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Portuguese Pages 320 Year 2023
ESTUDOS ORGANIZACIONAIS E SOCIEDADE VOLUME 1
DIRETORES Prof. Dr. Luiz Alex Silva Saraiva Universidade Federal de Minas Gerais Prof. Dr. Alexandre de Pádua Carrieri Universidade Federal de Minas Gerais
COMITÊ EDITORIAL Prof. Dr. Alessandro Gomes Enoque Universidade Federal de Uberlândia Prof. Dr. Alexandre de Pádua Carrieri Universidade Federal de Minas Gerais Profa. Dra. Alessandra de Sá Mello da Costa Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro Prof. Dr. Amon Narciso de Barros Fundação Getulio Vargas Profa. Dra. Ana Silvia Rocha Ipiranga Universidade Estadual do Ceará Prof. Dr. Bruno Eduardo Freitas Honorato Universidade de Brasília Prof. Dr. Diogo Henrique Helal Fundação Joaquim Nabuco Prof. Dr. Eduardo Paes Barreto Davel Universidade Federal da Bahia Profa. Dra. Elisa Yoshie Ichikawa Universidade Estadual de Maringá Prof. Dr. Eloisio Moulin de Souza Universidade Federal do Espírito Santo Profa. Dra. Fernanda Tarabal Lopes Universidade Federal do Rio Grande do Sul Prof. Dr. Luciano Mendes Universidade de São Paulo Profa. Dra. Ludmila de Vasconcelos Machado Guimarães Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais Prof. Dr. Luiz Alex Silva Saraiva Universidade Federal de Minas Gerais Profa. Dra. Raylene Rodrigues de Sena Universidade do Estado do Amazonas
ESTUDOS ORGANIZACIONAIS E SOCIEDADE VOLUME 1
Organizadores
Luiz Alex Silva Saraiva Alexandre de Pádua Carrieri
Diagramação: Marcelo Alves Capa: Arthur Roveda Revisão: Os organizadores
A Editora Fi segue orientação da política de distribuição e compartilhamento da Creative Commons Atribuição-CompartilhaIgual 4.0 Internacional https://creativecommons.org/licenses/by/4.0/deed.pt_BR
O padrão ortográfico e o sistema de citações e referências bibliográficas são prerrogativas de cada autor. Da mesma forma, o conteúdo de cada capítulo é de inteira e exclusiva responsabilidade de seu respectivo autor.
Agradecemos ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) pelo apoio que permitiu a publicação desta obra.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) E82
Estudos organizacionais e sociedade [recurso eletrônico] / Luiz Alex Silva Saraiva, Alexandre de Pádua Carrieri... [et al.]. – Porto Alegre : Fi, 2023. V. I ; 320p.
ISBN 978-65-5917-713-4 DOI 10.22350/9786559177134 Disponível em: http://www.editorafi.org
1. Ciências sociais – Estudos organizacionais – Sociedade.
I. Saraiva, Luiz
Alex Silva. II. Carrieri, Alexandre de Pádua. CDU 303:314/316
Catalogação na publicação: Mônica Ballejo Canto – CRB 10/1023
SUMÁRIO
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ESTUDOS ORGANIZACIONAIS E SOCIEDADE: UMA NECESSIDADE, UMA AGENDA Luiz Alex Silva Saraiva Alexandre de Pádua Carrieri
PARTE 1 PRODUÇÃO SOCIAL DO COTIDIANO
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PRODUÇÃO SOCIAL DO COTIDIANO: HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DA GESTÃO NA VIDA ORGANIZADA NAS/DAS SOCIEDADES Alexandre de Pádua Carrieri (Krrieri ou só K)
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A EDUCAÇÃO COMO UMA PROMESSA DA MODERNIDADE Denis Alves Perdigão
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HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E SABERES POPULARES: REFLEXÕES E APROXIMAÇÕES COM A GESTÃO ORDINÁRIA Paula Gontijo Martins Gabriel Farias Alves Correia
5 DE SPRAY NA MÃO: RESISTÊNCIAS DE GRAFITEIRAS EM BELO HORIZONTE Alexsandra Nascimento da Silva Fabiana Florio Domingues Alexandre de Pádua Carrieri
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PARTE 2 CIDADES, TECNOLOGIAS E DIFERENÇAS
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CIDADES, TECNOLOGIAS, DIFERENÇAS E VIDA SOCIAL ORGANIZADA: PASSOS DE UMA AGENDA INTEGRADA Luiz Alex Silva Saraiva
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ENTRE O VISÍVEL E O INVISÍVEL: OS VÍNCULOS TRANSITÓRIOS ENTRE A CIDADE E AS VIDAS QUE NÃO GERAM ACÚMULOS Bruno Eduardo Freitas Honorato
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CONTATOS NÃO TÃO IMEDIATOS EM ESTUDOS ORGANIZACIONAIS: FAZER PESQUISA SÓCIO-ESPACIAL COM OS “MALUCOS DE ESTRADA” EM BELO HORIZONTE Jessica Eluar Gomes
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BLACK MONEY E AFROEMPREENDEDORISMO Elisângela de Jesus Furtado da Silva Ana Flávia Rezende Danielly Mendes dos Santos
SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES
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ÍNDICE REMISSIVO
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1 ESTUDOS ORGANIZACIONAIS E SOCIEDADE: UMA NECESSIDADE, UMA AGENDA Luiz Alex Silva Saraiva 1 Alexandre de Pádua Carrieri
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Por que estudos organizacionais e sociedade? Responder a esta questão pode parecer óbvio, mas, definitivamente, não o é. O campo de estudos organizacionais, apesar de positivista em termos hegemônicos, em boa parte rejeita a filiação funcionalista da Administração, razão pela qual terminou se constituindo predominantemente teórico e, de certa maneira, de afastado do mundo real, uma vez que lidar com ele significava apresentar soluções. Esta agenda levou a um dilema: como construir teorias úteis, isto é de alguma forma relevantes para as práticas organizacionais? Essa discussão não é recente e tem sido reacendida aqui e ali com movimentos como a practice turn e outros que reivindicam foco para além do domínio teórico. Como o Núcleo de Estudos Organizacionais e Sociedade (NEOS) postula outro lugar, alinhado com perspectivas não positivistas de conhecimento, não enxergamos uma situação polarizada teoria versus prática porque não estamos interessados em aplicação associada ao acúmulo do capital, tampouco em teorização descolada do mundo que nos
Doutor em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor Associado da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG. E-mail: [email protected].
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Doutor em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor Titular da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG. E-mail: [email protected].
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cerca. Mas não estamos interessados em qualquer parte do mundo também, mas naquela que tem sido desprezada pela Administração por estar fora do mundo tomado como organizacional, em geral, e empresarial, em particular. Este grupo abraça “uma insurreição de saberes assujeitados pelo mainstream da Administração. Nossas preocupações são os saberes locais, descontínuos, desqualificados, não legitimados e, somos, portanto, contra discursos unitários” (NEOS, 2023). Estamos interessados na parte, no fragmento, no desqualificado, no não legítimo, e portanto, nosso olhar termina recaindo sobre o que não é digno de ser considerado aceitável em termos sociais, e muito menos pesquisável academicamente. Nossa rejeição coletiva ao padrão da grande empresa capitalista industrial nos possibilitou alçar voos bastante interessantes, pois tivemos de abrir e pavimentar um percurso alternativo muito rico, que permitiu a interlocução com outros grupos de pesquisa no país e a construção de uma posição qualificada nos fóruns acadêmicos que os pesquisadores do grupo frequentam. Olhar para a árvore e para a floresta, assim, é uma “tradição inventada”, nos termos de Hobsbawm e Ranger (1997), em um grupo que nada tem de tradicional. No ano em que completamos 21 anos e alcançamos a maioridade, o lançamento deste livro, “Estudos organizacionais e sociedade – volume 1”, marca uma das formas de celebrar as concepções e práticas de um grupo de pesquisa fiel às suas tradições de jamais ser tradicional nas suas escolhas e percursos. Esta obra é dividida em duas partes. Na parte 1, “Produção social do cotidiano”, Alexandre de Pádua Carrieri apresenta o Grupo de Estudo e Trabalho (GET) “Produção social
Luiz Alex Silva Saraiva; Alexandre de Pádua Carrieri
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do cotidiano: histórias e memórias da gestão na vida organizada nas/das sociedades”, destacando os pontos principais das suas atividades. Além deste, esta parte do livro é composta por três capítulos. No primeiro deles, “A educação como uma promessa da modernidade”, Denis Alves Perdigão explora a relação entre educação e desenvolvimento no Brasil, destacando o projeto de educação republicana libertadora que sempre se viu desafiado por governos pouco comprometidos com a emancipação popular, em especial por meio da educação. Paula Gontijo Martins e Gabriel Farias Alves Correia tratam, em “Histórias, memórias e saberes populares: reflexões e aproximações com a gestão ordinária” de discutir a teorização necessária a pesquisas nos estudos organizacionais voltadas para saberes populares. Informados pelo conceito de gestão ordinária (Carrieri, 2012), os autores discutem, a partir das práticas que organizam o cotidiano de pessoas comuns, conhecimentos e práticas historicamente marginalizadas pelos estudos da gestão, ampliando os olhares em direção á pluralidade dos modos de organizar em nossa sociedade, questionando os regimes de verdade dominantes na área de Administração. Voltados a examinar os processos de resistência no âmbito do grafite em Belo Horizonte, Alexsandra Nascimento da Silva, Fabiana Florio Domingues e Alexandre de Pádua Carrieri apresentam o último capítulo da primeira parte do livro, “De spray na mão: resistências de grafiteiras em Belo Horizonte”, no qual foi identificado que o grafite, arte e reflexo de lutas, pode ser tanto manifestação de conivência com – quando se volta ao espetáculo e para angaria clientes – quanto de
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Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1
resistência, ao abordar temáticas como a do negro, indígena e da mulher – ao capitalismo. A parte 2, “Cidades, Tecnologias, Diferenças”, é composta por quatro textos. No primeiro deles, “Cidades, tecnologias, diferenças e vida social organizada: passos de uma agenda integrada”, Luiz Alex Silva Saraiva discorre sobre os quatro elementos que articulam as atividades do GET de mesmo nome, sob sua coordenação. Neste texto ele explora a necessidade de outra universidade, que reconheça sua vocação urbana, embora não desprendida do rural, a intensa mediação das relações sociais por tecnologias, as diferenças, constitutivas de quem somos enquanto seres humanos, e a necessidade de se ampliar a noção organizacional pela proposta do conceito de vida social organizada, com implicações para as atividades universitárias de ensino, pesquisa e extensão. Bruno Eduardo Freitas Honorato nos apresenta o capítulo “Entre o visível e o invisível: os vínculos transitórios entre a cidade e as vidas que não geram acúmulos”, texto que se origina na sua dissertação de mestrado associado à experiências posteriores baseadas na construção de conhecimento “sobre”, “com” e “para” a População em Situação de Rua. Retomando discussões anteriores e nelas avançando , o autor apresenta uma agenda de pesquisa para abordar a situação de rua no Brasil como um tema transversal que perpassa várias áreas de conhecimento e tangencia outras como a precarização social e má distribuição de renda no país. “Contatos não tão imediatos em estudos organizacionais: fazer pesquisa sócio-espacial com os malucos de estrada em Belo Horizonte”,
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o capítulo de autoria de Jéssica Eluar Gomes, apresenta uma reflexão metodológica a respeito de pesquisas sócio-espaciais. Se por um lado são desafiadoras do ponto de vista de pesquisadores que precisam se aproximar de grupos com os quais tiveram pouco ou nenhum contato, como no caso dela com os “malucos de estrada”, por outro isso significa compreender as tensões entre estratégias e técnicas de sobrevivência, lutas pelo direito de existir, e as complexas relações entre conciliação e conflitos com a institucionalidade vigente. No último capítulo desta parte e do livro, escrito por Elisângela de Jesus Furtado da Silva, Ana Flávia Rezende e Danielly Mendes dos Santos, “Black money e afroempreendedorismo”, as autoras procuram demonstrar a que se referem os termos em perspectiva no contexto histórico brasileiro, problematizando a dimensão econômica como via de inclusão. A partir dos temas da exclusão social e da distribuição de renda, elementos importantes e basilares da desigualdade crescente no país, o texto é construído problematizando o racismo estrutural em uma perspectiva histórica, e que os dois eixos da discussão tendem a ser pouco efetivos se desarticulados de uma via política para a construção de mecanismos de mudança social. Boa leitura! REFERÊNCIAS
Carrieri, A. P. (2012). A gestão ordinária. Tese de Professor Titular, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Brasil. Hobsbawm, E. & Ranger, T. (1997). A invenção das tradições (6a ed). Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
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Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1
Núcleo de Estudos Organizacionais e Sociedade – NEOS. Diretório dos Grupos de Pesquisa no Brasil (DGP) – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Recuperado em 5 março, 2023 de: http://dgp.cnpq.br/dgp/ espelhogrupo/778640#identificacao.
PARTE 1 PRODUÇÃO SOCIAL DO COTIDIANO
2 PRODUÇÃO SOCIAL DO COTIDIANO: HISTÓRIAS E MEMÓRIAS DA GESTÃO NA VIDA ORGANIZADA NAS/DAS SOCIEDADES Alexandre de Pádua Carrieri
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(Krrieri ou só K)
Este grupo temático que faz parte do (grande) NEOS, também é conhecido como “NEOS turbinados do K” ou do “lobinhos apavorados, de queixos trêmulos e rabinhos chamuscados” & do “porco mau” nas redes não tão sociais (Trivizas & Oxenbury, 1996, p.25). É um grupo, antes de tudo, bem humorado que trabalha “a invenção e concretização colaborativa de novos projetos de pessoas” (Faustino, 2022, p. 100), de outras possibilidades de mundo, outras pesquisas, sem perder o senso de nossa realidade social e de seu dever de fazer a crítica ao complexo sociometábólico do capital. Assim como, ao mainstream da área das Ciências Sociais Aplicadas, sobretudo dos Estudos Organizacionais. Partimos das colocações do Fanon (2022) de que a identidade social do pesquisador colonizado não é um luxo, mas é, antes de tudo, um programa histórico e coerente de dominação, programa que violentamente apaga ou silencia as diferenças, as homogeneíza e, por isto mesmo, precisa ser transformado radicalmente (ou destruído?). Para Silva e Carrieri (2022) e Paula (2008), trabalhos críticos precisam enfatizar, também, a subjetividade, o sujeito e a ação, além de Doutor em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor Titular da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected].
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questionar a “gestão dita como universal”, as formas de fazer, pensar ditas dominantes. O posicionamento teórico para os pesquisadores é muito importante. Como propõem Barley e Kunda (1992), qualquer discurso, mas, principalmente, aqueles relacionados à gestão, propagam, mesmo que implicitamente, um conjunto de pressupostos sobre a natureza dos objetos com os quais lida. Nesse sentido, cabem aos pesquisadores anunciarem suas posições teóricas. As subjetividades e os sujeitos devem ser contemplados na observação das interações sociais, nas inter-relações sociais do cotidiano, das experiências e vida organizada. O grupo temático é composto por vários sujeitos singulares e, a partir de suas identidades e de suas diferenças, é que emergem as nossas pesquisas, suas ações e suas produções. No plano da vida cotidiana, por assumirmos o organizar como um movimento incompleto, temos a oportunidade de “desvendar” as possibilidades concretas de realização da sociedade. Ainda, temos a consciência que a realidade enquanto objeto de estudo, de ação “apenas se constitui como objeto para um sujeito singular, atravessado por mediações históricas, sociais” (Faustino 2022, p. 18), espaciais e temporais. Das diferenças que compõe o grupo, os conflitos e as ambiguidades que aparecem neste coletivo criam possiblidades de pensamento e de produção de conhecimento das /nas formas de fazer e organizar o cotidiano e a vida na sociedade (Correia & Carrieri, 2019). A vida cotidiana tem sido palco de diversos estudos nas mais diferentes áreas do saber. Este alastramento se deve, de certo modo, por ela ser o “lugar em que se formulam os problemas concretos da produção em sentido
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amplo: a maneira como é produzida a existência social dos seres humanos, com as transições da escassez para a abundância, e do precioso para a depreciação” (Lefebvre, 1991, p. 30). Visto de dentro para fora, o cotidiano pode parecer inalterável (Matos, 2002), porém, esta não é uma afirmação plausível, tendo em vista ser um espaço de construção e desconstrução histórico-social. Souza (2006) já indicava que seria preciso compreender o cotidiano como a causa e, ao mesmo tempo, o efeito das relações sociais. São as relações sociais que nos permitem reconhecer o outro, com sua identidade e diferença, e suas formas de pensar e agir. Este cotidiano, enquanto espaço de criações e interações constantes, é construído mediante intervenções e probabilidades interpessoais, abrindo para possiblidades de se compreender como os diversos saber-fazeres se interrelacionam na vida cotidiana por meio do que é efêmero. As cotidianidades, porém, não se desfazem de maneira simplória, como alguns estudos e práticas discursivas tentam, de forma funcional, ainda argumentar. Os estudos sobre o cotidiano de Lefebvre apontam para a consolidação de um campo de estudo multidisciplinar, caracterizado por “uma pluralidade de influências, na tentativa de reconstruir experiências excluídas” (Matos, 2002, P. 23). Seriam estas influências as responsáveis por romper com a ideia de linearidade e cronologia da história, esta narrativa única. Le Goff (1996, p. 14) já diria que “a crença num progresso linear, contínuo, irreversível, que se desenvolve segundo um modelo em todas as sociedades já quase não existe”. A partir deste entendimento, não há um protagonista histórico universal,
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e sim diversos personagens. Múltiplas histórias ganham corpo, vencendo o método “único e racional” do conhecimento histórico. Gestos, palavras e atos do homem comum ou ordinário são revelados, conforme propõem Martins (2021b; 2008), Carrieri e Correia (2020) e Carrieri et al. (2018). O sujeito comum é o centro, em oposição a um modelo de “Homem”, às grandes narrativas e a uma universalidade das histórias. No entanto, este sujeito comum não seria, conforme Patto (1993, p.124) “um indivíduo abstrato ou excepcional, mas sim o indivíduo da vida cotidiana, isto é, o indivíduo voltado para as atividades necessárias à sua sobrevivência”. O valor está no cotidiano vivido, marcado por relações de interesse concordantes ou não, lutas e solidariedades, significados estruturados pelos próprios sujeitos, entendimentos práticos, fazeres e saberes. Todos estes aspectos negligenciados por anos pelos estudos de gestão, que valorizaram a objetividade, a racionalidade e a unificação, adquirem papel de destaque (Capaverde, Oliveira & Scheffer, 2017). Levigard e Barbosa (2010) já apontavam anteriormente que as alterações ocorridas ao longo do Século XX foram frutíferas para desencadear os estudos sobre o cotidiano. As autoras evidenciam que o mundo do just-in-time, marcado por uma única racionalidade e uma homogeneização (i)limitada e rasa, discrepa do mundo cotidiano, por sua vez caracterizado por racionalidades ilimitadas e temporalidades paralelas diversas. No segundo universo, temos inúmeras possibilidades de criação. Por um lado, temos a vida cotidiana que se refere às atividades que reproduzem a existência do indivíduo. Por outro lado, está a esfera não-
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cotidiana, que diz respeito às atividades reprodutoras da sociedade. A principal característica da vida cotidiana seria o agir e o pensar apartados de uma reflexão crítica, ou seja, a espontaneidade regendo todas as relações. Não seria viável um pensamento crítico perene, como já diria Rossler (2004, p. 106): “é necessário que atividades, pensamentos, e ações dos indivíduos sejam espontâneos nessa esfera de sua vida, pois senão se tornaria inviável a produção e reprodução da sua existência social”. Outras características, para além da espontaneidade, são o agir econômico, sem profundidade ou intensidade. E encontramos, também, o pragmatismo, pois as atividades cotidianas não poderiam ser teorizadas, caso contrário, a sua realização se revelaria um tanto complexa. Rossler (2004, p. 107) argumenta nesse sentido ao dizer que “não haveria uma mediação teórica, reflexiva, crítica e aprofundada [...]. Na vida cotidiana, os pensamentos e as ações são muito mais determinados por sua funcionalidade [...] imediata do que por razões de ordem teórica ou filosófica”. Autores como Levigard e Barbosa (2010) e Martins (2021b; 2008) interpretam que na visão de Lefebvre, o poder social da vida cotidiana está para além do domínio do trabalho, incluindo também no domínio do espaço, do cotidiano. Tal poder está relacionado as formas de poder social paralelas, tais como o domínio do tempo e do dinheiro. Lefebvre (1969) já argumentava que o espaço que se produz das relações sociais é híbrido: ao mesmo tempo em que é meio de produção e de controle, é também instrumento de ação e de pensamento. O espaço corporifica o
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cotidiano, enquanto objeto empírico, e exerce a intermediação entre o particular e o universal. Lima (2009, p.39) corrobora o que propôs Lefebvre (1991) ao argumentar que “a mera descrição do privado não o torna cotidiano, pois este deve se localizar em um contexto maior da produção das relações sociais”. Enfatizamos que nossas investigações, para além de descreverem o cotidiano, objetivam conectá-lo às suas próprias interações com as cidades, uma espécie de mônada mineira e brasileira (dependendo da abrangência de nossas ações e pesquisas). Para apreender o cotidiano em toda sua complexidade, faz-se necessário tanto analisar os pormenores quanto manipular, em alguma medida, categorias sociais (Caldeira, 1995). Ao mesmo tempo, devemos analisar como ambas, especificidades e categorias sociais, se enlaçam. Partindo das propostas de Lefebvre (2002) buscamos pensar que as relações sociais devem ser analisadas quanto à (re)produção – seja das próprias relações sociais, seja dos instrumentos materiais e técnicos indispensáveis à produção e ao consumo. Os pesquisadores devem buscar o repetitivo e a sugestão do autor é que eles também se atentem para os recomeços, recriações e retomadas das condições reprodutoras de obras ou objetos ou de seus elos constitutivos ou ainda de suas transformações paulatinas ou súbitas. Ao estabelecer uma relação entre vida cotidiana e modernidade, Lefebvre (1991, p. 17) reflete que “a vida cotidiana se apresenta como não filosófica, como mundo real em relação ao ideal”. O autor fundamenta sua tese no sentido de que a filosofia se apresenta superior à vida cotidiana, na tentativa de dissociar a sua pureza da impureza da vida
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cotidiana, ressoando o antigo dilema que sustenta a dualidade entre o mundo de ideias e o mundo real. Além disso, o autor nos convida a tomar uma decisão por meio de suas formulações teóricas: “ou erigimos em absolutos, em ideias platônicas as instâncias que se elevam acima do cotidiano com a pretensão de regê-lo – ou então (...) ajudamos a humilde razão do cotidiano” (Lefebvre, 1991, p. 21). Ao iniciar sua análise do cotidiano, Lefebvre (1991, pg. 20) destaca que “é a interação dialética da qual seria impossível não partir”. Nesse sentido, o autor procura encontrar a combinação entre o filosófico e o não filosófico, o conhecimento racional e a vida real. Ainda segundo o autor, o cotidiano é o lugar dos conflitos, “dos problemas concretos da produção em sentido amplo: a maneira como é produzida a existência social dos seres humanos”. Ao utilizar do estudo do e no cotidiano para melhor entender a sociedade, o autor pretende situá-lo na estrutura global do Estado, da cultura e da ciência, pressupondo que não existem fatos sociais que não estejam relacionados, tampouco grupos sociais que não estejam reunidos. Para Lefebvre (2002) precisamos situar os estudos do e no cotidiano em nossa sociedade moderna urbana e burocrática de consumo burguês dirigida. Desse modo, precisamos apreender a vida urbana como transhistórica, em que o espaço adquire centralidade sobre o tempo. Este modo de pensar tem como argumento a explosão dos referenciais vindos da história que apontam na modernidade, momento no qual as relações capitalistas se tornaram determinadas pelo processo de produção do espaço. Nesse sentido, observamos um movimento do foco
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central do processo de acumulação capitalista, qual seja, da produção de mercadorias clássicas para a produção do espaço. Ao trabalhar a cidade, o urbano e os espaços, o grupo temático parte da visão desta como mercadoria, evidenciando o processo contraditório na produção do espaço que se torna moeda de troca como um momento significativo do processo de valorização do capital. O valor de troca se mostra superior ao valor de uso, restringindo-o, apresentando como principal resultado a degradação das relações sociais na cidade, de forma a realçar a segregação espacial. Resistências e lutas sociais por determinados espaços se justificam conforme tais movimentações ocorrem no curso da história. O pensamento crítico se destaca por se tratar de um momento indispensável para que se compreenda a realidade, assim como apresenta possibilidades de transformação, visto que o ato de conhecer traz também em si uma utopia. Dessa forma, para este grupo de pesquisa, o materialismo apresenta uma necessidade de junção entre dois princípios opostos: não há pensamento sem utopia (sem exploração do possível), e não há pensamento sem referência a uma prática que, compreendida por meio do debate urbano, estaria interligada à produção do habitar e do uso, compreendendo a apropriação como ato fundamentalmente humano e criativo. Como resultado, a prática espacial urbana reproduz a separação dos elementos que sustentam a vida organizada em sociedade, a qual é estilhaçada na separação dos espaços-tempo da vida cotidiana, degradando as relações sociais. Temos, então, um urbano “vividovivenciado-percebido” mediante a privação das restrições ao uso e à
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normatização/programação do cotidiano em um ambiente desigual. A vida cotidiana organizada passa a ser observada a partir da fragmentação dos elementos da prática socioespacial urbana em espaços-tempo distintos enquanto elementos autônomos da vida. Observamos que a vida cotidiana, como bem mostrou Lefebvre (2002), expõe a ordem capitalista, que, ao se desenvolver, reproduz os elementos essenciais à sua manutenção. São criados espaços fragmentados, configurando lugares e não lugares, como favelas, condomínios fechados, guetos. Todos estes espaços realçam a segregação, a atomização das pessoas pela desagregação dos indivíduos. O ponto importante que é discutido no grupo consiste nos questionamentos da parcela relevante da sociedade que tem reduzida sua luta pela sobrevivência, reduzida às suas necessidades básicas, como comer, beber e dormir. E, por meio das lutas diárias, é possível, também, perceber as disputas pelo espaço (de sobrevivência) da vida na cidade. O espaço social permanece impresso nas estruturas espaciais e nas estruturas cognitivas dos indivíduos. Tem-se, assim, um produto da incorporação destas estruturas. Nesse sentido, estruturas espaciais são consubstanciadas por estruturas mentais e ambas atuam como catalisadoras umas das outras que se dá sobre a produção de bens tangíveis e intangíveis que se apresentam no espaço (social) e na sua reprodução. Lefebvre (2002) relembra que o conceito de espaço social é compreendido na medida em que é ampliado. Se introduz no interior do conceito de produção, o arrebata, inclusive, chegando a fazer parte (até mesmo essencial) de seu conteúdo. Desta forma, conduz um movimento dialético individualizado que não exclui certamente a relação produção-
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consumo aplicada às coisas (bens, mercadorias, objetos de troca), mas que altera conforme sua ampliação. Articulamos, enquanto grupo, o dia a dia, as visões de mundo, os usos dos espaços e do tempo, as práticas de gestão, as estratégias, táticas e resistências de sobrevivência na vida social organizada. Procuramos avançar nos Estudos Organizacionais, partindo não mais da organização, enquanto objeto maior de estudo, mas da própria sociedade, elegendo para nossas pesquisas a ação coletiva e todos os fenômenos de organização, desde que sejam compreendidos e estudados como fenômenos indissociáveis da vida humana e social. As identidades e diferenças dos componentes do grupo, como apresentamos, abre para possibilidades de pensarmos a vida organizada e também a gestão ordinária, considerada menor do ponto de vista histórico, a partir da tríade lefebvriana: do que é percebido, do que é vivido e do que é produzido. A tríade nos move às suas influências sobre os sujeitos que vivem sua cotidianidade em uma sociedade burocrática de consumo dirigido. Essas categorias nos trazem mais clareza sobre o objeto de estudo e seus cruzamentos, assim como delimita o concreto e as consciências. É importante destacar que a cotidianidade torna a realidade social privatizada, burguesamente individualizada e rotinizada. Essa cotidianidade e sua funcionalidade, e por este motivo, é capaz de produzir e reproduzir a alienação, atrofiando as possibilidades de ação e de organização do social. A alienação, por sua vez, pode ser descrita com a tríade lefebvriana: alienação, desalienação e reificação. E, diferentemente das contradições, que são inerentes à vida organizada e que evidenciam possibilidades de ação, a alienação elimina o outro, sua
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identidade e diferença, comprometendo o coletivo. Para Lefebvre (1991) a pior alienação é a ignorância, a falta de consciência de que o outro existe, que há um social, um coletivo e não somente o privado burguês. O olhar histórico e memorialístico que este grupo trabalha sobre o tema da vida organizada da sociedade identifica no cotidiano os arranjos e práticas de gestão desenvolvidas pelo conjunto social, pelas inter relações sociais produzidas em nosso tempo e espaço. Assim, estudos que enfatizam a história da gestão podem contribuem para a produção de conhecimentos que possuem como implicação prática de “transformação radical das condições sociais de existência” (Faustino, 2022, p.89). As discussões que aliam os campos da História e da Administração são amplificadas desde o final dos anos 1980 e início dos anos 1990, com importantes trabalhos publicados por Zald (1988; 1993; 1996). O autor consolidou essas possibilidades a partir de estudos sobre diferentes tipos de organizações, destacando a importância de estarmos atentos ao setor em que elas estão localizadas, aos acontecimentos históricos globais e particulares para que o trabalho histórico seja realizado com maior coerência. A diversidade que circunda a área da Administração é considerada pelo autor como fator que beneficia a interface com outras áreas do conhecimento nas ciências humanas e sociais, sendo importante que o olhar da gestão sobre os fenômenos seja acompanhado de certo grau de criticidade quanto ao que está sendo posto. Mais recentemente, a abordagem histórica e sua aproximação com a Administração tem sido trabalhada há alguns anos, com recente aumento de trabalhos na última década (Carrieri & Correia, 2020;
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Correia; Carrieri, 2019; Carrieri et al., 2018; Barros & Carrieri, 2015; Carneiro, 2016; Costa & Silva, 2019). Os mesmos autores retratam que a discussão histórica na Administração avançou no sentido de discutir a gestão (management history), as histórias dos negócios (business history) e das organizações (organizational history). No entanto, consideramos importante discutir e avançar em novas visões e abordagens no campo, incentivando trabalhos direcionados às memórias da gestão e dos sujeitos que vivenciaram os acontecimentos no âmbito do próprio trabalho, em seu cotidiano e na vida organizada da sociedade. Cabe destacarmos, sobretudo, a visão localizada do território que ocupamos. É impossível falarmos de uma ciência administrativa brasileira sem considerarmos um passado de aniquilação da população indígena da região e a negra trazida para a região. É preciso retomarmos os ensinamentos indígenas de contato com a natureza que sofreram diversas tentativas de apagamento ao longo de nossa história. De igual modo, não cabe falarmos dos Estudos Organizacionais se não estivermos atentos ao nosso passado escravocrata pautado no trabalho à base da violência como instrumento de competitividade no mercado. Estes aspectos influenciam, direta ou indiretamente, nossos modos de gerir, ser e estar no território brasileiro, bem como em nossas práticas e estratégias cotidianas. A tríade dialética entre vida organizada, história e memória e cotidiano produz para o grupo uma encruzilhada. Este termo encruzilhada já é trabalhado por Martins (2021a, p. 50) e é utilizado como “conceito e como operação semiótica que nos permite clivar as formas que daí emergem”. Ao pensar a encruzilhada temos que explorar
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as inter-relações espiralares entre corpo, oralidade, gestos, tempos, memórias, espaço e tempo. Nessa encruzilhada, compartilhada pelos diferentes pesquisadores que compõem este grupo, almejamos novas perspectivas em torno de uma Administração que transforma o que rompe, o que modifica, o que inventa, cuidadosa com a potência, multiplicidade e interdependência inerente aos modos de organizar e compor cotidiano das vidas e das organizações. Assim, produzimos outras encruzilhadas, um vir a ser de possiblidades reais de pesquisa, para continuar existindo enquanto grupo:
(re)construir histórias e memórias da gestão e das formas de organizar a vida;
conhecer as diversas práticas de gerir tendo como possiblidade as mônadas e as constelações benjaminianas;
estudar a gestão e, mais particularmente, as estratégias, como um processo de negociação, de táticas e de relações de poder;
pesquisar as diferenças e identidades de gênero, classe, etnoraciais e sexualidade frente a dominação do patriarcado moderno e sociabilidade burguesa;
cartografar a administração “menor”, popular, cotidiana, corriqueira como potência de aprendizagem de novos modos de gerir e de reinvenção do que temos estabelecido como gestão;
pensar a ciência e a gestão em seu caráter coletivo quando parte da construção grupal por meio da realidade dos sujeitos e a ela retorna de forma crítica e criativa;
a vida organizada sendo um exercício político e uma construção coletiva pela via da complementaridade e não da exclusão social.
Trabalhar no/com o grupo NEOS é pensar um amanhã em que a transformação da realidade brasileira de fato faça parte de nossas ações.
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Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1
Isso significa incluirmos os 62,9 milhões de brasileiros com renda domiciliar per capita de até R$ 497 que representam 29,6% da população total do país (FGV, 2022) e os mais de 11 milhões de brasileiros analfabetos (IBGE 2019). A transformação do país exige um trabalho grande de extensão/ensino/pesquisa para efetivamente diminuir (acabar com) estes números. Somente considerando estes fatos é que podemos falar de uma gestão que considera a história local e que se busca, efetivamente, inclusiva. Por fim, convidamos todas e todos que queiram, conosco, compartilhar das diversas encruzilhadas e da transformação da vida organizada cotidianamente e, portanto, do país. REFERÊNCIAS
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Alexandre de Pádua Carrieri
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Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1
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3 A EDUCAÇÃO COMO UMA PROMESSA DA MODERNIDADE Denis Alves Perdigão
1
Quando se pensa sobre o que falta para o Brasil deslanchar e se tornar finalmente o “país do futuro”, todos nós brasileiros temos na ponta da língua a resposta: Educação, é claro. Afinal, um país que não investe ou investe pouco em suas escolas só por milagre vai conseguir se tornar uma nação rica e desenvolvida (Freitas, 2009, p. 281).
A afirmação de Freitas, transcrita acima, é assertiva quanto às expectativas que a sociedade deposita na educação. Essa expectativa é justificável, visto que, na sociedade moderna, o conhecimento é um importante meio de valorização de nosso capital simbólico (Bourdieu, 2005; 2007; 2010; 2013; Bourdieu & Passeron, 2010; 2014) e, portanto, um importante meio para a obtenção de ascensão social. Esse reconhecimento da educação como fonte potencial de desenvolvimento dos indivíduos a tornou símbolo da promessa do Estado e do mercado na construção de uma nação rica e desenvolvida. Não obstante, a educação da camada social mais pobre, a que Souza (2009) chama de ralé brasileira, foi historicamente negligenciada. A inclusão da ralé no âmbito educacional ocorre de forma lenta e tímida, e essa inclusão somente se fortalece devido à necessidade das organizações industriais da década de 1940 por empregados 1 Doutor em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor Adjunto da Universidade Federal de Juiz de Fora. E-mail: [email protected].
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Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1
minimamente preparados, o que significava saber, pelo menos, ler e escrever. A esse respeito, Lopes (2010, p. 137) diz que [...] a educação brasileira foi-se complexificando na medida em que o debate pela democratização da escola e da luta pela escola pública se passava às leis e à ação. Evidentemente, a concretização de tudo isso só viria muito mais tarde. Mas era o próprio processo de industrialização que requeria maior qualificação da mão de obra. Cada vez mais, saber ler e escrever era uma exigência e uma demanda de uma sociedade em que 57,6% da população era analfabeta.
Se a modernidade, por meio da expansão do regime capitalista industrial, influenciou o movimento de propagação da educação à classe popular no seu processo de formação de mão de obra, por outro lado, desencadeou o agravamento das desigualdades sociais ao transformar a sociedade brasileira agraria em uma sociedade industrial incapaz de incluir todos os seus membros. Neste texto busquei resgatar o percurso histórico da educação popular brasileira na modernidade, compreendida pelo período que marca as primeiras décadas do Século XX aos dias atuais, quando a promessa educacional se renova com a expansão do ensino superior no Brasil, o que possibilitou o acesso de membros da ralé brasileira a cursos de nível superior. Apresento, também, as contribuições do pensamento crítico de Pierre Bourdieu para a área da educação produzidas por meio de suas pesquisas a respeito do sistema de ensino francês.
Denis Alves Perdigão
• 35
A DEMOCRATIZAÇÃO DO ENSINO BRASILEIRO NA MODERNIDADE
O processo de democratização do ensino promoveu uma série de reformas educacionais ao longo do Século XX influenciada por variadas retóricas. Faria Filho (2010, p. 18) informa que um desses argumentos retóricos é o de fazer coincidir a reforma da escola com a reforma social, “[...] de tal modo que do sucesso da primeira – a reforma da educação – depende o êxito da segunda”. Atribui-se à educação um papel de relevância no desenvolvimento social, que chega a ter primazia, até mesmo, sobre os problemas de natureza econômica (Faria Filho, 2010). Essa premissa, atualizada em cada proposta de reforma da educação, é pedra de toque da retórica que nos quer fazer acreditar que o emprego, a distribuição de renda, o desenvolvimento econômico e social, a saúde, a diminuição da criminalidade. etc., tudo isto depende da educação (Faria Filho, 2010, p. 21).
Se a premissa é de que tudo depende da educação, reformas distintas são realizadas para que a educação cumpra o papel social que dela se espera. Entre tais reformas se destaca a reforma do corpo da escola, do ponto de vista de suas estruturas físicas, transformando-as em templos da civilização, para poder reformar o corpo na escola, de forma que a escola deveria não apenas “[...] ensinar a ler, mas o que ler. Não apenas ensinar a escrever, mas o que escrever. Não apenas ensinar a pensar, mas o que pensar, o que fazer e, mais, o que não se deve fazer” (Vago, 2010, p. 96). O objetivo é o de criar o que Foucault (2010) chama de corpos dóceis. Corpos domesticados para a sociedade, corpos domesticados para o trabalho, de forma a serem úteis e produtivos.
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Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1
Magaldi (2010, p. 134) resume bem o papel civilizador que se esperava da escola. Em um quadro de industrialização e de urbanização crescentes, de afirmação do trabalho livre e de condições de exercício da cidadania em bases distintas daquelas próprias da sociedade imperial, a constituição de cidadãos ciosos da ordem e das hierarquias sociais, conhecedores das leis e obedientes a elas, a conformação de trabalhadores disciplinados e de eleitores que exercessem seu direito de voto com responsabilidade, constituíam-se em tarefas essenciais a serem desempenhadas pela escola pública.
Nesse contexto histórico, conforme informa Xavier (2010), desde os anos de 1930 ocorriam debates que objetivavam discutir a relação entre a educação escolar e a necessidade de modernização da sociedade brasileira. Em tais debates se iniciou o movimento que defendia a instituição de uma educação pública, laica, obrigatória e gratuita (Xavier, 2010). Nesse âmbito, Anísio Teixeira se destaca como um grande defensor desse propósito. Nunes (2011, p. 163) descreve o tipo de educação que defendia Anísio Teixeira. Uma escola primária comum a todos, capaz de ministrar uma educação de base que habilite o homem comum ao trabalho nas suas mais diversas formas. Uma escola descentralizada, com finalidade própria. Uma escola prática de iniciação ao trabalho, formação de hábitos de pensar, fazer, trabalhar, conviver e participar em uma sociedade democrática, na qual a soberania é do próprio cidadão. Uma escola de dia integral, com seu programa vinculado às tradições, às características e à vida da comunidade a qual pertence. Uma escola enraizada no meio local, servida por professores da região e com ela identificados, uma escola reconciliada com a comunidade.
Denis Alves Perdigão
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O modelo educacional defendido por Anísio Teixeira tem um forte apelo para a emancipação dos indivíduos, não somente no que se refere aos aspectos econômicos decorrentes do desenvolvimento das habilidades para o exercício do trabalho, mas também pelo desenvolvimento da capacidade de pensar. Esse modelo extrapola os pressupostos básicos dos modelos de educação ao qual se referem Vago (2010) e Magaldi (2010), que punham em prática uma educação formadora de cidadãos pacatos, respeitadores das leis e hierarquias empresariais e governamentais. Portanto, cidadãos pouco politizados e críticos. Assim, o modelo de Anísio Teixeira é, também, uma possibilidade de ruptura com a manutenção das desigualdades sociais por meio da escola tradicional, como denunciavam Bourdieu (2012), Bourdieu e Passeron (2010; 2014). Se, por um lado, a defesa de Anísio Teixeira por uma educação escolarizada, pública, gratuita e laica, com as configurações explicitadas na citação acima, atendia ao interesse de uma sociedade que se industrializava ao formar as pessoas para o exercício do trabalho, por outro lado, era severamente criticada e combatida pelas lideranças católicas brasileiras, que se viam ameaçadas por esse modelo educacional laico que lhes excluía a possibilidade de exercer influência direta na formação das pessoas (Nunes, 2011). As propostas de Anísio Teixeira convergem para que a educação seja uma responsabilidade dos municípios, de forma que possa ser popularizada e deixar de ser um privilégio para uma parcela elitizada da sociedade. Projetos de outros pesquisadores, também interessados no desenvolvimento do Brasil, aprofundaram os debates no campo da
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Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1
educação e os tornaram mais complexos. A esse respeito Xavier (2010, p. 197) diz que [...] além da expansão do ensino superior e das iniciativas de extensão da escolarização primária às camadas populares, surgiam movimentos em prol da alfabetização de adultos, campanhas para ampliação da oferta da educação rural, debates sobre o financiamento educacional e sobre a necessidade de elaboração de diretrizes para uma política nacional de educação mais adequada aos princípios republicanos.
Para Xavier (2010), no período compreendido entre 1946 e 1962, houve o encerramento do ciclo de debates sobre o estabelecimento de um projeto educacional de âmbito nacional capaz de auxiliar na consolidação de uma nação republicana. Esse período, marcado por ampla liberdade de pensamento, fez com que se pensasse que a construção no Brasil de uma sociedade moderna, industrial e democrática já estava em curso (Xavier, 2010). Não se contava, portanto, com um golpe militar que prejudicaria os avanços até então obtidos na construção de um projeto de educação para uma sociedade moderna e democrática. Duarte (2010), ao analisar as reformas educacionais na América Latina nas décadas de 1980 e 1990, informa que vários países de nosso continente se caracterizaram por apresentar um processo tardio de escolarização de sua população, culminando na manutenção das desigualdades relativas ao acesso à educação básica, ao rendimento quanto ao aprendizado e à qualidade do ensino. Em tais países, entre os quais podemos incluir o Brasil, combinou-se a baixa escolarização com a pobreza e exclusão social (Duarte, 2010), de forma que a
Denis Alves Perdigão
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universalização da educação básica e a evasão escolar ainda fazem parte da agenda de problemas desses países. A necessidade de se adequar à lógica das necessidades capitalistas motivou a realização de muitas reformas educacionais no Brasil e nos demais países da América Latina, a partir da década de 1980, renovando a promessa da educação para a sociedade moderna. Duarte (2010) divide as reformas em três gerações. Na primeira delas, o foco foi a expansão do ensino primário e básico. No entanto, cada país, de acordo com o grau de desenvolvimento de sua educação formal, teve uma conotação distinta. Enquanto no Brasil, conforme salienta Duarte (2010), foi necessário atuar na universalização do ensino fundamental, em outros países, como o México, Argentina e Chile, por estarem adiantados no processo, foi possível se preocupar com a expansão do ensino médio. Na segunda geração das reformas, o foco foi o desenvolvimento de políticas de gestão para a educação e a implantação de avaliação dos sistemas de ensino. Objetivou-se, também, a realização de alterações nos processos e nos conteúdos curriculares. Nessa ocasião se estabelecem, no Brasil, na Argentina, no Chile e no México, sistemas nacionais de avaliação via reformas educacionais (Duarte, 2010). Por meio dos indicadores, foram estabelecidos mecanismos de controle e responsabilização das escolas e seus corpos docentes por seus resultados educacionais. A terceira geração de reformas objetivou o compartilhamento de deveres entre o Estado e a sociedade no gerenciamento das instituições de ensino por meio de colegiados e conselhos. Segundo Duarte (2010, p. 177), “[...] a reforma educacional brasileira normatizou a organização de
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Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1
conselhos e colegiados com a participação de todos os atores sociais envolvidos com as escolas, entre eles, pais e comunidade”. O interesse em aproximar a sociedade da escola não é recente. Desde as décadas de 1920 e 1930, as reformas educacionais, conforme assevera Magaldi (2010), objetivavam essa aproximação da sociedade, representada pelas famílias dos estudantes, da escola. A esse respeito, ela diz que, [...] no entanto, o projeto que ela enunciava, de colaboração entre escola e família, não parece ter se concretizado de forma consistente, nem na sociedade brasileira e nem em outras sociedades, nas quais a discussão sobre o tema também esteve em pauta no passado, atualizando-se ainda no presente (Magaldi, 2010, p. 131).
Na contemporaneidade, se o objetivo da escola era o de promover a cidadania por meio da educação, esse objetivo, no que tange à parcela mais pobre da sociedade, foi comprometido por graves problemas (Freitas, 2009). A escola não logrou êxito em ampliar o capital simbólico dos alunos oriundos da classe popular. A escola não foi capaz de aproximar-se suficientemente da sociedade e incluir a família [dos estudantes pobres] no contexto educacional. Conforme assevera Freitas (2009, p. 288), “[...] o universo escolar não tem espaço na maioria das famílias da ralé, seja nas brincadeiras que exigem pouco domínio de si e pouco esforço intelectual, seja nas atividades nas quais pais e filhos podem compartilhar os raros momentos juntos”. Esse distanciamento favorece a naturalização do desinteresse e da indisciplina na escola, de forma que somente aqueles que reconheceram a importância da educação e introjetaram a disposição para apreender como parte fundamental de sua autoestima “[...] podem almejar os prêmios que a
Denis Alves Perdigão
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instituição oferece àqueles que conseguem cumprir as metas que ela impõe” (Freitas, 2009, p. 289). A RENOVAÇÃO DA PROMESSA EDUCACIONAL NA EXPANSÃO DO ENSINO SUPERIOR
É no contexto de uma educação pública de qualidade incipiente, no que se refere ao ensino fundamental e médio, que a educação desponta, novamente, como uma promessa da modernidade. A necessidade de mão de obra qualificada motivada pelo processo de reestruturação produtiva no mercado global propiciou, no final da década de 1990, uma significativa expansão do ensino superior no Brasil, como se pode verificar na tabela 1. Tabela 1: Evolução do Número de Instituições, segundo a Categoria Administrativa - Brasil - 2002 a 2021 Pública Privada
Ano
Total
Total
Federal
Estadual
Municipal
2002
1.637
195
73
65
57
1.442
2003
1.859
207
83
65
59
1.652
2004
2.013
224
87
75
62
1.789
2005
2.165
231
97
75
59
1.934
2006
2.270
248
105
83
60
2.022
2007
2.281
249
106
82
61
2.032
2008
2.252
236
93
82
61
2.016
2009
2.314
245
94
84
67
2.069
2010
2.377
278
99
108
71
2.099
2011
2.365
284
103
110
71
2.081
2012
2.416
304
103
116
85
2.112
2013
2.391
301
106
119
76
2.090
2014
2.368
298
107
118
73
2.070
2015
2.364
295
107
120
68
2.069
2016
2.407
296
107
123
66
2.111
2017
2.448
296
109
124
63
2.152
42 •
Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1 2018
2.537
299
110
128
61
2.238
2019
2.608
302
110
132
60
2.306
2020
2.457
304
118
129
57
2.153
2021
2.574
313
119
134
60
2.261
Fonte: Censos da Educação Superior de 2008 a 2017, adaptada pelo autor (INEP, 2009; 2010; 2011; 2012; 2013; 2014; 2015; 2016; 2017, 2022).
O INEP (2011, p. 3), como se pode ler abaixo, explicita sua interpretação a respeito dos dados levantados no ano de 2010. Esse ano tem importância histórica por ser aquele que encerra o segundo mandato do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, cujo governo manteve e ampliou os incentivos à expansão do ensino superior privado iniciado no governo do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e empreendeu uma significativa política de expansão do ensino superior público federal, continuada no governo da ex-presidente Dilma Rousseff, que o sucedeu. O número de matrículas, nos cursos de graduação, aumentou em 7,1% de 2009 a 2010 e 110,1% de 2001 a 2010. Vários fatores podem ser atribuídos a essa expansão: do lado da demanda: o crescimento econômico alcançado pelo Brasil nos últimos anos vem desenvolvendo uma busca do mercado por mão de obra mais especializada; já do lado da oferta: o somatório das políticas públicas de incentivo ao acesso e à permanência na educação superior, dentre elas: o aumento do número de financiamento (bolsas e subsídios) aos alunos, como os programas Fies e ProUni e o aumento da oferta de vagas na rede federal, via abertura de novos campi e novas IES, bem como a interiorização de universidades já existentes.
Por meio dos dados apresentados na Tabela 1 pode-se inferir que do ano de 2002 a 2021 o crescimento de instituições de ensino superior foi da ordem de 57,24%. As razões para esse crescimento são as mesmas
Denis Alves Perdigão
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já apresentadas no excerto acima, com a ressalva de que, a partir de 2013, o Brasil passou a enfrentar uma crise política e econômica que, ainda vigente em 2019, traz sérios impactos nos investimentos educacionais públicos e privados. Neste mesmo período (de 2002 a 2021), as instituições públicas de ensino superior cresceram 60,51%, enquanto instituições privadas tiveram um crescimento de 56,80%. Nota-se que, apesar da crise política e econômica iniciada no Brasil a partir de 2013, bem como da pandemia por COVID-19 e seus impactos econômicos e sociais sobre o Brasil a partir de 2020, o número de instituições privadas de ensino superior manteve seu crescimento, enquanto as públicas reduziram seu número em 5 unidades, entre 2013 e 2017, possivelmente em função das dificuldades em manter o investimento em um cenário orçamentário difícil, voltando a crescer em números de instituições a partir de 2018 chegando a 313 em 2021, em especial, pela emancipação de campus avançados de universidades federais que se tornaram unidades autônomas com novas identidades jurídicas. Chama a atenção o crescimento ocorrido nas instituições públicas estaduais de ensino superior, que apresentaram um aumento de 106,15%, índice muito acima da média das universidades e institutos federais, que tiveram um crescimento de 63,01% no mesmo período, e das instituições públicas municipais de ensino superior, que cresceram apenas 5,26% nesse intervalo de 19 anos. Esse indicador evidencia que os estados da federação também se motivaram a adotar políticas de criação ou expansão de suas redes públicas de ensino superior, embora esse investimento não lhes seja uma obrigação constitucional, como o é o investimento educacional na formação em nível de 2º grau.
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Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1
Pesquisadores como Lima (2011), Barreto e Leher (2008) e Dourado (2002) defendem que o processo de expansão do ensino superior brasileiro ocorreu por influência do Banco Mundial, que desenvolveu, a partir de 1994, diversas diretrizes para a reformulação política de países periféricos como o Brasil, em especial, de suas políticas educacionais. Para Barreto e Leher (2008), o Banco Mundial, com base em seus interesses econômicos ligados à globalização, se coloca na postura de quem sabe o que é melhor para o mundo e usa seu poder políticoeconômico para persuadir os Estados nacionais, principalmente os países periféricos, a ajustarem-se às diretrizes propostas. A proposta do Banco Mundial envolvia uma mudança de concepção de uma educação superior pautada no desenvolvimento intelectual dos alunos, tanto na vertente
filosófica,
quanto
científica,
para
uma
educação
essencialmente técnica, que implicava em uma flexibilização da educação superior – em termo de currículos, cursos e instituições – com foco específico na formação profissional dos discentes (Lima, 2011; Barreto & Leher, 2008; Dourado, 2002). A perspectiva educacional do Banco Mundial tem para Dourado (2002) um caráter utilitarista, que objetiva fragmentar e desarticular a luta pela democratização da educação em todos os seus níveis, como um direito social inalienável. Lima (2011) diz que, em consonância com as diretrizes do Banco Mundial, a partir de 1994, adota-se no Brasil uma série de reformulações na política educacional do País que podem ser divididas em dois eixos principais: a diversificação das instituições de ensino superior e seus cursos (a expansão propriamente dita), e a diversificação das fontes de financiamento educacional. Assim, a expansão do ensino superior
Denis Alves Perdigão
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inicia-se, primeiramente, no governo do então presidente Fernando Henrique Cardoso, com o estímulo ao investimento empresarial nessa área, por meio da liberação para a abertura de novas instituições privadas de ensino. Posteriormente, ocorreu “[...] a privatização interna das universidades públicas, através das fundações de direito privado, das cobranças de taxas e mensalidades pelos cursos pagos [cursos de pós-graduação lato sensu e outros] e do estabelecimento de parcerias entre as universidades públicas e as empresas redirecionando as atividades de ensino, pesquisa e extensão” (Lima, 2011, p. 87). Essas medidas são as mesmas presentes nos documentos do Banco Mundial, conforme Lima (2011) e Barreto e Leher (2008). No que se refere à diversificação das fontes de financiamento das universidades públicas, o Banco Mundial ia além da cobrança de mensalidade aos alunos. Defendia o corte de qualquer tipo de custeio pelo Estado de atividades não relacionadas diretamente com a educação, como a oferta de moradia estudantil ou alojamento, alimentação, entre outras. Por outro lado, o Banco Mundial estimulava o recebimento de doações de empresas privadas e de associações de ex-alunos e a venda de serviços educacionais às empresas como a prestação de consultoria e a realização de pesquisas de seu interesse (Lima, 2011). Essa venda de serviços deveria ser mediada pelas fundações de direito privado, que teriam uma estrutura mais flexibilizada e maior liberdade legal para executar as atividades privatizantes da educação. Segundo Barreto e Leher (2008), já no documento publicado em 1994, o Banco Mundial defendia a oferta de cursos a distância e o desenvolvimento de instituições privadas de ensino, que estariam mais
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aptas a produzir as qualificações exigidas pela economia de mercado. No documento publicado pelo banco em 1997, conforme Lima (2011), propunha-se, em especial, aos países periféricos, a perspectiva liberal de que o Estado deveria atuar como um impulsionador do processo de desenvolvimento econômico e social, mas não como agente direto. Esse papel caberia à iniciativa privada, inclusive no que se refere à educação, visto que ela teria melhor competência para atuar nesse âmbito. Esse é o discurso que se busca naturalizar, não apenas na sociedade brasileira como na mundial, de demonização do Estado e exaltação da gestão empresarial, tida como ética e eficiente, digna de confiança (Souza, 2006). A reformulação do ensino superior, iniciada a partir de 1994, tem sequência na década seguinte, em especial, no governo do ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva. Um conjunto de leis, decretos e medidas provisórias foram promulgados nesse sentido, como as elencadas por Lima (2011, p. 89). a) o Sistema Nacional de Avaliação do Ensino Superior (SINAES), Lei n. 10.861/2004; b) o Decreto n. 5.205/2004, que regulamenta as parcerias entre as universidades federais e as fundações de direito privado, viabilizando a captação de recursos privados para financiar as atividades acadêmicas; c) a Lei de Inovação Tecnológica n. 10.973/2004, que trata do estabelecimento de parcerias entre universidades públicas e empresas; d) o Projeto de Lei n. 3.627/2004, que institui o Sistema Especial de Reserva de Vagas; e) os projetos de leis e decretos que tratam da reformulação da educação profissional e tecnológica;
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f) o Projeto de Parceria Público-Privada (PPP), Lei n. 11.079/2004, que abrange um vasto conjunto de atividades governamentais; g) o Programa Universidade para Todos (ProUni), Lei n. 11.096/2005, que trata de “generosa” ampliação de isenção fiscal para as instituições privadas de ensino superior; h) o Projeto de Lei n. 7.200/2006, que trata da Reforma da Educação Superior e se encontra no Congresso Nacional; i) a política de educação superior a distância, especialmente a partir da criação da Universidade Aberta do Brasil, Decretos n. 5.800/2006 e 5.622/2005; j) o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), Decreto n. 6.096/2007, e o Banco de ProfessorEquivalente; k) o “pacote da autonomia”, lançado em 2010 e composto pela Medida Provisória 495/2010 e pelos Decretos n. 7.232, 7.233 e 7.234/2010. Esse “pacote” amplia a ação das fundações de direito privado nas universidades federais; retira das universidades a definição dos projetos acadêmicos a serem financiados, transferindo essa prerrogativa para as fundações de direito privado; legaliza a quebra do regime de trabalho de Dedicação Exclusiva (DE); não resolve a falta de técnico-administrativos, criando somente um mecanismo de realocação de vagas entre as Instituições Federais de Ensino Superior (IFES); cria as condições para a diferenciação dos orçamentos das IFES, de acordo com índices de produtividade, intensificando ainda mais o trabalho docente e, por fim, cria o Programa Nacional de Assistência Estudantil (PNAES), sem deixar claro de onde sairão os recursos financeiros para realização do Programa e l) a Medida Provisória n. 520, de 31 de dezembro de 2010, que autoriza a criação da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares. Embora estatal e vinculada ao Ministério da Educação (MEC), a nova entidade terá personalidade jurídica de direito privado, flexibilizando a contratação de trabalhadores dos hospitais universitários.
