a denúncia de falsidades quando estas, por exemplo, caucionam as ideologias do partido único no poder ou convêm em dado momento aos seus desígnios. O drama Kammerer, se esfriou por uns tempos os entusiasmos dos lamarckistas no Ocidente, não abrandou as convicções no postulado e manteve alguns dos seus campeões bem activos. Na Inglaterra, E. W. MacBride, professor de Zoologia no Imperial College of Science and Technology (Londres), de 1913 a 1934, foi um grande defensor do lamarckismo e, consequentemente, um ardente advogado das teses de Kammerer.

De começo embriologista, MacBride tornou-se partidário da

teoria da recapitulação de E. Haeckel, e foi este princípio que o levou a ser acérrimo defensor do princípio da hereditariedade dos caracteres Com efeito, a recapitulação, na ontogenia, das adaptações adquiridos. das fases adultas que se sucederam na história da espécie (filogenia) pressupõe, para MacBride e outros lamarckistas, que essas fases sejam

inscritas na hereditariedade, e assim passem a revelar-se no desenvolvimento do ovo, como que comprimidas na ontogenia. A filogenia seria,

causa

portanto,

da

ontogenia,

conceito

que

sabemos

hoje

ser

errado. Pelo contrário, a evolução da ontogenia é que deve ser a causa

da

para

ser

Quanto à França, ela foi, sobretudo até à II Guerra Mundial,

um

filogenia 7.

abordada forte

deixemos

Mas

esta

questão,

algo

complicada

aqui.

baluarte

do

lamarckismo,

e este

facto,

entre

outros,

atrasou

o

desenvolvimento do darwinismo neste país. O Partido Comunista Francês, foi, entre os congéneres europeus, aquele que mais propagandeou o mitchurinismo-lysenkismo, não sei se por alinhamento com o que se passava na URSS, se por Lamarck ser francês. Talvez operassem as duas razões (v. Boesiger, 1980. V. também, o capítulo precedente. a)

Novas

tentativas

A convicção no conceito de que os caracteres adquiridos podem ser hereditários resistiu longo tempo à negação das experiências, às fraudes ou erros de método, à extrema fragilidade dos seus fundamentos cientificos e lógicos. Com o progresso da genética e da biologia evolutiva, a crença na hereditariedade biológica do uso esmoreceu muito. Mas os seus defensores estavam sempre à espreita de algo que desse suporte ao 331

GERMANO

velho

credo.

Assim,

DA

quando

FONSECA

uma

SACARRÃO

publicação

francesa

afirmou

que

injectando ADN de uma variedade de patos noutra variedade dos mesmos animais se provocam modificações hereditárias nos descendentes desta última, houve

mas

ao

mesmo

(como referem Lerner e Libby)

tempo

grande

consternação

no

grande entusiasmo,

sector

lysenkista.

Até

em Portugal houve um certo alvoroço entre alguns partidários aparentes de um

lamarckismo

confuso, que nunca

chegou

a expressar-se.

Como o ADN era a substância dos genes existentes nos cromossomas e nos núcleos das células, esta circunstância negava qualquer fundamento aos ataques de Lysenko à genética e à hereditariedade mendeliana.

A frustração levou ao empreendimento de experiências onde o sangue introduzido era destituído de glóbulos sanguíneos e portanto de ADN.

Os

resultados,

neste

caso,

seriam

ainda

melhores,

conforme

anunciavam os seus autores. Todavia, os resultados esperados de todas estas experiências não foram confirmados. Possivelmente, certos dados supostos positivos foram obtidos na condição híbrida dos animais receptores (Lerner e Libby, op. cit.). Quer na URSS, quer fora dela, as injecções de sangue ou de ADN nos organismos que foram ensaiados nunca deram resultados coneludentes. Este facto não significa que não possa modificar-se a estrutura hereditária de organismos superiores por inserção de material genético do exterior. As biotécnicas actuais estão já a abrir largas perspectivas nesse sentido. Isolar genes e introduzir genes de um organismo noutro é já uma prática ao alcance da ciência (v. no 2.º vol. o cap. x1). Mas isto é muito diferente do que Lysenko proclamou, porque as manipulações genéticas actuais são o desenvolvimento natural da genética e do mendelismo tradicionais, de que constituem, aliás, a prova iniludível da sua

realidade. Assim, é compreensível a frustração dos lamarckistas de tout

bord quando se demonstrou que os genes são de cíficos de ADN existente nos cromossomas. De Weissman e Morgan, até Watson e Grick (que um novo modelo para a estrutura da molécula genética não deixou de se afirmar sempre como

facto segmentos espeMendel, passando por em 1953 propuseram de ADN) e outros, a uma das mais impor

tantes ciências em permanente e espectacular progresso. Mas

o lamarckismo

não está morto,

nem

mesmo

nos laboratórios,

nem nas teorizações de alguns biólogos evolucionistas, a maioria não para o seguir, mas para o recusar, ou dele se distanciarem. Em especial, o fenómeno da imunidade biológica parece representar um caso de hereditariedade de um carácter adquirido, e todavia parece que não há ai qualquer tipo de processo lamarckiano, apesar de alguns autores terem feito investigações à luz das quais teriam provado a sua realidade, como

é o caso de E. J. Steele e R. M. Gorezynski, trabalhos que, em todo o

caso, são de tomar em consideração. Este novo lamarckismo, com origem 332

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — |

em Steele (1979), não veio alterar a situação do lamarckismo como teoria obsoleta, mas nunca esquecida (v. Bowler, 1984, Lewin, 1981 a) ”.

Outras observações e experiências têm conduzido à ideia de que os seres vivos possam variar os seus genes de acordo com as condições impostas

pelo ambiente ?. O processo, todavia, não é lamarckista pela simples razão de que as modificações surgem primeiro nos genes, sendo portanto estranhas à essência dessa teoria, que exige que a variação genética (na linha germinal) seja sempre posterior à variação adquirida no soma (corpo). Mas é perfeitamente admissível que a concertação íntima genes-organismo-ambiente, ainda tão mal conhecida, revele aspectos interessantes, por exemplo fenómenos de regulação a nível genómico-ontogenético, e que se abram novas perspectivas de interpretação.

333

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

NOTAS

! Expressão muito utilizada, também (aliás, impropriamente), para designar a síntese moderna da evolução (teoria sintética), por esta assentar fundamentalmente no conceito de selecção natural (v. Dicionário de Biologia, Publicações Europa-América). 2 Em França, o estudo racional e experimental dos fenómenos evolutivos fot mais tardio do que nos países anglo-saxões.

3 O fulcro do darwinismo

não é a hereditariedade

dos

caracteres

adquiridos,

mas sim a selecção de variações fortuitas hereditárias exibidas pelas populações

rais. A aceitação da hereditariedade dos caracteres adquiridos concessão

que sempre

que

ele

fez,

compelido

pela

ignorância

constituiu o grande problema

a sua aparente adesão ao lamarckismo

acerca

que o preocupou.

foi mais uma

da

por

natureza

da

natu-

foi uma variação,

E, para o final da vida,

consequência

dirigiam e, sobretudo, das lacunas nos conhecimentos

Darwin

da época

das críticas que lhe

quanto

às causas das

variações nos descendentes do que propriamente a expressão de uma forte convicção. Para Darwin, a principal fonte da variação residia no processo da reprodução e. menos

na

influência

directa

do

clima

ou

nos

Basta o facto de considerar este problema qual

a ignorância

era

profunda

para

se

efeitos

como deduzir

uma que

do

uso

magna era

e desuso

questão

um

tanto

dos

órgãos.

a respeito da frouxo

o seu

apegamento ao lamarckismo. É certo que na Origem há várias referências à here ditariedade biológica dos adquiridos e aos efeitos do uso e desuso, mas mais uma anuência suplementar, secundária relativamente ao carácter

isso parece acidental e

espontâneo e prontamente hereditário de variações exibidas pelos indivíduos de cada população natural. As críticas à selecção natural eram quase todas apoiadas nessa ignorância acerca das causas das variações, e compreende-se, assim, que Darwin, nas últimas edições do seu livro fundamental, tenha dado mais importância à teoria da hereditariedade

dos caracteres adquiridos do que

houvera

feito de começo.

Para

ele,

as variações são hereditárias, acidentais, surgem independentemente de qualquer desígnio, sem ligação específica e directa com os factores do ambiente. E a evolução faz-se pela acumulação gradual dessas pequenas variações, que lentamente provocam a transformação de uma espécie noutra espécie. Curiosamente, quando, dezoito anos

após a morte de Darwin, foram redescobertas as leis de Mendel e se verificou que à

hereditariedade

resultava

da

acção

e combinação

de

partículas

cromossómicas — as

genes, que guardavam a sua integridade através das gerações (não se misturande, não se abastardando), logo surgiram fortes críticas à teoria da selecção natural, que entrou em descrédito. As mutações descontínuas e bem perceptíveis, de grande efeito, aparentemente capazes de bruscamente fazerem passar uma espécie a outra, obtiveram largo crédito, e tinham suporte físico e lógico no mendelismo. Por isso fizerama passar para segundo plano, ou repudiaram-na mesmo completamente, a teoria darwi-

niana das variações subtis, que gradualmente se acumulam e dão origem, sem des continuidades aparentes, a novas espécies, Para o mutacionismo, então uascente, &

natureza dá saltos, de modo que o velho aforismo Natura non facit saltus, tão cam a Darwin, foi rejeitado. Só anos mais tarde é que se reconheceu a existência de genes

e mutações de efeitos diminutos ou quase imperceptíveis e das consequentes pequenas

variações sujeitas à acção da selecção natural, de modo que a evolução gradual darwk niana encontrou nessas demonstrações um suporte decisivo. As «grandes» mutações 334

BIOLOGIA de

efeitos

drásticos,

surgiam

em

E

SOCIEDADE — |

regra,

com

carácter

destruidor,

e, por

outro

lado,

o lamarckismo sustentava-se da separação entre a genética e o darwinismo. Mas logo que a síntese se realizou, o saltacionismo

e o lamarckismo,

tal como o princípio da

hereditariedade biológica dos caracteres adquiridos, conheceram um imediato declínio.

* Certos desvios do comportamento individual como reacções ao meio físico ou social (com aquisições de novos hábitos, escolha de novos ambientes, etc.) podem originar reprodução diferencial, e deste facto resultar evolução, mas isto não é um processo lamarckiano, porque nele a variação precede a aquisição evolutiva, mesmo

que acaso

venha

adaptação,

essa variação, desenvolvendo-se, a corresponder a uma

quer dizer, a dar «resposta» a uma necessidade (v., por exemplo, no meu livro Adaptação, 1985, o conceito de preadaptação). $ Não é correcto assimilar a doutrina de Lamarck a vários autores que posteriormente advogaram o princípio da hereditariedade biológica dos caracteres adquiridos.

Serão

«lamarckianos»

hereditária, que

o mesmo

seguirem

por

apenas

é, aliás, uma

exigência

é Species bejore Darwin (1959). 7 V. Burkhardt, Jr, The Spirit of System 8 Entre

os

cientistas

sociais,

de

princípio

transmissão

da doutrina.

fundamental

(1977).

o lamarckismo

entrou

em

declínio

mesmo

ante-

riormente à sua eliminação pela biologia (Bowler, 1984). Com o advento da genética, os sociólogos passaram a adoptar a conclusão de que o controlo dos indivíduos e dos grupos é obra dos genes e do ambiente, com inclinação para um ou outro destes componentes consoante a ideologia de cada um. Mas a realidade é mais complexa do que ver no comportamento social o resultado de acções de causas separadas, umas agindo no interior do organismo, outras exteriormente a ele, como jogo de forças isoladas e convergentes a agirem sobre o organismo integral (julgado passivo), de que se procuraria a resultante exibida e o respectivo doseamento genético e ambiencial

(v., por exemplo, o meu

Prelo, 1987).

artigo «Determinismo

biológico e flexibilidade humana»,

9 O conceito realista de que a ontogénese não é um directo desenrolar de configurações inscritas no código genético do ovo coloca em grande dificuldade a teoria da hereditariedade biológica dos caracteres adquiridos. Assim como a infor-

mação não passa das proteínas para o ADN, assim, também, as morfologias e funções adquiridas pelo indivíduo devidas ao uso, ao desuso, ao hábito, à aclimatação, etc., não transitam para o ADN dos genes ou para qualquer outra parte do ovo, nem aí se fixam como imagens miniaturizadas das modificações adquiridas. Podem conce-

ber-se ou evidenciar-se certos mecanismos de tipo aparentemente lamarckiano

(imu-

nológicos, por exemplo, como se tem tentado), mas tudo converge para a conclusão que tais mecanismos, a existirem, serão provavelmente de importância muito secundária no quadro da evolução dos organismos. Nem a lógica, nem a biologia, nem talvez

a imaginação,

consentem

conceber

um

processo

de

hereditariedade

biológica

uso que seja compatível com a realidade epigenética patenteada pela ontogenia, ar

onde os genes fazem

parte de um

complicado

sistema regulador da célula-ovo, cuja

origem é a incógnita fundamental (v. meu 19834). o Importa,

todavia,

notar

que

herança

biológica

e herança

cultural

são pro-

see

tetos

cestos intimamente ligados, que se interpenetram e influenciam de maneira muito profunda. Não são entidades isoladas. Lembro, por exemplo, que na evolução do m os caracteres biológicos e culturais

tudo que

o homem

é um

ser

actuam

biologicamente

em

cultural.

estreita concertação Onde

termina

no

e sobrehomem

o iológico e começa o cultural? . dói ax prontamente : ni u No lamarckismo, as variações são adaptativas, enquanto no aa concepção é outra: as variações nada têm a ver (do ponto de vista » ou da sua origem) directamente com as necessidades do organismo, e só pelo jogo seleccionista cioniatz da tentativa/erro . e A E 1989 poderão, na sequência das gerações, desenvolver

335

gradualmente

uma

DA que

O

adaptação.

FONSECA

SACARRÃO

Freud

Sigmund

(12-4:1975).

3 V. Paris Match

outro importante partidário do lamarckismo, nesse princípio.

dit,

a vraiment

que

o

pp. 45-46).

(até final

foi

indiví-

certos

a outros

relação

em

se estabelece

duos e a diferença que, a cada geração, não têm. 2 V. Claude Cuénot (Ce que Teilhard

de

reprodutor

é o sucesso

conta

ETs

GERMANO

vida)

sua

da

tendo elaborado algumas teorias assentes

4 O que parece é que o darwinismo autêntico nunca se fixou na União Soviéa hostilidade da filosofia marxista

se lhe deparou

tica, onde

respeitante

a ideologia dominante,

selecção natural, a qual, de acordo com

da sociedade capitalista. A única opção era adoptar um

à teoria da

reflectia os valores melhor

sempre

lamarckismo,

adaptável à doutrina política, de modo que, nos anos 30, Lysenko entrou em cena no bom momento (crise agrícola, etc.) para o introduzir na filosofia oficial do partido (cf. Bowler, 1984). I5 Do lamarckismo, Darwin aceitou a parte relativa à hereditariedade biológica do adquirido (que, como se viu, não é original em Lamarck), tendo rejeitado a explicação

de

nismo

para atingir sempre maior

que

a evolução

das

espécies

é motivada

complexidade

por

um

impulso

interno

do

orga-

e perfeição.

ló A influência de Malthus sobre Darwin não é um tema simples. Pelo menos, não pode ser encarada na forma esquemática usual, ou seja, que Darwin deve a Malthus a génese súbita do conceito de selecção natural. O que Darwin (e Wallace parece dever(em) a Malthus é a ideia de dimensão populacional, nas suas relações e variações com o potencial reprodutor. Hoje sabe-se que as conclusões de Darwin foram até opostas às de Malthus. Uma diferença que parece fundamental é que, enquanto

uma

Darwin,

teoria

Malthus,

por

a partir

de mudança, seu lado,

não

dos

diferentes

de formação continha

valores

de

nada

de

novas

sobrevivência

espécies

de dinâmico

e de

individual,

e de

novas

inovador

na

criou

adaptações, sua

teoria

social, nada que contivesse um conceito de evolução, que rompesse com as «essências»

e abrisse o caminho à modificabilidade sem limites (v., o cap. v). 17 Lysenko e seus partidários afirmavam a incompatibilidade da genética com o materialismo dialéctico, com a dialéctica da natureza, tal como a desenvolveu Engels, que negou a teoria da selecção natural. O gene invariante e a competição como ferça motora da evolução social não podiam, nesse quadro filosófico e dogmático, ser aceites como realidades. Por isso Lysenko repetia constantemente que a biologia mitchurinista «demonstrava» a hereditariedade do adquirido. E, presos na lógica ideológica a que a filosofia marxista os constrangia, os geneticistas soviéticos estavam previamente derrotados. A teoria do gene, agente invariante, que se mantém inalterável através

das gerações, é inconciliável com os princípios do materialismo dialéctico (v. também Monod, 1970, p. 58, e Lecourt, 1976, p. 74). Não é de estranhar, portanto, que Lysenko e os seus acólitos insistissem em ver erros em Darwin, sobretudo na sintese que a genética provocou ao enriquecer e dar uma base sólida ao darwinismo, apoiando-o solidamente na genética das populações. A única alternativa era um lamarckismo serôdio, e sobretudo aceitar sem reservas a hereditariedade biológica dos caracteres adquiridos, para quem queria inventar uma biologia compatível com a ortodoxia. Os marxistas vulgares rejeitam no darwinismo diversos aspectos, por exemplo que

exista competição generalizada entre as espécies e os indivíduos.

Ora o darwinismo

assenta na ideia fundamental de que a variação aleatória individual conduz a compenatural,

e, se essa

ideia

é falsa, o darwinismo

fica

tantes a Marx e a Lenine, e associando-lhe mesmo o lamarckismo. Pelos vistos, para certos marxistas, a abortada

prai?

a selecção

dd Ut

possível

teoria da hereditariedade biológica dos caracteres adqui336

Cs = Tibia atoa

e torna

desdead

tição

reduzido a zero. Actualmente persiste a tendência nos círculos marxistas para discutir e interpretar o darwinismo à luz do materialismo dialético, para o adaptar à ideologia, de acordo com a Dialéctica da Natureza, de Engels, com referências cons»

BIOLOGIA ridos

continua

de pé, resistindo

E

SOCIEDADE — 1

a todos os ataques

levantam (cf. Wasserung e Rose, 1984). 8 V., de Lysenko, 1948 e 19484). (Outubro,

entrevista

1948)

contém

concedida

outros

por Lysenko,

dados,

O

como

o urtigo

e evidências

mesmo sejam

número

que

da

a discussão

de Aragon

contra

revista

do

ela

se

Europe

relatório,

«De la libre discussion

uma

des

idées», etc.

9 Lamarck é em regra mencionado pelos seus aspectos negativos, mas importa lembrar as suas grandes contribuições positivas, entre as quais não será pouco registar o conceito de evolução gradual, o facto de ter concebido a primeira teoria estruturada da evolução, o acentuar a grande antiguidade da Terra, a importância

dos factores do meio ambiente e do comportamento, o ter pensado a evolução como um grande movimento natural a abranger todos os seres, incluindo o homem, o que, dada a época em que viveu, representava um acto de coragem, como justamente

também lembrou Mayr (1982). 20 Jacques Monod não poupa palavras quando afirma, em 1970, que Lysenko «n'était un homme de science, mais un charlatan ou un paranoiaque; sans doute

les deux»

(cit. Lecourt,

1976, p. 74). V. também

Medawar

e Medawar,

1983,

e

também Stine (1977). 22 La Pensée, 1957, 72:23-26, cit. Bouanchaud (1976). 2 O lysenkismo e suas variantes ainda recentemente tinha numerosos adeptos na URSS; e a China, pelo menos até há alguns anos, parecia, também, orientar-se para a mesma

doutrina.

