197 89 175MB
Portuguese Pages 726 Year 1992
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Apoio Cultural,
comm COMPANHIA BRASILEIRA DE METALURGIA E MINERACÃO
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(Rmsituto doa JOcteo de
GIULIO CARLO ARGAN
ARTE MODERNA Do Iluminismo aos movimentos contemporâneos Tradução DENISE BOTTMANN e FEDERICO CAROTTI Prefácio RODRIGO
NAVES
Projeto gráfico M.A S
St edição 1º reampressao
FLUP - BIBLIOTECA
Fundo Geral
EA
744515
du Pulo JOudionsy
Copyright & RCS 1988 by Sanson Editore SpA, Firenze
Titulo onginal Lurte moderna Dall Huminismo ar mowmenti contemporanei Capa e projeto gráfico MAS. (Marisa Moreira Salles, Letícia Dias de Mouret
e Suzi Sulon) sobre 4 dança, de H Mausse, 1910, Museu Ermitage, São Petersburgo Indicação ediorial e seleção das ilustrações
Rodrigo Naves Preparação Marcia Copola Revisão:
Ana Maru Barbosa Marcos Lutz Fernandes
Dadas Internacionais de Catalogação na Publicação ter) (Câmara Brasileira do Livio se Brasil)
Argais, Giulto Carto, 1909 1992 Ame ninderna * Giulio Carlo Arpan tradução Denise Boitmanr e Federico Caso — São Paulo. Companhia das Letras 1952.
Isto 85 7164 25745 E Are modema — História | Titulo CDD-"U5 (5
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Indice para catuogo Sistemáuco: História 70902 1 Ane modema
2
todos os direitos desta exição reservados 4
LOETORA SCHWARCZ VTDA Rua Bandeira Paulista 702,0, 32 04532-002 — São Paulo — sp
Telefone (LI) 2707 3500 Fax (11) 3707-3501 www companhiadasletras com br
ÍNDICE
Prefácio — Rodrigo Naves
Capítulo 1. Clássico e Romântico
1
Pitoresco e Sublime
17 21 28
O Neoclassicismo Histórico O Romantismo Histórico * William Blake - Newton Johann Heinrich Fussli - O pesedelo * Enenne-Louis Boullee - Projero para o cenosafio de Newton Claude-Nicolas Ledoux- Lara eos guardas campestres * John Constable - À represa e o moinho de Flaiford Wilbam Turner Mar em tempestade * krancisco Goya - Euzrtasmento * Jacques-Louis David - À morte de Marat * Antomo Canova - Monumento de Marsa Cristina da Áustria * Jcan-Auguste- Dominique Ingres A bantrista de Valpinçon Théodore Géricaul: - A jangada da Medusa * Eugêne Delacroix À Aberdade gura o povo * Lorenzo Barcobiy Meamemento Binebre da condessa Sofia Zamoyska
* François Rude - Retewa do Arco do Triunfo de Pares * Camille Coror- À cetedira! de Chrrtres Theodore Rousseau Temporal; vista da
planície de Montmartre * Honoré Daumier - Queres Barrabás * Constantin Guys - Pela rua Honoré Daunuer - O vação de terceira classe
e Lizançois Miller O Angelus Camille Pissarro - Vereda no bosque no verão
35 37 38 40 43 47 50 55 57 59 64 67 71
Capítulo 2. A Realidade e a Consciência
75
O A O O
75 78 82 82 84
Impressionismo Fotografia Neo-Impressionismo Simbolismo
A Arquitetura dos Engenheiros * Gustave Courber-
Moças a margem do Sena (verão)
ster | here * Edouard Manet - Le déjeuner = Alfred Sisley - ha da Grande Jarte Claude Moner Regatas em Argenteitl, à caredral de Rouen * Auguste Renoir Le moselr de la Galette
92 94
98 102
* Edgar Degas ['absmihe * Paul Cézanne - O asmo é as ladrões, À casa de enforcado
em Avvers, fagadares de cartas, O monte Sunte-Victoire * Georges Seurar- Um domingo de verão na Grande Jatte Paul Signac - Entrada do porto de Marselha * Vincent Van Gogh - Retrato do carteiro Roulim * Henn de Toulouse-Lautrer - À sonleze * Paul Gauguin - Ze remar: no atira * Henr: Rousseau, dito lc Douanter A guerra
105 109
117 123 127 130 134
« Odilon Redon - Nasermento de Vénus
Gustave Moreau - A aparição * Pierre Bonnard - À roalete da manhã * Auguste Rodin - Monsenento à Balzac
Medardo Rossa - Impressão de mento duente dos fogões popaliares * Edouard Viuillard - Mãe emenmo James McNeill Wlusder Nosurmo em azul e dourado A velha porte de Batrorsea
138 142
145 149
Capítulo 3. O Século xix na Itália, Alemanha e Inglaterra A Irália
155
* Giovanni Fartorr - Desentinela
166
A Alemanha A Inglaterra
168 175
Capítulo 4. O Modernismo
185
Urbanismo e Arquitetura Modernista
185 199 208 215
Art Nouveau
À Pintura do Modernismo Pont-Aven e Nabis * Antom Gaudi- Casa Miht em Barcelmia Adolf Loos - Casa Sremer em Viena
* Antony Gaudt - O parque Guell em Barcelona
Capítulo 5. A Arte como Expressão
227
O Expressionismo A Arre Gráfica do Expressionismo
227 251
* Andre Deram
Mulher de combenação
Ernst Ludwig Kirchner - Marcella * Edvard Munch - Puberdade
* Henri Marisse - À dança e amarelas * Emil Nolde Rosas vermelhas Oskar Kohoschla - Chamonix, monte Branco
253 256 259
259
Capítulo 6. A Época do Funcionalismo Urbamsmo, Arquitetura. Desenho Industrial Pintura e Escultura Der Blaue Reiter
263 301 316
À Vanguarda Russa
A Situação Italiana École de Paris Dada O Surrealismo
A Situação na Inglaterra A Struação Italiana: Metafísica,
324 330 340 353 360 368
Novecento, Antinovecento *LcCorbuster Vila Savoye em Porssy Capela de Nôrre-Dame-Du-FHant em Rochamp * Walter Gropius - A Bauhans em: Dessaw * Ludwig Mies Van Der Robe - Maguere de um arranha-céu em vrdro para Clucago, Seagram Buslelang em Noua York » Le Corbusier e Pierre Jeannerer, Walter Groprus, Berchold Liubeikin- Três praperos para o Pelácia dos Sowtetes * Theo Van Doesburg e Hans Arp- Cinema-restaserante L Aubenre em Estrashurgo !homas Gerrit Rietveld - Poltrona com elementos em negro, vermelho, azul * Pict Mondrian - Composição em vermelho, amarelo, azul * Alvar Aalto Sanatório em Paimio, Poltrona * Erant Lloyd Wright - Casa Kaufman em Bear Run * Pablo Picasso - Os saltimbancos; Les demosselies d Avignon * Pablo Picasso - Narureza-morta espanhola Georges Braque - Narureza-morta com o ds de paus
387 392
397
406 409 414 418 422
* Roberr Delaunay - Tour bifpel
426 431
*JuanGes Narereza-moria com frutesra e garrafa de agua Georges Braque - Naturveza-morra com bufê: café-bar * Marcel Duchamp Nu descendanr un escatter nº 2
434 438
* Umberco Bocciant
* * * *
Formas unicas na continuidade do espaço
Gracomo Balla Astomóvel correndo Vassili Kandinsky - Pronerra aquarela absrraia, Pontas no arco Paul Klee- Rea prencepal e ruas laterars Anton Pevsner - Comstrução dendinica Naum Gabo- Construção no espaço O evestal Composaão com três figuras Pernand Léger Joan Miró - A auta de esqua, Mulheres e pássaro «o luar
* Giuseppe Terragni - Projeto do asilo Sans Elva em Como Atanasio Soldar - Compossção * Constanun Brancusi - A Marastra
* Amedeo Modighany - Retrato de Leopolel Zberawstr Georges Rouault - Cristo escarnecido Marc Chagall - 4 da Rissste, aux ânes es aux entres Pablo Picasso - Girernica René Magrte- À condição humana! Man Ray - Moro perpéruo * Henry Moore - Figura demtada Alexander Caldes - Mobile * * * *
44] 445 447
452 458 459 463 466 469 471 475 480
484
* Ben Nicholson - Feb 2853 (verncal seconds)
Francis Bacon Estudo nº 1 do rerrato de Inocêncio X de Velázquez * Diego Rivera A execução do imperador Maximiltano David Alfaro Siqueiros - Morre ao invasor * Giorgio de Chirico Às puresas rqurctantes Carlo Carra - 4 amante do engenhesro * Alberto Savino - Ná flores Osvaldo Licini - Amlastena sobre fundo verde * Giorgio Morandi- Natureza-moria com frutesra
488 491 496 500 504
Capítulo 7. A Crise da Arte
como “Ciência Européia” Urbanismo e Arquitetura À Pesquisa Visual A Pintura nos Estados Unidos * Morris Louis - Gama delta * Elisworth Kelly- Verde, azul, vermelha
Cultura Européia e Cultura Americana O Debate Artístico na Europa Novas Orientações de Pesquisa Urbanismo Utopia da Realidade e Arquitetura Fantástica Macroestruturas
Arquitetura de hoje Desenho Industrial na Trála
598 600 601 610
* Laszió Mohaly Nagy - Composição Q XX Julius Bissier - 25 de setembro 1963
* Josef Albers Study ro sold Arshile Gorky Jardim em Sachs “Jean Faurrier Ny Jean Dubutfer - £ smtertoquê * André Masson - Les chevaliers Hans Hartung- Compesição * Jackson Pollock Trilhas ondutadeas Mark Rothko - Vermelho e azu! sobre vermelho * Alberro Burr - Saco B Antoni Tapies - Hlorszonrars em negro * Giuseppe Capogrossi- Superferel 24 Lucio Fontana - Concerto espactal espera * Alberro Giacomermu - Frexra Ertore Colla - Oficina solar * Mark Tobey - Circus mransfigured Georges Mathieu - Cast * Victor Vasarely Compasição Kenneth Noland Empíreo *ClyMord Sull 7962-D Emilio Vedova - Múlriplo Nº 1 as mãos em vma * Robert Rauschenberg Person Mimmo Rotelia Merstym
612 615 617 620 622 625 630 633 635 638 639 642
* Roy Lichienstein - O vemplo de Apolo
Andy Warhol
Marilyn Manroe
646
Os Artistas do Século xx — Lara-Vinca Masini
651
Crédito das Ilustrações
691
Índice de Artistas, Movimentos, Obras ce Termos
693
PREFÁCIO Rodrigo Naves
Micos livros trazem sua costura à mostra, revelando entre os pontos uma matéria que a duras penas se acomoda ao formato dado. O) esforço para coordenar diferentes idéias e objetos se insinua a todo momento, o que frequentemente é sinal da pouca delicadeza com
que é conduzido o trabalho intelectual. Certamente o que ocorre com a Arte moderna é algo bem diverso. Publicado na Itália em 1970, quando seu autor já contava 61 anos — Giulio Carlo Argan nasceu em Turim, em 1909 —., ele é escrito numa prosa cadenciada e discreta que por vezes faz esquecer o empenho necessário para se alcançar tal clareza. De pronto nos vemos levados pelo ritmo proposto pelo autor, uma espécie de marcha batida em que a proximidade de obras e artistas — ou seja, o respeito pelo objeto de análise — se une admiravelmente a desdobramentos da maior relevância, que dão às artes visuais um estatuto poucas vezes alcançado.
Mas esse trabalho de maturidade, antecedido por vários estudos sobre questões semelhantes, afasta de saída uma abordagem da arte moderna em que a intimidade prolongada com o tema conduzisse a concarenações excessivamente dóceis. E tampouco recai no erro oposto, fregiente nos iniciantes: certo encanto por descobertas recentes e uma
afetação que insiste em identificar sensibilidade a manifestações absolutamente singulares. Esse homem que, em decorrência da profissão do pai, teve de passar boa parte da infância num manicômio feminino — “um dia”, recorda Argan, “vi uma mulher que havia ateado fogo às vestes, uma mulher em chamas” — e que identifica aí a origem de sua “necessidade de racionalismo”, não poderia de fato entregar-se a transbordamentos. Depois de concluídos os estudos universitários em Turim, sob a orientação de Lionello Venturi (1885-1961), um dos mais importantes historiadores da arte da Itália, em 1933
Argan entra para a administração estatal do patrimônio artístico (Direzione Generale delle Belle Arti), onde permanece até 1955, quando é chamado a lecionar arte moderna, primerramente na Universidade de Palermo e depois na Universidade de Roma. Esse
contato permanente com a produção artística — tanto pelo trabalho no patrimônio, quanto na atividade docente, bem como pela relação estreita com vários artistas — marca (1) Ver, entre outros, Henry Moore (1948), Walter Gropaes e la Barba (1951), La seultura dr Picasso (1953), Stud e note (1955), Brentes (1957), Salvezza e caduta nel" avre moderna (1964), Progetto e destino (1965) (2) As informações brográficas utilizadas aqua foram obridas principalmente em Luzervista sulla fabbreca dell” arte (a cura di Tommaso Trni), Basi, Laterza, 1980. na “Nora sobre o Autor”, de Bruno Contard:, em Occastons dr crirca,
Roma, Editor: Riunimi, 1981, c na entrevista concedida por Gruho Carlo Argan a Lea Vergine, publicada na revista Vogue (edição italiana), nº 433, 1986. Para uma análise mais detalhada da formação mtelectual de Argan e de suas idéias, ver Z7 penstero entrco de Crrulio Carlo Argar, vários autores, Roma, Mulngrafica Edirrice, 1985, que traz estudos de importantes historiadores c críticos de arte.
XIT
preFÁCIO
profundamente sua compreensão da arte, e mesmo seu texto. O amor de Argan por seu objeto de estudo não é coisa frequente nos nossos dias. E se é severo na crítica a várias
tendências contemporâneas, dificilmente sc deixaria de perceber nela mais a tristeza por uma atividade que, certo ou errado, vê à beira da extinção, do que uma rabugice de velho. Sua afeição pela arte moderna — e aqui, é claro, se inclui a arquitetura, objeto de vários
estudos de Argan e que tem um papel central neste livro — se revela condição indispensável para a compreensão do modo de abordagem que elaborou pacientemente ao longo de sua
vida. Foi ela que o conduziu a encontrar procedimentos que, propiciando interpretações
extremamente dignificantes do fazer artístico, jamais o levaram a uma teorização descolada dos trabalhos de arte, quando o enlevo de deduções e sistemas dá às coisas uma uniformidade empobrecedora. Em sua prosa clara, de quem sempre se recusou a “acreditar que a cultura tenha diversos níveis, alguns acessíveis, outros vetados à maioria”)
não há
sobreposição de teorias que, à última hora, tentam dar um arremate grandioso a um percurso chão. E é por essas razões que o leitor deve considerar a ordenação da Arte moderna — uma introdução geral sobre um período arrístico c histórico, seguida da
interpretação de obras — apenas como uma exigência editorial, que em nada contraria a crença arganiana de que a ponte entre a esfera “separada” da arte e a esfera social “se constrói partindo da esfera artística em direção à social (e não inversamente)”.º
Contudo, nesse texto compassado surgem com frequência passagens bruscas, momentos
em que a descrição acurada dos trabalhos sistematicamente conduz a significados mais amplos. À aparência sensível das obras comentadas, elevadaa um máximo de intensidade por
um olhar extremamente perspicaz, se mostra então detentora de múltiplos sentidos. A análise detida dos trabalhos não se satisfaz com um solilóquio formalista em que os objetos aceitam
uma identidade mirrada, tampouco faz as vezes de ventríloquo, colocando as obras como simples manifestação de conteúdos dados a priors. Creio que alguns exemplos tornarão essa
questão mais clara. Falando de Van Gogh (1853-90), Argan afirma que em suas telas “a
técnica da pintura também deve mudar, opor-se à técnica mecânica da indústria como um Jazer gerado pelas forças profundas do ser: o fazer ético do homem contra o fizer mecânico da máquina”. * Nos quadros de Mondrian (1872-1944), a seu ver “o artista não tem o direito de influenciar o próximo emotivae sentimentalmente; se chega a descobrir uma verdade, tem o dever de demonstrar como chegou a isso; se pode demonstrá-lo, tem o dever de levar essa verdade ao conhecimento de todos, de fazer com que possa ser usada na vida civil da comunidade”.º Já nas obras de Jackson Pollock (1912-56) procura mostrar que sua técnica “deve muito ao automatismo surrealista, à vitalidade intrínseca e autônoma que Gorky
concedera ao signo. Mas não é apenas o estrato subterrâneo do inconsciente que é envolvido no ritmo da ação, é toda a existência física e psíquica do artista””
É justamente nesse movimento que conduz das obras analisadas a questões éticas, prático-cognoscitivas e existenciais — isto é, a questões histórico-sociais — que está a
grandeza e boa parte do interesse dos estudos de Argan. E, precisamente por serem
realizadas de forma um tanto abtupra, essas passagens não surgem como simples expressão
de um conteúdo espiritual anterior às obras, a se parricularizar em momentos sensíveis. Ao (3) Grulio Carlo Argan, Brienelleschs, Milano, Mondadon, 1978, p 7. (4) Gulho Carla Atgan, “La entica V'arte”, em Avre e crsrica d'arre, Bart, Laterza, 1984, p 132. (5) Grulio Carlo Argan, 7. arte moderna. Firenze, Sansoni. 1980, p 157 (6) Idem, p 496
(7) Idem, p 718
PREFACIO
XII
contrário, essas passagens revelam o esforço de significação contido nesses objetos, a
tentativa de estabelecer uma relação específica e diferenciada — donde uma certa descontinuidade — com o conjunto das atividades humanas. Mas, então, como ir das cores
massudas de Van Gogh a um fazer ético, da formalização clara e decidida de Mondrtan a um conhecimento civil, da ação de Pollock a um conflito existencial? É nessa questão central —
o problema das passagens — que me dererci mais cuidadosamente.
Já nos textos de Adolfo Venturi (1856-1941), pai do mestre de Argan e titular da
primeira cátedra de história da arte da Itália, é clara a preocupação em torno de interpretações
que fossem além dos estudos mais ou menos positivistas dos grandes conoscrtori italianos, Giovanni Morelli (1816-91) e Giovan Battista Cavalcaselle (1819-97). Quando afirma, acerca da pintura de Leonardo da Vinci (1452-1519), que “através daqueles sinais [sons
frágeis das coisas, murmúrios do dia que se vai, encantos das penumbras amenas] surge a
grandeza do mestre, que parecia querer surpreender, com o pincel, o movimento dos seres,
sondar a profundidade da alma das coisas”,* é impossível não reconhecer um tom que irá, ressoar cada vez com mais clareza no pensamento italiano ligado às artes. Basta reparar na análise que seu filho, Linello Venturi, fará do sfimato de Leonardo, para se ter uma idéia desse desdobramento: “Básico para o esulo de Leonardo era seu sfimato, aquela fusão entre forma e cor-luz que tornou possível banhar a imagem numa atmosfera “vaporosa' e dar corpo
a uma concepção de mundo na qual o homem não era, como no século xv, um protagonista, mas um elemento do universo, como a terra e o céu”. É essa linha de investigação que Giulio
Carlo Argan soube levar a um grau de perfeição invejável, e que se pode apreciar, por
exemplo, na conclusão de sua análise sobre a Groconda. “É inútil interrogar o famoso sorriso da senhora para sabe: quais sentimentos traz na alma: nenhum em particular, mas o sentimento difuso do próprio ser, ser plenamente c em uma condição de perfeito equilíbrio no mundo natural”.'º Obviamente essas rápidas citações — que se referem a Leonardo da Vinci apenas para
melhor ressaltar a continuidade das abordagens — não têma pretensão de ser a reconstituição
de um percurso, por certo muito mais acidentado do que o parentesco das frases pode sugerir.
Mas servem para identificar aquele esforço para se chegar a uma história moderna da arte — mesmo
quando se tratava de estudar a tradição renascentista —
que caracterizou os
historiadores a que Argan se filia, e que se traduziu nessa insistência em reconhecer na arte uma autonomia que a livrou da subordinação às instâncias de poder e significação, com o que as obras ganharam uma envergadura intelectual nova, sem perder em singularidade. Mas a conquista de um espaço moderno para a arte não podia prescindir da
compreensão e da assimilação dos próprios movimentos artísticos que o criaram. O radicalismo futurista, “cuja tarefa histórica será justamente a de preencher a lacuna romântica e de inserir a arte moderna italiana numa situação cultural européia”," não chega
a obter (nem poderia) uma renovação de todas as esferas artísticas da Itália. E Lionello
Ventun se põe a elaborar uma interpretação aguçada dos impressionistas, ao mesmo tempo (8) Adolfo Venturi, Leonardo e la sua senola, Novara, Istituto Geografico de Agosuni, 1942, p xxvir. (9) Lionello Venturi, Kenasssanco pamting (from Leonardo to Dyrer). New York, Razzoli, 979, p 22 (10) Guho Carlo Argan, Storia dellarte imabana, Ewrençe, Sanson, 1981, vol 0, p 22. (11) Giuho Carlo Argan, L arte moderna, p. 189.