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Entre os programas governamentais instituídos para favorecer a expansão do ensino superior, o PROUNI , o FIES e o REUNI vêm 2
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proporcionando a oportunidade de inserção e permanência de pessoas oriundas das camadas mais populares em cursos de graduação. No entanto, não estão isentos de críticas por parte de membros da comunidade acadêmica. Catani, Hey e Giglioni (2006), por exemplo, problematizam se o PROUNI seria um instrumento de democratização da educação superior no Brasil ou um mero programa de estímulo à expansão das IES privadas. Os autores argumentam que, desde a apresentação no Congresso Federal do projeto de lei que instituiria o PROUNI, o mesmo começou a ser desfigurado pelas emendas que objetivavam atender às pressões impostas pelos representantes das mantenedoras. Os impasses obrigaram o governo federal a negociar com tais representantes e, após acordo, o PROUNI foi instituído por medida provisória. As concessões por parte do governo tornaram o PROUNI, conforme os autores, altamente benéfico e lucrativo para as mantenedoras. Catani, Hey e Giglioni (2006) concluem que o PROUNI acabou por estabelecer um falso sentido de democratização do ensino superior, mas que, em realidade, legitima a desigualdade social ao priorizar a inserção precária dos estudantes pobres nas instituições privadas. Carvalho (2006) também questiona o PROUNI como política pública de democratização do ensino. Para a autora, “[...] a democratização do ensino é bastante complexa no Brasil, diante da 2
PROUNI – Programa Universidade para Todos.
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FIES – Financiamento Estudantil.
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REUNI – Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais.
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brutal desigualdade de renda entre as famílias e a reduzida parcela do ensino gratuito e de qualidade” (Carvalho, 2006, p. 992). A autora também critica o FIES, visto que ele não seria interessante para o aluno de baixa renda por haver uma defasagem entre a taxa de juros do empréstimo e a taxa de crescimento da renda do recém-formado, que se complica com o aumento do número de pessoas desempregadas com curso superior. Além dos programas mencionados, em 29/08/2012, foi sancionada pela ex-presidente Dilma Rousseff a Lei n. 12.711, que estabelece a reserva de 50% das vagas dos processos seletivos para ingresso nos cursos de graduação das universidades federais para os estudantes que cursaram, integralmente, o segundo grau em escolas públicas. Metade dessas vagas reservadas deverão, ainda, ser destinadas a estudantes cujas famílias tenham uma renda per capita inferior a 1,5 salários mínimos. Em relação às cotas, a lei estabelece, também, que as pessoas autodeclaradas negras, pardas ou indígenas devem compor, no mínimo, o percentual de representatividade dessas etnias levantados nos estudos do IBGE para a região onde se encontra a instituição de ensino. 5
Em seu pronunciamento na sanção da Lei de cotas, a ex-presidente 6
Dilma Rousseff disse que [...] A importância desse projeto e o fato de nós sairmos da regra e fazermos uma sanção especial tem a ver com um duplo desafio. Primeiro é a democratização do acesso às universidades e, segundo, o desafio de fazer isso mantendo um alto nível de ensino e a meritocracia. O Brasil precisa de
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IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística.
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Pronunciamento realizado em 29/08/2012 na cerimônia de sancionamento da Lei 12.711.
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fazer face a esses dois desafios, não apenas a um. Nada adianta eu manter uma universidade fechada e manter a população afastada em nome da meritocracia. Também de nada adianta eu abrir universidade e não preservar a meritocracia.
A fala da ex-presidente pontua os dois desafios fundamentais relacionados à democratização do acesso às universidades federais. Deve-se incluir a classe da ralé nas universidades, mas, em contrapartida, não se pode permitir a queda da qualidade de ensino. No entanto, para que essa queda de qualidade não ocorra, é imprescindível consolidar uma educação pública, no ensino médio e fundamental, que, além de gratuita, laica e democrática, seja, também, de qualidade. A qualidade da educação nos ciclos educativos que antecedem o ensino superior é primordial, também, para que se não permita a queda da qualidade no ensino superior privado, que, como já o disse, recebe em maior número os alunos provenientes da classe popular. Afinal, para que a educação superior possa efetivamente mudar a trajetória profissional desse aluno que hoje é pobre nos três quesitos do capital simbólico (econômico, cultural e social), é necessário que ele seja, no mínimo, intelectualmente bem formado. No entanto, as mudanças educacionais empreendidas desde a década de 1990 não priorizaram, em nível de graduação, a formação intelectual dos alunos. O modelo de educação terciária defendido pelo Banco Mundial acabou sendo inserido nas universidades públicas por meio do REUNI e se solidificou nas IES particulares com o PROUNI e FIES, entre outros programas e medidas, redirecionando o foco da formação intelectual para a formação técnico-profissional, atendendo
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aos interesses do empresariado. A liberalização da oferta de serviços educacionais e as isenções fiscais garantidas pelo PROUNI, associada à demanda reprimida de alunos das classes populares e média, tornaram o investimento na área da educação atrativo para empresários interessados em explorar esse setor. Conforme autores como Chaves (2010) e Saraiva (2011), ocorre no Brasil uma mercantilização do ensino superior, que leva, conforme Chaves (2010), à formação de oligopólios por meio da compra e fusão entre IES privadas. “Em um quadro de intensa competição, as organizações de educação superior se transformaram em centros efetivos de negócio, convertendo a educação em uma commodity, concebendo-a, produzindo-a e comercializando-a como tal” (Saraiva, 2011, p. 42). A partir de 2007, quando começam a abrir seu capital e negociar suas ações na bolsa de valores, os grandes grupos expandem significativamente seus negócios pelo País, atraindo mais investidores, entre os quais, o próprio Banco Mundial. Desde 2007, o processo de mercantilização do ensino superior brasileiro vem adquirindo novos contornos. Observa-se um forte movimento de compra e venda de IES no setor privado. Além das fusões, que têm formado gigantes da educação, as “empresas de ensino” agora abrem o capital na bolsa de valores, com promessa de expansão ainda mais intensa e incontrolável. São quatro as empresas educacionais que mais se destacam nesse mercado de capitais: a Anhanguera Educacional S. A., com sede em São Paulo; a Estácio Participações, controladora da Universidade Estácio de Sá, do Rio de Janeiro; a Kroton Educacional, da Rede Pitágoras, com sede em Minas Gerais; e a empresa SEB S. A., também conhecida como “Sistema COC de Educação e Comunicação”, com sede em São Paulo. É importante ressaltar que grande parte do capital dessas empresas é oriunda de grupos estrangeiros, em especial, de bancos de investimentos norte-americanos,
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que encontraram, nesse setor, um mercado muito favorável aos aumentos de seus lucros (Chaves, 2010, p. 491).
Os grandes grupos educacionais adotaram processos operacionais e de gestão típicas das organizações industriais e comerciais para reduzir seus custos, tornarem-se mais competitivas e ampliar seus lucros. Elas conseguem ofertar cursos de graduação com mensalidades mais acessíveis e inviabilizam o negócio de pequenas faculdades, que acabam sendo vendidas para esses grupos. No entanto, conforme Chaves (2010), os lucros exorbitantes e a sua atratividade no mercado de ações não têm relação com a qualidade de ensino. Essas redes precarizaram a função docente com a oferta de baixos salários, o descompromisso com os percentuais mínimos exigidos de permanência de mestres e doutores no quadro docente, e a retirada da autonomia dos professores para conduzir o processo pedagógico, tornando-os meros reprodutores do modelo preestabelecido. “Esse ‘novo’ modelo organizacional é movido pela ideologia do valor econômico e do marketing e fundamenta-se em princípios neoliberais como flexibilidade,
racionalidade,
produtividade
e
competitividade,
transformando a educação superior em negócio altamente lucrativo” (Chaves, 2010, p. 496). A qualidade do ensino foi afetada em decorrência dessa precarização do trabalho docente e da mercantilização do ensino, que transformou os alunos em clientes e os professores em mercadores conforme denuncia Saraiva (2011). Os cursos de administração também passaram pela precarização do ensino e sua mercantilização. Seu baixo custo operacional e seu alto
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retorno, associado ao interesse dos alunos/clientes que veem nesse curso uma alta possibilidade de inserção ou reinserção no mercado de trabalho, propiciou um crescimento exponencial da oferta de cursos de administração pelo país (Saraiva, 2011). Contudo, conforme esse autor, o direcionamento dos projetos pedagógicos para atender os interesses do mercado profissional levou a sociedade a um perigo preocupante. “O perigo reside na redução da educação e do seu papel transformador ao ensino e seu papel reprodutor. A maioria dos profissionais formados em administração se encontra longe da formação reflexiva” (Saraiva, 2011, p. 44). A formação em administração é influenciada pelo modelo gerencialista americano, que busca expandir estrategicamente seus métodos e técnicas de gestão pautados na racionalidade instrumental. Essa racionalidade baseia-se na lógica liberal que objetiva fortalecer as organizações e seus negócios globais, enfraquecendo a atuação, influência e poder do Estado sobre eles. A formação reflexiva vai de encontro a essa razão instrumental, tornando-a inapropriada e perigosa aos interesses do mercado, visto que a reflexão leva aos questionamentos e críticas que se quer evitar. Interessa ter um trabalhador capacitado e disciplinado para o trabalho e, não, um trabalhador capaz de resistir à ordem social que se quer manter. Assim, o fenômeno do pop-management tornou-se um importante instrumento para a disseminação do gerencialismo. As pesquisas realizadas em torno desse fenômeno por Wood Jr e Paula (2002a; 2002b; 2002c) apontam que, não somente a classe popular, mas como membros das demais classes sociais estão sendo influenciados a acreditar que caminham, ou
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deveriam caminhar, para o sucesso. A literatura do pop-management “[...] compreende livros e revistas produzidos pela mídia de negócios para consumo rápido dos leitores” (Wood Jr. & Paula, 2002c, p. 1) e surgiu para atender aos dilemas, anseios, receios e dúvidas dos gestores e profissionais da administração, apresentando soluções para os problemas relacionados ao cotidiano das organizações frente aos cenários de alta competitividade no mercado. Wood Jr. e Paula (2002c) salientam que boa parte dessa literatura é baseada na experiência de profissionais supostamente bem-sucedidos e nas análises dos chamados gurus da administração, relatando feitos heroicos de gerentes, exaltando as novas tecnologias gerenciais e apresentando conselhos para o sucesso profissional (Wood Jr. & Paula, 2002a; 2002b; 2002c). Essa literatura tem relevante influência na legitimação do que se deve entender por sucesso, bem como do que se deve fazer para alcançá-lo. Por seu alcance e apelo popular, tal literatura vem desempenhando um papel importante na disseminação de novas ideias e tecnologias gerenciais, além de influenciar, podemos especular, a construção das agendas dos executivos e dos pesquisadores da Administração. Adicionalmente, a literatura de pop-management também oferece aos seus leitores recursos cognitivos e discursivos para interpretação e racionalização de suas realidades (Wood Jr. & Paula, 2002c, p. 1).
Para Ituassu (2012), o conceito de sucesso absorvido pelo Brasil é um modelo americano – made in USA – carregado com os princípios neoliberais que o acompanham. Junto às tecnologias gerenciais relacionadas à cultura do management absorvemos, também, uma
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determinada visão do homem, da sociedade, do trabalho e, por que não dizer, do sucesso. “Um sucesso a ser obtido, sobretudo, via habilidades relacionais e de comunicação, e que reside na posse crescente de bens, na ascensão profissional e no poder e prestígio que acompanham as conquistas anteriores” (Ituassu, 2012, p. 204). Entretanto, além de apresentar um conceito de sucesso e atribuir-lhe habilidades comportamentais, o pop-management estabelece, em seus implícitos discursivos, as características físicas do bem-sucedido. Ituassu (2012) assevera que, na cultura do management, a pessoa de sucesso tem uma aparência claramente definida. O “[...] bem-sucedido que é branco, do sexo masculino, maduro no início do período analisado [décadas de 1970 e 1980] e jovem no final [a partir da década de 1990]; ele cuida do seu visual, se veste bem, é magro, alto e bonito” (Ituassu, 2012, p. 201). Quanto à posição que esse indivíduo de sucesso ocupa no ambiente de trabalho, ela refere-se a posições de quem se encontra no topo das organizações, pois foi institucionalizado o sentido de que a pessoa bemsucedida é aquela com “[...] posses, altas rendas e altos postos” (Ituassu & Tonelli, 2012, p. 212). A influência do pop-management não está restrita à literatura. Os demais meios de comunicação como a televisão e as redes sociais, por exemplo, assimilam seus postulados e contribuem para a disseminação em massa da cultura do management. Como esclarecem Ituassu e Tonelli (2012), as mídias desenvolvem um papel de significativa relevância no que concerne a sua capacidade de moldar a sociedade e promover alterações nas relações das pessoas com o mundo entre elas e consigo mesmas. Assim, não é necessário que membros da ralé leiam as revistas
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e livros do pop-management para serem influenciados por suas concepções de carreira e sucesso, uma vez que seu discurso está presente nas novelas, nos programas de entrevistas e nos telejornais, nas redes sociais, entre outros, criando modelos de referência para o que se deve considerar uma pessoa de sucesso e uma carreira de sucesso. No entanto, o discurso do pop-management, como integrante de uma cadeia de negócios, está impregnado de interesses econômicos e não representam a realidade do cotidiano organizacional e social. Seja para a classe popular, seja para as demais classes sociais, cabe refletir sobre a afirmação de Wood Jr. e Paula (2002a, p. 118) de que [...] podemos optar por consumir avidamente a literatura de popmanagement, com seus modismos gerenciais e receitas de como vencer na vida, procurando nos manter seguros e atualizados em relação a tudo aquilo que está disponível no mercado do management. Porém também podemos nos arriscar a construir uma atitude, nos valendo do livre-arbítrio para estabelecer critérios de avaliação e questionar tudo aquilo que nos é apresentado, assumindo completa responsabilidade por nossas decisões organizacionais e escolhas profissionais, bem como pelas consequências que as mesmas terão na vida social.
A reflexão a que nos convida a citação acima ganha maior relevância a partir da observação de Tonelli (2001), ao dissertar sobre o fenômeno da globalização e seus impactos consumistas na sociedade, de que no contexto contemporâneo tudo é descartável. “Os objetos, as relações amorosas e o trabalho, tudo é efêmero, passageiro, volátil, feito para não durar” (Tonelli, 2001, p. 10). A classe popular se insere, tanto quanto a classe média, nesse contexto consumista, embora em condições de desigualdade ante sua capacidade social, econômica e
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cultural. Embora sejam seduzidos por esse sentido de sucesso que o popmanagement busca legitimar, a classe social da ralé brasileira (Souza, 2009), enquanto uma classe subcidadã, não consegue corresponder à sedução. Configura-se, portanto, como excluída, pois como esclarece Tonelli (2001, p. 10), os excluídos são, justamente, “[...] aqueles que não conseguem, apesar de seduzidos, corresponder à dedução”. Por outro lado, a sociedade, em um sentido geral, não percebeu ainda que essa concepção de sucesso é uma construção influenciada, principalmente, pelos valores capitalistas americanos, que atendem, portanto, a interesses relacionados à colonização de nosso País. O sucesso, assim como o gosto (Bourdieu, 2013), passou a ser uma criação social influenciada pela elite dominante. A sociedade, como um todo, carece de uma reflexão sobre outras possibilidades de sucesso, outros sentidos. Partem todos em busca de um determinado tipo de sucesso, ainda que os resultados não cheguem e que esta busca traga perdas, desconsiderando-se a possibilidade de um sucesso particular, privado, diferente ou único, como se o sucesso fosse naturalmente sinônimo de posses, altas posições, bons salários e prestígio, quando esse sentido foi construído coletiva e interativamente e pode, portanto, ser reconstruído (Ituassu & Tonelli, 2012, p. 213).
É no contexto dessa sociedade de consumo que a educação, mais uma vez, desponta como uma promessa da modernidade, seduzindo os jovens da classe popular com promessas de sucesso em seu desenvolvimento socioeconômico que não tem garantias de cumprir. A realidade social nos convida a olhar o sistema educacional com um olhar
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mais crítico, o que se pode fazer a partir das contribuições de Pierre Bourdieu e sua sociologia da educação. A EDUCAÇÃO E SEU PAPEL NA MANUTENÇÃO DAS DESIGUALDADES SOCIAIS
Na obra de P. Bourdieu, a família e a escola estão envoltas em um mercado de bens simbólicos atuando como instituições reprodutoras de normas e valores morais, estabelecidos pelas elites dominantes, que impactam as competências necessárias para que cada agente atue adequadamente nos seus respectivos campos. Dessa forma, as classes herdeiras de um elevado capital cultural, consequentemente portadoras de um elevado capital escolar, sobrepõem-se sobre as demais classes sociais desprovidas ou menos aquinhoadas desse capital. Porque para Bourdieu e Passeron (2014), a cultura que se fez legitima, validada pelos exames e consagrada pelos diplomas, é a da elite. O ensino, para esses autores, mesmo no campo das ciências, implicaria um corpo de saberes, de saber-fazer e de saber-dizer que constitui um patrimônio das classes cultas. Para Bourdieu e Passeron (2014), a escola republicana libertadora, tida como instrumento político de democratização e de garantia da igualdade social a todos, e de promoção da mobilidade social, é um mito. Assim, o diploma escolar passa a ser investido de um elevado poder simbólico, como pontua Alves (2008), levando a escola a se transformar em uma importante instituição mantenedora da ordem social nos diversos países da comunidade mundial. “A obtenção do diploma, por definição, “fixa” as disposições dominantes. Trata-se de uma delegação
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simbólica que desapossa e separa os menos competentes em favor dos mais competentes; os menos instruídos, em favor dos mais instruídos” (Alves, 2008, p. 6). É nesse contexto que Bourdieu (2012; 2013); Bourdieu e Passeron (2010; 2014), interessados em estudar o problema das desigualdades escolares, descontrói o mito da escola republicana libertadora e apresenta sua teoria de que a instituição escolar é, ao contrário, reprodutora das desigualdades sociais. É provavelmente por um efeito de inércia cultural que continuamos tomando o sistema escolar como um fator de mobilidade social, segundo a ideologia da “escola libertadora”, quando, ao contrário, tudo tende a mostrar que ele é um dos fatores mais eficazes de conservação social, pois fornece a aparência de legitimidade às desigualdades sociais, e sanciona a herança cultural e o dom social tratado como dom natural (Bourdieu, 2012, p. 41).
Segundo Nogueira e Nogueira (2002), até a metade do Século XX, era predominante nas ciências sociais brasileira e, também, no sensocomum,
uma
visão
extremamente
otimista,
inspirada
no
funcionalismo, que designava à escolarização um importante papel no processo de superação do atraso econômico, do autoritarismo e dos privilégios de classe, pertencentes às sociedades tradicionais, e de construção de uma nova sociedade, que deveria ser justa (pautada na meritocracia), moderna (com a valorização da razão e do saber científico ), e democrática (com base na autonomia individual). Pensava-se, conforme os autores, que, por meio da escola pública e gratuita, o problema do acesso à educação no Brasil seria resolvido, garantindo a igualdade de oportunidades para todos os cidadãos. Os alunos
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competiriam, dessa forma, em condições de igualdade no âmbito do sistema de ensino, de forma que aqueles que se destacassem o fariam em decorrência de seus dons individuais e avançariam em suas carreiras escolares e, consequentemente, na hierarquia profissional e social, de forma justa. Essa perspectiva coloca a escola na posição de uma instituição neutra, propagadora de conhecimento racional e objetivo e que selecionaria seus alunos com base em critérios racionais (Nogueira & Nogueira, 2002). Bourdieu e Passeron (2010; 2014) defendem tese contraria a essa visão da escola como uma instituição imparcial. Os autores questionam frontalmente a neutralidade da escola e do conhecimento escolar, “[...] argumentando que o que essa instituição representa e cobra dos alunos são, basicamente, os gostos, as crenças, as posturas e os valores dos grupos dominantes, dissimuladamente apresentados como cultura universal” (Nogueira & Nogueira, 2002, p. 18). Ao definir seus currículos, seus métodos de ensino e suas formas de avaliação, a escola teria um papel ativo no processo social de reprodução das desigualdades. Além de reproduzir as desigualdades sociais, a escola promoveria, ainda, conforme Bourdieu e Passeron (2010; 2014), a legitimação dessas desigualdades que estariam dissimuladas na meritocracia. Isso porque a escola justificaria as diferenças acadêmicas e cognitivas como sendo diferenças relacionadas aos méritos e dons individuais. Logo, o trabalho de Bourdieu e Passeron (2010; 2014) é uma denúncia de que o
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desempenho escolar no sistema de ensino francês 7 não dependeria, como simplesmente se defendia, dos dons individuais, mas da origem social dos alunos. Para os autores, [...] a cegueira às desigualdades sociais condena e autoriza a explicar todas as desigualdades, particularmente em matéria de sucesso escolar, como desigualdades naturais, desigualdades de dons. Atitude idêntica está na lógica de um sistema que, repousando sobre o postulado da igualdade formal de todos os alunos, condição de seu funcionamento, não pode reconhecer outras desigualdades que aquelas provenientes dos dons individuais (Bourdieu & Passeron, 2014, p. 92).
A origem social exerceria uma influência sobre o desempenho escolar ainda mais forte que o sexo e a idade e, sobretudo, mais do que um ou outro fator claramente percebido, como a afiliação religiosa (Bourdieu & Passeron, 2014; Nogueira & Nogueira, 2002), por exemplo. E ainda. Definindo chances, condições de vida ou de trabalho totalmente diferentes, a origem social é, de todos os determinantes, o único que estende sua influência a todos os domínios e a todos os níveis da experiência dos estudantes e primeiramente às condições de existência. O hábitat e o tipo de vida cotidiana que lhe estão associados, o montante de recursos e sua repartição entre os diferentes postos orçamentários, a intensidade e a modalidade do sentimento de dependência, variável segundo a origem dos recursos, como a natureza da experiência e os valores associados à sua aquisição, dependem diretamente e fortemente da origem social ao mesmo em tempo que substituem sua eficácia (Bourdieu & Passeron, 2014, p. 28).
7 Embora as pesquisas de P. Bourdieu tenham sido realizadas na França e digam respeito ao sistema de ensino francês, o autor nos convida a ultrapassar a leitura particularista buscando verificar a pertinência e alcance de suas teorias à nossa realidade local (Bourdieu, 2011a).
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Bourdieu e Passeron (2014) observaram que os estudantes pertencentes à classe alta têm maior facilidade em adquirir a cultura ensinada nos bancos escolares, adquirindo-a quase que de maneira osmótica. Isto seria explicado pelas facilidades de que dispõe na sua rotina familiar, tais como acesso a livros e bibliotecas, visitas a teatros e museus, o aprendizado de música e línguas estrangeiras e a realização de viagens internacionais, entre outros fatores. Portanto, tais estudantes teriam acesso privilegiado a diversos elementos da cultura hegemônica no seu próprio cotidiano. No sentido oposto, para os estudantes das classes sociais desfavorecidas (para os filhos de camponeses, de operários, de empregados ou de pequenos comerciantes), a cultura escolar tem por objetivo aculturá-los por meio de uma aprendizagem vivida artificialmente, visto que a cultura hegemônica está socialmente distante de suas realidades concretas (Bourdieu, 2012; Bourdieu & Passeron, 2010; 2014). “Portanto, o que a escola qualifica como dom natural nada mais é, na maioria das vezes, que a manifestação de uma afinidade ligada a valores sociais e às exigências do próprio sistema escolar” (Nogueira & Nogueira, 2002, p. 10). Assim, na perspectiva de Bourdieu e Passeron (2010), os alunos oriundos dos meios culturalmente favorecidos teriam na educação escolar uma continuação da educação familiar. Para os demais estudantes, a educação escolar representaria algo estranho, distante ou mesmo ameaçador (Nogueira & Nogueira, 2002). A cultura da elite é tão próxima da cultura escolar que as crianças originárias de um meio pequeno-burguês (ou, a fortiori, camponês e operário) não podem adquirir, senão penosamente, o que é herdado pelos
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filhos das classes cultivadas: o estilo, o bom-gosto, o talento, em síntese, essas atitudes e aptidões que só aparecem naturais e naturalmente exigíveis dos membros das classe cultivada, porque constituem a “cultura” (no sentido empregado pelos etnólogos) dessa classe (Bourdieu, 2012, p. 55).
Na sociologia da educação de Pierre Bourdieu, a posse de capital cultural é determinante no êxito escolar por favorecer o desempenho de seus detentores nos processos formais e informais de avaliação, como observaram Nogueira e Nogueira (2002). Bourdieu (2012) observa que a avaliação extrapola a função de uma simples verificação da aprendizagem escolar. A avaliação acarreta em julgamento cultural e, até mesmo, moral dos estudantes. Julgamento este que ocorre segundo a escala de valores das classes privilegiadas. Portanto, cobra-se que os estudantes apresentem um estilo elegante de falar e de escrever, uma maneira adequada de se comportar, que sejam intelectualmente curiosos, interessados e disciplinados, sabendo cumprir com adequação as regras sociais da boa educação. “Essas exigências só podem ser plenamente atendidas por quem foi previamente (na família) socializado nesses mesmos valores” (Nogueira & Nogueira, 2002, p. 21). Embora Bourdieu (2012; 2013); Bourdieu e Passeron (2010; 2014) tenham atribuído uma relevância maior ao capital cultural em sua teoria, isso não implica uma falta de reconhecimento da importância do capital econômico e social. Aliás, a constante interrelação entre os diversos capitais é fundamental para a economia das trocas simbólicas (Bourdieu, 2005). Em relação ao capital social, Bourdieu (2012) o aponta como um importante instrumento de acumulação do capital cultural. O autor explica que o volume de capital social que um indivíduo tem
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depende do alcance da rede de relações que ele é capaz de mobilizar e do volume de capital – econômico, cultural ou de outro tipo simbólico – que pertence aos indivíduos a que ele está ligado por meio dessa rede de relações. O autor continua a explicação afirmando que [...] embora seja relativamente irredutível ao capital econômico e cultural possuído por um agente determinado ou mesmo pelo conjunto de agentes a quem está ligado (como se vê no caso do novo rico), o capital social não é jamais completamente independente deles pelo fato de que as trocas que instituem o inter-reconhecimento supõem o reconhecimento de um mínimo de homogeneidade “objetiva” e de que ele exerce um efeito multiplicador sobre o capital possuído com exclusividade (Bourdieu, 2012, p. 67).
O capital social e o capital econômico funcionariam, na interpretação de Nogueira e Nogueira (2002), mais comumente, apenas como meios auxiliares na acumulação do capital cultural. O capital econômico permitiria, por exemplo, o acesso a produtos e serviços compatíveis com o volume acumulado desse capital que, no caso do sistema de ensino, permitiria o acesso a uma educação privada de qualidade, bens culturais mais caros como as viagens de estudo, frequência a cursos de idiomas e, no caso brasileiro, desde que acompanhado de um bom capital cultural acumulado, implicaria uma facilidade maior de acesso dos estudantes mais abastados às melhores universidades públicas do País. Conforme alertam Nogueira e Nogueira (2002), não devemos entender a bagagem herdada por cada indivíduo como um simples conjunto de capitais, mais ou menos rentáveis, que cada indivíduo
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utilizaria a partir de critérios idiossincráticos. Cada grupo social, a partir das condições objetivas que caracterizariam suas posições na estrutura social, criaria um sistema específico de disposições para a ação social que, na forma do habitus, seria transmitido aos indivíduos a eles vinculados (Nogueira & Nogueira, 2002). Bourdieu (2011a; 2011b; 2013) defende que as experiências de êxito e de fracasso acumuladas nos grupos sociais construiriam um conhecimento prático – o senso prático (Bourdieu, 2011b) – que não seria plenamente consciente e que permitiria aos indivíduos ter uma noção das possibilidades mais ou menos favoráveis do que se pode ou não conquistar a partir da realidade social em que se encontram, bem como os meios adequados de empreender tais conquistas. Para Nogueira e Nogueira (2002, p. 23), [...] dada a posição do grupo no espaço social e, portanto, de acordo com o volume e os tipos de capitais (econômico, social, cultural e simbólico) possuídos por seus membros, certas estratégias de ação seriam mais seguras e rentáveis e outras seriam mais arriscadas. Na perspectiva de Bourdieu, ao longo do tempo, por um processo não deliberado de ajustamento entre investimentos e condições objetivas de ação, as estratégias mais adequadas, mais viáveis, acabariam por ser adotadas pelos grupos e seriam, então, incorporadas pelos sujeitos como parte do seu habitus.
Quando aplicamos esse raciocínio à educação escolar, percebemos que os grupos sociais, com base nos exemplos de sucesso e fracasso vivenciados por seus representantes, estimam suas chances de sucesso, geralmente de forma inconsciente, conforme Bourdieu (2010), e passam a adequar seus investimentos a essas chances. Isso implica que os investimentos (não apenas financeiro, mas em um sentido mais amplo
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que envolve outros fatores como tempo e qualidade da dedicação) corresponderão à expectativa de sucesso que se vislumbra alcançar por meio da educação. Tais investimentos na carreira escolar dos filhos serão, portanto, maiores ou menores, conforme percebam as probabilidades de êxito. Bourdieu (2012) observou que os investimentos escolares variam também de acordo com os interesses de cada classe social, ou fração de classe, no que se refere à manutenção de sua posição social ou a busca por ascensão. Para o autor, os membros das classes dominantes, que buscam a manutenção de seu status quo e não dependem muito da educação escolar, não necessitam investir tanto quanto os membros da classe média que dependem de uma boa formação para atingir ou manter sua posição social. Portanto, para Bourdieu (2012), a importância dada ao investimento escolar é baseada no provável retorno que os títulos escolares podem propiciar. Esse retorno não se aplica somente ao mercado de trabalho com o acesso a determinadas profissões mais prestigiadas e rentáveis, mas também a outros mercados simbólicos como o matrimonial, como lembraram Nogueira e Nogueira (2002). Como a classe dominante conta com um acesso fácil aos títulos escolares, acaba por não lhes dar um valor tão significativo quanto o fazem as demais classes. Nesse contexto, Bourdieu (2012) avalia separadamente as implicações e características do investimento escolar para as diferentes classes. Sobre as classes populares, que interessam particularmente neste texto, o que se percebe é que, para esse grupo social, o investimento escolar é um investimento de risco. Cabe lembrar que, por
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investimento, não tratamos apenas dos valores econômicos envolvidos, mas também do empenho de tempo, dedicação e outros recursos simbólicos. As classes populares são detentoras de pouco capital econômico e cultural e, portanto, tendem a investir pouco em educação escolar. O baixo investimento estaria associado a vários fatores. Um deles é a baixa expectativa de retorno que está relacionada à percepção de que as possibilidades de sucesso são reduzidas devido ao pouco acúmulo de capital, em especial, o cultural, essencial para o bom desempenho escolar. O risco do investimento é alto para as classes populares devido à incerteza quanto ao retorno desse investimento. O risco se amplia devido aos muitos anos de estudo necessários para a obtenção dos títulos acadêmicos. As famílias brasileiras das classes populares dificilmente dispõem da possibilidade de manter seus filhos afastados do mercado de trabalho para que se dediquem exclusivamente aos estudos. Ao contrário, a renda proveniente dos filhos jovens costuma ser imprescindível para que a família tenha uma melhor qualidade de vida. Bourdieu e Passeron (2014) observaram que, nas classes populares, a hereditariedade social das aptidões pode ser mais facilmente percebida. A dificuldade em ter sucesso com o investimento escolar evoca os dons individuais que, diferentemente dos dons relacionados à capacidade educacional atribuídos aos membros das classes dominantes, estariam relacionados às práticas profissionais. A habilidade, muitas vezes transmitida de pai para filho, de trabalhar nas atividades artesanais ou em outras habilidades práticas no emprego de técnicas produtivas, frequentemente invocam “[...] a interrupção dos estudos para salvaguardar, na ausência de todo sucesso, a virtude do
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dom individual, segundo a mesma lógica pela qual as classes altas podem atestar-se o dom atualizado no sucesso” (Boudieu & Passeron, 2014, p. 95). Nogueira e Nogueira (2002) lembram que o sucesso do retorno proveniente dos títulos escolares ainda depende, mesmo que parcialmente, do capital econômico e social da família para que possam ser potencializados. O que se quer dizer é que, mesmo com um título acadêmico de médico, advogado, engenheiro, administrador ou de qualquer outra profissão, os filhos das classes populares enfrentam uma acirrada competição no campo socioprofissional pelas melhores posições e oportunidades. O pouco capital econômico e social acumulado permanece sendo um empecilho para esse grupo social em sua trajetória escolar e profissional. Isso não implica a impossibilidade de sucesso – pensando o conceito de sucesso estabelecido pela elite dominante – mas que se exige dos filhos das classes populares um esforço muito maior do que o exigido das demais classes. Não há, portanto, igualdade de condições, o que justifica a crítica de P. Bourdieu à meritocracia e à visão idealizada de uma escola republicana libertadora. O DILEMA ENTRE A EDUCAÇÃO SE QUE QUER E A EDUCAÇÃO QUE SE TEM
Nesse texto buscou-se fazer um breve apanhado sobre o desenvolvimento do projeto educacional brasileiro ao longo do Século XX chegando ao período histórico contemporâneo. Em todo esse período esteve presente o desejo de se instituir uma educação republicana
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libertadora, emancipadora dos homens e mulheres, para que esses construíssem a nação brasileira do futuro, mais justa, igualitária e desenvolvida econômica e socialmente. Esse desejo, que figura como uma promessa que se renova ao longo do tempo, renovou as esperanças populares com o processo de expansão do ensino superior ocorrido a partir do final da década de 1990. Tal iniciativa permitiu que milhares de brasileiros pobres chegassem aos bancos universitários, de instituições públicas e privadas, em busca de uma formação capaz de lhes mudar a trajetória profissional e o destino social. Não se contava, entretanto, que este projeto, além de cometer o erro de não estar associado a um investimento mais amplo, envolvendo o desenvolvimento educacional da população brasileira desde a educação em nível básico, garantindo que as crianças e jovens das classes populares tivessem acesso a uma educação de maior qualidade, chegando melhor preparados ao nível terciário, fazia parte de um projeto obscuro, influenciado pelas elites capitalistas representadas pela figura do Banco Mundial. A educação libertária das consciências alheias, presente na ideologia de grandes pensadores da educação como Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro e Paulo Freire, vai de encontro aos interesses das elites dominantes
que,
conforme
demonstrou
Pierre
Bourdieu,
instrumentalizaram os sistemas educacionais para que estes reproduzissem as desigualdades sociais legitimando os sistemas de privilégios socialmente estabelecidos. O projeto de desenvolver homens e mulheres, para além das competências para o trabalho, capazes de avaliar criticamente sua realidade social, deu lugar, no interesse das
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elites dominantes, a um projeto de formação de mão de obra qualificada para o trabalho, engajada com os interesses organizacionais, e alinhada com a perspectiva moral da meritocracia, legitimadora da ordem social vigente. É neste contexto que a educação, enquanto uma promessa da modernidade, renova as esperanças da sociedade sem, contudo, até o presente momento, ter conseguido se estabelecer como um instrumento efetivo de transformação social. Quando falamos em educação é importante estabelecermos de que educação falamos e para que tipo de país. Há uma significativa diferença entre a educação que queremos e a educação que nos é ofertada. O problema, é claro, não está na educação em si, mas na instrumentalização que dela se faz para atingir objetivos outros que não aqueles capazes de promover a sociedade do futuro: livre, igualitária e fraterna, como inspirada pela Revolução Francesa. Para alcançarmos a educação que queremos devemos, assim como o fez Bourdieu, lançar nosso olhar crítico para a própria educação e seu sistema de reprodução, reconhecendo as limitações e direcionamentos que lhe estão sendo impostas pelos interesses antagônicos das elites dominantes. É preciso reconhecer que estamos envoltos em um intrincado jogo de relações de poder para subverter o processo de dominação social a que estamos submetidos, para enfim termos sucesso na construção de uma educação transformadora, pautada em uma pedagogia crítica, que há de nos tornar mais humanos, vivendo em uma sociedade mais humanizada.
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4 HISTÓRIAS, MEMÓRIAS E SABERES POPULARES: REFLEXÕES E APROXIMAÇÕES COM A GESTÃO ORDINÁRIA Paula Gontijo Martins 1 Gabriel Farias Alves Correia
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CONSIDERAÇÕES INICIAIS
O objetivo deste trabalho é elaborar direcionamentos teóricos para trabalhos que busquem a apreensão de histórias e memórias dos saberes populares nos Estudos Organizacionais, a partir do interesse pela gestão ordinária ou pelas práticas que organizam o cotidiano de pessoas comuns. A proposta se torna relevante com base nas diretrizes de autores como Barros e Carrieri (2015), Gouvêa, Cabana e Ichikawa (2018) e Joaquim e Carrieri (2018) de sobrelevar práticas historicamente desconsideradas pelos estudos do mainstream da Administração, fomentando novas possibilidades de compreensão do fazer social e que suportam a expansão do conhecimento por meio da pluralidade, rejeitando quaisquer tentativas de estabelecimento de históricas únicas e universais. Desta forma, reconhecemos a diversidade e as múltiplas significações que compõem o campo.
Doutora em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professora Substituta na Universidade Federal de Alfenas. E-mail: [email protected].
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Doutorando em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor Substituto na Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri. E-mail: [email protected].
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A abordagem histórica e sua aproximação com a Administração tem sido trabalhada há alguns anos, com recente aumento de trabalhos na última década, mas que ainda possuem forte dependência teórica do exterior (Costa, Barros & Martins, 2010; Vizeu, 2010; Carneiro, 2016; Costa & Silva, 2019; Carrieri & Correia, 2020; Costa & Wanderley, 2021). Além disso, os mesmos autores retratam que a discussão histórica na Administração avançou no sentido de discutir a gestão (management history), as histórias dos negócios (business history) e das organizações (organizational history). No entanto, consideramos importante discutir e avançar em novas visões e abordagens no campo, incentivando trabalhos direcionados aos modos de saber e aos modos de fazer populares a partir do olhar da gestão ordinária. Destacamos neste trabalho as vivências para além de modos de vida de grupos específicos, tradicionais ou não, mas que fazem, de alguma forma, resistência à sujeição e à homogeneização. O popular, o pequeno e os movimentos vinculados à literatura menor (Deleuze & Guattarri, 1978) resistem ao apagamento histórico, suas prescrições e legitimações dogmáticas, como lampejos para outras possibilidades de nos organizarmos. Lampejos na escuridão como vaga-lumes, como diz Didi-Huberman (2011). Fazer com o que se tem, arte de golpes, prazer em alterar as regras de um espaço opressor, destreza tática. O popular, o que acontece no dia a dia, no cotidiano das pessoas comuns, é um protesto ético contra sua fatalidade, contra a fatalidade da ordem global capitalista
e
estabelecida.
O
uso
popular
reivindica
outro
funcionamento das hierarquias de saber e de poder (Certeau, 2012).
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Para Bosi (2003), as culturas e os saberes populares guardam práticas que rompem com a pragmática utilitarista da ordem econômica à qual pertencemos, na qual os fins são preponderantes aos meios. Marginais às promessas de sucesso, fatigados pela fome, sede e excesso de esforço físico, a cultura popular valoriza o simples do cotidiano. A autora ainda ressalta a cooperação e o afeto como fundamentais à cultura popular. Indagamos ainda sobre as histórias que não são contadas, sobre as histórias dos vencidos, como colocado por Benjamin (2006). E na busca por estas fissuras, por estas lacunas, por estas brechas entre o que ainda existe e o que pode ser dito, perguntamos sobre a importância da escuta sobre o que os marginais do sucesso dizem sobre suas próprias histórias, sobre o que eles optam por rememorar e também sobre quais preceitos sustentam suas memórias. Coerente a escolha do popular ao erudito, do sujeito simples ao modelo de sucesso, resgatamos a importância da memória na formação da história não oficial. A memória possibilita o resgate de práticas e saberes populares que possuem pouco ou nenhum registro. É a partir disso que Bosi (1994/2015) e Neves (2010) atestam a possibilidade de acesso das experiências de sujeitos marginalizados pelos estudos do mainstream por meio da memória. Nessa perspectiva, a história ordenada e que procura estabelecer fontes mais “confiáveis” como documentos oficiais e grandes narrativas se recolhe ao segundo plano para que a percepção e os sentimentos individuais conexos aos acontecimentos protagonistas.
ou
determinados
períodos
históricos
sejam
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Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1
Propomos uma reflexão que perpasse a importância da história, da memória e dos saberes populares para a gestão. Para uma gestão ordinária, para uma gestão que se preocupa e valoriza os saberes de pessoas comuns no cotidiano. A gestão ordinária, para Carrieri, Perdigão e Aguiar (2014), é aquela realizada no cotidiano de negócios pequenos, distantes das grandes corporações e próximas às práticas culturais e sociais plurais, diversas. É o que ocorre no dia a dia dos negócios, a fuga de modelos de gestão para aproximação dos acontecimentos particulares, micro, atendendo aos interesses pessoais e relacionais. A gestão ordinária critica os modelos gerenciais institucionalizados pelo mainstream da Administração, que defendem um conhecimento tido como neutro e universal. Formas estas de pensar que escondem e apagam um cotidiano hipercomplexo (Mattos, 2009; Bertero et al., 2013; Carrieri et al., 2018). No que tange a organização deste ensaio, o subdividimos em seis partes, incluindo essas considerações iniciais. Na segunda parte, buscamos discutir os aportes teóricos relacionados às histórias e memórias. Logo após, apresentamos as possibilidades dos saberes populares. Na quarta parte discorremos sobre as discussões relacionadas à gestão ordinária para, em seguida, apresentarmos possibilidades de estudo que podem (e devem) ser extrapoladas. Por fim, apresentarmos nossas considerações finais.
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HISTÓRIAS E MEMÓRIAS
A abordagem histórica na Administração em conjunto com a memória permite, segundo as reflexões de Pena et al. (2016), apreendermos o passado. O trabalho com a história nos Estudos Organizacionais, de acordo com Maclean, Harvey e Clegg (2016), Carneiro (2016) e Costa e Souza (2019) tem sido fomentado nas últimas décadas, mas ainda existe espaço para diversos avanços teóricos e epistemológicos. Algumas características que auxiliam o processo de fomento histórico na Administração são: 1) cada vez mais a área apresenta pesquisas de caráter interdisciplinar, oferecendo resultados mais ricos para o campo e isto inclui também a adoção de abordagens históricas; 2) por não ser muito disseminado como método, ainda existem muitos setores da Administração brasileira a serem estudados por meio deste método; 3) a sociedade brasileira apresenta suas próprias peculiaridades, quanto ao seu modo de administração e gerenciamento, o que estimula o desvelamento de suas especificidades; e; por último; 4) tanto a Nova História quanto a história tradicional são estudadas em profundidade no país pelos historiadores brasileiros, ou seja, existem muitas informações valiosas ainda não aproveitadas pelos pesquisadores em Estudos Organizacionais (Fontoura, Alfaia & Fernandes, 2013). A realização da pesquisa na perspectiva histórica deve para Jacques (2006) seguir certo rigor científico, focando o método e a metodologia, o que não significa aproximação com as bases positivistas. O que o autor chama atenção é a realização de teorizações informadas dentro da
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perspectiva histórica, incluindo certo rigor na elaboração metodológica e do referencial teórico. Isso ocorreria por meio de diálogos e reflexões em conjunto para o fortalecimento das pesquisas historiográficas rigorosas, cabendo aos pesquisadores dos Estudos Organizacionais não somente utilizar as teorias desenvolvidas na história, mas auxiliar e contribuir na ampliação das teorizações sobre a abordagem. Vizeu (2010, p.38), complementa reforçando a importância desse movimento, já que a incompreensão destas teorias “compromete o entendimento mais acurado das abordagens atuais justamente porque reproduzem distorções perigosas sobre o processo de formação do pensamento administrativo”. Importantes encaminhamentos foram expostos por Carrieri, Perdigão e Aguiar (2014), Barros e Carrieri (2015), Carrieri et al. (2018), Carrieri e Correia (2020), Palhares, Correia e Carrieri (2020), Palma et al. (2021) e Oliveira et al. (2021) no sentido de acentuar histórias e saberes locais frente a hegemonia que a Administração estadunidense instiga e sua temporalidade transitória. Reavivar as histórias e as práticas específicas, refletindo e contrariando as generalistas, as adaptadas e as que somente são replicadas sem qualquer senso crítico são questionamentos pertinentes do ponto de vista histórico. É nesse sentido que “ao expor os processos específicos que permitiram a consolidação de certos discursos em detrimento de outros, bem como a forma específica de apropriação dos conceitos, seria possível ressaltar as singularidades das dinâmicas que acontecem localmente” (Barros & Carrieri, 2015, p.156). O particular, o pequeno, o esquecido, o ordinário, o singular nos interessam aqui. Trabalhar com estudos que não servem a generalização
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e a busca das “melhores práticas” instigam as pesquisas deste caminho, investigando as práticas e saberes como eles são, sem quaisquer julgamentos de valores, descomprometidos com a “eficiência” e “eficácia” comum nos estudos de gestão (Barros & Carrieri, 2015). Desvinculados com a necessidade de um fim à priori, a complexidade do meio processual é evidenciada e, nesse caminho, a memória dos praticantes, como nos ensina Stengers (2018), se apresenta como uma importante alternativa às tentativas de homogeneização do conhecimento da gestão. A reflexão de como, quando, onde, por que, para que, para quem e por quem a memória é acionada, organizada e efetivamente apresentada é importante para discutirmos o ato de rememorar. É importante ressaltarmos que a memória é fonte de conflitos, com interesse de apresentar o que deve ser exposto, mas também o que deve ser silenciado. É um valor disputado a todo tempo. Essas questões mostram que a memória é um fenômeno socialmente construído (Neves, 2010). O estudo da memória possui uma diversidade de temas e reflexões. Pollak (1989, 1992) elucida, com base em Maurice Halbwachs, que a memória parece ser um fenômeno individual. No entanto, ela deve ser considerada como fenômeno coletivo e social, construído e transformado coletivamente de forma dinâmica e fluída. A memória é tratada como cimento da vida cotidiana em Guarinello (2004). Ela é simultaneamente habilidade natural e construção social, atividade, movimento, atuante em uma espécie de trabalho que dá sentido ao passado, considerado como trabalho morto,
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Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1
mas que “compõe o palco da vida” (Guarinello, 2004, p.29). A memória, seja ela individual ou coletiva, não é um simples repositório passivo de fatos, pelo contrário, se caracteriza como produto cultural imensurável. Essa posição é adotada por Joaquim e Carrieri (2018) quando reforçam o caráter construtivo e reconstrutivo de significações que é a memória, distanciando da compreensão objetiva que a coloca como depósito passivo de fatos, ocorrendo no tempo presente sobre questões do passado. Ela, para os autores, nem sempre transmite informações completas, mas traz uma imensurável riqueza de possibilidades. O processo de recordar é uma das principais formas de nos identificarmos quando narramos uma história. Ao narrar uma história, identificamos o que pensamos que éramos no passado, quem pensamos que somos no presente e o que gostaríamos de ser. As histórias que relembramos não são representações exatas de nosso passado, mas trazem aspectos desse passado e os moldam para que se ajustem às nossas identidades e aspirações atuais. Assim, podemos dizer que nossa identidade molda nossas reminiscências: quem acreditamos que somos no momento e o que queremos ser afetam o que julgamos ter sido. Reminiscências são passados importantes que compomos para dar um sentido mais satisfatório à nossa vida, à medida que o tempo passa, e para que exista maior consonância entre identidades passadas e presentes (Thomson, 1997, p.57).
A mutabilidade, multiplicidade e riqueza da memória é considerada neste trabalho como a que sofre influência do tempo presente que é evocada. Thomson (1997) destaca que ela envolve um processo que reconstrói e transforma as experiências que são lembradas, interferindo naquelas que se escolhe recordar e relatar, dando sentido no presente para as questões do passado. No contexto dos
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Estudos Organizacionais, Costa e Saraiva (2011) destacam que o tema possibilita a reflexão de seu caráter modificador, tendo em vista que os conhecimentos passados são vinculados com perspectivas presentes. Ademais, Joaquim e Carrieri (2018) ressaltam a importância de considerarmos a memória diversa e plural, fazendo com que o processo que resulta tanto na lembrança quanto no esquecimento seja um processo de gestão, ou seja, uma atividade gerida intencionalmente e de caráter político. Bosi (2003) destaca a possibilidade de acessarmos, por meio da memória, as experiências de sujeitos marginalizados pelos saberes tradicionais e que muito têm a contribuir para ampliação dos estudos das práticas de sujeitos comuns. No mesmo sentido, a memória nos Estudos Organizacionais, nos auxilia no processo de evidenciar escolhas por lembranças e esquecimentos. As ponderações sobre passado e presente fogem de qualquer tentativa de neutralidade, exteriorizando as atribuições de valores de determinadas épocas (Costa, Barros & Martins, 2010; Costa & Saraiva, 2011). É a partir disso que afirmamos que o processo em que a memória é formada sofre interferência do meio social que o indivíduo se insere, sendo realizado a partir do ato de recuperar o passado no presente (Pena et al., 2016). Memória é o vínculo, material ou ideal, entre passado e presente que permite manter as identidades a despeito do fluxo do tempo, que permite somar os dias de modo significativo. É ela que dá sentido ao presente. É essencial tanto para indivíduos como para a sociedade ou para grupos dentro dela. Seu contrário, a amnésia, tanto individual como social, corresponde à inação quase absoluta. Não existe ação que não seja calcada na memória. Mas memória não é apenas um recurso que possibilita a ação.
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Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1
É uma poderosa estrutura, um instrumento para o agir social e, portanto, uma fonte de poder (Guarinello, 2004, p. 29).
A partir da indicação de Pena et al. (2016) de que a aproximação entre história e memória embasa a materialização das vivências dos indivíduos, consideramos que a reconstrução da primeira a partir da segunda possibilita sobrelevar fatos, sujeitos, narrativas, saberes, práticas e conhecimentos marginalizados. A memória e seu caráter construtivo e reconstrutivo de significações é evidenciado no estudo de Joaquim e Carrieri (2018), o que nos auxilia no distanciamento da objetividade que anseia defini-la como simples depósito de fatos. Com base em autores como Pollak (1989, 1992), Bosi (2003, 1994/2015), Meihy (2005) e Neves (2010) indicamos que neste trabalho a memória é tratada como fonte de imensurável riqueza de possibilidades, mesmo que ela não transmita informações completas e precisas sobre os fatos e eventos. Não é isso que nos interessa. Pelo contrário, estamos comprometidos com a apreensão dos inúmeros modos de se recontar histórias e dos saberes populares que circulam somente nestes meios, que é onde o conhecimento formal não alcança e não possui interesse de alcançar. São as práticas de sujeitos reais, comuns e ordinários que nos despertam atenção. Apostamos que as práticas, comuns, ordinárias, tidas como insignificantes, acessadas e possibilitadas pela memória, contêm potencial revolucionário que nos possibilitam resgatar e (re)imaginar outras formas de ações possíveis no mundo. Benjamin (2006) e Didihuberman (2011) sustentam esta aposta. Cabe destacar que este
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movimento se manifesta na história do tempo presente. Baseados em Santhiago, Borges e Rodrigues (2020), consideramos igualmente importante o fomento de estudos que olhem para o cotidiano e para as histórias silenciadas de pequenos sujeitos, espaços e memórias. Esses olhares auxiliam na expansão do fenômeno organizacional e uma ruptura com a instrumentalidade dos fatos sociais. Segundo Benjamin (2006), memorar perpassa a possibilidade de acumulação de experiências, o que tem se tornado cada vez mais problemático na contemporaneidade, ou sejam no tempo presente. A quantidade e a sobreposição de estímulos imagéticos e perceptivos atual diminui nossa capacidade de absorção e costura das experiências, o que impossibilita a construção de narrativas costuradas no tempo, no espaço e em coletivo. O esquecimento provém de vivências não experimentadas, não incorporadas, não vividas, apenas passadas. Prevalecem assim, as imagens-pensamento fragmentadas, recentes, individuais, desconectadas. Benjamin (2006) ressalta a importância das histórias tidas como insignificantes, das imagens e dos resquícios do cotidiano sufocados. É no cotidiano das experiências que as possibilidades de recriação das ações se fazem possíveis, o que Didi-Huberman (2011), inspirado em Benjamin, intitula de experiências vaga-lumes. Para este autor, os vagalumes são práticas populares de resistência histórica. São experiências de sobrevivência, reconhecidas ao observar seus modos de (re)existir no presente, no dia-a-dia. Constituem condições revolucionárias imanentes à possibilidade de existência. São o brilho dos desejos que iluminam os corpos no vazio das decisões cotidianas.