233 Sobre esta tese de o lysenkismo ter tido o carácter de uma revolução cultural falhada, v. Levins e Lewontin (Dialectical Biologist, 1985). Marxistas, os autores escreveram que o movimento lysenkista «cut short the pioneering work of soviet genetics and set it back a generation [...] For soviet liberals, it is a classic warning of the dangers of bureaucratic and ideological distortions of science, part of their

case for an apolitical technocracy»

(p. 165). A história deste movimento e das suas

causas está longe de estar esgotada para os historiadores das ideias, que variam na interpretação que dele dão consoante a ideologia ou o prisma limitado ou amplo através do qual encaram o processo. Mas uma discussão que se confine aos aspectos

científicos será totalmente inadequada, visto que no lysenkismo os aspectos não científicos são mais numerosos e de muito mais peso. Um aspecto interessante do Iysenkismo

é o facto

de

se tratar

de um

movimento

do passado

mas

com

nítidas

e importantes implicações ideológicas actuais, sendo por isso um campo frutuoso de estudo. Além das fontes citadas sobre o lysenkismo, registe-se, ainda, a que escreveu Dominique Lecourt (Lysenko, 1976).

2% É inútil e deslocado referir aqui pormenores. V., por exemplo, «Biology unbounded», de Yu. A. Ovchinnikov, e «Bumper crops in any weather», de R. G. Butenko (Science in USSR, n.º 6, 1981). 25 Esta

presumida

rer sobre

intriga

nazi

a hereditariedade

teria

o intuito

biológica

de

desacreditar

dos caracteres

as

adquiridos,

«provas»

de

teoria incon-

veniente por se opor às teorias raciais do nazismo. Mas a verdade manda que se diga que

o

racismo

também

se

acomoda

bem

com

o

lamarckismo:

a

«inferioridade»

racial seria um carácter adquirido por acção de um meio físico e sociocultural degra-

dado, carácter que na sequência das gerações se fixaria na hereditariedade. Voltando

ao caso Kammerer, invejoso, que

foi também

o tentaria

sugerido que

desacreditar,

indivíduo

o autor da fraude que

seria um

colega

se diz ter sido posteriormente

internado num hospital psiquiátrico. Importa também notar que o anti-sovietismo de Koestler não foi incompatível

nem

com o apaixonado socialismo de Kammerer,

nem

com o favor que a doutrina da hereditariedade biológica dos caracteres adquiridos teve na URSS, teoria da qual, todavia, Koestler como Lysenko foram inflexiveis defensores, Ideologias diferentes apoiam-se algumas vezes na mesma «ciência». Dibl. Univ. 49 — 292

337

GERMANO 2% V.

cípio

da

Cooper,

Nature,

hereditariedade

DA

FONSECA

258:21-22,

biológica

diversas inteligências. 7 O leitor interessado

poderá

dos

1975.

Como

caracteres

consultar

sobre

SACARRÃO aconteceu

adquiridos

com

Koestler, o prim-

continua

este problema,

entre

a

fascinar outras, às

seguintes fontes: Sacarrão (1952), De Beer (1958), Gould (1977). : 28 V. também, Steele (1979, 1981), Daudin (1981), Maynar-Smith (1982 aj Robertson (1982), Howard (1982) e Nature, 289:631-632. 2 V. no meu livro Adaptação e a Invenção do Futuro (1985) a parte intitulada > « Uma nova vaga?», pp. 159-165. e

CAPÍTULO BIOLOGIA

EVOLUTIVA

E

VIII

EXPLICAÇÃO

DA

SOCIEDADE

É provável que a ideia da evolução (darwiniana) se tenha, em parte, gerado pela observação da prática social do capitalismo, pelas transformações

que

operou,

tendo-se traduzido,

a nível científico, por

uma teoria explicativa das relações dos seres vivos na natureza. O darwinismo, porém, provocou reacções e interpretações que não foram por toda a parte idênticas. Tem um certo interesse a opinião que Karl Marx manifestou pelo livro 4 Origem das Espécies. Não abordarei o problema da correspondência trocada entre Darwin e Marx, nem a possibilidade discutida de uma das cartas do primeiro ser falsa ou, pelo menos, não dirigida a Marx, e tão-pouco a interferência de Edward Aveling (genro de Marx), etc. Parece certo que Marx jamais se encontrou com Darwin. Todavia, manifestou grande admiração pela sua obra, tendo-lhe oferecido um exemplar da 2.º edição de Das Kapital (vol. 1, 1873) com

uma dedicatória («da parte do seu sincero admirador»). Considerou a Origem um livro muito importante, escrevendo que lhe convinha «como base da luta histórica das classes». Mas tanto Marx como Engels punham fortes reservas quanto à aplicação do darwinismo, em particular da selecção natural, à história da condição humana e das relações sociais. Por exemplo, no que se refere à «luta de classes», Marx pensava muito justamente que não era possível considerá-la como um mero

prolongamento da selecção natural, que o homem não pode ser interpretado em toda a sua dimensão e complexidade por analogias com o que se passa nos animais. Para Marx, o darwinismo projecta na natureza o malthusianismo e os princípios da economia liberal da Inglaterra vitoriana. Numa carta célebre dirigida a Engels, este pensamento de Marx surge em toda a sua clareza: É extraordinário como Darwin reconhece entre os animais e plantas a sua sociedade inglesa, com a divisão do trabalho, a competição, a exploração de novos mercados, a «invenção» e a «luta pela existência» de Malthus. É a bellum omnium contra omnes de Hobbes (a guerra de todos contra

todos) 1, 339

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

Engels parece ter ido mais longe, talvez mesmo não fosse tão admirador da obra de Darwin como o foi Marx. Foi provavelmente mais reticente, mas isto pouco importa, a não ser ao historiador das

relações complexas entre Marx-Engels e a doutrina de Darwin. Engels, por exemplo, escreveu: Toda a teoria darwinista da luta pela existência é simplesmente a transferência da sociedade para a natureza viva, da teoria de Hobbes sobre a guerra de todos contra todos e da teoria económica burguesa da concorrência, assim como da teoria da população de Malthus. Uma vez realizada essa manobra forçada (cuja legitimidade absoluta, em particular no que respeita à doutrina de Malthus, é muito problemática), é muito fácil transferir de novo essas teorias da história da natureza para a da sociedade; e é ingenuidade de mais pretender

ter demonstrado

assim que

essas

afirmações

são leis

naturais e eternas da sociedade. (Engels, Dialéctica da Natureza. )

Claro está que o facto de Darwin receber inspiração do ambiente socioeconómico e cultural do seu tempo e da sociedade em que estava inserido para a elaboração da sua teoria não significa necessariamente que esta seja falsa. Vem a propósito lembrar um trecho do socialista alemão Karl Kautsky, escrito em 1902: O facto de uma ideia ter a sua origem nada

classe, ou estar de acordo

com

os seus

numa

determi-

interesses,

prova nada quanto ao facto de ser falsa ou verdadeira Gould, 1980 a).

não

(cit.

O que está em causa, a meu ver, é saber se na natureza existe ou não concorrência entre organismos, competição, luta pela vida, e se existe ou não selecção. Apesar de ter desenvolvido noutros pontos deste livro alguns destes aspectos, e ter dado as respostas que julgo mais adequadas, posso resumir aqui a minha posição. Na natureza existe uma reprodução diferencial que faz que a contribuição dos organismos para a composição

hereditária das gerações sucessivas ocorra em

das direcções, correlacionadas com

a própria variabilidade

determina-

dos indivi-

duos e com as condições do ambiente. A isto tem-se chamado

selecção

natural. É um processo provavelmente real, mas não é o único factor promotor

da evolução ?. Quanto à competição, será tema

que abordarei

a seguir. Mas ao lado de fenómenos competitivos há na natureza uma 340

4

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — 1

imensidade de fenómenos de cooperação, de que só recentemente se começou a reconhecer a sua enorme importância. Mas quer este mutualismo

tão

generalizado,

quer

as concorrências,

têm

um

significado

mais descritivo, e sobretudo metafórico. Podemos estabelecer certas analogias

com

os

mesmos

fenómenos

nas

sociedades

humanas,

mas

tais

semelhanças são superficiais, não traduzem homologia, não significam, por exemplo, que compartilhemos necessariamente com os animais genes para a cooperação, ou para a competição; em suma, não legitimam as transferências fáceis da natureza viva para a sociedade humana, ou

que as características desta (por exemplo, o tipo de economia burguesa) sirvam para fazer uma correcta leitura científica da natureza. É tão-pouco que as leis que regem as sociedades animais caucionem os com-

portamentos sociais do homem no sentido de considerá-los provenientes da mesma raiz, de serem o seu prolongamento natural. A principal crítica marxista, e também a de diversos historiadores, parece-me ser o malthusianismo no que a teoria da selecção natural é o

contra o darwinismo tradicional, al a teoria assentaria. Pensa-se

resultado da luta pela existência, conceito que Darwin foi buscar a Malthus. Há uma certa verdade nisto, mas a questão é mais complicada, e parece-me (como apontei noutro lugar) que a inspiração que Darwin

recebeu

de

Malthus

é, digamos,

mais

naturalística

e limitada

do que política e económica, e provavelmente até essa influência não foi

tão

decisiva

para

a

da

elaboração

teoria

como

se tem

pensado º.

A ideia de luta pela existência era velha de séculos; os efeitos da sobrepopulação eram discutidos também antes de Malthus, ainda que sem a força que este lhe imprimiu. Darwin tinha um profundo conhecimento da bibliografia e não foi, portanto, especificamente Malthus quem determinou a eclosão da ideiá de selecção natural, tanto mais que parece

provado

que,

no

momento

em

que

leu o trabalho

de Malthus,

o seu espírito já tinha amadurecido algumas ideias-chave, nomeadamente o conceito anti-individualista do processo evolutivo, ou seja, que a evolução se opera pela transformação de populações e não pela acção de certos indivíduos privilegiados (v. o cap. V). Ora o pensamento populacional era (como acentuou Ernst Mayr) completamente estranho a Malthus. De maneira que foram as observações de Malthus (em particular a elevada fecundidade relacionada com a limitação dos recursos

e a alta mortalidade consequente) que tomaram um significado novo à luz do conceito populacional concebido por Darwin, ou seja, a enorme importância da variação individual, com a consequência de que a mudança é um processo estatístico *. Estas ideias, que foram fundamentalíssimas para a elaboração da teoria, não foram inspiradas por Malthus, mas sim pelos estudos e observações que Darwin fez sobre a criação

de

raças

domésticas

(de

longa

tradição)

e dos

resultados

obtidos pela selecção artificial. O que teria sido decisivo em Darwin foi 341

GERMANO

a passagem

do pensar

DA

tipológico

FONSECA

SACARRÃO

(essencialista)

ao pensar

em

termos

de populações e sua variabilidade. Foi esta a grande revolução mental que está na origem da biologia evolutiva moderna, Claro está que nada disto exclui a influência da ideologia da sociedade burguesa e das relações económicas dominantes na génese das ideias de Darwin, mas a sua transferência para a natureza viva não foi directa nem simples como muitas vezes se pretende que foi. Houve um longo e complicado processo de elaboração naturalística dessas influências, traduzidas em teoria científica, e suportada por uma imensidade de dados de observação. no mais puro rigor científico e honestidade intelectual. A importância da Origem das Espécies para Marx e Engels devia residir sobretudo no seu absoluto materialismo e no facto de Darwin ter negado a existência de qualquer plano na natureza. Uma matéria viva destituída de qualquer propriedade especial de natureza transcendente, cuja evolução seguia um curso não programado, eram disposições que decerto agradariam aos dois grandes mestres do materialismo do século xix. Mas não foi só isso: também a importância decisiva da história e a legitimação da própria luta de classes pela concorrência vital. Mas se o darwinismo abalou profundamente os alicerces da moral e da religião, se influenciou fortemente a sociologia, a política e a psi-

cologia, a verdade é que estes e outros aspectos de suma relevância não interessavam directamente a Darwin. Os aspectos biológicos e rigorosamente científicos da sua teoria eram para ele os únicos que importavam. Mas a sociedade estava madura para que'a doutrina provocasse essas revoluções profundas nos espíritos, não só por obra do conceito de evolução como processo como também por interferência da teoria da selecção natural nos seus aspectos, digamos, vulgares. Creio que Darwin procedeu, com a sua obra, à sistematização e conceptualização cientificas da profunda transformação social e económica que estava ocorrendo como vaga de fundo irresistível no próprio tecido social e que ia permitir (sobretudo a Darwin) interpretar a realidade com novas ideias, revelando aspectos da natureza viva até aí mantidos ocultos por outro paradigma. 1.

Competição

e cooperação — Realidades

e

preconceitos

A enorme repercussão das ideias de Darwin deve-se sobretudo ao seu impacte nas relações sociais e na interpretação moral a que elas conduziram no plano político e económico. A ideia favorita que, ao que parece, mais influenciou as especulações de certos economistas, políticos e sociólogos foi a de competição como expressão da «luta pela vida». Uma das razões deste facto deve talvez atribuir-se à enorme influência 342

BIOLOGIA

que

teve o darwinismo

E

SOCIEDADE — 1

popularizado

por Thomas

Henry

Huxley,

com

a sua imagem de uma natureza feroz, de «unhas e dentes sangrentos». em oposição, aliás, ao fundo do pensamento de Darwin, cuja imagem da natureza e da vida era mais profunda. A redacção da Origem com

as próprias expressões aí consagradas

(«luta pela vida», «selecção natu-

ral», «sobrevivência dos mais aptos» e tantas outras), se não exprímia,

pelo menos acomodava-se ao clima socioeconómico da sociedade vitoriana em que se desenvolveu o pensamento de Darwin. Não é de admirar, portanto, que a divulgação destas ideias científicas resultasse, em regra, num darwinismo grosseiro, ajustado às convulsões sociais, aos valores nascentes com a revolução industrial, identificando-se com o

progresso mecânico e económico conduzido pela burguesia. Um dos conceitos que mais necessidade há em aclarar é o de competição, não só no aspecto especializado, no âmbito investigativo, como no das suas transferências para o domínio do ensino, do jornalismo científico e político,

da filosofia, da biologia, etc., onde as suas meta-

morfoses semânticas o afastam muito da realidade. As expressões clássicas de «luta pela vida» e de «sobrevivência dos mais aptos» têm-se prestado às mais falsas ou abusivas interpretações se com elas se quiser significar, como tantas vezes se tem pretendido, luta física brutal e

sangrenta pela sobrevivência. Tais ideias, Darwin não as concebeu com

o exagero que se verifica em tantos dos seus prosélitos profanos. Na natureza não é de modo

nenhum

frequente uma competição sangrenta

no âmbito da mesma espécie, conduzindo à destruição, por meio de combate, dos indivíduos «débeis» pelos indivíduos mais «fortes». Por outro lado, a morte como resultado de concorrência entre indivíduos de espécies diferentes apresenta-se, sobretudo, como um fenómeno rela-

cionado com diferentes condições de nutrição. E no seio de cada espécie a competição

individual

é indirecta,

traduzindo-se,

acima

de tudo,

em

número de descendentes, em quantidade de indivíduos que transmitem as gerações seguintes as características hereditárias da geração antecedente. Isto tanto se aplica aos vegetais como aos animais. É uma competição «silenciosa» que nada tem a ver com o significado do termo na linguagem corrente. Estes factos são hoje bem conhecidos dos zoólogos familiarizados com os modernos resultados da ciência do comportamento animal. Maynard Smith e Price (1973) exprimiram a situação dizendo que os conflitos intra-específicos são geralmente do tipo limited war, que só raramente causam danos apreciáveis aos antagonistas que se enfrentam. Não se trata de luta violenta no sentido vulgar do termo. São combates dissimulados, «fúrias» inofensivas, em que os poderosos meios ofensivos (dentes, cornos, garras, etc.) não são utilizados, como exigiria, a meu ver, a lógica humana em tais situações. Os combates não

vão, em geral, além de ameaças, que bastam para resolver as querelas. Se, durante

as disputas,

os carnívoros 343

fizessem

uso constante entre eles

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

dos seus poderosos dentes e mandíbulas, já teriam talvez desaparecido ou quase. Em

muitas espécies de animais superiores existe um

de ameaças» e um sistema

de

integrados num

«sistema de sinais de submissão» que

hierarquias,

as

mantêm

«código

comunitárias

relações

num

estado de relativo equilíbrio e harmonia. Ora a selecção natural actua a favor destes equilíbrios comunitários,

que são, em

parte, o seu resul.

tado. Em cativeiro estes equilíbrios alteram-se profundamente. Há autores que afirmam que a competição não deve ser

um

fenómeno tão importante na natureza como em geral se pensa é. Outros

manifestam uma opinião oposta e conferem grande relevo ao processo. O problema tem de ser encarado sob diversos ângulos. Um dos que me parecem mais merecedores de atenção é o do próprio significado da expressão competição. Muita confusão poderá ser evitada se o sentido em que é utilizado for devidamente clarificado. Sobretudo num domínio como a biologia, onde os raciocínios por analogia (quase sempre frágeis) e as metaforizações são extremamente frequentes, com todas as

consequências obscurecedoras daí resultantes. Se conferirmos ao termo «competição» o sentido realista de que as

formas

mais

estáveis

tendem

a substituir

formas

menos

estáveis,

e que os vários organismos manifestam diferentes graus de utilização dos recursos do ambiente, de onde resultam substituições e deslocações

de alguns deles, logo se verá, julgo eu, que o terreno ficará, talvez, aclarado para a discussão do problema. De modo que poder-se-á dizer que há competição quando, das interacções de duas espécies, uma delas tem um efeito inibidor sobre o crescimento da outra. É um processo em que dois ou mais organismos do mesmo nível trófico de um ecossistema manifestam as mesmas exigências relativamente aos recursos limitados do ambiente, e sempre que essas instâncias não podem ser satisfeitas pelas disponibilidades existentes. Ou seja, haverá competição quando há necessidade de algo que não é suficiente para todos, o que causa nos indivíduos interessados (da mesma espécie ou de espécies diferentes)

um

certo embaraço

da acção,

um

estorvo

à livre utilização

dos

referidos recursos. Daqui resulta que em múltiplas circunstâncias cada organismo exerce uma acção de travão à expansão de outro organismo. Mas esta acção faz-se por múltiplos modos e não devemos considerar esta acção

limitativa

sob

a forma

de lutas

directas

ou

de acções

de

extermínio, que são fenómenos raríssimos e de nulo significado quando se considera o conjunto da biosfera. A referida acção de travão existe sobretudo porque cada espécie ocupa (na comunidade de que faz parte) uma função particular e um certo espaço físico. À esta dupla posição física e funcional é costume chamar nicho ecológico, ainda que o seu significado seja uma questão ainda muito discutida pelos ecologistas. Existe competição quando os indivíduos tendem a consumir ou utilizar 344

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —

os mesmos recursos espaciais, nutritivos e outros, do ambiente, ou seja, quando tendem a ocupar o mesmo nicho ecológico, como se diz em lin-

guagem técnica. Ora, o que se observa na natureza é que cada espécie ocupa

um

nicho

particular,

cies, e o resultado

tem

exigências

diferentes

desta situação é minimizar

das

outras

a competição

espé-

ou

mesmo

anulá-la. As espécies excluem-se, não entram em competição dividem o habitat e os recursos disponíveis. Há como que uma

porque concer-

tação

entre

as espécies

para

recursos que lhe bastam,

que

cada

uma

cresça

à custa

de

certos

e que não são utilizados pelas espécies

vizi-

nhas. Sem provas bem evidentes não se pode afirmar que as espécies hoje adaptadas aos vários ambientes e ocupando nichos próprios estejam em competição. Estes factos não significam que as espécies actuais se tenham instalado e adaptado sem competição. Na fase jovem da espécie, ao inserir-se ela no espaço físico, é provável que tivesse havido fenômenos de concorrência com outras exprimindo-se por uma mais eficaz utilização dos recursos, de modo que deslocou outra ou outras espécies ou inibiu a sua expansão ou o seu aproveitamento útil do ambiente. Mas a tendência que parece universal é para não haver um estado contínuo de competitividade, é para a anular ou tornar mínima. A fragmentação do ambiente em nichos ecológicos tem precisamente esse significado: quebrar a competição conduzindo a uma divisão dos recursos ou uma situação de coexistência, de tolerância mútua, como parece ser a situação em muitos casos que foram estudados. Penso que o fenómeno de formação de novas espécies (especiação) conduz a esse

resultado: cada espécie que nasce é um ensaio para utilizar o ambiente de maneira diferente, é uma experiência para sobreviver, ocupando um novo nicho, diferente do que ocupava a espécie materna. À especiação tem, assim, o significado de tentativa de a vida poder coexistir e continuar-se. Se acontecer que o novo nicho é compartilhado por outra espécie, por estar ocupado por ela, desta situação resultará, provavelmente, competição,

com

eliminação,

em

curto prazo, de uma

das espécies

em

causa. Mas este resultado não é fatal, porque se conhecem situações de coexistência, por exemplo por haver entrada constante de individuos da forma que está a ser excluída, mantendo-se,

assim, um

estado que

nou-

tras condições não seria possível de maneira duradoura.