XIV
preFaCIO
em que procura incorporar elementos analíticos das várias correntes da teoria da visibilidade pura — Fiedler (1841-95), Hildebrand (1847-1921), Wolfflin (1864-1945), e em parte Riegl (1858-1905) —, que sirvam de contrapeso à influência crociana predominante na
Itália e dêem conta dos novos movimentos artísticos. Além disso, formula uma teoria do gosto — que poderíamos definir sumariamente como uma “cultura especificamente artística” —,”
também
de grande importância para Argan, já que proporcionava o
relacionamento dos trabalhos de arte às diversas discussões que, de uma forma ou de outra, envolviam problemas estéticos. O relativo atraso cultural da Itália ofereceu algumas vantagens à geração de Argan Se por um lado eles tiveram que se bater, por exemplo, pelo reconhecimento dos cubistas, que,
trinta anos após seu surgimento, ainda eram tachados na Itália de charlatães, por outro foram levados a uma posição de receptividade cultural difícil de imaginar em outras circunstâncias. Distante dos principais pólos de produção arrística, Argan soube se beneficiar de sua situação. O esforço para compreender as mais avançadas correntes modernas afastava de seu horizonte a possibilidade de uma aceitação imediata, em que as coisas adquirissem um sentido inquestionável. E suas discussões com Lionello Venturi em torno de Mondrian — que Venturi demorou a reconhecer — são prova suficiente da dificuldade de incorporar uma produção que se diferenciava totalmente da tradição em que
se formaram: “A minha geração” — diz Argan — “precisou violentar o seu Rafael para entender os cubistas. Lionello Venturi precisou violentar o seu Giorgione para entender os impressionistas”.* No entanto, foi justamente essa dificuldade que em grande parte
propiciou uma compreensão complexa e generosa da arte moderna, na medida em que exigia o estabelecimento de toda uma série de relações, para que essas obras se livrassem da pecha de arbítrio e conquistassem uma inserção crítica pertinente. Coisa semelhante
ocorreu com
as diferentes posições
teóricas sobre a arte, e sua
recepção da iconologia ajuda a ver isso com mais clareza. Argan afirma que, depois de Venturi, Erwin Panofslky (1892-1968) foi sua maior influência entre os teóricos ligados
diretamente às artes visuais. Seu contato com
Panofsky começou cedo e de maneira
inusitada. Argan ainda cursava o terceiro ano de história da arre, quando um trabalho de escola de sua autoria sobre Palladio é publicado na revista Arte, dirigida por Venturi. Um mês após a publicação, batem à sua porta. Um estranho, num italiano carregado, lhe pergunta pelo autor do ensaio sobre Palladio, certo de que se tratava do pai do rapaz de 21
anos que lhe atendera. Depois do susto, o estrangeiro se apresenta — era Erwin Panofsky. Tornam-se amigos e voltam a se encontrar depois da 11 Guerra, quando Argan é convidado para um período de estudos em Londres, no Instituto Warburg, o principal centro de estudos iconológicos.
Embora um emprego canônico da iconologia para fins de interpretação da arte moderna fosse praticamente impensável — em virtude da irrelevância dos temas para a grande maioria das obras de arte moderna, da pouca importância dos contextos eruditos na dererminação do significado dos trabalhos e da própria mudança do papel da tradição, sem
falar das várias vertentes abstratas —, Argan soube encontrar uma aplicação enriquecedora desse método, tanto nos estudos clássicos quanto nos que abordavam a produção mais recente. Em sua interpretação, que até certo ponto combina Wolfflin a Panofsky, “os
(12) Gruho Carlo Argan, Arre e cririca diarre, p. 153
(13) Imervista sulla fabbrica deifarte, p 82
PREFÁCIO
XV
sistemas das formas [...] são também, a seu modo, iconologias, e portanto o método
iconológico é generalizável, como aquele que, aplicado à arte moderna, permitiria historicizar igualmente, sem contrapô-las, as mitografias de Picasso e as geometrias de
Mondrian”.'í Em busca de um procedimento que unisse rigor formal ao estabelecimento dos mais amplos
nexos,
Argan
realmente
haveria de encontrar
em
Panofsky
o mérito
de “ter
compreendido que, malgrado a aparência confusa, o mundo das imagens é um mundo ordenado e que é possível fazer a história da arte como história das imagens”. No entanto,
com fregiiência Argan se vê forçado a insistir nos traços específicos das artes visuais, preservando-as do envolvimento excessivamente culturalizante da iconologia: “Da pesquisa
de uma metodologia específica da historiografia artística, que, partindo da escola vienense
do século passado, se desenvolveu até Panofsky e outros, apareceu sempre mais claramente
como a história da arte é também história da cultura, mas de uma cultura sui generis, estruturada e intencionada pelo empenho operativo de um trabalho a realizar, e a realizar de modo a que tivesse valor de exemplaridade”.'* A possibilidade de tomar os próprios processos formais como expressão e significado, e
de estabelecer uma história das imagens vinculada ao conjunto das demais atividades
culturais, sem dúvida fascinava por sua amplitude. Os trabalhos de arte extravasavam
definitivamente a esfera do belo e adquiriam uma dimensão intelectual efetiva. Há no entanto extravasamentos que fazem perder de vista as margens que demarcavam o velho
leito, e que conduzem mais a indiferenciações do que a verdadeiros desdobramentos. Para a
iconologia, o problema da passagem — ainda que tenha obtido várias formulações — tendia a se resolver de maneira a rebaixar as determinações próprias do objeto de arté, em proveito de um poderoso espírito de época. Em 1915, ao polemizar com Wólfflin em torno do problema do estilo, Panofsky — apoiado num conceito próximo ao de Kunstwollen (querer artístico” ou “vontade de arte”), de Riegl — afirmará: “A exigência expressiva individual, que conduz o artista a uma definição própria da forma e a uma expressão ou a uma determinação pessoal do objeto, se manifesta, sim, em formas gerais, mas mesmo essas últimas, não menos que as primeiras, devam de uma exigência expressiva, de uma vontade de forma que de certo modo é imanente a toda uma época e que se funda numa atitude fundamental idêntica do espírito, não do olho”.” Essa solução de imediato ia contra o “valor de exemplaridade” — examinaremos essa questão mais deridamente adiante — que, para Argan, é um traço fundamental dos trabalhos de arte. E scr exemplar significava a capacidade de chegar a formalizações que servissem de modelo para as demais atividades. Ora, sendo assim tornava-se impossível
concordar com uma concepção que compreendia a obra de arte como derivação “de uma
exigência expressiva, de uma vontade de forma que de certo modo é imanente a toda uma
época”, Se a indeterminação de um tão genérico espírito impede que falemos numa forma anterior que se expressaria em obras particulares, por outro lado o texto de Panofsky nos (14) Grulio Carlo Argan, “Studi di iconologia”, en Occasionr de crstica, p 70 (15) Giulio Carlo Argan, “La storia delVarre”, em Storia delharte come storsa della csttã, Roma, Editor Rauniti,
1983, p 59
(16) Idem, pp
756
O grifo é meu
(17) Erwim Panofsky, “Il problema dello stile nelle arq figurative”, em Lz prospettrwu come “forma simbolna”e atirt
seritti, Milano, Feltrinelli, p 149. Cf. também a citação que Panofsky faz de Cassiter, ao dizer que a perspectiva é uma forma simbolica atraves da qual “um conteúdo espintual particular se une a um signo sensível concreto e é inumamente identificado a ele” — em “La prospettiva come “forma simbolica”, op cit, p. 47 Sobre essa questão, ver “De A
Warburga E. H. Gombrich Notas sobre um problema de método”, de Carlo Ginzburg, em Mitos, emblemas, sinais, São Paulo, Companhia das 1 eras, 1989
XVI
PREFACIO
lembra que tudo “se funda numa atitude fundamental idêntica do espírito”, com o que todas as particularizações tendem a ser a imagem esmaecida daquilo que é idêntico a si mesmo, movimento que recoloca a velha inferioridade do sensível em relação aos esplendores do
espírito e arrasta consigo a possibilidade de formas artísticas exemplares. Não é à toa que Panofsky irá contrapor olho e espírito, dando segiiência a uma polêmica que obtivera
desdobramentos também na Itália, nos ataques que o espiritualismo de Croce (1866-1952) fará em relação à mesma teoria da visibilidade pura: “O conceito de “visibilidade e o de “olho
produtor" se revelam, a quem os observe bem, como nada mais que metáforas e símbolos, ricos de eficácia polêmica enquanto negam que a arte se resolva na consciência conceitual, na imitação da natureza ou na emotividade sentimental, mas pobres de determinações
positivas no que diz respeito à arte, e totalmente falsos, se depois metáforas e símbolos se tazem passar por definições filosóficas [...]. Não lhe basta [à arte] o olho, porque a arte não é sentido, mas conhecimento e atividade espiritual”.'* Mas havia um outro problema, em estreita relação com o anterior, que afastava Argan
de Panofsky. Para Argan, “a crítica iconológica (que representa um claro progresso em relação à crítica formalista) falha neste ponto
[na necessidade de se considerar absolu-
tamente tudo aquilo que se vê em uma obra). É fácil reconstruir o significado simbólico, mas existem muitas coisas para as quais não se pode encontrar um significado simbólico
(por exemplo, os seixos no pé da cruz): evidentemente essas coisas são portadoras de um significado que nos escapa, mas que todavia é um significado” Catalisando conteúdos
preexistentes, ou melhor, buscando a “compreensão da maneira pela qual, sob diferentes condições históricas, tendências essenciais da mente humana foram expressas por temas e conceitos especificos”,” a iconologia precisava obter um encadeamento de significados razoavelmente reconhecíveis, de modo a poder controlar e cotejar as diferentes mamfes-
tações do espírito, donde a ênfase necessária nos significados simbólicos. Ora, para Argan, ao considerar o faro figurativo “devemos levar em conta somente aquilo que vemos, e tudo
aquilo que vemos Portanto, os aspectos particulares, mas também os modos de figuração; uma pincelada pode ser tanto ou mass significativa que a descrição precisa de um objeto”.
Com isso, a distância entre os dois estudiosos se amplia consideravelmente. Segundo Argan, “devemos nos acercar da obra de um ponto de vista rigorosamente fenomenológico. Em um fenômeno todos os fatos parriculares que o constituem têm um
significado: não abordagem que determinação de fenomenologia.
se pode acrescentar ou se detenha na aparência significados abrangentes Contudo, antes de nos
desprezar nenhum”.? Essa exigência de uma dos trabalhos e propicie, ao mesmo tempo, a de fato faz o método de Argan se inclinar para a adiantarmos e perguntarmos o que significa,
precisamente, fenomenologia para Argan, convém percorrer brevemente o próprio caminho
trilhado pelo nosso autor. O contato de Argan com o pensamento fenomenológico se deu primeiramente pelo estudo dos principais representantes da teoria da visibilidade pura, sobrerudo Fiedler, (18) Benedetto Croce, “La teona dell'arte come pura visibilita”, em Nxovr sagas dz estetica, Bari, Laterza, 1920, pp 246-7. (19) Gruho Carlo Argan, “Il primo Rinascimento”, em Classtco, Antrclassico— | Rinascrmento da Brunelleschi a
Bruegel. Milano, Feltrinell, 1984. pp 2-3 Os grifos são de Argan. 20) Erwin Panotsky, “Iconografia e iconologia uma introdução ao estudo da arte da Renascença”, em Significado nas avres visnars, São Paulo, Perspectiva, p. 65. Os grifos são de Panafsky. (21) Giulio Carlo Argan. “Tl primo Rinascimento”, p. 1 O grifo é de Argan (22) Idem, ibidem.
ERELACIO
XVII
Woôlfflin e Riegl. Foi por essa via que Argan chegou aos textos de Edmund Husserl (1859-
1938), o que por certo cra uma vantagem, pois facilitava de imediato uma abordagem das artes visuais, sem os rodeios teóricos comuns nesses casos. Já em 1876 Conrad Fiedler considerava que “a obra de arte não é uma expressão para algo que teria existência também sem essa expressão”. Sendo assim, todos os aspectos de um objeto artístico ganhavam
significação — dado que “na obra de arte a atividade doadora de forma encontra seu termo exterior, o conteúdo da obra de arte não é mais que o próprio processo de formalização”.” Para que esse movimento se cumprisse era preciso supor que “a atividade artística não é nem imitação servil nem sensação arbitrária, mas conformação livre”.” Portanto, “para o artista o mundo é somente fenômeno”,“ independente de qualquer travo substancialista que impedisse o desenvolvimento de uma percepção ativa e formalizadora. De nada adiantava
recorrer a entidades primeiras que encontrariam expressão sensível nos trabalhos de arte. Afinal, “no que pode ser útil à forma que surge por e para o olho a afirmação de uma forma que não pode se apresentar à nossa consciência perceptiva e representante como uma forma visível?”
Argan soube incorporar com extrema pertinência várias das teses da teoria da vísibilidade pura, cuja grande importância Lionello Venturi já havia percebido. É o que fica claro
quando Argan fala da eliminação, pela arte moderna, “do antigo preconceito de que o dado sensório seja impreciso e ilusório, se não de todo falaz, e que adquira um valor de conhecimento somente depois que o entendimento o tenha submetido a um processo de crítica e ajustamento”.* À esse movimento, todavia, procurou unir a tentativa de Wolfflin de
formular uma história geral do modo de ver e da representação, em que os diferentes processos de formalização se organizavam em constantes mais amplas, de alguma maneira — nunca muito bem explicitada por Wólfflin — vinculadas a períodos históricos e a
estruturas sociais, com o que também as formulações mais historicistas de Alois Riegl — que se afastam bastante da teoria da visibilidade pura — adquiriam uma importância renovada. No entanto é interessante Írisar que os elementos da teoria da visibilidade pura que
Argan pôde aproveitar produtivamente, bem como os aspectos mais fenomenológicos da iconologia — sobretudo a compreensão do caráter expressivo das formas e da possibilidade de uma história das imagens —, não conduziram a uma incorporação mecânica do pensamento de Husserl, na qual os objetos de arte aparecessem como mero duplo dos atos de consciência, ou então como uma obscura região de intersecção entre objetividade e subjerividade. Por vezes, alguns trabalhos de arte possibilitavam uma inte pretação fenomenológica mais canônica. Do neo-impressionismo de Seurar de fato não era temerário afirmar que buscava “apreender a forma ou a estrutura da consciência no interior do
fenômeno, dado que não se pode pensar a consciência em abstrato, mas semente no ato de apreender e enquadrar o fenômeno”.» ag Contudo, a preocupação de Argan não estava voltada (23) Conrad Fiedler, “Uber die Beurteilung von Werken der bildenden Kunsr', em Sebryfica uber Kas, Koln, Dumont, 1977 p 59 (24) Idem, p 60 (25) Idem, p 53
(26) Idem, p 51 (27) Conrad Fredler, “Der Ursprung der kunstlerischen Taugketr”, em Sebriftem uber Kuvst, p 169. (28) Giulia Carlo Argan, ' 1 colore e la rappresentazione dello spazio”, em Salvezza e cansa nell arte moderna, Milano, || Saggiatore, 1977. p 73 (29) Giulio Carlo Argan, “Le font: dell'arre moderna”. em Sa/vezza e caduta neilºete moderna, p 18
XVII
pregácIO
para uma simples confirmação das teses husserlanas no campo artístico. Significaria frustrar sua própria trajetória. Para ele a questão estava em armar uma trama conceitual que
desse conta da especificidade do fazer artístico, sem no entanto isolá-lo das demais atividades. E com isso Argan obteve verdadeiramente um desenvolvimento da fenome-
nologia, e não apenas a comprovação de seus postulados. Em primeiro lugar, tratava-se de afirmar a arte como um fazer, em oposição à estética de
Croce, que a considerava como intuição e expressão, como modo do espírito. E também aí é possível reconhecer a influência de Fredler, para quem a arte não era um saber que se expressava por meio de um poder-fazer, e sim um saber que “ascende ao grau de um poderfazer”* Essa dignificação do fazer procurava alcançar uma noção de arte que fosse além das concepções que a vêem apenas como cristalização de idéras ou projetos, sem a necessidade de enfrentar os problemas de sua própria materialidade e, o que é pior, prescindindo de uma percepção ativa, rebaixada então à condição de intermediária entre ideação e realização. Para
Argan, “as técnicas artísticas são também técnicas de ideação” — * o que confere ao fazer artístico uma autonomia da maior relevância. Na medida em que esse fazer deixa de ser um
simples executor cativo, tornou-se possível afirmar que “o processo estrutural é necessa-
riamente o do fazer, ou seja, a segiiência de operações mentais e manuais com que um
conjunto de experiências culturais de diferente importância e extração se condensa e
compendia na unidade de um objeto para se dar simultaneamente, como um todo, à percepção”. O fazer portanto é bem mais que a consecução de uma tarefa: ele requer uma
dimensão reflexiva que permita o estabelecimento de relações precisas, dignas do nome
“estrutura”, o que equivale a dizer que as obras de arte realizam uma fenomenologia de outra ordem — correspondente, mas não idêntica, à noção de uma percepção conformadora —,
em que a resistência do mundo é parte integrante de seu movimento e para a qual a reflexividade precisa incorporar um momento de opacidade, quando o travo das coisas coloca limites à transparência dos atos reflexivos. Esse fazer estruturante opera como a atividade intencional que Husserl atribui aos atos de consciência, e por certo pressupõe um olhar que realize operações semelhantes. São eles que emprestarão unidade aos “materiais”, sem
necessidade de categorias a prrori que norteiem a atividade artística. Essa “história do trabalho, não como servidão mas como liberação do próprio trabalho de suas negatividades sociais”, “ constituirá então o centro das preocupações de Argan. “A arte, que é modo
de fazer e, inclusive, é ou quer ser modo perfeito e exemplar do fazer"; consequentemente produzirá objetos que serão verdadeiros modelos da objetualidade em geral. Pela riqueza de suas mediações, a obra de arte será o objeto por excelência: “A mediação instrumental não é somente uma práxis,
mas um processo cognoscitivo — quanto mais complexa a mediação instrumental, mais amplo o
campo da experiência; quanto mais aumenta a distância entre sujeito e objeto, tanto mais a
natureza, objeto unitário e global, se manifesta na sua totalidade. O melhor objeto que o homem logre produzir éaquele que contém uma experiência mais ampla, uma concepção total do mundo. A obra de arte, como produto supremo do fazer humano, é de fato o obyeto perfeito, aquele cujos (30) Citado na introdução de Hans Ecksten a Schrifiem uber Kinst, p. 20. Fredler faz uma Wassen ( saber”) é Kômren (lireralmente “poder” — como a tradução literal desse verbo substantiv o caráter de capacidade de realizar que lhe e próprio, optei pela expressão “poder fazer”, maus fiel (31) Guulio Carlo Argan, “Progerto « destino”, em Progerto e destino, Milano, |] Saggsatore, (32) Giulio Carlo Argan, “La storta dellarte”,p
37
contraposição entre ado deixaria de lado ao espírito do texto 1968, p 39
O gro é meu.
(33) Giulio Carlo Argan, “Ancora sulla storta delVarte nelle scuole”, em Occastons ds esitica, p 139 (34) Giulio Carlo Argan “Salvezza e caduta nell'arte moderna”, em Salvezza e caduta nellarre moderna, p. 42. O grnfo é meu
PRLÁQIO
XIX
contornos coincidem idealmente com o horizonte do cognoscível e equivale, em termos de valor,
à natureza” Foi por essa via que Argan pôde incorporar também aspectos do marxismo a sua
teoria, na medida em que a ênfase nos processos operativos permitia combinar a questão artística às investigações ligadas à dinâmica da produção e da economia, sem o risco de reducionismo.
Esses objetos exemplares — em condição de serem “adotados como modelos de atividades não-artísticas” —,* por sua própria característica, estão longe de uma subordinação à história da técnica.” Se assim fosse, a história da arte seria sempre a história do
academicismo, da tradição das belas-artes: aquele momento em que a transmissão de técnicas consagradas parece resumir as ambições artísticas. Ao contrário, para Argan a arte é a busca de um “sistema de todas as relações possíveis”,* uma verdadeira manutenção do
fazer como possibilidade, e não o simples aperfeiçoamento, por reiteração, de procedimentos correntes. A concepção de arte de Argan permitiu inserir os trabalhos artísticos num amplo contexto histórico, pois de alguma forma criava um termo comum entre o fazer artístico as demais atividades. No entanto, “desde sua origem a arte é modelo da produção, enquanto é a atividade que produz objetos detentores do máximo de valor. A obra de arte é o objeto único, que tem o máximo de qualidade e o mínimo de quantidade”.” Com isso, em meio às relações que as vinculam ao ambiente social, as obras de arte também se diferenciam por um viés ético, pela criação de valores muito particulares. Ao privilegiar a qualidade — como máximo de mediações —, o aspecto único de seus objetos, a arte afirma um fazer específico.
Se “é no fazer que se reconhece a eticidade de um comportamento”, a atividade artística é também o lugar do fazer ético por excelência — onde sua autonomia de base permite uma interrogação permanente sobre o sentido de seus aros: “Acima da exatidão técnica, da qual
os nossos contemporâneos fazem um culto fetichista, existe uma exatidão moral, que eles geralmente ignoram: uma exatidão no realizar não tanto a própria função quanto o próprio dever, porque há um dever, e é o meu querer ser alguma coisa de diferente daquilo que de
fato sou, o meu querer ftzer-me com a mesma precisão com que a técnica mecânica faz um objeto. E esse querer ser é ainda um momento do meu ser, e precisamente aquele da minha individualidade ou personalidade, já que para os outros sou aquilo que sou, e aquele eu
cidético, aquele meu querer ser, aquela minha intenção de ser de outro modo é a única parte
de mim que me pertence exclusivamente”.*: É essa alteridade permanente que torna viável aproximar a arte da ética sem submeter a primeira à segunda, ou então recair num ideal estético de perfeição anterior a Kant. A solicitação de permanente superação da arte por certo não é um recalque do presente.
Ao contrário, “a arte é um fazer e se faz aqui e agora, não ontem ou amanhã; e faz objetos,
> 42 que o tempo não engole e que permanecem presentes . Para que possa cumprir seu ideal
(35) Giulio Carlo Argan, “Progerro edesuno” p.21. É interessante observar que, embora por caminhos opostos, esse raciocínio de Argan se aproxima do conceito de mimese de Adorno No ensaio “La storia delParre”, Argan escreve “A história da arte é a história do agir não violento” (p 80). (36) Idem, pp 26-7. (37) Entendendo técnica no sendo corriqueiro, de mera aplicação de conceitos preexistentes, é não como “récnica de ideação”, como vimos antes (38) Idem, p 58 (39) Giulio Carlo Argan, Ta cnisi del design”, em Storm delVarte come storia della esto, p 262 O primeiro gnfo
é meu, o segundo e de Argan (40) Giuho Carlo Argan, “Salvezza e caduta nelVarte moderna”, p. 52. (41) Idem, p 68
(42) Giulio Carlo Argan, “La stona dellarre”, p. 42,
-
XX
PREFÁCIO
de exemplaridade, cla precisa se instituir como uma presença inequívoca, cuja evidência é sinal de uma realidade que se diferencia justamente pela capacidade de se afirmar como atualização de experiências passadas. E é precisamente a possibilidade de fazer a mediação
entre passado e futuro que caracteriza o presente da obra de arte: “Dizendo que a artisticidade da arte forma uma unidade com sua historicidade, afirma-se a existência de uma solidariedade de princípio entre o agir artístico e o agir histórico; e a raiz comum é evidentemente a consciência do valor do agir humano. Um agir que determina um valor é um agir finalizado, do qual se controla o processo: se realiza no presente, mas pressupõe a experiência do passado e um projeto do futuro. O agir artístico é um agir segundo um projeto (por isso o procedimento da cópia, que substitui a experiência e o projeto pelo modelo, não
é artístico); e o projeto é uma finalidade que, realizando-se no presente, assegura à ação um valor permanente, histórico...”.º A arte é um fazer exemplar que, em última análise, tem como horizonte a produção de objetos perfeitos, que sirvam de guia às demais atividades. Nessa busca, ela é também
criação de valores, já que deve se perguntar a todo instante pelo sentido do agir humano e operar de modo a garantir e ampliar seus próprios fundamentos. E esse movimento traz consigo necessariamente uma temporalidade de ordem histórica, em que passado, presente
e futuro se condensam na presença instigante de um objeto particular. À partir dessa formulação o estabelecimento de vínculos entre a produção artística e aspectos sociais, éticos, históricos e cognosestivos pode se realizar sem a necessidade de privilegiar qualquer
uma das instâncias envolvidas, desde que as análises partam dos trabalhos de arte e observem neles a especificidade dos nexos propostos. Sem dúvida, a leitura de Hegel contribuiu decisivamente para a vocação totalizante da concepção de arte de Argan.