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Por meio do destaque das vivências, das experiências, dos sentimentos e das percepções dos sujeitos (e de seus saberes) populares, que a memória pode auxiliar no estudo de histórias que pouco ou nada conhecemos. O registro histórico possibilitado por meio da oralidade é uma fonte ímpar para estudos que considerem as impressões de épocas e de contextos que os documentos ditos oficiais não conseguem ou não estão interessados em captar. A reflexão em torno do como, quando, onde, por quem e por quê determinados fatos são narrados em detrimento de outros, se torna primordial para adotarmos olhares críticos em e sobre os nossos estudos, sobre nós pesquisadores. Nesse sentido,
conectarmos
os
estudos
históricos
nos
Estudos
Organizacionais com práticas, ações e saberes populares permite que fontes históricas antes desconsideradas nas investigações acadêmicas, possuam protagonismo. É por meio da interconexão com os saberes populares, que buscamos fomentar o estudo das brechas e das fissuras. Das vidas que se distanciam do “sucesso” e que, com seu formato comum, podem provocar a expansão do conhecimento. OS SABERES POPULARES
A dicotomização e hierarquização do norte sobre o sul global, da mente sobre o corpo, do masculino ao feminino, caminha associada à valorização do erudito e científico frente ao saber popular. Raciocínio este que transpomos para o universo administrativo. O mainstream da Administração, ou o pop-management, como classificam Wood Jr. e Paula (2002; 2006), que encorajam a formulação de modelos e padrões
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universais de gestão, apagam a complexidade de um cotidiano de racionalidades diversas (Foucault, 1987; Didi-Huberman, 2011), e assim, desvalorizam e desarticulam modos de saber e modos de fazer populares, reais e familiares à vida das pessoas comuns. Para Alcadipani e Rosa (2010, p. 372), as teorias tradicionais de Administração são anglocentradas e, até mesmo, eurocentradas, o que inibe a possibilidade, com base na realidade local, de sermos sujeitos da nossa própria história de gestão. Para os autores essas teorias administrativas têm como base: um tipo de “racismo epistêmico” que segrega e dispensa o conhecimento produzido fora de suas fronteiras sob o argumento de ele ser particularístico, incapaz de alcançar a “universalidade” dos modelos de gestão. Para Federici (2017), o que é tido como popular ameaça o projeto moderno colonial europeu que ainda estrutura o modelo de produção capitalista global. Para que o modelo de produção e trabalho vigente seja possível é preciso desassociar e descoletivizar a força de trabalho, bem como impor um uso mais produtivo do tempo livre. O sistema capitalista funda-se em uma moralidade que perpassa o cercamento físico, pela privatização das terras e dos meios de produção, e pelo cercamento social, dada pela transição do campo para o lar, da comunidade para a família, do espaço público para o privado. Cercamento das condições possíveis ao popular, simples, público, comum. Para que nosso sistema produtivo exista, faz-se necessário a privatização da vida, por meio da quebra do senso de identidade cultural, da solidariedade entre os pobres e da destruição dos espaços comunais e solidários.
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Os espaços comuns de produção econômica e cultural, festas, encontros artísticos, partilha sobre modos de fazer, transmissão oral de saberes ancestrais, passaram a ser um problema a ordem capitalista. Foi preciso criminalizar e destruir os espaços de encontro dos corpos, de identificação e afirmação de laços sociais, os espaços de criação e coletivização de saberes populares (Federici, 2017). No sentido contrário é preciso que estes saberes sejam conformados, precificados e consumidos. No mesmo sentido, autores decoloniais como Quijano (1992) e Mignolo (2010) denunciam que por trás da defesa do padrão de racionalidade econômica, mecanicista e funcionalista, estrutura-se o pensamento colonial racista que tem a exploração e destruição do “outro”, do outro diferente ao detentor de poder, sua principal engrenagem. Mignolo (2010) defende que na raiz etimológica da expressão cartesiana que funda o iluminismo europeu, “penso logo existo”, está a palavra latina “conquiro”, “conquiro logo existo”, pois o padrão de racionalidade defendido está baseado na expropriação, na aquisição. O que resulta bastante divergente de lógicas organizacionais africanas e americanas anteriores à invasão europeia. A retórica da modernidade que promete a salvação (conversão, civilização, desenvolvimento) está diretamente relacionada à lógica colonial de apropriação (trabalho, terra, gênero, sexualidade, conhecimento) (Mignolo 2010). São faces da mesma moeda. E, dessa forma, para que o sistema econômico gere acumulação de capital, desenvolvimento e prosperidade, é necessário explorar e dominar os territórios e saberes das raças ditas inferiores ou menos desenvolvidas.
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Em outras palavras, para que haja progresso para alguns, é preciso inventar o outro, o diferente, e assim, desqualificá-lo para que seja justificado e legitimado o processo de exploração, acumulação e apropriação. Estes outros podem ser os proletários, as massas trabalhadoras ou “vagabundas”, as mulheres, os escravos, os indígenas, e todos os outros “outros” estranhos ao padrão determinante do modelo hegemônico (Mignolo & Tlostanova, 2006). De forma a reforçar todo este processo de dominação, a colonialidade do saber-poder constrói separações e dicotomias entre saberes, a partir de um logocentrismo europeu, o qual está naturalizado como a única racionalidade capaz de ordenar o mundo. Segundo Walsh (2007) e Lugones (2011) a lógica moderna/colonial do conhecimento é construído pelo exercício da razão mental e especulativa, sendo que os saberes que não compartilham dessa epistemologia são destituídos de importância. As autoras ressaltam a importância de rompermos com a “lógica categorial” moderna, lógica mental, homogênea, dicotômica e hierárquica, que nega e invisibiliza outras formas de saber e existir. Walsh (2007) destaca a injustiça inerente ao sistema de valores impostos pelos europeus aos povos pertencentes aos “novos mundos”, quando o padrão de raciocínio, interpretação e avaliação, ou seja, os critérios para a determinação do que é verdade ou justiça (os mecanismos legais existentes), foram ditados pelos próprios colonizadores, ignorando as outras matrizes epistemológicas locais. O saberes providos pela prática, pelo corpo, resultado do convívio e observação da natureza, são classificados como saberes inferiores à
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racionalidade científica, e assim, deslegitimados, passam a ser denominados como saberes tradicionais, mitos, lendas e folclore. Neste sentido, a memória como fonte histórica de conhecimento, a memória como arcabouço para a transmissão de saber é invalidada. Os saberes populares, amparados pela transmissão oral de memórias ancestrais, ou seja, experiências acumuladas por gerações, são tidas como de menor valor. Carvalho (2010) denuncia a espetacularização e a canibalização das culturas populares da América Latina como continuidade do processo colonial dos últimos 500 anos. Culturas e experiências que possuem como princípios organizativos a autogestão e a sustentabilidade comunitária, além da oralidade como meio predominante de expressão e de transmissão. O autor destaca, que um dos traços principais que caracterizam esses grupos é a capacidade de resistir à pressão das elites para homogeneizar uma cultura nacional segundo a perspectiva da cultura erudita ocidental. Resistir crendo que os ensinamentos que recebem de outras fontes que não às oficiais ou institucionais, possuem valor e importância. Carvalho (2010) aproxima a espetacularização da cultura popular às
vivências
fugazes
trazidas
pela
modernidade,
discutidas
anteriormente por Benjamin (1987b). Estas são contrapostas a possibilidade de experiências que apontam para um possível impacto existencial no indivíduo (de cunho estético, emocional, intelectual, espiritual, afetivo) que ajuda a conectá-lo com a comunidade a que pertence e com a sua tradição específica, permitindo-lhe um maior enraizamento do seu próprio ser. Espetacularizar significaria, então, entre outras coisas, dissolver o sentido do que é exibido para deleite do
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espectador (Benjamin, 1987a). Segundo ele, a folclorização e a espetacularização destroem a experiência. E, por consequência, destroem a memória. Percebemos assim a descaracterização e o desmonte das práticas organizativas de cunho popular, baseadas em práticas que são ensinadas de geração em geração, predominantemente de forma oral e memorativa. Estas são ridicularizadas perante um saber organizar científico, baseados em modelos gerenciais, na maioria das vezes, testados no e para o norte global, direcionados a mercados completamente distintos à realidade local. Neste ponto podemos alinhavar o conceito de memória e saber popular como dimensões sociais valoradas como menos significativas, mas que trazemos neste texto, como fundamentais para compreensão da complexidade da vida, e assim, fontes e possibilidades, para a reconstrução de outros caminhos organizativos. A memória que questiona a história oficial contada e o saber popular que se alimenta de conhecimentos negados afirmam a existência de experiências ancoradas no infinito agora (Benjamin, 2006), que nos dão pistas para a construção de conhecimentos outros. E ao destacar a dicotomização e a hierarquização dos padrões morais aos quais estruturam nossa sociedade, não pretendemos reforçá-los, muito menos defender um padrão ao outro. Ao contrário, os evidenciamos para reforçamos a necessidade de compreensão de uma realidade complexa, na qual os diversos padrões estão articulados. É importante ressaltar e valorizar a complexidade, buscar entender suas diferentes implicações e importâncias. Segundo Rocha e Aguiar (2003,
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p. 65), devemos entender a complexidade como “um outro modo de organização de nossas ideias, um modo capaz de religar os conhecimentos fragmentados em especializações na era moderna. Um pensamento complexo ou uma análise da complexidade seria, então, capaz de articular o local, o singular (microssocial), com as representações e formas instituídas em um contexto mais amplo (macrossocial), favorecendo as análises das implicações sóciohistórico-políticas pelo coletivo.” A GESTÃO ORDINÁRIA
“É no ínfimo que eu vejo a exuberância” (Barros,1996, p. 55)
Ao pensarmos a gestão ordinária, precisamos considerar as bases que envolvem a temática, bem como suas discussões. Ela é embasada na noção de cotidiano de Certeau (2012), considerando que as práticas que nele ocorrem são difíceis de serem delimitadas, sendo interdependentes em um conjunto amplo de procedimentos. Nesse sentido é que as práticas que buscam a subversão de forma silenciosa se apresentam como objetos para o autor. As imposições, que ocorrem pelos sujeitos de maior poder, são trabalhadas a partir da ótica dos sujeitos que as descaracterizam, praticando movimentos quase que imperceptíveis no interior do sistema. Aqueles que produzem ações legitimadas por um sistema que os privilegiam, são renegados ao segundo plano nessa abordagem. As ações que ocorrem nas margens e nas brechas,
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produzidas pelos que não constroem para o mainstream conhecimento válido, são colocadas em evidência pelo filósofo. Muitas vezes bem debaixo do nariz do poder, dando força à massa anônima e a sua subversão silenciosa. Gente agindo como toupeiras, minando os edifícios bem instalados da moral e da lei, sem objetivos políticos determinados. Pequenas subversões sem propósitos, mas que temperam o cotidiano de ‘maravilhas’ como ‘festas efêmeras que surgem, desaparecem e voltam’ (Sousa Filho, 2002, p.132).
Guarinello (2004) reflete que as construções históricas que focam os olhares nos episódios usuais devem envolver o todo, mas também as partes. Os estudos que envolvem ações em um ambiente micro, contribuem para a compreensão de uma história que reflete o todo, mas que nunca conseguirá abranger a totalidade. Essas ações do micro, são realizadas pelos “Homens comuns” por vezes vencidos e ocultados das histórias oficiais e é por isso que “ao homem ordinário sobra um ‘domínio’ adaptado, pois ele carece do ‘próprio’, da propriedade, do espaço, mas, pela astúcia e pelas artimanhas, pelas práticas e por suas ações cotidianas subversivas no espaço do outro, ele consegue atuar” (Ichikawa, 2014, p.201). Nesse sentido, a concepção trabalha com a possibilidade do sujeito menor do ponto de vista histórico praticar e ter protagonismo no cotidiano, não sendo somente recusado e excluído por ele. Ainda que exista no senso comum o pensamento de que o cotidiano é composto por repetições lineares, dia após dia, na concepção de Certeau (2012) ele é mutável, sendo erigido a partir de ações plurais dos sujeitos. Nesse sentido é que Barros e Carrieri (2015), Cabana e Ichikawa (2017), Marins e Ipiranga (2017) e Wanderley e Barros (2018) afirmam que
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o cotidiano não pode ser considerado constante, mas como aquele que pode ser construído e reconstruído. Os sujeitos que estão envolvidos na construção do cotidiano se identificam com formas variadas de existir diferentes umas das outras, sendo impactados pela forma de organizar o tempo e pelos contextos em que estão inseridos em uma estrutura social. É por isso que Cantoral-Cantoral (2016, p.74), afirmou que o “acontecer cotidiano se encontra organizado por um tecido de tempos e espaços que garantem a reprodução da ‘ordem social’ construída e dinamizada [...]” O estudo que envolve o cotidiano abarca, sobretudo, as ações dos sujeitos, suas formas criativas e não lineares de apropriação do real. O comprometimento com o realce de interações que são múltiplas permite uma oposição à história hegemônica (Joaquim & Carrieri, 2018). Estudar o cotidiano possibilita ainda identificar a forma com que as grandes estruturas afetam as ações cotidianas das pessoas comuns, além de permitir a reflexão de como essas ações são compreendidas e rebatidas, confrontadas por meio de pequenas astúcias que resistem à dominação (Gouvêa, Cabana & Ichikawa, 2018; Wanderley & Barros, 2018; Correia, Pereira & Carrieri, 2019; Martins, 2021). O trabalho com o cotidiano tem sido utilizado em termos de gestão por meio das reflexões denominadas por Carrieri, Perdigão e Aguiar (2014, p.700) de gestão ordinária. Para os autores, ela é a “gestão realizada no cotidiano dos pequenos negócios e constitui uma prática social e cultural formada por uma pluralidade de códigos, referências, interesses pessoais e relacionais”. Ela se refere à gestão exercida por pessoas comuns, à gestão popular de seus cotidianos, de acordo com suas diversas
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formas de fazer e saber, que, por vezes são dissonantes de modelos administrativos preestabelecidos ou ditos científicos e universais. Entender o dia a dia dos pequenos e médios negócios perpassa pela compreensão das práticas cotidianas, dos fatos históricos, sociais, culturais e identitários que distinguem os sujeitos e pluralizam a sua gestão. Foca-se, então, no cotidiano do homem comum, distanciando-se dos parâmetros gerencialistas, podendo assim entender como este indivíduo conduz os negócios ordinários (Pena et al., 2016, p. 13-14).
Barros e Carrieri (2015) colocam que o estudo do cotidiano na gestão deve considerar eventos não sistemáticos, que não podem ser enquadrados e geridos pela racionalidade positivista que domina a Administração. É por isso que Gouvêa, Cabana e Ichikawa (2018) afirmam que os estudos da gestão ordinária, permitem inserir nos estudos da área saberes que muito têm a contribuir para a construção de conhecimento. A gestão ordinária lida, conforme Gouvêa, Cabana e Ichikawa (2018) com tentativas de inserir nas reflexões administrativas os que são excluídos e marginalizados pelos saberes já estabelecidos no campo. Nesse sentido, o trabalho com a história do cotidiano na gestão apresenta a possibilidade de dar ouvidos para novas vozes, fugindo da realidade que considera números e modelos como fundamentais para se discutir as organizações. Em Cabana e Ichikawa (2017) e em Correia e Carrieri (2019) podemos compreender que as imposições realizadas nas organizações para com os indivíduos ou grupos, podem ser aceitas, recusadas ou até receber bricolagens a partir de micropráticas. Os movimentos de
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resistência às imposições em âmbito organizacional se realizam por práticas por vezes ocultas, que não se caracterizam como ameaça ao poder dos dominantes, possibilitando com isso as invenções e reinvenções das práticas. Trabalhos como os de Carrieri, Perdigão e Aguiar (2014), Barros e Carrieri (2015), Carrieri et al. (2018), Wanderley e Barros (2018), Carrieri e Correia (2020) e Oliveira et al. (2021) nos auxiliam a refletir que os pesquisadores que se propõem a estudar saberes e práticas cotidianas no âmbito da Administração devem estar treinados para o reconhecimento das complexidades da realidade. Ademais, os autores afirmam nesses trabalhos, é de fundamental importância o compromisso com uma abordagem crítica diante do que está estabelecido como gestão, para que não se reproduza a visão hegemônica com a qual se busca rompimento. É na crítica à Administração tradicional e sua busca desenfreada pela maximização dos lucros por meio de uma lógica instrumental que Barros e Carrieri (2015) consideram que estão as bases da gestão ordinária. Diferente da divisão entre a razão e a emoção, da distinção entre aqueles que praticam e aqueles que refletem, a gestão ordinária auxilia na investigação das formas de gestão que ocorrem nas práticas de grupos afastados da legitimação dos saberes acadêmicos, viabilizando a observação das “intencionalidades institucionais e de grupos sociais em conduzir um acordo implícito e objetivo da não incorporação do valor humano nas práticas sociais” (Barros & Carrieri, 2015, p.159). Distante da concepção racionalista, Carrieri et al. (2012, p.222) detectam que os sujeitos “escapam silenciosamente dessa conformação dita racional”,
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facilitando a constante mutação do cotidiano da gestão, fazendo com que não exista uma forma única e determinada de gerir. A concepção da gestão ordinária não caminha para estabelecer modelos de gestão, prontos para simples aplicação. Pelo contrário, ela reconhece que gerir envolve pluralidade e que é a partir das diversas artes de fazer que uma parte da realidade pode ser compreendida. A gestão ordinária, a partir do movimento de dar ouvidos aos que os estudos hegemônicos calam (Gouvêa, Cabana e Ichikawa, 2018) se aproxima do saber popular e de suas memórias. Ela valida e possibilita a percepção da complexidade das formas de se organizar popular no cotidiano (Carrieri et al., 2018). O estudo das formas populares de organização tanto amplia o repertório de possibilidades de ação, quanto destitui a soberania do gerencialismo institucionalizado, ou de técnicas e modelos de gestão classificados como mainstream nos centros de ensino universitários. No gerencialismo, a organização tende a ser estruturada de forma rígida e formal, sendo a divisão hierárquica e a adoção de métodos de medição e controle da produtividade como necessários para cumprimento de objetivos econômicos (Carrieri et al., 2018). Para Certeau (2012), popular é “a maneira de utilizar sistemas impostos. Constitui a resistência à lei histórica de um estado de fato e a suas legitimações dogmáticas” (Certeau, 2012, p. 74). O fazer com o que se tem, a arte de golpes, o prazer em alterar as regras de um espaço opressor. Destreza tática. Para ele, a “vida não se reduz ao que se vê” (Certeau, 2012, p. 73). E o popular, o que acontece no dia a dia, no cotidiano das pessoas comuns, é um protesto ético contra sua fatalidade, contra a fatalidade da ordem global, capitalista, estabelecida.
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O uso popular modifica o funcionamento das hierarquias de poder e do saber à sua razão. O popular são as: [...] maneiras de falar que transformam a linguagem recebida em um canto de resistência, sem que essa metamorfose interna comprometa a sinceridade com a qual por ser acreditada, nem a lucidez com a qual se veem as lutas e as desigualdades que se ocultam sob a ordem estabelecida (Certeau, 2012, p. 74).
Popular aqui se equipara ao pensamento selvagem e às lógicas dos corpos constituídos como estranhos, mas que “renovam a interpretação e a produção de nossos próprios discursos” (Certeau, 2012, p. 76). O popular pertence à uma historicidade cotidiana, constituída pelos modos de usar as coisas e as palavras, segundo ocasiões, nada premeditadas. Pertence à uma historicidade social, constituída por instrumentos manipuláveis por usuários, as táticas possíveis em um sistema social dado. Ou seja, são as artes de (sobre)viver no campo do outro que transgridem a economia do lucro, seja pelo excesso (desperdício); seja pela contestação (rejeição do lucro); seja pelo delito (atentado contra a propriedade). O saber popular subverte “a lei que, na fábrica científica, coloca o trabalho a serviço da máquina, e, na mesma lógica, aniquila progressivamente a exigência de criar e a obrigação de dar”. (Certeau, 2012, p. 85). Certeau (2012) chamou de “artes de fazer”, “astúcias sutis”, “táticas de resistência”, que alteraram os objetos e os códigos e acabam por estabelecer uma (re)apropriação do espaço e do uso ao jeito de cada um. Para o autor, existem os (micro) exercícios, as táticas, de oposição e afrontamentos contra as estratégias incluídas no cotidiano pelos
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aparatos de repressão, pelas estruturas de dominação, elas mesmas, em constantes aberturas aos praticantes e ‘empreendedores’ de fissuras, de brechas. Foucault (2013, p. 28) ressalta a importância destas brechas, destas fissuras, destes espaços-tempos que rompem, paralisam, ressignificam a “vida ordinária”, e os denominam como espaços ou possibilidades heterotópicas. As heterotopias nos colocam em contato com complexidades que tensionam dicotomias naturalizadas em nosso comportamento social. As heterotopias abrem possibilidades para práticas de liberdade no momento em que possibilitam o deslocamento do que é dado como padrão, certo, normativo, ao modelo tradicional de gestão, permitindo a experimentação de relações diferentes, outras, estranhas. Experimentação de oportunidades antes não imaginadas, que recriam o que estava estabelecido como norma e reescrevem o conceito de organização (Hjorth, 2005). Para Foucault (2013, p. 19), “há – em toda sociedade – utopias que têm um lugar preciso e real, um lugar que podemos situar no mapa; utopias que têm um tempo determinado, um tempo que podemos fixar e medir conforme o calendário de todos os dias”. Ele destaca a importância da localização destes espaços pois não vivemos em um espaço neutro e branco. “Não se vive, não se morre, não se ama no retângulo de uma folha de papel. Vive-se, morre-se, em um espaço quadriculado, recortado, matizado, com zonas claras e sombras” (Foucault, 2013, p. 19). Foucault (2013) declara sonhar com a criação de uma “ciência” para o estudo destes espaços-tempos heterotópicos. Ele explica:
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“sonho com uma ciência – digo mesmo uma ciência – que teria por objeto esses espaços diferentes, estes outros lugares, essas contestações míticas e reais do espaço em que vivemos. Essa ciência estudaria não as utopias, pois é preciso reservar esse nome para o que verdadeiramente não tem lugar algum, mas as hetero-topias, espaços absolutamente outros” (Foucault, 2013, p.21).
O desafio então é acessar e resgatar as memórias dos saberes populares organizativos para que estes ajudem a compor o repertório de imagens-pensamentos (Benjamim, 2006) de nossas possibilidades de convivência e produção conjunta de um nova ciência. Saberes populares, as formas de saber e fazer rotineiras, cotidianas, do povo simples, ditos sem histórias, que possuem suas formas próprias de sobreviver e fazer a vida acontecer em seus contextos específicos. Experiências do saberfazer costuradas pelas memórias de gerações, transmitidas de mães/pais para filhas e filhos. São pescadores, artesãos, costureiras, paneleiras, doceiras, pessoas do fazer comum que antes de classificações profissionais, sabiam como organizar seus afazeres, sua rotina, seus propósitos, conforme as necessidades de seu povo, da sua terra, os ciclos da natureza, os ciclos do sol. Pessoas em que a classificação do tempo e do espaço segundo a lógica industrial não faz sentido. Que o nascer e o pôr do sol são mais significativos que a determinação dos dias de trabalho formal da semana. Jeitos de fazer que hoje são considerados estranhos, preguiçosos ou ineficientes, mas que guardam sabedoria transmitida por outros meios que não a escrita formal. Sabedorias guardadas em memórias individuais e coletivas, que para serem acessadas é preciso expandir os parâmetros de pesquisa e avaliação da ciência moderna tradicional.
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RELAÇÕES POSSÍVEIS ENTRE HISTÓRIA E MEMÓRIA, SABER POPULAR E GESTÃO ORDINÁRIA
Ao fomentarmos trabalhos que envolvam as interconexões entre as histórias e memórias, os saberes populares no cotidiano de pessoas comuns e suas formas de gestão do dia a dia, buscamos auxiliar as discussões que envolvam os invisibilizados, silenciados e os menores do ponto de vista da grande História. Quando pontuamos as gestões, falamos aqui não somente das (grandes) empresas que compuseram e continuam a compor o mainstream da Administração. Sobrelevamos as pequenas empresas, os pequenos negócios, compostos de inúmeros saberes populares ignorados pelas escolas de gestão, e também, o que destacamos como grande contribuição deste capítulo, os saberes organizativos das pessoas e grupos comuns, nem sempre organizados como negócio, mas que sustentam o dia a dia da luta pela sobrevivência de si e dos saberes que acumulam. Dessa forma, ao destacar as memórias populares, enfatizamos o organizar do cotidiano de pessoas comuns. Organizar as tarefas domésticas, da sequência do dia, da forma de dividir e estruturar seus compromissos e agendas. Como exemplo, entre a associação de pescadores em Cumuruxatiba, Bahia, não existe agenda, planejamento, ou acordo futuro. As ações dependem do tempo, da lua, da maré 3. Das condições do barco, do humor da família. Para que haja pesca, é necessária uma conjunção de fatores em que a ansiedade da produção precisa ser controlada. Há entre eles, o saber da espera, o saber observar 3 Conversa informal com pescadores na associação de pescadores de Cumuruxatiba, distrito de Prado, Bahia, em agosto de 2019.
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as condições do mar, que os destoam da lógica de produção fordista, a qual nossa subjetividade já incorporou como “natural”. Os saberes de como, onde e quando pescar são transmitidos pela observação e fazer conjunto, pela partilha dos acontecimentos ao entardecer, quando retornam à praia, pelas histórias contadas e inventadas do que aconteceu no mar, e também, pelas cantigas partilhadas. A música, cantada em coro, conta detalhes do fazer e do remo. Ao participar de uma das reuniões da associação, um dos pescadores canta: “o mar é coisa que não se pega, mas o conheço com minha mão”. Outro exemplo que poderia nos ajudar a pensar sobre as relações conceituais propostas neste texto, são as relações de produção de mulheres ceramistas no interior do estado de Oaxaca, México 4. Estas mulheres, não estão organizadas em associações, empresas ou negócios. Cada uma produz em sua própria casa. Ajudam-se em etapas coletivas, como a coleta do barro ou a queima das peças. No entanto, o fazer da cerâmica, mistura-se com o cuidar da roça e dos filhos, fazer comida e limpar o quintal. Depende da luz relativa à estação do ano, e dos tempos disponíveis no dia. Se há colheita ou não. No entanto, os tempos, o preparo do barro, o dia da queima das peças, requerem saberes partilhados entre avós, mães e amigas. Detalhes comentados enquanto desgranam o milho, ou quando cozinham juntas. Partilha de memórias de saberes e fazeres populares que determinam o organizar do dia a dia daquelas mulheres e de sua comunidade. Assim, memória, saber-fazer,
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Pesquisa realizada nos meses de fevereiro e março de 2018, em vigem para o Estado de Oaxaca, México.
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produção
e
cotidiano
estão
completamente
imbricados,
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são
indissociáveis das formas de sobrevivências de um determinado grupo. A queima das peças de barro é realizada de forma bastante peculiar, no chão, em fogueira disposta em ângulo específico em exatos 15 minutos de fogo alto. No barro, misturam um pouco de areia para que a peça vitrifique. Tais técnicas são tidas como erradas, ou inapropriadas, nos cursos de cerâmica tradicionais. Nestes, ensina-se que a queima direta ao fogo, rompe a peça. Da mesma forma, é preciso retirar toda a areia do barro para que não quebre ao queimar. Ao perguntar para as mulheres sobre estas contradições, contam que aprenderam assim com suas antepassadas. E assim vão testando misturas de matérias primas e memórias de famílias. Os acertos e erros são compartilhados quando preparam comida para os mutirões. De forma semelhante, donas de casa nas roças de Caldeirão Grande, município no interior da Bahia, ensinam sobre como lavar louças e roupas com o mínimo de água 5. Elas questionam o uso desmedido de água por pessoas que nunca passaram por situação de escassez ou que possuem sistema de água encanada em casa. Para a limpeza da louça de uma refeição para a família de 8 pessoas, usam dois baldes de água. Um apenas com água, outro com água e sabão. Iniciam a lavagem pelas peças menos sujas para as mais sujas, aproveitando a água de um para o outro. Lara, criança de oito anos, ensina como lavar o coador de café, sem sujar o restante da água. Dessa forma, contabilizam o uso da água do dia. Sabem sobre a média de uso diário e a diferença para os dias de festa. Pesquisa realizada nos meses de janeiro e fevereiro de 2019, em viagem para a cidade de Caldeirão Grande, Bahia.
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Em conversa com senhora, frequentadora assídua de baile popular de terceira idade localizado no centro da cidade de Belo Horizonte, ela conta sobre suas estratégias/táticas de sobrevivência financeira e emocional em relação à vida doméstica (casa, filhos, marido). Ela conta que começou a vender produtos cosméticos como justificativa para poder sair, dançar, encontrar amigas, e, além de tudo, garantir sua independência financeira do esposo. Não apenas ela, mas outras mulheres que ali conversamos, relatam que o trabalho informal, sem lugar fixo e criando clientela fidelizada indo de casa em casa, seja como vendedora, cabeleireira, cozinheira ou quituteira, modos de fazer por vezes aprendidos com suas mães e avós, foram ou são suas formas outras de reinventar a vida para além de difíceis condições de opressão. 6 Dessa forma, o esforço empreendido neste capítulo é atentar para as importantes contribuições das memórias populares para os estudos em gestão ordinária. Buscamos assim contribuir teoricamente para encorajar trabalhos que discorram sobre as gestões das vidas, dos corpos, das ideias, dos espaços, das festas, dos laços sociais, dos saberes, das comunidades, das práticas e as experiências que podem contribuir para o avanço de estudos históricos em organizações. E no intuito de contribuirmos com trabalhos que visem aprofundar sobre a riqueza do cotidiano, suas possibilidades de construção, sejam pelas memórias, sejam pelos saberes populares, ressaltamos as questões listadas abaixo. As perguntas que se seguem, não são questões para serem respondidas,
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Fragmentos de pesquisa realizada como trabalho de doutorado de Martins (2021).
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mas questões reflexivas que podem nos ajudar a expandir as possibilidades de pesquisa na administração.
Como a memória pode atuar em conjunto com a história na preservação de sabedorias populares?
Quais histórias e memórias sobre organização pertencem ao repertório de determinada localidade/comunidade?
Quais memórias e saberes sobre as formas de organizar foram silenciados? Como identificar os resquícios, as lacunas, os silenciamentos que nos dizem sobre saberes que não existem mais?
De que forma pessoas e grupos populares (bem como suas memórias, costumes, crenças, mitos e práticas) organizam as relações com o tempo e o espaço no cotidiano, ou seja, sobrevivem, de forma que confrontam o padrão de uma administração científica, produtivista, generalista e universal?
Quais memórias locais contam sobre outras lógicas organizacionais diferentes da lógica mercantilista de privatização, cercamento e apropriação física e social?
De que forma a oralidade e a transmissão de memórias elaboram o cotidiano de grupos e organizações?
Perguntas como estas poderiam nos ajudar a expandir o que entendemos como gestão, assim como expandir as discussões de gestão ordinária, trazendo à tona a riqueza de possibilidades que grupos populares trazem para a organização científica. Os saberes populares que enfatizamos aqui, experimentados por meio da memória de seu povo, evidenciam a complexidade de quem insiste em sobreviver como vaga-lumes (Didi-Huberman, 2011). Assim, para estudos das possibilidades de sobrevivência, faz-se necessária uma genea-arqueologia dos contra-poderes, onde se buscaria
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compreender como os vaga-lumes sobrevivem no presente. E, para tanto, Didi-Huberman (2011) ressalta que é preciso coragem e poesia. Coragem como virtude política. Poesia como a arte de fraturar a linguagem, quebrar as aparências e desmistificar a unidade do tempo e do espaço. Para visualizar o cotidiano dos vaga-lumes é preciso profanar o que é tido como sagrado, debruçar-se sobre rotas de fuga, “saberes clandestinos”, “saberes heterotópicos” (Didi-Huberman, 2011, p. 138), que criam fissuras, intervalos desconhecidos, no infinito presente cotidiano. São essas formas de gestão sobreviventes no cotidiano, que possuem um voo incerto dentro do conhecimento administrativo considerado racionalmente válido, que prosperam no interior das estruturas do sistema, alterando seu funcionamento, mas também deturpando-lhe, ressignificando-lhe, questionando-lhe (Souza Filho, 2002). Desta forma, não se trataria mais de precisar, na perspectiva foucaultiana, como a violência da ordem faz uso da tecnologia disciplinar, mas de perceber nas táticas desenvolvidas nas sutilezas do cotidiano, “uma espécie de sabedoria milenar orientando o enfrentamento da uniformização e do controle pretendidos pelos poderes e administradores que intentam governar em nome de um saber superior e do ‘interesse comum’” (Souza Filho, 2002, p. 133). CONSIDERAÇÕES FINAIS
O presente capítulo destaca a importância da memória como registro histórico, bem como dos saberes populares, para a ampliação das referências e possibilidades dos modos de organizar possíveis em
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nossa sociedade. Coadunamos assim com o fomento de novas possibilidades de compreensão do fazer social que suportam a expansão do conhecimento por meio da pluralidade, rejeitando quaisquer tentativas de estabelecimento de históricas únicas e universais. Segundo Benjamin (1987a, 1987b, 2006) e Bosi (2003) a capacidade de rememorar está atrelada a capacidade de experienciar. E estas duas habilidades têm caído de cotação diante da profusão de estímulos sensoriais na contemporaneidade. Dar atenção ao pequeno, ao popular, ao que é tido como insignificante, é perceber a complexidade inerente à vida, é buscar nas lacunas e nos silenciamentos, aquilo que coexiste com a história oficial e que possibilita a existência das pessoas comuns. Assim, o resgate à memória popular critica a falta de perspectiva histórica por parte da Administração enquanto saber-poder (Carrieri et al., 2018). Partimos do pressuposto que os saberes, as verdades, são localizadas no espaço e no tempo. No estudo da Administração faz-se necessário historicizar conceitos e aceitar a transitoriedade do conhecimento (Barros & Carrieri, 2015; Carrieri et al., 2018; Carrieri & Correia, 2020). Faz-se necessário a atenção e a escuta sobre a gestão ordinária do dia a dia das pessoas comuns, as quais sinalizam no seu fazer aquilo que realmente importam para elas. Apostamos que a compreensão histórica da memória dos saberes populares nos ajuda a questionar os regimes de verdade de nossa época que dominam a Administração e evidenciam a variedade de verdades que se tornam pouco perceptíveis frente uma dominante. O conhecimento normalmente intitulado de popular, atribuído ao sujeito comum, com suas práticas próprias de organização de suas atividades
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diárias, ou de seus pequenos empreendimentos formais ou informais, são sempre estigmatizados, rotulados como amadores, improvisados e desprovidos de profissionalismo. São indignos de credibilidade, pois, como argumentado por teóricos decoloniais, entre eles Mignolo (2010) e Walsh (2007), além de Federici (2017), o saber popular ameaça as estruturas de poder coloniais ainda presentes, pois desarticula a lógica mercantilista de cercamento e apropriação física e social. Dessa forma, as reflexões aqui trazidas encorajam o profanar o que é tido como sagrado (Didi-Huberman, 2011, 2012). Encorajam olhar a gestão para além do que foi institucionalizado como convencional, e buscar saber sobre outras práticas que compõem a memória das pessoas que não participam da história oficial. Estas memórias, podem conter pistas, restos, fagulhas, de modos de existir outros, que desmistificam a história única. Podem contar fragmentos e encadeamentos próprios que nos façam perceber que outras formas de conviver são possíveis. REFERÊNCIAS
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5 DE SPRAY NA MÃO: RESISTÊNCIAS DE GRAFITEIRAS EM BELO HORIZONTE Alexsandra Nascimento da Silva Fabiana Florio Domingues 2 Alexandre de Pádua Carrieri 3
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INTRODUÇÃO
Considerando a cidade como um lugar (Auge, 1994) habitado por um conjunto de grupos heterogêneos com aspirações das mais variadas possíveis, os usos dos espaços urbanos exemplificam a luta por diversos interesses. Os grupos hegemônicos propagam um discurso estético, não só determinando o que é o belo ou o que é arte como também definindo quais intervenções no espaço urbano são permitidas ou não. Em nome de uma gestão estética do urbano, controlam-se inclusive manifestações rebeldes à ordem, como os grafites (Ramos, 1994; Gitahy, 1999). A inquietação que motiva esta pesquisa diz respeito aos impactos da mercantilização sobre o caráter das manifestações de resistência. Ao serem transformadas em objetos de consumo, a sua transgressão deixa
1 Administradora na Universidade Federal de Minas Gerais. Mestra em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected].
Professora da Professora da Faculdade de Ciências Contábeis e Administração de Cachoeiro de Itapemirim. Doutora em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected]
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Professor Titular da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais. Doutor em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected].
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Alexsandra Nascimento da Silva; Fabiana Florio Domingues; Alexandre de Pádua Carrieri
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de ser intrínseca? Ou seus autores se valem disto como tática para continuarem existindo? Elas se tornam uma obra que se submete ao capitalismo? (Ramos, 1994; Gitahy, 1999) Inicialmente expressão de grupos marginalizados, os grafites são desenhos pautados numa estética que não é a erudita e, assim, podem veicular mensagens transgressoras. Os grafismos estão em um movimento de arte da margem prestes a ser tornar do centro. Pouco a pouco eles estão perdendo sua aura marginal e adquirindo a aura de arte. Como arte, existem espaços legítimos para eles nas cidades. A arte, a estética, o valor, o trabalho, são todos elementos que transformam uma manifestação rebelde e marginal em algo socialmente adequado, belo e de bom gosto (Ramos, 1994). Mercantilizável o grafite foi levado às galerias para ser consumido (Gitahy,1999). Esse grafismo passa então a ser benquisto no muro, mas agora, numa cidade que se torna vitrine, um adorno. Isto não implica necessariamente um controle da arte urbana porque, apesar da domesticação do grafite ser um movimento possível, a adesão do grafiteiro não a confirma por si. É perfeitamente possível que, em uma obra existam signos transgressores invisíveis para quem não esteja familiarizado com eles ou diversas possibilidades de sentido contidos em uma mesma tela. Temos então um cenário que comporta um espaço urbano em que algumas formas de consumo são consideradas mais adequadas que outras e que se sobrepõem hegemonicamente a elas. Uma dessas formas dissidentes de apropriação do espaço seria o grafite, que contemporaneamente tem passado por um processo de massificação,
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sendo incorporado ao mundo do consumo – o que não quer dizer que isto ocorra sem resistências. Paralelamente a estes pontos, temos a questão de gênero no grafite, de acordo com Morena (2009). Ser mulher no grafite não é igual a ser um homem no grafite. O contexto feminino reproduz as questões presentes na sociedade patriarcal. Desta dinâmica, emerge o problema desta pesquisa: como ocorrem os processos de resistência na cena do grafite feminino em Belo Horizonte? Tem ocorrido efervescência de eventos que envolvem o grafite em Belo Horizonte, tais como o festival CURA, o Telas Urbanas, Projeto Gentileza e o Mural da Liberdade. A baixa representatividade feminina nos eventos de grafite tem tanto suscitado debates quanto colaborado para a criação de eventos específicos para mulheres, como o Delas, idealizado pelo grupo de grafiteiras Minas de Minas. Ainda são tidas como subalternas e desmerecidas as atividades desenvolvidas pelas mulheres, comparativamente às dos homens, mesmo aquelas que são desenvolvidas fora de casa. SOBRE SUBJETIVIDADES E CAPITALISMO
A subjetividade não está no campo do social, ela está em todos os processos de produção material e social. O indivíduo é onde essa subjetivação é produzida e não criada. A singularização é quando o indivíduo se reapropria dos componentes da subjetividade. De acordo com Carvalho (2015), a subjetividade, no contexto da sociedade de consumo, é criada em um corpo social e possui uma dupla função: 1)
Alexsandra Nascimento da Silva; Fabiana Florio Domingues; Alexandre de Pádua Carrieri
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colocar os indivíduos em uma relação semiótica em que seus modos de existir são moldados por uma sociedade na qual tudo se torna objeto de consumo, as próprias pessoas inclusive; 2) conectar os indivíduos e estimular as relações de consumo. Nessa perspectiva, cada vez que o sujeito consome, recria formas de ser, e, no consumo, tudo se subjetiva. Desta forma, os processos de subjetivação acontecem via elementos heterogêneos que se combinam entre si de múltiplas formas. Nesta dinâmica, é preciso considerar não apenas os aspectos biológicos ou psíquicos envolvidos como também aqueles que dizem respeito à tecnologia, à política, ao Estado, ao espaço urbano como faremos neste trabalho, enfim, às diversas facetas dos fluxos sociais (Souza, 2016). Neste contexto, existe o Capitalismo Mundial Integrado (CMI) que seria um momento caracterizado pelo estabelecimento hegemônico do modo de produção capitalista em todo o mundo. Nesse ínterim, as ideologias políticas tornam-se indistinguíveis, e o capital torna-se o estruturante das relações humanas, mercantilizando e massificando as formas de se vestir, de se alimentar, de sentir, produzindo a relação do indivíduo com o mundo e consigo mesmo (Guattari & Rolnik, 1996; Soares & Miranda, 2009). De acordo com Lazzarato (2010), a produção de subjetividade funciona de duas maneiras, denominadas dispositivos de sujeição social e servidão maquínica. A sujeição social é responsável por dar aos sujeitos uma subjetividade, via atribuição a ele de um sexo, uma profissão, um corpo, etc. Essa sujeição ocorre para atender às necessidades da divisão social do trabalho, produzindo sujeitos individuados, com seus comportamentos, representações e consciência.
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Por sua vez, esses sujeitos individuados passam, concomitantemente, por um processo oposto, o de dessubjetivação, no qual, via servidão maquínica, tem suas representações e consciências desconstruídas. É por isso que Guattari defende que o capitalismo coloca os sujeitos sob servidão maquínica. Ainda para Lazzarato (2010), é na interseção entre a sujeição social e a servidão maquínica que a subjetividade acontece. O capitalismo funciona com essa especificidade da servidão maquínica, e isto se dá de forma mais acentuada nos dias atuais, uma vez que os maquinismos conquistaram nosso dia a dia e estão presentes na nossa forma de falar, ver, ouvir e sentir enquanto constituímos nosso capital social. Uma conjunção entre o fluxo econômico e produção de subjetividades não diz respeito apenas ao capitalismo como também às formas de resistência neste contexto. Engendrá-las se torna cada vez mais difícil porque é preciso pensar em novas instituições a nível macropolítico que pudessem constituir uma nova resistência diante deste capitalismo. Estas deveriam romper com a profunda distância entre o capitalismo e aqueles que a ele estão submetidos (Lazzarato, 2010). Para Guattari e Rolnik (1996), a produção de subjetividades não é algo que depende apenas das estruturas de interações sociais, e sim ingrediente primordial das forças produtivas. Ela faz parte do movimento que faz acontecer a crise mundial, alimentando as revoluções científicas e a incorporação de equipamentos coletivos e de mídia. As forças capitalistas entenderam que a produção de subjetividades pode ser mais importante do que qualquer outro tipo de produção. As mudanças geradas na subjetividade pelo sistema
Alexsandra Nascimento da Silva; Fabiana Florio Domingues; Alexandre de Pádua Carrieri
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capitalista alteram o modo que os sujeitos percebem o mundo, com os processos maquínicos do trabalho, com a ordem social que sustenta as forças produtivas. Por isso, a questão da produção de subjetividade deve ser levada em consideração por movimentos de emancipação. Tudo o que é produto de subjetivação capitalística tem a ver com as grandes máquinas produtivas, as de controle social e as formas de perceber o mundo. Assim, até as produções de grafite podem seguir uma lógica capitalista, mesmo quando alegam ser contra o sistema. De acordo com Guattari e Rolnik (1996) e Miranda (2000), a produção contemporânea de subjetividades está severamente ligada a mecanismos de dominação capitalistas. No entanto, isto não significa impossibilidade de resistências via desvio e singularização. Desse modo, esses autores propõem processos de singularização, que seriam uma forma de repúdio a essas subjetividades massificadas, pré-estabelecidas e manipuladas e também oportunidade para a criação de outras formas de perceber o mundo, produzir e interagir com o outro. Esses processos de singularização se tornam viáveis não só pelas fendas que o próprio capitalismo provoca em si mesmo, como pela própria natureza processual da subjetividade, que está continuamente em movimento. Ainda para Guattari e Rolnik (1996), aceitamos a ordem capitalística porque ela parece ser a ordem do mundo. A força da subjetividade capitalística é que ela é criada tanto no nível dos oprimidos quanto dos opressores, inserindo-os em uma lógica que naturaliza as contradições em suas relações. Isso desestabiliza as alianças sociais e de classe. No entanto, não é nosso destino inexorável estar incluso nesse modo de produção de subjetividades capitalísticas.
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Existem formas de resistência. As revoluções moleculares são resistência sobre a serialização das identidades, em uma tentativa de valorizar os processos de singularização subjetiva e original. A revolução molecular tem como característica capturar os elementos da situação, construindo seus próprios tipos de referências práticas e teóricas sem ficar dependente do poder global, nem a nível econômico, nem a técnico, a saber, segregação e tipos de prestígio. Quando isso ocorre os grupos obtêm um mínimo de capacidade de criação e conseguem preservar sua autonomia. A recusa ao trabalho tal qual ele se apresenta atualmente é uma forma de revolução molecular. Será que isso se aplica ao modo de trabalho das grafiteiras por não se encaixarem em uma economia formal? Ou é justamente a tentativa de se encaixarem que as empurra para um processo de individuação? A inclusão delas numa economia formal implica uma desistência de resistência? A revolução molecular diz respeito à produção de condições não apenas de uma vida coletiva, como também da encarnação de uma vida para o próprio indivíduo, tanto subjetivo quanto materialmente. Não se trata de voltar a uma condição anterior, e sim de criar condições para um novo tipo de subjetividade. É necessária a criação de novos modos de referência, em que cada um fique firme em sua singularização e que resista à individuação. O GRAFITE
O surgimento do spray, na década de 1950 contribuiu para a proliferação do grafite pela cidade, tendência que continuou pelos anos
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1960 e 1970. Foi nos anos 1980 que os grafites se consagraram como linguagem artística, quando conquistaram espaço na mídia e chegaram a ser expostos inclusive na Bienal (Gitahy, 1999). Nas revoltas de maio de 1968, os estudantes escreveram as suas reivindicações nas paredes, e, em pouco tempo, elas se espalharam pela cidade. Por serem manifestações subversivas, elas eram feitas à noite, no intuito de seus autores se esconderem das autoridades policiais. Para Ivo (2007) e Furtado e Zanella (2012), os espaços urbanos são meios de comunicação e espaço para expressão de grupos e indivíduos. E, nesse contexto, o grafite seria uma arte rebelde, e o discurso do hegemônico a seu respeito é que se trata de uma poluição visual. O suporte para o grafite não é apenas o muro, mas é a cidade como um todo, estando presente também em postes, calçadas, chão, escadarias que são preenchidos por imagens enigmáticas repetidas várias vezes à exaustão, sob influência da Pop Art. Suas mensagens, dentre diversas possibilidades de sentido passam por várias questões tais como a crítica social ou o humor com fins de descontração e se contrapõem aos outdoors e às publicidades, procurando ser uma expressão que convida as pessoas para o diálogo ao invés da posição passiva a que os indivíduos são submetidos enquanto consumidores (Baudrillard, 1979; Gitahy, 1999). Os
grafites
eram
considerados
expressões
de
grupos
marginalizados, eles são desenhos pautados numa estética que não é a oficial e veiculam mensagens transgressoras, ou não-mensagens, de acordo com Baudrillard (1979). A própria existência deles já é um desafio às normas, pois os muros devem ser mantidos em branco. No entanto,
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o grafite se tornou mercantilizável: ele foi levado às galerias para ser consumido. E, numa cidade que se torna vitrine, o grafite é usado como adorno. Será que este grafito consumível se tornou domesticável? Considerado até poucos anos atrás como crime ambiental, o grafite passou a ser uma manifestação aceitável. Todas as pinturas, placas, letreiros e signos se unem para compor uma enorme tela sem moldura na cidade. Grafismos urbanos seriam uma espécie de rebelião tribal contra opressora civilização industrial e uma ação anárquica social (Ramos, 1994). A cidade é o espaço urbano de conflitos de culturas e também, devido à diversidade de grupos que nela convivem, é o espaço de produção de signos. Estes seriam produzidos e consumidos de acordo com uma lógica que implica uma adequação deles para os padrões capitalistas, ou seja, numa tendência à sua mercantilização. . Assim, a cidade seria um sistema semiótico, e o grafite, uma suposta manifestação simbólica contra essa sociedade de consumo, contra a segregação de grupos excluídos e uma reação à dominação do urbano pelas classes dominantes, ao subverterem o uso de seus espaços (Baudrillard, 1979; Ramos, 1994; Penachin, 2004). De acordo com Antunes e Margarites (2017), ainda é pequena a representatividade feminina no mundo do grafite, sendo este ambiente preconceituoso e hostil. A presença da mulher neste espaço é sinal de resistência. Elas advogam que a mulher tem um espaço menor, seja pelo horário restrito em que podem estar nas ruas, por questões de padrões de comportamento ou segurança, seja por outras questões como a religião, a ordem doméstica, a moral, a decência e o pudor. Para elas, é
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importante também a dicotomia entre público e privado que coloca a mulher sob o domínio do lar, ao passo que aos homens é destinado o espaço das ruas. Além disso, questões como a maternidade afastam a mulher do mundo do grafite, e o mesmo não se observa com os homens. Tudo isto contribui para que o espaço das mulheres nas ruas seja menor do que o dos homens. O GÊNERO NESTE CONTEXTO
Para Neves (2013), são três as principais contribuições da produção em gênero e trabalho. A primeira delas é dar visibilidade à presença feminina no mercado de trabalho. A segunda diz respeito a trazer à tona a discussão sobre a divisão sexual do trabalho e sobre as relações do espaço produtivo/espaço reprodutivo e trabalho profissional/trabalho doméstico. Já a terceira contribuição nos leva a uma reflexão sobre os desdobramentos das mudanças provocadas pela globalização e a reestruturação da produção nos modos de inserção da mulher no mercado de trabalho e na vida familiar. O tema do trabalho foi responsável pela entrada da temática de gênero na agenda da pesquisa brasileira em Ciências Sociais. Isso ocorreu porque o trabalho já era um tema relevante na teoria sociológica e também porque era uma bandeira importante para o feminismo. O trabalho feminino ganhou grande proeminência no Século XIX, de acordo com Scott (1994) não por ter começado a existir ali, e sim por ter ganhado significado até para o que significa ser mulher e trabalhadora assalariada, ponto com o qual concorda Federici (2017).
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Neste contexto, às mulheres eram destinados os cuidados com os filhos e não era considerado adequado que as mulheres tivessem ocupações que as desviassem destas, cabendo ao homem o papel de mantenedor da casa. No contexto da industrialização este discurso ganhou força, naturalizando-se. O termo “gênero”, de acordo com Scott (2012), é uma forma de rejeitar as explicações biológicas, que são usadas como forma de sujeitar as mulheres amparando-se no fato da mulher dar à luz aos filhos e do homem possuir força física superior. O gênero chama a atenção para o que é totalmente uma construção social, rejeitando a concepção biológica da coisa. O gênero não é uma verdade interna e nem uma aparência externa, ele é “uma constante indecibilidade jogada e encenada entre os campos da psique interna e aparência externa, sendo ambas reguladas pelas normas de inteligibilidade heterossexual” (Souza, 2016, p. 39). Todos nós estamos inscritos no sistema patriarcal, e o feminismo é uma luta por direito também para todos, no sentido em que liberta as pessoas de uma matriz heteronormativa e de papéis pré-estabelecidos que amarram as definições de “homem” e “mulher”, constituindo uma amarra binária para os indivíduos (Tiburi, 2018; Borba, 2014). Para Neves (2013), o sistema patriarcal impede uma posição melhor das mulheres no mercado de trabalho, pois relega a elas a responsabilidade pela criação dos filhos e das tarefas domesticas. Apesar de as mulheres já terem aumentado a sua participação no mercado de trabalho, ainda há um número expressivo delas trabalhando em situações precárias e com salário menor do que o dos homens na mesma posição, como reflexo da
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discriminação sexual. Grande parte do trabalho feminino é invisível, desvalorizado e sequer considerado como atividade econômica. Ainda para Neves (2013), o desafio tanto do feminismo quanto dos estudos de gênero é o de buscar igualdade de sexo no mercado de trabalho ao mesmo tempo em que se busca proteção à trabalhadora na reprodução, pois continua uma relação em que o trabalho masculino é valorizado e o feminino é precarizado. Outra dificuldade diz respeito ao tempo de trabalho, uma vez que o tempo dedicado ao cuidado com outras pessoas não é considerado como tempo de trabalho, e sim como uma obrigação devido aos papéis de gênero. É necessário abandonar a noção de homem provedor e mulher cuidadora e como força de trabalho secundária. Essas visões são estruturadas a partir de uma separação e hierarquização entre os planos do público e do privado. A diferença na divisão de tarefas no âmbito doméstico tem relação com as observadas no mundo do trabalho. Para Schefler (2013), as relações de gênero referem-se a relações sociais mais amplas. O conceito de gênero vai além de suas implicações teórico-metodológicas para alcançar uma prática-política: legitima cientificamente as lutas feministas, uma vez que questiona o determinismo biológico, demonstrando a sua historicidade e consequente transformação e transcendência. As mulheres têm ocupado posições hierarquicamente inferiores aos homens, tanto a nível simbólico quanto na prática social. “Por força de ideologias de gênero e da consequente divisão sexual do trabalho, mulheres e homens se engajam em diferentes tipos de atividades sociais, econômicas, políticas e culturais” (Schefler, 2013, p. 5).