A

fragmentação

a competição,

favorece

dos

recursos

do

a coexistência

ambiente,

além

de

das espécies porque

minimizar impõe

uma

certa disciplina e economia à utilização dos mesmos recursos. O facto de cada espécie ter a sua dieta própria, o seu comportamento particular, tem aí a sua razão de ser. No limite, se cada espécie de uma comunidade usufruir de recursos que lhe sejam exclusivos (ou quase),

que lhes baste para se manterem nula

ou

quase.

Migrações,

e perpetuarem,

reduções

dicas ou não), escolhas de novos nichos 345

numéricas

a concorrência de

individuos

será

( perio-

(v. g. novas dietas alimentares ),

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

são, entre outras, soluções para quebrar a competição entre as espécies. Mas a concorrência de duas espécies pelos mesmos recursos não parece

ser suportável de maneira prolongada e ao cabo termina pela eliminação ou deslocação de uma

uma

gradual

delas. Esta eliminação

diminuição

dos quantitativos

em

traduz-se,

populacionais

regra, por

no

decurso

de sucessivas gerações.

A diversidade das populações na natureza é um meio de anular ou tornar mínima a competição, porque ela corresponde a preferências diferentes, a comportamentos diversos, os quais têm como resultado

que cada grupo populacional tem o seu estilo próprio de vida, a sua dieta preferida, o seu espaço físico — e tudo isto logicamente enfraquece a competição, que se torna inútil porque os recursos estão repartidos. Julgo que não é crível uma natureza viva cujas espécies teriam as mesmas exigências relativamente às oportunidades e recursos oferecidos pelo ambiente, por exemplo recursos alimentares, entre tantos

outros. À tendência na natureza parece ser o estabelecer de uma certa concertação entre as espécies num arranjo que possibilite a sua coexistência. O que actualmente observamos na natureza, na maior parte dos casos estudados, é exactamente uma competitividade atenuada ou nula, expressa pela multiplicidade de nichos, em princípio cada espécie com seu nicho ecológico. Não é concebível uma multidão de espécies

com

as mesmas

exigências alimentares,

a preferirem

o mesmo

tipo

exacto de alimento, a utilizarem do mesmo modo os recursos do ambiente. Esta observada coexistência, sem concorrência aparente ou real,

foi certamente

precedida por fases de competição,

como

acentuei

pouco, a que se seguiria uma propendência para a minimizar,

com

há ou

sem eliminação de espécies concorrentes. De modo que as espécies actuais são as formas resultantes dessas fases competitivas, a que se seguirão outras fases de instabilidade, que, aliás, decorrem no presente,

muitas vezes sem nos darmos conta das graduais modificações que se vão operando, a que podem seguir-se períodos de crise, com forte instabilidade do ambiente e das espécies. Mas, seja como for, podemos talvez

dizer que a quebra de competição é a meta adaptacionista, e isto contraria frontalmente o mito de uma natureza «de unhas e dentes sangrentos», como um imenso teatro de lutas permanentes, com a vitória dos fortes e o esmagar dos fracos. Esta é uma das grandes efabulações criadas pela biologia vulgar, que os-cronistas do cientismo biológico se têm encarregado de propalar. Aliás, não é nada fácil pôr em evidência na natureza processos de competição, Por um lado, porque a selecção natural parece favorecer a quebra de concorrência; e, além disso, porque a competição, quando existe, 6, em regra, um fenómeno sem a espectacularidade que a expressão convida a imaginar, isto sem

346

io cito a

né ARNS A Drasit dr Sa Dl

irmos até ao ponto de aderirmos à opinião daqueles autores que põem em dúvida a própria existência do fenómeno. No; sentido que foi defi-

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — 1

nido atrás, o fenómeno parece existir. O problema poderá pôr-se de outro modo. Não há, decerto, competição perante recursos largamente

abundantes, que excedem em muito

as exigências dos organismos, No

meio terrestre não há competição pelo oxigénio. Os animais aquáticos não competem, em geral, pela água. Fazem-no em situações especiais

de sobrepovoamento e outras. Os peixes marinhos não entram em competição pela água do mar, muitas vezes também não o fazem em relação ao plâncton. Também as várias espécies de aves não entram em competição pelo ar. E em muitas situações acontece o mesmo quanto a outros factores do meio físico ou biótico. Mas não é legítimo recusar realidade a situações em que dois organismos competem por recursos que são insuficientes para ambos. Todavia seria falta de perspectiva o pensar-se que a competição é o fenómeno dominante das interacções bióticas. As relações mutualistas e as variadíssimas formas que tomam os fenómenos de reciprocidade entre os organismos (mesmo os de natureza não propriamente simbiótica) ocupam uma posição capital na natureza, se não mesmo superior às dos fenómenos de competição. Duas espécies que utilizam os mesmos recursos que não são suficientes para ambas tendem a desenvolver processos que evitem a concorrência. À tendência competitiva inicial opõe-se uma tendência anticompetitiva

que parece, em regra, exprimir-se por diferenciação de nichos ecoló-

gicos. Cada uma a ocupar função diferente, a utilizar alimento diverso, ou outro espaço, ou tempo diferente no aproveitamento dos recursos, etc. Esta oposição dinâmica de disposições é um dos motores da estruturação e evolução das comunidades naturais. A ela se deve, talvez, a dificuldade que o naturalista experimenta em observar e acompanhar casos de competição entre espécies. A condição natural parece ser uma disposição generalizada para anular a competitividade entre as espécies. Como as diferenças entre as espécies e as variedades (subespécies ou raças) são de quantidade e não de natureza, não havendo qualquer essência

secreta

ou

transcendente

a

estabelecer

uma

fronteira

entre

esses níveis de integração populacional, acontece que não tem qualquer fundamento a ideia, tantas vezes propagandeada em círculos ideológicocientíficos, de que não existe concorrência na natureza entre indivíduos da mesma espécie, ou seja, que não existiria competição intra-específica. Ora a ideia é falsa, a não ser que a selecção natural e a tendência à

multiplicação e à sobrevivência sejam uma completa ilusão. O que acontece é que os defensores da referida ideia (aliás, não zoólogos) se

esquecem, neste como em tantos outros exemplos análogos, que «luta pela vida» é uma expressão metafórica cujo sentido real é o da sobre-

vivência diferencial de indivíduos de diferente constituição hereditária que existem no seio da mesma população. Afirmar, como se tem feito, 347

GERMANO que

é burguesa

DA

FONSECA

toda a biologia que admite

SACGCARRÃO a realidade

da concorrência

intra-específica é fazer prova de ignorância e (o que é pior) de utilizar a ideologia como medida do que é falso ou verdadeiro. Como já tive ocasião de discutir anteriormente, a excessiva metaforização da biologia tem sido um dos factores mais importantes de incompreensão, e este facto é sobretudo evidente na área de conexão desta ciência com as

ciências

humanas,

na sua transmutação

em

biologismo

triunfante, a

RESENDE

no caso da competição, essa influência exista. Mas negar a existência de um fenómeno só porque colide com as exigências de uma ideologia antiburguesa é outra coisa muito diferente. As causas ideológicas de um conceito científico não constituem prova contra ou a favor da sua realidade. Parece-me útil insistir no facto de que competição não significa luta violenta, impacte físico ou cruel concorrência, vitória do mais forte. Se coelhos, por serem mais fecundos ou mais resistentes a determinadas doenças, deixam mais descendência do que outros nas condições inversas, não significa esse facto luta directa. O mesmo se pode dizer da concorrência entre plantas pelo espaço, pela água, pela luz

MNA

criar ou caucionar ideologias. Isto não significa que a maior ou menor ênfase que se confere à competição (e a tantos outros fenómenos biológicos) não seja influenciada pelos valores da sociedade. Admito que,

solar. Plantas a crescerem num mesmo local não têm a mesma capacidade

para utilizar a humidade

do solo, ou para captar

a energia

lumi-

nosa; ou então um animal que, multiplicando-se mais rapidamente, utiliza recursos que ficam insuficientes para outro, etc. Por outro lado, nem

sempre

a selecção natural, ou seja, a reprodução

diferencial, é o

Há todas as razões para pensar que o mutualismo é um fenômeno de enorme importância na evolução da natureza viva*. Existe forte tendência nos seres vivos para se associarem, para reunirem recursos, para cooperarem, para se fundirem até, sendo esta disposição um importante meio de enriquecimento e complexificação da vida, de que só relativamente há pouco tempo começou a verificar-se o seu enorme 348

pc ênitdid

resultado de fenómenos competitivos. Pelo contrário, existem abundantes provas de cooperação entre indivíduos da mesma espécie, ou de espécie diferente, que conduzem a reprodução não-ao-acaso, portanto a selecção. Muitas comunidades de organismos vegetais e animais, onde a cooperação é a regra, foram o resultado de selecção natural. Esta favorece, em numerosos casos, a cooperação e a associação entre organismos. É justo lembrar que Darwin chamou numerosas vezes a atenção para os fenómenos de cooperação entre os organismos, incluindo na espécie humana. Vários autores retomaram as ideias e observações de Darwin sobre a entreajuda. Houve mesmo pensadores que desenvolveram politicamente estas ideias, como foi o caso do anarquista e aristocrata russo, o príncipe Piotr A. Kropotkine (1842-1921).

BIOLOGIA

significado.

Existem

que ocorrem,

entre

na

natureza

organismos

afinidade,

exprimindo-se

niveis.

Interacçoes

As

de estreito parentesco,

E

em

de

múltiplas parentesco

fenómenos

cooperantes

como

a cooperação na esfera da não aparentados. Há aves criar no ninho os filhotes associação simbiótica são

SOCIEDADE — 1

não

de

expressões remoto

de

ou

mutualismo

existem

apenas

entreaiuda

sem

a

entre

ia

todos

os

animais

é o caso das relações pais-filhos. Mesmo

reprodução pode efectuar-se entre indivíduos não relacionadas com outras que auxiliam a destas últimas. A tendência à cooperação e à aspectos pelo menos tão importantes como a

tendência à competição. Certas espécies, por exemplo, que se julgava serem competidoras reconheceu-se estarem ligadas por acções mutualistas que se exprimem de forma indirecta. O estudo teórico e empírico do mutualismo nas suas múltiplas expressões e modalidades será, provavelmente, um dos grandes temas num futuro próximo. As interacções cooperantes

receberam

menos de competição.

sempre

muito

menos

atenção

do

que

os

fenó-

E aí talvez a ideologia burguesa seja responsável

pela preferência. Em grande parte, uma consequência do reflexo que o tipo de relações reza

viva.

Em

económicas todo

o

caso,

da sociedade tem sobre o estudo parece

estar

a operar-se

uma

da natu-

mudança

de

perspectiva quanto a estas questões, mudança provavelmente resultante de um maior desenvolvimento de estudos conduzidos directamente na natureza. A meu ver, podemos até considerar a biosfera como um

gigantesco sistema cooperativo e não sobretudo como uma arena imensa

de concorrências e lutas. As perspectivas dependem, talvez, das filosofias adoptadas e da altitude com que se visam os fenómenos, da leitura

que deles fazemos à luz de analogias vulgares. Assim parece acontecer

com as expressões «competição», «luta pela vida» e tantas outras metá-

foras úteis à comunicação científica, mas expressões nocivas quando tomadas num contexto vulgar ou ideológico. É na realidade difícil fugir-se à tendência de ler a natureza conforme os valores e conceitos dominantes na sociedade, de nela projectar a sociedade e vice-versa. Talvez mesmo não seja possível. A própria escolha dos problemas, a sua equacionação, dependem da maneira como os homens vivem, das tradições que os guiam, dos valores que forjam, do clima socioeconómico

em que se desenvolvem, dos poderes a que estão submetidos e que afinal decidem das opções que lhes é possível tomarem. Como na grande teia ecológica nada está isolado, nada é fixo e dudo uma vez por todas, podemos talvez considerar a natureza viva como uma gigantesca série de interdependências alimentares e outras, em sucessivos equilíbrios, e desequilíbrios, em mudança permanente. Relações onde se agregam e combinam competições e entreajudas, lutas e cooperações.

A

ideia de uma

natureza

cruel, «de

unhas

e dentes

grentos», onde a luta pela existência seria o motor da mudança,

san-

provém,

julgo eu, de uma leitura preconceituosa dos fenómenos naturais. É uma 349

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

imensa e perigosa metáíora que só tem obscurecido a compreensão ecológica e evolutiva da vida. O especialista pode não ser iludido por ela, mas, tal como a ciência orienta a filosofia (e é orientada por ela), também acontece ser absorvida pela cultura e pelas ideologias; e como estas influenciam depois a ciência, em

tal trânsito de ideias e reciproci-

dades muitos erros e distorções se instalam por causa dos abusos das ana

logias e das crismas metafóricas. Uma natureza «cooperativa», tem igualmente, um sentido em parte metafórico, mas ajuda a compreender a realidade viva como uma imensa teia multidimensional, em parte

influencia

muitas

outras

de

muitos

modos,

e onde

que cada

predominam

as situações de compromisso, onde sistemas opostos tendem a tomar situações de equilíbrio, a tolerarem-se mutuamente, mesmo em casos de competição ou de parasitismo. Sendo elevado o grau de cooperação que existe na natureza, quer no plano individual, quer populacional, não deixa de causar certa surpresa o facto de as relações mutualísticas serem

pouco

aparentes

e até de

demonstração

difícil.



J. D.

Bernal

dizia há vinte anos que o velho conceito de «luta pela existência» estava a ser substituído pelo de cooperação entre os organismos. A relação herbívoros-carnívoros faria parte do sistema cooperativo, visto que a condição de uma espécie-presa depende da sua relacionação com a espécie-predadora. Nenhuma espécie pode talvez multiplicar-se livre-

mente ou desaparecer sem afectar outras, de modo que as interdependências limitam os quantitativos e asseguram um certo equilíbrio. Esta questão é, naturalmente, mais complicada, e o próprio conceito de equilíbrio mereceria um reparo. Em bom rigor científico, «equilíbrio natural» é coisa que não existe, se bem

que a utilização

da expressão

tenha certamente utilidade prática para traduzir um certo grau de estabilidade transitória e superficial respeitante a este ou aquele aspecto das comunidades de organismos”. Claro está que Bernal já não terá razão quando refere que a competição só tem lugar em situações excepcionais de sobrepovoamento, sobretudo quando se socorre do testemunho

de um biólogo incompetente e suspeito como foi Lysenko.

Partir da

ideologia para afirmar ou negar a realidade de um processo é decerto um procedimento em perfeita contradição com o método científico. No caso da competição, será necessário primeiro desantropomorfizar a expressão e situá-la no seu significado simplesmente tradutor de factos de observação sem intenções de generalizar. A biologia está impregnada

de expressões utilizadas como analogias do que se passa na esfera humana, mas os raciocínios analógicos são débeis e perigosos pela confusão que introduzem na interpretação quer da natureza viva, quer do comportamento do ser humano.

350

o mio

BIOLOGIA 2.

Darwinismo

social.

E

SOCIEDADE — 1

Racismo.

Fascismo

Um darwinismo popularizado, ajustado à nova sociedade e nascido, como vimos, sob a sua influência, foi logo aproveitado para a suportar, não só teoricamente, como preendedores, ao mesmo tempo que latifundiários, etc.) o recusavam.

nos seus aspectos práticos e emmeios conservadores (religiosos,

Herbert Spencer, um dos principais teóricos optimistas do evolucionismo progressista socioeconómico, e intérprete, por assim dizer, do liberalismo

económico,

da livre iniciativa,

do laissez-faire,

inventou

a

conhecida expressão «darwinismo social», doutrina que iria ter largas e poderosas influências, sobretudo na Inglaterra e nos Estados Unidos da América do Norte *. Competição e progresso eram as ideias mágicas que estavam na base de todo este clima intelectual da sociedade. A pri-

meira conduzia ao segundo. Antes de Darwin, já Spencer, como referi, havia defendido

um

evolucionismo

universal,

coerente e ordenado;

e.

por isso mesmo, esta teoria da mudança do simples para o complexo, em obediência a forças equilibradas em acção na matéria, restabelecia, de certa maneira, a anterior imagem

harmonia

divina,

que tão bem

de um mundo

se exprimia numa

estático, reflexo da

ordem

da natureza

e dos seus seres, criados por Deus. O darwinismo social é um produto ideológico da teoria científica

elaborada por Darwin. Consiste essencialmente na utilização e desenvolvimento dos conceitos de «luta pela existência» e de «sobrevivência

dos mais aptos» para criar uma certa filosofia da sociedade servindo, também,

para

caucionar

as injustiças, as desigualdades sociais, o libe-

ralismo selvagem, as opressões. À expansão colonialista encontrou na doutrina as suas justificações e os seus fundamentos, uma espécie de «moral». O racismo, que se espalhou pela Europa e pela América, no

também,

apoiou-se,

darwinismo

social,

e foi

em

parte

fortalecido

por ele. O genocídio dos índios americanos, a exploração e aviltamento social dos Negros, o colonialismo escravizador, exigiam uma justificação para satisfazer a moral e colocar as consciências bem consigo mesmas. O domínio do Branco apoiou-se na teoria da sua superioridade em relação aos povos colonizados. Os genocídios tinham uma base «científica».