Contudo, sua noção de forma artística possui um travejamento mais denso, que afasta toda e qualquer suspeita de uma relação especular ou expressivista entre a arte e as demais esferas espirituais ou sociais. A determinação de valores e a projetualidade — a forma artística da intencionalidade de Husserl — das obras de arte eram uma garantia permanente contra
uma inserção pacífica e inerte — que por certo não é o caso de Hegel —, e promoviam mais uma problematização daqueles vínculos do que uma relação orgânica. Por suas características a obra de arte tende a estabelecer relações que instauram uma sistematicidade
limite, verdadeiramente movediça, cujo cumprimento é sempre prenúncio de uma nova mcompletude. Para Argan, “a consciência que apreende a obra de arte realiza uma redução fenomenológica que 'conduz ao reconhecimento de uma epoché singularíssima, dado que aparecerá de imediato que a obra não será extraída, isolada, colocada entre parênteses, justamente porque ela mesma, como nós a apreendemos, aparece como uma epoché em ato, que se extraiu, se isolou e colocou entre parênteses o mundo da vida'”. A obra de arte é portanto esse ponto de tangência entre sistematicidade e alteridade. Em
seu caráter projetual, ela traça “as linhas-mestras segundo as quais se desenvolverá a existência da sociedade e, ao mesmo tempo, negando que essas linhas sejam predestinadas
(43) Idem, p 29.
(44) Idem. pp. 33-4, O trecho citado por Argan é nrado de Cesare Brandi. Quanto ao concerto de epoché, diz Husserl * Por conseguinte essa universal colocação fora de valor, essa “imbição”, esse “colocar fora de jogo” de todas as atitudes que nós podemas tomar em face do mundo objetivo — e de saida as autudes concernentes à existência, aparência, existência possível, hipotérica, provável c outras —
ou ainda. como
se costuma dizer, essa 'cpoché
fenomenológica”, essa “colocação entre parênteses” do mundo objetivo, não nos coloca diante de um puro nada” — em Meédiratrons carteseennes, Paus, Vrin, 1980, pp
17 8.
ou prefixadas,
exprime
em
primeiro
lugar a virtualidade
da condição
PREFÁCIO
XXI
presente,
as
possibilidades que lhe são implícitas. Mas exprime também aquela que se considera como estrutura da sociedade, processo de seu autodeterminar-se, diagrama de seu devir histórico:
porque a estrutura não é pensável como forma realizada e imóvel, mas como estruturação, “consciência estruturante”?.º Assim entendido, como verdadeiro objeto fenomenológico em ato, o trabalho de arte já
traz em si a solução para o problema das passagens que norteou as preocupações deste prefácio. Ao interpretá-lo, Argan
parre daquilo que cle mostra, dessa aparência ferta, e busca
estabelecer os tipos de relações que ele traz em seu “interior”. Nessa tarefa, todos os elementos têm, em princípio, a mesma importância — da fatura ao material empregado, das formas às
imagens, da cor ao gesto. Por ser ele mesmo, objeto de arte, essa rede de nexos corrediços que o vincula às demais esferas sociais, o esforço do crítico estará em compreender quais os que sobressaem em um determinado trabalho e em buscar suas significações. O caráter das relações estabelecidas numa obra de arte — sua forma — traz ao mesmo tempo o vínculo e a diferença com os demais aspectos da sociabilidade. Dizer mais seria acreditar na impessoalidade de um método perfeito, a propiciar
resultados independentemente do talento e da sensibilidade do crítico, bem como da extensão de seus conhecimentos. o
ke
No entanto, ainda resta um problema O sistema que Argan nos revela diz respeito, fundamentalmente, a uma época em que o artesanato era o sistema dominante
de produção, e no qual a obra de arte de fato podia aparecer como objeto por excelência e modelo das outras atividades. Com a industrialização esse sistema entra em
crise, e a Arte moderna é a própria história dessa crise. Voltemos ao nosso primeiro exemplo, a pintura de Van Gogh, e aproveitemos para ver como Argan resolve aquelas passagens. Quando Argan diz que nos quadros de Van Gogh “também a técnica da pintura deve mudar”, temos aí a síntese da mudança operada — “o fazer ético do homem contra o fazer racional da máquina”. Nas obras de Van Gogh, a cor impressionista — cujo viés cognoscitivo não é segredo — adquirirá corpo, e se trans-
formará numa verdadeira matéria, a ser trabalhada pela mão. Aí, o fazer ético (Cum fazer suscitado pelas forças profundas do ser”) é justamente esse fazer que traz à tona as inúmeras decisões que devem ser tomadas no seu decorrer, evidenciadas no trabalho penoso que não
consegue apagar seus rastros, pois se recusa a submeter violentamente a matéria sobre a qual age. Ao contrário da máquina, que produz coisas anônimas em série, o trabalho do artista guarda as marcas desse sujeito que investe toda a sua experiência a cada nova criação. Nos
auto-retratos de Van Gogh, suas faces são o verdadeiro emblema de uma trajetória que não sabe ocultar suas idas e vindas, e que portanto deixa traços que sulcam a carne. No excesso
de trabalho contido nas telas de Van Gogh assistimos a um verdadeiro protesto contra uma récnica em que a racionalização é sinônimo de impessoalidade e de desprezo pelos que produzem. Ao mesmo tempo, esse excesso — tão diferente das faturas da tradição — revela a situação de isolamento crescente em que a arte se verá, e como que acentua, por contraste, o fim de uma época em que arte e produção mantinham estreitas afinidades.
(45) Giuho Carlo Argan, “Progetco e destino”, p. 61.
XXIT
PREFÁCIO
A partir daí, o modo arganiano de interpretação da arte segue tendo validade. Mas
precisará incorporar esse hiato problemático, que levará a arte a uma posição até então desconhecida: “Como último herdeiro do espírito criativo do trabalho artesanal, o artista
tende a fornecer um modelo do trabalho criativo, que implica a experiência da realidade e a renova; passando a seguir do problema específico para o geral, rende a demonstrar qual pode set, na unidade funcional do corpo social, o valor do indivíduo e de sua atividade. Ele se põe assim no próprio centro da problemática do mundo moderno. Também Gauguin e os fauves consideravam a arte como atividade que se opõe ao trabalho alienante da indústria, mas lhe
atribuífam
como
fundo
e ambiente
uma
sociedade
imaginária,
primitiva,
diferente da
sociedade real. Para que o 'modelo' pudesse funcionar era preciso, ao contrário, inseri-lo no
contexto da função real da sociedade. Assim, procura-se reformar na estrutura o funcionamento interno, e portanto o processo genético, da operação artística, com o intuito de
poder propô-la como modelo de função: não se reconhece mais um valor em sina obra dearte, mas apenas um valor de demonstração de um procedimento operativo exemplar ou, mais precisamente, de um tipo de procedimento que implica e renova a experiência da realidade. Pode-se dizer, pois, que nesse período se realiza a transformação do sistema ou da estrutura da arte, passando de representativa a funcional”.'* Nessa longa citação, observamos o esforço da arte para conquistar uma nova inserção na sociedade, sem contudo perder sua autonomia. A tentativa de se apresentar como “modelo de função”, como “procedimento operativo exemplar” terá em Mondrian, nosso outro exemplo, um dos maiores representantes. De fato, ele trabalha de maneira quase demonstrativa, segundo procedimentos rigorosamente estabelecidos. O uso exclusivo das cores primárias (amarelo, azul e vermelho) — à exceção dos últimos trabalhos, sem pre separadas por faixas
negras, para evitar a contaminação recíproca — e das verticais e horizontais visava obter relações de semelhança e igualdade a partir de diferenças, num jogo em que as regras são nomeadas explicitamente. Ao contrário de Van Gogh, Mondrian quer eliminar o trágico da
vida contemporânea, e a aparência despojada de seus quadros, na qual “o artista não tem o direito de influenciar o próximo emotiva e sentimentalmente” — o que não significa abrir mão da grandeza sensível —, solicita o reconhecimento dessas relações evidentes, que nos
afastam do drama a que a posição expressionista conduzira. Poderíamos discutir longamente sobre o caráter não-representativo dessa estrutura funcional. Mas o que importa acentuar é a riqueza relacional de suas telas — c isso não só pela amplitude inesgotável de um esquema tão simples, que o uso extremamente sábio da cor soube multiplicar ao infinito, mas
sobretudo por sua fragmentação radical e problemática, que fazia com que aquelas tramas se prolongassem indefinidamente, ganhando o mundo e traçando um sistema de proporções rigorosamente democrático. Com Pollock, no entanto, o convívio conflituoso da arte com a sociedade indusrrial chega a um paroxismo: “Não há uma chave de leitura, uma mensagem a decifrar na pintura de Pollock: da experiência da pintura, nada pode ser retirado e utilizado na ordem social, assim como nada da ordem social pode passar para a pintura. São duas existências diversas, € é preciso escolher”.* À partir de Mondrian tem início aquilo que Argan chamou a crise da arte como “ciência européia” — em clara referência a uma das últimas obras de Husserl, 4 crise das ciências européias e a fenomenologia transcendental —, uma era em que se reabre o
(46) Grulio Carlo Argan, Z arte moderna, pp. 366-7, O grifo em “demonstração” é meu (47) Idem, p. 718.
PRIÁCIO
XXIL
“dualismo de um fazer material e um fazer espiritual [...] como se reabre a ferida de uma
operação malsucedida, « a operação malsucedida é justamente a integração do fazer artístico
ao fazer industrial”. O projeto de oferecer à sociedade um modelo de racionalidade crítica — também um dos objetivos centrais de boa parte da arquitetura moderna — não se cumpriu esteticamente. É por esse motivo que uma porção considerável da arte do pós-
guerra — que Argan chama de “informal”, e que inclui Pollock — irá “realizar até o fim a experiência mundana, perder-se para salvar-se, renunciar decididamente a toda metafísica e
a toda teologia, a toda moral deduzida de princípios postulados, e aceitar fazer, sem saber de antemão se aquilo que será feito levará ou não a um resultado eticamente válido”.” Essa arte
que envolve toda a existência num movimento vertiginoso foi a alternativa que restou, após o isolamento imposto à atividade artística. O convívio com a morte aparece então como “a única experiência absolutamente pessoal que, na presente condição histórica, seja deixada aos homens. Por isso, no fundo de cada pintura ou escultura informal encontramos o pensamento ou à imagem da morte, como no fundo de cada obra clássica encontramos o pensamento ou a imagem da vida”.” Esse pensamento da morte é indício seguro do próprio fim da arte — uma questão que preocupou Argan desde sempre. E não seria exagero afirmar que todo este livro — que tem início com a discussão do neoclassicismo — nasce sob o signo da morte: “Como para as deusas
que renunciavam à imortalidade pelo amor de um homem, desde quando a arte desceu dos
céus barrocos para misturar-se à vida das pessoas sua vida está sempre ameaçada, suspensa por um fio: como se aquilo que lhe resta de sua natureza divina a torne mais frágil”. Mas o
comércio com os homens se revelou árido. Em seu isolamento, a arte se vê incapaz de exemplaridade, com o que a criação de valores e sua dimensão projetual entram em colapso. No entanto, diz Argan, “quando falo de morte da arte, falo do fim de uma experiência do
mundo tornada possível por determinados meios, hoje progressivamente abandonados, €
em cuja origem estão os sentidos, hoje em parte postos de lado pelas novas experiências
estéticas”.” A possibilidade de prosseguir a pesquisa estética com outros meios é reconhecida por Argan, embora seja difícil não perceber um profundo ceticismo, além de tristeza, nesse reconhecimento. Talvez devêssemos perguntar se não seria a teoria de Argan
que perdeu efetividade, não estando mais apta a compreender os trabalhos de arte con-
temporâncos. Ele mesmo tem em conta essa interrogação: “Sinto-me despreparado para enfrentar o problema da arte de hoje, que não pode se colocar em termos de valor, já que
justamente os valores e a idéia de valor são contestados, e falta uma unidade de medida que não tenha o privilégio do valor”.* Certa vez, em Paris, Argan visitava uma mostra de Jannis Kounellis em que se expunha
um conjunto de sacos repletos de sementes das mais variadas cores. Argan voltou-se para Kounellis e disse: “Para mim este seu trabalho tem um limite: é tão belo que parece um Morandi”.** Quem sabe, como quer o próprio Argan, sua formação ofereça limites à compreensão de obras contemporâneas. Pode ser. Mas, como o leitor verá, muitas das
(48) Giulio Carlo Argan, “Salvezza e caduta nell'arte moderna”, p 71, (49) Idem, p. 48
(50) Idem, p. 72. (51) Gruho Carlo Argan, “La cnisi dei valor”, em Salvezza e cadita nellirie moderna. p-33 (52) /neervista sulla fabbrica dellarce, p 55
(53) Idem, p. 49. (54) Idem, p 50
XMIV
prRerÁCIO
questões levantadas por ele são fundamentais para a arte que se faz nos nossos dias. Esse
intelectual que não se furtou a tarefas diretamente políticas — foi prefeito de Roma de 1976 a 1979, e senador, sempre eleito pelo ex-Partido Comunista Italiano, hoje Partido da Esquerda Democrática — recusou formular teorias estéticas programáticas, e seria totalmente infundado acusá-lo por um prognóstico que visivelmente o entristece. Afinal, a
grandeza de sua obra está justamente nas interpretações brilhantes que fez do trabalho dos mais diferentes artistas, sempre abertas à generosidade que a arte solicita — por isso mesmo ele talvez esteja pouco à vontade nos moldes um tanto “metodológicos” que ganhou neste prefácio. Já é hora de o leitor apreciar o que até aqui apenas se prometeu.
(55) Este trabalho fai realizado no Centro Brasileiro de Análise c Plancjamento (Cebrap). sem cujo apoio me
teria sido impossível levá-lo a termo
A R TE
M
O D ERN, A
CAPITULO
UM
CLÁSSICO E ROMÂNTICO se fala da arte que se desenvolveu na Europa e, mais tarde, na América do e Norte durante os séculos XIX e Xx, com fregiiência se repetem os termos clássico e romântico.
A cultura artística moderna mostra-se de fato centrada na relação dialética, quando não de antítese, entre esses dois conceitos. Eles se referem a duas grandes fases da história da arte: o “clássico” está ligado à arte do mundo antigo, greco-romano, e àquela que foi tida como seu renascimento na cultura humanista dos séculos Xv e xvt; o romântico, à arte cristã da Idade Média e mais precisamente ao Românico e ao Gótico. Também já se propôs (Worringer)
uma distinção por áreas geográficas. clássico seria o mundo mediterrâneo, onde a relação dos
homens com a natureza é clara e positiva; romântico, o mundo nórdico, onde a natureza é uma força misteriosa, frequentemente hosnil. São duas concepções diferentes do mundo e da
vida, associadas a duas mitologias diversas, que tendem a se opor e a se integrar à medida que
se delineia nas consciências, com as ideologias da Revolução Francesa e das conquistas
napoleônicas, a idéia de uma possível unidade cultural, talvez também política, européia. Tanto o clássico como o romântico foram teorizados entre a metade do século XVII] e a metade do século seguinte: o clássico sobretudo por Winckelmann e Mengs, o romântico pelos defensores do renascimento do Gótico e pelos pensadores e literatos alemães (os dois Schlegel, Wackenroder, Tieck, para os quais a arte é revelação do sagrado e tem neces-
sariamente uma essência religiosa). Teorizar períodos históricos significa transpô-los da ordem dos fatos para a ordem das idéias ou modelos; com efeito, é a partir da metade do século XVIII que os tratados ou preceitísticas do Renascimento e do Barroco são substituídos,
a um nível teórico mais elevado, por uma filosofia da arte (estética). Se existe um conceito de
arte absoluta, e esse conceito não se formula como norma a ser posta em prática, mas como um modo de ser do espírito humano, é possível apenas tender para este fim ideal, mesmo sabendo que não será possível alcançá-lo, pois alcançando-o cessaria a tensão e, portanto, à própria arte. Com a formação da estética ou filosofia da arte, a atividade do artista não é mais
considerada como um meio de conhecimento do real, de transcendência religiosa ou
exortação moral. Com o pensamento clássico de uma arte como mimese (que implicava os dois planos do modelo e da imitação), entra em crise a idéia da arte como dualismo de teoria
e práxis, intelectualismo e tecnicismo: a atividade artística torna-se uma experiência primá-
ria e não mais derivada, sem outros fins além do seu próprio fazer-se. À estrutura binária da mamesis segue-se a estrutura monista da poiesis, isto É, do fazer artístico, e, portanto, a oposi-
ção entre a certeza teórica do clássico e a intencionalidade romântica (poética).
Exatamente no momento em que se afirma a autonomia da arte, coloca-se o problema
de sua articulação com as outras atividades, isto é, de seu lugar e sua função no quadro cul-
Ea
CAPTLTOU
ME CLÂSSICO É ROMÂNTICO
tural e social da época Afirmando a autonomia e assumindo a total responsabilidade do seu agu, o artista não se absrrai da realidade histórica; declara explicitamente, pelo contrário, ser e querer sei do seu próprio tempo, e muitas vezes aborda, como artista, temáticas c problemáticas atuais. À cesura na tradição se define com a cultura do Iluminismo. À natureza não é mais
a ordem revelada e imutável da cação, mas o ambiente da existência humana, não é
mais o modelo universal, mas um estímulo a que cada um reage de modo diferente; não é mais a fonte de todo o saber, mas o objeto da pesquisa cognitiva. É claro que o sujeito tende a modificar a realidade objetiva, seja nas coisas concretas (especialmente a arquiterura, a decoração etc.), seja no modo como passa a ter noção e consciência dela: o que era o valor a prior: e absoluto da natureza, como criação ne varieturc modelo de toda invenção humana, é subsrituído pela ideologia como imagem formada pela mente, como ela gostaria que fosse tal realidade. O fato de o móvel ideológico, que tantas vezes se transforma em explicitamente político, ocupar o lugar do princípio metafísico da natureza-revelação, tanto na arte neoclássica como na romântica, mostra que ambas, apesar da aparente divergência. pertencem ao mesmo ciclo de pensamento. À diferença consisre sobretudo no tipo de postura (predominantemente racional ou passional) que o artis-
o ta assume em relação à história e à realidade natural e social, O período que se estende aproximadamente entre a metade do(século xvilDe a metade
do século xIx é geralmente subdividido da seguinte maneira: 1) uma primeira fase pré-romântica, com a poética inglesa do sublime e do horror e com a paralela poética alemã do ama ares
+
:3) uma reação romântica, coincidindo com à intolerância burguesa às obrusas restaurações monárquicas, com os movimentos de independênciinacronat, com as primeiras reivindicações operárias entre 1820 e 1850, aproximadamente. Mas esta pe-
sa e o impénio nap
riodização não se sustenta por vários motivos
1) já nos meados
o século XVIII, O termo ro-
mántico é empregado como equivalente de pstorescoe referido à jardinagem, isto é, a uma arte que não imira nem representa, mas, em consonância com as teses luminastas, opera diretamente sobre a natureza, modificando-a, cormgindo-a, adaprando-a aos sentimentos humanos e às oportunidades de vida social, isto é, colocando-a como ambiente da vida; 2) as poé-
ticas do “sublime” e do Stursa und Drang, um pouco posteriores à poética do “pitoresco”, não se opõem, mas simplesmente refletem uma postura diferente do sujeito em relação à realidade: para o “pitoresco”, a natureza é um ambiente variado, acolhedor, propício, que favorece e nos indivíduos o desenvolvimento dos sentumentos sociais, pata O sublime”, ela é um am-
biente misterioso e hostil, que desenvolve na pessoa o sentido de sua solidão (mas também de sua individualidade) e da desesperada tragicidade do existir, 3) as poéricas do “sublime”, que
são definidas como proto-românticas, adotam como modelos as formas clássicas (caso de Bla-
ke e Fussli), e assim constituem um dos componentes fundamentais do Neoclassicismo; na medida, porém, em que a arte clássica é dada como o arquéuipo da arte, os artistas não a iepetem academicamente, mas aspiram à sua perfeição com uma tensão nitidamente romântica.
Pode-se, pois, afirma que o Neoclassicismo históricoé apenas uma fase do processo de tormação da concepção romântica. aquela segundo a qual a arte não nasce da natureza. mas da própria arte, e não somente implica um pensamento da arte, mas É um pensas por imagens
não menos legítimo que o pensamento por puros conceitos, Assim entendida, é arte romântica a que implica uma tomada de posição frente à história da arte. Até o final do século xv1] existiu uma tradição “clássica” muito viva. cujas for-
ças não se desgastavam. e sim aumentavam, conforme era remodelada em formas originais
Puta NT 90 Honra Hássk fz ula 1,37 “On Ztrque Kinsth ts
Anre-Louis Grroder O seprlramento de A ta (1808, tola, 2,10 x 2,67 1 Paris Louvre
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4
CAPÍTULO LM
CLÁSSICO E ROMÂNTICO
por uma imaginação inflamada (como a de Beinini). Com o anti-historicismo próprio do Iluminismo, essa tradição se interrompe: as artes grega e romana se identificam com o próprio conceito de arte, podem ser apreciadas como exemplos supremos de civilização, mas não prosseguem no presente e não ajudam a resolver seus problemas. Aquela felicidade cria-
tiva perdida pode ser evocada e imitada (Canova, Thorvaldsen), revivida como em sonhos (Blake) ou reanimada com a imaginação (Ingres). Pode também ser violentamente recusada (Courbet). Só mais tarde, porém, com os impressionistas, sairá definstivamente do horizonte da arte.