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Apesar de a divisão público/espaço masculino e privado/espaço feminino ser antiga e amplamente discutida pelo movimento feminista, ainda há desigualdade de gênero. Isso se reflete, por exemplo, em discriminação e salários mais baixos para mulheres que desempenham as mesmas funções que os homens. É ponto importante neste artigo o tema do trabalho, considerando as grafiteiras enquanto trabalhadoras e o trabalho como elemento importante da sociedade capitalista. Para Tiburi (2018) e Fonseca (2018), não há como falar em feminismo sem considerá-lo como algo imposto pela civilização, que se opõe ao prazer, que custa caro. O feminismo é algo que grita dentro de um mundo capitalista uma vez que uma das formas de aprisionar as mulheres no machismo é por meio dos trabalhos domésticos, que são um verdadeiro problema de gênero. De acordo com Federici (2017), o trabalho feminino tal como configurado atualmente é fruto da ordem capitalista. Como forma de dominar as mulheres, elas receberam o legado irrecusável do trabalho doméstico e do cuidado da prole, cujo discurso construído é o de que são atividades inerentes à mulher. Assim, a elas é negado o espaço da rua, o público, ficando restritas apenas aos cuidados com o privado. O patriarcado é um sistema profundamente arraigado na cultura e nas instituições, que o movimento feminista busca desconstruir. No entanto, às vezes, o próprio feminismo é usado como um rótulo e colocado a serviço do capitalismo (Saffioti, 1994; 2001; Federici, 2017). De acordo com Fonseca (2018), o patriarcado se assenta sobre a misoginia, isto é, um ódio masculino em relação às mulheres. Os homens tomaram
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o lugar de fala das mulheres, de modo que tudo sobre as mulheres foi inicialmente dito por um homem. As vozes nunca são neutras. Saffioti (2001), Fonseca (2018) e Tiburi (2018) definem o patriarcado como algo que representa uma estrutura tida como natural, que favorece uns ao passo que desprivilegia outros na sociedade, por meio da violência. O patriarcado, para se manter, jamais dará espaço ao feminismo, por isso é preciso a luta para que as mulheres saiam deste lugar de subalternidade. Para Fonseca (2018), no patriarcado, a mulher foi criada como um outro para a servidão, tal qual no sistema capitalista em que o trabalhador é escravo. METODOLOGIA
Nossa primeira aproximação do campo nos chamou atenção pelo papel desempenhado pelas grafiteiras. Grafitar sendo mulher é diferente de grafitar sendo homem. O grafite é uma atividade de origem transgressora, no entanto, espera-se que o trabalho feminino seja “delicado”, restringindo as possibilidades de expressão das artistas. Não se leva a sério também a carreira da grafiteira, considerando que ela – por ser mulher – está ali por capricho momentâneo e que logo irá abandonar a atividade em prol de ocupações tidas como mais femininas. Tudo isso são indícios de que a questão de gênero se faz importante nesse contexto, o que nos instigou a incorporar este elemento na nossa pesquisa. Assim, são objetivos desta pesquisa analisar como ocorrem os processos de resistência nesse contexto em Belo Horizonte. Para tanto,
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construiu-se um corpus de pesquisa com dados verbais (Bauer & Aarts, 2008), a partir de duas estratégias principais: a observação participante e as entrevistas. A observação participante (Valladares, 2007; Richardson, 2012) proporciona um ambiente para que o pesquisador vá além do papel de mero observador, se insira no ambiente de pesquisa e interaja com seus atores. A coleta de dados no próprio ambiente contribui para uma maior compreensão de hábitos, atitudes, relações pessoais e características do cotidiano do grupo que está sendo estudado. Fez-se a inserção no mundo dos grafiteiros via participação em eventos relacionados e acompanhando esses atores quando os mesmos foram executar suas obras. As impressões, notas e outras informações relevantes foram registradas no diário de campo (Martins, 2016). Além disso, conversamos com sete grafiteiras, para ouvir delas as histórias, o que pensam sobre essas manifestações, sobre o momento atual e sobre o que seria o seu futuro. Os dados foram analisados via análise de conteúdo (Colbari, 2014) Seus procedimentos reconstroem a representação em duas dimensões principais: a sintática e a semântica. A primeira descreve os meios de expressão e influência e diz respeito ao modo como algo é dito ou escrito; e a segunda dirige seu foco para a relação entre os sinais e os sentidos – denotativos ou conotativos - que assumem no texto (Bauer & Gaskell, 2008). Neste trabalho analisaremos as manifestações que dizem respeito a sinais de resistências ou de submissão ao capitalismo vivenciados pelas grafiteiras neste contexto.
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RESISTÊNCIAS E IRRESISTÊNCIAS
Se no cotidiano das grafiteiras ocorrem discriminações, também é nele que surgem resistências. Observamos que ela se processa de diversas formas. A própria insistência em permanecer no meio já é um sinal dela. Por outro lado, as concessões que muitas vezes são feitas nos levam a questionar até onde vai a resistência e até onde vai a acomodação ao sistema neoliberal no mundo do grafite. De acordo com Lugones (2014, p. 940): A resistência é a tensão entre a sujeitificação (a formação/informação do sujeito) e a subjetividade ativa, aquela noção mínima de agenciamento necessária para que a relação opressão ← → resistência seja uma relação ativa, sem apelação ao sentido de agenciamento máximo do sujeito moderno.
É no movimento entre a tentativa de ser cooptado pelo capital e a oposição a este, conforme vimos no grafite em certos momentos, que pode aparecer a resistência. Ora há a consciência de que o sistema está se apropriando do grafite para fazer dele uma outra coisa, ora essa cooptação é ignorada. Não é tarefa trivial saber se quando cooptado e quando não está, pois estes são movimentos que se confundem. Ainda para Lugones (2014, p. 940): A subjetividade que resiste com frequência se expressa infrapoliticamente, em vez de em uma política do público, a qual se situa facilmente na contestação pública. Legitimidade, autoridade, voz, sentido e visibilidade são negadas à subjetividade oposicionista. A infrapolítica marca a volta para o dentro, em uma política de resistência, rumo à libertação. Ela mostra o potencial que as comunidades dos/as oprimidos/as têm, entre si, de constituir significados que recusam os significados e a organização social,
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estruturados pelo poder. Em nossas existências colonizadas, racialmente engendradas e oprimidas, somos também diferentes daquilo que o hegemônico nos torna. Esta é uma vitória infrapolítica. Se estamos exaustos/as, completamente tomados/as pelos mecanismos micro e macro e pelas circulações do poder, a “libertação” perde muito de seu significado ou deixa de ser uma questão intersubjetiva. A própria possibilidade de uma identidade baseada na política e o projeto da descolonialidade perdem sua base ancorada nas pessoas.
O espaço que há para a resistência passa pela consciência, apesar de nem sempre haver o alarde do público, no entanto, não podemos nos esquecer do potencial libertador deste movimento, que mostra como os opressores lutam contra o poder que os sufoca – a possibilidade de ser diferente daquilo que o sistema espera de nós. No entanto, se as pessoas estão tomadas pelas circulações de poder, perde-se o seu potencial libertador. Para Dutra, Palhares e Mello (2018), o grafite está associado à resistência, à manifestação de uma minoria oprimida, como no caso deste trabalho, numa provocação que visa levar à reflexão. Grafites são imagens capazes de desestabilizar a coesão imposta pelo poder hegemônico que planifica as diferenças. A arte é uma forma de resistência perante o presente, no conceito deleuziano. O grafite pode ser considerado como reflexo da luta de classes que se manifesta na cidade, como forma de resistência. Há uma disputa territorial do espaço urbano, e a arte do grafite denuncia os problemas acarretados pela priorização, por parte do Estado, dos interesses do Capital, constituindo-se, assim, uma fonte de resistência.
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Um exemplo da relação entre grafite e neoliberalismo e resistência foi verificado em um evento ocorrido na Praça da Liberdade em meados do ano de 2018. A Praça da Liberdade, em torno da qual localizavam-se todos os prédios da gestão estadual, encontra-se numa região nobre da cidade de Belo Horizonte. Atualmente, os prédios que outrora ocupavam diversos órgãos burocráticos, abrigam museus, galerias, cafés, além da própria arquitetura do lugar ser considerada uma atração - a própria Praça, por exemplo, ou o Palácio do Governo. Podemos pensar então numa modificação do discurso da praça, de sede de governo a espaço de lazer e cultura. Mas não se trata de uma cultura ou lazer acessível a todos, apesar de que a maior parte das atrações do espaço é gratuita. A Praça da Liberdade atrai um público determinado (brancos, ricos, heterossexuais) ao mesmo tempo em que exclui outros: o favelado, o pobre, o morador de rua, atores que, mesmo assim, reivindicam o espaço da praça. A praça passou por reformas e, neste ínterim, teve que ser fechada com uma cerca. Então, a Prefeitura, em parceria com outras entidades, promoveu um evento chamado Mural da Liberdade, que consistiu em um dia para grafiteiros selecionados realizarem seus grafites em tapumes posicionados ao longo da praça. Quando o grafite sai da periferia para ser consumido em um espaço elitizado, como a Praça da Liberdade, podemos falar ainda em sua conotação de resistência? Ou, quando o grafite está lá, ele significa outra coisa? O dia da pintura foi considerado um evento, como carros de food truck, brinquedos para as crianças, música. As pessoas compareceram à praça para ver os artistas pintando, o grafite virou um espetáculo. O grafite ganhou uma segunda dimensão, além da pintura. A sua execução
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também serve de ação de entretenimento. Esta perspectiva se encaixa na visão da cidade como espetáculo (Mascarenhas, 2014), em que esta é vista como um empreendimento que, como tal, precisa atrair clientes. As pessoas paravam para contemplar os artistas pintando. Inclusive parece que esta era a intenção da organização do evento, que disponibilizou cadeiras próximo aos artistas, para que as pessoas pudessem sentar. Cadeiras, comida, distração para as crianças, distração para os adultos... Formou-se um ambiente para que as pessoas ficassem ao invés de apenas transitar. Neste mesmo evento, Luana fez seu grafite dedicado aos moradores da Praça da Liberdade, deslocados por causa das obras. No dia seguinte à pintura, estávamos na praça e uma pessoa perguntou a nós e a Letícia como que a autora do grafite sabia seu nome, pois estava escrito nele o seguinte: ´”Salve.... salve para todas as malocas e todos os doido da praça. Que nunca falte a cachaça para esquentar o peito. Salve Raflik, Doidera, Cawboy, Deco, Barba, Cascão, Grande, Raflik, Leandro Falecido, Adriano, Shurak, Tatu, Patricia, Seu Jorge, Baiano, Ceará, Flautista”. Contamos para a Luana depois sobre a surpresa do morador (Seu Jorge) e ela me disse que foi por eles mesmo que ela foi grafitar na Praça da Liberdade, para representar os dela, senão ela não tinha ido. Sua obra tem forte inspiração na cultura negra e da periferia. De acordo com a legenda que ela postou em seu Instagram, seu grafite é composto por duas personas. Uma delas representa a Maria Papuda, uma senhora que morava no local onde hoje fica o Palácio do Governo, antigo centro do governo do Estado. Inconformada por ser tirada à força de sua casa, ela rogou uma praga dizendo que nenhum dos governadores que
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passassem por ali iriam terminar o mandato vivo. Ainda de acordo com Luana, a praga pegou, porque três governadores morreram e dois, que não terminaram o mandato, morreram também. Ela acrescenta dizendo que ela será novamente retirada da Praça da Liberdade junto com os tapumes, ao final da obra. A outra era de um morador da praça . Isto demonstra que há sim uma reflexão a respeito sobre o significado do grafite ali na praça, e não podemos supor que a mera presença do grafite ali significa a sua perda de sentido de resistência, apesar de todas as críticas que se pode fazer a uma arte de rua em um local elitizado. Gitahy (1999) traz também essa questão do grafite sair da rua e ir para espaços mais elitizados, no caso, as galerias de arte. No entanto, para este autor, isto não quer dizer nada em relação ao teor de resistência e transgressão da obra, que permanece a mesma. Como diz Lazzarato (2010), o capital destrói as subjetividades como consequência dele mesmo criando oportunidades para se pensar diferente. Então, ao mesmo tempo que vemos uma arte que surge como resistência ser cooptada pelo capital, virando produto e espetáculo, o resistir a isto aparecerá na reinvenção daquela arte. Então, é uma arte que sai da periferia, mas que não se esvazia do seu significado – ele se reinventa. Sobre isto, Betânia comenta: Então, eu tenho visto que tem crescido, assim. Muito recentemente, mas existe um viés. É muito doido, né, como é que também, o sistema dá um jeito de se apropriar, né?! É uma cultura e uma arte, que ela nasce de contramão, é totalmente uma crítica à sociedade, né, mas aí, hoje em dia, tipo assim, a Nike quer grafite nas roupas dela. As grandes marcas, a Coca-Cola quer um grafite na latinha dela... Então, o grafite, ele pode ser associado a muita coisa, pelo mercado, sabe?! (Betânia)
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Não se questiona o fato de o grafite ser uma ocupação remunerada ou de seus autores fazerem produtos inspirados neles, ou de vender a sua arte. A crítica que fazemos vai em direção a uma apropriação da arte urbana por um modo de produção capitalista, que segue uma lógica de produção e consumo que desconsidera as pessoas em prol do capital (Lazzarato, 2010). Por isto, Betânia considera que grafites remunerados não são grafites, justamente pela falta de liberdade criativa e pela perda de espontaneidade. o grafite hoje é popular. Eu acho que usar a terminologia grafite é interessante pra um monte de coisa sabe, assim, isso chama a atenção... não sei, traz talvez uma visibilidade pra coisa ali. Hoje eu já vejo muito design, muita gente de outras áreas usando o grafite pra... pra tornar o seu trabalho popular, pra ter seu trabalho reconhecido. Então, eu acho que é isso, eu vejo por exemplo, eu participei recentemente de uma pintura não espaço com vários outros artistas, chamava Festival de Grafite, sabe, assim...e aí, isso atrai um público. Mas é... é uma coisa pra atrair os outros.
Para elas, esses trabalhos devem ser chamados simplesmente de murais. Isso nos leva a um ponto interessante, de que para ela o grafite precisa ter uma carga de transgressão associada. O grafite feito sob autorização tem o consentimento do dono do grupo e, com isto, perderia um dos seus elementos – a própria transgressão. Neste trabalho, consideramos grafite independente dessa classificação, mas é interessante notar essa classificação feita por uma das artistas, pois é uma faceta de resistência à mercantilização do grafite, considerando que um dos primeiros passos para o grafite ser pago é ele ser autorizado.
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Resistir a isto pode significar uma repulsa à cooptação do grafite pelo capitalismo. Assim, o grafite permaneceria longe de trocas comerciais e, a princípio, livre de relações capitalistas. Outra característica que denota resistência é quando o artista não aceita modificar seu traço porque está fazendo um trabalho pago. Isto também não é unanimidade entre as grafiteiras, mas existem aquelas que não aceitam fazer outros desenhos que não sejam aqueles que sejam seus característicos, como Elisabeth nos conta: (...) É... eu não faço trabalho comercial. A gente fala que trabalho comercial é quando a pessoa paga, fala o que quer que a gente pinta, e a gente pinta, né: “Ah, eu quero uma borboleta ou não sei o que, na minha casa”. Eu não me identifiquei com esse tipo de trabalho. Tem pessoa que trabalha só com isso, grafiteiro que vivem disso, mas eu não me identifiquei, assim. Então eu busquei que meu traço tivesse uma força que as pessoas quisessem aquele trabalho específico. Quisessem a indígena, não a borboleta. Não desmerecendo a borboleta, porque a borboleta é linda. (risos)
Além dos produtos comerciais, outra possibilidade para remuneração do grafite são os live paints, sobre os quais Elisabeth nos explica: Nós: O que é um live painting? Elisabeth: É pintar uma tela, enquanto o evento está acontecendo, pras pessoas verem a gente pintando a tela. É quase uma performance, né?! A gente pintar e a pessoa assistir a gente pintar, durante o evento.
O live painting, conforme vimos em campo, é uma das facetas do grafite que o espetaculariza. Talvez seja aí que o grafite mais perca seu teor transgressor, quando ele passa de uma arte realizada às escondidas
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a uma arte cuja própria produção passa a ser algo a ser assistido e fotografado, conforme vimos na Praça da Liberdade. Outra possibilidade da carreira de grafiteira é atuar como agente cultural, como nos conta Luiza: Hoje eu faço um curso de agente cultural que eu tô tendo uma base, mas isso é hoje, depois de muitos anos que eu tô correndo atrás disso. E assim, muita coisa, eu fui aprendendo, errando, quebrando a cabeça... lendo, entendendo, perguntando pro outro que eu sabia que entendia, que tinha paciência de explicar... então foi muito por essa linha assim. E eu acho que artista no Brasil, todo mundo já sabe, né?! (...) E é uma resistência mesmo. Você colocar seu próprio dinheiro, seu próprio material, seu próprio tempo, que o tempo também... quanto tempo você vai escutar.... isso eu, não muito, mas, eu sei das meninas que escuta a família falando “nossa, que você tá ganhando com isso, né?! Nossa, tá perdendo dia em rua”...então, assim, muito... tem gente que escuta isso até hoje.
O grafite feito em grupo, como na crew Amargem, abre 4
possibilidades de resistência, pois em grupo é possível se organizar sob uma lógica diferente da requerida do capital, com mais força do que individualmente. Em relação a este aprendizado, a crew também funciona como espaço de compartilhamento de experiências e conhecimentos. No entanto, até o momento de fechamento da fase de campo dessa pesquisa, havia uma tendência à fragmentação do grupo com as artistas buscando a carreira solo. Podemos entender a carreira solo como uma servidão ao capital, pois representa o artista abrindo mão da carreira em grupo para atender aos interesses do capital.
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Crew é um termo que indica um grupo de grafiteirxs.
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Para Luiza, resistir também está ligado a insistir na carreira artística, apesar das dificuldades: E eu acho que artista no Brasil, todo mundo já sabe, né?! Então assim, se a gente não correr atrás... eu acho que é o mínimo assim, que a gente tem um pouco de acesso, pra gente querer mover um pouco. (Luiza)
Além disto, o grafite também está associado a uma atividade lúdica: Porque, o grafite, ele é uma arte, que se pode ganhar dinheiro com ela. Mas, as pessoas que fazem grafite, elas gostam de pintar por pintar também. Ela num quer o tempo todo ganhar dinheiro. Às vezes, ela quer sair e pintar de bobeira, pra dar um rolê, conversar, trocar ideia... ficar ali sozinho... então, o grafite é uma arte, que ela tem essa possibilidade. Então, as pessoas, às vezes, elas não entendem isso. (Luiza)
Observamos em campo também como a questão do vestuário é forte para as grafiteiras. Elas não podem ir pintar simplesmente do jeito que se sentem mais à vontade, e sim de uma forma em que minimizem o assédio masculino. Dessa forma, é uma triste faceta da resistência vencida das mulheres em relação ao machismo, pois elas tiveram que ceder a usar roupas que cobrem seus corpos como forma de terem seu trabalho reconhecido. Além das roupas, elas também resistem pouco ao mansplaining, que é quando o homem explica para uma mulher algo óbvio, por julgar que ela não seria capaz de entender aquilo sozinha. No caso do grafite, vimos homens arrancando sprays das mãos de grafiteiras com mais de dez anos de experiência para lhes ensinar como se manuseava aquela ferramenta. No entanto, em nenhum momento, as vimos protestarem
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quanto a isso e tivemos a sensação de que se tratava de algo tão arraigado em seu cotidiano que elas nem davam mais atenção a isso. Apesar disto, não é fruto do acaso a criação de uma oficina de grafite feminino, o que pode sim ser interpretado como uma forma de resistência a este machismo institucionalizado. Se a elas é negado o aprendizado e a livre expressão em conjunto com homens ou nas ruas, elas se organizam e estudam sozinhas. Constitui-se também resistência apropriar-se de espaços proibidos da cidade, fazer grafites em locais não autorizados. No entanto, é difícil resistir a isso quando existe uma penalidade legal associada. Ao mesmo tempo, o grafite torna-se uma transgressão permitida em alguns lugares porque virou adorno de uma cidade que é consumida e virou sinal de bom gosto assemelha-se a metrópoles que abraçaram o grafite, como Nova Iorque. Resistir significa dar visibilidade ao trabalho feminino, a figura do negro, do indígena, e, neste sentido, os grafites analisados constituem resistência. Por outro lado, ao considerarmos que, em maio de 1968, os grafites faziam partes de manifestações e hoje são mercadorias, podemos considerar que o grafite entrou no mundo capitalista e agora se guia por alguns preceitos do capital. Estes pontos são interessantes para pensarmos em possíveis contradições entre os sentidos do grafite ao longo do tempo, principalmente problematizando a sua inserção numa lógica capitalista. Será que, ao se transformar em produto, o grafite se torna outra coisa? Será que, ao se tornar passível de ser negociado, o grafite perde seu
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caráter crítico? Existe uma essência do grafite ou ele é algo que vai se transformando ao longo do tempo? Para Guattari e Rolnik (1996), a criação da arte já se constitui em um ato de resistência, porque não há sistemas para controlar sua criação, assim o caráter crítico do grafite ainda está presente na sua produção. No entanto, há formas de controlar sua distribuição e consumo, o que contribui para sua cooptação pelo capitalismo. Nesse contexto, a subjetividade criada possui elementos de resistência, mas também colocam as pessoas em uma relação semiótica em que tudo vira uma relação de consumo, inclusive os próprios artistas, uma vez que existe apenas uma subjetividade com o poder de absorver todas as demais – a subjetividade capitalística – considerando o capital torna-se o estruturante das relações humanas. A produção de subjetividades se dá via sujeição social e servidão maquínica (Lazzarato, 2010), sendo que, na sujeição, o indivíduo recebe uma subjetividade quando é entregue a ele uma identidade préfabricada, para atender as necessidades do capital. Paralelamente, na servidão maquínica, ocorre uma dessubjetivação, uma destruição da consciência. É na intersecção desses movimentos que há a possibilidade de construção de uma nova subjetividade, com oportunidade para a singularização. Neste sentido, é difícil constituir uma resistência porque é preciso pensar em novas instituições a nível macropolítico para representar uma barreira a isto. A produção de subjetividades é elemento importante para todo tipo de produção, e no grafite não é diferente. As grafiteiras são trabalhadoras sociais, pois desenvolvem um trabalho pedagógico ou cultural voltado
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para uma comunidade. Neste sentido, estão numa encruzilhada política, pois, ao mesmo tempo que constituem em uma voz de resistência ao sistema, passam por uma movimento de cooptação pelos sistema, estando numa posição ambígua. Há uma tendência a compactuar com o sistema porque a subjetividade capitalística é a dominante. No entanto, há possibilidade de resistência via desvio e singularização. Para Guattari e Rolnik (1996) o capitalismo parece ser a lógica do mundo. Existe uma força da subjetividade capitalística que vigora tanto entre oprimidos quanto entre os opressores, reforçando este pensamento. No entanto não é este o único destino, pois existem formas de resistências, as revoluções moleculares, que são resistências contra a serialização das identidades, o que ocorre no grafite com cada uma delas tendo um traço bem definido, valorizando seus processos de singularização. No momento em que estão fazendo um trabalho comercial, podem estar resistindo, não aceitando modificar sua identidade visual, como faz Elisabeth, ou não, como faz Luiza, que aceita fazer qualquer desenho que a pessoa queira quando é contratada, numa tentativa de se encaixar ao que o mercado espera delas. A revolução molecular diz respeito à produção de condição não apenas de uma vida coletiva, como no caso das crews, quanto de uma vida para o próprio indivíduo. Quando um grupo social rejeita algo, abre-se a possibilidade de resistência ao que está vigente, por isso defendemos aqui que a organização das grafiteiras em grupo constitui uma estratégia de resistência. Conforme diz Didi-Huberman (2011), isso abre oportunidade para que elas possam, via união, se juntarem e se fazerem fortes.
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Existem, no capitalismo, duas promessas de emancipação. Uma delas diz respeito ao trabalho imaterial ou empreendedorismo de si – que seria a possibilidade do indivíduo viver de forma autônoma e independente de um emprego formal. As grafiteiras são empurradas nessa direção do empreendedorismo, como forma de organização de seu trabalho e a observação em campo nos mostra que realmente isto é considerado como modo de vida. Não vimos em nenhum momento esta ordem ser questionada. É exigido do indivíduo uma maior autonomia, compromisso e iniciativa, o que seria imprescindível para a sua empregabilidade. Não é fácil resistir, mas também não é fácil ser cooptado pelo sistema. Ser empreendedor de si e gerenciar uma carreira solo também é uma coisa que exige esforço. Na resistência há uma recusa em aceitar o homogêneo, como resposta ao empobrecimento da resistência advogado pelo espírito empreendedor. Eu acho que o ato, só o ato de eu tá pintando, deu tá pintando um rosto feminino e d’eu ser mulher pintando na rua, já é um ato político, um ato de resistência. (Letícia)
Ser melhor do que os homens em qualidade técnica é algo que lhes confere credibilidade frente ao trabalho desenvolvido pelos homens. Apesar de tentarem resistir, acabam cedendo ao abdicarem de suas formas de se vestir para se protegerem dos homens. Para Ramos (1994), o grafite pode ser considerado como uma rebelião contra a civilização industrial. O espaço é político porque diz respeito a noções de territorialidade que são exploradas no grafite.
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Nesse contexto, constitui uma resistência definir onde vai ser realizada a pintura, ao passo que só pintar em lugares autorizados denota certa passividade. Para Baudrillard (1979), escrever seu nome na parede já é um modo de resistência no meio da subjetividade massificada, pois é um tipo de desvio da norma e esforço de singularização. Ainda para o autor os grafites, quando reprimidos e considerados apenas como meras obras de arte, foram cooptados pelo sistema. No entanto, acreditamos que nem sempre essa visão do autor é verdadeira, uma vez que podem haver, sim, signos transgressores ocultos nas obras que passam despercebidos para quem não tem olhos treinados para percebê-las. Conforme Rink e Mattrau (2010), os grafites e pichações podem ser interpretados como processos de subjetivação pois envolvem criação. É importante buscar modos criativos para lidar com o mundo e produzir resistência pela propriedade de vencer a força que assujeita produzindo novas formas de viver. Os autores ainda argumentam que, para alguns, o grafite da atualidade se tornou a pichação permitida e por isso morreu politicamente. Mas, por outro lado, “a prática de grafitar se vista pela ótica de um conceito corresponderia à possibilidade de cidadãos e pessoas desconhecidas atuarem subversivamente no cenário público” (Rink & Mattraup, 2010, p. 87). Se o grafite foi engolido pelo capitalismo, pensaríamos na lógica de um capital que produz exclusivamente consumidores; nesta visão, o grafite não poderia ser outra coisa além de mercadoria. No entanto, não concordamos com essa visão de que o grafite deve ser uma coisa ou outra, e sim que as duas possibilidades coexistem, sendo o grafite mercadoria e resistência ao mesmo tempo.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para Rink e Mettrau (2010), Deleuze e Guattari, em suas obras, nos ajudam a entender que os grafites podem ser compreendidos como processos em que se forma a subjetividade, pois, para estes autores, é através da criação que se atende ao desejo que se produzam novos territórios. Podemos considerar que o grafite a princípio fez parte de uma contracultura, mas que agora está sendo cooptada pelo capitalismo, apesar de ainda haver sinais de resistência. Por exemplo, há resistência do grafite enquanto arte e reinvenção da arte, como reflexos das lutas que se manifestam na cidade pela ocupação dos espaços. No entanto, podemos considerar que há irresistência dos grafites quanto à sua temática e quando ele se espetaculariza. Essa espetacularização foi observada principalmente em eventos de grafite, quando o foco deixa de ser o grafite e passa a ser o fazer grafite, esvaziando o seu significado em alguns casos. No entanto, a rentabilização do grafite não é o grafite. O grafite virou sim uma mercadoria, mas, ao mesmo tempo, ainda é uma forma de resistência na cidade. O capitalismo só suporta as vozes que defendem ou que servem a seus interesses (Tiburi, 2018). Daí vem o grafite enquanto resistência. O lugar de fala pede um lugar de escuta. Se essa escuta não vem de forma espontânea, faz-se necessária a luta que se manifesta na forma de resistência, de convite ao diálogo. O grafite é como um vagalume descrito por Didi-Huberman (2011), o qual incomoda e convida a uma reflexão.
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Para alguns artistas, o grafite “de verdade” seria aquele ausente de transações comerciais, o que eliminaria seu caráter transgressor, transformando-o em outra coisa – um mural – mesmo que os desenhos envolvidos sejam iguais. Não comungamos desta opinião de que não é a venda do grafite que determina se ele é uma obra de resistência ou não, e sim o seu significado. Concluímos também que é forte neste meio o discurso empreendedor – principalmente as noções de que o sucesso pode ser considerado pelo próprio esforço e que se pode chegar aonde quiser apenas por mérito pessoal. Sabemos que isto faz parte do discurso neoliberal (Lazzarato, 2010) e que, na realidade, elas vivem uma situação de trabalho precarizado. No entanto, apesar de o capitalismo parecer ser a lógica do mundo, elas resistem via desvio e singularização ao fazerem obras autorais, escrever seus nomes em paredes. Há também resistência quando se retrata a figura das minorias – do negro, da mulher, do índio, do nordestino. REFERÊNCIAS
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Alexsandra Nascimento da Silva; Fabiana Florio Domingues; Alexandre de Pádua Carrieri
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PARTE 2 CIDADES, TECNOLOGIAS E DIFERENÇAS
6 CIDADES, TECNOLOGIAS, DIFERENÇAS E VIDA SOCIAL ORGANIZADA: PASSOS DE UMA AGENDA INTEGRADA Luiz Alex Silva Saraiva
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PRIMEIROS PASSOS
A tarefa de trabalhar como pesquisador em um país como o Brasil, em que historicamente a educação tem sido pouco priorizada, é árdua. Isso não impede, contudo, que a educação, em particular a de nível superior em universidades públicas, constitua uma carreira interessante em face das possibilidades que suscita. A pesquisa, em particular, é um dos grandes trunfos da carreira acadêmica, e neste capítulo discutirei uma experiência específica, no Núcleo de Estudos Organizacionais e Sociedade (NEOS), da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais. Fundado em 1991 no Departamento de Ciências Administrativas da Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG como GGI – Grupo de Gerência Internacional e Alianças Estratégicas pela Professora Suzana Braga Rodrigues, com o ingresso do Professor Alexandre de Pádua Carrieri em 2002, este grupo passou a ser denominado Núcleo de Estudos Organizacionais e Simbolismo (NEOS), sendo compatível com os interesses de pesquisa que este professor possuía na época. Com o
Doutor em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor Associado da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais. E-mail: [email protected].
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desenvolvimento das pesquisas, o núcleo passou a se chamar Núcleo de Estudos Organizacionais e Sociedade, mantendo a mesma sigla. Esta mudança de nomenclatura permitiu uma ampliação considerável de perspectivas epistemológicas, teóricas e metodológicas, o que precedeu uma grande expansão das atividades a partir do final dos anos 2000. Ingressei no grupo em 2006, no início do doutorado, e alguns anos após a conclusão da minha tese, em 2009, me tornei subcoordenador. Data aproximadamente dessa época uma primeira reformulação geral de atividades, com o início das atividades da Farol – Revista de Estudos Organizacionais e Sociedade e a publicação de novo site, com maior articulação entre os distintos projetos levados a cabo pelo núcleo. Operamos dessa forma alguns anos, e a chegada de novos professores ao núcleo demandou que nos reorganizássemos, mais uma vez. Mais recentemente, passamos a nos organizar por meio de GETs (Grupos de Estudo e Trabalho), que abrigam linhas de atuação específicas de acordo com os interesses dos oito pesquisadores do núcleo. Os sete GETs do NEOS – 1) Cidades, tecnologias, diferenças e vida social organizada; 2) Cultura do Management; 3) Organização, Ciência e Natureza; 4) Organizações e Literatura; 5) Produção social do cotidiano, história e memória da gestão na vida organizada nas/das sociedades; 6) Raça, Gênero e Sexualidade; e 7) Trabalho, Subjetividade e Política – são autônomos, com agendas e atividades próprias de ensino, pesquisa e extensão, articulados em torno de um núcleo gestor que organiza as atividades para evitar sobreposições, conforme já detalhei em outro momento (Sá et al., 2020).
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Neste capítulo, eu me debruço sobre alguns passos da agenda integrada de pesquisa “Cidades, Tecnologias, Diferenças e Vida Social Organizada”, levada a cabo no GET de mesmo nome no Núcleo de Estudos Organizacionais da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Minas Gerais, sob minha coordenação. Pretendo apresentar de forma breve cada um dos elementos da referida agenda, e como eles dialogam entre si em uma rica e promissora base que tem originado muitos estudos interessantes no campo de estudos organizacionais. Penso que romper os limites disciplinares, e forçar mesmo o que se considera como “fora da curva” é tarefa dos que se dedicam à pesquisa, particularmente sob a égide de um pensamento não positivista, como tem sido feito no NEOS. UM PASSO PARA TRÁS – PARA REFRESCAR A MEMÓRIA E AVALIAR O PERCURSO
Quando fiz o concurso para Professor Associado em 2019, um dos examinadores foi assertivo quanto à necessidade de que eu trabalhasse de forma “mais estratégica” na universidade, otimizando esforços tendo em vista quem eu desejava ser como Professor Titular. O comentário se devia ao fato de eu tinha nove áreas de interesse declaradas na época, o que, apesar de muito estimulante, me faziam dispersar energia. Não obstante sempre ter sido muito organizado do ponto de vista do trabalho, e isso de certa forma arrefecesse os efeitos, eu sentia uma crescente sobrecarga e problemas iniciais de falta de foco, o que provavelmente começaria a criar situações desnecessárias de tensão e de frustração. O alerta da colega mais experiente me pôs nos trilhos, por
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assim dizer. E isso significou um período muito interessante de autorreflexão, no qual pude sobrepesar várias questões pessoais e profissionais. Uma análise curricular na época mostrava que eu tinha uma atuação profissional interessante, mas que carecia, em geral, de pontos de convergência. Muitos temas explorados, mas de forma pontual e com pouca amarração entre si. Isso era expresso em projetos de pesquisa com temáticas amplas, inovadoras, oportunas, mas sem continuidade, sugerindo a ausência de linhas de investigação mais sólidas. Além disso, outra questão que era evidente era o foco em pesquisa, mas desarticulada do ensino e da extensão. As publicações refletiam esta dispersão. Embora distribuídas em periódicos e livros interessantes e de boa qualidade, careciam de uma direção comum, que otimizasse esforços e que permitisse articulação com o ensino e com a pesquisa. O ensino, embora contasse com a oferta de uma gama significativa de disciplinas optativas tanto na graduação quanto na pós-graduação, carecia da mesma falta de um fio condutor que as articulassem. As disciplinas terminavam, assim, por ser uma espécie de respostas pontuais a demandas que se apresentavam aqui e ali, sem maiores desdobramentos e reflexões sobre como a oferta era planejada e levada a cabo. Havia, por exemplo, grande oferta de disciplinas que associavam estudos urbanos a estudos organizacionais, mas pontualmente ligadas a interesses de projetos de pesquisa desenvolvidos por mestrandos e doutorandos, e não a uma perspectiva mais ampla, diria mesmo estratégica, de minha parte. Graduação e pós-graduação pouco conversavam nesse sentido, sendo apenas formal a integração entre os
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dois níveis de formação, na medida em que os estudantes precisavam realizar estágio docente, um dos requisitos de sua formação, e era desejável que isso fosse ligado aos seus temas de trabalho, mas sem maiores articulações. Até então, a extensão era o “patinho feio” do meu currículo, o que de certa forma refletia os padrões gerais da universidade, nos quais a pesquisa sempre figurou como estrela maior, o ensino como parte obrigatória na missão de formação, mas mais como um requisito obrigatório e sobre o qual pouco se refletia e se criava, e a extensão “corria por fora”, como se fosse algo dispensável da formação dos estudantes e na minha própria atuação e mais, como se a integração entre ensino, pesquisa e extensão prevista na Constituição Federal nada tivesse a ver com a formação superior. Esta autoanálise franca me colocou diante de questões que me desafiavam frontalmente. Pelo tempo de carreira eu poderia prosseguir mais ou menos da forma como estava sem maiores problemas, já que na universidade, como pessoas diferentes possuem perspectivas e trajetórias distintas, eu tinha muitos colegas que pouco fizeram, ou nada fizeram de extensão e haviam conseguido progredir sem maiores problemas. O mesmo quanto a pensar ensino e pesquisa de forma articulada. Mas esta era uma questão sensível para mim, uma franca fonte de incômodo. As provocações da banca examinadora me assombravam na medida em que eu me importava com o meu próprio trajeto e a minha contribuição para a universidade de que eu fazia parte. Eu sentia, pelos temas que me interessavam, que podia dar um passo além articulando ensino, pesquisa e extensão em torno de
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algumas temáticas centrais. Mas me faltavam elementos para identificar com clareza que pontos eram esses – e como poderiam ser gerenciados, literalmente: de forma irônica, o administrador que sou precisava planejar, organizar, dirigir e controlar para conseguir alcançar seus objetivos. Eu, que sempre rejeitara a funcionalização da vida, em especial nas organizações, me via diante de uma situação em que, para poder seguir na direção que desejava, precisava administrar a situação. Os elementos me pareciam à mão, quase como se pudesse tocálos, mas não conseguia identificá-los com nitidez. Das muitas coisas boas que tirei do concurso para professor associado foi esse olhar ao mesmo tempo voltado para a universidade em que você está e para a qual você contribui com o seu trabalho e para a sua própria carreira, entendida como uma série de escolhas a respeito de percursos mais ou menos interessantes em termos pessoais e profissionais. As provocações da banca, que me levaram a um autoexame franco a respeito da minha própria trajetória, também indicaram que se eu quisesse dar um salto qualitativo na minha carreira, precisava pensar no próximo nível, isto é, como um professor titular, para isso fazendo um uso mais inteligente dos recursos à minha disposição. Todo esse processo me levou à conclusão que há três grandes eixos no trabalho que desenvolvia há alguns anos, e que, ainda que desarticulados naquele momento, eram sem dúvida estruturantes das minhas concepções e práticas de ensino, pesquisa e extensão na universidade: cidade, tecnologias e diferenças. Depois de algum tempo, percebi que tais eixos eram permeados por um quarto elemento, a vida social organizada. Mas vamos por partes.
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DOIS PASSOS PARA FRENTE – PARA ORGANIZAR O TRABALHO
Por que cidades, na Administração? Esta questão não é trivial, apesar de parecer que a resposta esperada é: “porque as cidades precisam ser administradas!”. Formação não implica destino inescapável e, apesar de minha formação em Administração nos níveis de Bacharelado, Mestrado e Doutorado, nunca tive a pretensão de administrar o que quer que fosse. Como nunca tive pendores para a gestão, pude me encontrar na pós-graduação stricto sensu e ver que poderia me especializar nos Estudos Organizacionais, um campo de conhecimento interdisciplinar informado, mas não circunscrito pela Administração. Adotando uma perspectiva bastante crítica até mesmo das pretensões científicas das ciências administrativas (cf. Burrell, 1998), os estudos organizacionais dão margem a reflexões surpreendentes para os estritamente comprometidos com uma visão funcional e racionalizada da universidade e suas distintas áreas científicas. Sem saber, era o que eu buscava. Apesar de se tratar de um campo de conhecimento hegemonicamente positivista, esta nunca foi a minha filiação, razão pela qual a cidade entrou na minha agenda distante do olhar da administração pública de algo “a ser administrado”. Sempre levei a que “uma cidade é mais do que um espaço delimitado em que uma dada população reside. Ela é, de fato, o seu povo...” (Saraiva & Carrieri, 2012, p. 574), e por isso as pessoas na cidade, e as formas pelas quais elas levam a cabo suas existências, em particular as formas pelas quais elas se organizam, sempre foram do meu interesse direto. Para mim isso
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sempre foi mais importante do que sua disposição urbanística ou seus equipamentos e monumentos, apesar de ter publicado trabalhos nessa linha, como em Silva e Saraiva (2019), Correia, Colares e Saraiva (2017), Saraiva, Carrieri e Soares (2014), Carrieri e Saraiva (2008), Carrieri et al., (2008) e Saraiva e Machado (2007). Todavia, quanto pesquisador, meu olhar sempre se voltou para as pessoas, que são a cidade. Tenho consciência de que essa visão pode ser um tanto quanto romântica, porque uma cidade, em especial no Sul Global, possui heterogeneidades difíceis de ignorar. E que raramente elas são tomadas pelo que são na maior parte do seu território: inchadas, pobres, violentas e desiguais. Todavia, isso não me impede de me debruçar sobre partes da cidade e conhecê-las em profundidade mediante abordagens qualitativas de investigação. A escolha de profundidade em detrimento da generalização se reflete em uma sólida agenda de pesquisas sobre cidades que caminha para duas décadas. A cidade que me interessa, definida pelas pessoas em suas diferentes particularidades e configurações sociais, precisa de um aparato que possa acolher aspectos muito distintos, mas que compõe o mosaico urbano. A cidade a que refiro, assim, pode ser de lavadores de carro e flanelinhas e a forma pela qual eles são construídos de forma discursiva na mídia (Bretas & Saraiva, 2013), de um grupo de pessoas negras e periféricas que se reúne no centro de Belo Horizonte para dançar soul music (Coimbra & Saraiva, 2014; Coimbra & Saraiva, 2013), de camelôs removidos para shoppings populares (Perdigão, Carrieri & Saraiva, 2014), de pichadores que registram visualmente sua existência em uma cidade que os exclui (Viegas & Saraiva, 2015), de idosos
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ocupando uma das principais praças da cidade, o que leva à reflexão sobre o quanto o urbano se preocupa com o envelhecimento (Colares & Saraiva, 2016), dos ditos “hippies” e sua resistência às formas hegemônicas de sociabilidade de trabalho (Gomes, 2016). Esta cidade pode ser ainda composta de pessoas em situação de rua, a forma como isso como desafia os estudos organizacionais (Honorato & Saraiva, 2016), os discursos e políticas sociais (Honorato & Saraiva, 2017), e como eles subvertem a ordem estabelecida (Honorato, Saraiva & Silva, 2017), de jovens negros e periféricos que ousam levar a cabo práticas de lazer em shopping centers (Nascimento et al., 2016), da relação entre estética, simbolismo e a produção urbana (Saraiva, 2017; Saraiva & Carrieri, 2014), de quilombolas urbanos e seu direito à terra em que construíram sua resistência (Silva, 2019) e a um trabalho que não envolva apenas a subsistência (Silva & Saraiva, 2020), de mulheres negras periféricas e seus processos de subjetivação em bailes funk na favela (Santos, 2020), de candomblecistas e seu direito à liberdade de expressão religiosa e cultural (Gomes, 2022),de festas populares como o carnaval e seus inúmeros não ditos (Rezende & Saraiva, 2022), entre outras pessoas (e cidades) possíveis. Em Saraiva (2019a, p. 22), assumo que a cidade: se situa em uma paisagem do ponto de vista geográfico, constitui um espaço específico repleto de lugares situados e percebidos simbolicamente, e de inúmeros territórios em disputa pelos que a habitam. Eivada de edificações e vias, sujeita a limites e regulamentações, habitada por pessoas que pertencem a grupos sociais diversificados, a cidade se vê concretamente experimentada de maneira distinta pelos diversos grupos urbanos, o que
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multiplica as possibilidades de aproximação e de análise, bem como os desdobramentos para sua compreensão.
Trata-se, a rigor de uma megaorganização que abriga organizações (Fischer, 1996), em uma escala que dificilmente é tomada como um fenômeno organizacional tomado na perspectiva hegemônica. Mas ouso insistir nas dimensões organizacionais do urbano em razão de encontrarmos inúmeras evidências de um cerne organizacional nos estudos urbanos, o que transcende a perspectiva funcional de algo a ser administrado. Dois desses elementos, tecnologias e diferenças, são aspectos centrais nas organizações e, também compõem este cenário. Sobre tecnologias, não é preciso ir longe no conceito: referem-se a formas de mediação, materiais ou não, pelas quais as pessoas se relacionam com o contexto em que se situam. Este conceito, amplo e vago assim, é plural, uma vez que depende de quem está envolvido na situação. Trata-se, assim, de tecnologias, no plural. Tecnologias que vão de elementos mecânicos, hidráulicos, computacionais, linguísticos, simbólicos etc. Virtualmente qualquer tipo de conhecimento humano possui o potencial de ser tomado como tecnológico, depende de haver uma possibilidade de mediação. No âmbito específico do Grupo de Estudo e Trabalho Cidades, tecnologias, diferenças e vida social organizada, enxergarmos estas tecnologias mediando aspectos de alguma maneira alimentados pela existência humana nas cidades. Entre esses, o foco do GET tem sido um fenômeno recente, mas avassalador, as plataformas virtuais, que tem alterado algumas das bases do capitalismo, ao mesmo tempo em que
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intensificam outras, como o processo de acumulação. O espírito humano se vê afetado pelas tecnologias (Turkle, 2005), sendo as vidas pressionadas a se ajustar a uma lógica produtiva na qual precisam ser, antes de qualquer coisa, aptas para o consumo (Bauman, 2008), sendo o amor, nos termos de Illouz (2011) um vestígio do que foi, atualizado no sistema de produção capitalista. As tecnologias atualizam a acumulação capitalista mediando de forma irrestrita, a exemplo do aluguel de imóveis, da mobilidade urbana, de compras em variados segmentos, da alimentação, e, em particular, no que se refere a relacionamentos, o que tem sido foco de atenção dos pesquisadores deste GET. As investigações nessa linha levadas a cabo pelo NEOS têm dialogado com a sociologia digital, que tem se debruçado de forma crescente sobre as possibilidades das mídias digitais, conforme Padilha e Facioli (2018) e Miskolci (2009). Em produções recentes, aplicativos de relacionamento voltados para homens gays e bissexuais como o Grindr e o Scruff tem sido examinados, com discussões muito provocativas a respeito da forma pela qual os usuários se organizam em resposta aos algoritmos destes aplicativos (Saraiva, 2021a), o papel da solidão como grande motor desse segmento, uma vez que apesar das promessas de encontro, contar com usuários sozinhos é que ativa o negócio (Saraiva & Vasconcelos, 2021), e o quanto esse processo implica uma verdadeira economia digitalizada dos corpos (Vasconcelos & Saraiva, 2021). Em Saraiva, Santos e Pereira (2020) foram exploradas algumas das dimensões presentes em tais aplicativos, como o fato de independente de ser concebido para um público gay e bissexual, toda a lógica do aplicativo é baseada em uma perspectiva heteronormativa de
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masculinidade, com a reprodução digital de muito do preconceito existente nas relações sociais presenciais. Um ano antes, eu já discutir que não obstante o discurso de “construir pontes” entre homens gays por meio da tecnologia, os aplicativos de relacionamento implicavam alterações e permanências nas dinâmicas de virtualidade e de sociabilidade entre os seus usuários. As cidades são o palco para onde ocorrem as mediações pelas tecnologias, um cenário que só é possível se forem assumidas as diferenças como constitutivas de quem somos enquanto seres humanos. Historicamente as diferenças foram relegadas a um lugar de excepcionalidade na sociedade, já que a ordem e o ajuste a essa ordem era que definia o que era “normal” em termos sociais. Esta visão do que é ou não é normal, do que se enquadra ou do que não se enquadra no que é socialmente esperado configurou um horizonte de apagamento de diferenças e de assunção de estereótipos de funcionalidade social que não são as únicas formas de sociabilidade em um mundo como o de hoje (Saraiva, 2020a). Dos pós-estruturalistas do final dos anos 1960 vem uma série de referências importantes, como a de diferenças e a de performatividade, para orientar vidas que se desenrolam em uma sociedade cada vez mais fragmentada e plural, na qual os atravessamentos são múltiplos sobre as pessoas. Todos somos simultaneamente várias coisas ao mesmo tempo, frequentamos vários circuitos sociais, interagimos com pessoas de círculos distintos, e isso não o fazemos a partir de uma essência única e imutável. Pelo contrário, performamos nossas interações à medida
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que as diferenças das pessoas com quem interagimos demandam ajustes e adaptações a fim de nossas relações existirem. A vida, especialmente em sociedade, é incerta e ambivalente (Demo, 2003), o que faz com que existir e conhecer sejam aspectos complexos, razão pela qual nos afastamos de conceitos e noções “digeríveis” e “passíveis de gerenciamento”, como a de diversidade organizacional, perspectivas essas esperadas e mesmo desejadas no que é hegemônico nos estudos organizacionais. Em essência, a base de operação é a mesma de sempre da Administração – aproximação de uma ideia original interessante e disruptiva no seu campo de origem, deformação da ideia mediante recortes e adaptações que terminam por desfigurar o conceito original e, por, fim, ampla disseminação de uma ideia empobrecida, mas com forte potencial de reprodução e mesmo de comercialização – um verdadeiro ciclo produtivo do conhecimento (ou de algo que se parece com ele) em uma perspectiva prêt-a-porter. As diferenças que nos interessam não são gerenciáveis. São de difícil verbalização porque se referem a quem nós somos, a como vivemos nossas vidas, às escolhas que fazemos ou que somos forçados a fazer por ser quem somos, e nem sempre isso significa clareza conceitual ou consciência cognitiva: somos o que somos no infinito de nossas diferenças, como bem coloca Deleuze (2006). Não sabermos como verbalizar ou como definir nossas existências e nossas diferenças não as fazem menos importantes que outras, bem definidas e ajustadas à ordem social. A possibilidade de existir, de ser quem se é do ponto de vista das diferenças é que marca nosso interesse (Saraiva, 2020b).
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Investigar os ditos “diferentes”, assim, é um exercício interessante para uma academia acostumada a ser “a dona” dos conceitos. Em uma tradição que remete muito a Platão, a possibilidade de definir uma ideia e depois ver em que medida o real consegue lhe corresponder termina sendo um esquema de submissão da realidade ao plano da idealidade, algo perigoso em se tratando de uma sociedade baseada em uma noção de ordem de Durkheim (2016). Isto é, se você é “diferente” na sua vida, na sua existência, é porque não entendeu o que é “normal”, ou se esforçou para sê-lo, um argumento que torna a diferença como desvio a ser corrigido e que tem sido a base de muitas organizações que negam as diferenças como comunidades terapêuticas, por exemplo. Cidades, tecnologias e diferenças são perspectivas inter relacionadas e que se articulam em torno de um fio condutor comum, a vida social organizada. Considero que a noção hegemônica de organização não consegue dar conta da dinâmica social porque seu foco está no que é econômico, uma vez que organização é um grupo de pessoas voltado para o alcance de objetivos comuns. Esta visão, que pressupõe harmonia e racionalidade predominantemente econômica, não corresponde às formas pelas quais se vive em sociedade. Por isso adotamos no GET o conceito de vida social organizada. Este conceito: se refere a como os distintos grupos sociais põem em prática a organização de suas múltiplas formas de existência em sociedade. Isso implica considerarmos as diversas concepções e práticas pelas quais esses grupos planejam, organizam, controlam, representam, ressignificam, resistem, narram e preservam a suas histórias e memórias, levando a cabo dinâmicas plurais e construídas em diversos sentidos, só para ficar em algumas dimensões. Trata-se de um objeto de análise organizacional por excelência,
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já que o organizar transcende a ideia de resultados a serem alcançados. As pessoas envolvidas, suas dimensões subjetivas, suas diferenças, seus propósitos, o próprio processo e suas variáveis, bem como aspectos institucionais também compõem o que organiza a vida social é, e, portanto, integram este quadro de referência (Saraiva, 2020a, p. 13).
Há vários pontos que são de certa forma informados por este conceito, mas gostaria de destacar alguns pontos neste texto para não estender de forma demasiada, ligados à pluralidade de existências e como ela desafia a academia. Mesmo com alto nível de escolaridade, e mesmo nos campos de conhecimento sensíveis às diferenças de toda ordem, os pesquisadores são acostumados a partir para o campo munidos de conceitos, que precedem as interações que por lá acontecerão. Tais conceitos “enquadram” os pesquisados dentro de uma forma confortável aos pesquisadores, uma vez que a teoria e a metodologia em conjunto definem limites e abordagens adequadas para interagir com as pessoas, tomadas como “objetos de pesquisa”. Nada mais distante de como a vida realmente se mostra à academia, e por isso não surpreende que tantas comunidades periféricas se recusem a participar de pesquisas da universidade. Isso é sintoma de uma grande incapacidade de interlocução que se deve ao fato de que falta uma efetiva horizontalidade aos membros da academia para tratar os grupos que eles investigam como parceiros, pessoas que não se pesquisa “sobre”. Se são pessoas diferentes, e que precisam ser consideradas de forma equânime a partir de suas diferenças, precisamos aprender com elas e, portanto, a fazer pesquisa
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“com” elas, o que implica rever nossos autorreferenciados esquemas de investigação. Concordo com Dadusc (2014, p. 58) quando afirma que: deslocar e reconhecer os pontos de vista dos pesquisadores não é suficiente para desafiar as relações de poder que a produção de conhecimento implica, como métodos de pesquisa frequentemente tendem a reproduzir a dialética positivista entre objeto e sujeito de conhecimento, e relações hierárquicas entre teoria e práxis, pesquisadora e pesquisada, acadêmica e ativistas. Embora possa ser impossível sair completamente das normas que governam modos de pensamento acadêmicos, é importante problematizar os efeitos exercidos pelos acadêmicos de verdade, e refletir sobre como se engajar em modos de pesquisa que não sejam apenas orientados para universidades e governos, mas que em si mesmas funcionam como práticas de resistência (tradução nossa).
Como disse em outro momento (Saraiva, 2020b), isso é o mínimo que precisamos fazer para nos afastarmos de esquemas que, no fundo, tratam as pessoas como “objetos”, tal como se fossem ratos de laboratório à nossa disposição para quando neles tivermos interesse. A sociedade não está à disposição da universidade, pelo contrário. MAIS ALGUNS PASSOS À FRENTE – PARA COLOCAR AS COISAS PARA FUNCIONAR
Para continuar a caminhada, nesta seção reproduzo algumas experiências do GET Cidades, tecnologias, diferenças e vida social organizada para demonstrar que, apesar de contra intuitivo, é possível trilhar um percurso coerente entre conceitos e práticas de investigação. Valho-me dos dados publicados em Saraiva (2021b), ocasião em que
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registrei duas experiências bem sucedidas de integração entre ensino – na graduação e na pós-graduação, pesquisa e extensão. No início de 2018, discutíamos a possibilidade de encontrarmos uma organização polar para nossas atividades, um caso que propiciasse simultaneamente formas variadas de atividades de extensão e uma complexidade interessante para poder se prestar à pesquisa, permitindo, ao final, que pudéssemos aprender e ensinar a partir da experiência. Assim chegamos a um quilombo urbano localizado na região na capital mineira. Após contatos preliminares, foi elaborado e aprovado um projeto de extensão que contava com uma equipe de cinco estudantes (dois de doutorado, dois de mestrado e um de graduação) sob a coordenação de um professor. Fizeram parte dessa iniciativa integrada ações in loco, debates, rodas de conversa, além da oferta de disciplinas. No primeiro semestre de 2018, na pós-graduação stricto sensu, foram oferecidas duas disciplinas, com carga horária total de 45 horas, que tratavam de temáticas liga à cidade sob as óticas das diferenças e das territorialidades. Nessas disciplinas foram tratados conteúdos simultaneamente aderentes ao projeto de extensão e aos projetos de pesquisa dos membros da equipe. Em cada aula o tema se referia a um projeto em particular, e todos liam a bibliografia e apontavam questões a serem debatidas, aprofundadas ou desenvolvidas pelo estudante de pós-graduação. Associadas às experiências da extensão e aos dados preliminares de pesquisa, essas disciplinas permitiram oferecer na graduação em Administração a disciplina optativa com temática semelhante com carga horária total de 60 horas, no segundo semestre de 2018. Os resultados foram muito positivos aos olhos dos estudantes de pósgraduação e de graduação envolvidos, uma vez que eles não haviam experimentado o ensino integrado com a pesquisa e com a extensão.