Albert

Jacquard

(1978)

resumiu

bem

a situação

na

passagem

seguinte:

Na século

Inglaterra xIX

fazem-se

industrializada fortunas

graças

da

segunda aos

lucros

metade

do

tirados

de

minas ou fábricas onde os operários recebem salários que mal chegam para lhes permitir sobreviver e, por economia, algu351

GERMANO

mas a luz

crianças que do

dia

uma

DA

trabalham vez

a religião é senhora

rência supremo. ser evitado.

FONSECA

por

das

nas galerias semana.

almas

Daí que

Além

disso,

SACARRÃO

das

Nessa

certo mal-estar

o ponto

participa,

sujeição

aqueles

de povos

que

a vivem.

inteiros,

Mas

considerados

refe-

possa

juntamente

colonial,

essa

vêem

porém,

de

dificilmente

com outras nações europeias, na aventura tante para



sociedade,

e constitui

a Inglaterra

minas

aventura

inferiores

tão exalconduz

aos

à

povos

de raça branca, cujo êxito parece definitivo. Ora, numa sociedade impregnada de uma religião que prega o amor do pró-

ximo, atitude tão dominadora

pode

causar

problemas.

Mas

eis que um cientista afirma que o progresso do mundo

vive

é o resultado da «luta pela vida» [...]. «Ao Juízo de Deus» da Idade Média sucede o «juízo da selecção natural». Se os Brancos dominam os Negros, é porque são melhores, e é

normal, é bom para a espécie suplantem os segundos º. No darwinismo

tífica

humana,

que

social, a selecção natural seria a justificação cien-

(que o próprio Darwin

nunca

apoiou)

de múltiplas

e opressões, da feroz competição entre os homens, fortes,

os

mais

capazes

no

intelecto,

niente), sairiam vitoriosos, enquanto gados

e condenados

os primeiros

à situação

no

engenho,

em na

injustiças

que

os mais

moral

(conve-

os fracos e ineptos seriam esma-

de massa

informe

e medíocre

por essa lei natural e implacável. E gradualmente

vencida

a espécie encami-

nhar-se-ia para o aperfeiçoamento, para a selecção de indivíduos cada vez mais engenhosos, mais lutadores e mais empreendedores. Ora, nas sociedades humanas,

os resultados deste processo,

eticamente

execrável,

são exactamente os inversos: as guerras e as prepotências, a miséria e as

injustiças, não conduzem à selecção dos melhores, mas

sim ao oposto,

ao aviltamento, a destruição física e moral dos seres humanos

de todas

as idades. Processos naturais nunca poderão caucionar ordens sociais que impliquem desigualdades, violências e opressões de uns homens sobre outros homens. As políticas de exploração do homem pelo homem não são consequência de qualquer ordem ou lei natural. Mesmo se houvesse, de facto, efeitos selectivos, as «qualidades» premiadas na competição seriam exactamente as que não honram a espécie: a cruel dade, a exploração do ser humano, a manha, o desprezo pelo semelhante. Por muito que se queira procurar e sofismar, não há nada no mundo

vegetal ou animal que possa apoiar esta falsíssima presunção, que exige permanente desmistificação. Escreveram-se várias obras em defesa do darwinismo social. Politicos, homens

de negócios,

filósofos, 352

sociólogos,

psicólogos,

escritores

e

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — 1

outros intelectuais foram aí buscar justificações, beber ideias estimular a imaginação !º. Com elas se alimentaram diversas ideologias e se fortificaram justificações que perduram e se ampliaram com a sociobiologia humana. Não devemos também esquecer que, para o final do século xIx,

Francis Galton (1822-1911)

inventou o termo eugenia, ciência que se

propõe o melhoramento dos animais e do próprio homem, por meio de

uniões apropriadas e de outros métodos, conduzindo, assim, a uma higiene hereditária e ao aperfeiçoamento das qualidades hereditárias, tanto do ponto de vista físico como mental. No contexto ideológico do darwiuismo social, a eugenia teve frequentemente propósitos racistas e de superioridade de castas, que utilmente serviram objectivos políticos de expansão

imperialista

e

de

dominação

económica.

Os

trabalhos

de

Galton (que aplicou métodos estatísticos ao estudo da hereditariedade humana) e os dos seus continuadores tiveram grande influência no desenvolvimento de preconceitos sociais sobre a superioridade mental dos indivíduos das classes possuidoras e dominantes, que seriam mais inteligentes e capazes, em oposição às classes baixas e prolíferas, consideradas biologicamente inferiores. À mesma influência se exerceu sobre os preconceitos de superioridade racial. Francis Galton acreditava na superioridade dos Nórdicos. Muitos políticos e intelectuais foram res-

ponsáveis

pela

expansão

do

racismo.

Thomas

Jefferson

e Abrahan

Lincoln alimentavam preconceitos sobre a inferioridade dos Negros. O culto da «raça» ariana na Europa e os preconceitos sobre a superio-

ridade dos conquistadores louros sobre os povos de pele escura da Pérsia e da Índia traduziu-se numa oposição entre povos nórdicos, que seriam os arianos, e os semitas, a qual culminou no nazismo. Uma tal confusão entre grupos linguísticos e raças ainda não desapareceu. Lerner

e

Libby

(1976)

puseram

em

evidência,

de

forma

com-

parativa, na seguinte tabela, o número de linchamentos nos Estados Unidos da América do Norte, de brancos e negros, segundo dados disponíveis a partir de 1882: Vítimas

anos

1882-1808.

de linchamentos Estados Unido =

Ma

595

440

1080

assempemeearemerero eres

76

94

1802

aaunstnemmsmessseosemeees

69

162

61

620

39

416

.............

1918-1927 49 — 23

Negros

anpuiiremsrer

1906-1915

Bibl. Univ.

nos

353

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

Segundo certas autoridades, o racismo na América do Norte seria obra de intelectuais e também de biólogos do passado, mas, come refes rem os mesmos autores, haveria hoje uma radical mudança de atitu de

a este respeito:

campos

quer

de acção

nuns,

quer

intelectual,

noutros,

e igualmente

os preconceitos

nos

raciais

mais

quase

desapareste

ram. Todavia, ainda não se sabe até que ponto é que a massa

dãos

americanos,

quer

no

Sul,

quer

no

Norte

do

país,

diversas

dos cida

acompanha

4

mudança operada na classe intelectual e científica !. O próprio Darvwim

julgava haver raças atrasadas, que se extinguiriam

perante

a concorrêm-

cia exercida pelas civilizações complexas de outras raças, E julgava ser necessário que o homem fosse sujeitado a uma dura concorrência e que se fizessem «desaparecer todas as leis e todos os costumes que impedem

os

mais

também

capazes

de

triunfar».

historiadores,

Ignorantes,

filósofos e literatos,

teorias raciais e propósitos eugenistas,

que

fanáticos

e

difundiram

místicos,

mas

e desenvolveram

certamente

serviam

os inte-

resses do colonialismo e justificavam a exploração brutal de grandes massas de homens, que acompanhou a industrialização durante o século XIX, e que neste século se prolongou até à II Guerra Mundial 2. Uma das obras que mais serviram de justificação pseudocientífica as vagas do racismo foi a do escritor e diplomata francês conde J h-

da

história

(1853-1854), em branca,

inteligência, teriam

mestiçamento

sido desses

da

que o seu autor sustentou

sobretudo

dos

beleza

e da

provocadas «puros»

arianos,

pelos

com

que

força É.

Todas

elementos

outros

povos

a superio-

possuiriam

as

o exelu-

desgraças

estrangeiros

da

e pelo

acentuadamente

infe-

riores. Obra divulgada e assimilada em plena expansão do evolucionismo darwinista

cia na

e da sua aberraçã— o o darwinismo

Alemanha

foi enorme.

Richard

social —,

Wagner

a sua

influén-

e os pangermanistas

serviram-se das ideias de Gobineau para demonstrar a superioridade dos Alemães e divulgar as suas doutrinas racistas. E sabemos onde isso terminou — na loucura hitleriana, na «antropologia» nazi, na doutrina fascista do Lebensraum, no expansionismo imperialista italiano da ditadura fascista de Mussolini e de modo geral no expansionismo coloniao | lista europeu !. O racismo desenvolve-se em nome de pretensas verdades cientificas. Nunca é de mais denunciar a peste ainda Jonge (demasiado longe) de a ter ceitos que modela a mente colectiva. não estão livres de ser contaminados.

Prémio Nobel de Fisiologia e Medicina,

por Jacquard,

1978):

354

racista, tanto mais que estamos extirpado do sistema de precomMesmo cientistas de reputação Foi o caso de Konrad Lorena,

que em

1940

afirmou

(citado

EVADEO E

sivo

da raça

des

'

ridade

intitulada Essai sur Vinégalité

sis

races humaines

(1816-1882)

ba de!,

-Arthur de Gobineau

BIOLOGIA

Deveríamos,

E

SOCIEDADE —I

para preservar

a raça, estar atentos à eli-

minação dos seres moralmente inferiores de forma ainda mais

severa do que a actual [...]. Devemos — e temos o direito disso — contar com os melhores dentre nós e encarregá-los de proceder à selecção que determinará a prosperidade ou o ani-

quilamento do nosso povo º. Albert Jacquard comenta este passo dizendo que «estas palavras de Konrad Lorenz tinham sido escritas na Alemanha, em 1940, quando os campos de extermínio já funcionavam, constitui mais uma circunstância agravante». O passo transcrito revela, sem dúvida, preconceitos racistas. Basta

atentar

nas referências

aos «melhores

dentre

nós»,

ao

preservar da raça pela «eliminação dos seres moralmente inferiores» e ainda à maneira mais «severa» do que na altura se fazia (em 1940) para não se ter dúvidas quanto ao facto de que Konrad Lorenz acreditava que os métodos de selecção animal aplicados ao homem produziriam o aperfeiçoamento da raça, e que para ele esta não era de forma nenhuma uma entidade mítica. O passo referido de Konrad Lorenz foi escrito num artigo que pretendia ser científico, da sua autoria, publicado em 1940 na revista Zeistschrift fiir angewandte Psychologie und

Charakterkunde. Aos protestos que se levantaram contra a atribuição do Prémio Nobel a quem produzia tais afirmações respondeu Konrad Lorenz dizendo que a doutrina nazi era «falsa», declarando textualmente: «Os meus argumentos dessa época foram mal compreendidos e num certo sentido muito mal interpretados» (citado por Thuillier, 1981). Creio que Konrad Lorenz, quando produziu as afirmações acima transcritas, estava perfeitamente convencido de que há raças «melhores» e «piores» e indivíduos congenitamente «superiores» e «inferiores»;

e que

obter o mesmo

por

selecção

imposta

sobre

os seres

humanos

se pode

resultado que a selecção natural alcança na natureza

viva, ou seja, a eliminação dos «menos aptos» e a sobrevivência e apu-

ramento dos «mais aptos» !*. Por outro lado, o clima ideológico e sociocultural do nazismo, em que estava inserido, e no qual se movimentava livremente, convidava o seu espírito, já predisposto para tais preconceitos, com o seu biologismo simplista, a fazer tais afirmações pseudocientíficas e a tomar a ideologia por ciência, estando provavelmente convicto de que as suas ideias eram perfeitamente científicas. Grande observador (e amante) dos animais na natureza, foi sempre um darwinista fervoroso, com forte tendência a interpretar o comportamento humano como um simples prolongamento do comportamento animal, explicado pelas mesmas leis e submetido à mesma mecânica seleccio-

nista, tudo no mais estrito determinismo genético. As suas ideias sobre 355

GERMANO

DA

FONSECA

as raízes e a natureza do comportamento

SACARRÃO

agressivo

no homem

provêm

da mesma tendência de zoomorfizar os seres humanos. Ora isto acomodava-se

bem

às teses ideológicas

e ultra-esquemáticas

do

nazismo,

ao

culto da força, à supremacia dos fortes, à fatalidade de os fracos perece-

rem na luta pela vida (como ele cria ser a lei nos animais), à ideologia do «espaço vital», ao preconceito de que

a selecção

natural

actua

para

o bem das espécies, de onde a ideia, também falsa, e perigosa, de que tudo se deve sacrificar ao bem da nossa espécie, ou da pátria, ou do partido, ou da raça, sacrifícios que se traduzem, inevitavelmente, pelo atropelo dos direitos dos homens, por opressões e crimes de toda a ordem. Um grosseiro darwinismo, baseado na «luta pela existência» e na vitória do mais forte, que já tinha estimulado a difusão do racismo na Europa e na América, também servia para justificar a ideologia

nazi, com os seus dogmas de «superioridade» e «inferioridade» racial, e o estúpido preconceito de «pureza»

da raça, conceitos

sinistros e, em

grande parte, responsáveis pela bestialidade da «solução final» aplicada aos judeus. O racismo, directamente ligado ao darwinismo social, que não é senão

um

dos seus mais importantes

aspectos, ou, antes, uma

das suas

sublimações, persiste nos nossos dias. Não só tem constituído um instrumento político em Estados totalitários e alimento forte dos nacionalismos, como se estendeu aos Estados onde o afrontamento de raças se traduz em preconceitos de cor, em diferenças mindo, sobretudo, interesses económicos e de

de cultura, dominação.

mas expriO conceito

de raça (com o grande mito da «raça») é, por um erro grosseiro, identificado com o de povo, civilização, nação. Este, preconceito, do qual se têm praticado as maiores

violências, crimes

à sombra

e infâmias,

tem

servido de justificação ao anti-semitismo, à segregação racial praticada pelos Brancos, nas regiões onde eles dominam povos de cor, e às violências eugénicas do regime hitleriano, onde a perseguição atingiu características de loucura, pelas deliberadas e frias determinações de extermínio colectivo. A ideologia racista deve considerar-se como um mal profundo, que não toma, apenas, os aspectos clássicos por que é mais conhecida. Alimenta, igualmente, as ideias de superioridade dos grupos e classes sociais (de dimensão diversa), possuidoras e privilegiadas, em relação aos explorados e inferiorizados; a dominação do sexo masculino sobre o feminino, com os preconceitos de superioridade dos primeiros a relegarem as mulheres para posições de subalternidade, e onde em tudo isto não têm faltado as «razões» biológicas para justificar as consequentes diferenças sociais, suportes que são, naturalmente, falsos. Aqui, a dominação é, em geral, menos ressentida do que seria para desejar, um dos motivos, entre vários, sendo, provavelmente, o forte e diferente condicionamento educacional das crianças de um e outro sexo, que, logo nos 356

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —1

primeiros anos, os pais, a escola, a Igreja e a moral corrente, assim como

todo o clima social e económico, se encarregam de estabelecer. Em certos meios e épocas de grande instabilidade, como a actual, o sistema educacional oscila nas suas bases e o condicionameno referido enfraquece. Mas não tenho dúvidas de que diversas das apregoadas «libertações»

da

mulher

são,

afinal,

novas

formas

de sujeição

ao

sistema.

Nas sociedades animais, as hierarquias sociais têm origem biológica, enquanto nas humanas as desigualdades são devidas a causas culturais e sobretudo a posição de classe !”, No caso do sexo, os privilégios decorrentes de se ser homem já não são propriamente de classe (ou não só), mas principalmente do estatuto que a sociedade estabelece no que respeita às suas obrigações, direitos e deveres —- o que não acontece no animal, onde a dominação

do macho

(ou da fêmea, conforme os casos)

corresponde, sobretudo, a um comportamento recebido por herança biológica. E, por mais que se proclame a existência de uma natureza masculina (ou feminina) recebida inteira dos genes, a análise científica dos factos aí está para negá-lo. Quando, portanto, se invocam pretensas

leis naturais nas sociedades humanas para explicar as condições em que se firmam as igualdades e desigualdades, ou os privilégios de família ou de classe, ou os favores e posses das fortunas, ou as diferenças de educação e cultura, e, por conseguinte, que as condições dos deserdados decorrem

de implacáveis leis biológicas, comete-se, deliberadamente

ou

não, um enorme erro. Mais uma vez se verifica o que há de abusivo em interpretar as sociedades humanas pelo que se passa nas sociedades animais.

É evidente

que

este propósito

serve,

em

geral,

os interesses

reaccionários.

Voltando ao problema racial clássico. Nos Estados Unidos da América

do

Norte,

por

exemplo,

a Lei

da

Imigração

de

1924

reflectiu

preconceitos raciais. Em 1922 chegou a recomendar-se a esterilização dos marginais e desadaptados sociais (desde os débeis mentais e deficientes físicos, aos vagabundos alcoólicos e mendigos), o que traduz o propósito de aplicar grosseiramente, já se vê (e por vezes com aspectos ridículos), a ideia de selecção natural à sociedade. A pobreza e a imoralidade seriam hereditárias; haveria em grande número de indivíduos a fatalidade congénita de ser pobre ou fraco do ponto de vista físico ou mental, tudo ideias reaccionárias, pretensamente justificadas pelo darwinismo social. A recomendação mencionada não chegou a concretizar-se completamente na sua forma legal e obrigatória. Em todo o caso, a esterilização compulsiva foi instituída legalmente em várias nações

europeias e americanas

prática

proibida

afectados,

mações

pela

sobretudo,

físicas,

(v. cap. x1). Em

lei. As por

pela

assim, que pessoas com

esterilizações

doenças

epilepsia,

mentais,

por

Portugal e noutros países é incidem em

exemplo,

doenças nervosas tenham 357

sobre

certos casos

pretendendo

indivíduos por

malfor-

evitar-se,

a seu cargo a educação

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

de crianças. À natureza das intervenções varia, e existe sempre

o perigo,

com as mutações político-sociais, de tomar aspectos aberrantes e criminosos. Basta pensarmos que a expressão «inadaptado social» se presta a todas interpretações, como acontece quando uma proposição ganha em popularidade (e por vezes em significado político) o que perde em rigor de conteúdo. Quanto mais repetida, mais se afasta da sua genuinidade. Durante o regime nazi, a esterilização atingiu o carácter extremista e violento que se conhece. À esterilização compulsiva, a meu ver, im-

posta pelo Estado-Nação omnipotente, é um

atentado à dignidade e à

liberdade humanas. Como prática de higiene social, é de efeitos duvidosos. Mesmo praticada em larga escala, não atinge o seu objéctivo — a eliminação dos genes nocivos na espécie humana. Aliás, os seus fundamentos científicos são de valor duvidoso. A esterilização tem propósitos de higiene social, mas não é difícil reconhecer que se trata de um produto ideológico da teoria social-darwinista. Tem de ser encarada no quadro geral do racismo (contrariado por toda a ciência biológica), que é presa fácil de políticos ao serviço de nacionalismos, que inelutavelmente vivem de ideias de superioridade

e, portanto, de dominação.