Antonio Canova
(coma colaboração deG A Selva, P Boso, A
Diedo)
Templo
de Possagno (1819-350)
O ideal neoclássico não é imóvel. Certamente não se pode dizer, entre o final do século XVII e o século XIX, que a pintura de Goya seja neoclássica; mas a sua violência anticlássica também nasce da ira de ver o ideal racional contrariado por uma sociedade retrógrada e
carola, e como não pintar monstros se o sono da razão gera-os e com eles preenche o mundo? Com a cultura francesa da revolução, o modelo clássico adquire um sentido ético-ideológico, identificando-se com a solução ideal do conflito entre liberdade e dever; e, colocando-se como valor absoluto e universal, transcende e anula as tradições e as “escolas” nacio-
nais. Esse universalismo supra-histórico culmina e se difunde em toda a Europa com o império napoleônico. À crise ocasionada pelo término desse universalismo abre, também na cultura artística,
uma problemática nova: recusada a restauração monárquica anti-histórica, as nações precisam encontrar em si mesmas, em sua história e no sentimento dos povos, as razões de uma autonomia própria e, numa raiz ideal comum, o cristianismo, o conteúdo para uma coexis-
tência civil. Assim nasce, no âmbito global do Romantismo, que incluía a ideologia neoclássica decaída, o Romantismo histórico, que se lhe contrapõe como alternativa dialética opondo à racionalidade derrotada a profunda e irrenunciável religiosidade intrínseca da arte. Entre os motivos daquilo que poderíamos chamar de fim do ciclo clássico e início do romântico ou moderno (e mesmo contemporâneo, porque chega até nós), destaca-se a transformação das tecnologias e da organização da produção econômica, com todas as consequências que comporta na ordem social e política. Era inevitável que o nascimento da tec-
nologia industrial, colocando em crise o artesanato e suas técnicas refinadas e individuais, provocasse a transformação das estruturas e da finalidade da arte, que constituíra o ápice e o
F
Car
Mirra,
!
Walliam Blake A escada de faco (1808),
aquarela sobre papel 0,37 = 029 Londres. Brush Muscum
Jean-Baptiste Carpcaux A dança (1865-69) modelo cm gesso para o grupo do Opéra de Paris Paris, Musee 'Qrsay
Berrel Thorvaldsen As mês Graças( em marmore
821), rdevo
Copenhague, Museu Thoryaldsen
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Dorunique Ingres Rerraro de Mademorsette Rescere 1805-1806", sea, 1 0,70 m Paris Louste
.
lacques-Lou:is David. Rerretto de Viadesne Recotinzer 4 VB00), tela, 1.73 2,43 m Paris, Louvre
Gros Carga Antome-Jcan Ei de cavataria &grado ) pur Muros na basalha de Aluder: detalhe (1806), vel conjunto 5 789,68 m.
Versailles, Musce
modelo da produção artesanal. A passagem da tecnologia do artesanato, que utilizava os materiais e reproduzia os processos da natureza, para a tecnologia industrial, que se funda na
ciência e age sobre a natureza, transformando (e fregientemente degradando) o ambiente, é uma das principais causas da crise da arte.
Excluídos do sistema técnico-econômico da produção, em que, no entanto, haviam si-
do os protagonistas, os artistas tornam-se intelectuais em estado de eterna tensão com a mesma classe dirigente a que pertenciam como dissidentes. O artista hohémien é um burguês
que repudia a burguesia, da qual despreza o conformismo, o negocismo, a mediocridade cultural. Os rápidos desenvolvimentos do sistema industrial, tanto no plano tecnológico como no econômuico-social, explicam a mudança contínua e quase ansiosa das tendências artísticas que não querem ficar para trás, das poéticas ou correntes que disputam o sucesso €
são permeadas por uma ânsia de reformismo e modernismo.
PITORESCO
E SUBLIME
Dizer que uma coisa é bela é um juízo; a coisa não é bela em si, mas no juízo que a define como tal O belo já não é objetivo, mas subjetivo: o “belo romântico” é justamente o belo
subjetivo, característico, mutável, contraposto ao “belo clássico” objetivo, universal, imutável. O pensamento do Iluminismo não considera a natureza como uma forma ou figura criada de modo definitivo e sempre igual a si mesma, que se pode apenas representar ou imitar.
A natureza que os homens percebem com os sentidos, apreendem com o intelecto, modificam com o agir (é do pensamento iluminista que nasce a tecnologia moderna, que não obe“
dece à natureza, mas a transforma) é uma realidade interiorizada que tem na mente todos os
1a
CAPA
TOM
CLASSEICO E ROMAN
PÇO
seus possíveis desenvolvimentos, mesmo de ordem moral. Distinguindo um “belo pitoresco” e um “belo sublime” (termos que já possuíam um significado nos discursos sobre a arte), Kant distingue, na verdade, dois juízos que dependem de duas posturas diversas do bomem frente
à realidade: é sobre elas e sua inter-relação que, de fato, ele funda sua “crítica do juízo”.
O “pitoresco” é uma qualidade que repercute na natureza pelo “gosto” dos pintores, e especialmente dos pintores do período barroco. Foi um pintor é tratadista, ALEXANDER CozrNs (e 1717-86), que o teorizou, preocupado em dar à pintura inglesa do século xvim, predominantemente retratista, uma escola de paisagistas. Seus fundamentos são: 1) a natuteza é uma fonte de estímulos a que correspondem sensações que o artista esclarece e transmite: 2) as sensações visuais se apresentam como manchas mais claras, mais escuras, variegadamente coloridas, e não num esquema geométrico como o da perspectiva clássica; 3) o dado sensorial é naturalmente comum a todos, mas o artista o elabora com sua técnica men-
tal e manual, e assim orienta a experiência que as pessoas têm do mundo, ensinando a coor-
denar as sensações e emoções, e também atendendo com o paisagismo à função educativa
Alexander Cozens d utevenr O Londres, vo exão Opoe
> 0 30m
que o Iluminismo setecentista atribuía aos artistas; 4) o ensino não consiste em decifrar nas manchas imprecisas a noção do objeto a que correspondem, o que destruiria à sensação pri-
mária, mas em esclarecer o significado e o valor da sensação, tal como é, tendo em vista uma
experiência não-nocional ou particularista do real: 5) o valor que os artistas buscam é a variedade: a variedade das aparências dá um sentido à natureza tal como a variedade dos casos
humanos dá à vida: 6) não se busca mais o universal do belo, mas o particular do caracterís-
tico; 7) o característico não se capta com a contemplação, e sm com a argúcia (zit) ou a presteza da mente, que permite associar ou “combinar” idéias-imagens, mesmo muito diversas e distantes Naturalmente, as manchas variam segundo o ponto de vista, a luz, a distância. Assim, o que a “mente ativa” capta é um contexto de manchas diferentes, mas telacionadas entre si: a variedade não impede que os múltiplos componentes da paisagem concorram para transmitir um sentimento de alegria ou calma ou tristeza. A poérica do “pitoresco” medeia a passagem da sensação no sentimento: é exatamente nesse processo do físico ao moral que o artista-educador é guia dos contemporâneos. À tese da subjetividade das sensações e, porranto, da função não mais condicionante, e
CAPETULO LAS
sim apenas estimulante, da natureza em relação ao pensamento já está presente na filosofia de
Berkeley; Goethe, com major amplitude de análise, ao enuncias no final do século xvilt sua teoria das cores e ao tomar como objeto de pesquisa não a luz (como Newton) mas a atividade do olho, lançou uma ponte ente o cientificismo objerivista e o subjerivismo romântico.
À natureza não e apenas fonte de sentimento; induz também a pensar, especialmente na insignificante pequenez do ser humano frente à imensidão da natureza e suas forças. O “pi-
toresco”, tanto quanto na pintura, expressava-se na jardinagem, que era essencialmente um educar a natureza sem destruir a espontaneidade; mas diante de montanhas geladas e inacessíveis, do mar borrascoso, o homem não pode experimentar outro sentimento senão o da sua pequenez Ou, num louco acesso de soberba, imaginar-se um gigante, um semideus ou mes-
mo um deus em revolta que incita as forças obscuras do Universo contra o Deus criador Não mais agradável variedade, mas assustadora fixidez; não mais concórdia de todas as coisas de uma natureza propícia, mas discórdia de todos os elementos de uma natureza rebelde e enfu-
recida, não mais sociabilidade ilimitada, mas angústia da solidão sem esperança. As características do “sublime” foram definidas por Burke (Investigação filosófica sobre a origem das nossas idéias do sublime e do belo, 1757) quase ao mesmo tempo em que Cozens definia o “pitoresco”. são estas, portanto, as duas categorias em que se assenta a concepção da relação humana com a natureza, a qual se pretende utilizar em seus aspecros domésticos
e usufruir como fonte cósmica de energias sobre-humanas. Os modos da representação pictórica também são diferentes. O “pitoresco” se exprime em tonalidades quentes e luminosas, com toques vivazes que póem em relevo a irregularida-
de ou o caráter das coisas. O repertório é o mais variado possível: árvores, troncos caídos,
manchas de grama e poças de água, nuvens móveis no céu, choupanas de camponeses, animais no pasto, pequenas figuras. À execução é rápida, como se não fosse preciso dar muita atenção às coisas. Sempre exata a referência ao lugar, quase seguindo o gosto pelo “turismo”
que vinha se difundindo. O “sublime” é visionário, angustiado: cores às vezes foscas, às vezes pálidas; desenho de traços fortemente marcados; gestos excessivos, bocas gritantes, olhos arregalados, mas a figura sempre fechada num invisível esquema geométrico que a aprisio-
na e anula seus esforços. Cada uma dessas categortas tem seus precedentes históricos: o belo, já prestes a desapa-
recer, vem de Rafael; o “sublime”, de Michelangelo; o “pitoresco”, dos holandeses. Além dos Cozens, pai e filho, que foram os pioneiros do “pitoresco”, pertencem a essa corrente os grandes paisagistas, como R. Wilson e, principalmente, J. Constable e W. Turner; mas há
também um pitoresco social, em sintonia com as teses de J.-J. Rousseau sobre a relação entre sociedade e natureza, e cujo maior representante é'T. Gainsborough, intérprete da sociedade elegante e sensibilíssimo retratista que influu também sobre Goya. O mundo oficial,
por sua vez, teve seu historiador num grande retratista, J. Reynolds, sutil escritor de arte e reórico do “belo” rafaelesco, anda que nos últimos anos, ante o afirmar-se da poética neoclássica do sublime, tenha se convertido, pelo meros em palavras, a Michelangelo. Os dois pilares da poética do “sublime” foram J. H. Fússti (1741-1825) e W. BLAKE
(1757-1827). Fussli, suíço de nascimento e, quando jovem, adepto do extremismo român-
tico do Sturm und Drang, morou alguns anos na Itália, estudando, mais que os antigos, os
desenhos de Michelangelo e dos maneiristas. Foi também escritor, e sobre a arte antiga te-
ceu juízos opostos aos de Winckelmann, tentando interpretá-la não como cânone, mas co-
mo experiência vivida e por vezes dramática. Sua idéia do “sublime” se completa com a exal-
tação do “gênio” O panto de referência era Michelangelo, como exemplo supremo de artista “inspirado”, que capta e transmite mensagens ultraterrenas; mas, na verdade, ao “gênio”
CLÁSSICO E ROMÂNTICO
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NTICO CAPÍTULO UM CLÁSSICO E ROMA
nte vital de Shakespeare, capaz de passar do demiurgo preferia o “gênio extraordinariame uma de Shakespeare. Sua pintura visionária, de trágico ao grotesco. E foi o maior ilustrador dade, contradiz intencionalmente a tese da ersi perv a e o eiçã perf à entre a oscil que a elegânci no ica, no plano moral. É uma mescla de rigor racionalidade, no plano intelectual, e da didát — rio em seu romantismo à fantasia não era arbít traço e fantasia visionária: evidentemente, razão. tinha suas leis talvez até mais rígidas que as da foi pintor e pocta; como poeta, ligado à W. Blake, que trabalhou nesses mesmos anos, mende Milton, nos quais via os portadores de revelação de Homero, da Bíblia, de Dante, se desvanecem € en“
>
limiar do “sublime”, as sensações sagens divinas. Quando se ultrapassa o s, divinas da o ci iado, mas com as forças sobrenaturai tra-se em contato direto não mais com ento, são, rista colocara no princípio do conhecim empi ição trad a que s, açõe sens As ão. criaç supremas, expressas por si-
de captar as verdades pelo contrário, vãs ilusões, que impedem ao tracaráter físico da cor, prefere-se o desenho ao -se ncia Renu os. arcan olos símb ou nais denão define a construção formal das figuras; ço. Porém o traço, ainda que nítido e duro, imasua imensidão, sua deslumbrante e imóvel fine, pelo contrário, sua indefinibilidade, À contrapõe ao “pitoresco”, poética do relativo. nência. Poérica do absoluto, o “sublime” se scen existir a tran terrenos, para além dos quais só pode razão é consciente de seus limites razão pode-se coda apenas do ponto de vista dência ou o abismo, o céu ou o inferno. Mas vive Assim como Fussli vive de pesadelos, Blake locar o problema daquilo que a ultrapassa. mitoto do passado, que, no entanto, é mais de visões: em ambos é dominante o pensamen mias está nas coincidências € divergências entre logia do que história. Para Blake, a verdade a ciência) tem O poder de evocar. tologias, que apenas a arte (certamente não rsal abstrato, o classicismo é problematiJustamente por ser concebido como um unive que põe inspirado, solitário, sublime, o demiurgo zado. Admira-se em Michelangelo o gênio de Michelanque mais pode ser O transcendentalismo o Mas . terra a e céu o ção nica comu em e o como perfeito equilíbrio de humanidade gelo senão a superação do classicismo entendid nisé , arte clássica a expressão total da existência natureza? A poética do “sublime” exalta na inua idera esse equilíbrio como algo que não cont so é neoclássica. Entretanto, visto que cons epconc romântica, já éa apenas ser reevocado, já € e que está perdido para sempre, podendo
ção da história como revival, víduo integrado em seu ambiente natural, A poética iluminista do “pitoresco” vê o indi da solidão víduo que paga com a angústia co pavor ea poética romântica do “sblime”, o indi contraambas as poéticas se completam, e na sua a soberba do seu próprio isolamento; mas víduo da época, à dificuldade da relação entre indi dição dialética refletem o grande problema ” do “pitoresco”, Fussli e Blake na do “sublime e coletividade. Constable e Turner, na vertente uma finalidade existência, que já não se justifica com trabalham durante os mesmos anos À €O mundo: ou se vive da relação com os outros no além, tem de encontrar seu significado no revida, ou o euse absolutiza e corta qualquer cuse dissolve numa relatividade sem fim, eéa tancons rá moderna, a dialética dos dois termos muda lação com o outro, e éa morte. Na arte edade insoci a o Com amentalmente inalterada. temente de aspecto, mas permanecerá fund uma é procura, entre indivíduo e coletividade, de dustrial nascente, a arte moderna também nem a liberdade na necessidade. solução que não anule o uno no múltiplo,
CAPULUDO UM
O
NEOCLASSICISMO
CLÁSSICO]
roMânmCO
21
HISTÓRICO
na condenação, da arlássica é a crítica, que logo se tor neoc arte a toda a um com a "Tem O como moMM M có. Adotando a arte greco-romana Roco o e oco Barr O , rior ante e ent te imediatam que unha sua condenam-se os excessos de uma arte delo de equilíbrio, proporção, clareza, iço da nos outros. Como a técnica estava a serv -la ertá desp rava aspi e ão inaç imag sede na agem. À teoria aro, a técnica era vn tuosismo € até truc imaginação c a imaginação era ilusã ação dos moura de Milizia, mesmo antes da imit itet arqu da ca críti a li, Lodo de ica quitetôn sobriedade do o lógica da forma à função, a extrema numentos clássicos, pregam a adequaçã deve mais refleur as
dos volumes: a arquiterura não ornamento, o equilíbrio e a proporção e, portanto, tame sim responder a necessidades sociais ambiciosas fantasias dos soberanos, vez, não mais mio, O cátcere etc. À técnica, por sua icô man o , ital hosp o as: ômic econ bém racional que à smo individual, mas um instrumento deve ser mspiração, habilidade, virtuosi
ssidades e que deve servir à ela. sociedade construiu para suas nece ntrará um n, em 1735; sua problemática enco A primeira “Estética” é de Baumgarte tica é alesté na de Hegel. A
ca de Kant e sobretudo amplo desenvolvimento na obra filosófi , pretenquais correspondia uma práxis e, portanto go muito diferente das teorias da arte, às sofia da filo tica é uma trizes para à produção artística. À esté
diam estabelecer normas e dire a estética, de fateórico, de uma atividade da mente: arte, o estudo, sob um ponto de vista
mrerrompen Jacques-Lows David As Sabinas que o conbate entre Romanos é Sabentos 5 20m (1794-99), tela, 3,86 e Louvr Paris,
a
CAPHULO LM
CLS85SCO E ROMÂNICO
to, se situa entre a lógica, ou filosofia do conhecimento, e a moral, ou filosofia da ação. É também, notoriamente, a ciência do “belo”, mas o belo é o resultado de uma escolha, e a es-
colha é um ato critico ou racional, cujo ponto de chegada é o conceito. Não se pode, contudo, dar uma definição absoluta do belo: como é a arte que o realiza, só se pode defini-lo en-
quanto realizado pela arte. É verdade, porém, que se faz uma distinção entre o belo da arte e o belo da natureza, mas as duas formas do belo estão em estreita relação: como a arte, por definição, é imitação, não existiria o belo artístico se não se imitasse a natureza; no entanto, sé
a arte não ensinasse a escolher o belo entre as infinitas formas naturais, não teríamos noção
do belo da natureza. Para Winckelmann,a arte grega do período clássico é a que a crítica
aponta como a mais próxima ao conceito de arte; por conseguinte, a arte moderna que imita a antiga é, simultaneamente, arte e filosofia sobre a arte. : Quase na mesma época, Mengs indica outros períodos ou momentos da história da arte como modelos da arte moderna. portanto, mais importante do que escolher um determinado modelo em vez de outro é pos-
sibilitar que a atividade artística se inspire em períodos ou momentos da arte abstraídos da história e elevados ao plano teórico dos modelos. Tampouco é indispensável identificar mo-
delos históricos precisos. Em O suramento dos Horácios, David se inspira na moral da Roma
republicana sem se remeter, a não ser pela imaginação, à arte romana daquele período
À premência dos problemas suscitados pelas rápidas transformações da situação social,
política, econômica, bem como pelo impetuoso crescimento da tecnologia industrial, sem
dúvida contribui para a identificação do ideal estérico com “o antigo”. À razão não é uma
entidade abstrata; deve dar ordem à vida prática e, portanto, à cidade como local é instrumento da vida social. Sua crescente complexidade leva à invenção de novos tipos de edifícios
(escolas, hospitais, cemitérios, mercados, alfândegas, portos, quartéis, pontes, ruas, praças etc.). À arquitetura neoclássica tem um caráter fortemente tipológico, em que as formas
atendem a uma função e uma espacialtdade racionalmente calculadas. O modelo clássico
permanece como ponto de referência para uma metodologia de projetos que se coloca problemas concretos e atuais, mas sua influência sobre o agir presente não é maior que a do “mo-
delo” humano de Brutus ou de Alexandre sobre as decisões políticas de Robespierre ou as cstratégias de Napoleão As escavações de Herculano e Pompéia, duas cidades romanas destruídas por uma
erupção do Vesúvio (79 d.C.), que revelaram, juntamente com a decoração e os ornamen-
tos, os hábitos e os aspectos práticos da vida cotidiana, contribuíram para transformar e, ao mesmo tempo, definir melhor o conceito de classicidade. Já se pode estudar também a pin-
tura antiga, antes conhecida através de poucos exemplares e pelas descrições dos literatos.
Com Champollion, que ajudou nas campanhas de Napoleão no Oriente, descobre-se quase com assombro a refinadíssima civilização artística do antigo Egito — outro componente
da cultura neoclássica , sobretudo do “estilo império”. Começa a surgir a idéia de que a cidade, não sendo mais patrimônio do clero e das
grandes famílias, mas instrumento pelo qual uma sociedade realiza e expressa seu ideal de progresso, deve ter um asseio e um aspecto racionais. A técnica dos arquitetos e engenheiros deve estar a serviço da coletividade para realizar grandes obras públicas. Os pintores,
também eles com os olhos postos na “perfeição” do antigo, parecem preocupados sobretudo em demonstrar sua modernidade: dão preferência ao retrato, com o qual procuram definir simultaneamente a individualidade e a socialidade da pessoa; aos quadros mutológi-
cos, em que projetam na evocação do antigo a “sensibilidade” moderna, e aos quadros his-
tóricos, em que refletem seus ideais civis. Os marceneiros e os artesãos, aos quais se deve a
difusão da cultura figurativa neoclássica entre os costumes sociais, descobrem que a simpli-
cidade construtiva do antigo se presta admiravelmente à produção já parcialmente em série, e assim favorecem o processo de transformação do artesanato em indústria.