A segunda experiência deu continuidade à iniciativa, mas de forma distinta:
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O grupo de trabalho no ensino era composto do professor e de três estudantes de pós-graduação (duas doutorandas e uma mestranda) que tinham em comum o fato de serem negras, e abordarem em seus trabalhos de pesquisa temáticas relacionadas ao que se convencionou denominar de “estudos raciais”. Como já dispúnhamos do referencial já relatado, foi oferecida uma disciplina com foco nas questões da territorialidade e da negritude, cuja razão de ser era discutir o silêncio sobre a questão racial na formação de administradores. A disciplina, que contava formalmente para as estudantes como parte das atividades de formação de estágio docente, um requisito da pós-graduação stricto sensu em um programa de pós-graduação em administração de uma universidade pública brasileira, contou com a sua participação desde o primeiro momento na concepção de conteúdo, na definição de metodologias e de formas de avaliação. Os conteúdos foram distribuídos em seis unidades: I – Território, territorialidade, territorialização; II – Organizações
não-hegemônicas
e
práticas
organizativas;
III
–
Interseccionalidade e marcadores sociais; IV – Fenômenos organizativos: Baile funk; V – Fenômenos organizativos: Quilombo; e VI – Fenômenos organizativos: Festividades afro-brasileiras. Foi definido com as estudantes que elas ficariam encarregadas de conduzir as discussões a cada aula, atendo-se ao conteúdo dos 61 textos da disciplina, e que o professor assumiria um papel de “articulador”, procurando ligar as discussões ao contexto da Administração e trazendo as questões para um plano mais próximo do que se compreende na formação de administradores. Elas próprias subdividiram o trabalho para facilitar a abordagem de acordo com suas competências para tratar dos temas, sempre em torno de uma pessoa que se encarregaria da aula propriamente dita, e das outras duas que levantariam questões, animando o debate. Dada a familiaridade das estudantes com os temas e a experiência anterior do grupo, a disciplina ficou, como os estudantes costumam dizer, “pesada”; isso significa que se tratava de muitos textos para ler, muitas atividades,
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muitas discussões, não sendo “créditos fáceis” (aqueles que dependem de pouco esforço). Essa disciplina demandava muito envolvimento e dedicação dos estudantes, que precisavam não apenas ler os textos, mas entregar periodicamente resenhas, elaborar pensatas (textos posicionados e mais elaborados) e ainda apresentar um trabalho final em duas partes, com reflexões de mais fôlego sobre organizações negras à sua escolha. Não obstante as exigências, a disciplina correu conforme o planejamento, acredito que em parte por conta de ter sido oferecida como optativa. Os estudantes que se matricularam tinham uma ideia do que encontrariam e tinham certa familiaridade e/ou abertura para as discussões, que foram frequentes, intensas e muito interessantes. No encerramento da disciplina foi feita uma rodada ampla de intervenções, sendo solicitado aos presentes que se manifestassem a respeito do que aconteceu, o que podia incluir críticas, sugestões etc. Os estudantes de graduação presentes foram extremamente elogiosos quanto à proposta e à execução da disciplina, dizendo-se surpresos sobre o quanto a questão racial faz parte do curso, mas nele é negligenciada. Foram muito positivos quanto à atuação das estudantes de pós-graduação, destacando seu engajamento e dedicação para fazer das aulas momentos de ganho mútuo. As três estudantes de pós-graduação agradeceram pela experiência, e destacaram os ganhos obtidos por elas em termos de formação, por terem podido perceber como pode se dar a articulação entre ensino, pesquisa e extensão e por terem levado a cabo uma disciplina que permite formar administradores mais críticos sobre o seu papel em sociedade (Saraiva, 2021b, p. 6-7). PARA ONDE ESSES PASSOS LEVAM?
Parando um pouco para avaliar os passos dados até aqui e os próximos passos, devo admitir que tudo é muito estimulante. As possibilidades embutidas em outra forma de articulação entre teoria e prática, e como isso se amarra em ensino, pesquisa e extensão é
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extraordinariamente provocativo. Mas é preciso que se diga, longe de ser fácil ou intuitivo. A forma pela qual as coisas estão dispostas na universidade impelem a fazer as coisas como sempre foram feitas, com baixo nível de inovação e com alta possibilidade de reprodução burocrática de procedimentos já estabelecidos. Ir contra isso requer paciência, organização e articulação contra um establishment reativo a mudanças. Por que fazer isso então? Penso que a melhor pergunta seria: por que não fazer isso? Por que não buscar uma forma mais coerente de operar em uma universidade que tem sido criticada enquanto instituição em todo o mundo pela sua incapacidade de definir se serve ao mercado ou à sociedade, se está ali para formar pessoas para atuar profissionalmente ou prover a sociedade de soluções para os seus múltiplos problemas (Fry, 2015)? Por que não fazer com que as teorias adquiram novos sentidos ao serem cotejadas e coloridas com práticas que podem trazer surpresas e fugas aos esquemas teóricos pré-concebidos? Por que não abrir a pesquisa às possibilidades que a sociedade pode trazer, em especial para a parcela social que tem sido historicamente alijada de ser considerada interlocutora efetiva da universidade? Por que não expandir as fronteiras do conhecimento para fazer da ciência um constructo atravessado por gênero, sexualidade, raça, origem, e diversos outros marcadores sociais que só somariam e dariam respostas mais precisas para a vida contemporânea (Tight, 2010)? Posso responder com tranquilidade e firmeza estas questões: porque outra universidade é necessária. Uma que seja aberta às diferenças, que seja universal nos saberes que abriga, que seja
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concretamente democratizada, entre outras coisas, em termos raciais, sociais, de gênero e sexualidade, que distribua melhor os recursos de maneira a combater a hierarquia de campos da ciência e possibilite a permanência de grupos dela excluídos ao longo da história, que seja voltada para e dirigida pelas necessidades da sociedade, e assim por diante. De forma despretensiosa, é o que procuramos fazer no âmbito deste GET com as concepções e ações aqui descritas, mas não se trata de um processo simples. Humanização parece ser a palavra-chave para pensarmos os passos rumo à universidade que queremos. Isso implica que o ensino, a pesquisa e a extensão sejam integrados e humanizados, e tal humanização precisa se dar em múltiplos sentidos, da forma como nos aproximamos de grupos sociais para as atividades de extensão, nos procedimentos de pesquisa e na forma como ensinamos a partir do que aprendemos.
Para
tanto,
precisamos
nos
“desarmar”,
desinstrumentalizando muito do que é naturalizado nas nossas práticas universitárias. Em primeiro lugar, precisamos nos colocar na posição de aprendizagem, saindo da cristalização de pessoas que ensinam. O mundo tem muito a nos ensinar, e portanto podemos aprender com a sociedade que nos cerca desde que estejamos disponíveis para tanto. Há, assim, vários saberes, e vários lugares em que o conhecimento pode estar, circular e ser difundido, e precisamos nos aproximar para reverter o crescente insulamento da universidade. Além de humanizar, precisamos de passos firmes rumo à horizontalização acadêmica. Hierarquias tiveram sua razão de ser em outro momento da sociedade. A popularização da tecnologia, a
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aceleração das comunicações, a flexibilidade do cotidiano sugerem que o mundo tende a ser cada vez mais horizontalizado, e isso é algo que a universidade como um todo precisa aprender. Os saberes – mesmo os acadêmicos – não se encontram apenas em livros e artigos científicos, estão disponíveis de várias formas, e ignorá-los é não fazer parte de um movimento mais amplo no campo da educação. Isso se estende a relações nas salas de aula, nas formas como pensamos a extensão e no jeito como concebemos a pesquisa, abrindo-nos para possibilidades concretas de troca com as pessoas. É nessa agenda que acreditamos e investimos, passo a passo. REFERÊNCIAS
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7 ENTRE O VISÍVEL E O INVISÍVEL: OS VÍNCULOS TRANSITÓRIOS ENTRE A CIDADE E AS VIDAS QUE NÃO GERAM ACÚMULOS 1 Bruno Eduardo Freitas Honorato
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ENTRE O VISÍVEL E O INVISÍVEL: A POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA NO BRASIL
Um dos primeiros contatos teóricos que tive com o tema da situação de rua foi por meio do livro Desafortunados: um estudo sobre o povo da rua de Snow e Anderson (1998), na época sugerido pelo meu orientador de mestrado Luiz Alex Silva Saraiva. Lembro-me ainda hoje da sensação marcante que fiquei depois de praticamente devorar o livro em menos de uma semana. Em minha mente ressoava apenas um pensamento: “poderia ter sido eu” – pensava em relação àquelas pessoas de rua, seus traumas, suas trajetórias de rompimentos e seus enfrentamentos
cotidianos
em
um
mundo
hostil
descritos
detalhadamente no livro a partir do estudo etnográfico dos autores. A dúvida que me instigava no momento daquela leitura e que ainda hoje me compõe enquanto pesquisador era: se todos somos humanos, o que
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O termo “vidas que não geram acúmulos” foi tomado de empréstimo de Mendes (2007).
Doutor em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor Adjunto da Universidade de Brasília. E-mail: [email protected]. 2
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nos torna iguais ou diferentes de uma pessoa que por escolha, consciente ou não , opta por viver nas ruas? 3
A curiosidade é o que nos move dentro de um tema. Entendo a pesquisa como um processo investigativo que tem na curiosidade o seu substrato mais essencial. Toda a vocação do pesquisador é dada na medida em que a curiosidade dele sobre um tema torna impossível não investigar mais, não ler mais, não conhecer mais sobre esse tema. Ao nos movermos e investigarmos mais sobre um tema encontramos os caminhos que antes não estavam visíveis no nosso ponto de partida. Isso é o que torna a pesquisa um processo social construtivo e constitutivo do pesquisador. O pesquisador que se embrenha por uma investigação, seja a social ou não, constrói conhecimento sobre o tema que estuda, porque não consegue evitar a sede por mais detalhes e nuances de uma certa realidade. À época do mestrado, minha pesquisa caminhou, como era de se esperar, por caminhos que me levaram à questionamentos daquilo que até então parecia óbvio. A naturalização da ordem social nas cidades; a construção de um regime de utilidade nas cidades; os discursos de manutenção dessa ordem; a marginalização dos desviantes. A questão da opção pelas ruas acabou sendo secundária, por se tratar de um campo
Especialmente no que diz respeito às populações vulneráveis, a questão da consciência, no sentido de escolha racional, é problemática. A “opção” ou “escolha”, para essas populações, sempre vem acompanhada de um estigma que a deslegitima: o estigma da “inconsciência” ou da incapacidade de decidir. A depender da linha argumentativa que se opta, essa inconsciência pode ser atribuída a um trauma anterior que “quebra” a psiquê do indivíduo; a questões de ordem temporária e condicionadas a situação de extrema vulnerabilidade em que o sujeito está inserida; ou mesmo, em uma noção mais determinista, a uma condição genética. O entrelaçamento entre a situação de rua, adoecimento mental e utilização de drogas lícitas e ilícitas, compõe um dos principais tópicos que torna a situação de rua uma questão social de alta complexidade.
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de estudos mais específico, ligado essencialmente à psicologia e não propriamente aos estudos organizacionais. Por ser meu primeiro contato com o tema, tive muitas surpresas, algumas agradáveis e outras nem tanto. Uma das surpresas mais agradáveis que tive durante a pesquisa foi a de que Belo Horizonte, por volta de 2012, era referência em atendimento à população em situação de rua no Brasil. Isso me foi confirmado em vários momentos da pesquisa. O fórum da População em Situação de Rua realizado na Pastoral de Rua, o albergue, os abrigos, as repúblicas, o Comitê de Acompanhamento da Política Municipal para População em Situação de Rua, o programa de Bolsa Moradia, Centro Pop, o Serviço de Abordagem Social nas Ruas, dentro outros serviços oferecidos em Belo Horizonte, todos funcionando, ainda que com algumas limitações. A expectativa após a publicação da Política Nacional para Inclusão da População de Rua em 2008 era de aprimoramento das políticas públicas municipais para inclusão e acolhimento dessa população. Passados mais de 10 (dez) anos da publicação da política nacional, a condição de precariedade social da população em situação de rua no Brasil tem se agravado. Especialmente, a partir de 2017 após a crise econômica e política que viveu o país e com o crescente desemprego que têm forçado famílias a migrarem de cidade em busca de trabalho. Essa precarização da situação de rua tem ocorrido não apenas em Belo Horizonte, mas em vários lugares do país, incluindo Varginha, local em que temos realizado pesquisas junto ao grupo de pesquisa Cidadão de Rua. Segundo informações fornecidas pelo Centro Pop de Varginha, a
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população em situação de rua, na condição de migrante, em Varginha cresceu em torno de 25% (vinte e cinco por cento) nos últimos dois anos. Esse dado não é exato, porque Varginha, como a maioria dos municípios brasileiros não conta com um censo periódico da população em situação de rua. Restando aos equipamentos da prefeitura, em geral aos Centros Pop e aos serviços de Abordagem Social fazer a contagem “por alto” das pessoas em situação de rua atendidas pelos serviços. Apesar dessas informações serem registradas pelos sistemas de informação das prefeituras, isso não garante a mesma precisão de um censo periódico, que poderia também balizar a atribuição de recursos das prefeituras para a questão da situação de rua nos municípios. O número de migrantes é crescente e mesmo em Belo Horizonte, onde a política municipal foi referência para vários municípios, atualmente, isto é, em 2019, é possível encontrar famílias de migrantes em situação de rua, buscando abrigo nas praças e viadutos da cidade. Além disso, com as prefeituras e estados em suposta crise econômica, os investimentos sociais são os primeiros a serem preteridos a outros ditos mais rentáveis. Nesse sentido, a condição atual da PSR é precária 4
e a expectativa, em termos de investimento social, é baixa. Esse horizonte pouco favorável a PSR é o cenário em que temos caminhado com o grupo de pesquisa Cidadão de Rua e no qual temos afirmado a relevância da pesquisa, tanto quantitativa quanto qualitativa, que possa fornecer subsídios a elaboração de políticas públicas mais eficazes,
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Abreviação de População em Situação de Rua.
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considerando o caráter altamente complexo do atendimento a essa população e urgência inegável de suas demandas. Tendo em vista esses aspectos, que problematizam a situação de rua e sua condição atual no Brasil, abordarei brevemente minhas pesquisas feitas em parceria com meu orientador e com colegas de trabalho nos próximos tópicos e discutirei a relação entre a cidade e a PSR; a noção de ordem e subversão a partir de um entendimento das práticas sociais da PSR; e, por fim, a relação entre discurso e políticas sociais voltadas para essa população. Logo após, descreverei brevemente a trajetória do grupo Cidadão de Rua e finalizarei com percursos investigativos que, enquanto coletivo de pesquisa, percebemos proveitosos e possíveis para novos empreendimentos de pesquisa no tema da situação de rua. Meu objetivo com esse capítulo é afirmar a importância da pesquisa científica na construção de conhecimento sobre temas sociais complexos como a situação de rua e sua potencial contribuição para o desenvolvimento de políticas públicas mais eficazes. CIDADES, POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO ORGANIZACIONAIS: APROXIMAÇÕES
DE
RUA
E
ESTUDOS
Viver no mesmo espaço geográfico não significa viver de forma semelhante. Como afirma Buarque (2003), portugueses e indígenas que se encontravam em terras brasileiras há 500 (quinhentos) anos atrás tinham mais em comum, em termos de condições de vida, do que um rico e uma pessoas em situação de rua que habitam hoje a mesma cidade. A migração dos campos para as cidades provocada principalmente pelo
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desenvolvimento concentrado acelerou o processo de urbanização brasileiro, principalmente a partir da metade do Século XX. Novos fenômenos e relações tornaram as cidades o palco de uma composição social incipiente, sem precedentes. O processo de migração forçada aliada a uma lógica de consumo incorporada ao processo de desenvolvimento econômico produziu e ainda produz um espaço urbano redutor da diversidade. O crescimento da desigualdade e o desenvolvimento de fronteiras internas tem sido estudado por antropólogos e sociólogos de várias épocas (Velho, 2000). No Brasil, os estudos de alguns pesquisadores (Velho, 2000; 2006; Venturini, 2009; Souza, 2009; Limena, 2001; Martins, 2011; Sawaya, 2006) ressaltam a importância de se entender o contexto urbano como o locus da sociedade moderna e da sua dinâmica comportamental e investigá-lo não somente em suas dimensões materiais, mas também simbólicas (Saraiva & Carrieri, 2012), ideológicas (Leite, 2008) e socioambientais (Costa, 1997). Nesse sentido, a cidade é um tema interdisciplinar que requer visões complementares e abordagens que compreendam aspectos da complexidade inerente às relações sociais que ela engloba, possibilita e produz. A cidade nos faz fazer certas coisas, agir de determinadas maneiras, ter paciência, ter pressa, sermos mais práticos, ambientalmente
conscientes,
e,
sobretudo,
úteis,
para
não
atrapalharmos o fluxo. É nela que se realizam grande parte de nossos anseios e é nela que se criam grande parte desses anseios. Também é nela que ficam mais evidente os produtos da expansão de uma lógica ocidental capitalista. A marcha social que vai da desigualdade à exclusão
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e da exclusão à dessemelhança entre os indivíduos. A dessemelhança nos afasta, rompe vínculos, gera guerras. Marcel Bursztyn (2003) nos alerta que, se continuarmos nesse caminho, com o uso das técnicas ditas modernas, especialmente as médicas, para o benefício de apenas uma parte da população, logo a humanidade pode ser rompida e a dessemelhança transformada (novamente) em diferença biológica. A parte nosso senso de urgência, a ocorrência de indivíduos que residem nas ruas de grandes centros urbanos não é recente. Segundo Bursztyn (2003), desde começo do Século XVII, por haver muitos pobres migrando para os centros das cidades, foram realizadas políticas públicas a fim de consolidar essas pessoas em seus locais de origem. Com o final do sistema servil, não era mais de interesse dos senhores cuidar das classes inferiores, dessa maneira, as pessoas ficaram livres para procurar seu sustento no novo mercado. Com o passar dos anos as diferenças foram aumentando, de acordo com Bursztyn (2003) as pessoas que viviam na classe abaixo do ciclo econômico começaram a ter suas vidas prejudicadas pela falta de moradia e comida, tendo como consequência a dificuldade de conseguirem empregos. Essa situação persiste, bem como persiste o desenvolvimento econômico concentrado nas cidades. As cidades do Século XXI, como agravante, ainda tem como peculiaridade a busca por uma imagem de cidade passível de ser consumida tanto pela população local quanto pela mídia mundial; sendo esta última, muitas vezes, representante de acionistas e agentes do capital privado que buscam aproximar a imagem da cidade àquelas consideradas molde, ou modelos, para elevar o potencial lucrativos dos
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investimentos privados nas cidades. Esse tema foi amplamente discutido por Sánchez (2001). O potencial especulativo das cidades se baseia essencialmente no que Sánchez (2001) chamou de marketing urbano ou como afirmam Duarte e Czajkowski Junior (2007) e Leite (2010) o city marketing. Conforme adotamos em Honorato e Saraiva (2016), o olhar que coloca a cidade enquanto um empreendimento a ser gerido, pode ser melhor entendido se tomarmos a cidade como objeto de análise dos estudos organizacionais. A incorporação de discursos ligados ao ambiente empresarial privado pela gestão municipal é um fenômeno crescente. A utilidade produtiva das cidades e do potencial lucrativo dos espaços têm sido objeto de especulação financeira pelos investidores interessados especialmente no ramo imobiliário. A consagração de espaços e usos da cidade, interagem diretamente com a criação de políticas públicas pelo governo e com a gestão do espaço público municipal. Os pesquisadores, atentos a essa relação, têm usado os termos gentrificação (gentrification), revitalização e limpeza social, para caracterizar um dos tipos dessas políticas que surge com interesses específicos das classes médias e altas na reapropriação de espaços que foram, na maioria das vezes, por muito tempo, abandonadas ao povo. Lugares que perderam a centralidade em outras épocas e agora retornam a um centro de preocupações político-ideológicas (Leite, 2008; Botelho, 2005). Por gentrificação entende-se um tipo específico de intervenção urbana que altera a paisagem urbanística e/ou arquitetônica com forte apelo visual, adequando a nova paisagem às demandas de valorização imobiliária, de segurança, de ordenamento e de
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limpeza voltadas ao uso, ou à reapropriação, por parte das classes médias e altas (Leite, 2010, p. 751).
A pergunta certa, feita por Botelho (2005, p. 54), entretanto, é “até que ponto as intervenções são ou não excludentes?”. Segundo Lefebvre (1998), a mercantilização das cidades vai além de apenas torná-las mercadorias vendendo pequenas parcelas do espaço, pois procura realizar um projeto de reorganização da produção subordinada às cidades e aos centros de decisão. A ideia é estabelecer rumos para uma produção global do espaço. Para vender a cidade, entretanto, são necessárias formas de divulgação, que, na gestão urbana, se consolidam na produção de imagens sobre a cidade; imagens essas que representam uma determinada visão de mundo sintetizada na forma de slogan, ou de afirmação sobre determinada característica atribuída à cidade. Essas visões que proclamam a imagem-síntese da cidade ou as chamadas cidades-síntese têm seus critérios de construção pautados na valorização de determinados aspectos que fortaleçam a imagem da cidade segundo uma visão hegemônica de qualidade de vida. À margem da “vida social organizada” (Saraiva & Carrieri, 2012, p. 548) e gerida pelos grupos sociais que acessam a disputa pela legitimidade dos discursos sobre a cidade estão as pessoas em situação de rua, as quais politicamente carecem de espaços legítimos de fala em que sua visão sobre a cidade possa ser incorporada às politicas municipais. No âmbito da disputa por legitimidade dos discursos sobre a cidade, as políticas públicas passam a compor não apenas o quadro da natureza objetiva da gestão, mas também da disseminação de uma
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ideologia predominante que está ligada àqueles que dispõem de maiores recursos para determiná-las. Nesse sentido a força dos atores que legislam a cidade é assimétrica, ficando as populações vulneráveis à mercê de representantes com os quais não tem poder de barganha. Os fóruns de discussão sobre a população em situação de rua, as pastorais de rua e os comitês de acompanhamento das políticas públicas para as pessoas em situação de rua foram avanços nesse sentido, embora estejam agora ameaçados pelos discursos da crise econômica atual. Por outro lado, o poder político dado pela capacidade de acessar o âmbito legislativo municipal não é a única forma de poder que os habitantes – domicialiados ou não – de uma cidade dispõe na relação com a gestão dessa cidade. O que nos leva a uma discussão dos micropoderes ou microliberdades e da noção de ordem e subversão nas cidades. ORDEM E SUBVERSÃO NAS CIDADES: UM OLHAR SOBRE AS PRÁTICAS DA POPULAÇÃO EM SITUAÇÃO DE RUA
A cidade é, por definição, habitada e é o fato de ser habitada que garante a cidade e aos lugares que a compõe a característica que define o que Michel de Certeau chamou de espaço. Para Certeau (1998) o que determina o espaço é a prática que dele se faz (Certeau, 1998). O olhar sobre a dinâmica das formas de existir na cidade tem a expectativa de enriquecer a noção de construção social do espaço. Morar na rua é uma forma de praticar a cidade, tanto quanto visitá-la, construí-la, caminhar nos parques e praças dela. Enquanto sujeitos dessa cidade, a população em situação de rua opera não sem considerar os muros (Certeau, 1998)
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que representam as limitações ao fluxo da vida social na cidade. Entretanto, as estratégias de controle que estabelecem os momentos de poder da gestão municipal podem e são contornadas pelos seus habitantes no cotidiano. Os conceitos de ordem e subversão e as implicações políticas de se estudar a população em situação de rua durante nossa pesquisa (Honorato, Saraiva & Silva, 2017) foram pensados a partir do subsídio intelectual de Michel de Certeau (1925-1986). A noção de controle social conflita com os interesses do ser e constrange as ações mais ínfimas do seu dia a dia. Certeau lança-se na busca de uma abordagem que coloca em questão esse aspecto. O pensador francês, admirador de Michel Foucault, constrói seu pensamento centrado na captura das práticas cotidianas, isto é, dos momentos do dia a dia que revelam os aspectos sutis e profundos da dinâmica de interação entre o sujeito e o poder disseminado na estrutura social (Josgrilberg, 2005). Após a leitura de “Vigiar e Punir” de Foucault, Certeau entende que, nas ações de controle social – representado pela imagem do panóptico de Jeremy Bentham consagrado por Foucault – existem fissuras, as quais os sujeitos têm acesso, ainda que de maneira não consciente. Essas ações que exploram tais fissuras são chamadas, por Certeau (1998), de táticas: movimentos clandestinos que revelam momentos de transgressão do sujeito em relação às imposições do controle social. As táticas são, para o filósofo, a arte do fraco, o ato criador e insurgente por excelência diante das estratégias organizadas para a manutenção de uma hegemonia. Ordem e subversão, estratégia e tática no léxico de Certeau, são movimentos que não se separam e na sua oposição constante produzem-se
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mutuamente. Esse é um ponto chave na analítica de Certeau. Mais do que tipificar os atos como ordeiros ou desviantes, cabe ao pesquisador descrever o jogo discursivo que engendra essa diferença – e constrói seu significado necessariamente social, pois é fruto das relações entre os homens – e suas implicações na configuração de posições na sociedade. Portanto, é pela via das microrrelações estabelecidas no cotidiano, que Certeau compreende o poder e a política. Para Certeau as lutas políticas são também lutas pela produção do espaço ordinário. 5
Nesse enquadramento, a subversão, entendida como a capacidade humana de ressignificar a realidade a partir de convicções outras, que não as consideradas hegemônicas e normais (Josgrilberg, 2008), representa a possibilidade de criação de espaços de ação que permitam a renovação das práxis culturais. Resistir, ainda que de uma forma sutil, representa, para Certeau (1998), uma fração da história em que o fraco persiste e se impõe ao forte numa relação de poder. Portanto, compreender o significado da subversão no modo de vida da população em situação de rua permite conhecer com mais profundidade o sentido de ordem e os seus transbordamentos (como o preconceito) e como a sociedade lida com as pessoas e os fatos que ela não tolera. Permite compreender como o conceito de intolerância é construído (e se escora), evocando-se os ideais de legalidade definidos pelo Estado, quando essa via de pensamento, evidentemente, é conveniente para quem a aciona.
O termo “produção” é utilizando em seu sentido amplo, seguindo conceituação de Henri Lefebvre (1998). Para esse autor, os homens enquanto seres sociais produzem sua vida, história, consciência, imaginação e seu mundo. Toda a realidade que se pode observar, toda a natureza que se pode imaginar é uma produção humana, isto é, efeito de uma permanente construção (simbolização) realizada pelo homem no cotidiano (no plano dos sujeitos em ação) de suas vidas.
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Desse modo, a escolha de Certeau não se deve apenas à caracterização peculiar que propõe das táticas e estratégias enquanto momentos de poder, mas também pela relação da sua teoria com a capacidade de insurgência dos anônimos sociais, dos fracos, daqueles que se encontram no silêncio e nas fissuras da estrutura dominante. Na análise das entrevistas que fizemos em Honorato, Saraiva e Silva (2017) apontamos para (i) um uso subversivo dos espaços públicos da cidade (construção de malocas, espaço como depósito de necessidades fisiológicas, ocupação de praças de modo não convencional, etc.); (ii) um questionamento do enunciado-síntese de Belo Horizonte: uma “cidade para todos”; (iii) a existência de padrões de sociabilidade e acordos tácitos que regem a relação entre os moradores e os demais agentes sociais(domiciliados, comerciantes, polícia, etc.), ainda que esses acordos variem e sejam suspensos em algumas situações; (iv) a insatisfação que o albergue provoca em alguns moradores e em sua vizinhança, essa última enxerga essa instituição como um dispositivo de estímulo à vida nas ruas; (v) a construção da noção de normalidade (isto é, de um indivíduo incluído socialmente) alicerçada no domínio de competências e no cumprimento de funções que ofereçam uma contribuição útil para a sociedade organizada em torno do trabalho capitalista e da cidade eficiente; (vi) a prática da “caridade contraditória” caracterizada por um comportamento social vacilante: ora vigora o desinteresse e o preconceito que legitima as ações de repressão social e higienização, ora a compaixão e o assistencialismo; (vii) o reconhecimento político da “escolha pela rua” e pelo questionamento de uma adaptação obrigatória à ordem funcional da
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sociedade como um pressuposto para o usufruto de direitos civis e para obtenção de um respeito social A observação de tais práticas suscitou o debate de vários temas complexos, dos quais julgamos que dois desses temas merecem breves comentários, a saber: o sentido atribuído à noção de transgressão; e a vida na rua como uma escolha política. Quanto ao primeiro tema, limite e transgressão, inspirados por Mosé (2012), compreendemos que os homens precisam de limite para se organizar, isto é, de cultura (como sinônimo de civilização e de normalidade, não no seu sentido antropológico mais contemporâneo); ao mesmo tempo, necessitam suspender esses limites aproximando-se de sua natureza primária, a fim de refletir sobre si e despertar sua potência criativa. Morar na rua é uma experimentação dessa ausência de limites (essa experimentação varia em intensidade e duração). A pesquisa mostrou que essa vivência não suspende completamente os limites sociais, na medida em que os moradores possuem uma lógica própria –e heterogênea entre o grupo – de se organizar, e na medida em que a transgressão surge na relação com a sociedade. Viver em situação de rua é uma via de retorno a um modo de manejar o mundo mais fracamente mediado pela cultura ocidental que produz um ideal de normalidade. Não estamos sugerindo que os limites sejam desnecessários, sem eles não haveria pensamento, linguagem, sociedade, etc. A ideia que assumimos é que o homem (no sentido mais geral de espécie humana) constrói-se permanentemente por meio da relação limite-transgressão. É o jogo entre esse par que formula o conceito de humanidade. A transgressão traz para o primeiro plano a
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heurística e as justificativas que levaram ao estabelecimento de limites. Esse é o seu potencial transformador – ou não, pois na medida em que acentua os limites ela também tem a possibilidade de fortalecê-los, se nada for feito para mudá-los. Na transgressão o homem coloca em questão o seu ser – é nesse sentido que, para Mosé (2012), a transgressão é uma potência orgânica da vida, o desafio é dirigi-la e potencializá-la, simultaneamente. Esse é um aprendizado relevante que extraímos do contato com os moradores em situação de rua. Ao conhecer suas práticas ficamos subitamente tocados pela necessidade de lutar para modificar características desse modo de viver (referimo-nos às condições sanitárias, de saúde, de invisibilidade e violência física) e atuar na direção de retirá-los da rua. Somos alimentados pelo impulso de compreender a vida nas ruas como o signo da decrepitude humana. Mas, ao mesmo tempo, perguntamo-nos: é possível outra leitura? Acreditamos que sim. A experiência de contato com os moradores também nos provocou um novo olhar: a cultura humana fundada na razão (o nascimento da civilização reduziu o homem a pensar) é capaz de produzir um ideal de normalidade/verdade que é excludente. A cultura deu-nos a liberdade de pensar, mas, paradoxalmente, criou uma nova natureza, que também nos tiraniza (Mosé, 2012). A cultura da normalidade é, pois, essa estranha liberdade, que a população em situação de rua não quer para si. O segundo tema, que se refere a morar na rua, implica considerar esse aspecto também como uma escolha política que deve ir além. Quando a população em situação de rua é colocada no lugar de vítima
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ou de descartável urbano, ou ainda, de incapaz/inconsciente, há um esvaziamento político-identitário desse grupo que tende a legitimar as políticas assistencialistas e de higienização. Mudar o enunciado discursivo hegemônico de descartável/incapaz para o de “escolha” é importante para reconhecer a identidade (coletiva e individual) daqueles que optaram por morar na rua. É a base para a politização da luta identitária que deve ter como propósito informar as políticas públicas sobre a necessidade de reconhecer essas vozes anônimas. Acreditamos que esse é um caminho possível para a diminuição do estigma cravado nesses indivíduos. Evidentemente, essa mudança impõe desafios à própria população em situação de rua, pois este cenário implica novas responsabilidades que não sabemos se os moradores desejarão assumir. Portanto, um aspecto que nos parece central é compreender avida nas ruas como uma possibilidade biopolítica. Estimulados pela argumentação de Axel Honneth (2003), entendemos que a melhoria qualitativa de vida desse grupo passa pelo usufruto de direitos civis e respeito por suas escolhas, contudo esses aspectos não são suficientes como sugerem os textos subsequentes do autor (ver Honneth 2001; 2008). Honneth (2003; 2008) sugere que a luta pelo reconhecimento envolve conquistas nos campos afetivo, político (ligado aos direitos civis, à possibilidade de participação e representação na sociedade) e de estima social. Essa última se justifica pela necessidade humana de desenvolver relações solidárias (partilha de valores e capacidades) no grupo ao qual pertence, objetivando a conquista de prestígio social, mas não prescinde do acesso a recursos materiais para a sobrevivência –
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dimensão econômica no seu sentido estrito, também chamada de dimensão (re)distributiva. Honneth (2001; 2008) deixa claro que o reconhecimento humano é (também) fruto da contribuição dada ao grupo sob a forma de trabalho social. O autor sugere que o grande desafio é pensar como colocar em prática tal conceito: “[...] como a categoria trabalho social deveria ser incluída no marco de uma teoria social para que dentro dela abra uma perspectiva de melhoria qualitativa que não seja apenas utópica?” (Honneth, 2008, p. 48). Pensamos que esse é também o desafio em relação às pessoas em situação de rua. Assim como Honneth (2008), acreditamos na relevância do trabalho como meio de melhoria qualitativa de vida, por reconhecer nessa atividade a possibilidade de autorrealização e subsistência humanas. Parece-nos que o reconhecimento político da vida nas ruas deve passar obrigatoriamente pela necessidade de se pensar em formas de trabalho capazes de envolver os moradores de rua, criando novas sociabilidades. Essa é uma via possível para fugirmos de um culturalismo banal (ver Fraser, 2002, especialmente o tópico 2). Atuando nessa lacuna, a pesquisa sociológica tem condições de melhor informar os agentes envolvidos no amparo à população em situação de rua e, de fato, interferir na realidade dos moradores. Portanto, seguir nessa direção é nosso estímulo para a continuidade do trabalho com a população em situação de rua.
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DISCURSOS E POLÍTICAS PÚBLICAS: RECONHECIMENTO IDENTITÁRIO
IMPLICAÇÕES
POLÍTICAS
DO
Dizermos que as pessoas em situação de rua podem optar pela vida nas ruas e dizermos que a transgressão é um convite a construção – ao menos a reflexão – de novos limites para a dinâmica citadina, não é ao acaso. A questão do reconhecimento desse grupo, enquanto um grupo de direitos e deveres, passa pela discussão dos discursos que legitimam a miséria nas sociedades contemporâneas (Resende, 2008). Discursos que são extraídos em diversas fontes, têm efeitos ideológicos imediatos, e contribuem, muita vez, para a manutenção da injustiça social. A precariedade das condições de vida dessa população e a negação dos seus direitos, enquanto grupo, estão no cerne da questão da justiça social. As justificativas que se dão à perda do “sentimento de semelhança” e do juízo ético que faz com que os seres humanos sintamse parte de uma mesma espécie estão explícitos em construções sociodiscursivas que naturalizam a miséria como um fenômeno social se não justo, pelo menos, aceitável socialmente. A população em situação de rua foi praticamente excluída das políticas brasileiras até a década de noventa. Entretanto a luta pelos direitos dessa população já acontecia há algum tempo, mostrando contornos desde 1950 na cidade de São Paulo (Melo, 2015). A consolidação das políticas enquanto texto manifesta uma prática discursiva importante para a população em situação de rua, em termos de direitos previstos na constituição brasileira.
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A participação dos diferentes segmentos da sociedade na formulação das políticas, inclusive da própria população em situação de rua pela representação do MNPR , indica uma possibilidade de 6
apropriação das demandas sociais por meio dos debates, como afirma Decreto s/n (2008, p.2), a consolidação das idéias inseridas neste Documento percorre um processo necessário de discussão de seu texto nos diversos fóruns de debate de políticas públicas sociais, de forma a permitir a mais ampla participação de diferentes segmentos da sociedade.
Os problemas relacionados à utilização da cidade pelas pessoas em situação de rua e os confrontos com a população domiciliada, colocam a administração pública municipal em uma posição de mediadora, ao mesmo tempo em que se situa como produtora e mantenedora da ordem social também possibilita a ação de agentes engajados na transformação das práticas discursivas relacionadas à população em situação de rua. Em Belo Horizonte o Decreto 14.146 (2015) de 07 de outubro de 2010 institui o Comitê de Acompanhamento e Monitoramento da Política Municipal para a População em Situação de Rua responsável por acompanhar, assessorar e monitorar a política voltada para a população em situação de rua. São doze representantes do poder público e doze representantes da sociedade civil. Sendo que dos doze representantes titulares e suplentes da sociedade civil são eleitos cinco representantes da população em situação de rua organizada, por meio de movimentos sociais, fóruns e comissões de usuários de serviços; um representante 6
Movimento Nacional de População de Rua.
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de instituições acadêmicas e de pesquisa; dois representantes de instituições prestadoras de serviços voltados para o atendimento da população em situação de rua; três representantes de instituições de assessoramento e defesa dos direitos da população em situação de rua; um representante de outras entidades, instituições, organizações e associações interessadas em contribuir para o fortalecimento da Política Municipal para População em Situação de Rua. As respostas que são dadas à existência dessas populações, consideradas ociosas, têm sido, por vezes, “medicalizantes” , no sentido de “reduzir a dimensão de um problema social complexo a um diagnóstico médico clínico, ou entendê-la na dimensão dos preceitos higienistas e sanitaristas, na ótica da remoção das populações em circulação pelas cidades” (Adorno & Varanda, 2004, p. 57), ou proibitivas (Nardi & Rigoni, 2005, p. 275), no sentido de não permitir manifestações que tenham visibilidade negativa diante desse regime, tal como no caso dos usuários de drogas (ilícitas, principalmente). Embora disponibilize, também, organizações que amparam essas populações, como albergues, repúblicas, casas de recuperação, essas organizações no Brasil são, em sua maioria, fundadas e mantidas por órgãos religiosos e por entidades caritativas (Costa, 2005; Mendes, 2007). Por outro lado, em alguns casos, os agentes municipais, têm adotado uma proposta de redução de danos. Baseada na criação de vínculo entre agentes sociais e populações vulneráveis, a partir de um método de atuação não proibitivo, a fim de reduzir os agravantes de risco de saúde nas práticas cotidianas dessas populações (Nardi & Rigoni, 2005). Em princípio, a redução de danos,
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pode ser definida como um conjunto de medidas em saúde que tem a finalidade de minimizar as consequências adversas do uso/abuso de drogas. Tais ações possuem como princípio fundamental o respeito à “liberdade de escolha” (Nardi & Rigoni, 2005, p. 274).
Embora, hoje, as técnicas que foram desenvolvidas para tratamento de usuários de drogas também sejam utilizadas em uma perspectiva de saúde pública para as pessoas em situação de rua. A noção de redução é baseada em políticas de desestimulo do uso abusivo do álcool e de drogas ilícitas. No Brasil, a redução de danos tem seus primeiros empreendimentos realizados em São Paulo, em 1989, e somente a partir de 1995 foi permitido que algumas técnicas fossem realizadas legalmente (Nardi & Rigoni; 2005). A principal característica que constitui as políticas de redução de danos é o pressuposto de que o usuário, ou no caso, a pessoa em situação de rua, é livre para agir da maneira que bem entender. Isso influi diretamente no tratamento “sempre respeitando o momento e a vontade do usuário” (Nardi & Rigoni, 2005, p. 275). O respeito e o trato com a população de rua, bem como com as populações vulneráveis, pode ser diferencial na formação de vinculo, e, por conseguinte, na abertura de novas possibilidades essas populações. Apesar disso, a política de redução de danos ainda é incipiente, tem sido adotada em vários âmbitos de tratamento com populações vulneráveis. De maneira geral, as políticas públicas encontram dificuldades para o tratamento dessa população dada a sua alta complexidade. Muitas vezes, a falta de endereço fixo corrobora para a dificuldade de acesso a hospitais, postos de saúde, para colocar os filhos
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na escola etc. Além disso, falta de documentação é um problema que atinge ampla parte dessa população e dificulta o acesso aos serviços públicos (Resende, 2008). Na pesquisa que empreendemos em Honorato e Saraiva (2017), entendemos, com Fairclough (2001), que os significados extraídos nas falas constituem discursos que de forma intertextual estão presentes na formulação das políticas sociais em maior ou menor grau, especialmente, no contexto de políticas formuladas sob procedimentos mais democráticos. A legitimação da participação dos movimentos sociais, o MNPR, das entidades de apoio material e amparo religioso à população em situação de rua qualificam circunstancias em que a demarcação de objetivos de determinadas ações governamentais possam ser influenciadas pelos significados compartilhados por esses diferentes grupos e atores sociais. O caráter político e histórico da formação das políticas sociais para as pessoas em situação de rua, em suma, perpassa a participação das pessoas em situação de rua como atores
e
defensores
dos
seus
direitos
sociais
garantidos
constitucionalmente. Nesse sentido, nos dados obtidos por meio de entrevistas semiestruturadas, observação participante e registro em diário de campo, observamos que, dentre as estratégias discursivas utilizadas pelos atores para persuadir o ouvinte em relação a seus argumentos, podem ser destacados alguns significados que subsidiam as falas na expectativa de justificar as ações dos atores na lida com a população em situação de rua. Esses significados não são apenas individuais, são compartilhados socialmente em determinados grupos e detém força
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política de atuação institucional segundo a posição dos atores que têm direito a fala nessas instâncias. Portanto, são forças argumentativas, que empreendem significados estrategicamente legitimados nos discursos, e subsidiam a formulação das políticas sociais seja em contextos democráticos, seja em contextos autoritários, tecnocráticos e de formulação política de gabinetes. Dentre os significados destacados na pesquisa, temos i) o “controle das intenções”, que evidencia uma relação direta entre o discurso do trabalho como elemento necessário à dignidade humana e o merecimento às políticas sociais, isto é, apenas aqueles que virem a cidade para trabalhar merecem apoio institucional, estabelecendo um interdiscurso com o discurso da meritocracia; ii) A tentativa de estigmatizar ou marginalizar a população em situação de rua nas falas, o que implica diretamente na possibilidade de ação política, reconhecimento de direitos e deveres dessa população, uma vez que o estigma “crackeados” implica um significado de inconsciência ou invalidez que caracteriza uma incapacidade de cuidar si; iii) o sentido da legalidade da vida nas ruas e a possibilidade de intervenção do Estado, ou do município, no sentido de uma coerção ao cidadão que assume conduta que implique em desvio da ordem social; iv) o “controle pela limpeza dos corpos” que implica a discussão de provimentos para necessidades físicas dessa população, sob resposta à necessidade de organização e controle das condutas das pessoas em sociedade. A partir dos significados destacados sugerimos a reflexão sobre a questão da população em situação de rua no âmbito aplicado a administração pública, isto é, pela revisão dos significados atribuídos a
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população em situação de rua, nas instâncias de formulação de políticas sociais, enquanto grupo social e historicamente em luta por reconhecimento e realização dos seus diretos; e no âmbito teórico pela possibilidade de interlocução entre a discussão dos direitos sociais dos anônimos, nas palavras de Certeau (1998), e as práticas sociais dessa população enquanto resultado do seu posicionamento na estrutura social. CONSTRUINDO CAMINHOS: A TRAJETÓRIA DO GRUPO CIDADÃO DE RUA
Em meados de 2018 fui procurado por um grupo de cinco alunos que após um seminário oferecido por mim e pelo professor Everton Rodrigues da Silva por meio do grupo de pesquisa Organizações Outras (O2) estavam entusiasmados com a possibilidade de pesquisar e contribuir para questões sociais relevantes no Brasil. O curso de Administração Pública da Universidade Federal de Alfenas (Unifal – Campus Varginha) têm se mantido durante seu pouco tempo de existência em uma proposta de discussão ativa e preparo dos alunos para a gestão de políticas públicas considerando especialmente as questões éticas e humanas ligadas ao desenvolvimento social. Os alunos após o seminário buscavam mais que apenas pesquisar, buscavam suprir o anseio por fazer algo pela sociedade. Desse ímpeto inicial surgiu o Grupo de Pesquisa Cidadão de Rua. Ainda interno à Unifal e lentamente se constituindo pelas atividades que fomos traçando. Inicialmente o grupo se prontificou a estudos teóricos sobre a PSR conduzidos por uma das integrantes, cujo trabalho
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de conclusão, orientado por mim, estava ligado ao tema. Os estudos eram feitos quinzenalmente a partir de um referencial teórico definido pelo professor. Nesse começo do grupo, fizemos visitas ao Centro Pop, contato com gestores ligados a PSR e pudemos contar com um seminário especialmente relevante sobre a pesquisa com a população em situação de rua oferecido pelo professor Frederico Poley Martins Ferreira da Fundação João Pinheiro. O título do seminário foi: Novos e antigos desafios na mensuração e formulação de políticas públicas para as populações de rua em Minas Gerais e no Brasil. Desse seminário saíram várias ideias e possibilidades de continuidade para a pesquisa com a PSR. O primeiro trabalho de conclusão produto dos estudos do grupo e sob minha orientação foi intitulado: Uma análise qualitativa do atendimento à população em situação de rua na cidade de Varginha/MG a partir da perspectiva de gestores: um estudo sobre o Centro Pop. Nesse trabalho o objetivo foi analisar o atendimento à população em situação de rua da cidade de Varginha/MG a partir da perspectiva de gestores da rede pública ligados a essa população. A análise, de natureza qualitativa, foi realizada a partir de categorias construídas a posteriori. Na coleta de dados
foram
realizadas
análise
documental
e
entrevistas
semiestruturadas com quatro gestores envolvidos diretamente com a política pública de atendimento à população em situação de rua de Varginha/MG – em especial tratando do principal equipamento de atendimento essa população na cidade: o Centro Pop de Varginha/MG. Os principais resultados i) reforçam a necessidade de revisão do caráter eminentemente quantitativo e formal da avaliação da política no
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município e ii) apontam para várias inconsistências operacionais em relação às instruções dos manuais sobre o Serviço Especializado em Abordagem Social e o manual de Orientações Técnicas sobre o Centro Pop. As deficiências na avaliação da política pública municipal se dão na medida em que a forma de avaliar os atendimentos privilegia relatórios mensais e anuais que não correspondem diretamente a realidade do Centro Pop. Segundo contam os entrevistados os relatórios não são exigidos para serem interpretados com propósito de investigar as limitações do programa e resolver problemas, são exigidos apenas para controle de verbas. Nesse sentido, os relatórios deveriam ter como finalidade também um retorno para o desenvolvimento da política pública, pois é muito importante um maior conhecimento da população em situação de rua da cidade, suas necessidades, quais problemas psicológicos, de saúde e familiares são recorrentes. Do ponto de vista intraorganizacional a organização do Centro Pop deve se manter fiel ao manual de Orientações Técnicas: Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua – Centro Pop. Conforme observamos em Varginha a composição de funcionários de acordo com o que é estipulado no manual não estão de acordo. As atividades principais concentram na coordenadora e na referência técnica do local, pois não possuem o conjunto de assistente social e psicólogo que é imprescindível para o tratamento da população em situação de rua. Constatamos que existe uma carência de funcionários no Centro Pop de Varginha, que de acordo com o psicólogo nas
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condições atuais acaba sendo mais importante lidar com a demanda da instituição do que com a do usuário. Também analisamos a capacidade de atendimento do Centro Pop e do Abrigo Institucional, os quais, segundo a percepção dos gestores, são capazes de abarcar a quantidade de PSR no município. Quanto a infraestrutura física o Centro Pop de Varginha possui uma deficiência de espaço de acordo com o que é estipulado no manual de Orientações Técnicas: Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua – Centro Pop, limitando o atendimento que poderia ser oferecido, além de terem pouca privacidade, local para estocagem de alimentos e outros produtos, e área de convívio para essas pessoas. Porém, devido à dificuldade de conseguir a locação de um lugar adequado para ser o Centro Pop há essa limitação que pode justificar a permanência nesse local que é considerado pequeno para o tipo de trabalho ofertado lá. Realizar um diagnóstico territorial visando encontrar o melhor lugar para ter mais atendimentos possíveis fica difícil com o impedimento da vizinhança, as pessoas não aceitam e colocam empecilhos para a instalação de determinados programas sociais perto de suas casas. O mesmo acontece com o Abrigo Institucional, porém o local atende as necessidades do tanto de pessoas que recebem por noite. Em relação a multidisciplinaridade da equipe do Centro Pop também não condiz com a estipulada no manual de “Orientações Técnicas: Centro de Referência Especializado para População em Situação de Rua – Centro Pop”, que não possuem psicólogo, assistente social e auxiliar administrativo. Por fim, em relação a recursos
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financeiros e autonomia para realizar ações, constata-se a insuficiência de recursos que é encaminhado para a Sehad em que encaminha para os fins do Centro Pop e Abrigo Institucional. Não há a falta de alimentos, pois os programas sociais distribuem entre si em caso de carência, mas fica evidente que as verbas são escassas e que se tivesse um reajuste os atendimentos poderiam ser mais eficazes, podendo ter a contratação dos funcionários que faltam no Centro Pop. Esses resultados foram apresentados aos gestores do Centro Pop de Varginha em 2019, por meio de uma devolutiva agendada na Unifal. Nessa reunião traçamos uma parceria de trabalho que tem frutificado em mais pesquisas e no planejamento de ações de extensão para atuação com a PSR de Varginha. O segundo trabalho de conclusão de curso que desenvolvemos no grupo de pesquisa Cidadão de Rua foi intitulado: Trajetórias de vida de pessoas em situação de rua: Um estudo sobre a população em situação de rua em Varginha/MG. Nesse trabalho optamos por conhecer trajetórias de rua de pessoas em situação de rua. O problema de pesquisa foi tentar entender a opção pelas ruas, como também os encadeamentos para os indivíduos que estão na rua e seus familiares, levando em consideração sua trajetória de vida, desde sua infância até os dias atuais, na busca de compreender as dificuldades enfrentadas por este grupo social. Para isso foram entrevistadas quatro pessoas em situação de rua, no Centro de Referência Especializado à População de Rua – Centro POP, além de uma gestora de uma organização de amparo. A metodologia utilizada proporcionou a realização de uma entrevista com uma riqueza de reflexões. A metodologia utilizada buscou inspiração nos métodos biográficos de história de vida e história oral, entretanto por se tratar
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de um trabalho de conclusão de curso de graduação nos contentamos com uma descrição inicial das trajetórias de vida ligadas a passagem pela situação de rua dos entrevistados sugeridos pelo Centro Pop aos pesquisadores. Os fatores que levam a situação de rua são complexos. Cada trajetória é rica em detalhes e possibilita refletirmos sobre a possibilidade de construção de políticas públicas mais eficazes para essa população. Estudar as trajetórias das pessoas em situação de rua nos coloca de frente com um dos principais desafios no que diz respeito a essa população: como criar políticas que compreendam situações particulares e peculiares como a quebra de vínculos sociais e emocionais? Essa questão ainda estamos por compreender. Mas, o esforço é necessário. A abordagem das políticas públicas, no geral, tende a maximizar resultados por meio do comprometimento com as maiorias estatísticas. Parte da população fica à margem e não pode ser incluída nas mesmas políticas que são feitas para as classes medias e altas da sociedade. Nesse sentido, a opção por compreender as trajetórias de vida das pessoas em situação de rua é uma tentativa incipiente de nos aproximarmos de medidas que possam compreendê-los do ponto de vista político e social. Uma base de dados formada por histórias particulares e por trajetórias de vida de pessoas em situação de rua poderia nos auxiliar na compreensão dessa população e em formas alternativas de lidar com ela. A expectativa é otimista, eu concordo, mas sem otimismo não teríamos nem mesmo chegado até aqui.
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POSSIBILIDADES DE PESQUISA: PERCURSOS INVESTIGATIVOS SUGERIDOS
Caminhando já para a finalização desse capítulo sugiro alguns percursos investigativos que nos tem parecido oportunos a partir da experiência do grupo Cidadão de Rua. ABORDAGENS DE MAPEAMENTO E CARTOGRAFIAS DAS POLÍTICAS PÚBLICAS PARA PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA NO BRASIL
Faltam pesquisadores engajados no entendimento das questões relativas à situação de rua no Brasil, bem como faltam informações sobre como e onde são implementadas as políticas públicas, especialmente as municipais, que abarcam essa situação. A ação dos municípios é variável a depender do tamanho, população, região etc. Por isso, um primeiro passo para aproximação das questões relacionadas a situação de rua no Brasil é conhecer o que é feito e como é feito no que diz respeito a essa população em âmbito municipal. Mapear essas políticas públicas em um município pode ser feito em uma atividade de grupos de pesquisa, mas precisaríamos de um esforço de pesquisa maior e mais consistente para cartografarmos essas políticas em vários municípios. Tanto são validas as cartografias de políticas publicas quanto às cartografias da situação de rua nos municípios. Nessa segunda abordagem, podemos traçar as rotas, os percursos, os usos da cidade pela população em situação de rua na esperança de compreender melhor onde e como se movem pela cidade a fim de oferecer os serviços de assistência social, médica e odontológica nesses lugares.