O verbalismo e as bases pseudocientíficas

do darwinismo

social

tiveram boa fortuna em diversas obras de sociólogos. Os grandes homens de negócios pensavam que os seus êxitos eram a expressão da grande lei da «sobrevivência dos mais aptos». Em nome destes princípios, e dos seus corolários racistas, vários autores atribuíram a prosperidade das grandes nações industriais, em particular dos Estados Unidos da Ameé-

rica do Norte, às excepcionais qualidades da «raça nórdica». Em

1924,

por exemplo, uma lei americana, a «Johnson Act», favorecia a imigração dos dolicocéfalos louros. j

O longo caminho pensava

que

a natureza

do racismo tinha

(na

antiga

produzido

Grécia,

duas

Aristóteles

categorias

uns destinados à chefia e os restantes à condição

de



homens,

de escravos),

sempre

ligado à evolução económica, ficou assinalado, por exemplo, pelas grandes e sangrentas perseguições aos judeus, passando pela história negra da escravatura e pelos extermínios de povos sob dominação expansionista colonial (na América, na África, etc.) e pelo tresloucado racismo fascista e militarista, onde o Estado é o garante da permanência e expansão das raças superiores,

-Nação,

que

destinadas à dominação.

é relativamente

recente,

é

um

Este

dos

mito

mais:

do

Estado-

importantes

obstáculos à cooperação autêntica dos homens a nível mundial, cooperação que se impõe se se quiser, na realidade, solucionar, ao menos em

parte, os grandes problemas desenvolve-se de forma

da humanidade.

gigantesca,

alimentado 358

O militarismo por

esse mito,

moderno e criando

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — 1

a sua própria dinâmica de dominação

destruidora, instaura

a lei do mais forte. Sobretudo depois da II Guerra

Mundial,

cismos e o ressurgir de novas esperanças,

com

nasceu

(e justifica)

a derrota

um

dos fas-

certo pessimismo

ou desinteresse pelo darwinismo social. Mas o evolucionismo continuou a ser fonte de uma filosofia e de uma nova moral onde se poderiam ir buscar os valores necessários para alimentar a grande esperança no futuro do homem, fé no seu progresso sem fim. Julian Huxley propõe uma filosofia evolucionista de raiz materialista 8. A obra de Teilhard de

Chardin,

com

o

seu

evolucionismo

espiritualista,

obtém

sucesso.

Entretanto, o darwinismo científico alcança excelentes progressos pela entrada em cena da genética das populações e pela convergência de disciplinas fundamentais da biologia, todas a consolidarem e modernizarem, pela observação e pela experiência, a teoria da selecção natural. Este

neodarwinismo

confinou-se,

porém,

aos

cializados. A teoria sintética, como

também

teoria moderna

atingiu

dos anos

da selecção

50.

Em

1958

natural,

celebrou-se

círculos

científicos

espe-

passou a ser conhecida o seu apogeu

o centenário

para

a

o final

da comunicação

de

Darwin-Wallace à Sociedade evolucionismo e no conceito

Lineana para manifestar de novo a fé no de «sobrevivência dos mais aptos», agora

traduzido

mais

noutra

linguagem

neutra, mais

técnica, mais

compli-

cada, não tautológica, com terminologias menos assemelhadas a situações observadas em sociedade. Por outro lado, o evolucionismo cientifico matematicizou-se, em grande parte, e com isso tornou-se muito dificilmente acessível ao profano. Mas no que respeita às transposições (e mistificações) para os processos sociais e históricos, aí o processo de transferência não parou. O darwinismo, e particularmente o seu produto mais popularizado, a selecção natural, continua a atrair diversos pensadores não biólogos. Por exemplo o filósofo Karl Popper defende a ideia de que a evolução da ciência se faz, como a das espécies animais e vegetais, por selecção natural, numa identidade perfeita seja,

ou

de processos,

por

uma

«selecção

com

hipóteses»,

das

natural

apelo a noções de sobrevivência das teorias mais aptas na sua luta pela existência,

tudo

conforme

We

ortodoxia

darwiniana:

choose the theory which best holds its own in comtheories;

other

petition

with

lection,

proves

p.

à

itself

the

the one

fittest

to

which,

by

natural

(Popper,

survive.

se-

1972,

108.)

As analogias do tipo das que menciono podem, por vezes, ser úteis (não

o

nego),

como

estimulantes

abuso utilizá-las a eito como +:

.

para

criação

de

processos de demonstração. 359

mas

hipóteses,

“«”

Es

é

Se vejo certo,

ok



GERMANO

será provavelmente

DA

FONSECA

mais fecundo

marcar

SACARRÃO

as diferenças

ção biológica e a evolução histórica humana

entre

a evolu-

do que procurar explicar

a segunda pela primeira (ou vice-versa), mesmo tratando-se de aspectos particulares, como é a evolução das ciências. As hipóteses e teorias

científicas válidas num campo limitado tomam quase sempre significações abusivas ou falsas quando utilizadas num contexto diferente daquele em que nasceram. O exemplo do darwinismo parece-me flagrante a este respeito. As desigualdades e as lutas entre classes, os racismos de todos os tipos, os homens

como

vítimas

de forças biológicas

num

tosco darwinismo.

Ideias

tanto mais nocivas quanto é certo que, por servirem os valores e inte-

resses de classes dominantes ou de ideologias de ampla difusão, rapidamente passam para os sistemas educacionais e para a mentalidade colectiva. E as transposições estão longe de ter terminado, como em seguida se verá.

3.

Um da

novo

darwinismo

social —

Sociobiologia

e biologia

moral

No Ocidente existe, desde há longo tempo, mas mais acentuadamente desde o século xvil, uma certa relação entre a interpretação da natureza viva e o sistema económico dominante. À economia capitalista e os êxitos individuais resultantes de competição corresponderiam ao sucesso reprodutor e à selecção do mais apto. Com a evolução da sociedade industrial e científica, o darwinismo social adaptou-se sucessivamente às novas condições. Tomou a forma de um ecologismo que engloba ideologias inspiradas mais ou menos directamente na ciência ecológica. Em breve, porém, esta metamorfose não foi suficiente em face das contradições e múltiplas complexidades do mundo moderno. E a partir, sobretudo, dos anos 70 o darwinismo social completou a sua adaptação desenvolvendo-se numa doutrina mais alargada, muito mais ambiciosa na sua ânsia de tudo explicar, quer na natureza viva, quer na sociedade humana. O ecologismo (exprimindo-se em ecologismo social, em ecopolítica) passou a reflectir o novo estado da sociedade, sobretudo

das sociedades industriais, e as múltiplas contradições de um

mundo

de poucos ricos, com áreas imensas onde vivem grandes massas huma-

nas que vegetam numa miséria degradante, numa oposição cada vez mais flagrante e em extremo escandalosa. Outra forma de ecologismo põe em causa a sociedade industrial, rejeita-a e anseia por um regresso 360

rr)

transferências abusivas que se apoiam

de uma espécie algumas dessas

mp

viva e à substituição entre tantas outras,

een E

luta pela existência na natureza decadente por outra apta, são,

peeteeido

a que nenhuma moral pode opor-se com sucesso, a competição entre classes e indivíduos como um grande mecanismo natural, comparável à

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —I

à ordem natural, a uma espécie de paraíso perdido. As duas atitudes combinam-se por vezes. O regresso à natureza (ao «natural primitivo e puro», que nada significa) atrai, e sem dúvida que a utopia interessa aqueles que alugam ou vendem «paraísos» modernos. Os países ricos, parte menor da humanidade,

todavia detentora da ciência e da técnica,

utilizam em proveito próprio a quase totalidade dos melhores recursos da Terra. De modo que a política ecológica das nações ricas é muito

diferente da que interessa às nações subdesenvolvidas. Nas primeiras proclamam-se os malefícios da explosão demográfica dos países pobres, faz-se doutrinação sobre as possibilidades de harmonizar a voracidade do

capitalismo predador com

as exigências de proteger a natureza

e de

manter ou desenvolver ambientes saudáveis, inventam-se dispendiosas tecnologias de despoluição, etc. Nas áreas de subdesenvolvimento, o que é fundamental e urgentíssimo é o combate à miséria e à ignorância. O problema político e social é mascarado por um ecologismo utópico ou submetido aos grandes interesses das superpotências. A ecopolítica que serve de justificação aos valores das sociedades científicas e industriais é, assim, oposta aquela que poderá convir às áreas pobres do mundo. O ecologismo reflecte as condições socioeconómicas do mundo e os interesses e exigências do poder político e económico. À própria investigação

ecológica

não

é, de

modo

nenhum,

independente

dessas

con-

dições. As direcções que toma, os conceitos que elabora, os projectos de investigação que concebe, são inspirados nelas, obedientes a elas. E as classes dominantes vão ao ecologismo buscar as necessárias justificações e até uma filosofia de vida, uma mentalidade, que insuflam na escola, e que

os mass

media

tentam

instilar nos

cidadãos.

O darwinismo tradicional atingiu entretanto uma fase de profunda modernização entre a década de 30 e a década de 60. Depois, a sua transformação não ficou por aí, e no domínio da explicação do comportamento social dos animais e do homem surgiu nos anos 70 uma nova disciplina — a sociobiologia. O seu inspirador foi Edward O. Wilson, da Universidade de Harvard. Este último desenvolvimento do darwinismo originou, com a ideologia biológica a que deu lugar, uma nova

imagem do darwinismo social (v. meu 1982). As

ideologias

fascizantes,

racistas

e totalitárias,

encontram

neste

novo biologismo determinista-reducionista os suportes e justificações que lhe são necessários para se infiltrarem insidiosamente no tecido social. O Estado arqui-soberano e ditatorial, que escraviza e degrada as consciências, inspira-se, a meu ver, em e manipuladores, quer nas formas

ou dos lamarckismos

todos os biologismos deterministas tradicionais do darwinismo social,

de todos os matizes, ou nas várias formas

moder-

nas destas doutrinas, as quais têm na sociobiologia ideológica a sua expressão melhor conseguida. Que a sociobiologia tenha aspectos posi361

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

tivos, quando cingida pelo método científico, e que veio abrir novas perspectivas ao estudo do comportamento social dos animais, não sou eu que o negará. Mas, tal como aconteceu com o darwinismo, a transposição deste novo biologismo para a sociedade humana acabou por traduzir-se, como o fez o darwinismo social, em conceitos de «superioridade» e «inferioridade», em afirmações que as diferenças de classe

correspondem a diferenças inscritas nos genes, que as culturas diferem por factores hereditários, que a inteligência e o comportamento dos homens devem quase tudo aos genes e pouco ao meio físico-social, que se pode reduzir a política e a moral à biologia, etc. Arvorar qualquer biologismo em religião messiânica, quer ele se fundamente no poder absoluto dos genes, quer nas acções transformadoras de um ambiente todo-poderoso sobre a hereditariedade biológica, corresponde, a meu ver, a uma visão megalómana e perigosa que urge denunciar, porque necessariamente conduz a uma degradação moral. É um reducionismo grosseiro e reaccionário e todas as ideologias que desprezam a pessoa humana aí vão colher inspirações e justificações «científicas». Os fundamentos científicos da sociobiologia podem ser sumarizados da maneira seguinte (v. meu 1982): 1)

Da

totalidade das manifestações do organismo, o comportamento social é uma das componentes fundamentais. Todas as vezes que um comportamento social é geneticamente determinado,

os indivíduos que o exibem

conduzem-se de

maneira a maximizarem a sua «aptidão global» (inclusive fitness), ou seja, a soma da sua «aptidão pessoal» (isto é, o seu sucesso reprodutor) mais a totalidade de todos os

efeitos que ele provoca nas «aptidões» (correspondentes aos mesmos genes) de todos os indivíduos que lhe são aparentados. Este princípio também é conhecido por postulado central da sociobiologia (Barash, 1977). Assim, quando um animal executa um acto altruísta para com um

irmão, por exemplo,

a «aptidão

total» será:

a aptidão

do primeiro animal (que ficou diminuída pela própria conduta altruísta) mais o aumento da aptidão fruída por aquela porção da constituição hereditária do irmão que é compartilhada com o animal altruísta. A parte comum da constituição

hereditária

é a fracção

de genes

dois animais recebem devido a terem a mesma

que

os

ascendên-

cia. Ora, obedecendo o comportamento social a um determinismo biológico (genético), forçoso será concluir que sobre ele actuará a selecção natural. Logo, o comporta-

tamento social é adaptativo na medida em que ajusta da melhor

maneira

os

organismos

362

ao

ambiente,

tal

como

BIOLOGIA

acontece

com

E

SOCIEDADE — 1

as formas, as estruturas e as funções

fisio-

lógicas. O comportamento exprime, assim, se não toda, pelo menos uma parte muito importante do genótipo, isto é, do conjunto dos genes do indivíduo ou do grupo. Os genes mais vantajosos aumentam

a sua representativi-

dade nas sucessivas gerações devido à acção da selecção natural que actua sobre eles por intermédio do comportamento social. À conduta social determina a transmissão aos filhos do maior número de genes comportamentais. daqueles, em suma, que melhor adaptam os organismos ao ambiente. Optimiza a adaptabilidade total do individuo, maximiza a representação dos seus «melhores» genes nas sucessivas

2)

gerações.

Todo o comportamento, desde a reprodução à mais sofisticada conduta em sociedade, visa um objectivo: fazer que os genes, que cada organismo adulto temporariamente transporta,

obtenham

a máxima

representação

nas

gerações

seguintes. Existe, assim, um «egoísmo» genético: os genes são «egoístas», comportam-se como tal, no sentido de que fazem por propagar-se, perpetuar-se, e o meio de que se servem é o organismo, que não vive senão para essa finalidade. É a sua razão de ser, a sua vocação. Os genes com-

petem, e os «melhores»

deles vencem

e são eles os que

passam à geração seguinte. E a evolução biológica é como

uma corrida em que os vencedores são os «melhores» genes, que por o serem se instalam na geração seguinte. Vistas assim as coisas, logo se repara que para a teoria sociobio-

lógica a selecção natural actua sobre os genes por intermédio da maior ou menor ajustabilidade dos indivíduos. O gene é que é a unidade de selecção, e não o organismo individual. Cada individuo é compelido constantemente

a assegurar

o seu

sucesso

reprodutor:

passar

os

seus

melhores genes aos filhos, ou as cópias dos mesmos genes existentes em seus parentes. Para isso o indivíduo actua egoisticamente, porque o que para ele é fundamental é a existência e propagação dos seus «melhores» genes, daqueles que garantem nas melhores condições a sua

sobrevivência individual. E quem o faz actuar assim são os próprios genes, de que ele é escravo, ele, organismo, simples via de passagem na sucessão das gerações. Para os sociobiologistas, todas as vezes que um animal está certo de que os filhos são seus, protege-os,

alimenta-os,

manifesta

um

interesse

extremamente acentuado pelas crias. De acordo com a teoria sociobiolo-

gica, tendo os filhos metade dos cromossomas paternos, haverá, assim, 363

FONSECA

SACARRÃO

215

DA

todo o interesse da parte dos progenitores em assegurar a propagação de genes que são, afinal, cópias dos seus genes. Entre os mamíferos, é as fêmeas que cabe a parte maior do trabalho na reprodução e nos cuidados com as crias, porque, na perspectiva sociobiológica, sendo interna a fecundação, o grau de certeza de que os filhos são delas é absoluto, enquanto nos machos do mesmo grupo isso já é muito relativo e incerto. A explicação

pelos

estende-se

filhos será basicamente

à espécie

a expressão

humana.

da

Assim,

tendência

o amor

biológica

de

garantir a passagem à geração seguinte dos genes que os pais possuem.

Mas este apego é egoísta. Todo o altruísmo é um Como

os

indivíduos

aparentados

têm

egoísmo mascarado.

forçosamente

alguns

genes

em

comum, o altruísta, ao sacrificar-se por um parente, está a concorrer para assegurar a propagação daqueles genes que compartilha com ele. E

em

quantos

mais

comum

parentes

forem

socorridos,

serão propagados. De modo

maior

número

que, como

de

mostrou

genes

William

D. Hamilton, o parentesco genético entre os indivíduos que interactuam

num grupo é um importante factor de evolução das adaptações sociais. Conforme à teoria sociobiológica, o altruísta reduz a sua aptidão genética, quer

dizer, a sua capacidade

(aptidão darwiniana), e aumenta, modo

a os genes idênticos

de sobrevivência

por exemplo,

aos seus que

e/ou

reprodução

a do seu irmão,

este tem

de

aumentarem

a sua

tado a preservação dos mesmos genes que existem no indivíduo

que se

representação na geração seguinte. À conduta altruísta tem por resul«sacrifica», conduta que revela um egoísmo fundamental, não da parte dos indivíduos, mas sim dos genes. O

altruísmo

esquema. Um

no

ser

humano

não

pode

explicar-se

à

luz

deste

dos argumentos consiste no facto de não haver relação

entre vínculos genéticos e vínculos de parentesco

nas sociedades

huma-

nas (v. Sahlins, 1977). Mas outras críticas sérias se podem fazer. Os indivíduos são compelidos pelos genes a maximizarem a sua «aptidão genética global». Mas para isso têm de reconhecer as relações genealógicas, é o seu saber secreto, conforme à teoria, saber que é selectivamente vantajoso !”. Ora como é que as pessoas se apercebem dos mais variados coeficientes de parentesco? Como é que indivíduos que ignoram fracções de parentesco ou que não sabem contar além de três (como em actuais populações primitivas de caçadores e recolectores, afirma Sahlins) poderão avaliar o grau de parentesco do indivíduo cujo comportamento observam e em relação ao qual determinarão o seu comportamento? Mas a ambição da sociobiologia visa mais longe, pois alimenta a aspiração absoluta de explicar todo o comportamento social não só dos animais, mas também do homem, Pretende pôr a nu as raízes da moral, a sua evolução, os porquês da conduta humana em todas as suas mani-

festações, toda a psicologia. Para a sociobiologia existe uma gene.

A força fundamental

da vida seria o impulso 364

moral do

dos genes para se

“rd

an

GERMANO

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —I

auto-reproduzirem e sobreviverem, estando os indivíduos ao serviço dessa exigência, como meros portadores e actores. Obriga cada animal e cada ser humano a dar a primazia à sua própria reprodução, a agir em obediência ao egoísmo dos seus genes, a servir-se da sociedade para satisfazer essa exigência fundamental, a utilizar os outros para reproduzir e expandir os seus genes. Egoismo sociobiológico que mais não seria do que o prolongamento do egoísmo biológico do darwinismo tradicional ou moderno. Na lógica da doutrina darwinista, e do seu prolongamento sociobiológico, a «luta pela existência» e o esforço para sobreviver num mundo de forças inimigas conduzem naturalmente à competição, à selecção dos mais aptos, ao interesse supremo do indivíduo em assegurar a sua própria existência, ao egoísmo como meio e finalidade de estar no mundo. W. D. Hamilton mostrou que o parentesco genético entre os indivíduos que interactuam num grupo é não só um importante factor de evolução das adaptações sociais como um determinante de modos de comportamento. Toda a complexa teia dos comportamentos humanos resultaria do mecanismo básico que consiste na tendência de cada indivíduo transmitir os seus melhores genes aos descendentes, aqueles que,

depois, maior continuidade e sobrevivência garantem a esses genes. Cada tipo de comportamento não visaria outro objectivo: ora sob a forma de «altruísmo», ora de «egoísmo», ora de «malevolência». Os não

genes

visam

Oo indivíduo;

pouco

este

conta.

genes

Os

«interes-

sam-se» apenas por si mesmos. Ora, havendo genes idênticos repartidos

por

indivíduos

(filhos,

parentes

etc.)

etc.,

primos,

sobrinhos,

o

seu

objectivo (desses genes) é assegurar o seu próprio sucesso por meio de comportamentos que: a) ou sacrificam o portador (altruísmo), e possibilitam o êxito dos mesmos genes (cópias) no beneficiário; b) ou asseguram a estes directamente a vitória (maior sobrevivência) à custa de perdas no adversário (egoísmo); c) ou então o portador não benefi-

cia, ou causa prejuízo a si próprio, para, com esse resultado, ser nocivo

a um competidor não aparentado, a fim de aumentar o potencial gené-

tico e a sobrevivência de um parente (malevolência). Haverá evolução quando a «aptidão total» dos genes aumenta. O egoísmo e a malevolência traduzem a «luta pela existência» darwiniana. E se considerarmos

os genes

e não

os indivíduos,

o altruísmo,

que

é uma

forma

disfarçada de egoísmo, será também incluído na luta pela existência, porque esta é, afinal (para a teoria sociobiológica), a luta dos genes pela sua própria existência. O leitor já reparou,

talvez, que

o abuso

da metáfora

atinge,

na

sociobiologia, um nível de grande exagero e nocividade. Podem os sociobiologistas advertir-nos, como fazem, de que a expressão «egoismo» é metafórica, que os animais não têm consciência desta conduta, e o mesmo

nos

contam

sobre

tantas

outras 365

expressões,

a

evidenciarem

GERMANO

descabelado nocivo

no

DA

antropocentrismo. abuso

de

metáforas

FONSECA

Estes (v.