No campo arquitetônico se forma a nova ciência da cidade, a urbanística. Pretende-se
que a cidade tenha uma unidade estilística correspondente à ordem social. Ela é prenuncia-
da pelos chamados arquitetos “da revolução”, em primeiro lugar BOULLÉE (1728-99) e LEDOUX (1736-1806); terá o seu grandioso apogeu no ambicioso sonho napoleônico de transformar não apenas as arquiteturas, mas também as estruturas espaciais, as dimensões,
as funções das grandes cidades do império: imensas praças, ruas longas e muito largas, ladea-
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Louis Boulléc Projero de rgeja
metropolitana (1780
1800)
Bibliothéque Nartonalt
das por grandes edifícios severamente neoclássicos, quase sempre destinados a funções pú-
blicas. O público deveria sempre prevalecer sobre o privado, e, se o sonho de uma urbanís-
tica européia em grande parte permaneceu nos projetos dos arquitetos, a culpa é da restau-
ração clérico-monárquica e, a seguir, da burguesia, que reforçaram o princípio da propriedade privada e da livre disponibilidade, geralmente com finalidades especulativas, dos terrenos urbanos. À nova ciência urbanística, porém, não está exclusivamente ligada à Revolução Francesa e a Napoleão, ainda que, no início do século passado, tenha-se estudado para
muitas cidades européias uma reforma do espaço urbano e de suas estruturas que se remete
às grandiosas transformações de Paris na época de Napoleão: nãosó todas as nações, mas quase todas as cidades européias têm umafase neoclássicque a, manife uma sta vontade de r reform a e adequação racional às exigências de uma sociedade em transformação. O Neoclassicismo não é uma estilística, mas uma poética; prescreve uma determinada
postura, também moral, cm relação à arte e, mesmo estabelecendo certas categorias ou tipologtas, permite aos artistas certa liberdade de interpretação e caracterização. À imagem da Milão austríaca, como se deduz da arquitetura severa e elegante de Piermarini e que se es-
tende ao campo dos costumes através da “modelística” de Albertolli, é certamente mais con-
servadora do que revolucionária, e pode-se dizer o mesmo sobre a Veneza modernizada por Selva; demonstra-o o fato de ANTOLINI (1754-1842), querendo dar a Milão um aspecto “napoleônico”, ter mudado radicalmente a escala das dimensões e a articulação dos espaços. A expansão neoclássica de Turim manifesta mais uma vontade de ordem e simetria do que uma ambição de grandeza. Em Roma, VALADIER (1762-1839) reflete o gosto de uma nascente burguesia culta, tentando corrigir os chamados excessos barrocos, reduzindo as escalas de grandeza, preferindo a elegância ao fausto e, principalmente, mantendo à relação (que, depois, no século passado e no atual, foi brutalmente destruída) entre as formas arqui-
tetônicas e os espaços abertos (os jardins, o Tibre, os arredores). Na Alemanha, em Berlim,
ScHiNKEL (1781-1841) talvez seja o primeiro arquiteto a considerar sua função como a de um técnico rigoroso a serviço de uma sociedade a qual atende, porém evita julgar. Seus exór-
dios são ao mesmo tempo neoclássicos e românticos, mas, após uma viagem à Inglaterra, na época o país industrialmente mais avançado, não hesitou em se dedicar ao neogótico, interessado também nos problemas técnicos que ele comportava. o
Pans
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CLÁSSICO F ROMANTICO
os
CAPÍTULO LM
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CAPÍTULO UM CLÁSSICO E ROMÂNTICO
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Paris, Bibliotheque Nanionale
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rode Besançom. para o tearo Claude Nicolas Ledoux. Prege
deser ho do tratado “L Arclutecinre consideree sous le rapport de! &rt des Mocarsut de la 1 egislanon * (1804),
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Grovannu Antonio Antoni Prorero para a drsposação da horo disposição
Bona em Bonaparre
(1806), a parur de uma gravura
ilão N ia
Giovanni Antonio Antolim Planra do Milã toro» Bonaparte "emem Milão
CAPÍTULO UM CLÁSSICO E ROMANTICO
A escultura neoclássica teve seu epicentro em Roma, nas diferentes interpretações que CANOVA e o dinamarquês THORVALDSEN deram à relação com o antigo. Canova se formara num ambiente onde o gosto pela cor também dominava a escultura, € em suas primeiras obras romanas (monumentos fúnebres de Clemente xi e Clemen-
te xIv, entre 1783 e 1792) mostra-se sensível à tradição barroca, sobretudo às vibrações berninianas da matéria na luz. Manteve relações com Batoni, cujo classicismo era acima de tu-
do uma moderação civil e laica dos impulsos oratórios: um artista que agradava aos ingleses, principalmente a Reynolds. Sua escultura é tensa busca do belo ideal a partir do antigo, que, no entanto, não é um frio modelo acadêmico, mas uma realidade bela e perdida que se quer reanimar com seu calor. Chega-se ao belo por um processo de sublimação daquilo que de início era um estado de violenta e dramática emoção. Ainda hoje, uma parte da crítica exalta os esboços canovianos (a maioria na gipsoteca de
Possagno) pelo modelado imperuoso eacidentado, os soerguimentos e os deslizamentos da luz. Magnífica escultura, sem dúvida, mas não é lícito julgar um arusta pelas fases preparató-
rias do seu trabalho: por mais que os esboços improvisados sejam fascinantes, a verdadeira escultura de Canova é a das estátuas geralmente executadas por seus colaboradores técnicos, e depois cuidadosamente polidas e envernizadas. É por esse processo, ao qual Canova chamava “sublime execução”, que a obra escultural, nascida de uma forte agitação da alma e de um impulso do gênio, deixa de ser uma expressão individual, consutui-se como valor de beleza,
4 vive no espaço e no tempo “naturais”, transmite a quem a olha e entende o desejo de trans-
cender o limite individual e elevar-se ao sentimento universal do belo. O processo eletivo,
portanto, não segue do sentido para o intelecto, e sim para o sentimento. Apesar da glória agora universal do jovem Canova (predileto também de Napoleão), já nos primeiros anos do século xIX um crítico alemão, Fernow, contrapõe ao belo vivo e palpitante de Canova o neo-
classicismo teoricamente mais rigoroso de Thorvaldsen (em Roma desde 1797). Thorvaldsen também não copia o antigo: considera-o como um mundo de arquétipos.
As próprias figuras mitológicas são arquétipos, e arquétipos são seus atributos: propõe-se,
portanto, reconstruir, a partir das tantas imagens de Hermes ou de Atena, os “tipos” de Hermes e de Atena. Recusa como lisonja fácil a relação que com tanta facilidade as estátuas ca-
. novianas encontram com a atmosfera, o espaço da vida, mas sobretudo com a alma de quem as olha, Um mundo de “tipos” é um mundo sem emoções nem sentimentos, destruído de
qualquer relação com o mundo empírico, absoluto. Não importa que o antigo tenha, em
certa época, possuído uma realidade histórica: na poética-filosofia de Thorvaldsen não há espaço nem tempo, natureza nem sentimentos, mas apenas conceitos expressos em figuras ou apenas figuras levadas à imutabilidade e universalidade dos conceitos. É como a arquitetura de Schinkel, com seu cálculo exato dos pesos e empuxos dos cheios e dos vazios, da qualidade dos materiais. Fundamental para toda a arte neoclássica, trate-se de arquitetura, das artes figurativas ou das artes aplicadas, é a ideação ou projeto da obra: um projeto que pode ser impulsivo como nos esboços canovianos, ou friamente filológico como em Thorvaldsen. O projeto é desenho, o traço que traduz o dado empírico em fato intelectual. O traço não existe senão na
folha onde o artista o traça, é uma abstração também da estátua antiga que está sendo copiada. Naturalmente, na época neoclássica atribui-se grande importância à formação cultural do artista, a qual não se dá pelo aprendizado junto a um mestre, e sim em escolas públicas especiais, as academias. O primeiro passo na formação do artista é desenhar cópias de obras nte ao moantigas: portanto, pretende-se que o artista, desde o início, não reaja emotivame ; .
:
delo, mas se prepare para traduzir a resposta emotiva em termos conceituais.
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Domenico Merlin Lazsente em
Salto de besta do Palacio
Varsuta
Caio Rossi Pluero do grão-duque Miguel (1819-23) em Lentngrado,
Batermnre, cose tu 107 We Monument Strert
Cansuan Hansen
Qnicio do seculo X5)
CISTI
drrertor da Vos Frae Kirke
29) em Copenhague
Cruseppe Valadier Desenhe de cassuno ele deus andares corr cebpute
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kriedrich Schinkel. Palco der Nova Guarda (1816-18) em Berbm
Leo von Klenze O Walhalia (1830) nos arredores de Donaustauí
28
CAWITULOUM
CLASSICO É ROMÂNTICO
Cudeera Linal do século xvIt) Castlecoole, Pnniskillen (Irlanda), coleção Larl ot Belmore.
O
ROMANTISMO
,
tuributo início do século xix), madeira e bronze Florença, palacio Pre
HISTORICO
O final da epopéia napoleônica trouxe profundas consegiiências para a arte. À queda do herói segue-se uma sensação de vazio, o desânimo dos jovens destituídos de seus sonhos de glória (pense-se em Stendhal). O horizonte se estreita, mas intensifica-se o sentimento dra-
mático da existência. O refluxo envolve também as grandes ideologias da revolução. Ao teísmo do Ente Supremo contrapõe-se o cristianismo como religião histórica; ao universalismo do império, a autonomia das nações; à razão igual para todos, o sentimento individual; à história como modelo, a história como experiência vivida; à sociedade como conceito abstrato, a realidade dos povos como entidades geográficas, históricas, religiosas, lingiiísticas. Volta-se à idéia da arte como inspiração; mas a inspiração não é intuição do mundo, nem revelação ou
profecia de verdades arcanas, e sim um estado de recolhimento e reflexão, a renúncia ao mundo pagão dos sentidos, o pensamento de Deus Os grandes expoentes do Romantismo histórico são alguns pensadores alemães do início do século xIX: os dois Schlegel, Wackenroder, Tieck. Por trás do pensamento religioso deles encontra-se ainda o desejo de revalorizar a tradição cultural germânica, repleta de temas místicos, como alternativa ao universalismo classicista. Em suma, não se trata de uma concepção nova e orgânica do mundo que se segue a
uma outra, decaída, mas de um aprofundamento do problema da relação entre os artistas e a sociedade do seu tempo. Para os neoclássicos, a arte era uma atividade mental distinta da ra-
cional, e provavelmente mais autêntica: agora se reconhece que o binômio ciência-técnica vem se impondo, desde que, após a ânsia anti-histórica de restauração das velhas monarquias, a burguesia industrial iniciou sua rápida ascensão. É justamente em relação a essa burguesia, que afinal pode ser a única chentela, que os artistas se sentem hostis, em perpétua polêmica.
Por outro lado, o mundo que não apenas é, mas quer ser, a qualquer preço, moderno, exerce sobre os artistas uma forte atração: não podem deixar de perceber que as técnicas industriais, apesar de seu vínculo com a ciência, constituem uma grande força criativa. E necessário, por seu próprio interesse, recusar o que na burguesia há de estreiteza mental, con-
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CAPÍTULO CM
Cras CO E ROMÂNTICO
formismo, negocismo, e estimular o que nela há de coragem, genialidade, espírito de aventura. É fácil compreender como, na organização imposta pelo industrialismo, não era mais
possível conceber a técnica como um bem cultural de toda a sociedade: pelo contrário, é a prerrogativa cultural da classe dirigente. Mais tarde chegar-se-á simplesmente à concepção
da técnica como comportamento expressivo individual. O desejo de uma arte que não seja apenas religiosa, mas expresse o ethos religioso do povo (os românticos, com efeito, falam de povo, não mais de sociedade) e restitua um fundamento ético ao trabalho humano, que a indústria tende a mecanizar, leva à revalorização da
arquitetura gótica, que passa a ser o modelo em lugar da clássica. À arquitetura gótica é antes de mais nada cristã, sua tendência para o alto e sua insistência nas verticais manifestam
um desejo de transcendência; é burguesa porque nasce nas cidades com o refinado artesanato dos séculos XIII e XIV; exprime não só o sentimento popular, como também a história das
comunidades, porque cada catedral é o produto de várias gerações; demonstra visualmente, com o arrojo e a complexidade de suas estruturas, e também com a variedade e a riqueza de
suas decorações, o alto nível de experiência técnica e gosto atingido pelos artesãos locais. Na arquiretura gótica a nova civilização industrial vê não só um antecedente, mas a prova de uma “espiritualidade” que o tecnicismo moderno, pelo menos em teoria, não deveria negar, e sim exaltar. Ao seu tecnicismo espiritualista deve-se também que a arquitetura gótica não tenha si-
do desautorizada e rejeitada de todo pelo racionalismo iluminista. À revalorização do góui-
co se inicia na Inglaterra no começo do século XVIII, o ensaio de Goethe (que depois se tornará classicista) sobre a catedral de Estrasburgo c a arquitetura gótica data de 1772; Hegel,
ao
Flo Eri ir Mig Câmera do: Comunse Torre do Retógio (1840-68) em Londres
29
18S CO FRONÂN
ICO
no início do século XIx, incluirá o Gótico em seu projeto histórico da arte como expressão
típica do ethos cristão. Essa revalorização, ademais, marca a desforra da arte nórdica contra
o classicismo e o barroco romanos. No princípio do século x1x, Schinkel não só admira a sutil sabedoria construtiva dos arquitetos góticos, como também não tem dificuldades em ad-
mitir que, se a arquitetura classicista era apropriada à expressão do sentido do Estado, a arquitetura gótica, por seu lado, exprimia a tradição religiosa da comunidade. Observa-se ainda que, mesmo nas bases de uma nova concepção da técnica construt-
va e de uma nova relação entre o espaço urbano e o “monumento”, isto é, a catedral, a ar-
guitetura gótica tem características estruturais e decorativas diferentes na França, Alemanha, Itália, Espanha e Inglaterra; disso se deduz que, ao contrário da estilística neoclássica, o Gótico reflete as diversidades de línguas, tradições, costumes dos diversos países ou, mais precisamente (visto que este conceito se torna cada vez mais forte), das várias nações euro-
péias. Há casos em que se armbutía às catedrais góticas um significado não só cívico, mas
também patriótico; com o acabamento-recomposição da catedial de Colônia (1840-80),
pretende-se mostrar que esse monumento é o baluarte ideal para a defesa, sobre o Reno, da nação alemã.
O Neogótico também teve seus teóricos. Na Inglaterra, os dois PuciN, pas e filho, montaram acurados índices tipológicos da arquitetura e decoração góticas, extraindo-os dos
edificios medievais, pela primeira vez convertidos em objeto de estudo, e generalrzando-os ou, melhor, descaracterizando-os para obter modelos facilmente repetíveis, mesmo industrialmente — o palácio de Westminster, sede do Parlamento inglês, é simplesmente um mostruário da morfologia neogótica. É então que se forma o conceito de “estilo”, como redução a esquemas de manual dos elementos recorrentes ou mais comuns da arquitetura de uma determinada época, tendo em vista sua repetição banal e adaptação artificial a funções
e condições de espaço totalmente diferentes (por exemplo, a aplicação da morfologia de
uma catedral à sede de um banco). Muito mais importante, também pela sua ligação com as novas técnicas, é o trabalho
reórico c histórico de VIOLLET-LE-Duc (1814-79), sem dúvida o maior pioneiro do revival
gónico na krança. Aprofundou o estudo direto, filológico dos monumentos góticos, investi-
gou os sistemas construtivos e a concepção espacial e de matertal que implicavam, estabele-
ceu e aplicou era mais uma tos — o que monumento
princípios e métodos para sua conservação e restauração. Intuiu que o Gótico linguagem do que um “estilo” Ele próprio restaurou não poucos monumenchamava de “restauração interpretativa”, que se baseia na convicção de que o era sempre (e não era nunca) uma construção unitária, da qual era necessário
retirar o que não coubesse na lógica do esquema. Os resultados, em geral, não foram positi-
vos, porque o edificio quase sempre havia crescido no decorrer do tempo, era obra de várias gerações, tivera uma vida lustórica própria. Mas Vtollet-le-Duc, além de escritor e restauiador, era engenheiro, dos primeiros a sentir as possibilidades que ofereciam os novos materais, a começar pelo ferro. Percebeu que o emprego desses materiais mais resistentes e elás-
ticos transformava em dinâmica a antiga concepção estárica: com o ferro (e depois com o cimento), seria possível criar espaços arquitetônicos não muito diferentes dos da arquitetura gótica, com os grandes vãos abertos entre pilares em rensão e arcos lançados com extrema ousadia. Deve-se a Viollet-le-Duc o faro de se ter restituído aos monumentos medievais, já desprezados como documentos de barbárie, uma razão de ser na cidade moderna, mas tam-
bém a ele se deve o fato de a aiquitetura mais tecnicamente avançada, dita “dos engenhei-
ros”, ter podido construir para si uma ascendência histórica, e assim não maus se apresentar como uma antiarquitetura, boa apenas para fazer pontes e alpendres.
CAPÍTLLO UM
CLÁSSICO E ROMÂNTICO
Eugêne Viollet-le Duc. Casteto de
Prerrefonds (1858-67) nos arredores de Paris
Na Alemanha, GOTTFRIED SEMPER defende a prioridade da função e a finalidade em relação às escolhas estilísticas e ao gosto neogótico do revival. FRIEDRICH SCHINKEL, talvez espelhando o pensamento de Hegel (ou talvez influenciando o filósofo contemporâneo a ele), apresenta o clássico e o gótico como dois “sêneros” que,
no fundo de suas diferenças. têm o mesmo rigor estrutural do “desenho” arquitetônico.
O pensamento de Wackenroder e dos Schlegel encontra uma repercussão imediata no “tevivalismo” dos nazarenos, um grupo de pintores que se formou em torno de F OVERBECK (1789-1869) e E ProrR em Viena, criou uma confraria e depois se estabeleceu em Roma,
num convento às margens do Pincio, com o propósito de recuperar não só a inspiração as-
cética, como também a honesta profissão e a expressão pura dos pintores do Quartrocento italiano. O resultado foi decepcionante, mas com isso se reafirmava a identidade romântica
entre arte e vida, inspiração e fé religiosa, espiritualidade e beleza. Desse grupo de alemães deriva o Purismo italiano (Tenerani, Mussini, Bianchini,
Minardi), com um claro programa de recuperação da simplicidade estilística e do puro sentimento da natureza, próprios dos artistas anteriores a Rafael. O próprio Ingres, em Roma, é tocado por esse apelo à pureza expressiva. O movimento na Inglaterra foi mais
forte do que em outros lugares: a partir da metade do século, dirigida por D. G.
Rosst1'11 (filho de um exilado político italiano), formou-se a Irmandade dos Pré-Rafaelitas, que já no nome mostra seu desejo de se remeter a uma época em que a arte não
tinha qualquer relação com o orgulho intelectual do conhecimento, sendo pelo contrário busca do sagrado na “verdade” das coisas, sentimento simultâneo da Natureza e de
Deus. Preconiza-se a técnica pura, sem artifícios nem seduções, como uma prática reli-
giosa e, ao mesmo tempo, um retorno à condição social, ao ofício humilde, cuidadoso, motal e religiosamente saudável dos antigos artistas-artesãos. Encontram seu defensor e teórico no maior crítico inglês do século, J. Ruskin; o próprio Ruskin e depois dele — e com maior vigor — W. MORRIS, no final do século, revelaram como essa técnica “religiosa” era a antítese da técnica atéia e materialista da indústria. O artista já não é apenas um visionário isolado do mundo, mas um homem em polêmica com a sociedade, a
qual gostaria de reconduzir à solidariedade e ao empenho progressivo coletivo de todos os povos e todos os homens. É a partir desse momento que o protesto religioso contra o industrialismo e suas técnicas mecânicas, sua busca exclusiva do lucro, a exploração
do homem pelo homem, se transforma numa postura política mais ou menos declaradamente socialista.
CAPÍTULO UM
CLASSICOÉ ROMAN TICO
O centro do debate das idéias sobre a arte continua a ser a França. Depois da morte de David, o máximo expoente da pintura neoclássica, esboça-se um nítido antagonismo en-
tre o “purismo” rafaelesco de INGRES e a impetuosa genialidade de DELACROIX, guia reconhecido do romantismo artístico, como Victor Hugo para o romantismo literário. Duran-
te toda a primeira metade do século, manteve-se entre os dois grandes artistas uma tensão, quase uma disputa infindável, que, no entanto, não é uma oposição entre clássico e român-
tico ou acadêmico e libertário, e sim uma divergência sobre o significado histórico do ideal romântico € a sociedade em que sc situa. Ingres, que prefere trabalhar em Roma a fazê-lo
Franz Pforr À exiruda de Rodolfo de Habsburgo em Basta em 1273 (1810), rela, 0,95 x 1,19m Frankfurt, Stadelsches Kunsenstirur
em Paris, está tão persuadido quanto seu rival de que a pintura nasce não tanto da cópia da natureza, mas da interpretação da história, isto é, dos mestres. Remonta de David a Poussin, de Poussin a Rafael; seu hstoricismo, porém, que quer ser superação da contingência
ou catarse, não é em absoluto um revival, como tampouco o é o historicismo tempestuoso de Delacroix; para este é comô se os fatos do passado, mesmo remoto, estivessem ocorrendo sob seus olhos, e ele participasse pessoalmente deles. Delacroix pretende ser, como o definirá seu grande amigo Baudelaire, o pinto! do seu próprio tempo: no entanto, vivendo o presente, revive o passado, torna-o flagrante. Há uma ascendência sua, formada pelos ar-
tistas mais emotivos e dramáticos: Michelangelo, Rubens, Goya. Como o passado é imóvel, morto, se não se o acende com o calor da paixão, é preciso reinventá-lo, animá-lo, agitá-lo. Ingres certamente tem algo de acadêmico e Delacroix algo de retórico; para o primeiro, a arte é meditação c escolha; para o segundo, genialidade e parxão. Porém ambos olham, de dois pontos diferentes, um mundo que se transforma rapidamente: Ingres se abstém com prudência, Delacroix se lança com ímpeto, mas a ambos é comum a preocupação pe-
la nova sociedade, na qual o artista não está mais integrado como componente necessário e modelo de comportamento.