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ABORDAGENS DE HISTÓRIA DE VIDA E HISTÓRIA ORAL DAS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA
Também são especialmente relevantes as abordagens de história de vida e história oral das pessoas em situação de rua. A abordagem de história de vida auxilia na percepção de questões objetivas, como o contexto político, social e histórico. Além disso, também contribui nas questões subjetivas, como a importância do espaço que o indivíduo frequenta e dos seus sentimentos (Closs & Rocha-de-Oliveira, 2015). Compreender a abordagem de vida contribui para o entendimento da relação da pessoa em situação de rua com a cidade, quem faz parte deste grupo social, como chegaram a instituição que os acolhe e sua relação com ela, as relações com as políticas públicas que aumentam a vulnerabilidade destes sujeitos, além da dificuldade na reinserção na sociedade. Uma narrativa de histórias de vida oferece a oportunidade de refletir sobre o que é contado. Bertaux (1980) diz que o indivíduo ao contar sua história, reflete sobre ela durante o processo. Assim, o pesquisador tem acesso a diversos relatos de grande relevância na construção do indivíduo como ele é atualmente, como também permite ao pesquisado a possibilidade de refletir sobre seu próprio eu, suas lembranças, memórias e pessoas importantes na sua vida, contribuindo para a compreensão sua trajetória de vida (Maccalli et al., 2014). As particularidades das pessoas em situação de rua são elementos importantíssimos que faltam às políticas públicas. Talvez o ponto de vista qualitativo seja o mais importante no que diz respeito às
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populações vulneráveis e, ao mesmo tempo, o mais negligenciado. Tenho reforçado isso sempre que possível: a abordagem qualitativa de pesquisa tem uma contribuição inexorável à construção de políticas públicas. No caso da população em situação de rua são escassas as pesquisas qualitativas o que é uma lacuna importantíssima para o desenvolvimento de políticas eficazes. ABORDAGENS DE HISTÓRIA DE VIDA E HISTÓRIA ORAL DOS GESTORES DE ORGANIZAÇÕES QUE LIDAM DIRETAMENTE COM AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA
É tristemente comum, para quem está em contato com o tema da situação de rua, ouvir de gestores e coordenadores de Centros Pop, Abrigos e Albergues Institucionais que “tomar aquele tarja preta pra dar conta do dia é mais que normal”. Os casos de adoecimento mental que presenciei nesses mais de sete anos de contato com o tema são incontáveis. A maioria dos coordenadores relata isso após a entrevista, informalmente. Entretanto é assustadora a quantidade de pessoas que, ao se envolverem com a lida direta com as pessoas em situação de rua, adoecem, entram em crises psicológicas ou simplesmente param de responder aos desafios, ficando inertes ou indiferentes. Estudar com os gestores pode auxiliar no enfrentamento das condições precárias de trabalho a que esses profissionais são submetidos sem nenhum acompanhamento psicológico. A maioria é submetida a condições desumanas diariamente. Além disso, há um enfrentamento pouco declarado entre os órgãos das prefeituras e a falta de apoio intersetorial continua a ser um problema cotidiano desses
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profissionais. Nesse sentido, compreender a história dessas pessoas e seus desafios também pode auxiliar na construção de melhores condições de trabalho e forçar uma reflexão do poder público sobre o tema DINÂMICAS INTRAORGANIZACIONAIS E PROCESSUAIS DAS ORGANIZAÇÕES QUE LIDAM DIRETAMENTE COM AS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE RUA E OUTRAS PERSPECTIVAS
Do ponto de vista da avaliação das políticas públicas é interessante pensar em como funcionam os equipamentos das prefeituras e os processos a que estão submetidos. Compreender melhor a dinâmica desses equipamentos nos leva a repensar o atendimento a população em situação de rua considerando suas peculiaridades. Nesse sentido a pesquisa organizacional é de fundamental importância para contribuir no aprimoramento desses equipamentos. Também são relevantes as pesquisas quantitativas que buscam relacionar os dados de atendimento com dados relativos a miséria e a precarização social no Brasil. Muito pouco em termos de pesquisa quantitativa tem sido feita com o tema da população em situação de rua. As pesquisas censitárias feitas por Ferreira (2006) não foram expandidas em nível nacional e não tiveram continuidade. À época de minha dissertação de mestrado eram raros os migrantes que andavam pelas ruas de Belo Horizonte, hoje, sete anos depois, a situação mudou e os migrantes têm se espalhado a procura de trabalho nos grandes centros novamente. Uma pesquisa que relacione o quantitativo de migrantes com as novas condições de trabalho no Brasil
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seria interessante tanto quanto uma aproximação estatística dessa situação com o desemprego, conforme comentam informalmente as pessoas que trabalham com a PSR. Não poderia deixar de citar também as ricas oportunidades de projetos de extensão que o trabalho com a PSR oferece. Cinemas de Rua, arte cênicas e plásticas nos Centros Pop, escritórios de direito para atendimento a PSR dentre outros. A extensão é fonte riquíssima de trabalho e pesquisa em conjunto com o atendimento as pessoas em situação de rua. CONSIDERAÇÕES FINAIS
São muitas as possibilidades de trabalho com a população em situação de rua. Todas elas, entretanto, sugerem um engajamento do pesquisador com a questão da vulnerabilidade, que, a meu ver, nasce da curiosidade ativa, da sensibilidade e da necessidade de contribuir para o desenvolvimento social na luta pela inclusão e pela garantia de direitos fundamentais para as populações vulneráveis. A população em situação de rua carece de recursos tanto quanto de reconhecimento social, trabalhar com e para eles é sempre desafiador, porque coloca em xeque nossos valores enquanto humanos. A possibilidade de contribuir para ampliação da justiça social é inerentemente otimista e utópica. Entretanto, o otimismo é uma necessidade para quem lida com problemas sociais de alta complexidade. Nesse sentido, finalizo esse capítulo com um convite aos colegas pesquisadores para que estejam atentos aos invisíveis e
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anônimos. Neles está a chave para compreendermos mais sobre o mundo em que vivemos, sobre nossa condição humana e social e, sobretudo, sobre nossas próprias vulnerabilidades. REFERÊNCIAS
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Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1
Belo Horizonte (2009). Decreto Nº 7.053, de 23 de dezembro de 2009. Institui a Política Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e Monitoramento, e dá outras providências. Brasília: Presidência da República. Belo Horizonte (2008). Decreto s/n de, 25 de outubro de 2006. Política Nacional para Inclusão Social da População em Situação de Rua. Brasília: Presidência da República. Duarte, F. & Czajkowski Junior, S. (2007). Cidade à venda: reflexões éticas sobre o marketing urbano. Revista de Administração Pública, 41(2), 273-282. Fairclough, N. (2001). Discurso e mudança social. Brasília: UnB. Ferreira, F. P. M. (2006). População em situação de rua, vidas privadas em espaços públicos: o caso de Belo Horizonte 1998-2005. Anais do Seminário sobre a Economia Mineira, Diamantina, MG, Brasil, 12. Fraser, N. (2002). A justiça social na globalização: redistribuição, reconhecimento e participação. Revista Crítica de Ciências Sociais, 63, 7- 20. Honneth, A. (2001). Recognition or redistribution? Changing perspectives on the moral order of society. Theory, Culture & Society, 18(2/3), 43-55. Honneth, A. (2003). Luta pelo reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. Rio de Janeiro: 34. Honneth, A. (2008). Trabalho e reconhecimento: tentativa de uma redefinição. Civitas – Revista de Ciências Sociais, 8(1), 46-67. Honorato, B. E. F. & Saraiva, L. A. S. (2016). Cidade, população em situação de rua e estudos organizacionais. Desenvolvimento em Questão, 14(36), 158-186. Honorato, B. E. F. & Saraiva, L. A. S. (2017). Quando a casa é a marquise, o albergue, a rua: discursos e políticas sociais para pessoas em situação de rua em Belo Horizonte. Administração Pública e Gestão Social, 9(4), 244-309. Honorato, B. E., Saraiva, L. A. S., & Silva, E. R. (2017). A construção social da ordem e da subversão nos discursos da (e sobre a) população em situação de rua de Belo Horizonte. Revista Organizações em Contexto, 13(26), 339-383.
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8 CONTATOS NÃO TÃO IMEDIATOS 1 EM ESTUDOS ORGANIZACIONAIS: FAZER PESQUISA SÓCIO-ESPACIAL COM OS “MALUCOS DE ESTRADA” EM BELO HORIZONTE Jessica Eluar Gomes
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O movimento hippie, com suas cores psicodélicas, seu lema de vida baseado em “paz e amor” e seu estilo militante e rebelde, normalmente são as principais associações feitas com o conceito de contracultura. Em geral, esse termo é empregado pelos estudiosos para definir os movimentos sociais de contestação surgidos a partir da década de 1960, que incluem, além do movimento hippie, os movimentos negro e feminista. Há que se considerar, no entanto, a problematização do termo, uma vez que a diversidade, a existência de diferentes possibilidades dentro de uma cultura e a própria oposição aos padrões hegemônicos de determinada cultura são padrões desta cultura, são parte dela e, portanto, não formam uma nova. É a existência de contrapontos e resistências o que faz da cultura ela mesma. A negação aos padrões hegemônicos contribui também para seu reforço, para sua posição de dominação e hegemonia.
Em alusão ao filme de 1979, Contatos Imediatos de IV Graal, que trata da Sociedade Alternativa (Costa & Musse, 2016), para enfatizar que são muitas as mediações culturais que antecedem e permeiam as interações sociais.
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Mestra em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Funcionária do Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais. E-mail: [email protected].
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Os fenômenos chamados de contracultura” nas sociedades modernas, como por exemplo o movimento “hippie” nas décadas de sessenta e setenta, são apenas uma forma de manipulação da cultura global de referência à qual eles pretendem se opor: eles se utilizam de seu caráter problemático e heterogêneo. Longe de enfraquecer o sistema cultural, eles contribuem para renová-lo e para desenvolver sua dinâmica própria. Um movimento de “contracultura” não produz uma cultura alternativa à cultura que ele denuncia. Uma contra-cultura não passa definitivamente de uma subcultura (Cuche, 2012, p. 102, grifos meus).
Podemos, então, pensar também o termo contracultura a partir de uma ótica conceitual mais ampla, mais geral e abstrata, em que, ao invés de definir um movimento específico e datado, o conceito se referiria a certo espírito, certo modo de contestação, de enfrentamento diante da ordem vigente, de caráter radical e divergente das próprias formas tradicionais de oposição a essa mesma ordem dominante. Seu posicionamento é de contestação dos padrões impostos e oficializados pelas principais instituições das sociedades ocidentais. Contracultura vista assim é uma cultura marginal, independente do reconhecimento oficial, um tipo de crítica anárquica que rompe com as normas até mesmo no modo de se fazer oposição aos padrões hegemônicos. Olhar para a contracultura por tal perspectiva nos leva a perceber um movimento que ressurge de tempos em tempos, em diferentes momentos históricos e situações, e costuma ter um papel fortemente revigorador da crítica social (Pereira, 1984). Como Cuche (2012) explica, para os antropólogos interacionistas a pluralidade dos contextos de interação leva ao caráter plural e instável de todas as culturas e, também, aos comportamentos aparentemente
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contraditórios de um indivíduo que não está necessariamente em contradição consigo mesmo. Isso permite enxergar a heterogeneidade de uma cultura. A interação não é sinônimo de relação pacífica e harmoniosa, pois a própria diferença implica possibilidade de contradição. O estudo das trajetórias individuais é tido como estratégico e revelador em temos antropológicos. As decisões e escolhas individuais dão-se em um campo de possibilidades socioculturais, entremeado por relações de poder. São processos políticos de negociação do cotidiano, escolhas feitas com base em sistemas de referência de símbolos, valores, crenças e interesses. O pesquisador então, como mediador, procura identificar situações e contextos mais ou menos propícios à atividade mediadora, pois essa nem sempre é possível ou será bem-sucedida. A mediação é uma ação social permanente nem sempre óbvia, presente nos mais variados níveis e processos interativos (Velho, 2014). A pesquisa vista assim como mediação, torna-se um espaço de intersecção cultural que permite um fluxo, uma transposição ou trânsito entre domínios culturais distintos. Com base nessa abordagem, seria questionável diferenciar cultura de subcultura, pois se a cultura nasce das interações entre os indivíduos e entre grupos de indivíduos, não faz sentido separar a subcultura de uma cultura global preexistente. Não haveria essa subdivisão hierarquizada do universo cultural. O que vem primeiro é a cultura do grupo, é a cultura local, pois é aí que os indivíduos se ligam em interação uns com os outros. Cultura global seria o resultado das relações dos grupos sociais que estão em contato uns com os outros, o que torna inapropriado, na perspectiva interacionista, o uso do termo subcultura.
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Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1
Não se trata, pois, de conceituar contracultura, definir exatamente suas bases e limites. Pelo contrário, trata-se de tentar compreender os movimentos, os fenômenos contraculturais, as formas de ver o mundo. Este capítulo é produto de uma pesquisa realizada em Belo Horizonte em que, ao estudar a construção de identidade do grupo social em meio ao urbano, busquei compreender como se dão as relações e em que medida elas impactam e constroem as identidades dos ‘malucos de estrada’, popularmente conhecidos como hippies na cidade 3
de Belo Horizonte ao longo da pesquisa de campo realizada em 2015 e 2016 para minha dissertação de mestrado em Estudos Organizacionais e Sociedade (Eluar Gomes, 2016). O ponto de partida que me levou a me dedicar àquela pesquisa foi a escolha do objeto. O intuito era o de olhar para um grupo social que se apropria dos lugares da cidade de Belo Horizonte, expondo seu trabalho e sua forma de viver, chamando-me a atenção por não se fixar, dando valor a seu caminho errante e construindo-se nas estradas, levando sua forma de viver por onde passa. A curiosidade e inquietação fomentaram a busca por compreender quem são esses indivíduos e como suas identidades são construídas enquanto indivíduos e enquanto grupo social nessa relação com os lugares por onde passam, em especial, com a cidade de Belo Horizonte.
Nem todos os entrevistados se denominam hippies. Alguns se chamam de “malucos de BR”, “malucos de estrada”, “micróbios”, “artesãos nômades” ou, simplesmente, “malucos”. Utilizei a nomenclatura “maluco de estrada” por ser essa mais difundida e aceita pelos entrevistados. O termo hippie foi utilizado em alguns momentos por ser a forma socialmente reconhecida e por ser também mencionada pelos entrevistados. A própria visão dos artesãos sobre si como um grupo coeso ou não, como um grupo que pode ser chamado de hippie ou não é parte dos resultados da pesquisa.
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Meu objetivo maior foi o de construir e ampliar zonas de sentido que permitissem entender como se constroem as identidades dos malucos de estrada, popularmente chamados de hippies, no seu cotidiano e ao longo dos processos de apropriação de territórios em Belo Horizonte. A construção de zonas de sentido, como colocado por Gonzalez-Rey (2005) possibilita o avanço e o surgimento de novas zonas de ação sobre a realidade, levando à produção de novos conhecimentos e ao aprofundamento das representações teóricas. Para tanto, me propus a compreender como foi a decisão pelo modo de vida de ‘maluco de estrada’, como isso influencia a construção de identidade do indivíduo e do grupo social, como se dá a relação dos ‘malucos de estrada’ com o território, principalmente do ponto de vista da apropriação, como os constrangimentos institucionais no cotidiano urbano interferem nas suas práticas e como a confluência das identidades individuais leva à constituição de identidade de um grupo social. Foram cerca de 25 idas à Praça Sete no total, em dias e horários alternados. Na maior parte das vezes, me concentrei no quarteirão fechado da Rua Rio de Janeiro, onde os ‘malucos de estrada’ costumam ficar, em diferentes pontos da rua. Além disso, em quatro domingos, também fui à Feira Hippie na Avenida Afonso Pena, para observar e conversar com os indivíduos que ficam mais próximos do movimento da feira. Essas idas ao campo aconteceram de julho a setembro de 2015. No entanto, desde outubro de 2014 eu já frequentava a Praça Sete, conversando com alguns indivíduos e me aproximando aos poucos do objeto de pesquisa. Algumas fotos foram tiradas nesse período que
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antecedeu as entrevistas e algumas anotações no diário de campo também já estavam sendo feitas, embora ainda sem a mesma sistematização. Como muitos malucos são nômades ou seminômades, apenas alguns dos que ali estavam permaneceram durante todo o período de observação. No intuito de ampliar o olhar para os sujeitos de pesquisa, tracei também um percurso de análise não verbal, tentando absorver aquilo que os sujeitos silenciam no discurso ou que não é possível ser expresso em palavras, por meio de fotografias e desenhos feitos pelos entrevistados. Nessa tentativa de compreender as ideologias históricas que se tornaram práticas incorporadas e reproduzidas irrefletidamente, tentei conciliar com a análise do discurso a observação das práticas sócio-espaciais, observando os indivíduos em ação no seu cotidiano. A observação seguiu um roteiro dividido em três dimensões, a saber, as relações dos indivíduos com o espaço da Praça Sete; com os demais membros do grupo; e com as outras pessoas que passam pela praça. Além disto, foi realizada ainda uma pesquisa documental dos instrumentos legais da prefeitura que influenciam a vida dos artesãos, tentando abarcar, ainda que parcialmente, a complexidade desse objeto de pesquisa para além de uma caracterização romântica dos malucos, apontando os conflitos e as contradições na relação desse grupo com o Estado. Para a compreensão do que propus na pesquisa, os indivíduos foram entrevistados seguindo um roteiro semiestruturado e, posteriormente, tentei captar os sentidos das falas para os sujeitos, por meio da análise do discurso, em sua abordagem francesa. Abordagem
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considerada adequada para o estudo, por ser o processo de construção identitária o resultado de uma sobreposição de fatos e símbolos que fazem parte da construção do que os sujeitos são e a análise do discurso se propor ao posicionamento em relação às ideologias e ao olhar sobre os aspectos mais relevantes explícitos, implícitos e silenciados, mesclando categorias linguísticas com aspectos sócio-históricos e ideológicos. A partir desse olhar, o discurso é uma forma de legitimação do poder, o que a torna ainda mais coerente com o estudo das identidades dos ‘malucos de estrada’. Nos Estudos Organizacionais, a análise do discurso vem sendo empregada como método que ultrapassa as práticas discursivas escritas, faladas e interacionais no ambiente das organizações. Seu principal objetivo é servir de instrumento de leitura e desvendamento do objeto, respaldando, ainda, as possibilidades de teorização (Carrieri, Perdigão & Aguiar, 2009). De acordo com Godoi (2010), no campo organizacional não se pretende uma análise de textos, mas a reconstrução dos sentidos dos discursos e dos interesses dos sujeitos na organização. Segundo Melo (2009, p. 3), “o objeto de estudo de qualquer análise do discurso não se trata tão somente da língua, mas o que há por meio dela: relações de poder, institucionalização de identidades sociais, processos de inconsciência ideológica, enfim, diversas manifestações humanas”. Assim, considero que o discurso ultrapassa a linguagem, pois ideias, filosofias e ideologias também se constituem como discursos, bem como as ações e interações, sejam elas intencionais ou espontâneas. O discurso abrange mais que o enunciado em si, e, portanto, sua análise deve levar em consideração os agentes ou participantes do discurso,
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buscando também saber por que, como e quando o discurso foi proferido. Nesse sentido, um discurso adquire caráter circunstancial e deve ser analisado em função de seu contexto local ou global (Van Dijk & Koch, 2002). O discurso é visto como prática social, uma prática em si mesma, que depende de um contexto interpretativo: O que a pessoa naquele momento quer dizer? Quem são os envolvidos? Qual a situação descrita? Como são as crenças pessoais, os seus valores e as ideologias reproduzidos (Orlandi, 2003; Mazière, 2007)? Nesse sentido, até a ordem das palavras ou frases pronunciadas em um argumento não ocorre de maneira arbitrária, assim, extrair o que permeia o discurso só é possível por meio da identificação de elementos explícitos, implícitos e silenciados no texto, além das estratégias de persuasão empregadas pelo enunciador (Souza & Faria, 2009, p. 2). Levo em conta, assim, as premissas de que o discurso é estruturado pela dominação; que cada discurso é historicamente produzido e interpretado, isto é, está situado no tempo e no espaço; e que as estruturas de dominação são legitimadas pelas ideologias dos grupos que detêm o poder legítimo, não sendo os signos arbitrários. Com essas bases, é mister analisar também as possibilidades de resistência às relações desiguais de poder, que figuram como convenções sociais. Essas afirmações levam a crer que a análise do discurso é ideal para a proposta deste estudo, tendo em vista a perspectiva de que a realidade é uma construção social e que os sujeitos se constroem em meio às relações de poder, legitimam ideologias por meio do discurso e
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interpretam o mundo que os cerca a partir de suas formas de representação. O que faço agora aqui, neste capítulo é provocar reflexões a partir dos resultados da pesquisa, enfatizando a relação complexa entre pesquisadora e pesquisados, tecida pela discussão sobre distância e proximidade, sobre modos de fazer da pesquisa, permeados por perguntas sem respostas objetivas na pesquisa sócio-espacial em Estudos Organizacionais. O objeto de análise é a experiência de pesquisa, potencializada por se tratar de uma pesquisadora em formação, experimentando novas formas de lidar com o objeto em estudo, situação tratada por Pessoa, Cruz e Oliveira (2016, p. 1) como sendo o pesquisador um “marinheiro de primeira viagem” ao também analisar a experiência da pesquisa com inspirações antropológicas em Administração, englobando a discussão sobre os desafios do antropólogo. Na perspectiva de Misoczky, Flores e Böhm (2008), é uma tarefa fundamental para os estudiosos críticos das organizações enquanto agentes políticos explorar os processos de organização de resistência e das lutas sociais que tendem a ser ignoradas pelo discurso organizacional contemporâneo. Como tal discurso trata essencialmente do gerencialismo e nega outras possibilidades para a organização fora da busca por produtividade, acredita-se que somente ao se dedicar a esses processos de resistência pode-se contribuir para a contestação da hegemonia da organização. As diversas possibilidades de existência são marginalizadas, tendendo a ser negligenciadas, pois os discursos hegemônicos tentam naturalizar e essencializar a si mesmos como
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única forma pela qual a organização pode se articular, tornando não existente a multiplicidade de diferentes mundos organizacionais. Assim, a ideia de trazer o estudo das identidades dos grupos sociais para os Estudos Organizacionais tem o intuito de ampliar nossa capacidade de compreensão das organizações. Ressalto que não tratei das identidades da organização, mas sim identidades na organização. Estando o objeto de estudo escolhido inserido em outro objeto, a cidade, vista como organização. São várias as possibilidades de interpretar o que ocorre na organização-cidade, o que pode ser fonte de compreensões e interpretações importantes para os Estudos Organizacionais como um todo. Pensando na organização-cidade e em suas características, aprofundar os estudos sobre a cidade de Belo Horizonte e suas especificidades que contribuem para a configuração dos movimentos sociais que aqui tomam corpo, também é uma possibilidade de contribuir para a pesquisa sócio-espacial, pensando em movimentos contra-hegemônicos ao consumismo e à violência simbólica sofrida pelas massas. Isso contribui para pensar a organização-cidade e as formas de ocupá-la, expandindo as zonas de sentido sobre os distintos modos de viver contrários ao padrão dominante. Torna-se, portanto, de fundamental importância estudar a cidade repensando as categorias de análise para além do par público-privado, posto que se trata de um espaço da dominação, concebido pela convergência dos interesses estatais e privados, e que, por sua vez, é rigidamente vigiado e controlado, manipulado para atender e proteger os interesses da
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propriedade privada, base (condição e meio) para a reprodução do modo de produção capitalista. Compreender as peculiaridades da organização-cidade implica, portanto, conceber como os aspectos sociais de práticas organizativas se relacionam com os aspectos espaciais da cidade, construindo um conceito mais abrangente, vinculado à prática sócio-espacial. Constituindo-se uma prática que, ao longo do tempo, transforma a realidade – sociedade e espaço – em seus aspectos tanto objetivos quanto simbólicos e culturais, não a cada dimensão em separado. Nesse sentido, o social e o espacial possuem a mesma importância na análise e, apesar de se relacionarem dialeticamente, não devem ser confundidos como iguais nem na realidade e nem na teoria (Souza, 2013). 4
Uma das bases corroboradas na pesquisa foi a de que o processo de construção das identidades é construído a partir das práticas dos indivíduos, o cotidiano dos ‘malucos de estrada’ colocado em foco, produto do conjunto social, permitiu localizar processos de apropriação do espaço e compreender a maneira como tal grupo constrói sua identidade com o espaço. A prática sócio-espacial da apropriação tornou-se, assim, um conceito operacional central para a pesquisa. A pesquisa tratou-se, talvez, de uma metaconstrução, uma vez que o processo de construção identitária dos sujeitos de pesquisa que foi traçado era uma construção minha, com os conceitos que julguei necessários, a partir dos questionamentos surgidos no próprio campo e ao longo das minhas leituras, aprendizados, reflexões, subjetivos, pois. Motivo pelo qual, inclusive, o termo sócio-espacial é grafado por esse autor assim mesmo, com hífen, enfatizando cada dimensão e contrariando a norma culta da língua portuguesa vigente.
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Não se pode negar que ocorria, para além da pesquisa, outro processo de construção identitária, o meu, que é o único lugar a partir de onde eu falo. O próprio fato de eu estar lá também já possibilitava novas interações e construções entre membros e não-membro do grupo, sendo de partida utópica a tentativa de tornar invisível quem fez a pesquisa. O maior valor da pesquisa junto aos ‘malucos de estrada’, sem dúvida, foi a escuta da percepção de cada indivíduo sobre sua situação de vida em geral. As falas, expressas no trabalho, são o registro das vivências no campo e das conversas com entrevistados que sempre situavam historicamente os movimentos que conheciam e/ou tinham vivido, localizavam os acontecimentos em seus contextos de vida, observando o ambiente político a sua volta e as construções sociais reproduzidas em cada momento e espaço. O fato de estar na Praça, no território dos malucos foi fundamental para perceber as interações dentro e fora do grupo. As interrupções das entrevistas por clientes que se interessavam pelo artesanato ou por outro artesão que vinha oferecer comida, pedir material emprestado ou dicas para a confecção de uma peça foram fundamentais para compor minha percepção geral. Em alguns momentos, eram justamente tais interrupções que faziam fluir as entrevistas, fugindo ao roteiro previamente estabelecido, mas enriquecendo os diálogos com histórias já vividas com alguém que passava. Um exemplo disso foi uma das entrevistadas, Amana , que se emocionou ao ver passar um jovem que 5
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Nomes fictícios.
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ela havia ajudado a criar quando viajou com a família dele, ou o Arthur, que falava comigo enquanto orientava sua filha a tomar o sorvete sem se sujar. A intenção era a de inserir-me no território, compartilhar o mesmo espaço, passar o dia todo em interação, conversando, observando-os e repetir isso por algumas vezes, conhecendo e ganhando a confiança dos indivíduos do grupo. Assim, colocando-me ali, sentada no chão, fazendo artesanato, vivendo um pouco, muito pouco certamente, do que é ser ‘maluco de estrada’, pude perceber o olhar dos transeuntes sobre mim, o olhar dos demais artesãos sobre mim, as relações identitárias se construindo. A observação participante, que fiz na pesquisa, tem justamente o mérito de abordar as pessoas “enredadas em relações sociais que são importantes para elas” (Becker, 1999, p. 76). São justamente essas restrições sociais que o pesquisador está interessado em conhecer, pois são elas que tornam “difícil para as pessoas que ele observa fabricarem seu comportamento segundo o que acham que o pesquisador poderia querer ou esperar”. A observação participante é uma estratégia de campo que combina a um só tempo a participação ativa com os sujeitos, a observação intensiva em ambientes naturais, entrevistas abertas informais e a análise documental. A observação participante “refere-se a uma situação onde o observador fica tão próximo quanto um membro do grupo do qual ele está estudando e participa das atividades normais deste” (Mann, 1975, p. 95), também envolve a introspecção, sendo uma construção da visão do pesquisador sob diversos ângulos (Denzin & Lincoln 1994).
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O objeto, que é uma imagem com sentido, é sempre um objeto construído pelo imaginário do sujeito e da sociedade. Isto não quer dizer que o objeto seja inventado - subjetivismo - ou que a realidade não exista - idealismo senão que as coisas para o ser humano só existem enquanto reconstituídas pelo sentido que as compreende, prendendo-as e as interpreta interpenetrando-as (Bartolomé Ruiz, 2004, página).
Traçar um esquema objetivo do que é contracultura teria sido absolutamente incoerente com o universo onde pretendia adentrar. A partir dos discursos, vistos como prática, é que as percepções e os significados foram emergindo e se construindo. Os significados, também para os indivíduos entrevistados foram ficando mais claros ao longo das conversas. Para Schutz (1979, p. 252), passamos a entender os sistemas simbólicos dos outros através de um choque que se procede da seguinte maneira: a realidade que nos parece ser “natural” em forma de “realidade suprema” (da qual não temos dúvida) nos mantém dentro de nossa província finita de significado até que vivenciamos um choque que nos leva a romper os limites dessa província, e propõe mudar o acento dessa realidade para outra. O que acontece no “choque” é uma modificação radical da tensão de nossa consciência. Vários entrevistados, ao buscar caracterizar uma cultura hippie, falavam sobre a existência de comunidades fechadas onde haveria uma cultura mais pura, uma vez que nesses locais a mudança cultural originada a partir do contato com o restante da sociedade seria menor e os costumes seriam mais próximos dos originais, como no trecho abaixo:
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(01) [Se] alguém chamar: “Ô hippie”, eu nem olho. Sou artesão, trabalho com arte. Não existe nem nunca teve aqui [um movimento hippie]. O pessoal aqui foi no embalo da turma de lá, entendeu? Nunca teve. Existe uma cultura própria do artesão, que tem muita comunidade que o pessoal é ali fechado, que tem sua cultura de subsistência. A educação dos filhos em escola, eles mesmo que educam. Tá todo mundo fechado. É tudo pessoal da antiga mesmo, que é um pessoal já de idade, entendeu? (Arthur)
Neste trecho de uma das entrevistas, Arthur mencionou a 6
existência das comunidades fechadas, nesses locais isolados teria acontecido menos o que é denominado na Antropologia de “aculturação”, isto é, “o conjunto de fenômenos que resultam de um contato contínuo e direto entre grupos de indivíduos de culturas diferentes e que provocam mudanças nos modelos culturais iniciais de um ou dois grupos” (Cuche, 2012, p. 111). Durante muitos anos, o interesse antropológico era de fato por estudar somente uma cultura 7
pura e intocada. No entanto, de acordo com Cuche (2012), a partir de Herskovits se percebeu que a aculturação também é fato autêntico e digno de ser estudado, pois o contato entre as culturas pode levar à formação de algo novo. A interação leva a uma nova construção, o que aparentemente é incoerente entre culturas se choca, se mescla e constrói uma nova possibilidade de ser no mundo que transcende os pressupostos originais.
Nesta e nas demais transcrições das entrevistas não levei em consideração os eventuais erros linguísticos e gramaticais, visto que minha intenção foi preservar a espontaneidade das expressões dos entrevistados.
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A antropologia e a administração intensificaram relações, especialmente na década de 1980 (Jaime, 1996), sendo a etnografia, por exemplo, adotada por pesquisadores na área da administração nos variados contextos, entre o quais posso citar: Zimmer (2009), Flores-Pereira e Cavedon (2009), Tureta (2011), Pinto e Santos (2012), Oliveira e Cavedon (2013), Davel e Santos (2015).
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DOS CHOQUES
O pesquisador, em um universo exótico ou familiar, tem a missão de “mergulhar” no contexto em estudo de maneira a estar tão próximo que passe a identificar regularidades, arranjos, dinâmicas. A familiaridade com o contexto observado pode trazer vantagens, mas também desafios ao pesquisador que deve se desprender de preconcepções já estabelecidas. Mesmo com mecanismos de acomodação e continuidade do sistema social, o potencial de conflito é permanente e a realidade social é constantemente negociada entre os atores que têm interesses conflitantes. Segundo Velho (2013), os diferentes tipos de divergências resultam em adaptações cujo resultado pode ser inconstante ou até imprevisível, diante disso, a ciência social é constantemente desafiada na tarefa de examinar criticamente a sociedade, fazendo questionamentos, repensando posicionamentos, revendo ideias. Seja em um contexto social exótico ou familiar, o desafio do pesquisador será o de identificar o que há de intrigante contido nas relações comuns, de pessoas comuns em cotidianos comuns. O principal choque que tive durante a pesquisa com os ‘malucos de estrada’ foi em relação a determinações de comportamentos no cotidiano marcadamente relacionados ao gênero, como no trecho de entrevista abaixo mostrado. (02) Movimento hippie, não. Existe uma cultura, de malucos de estrada, uma malucada. Tem cara que chega aqui e não cumprimenta, “Olá! Bom-dia”. Tem gente que vem aqui, faz um brinco, um colar, aprende na internet. É isso que nós chamamos hippies, porque são burgueses, que vem, faz umas coisas aí, passam por hippie, mas não têm nem ideia do que é nossa cultura.
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Não troca ideia, não nos respeita. Chega com sainha curtinha... Nós não aceitamos isso, pra não ter briga entre nós. Somos sérios. Mulheres são sérias. Não pode chegar aqui mostrando as pernas aqui. (Juan)
Neste trecho (02), Juan afirmou existir uma cultura dos malucos e que muitas pessoas desconhecem isso, acreditando que apenas o fato de chegar fazendo o artesanato já os colocaria dentro do grupo, mesmo tendo apenas aprendido a técnica na internet. Esses que tentam se passar por malucos é que seriam os hippies, na visão dele, por serem burgueses e não respeitarem a cultura. O respeito implicaria então, o seguimento das regras, para que não houvesse conflitos internos. Entre as práticas das pessoas de fora que desrespeitam o grupo, Juan apresentou exemplos como: não cumprimentar, não trocar ideia e não se adequar ao padrão de vestimenta aceito, visto na fala chega com sainha curtinha. Nós não aceitamos isso. O fato de serem homens e mulheres sérios é o que justifica que os corpos devem ser cobertos em respeito uns aos outros. Ou, como ficou ainda mais claro neste outro trecho de entrevista: (03) Então, hoje em dia é totalmente diferente. Uma mulher, pra virar hippie, tá ligado, no mínimo, ela tem que ter um saião até o joelho, tem que ter uma calça por baixo do saião, ela tem que usar uma blusa, um topper e outra blusa por cima, porque nós ficamos 24 por 48 horas juntos, cara, homem e mulher. Então não preciso falar mais nada, né, cara. Homem e mulher dá choque, venhamos e convenhamos. É uma convenção... Porque têm pessoas casadas no meio, né, velho... Então, não fica muito legal minha mulher ficar sentada e o cabra ficar olhando pras pernas dela ou alguma coisa assim. Não que não aconteça, porque, venhamos e convenhamos, acontece mesmo, mas é pra evitar. (Miro)
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Outro entrevistado, Miro, colocou no trecho 03 que há uma convenção estabelecida de como a mulher deve se comportar, de como deve se vestir. O implícito é que, para evitar os conflitos da relação de gênero, a mulher é que deve moldar seu comportamento, mantendo-se totalmente coberta, com várias blusas, saia e calça, para que o homem não a deseje, silenciando sobre nem considerar a possibilidade de o homem respeitar a mulher independente da roupa que ela use. Essa afirmação, justificada pela interação conflituosa entre homens e mulheres, assinalada pela metáfora dá choque, confirma que há uma “disputa simbólica acerca das marcações corporais, na qual as roupas são artifícios que, além de demarcarem as fronteiras da divisão entre os gêneros masculino e feminino, registram marcações hierárquicas de poder” (Helene, 2013, p. 74). Isso quer dizer que o que as mulheres podem ou não fazer influencia diretamente sua construção de identidade e marca uma relação sexista de poder e dominação no grupo social. O interdiscurso de que o padrão normativo é machista se faz presente ao enunciar Então, não preciso falar mais nada, né, cara. Isto é, a justificativa é tão óbvia que nem precisa ser explicada. Na argumentação de Butler (2008), os regimes de saber-poder constituem o sexo como um definidor natural da identidade, ou seja, o sexo aparece como principal objeto produzido para a normalização do social. Ainda segundo a autora, Essa produção constringida funciona ligando a categoria do sexo com a da identidade; haverá dois sexos, distintos e uniformes, e eles vão se expressar e se tornar evidentes no gênero e na sexualidade de modo que qualquer
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manifestação social de não identidade, descontinuidade, ou incoerência sexual será punida, controlada, repudiada, reformada (BUTLER, 2008, p. 97).
Para a autora, ainda, é por meio das estratégias de normalização que a sexualidade se torna um dos referentes para a objetificação, na relação consigo e com os outros, e para a ordenação dos sujeitos a partir do Século XIX, sendo sua produção relacional aos movimentos de circunscrição das ciências da reprodução e da razão, as quais, em certa medida, colocam em jogo ligações supostamente inequívocas entre sexo, gênero e sexualidade (Butler, 2008). Quanto a mim, no texto da dissertação reconheci meu incômodo ao vivenciar tais questões no campo, registrados no diário de campo. O trecho abaixo contribui para a percepção do contexto: (DC01) Me levantei do pano do Juan após a entrevista. Andei um pouco entre os artesãos e logo me aproximei da Vanessa, que tem 38 anos e é daqui de Belo Horizonte. Estávamos na calçada da Afonso Pena com Rio de Janeiro. Ela parecia ressabiada quando comecei a falar sobre minha pesquisa e a fazer perguntas. Respondia desconfiada e me disse que se eu comprasse algo dela, poderia ser entrevistada. No meio da conversa, me disse para não sentar no pano de maluco com uma saia curta dessa. Ao questionar o motivo, ela disse que é porque pode mostrar minha calcinha. Enquanto eu conversava com a Vanessa, a Luana se aproximou e nos chamou para uma “roda só de Lulu”. Fomos subindo a praça. Elas chamaram mais uma moça, que eu não conhecia, a Marli e a Graziela, que estavam mais acima na rua Rio de Janeiro. A Luana me apresentou como estudante e contou que estou fazendo uma pesquisa sobre os malucos. Disse que eu já tinha conversado muito com a mãe dela. Percebi que as outras mulheres ficaram um pouco desconfiadas. A Luana acendeu um cigarro de maconha e começou a rodar. Pensei que se eu recusasse elas não me deixariam ficar ali. Então, ao passar por mim, coloquei o cigarro na boca e fingi tragar. O clima se descontraiu.
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Me pediram para tirar fotos com elas, para colocar no Facebook. Todas tinham celulares. Luana disse que ia me dar uma ideia. Falou para não eu não me sentar com saia curta no pano de maluco. Disse: “Ah! A gente gosta da saia comprida. É mais bonita... Mas não é só isso. Maluca é muito ciumenta. Se você tiver falando com o namorado dela e ela tiver bêbada, já vai chegar te dando voadora”. Me disse que, para evitar problema, era melhor eu ter cuidado. A Graziela disse que às vezes até usa saia no joelho, mas aí coloca uma calça por baixo. E levantou a saia para me mostrar que estava de calça, pois às vezes precisa usar as pernas e pés para fazer algum trampo e pode ficar à vontade. As outras concordaram e me disseram para eu também chegar primeiro conversando com a mulher que estiver por perto, nunca com o homem, porque a maior parte ali na praça era de casal. E Luana disse que, como maluco chama muita atenção, as “cocotinhas” gostam. (Trechos de diário de campo)
A situação relatada acima aconteceu em um domingo à tarde, em que, após passar pela Avenida Afonso Pena, para conversar com alguns artesãos que ficam mais próximos da Feira Hippie aproveitando o movimento para vender o artesanato, fui para a Praça Sete ver como ficava por lá em dias de feira. Nesse dia havia poucos artesãos. O movimento de pessoas era pequeno. Então aproveitei para me aproximar de alguns e conversar. Enquanto eu entrevistava o Juan, percebi seu incômodo com o fato de eu estar usando uma saia acima do joelho quando perguntei se podia me sentar para entrevistá-lo. Ao longo da entrevista, ele chegou a mencionar que os malucos são considerados machistas, mas na verdade, era respeito. Ele não me olhava diretamente nos olhos. Evitava o contato visual. Quando já estávamos quase no fim da entrevista, ele estava menos incomodado. Como estava organizando suas peças no pano para expor,
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perguntei se podia ajudar. Enquanto conversávamos, já não em tom de entrevista, e eu o ajudava a colocar o artesanato, ele pegou seu casaco e o colocou sobre minhas pernas, dizendo: “Aqui a gente faz é assim”. Fiquei um pouco intrigada, mas percebi que ele havia ficado mais tranquilo por eu estar coberta. Depois, ele se ofereceu para me ensinar a fazer uma pulseira. Entregou-me um pedaço de linha e começou a me mostrar como era. Percebi uma agitação entre os demais artesãos, pois estavam organizando um churrasco. Juan me mostrou a lata onde assariam a carne, que ficava guardada nos galhos de uma árvore. Percebi que ele queria ir ao supermercado com os outros para comprar as coisas para o churrasco. Então, agradeci e me levantei, para tentar conversar com mais alguém. Foi quando me aproximei da Vanessa, como relatado acima. Depois da conversa com as malucas, percebi o quanto minha atitude não havia sido bem vista. E, como pretendia voltar ali mais vezes e me aproximar do grupo, não fiz mais nenhuma entrevista nesse dia. Saí logo dali, com minhas pernas descobertas. Aproveitei para passar na Feira Hippie e comprar umas saias longas, pois, mesmo que problematizasse a determinação de comportamentos por outrem, entendi que não poderia voltar a campo e obter uma aceitação se não fosse dessa forma. Optei por moldar parte do meu comportamento durante o tempo da coleta de dados. Inicialmente justifiquei como tendo sido esta situação favorecida pelo dia em que eu fazia as entrevistas. Era domingo de sol, eles estavam se preparando para fazer um churrasco, a praça estava vazia, sem o tumulto dos dias de semana em que se tem menos a ideia de lazer do que de trabalho. Eu estava vestindo o que para elas era uma saia curta e que
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no fim das contas, portanto, meu intuito ao estar ali naquele dia deveria ser o de conquistar algum dos malucos e não o de fazer pesquisa. Para minha subjetivação da construção cultural, não havia problema nenhum, justamente por ser um domingo de sol e calor, não faria sentido usar duas blusas de manga sobrepostas com saia longa sobre calça. Mas, quando na “Roda de Lulu” as mulheres me repreenderam, aprendi de forma explícita que era necessário respeitar os códigos para estar ali e, só posteriormente, refletindo sobre o processo, é que elaborei como aquela roda foi um rito de passagem meu entre as mulheres do grupo. A sensação logo depois que saí da praça foi de estar inadequada e culpada, pois de certa forma eu havia invadido o espaço delas, sem me aproximar das mulheres primeiro, sentia como se tivesses ferido a um tácito código de ética feminino, mas que, como percebi ao me deter um pouco mais na questão, mais do que tudo reforça a rivalidade entre mulheres e é pautado em padrões heteronormativos de dominação masculina e disputa pelo falo. Hoje, acredito, um dos meus focos da pesquisa no/do grupo social seria o de tensionar o pensamento dicotômico instituidor do sexo e definidor do gênero e da ação compulsória da heterossexualidade.
Sobre
a
relação
heterossexualidade
versus
homossexualidade, por exemplo, não tenho dados para validar, pois não fiz este recorte nos questionários. Certo é que não registrei em nenhum relato sobre casal homossexual no grupo dos ‘malucos de estrada’, também não me lembro de ter conversado com nem ouvido falar sobre alguma pessoa transexual no grupo. Assim, a partir do que observei, suponho apenas que haja dois únicos gêneros representados prioritariamente, com seus papeis muito marcados na cultura dos malucos.
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As relações homens/mulheres, analisadas aqui como relações sociais de sexo, parecem ser em todos os casos, o produto de um paradigma, qual seja a pseudonatureza superior dos homens, que remete à dominação masculina, ao sexismo e às fronteiras rígidas e intransponíveis entre os gêneros masculino e feminino; e a visão heterossexuada do mundo na qual a sexualidade considerada como “normal” e “natural” está limitada às relações sexuais entre homens e mulheres. As outras sexualidades, homossexualidades, bissexualidades, sexualidades transexuais não partilham do mesmo padrão de naturalidade. Outro exemplo que corrobora essa visão é o fato de a maior parte das mulheres que estavam na praça estar com o marido ou namorado. No dia descrito acima, por exemplo, somente Luana e Marli estavam sozinhas. Marli disse que viaja sempre com o filho, que é muito ciumento, motivo pelo qual ela não pode namorar. Então, tem que fazer isso escondido dele, mas não vê a hora de ter um “cobertor de orelha”. Luana vive com seus pais, também artesãos e, segundo Amana, sua mãe, ela vai começar a “carreira solo” agora e logo vai arrumar um “rapaz bem bonito” para viajar junto. Essas questões podem dizer sobre o papel da mulher na cultura dos ‘malucos de estrada’. Há um silenciamento sobre a construção das relações que pode ter como causa, por exemplo, o medo de violência nas estradas e nas ruas, o que faz com que as mulheres busquem alguma forma de segurança e proteção na relação com um homem. Desde que comecei a me aproximar dos malucos, decidi fingir não ter percebido alguma forma de assédio nas falas de homens para poder continuar a conversa, principalmente nos dias em que fui para a praça à noite. Quando eles pareciam estar bêbados era ainda pior e eu me
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afastava. Vários chegavam a me convidar para viajar com eles, dizendo que se eu estivesse junto seria mais fácil eles pegarem carona, situações que me possibilitaram ter uma percepção de mulher objetificada e usada. Nas sensações experimentadas durante abordagens assim, senti inteiro desconforto. Posso dizer, que na vivência do campo, me uno a Kuschnir (2003), Soares da Costa (2003) e Piccolo (2003), que, ao lado de outras pesquisadoras, falam do medo na cidade. Enquanto a primeira autora analisa o cotidiano da política no Rio de Janeiro, a segunda estuda os usuários de drogas na cidade de Porto Alegre, e a terceira centra-se num grupo carioca vinculado ao movimento hip hop. Os artigos contribuem para a discussão sobre o medo na cidade, principalmente pelo fato das autoras relativizarem e problematizarem as noções de risco e violência geralmente associadas às camadas populares urbanas. Tomando cada situação com suas singularidades e proporções, falamos e vivenciamos o medo que as mulheres sentem na cidade. Um medo que não será o mesmo sentido por nenhum pesquisador, ainda que este também seja real. Como percebeu Kuschnir (2003), “uma antropóloga mulher talvez seja exposta com mais facilidade e recorrência a questões morais do que pesquisadores do sexo masculino”, o que é explorado no aprofundamento dos estudos no meio urbano contemporâneo, mas também se aplica à estudante, à artesã, à maluca de BR, à professora, à mulher, de qualquer profissão que seja, com maiores ou menores vulnerabilidades, em relação ao seu oposto masculino. Tive medo de tomar a ‘voadora’ durante uma entrevista, tive medo de ser mal interpretada, tive medo de sofrer qualquer abuso, outras
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vezes tive medo da polícia, tive medo de ser assaltada, agredida, senti ainda mais como estar na rua é estar exposta; com minha quase nenhuma experiência tão intensa na rua, mal consigo imaginar o medo que todas essas mulheres sentem. Se as malucas constroem couraças é porque pode ser necessário para aguentar a dureza do asfalto. Aprendi muito com a força e o olhar delas. Hoje talvez eu reagisse de forma diferente a cada situação, mas somente por me permitir ir mais fundo em muitos conflitos internos, resultando em muitas desconstruções dos meus valores, todo o tempo. A cobertura do corpo com saia até os pés e várias blusas de manga comprida que, tal qual uma burca, podem ser consideradas aprisionadoras, podem esconder e isolar a mulher, além de uniformizar a aparência e apagar a subjetividade. Mas, é necessário expandir a percepção para o fato de que eu também não posso dizer que tenho um corpo livre por ser o uso de saia curta ou short permitido em minha cultura ocidental, há diversas outras prisões inscritas em meu corpo mais ou menos sutis. Fiz essas considerações de ordem particular, que julgo importantes para situar as percepções feitas sob o meu olhar, e ressalto que, assim como a burca pode não incomodar às muçulmanas, o uso da saia longa foi reafirmado pelas ‘malucas de estrada’, como vimos, e, mais ainda, que não é possível separar as mulheres que usam porque querem daquelas que usam por uma questão social, considerando que todas foram socializadas nessa cultura. Como bem analisou Ferreira (2013, p. 184), “considerar que toda mulher que usa burca é submissa e deve ser ‘salva’ pelos ocidentais é tão violento quanto obrigá-la a usar tal vestimenta. É importante dizer que o véu não subtrai
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o pensamento, e a ausência dele não é significado de autonomia.” A autora cita feministas muçulmanas que falam a partir de seu lugar na cultura,
com
suas
próprias
experiências,
desconstruindo
e
reconstruindo os movimentos por dentro, em seus processos disruptivos e de empoderamento a partir de seus costumes. O aprendizado ratificado é de que não é possível, portanto, compreender a essência e a natureza humanas esvaziadas do social. Um exemplo metafórico simples é perceber como hoje considero, por exemplo, que as saias que comprei naquela época viraram as roupas mais confortáveis do meu guarda-roupa. Usando-as, passei a entender bastante a vontade das mulheres de se vestirem assim, me sinto conectada a elas e a todas as mulheres, e irônico é que a sensação de conforto se aproxima muito mais de liberdade do que prisão. Apesar de ter pré-noções antes de ir a campo, a permissão a explorar as atitudes, sem buscar uma crença mais autêntica ou verdadeira mostrou-se reveladora, rompendo gradativamente com os estereótipos a respeito do tema e construindo novas percepções. A descrição de Cavalcanti (2003, p. 118) sobre o “deixar-se levar”, no trabalho de campo, pode traduzir mais aproximadamente a conclusão a que chegamos com a experiência aqui relatada. Deixar-se levar, porém com intencionalidade, pela sensibilidade de pesquisador, mais que pela preocupação de padronização das técnicas e dos instrumentos; pelas relações que vão se construindo com os interlocutores e que, por serem constituídas por uma "via de mãodupla", também não podem ser padronizadas. Estar disposto a essas relações, particularmente delicadas, possibilitou a construção do campo
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de estudo em sua diversidade, pois cada pessoa entrevistada determinou uma dinâmica própria para o desenvolvimento da pesquisa, um grau de abertura variável, uma forma diferente de lidar com os instrumentos de pesquisa, assim como me concederam, e a si próprios, diferentes posições ou "papéis" durante a realização do trabalho. Os estranhamentos por ser alguém de fora do grupo fizeram com que eu adotasse estratégias de aproximação, de alguns eu comprei alguma peça de artesanato, com outros fui convidada a aprender técnicas de artesanato e ajudei a colocar as peças no pano e mesmo a vendê-las. Foram se multiplicando vivências que aproximam, como partilhar comida, participar da roda de mulheres, ajudar a decorar as grades da praça para o Natal. Conseguir me aproximar e ganhar a confiança dos entrevistados era fundamental para que passassem a olhar para mim menos como uma pesquisadora do que como alguém curiosa em ouvir seus relatos, permitindo que a conversa fluísse de forma mais amena, menos controlada. Da mesma forma, os entrevistados também desenvolvem estratégias para se relacionar com o outro, e, estando em sua zona de conforto, possivelmente suas habilidades para negociar e controlar a situação seriam maiores do que as minhas como interlocutora. Foram somente por alguns instantes, por alguns dias, em que participei do cotidiano dos ‘malucos de estrada’. Por isso o que realizei foi uma observação participante, não uma etnografia, que exigiria maior mergulho no universo do objeto, uma vivência contínua por um período de tempo mais extenso. Mesmo que eu tenha convivido com eles por um tempo, mesmo que eu não fosse mais vista como desconhecida, eles
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continuaram
expondo-se
com
intencionalidade,
produzindo
racionalmente, talvez não conscientemente, um contexto de atos discursivos. Conforme eu aumentava minha experiência no campo, fui descobrindo
familiaridades
e
exotismos,
distanciamentos
e
aproximações. Agora que não estou no momento da pesquisa, nem mais imersa na temática do objeto, me sinto ainda mais distante do grupo social. Intrusa. Estranho reler de relatos de intimidade, uma intimidade que naquele momento eu tive com indivíduos, mas que não permaneceu com o passar do tempo. Ao passo em que tenho também ainda mais similaridades agora, pois permaneço construindo aprendizados a partir de vivências ao longo e após o estudo. DAS EXPANSÕES
O outro é condição para nossa existência como pessoa, ao passo que a alteridade é paradoxal, pois é o que nos aproxima e o que nos distancia do mundo (Bartolomé Ruiz, 2004). Sendo a alteridade parte de nossa constituição, inerente à condição de seres humanos dotados de consciência de si, resulta importante perceber que não é possível dissociarmos nossa identidade autônoma da identidade que se forma com o outro, pois o outro é também parte de nós, é parte de nossa construção enquanto seres humanos em todos os momentos. Os aprendizados se dão no cotidiano, nas práticas, nos diálogos, nas relações. É no pano estendido na rua onde se aprende a fazer a artesanato com os mais experientes, onde ocorrem as trocas de
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materiais, o compartilhamento de alimentos, onde a cultura é retroalimentada e ressignificada. (04) Eu tive a oportunidade de ver os malucos antigos. Os malucos antigos saíram na ideia de paz e amor. Foi na época que eles estavam recentes saídos da ditadura. Era muita amizade, muita alegria. Rolou muito jeans esfarrapado. (...) Esses dias, passou no meu pano aqui um senhor de idade. Ele também é professor de faculdade e ele foi hippie, foi maluco de BR, e ele fala que eles sentavam e conversavam. Liam muito. Era muita leitura, muito livro, sabe? (...) Sempre existiu a droga, a maria juana, né, que na verdade, é uma droga mais light, né, é uma droga só pra viajar mesmo, pra sair do stress. Mas os malucos da década de 1960 foram esses, né. Eles deram abertura, eles deram abertura pra gente hoje. (Amana)
Na percepção de Amana sobre os hippies da década de 1960, a entrevistada traçou um percurso semântico a partir da figura dos malucos antigos, que estavam vivendo todo o contexto da ditadura no Brasil, período que foi do golpe militar em 1964 até a redemocratização em 1985, fazendo um paralelo com os malucos de hoje, enfatizando que foram os malucos antigos que deram abertura, isto é, foram precursores, iniciaram algumas rupturas sociais, que possibilitaram o surgimento dos malucos de hoje. Ao longo do discurso, apareceram os termos maluco, hippie e maluco de BR como sinônimos para denominar os indivíduos pertencentes ao grupo. Seja em se tratando do grupo dos Provos , na Holanda, dos Hippies 8
dos EUA ou dos ‘Malucos de Estrada’ no Brasil, é possível perceber como
8 Grupo social nascido na Holanda, na década de 1940. Responsável por antecipar os questionamentos à ordem social e propor, por exemplo, o abandono dos automóveis e o uso do transporte público, marcado pelas bicicletas brancas de propriedade coletiva. Ligados ao movimento feminista, os Provos defendiam libertação sexual da mulher, a adoção de métodos de contracepção e a disseminação da
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os momentos histórico e político do local contribuem para o surgimento novas formas de viver fora dos padrões preexistentes. Os percursos históricos apresentados estavam intimamente relacionados às memórias dos indivíduos e a suas representações simbólicas, para além de uma história oficial, uma vez que as significações e ressignificações dos indivíduos sobre sua cultura dão sentido à construção de suas identidades individuais e do grupo (Pollak, 1989). A contextualização não é somente histórica ou externa ao grupo, é também a contextualização do indivíduo, de seus valores de percepções, do momento da entrevista, das observações do ambiente e de como as relações estão se estabelecendo ali. Ao narrar um encontro que teria tido com um desses hippies da década de 1960, no momento do encontro senhor de idade e professor universitário, a entrevistada tratou das principais características dos jovens daquele período, explicitando o que ficou conhecido como o lema do movimento paz e amor, bem como a amizade, a alegria e o despojamento na figura do jeans esfarrapado, além de ressaltar o caráter cultural dos encontros estabelecidos, por meio dos diálogos e leituras, que eram frequentes. Foi como ela viu e viveu o período. Ao longo das interações, a entrevistada constrói suas opiniões e posicionamentos, sua identidade. Como ela explica neste outro trecho: (05) A liberdade é forma de fugir dessa política, dessa política corrupta. Fugir desse... desse... tentar um novo. Você tá me entendendo? O que que é
educação sexual. Pode ser considerado um dos resultados das manifestações dos Provos na sociedade holandesa o reconhecimento, não jurídico, mas fatual, do uso de drogas leves e política de contenção de dano das drogas pesadas (Guarnaccia, 2001).