SACARRÃO

avisos no

não

capítulo

evitam v,

o que

onde



discuto

de este

ponto). Por outro lado, não obstante as declarações feitas pelos autores, creio que a utilização das expressões «egoísmo», «altruísmo», «malevolência» e tantas outras que fazem parte do arsenal ideológico da sociobiologia,

traduzem

preconceitos

secretos,

nomeadamente

a tendên-

cia irresistível de projectar a sociedade humana na natureza viva, e que o homem teria recebido do animal, dos genes deles herdados, as bases psicológicas e morais do seu comportamento social, individual e colectivo. O «egoísmo» dos genes poderá ser uma metáfora no animal. Mas essa como que inocência do conceito (que os sociobiólogos nos asseguram que tem) perde-se quando o aplicam à esfera humana. Do automatismo predominante no animal passa-se para o nível do comportamento consciencializado

do ser humano,

identificando,

com

a transferência,

analogias e lógicas semelhanças superficiais. E assim a sociobiologia chega à conclusão que pretende: explicar o homem pelo animal e atribuir-lhe uma conduta social e uma moral recebida por herança evolu-

tiva

das outras

espécies.

E

tudo

ficaria unificado:

um

verdadeiro

egoísmo seria o motor da história biológica e social de todos os seres. Ora eu creio que as analogias são fraco argumento para suportar tão absoluta conclusão. A legitimação destas transposições faz-se conforme ao esquema explicativo darwiniano, mas com a sociobiologia foi-se mais longe: ultrapassou-se o nível das populações de indivíduos para se trans-

ferir a causalidade última para as populações de moléculas. Isto aconteceu quando ficou demonstrado que os genes são segmentos específicos da molécula do ADN. A selecção natural passou a actuar (consoante a nova concepção) em vários níveis, inclusive ao nível das acções moleculares. O indivíduo foi destronado da posição soberana que lhe conferia o darwinismo tradicional e moderno, ou seja, até ao princípio da década de 60 deste século. Pretendem os sociobiólogos que o individuo

é um mero transportador de genes, sendo ao nível destes últimos que a competição e a selecção adquirem todo o seu significado de processos fundamentais da evolução, significado que antes se ficava pela concorrência (e outras relações) e selecção entre os organismos individuais, À vida surge assim reduzida à variação

e à selecção dessas

moléculas

básicas que são os genes. No livro que publiquei em 1982 pus em evidência a fragilidade científica em que se baseia a sociobiologia

humana uma da

e as suas falsas conclusões como bases para a edificação de

consistente teoria da sociedade. Por outro lado, as generalizações sociobiologia

aplicadas

à construção

como todas as grandes abstracções: problemas

concretos

e escondem-nos

de uma

ideia

do

366

são

diluem a substância científica dos os

horizontes

imensos

ignorância. Além disso, identificam a realidades humanas cas observadas nos animais 2,

homem da

nossa

certas lógi-

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —1

É inegável o poder potencial da sociobiologia como ciência das sociedades animais e como teoria orientadora e estimuladora de investigações. Mas comete um grave abuso quando pretende, com bases teóricas

muito

discutíveis,

explicar

o comportamento

social

humano

e inclusivamente ambicionando substituir a sociobiologia e todas as ciências humanas. Isto, a que chamei «sociobiologia perversa», não é mais do que um biologismo enfatuado, que aspira ao monopólio da explicação do ser humano,

desde a origem do homem

e da sociabilidade,

da moral e dos valores, às complexidades do comportamento social, à estrutura da sociedade, abarcando a filosofia e a história, querendo ocupar o seu lugar. O reducionismo de que se alimenta é transportado a exageros incríveis, sendo de esperar que depois de todo este ardor entremos em fase de calma, e que do mesmo passo as críticas a que tem sido sujeita possam ser desapaixonadas, sem o ar polémico e por vezes irracional que tomam. A meu ver, a problemática da condição humana, relativamente à natureza viva, tem sido prejudicada pela intenção constante de interpretar o animal em termos de padrões humanos e depois o humano em termos de padrões animais.

Enquanto

não corrigirmos esta inclinação,

pouco se avançará com a filosofia da biologia na sua interpretação do homem. Uma ciência do homem será sempre uma ideologia, e toda a

biologia explicativa do ser humano acaba inevitavelmente por ser politizada.

Por

exemplo,

a sociobiologia

humana,

que

é um

renascer

do

darwinismo social, parece caucionar as ideologias que valorizam a lei do mais forte, considerando-a, portanto, natural e justa. Os intelectuais

assimilam e expandem com

elas

enormes

estas e outras ideias pseudocientíficas, criando

mistificações,

cujas

influências

sobre

os

tiranos

podem revelar-se trágicas. Adolfo Hitler, por exemplo, acreditava fanaticamente no determinismo biológico. É certo que o determinismo reducionista faz parte da busca científica, é um

instrumento

mas,

em

muda

introduzido

na

doutrina

de feição, torna-se

política

ou

ideologias

absoluto, falso e indigno.

Tem

de pesquisa; opressoras,

servido

para

nos mostra

caucionar genocídios e violências sobre os homens, como a história e o presente do racismo. Além de diversas críticas que se podem dirigir à sociobiologia (v. meu

1982), direi apenas aqui que a teoria me parece constituir o

resultado de um longo processo de desenvolvimento do darwinismo *. Com efeito, partindo o darwinismo das interacções organismo-ambiente e da dependência do primeiro relativamente às forças exteriores da natureza,

mensuráveis

e acessíveis à observação,

veio a terminar

numa

metafísica complicada onde as acções principais se passam no domínio do invisível, no mundo secreto das biomoléculas dos genes, às quais

se conferem propriedades misteriosas de competição e de ânsia de vitória nas suas corridas para o sucesso. Um tal reducionismo é pronta367

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

mente utilizado pelus ideologias fascistas e racistas. Traduz, a meu ver, uma mistura de materialismo c metafísica, onde os genes estão animados do uma força vital de natureza obscura, num regresso ao

vitalismo, que aliás nunca deixou de assediar de uma maneira ou outra a biologia, Até a moral dominante nas sociedades industriais, burguesas ou sociototalitárias, recebe ânimo da doutrina, porque a teoria

sociobiológica é fundamentalmente à

competição

entre

os

genes,

elitista, dirigida para

legitimando

a

concorrência

o êxito, para entre

indiví-

duos, entre as nações, entre as raças, entre as classes sociais, numa luta entre «fracos» e «fortes», onde, na óptica sociobiológica, será justo

que

vençam

os últimos.

Como se vê,o velho darwinismo paramentou-se

com

a

moral

do

gene.

social vestiu-se de pato bri Torna-se

indispensável,''como

acentuei em 4 Biologia do Egoísmo, denunciar o que existe de 'infun-= damentado, de falso e de reaccionário na pretensão de a'sociobiologia explicar o comportamento humano. O que em Darwin era oelitismo dos indivíduos passou agora a ser 0 elitismo dos genes, produto ide concorrência. Ora é inegável que o fascismo e o racismo'vêem' nestas proposições a razão «natural» das suas ideologias nefastas, “como E era o caso quando se apoiavam

no darwinismo

social.

DIO

Às teias de associações e relações com benefícios mútuos! que existem nos animais deu Trivers o nome de altruísmo recíproco: Significa que

o gesto altruísta

é rendoso

e que

o seu

autor

espera

(automatica-

mente ou não) uma eventual recompensa em futuro: mais'ou' menos imediato. Os indivíduos de uma população que estabelecem tais: laços de reciprocidade terão aumentado a sua «aptidão darwiniana». "Esta hipótese completa a hipótese hamiltoniana, visto que' o altruísmo reciproco se exerce entre indivíduos sem parentesco genético. Segundo: “Trivers, o altruísmo recíproco no ser humano é uma importante' componente do seu comportamento social. Nas sociedades' humanas, os laços de reciprocidade podem ser conscientes ou inconscientes, mas 'nos animais as associações e relações com benefícios mútuos: são' sobretudo acções automáticas. A extensão à espécie humana: é feita aqui sem qualquer limitação ou reserva. O egoísmo genético e individual toma 'nova

dimensão: ajudando os outros, o indivíduo ajuda-se:a'si próprio. E isto pode estar na origem de certas qualidades: humanas, como gratidão, amizade, rectidão, culpa, agressão moral, indignação, 'ete. Algumas destas disposições suscitariam reciprocidade, e com esta surgiriam' respostas

altruístas e honestas. O sentimento de culpa, por exemplo, seria favorecido (segundo Trivers)

pela selecção natural porque

conduziria

o intru-

jão, para compensar a acção delituosa, a mostrar-se pronto pará o futuro. Diversos biólogos deterministas consideram cia a existência de uma certa predisposição hereditária para pertencer a uma classe 368

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — I

social e para desempenhar certas funções. É o que também pensa E. O. Wilson, sendo essa ideia uma das bases da sociobiologia. Genes responsáveis pelo êxito poderiam concentrar-se nas classes socieconómicas mais

elevadas.

titividade,

Diferenças

separariam

hereditárias

grupos

sociais,

na

inteligência,

económicos,

culturais

na

compee outros.

O mesmo que dizer que o sucesso social pertence aos indivíduos que são portadores de genes para maior inteligência, para maior capacidade de trabalho, etc. 2. Claro está que os «melhores» indivíduos serão aqueles que mais contribuem para a vitalidade e progresso do sistema,

e isto tanto se aplica a uma classe, a um partido ou ao Estado. Como tenho sempre insistido, a base genética desta afirmação está por demonstrar, e tudo converge para concluirmos que ela é simplesmente falsa. As ideologias reaccionárias, as mesmas que proclamam e pretendem convencer que existem raças inteligentes e raças estúpidas, agarram com as duas mãos estas proposições pseudocientíficas. Diversos biólogos de reputação firmada exaltam todos os biologismos determinístico-reducionistas e manipuladores. Alguns não são sociobiólogos declarados, mas uns e outros apregoam o imperialismo dos genes. À biologia duvidosa e suspeita em que se baseiam não trava o seu entusiasmo e os seus excessos. Os genes, a força, a agressão e a sobrevivência são os pilares

reforçados e modernizados em que assenta o novo darwinismo social.

O determinismo biológico ou o determinismo histórico como crenças absolutas, sem aquele carácter dubitativo relativista e cauteloso que deve possuir a ciência, têm constituído perigosas ideologias. Os totalitarismos e terrorismos escondem ou justificam as suas patologias com

essas filosofias. E. O. Wilson afirma que as guerras actuam como forças selectoras e desenvolvem as melhores qualidades humanas. Macfarlane Burnet é um biólogo de grande prestígio (Prémio Nobel 1960), mas é mais extremista ainda do que Wilson. Na sua opinião, os comportamentos sociais e a moral têm causas estritas nos genes. Que é necessário, por isso, aplicar técnicas de intervenção nos seres humanos para os modificar no «bom» sentido. Esta obsessão de modificar o homem, reduzindo-o a rato de laboratório, que perpassa em diversos biólogos, não deixa de nos fazer lembrar as sinistras medidas racistas do nazismo. Todo este biologismo determinista é reaccionário e superlativamente ambicioso porque não se contenta em explicar o comportamento social do homem, a origem da sociedade e outras questões enormes. Vai mais longe: pretende ter posto a descoberto a origem e a natureza do bem e do mal, e julgando saber como modificar a natureza do homem,

preconiza

o

controlo

e

a

manipulação

científica

dos

seres

humanos, Nada lhe escapa. Assim se compreende a ligação de simpatia entre este novo biologismo determinístico e manipulador e os regimes Bibl. Univ.

49 — 24

369

| ei

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

de forças repressivas ilimitadas. Uma engenharia biológica como técnica de submissão e instrumento de poder não deixa de convir às ideologias totalitárias. É por isso que a ideologia sociobiológica tem sido contes-

tada e continuará a sê-lo enquanto considerada

à

luz

de

a humanidade

determinismos

do ser humano

reducionistas

ou

de

for

falsas

ou

abusivas analogias com o que se passa nos animais. A ideologia socio biológica e o criacionismo são dois movimentos

que envenenam

o clima

intelectual da sociedade moderna. 4.

Biologia

e moral

ou

a metafísica

da

desumanação

Toda a sociobiclogia contém um projecto de explicação (e de incorporação) da moral, do bem e do mal, do destino do homem, das regras e obrigações da conduta, das autojustificações, dos valores. Em A Moralidade do Gene E. O. Wilson lembra-nos que o sistema límbico-hipotalâmico é a fonte de todas as nossas emoções (de ódio, amor, culpa, medo, e outras) que invadem a consciência. Sistema que é um

produto de evolução por selecção natural, o que, segundo o mesmo autor, explica não só a ética como os próprios filósofos, a epistemologia e os epistemologistas seja a que nível for ?. Houve evolução do senso

moral, por selecção natural, quer dizer, se concebermos mente,

quando

certo grau,

dos

mesmo

primórdios

reduzido,

da

humanidade,

ou semiconfuso,

que original-

indivíduos

de senso

com

moral

um

tinham

mais probabilidades de se reproduzir do que outros destituídos dessa qualidade. Os indivíduos imorais não tentavam ajudar os seus parentes nem outros indivíduos fora do seu círculo de parentesco, e em consequência disso, eles também não recebiam auxílio dos outros, de modo que não se estabelecia reciprocidade. Importa, porém, notar que não há provas, nem mesmo consistentes indicações, de que a moral seja um

produto da selecção de genes de comportamentos

específicos *. O ho-

mem é um ser responsável, visto que faz escolhas e tem ideias sobre o que está ou considera, certo ou errado, bom ou mau. Mas na óptica sociobiológica, se a moral surgiu com genes que evolucionaram por selecção natural, se o comportamento humano é basicamente adaptativo e possui

a sua raiz em

genes

seleccionados

durante

milhões

de

anos,

então será forçoso concluir que haverá situações em que os individuos não são responsáveis pela sua conduta, pelas suas decisões, pondo-se assim de forma aguda o problema da responsabilidade moral se o indivíduo é de facto vítima dos seus genes, de cuja existência e consequências para si, ele, indivíduo, não é culpado. A moral para os sociobiólogos é então explicada pela selecção parental e pelo altruísmo recíproco num quadro darwiniano, ou seja, pelas vantagens selectivas que desses meca-

nismos resultam para o indivíduo e (o que é fundamental 370

para a teo-

BIOLOGIA

ria) para os genes. À moral sucesso

reprodutor,

e

E

SOCIEDADE —I

é um

meio de adaptação ao serviço do

comportamentos

imorais,

como

mentir,

fariam

parte do arsenal de condutas com as quais o homem asseguraria o seu ajustamento social e a transmissão dos seus melhores genes. A moral é, portanto, explicada em termos de vantagem selectiva para o indivíduo, para seu bem, e este é o seu sucesso reprodutor. Se a lógica da moral é essa, então não há diferença, neste aspecto, entre o homem e o animal; e a moral, no sentido autêntico do termo, não existe, nesse caso.

Naturalmente que um problema tão complexo como a origem e a evolução da moral não fica solucionado recorrendo tão-somente a esses mecanismos biologicamente «egoistas», problema que a sociobiologia, com as ideologias que veicula ou suscita, está longe de explicar. Confesso que sou muito céptico a respeito destas esquematizações e explicações simplistas. Penso que o senso moral é aprendido, como tudo o que faz a nossa humanidade, mas este facto, longe de simplificar

o problema, torna-o mais complicado, não porque a ética seja um produto exclusivo

da cultura, mas

exactamente

o contrário, porque

não é

só isso, porque há que reconhecer o facto extraordinário de o homem ser um animal biologicamente cultural no sentido que explanei nos caps. 1, Il e IV (v. também meu 1986). A capacidade de escolher e de formar padrões éticos só existe no ser humano, capacidade que é simultaneamente inata e aprendida, biológica e social, quero dizer que se prepara na ontogenia, mas só se realiza por aprendizagem, por socialização. Por isso, talvez se possa dizer que, em certo sentido, o homem é um ser biologicamente moral. É moral porque aprende a sê-lo; como fala porque aprende a falar; mas se na realidade tudo o que o faz humano

é aprendido, o que é essencial nesse processo será preparado na sua ontogenia. Como tenho insistido, separar o biológico do cultural ou social

só contribui para nos enredarmos na falsa questão de considerar o inato /adquirido como traduzindo entidades separadas a interagirem, de que se procuram

as contribuições relativas,

É legítimo ter fortes dúvidas acerca do êxito das tentativas de ver uma ética na evolução, que esta deva constituir uma ética humana, como pensou, por exemplo, George Simpson (1949). A ideia persiste

apesar de não ser nova. Com efeito, no século passado, Herbert Spencer esforçou-se em demonstrar estreitas ligações existentes entre evolução e ética, e, como referi em capítulo precedente, neste século os principais

defensores de uma ética evolucionista foram os biólogos Julian Huxley e C. H. Waddington, sem esquecermos Simpson, acima citado, que também

cria firmemente

poder extrair-se princípios morais

do estudo

da evolução da vida e do homem, do seu lugar na natureza, padrões de ética relativista 2, já que estava sujeita a modificações por escolhas humanas, ou por acção da própria evolução biológica do ser humano. 371

GERMANO

Continuando

o esforço

os sociobiólogos, com

DA

FONSECA

destes

SACARRÃO

e de outros

o seu reducionismo

biólogos

extremado

humanistas,

(avolumado

ainda

pelas contribuições científicas e metafísicas vindas da biologia molecular), vão muito mais longe e pretendem a «biologicização» completa das ciências humanas

e da filosofia. O filósofo nada

lucra

em

pensar

a sua filosofia porque tudo se passou, e passa, segundo uma mecânica de competição e selecção entre genes, e de sucesso reprodutor, que produziu a diversidade dos organismos, considerados como simples veículos para esses genes. Esta transposição do centro de interesse, do organismo para o gene, e a redução da filosofia, da psicologia e da sociologia a um determinismo biológico, com base no gene e no neurónio, e nos mecanismos

cerebrais de controlo automático,

parecem-me

constituir o núcleo desta metafísica biológica. A biologia tudo explicaria, tudo caberia nela, e os humanistas

e filósofos

devem

ceder-lhe o

lugar. É Wilson que o diz: [...] the time has come for ethics to be removed tem rarily from the hands of the philosophers and biologicized.