Contudo, não se pode compreender o contraste entre Ingres e Delacroix sem considerar a figura fulgurante, e logo desaparecida, de GÉRICALLT: um pintor que parte da tradição davidiana e certamente se rebela contra o classicismo acadêmico, mas intui que a verdaderra antítese a se resolver numa síntese não é entre o classicismo e o romantismo, e sim entre o
CAPÍTI LO UM
classicismo e o realismo. O classicismo e o 1omantismo são duas maneiras diferentes de ídealizar, mesmo que o primeiro pretenda ser clareza superior e o segundo passionalidade ardente. Ora, a antítese justa, radical, é entre o ideal c o real; mas não há sentido em se propor a encarar diretamente, sem pressupostos, descomprometidamente, a realidade — o problema é sempre um problema de cultura, e só se pode alcançar a realidade destruindo qualquer ve-
leidade de idealizar, de fugir à pressão do'presente Mais que um romântico, Géricault é um anticlássico e um realista. embora não deixe de ter pontos de contato com os exórdios de Delacroix, sua obra e, na verdade, uma ponte entre o classicismo superado de David e o realis-
mo ainda não nascido de Courbet. Ao lado do problema da sociedade, cuja rápida transformação não pode deixar de ser constatada, permanece, todavia, o problema da natureza. Qual é a posição do artista moderno em relação a ele? O que ele “ensina” a ver, já que esta (como define Ruskin) é sua tarefa
específica? Não esqueçamos que a grande pintura francesa do século passado nasceu do contato com a pintura inglesa, especialmente o paisagismo, sobre o qual se realizou em 1824
uma grande exposição em Paris. Constable, com certeza, liga-se diretamente à poética do “pitoresco”, da qual se vale não só para notar a infinita variedade dos aspectos naturais, mas também a infinita variação dos tons, dos matizes das cores. À natureza, para ele, é um uni-
verso totalmente diferente do social: infinitamente mutável, porém constante em seu variar, que a torna extremamente interessante e, ao mesmo tempo, repousante para quem consegue subtrair-se poi alguns momentos ao cinza fumacento das cidades industriais. TURNER, « que trabalha nos mesmos anos, também parte do “pitoresco”, especialmente do gosto pela
mancha (4/01), teorizado por COZINS como estímulo fantástico à interpretação da nature-
za: e seu ideal é a interpretação da natureza como partícipe dos impulsos espirituais, da sensibilidade, do dinamismo da sociedade moderna. À pintura romântica quer ser expressão do sentimento; o sentimento é um estado de espíriro frente à realidade; sendo individual, é a única ligação possível entre o indivíduo e a natureza, o particular e o universal; assim, sendo o sentimento o que há de mais natural no
homem, não existe sentumento que não seja sentimento da natureza. Desse modo pensa o maior paisagista francês do século XIX, COROT, cuja pintura é muto menos “sentimental” e >> mais “realista” quando se afasta dos temas paisagísticos para representara figura. Quando jovem, na Itália, Corot por algum tempo seguiu paralelamente a Ingres, na busca de uma ex-
trema clareza e sobriedade da imagem; mesmo depois, considerou a nitidez e a harmonia da imagem paisagística como a projeção de qualidades interiores, de afinidades eletivas, de equilíbrio entre o mundo moral dos sentimentos e o mundo natural. Uma clara intenção realista, de franco registro dos momentos unissonos entre o mundo interior e o exterior, leva THÉODORE ROUSSEAU, por sua vez, a tentar eliminar todos os pressupostos, mesmo poéticos, da representação da natureza: sua morfologia e tipologia,
seus traços de caráter são igualmente aspectos “humanos” da natureza. Também de intenções realistas é a busca dos “macchraro!i”” toscanos, mas acompanhada por uma vontade de pureza Ingúística (evocação do Quatrrocento toscano). COURBET, por volta dos meados do século, tentou a via do realismo integral. Desde 1847 afirma que a arte, em sua época, não tem mais razão de ser se não for realista. Mas o
realismo não significa a diligente imitação da natureza; pelo contrário, o próprio conceito de natureza deve desaparecer, enquanto resultante de escolhas idealistas no ilimitado mun(*) Maceiatolr movimento surgido em Florença, cm meados do século x:x, que utilizar4 uma técnica baseada em manchas (onacetae) az cores luminosas (N 1)
CI ÁSSICO E ROMÂNTICO
34
CAPÍTULO UM
CLASSCOT
ROMANICO
do do real. O realismo significa encarar a realidade de frente, prescindindo de qualquer preconceito estético, moral, religioso. Politicamente, Courbet é socialista e revolucionário (depois da Comuna, terá de sair da França), mas não põe a arte a serviço da ideologia, como faz Daumier com suas litografias
agressivas. Segundo Courber, a realidade para o artista não é em nada diferente do que é para os outros: um conjunto de imagens captadas pelo ter um sentido para a vida, devem tornar-se coisas, dessa maneira serão coisa sua, fato de sua existência. modelo admirado pelo arusta, é sua matéria-prima.
olho. Porém, se essas imagens precisam ser reconstruídas pelo homem. Apenas Em termos simples, a realidade não é o E aqui Courbet se rebela contra a nova
técnica industrial, que embrutece os trabalhadores e não lhes dá qualquer experiência do real. O tempo do artista-artesão terminou; o tempo do arrista-intelectual (Delacroix) é uma
ficção da cultura burguesa. Em todo caso, a arte não mais oferecerá modelos, não mais servirá para melhorar as coisas que o homem produz, a qualidade de vida para os privilegiados que podem usufruí-la. Mas é concebível um mundo em que as aparências perdem todo o significado, um mundo cego? Num mundo apenas de coisas, as imagens também são coisas,
e o artista é quem as fabrica Não as inventa, constrói-nas: dá a elas a força para competir, impor-se como mais reais do que a própria realidade, porque não foi Deus, e sim o homem que as fez. Pintar significa dar ao quadro um peso, uma consistência maior das coisas vistas: em suma, fazer o que se vê não é o mesmo que imitar a natureza. Qual é a distância e o per-
curso entre a coisa vista, que logo desaparece, c a mesma coisa pintada, que permanece? Nada mais do que a feitura, o trabalho manual do artista (Marx teria dito: força de trabalho). Assim, o trabalho do artista se torna o paradigma do verdaderro trabalho humano, entendido co-
mo presença ativa ou mesmo indistinção entre o homem social e a realidade. O artista é um trabalhador que não obedece à iniciativa c não serve ao interesse de um patrão, não se subme-
te à lógica mecânica das máquinas. É, em suma, o tipo de trabalhador hvre, que alcança a liberdade na práxis do próprio trabalho. Eis por que Courbet, que unha idéias políticas muito claras, nunca pós sua pintura a serviço delas. Sua posição ideológica não condiciona a pintura a partir do exterior e não se realiza através, e sim na pintura. Por isso, a pintura de Courbet é o corte para além do qual se abre uma problemática inteiramente nova, que não mais con-
sistirá em perguntar o que o artista faz da realidade, mas o que faz na realidade, entendendo por realidade as circunstâncias históricas ou sociais, tanto quanto a realidade natural.
WILLIAM NEWTON
to, história, passado, presente, futuro). É a anticiên-
BLAKE
JOHANN HEINRICH O PESADELO
CLASSICO E ROMÂNTICO
cia, síntese e não análise, inspiração e não pesquisa,
subjetividade e não objeuvidade. Todavia, a ciência FUSSLI
também tem seus aspectos “sublimes”, por ser um esforço heróico, ainda que fadado ao fracasso, de conhecer e possuir o real. Evidentemente, Blake não
“faz o retrato” de Newton, representa-o simbolicaPara BLAKE, não existem mais “as artes” (pintura, escultura etc.), esim “a Arte”, pura atividade do espí-
rito, que escapa à matéria: toda a obra de Blakc consiste em desenhos em bico-de-pena, pintados com
aquarelas de cores suaves e transparentes. À Arte, segundo ele, é conhecimento intuitivo não mais das coisas individuais, mas das forças crernas e sobre-hu-
manas da criação. Pertence, portanto, a poucos iniciados em misteriosa relação com o divino e o sagrado, ista é, com o Ser na sua totalidade (natureza, mi-
mente como um herói, um titã, talvez um anjo rebelde que se condenou à solidão e inutilmente procura na matemática uma verdade que está nas coisas, mas que não sabe ou não quer ler O céu para o qual não olha e se mantém obscuro para ele, as pedras cheias de variações naturais sobre as quais se senta sem ver constituem justamente a realidade que ignora para
traçar figuras geométricas com o compasso. Seu corpo inutilmente vigoroso, como o de um Michelangelo, dobra-se e fecha-se sobre si mesmo, também formando uma figura geométrica, um quadrado. De
William Blake
Vezwton (1795). Londres, Tate Gallery
Cos ri]
CAPITLS O UM
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CAPILLOLM
E ROMÂNTICO E LASCO
Heimuch Fussh- O pesadelo (1781) tela 401 x 1,27 m Derrot, Trsttur of Arts
fato, a mente racional pode apenas se dobrar, epetnse, renunciar ao vôo até o sol, à comunhão com o Universo São também os anos da Revolução Francesa, que teve em Blake, num primeiro momento, um admuirador fanático: depois considerou-a malograda porque novamente opressora. Para Blake, o modelo do artis-
ta “sublime”, quase um demiurgo entre céu e terra, é Michelangelo: com seu michelangelismo rigoroso, ele se opõe ao classicismo eclético, rafaelesco e correggiano, de Reynolds. Na verdade, é de Michelan-
ritualismo do grupo (quase maçônico em sua ntualidade) dos Rosa-Cruzes.
Também Fussti vê na arte uma atividade inteiramente espiritual, antinaturalista: todavia, o “subli-
me”, para ele, está na profundidade e não na altura, no sonho e no pesadelo, mais do que nas visões transcendentais. O mundo clássico, que considera morto,
pode ser evocado apenas como um fantasma, em aguda oposição (mas também unido por elos secretos) ao presente, e mesmo às modas do dia. Rejeita o espírito científico em nome do erotismo, que se ex-
gelo que ele capta a profunda tendência anticlássi-
prime antes na fantasia do que na realidade. Tanto
ca, isto é, o antinaturalismo e a inclinação ao simbolismo. Blake pode ser considerado o ponto de partida para o grande aico do Simbolismo romântico, que se completará no final do século com a “poética” de Mallarmé, a pintura de Redon e o espi-
Fussli como Blake reconhecem que a ciência é o eixo
da nova cultura e contestam-na porque querem que o artista seja um ser excepcional, em contato com tu-
do o que a ciência, nos limites da sua racionalidade, não chega a compreender.
CAPRELIO RISE CLASSICO ROMAN [IO
ETIENNE-LOUIS BOULLÉE PROJFTO PARA O CENOTÁFIO NEWTON CLAUDE-NICOLAS CASA DOS GUARDAS
DE
LEDOUX CAMPESTRES
BOULLF E e LFDOUX, os grandes teóricos da arquitetura neoclássica, pertencem ao grupo iluminista da Enciclopédia — a reforma a que procederam na arquitetura é um componente do projero de renovação cultural que antecede a Revolução Fiancesa. À posição ideológica de ambos é paralela à posição contemporânea de David. O antigo não é um modelo estilístico, mas um exemplo moral: o exemplo de uma arte livre de preconceitos religiosos, fundada na consciência do diresto natural e do dever civil Ao formalismo estilístico do Rococó, contrapõe-se o princípio tipológico, isto é, a busca de conteúdos inerentes à forma do edifício como cousa em st, cuja função específica se insere num sistema de valores: a natureza, a 1azão, a so-
ciedade, a lei. À cidade não é mais o cenário do drama da vida, é uma forma resultante da coordenação de edificações (o Palácio Nacional, a de diversos trpos Prefeitura, o Tribunal, o Templo, a Fábrica, a Casa
etc.), cada qual com sua própria foima, expressiva de
um significado-função. Ledoux, encarregado em 1773 de estudar a disposição das instalações e serviços das salinas de Chaux, projeta uma verdadeira ci-
dade, a primeira cidade industrial: um conjunto de unidades típicas, classificadas uma a uma como significado e função dentro de um ciclo de trabalho. Na medida em que concebem a arquitetura como definição de objetos de edificação (e não mais como representação perspecrivada e cenográfica do espaço), Boullée e Ledoux não projetam mais através de plantas e seções (sempre relativas a uma representação do
espaço), e sim por entidades volumétiicas, individuando nos sólidos geométricos a síntese entre idéia e coisa, Isto é, a forma típica por excelência. O tipo não é um modelo, mas um esquema que trazem sia
possibilidade de variantes segundo as necessidades conungentes Tanto Ledoux como Boullée projetaram edifícios em forma de esfera: é uma esfera a Ca-
sa dos guardas campestres de Ledoux, uma esfera o Ce-
Enenne-Louis Boullce Lrojeto parto cenotafão de Newsonte. 1780) desenho de “Architecrure Essas sur art” Paris, Bibrothéque Narronale
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CAPÍTULO UM
CLÁSSICO E ROMÂNTICO
Claude-Nicolas Ledoux Cisa dos guardas campestres em Maupertuis (1780), gravura Paris, Bibhorhêque Nationale
notáfio de Newton de Boullée. À mesma forma, mu-
dando o propósito e o mecanismo da função, serve para manifestar conteúdos fera não tem em si mesma Seu conteúdo semântico funcional (como posto de
diferentes. Portanto, a esum conteúdo simbólico. antecede a determinação observação e de guarda) e
simbólica (como vrumba-monumento), e é intrínseco
à esfera como forma fechada e perfeita, universo no
universo, pela qual ela se coloca como fulcro em rela-
JOHN CONSTABLE A REPRESA E O MOINHO FLATFORD
DE
WILLIAM TURNER MAR EM TEMPESTADE
ção a um horizonte circular e infinito, ou melhor, co-
mo forma típica da razão e de sua centralidade em relação ao universo infinito. Toda a arquitetura neoclássica se produzirá como desenvolvimento de temas tipológicos, isto é,
como busca de uma classificação cada vez mais precisa do objeto, cuja possibilidade está implícita no esquema ou t:po do próprio objeto.
A arte moderna nasce da cultura artística do Tluminismo, cujos temas fundamentais eram: 1) a recu-
sa da retórica figurativa barroca e da função comemorativa tradicional da figuração alegórica e históri-
co-religiosa; 2) a busca de uma lógica da representação formal e de uma funcionalidade puramente social da arte: por conseguinte, desenvolvimento dos “gêneros” mais apropriados para a análise da realida-
de natural (paisagem) e social (retrato); 3) a autonomia e especialização profissional dos artistas. No início do século xix, dois paisagistas ingleses, JotN CoONSTABIT e WiLllAM TURNER, esclarecem
com suas obras quais podem ser as atitudes do homem moderno frente à realidade natural. Depois da famosa exposição da pintura inglesa em Paris, em
4 John Constable A represa e o mosmho de Flutfordic 1811), vela Tondres, f Victoria and Albert ,Museum
VWilham Turner Mar cm cempotade (c 1840), cla, 091 x 1 22m
Londres, Tate Gallery
ÃO
CAPITULO UM
CLÁSSICOE ROMÂNTICO
1824, a obra de ambos teve uma influência decisiva sobre o nascimento e desenvolvimento inicial do Ro-
mantismo francês.
ambiente que pode ser acolhedor ou hostil, mas com
o qual se tece sempre uma relação ativa, não diversa da que liga o indivíduo à sociedade.
A formação dos dois pintores é diferente: Constable
parte do estudo da paisagem realista holandesa, Turner da tradição da paisagem clássica ou histórica de Claude Lorrain e das vistas em perspectiva de Canaletto. Para Constable, não existe um espaço universal, dado a priori e, na sua estrutura, imutável; seu espaço é composto de coisas (árvores, casas, águas, nuvens), e elas são captadas como manchas coloridas, que o pintor se esforça em representar com imediaticidade, servindo-se de uma técnica rápida e vigorosa, com pin-
celadas encorpadas de cores nítidas e brilhantes. Para Turner, é sempre a intuição 4 przorz de um es-
paço universal ou cósmico que se concretiza e se apresenta à percepção nos temas particulares. Constable quer distinguir claramente, em suas diversas qualidades, as manchas coloridas que correspondem
FRANCISCO
GOYA
FUZILAMENTO
Na Espanha setecentista, socialmente atrasada e politicamente reacionária, os poucos intelectuais abertos às idéias do Iluminismo europeu (os “libe-
rats”) não são uma força política — não podem senão viver com dilacerante lucidez a tragédia de uma nação em retrocesso numa Europa em progresso. GOYA
está entre eles; para ele, a Eutopa é a brilhante iionia com que Tiepolo celebra os faustos da decadência de 'eneza, é a crítica social de Hogarth.
Interessa-se,
às coisas; mas seu esforço não pretende delas deduzir
mas cético, pela teoria classicista levada à Espanha
as noções das coisas e assim transformar as sensações em noções (por exemplo, o vermelho de uma casa na
por Mengs e pelo otimismo à Rousseau de Gainsborough. No momento da grandeza artística espanho-
descrição da casa), e sim determinar o valor de cada
la, na primeira metade do século xvn, haviam-se
notação colorida e suas relações, que, em seu conjunto, formam o espaço. Para Turner, pelo contrário, o espaço é uma extensão infinita, animada pelo agitar-
aberto dois caminhos: a arte como fanatismo teligio-
se de grandes forças cósmicas, de modo que as coisas são tragadas em vórtices de ar e em turbilhões de luz,
quez). À arte segundo a razão de Velásquez fora o
acabando por serem reabsorvidas e destruídas no ritmo do movimento universal.
A visão de Constable não se limuta a captar e representar fielmente a impressão que se grava no olho e na mente; a impressão que se recebe não é dissociável da reação afetiva do sujeito, que, sendo ele também
so, 1rracionalismo puro (El Greco), e a arte como
límpida inteligência, dignidade moral e civil (Velásponto de partida, ou pelo menos um prenúncio, daquele Iluminismo do qual a Espanha era agora excluida pela monarquia e pelo clero: a razão, para Goya, é apenas o exoicismo com que invocar é esconju-
rar os monstros do obscurantismo, uma superstição laica contra a supersrição religiosa. Na primeira fase da obra de Goya, que culmina
natureza, reconhece naquele espaço seu ambiente
nas águas-fortes de Os caprichos (1799), a razóninvo-
próprio. É, portanto, uma vista emocionada. A visão de Turner revela um dinamismo cósmico que escapa ao controle da razão, mas que pode arrastar a alma
ca do inconsciente os monstros da superstição e da
humana em éxtases paradisíacos ou precipitá-la na angústia. É, portanto, uma vista emocionante. No primeiro caso é o sentimento humano (com o funda-
mento ético que o pensamento iluminista lhe reconhece) que atribui um sentido ao ambiente natural, no segundo é este que suscita uma reação passional. Em ambos os casos, de qualquer forma, a natureza
não é concebida como o reflexo do criador na imagem do criado, e sim como o ambiente da vida: um
ignorância gerados pelo sono da rzzón. Goya não é
um visionário como El Greco; ele descreve a smagerie do preconceito e do fanatismo com lucidez voltam iana, mas sem a ironia superior do filósofo, antes com furioso sarcasmo. À estrutura do discurso figurativo
permanece barroca, mas levada ao limite da dissolução. Goya não tem a ilusão de resgatar na arte o absurdo histórico e moral; ao ideal do belo reorizado por Mengs, contrapõe a realidade do feio. O êxtase
de El Greco, perturbado, torna-se pesadelo, o cauchemar de que fala Baudelaire. O artista é testemu-
CAPÍTULO UM
nha do seu tempo, não é culpa sua se é uma testemunha de acusação. O expressionismo exacerbado que contrapõe primeiramente ao classicismo de Mengs, c a seguir ao de David, não é uma escolha livre, mas
forçada e negativa. Para ser do seu tempo, o artista deve ser contra seu próprio tempo; por isso, Goya, que numa Europa já totalmente neoclássica parece
CLÁSSICO b ROMÂNTICO
não esconder nada, não escolher: é o que Goya faz
em sua confissão geral, os murais da Quinta del Sordo (1820-2), sua casa perto de Madri. Rodeia-se de
seus fantasmas porque vive deles, que são a única, verdadeira realidade: uma homenagem ao Calderón de
A vida é um sonho, mas também a prova de que não há
mantismo histórico. A razão divinizada pela revolução chega também à
antítese, e sim identidade entre o Goya visionário e o Goya realista. (Da mesma forma, não há antítese entre o David neoclássico de O juramento dos Horáciose o David realista de 4 morte de Marat.)
Espanha, mas tardia e com as baioneras francesas, e
O Fuzilamento (1808) é um quadro realista, docu-
uma monstruosa exceção, é a verdadeira raiz do Ro-
apenas para substituir por um despotismo laico o dos Bourbon e dos padres: uma burla no cúmulo da infelicidade. Então Goya se põe ao lado da “nação” espanhola — um outro passo em direção ao Romantismo histórico. De fato, este nascerá dez anos depois, com o fracasso do universalismo napoleônico; porém, pa-
ra Goya, Napoleão não foi nem herór nem gênio, talvez apenas outro mito, outra superstição. Portanto, antecipa também a vocação realista do Romantismo,
mas seu realismo não é cópia da realidade, é o que resta quando uma ideologia se desintegra. Não só os
menta a repressão impiedosa dos movimentos antifranceses de maio: como seria, hoje, uma reportagem fotográfica sobre as atrocidades no Vietnã. Os soldados não têm rostos, são martonetes uniformizadas,
símbolos de uma ordem que, pelo contrário, é violência e morte (um tema que será retomado por Pr-
casso em Massacre na Coréia). Nos patriotas que morrem não há heroísmo, pelo menos não no senti-
do classicista de David, mas fanatismo e terror. À história como carnificina, como catástrofe (são dessa
época as águas-fortes de Os desastres da guerra). A destruição se cumpre no halo amarelo de uma enorme
grandes românticos, como Delacroix, mas os grandes realistas, como Géricault, Daumier, Courber, terão muito a aprender de Goya (que viveu seus últi-
lanterna cúbica: eis “a luz da razão”, enquanto ao redor está a escuridão de uma noite como todas as ou-
mos anos na França, em Bordeaux). Negando a ideo-
tras e ao fundo a cidade adormecida.
logia, Goya nega também a história, que para ele é
uma ideologia do passado por representar o mundo cemo se gostaria que tivesse sido. Até a natureza, como se apresenta aos sentidos, é uma ideologia, a realidade como se gostaria que fosse. O realismo, se verdadeiramente tal, é antinaturalista. O verdadeiro realismo consiste em pôr para fora tudo o que se tem dentro,
Quando David pinta Marat assassinado, a desor-
dem do acontecimento — a agressão, a agonia, a morte — já se recompós; o crime ainda não foi des-
coberto, mas a história já se iniciou, Marat agora se transformou numa estátua. No quadro de Goya, na-
da se cumpre e se torna hustória: o Aberal tenta um belo gesto heróico, o frade procura uma última ora-
Pablo Picasso Massacre na Coréra (1951) 1,10=2,10m Vallauris coleção Picasso
4]
áz
CAPÍTULO
UM
CT ÁSSICO F ROMÂNTICO
ção, mas o terror é mais forte. A idéia pela qual morrem já se desvaneceu, há apenas a morte física, Em um instante, aqueles homens vivos estarão mortos como os outros, tombados um instante antes e já des-
fuzilamento, não se demora em observar o belo efeito de luz ou de cor. Quer fazer o contrário do que faz David, quando transfo:ma um assassinado em está-
tua: apresentar uma realidade que não é eterna,
feitos na horrenda mescla de lama e sangue. Enquan-
que, pelo contrário, queremos que passe, uma ima-
to isso, a cidade dorme. Eis a História. Este quadro arroz foi pintado enquanto Ingres pintava sua Banhusta de Valpinçon e Canova retratava Paolina Bonaparte nua. Não basta dizer que, na perspectiva desesperada de Goya, como não há espaço para a natureza e para a história, também não há espaço para o belo. T, Não é por escrúpulo moral que, representando um
gem que cobrimos os olhos para não ver. É uma imagem que traz em si o seu prazo de vencimento imediato; em um instante, será ainda mais desespe-
krancisco Criya Fugilamento (1808) 206-3,45m Madri Prado
tela,
radora Goya é um românuco também por essa ligação da imagem à transitoriedade, à brevidade do tempo: a imagem arde como um fogo de palha. À vida é sonho,
mas a morte
2
não é despertar, é sono
CAPITULO UM
sem sonhos A pintura de Goya ainda é barroca, mas ao avesso; é imaginação, mas imaginação perturbada, desesperadora. Goya é a antítese de David e talvez, co-
CLÁSSICO
ROMÂN LICE
DAVID JACQUES-LOUIS A MORTE DE MARAT
mo artista, maior. e este é o seu limite. Retrata em
grande pompa a família do rei, mas derxa transparecer nos rostos, porque sabe percebê-las, a tolice e a depravação. Pinta uma bela mulher, mas só cle vê em seu fascínio erótico os sinais da decadência iminente. Ele e os poucos “liberais” como ele, que permanecem às margens da vida e se consolam com o sarcasmo. David é um cultor do beto, um admirador do antigo: no entanto, em 1793, depurado na Convenção, vota pela condenação do rei. É o outro lado da moeda da história.