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um novo? É tentar um novo. Olha, pra você ver: você nasce, você já nasce com uma coisa pronta e que antigamente era bem mais forte de “faz o que eu mando e guarda o que você sabe, entendeu?” E, como se sabe, se cada ser humano é único. Todos nós somos feitos de conviver com o outro, do que você vê, do que você percebe, do que você convive, das pessoas com quem você convive. Então, você vai virando dentro de você um porquê, uma vontade de trilhar um caminho. E, muitas das vezes, o sistema, que que ele faz? Você olha pra dentro da escola hoje. O que que é essa escola? É uma escola falida! Por quê? Porque você vai dentro da escola, muitas das vezes, e o próprio professor que tá ali dentro (... ) quer passar o que ele acha. E ele é o dono daquele saber ali. E ele quer fazer com que todos os alunos pensem como ele ali, senão ele vai ser excluído. Uma coisa muito que chamou a atenção comigo: “dê a sua resposta, sua opinião”. Aí, você dá sua opinião e você tira zero na prova por que não era a opinião do professor, não era aquilo que ele queria. No fugir disso, você consegue perceber, você começa a perceber que tem um furo ali. (Amana) (06) A sociedade tem resistência, uma resistência aos meus dogmas, à minha ideia de vida. Ao mesmo tempo, eu me sinto um pouco parceira, porque, ao mesmo tempo que eles são resistência pra mim, eu sou resistência pra eles. Então, há aí um choque, e nesse choque... Quando você tem um choque com uma pessoa, você tá querendo entender ela. Então, em muitos momentos, as pessoas começam a compreender, em muitos lugares, como eu tô tendo com você aqui agora, a gente acaba tendo direito à fala. Muitos lugares já é uma exclusão. Então, aqui você não entra, né. Do seu jeito, não. Só se você mudar. Hoje é menos, antes era mais. Eu já tive, muitas vezes, de você ser mandado embora do local por você não saber dos seus direitos. Hoje não. Hoje, pra você ver, eu estou dentro de uma escola. Às vezes, não tão estereotipada, mas com uma ideia que continua a mesma dentro da cabeça. No momento que eu estou com educadores, eu posso me expressar. É uma resistência. Em alguns momentos, ela não é boa, mas é precisa. Eu aprendo também a respeitar o sistema e até dentro do próprio sistema eu tento me colocar e ser respeitada, me impor com respeito. (Amana)
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Como diz Sartre (2003, p. 383), “não é suficiente que eu negue a mim o outro para que o outro exista, mas é preciso também que o outro me negue a si, em simultaneidade com minha própria negação. É a facticidade do ser-para-outro”. Há uma negação instantânea recíproca entre o “eu” e o “outro”, mas, ao mesmo tempo, como esses não têm como se negarem a si mesmos, estão se “colidindo entre si”, e a partir desse momento, não há como retroceder, pois ambos estão refletindo um no outro. Assim, nas palavras de Amana no trecho 10, a sociedade tem resistência a mim e eu tenho resistência a eles. Há uma dupla negação, e esse choque da negação recíproca estabelece uma proximidade, me sinto parceira, pois, para negar o outro, é preciso compreendê-lo em suas bases, ainda que seja para desconstruí-las. Embora pareça ser movimento de separação, o choque que denuncia rupturas, é o que forma algo novo, sendo o próprio fenômeno da aculturação tomando corpo e produzindo novas realidades. A relação de negação opressora e excludente por parte da sociedade, que só aceita o contato se você mudar, se deixar de ser como é fez com que ela tivesse que se adaptar para estar dentro da escola, onde estava cursando faculdade de Pedagogia. As ideias continuaram as mesmas dentro da cabeça, mas externamente ela teve que mudar para entrar e ser aceita. Em verdade, ela não foi aceita de fato pela sociedade, pois teve que modificar sua imagem, deixar de ser estereotipada para parecer mais próxima do ideal de normal. Amana fala que tal relação naquele momento da entrevista, em comparação a um período anterior, estaria melhor, por ter direito à fala e conhecer seus direitos. No entanto, observando os rumos cíclicos da história, podemos traçar um paralelo
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em que, assim como os ‘malucos de estrada’ antigos que Amana havia tido a oportunidade de conviver, que viveram os anos da ditadura, nos vemos agora vivendo os prenúncios de uma nova ditadura no Brasil, com incontáveis perdas de direitos e das liberdades que pareciam definitivamente conquistadas. Neste contexto, urge ainda mais resistir, de dentro do sistema, utilizando suas bases compreendendo a resistência como Foucault (1979, p. 136, grifos meus): Para resistir, é preciso que a resistência seja como o poder. Tão inventiva, tão móvel, tão produtiva quanto ele. Que, como ele, venha de "baixo" e se distribua estrategicamente. (...) Não coloco uma substância da resistência face a uma substância do poder. Digo simplesmente: a partir do momento em que há uma relação de poder, há uma possibilidade de resistência. Jamais somos aprisionados pelo poder: podemos sempre modificar sua dominação em condições determinadas e segundo uma estratégia precisa.
A partir das palavras de Amana no trecho 09, buscar o novo e fugir dessa política pronta do sistema é negar o poder disciplinar, é resistir a ele. Talvez o que os malucos busquem seja algo nesse sentido, sentiremse livres, na tentativa de inventar uma nova maneira de viver por perceber que tem um furo ali, e concentrar sua energia revolucionária especialmente no questionamento da repressão internalizada em cada um, na busca de si mesmo e do significado da existência. Amana foi uma das únicas entrevistadas que reecontrei depois do fim da pesquisa, por acaso, em outra cidade. Em janeiro de 2019, quase três anos após as entrevistas em Belo Horizonte, eu passava por uma feira de artesanato que acontecia no início da noite na orla de uma praia em Vila Velha, no Espírito Santo, quando vi um homem conversando
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com uma das mulheres que expunha ali seus trabalhos. O homem questionava o posicionamento político da mulher, descreditando das afirmações que ela fazia sobre as políticas educacionais com as quais ela concordava, de governos posicionados à esquerda do espectro político no Brasil. A conversa estava acalorada, o homem defendia o novo presidente eleito no Brasil em 2018. Passei por eles, reconheci a voz da mulher e percebi que era Amana. Olhei para ela e tentei verificar se ela se lembraria de mim, resgatei na memória nossa conversa sobre a Pedagogia, curso que ela estava fazendo à época, seu conhecimento sobre as escolas para ciganos que não existiam para os malucos, e as políticas públicas de educação e assistência social. Resolvi intervir e contei para o homem que eu havia entrevistado aquela mulher em Belo Horizonte alguns anos antes para minha dissertação de mestrado sobre o grupo dos ‘malucos de estrada’, que a admirava pelo seu conhecimento em educação, suas sugestões de políticas públicas e que eu, assim como ela, tinha visões semelhantes sobre política e relações sociais de poder, inclusive na visão sobre o momento político vivido no Brasil sobre a vitória da direita e a ascensão do fascismo. Ele pareceu impressionado, se assustou ao ver defendendo o mesmo que Amana defendia, do mesmo lado que ela, embora ali eu fosse turista como ele. Quando aconteceu esta situação, percebi que quando fiz a pesquisa, nos idos de 2016, embora já estivessem mais fortes do que em anos anteriores, as discussões políticas ainda não estavam tão espalhadas por todo o país, de forma tão intensa, urgente e polarizada como se mostrou a partir de 2018. Fosse este o momento das entrevistas, pressuponho que
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certamente o assunto eleições surgiria nas conversas, as visões sobre política, democracia, enfim. Não tenho dados hoje sobre o posicionamento político dos ‘malucos de estrada’ que entrevistei, nem mesmo a opinião de todos sobre seu papel na política, o que consideram sobre a decisão de votar ou não, o quanto estão fora deste sistema, e por aí vai. Conversamos nas entrevistas, como era um dos objetivos do trabalho, sobre lutas por direitos, incoerências na atuação da prefeitura de Belo Horizonte, que, de forma paradoxal e parcelar, reconhece em documentos oficiais a existência de um grupo social de “artesãos nômades/hippies” com características próprias, que os diferenciam dos ambulantes, por exemplo, mas nega as especificidades do grupo e faz determinações de disposição espacial e comportamento aceitos que se opõem e interferem na identidade do grupo. Mas depois do encontro com a Amana na feira de Vila Velha ficou mais nítido o fazer política dos ‘malucos de estrada’. As práticas de resistência e ressignificação do espaço público são atos totalmente políticos, sem que os indivíduos precisem ter título de eleitor ou comprovante de residência que limite sua atuação ao espaço geográfico definido. É ato totalmente político, criticar em voz alta o governo eleito numa praça do Espírito Santo ou questionar as políticas da prefeitura da capital mineira. O controle do indivíduo no espaço e no tempo prevê uma distribuição dos indivíduos orientada pela ideia de se ter cada sujeito em um lugar específico. Tal procedimento teria a finalidade de evitar a formação de grupos, o que facilitaria o controle das frequências e ausências, assim como determinaria a localização exata de cada um no sistema. O princípio da ordem, desse modo, estabeleceu cada sujeito em
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um lugar, hierarquicamente controlado. A vigilância dos corpos e o controle do indivíduo no espaço e no tempo são, portanto, segundo Foucault (1979), estratégias utilizadas pelo poder para garantir a docilização do indivíduo e torná-lo útil à sociedade. (07) A gente não se enquadra na sociedade de forma alguma. Nem um pouquinho. A sociedade, o mundo dele é um, o nosso mundo é outro, cara. A sociedade, tipo assim, você tá viajando, você tá não lugar que você não tá, que você não mora, as pessoas olham você, velho, tipo assim, você tá vendendo artesanato, então você tá se traficando, você tá roubando. Daí pra lá. Eu vejo as outras pessoas como muito nego frustrado, muita gente que tem grana pra caramba, que só vai atrasar o lado da gente. (Rogério)
Tendo a sociedade moderna, por meio de práticas disciplinares, construído um sistema de poder baseado no controle e na submissão dos corpos, a prática exposta pelo entrevistado Rogério no fragmento 10, de viajar, estar não lugar em que não mora, é vista com repulsa pela sociedade. Os artesãos não estariam, então, no mesmo mundo, enquadrados nas regras do sistema. Percebamos que negar o trabalho disciplinador fixado espacialmente é fazer com que ninguém saiba onde ele está, não ter comprovante de residência é não permitir ser controlado e vigiado. Embora esteja nas ruas expondo-se, pode estar aqui hoje em outra cidade amanhã. Além disso, ser nômade também tem relação com o desapego da propriedade privada, da necessidade de ter casa, carro, móveis. Basta uma mochila com poucos pertences. É se opor à ideologia capitalista e às referências sociais de ordem e estabilidade. No que se refere ao trabalho realizado, seu artesanato é negado socialmente, desvalorizado, confundido com tráfico e roubo,
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criminalizado, portanto. O próprio trabalho, para Foucault (1979), tem um papel disciplinar importante: Acontece que me ocupei de pessoas que estavam situadas fora dos circuitos do trabalho produtivo: os loucos, os doentes, os prisioneiros e atualmente as crianças. O trabalho para eles, tal como devem realizá−lo, tem um valor sobretudo disciplinar. A função tripla do trabalho está sempre presente: função produtiva, função simbólica e função de adestramento, ou função disciplinar. A função produtiva é sensivelmente igual a zero nas categorias de que me ocupo, enquanto que as funções simbólica e disciplinar são muito importantes. Mas o mais frequente é que os três componentes coabitem (FOUCAULT, 1979, p. 124, grifos meus).
O artesanato que, diferentemente da arte, possui uma função mais prática, enquanto aquela tem sido valorizada por sua estética e contemplativa (Figueiredo & Marquesan, 2014), é um tema relevante para os estudos das e nas organizações, permite observações sobre os modos de saber e de aprender no cotidiano (Faria & Leite-da-Silva, 2017). Ainda assim, nos Estudos Organizacionais por vezes é tratado como amador e desimportante às disciplinas funcionalistas que tratam do gerencialismo (Carrieri, Perdigão & Aguiar, 2014). O movimento gerencialista com a intenção de enquadrar a atividade artesanal à lógica capitalista, tem embasado uma empresarização do artesanato, uma perda de autenticidade da atividade. O artesanato se posiciona, portanto, como um caminho de resistência frente aos enfoques dominantes (Figueiredo & Marquesan, 2014). Definido como uma forma de arte inferior, o artesanato acaba sofrendo toda sorte de limitações conceituais tomadas como absolutas que reforçam a marginalidade
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dessa forma de expressão em relação àquelas reconhecidas como principais, nomeadamente, as chamadas belas artes. No que diz respeito à análise organizacional, Figueiredo e Marchesan (2014), reafirmando Cox e Minahan (2002), colocam que “a própria subordinação do artesanato à arte pode ajudar a explicar fenômenos organizacionais que também estão submetidos à marginalidade” (Figueiredo & Marquesan, 2014, p. 131). Em especial, fenômenos relacionados à vivência dos artefatos enquanto portadores de significados da cultura organizacional. Dentro da perspectiva do próprio artesanato como resistência, o caso dos ‘malucos de estrada’, embora também almejem uma compensação financeira imediata para o seu produto, e isto influencie até mesmo a forma como são tratados pelo poder público , tem como 9
principal função, vejo, a função simbólica. Simboliza liberdade do corpo, espacial e temporalmente, simboliza falta de vínculo social, simboliza a própria vontade de fuga da função disciplinar exercida por outros trabalhos socialmente valorizados. Em outras formas de fazer
Na dissertação (Eluar Gomes, 2016) fiz um resgate histórico das políticas públicas de uso e ocupação dos espaços públicos de Belo Horizonte, desde o primeiro Código de Posturas de 1898. O último documento analisado no trabalho foi a Portaria SMSU 111/2014 (Belo Horizonte, 2014), que “regulamenta, no Município de Belo Horizonte, as atividades exercidas pelos artesãos nômades/hippie, em logradouro público, de caráter nitidamente artesanal e transitório”. O texto do documento menciona o “direito à livre expressão artística e cultural dos artesãos nômades/hippie que transitam na cidade de Belo Horizonte e vivem da confecção e exposição, no logradouro público, de peças e objetos artesanais produzidos manualmente” A portaria obriga os artesãos a ficar em pontos da Praça Sete fora da Rua Rio de Janeiro, sua “pedra”, seu lugar de identificação escolhido, afirma que a fiscalização pode obrigar o artesão a fabricar peças em sua presença para comprovar que não está comercializando produtos industrializados e, ainda, que o artesão nem pode colocar valor para venda, mas sim, aceitar “contribuições pecuniárias espontâneas”. Analisei que, ao mesmo tempo em que o intuito pode ser o de diferenciar o artesãos nômades/hippie, como denominados no texto, dos camelôs, o que já é um avanço na forma como os hippies são vistos pela sociedade e certa valorização das especificidades de sua cultura, a determinação de que a fiscalização pode obrigar o artista a fazer o trabalho na hora, para certificar-se de que foi fruto de trabalho manual, é uma interferência arbitrária na relação do artesão com seu trabalho, parte fundamental de sua construção identitária.
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artesanato, os autores acima citados também mostram, a aprendizagem se dá na prática, com a troca de saberes e habilidades e isso influencia nas identidades, em um entendimento de que o saber é inseparável do fazer. E nestas trocas no cotidiano é que os ‘malucos’ interagem uns com os outros, se encontram, se relacionam, se constroem. Precisando de pouco material, o pano pode ser pequeno e caber dentro da mochila pra viajar, coletar materiais diversos, aprender outras técnicas, fugir da fiscalização, ser ‘maluco de estrada’. (08) Enfiei a mão no bolso, tirei uma porrada de grão de arroz, joguei no chão e falei: “Então, pega. Se ficar um, eu vou falar que você num sabe o que tá fazendo”. Minha estratégia pra fugir da repressão foi essa, começar a escrever no grão de arroz, porque essa arte eu levo pra todo lugar e quem souber quanto vale um grão de arroz com dez nomes escritos em trinta segundos, então me fala que eu pago à vista. “Se você num me falar o preço agora, vou te falar procê procurar outro emprego pra você”. (Eduardo)
O que Eduardo no trecho 12, chama de estratégia desenvolvida para burlar a repressão policial estaria, nos termos de Certeau (2000), mais próximo das táticas. Certeau (2000) traz a distinção entre tática e estratégia da prática militar para as ciências sociais. Enquanto a estratégia equivale ao grande plano e pressupõe uma posição de dominação com certa visão de totalidade (por mais distorcida ou equivocada que ela seja), a tática é o procedimento que tira proveito da ocasião, do improviso local, da contingência, da circunstância particular. Pode-se dizer que a tática está para a estratégia como o cotidiano está
para
o
institucional.
Ou,
inversamente,
que
a
ação
institucionalizada tende a agir por meio de estratégias, impondo uma
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organização dominante, enquanto a ação cotidiana é tática, mais imediatamente relacionada a uma situação específica, cujas peculiaridades escapam à visão panorâmica dos estrategistas, estando passível de alterações contínuas. A ação tática no cotidiano pode se organizar a partir de regras próprias no polo oposto dos expedientes estratégicos de dominação. Assim, a arte de escrever nos grãos de arroz, por exemplo, permite que o artesão não se fixe em nenhum lugar, podendo viajar ou fugir da fiscalização, além de levar todo seu estoque de materiais em um pequeno pote na mochila. Faz-se mister observar que, ao longo do tempo, as interações sociais também se modificam pelas tecnologias que surgem na sociedade. Isto é, os malucos também se utilizam das novidades tecnológicas, a internet permite transcender a lógica de espacialização dos corpos, de como estar em cada lugar, também ajuda em questões como ensino e comunicação dos nômades. Como já mencionei, muitos dos indivíduos que observei e/ou entrevistei, possuíam celular e conta em rede social. Há sites e páginas em rede social de que os indivíduos fazem parte, combinam de ser encontrar ao longo das viagens, postam fotos e oferecem dicas de artesanato e materiais utilizados, comentam sobre conflitos com a polícia, entre outras trocas. Assim como no restante da sociedade, as tecnologias têm influenciado a forma como os ‘malucos de estrada’ se relacionam entre si, com outros grupos sociais e com os territórios. A mobilização para a luta pelos seus direitos e para a organização de grupos de representação que confrontem as decisões institucionais foi facilitada pela internet e pelas possibilidades que ela traz. Vídeos
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com cenas de violência policial e outras formas de agressão postados na internet, por exemplo, são formas de demonstrar a repressão e ganhar apoio de outras pessoas. A percepção geral dos indivíduos nas entrevistas era de que a auto-organização estava levando a uma diminuição da repressão. Apesar disso, como chamam a atenção Lopes, Kapp e Baltazar (2010) se não há um processo emancipatório, ocorre uma manutenção do status quo, mesmo em políticas que pressupõem a participação. Ou seja, a aparência de conciliação sem a alteração do campo de ação dos agentes pode emparelhar ações emergentes e anular as possibilidades de transformação social, pois o fato de a nossa sociedade ter mecanismos que podem ser utilizados para a representação e a reivindicação dos direitos não quer dizer que não haja disciplina dos corpos ou que todos tenham as mesmas armas para lutar. Tais emaranhados de relações permitem resgatar as mesmas palavras utilizadas no início da argumentação deste capítulo, acerca da visão da contracultura enquanto constitutiva e reprodutiva da cultura. Retomando a ideia da aculturação e das construções sociais que se revelam a partir das interações sociais entre indivíduos com padrões de comportamentos distintos, que reproduzem ao mesmo tempo em que transcendem os valores originais de cada cultura, pontuo que são as interações, as relações no espaço que fazem emergir saberes, estratégias e táticas de poder e resistência. Enquanto eu estava ali, no centro da cidade, ao lado dos que são colocados à margem, de fora do grupo dos ‘malucos de estrada’, sentada com eles em seus panos, muitos papeis foram reproduzidos e, ao mesmo tempo questionados e transcendidos, desde o meu de pesquisadora, até os muitos de artesãos, artistas de rua,
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nômades, psicólogos das ruas, moradores de rua, filhos que saíram de casa, pais que viajam com os filhos, entre inenarráveis outros. As reflexões feitas aqui foram permitidas e vivenciadas nos aprendizados ao longo do processo de fazer uma pesquisa sócio-espacial nos Estudos Organizacionais. As duas dimensões se mostraram como igualmente fundamentais para a ampliação das zonas de sentido sobre as organizações, principalmente no que tange aos processos de organização de resistência e das lutas sociais que tendem a ser ignoradas pelo discurso organizacional hegemônico. A percepção de que a Administração e os Estudos Organizacionais não se prestam apenas ao gerencialismo e à busca por produtividade permite ampliar o horizonte das pesquisas para a multiplicidade de diferentes mundos organizacionais. REFERÊNCIAS
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BLACK MONEY E AFROEMPREENDEDORISMO Elisângela de Jesus Furtado da Silva Ana Flávia Rezende 2 Danielly Mendes dos Santos 3
1
A discussão que tecemos aqui é fruto da Roda de Conversa realizada na Faculdade de Ciências Econômicas FACE da Universidade Federal de Minas Gerais em novembro de 2018, integrando a programação do novembro Negro da UFMG 4. O nosso objetivo é o de demonstrar a que se refere os termos Black Money e Afroempreendedorismo em perspectiva ao contexto histórico brasileiro, problematizando a dimensão econômica como via de inclusão, tal como defendido por Nascimento (2018). Essa discussão não pretende oferecer alternativa definitiva, mas compreendemos que seu valor reside na proposta do debate e reflexão sobre temas tão caros à sociedade brasileira: exclusão social e distribuição de renda, elementos importantes e basilares da desigualdade crescente no país. Para tanto, damos início destacando
Doutora em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professora da Fundação Dom Cabral. E-mail: [email protected].
1
Doutora em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professora Adjunta da Universidade Federal de Ouro Preto. E-mail: [email protected]
2
Mestra em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Produtora Cultural. E-mail: [email protected].
3
A Roda de Conversa Black Money e Mercado de Trabalho aconteceu no dia 13 de novembro de 2018, integrando a programação do novembro Negro UFMG e as atividades do Núcleo de Estudos Organizacionais e Sociedade (NEOS). Evento divulgado pela UFMG em: https://ufmg.br/comunicacao/ noticias/evento-na-face-discute-empreendedorismo-negro
4
Elisângela de Jesus Furtado da Silva; Ana Flávia Rezende; Danielly Mendes dos Santos
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alguns eventos importantes ligados ao quadro de desigualdade. Na sequência, abordamos alguns aspectos ligados à noção de Black Money e Afroempreedorismo. Outros temas a reboque e que dizem respeito ao contexto histórico são tratados em “Brasil: Exclusão social e racismo estrutural em perspectiva histórica”. Seguimos apresentando os dilemas atuais que marcam o Afroempreendedorismo e o Black Money e sua interface com outras esferas sociais, seguido de uma discussão em torno de apontamentos alternativos, sem, contudo, pretendermos oferecer uma solução definitiva. Por fim, nas considerações finais retomamos alguns dos principais argumentos e encerramos ao demonstrar que a via política é o caminho mais sólido que dispomos na construção de mecanismos de mudança social. INTRODUÇÃO
“Um só povo e um só destino”. Esse é o lema do Movimento Black Money, uma startup baseada em associativismo e empreendedorismo negro. A proposta da organização está ligada a um contexto específico, já que há alguns anos, um clima de otimismo e euforia pode ser percebido tanto em narrativas de representantes políticos negros, quanto
em
pesquisas
que
analisam
comportamento
social,
principalmente de mercado. Eventos comerciais como a Feira Preta realizada em São Paulo, encorajam a crença de que estamos diante de um clima favorável em função do aumento da renda de pessoas negras. Será?
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Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1
Em um país marcado por um histórico tão complexo como o Brasil no que se refere a violência a determinados grupos sociais marcados por diferenças, como a étnica/racial, não se pode negar que estamos diante de um processo social em que houve a ascensão econômica de uma parcela considerável da população, pertencente às chamadas classes C e D, sobretudo na década de 2000 (Lavinscky et al., 2014). Com maior renda disponível, esses grupos antes sequer considerados como cidadãos, tiveram acesso a inclusão, ao menos no que se refere na capacidade de consumir produtos e serviços que outrora não tinham acesso. O incremento financeiro proporcionou a esses grupos demandar produtos e serviços, o que foi observado como um tipo específico de consumo configurado por pessoas negras, como estética, moda, cinema, música e educação. De forma simultânea, a promoção e a representação racial negra se tornaram crescentes, com aumento do número de artistas, músicos e empresários negros. Essas mudanças apresentaram contornos distintos na esfera social. Alguns profissionais procuraram conciliar o aspecto político contido na luta antirracista e o mercado, configurando nichos de mercado. Surge então empresas especializadas, consideradas exemplos de sucesso, sobretudo do ramo estético, como a Beleza Natural, uma rede especializada em cabelos crespos e cacheados, sendo que em 2013, a fundadora da empresa Zica Assis foi incluída na lista da revista Forbes como uma das 10 mulheres mais poderosas do Brasil. Atualmente a rede está em expansão internacional. O caso dessa empresa reforçou a possibilidade conciliar consumo e inclusão social. Grandes figuras do movimento negro passaram a ver no empreendedorismo uma
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alternativa promissora e concreta de acesso à oportunidade, encorajando o chamado afroempreendedorismo. Antes de refletir sobre esse movimento, é válido descrever o cenário no qual ocorre, algo que tem profunda relação com a luta antirracista travada no Século XX. Durante esse período o esforço era o de visibilizar a perpetuação da opressão imposta ao povo negro no Brasil, mesmo depois da formalização da abolição da escravização. Essa opressão na atualidade está materializada tanto na exclusão social como na observação dos efeitos do racismo estrutural (Almeida, 2018), que empurra milhares de pessoas a condições de vida precárias, sendo-lhes negado o acesso às oportunidades que grupos sociais com características distintas, como as pessoas brancas não pobres, já possuem. O passado de denúncias e lutas travadas contra racismo conferiu possibilidade de que as diferenças étnico/raciais e o racismo se tornassem pauta social e de política pública. Em conjunto, esses processos foram importantes avanços em uma esfera que outrora fez do mito da democracia racial 5 o manto mascarador das desigualdades sociais e econômicas, ligadas à questão racial. Nesse cenário, o embranquecimento foi estratégia para o acesso precário, tanto a nível de Estado quanto no nível individual. De um lado tem-se medidas governamentais voltadas a atração de etnias brancas europeias,
5 O mito da democracia racial é a crença que o Brasil é um país constituído por uma sociedade que não possui conflitos raciais abertos. Havendo uma crença fortemente difundida do país como uma nação democrática no que diz respeito a questão racial. Para aprofundamento, sugere-se a leitura de: Guimarães, A. S. A. (2001). Democracia racial: o ideal, o pacto e o mito. Novos Estudos Cebrap, 61, 147162.
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Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1
movimento iniciado ainda antes do fim da escravização instituciolizada em 1888. Esses imigrantes receberam incentivos do Estado para facilitar sua fixação no país. Em contrapartida, as pessoas escravizadas ao serem “libertas” foram abandonas tanto pelos antigos senhores quanto pelos governantes, sem qualquer contrapartida (Santos, 2003). Essa situação foi decisiva para o estabelecimento de uma lógica social pautada na desigualdade e exclusão social, que tem se atualizado e continua a empurrar as pessoas para a exclusão, na mesma medida em que promove o aumento da concentração de renda, o que delineia o processo de desigualdade racial (Osorio, 2009). Segundo dados de 2018, as seis pessoas mais ricas do país, detém renda equivalente à de 100 milhões das mais pobres, o que representa quase a metade da população brasileira (Welle, 2018). Justamente em função desse processo histórico é que os movimentos negros concentraram esforços para denunciar o racismo que no Brasil apresenta uma manifestação diferenciada que em outros países (Nogueira, 2007), mas com os mesmos resultados trágicos, como genocídio negro e exclusão social. Sendo o segundo maior país em número de população negra, atrás somente da Nigéria, o debate racial somente ganhou destaque no Século XX. As lutas empreendidas no passado, promoveram a questão política das pessoas negras no Brasil e uma crescente consciência e mobilização social em torno de formas de inclusão e promoção étnico/racial. A Convenção de Durban 6 foi um passo importante nesse sentido, já que A Terceira Convenção Mundial Contra o Racismo, a Discriminação Racial, a Xenofobia e Forma Correlatas de Intolerância (Conferência de Durban), foi um evento mundial promovido pela ONU,
6
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nesse evento mundial promovido pela ONU, diversas medidas foram discutidas e propagadas como forma de reparação histórica aos povos afrodescendentes. Como resultado desse quadro, surgem as Ações Afirmativas, como política governamental de promoção da inclusão. No Brasil, essas ações foram implementadas por meio de cotas em instituições de ensino superior e reserva de vagas em concursos públicos, ficando excluído o setor privado. Após denúncias de racismo em organizações bancárias brasileiras a Organização Mundial do Trabalho, já que não possuíam pessoas negras em seus quadros, o debate em torno da desigualdade racial no mercado de trabalho se intensificou (Jaime, 2016). A pandemia pela Covid-19 contribuiu para a intensificação desse processo, já que pessoas negras foram as mais afetadas no acesso à educação, à saúde, ao saneamento básico e são o maior grupo em situação de insegurança alimentar (Bierrenbach, 2022). É nesse cenário permeado por avanços, mas ainda cheio de desafios é que emerge a discussão em torno do Black Money e Afroempreendedorismo. NOÇÕES SOBRE BLACK MONEY E AFROEMPREEDORISMO
Iniciemos esse tópico falando sobre o Empreendedorismo, pois dele decorre o Afroempreendedorismo. Mas afinal, o que devemos compreender sobre empreendedorismo? De acordo com Kirzner (1973), esse conceito remete a um comportamento específico presente em realizado em 2001, na cidade de Durban, África do Sul. Ela marcou uma sequência de eventos mundiais sobre racismo e discriminação durante o século XX, bem como o estabelecimento de formas de reparação histórica aos povos negros em diáspora.
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Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1
pessoas com elevada percepção de oportunidade. Uma infinidade de compreensões foi elaborada, sob distintos enfoques, mas em síntese, podemos evidenciar a dimensão da prática empreendedora. A esse comportamento, podemos destacar alguns termos recorrentes, tais como inovação, assertividade e flexibilidade, por exemplo. Empreendedorismo tem origem no contexto econômico e por meio de grandes revistas de negócios, é possível perceber que o conceito comparece em uma narrativa que vincula o tema a crescimento e enriquecimento (Costa; Barros & Martins, 2012). Segundo os autores, a discussão está em voga desde a década de 1990, procura estabelecer vínculos entre inovação e aumento de produtividade no âmbito das organizações. O perfil do empreendedor baseado na abordagem behaviorista embasada em estudos comportamentais se refere às práticas ao nível dos indivíduos, que supostamente aumentariam a possibilidade de projeção profissional na medida em que adotam determinadas posturas, como assertividade, flexibilidade, iniciativa e “espírito de liderança”. Algumas pessoas desenvolveram a capacidade de ler situações e perceber oportunidades e, embora esses elementos estejam presentes em narrativas ficcionais de grandes líderes, que os alçam quase a condição de divindade, no interior do campo da Administração trata-se de um comportamento que pode ser aprendido. Assim, o repertório acerca do empreendedorismo prega formas que possibilitariam às pessoas o aumento das chances de obter êxito no sistema capitalista. No Brasil, o SEBRAE (Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas
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Empresas) é uma das principais organizações na produção de conteúdo e qualificação profissional voltada ao empreendedorismo. Atrelado ao empreendedorismo, o afroempreendedorismo é encarado como via alternativa à exclusão social e econômica a que estão submetidas de forma mais significativa pessoas negras (Nascimento, 2018). O principal entusiasta desta concepção, no Brasil, é o próprio SEBRAE, com a divulgação de dados que apontaram o aumento de empreendedores negros entre os anos de 2002 e 2012. Essa concepção configura o duplo movimento, a maior renda disponível entre pessoas negras e a possibilidade de criação de produtos e serviços voltados as necessidades dessas pessoas. O afroempreendedorismo nada mais é do que o empreendedorismo realizado por pessoas negras. Em 2015, o SEBRAE publicou um estudo intitulado “Os Donos de Negócio no Brasil: Análise por Raça/Cor (20032013). O estudo procurou demonstrar o perfil dos Donos de Negócios, os empreendedores brasileiros, baseado nos dados da PNAD do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. De acordo com os dados, observou-se uma tendência de crescimento no número de donos de negócios no país, sendo que em 2003 negros perfaziam um total de 9,5 milhões, esse total sobe para 11,8 milhões, o que representa um aumento de 24%.
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Gráfico 1: Distribuição dos Donos de Negócio no Brasil, em 2003 e 2013, por Raça/Cor
Fonte: SEBRAE (2015).
No gráfico 1, é possível perceber a relação de empreendedores segundo a relação de pertença racial, no qual há a indicação de mais da metade das pessoas que trabalham por conta próprias são negras, situação que é inversa ao se analisar os empregadores, sendo que pessoas brancas perfazem o total de 68%. Entre 2005 e 2015 o número de pessoas negras entre o grupo mais rico do país, que representa 1% da população total, apresentou crescimento, passando de 11,4% para 17,8%, o que significa dizer que 8 a cada 10 brasileiros mais ricos é branco. No entanto, no grupo composto pelas pessoas mais pobres, três a cada quatro pessoas são negras (Vieira, 2016). As poucas pessoas negras no grupo mais rico, têm condições diferentes. Segundo Gomes et al. (2022), a atual política tributária frente a composição da renda das pessoas. As pessoas brancas mais ricas do país têm sua renda baseada em lucros e dividendos, para as quais a alíquota do imposto de renda é de 8,8%. Já as
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pessoas negras mais ricas do país, possuem renda associada ao trabalho, o que faz com que a alíquota suba para 13,14%. O estudo do SEBRAE (2015) alimentou a euforia em torno de um cenário considerado favorável ao empreendedorismo negro. A ascensão econômica experimentada por classes menos favorecidas, nas quais as pessoas negras são o maior contingente, aliado ao aumento da consciência racial e representação política, pareciam apontar um ambiente favorável ao desenvolvimento de negócios voltados a esse público. Ocorre que os dados podem ter uma outra explicação, mais coerente com o desenvolvimento do Brasil e que precisa ser explicitada, como
forma
de
compreender
as
diversas
faces
do
Afroempreendedorismo. Ao se falar do Afroempreendedorismo, outro termo a reboque é o Black Money, que em tradução literal pode ser entendido como dinheiro preto (negro é uma expressão brasileira). Não estamos diante de um termo novo e sim de um fenômeno de ressemantização, já que Black Money já foi utilizado para denotar “dinheiro sujo”, corrompido. A expressão foi criada para denotar uma ocorrência econômica indiana, especificamente para evidenciar a sonegação de impostos diretos e indiretos (Sundaram & Pandit, 1976). Segundo os autores, os recursos não tributados naquele país eram imunes a qualquer política monetária e fiscal, e significavam uma liquidez não previsível, provocando a desmonetização da economia. Segundo os autores “já que a maioria dos produtores desses bens estão no setor organizado, deve ser possível trazer os lucros para a rede tributária. Em outras palavras, a eliminação
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Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1
de controles converte rendas negras em 'brancas' 7 (Sundaram & Pandit, 1976, p. 132). Seguindo a lógica do movimento antirracista, que se apropria dos termos usados de forma pejorativa, estabelecendo uma nova significação positiva, Black Money tem sido usado para denotar um consumo politizado. Assim, se outrora a expressão indicava uma situação criminosa, ao ser apropriada pelos movimentos sociais negros passou a indicar um evento positivo na luta antirracista. Na medida em que pessoas negras adquirem consciência dos problemas em um contexto histórico e social de racismo estrutural e de relação existente com a exclusão social e a pobreza, passam a perceber sua posição de consumo como possibilidade de agenciamento. Em face à necessidade de consumir produtos e serviços, podem fazer uso do seu poder de compra de forma politizada, optando por profissionais e empresas cujos proprietários sejam negros. Nessa lógica, o intuito é fazer com que o capital obtido por pessoas negras circule mais entre o grupo, promovendo um efeito alavanca. O Black Money seria um novo target, uma oportunidade de impulsionar a economia e consequentemente, maior e melhor distribuição de renda entre pessoas negras por meio da formação de uma rede de cooperação. Isso também não é um fato novo. Durante a era
colonial
e
escravocrata
brasileira,
pessoas
escravizadas
constituíram organizações denominadas irmandades (Reis, 1996). Essas eram dotadas de um fundo mantido coletivamente para ajuda mútua,
Do original “Since the majority of the producers of these goods are in the organised sector, it should be possible to bring the additional profits within the tax net. In other words, the elimination of controls converts black incomes into 'white'” (Tradução nossa).
7
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por meio do qual realizava-se funerais, missas fúnebres, assistência em caso de doença, construção de templos, compra de alforrias, financiamento do retorno de escravizados à África além do financiamento de estudos (Valente, 2011). Esse apoio proporcionou a ascensão econômica e intelectual de pessoas negras, mesmo durante o período colonial e escravocrata. Nessa época, uma organização social de escravizados desenvolveuse, dotada de recurso próprio e com poder de negociação com outros grupos sociais, como senhores, autoridades coloniais e clérigos, o que Reis (1996, p. 5) chama de “microestruturas de poder”. As irmandades eram bem-vistas pelos clérigos católicos, pois acreditavam que essas organizações reforçavam a catequização de pessoas escravizadas. O autor relata que apesar das irmandades remeterem à religião católica, aspecto que conferiu a elas passe livre para desenvolvimento sendo uma organização aceita, no interior de muitas delas observou-se o estabelecimento de um espaço autônomo, de partilha tanto de recursos quanto de conhecimentos e da promoção de identidades africanas. As irmandades não podem ser consideradas opostas ao sistema vigente à época, mas uma forma organizada e coletiva de sobreviver da melhor maneira possível considerando-se a conjuntura. O fato é que podemos perceber que esse movimento pode ser considerado Black Money, já que se refere a uma rede de cooperação entre pessoas negras e aliados políticos. Porém, o simples aumento de renda das pessoas negras não pode ser associado a esse fenômeno, pois está ligado a um movimento muito mais amplo marcado por organização, com práticas
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Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1
e discursos que reforçam interesses e postura politizada de uma coletividade, preocupadas com transformação social. Para que possamos compreender a interface entre Black Money e Afroempreendedorismo, tendo em perspectiva as peculiaridades da sociedade brasileira é preciso trazer à baila alguns fatores históricos, no sentido de elucidar aspectos localizados entre a inclusão precária e a emancipação social. RAÇA E ETNIA: UMA ALTERIDADE CONSTRUÍDA SOB O IDEAL DE HIERARQUIZAÇÃO
Eu estou em condições de suspeitar serem os negros naturalmente inferiores aos brancos. Praticamente não houve nações civilizadas de tal compleição, nem mesmo qualquer indivíduo de destaque, seja em ações seja em investigação teórica. Não há artesãos engenhosos entre eles, não há artes, não há ciência. Por outro lado, os mais rudes e bárbaros dos brancos, como os antigos alemães, os atuais tártaros, têm ainda algo de eminente entre eles, em sua coragem, forma de governo, ou alguma outra particularidade. Tal diferença uniforme e constante não poderia ocorrer, em tantos países e épocas, se a natureza não tivesse feito uma distinção original entre essas raças de homens. Sem citar as nossas colônias, há escravos negros dispersos por toda a Europa, dos quais ninguém alguma vez descobriu quaisquer sinais de criatividade, embora pessoas de baixa condição, sem educação, venham a progredir entre nós, e destaquem-se em cada profissão. Na Jamaica, realmente, falam de um negro de posição e estudo, mas provavelmente ele é admirado por realização muito limitada como um papagaio, que fala umas poucas palavras claramente (Hume, 1875, p. 252).
Se estamos falando de fenômenos ligados a uma alteridade humana, que tratemos de entendê-la, começando por evidenciar como
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raça e etnia foram fatores ligados a hierarquização de pessoas. O trecho acima reproduzido representa a visão racializada de Hume (1875) em relação às pessoas negras. Mais trágico que perceber o racismo em seu argumento, é saber que ele e outros tantos cientistas tais como Voltaire, Kant, Hegel, influenciaram milhares de pessoas, se valendo do manto científicos para legitimarem esses e vários discursos que hierarquizam pessoas e processos civilizatórios. Hume reflete a dimensão epistemológica do racismo (Oliveira, 2003), responsável pelo desenvolvimento de várias outras ideias no campo científico voltadas a legitimar as diferenças hierarquizantes entre pessoas brancas e não-brancas. Hume (1875) chega a comparar e generalizar o que ele considera como desempenho de pessoas que progrediram com o de escravizados. Ao fazer tal comparação, Hume (1875) atribui as pessoas negras responsabilidade pelas condições impostas pelas próprias relações entre metrópole e colônia e senhorio e escravidão. Umas das ideias oriundas da ciência racializada é a da Eugenia, termo cunhado em 1883 por Galton (1973), que busca o controle racial, a fim de gerenciar as qualidades raciais, de modo a suprimir as inferiores. Tal crença foi totalmente desacreditada pela ciência. Porém, a falácia genética foi apropriada por outras áreas da sociedade, e teve repercussão drástica (Apple, 2001). No Congresso Mundial de Raça realizado em 1991, João Batista Lacerda, um antropólogo e médico brasileiro apresentou um artigo onde afirmou que por meio de seus estudos, estava convencido de que em função da miscigenação, as pessoas negras seriam “extintas” em 100
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anos, uma vez que os fenótipos de pessoas negras eram recessivos. Nos Estados Unidos e na África, houve a institucionalização de políticas de segregação, impedindo casamento inter-racial, prevendo espaços separados para pessoas brancas e não brancas (Pereira, 2011). Tomados como animais sem humanidade e mais tarde como seres inferiores, as pessoas negras sofreram violência brutal, tanto física quanto simbolicamente. No nível simbólico, houve um processo de apagamento histórico por meio de discursos homogeneizantes e de mercado (Bernardino, 2002; Apple 2001; Oliveira, 2003). Apesar de não problematizada, a raça por diversas questões se mantém como presença ausente (Apple, 2001). Ou seja, embora não existam diferenças genéticas significativas para embasar a ideia de raças humanas distintas, o termo passou a ser chave para compreensão de importantes questões sociais. Raça é entendida como uma construção, um conjunto inteiro de relações sociais baseada na existência de diferenças que resultam na existência de diferenças no nível racial, concepção originária no campo da Biologia (Apple, 2001; Bernardino, 2002; Pereira, 2011). Em oposição a noção de raça, surge a noção de etnia, que diz respeito às diferenças culturais (Oliveira, 2003). Franz Fanon é um teórico negro que nasceu em Martinica, uma das quatro ilhas localizadas no Caribe, se mudando para a França ainda criança, em busca de formação profissional. Fanon formou-se em medicina psiquiátrica e atuou em áreas de conflito civil na Argélia, em prol da descolonização. Em seu doutorado aos 25 anos, Fanon (2008) ao estudar as consequências físicas e psicológicas impostas pela colonização, aborda questões psicossociais e filosóficas ligadas ao
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processo de colonização. Ele percebeu a existência de uma hierarquia social baseada na proximidade física, cultura além de características físicas nas pessoas, entre as colônias e metrópole, que funcionavam como filtros de acesso. Assim, quanto mais características fenotípicas de pessoas brancas presente em não brancos e proximidade física com a metrópole, melhor a pronúncia do francês, mais status essas pessoas reivindivicavam. Quanto "menos atributos negros", maior a tolerância dessas pessoas em espaços no qual a maioria era branca. Pele Negra e Máscaras Brancas é o título da obra do autor, tendo sido rejeitada pela banca de professores. Fanon escreveu um novo trabalho seguindo o cânone acadêmico e publicou sua tese original em um livro, em 1952. Em 1983, Walker, uma autora feminista estadunidense publicou um ensaio sob a mesma temática, e inaugurou o conceito de colorismo, em que as variações da cor da pele, nariz e boca foram associadas ao grau de acesso que pessoas negras apresentavam em espaços até então brancos (Walker, 1983). Uma consequência direta do colorismo é que a assimilação e reconhecimento social do mestiço ocorria à custa da depreciação dos negros (Bernardino, 2002). No Brasil, o uso de eufemismos conferiu ares amenos ao colorismo e ao racismo, fato que contribuiu para a construção de um ideal de democracia racial no país (Freire, 1995). Assim, o colorismo nada mais é do que um processo de assimilação, uma estratégia que permitia algum trânsito social às pessoas negras em tempos. A ‘aceitação’ promovida pela assimilação não gera igualdade entre os sujeitos, o que significa que sua ocorrência somente reforça o cenário racista.
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As
lutas
sangrentas
ocorridas
em
vários
países
pela
descolonização, foram seguidas pelo surgimento de movimentos sociais organizados nos Estados Unidos na década de 60. O Partido Panteras Negras foi uma organização extraparlamentar voltada para a proteção de pessoas negras expostas à violência policial. O Partido Panteras Negras surgiu em 1966 na Califórnia e esteve ativo até o ano de 1982, após anos de perseguição e assassinatos de membros do grupo. Houve confrontos violentos entre ativistas e a polícia em diversos momentos, exacerbada pela permissão estatal de porte e uso de armas por civis naquele estado, fato que foi alterado somente em 2011, permitindo o porte somente em residências. A cultura também foi uma forma importante de resistência, uma vez percebidas as consequências do racismo, como o genocídio de pessoas negras, a segregação no mercado de trabalho, no acesso à educação e à moradia. Diversos movimentos culturais de grupos étnicos pelo mundo ganharam força e promoveram a negritude, como o movimento Black Power, além de estilos musicais de origem negra como soul, jazz e samba. Esses movimentos buscaram a afirmação da identidade negra (Azevedo, 2018). Mesmo em suas especificidades, esses movimentos apresentavam similaridades, já que indicavam povos originários da diáspora africana (Nascimento, 2007). Para Singleton e Souza (2009), esse fenômeno pode ser entendido como abjunção, dissipação dos povos de origem africana, bem como de seus descendentes de seu território originário, contra sua vontade e em função da escravização. Outro processo diaspórico conhecido é do povo judeu (Safrai & Stern, 1974).
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Como forma de combater o racismo, os movimentos sociais negros criticavam os processos de assimilação, e reforçaram a promoção da luta antirracista por meio de uma estética inspirada nos povos africanos. O Black Power pregava o empoderamento negro por meio do confronto da estética dominante. Para tanto, as pessoas não deveriam se submeter aos tratamentos químicos para transformação dos cabelos, mas usá-los ao natural (Johnson & Bankhead, 2013; Ellington, 2014). Movimentos como esse foram os primeiros de cunho crítico ao racismo e importantes no fortalecimento da negritude enquanto diferença humana. Contudo, o ideal essencialista defendido por alguns ativistas criou cisões nos movimentos negros. Se por um lado o colorismo hierarquizava os vários tons de negro reforçando a hegemonia branca, por outro, a inegável miscigenação configura uma impossibilidade em generalizar um biotipo. Na década de 1990 Michael Jackson vivia o auge de sua carreira. Em 1991 ele lançou o clipe de Black and White, causando grande repercussão. As mudanças físicas ocorridas desde o início de sua carreira, foram usadas por diversos ativistas como evidência de "embraquecimento" e negação da raça. Em meio às polêmicas, Michael lança o clipe, este que é carregado de simbolismos, e evoca as Panteras Negras e Marilyn Monroe, atriz que questionou ao seu modo, o comportamento tido como "ideal e esperado" por meio da afirmação de liberdade. Assim como Michael, Monroe recebeu diversos rótulos e sua atuação no cinema deu origem ao estereótipo de "loira burra". No clipe, Michael ataca símbolos do KuKluxKan e do Nazismo. O clipe foi seguido de censura nos Estados Unidos, considerado pelos críticos como incitação à violência e ao sexo.
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Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1
Mais recentemente, em fevereiro de 2017, a história parece se repetir nos Estados Unidos. No intervalo do jogo que marcava a final do campeonato de futebol americano de maior audiência, o Super Bowl, Beyoncé fez uma performance de sua música recém-lançada, "Formation". Os trajes referenciados às Panteras Negras e a letra contestatória da cantora deram origem a um novo e intenso debate sobre colorismo e embraquecimento. Tal como Michael, Beyoncé foi duramente criticada por nunca ter se assumido negra, algo entendido em função da estética "branca" percebida por alguns na cantora. No dia 25 de maio de 2020, nos Estados Unidos, mais especificamente em Minneapolis (Minnesota), uma ação policial resultou no assassinato de George Floyd, um homem afro-americano, de 46 anos, que foi asfixiado até a morte por um policial branco, que colocou o joelho sobre o seu pescoço, enquanto Floyd estava algemado e imobilizado no chão. George foi acusado de entregar uma nota supostamente falsa em um mercado que ele tinha o costume de frequentar. Após a trágica morte de George Floyd, vimos uma intensa mobilização, inclusive no Brasil, em volta do movimento conhecido como Black Lives Matter. Mais uma vez, a conscientização da pauta antirracista global voltou a ser tratada. No Brasil, a cantora Anitta também é alvo de críticas semelhantes as de Beyoncé. Em seu trabalho, Santos (2019) relatou que a cantora adota elementos estéticos que remetem à favela e as pessoas negras, como forma de se legitimar em clipes. Porém, em grandes eventos internacionais ela adotaria uma estética que a aproxima de uma mulher branca.
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Essas situações se conectam à ideia de que as diferenças contidas nas
características
fenotípicas
entre
pessoas
negras
foram
hierarquizadas. Nessa situação, assimiliar mudanças que distanciam as pessoas do fenótipo negroide, poderia conferir certo trânsito no que se refere a acesso às oportunidades. Diversas pessoas se submeteram a processos que “amenizam” a pertença racial como forma de ser aceitas socialmente. Porém, em nossa concepção, as análises desses processos, que vinculam as mudanças a uma ideia de embraquecimento, afroconveniência ou apropriação cultural, como suposta negação ou traição à raça, demonstram uma postura antiética e irresponsável. Antiética porque a análise do suposto processo de embraquecimento de uma pessoa, é baseado em um argumento que atribui à pessoa analisada, as contradições e assujeitamentos impostos pela lógica social e estrutural de racismo existentes na sociedade. Essa situação pode ser considerada irresponsável por alimentar um ideal essencialista, algo que culmina no controle de corpos, de comportamentos e de afetividades. Não por acaso, o cume dessa situação termina no controle da afetividade da mulher negra, que para afirmar sua negritude, deveria usar determinada estética, vestuário e relacionar-se somente com homens negros. Desse modo, análises como a Santos (2019), se ocupam de um julgamento de fundo moral, que culpabiliza sujeitos por estruturas sociais amplas e se distanciam de um debate profícuo e ético, do ponto de vista científico, acerca do racismo bem como de formas atualizadas de agenciamento. É preciso reconhecer e pontuar a importância do campo estético enquanto campo de crítica e promoção
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Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1
das diferenças sociais inerentes às pessoas negras. Porém, é preciso reconhecer que o racismo, enquanto discurso, se mantém ativo justamente por sua atualização no campo discursivo. O apego a um modo de ser e viver baseado em uma noção essencialista, puritana, negligencia o argumento mais básico da luta antirracista: que as pessoas devem se sentir livres para ser e viver suas diferenças. Procuramos nesse tópico, destacar aspectos que ressaltam como a raça e a etnia foram diferenças enquadradas de forma hierárquica. Se por um lado, até o Século XX a assimilação conferiu alguma possibilidade de acesso a oportunidade para alguns grupos, por outro ela não representou enfrentamento ao racismo. As diferenças do transito social em função das diferenças conferiu algum transito social às pessoas negras, mas nunca em igualdade de condições de pessoas brancas. O ponto central é que, nesta lógica, em um contexto racista, não importa quantas características negroides os sujeitos apresentem, qualquer uma delas poderá ser lida como um marcador de subalternidade. No próximo tópico, trataremos de forma mais detida acerca dos desdobramentos sociais relacionados ao racismo. BRASIL: EXCLUSÃO SOCIAL E RACISMO EM PERSPECTIVA HISTÓRICA
As expectativas são muitas, os ideais são elevados e consequentemente os dilemas são inerentes no que se refere ao Afroempreendedorismo e o Black Money, então sigamos por partes. Comecemos considerando-se a dimensão étnico/racial em uma perspectiva histórica. O discurso de democracia racial somente serviu
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para acobertar os conflitos de sociedade que viveu e, ainda vive, intensamente o sonho do embraquecimento (Cerqueira & Coelho, 2017). O projeto de política social do embranquecimento teve início em 1870, baseado na atração de imigrantes europeus para terras brasileiras. Os indícios de exaustão do modelo societal escravocrata conferiu que de forma processual a desenvolvimento do sistema capitalista, baseado na exploração do trabalho assalariado. Assim, os imigrantes brancos europeus, além de proporcionar a mudança quantitativa da composição étnica do país, também foram desejados para o mercado de trabalho em construção (Figueredo, 2014). E o que foi feito aos ex-escravizados recém libertos após 1888? Na verdade, a concessão da liberdade foi apenas a dimensão formal de um sistema social que já não era interessante para os ‘proprietários’. A liberdade, nesse sentido, não foi uma conquista, mas um marco de transição de um modelo de exploração para seu sucessor (Santos, 2003). As pessoas ex-escravizadas foram abandonadas, sem qualquer possibilidade de concorrer em igualdade de condições no mercado de trabalho formal. Sem acesso à terra e sem qualificação profissional, essas pessoas não receberam nenhum tipo de reparo nem do Estado, nem dos antigos senhores, o que já indica o acesso precário ao mercado de trabalho como elemento inicialmente imposto pela lógica do capital. Essas pessoas passaram a habitar espaços de baixo interesse imobiliário, às margens da urbanidade crescente. Nesses locais, é possível perceber a alta concentração de pessoas negras, mas também de outras, como indígenas e brancos pobres (Bernardino-Costa, 2013; Santos, 2003).