(1975, p. 563.) Importa, porém, salientar que a evolução não pode constituir em si mesma um guia ético. Nem nos evidencia o que é «bom» nem o que é «mau». O homem é que inventou a moral (a partir de capacidade evolvida) e a projecta na natureza viva. Além disso, à luz da lógica sociobiológica (que seria a tradução da lógica da natureza viva), proteger os fracos, os incapacitados, pode ser «mau» para a evolução da espécie, podendo afirmar-se que a reza viva tem consistido, quase sempre, lizar ou desviar o curso da evolução resses e valores (bons ou maus), mas

uma

moral baseada numa

da evolução

acção do homem sobre a natuem impedir, dificultar, neutrabiológica, de acordo com intesem nunca com isso estabelecer

suposta ética da evolução. Por outro lado,

têm-se retirado princípios

normativos

perfeitamente

con-

traditórios. Uns vêem na evolução competição e progresso, outros a expressão de vontade divina, outros direcção para altruísmo e solidariedade, outros ainda simples mudanças sem sentido. Para Kropotkine

(1914), a natureza selvagem evidencia entreajuda, raramente luta pela

existência, mas para Hitler a natureza

reflecte a natureza

suas leis de desigualdade, hierarquia, de subordinação superior (v. nota 14 a este capítulo). As

verdadeiras

teorias que volvimento

causas

da

moral

mas

e as

do inferior ao não

adiro

a

se propõem explicar (como processo exclusivo) o desendo senso moral pela mecânica selectiva a actuar sobre 372

R

escapam-nos,

bruta

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —I

os genes. À capacidade para o homem formar padrões morais é, repito, preparada na sua ontogenia, e nada sabemos da complexíssima e longa duração da evolução da ontogenia humana %, Penso que a formação de uma consciência de si foi o acontecimento fundamental da história evolutiva da humanidade, evento que,

provavelmente, das

condições

a fazer

estará da

escolhas,

na origem

sua

do senso moral, talvez como uma

formação,

a tomar

A

decisões,

autoconsciência

levou

o homem

e, portanto, a ter a noção clara da

própria responsabilidade. O declínio dos automatismos iínatos da conduta, que acompanhou a transição da fase infra-humana para a fase humana, deve ter possibilitado o aparecimento da cultura como o grande meio de adaptação à realidade e de acção sobre ela. Perante a abdicação de genes e mecanismos que, como acontece nos animais, controlavam a conduta social e a adaptação, logo surgiu no trânsito

animal > homem

a premente necessidade de estabelecer normas, proí-

bições, crenças, processos sem os quais não era possível qualquer forma

de sociedade mesmo gadas,

são

elementar. Cultura e ética estão intimamente Ji-

expressões

de uma

mesma

interacção

homem /mundo,

for-

mas de ajustamento e mudança pela coevolução de ambas, desdobramentos de uma consciência de si. À consciência da própria fragilidade, o saber-se mortal, levaria à elaboração de conceitos sobre o que é bom e mau,

certo e errado.

Em

diversos

numerosas

vezes

aspectos, a moralidade implica altruísmo e opõe-se ao egoísmo, mas importa notar que os conceitos socio-

biológicos de «egoísmo» e «altruísmo» não têm equivalência na esfera humana, nem o seu conteúdo é o mesmo que correntemente possuem. Identificá-los é criar enorme e perigosa confusão. Com efeito, as expressões «egoísmo» e «altruísmo» só têm sentido moral quando traduzem intencionalidade, representação consciente. Ora não parece que uma formiga ou um peixe, ou mesmo um mamífero, mesmo um primata não humano, tenham a percepção consciente e controlada de valores morais e das respectivas escolhas; pelo menos procedem como se não a tivessem, quando muito os primatas a nós mais chegados terão, talvez, de certa maneira,

um

senso rudimentaríssimo, ou quase

só instintual de valores, mas não qualquer sentido de procura e comunicação

do

que

poderiam

considerar

ser a verdade,

como

acontece

no

ser humano, que criou um universo complicado de símbolos e valores, que é quase todo o seu mundo, sendo através deles que vê e tenta compreender o mundo, valores que implicam o formar de ideias sobre o que está certo ou errado, assim como de responsabilidade consciente pelas decisões tomadas. Na realidade, o conceito de moralidade está ligado a um estado intencional de quem pratica um acto moral. Mas há quem opine que a biologia não trata de intencionalidades, mas apenas das expressões 373

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

e consequências do comportamento (behavioristas, por exemplo). Ela, portanto, poderá classificar como «morais» múltiplas condutas atendendo apenas aos seus resultados e ignorando totalmente os seus aspectos

intencionais,

mas

nesse

caso

essa

ideia

de

«moral»

não

tem

nada a ver com a moral na sua expressão habitual, É o que acontece com as utilizações sociobiológicas dos termos «egoísmo» e «altruísmo» nos animais, de facto geradores de grande confusão, que em nada ajudam à compreensão da moralidade como fenómeno biológico. Como justamente escreveu G. S. Stent: In ordinary parlance, altruism (having the moral value good) refers to regard by one person for the interests of other persons. And selfishness (having the moral value bad)

refers

to disregard

however,

considers

of the altruism

interests

of

as behavior

others. that

Dawkins,

increases

the

welfare (meaning chances for survival) of someone else to the detriment of the agent's own welfare. And selfishness is behavior that has the opposite consequences. But the altruistic or selfish nature of an act bears no direct, or simple

relation, to its actual consequences. Hence Dawkins”

notions

of altruism and selfishness lie outside the domain of moral discourse.

Konrad

Lorenz

(1978, p. 17.)

e outros autores não negam

intencionalidade

com-

portamental a animais, sobretudo vertebrados, antropomorfismo acentuado principalmente em obras de popularização científica, mas neste caso as dificuldades em determinar uma biologia da moral não me parecem menores. O que parece incontestável é que o conceito socio-

biológico de moral é não só extremamente limitado como não traduz as complexidades do conceito corrente. Seja o que for a que chamemos egoísmo ou altruísmo, tem de haver neles um elemento consciente, análogo na sua natureza e nos seus propósitos ao que se passa no homem, isto para que tenha fundamento

legítimo, e sentido, o seu emprego.

Caso

contrário,

esses

con-

ceitos não traduzirão nada que possamos reconhecer como altruísmo, e muito menos como moral. O perigo dessas metáforas é o de estabefalsas

analogias,

como

é

particularmente

vincado

no

trecho asia

374

visor,

[...] there is a dangerous tendency to slip from the artificial term to the ordinary term, thus moving from

Hi beveçim Ademir eta 0 AS ir

lecer

seguinte:

BIOLOGIA

E

«altruism», meaning at the expense of

SOCIEDADE —

simply «to another's genetic advantage one's own», to «altruism» — proper,

meaning «with regard to another's interests». «Regard» is obviously a mentalistic or intentional term. (Is is important to add that regard requires concern, not just attention.) Thus, when Dawkins (1976) ascribes the property of «altruism» not only to animals but to genes, he should be committed to using only the artificial term, but he slips from one to the other, at a cost of considerable confusion.

notion one's

of

«selfishness»

own

interests»,

means and

«with

must

not

Similarly, the

prominent be

confused

regard with

to any

stipulated homonym which means, simply, «self-benefiting». The word «prominent» here can be disputed, but «sole regard» seems too strong and simply «regard» much too weak. It was argued in our group that altruistic acts do not have to be self-sacrificing, and so selfish acts do not have to be damaging to others. Since «altruism» and «selfishness» are polar (but not exhaustive) concepts, it was questioned whether it makes sense to apply one if the other could not be applied. (Solomon e outros, 1978, p. 297.)

Creio

que o conceito

de moralidade, na sua aplicação habitual,

deverá excluir os animais, porque esse conceito implica escolhas e propósitos autoconscientes, pensar crítico, sentido de valores, consciência

de si, princípios universais, ainda que deva reconhecer-se que há autores que o atribuem aos animais sub-humanos, porque pensam que a moralidade implica fellow-feeling. Em qualquer caso, a sua discussão levanta diversas dificuldades, e decerto há que admitir que uma explicação biológica de toda a moral humana, ou mesmo dos seus aspectos mesmo

mais

significativos,

impraticável,

e que

é actualmente o que

muito

E. O. Wilson

deficiente,

se

não

e outros sociobiólogos

sugerem é não só falso como perigoso em vários dos seus prolongamentos ideológicos. É presunção substituir a filosofia, a antropologia e a psicossociologia pela biologia. Não são simples imperativos evolutivos que determinam as complexidades do comportamento social humano, nem este é condicionado por predisposições inatas com base em

genes

específicos.

É

certo,

porém,

que

existem

pontos

de contacto

entre biologia e ética, que terão de ser examinados pondo em evidência os possíveis nexos e influências recíprocas. Mas as ciências são incapazes de fornecer objectivos morais. Não é na natureza, ou na evolução

da vida, que encontraremos

as fontes da moral.

375

GERMANO

DA

FONSECA

SACARRÃO

x

A integração da biologia molecular na sociobiologia originou

uma

nova visão da natureza viva e do homem. A interpretação da organização e comportamento dos seres vivos é feita com a selecção natural, agente soberano da criatividade biológica, e por intermédio da estrutura e função das moléculas que os constituem. É esta a biologia moderna. A biologia é reduzida às leis da física e da química moleculares, a cultura e a moral à biologia, o comportamento individual e colectivo aos genes, o organismo ao «programa» genético, a evolução a erros de cópia do ADN, a inteligência ao neurónio, aos genes e outras

biomoléculas nele contidas. O espírito é reduzido à matéria, e o sucesso reprodutor constitui o significado e a função suprema da vida 7. Tudo é reduzido e explicado pelas funções e estruturas das biomoléculas. À reprodução do «programa» genético é considerada como causa e objectivo da vida em geral, sendo igualmente causa e destino do homem e da própria ética. Grande parte do significado da biologia moderna

reside nesta metafísica de desumanação.

376

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE —1

NOTAS

1 Cit. Gould (1980): 68. 2 V. meu 1985. 3 V.ocap. ve a nota 16 ao cap. VII. 4 Em certo sentido poderá dizer-se que Malthus foi revivificado e modernizado, quer dizer, introduzido na temática evolucionista. S Mesmo as grandes extinções de espécies não devem ter resultado de fenómenos de competição, processo que provavelmente não terá tido uma importância fundamen-

tal no desaparecimento

das floras e das faunas, este provocado possivelmente

por

causas extraterrestres, como colisões de asteróides e/ou grandes e profundas alterações climáticas, etc. Como causas de evolução, talvez venha a reconhecer-se que as extinções são mais importantes do que a competição, apesar dos nexos que existem entre os dois fenómenos. 6 Nos últimos anos tem-se vindo a reconhecer, pela observação dos animais no seu ambiente natural, que o comportamento de entreajuda é muito mais corrente do

que se pensava, e não me surpreenderia se dentro de alguns anos os fenómenos de simples cooperação e de mutualismo tomassem uma importância fundamental em biologia

evolutiva, no

vasto

quadro

dos processos

de co-evolução,

e muito

mais do

que a competição (v. meu 1983, Weiner, 1986). E até porque novas perspectivas sociais poderão favorecer uma tal modificação do panorama ecológico-evolutivo. É frequente, com efeito, o costume de se escolherem factos ou teorias que favoreçam certos preconceitos ou ideologias e depois

provas acontece

conclusivas com

ou

em

argumentos

a sociobiologia humana.

arvoram-se

determinantes Foi o que

esses factos ou explicações em

de

aconteceu

generalizações. com

É o que

a série de artigos

escritos por Kropotkin (reunidos no livro Mutual Aid, 1914), para quem, apoiando-se nos exemplos que escolheu, só haveria cooperação na natureza viva e muito poucas indicações de luta pela existência (Bowler, 1984). Se fosse outra a sua ideologia, provavelmente os exemplos que escolheria ou os factos que o impressionariam seriam

outros, e a sua visão da natureza humana seria diferente, ou como ponto de partida para as suas opções, ou como resultante delas. 7 É possível que exista algum fundamento ideológico na tendência de considerar modernamente a ecologia e a evolução em termos de equilíbrio, estabilidade dinâmica, optimização. Há competição, extinções de espécies, mas globalmente considera-se haver um equilíbrio e uma adaptação perfeita nos organismos, um e outra que, se não são as melhores situações concebíveis, estão, porém, vizinhas do óptimo,

apenas sendo necessário não deixar corromper

espécies se adaptaram

com impecabilidade.

Umas

ou destruir o ambiente

ao qual as

espécies extinguem-se, atrasaram-se

nesse esforço de optimização de equilíbrio organismo/ambiente (tal como acontece às empresas), mas o sistema biológico de equilíbrio dinâmico tende a estabilizar-se (tal como permanece e se auto-regula o sistema político burguês moderno e suas políticas de equilíbrios, consensos, estabilidades e coisas do género). A política econômica e social para muitos socialistas actuais baseia-se nas exigências de estabilidade e segurança das classes médias e na transformação revolucionária (mais ou menos rápida)

da sociedade O fim do capitalismo fica para um futuro longínquo. Entretanto, advoga-se a coexistência equilibrada dos dois sistemas e suas variantes. As mutações

ideológicas dependem obviamente de interacções muito complexas das tecnologias, da economia e das crises e transformações que operam na sociedade. E da ciência, que as

377

GERMANO reflecte e que as moderna economia

DA

FONSECA

SACARRÃO

influencia. Para alguns autores, a biologia liberal reflectiria a capitalista, sendo a actual sociedade de mercado a organização

mais racional possível, com equilíbrio das classes sociais, sendo as modificações a introduzir apenas orientadas pelas exigências de não deixar degradar o ambiente natural e os seus recursos (v. Levins e Lewontin, 1985). Acrescente-se ainda que «ambiente natural» e «equilíbrio natural» são noções equívocas utilizadas frequentemente e sem as necessárias reservas por popularizadores e ecopolíticos (v. meu

1982, p. 36).

8 Na América,

muitos dos grandes magnatas da finança e da indústria abraça-

ram o darwinismo grosseiro veiculado pelas ideias de Herbert Spencer. A competição, a livre iniciativa, a selecção dos mais aptos, seriam leis naturais implacáveis, de modo que os milionários também seriam um produto da grande lei natural, que diz que

é o mais capaz que deve sobreviver. Assim pensava o sociólogo William Sumner, de Yale («millionaires are the product of natural selection»). Nesta linha de ideias, o progresso só pode resultar de competição, se os indivíduos actuarem livremente, se o Estado não exercer sobre eles qualquer forma de coacção ou de regulamentação. Ora esta doutrina era sumamente agradável aos gigantes da finança e da indústria, sobretudo

americanos.

Para John

D. Rockefeller,

os negócios e seus proventos faziam

parte da grande lei da natureza e de Deus, lei que para ele era a da selecção dos mais capazes. À energia e o progresso dos Estados Unidos da América do Norte, assim como o espírito empreendedor e criativo dos seus habitantes, seriam o resul tado de selecção natural, porque, sendo um povo de imigrantes europeus, só os mais capazes e resistentes se teriam lá fixado e prosperado. Este suporte ao capitalismo não foi tão nefasto, talvez, como a legitimação que o darwinismo social deu às práticas eugenistas, ao «apuramento» racial e principalmente ao nazismo. Um dos aspectos mais estranhos das repercussões sociais do darwinismo vulgar é, de facto, a sua

permanente perversão em múltiplas direcções, opostas tantas vezes, legitimando crenças políticas e filosofias inversas, uma circunstância a que há anos fiz referência (v. prefácio de meu 1977). Veja-se Hofstadter (1944) e Clark (1988) para a França.

? As sociedades impiedosas, como as dos começos do industrialismo, ou naquelas onde dominam políticas de opressão e de apertado controlo dos cidadãos, necessitam de legitimações «científicas» ou religiosas para durarem. Para alguns aspectos modernos do darwinismo social, v. também, Montagu (1976), Stine (1977), Sacarrão (1982), Bowler (1984), Lewontin et al. (1984). 10 Tal como acontece com a evolução como processo, também se faz o darwinismo científico, e sobretudo o darwinismo

social, dizer o que se quiser, servindo para

legitimar posições políticas manifestamente opostas. Se Marx reconhece o que deve à teoria da selecção natural na sua aplicação justificativa à luta de classes, também € certo que teóricos do fascismo se aproveitaram do darwinismo para caucionar o seu ideário. E mesmo se Darwin nunca aderiu ao darwinismo social não é menos verdade que pensou haver «raças inferiores», lamentando que a civilização eliminasse a acção depuradora da selecção natural. Liberalismo e socialismo, ambos adoptaram a teoria da selecção natural para os seus princípios ideológicos (v. Bowler, 1984). Para o primeiro.

a chave do progresso é a competição individual, a sobrevivência dos mais aptos, emquanto para o segundo é a sobrevivência da classe historicamente mais capaz de assegurar o bem-estar

da humanidade.

Mas

as origens

ideológicas

nunca

são tão simples.