Para DAviD, o ideal clássico não é inspiração poética, mas modelo ético. Não oculta a realidade da história com o mitologismo arcádico, não a su“« pera na metafísica do “sublime”; com firme e controlada paixão, olha o trágico que não está além, c sim na crua realidade das coisas. Em 1784, pintando em Roma O juramento dos Horácios, contesta a
idenudade pré-romântica entre trágico e sublime; como Alfieri (e a coincidência não é casual), pensa
que o trágico não é sublime, mas histórico Declae ra-se “filósofo”, professa um estoicismo moral cujo modelo é a ética cívil (Plutarco, Tácito); como as arquitetos neoclássicos, que aspiram ao ideal por meio da adesão lógica às exigências sociais, propõe,
se como dever a fidelidade lúcida, impiedosa ao fato. Apresenta Marat morto: é uma oração fúnebre,
dura e enxuta como o discurso de Antônio diante do corpo de César na tragédia de Shakespeare, rigor osa como o requisitório de Saint-Just pela con. denação de Luís xvt. É visível a referência ao classicismo moral de Poussin ou de Philippe de Champaigne, aos trágicos franceses (Cornceille e Racine):
paradoxalmente, poder-se-ia dizer que David é o 4
jansenista da revolução Não comenta, apresenta o faro: produz o restemunho mudo e irremovível das coisas. Elas expressam a infâmia do crime e a virtude do assassinado. A banheira em que estava imeiso para aliviar as dores e na qual escrevia suas mensagens ao povo expressa a virtude do tribuno que | rancisco Goya
Vo se escaparess1 799), agua-forte
de Oscaprichos 019 =0.14m
domina o sofrimento para cumprir o dever. Uma caixa de madeira mal pintada serve de mesinha: expressa a pobreza, a integridade do político. Sobre a caixa há um assignat que, embora pobre, envia a uma mulher cujo marido está na guerra e que não tem pão para as crianças. Expressa a generosidade do homem. Embaixo, em primeiríssimo plano, a faca e a pena a arma da assassina é à arma do tribuno. À esta comparação
corresponde,
no alto, a
comparação entre as duas páginas escritas: a ordem de entregar o assignarà cidadã necessitada (a bondade da vítima) e a falsa solicitação da emissária da
reação (a traição da bondade).
4 *
3
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CAPTLLOUM
À
'
F ROMÂNTICO CLÁSSICO
em que se vêem, com a alucinante clareza de um trompe-l vetl, os veios da madeia, os nós, os buracos
luz-sombra dão à pintura um tom uniforme, lívido e pálido, cujos extremos são o lençol branco e o tecido escuro. Nesse tom grave destacam-se, impressionantes, as poucas gotas de sangue: assinalam o clímax
dos pregos; nas folhas lêem-se as palavras escritas, a
dessa rragédia sem vozes e sem gestos (“história sem
data. É ainda a velha maneira da pintura do Iluminis-
ação”, dizia Bellori sobre a pintura de Caravageio). À
mo (Hogarrh) de determinar o local do fato median-
filosofia de David, afinal, é a moral do revolucioná-
te uma série de presenças significativas, testemunhais; mas não há o gosto narrativo que dava à representação a duração de uma cena de teatro, de um ca-
pítulo de romance. A definição do local, tão exata em primeiro plano, dilui-se no alto: mais da metade do quadro é vazia, é um fundo abstrato, sem sinal algum
rio: de quem, sabendo-se já condenado, julga poder condenar sem infringir a lei moral. David fregientemente visitava os condenados que eram levados à guilhotina e retratava-os com poucos traços de extrema intensidade (veja-se o Retrato de Maria Antonseta, o único remanescente desses dese-
de existência. Da presença tangível das coisas passa-
nhos): dessa semente nascerá o realismo de Géricault.
sc à desolada ausência, da realidade ao nada, do sei ao
No quadio de Marat morto, ele condensa a expe-
não-ser. À borda da banheira, metade coberta por um tecido verde e metade por um lençol branco, é a
rência e a moral da época em que vive. Marar tam-
Nenhuma idealização formal: o lado da caixa-me-
sinha, que fixa o plano-limite do quadro, é um eixo
linha que separa as duas regiões, das coisas e do nada.
O espaço é definido pela sóbria, quase esquemática contraposição de horizontais e verticais. Na exígua zona intermediária morre Marat David não descrevea violência do assassinato, nem o tormento da ago-
bém é um “justiçado”, e a injustiça de que é vítima
resgata as condenações que pronunciou, absolve-as de qualquer censura de injustiça. Como exprime David essa lógica férrea ao absurdo? No espaço do quadro: horizontais e verticais, plano frontal (a caixa) e
nia, nem a angústia da morte, mas, como filósofo, a
profundidade ilimitada, na perpendicular. Note-se na figura a relação entre o nariz, que
passagem do ser ao nada.
acompanha a horizontal da borda da banheira, e as da morre,
sobrancelhas, que acompanham as verticais da caixa
David parece ligar-se, a dois séculos de distância, a
e do braço. Note-se também o prumo da cabeça so-
Caravaggio. como no Sepultamento de Cristo, o tema dominante é o braço que se abandona, mas que é percorrido por um último sopro de vida; e aqui também essa parte anatômica se destaca no branco e se desvia
bre o braço. E como no exato ponto de convergência
Por esse estóico deter-se no momento
levemente do prumo da dobra. David chega a Caravageio através de Poussin Em Poussin também é fre-
quente o tema da morte — como passagem do presente a um passado sem fim, do drama à catarse. Somente além da vida reencontrava aquela serenidade clássica que, para ele, reunia o sentido pagão ou na-
tural e o sentido espiritual ou cristão da vida. No entanto, a filosofia de David não é cristá nem pagã, é atéia. Para ele, a morte é apenas o deter-se do presente, as coisas sem a vida. Não havendo drama, não há
tempo nem espaço. Há no quadro uma nítida contraposição entre sombra e luz, mas não há uma fonte luminosa que a justifique como natural. Luz significa vida; sombra, morte: não se pode pensar , a vida, sem poapensa: a moite, e vice-versa Isso também está na lógica da filosofia de David. A firmeza e a frieza da contraposição
desse claro esquema compositivo se encontra a boca de Marat, em que a última contração da agonia já se enrijece e se recompõe no enigmático sorriso do filósofo que vê cumprir-se o que sabia ser seu destino. Assim David chega, utilizando basicamente ve-
lhos marertais (de Caravaggio a Hogarth), a uma nova concepção do quadro histórico: a história não é mais faro memorável e exemplar, tampouco drama ou episódio; é a lógica e, ao mesmo tempo, a moral dos acontecimentos.
API
+
ANTT A SIC O ANT + RON LOS UANr CTASSICO
Jueques Lotus David Ch peramenro dos Hovacras (1784) vela 3,3 x 4,26 m
Caravageio. O sepreitamento de Cristo .603-41
detalhe conunto3 *203m Pinacoteca Vaucana
Roma
Maria Ansonteta levada ao suplecro( TO)
desenhoa b.co de pera. Copia de David
CO CO
453 43
46
CAPITULO UM
CLASTCO E ROMÂNTICO
Jacques-T ouis David A morie de Masrar (1793) tela, 1,65 x 1,28m Bruxelas, Musées Rovaux de Beatix Ares
Mo
ANTONIO
CANOVA
MONUMENTO CRISTINA
DA
pontífice no alto. A correção neoclássica consistia na
DE MARIA
pictórico, a um esquema rigidamente geométrico,
piramidal, c na acentuada separação dos planos em profundidade: o pedestal, as estátuas alegóricas, a u1na, a estátua-retrato. Nos projetos para o monumen-
O Monumento de Maria Cristina, na igreja dos Agostinianos, em Viera, antecede em dois anos a publicação de Os sepulcros, de Foscolo, que pode ser considerado seu paralelo literário. Em toda a arte neoclássica ressurge com insistência o tema da morte, que se assocta espontaneamente à idéia de uma classicidade profundamente amada, mas irrecuperável, Nesta obra, CANOVA desenvolve os estudos para um monumento à Ticiano, que lhe fora encomendado em 1794 e nunca chegou a ser executado. No início de sua carreira, Canova esculpira em Roma dois outros grandes monumentos fúncbies, respectiva-
toa Ticiano desaparece a estátua do defunto, e o que
antes era um esquema compositivo piramidal materializa-se numa verdadeira pirâmide, vista no entanto de frente como um triângulo levemente inclinado para trás. À pirâmide é uma forma geométrica pura, mas é também um símbolo mortuário: no planejado
monumento a Ticiano, porém, era apenas um plano de fundo atrás do sarcófago. Em outros termos, era um rema ideal que ressaltava o significado mor tuário
explícito e concreto da urna.
No Monumento de Marta Cristina Faltam a estátuaretrato (substituída por um medalhão) e o sarcófago.
mente dedicados a Clemente x1v (1787) ea Clemen-
A composição é dominada pela grande pirâmide, que
tem um duplo significado, objetivo e simbólico. É
santuário sepulcral, tumba; mas, num sentido mais amplo, é símbolo da morte e do além-rúmulo. Tam-
bém do ponto de vista formal, o significado é duplo:
Antonto Canova Monumento de Clemente AIV(I783-7), marmore, 7.40 m
dealtura Roma. Sant Apostols
OIT ROMÂNTICO
redução do conjunto berniniano, movimentado e
ÁUSTRIA
te xit (1792). Neles, havia retomado « reelaborado criticamente, corrigindo e reduzindo, o tipo de monumento sepulcral barroco, berniniano: estátuas alegóricas embaixo, o sarcófago no meio, a estátua do
UTASS
Amomo Canova Modelo Pere a montementa dt Tocearen (791 9), terracota, 0,70 » 0,69 x 020 m Possagno, Gipsorer:
48
AOUM
CLÁSSICO E ROMAN
TICO
a pirâmide é uma forma sólida, de três dimensões,
com uma porta aberta que sugere o espaço interno; contudo, vista frontalmente, apresenta-se como um plano, uma tela branca e luminosa, um diafiagma que separa o espaço claro da vida e a dimensão sombra da morte, Bastam a simplicidade do símbolo geométrico e a pureza brilhante do plano para dar a toda a área frontal, por onde lentamente avança o cortejo dos enlutados, a sensação de um espaço mais que terreno, quase um recinto sagrado, onde todo gesto humano tem a gravidade, a profundidade significativa de um ato ritual. Numa síntese extremamente elevada, Canova consegue reunir e exprimir, na unidade da forma, a concepção clássica e a con-
cepção cristã da morte, a profunda obscuridade do Hades e a luz do paraíso. Dessa duplicidade do significado deriva a possibilidade de uma interpretação dupla, mas não ambígua, da representação. É simplesmente um cortejo fúnebre que sobe para deposita: no sepulcro a urna das cinzas: é a interpretação clássica, pagã. Mas é também um hino à memória consoladora, que com delicadas grinaldas de flores une os vivos a seus mortos, e, dando uma direção mais larga às idéias, uma reflexão sobre o inelutável avanço da humanidade rumo à misteriosa soleira da morte. E esta é a Interpretação cristã. No espaço, tudo é imóvel e claro na geometria das proporções; tudo transcorre e se dilui no ritmo do tempo Os degraus que levam à porta escandem o passo lento do pequeno
intonto Lanova Estudo para a descoberta do verpode
Abe
Pessagio
Copsuteca
ISIS 22), urracora
022208040
18m
cortejo; mas um tapete liga O exterior € o interior, es-
tende-se fluido como um lençol de água nos degraus. A solidez do espaço se entrelaça com a continuidade do tempo; rompe-se a simetria da composição; à pro-
porção sucede-se o ritmo “e a melancólica harmonia que o governa”. Na abstrata dimensão espácio-tempoaral, as figuras se sucedem subindo a intervalos irregulares, mas
rítmicos, que dão à composição a cadência lenta e grave de um canto fúnebre: pela primeira vez vemos um monumento composto por estátuas livres, liga-
das poi uma ordem não-arquitetônica, deliberadamente assimétrica. Observemo-las: não são alegóricas nem simbólicas; pelo contrário, em alguns deta-
lhes (o delicado calcanhar da menina, a pele frouxa do velho), de uma
evidência comovente,
piedosa.
Não estando inscritas nem enquadradas, mas livres
no espaço, todas as figuras são caracterizadas em sua singularidade, e decerto, classificando-as segundo a idade, Canova quis se referir aos misteriosos desíg-
nios da Providência ou do fado, pelos quais as crianças por vezes atravessam a soleira da mortc antes dos velhos a quem pesa a vida. Mas isso não é
alegoria nem símbolo, é smultânea reflexão filosófica e cristã sobre o mistério da vida e da morte. O processo artístico de Canova é esta ascensão da paixão à eticidade do sentimento, e do sentimento ao pensamento: explica perfertamente o caráter de abstração formal, até de deliberada frieza transcenden-
Bertel | horvaldsen Hebe (1816) mármore 1,59 m de al-
cura Copenhague, Museu | horvaldsçy
CAPTLULU
(al, das estátuas concluídas em comparação à ime-
diaticidade dos esboços. Agora a simbologia de certas formas também se revela pelo que realmente é: não símbolo ou desdobramento, mas sublimação do significado. Independen-
temente da possível referência às pirâmides egípcias, a pirâmide-tumba tem um significado inerente à própria forma. Pesa sobre a terra com todaa sua base, mas termina num ponto, e esse ponto é o limute entre ser e não-ser, Tudo é relativo na vida, tudo é absoluto na morte; a forma geométrica, absoluta, é a única que pode exprimir ou revelar o sentido da passagem do relativo ao absoluto, da vida à morte. Essa pirâmide bran-
LM
CLÁSSICO
E UMANT
tido de absoluto: algo do caráter absoluto da morte mescla-se à relatividade das variações vitais. Mas disse-
mos que cada figura tem um grau acentuado de espontaneidade — sendo assim, em que consistiria essa passagem ao absoluto, se não na subsutuição da matéria vital por uma matéria incorruptível, o mármore? As-
sim se explica a importância que Canova atubuía ao que ele chamava de execução sublime, e que confiava em grande parte a outros, aos “técmicos”, para que não
conservasse nenhum vestígio do impulso emouvo do
forma absoluta para a qual tendem as formas “relauvas” das figuras. Pondo-se em relação direta com essa
esboço Afinal, o esboço apresenta as coisas como são aos sentidos, a estátua as apresenta como são no pensamento; todavia, para Canova, cuja cultura é originalmente luminssta, nada pode estar no pensamento sem ter estado antes nos sentidos. E nada pode estar na moral, sem antes ter estado no sentimento. Qual é en-
forma absoluta, cada uma das figuras assume um sen-
tão, a descoberta canoviana sobre o valor da forma? A
ca não é símbolo nem emblema: é o modelo de uma
Antonio Canova (1798
Monunrenro de Marta Crestna da Astra
1805), marmore
Viena, igreja dos Agostinanos
50
Or ROMÂNTICO CAPÍTULO LM CLASSIC
(isto é, à não é a representação seguinte: que à forma a própria coisa
coisa, mas é projeção ou O “duplo”) da sensodo plano da experiência sublimada, wansposta que er diz Por isso, pode-se rial para o do pensamento. mesma passagem do sensua a e art na ou liz rea va no Ca ou na filosofia, ou,
eto, a calculada frieza. O obj quadros religiosos de um ssava; não O intere como
romântico,
entendia pura forma. O que concebia a arte como “gênero” preferido. se nos retratos, seu
tanto clássico
por forma vês, à psicologia, retar Os sentimento Não tentava interp nas uma coisa
Kant realiz lismo ao idealismo que na música, Beethoven. na literatura, Goethe e, EN s BERTEL T'HORVALDS O escultor dinamarquê início do
balhou em Roma no (1770-1844), que tra cuja O antagonista de Canova,
século XIX, é o êmulo e
um a corrigir no sentido de poética classicista tende esrígido. Ele define a figura “idealismo” formal mais s, çõe s OU sistemas de propor tatuária segundo cânone exato o pes o é à luz ao contra sacrificando o moviment coisa assim se põe como uma dos volumes. À estátua com
€ plástico sem relação em si, como um ripoicônico espaço e luz. À inclinação a variação das condições de va de Foscolo e por vezes poética, que aproxima Cano contrapõe uma postura “Ade Leopardh, Thorvaldsen David e, em certo sentido, losófica” que o aproxima de o de Boullée e Ledoux: do tpologismo arquitetônic os “conceitos” que enconseu objetivo é individuar e ascorreta na forma plástica, tram sua expressão mais al e técnica da escultura. am definir a autonomia ide -DOMINIQUE JEAN-AUGUSTE INGRES VALPINÇON A BANHISTA DE
Permaneceu por muiINGRES for aluno de David. ta cialmente como pensionis to tempo em Roma, ini aca da diretor (1835-41) (1806-20) e depois como rença la Medici, e em Flo demia francesa em Vil premas “italianizantes”, (1820-4). Foi o último dos no e Poussin, aos antigos. feria estudar Rafael, Bronzi renão aceitava a tendência Não foi um neoclássico, m à moderada, canoviavolucionária, davidiana, ne re seu ideal e o ideal rona, do Neoclassicismo. Ent um contraste que se tormânuico de Delacroix havia inha rada e obstinada. Não nou uma polêmica cer íticos. Jovem, prestou hointeresses ideológicos e pol tória” com alguns maravimenagem ao “gênio da his ratos de Napoleão; velho, lhosos mas enigmáticos ret stianismo”, com diversos curvou-se ao “gênio do cri
: este erá ape o drama do personagem No rir e definir claramente. cuja forma queria descob a cia particular um
uzia a aparên entanto, não recond descritivos e constante sem serem
ideal formal único raordinaseus retratos eram exr os, zad eri act car m ne ada à Assim a forma estava lig riamente semelhantes. se que e da coisa, era aquilo dad ari gul sin à , ade lid rea a bem, com absolu-
se vej vê, com a condição de que
ta clareza al e uma ;déia vranscendent Assim, a forma não era codes rmanente, que o artsta imutável, mas um valo ações entre as
em st, Nas rel bra, mais do que na coisa quisa era O desenho: o que utilizava na pes
coisas. O mei ornos, apenas desenha os cont em muitos retratos ele ao, o sinal define simultane com lápis duro, e, contud deonde está colocada. “O mente a figura e o espaço tan por arte”:
nestidade da senho”, repetia ele, “ca ho a projeto da obra, mas a obr to. não ideação genial ou . cor , luz chiaroscuro,
é, linha, na sua integridade, isto , à plenamente significanvo e ado liz rea o alg o Send , ções cognitivas ou morais obra de arte não tem fun nem à m à Igreja, à revolução ne ado Est ao ve ser não sua pria razão intelectual e reação. Traz em si sua pró dae de um ideal estético moral. Tampouco depend O ela rev faz a estética, porque do; se tanto, é a arte que não tem enquanto forma, € significado que a forma
conteúdo. como explicitação de um foi pintada em 1808, em A banhusta de Valpinçon poética canoviana do “belo Roma, quando riunfava a nte insensível.
era absolutame ideal”, a que Ingres não ou, mais preo ideal estava na figura Para Canova, o bel
da figura até identificar-se cisamente, no sublimar-se o adequado nscendental do belo: o mei com a idéia tra
figura da ultura, que isolava a da busca era, pois, à esc jes s. Ing consi-
ambientai contingência das condições urals adequado, O qual, pat dera a pintura o meio mai esde on to com o espaço mente, representa a figura jun
não está a ele, o belo ou a forma par im, Ass da. oca col tá Este conrelação entre as coisas. na coisa em si, mas na mpoclaro quando todos os co junto de relações Eicará arem rm fo , chzaroscuro, cor, luz) nentes da forma (linha
síntese. um todo unitário, uma
ROMÂNTICO
Fer. REAR orar
SS CO CAPITULO L MA CLA
ban besta de Valprncou Domimque Ingres. 4 is, Loavre (1808).
m tela, 1,46 x 0,97
Par
51
+ tos
CAPITULO T
M
CLASSICO É ROMÂNTICO
Já nessa obra juvenil a síntese foi plenamente alcançada. Tente-se isolar os contornos. as pernas parecem magras demais, o tronco excessivamente dilatado, a figura desproporcional. Os críticos acadêmicos
nunca perdoarão seu pintor predileto por ter outorgado à sua Odalisca (1814) uma vértebra a mais: não
compreendiam que o erro anatômico era um prazer erótico, quase uma longa e delicada carícia sobre aquele belo corpo, do mesmo modo que, na Banhss-
ta, as costas demasiado largas prolongam o prazer da luz difusa sobre aquela epiderme de alabastro, quase
iluminada por dentro. De faro, ainda que extremamente nítidos, os contornos contínuos que delimi-
tam a figura mantêm relação com o chiaroscuro, que se estuma imperceptivelmente da veladura de sombra sobre as pernas ao clareamento luminoso, tênue
e difuso, sobre as costas e os ombros. Esse tênue chiaroscuro, por sua vez, é modulação luminosa; e a luz,
que não provém de uma fonte definida e não atinge diretamente as formas, cria-se a parur da relação da
com os vermelhos do bordado. O corpo tem uma projeção volumétrica, é quase um cilindro naquele espaço quase cúbico, delimitado pelos tons frios dos linhos estendidos nas paredes; contudo, a tonalidade
transparente e levemente dourada da pele o dilata, colaca-o em relação com todos os tons do quadro
Forma plástica e tonalidade de cores se identificam" ao tom quente do corpo opõe-se o tom frio da cortina verde em primeiro plano e os lençóis estendidos no fundo, mas o mesmo contraste-acordo existe en-
tre o modelado rígido da cortina, os planos unidos
do fundo e o dorso torneado da mulher. E mais: o modelado contínuo do co: po é valorizado pelos dois nós de linho retorcidos, no cotovelo e na cabeça. Qual é, então, o ideal formal de Ingres? O plano ou o
volume? À linha reta ou a curva? A forma contínua e regular do corpo, ou a forma interrompida e caprichosa desses panos amarrados? À cor ou a luz? Ingres
não aceita nenhum ideal formal a príors: tudo o que se vê, desenha-se, pinta-se, pode alcançar um valor
cor levemente quente e dourada da pele com os cinzas frios dos planos de fundo, com o verde-oliva da
de forma absoluta; e o alcança, justamente, quando o próprio ssnalé a um tempo linha e co1, volume e luz.
cortina. Ingres propositalmente reduz ao mínimo o
Em outros termos, Ingres é o primeiro a compreender que a forma não é senão o produto do modo de
aparato cênico: não nos diz se a mulher está se preparando para o banho ou saindo dele, e deduzimos que o ambiente é uma sala de banho apenas pelo espelho amarelo da torneira e da luz fria que, refletida pela
banheira que não se vê, preenche o espaço para além da cortina verde. Um espaço pictórico tão essencial,
despojado, reduzido a poucos planos definidos por horizontais e verticais, tem apenas um antecedente: A morte de Marat, de David. Ingres examina intencionalmente a força dessa estrutura espacial sobre um tema ou um objeto totalmente diverso, destituí-
do de qualquer implicação ideológica ou moral. E, o que é ainda mais importante, sobre uma base de tonalidades claras e transparentes, e não escuras. Para
afastar a sugestão emotiva ou sensual, Ingres apresenta a banhista de costas: sem o menor sinal de movimento, mas sem ostentar uma imobilidade estatuária, À grande figura está como que dilatada e suspen-
ver ou experimentar a realidade, próprio do artista; isto é, O primeiro a reduzir o problema da arte ao problema da visão. E isso explica por que, apesar do classicismo da posição assumida, sua pintura for objeto
de vivo interesse para alguns grandes impressionistas, como Degas, Renoir e o próprio Cézanne e, depois, para os neo-impressionistas, em especial Seurat, € finalmente para Picasso.