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Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1
Em um país constituído por raças e etnias distintas, a miscigenação foi algo não somente inevitável, quanto foi planejada. Em 1911, no Congresso Universal de Raças, o médico e antropólogo João Batista Lacerda, afirmou que a miscigenação no Brasil foi marcada pela harmonia, diferentemente de outras sociedades. Para Lacerda (1911), o fato de senhores terem relações sexuais com mulheres escravizadas e com elas terem filhos, teria conferido uma pluralidade racial pacífica no país. O convívio democrático e harmônico existente no Brasil teria sido fruto de uma relação diferenciada entre senhor e escravizado, onde os senhores foram considerados ‘benevolentes’ (Bernadino, 2002). Após o trabalho de Forestan Fernandes e Roger Batiste na década de 1970, ficou evidenciada a irrealidade da democracia racial. Os autores concluíram que no país havia o preconceito de ter preconceito. O reconhecimento público da existência do racismo no Brasil ocorreu somente em 1996, pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso, ex-orientando de Forestan Fernandes em sua tese intitulada "Formação e desintegração da sociedade de castas: o negro na ordem" em 1961. A declaração de Cardoso não ocorreu de forma desconectada do contexto, além da abordagem racial presente em seus estudos, a segregação que marcava a sociedade brasileira atingia patamares alarmantes. Lacerda (1911) encerrou sua apresentação no Congresso Universal de Raça com a exposição de seu argumento fundamental: a de que em 100 anos, ou seja, em 2011, não haveria mais negros no Brasil. Para ele isso seria possível pela seleção sexual, que denota que parceiros com fenótipo negroide seriam preteridos nas relações. Outro fenômeno que
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contribuiria para o desaparecimento da raça negra no país estaria ligado a condição de pobreza e abandono imposta as pessoas exescravizadas. Assim, para ele a miscigenação e a pobreza iriam conferir as bases de mudança do Brasil, para um país branco e com isso, uma referência de civilidade no mundo. O pensamento de Lacerda (1911), que representou o Brasil no primeiro evento mundial que evidenciou a questão racial, pode ser considerado o reflexo do ideal perseguido no país. A partir desse evento é possível perceber que a negritude é associada a atraso, enquanto a branquitude simbolizaria a civilidade, em um enunciado que revela o sonho do embranquecimento (desaparecimento da população negra). Esse ideal entranhou-se nas relações sociais, tal como ele previa. Hoje temos um intenso debate em torno da solidão da mulher negra e dos efeitos de machismo e do patriarcado na constituição do país, refletido na violência, genocídio de mulheres e pessoas de sexualidade dissidente, além de relações afetivas abusivas. Outro desdobramento está vinculado entre oportunidades e as diversas nuances de cor resultantes da mestiçagem. Quanto menos características fenotípicas que aproximassem os sujeitos da branquitude, maiores as chances de acesso às oportunidades, como afirma Fanon (2008). Somado a esses fatores, a cordialidade apregoada por Lacerda em função das relações inter-raciais desenvolvidas no período escravagista, se apoia no silenciamento da violência sexual, como o estupro e o assédio, às mulheres e às crianças negras. O resultado é nefasto, já que 3 em cada 4 casos de abuso sexual ocorre a pessoas com menos de 18 anos (Ministério Público do Paraná, 2020). O
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Brasil é o segundo país com mais casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes, atrás apenas da Tailândia (Agência Senado, 2022). Esses são os fatores que demonstram o discurso racista existente no país, o que remete que visões que apresentam o racismo brasileiro um caso “a parte” sendo invisível ou cordial, na verdade são rasas, já que estamos falando de um processo social altamente eficaz na configuração de modos de ser e viver e com desdobramentos dramáticos, que operam no nível do apagamento de humanidades. Estamos falando de gerações inteiras em que o debate em torno da raça e etnia era inexistente e falar de racismo era um verdadeiro tabu. Desse modo, podemos inferir que o preconceito motivado pelas diferenças raciais nem sempre é imediatamente associado ao racismo. Ainda que o nível de debate social sobre o racismo não tenha alcançado todos os grupos sociais no país, podemos observar que houve avanços importantes. Como fruto das mobilizações iniciadas em 1960, houve a criação das Ações Afirmativas. Essas dizem respeito à criação de políticas públicas voltadas à promoção das pessoas negras, por meio da discriminação positiva, ou seja, concessão de benefícios sociais baseando em critérios racializados, de modo a corrigir as desigualdades socioeconômicas além de valorizarem as pessoas negras, valorizando o pertencimento (Bernardino, 2002,). Nos Estados Unidos as Políticas Afirmativas compreendem o mercado de trabalho e a educação, por meio de cotas, que devem refletir nos diferentes níveis hierárquicos o percentual de pessoas negras percebido na população. No Brasil, houve a institucionalização das cotas no ensino superior, privilegiando pessoas negras, quilombolas e indígenas.
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Porém, há quem seja crítico as Ações Afirmativas, na compreensão de que as cotas seriam injustas e teriam dado origem a um grupo de afroconvenientes. Ali Kamel em 2006 lançou um livro se valendo do mesmo argumento, o de deslegitimar contestação política em função do “branqueamento”. O autor, dedica um capítulo inteiro de sua obra ao esvaziamento da categoria negro, intitulado “Sumiram com os pardos”. O racismo foi algo imposto a toda a sociedade, e os artistas como as demais pessoas, estavam imersos nessa lógica. Considerando-se a ausência de pessoas negras em posições expressivas, como cargos de alto nível hierárquico, políticos e artistas, o grau de assimilação explica o acesso de algumas pessoas negras. Ocorre que a partir desse lugar de destaque, muitos se perceberam implicados politicamente como a luta antirracista e, em função da lógica que lhes oportunizou ascensão, são desconsiderados. Historicamente, os dados estatísticos têm sido usados como meio de retratar, ainda que parcialmente, a realidade social em que as pessoas vivem. Se já existem sérias críticas quanto a essa capacidade de reproduzir a realidade por meios matemáticos, a situação se agrava pela ausência ou manipulação das informações. Por muito tempo, o IBGE não havia encontrado uma forma de obter informações sobre as pessoas negras. Inicialmente, as pessoas pretas conformam categoria distinta do restante da população, sendo diferidas dos demais não brancos. Essa divisão não conseguia refletir a situação vivenciada pelos pardos, uma vez que esse grupo apresentava condições socioeconômicas muito parecidas com os pretos.
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Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1
Após edições do censo do IBGE, convencionou-se agrupar na categoria negro, pretos e pardos, dando uma dimensão que procurava retratar a realidade dessas pessoas (Petruccelli & Saboia, 2013). Após essa mudança, a constituição do Brasil foi afirmada como sendo de maioria negra. Essa informação é fundamental para o direcionamento de políticas públicas voltadas para esse grupo, que apresentava características peculiares em relação aos demais. Ocorre que esse agrupamento é alvo constante de críticas, como a do diretor de jornalismo da Globo, Ali Kamel. Nesse ponto é pertinente questionar, a quem interessa deslegitimar atos políticos de defesa de pessoas negras? E a quem interessa o esvaziamento da categoria de pessoas negras? Percebe-se que existe uma intencionalidade nos argumentos contrários aos atos políticos, no nível ideológico, que procura separar as pessoas, evocando os ‘privilégios oriundos do embraquecimento’. Ao falar sobre racismo, o autor demostra ideias ambíguas, pois inicia um trecho da obra afirmando que racistas são iguais, independente do contexto, para logo em seguida, afirmar que o racismo explícito percebido nos Estados Unidos é “rotineiramente mais duro” que no Brasil. Ele ainda lança o questionamento aos leitores sobre como medir qual tipo de racismo “dói mais” (Kamel, 2006, p. 22). A questão estatística e as provocações feitas por Kamel (2006) nos levam a interrogar o que é negro. Para essa resposta, existem dois grupos com visões diferenciadas. O primeiro deles, defende a essencialidade da identidade, e isso pode ser percebido no ideal imagético do negro reproduzido por eles. Esse ideal reproduz características presentes em comunidades tradicionais na África,
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marcadas pelos costumes e tradições completamente distintos das pessoas negras pelo resto do mundo. Já outro grupo, defende a fluidez e a mobilidade da identidade (Oliveira, 2003) em oposição a um ideal essencialista (Oliveira, 2003). Coerente com essa visão, Munanga (2003) afirma que ser negro hoje é algo atrelado profundamente ao contexto, o que significa que Brasil, Estados Unidos e o continente africano apresentam particularidades. Montinho (2008) agrega complexidade a questão, ao falar da sobreposição de fatores usados para marginalizar pessoas, como as de gênero, sexo e classe. Ao racismo, outros fatores se acumulam levando ao aprofundamento da segregação. Para nós, a análise de fatos históricos como a diáspora africana, os modos de vida e as possibilidades observadas para os descendentes no Brasil, as lutas pelo fim da escravização até o Século XIX, as reivindicações dos movimentos negros observadas a partir do Século XX, indicam que negro diz respeito a uma categoria sócio-política. Nessa categoria, são agrupadas as pessoas de cor parda e preta. A confusão em torno do conceito de negro ocorre em função de se confundir cor e categoria sócio-política. A identificação dos povos negros no país é vital para o desenvolvimento de possibilidades e de ações capazes de promover mudança social. A densidade das questões abordadas e aqui expostas sinalizam parcialmente a profundidade do debate em torno da raça/etnia, racismo e luta antirracista. Porém, neste momento a reflexão feita diz respeito a perspectivas futuras. As referências imagéticas e culturais essencialistas baseadas em comunidades tradicionais africanas foram
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Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1
responsáveis em dar visibilidade e valorização às pessoas negras. Ocorre que a manutenção desse ideal não contempla o quadro dinâmico observado na atualidade, sobretudo no Brasil onde a mestiçagem ocorreu de forma tão intensa. Assim, consideramos que os processos sociais ocorridos no Brasil que envolvem a população negra, indicam um quadro de subcondição humana apoiada no racismo. Esse fator tem desdobramentos diversos, como os altos índices de violência, abuso sexual, as desigualdades raciais no mercado de trabalho, o baixo acesso a oportunidades e a subrepresentação em esferas de tomada de decisão. Esses fatores combinados indicam um quadro de exclusão social ao maior agrupamento social do país, já que pessoas negras representam mais da metade da população. É justamente em função desse quadro, que diversas ideias em torno de possibilidades de mudança surgiram. As iniciativas podem surgir como forma de as pessoas negras obterem melhores condições em um cenário permeado pelo racismo e por profundas mazelas sociais. Dentre as várias, existem aquelas que dialogam diretamente com a esfera econômica, como o Afroempreendedorismo e o Black Money. Assim compreender esses processos, em nossa visão, deve considerar o quadro social, político e histórico específico do qual emergem. Feito esse percurso, no próximo tópico tecemos considerações acerca das questões e possibilidades acerca dessas iniciativas.
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EM EVIDÊNCIA: OS DILEMAS AFROEMPREEDEDORISMO
LIGADOS
AO
BLACK
MONEY
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“Se não me vejo não compro”, disse Nina Silva em entrevista à Agência Brasil (Nascimento, 2020). Ela é uma das fundadoras de uma organização nomeada Black Money, criada em 2017. Sua formação em Administração e Tecnologia, além de um período vivendo nos Estados Unidos teriam inspirado a criação da startup. O foco da organização é promover comunicação e empoderamento negro por meio da geração de negócios entre pessoas pretas, mediados pela tecnologia. Até 2020, os R$ 1,8 trilhão ao ano movimentados por cerca de 56% da população negra, fomentaram holofote quase automático para a discussão. A matéria feita pela Agência em novembro de 2020 é representativa de diversas outras, dando destaque para eventos como o Feira Preta em São Paulo, as diversas startups de nicho e os hubs de negócios. Até esse período, havia uma euforia em torno do potencial de consumo das pessoas negras e das possibilidades de criação de produtos e serviços específicos, ou seja, o desenvolvimento simultâneo do Black Money e do Afroempreededorismo. Esse processo foi influenciado por mudanças em diversas esferas, dentre as quais elencamos 3 que consideramos centrais. As políticas públicas criadas durante os governos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003 a 2011) e Dilma Rousseff (2011 a 2016), promoveram certo incremento à renda de determinados grupos sociais, sendo chamados ‘emergentes’ ou ‘nova classe média’ (Neri, 2010). Muitas das pessoas que ascenderam economicamente eram negras e foi
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Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1
justamente esse incremento de renda que impulsionou demandas por novos produtos e serviços. Essa ascensão econômica pode ser considera a primeira e a mais imediata mudança ligada ao Black Money e ao Afroempreendedorismo. Além desse incremento financeiro, as camadas menos favorecidas do ponto de vista econômico também tiveram acesso ao ensino superior promovido pelos governos do Partido dos Trabalhadores. Dentre os beneficiários, estão as pessoas negras, que passaram a representar 38,15% do total de matriculados no ensino superior (Caixeta, 2022), o que representa um aumento de 400% de pessoas negras no ensino superior, entre os anos de 2010 a 2019, em relação aos anos anteriores. Embora sujeitos à desigualdade racial no mercado de trabalho, a qualificação profissional pode ser relacionada ao aumento de renda. Ao nos lembrarmos de Bourdieu (2011) e de suas proposições em torno dos tipos de capitais, é possível inferir que o processo de profissionalização também tencionou as necessidades das pessoas. A simples convivência de pessoas com origens distintas produziu reflexos sobre a necessidade de investimento em capital simbólico, seja por meio de viagens, acesso a cultura e ao lazer e também os tipos de produtos e serviços. Nesse sentido, tanto o repertório formal da educação superior quanto o capital simbólico construído para visando a legitimação do profissional perante a sociedade, indicam mudanças na forma como esses grupos passaram a consumir. Resta ainda o processo de mudança mais sólido em relação aos que já destacamos, que é todo o percurso formativo provocado pela luta antirracista. O percurso histórico que realizamos demonstra
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justamente um processo de intensa mobilização social, que por meio de diversas formas de atuação denunciou processos de violência, opressão e desigualdade motivadas por racismo. As lutas travadas até o Século XIX em torno da liberdade e a partir do Século XX, por melhores condições de vida, deram origem a conhecimentos formativos do ponto de vista político. Esse processo é tão demarcado, que embasa a tese de Gomes (2017), de que o movimento negro é educador. Tratamos aqui, de uma educação politizadora, na qual as pessoas passaram a compreender os sentidos de ser negro no Brasil, quais os desdobramentos sociais dessa diferença e também de possibilidades de agenciamento. Esses fatores produziram mudanças substâncias na forma de ser e viver de pessoas negras consideradas emergentes, do ponto de vista econômico. O acesso ao conhecimento formal, o nível de consciência política e o incremento de renda foram consideradas demarcadoras do surgimento de um grupo social com características distintas. Uma das questões mais básicas percebidas foi decorrente da observação de mudança no comportamento de consumo entre pessoas negras e anteriormente pertencentes às classes ‘C’ e ‘D’. Um evento marcante desse processo foram os ‘rolezinhos’ feitos por adolescentes pobres, sendo a maioria negros em shoppings de capitais. Em Belo Horizonte (MG) durante o ano de 2013, foram registrados rolezinhos em cinco shoppings (Kifer, 2014). O aumento da representatividade de pessoas negras em espaços de poder, como a cultura e a política também foi acompanhado pelo crescimento dos empreendimentos especializados. Todos esses fatores
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Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1
foram lidos com muito entusiasmo pela mídia especializada em negócios. Porém, outras duas mudanças contextuais representaram um forte golpe nesse cenário. O primeiro deles foi a ascensão ao poder de grupos com ideais fortemente conservadores. Diversas políticas diretas e indiretamente criadas e implementadas a partir do ano de 2017, frearam o crescimento financeiro desse grupo. A situação sofreu duro agravante face a Pandemia pela Covid-19, que gerou uma crise sanitária e econômica no país. O Brasil voltou a figurar no Mapa da Fome, realizado pela Organização das Nações Unidas (Agência Senado, 2022). Houve agravamento da desigualdade social (Luz, 2021) e da racial (Garcia, 2022). Esses problemas produziram profundos desdobramentos nos processos sociais observados até 2018 e suscitam algumas reflexões sobre o Black Money e Afroempreendedorismo, e que dialogam com processos semelhantes envolvendo outros grupos sociais. A crescente precarização da qualidade de vida motivou a reação de diversos grupos sociais. Em meados do Século XIX, a Europa assistiu os movimentos LGBTQIA+ (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Transgêneros) lutarem contra a criminalização de pessoas e relações sexuais dissidentes. Nos Estados Unidos em 1960 diversos grupos começaram a denunciar essa situação (Alves & GaleãoSilva, 2004). As Panteras Negras por exemplo, deram visibilidade ao genocídio e da sub condição de vida imposta as pessoas negras naquele país. A luta antirracista travada, no mundo e no Brasil, sobretudo na última década do Século XX, concedeu visibilidade para os efeitos
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opressores do racismo, em seu efeito de exclusão social. Esse movimento foi importante na construção de alternativas capazes de promover a inclusão de pessoas negras, tanto na educação quanto no mercado de trabalho. No campo da Administração, a Diversity Management (Cox, 1991) ou Gestão da Diversidade (Fleury, 2000) foi considerada uma tecnologia gerencial capaz de transformar a inclusão em valor para as organizações. Passados mais de trintas anos após a criação do conceito, o quadro que temos no Brasil indica que a diversidade pode ter sido reduzida a um selo, como possibilidade de acessar mercados até então não considerados. Esse fenômeno pode ser associado ao tokenismo (Rosário, Gomes & Tomé, 2022). A expressão é derivada do termo token, que em português significa símbolo. No campo dos Estudos Organizacionais, o termo remete ao esforço raso e incoerente de algumas organizações que se dizem politicamente alinhadas com a diversidade e inclusão. Jaime (2016) realizou um trabalho etnográfico com executivos negros a fim de entender as estratégias pessoais adotadas para conseguir ascender profissionalmente em um contexto adverso. Nos relatos, é possível perceber que as empresas, todas do setor bancário, adotaram formas de promoção da diversidade, mas na perspectiva gerencial. Assim, a diversidade que interessava aquela estritamente capaz de promover ganhos financeiros. As empresas usaram o selo da diversidade, visando o mercado especializado em produtos e serviços para pessoas negras, essas que haviam aumentado seu poder de compra em grande medida nos últimos anos. A maior parte dos relatos dos executivos que participaram do
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Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1
estudo de Jaime (2016), tem início com a negação de alguma experiência racista. Na medida em que os relatos avançam, várias ocorrências surgem. Todos os executivos disseram que quando expostos a situações racistas ignoraram os incidentes, já que evidenciar o conflito não era algo desejado no ambiente corporativo. As mulheres relataram diversas situações envolvendo violências físicas inclusive, além de, em alguns casos, a impossibilidade em ocupar certos cargos ou em caso da ocupação, sujeitando-se a salários expressivamente menores pagos para outros funcionários de igual posição. O estudo demonstra que entre executivos negros, a prática da assimilação ainda é usada como forma para pessoas negras serem aceitas no ambiente corporativo, o que indica a manutenção do racismo. As questões expostas até esse ponto remetem ao fato de que o racismo possui desdobramentos no âmbito econômico, mas também social, político, cultural e social, para citar alguns. O movimento político que denunciou as diversas formas de opressão foi importante em proporcionar visibilidade para a questão. Ocorre que, o discurso capitalista historicamente tem se desenvolvido por meio da apropriação da crítica. Assim, reivindicações de movimentos sociais, como os dos negros por ampliação de direitos sociais, no plano econômico é reduzido a identificação de uma demanda, de um público específico, e consequentemente de produtos e serviços adequados. Sistematicamente, diversas questões sociais complexas foram incorporadas na lógica do mercado. O movimento por aceitação das pessoas LGBTQIA+ nos Estados Unidos, deu origem ao Pink Market (Moreschi, Martins & Craveiro, 2011), como um target já definido, com
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capacidade de consumo e sensível pela possível dimensão política no consumo de bens e serviços voltados a um grupo social que outrora somente era alvo de preconceito e violência, passando a demarcar o Pink Money. Esse mercado se tornou altamente lucrativo, conferiu ascensão econômica a organizações, mas não representou a superação da lgbtfobia nem da violência. Podemos ainda destacar o caso dos alimentos orgânicos. A crítica ao uso de agrotóxicos e do mal que deles decorre à saúde das pessoas, tem sua origem nos modus operandi específico de pequenos agricultores frente à grande indústria do agronegócio. Esse movimento levou a consolidação de um nicho de mercado, caracterizado por pessoas que passaram a consumir somente produtos orgânicos. O processo de certificação que assegura a produção isenta de agrotóxico, transformou o orgânico em um selo acessível somente a grandes empresas, em função da complexidade dos processos e custos associados à obtenção da certificação. Ao acionar o termo negro, dialogamos diretamente com problemas sociais. Para Munanga (2003), negro é um termo com significados distintos, se considerarmos África do Sul, Estados Unidos e Brasil. A consciência política das quais os sujeitos se valem para significar sua vivência e sua relação com os demais em sociedade, no caso brasileiro, possui uma nuance de ter sido silenciada sob o mito da cordialidade entre os diferentes grupos étnicos existentes no país. O silenciamento sobre o processo de desenvolvimento do Brasil, ocasionou a marginalização de grupos sociais e é fruto de um discurso tão forte e hegemônico que mesmo após a observação dos níveis de
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desigualdade social, violência, encarceramento em massa, retrocessos nas leis que regem o trabalho, fatores esses com diferentes manifestações considerando-se a raça, diversas pessoas ainda negam a existência do racismo, como Kamel (2006). O silêncio acerca da condição das pessoas negras na sociedade brasileira pode ser considerado uma estratégia discursiva que visou impedir a percepção da fragmentação, do conflito, por serem ameaças à coesão, unidade e a relação de pertença, elementos considerados importantes para a possibilidade de uma ideia de nação. Como vivemos em uma economia política, antes de sermos uma organização social pautada em preceitos democráticos, somos entendidos, por alguns grupos hegemônicos ao menos, como um grande mercado. Ainda que a experiência democrática contemporânea seja frágil e sujeita a críticas, oferece mais possibilidades do que um ambiente visto somente em termos de mercado. Desse modo, as questões sociais são privatizadas, passando a ser tratadas no interior das organizações. O sistema econômico vigente cria e aprofunda mazelas sociais, os grupos em questão se manifestam, o Estado reage com políticas, que logo são incorporadas pelo capital como “inovação”. No que se refere ao empreendedorismo, de acordo com a lógica a ele pertinente, o esforço conduz ao sucesso, ao passo que o fracasso é responsabilidade de cada sujeito, por não ter se esforçado o suficiente. A generalização é um processo perverso que desconsidera os desníveis sociais, o acesso amplamente desigual a informação, repertorio cultural e político, além das redes sociais nas quais as pessoas estão inseridas.
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A crítica ao discurso empreendedor se deve a lógica de responsabilização dos sujeitos por sua própria empregabilidade e sucesso financeiro. Ao percebermos a tendência de redução do emprego formal na busca de redução de custos pelas empresas, podemos inferir que o empreendedorismo máscara o contingente de pessoas desempregadas, sendo-lhes oferecido como alternativa empreender. Nos últimos anos, a criação do MEI (Microempreendedor Individual) e EIRELI (Empresa Individual de Responsabilidade Limitada) estão em sintonia com a tendência de redução do emprego formal. Todas essas mudanças podem sinalizar a precarização do trabalho e o empreendedorismo não pode ser considerado como solução para esse quadro, por justamente contribuir na promoção e reforço da lógica do emprego precário. Ao retomarmos os dados do SEBRAE (2015), é possível problematizar
questões
não
tão
explícitas
em
torno
do
Afroempreendedorismo. O fato de maioria das pessoas negras trabalharem por conta própria, reforça a lógica excludente do mercado de trabalho. Não se pode ignorar que as pessoas negras foram empurradas para a informalidade desde o fim da escravização, lhes restando desenvolver atividades que em relação aos empregos formais se estabeleciam como formas altamente precárias de trabalho. Assim um grande contingente de pessoas, que tiveram como única alternativa de trabalho a informalidade, são apresentadas como empreendedoras. Procuramos nesta exposição demonstrar que existem razões históricas para que esses dados sejam tão previsíveis quanto
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Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1
cruéis em demonstrar que avanços no acesso às oportunidades ainda é precário. Para os céticos, podemos continuar evidenciando a contradição exposta na própria pesquisa, por meio da qual se observou que, quando se fala em trabalho por conta própria, a maioria é negra, mas quando o foco é empregador, daí a relação é totalmente invertida, já que brancos representam 68% do grupo de empreendedores que empregam. Ou seja, nos negócios sólidos e robustos com capacidade de empregar outras pessoas e que, de fato, podem ser considerados negócios, negros são a minoria. Em razão disso, o anúncio de que pessoas negras são maioria dentre os empreendedores desproblematiza as assimetrias observadas entre esses sujeitos. A adesão de práticas e técnicas de forma desproblematizada ou despolitizada (Alves & Galeão-Silva, 2004) pode resultar em inserção profissional, mas implica manutenção das lógicas preconceituosas, racistas, machistas, homofóbicas,xenofóbicas, e tantas outras, presentes na sociedade e consequentemente nas organizações. Organizações não resolvem questões sociais, elas as reproduzem. A inclusão social não pode ser reduzida ao acesso às oportunidades, ligadas ao plano econômico. O fato é que, em um país marcado pelo racismo, a ascensão econômica não leva a emancipação social. Reconhecemos que se pode deixar de valorizar as iniciativas que nos trouxeram até o presente momento e que proporcionaram melhorias na condição de acesso à educação, as oportunidades de trabalho e de criação de empreendimentos. O que não se deve deixar de pautar é a necessidade de reflexão sobre esses processos ocorrem na sociedade.
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Ainda que a diversidade seja celebrada como avanço, é preciso discutir exaustivamente a origem dessa concepção: nossos preconceitos, nossa intolerância e nosso racismo. Esses não podem ser superados somente pela simples adoção de técnicas ou criação de grupos de afinidades nas organizações. O Black Money, entendido como potencial de consumo politizado por pessoas negras, embora sinalize um aspecto potente. As reivindicações e lutas travadas pelos movimentos negros até o Século XX resultaram em avanços, inclusive econômicos. Porém, o nível de enraizamento do racismo na formação da sociedade brasileira, com desdobramento em todas as esferas sociais, indica que essas conquistas estão sob constante ameaça de retrocesso. A Pandemia pela Covid-19 e o direcionamento político governamental adotado nos últimos anos impactou a tendência de crescimento percebidos até 2018. A fragilidade dessas conquistas também acomete o campo do Afroempreendedorismo. O aprofundamento das desigualdades, sejam elas baseadas nas diferenças de gênero ou raça, representam uma atmosfera com baixo potencial para o fortalecimento dos empreendimentos existentes, bem com de novos. ALTERNATIVAS AO CANTO DA SEREIA
As
questões
expostas
até
aqui
nos
indicam
que
o
Empreendedorismo silencia discussões sobre a precarização do trabalho ao não considerar a relação entre empreendedores e pessoas que são empurradas para a informalidade. Por tabela, além do
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Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1
Afroempreendorismo refletir esse mesmo problema, soma-se ainda a dimensão do racismo estrutural observado no país, que além da violência simbólica e física, também está relacionado com a exclusão social, desigualdade e reprodução da pobreza. Além disso, diante do cenário no que se refere ao nível do debate sobre raça e racismo no país, por mais que algumas pessoas consigam ascensão econômica, não significa que tiveram acesso à inclusão social. Ascensão econômica está ligada ao processo explicitado parcialmente na introdução deste texto, em que muitas pessoas obtiveram um aumento expressivo de renda, provocando uma reclassificação baseada em renda. Ocorre que o incremento na renda diz muito pouco sobre a condição de vida das pessoas. Sendo um aumento pouco expressivo e evanescente, a próxima crise já é suficiente para provocar o decréscimo na renda e retorno às classes com menos poder de compra, como foi percebido nos últimos 4 anos. Dessa forma, eventos sociais podem assumir diferentes aparências sob a luz das narrativas que os explicam e assim é a ideia criada em torno da ascensão econômica. A perversidade presente nas relações sociais mediadas pelas instâncias comunicacionais se dá em função de que as diferenças existentes entre as pessoas são transformadas em desigualdades, que condicionam as possibilidades da maior parte das pessoas. Diferenças como origem classe social, gênero, raça e tantas outras funcionam como elementos responsáveis pela hierarquização dos sujeitos e que tem reflexos nas oportunidades a que as pessoas têm acesso, como a ocupação profissional.
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Dito de outra forma, a sociedade é responsável por criar os próprios mecanismos que marginalizam e segregam sujeitos. Porém, dada a inconveniência de tal fenômeno, de forma paralela desenvolvemse discursos cínicos que além de negar tal evidência, podem chegar a responsabilizar sujeitos marginalizados pela condição estrutural em que vivem, tal como observado no discurso empreendedor. Como forma de se incluir, aqueles ditos “diferentes” se submetem a condições precarizadas com relação ao grupo de referência, o que Sawaia (2001) chama de inclusão perversa. Os efeitos dessa situação são lastimáveis, pois além de manter, pode aprofundaras desigualdades sociais, o que significa pobreza, má qualidade de vida e perda para toda a sociedade em termos de possibilidade de desenvolvimento. No que toca as diferenças raciais, as implicações sociais do racismo, bem como em formas de seu enfretamento ainda precisa avançar no Brasil. Apesar de a Diversidade estar em voga entre as organizações atualmente, o que ela promove de forma imediata nada mais é do que a representatividade (Jesus, 2013) das diferenças percebidas na sociedade, na organização. Ocorre que diversos estudos questionam as “boas intenções” responsáveis pela adoção dessa em organizações (Alves & Galeão-Silva, 2004; Eccel & Flores-Pereira, 2008), bem como de seus efeitos rasos e esvaziados de sentido, já que em muitas pessoas negras continuam sendo submetidas à assimilação para serem aceitas, ou ainda da prática do tokenismo. A
instrumentalização
de
críticas
sociais
no
contexto
organizacional evidenciada por Saraiva e Irigaray (2009) é um processo no qual não se promove a devida problematização das questões sociais.
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Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1
A simples implementação de processos gerenciais não garante que as pessoas repensem práticas discriminatórias e preconceituosas, uma vez que tais condutas se encontram enraizadas no cotidiano, perpetuandose por meio de sua reprodução. Com isso, é preciso estar atento ao fato de que apenas a ascensão econômica não é capaz de proporcionar reflexões e mudanças significativas na sociedade, o que nos leva a considerar que a via econômica não suporta emancipação social, inferência também admissível no que se refere ao Afroempreendedorismo. A política é o campo social que permite refletir sobre a ocorrência dos processos opressões, bem como em possibilidades para amenizar e reverter esse quadro, gerando emancipação social (Böhm, 2006). Existem alguns grupos sociais criados em torno de um ideal político, tais como Movimentos Sociais e o Ativismo. Cada um desses grupos possui modos e enfoques distintos dos demais para lidar com problemas sociais específicos. Os Movimentos Sociais são caracterizados pela ênfase nos processos, propõem mudanças na via transgressiva e visam propiciar alterações concretas aos sujeitos (Mcadam & Scott, 2005). Já o Ativismo (Davis & Zald, 2005) é marcado por fatores distintos, sendo que neste campo os sujeitos não necessariamente estarão organizados em grupos que compartilham ideias, sendo essas próprias a manifestação do ativismo. Justamente por isso, os conceitos criados pelo ativismo possuem elevada potência e rápida repercussão, não obstante transformam-se em modismos, perdendo seu caráter crítico no campo político na mesma velocidade com que se difundem.
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A proximidade dos conceitos usados por esses grupos com o cotidiano, promove identificação e mobilização rapidamente. Os conceitos por eles usados surgem por meio de reflexões do cotidiano, em problemas, o que indica que são orientados pela conexão com o contexto local. No que se refere à luta antirracista, percebe-se que as denúncias sobre discriminação racial impulsionaram uma grande quantidade de pessoas a se manifestarem, mas também proporcionou a muitas outras, conhecimento necessário à reflexão de sua realidade. Esse processo resultou em uma formação politizadora, antirracista, baseada em ideias derivadas do cotidiano, linguagem familiar e alta capilaridade. Não é nossa intenção oferecer uma solução, até mesmo porque, está evidente que os mecanismos que provocam a exclusão social e o acesso precário as oportunidades é fenômeno complexo e ligado a outros diversos, dinâmicos no tempo e no espaço. Mas nos é possível apresentar alternativas capazes de promover mudanças positivas e efetivas na sociedade com base em estudos já realizados. Um deles remete ao trabalho de Weber ao observar judeus e rede de cooperação criada por eles, estudo que posteriormente embasou a teoria middleman minority 8(Bonacich, 1973). A autora percebeu que os imigrantes estavam sujeitos a situações precárias de trabalho, além de sofrerem xenofobia e não contarem com nenhum auxílio governamental. O contexto hostil levou alguns grupos a desenvolverem uma rede de cooperação, tal como
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Minorias intermediárias, tradução nossa.
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Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1
observado nas irmandades no Brasil colonial ou com os judeus pela Europa, igbos na Nigéria, indianos na África Oriental e outros. Essa cooperação foi marcada pelo giro dos recursos financeiros entre as pessoas do grupo, como fruto de uma decisão política. Tanto o consumo como a contratação de pessoas, privilegiavam os membros do grupo, fazendo com que a renda permanecesse entre o grupo e garantindo
condições
ao
enfrentamento
do
contexto
de
superexploração do trabalho. Tal como as irmandades no Brasil colonial, as minorias intermediárias não visavam com sua organização superar o sistema social
vigente.
Contudo,
as
informações
e
conhecimentos
compartilhados proporcionaram aos sujeitos consciência política de sua situação e com isso, o desenvolvimento de agenciamentos possíveis. Ao pensarmos a dinâmica das minorias intermediárias, podemos perceber que o Black Money e o Afroempreendedorismo podem conter potência para fomentar o desenvolvimento de redes de cooperação entre pessoas negras. Para tanto, essa cooperação deve estar profundamente ligada ao processo de formação política antirracista. O estudo sobre minorias intermediárias indica que não é possível criar uma solução para a exclusão social somente pela via econômica. Mesmo após anos, é possível percebermos que ainda não dispomos de uma alternativa definitiva, mas tudo indica que caminhos sólidos podem ser construídos pela via política.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Procuramos apresentar, por meio desta obra, uma visão geral a respeito do Black Money e Afroempreendedorismo tendo em perspectiva ao contexto histórico brasileiro. O intuito foi interrogar a dimensão econômica como via de inclusão para a crescente exclusão social percebida no Brasil e que acomete de forma preponderante pessoas negras. O esforço aqui foi o de evidenciar, ainda que de forma parcial, a complexidade que permeiam a exclusão social e o racismo, já que se tratam de processos históricos e que configuraram a vida das pessoas de tal forma que os mecanismos de opressão encontram-se em grande medida naturalizado no cotidiano das pessoas, algo que mina a capacidade de resistência à tendência precária imposta aos grupos. O clima de euforia criado em torno do cenário considerado favorável ao empreendedorismo negro e ao incremento de renda durante as duas primeiras décadas do Século XXI, foram interpretados por diversos autores como sendo uma forma de promoção de inclusão social. O Afroempreendedorismo é um termo criado a partir do conceito de empreendedorismo, e dessa forma, herda a crítica a ele direcionada acrescido da dimensão social desproblematizada no âmbito econômico, seja no que se refere a gênero, classe ou raça como aqui abordamos. A exclusão no Brasil leva a pobreza e a vida precária e em muito está relacionada ao racismo. De fato, vivemos em uma era em que importantes avanços podem ser destacados no que se refere a luta antirracista e a condição de pessoas negras no país. Esses avanços demonstram o passado de
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denúncias e debate em torno dos problemas sociais que acometem determinados grupos. Ocorre que por muito tempo, a discussão sobre as diferenças sociais não foi devidamente problematizada. A narrativa oficial criada em torno do ideal de democracia racial pregou a harmonia racial no país, quando na verdade um sistema excludente se instalou, em que o acesso às oportunidades em muito foi pautado em torno das nuances de cor que conferiram algum nível de trânsito social, mas nunca de igualdade de condições com a branquitude. O quadro que temos possibilita perceber avanços em diversas esferas, mas também de desafios, já que o Brasil segue sendo um dos países mais desiguais do mundo, sendo que dentre os mais pobres, pessoas negras são a maioria. Em contexto permeado pelo racismo, as conquistas sociais obtidas ao longo dos anos podem ser mostrar frágeis, dada a tensão de grupos com interesses distintos. É possível perceber que movimentos como o Black Money e Afroempreendedorismo são decorrentes de conquistas sociais em torno da ampliação do acesso à educação, das lutas e reivindicações dos movimentos negros, do processo de formação politizada e do incremento financeiro nas duas décadas passadas. O reconhecimento do potencial de consumo de grupos sociais aliado ao surgimento de organizações especializadas em produtos e serviços sensíveis às necessidades específicas, pode ser encarado cenário resultante de um processo de cooperação social, formando uma esfera na qual circulam saberes, oportunidades, informações, afetos e também de renda. Porém, as recentes mudanças ocorridas no país relacionadas às políticas de estado e a Pandemia pela Covid-19, estão associadas com o
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aprofundamento das desigualdades, inclusive a racial, causando um rápido retrocesso a patamares anteriores a importantes conquistas na esfera social. A observação desse movimento é importante por sinalizar que racismo, ainda persistente em nossa sociedade, representa uma tensão contínua às conquistas sociais. Por consequente, o Black Money e o Afroempreendedorismo sinalizam o nível de qualidade de vida do povo negro, mas eles são mais reflexo do que meio para emancipação. Nesse sentido, processos de ampla mudança social consistentes são baseados no enfrentamento dos dilemas históricos e cooperação entre as pessoas negras, amparadas por acesso à educação, cultura e formação política. A complexidade dos temas que envolvem a inclusão econômica e social, nos inspira cautela na consideração daquilo que se apresenta como possibilidade de emancipação social. O fato das pessoas negras mudarem sua capacidade de consumo, não as torna imediatamente aceitas na sociedade. O racismo representa um cenário de violência e opressão às pessoas negras, independente de sua classe social. As questões que pontuamos neste trabalho estão refletidas em diversas outras esferas e questões sociais tais como o Pink Money, Produtos Orgânicos, Indústria Criativa e Gestão da Diversidade. De forma geral, podemos salientar o fato de que as críticas feitas no contexto capitalista, são esvaziadas de seu sentido político, apropriadas na esfera econômica e transformadas em nicho de mercado, processo que inviabiliza qualquer possibilidade efetiva de mudança ou emancipação social. Isso significa que os dilemas decorrentes do racismo não podem ser reduzidos a uma questão de
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mercado, já que ele está impregnado nas relações sociais de uma forma muito mais abrangente. Não temos a pretensão de oferecer uma alternativa às questões aqui expostas. Ao contrário, estudos já realizados como o das minorias intermediárias indicam que alternativas são possíveis, mas estão acessíveis pela dimensão política em uma construção contextualizada e conectada com as especificidades dos grupos sociais, imersos em um processo dinâmico e fluído. Em nossa compreensão, o Black Money e o Afroempreededorismo sinalizam que a análise de processos sociais relacionados a grupos minorizados, bem como das alternativas de agenciamento é complexa por envolver esferas distintas, como a social, a econômica e a cultural. É justamente por esse motivo que tais processos não podem ser lidos e tratados como ‘solução’ de forma isolada, já que sua existência está condicionada ao que se apresenta como vida possível ao negro no país. REFERÊNCIAS
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SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES
Alexandre de Pádua Carrieri Doutor em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor Associado da Universidade Federal de Minas Gerais. Fundador e Subcoordenador do Núcleo de Estudos Organizacionais e Sociedade (NEOS). Bolsista Produtividade (Nível 1A) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Contato: [email protected]. Alexsandra Nascimento da Silva Mestra em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Administradora na Universidade Federal de Minas Gerais. Contato: [email protected]. Ana Flávia Rezende Doutora em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professora Adjunta da Universidade Federal de Ouro Preto. Contato: [email protected]. Bruno Eduardo Freitas Honorato Doutor em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor Adjunto da Universidade de Brasília. E-mail: [email protected]. Danielly Mendes dos Santos Mestra em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Produtora Cultural. Contato: [email protected]. Denis Alves Perdigão Doutor em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor Adjunto da Universidade Federal de Juiz de Fora. Contato: [email protected].
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Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1
Elisângela de Jesus Furtado da Silva Doutora em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professora da Fundação Dom Cabral. E-mail: [email protected]. Fabiana Florio Domingues Doutora em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professora da Faculdade de Ciências Contábeis e Administração de Cachoeiro de Itapemirim. Contato: [email protected]. Gabriel Farias Alves Correia Doutorando em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor Substituto na Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri. Contato: [email protected]. Jéssica Eluar Gomes Mestra em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Funcionária do Banco de Desenvolvimento de Minas Gerais. Contato: [email protected]. Luiz Alex Silva Saraiva Doutor em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professor Associado da Universidade Federal de Minas Gerais. Coordenador do Núcleo de Estudos Organizacionais e Sociedade (NEOS). Bolsista Produtividade (Nível 2) do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Contato: [email protected]. Paula Gontijo Martins Doutora em Administração pela Universidade Federal de Minas Gerais. Professora Substituta da Universidade Federal de Alfenas. Contato: [email protected].
ÍNDICE REMISSIVO Administração, 9, 10, 11, 17, 27, 29, 30, 31, 33, 54, 73, 74, 75, 76, 78, 79, 80, 86, 87, 95, 96, 101, 107, 108, 109, 110, 112, 113, 114, 146, 149, 155, 161, 165, 166, 171, 172, 173, 174, 175, 198, 209, 210, 211, 212, 213, 221, 254, 255, 256, 258, 264, 287, 291, 307, 308, 309, 311, 313, 314 afroempreendedorismo, 13, 261, 265 artesanal, 249, 250 Baudrillard, 121, 122, 142, 144 Belo Horizonte, 11, 12, 13, 31, 72, 73, 74, 104, 108, 110, 112, 114, 116, 127, 131, 146, 156, 170, 171, 172, 173, 174, 177, 178, 187, 193, 207, 209, 210, 211, 213, 216, 217, 222, 231, 245, 246, 247, 250, 254, 255, 289, 306 Benjamin, 77, 84, 85, 90, 91, 107, 108, 109
Brasil, 11, 12, 13, 14, 30, 31, 33, 34, 37, 38, 39, 41, 42, 43, 44, 47, 48, 49, 51, 54, 59, 71, 72, 73, 74, 109, 110, 111, 112, 136, 137, 145, 146, 149, 171, 172, 173, 174, 175, 177, 179, 180, 194, 195, 198, 199, 204, 207, 209, 210, 211, 241, 245, 246, 255, 256,257, 259, 260, 261, 262, 264, 265, 266, 267, 273, 276, 278, 280, 281, 282, 284, 285, 286, 287, 289, 290, 293, 299, 302, 303, 304, 306, 307, 308, 309, 310, 311, 312, 321 capital, 9, 17, 24, 33, 40, 50, 51, 58, 63, 64, 67, 68, 88, 117, 118, 129, 133, 134, 136, 138, 139, 142, 165, 171, 181, 247, 268, 279, 288, 294, 307 capital cultural, 58, 63, 64 capital social, 63, 64, 118
bissexualidades, 235
capitalismo, 12, 115, 116, 118, 119, 126, 128, 135, 139, 140, 141, 142, 143, 144, 158, 172, 308
Black Money, 258, 259, 263, 267, 268, 269, 270, 278, 286, 287, 288, 290, 297, 302, 303, 304, 305, 306, 310
Certeau, 76, 92, 93, 97, 98, 110, 111, 113, 184, 185, 186, 187, 198, 209, 211, 251, 255
Bourdieu, 33, 34, 37, 57, 58, 59, 60, 61, 62, 63, 64, 65, 66, 68, 69, 70, 71, 73, 288, 307
cidade, 12, 24, 25, 31, 32, 103, 104, 111, 114, 115, 120, 121, 122, 130, 131, 132, 138, 143, 144, 145, 154, 155, 156, 157, 165, 170, 172, 173, 174, 177, 178, 179, 180, 181, 182, 183, 184, 187, 192, 193, 197, 199, 200, 204, 205, 209, 212, 216, 222, 223, 236, 245,248, 250, 253, 257, 263, 308
branco, 55, 99, 121, 266, 276, 281, 307, 308 branquitude, 281, 304
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Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1
Ciência, 113, 145, 150, 170, 173, 257, 309, 311
Didi-Huberman, 76, 85, 87, 105, 106, 108, 110, 140, 143
colonial, 87, 88, 89, 90, 108, 268, 302
Diferenças, 12, 147, 149, 151, 173, 298
conhecimento, 9, 12, 20, 23, 27, 33, 60, 65, 75, 78, 81, 84, 86, 87, 88, 89, 90, 93, 95, 106, 107, 109, 113, 155, 158, 161, 163, 164, 168, 169, 171, 176, 179, 200, 246, 289, 301
direito, 13, 31, 36, 44, 45, 46, 47, 124, 157, 197, 208, 211, 243, 244, 250
contemporaneidade, 40, 85, 107 corpo, 20, 29, 32, 35, 58, 74, 86, 89, 110, 116, 117, 145, 222, 237, 244, 250 cotidiano, 10, 11, 15, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 25, 27, 28, 30, 31, 32, 54, 56, 62, 75, 76, 77, 78, 85, 87, 92, 93, 94, 95, 97, 98, 101, 103, 104, 105, 106, 108, 109, 110, 111, 113, 128, 129, 138, 150, 170, 185, 186, 206, 209, 211, 215, 217, 218, 223, 228, 236, 239,240, 249, 251, 255, 300, 301, 303 crítica, 17, 21, 29, 32, 68, 70, 71, 96, 110, 121, 133, 134, 145, 155, 211, 214, 256, 277, 292, 293, 295, 303, 307 cultura, 23, 32, 54, 55, 58, 60, 62, 71, 77, 90, 109, 113, 126, 131, 132, 133, 145, 171, 188, 189, 211, 213, 214, 215, 226, 227, 228, 229, 234, 235, 237, 241, 242, 250, 253, 255, 257, 273, 274, 288, 289, 305 Deleuze, 76, 110, 143, 161, 171 democracia racial, 261, 273, 278, 280, 304, 307 desconstrução, 19 desigualdade, 13, 48, 56, 73, 126, 180, 258, 262, 263, 288, 289, 290, 294, 298, 308, 309, 311, 312
discurso, 18, 46, 56, 71, 111, 114, 121, 124, 126, 131, 144, 160, 170, 172, 174, 179, 197, 218, 219, 220, 221, 241, 254, 255, 256, 257, 278, 282, 292, 293, 295, 299, 308, 311 Durkheim, 162, 171 educação, 11, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39, 40, 41, 42, 44, 45, 46, 47, 48, 50, 51, 52, 53, 57, 58, 59, 62, 63, 64, 65, 66, 67, 68, 69, 70, 71, 72, 73, 74, 145, 149, 170, 211, 227, 242, 246, 260, 263, 270, 274, 282, 288, 289, 291, 296, 304, 305, 307 Educação Superior, 42, 47 embranquecimento, 261, 279, 281 ensino superior, 34, 38, 41, 42, 43, 44, 46, 47, 48, 50, 51, 69, 71, 263, 282, 288, 321 erudito, 77, 86 espaço, 19, 21, 23, 24, 25, 27, 29, 40, 65, 76, 79, 85, 87, 93, 97, 98, 99, 100, 105, 106, 107, 112, 114, 115, 117, 121, 122, 123, 126, 127, 130, 131, 134, 136, 141, 155, 157, 170, 179, 182, 183, 184, 186, 187, 201, 205, 211, 212, 215, 218, 220, 222, 223, 224, 225, 234, 247, 253, 269, 301 estudos organizacionais, 9, 11, 12, 109, 111, 113, 146, 151, 152, 155, 157, 161,
Índice remissivo
170, 171, 172, 173, 177, 179, 182, 210, 254, 255
113, 146, 150, 169, 174, 186, 202, 205, 206, 207, 211, 242, 244, 256, 276
ética, 46, 234, 311
homossexualidade, 234
etnia, 271, 272, 278, 282, 285
Honneth, 190, 191, 210
exclusão social, 13, 29, 38, 258, 261, 262, 265, 268, 286, 291, 298, 301, 302, 303
ideologia, 52, 59, 69, 184, 248
experiência, 54, 61, 91, 137, 149, 165, 166, 167, 189, 204, 221, 237, 238, 240, 257, 292, 294 Fairclough, 196, 210 Foucault, 35, 72, 87, 99, 100, 111, 185, 245, 248, 249, 255 Fraser, 191, 210 gênero, 29, 88, 112, 116, 123, 124, 125, 126, 127, 145, 146, 168, 169, 172, 228, 230, 231, 234, 285, 297, 298, 303 Gestão, 17, 31, 73, 75, 109, 110, 111, 112, 170, 171, 173, 210, 255, 291, 305 gestão ordinária, 11, 13, 26, 75, 76, 78, 92, 94, 95, 96, 97, 101, 104, 105, 107, 109, 254 grafite, 11, 115, 116, 119, 120, 121, 122, 127, 129, 130, 131, 132, 133, 134, 135, 136, 137, 138, 139, 140, 141, 142, 143, 144 Guattari, 110, 117, 118, 119, 139, 140, 143, 145 hippies, 157, 216, 217, 228, 229, 241, 242, 247, 250 história, 19, 23, 24, 27, 28, 30, 32, 77, 78, 79, 80, 82, 84, 85, 87, 91, 93, 94, 95, 101, 105, 107, 108, 109, 110, 111, 112,
• 317
indígena, 12, 28, 113, 135, 138 interdisciplinar, 79, 155, 180 Lazzarato, 117, 118, 133, 134, 139, 144, 145 Lefebvre, 19, 21, 22, 23, 25, 27, 31, 183, 186, 211 luta antirracista, 260, 261, 268, 275, 278, 283, 285, 288, 290, 301, 303 mainstream, 10, 17, 75, 77, 78, 86, 93, 97, 101 malucos de estrada, 12, 171, 216, 217, 219, 223, 224, 228, 234, 235, 239, 245, 246, 247, 250, 252, 253, 255 memória, 28, 31, 32, 77, 78, 79, 81, 82, 83, 84, 86, 90, 91, 101, 102, 105, 106, 107, 108, 109, 112, 113, 150, 151, 174, 246 Mignolo, 88, 89, 108, 112 miséria, 192, 207, 211 modernidade, 11, 22, 23, 34, 35, 41, 57, 70, 88, 90 mulher, 12, 116, 122, 123, 124, 125, 126, 127, 137, 141, 144, 146, 229, 230, 232, 235, 236, 237, 241, 246, 276, 277, 281 multidisciplinar, 19 negritude, 166, 274, 275, 277, 281
318 •
Estudos Organizacionais e Sociedade – Volume 1
negro, 12, 138, 144, 213, 258, 259, 260, 261, 262, 267, 270, 272, 275, 280, 283, 284, 285, 287, 289, 293, 303, 305, 306, 307, 309 origem social, 61 pandemia, 43, 263, 307
Raça, 150, 265, 266, 270, 271, 272, 280, 310, 311 racial, 166, 167, 260, 261, 262, 263, 266, 267, 271, 272, 277, 278, 280, 281, 288, 290, 301, 304, 305, 307, 308, 309, 310, 311
Pesquisa, 14, 31, 102, 103, 110, 113, 144, 145, 146, 198, 211, 213, 255, 309
racismo, 13, 87, 259, 261, 262, 263, 268, 271, 273, 274, 275, 277, 278, 280, 282, 283, 284, 285, 286, 289, 291, 292, 294, 296, 297, 298, 299, 303, 304, 305
Pink Money, 293, 305
reforma, 35, 39
pobre, 33, 40, 50, 131, 312
relações sociais, 12, 18, 19, 21, 22, 24, 27, 125, 160, 180, 225, 235, 246, 257, 272, 281, 298, 306
periferia, 131, 132, 133, 211
pobreza, 31, 38, 109, 268, 281, 298, 299, 303, 311 poder, 21, 29, 35, 44, 53, 55, 58, 70, 71, 74, 76, 84, 88, 89, 92, 93, 96, 98, 104, 107, 108, 113, 120, 130, 139, 154, 164, 165, 184, 185, 186, 187, 193, 207, 215, 219, 220, 230, 235, 245, 246, 248, 250, 253, 255, 268, 269, 289, 290, 291, 298 Pollak, 81, 84, 112, 242, 257 popular, 11, 29, 34, 40, 50, 53, 54, 56, 57, 74, 76, 77, 86, 87, 90, 91, 94, 97, 98, 101, 104, 107, 134 práticas, 9, 10, 11, 19, 26, 27, 28, 29, 31, 67, 71, 75, 77, 78, 80, 81, 83, 84, 85, 86, 91, 92, 93, 95, 96, 99, 104, 105, 107, 108, 109, 110, 111, 120, 154, 157, 162, 164, 166, 168, 169, 173, 174, 179, 184, 185, 188, 189, 193, 194, 198, 211, 217, 218, 219, 223, 229, 240, 247, 248, 256, 264, 269, 296, 300 produção de conhecimento, 18 Quijano, 88, 113
resistência, 11, 76, 85, 96, 97, 98, 112, 114, 116, 118, 120, 122, 127, 129, 130, 131, 133, 134, 135, 136, 137, 138, 139, 140, 141, 142, 143, 144, 146, 157, 164, 172, 220, 221, 243, 244, 245, 247, 249, 250, 253, 254, 256, 274, 303, 307, 312 Revolução, 70 saberes populares, 11, 29, 75, 77, 78, 84, 86, 88, 90, 100, 101, 104, 105, 106, 107, 168, 169, 173, 230, 231, 235, 281 Sartre, 244, 257 sexismo, 235 situação de rua, 12, 157, 171, 172, 175, 176, 177, 178, 179, 183, 184, 185, 186, 188, 189, 191, 192, 193, 195, 196, 197, 199, 200, 202, 203, 204, 205, 206, 207, 208, 209, 210, 211 sobrevivência, 13, 20, 25, 26, 85, 101, 104, 105, 171, 190 sociedade, 9, 10, 11, 18, 21, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 32, 33, 34, 35, 36, 37, 38,
Índice remissivo
39, 40, 46, 53, 55, 56, 57, 59, 70, 74, 79, 83, 91, 99, 107, 109, 116, 122, 126, 127, 133, 145, 160, 161, 162, 164, 167, 168, 169, 180, 186, 187, 188, 190, 193, 197, 198, 203, 205, 223, 226, 228, 242, 243, 244, 248, 250, 252, 253, 258, 261, 270, 271, 277, 279, 280, 283, 288, 293, 294, 296, 297, 299, 300, 301, 305, 312 tecnologias, 12, 54, 150, 154, 158, 160, 162, 164, 252 teoria, 9, 31, 32, 59, 63, 71, 123, 163, 164, 167, 187, 191, 223, 301 Território, 166 trabalho, 21, 27, 28, 30, 32, 35, 36, 37, 47, 52, 53, 55, 56, 60, 61, 66, 67, 69, 75, 76, 79, 81, 82, 84, 87, 88, 94, 95, 98, 100, 104, 115, 117, 119, 120, 123, 124, 125, 126, 127, 128, 130, 134, 135, 137, 138, 139, 140, 141, 144, 145, 146, 151, 153, 154, 155, 157, 166, 167, 171,
• 319
174, 177, 179, 187, 191, 197, 198, 199, 201, 202, 206, 207, 208, 211, 216, 224, 227, 233, 238, 247, 248, 249, 250, 254, 256, 257, 263, 267, 273, 274, 276, 279, 280, 282, 286, 288, 291, 294, 295, 296, 297, 301, 302, 305, 307 tradição, 10, 90, 162 tradições, 10, 13, 36, 285 universidade, 12, 50, 151, 153, 154, 155, 163, 164, 166, 168, 169, 170 urbano, 24, 114, 115, 117, 122, 130, 145, 156, 158, 165, 174, 180, 182, 190, 210, 212, 216, 217, 236 Van Dijk, 220, 257 vida social organizada, 12, 26, 150, 154, 158, 162, 164, 171, 172, 183 vivência, 188, 236, 239, 250, 293
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