Por exemplo, as raízes ideológicas do spencerismo e do nazismo vêm, em parte, de uma combinação de darwinismo social com lamarckismo, mas com resultados muito diversos em cada caso, porque outras influências fortes (históricas, culturais, ete.) entram em jogo, no segundo movimento havendo que contar com uma ideologia germânica especifica, onde se filiam conceitos de raça «superior» com a filosofia hegeliana do Estado,

da subordinação

total do indivíduo a ele, do grande chefe que o simboliza e que

lhe assegura o destino transcendente, etc. Áliás, a combinação darwinismo /lamarckismo foi múltiplas vezes adoptada para fins diversos no liberalismo, no socialismo, 378

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — 1

no nazismo e outros fascismos. Por exemplo, a concepção idealista de Estado, tão extremada nos socialismos e nos fascismos, conduziu à ideia de que o Estado tem

não só o direito, como o dever, de limitar a multiplicação de cidadãos menos capazes

(v. o cap. XII). NH Este ponto de vista é discutível, O racismo tem múltiplas causas, residindo algumas das mais importantes na própria história económica e cultural de uma nação e nas relações de classe e de modos de produção que nela se processam, A acção dos cientistas e de outros intelectuais, por muito peso que possa ter, é provavelmente mais o reflexo de factores sociológicos do que causa, seja a favor, seja contra o

racismo. 2 O escravismo é muito mais antigo do que o racismo, mas os dois movimentos andam por vezes ligados, remontando as origens da conexão pelo menos à descoberta da América, ainda que só mais tarde é que o racismo, ligado à biologia e inspirado por ela, tenha surgido como doutrina racionalizada (v. o cap. X). i3 Um dos legitimadores do racismo moderno. Falso conde, mas grande romântico, Gobineau é sobretudo conhecido pelo infeliz «Ensaio» racista e não pela sua obra literária, onde haveria obras-primas pela qualidade do estilo, na opinião de Angelo

Rinaldi (L'Express, 24-12-1982). 14 Hitler acreditava absolutamente no determinismo biológico, que resultava num biologismo grosseiro e místico, aliás simples prolongamento do darwinismo social gerânico,

com

raízes

em

Ernst

Haeckel,

e considerado

como

cientificamente

verdadeiro pela maioria dos Alemães, incluindo numerosos cientistas (Stein, 1987). Era uma crença miístico-biológica na desigualdade racial, na eterna luta pela sobrevivência do mais forte como a grande lei da natureza, com a legitimidade decorrente

o Estado efectuar uma política baseada na selecção natural e na força física. No seu livro Mein Kampjf, Hitler discute as relações entre a política e a selecção natural, como base para o êxito da política alemã, especialmente nos aspectos demográficos mas suas relações com a escassez generalizada dos recursos naturais e o controlo da procriação pela eliminação a que a natureza submete os menos capazes, as raças mais

fracas, etc. Era isto a «biopolítica» do nacional-socialismo, a essência do nazismo. Para o autor referido, Hitler não inventou a sua biopolítica porque a sociedade alemã estava impregnada dela: «almost every element of Nazi biopolicy was already well established in the German political culture in both a vulgar, man-in-the street sense and, more importantly, among the educated elite who took their views from the representative science of the day» (Stein, p. 253). A ideologia burguesa liberal procurava no darwinismo social uma justificação, uma legitimidade, enquanto na Alemanha constituía o mesmo darwinismo pervertido parte da essência fanática do nazismo, que dele se apropriou como se fosse a verdadeira ciência biológica a indicar o caminho certo à política. Por razões históricas, políticas e outras, o darwinismo vulgar teve diferentes utilizações e desenvolvimentos

nos países anglo-saxónicos e na Alemanha, mas os cientistas e as suas ideologias estão também envolvidos nas biopolíticas e bioéticas respectivas, 15 V. também Thuillier (1981 b). 16 Lorenz continuou sempre a pensar que se deve ser mais darwinista do que o foi Darwin, o que traduz e pode em parte explicar a sua ideologia persistente. Não é que seja condenável um cientista olhar o mundo consoante as suas crenças e a sua política, a sua noção dos valores, Todos o fazem, como acontece com qualquer indiví-

duo. Mas o criticável e perigoso é arvorar especulações sem substância em resultados supostamente

comprovados,

com

indiferença

pelas

consequências

sociais e culturais

daí resultantes. Por exemplo, é falso afirmar que um dado comportamento humano, por ser adaptativo, terá certamente uma base genótica específica e que foi o resultado directo da selecção natural, com descrição dos passos do processo, num historiar puramente fantasioso, mas na aparência lógico, O perigo das generalizações vagas é uma característica daqueles cientistas e/ou popularizadores de ciência que reconheci379

GERMANO damente, ciosas

ou

e sem

não, introduzem substância.

dos sociobiólogos, com

DA

FONSECA

política nessas

É o que

fazem,

por

SACARRÃO

suas

conclusões

exemplo,

a sua visão animalesca

especulativas,

Lorenz

e reducionista

e

do

similares

homem

tendene

tantos

e da socie-

dade

humana. 17 Biologicamente, os homens não são desiguais, mas sim diferentes, ainda que (como anotei noutro passo) as diferenças propriamente biológicas sejam mínimas e superficiais relativamente às semelhanças e às mesmas potencialidades profundas

que existem em todos os homens a

diferente

robustez

física

entre

(v. o capítulo x). É possível que no caso dos sexos o homem

e a mulher

tenha

algo

a

ver

com

as

desigualdades sociais respectivas, reforçando ou caucionando uma situação que direetamente não depende da biologia.

18 Evolucionismo

optimista provavelmente

relacionado

com

a reconstrução

do

após-guerra e com a derrota dos fascismos ('v. o cap. IL). I9 Em diversos animais parece verificar-se uma certa capacidade de reconhecimento dos indivíduos parentes (irmãos, etc.), que seria de origem genética. Mas não há ainda conclusões seguras a este respeito porque seria necessário demonstrar que não se trata de um reconhecimento devido a familiaridade (entreajuda motivada por criação conjunta). Provavelmente, parentesco e familiaridade actuam em conjunto [v., por exemplo, Hopkins (1983), Blaustein e O'Hara (1986)]. 27 A sociedade industrial moderna manipula, divide, substitui, reduz, indo cada

vez mais fundo na análise e na utilização das coisas e dos seres, e a sociobiologia reflecte-o, tal como o darwinismo tradicional reflectia a sociedade industrial do seu tempo. Ás reciprocidades, os nexos, as relações das partes, as co-evoluções, são, em regra, estranhas às interpretações sociobiológicas e ao seu extremado determinismo reducionista. 2 Além do meu livro (1982), v., por exemplo, Ruse (1979), Thuillier (1981), Lewontin et al. (1984), Kay (1986), todos com diversa bibliografia. Para certas

implicações de ordem política da sociobiologia e uma certa defesa da teoria (que não seria reaccionária), v., por exemplo, Masters (1982). Também poderá consultar-se Freedman (1979) para certos aspectos de crítica à sociobiologia, ainda que numa perspectiva de fenómenos de grupo, e que o autor aplique e desenvolva argumentos

sociobiológicos aplicados ao homem. Para problemas específicos no âmbito da sociobiologia e à luz dos seus princípios básicos, pode, também, consultar-se (vários artigos) Current Problems in Sociobiology (1982). Ver também Tort e outros (1985). 2 Existe um certo simplismo na ideia sociobiológica (e não só) de que o processo de culturização e o comportamento social humano estão codificados nos genes. A meu

ver, tudo conduz, porém, a concluir que hereditariedade

e ambiente

actuam

indissociavelmente, que a ontogenia humana é uma sucessão em extremo complexa de íntimas interacções de genes e ambientes variadíssimos. As diferenças culturais não são provavelmente causadas por diferenças genéticas sujeitas aos imperativos da selecção natural, como pretendem, por exemplo, Lumsden e Wilson (1981). Nenhum comportamento social do homem parece estar na dependência directa de um gene específico ou de um grupo determinado de genes. Até ao presente, tal facto ainda não foi demonstrado, nem ninguém ainda sugeriu qualquer metodologia experimental para o fazer. Os indivíduos mudam tão radicalmente o seu comportamento quando passam de umas para outras sociedades que a concepção de que a conduta social é geneticamente dirigida, de forma acentuada, é provavelmente falsa. Como não existem provas decisivas de ordem

experimental,

a seu favor, tudo o que se disser

tda 6º ca à 1 REA e tt a

380

ia

de genes e ambiente parece-me corresponder mais às complexidades evidenciadas, sobretudo ao conceito que aponta para o facto de o homem ser um animal biologica-

ride

parte devida aos genes da que é devida ao ambiente, nenhum destes factores sendo por si só determinante seja do que for no ser humano. À ideia da indissociabilidade

a

a partir dessa base inconsistente é pura especulação «Lewontin et al., 1984). Para mais, não é possível separar num indivíduo, ou em cada um dos seus caracteres, a

BIOLOGIA

E

SOCIEDADE — 1

mente cultural, no sentido que explanei no cap. 1 (v. meus Lewin 1981, e Médioni e Vaysse, 1984).

23 Para

os sociobiólogos, os padrões

éticos provêm

1986

e 1987, e também

directamente

da evolução

biológica, da selecção natural que fez o que é o nosso sistema nervoso, o nosso cérebro,

as

nossas

glândulas,

as

nossas

hormonas,

que

por

sua

vez

determinariam

os

nossos sentimentos e emoções, as quais nos indicam o que é bom e o que é mau, Para o filósofo Peter Singer (1981), a sociobiologia fornece as bases para uma nova explicação da ética, mas pensa que é necessário ir mais longe, ultrapassar as motiva-

ções

biológicas

natureza

de

de base,

seres

Para

sociais

ele, os princípios

dotados

de

razão,

éticos emanam

e não



dos

da nossa

determinantes

própria biológicos

proclamados pela sociobiologia. Quer dizer, a razão a compelir os homens a tomar decisões contra o «interesse» dos seus próprios genes, contra as forças da evolução, sem consideração das consequências que essas decisões provocam. Ou seja, contrariando os princípios sociobiológicos. À meu ver, o autor mencionado, ao apoiar o seu ponto de vista na sociobiologia humana, adoptou também as inconsistências e fragilidades desta última. 24 Para E. O. Wilson, a moral tem um significado apenas biológico, sendo a conduta moral aquela que garante a sobrevivência, selecção e transmissão aos des-

cendentes das porções de ADN

que constituem os genes humanos.

Z Pode argumentar-se, como já tem sido feito, que é um mal o relativismo moral, o facto de os conceitos de bem e de mal serem uma questão de opinião, de escolhas realizadas. Mas uma moral de princípios absolutos pode também ser um mal,

não tendo conta as perversões e os crimes que têm sido praticados em nome

quer

da virtude, quer do dever ou da felicidade como fins supremos para o destino do homem, abstracções imensas e fanatizáveis, susceptíveis de múltiplos sentidos e definições. Bertrand Russel (1956) está em certo sentido, a meu ver, na boa razão

quando advoga que os «valores» — quer dizer, o que se considera bom ou mau por si mesmo, independentemente dos seus efeitos— se encontram fora do dominio da ciência,

«[...]

inteiramente

fora

do domínio

do conhecimento

[...]

da decisão

inte-

lectual [...] fora do reino da verdade e da falsidade». Razão em certa medida, porque

as suas afirmações pressupõem a pureza do conhecimento científico, o que, como tenho acentuado, é provavelmente falso. Existe uma complexíssima relação entre os domínios emocional e intelectual, ideológico e científico, e deste com o social e o histórico, todos a influenciarem-se reciprocamente, pelo que não me parece realista separar ética

de ciência, não como processos de fazer e actuar, mas como entidades absolutas, a subjectividade da primeira a opor-se à objectividade da segunda, sem mútuas interferências. A ciência não tem qualquer direito em matéria de ética. Os factos, os fenómenos, os métodos, são uma coisa, as normas de conduta outra. Isto é certo, mas

também

é uma

realidade

que

a prática

e as teorias

científicas

levantam

cons-

tantemente questões éticas e políticas, as quais andam misturadas e relacionadas em maior ou menor grau com a ciência, com a sua actividade, com as suas instituições e com os seus objectivos.

ET

a

26 Há quem pense que a selecção natural teria actuado a favor de seres infra“humanos e humanos primitivos mais solidários, pacíficos e cooperantes e contra os indivíduos isolados, fortes, egoístas, cruéis e violentos. A vantagem selectiva adviria

para os primeiros, para os que se entreajudavam e não para os segundos. Formar-se“iam grupos, a evolução genética trabalhada pela selecção conduziria ao desenvolvimento de simpatia e amizade intragrupal e de hostilidade intergrupos, origem remota do racismo (v. Reynolds et al., 1987). A verdade é que cada autor tira do conceito de selecção

natural

o que

melhor

convém

à sua

ideologia,

ou o que

mais

se harmo-

niza com ela, a especulação é livre, já que tudo se ignora acerca da evolução psicoló-

gica do homem

e da origem do senso moral. Se a selecção natural actuou durante

milhões de anos sobre a nossa evolução, uma diu o homem

de se transmutar

num

conclusão a extrair é que ela não impe-

ser simultaneamente

e violento, obrigado a tudo aprender de «bom» 381

egoísta e altruísta, pacífico

e de «mau»

para se tornar humano,

GERMANO com

uma

processo Poderão

biologia

toda

DA

preparada

FONSECA para

isso.

SACARRÃO

Mas

então

poder-se-á

perguntar:

no

seleccionou-se o quê? À autoconsciência? A liberdade? E porquê? E como? ensaiar-se várias respostas, mas nelas haverá tantos ses que a especulação

se torna gratuita. Será que neste aspecto da evolução do psiquismo superior do homem e do seu comportamento social a teoria da selecção natural, por tudo explicar, acaba por não explicar nada? Por meu lado, inclino-me a pensar que egoísmo e brutalidade primitiva como traços dominantes nos primeiros homens é história inventada. Os

que

acreditam

à sociobiologia

na

existência

de

um

núcleo

vulgar, às suas explicações

para inventar histórias,

tendo

como

de maldade

no

ser humano

aderem

simplistas e universais, à sua capacidade

principais ou mesmo

únicos protagonistas o gene

e a selecção natural.

27 V. Kay (1986). Por esta metafísica poderá dizer-se que o programa genético

a nas Ta

o

cs em

faco

acciona o cérebro humano a cumprir (pelos caminhos mais diversos) o destino de reproduzir e transmitir o ADN dos genes, orientado pela selecção natural, A fonte básica de toda a moral estaria aí, nesse imperativo biológico universal, a que o homem não escaparia.

EM A

PE

332

VOLUME

II

O próximo volume de Biologia e Sociedade terminado constará dos seguintes capítulos: Capítulo

O Homem

Inde-

1x — Agressividade e violência. 1.

Múltiplos

sentidos.

2.

O

de

modo

ser

fume

emergência

animal:

a

origem

do

processo

de

ingestão

e

e da

noção

da agressividade.

3. 4.

Ontogenia, constituição hereditária e agressividade. Instintos e flexibilidade do comportamento.

5. 6.

Instintos e agressividade. O homem com psicologia

7.

Instintivistas e ambientalistas.

8. 9.

Aspectos políticos da Violência e guerra.

0.

Complementos

de carnivoro?

controvérsia

inato/adquirido.

e remates.

Notas

Capítulo x — Raça

e racismo ou o desprezo pelo outro. diversidade humana e os artifícios das taxonomias de raça.

1.

A

2.

A geografia e o clima na diversidade.

3.

O racismo e a falsa referência a) Darwin e o racismo.

b) Cruzamentos c)

Diferenças

à biologia.

inter-raciais.

mentais.

d) Raça e racismo. e) O problema das origens dos racismos. f)

O apelo de Atenas

e outras declarações.

Notas Capítulo

x1 — Biologia social e o mito do super-homem. 1. A biologia como técnica de manipulação da natureza e do homem. a) As duas dimensões. b) Engenharia genética e bioindustrialização. c) Biotécnicas aplicadas às plantas e aos animais. d) Algumas biotécnitas aplicáveis ao ser humano.

2.

3. 4. 5.

Herança a) b) c)

biológica. e sociedade. Os genes e as taras. Francis Galton e a eugenia. Genes, inteligência e sociedade.

d) Neoeugenismo e racismo, A metafísica do embrião humano. As biotécnicas e a moral, Proteger-se o homem.

Notas

Capítulo

xr — Que

é o homem?

1.

A problemática da essencialidade humana — Uma avaliação.

2. 3.

Do advento da autoconsciência. O preconceito sociobiológico.

4.

Determinismo

5.

Natureza

Notas

Bibliografia.

biológico (mecanicista) e o mito do «homem

e cultura — Para

uma

superação.

natural»,

a

obras 1—

O

publicadas Mito

2 — Teoria

do

nesta

Estado,

Ernst

da Literatura,

Austen

colecção: Cassirer

René

Wellek

e

Warren

3 — A Matemática Moderna, Irving Adler 4 — Sociologia das Doenças Mentais, Roger Bastide 5 — Grupo-Análise Terapêutica S. H. Foulkes 6 — Os Grandes Socialistas e a Educação, Maurice Dommanget —O Paradigma Perdido: a Natureza Humana,

Edgar

Morin

8 — Teoria Política e Socialismo, Umberto Cerroni 9— 4s Leis Naturais do Casamento, Wolfgang Wickler 10— O Pensamento Jurídico Soviético, Umberto Cerroni 11 — História da Psicologia — I. Da Antiguidade

a

Bergson,

F.-L.

Mueller

12 — História da Psicologia — II. A Psicologia Contemporânea, F.-L. Mueller

13 — Ditos Portugueses Dignos de Memória, autor desconhecido (actualizacão, introdução e comentários de José H. Saraiva) 14 — História da Africa Negra —1, Joseph

Ki-Zerbo

— II, Jo15 — História da Africa Negra seph Ki-Zerbo J 16 — Elogio da Diferença — A Genética e os Homens, Albert Jacquard | 17— 4 Lógica Moderna, Jean Chauvineau

18 — 4 Hidráulica, 19—

O

Homem

Jean Larras

e a Morte,

]

Edgar

Morin

20 — Introdução à Ciência Administrativa, “Bernard Gournay 21 — Portugal Pré-Histórico — Seu EnO. no Mediterrâneo. quadramento da Veiga Ferreira e Manuel Leitão 22 — O Liberalismo, Georges Burdeau — A 23 — Relações de Poder na Empresa Gestão na Nova Realidade Social, Manuel Pedroso Marques 24 — Traduzir:

Teoremas

para

ção, J. R. Ladmiral 25 — Metodologia e Técnicas F. Di Zenzo Salvatore Pelosi

a

Tradu-

. ; Literárias. e Pietro

26 — O Acaso Monod

27 — A

e

a

Biologia

Necessidade,

do

Egoismo,

Jacques

G.

carrão 28 — O Método — 1. A Natureza reza, Edgar Morin

F.

da

Sa-

Natu-

29) — O Método —2. A Vida da Vida, Edgar Morin 30 — Introdução à História dos Descobrimentos Portugueses, Prof. Luís AIbuquerque

31 — A Química Física em Bioquimica— Teoria e Problemas, Nicholas C. Price e Raymond A. Dwek 32 — Ciência com Consciência, Edgar Morin 33 —

Estatística — Teorias I, Pierre Dagnelie

34 — Manual Campos 35 — 4 Vida

de

e

Métodos —

Bioquímica,

em

Roma

na

Pierre Grimal 36 — Estatística — Teorias

Luís

Antiguidade, e

Métodos —

II, Pierre Dagnelie 37 — Sonetos, Camões 38 — O Problema Epistemológico plexidade,

Edgar

39 — Sociologia, 40 — 4

e

da Com-

Morin

Edgar

Adaptação

S.

a

Morin Invenção

do

Fu-

turo, Germano da Fonseca Sacarrão 41 — A Psicologia Diferencial, Maurice Reuchlin 42 — Política Monetária, Walter Marques 43 — Genética

e Política,

R.

C.

Lewontin,

Steven Rose e Leon J. Kamin 44 — O Método — 3. O Conhecimento do Conhecimento/1, Edgar Morin 45 — A Neurose de Angústia João dos Santos 46 — Biologia Vincent

47 — O Homem

das

Paixões,

perante

lippe Ariês 48 — O Homem perante Philippe Ariês

Jean-Didier

«a Morte — I, Phia

Morte —II,

49 — Biologia e Sociedade — Crítica Razão Dogmática — I, Germano Fonseca

Sacarrão

da da

RR

Trees Tdto denunciar. os

Tolo e abusos que as ideologias

fazem das aquisições Gientíficas edo mesmo passo, combater a falsa ciência, os errosí E bitilogismos. de todos os matizes. ESA SELO CTA presente. Eae coisa é o que a ciência

descobre de aparentemente os À ú ou de estimulante, as realidades

e' conexões

que

põe

IE

Vidência,

outra

coisa

é o'que

de

falso ou dogmático é dito em ETTA nome por cientistas e não cientistas. E sobtetudo não perder a noção dos limites de aplicacão e validade da biologia

no estudo do Homem

e da-sociedade.

A ciência não descobre verdades eternas e absolutas nem cria teorias ou concepções imutáveis sobre a realidade. E, por natureza, antidogmática (quando não manietada por ideologia), mesmo que nunca possa ser absolutamente neutral.» x

a À

Ê

Do'i«Prefácio» Rs

Do mesmo

autor, nesta colecção:

É doa

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— A Biologia do Egoísmo — A Adaptação

ISBN 972-1-02694-8

1072'"0

ma

e a Invenção

do Futuro

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Autor