THÉODORE GÉRICAULT A JANGADA DA MEDUSA
Nos anos 1810, inicia-se a crise do Neoclassicis-
sa no espaço estreito, cheio de luz prateada, refletida,
mo, a artc oficial do império (GÉRICAULT se afasta bruscamente do classicismo já oficial de David. Não
rarefeita. Não tem rosto, o pouco que se vê da face é
é o único: Ingres também se distancia dele, mas em di-
velado de sombra; mas justamente ali, ao lado daque-
ta luminosamente mais intensa, o tecido enrolado na
reção oposta. Ingres retoma Rafael e Poussin, e avança na linha do idealismo clássico-cristão aberta por Canova; Géricault retoma Michelangelo e Caravag-
cabeça de um branco que se torna quente ao contato
gio, vive intensamente a experiência desesperadora
la que é a nota mais escura do quadro, desponta a no-
CAPITLECG UML
CLÁSSICO E ROMANTICO
de Goya, inaugura corajosamente o filão do Realismo
cípios iguais aos que Alfieri, nos mesmos anos, esta-
que, através de Daumier e Courbet, chegará com
belecia para o tearro trágico. No quadro de Géricault, pelo contrário, há uma balbúrdia, uma confusão de corpos enleados: não empenhados numa ação, mas
Manet à soleira do Impressionismo. Os temas preferidos de Géricault são: cavalos, em corrida e em batalha; soldados e combates furiosos;
máscaras alucinadas de loucos; cabeças de guilhotinados. Motivo dominante em sua poética, a energia, o impulso interior, a fúria que não se concretiza numa ação definida, histórica (note-se: o mesmo motivo domina, nos mesmos anos, a poética de um gran-
de romancista, Balzac). Motivos colaterais: a /oucura,
como dispersão final da energia além da razão; a
morte, como brusca ruptura do fluxo energético. Estes são os motivos que, de Géricaulr, passam para o maior expoente do Romantismo pictórico: Delacroix. Mas o peso do real que se impõe sobre a consciência de Géricault dissolve-se na imaginação ardente de Delacroix. A obra mais famosa de Géricault é À pangada da
Medusa, iniciada em 1818, dois anos após a trágica ocorrência do motim, do naufrágio, da longa odisséia dos sobreviventes de uma fragata francesa ao largo da costa africana. É, portanto, um quadro de hisrória contemporânea,
construído sobre um
fato de
c;ônica que abalara profundamente a opinião pública; O pintor se faz intérprete do sentimento popular. Depois de tantos quadros que celebravam a epopéia napoleônica, este subverte de um golpe a própria
concepção da hustória — não mais heroísmo e glória,
sofrendo a mesma angústia. Há um crescendo que parte do zero, dos mortos em primeiro plano; a se-
guir, dos moribundos, agora já indiferentes a tudo, passa-se aos debilitados reanimados por uma louca esperança. E há aí dois impulsos contrários: a maré montante dos náufragos que se projetam à incerta salvação; a onda que repele os destroços, o vento que
infla a vela na direção oposta. No plano instável, oscilante da jangada, toda a composição sofre o jogo desses dois impulsos contrários, a esperança e o desespero, a vida e a morte. As figuras ainda são as mesmas, heróicas, da clássica pintura de história: o rapaz
morto é belo como um Meléagro (mas observe-se a nota impressionante, realista, dos pés envoltos em trapos brancos), o pai que o sustenta tem a postura
solene de um deus clássico; os outros mortos de bor-
co parecem gigantes fulminados por Zeus. À humanidade que é desfigurada por um fato adverso, um acontecimento mais forte do que ela, precipitada
nesse mai tempestuoso, é ainda uma humanidade grandiosa, histórica, ideal — por isso, sua derrota é mais trágica O realismo, para Géricault, é justamente a derrota
do ideal, a inutilidade e a negatividade da história, a
c sim desespero e morte; não mais triunfo, e sim ca-
hostilidade entre homem e natureza, a ameaça da morte nas ações da vida. Recusar a ordem que no flu-
rástrofe (Géricault projetou também um grande quadio com a retirada do exército francês na Rússia).
xo turvo da paixão (a energia) isola e distingue os sentimentos (as forças), guiando-os para um agir lucida-
O historiador da revolução, Michelet, viu no quadro
mente decidido (a história): captar no mesmo rosto,
de Géricault uma alegoria da França à deriva depois da queda de Napoleão: “nessa jangada embarcou a França inteira, toda a nossa sociedade”. Não há intenção alegórica, mas a intuição de que um episódio, Lima situação vista no calor do acontecimento e no choque de impulsos contrastantes, assume um significado que vai muto além do fato; toda a realidade se revela, atroz, no raio que ilumina brutalmente um fragmento seu.
O quadro histórico clássico tinha suas leis: poucos protagonistas ordenadamente dispostos na cena, cada qual com sua paixão claramente expressa no ges-
to, resolvida numa ação. Modelo: O juramento dos
!unácios(1784), composto por David segundo prin-
no mesmo corpo, na mesma situação os elementos contrastantes da grandeza e da decadência, da nobre-
za e da depravação, do belo e do feio, isto é, captar a vida em sua contraditoriedade e precariedade: eis o primeiro pressuposto de um realismo que de forma alguma é imitação da natureza, mas recusa moral da concepção clássico-cristã da arte como catarse.
43
CAPTRURO
LD
| ASSIE
CHE ROMANTICO
Piicodore Gércanl À jungada (1818-9), cela, 4 19 «716 m Pais
|
Theodore Gerwault Renato de uma louca (1822 3), tela, 0,77 x0 64m Parts, Louvre
CAPETUTO LM
FUGÊENE DELACROIX A LIBERDADE GUIA O POVO
Para DerACROIX líder reconhecido da “escola ro-
CLÁSSICO F ROMÂNTICO
vilégios feudais como se a revolução não tivesse ocorrido, mas não compreende que estão amadurecendo novas instâncias revolucionárias na sociedade, exprimindo-se na luta de classes. Revolucionário em 1830, Delacroix torna-se contra-revolucionário em 1848, quando a classe operá-
mântica”, a hustória não é exemplo ou guia do agir
ria se insurge contra a burguesia capitalista que a ex-
humano, é um drama que começou com a humani-
plora. Como todos os românticos, declara-se antiburguês: na verdade, como se observou com perti-
dade e que dura até o presente. À história da época é
de luta política pela liberdade. A Liberdade guia o povo é o primeiro quadro político na hustória da pintu-
nência (Maltese), desagrada-lhe apenas a pequena burguesia, com sua visão estreita, sua cultura medío-
A política de Delacroix, e em geral dos românticos,
cre, seu mau gosto, seu amor pela vida trangiila, Entretanto, frequenta os salões e goza dos favores da alta burguesia financeira, No quadro que exalta as jornadas de julho, há um
não é clara: combate a tentanva de restabelecer os pri-
entusiasmo sincero e um sigmficado político ambi-
ra moderna: exalta a insurreição que, em julho de
1830, pôs fim ao terror branco da monarquia bourbônica restaurada, impotente e cruel.
Pa DAS an
o
Eugêne Delacrox À Leberdade guia o poro (1830) tela, 2,60 x 3.25m Paris, Louvic
55
CAPÍIULO UM
CLÁSSICO E ROMÂNTICO
guo. Para Delacroix, e em geral para os românticos
fonte, ou melhor, ao esquema do quadro: A sangada
(não apenas os franceses), liberdade é a independên-
da Medusa, de Géricault. Como na fangada, o plano
cia nacional; demonstra-o também em outras obras, por exemplo, em O massacre de Scio (1824) e em À
de disposição é instável, composto por traves desconexas (a bariicada), e dessa instabilidade nasce e se
Grécia sobre as ruínas de Mhssolongi (1827). Na gran-
desenvolve em crescendo o movimento da composição. Como na Jangada, as figuras formam uma massa saliente, que culmina numa pessoa que agita algo:
de tela de 1830, a mulher que agita o estandarte tricolor sobre as barricadas é, ao mesmo tempo, a Li-
berdade e a França. E quem luta pela liberdade? Plebeus e intelectuais burgueses: em nome da Liberda-
lá um trapo, aqui uma bandeira. Como na Jangada, em primeiro plano estão os mortos revirados, seme-
de-Párria sela-se a unton sacrée entre os plebeus despossuídos e os senhores de cartola.
lhantes também em suas posições. Coincidem até
Não tomemos esta ambigiidade ideológica por mais do que ela é, um simples indício; mas, seguindo
bis descoberto de um cadáver a meia num pé, o macabra apelo emotivo das polainas brancas nos pés do
mesmo alguns detalhes brutalmente realistas: o pú-
essa pista, passa-se de uma ambiguidade a outra. Não
soldado morto. Igual ainda é o modo de sustentar e
é um quadro histórico — não representa um fato ou uma situação. Não é um quadro alegórico — de ale-
ressaltar o gesto culminante, acompanhando-o, à direita e à esquerda, com o braço levantado de duas ou-
górico há apenas a figura da Liberdade-Párria. É um
tras figuras. Obscrvadas as analogias, passemos às di-
quadro realista, que culmina em uma exortação retó-
ferenças. Ao copiar o esquema compositivo da /angada, Delacroix o inverte. Inverte a posição dos dois
rica (como, tantas vezes, na prosa de Victor Hugo). Até a figura alegórica é um misto de realismo e retórica: uma figura “ideal” que, para a ocasião, vestiu os trapos do povo e, em vez da espada simbólica, empu-
nha um fuzil de ordenança. A partir desses claros indícios é fácil remontar à
Torre
ESTA
as emo
Eugêne Delacromx O massacre de Scrm (1822), tela 4,22x 3,52m Paris, Louvre
mortos em primeiro plano, o que não é muito im-
portante; mas inverte também a direção do movimento dos volumes, que na Jangada vai da frente para o fundo e na Liberdade avança, lança-se para 0 es-
pectador, toma-o frontalmente, dirige-lhe um dis-
ps
kugêne Delacroix. Auro-rerraso (1839). tela, 0,64 » 0,51 m Paris, Louvre
E mr
SG
CTÁSSICO E ROMÂNTICO
CAPÍTITO UM
curso inflamado. A inversão não responde apenas a uma necessidade retórica. No quadro de Géricault,
movimento dos volumes em direção ao horizonte
BARTOLINI LORENZO MONUMENTO FÚNEBRE CONDESSA ZAMOYSKA
DA
realizava, no diama, uma espécie de catarse: da violência
realista
reconstituía-se
um
uníssono
grave,
que alcançava tons de grandiosidade clássica (por exemplo, no velho com o filho morto).
Tudo o que havia de profundamente clássico no quadro de Géricault desaparece no quadro de Dela-
FRANÇOIS
RUDE
RELEVO DO DE PARIS
ARCO
DO
TRIUNFO
croix: não há mais o luminismo caravaggiano sobre
corpos fortemente modelados, quase em bronze, e sim um perfilamento de figuras em contraluz sobre o fundo esbraseado e enfumaçado; não há mais a articulação entre os corpos enleados, e sim um isola-
mento das figuras principais dentre o amontoado confuso das outras. E da dureza ofensiva nas notas realistas não se alça a uma solenidade clássica, mas desce-se à caracterização social das figuras para demonstrar que rapazes, jovens, adultos, operários, camponeses, intelectuais, soldados legitimistas e
soldados rebeldes, todos fazem parte do povo, irmanados pelo estandarte tricolor.
Esta vontade de caracterizar chega a Delacroix não nelas fontes italianas de Géricault (Michelangelo e
Caravaggio), mas pela vertente flamenga de Rubens e Van Dyck; é o que explica por que vem acompanhada por uma franqueza de execução pictórica que não
é apenas fludez discursiva, retórica. Com o abranda-
mento da tensão plástico-luminista de Géricault, a car também se liberta, recupera uma possibilidade de timbre e de tom; na fumaça que envolve a cena, a luz
atinge as formas através de passagens diversas e inesperadas, cria halos e dissoluções que aumentam a su-
vestão emotiva. É evidente, enfim, que Delacroix não
copiou o esquema compositivo de Géricault por preeuiça mental, e sim pela necessidade de corrigi-lo: sentia que aquele esquema, mesmo na sua novidade, remena ao passado, ao ideal clássico, ou se projetava num realismo extremista Conservando sua estrutura, mas invertendo-a, obrigando-a a se tornar arma-
À curva ascendente que, na pintura, vai do Romantismo ao Realismo c ao Impressionismo, corresponde, na escultura, a curva descendente que, de Canova, vai ao mais insosso e esquálido academicismo. Nunca se espalharam tantas estátuas nas praças, par-
ques públicos, palácios governamentais e municipais
quanto no século passado (e no atual); à grande quan-
tidade, porém, geralmente corresponde potica quali-
dade. A escultura permanece alheia à pesquisa artísti-
ca da segunda metade do século: responde a deman-
das oficiais, mas a nenhuma exigência cultural. Mes-
mo nas personalidades maiores percebe-se a crise. LORENZO
BARTOLINI (1777-1850), que havia se
formado em Paris com David e gozava da estima de Napoleão, desde que volta à Itália afasta-se cada vez mais da temática e das prescrições formais do Neoclassicismo e procura uma inspiração mais naturalista nos escultores toscanos do Quatrrocento, especial-
mente em Desiderio de Serrignano. Consegue, assim, sensibilizar na superfície, mas não mudar na estrutura, a forma rigorosamente volumétrica dos seguidores mais diretos de Canova ou de Thorvaldsen. Adota esquemas compositivos mais móveis; modula as superfícies para obter luzes mais variadas, dissoluções de sombras, esfumaduras de chiaroscuro; desta
forma mais animada faz surgir arestas levemente chanftadas, contornos mais marcados, pontos e deslizamentos de luz entre sombras mais suaves. Sua op-
«ão para outro discurso, explicitamente moderno, ele
ção estilística antecipa a tendência a revalorizar, após o dogmatismo formal neoclássico, um discurso nacio-
imprime à pintura francesa um impulso que a faz
nal (toscano, naturalmente) menos teórico e mais hus-
transformar-se a partir de um rompimento definitivo. É justamente com o romantismo de Delacroix que, de fato, a arte deixa de se remeter ao antigo e se
propõe ser, a qualquer preço, do seu próprio tempo.
tórico. Mas, se posteriormente os macchiaiol transformarão essa tendência numa verdadeira pesquisa lingiistica, Bartolini se imporra mais com a eloquên-
cia do que com a linguagem. Se a escultura era a me-
François Rude, A Marselhesa (1833-6), relevo do Arco do Trtunto de Paris
Lorenzo Barton. Monumento funebre da condessa Sofia Zamoyska (1837), mármore, 1 85 m de comprimento. Florença, Santa Croce
CAP
TETOUM
CHÁSSICO
F ROMÂNTICO
lhor técnica de pesquisa quando o objerivo consistia
lo xvIIl: exceto pela temática diferente, a pesquisa de
na forma ideal no espaço ideal, já não o é quando o
Corot, nesse período, é paralela à de Ingres. Depois de 1830, nota-se uma inflexão romântica, que vai se
objetivo consiste na cpresentação do visível no plano através de manchas de luz, sombra e cor Na França, o escultor do Romantismo é FRANÇOIS RUDE, todavia em suas obras não aflora nenhum dos
problemas que afligem o pintor do Romantismo, Delacroix. Nos relevos do Arco do Trunfo, certamente altera as cadências métricas da composição neoclássica,
mas impõe aos grupos não uma estrutura dinâmica ou de movimento. e sim um crescendo enfático, como uma fanfarra marcial. Sua escultura se torna pura
oratória, qual uma ode de Victor Hugo traduzida em
pedra. A escultura a partir de agora parece ser “língua morta”, prestando-se apenas a discursos oficiais e orações fúnebres; mais precisamente, a estatuána é línqua molta porque serão os pintores, e já com Daumer, que reanimarão a escultura
CAMILLE
COROT A CATEDRAL DE CHARTRES IHÉODORE ROUSSEAU TEMPORAL, VISTA DA PLANÍCIE DE MONTMARTRE
acentuando com o passar do tempo — cadências musicais na composição, efeitos sugestivos de penumbras e luzes filtradas, cores mais vaporosas e veladas. O artista parece se defender da tendência à efusão sentimental com os estudos de figura, vigorosamente modelados na matéria densa, saturada de cor. O sentimento, para Corot, não é impulso passional, como para Delacroix, tampouco choque emotivo, como para os paisagistas de Barbizon, mas comunicação e identificação da realidade interior, moral, com a realidade exterior, a natureza. O que deseja exprimir é um acordo afetivo, constante e profundo. Indaga e aprofunda as implicações intelectuais e morais do sentimento, aquelas que Pascal chamava
de “as razões do coração”, ou Goethe, com outro sentido, de “afinidades eletiva” O mundo não é um espetáculo a ser admirado, e sim uma experiência a ser vivida, e a pintura é um modo de vivê-la; nessc sentido, o mestre ideal de Coror é Chardin. A natureza, para Corot, não é objeto, mas motivo: um termo que tera muita importância para toda a pintura oitocentista, até Cézanne. Como morivo é solicitação. estímulo: o que importa não é a natureza, € sim o sentimento da natureza, co sentimento da natureza é o fundamento da moral (toda a vida de Co-
rot, mesmo na práxis cotidiana, foi inspirada por
CoROT foi o maior paisagista do século xIX; não são muros, mas importantíssimos os quadros de figura, “Os quais o interesse do artista se concentra no puro fa1 picrórico, na construção da forma através da cor, e «mplica um sentimento novo, quase de afinidade com Luma natureza que não é mais o Criado. Corot não parLictpou ativamente dos grandes movimentos artísticos da época; sua pintura se desenvolve na órbita deles, todavia segue uma linha própria de pesquisa dirigida especificamente ao fato pictórica, ao quadro, à sua coetencia interna, à sua estrutura. As paisagens do pLimeivo período italiano (1825-8) são nítidas construções
de volumes em que a luz parece cristalizar-se no corte time dos planos; as disuibuições de sombra também se classificam como valores tonais; a cor. mesmo viby ando na atmosfera límpida, define com clareza a esprutura do espaço pictórico É patente a lembrança da parsagem heróica de Poussin e dos paisagistas do sécu-
um elevado sentido moral). Não sem uma velada in-
tenção polêmica, muitas vezes a nota patética é vigo-
rosamente acentuada, em especial nas obras da maturidade: Corot intui que essa profunda unidade cntre homem e natureza, outrora espontânea, corre o risco de se dissolver porque a sociedade moderna, em seu sólido cientificismo, quer dominar e não mais senttra natureza. Mas como, se senti-la é o verdaderto modo de conhecê-la?
Sem dúvida a pintura de Coro, tão profundamente ligada à tradição dos paisagistas italianos e holandeo ses dos séculos XVIT e XVIII, pode parecer menos “pro3 gressista” do que o realismo dos pintores de Barbizon, mas a concepção da arte como experiência vivida é mais moderna: a definição do sentimento como modo de conhecimento é um passo essencial rumo àquela concepção da sensação como conhecimento, que
será própria dos impressionistas.
59
60
CATÍTULO LM CLASS 1) L ROMÂNICO
A catedral de Chartres (1830) vem logo depois do período italiano. À arquitetura, especialmente na primeira fase da pintura de Coror, é um componenre essencial da paisagem; não apenas se refere à unidade indissolúvel entre civilização e natureza, mas
Aproximadamente a partir de 1830, forma-se e desenvolve-se na França a escola paisagista dita de Barbizon, nome de uma aldeia na orla da floresta de
com seus planos nitidamente cortados e contrapos-
Fontainebleau, para onde alguns jovens pintores, tendo à frente THÉODORE ROUSSEAU, haviam se retirado com o intuito de 1enovai a pintura de paisa-
ros constitui o núcleo sólido em que se condensa, assumindo uma função construtiva, a luz difusa da pai-
vendo no campo, estudando assiduamente os aspec-
gens, abandonando todas as convenções e regras, vi-
sagem. O tema específico da catedral gótica pode ter
tos mutáveis da natureza. Os principais componen-
sido sugerido por Constable, cuja pintura era muito
tes do grupo são: DIAZ DI La PENA (1808-76), CHARLES DALBIGNY (1817-78), JuLEs DuPRÉ (1811-89), CONsIANI TRovoN (1810-65) Na ori-
conhecida em Paris desde a exposição de 1824, e pe-
la revalorização romântica da arquitetura gótica; com efeiro, Corot voltará diversas vezes a ele (Catedral de Sens, . de Sorssons, ... de Rouen) Neste qua-
dro, porém, o edifício não está enquadrado frontalmente, perspectivamente, como nas paisagens clássicas, tampouco é reabsorvido pelo “pitoresco” da vista paisagística, como em Constable. Há um primei-
ro plano árido e vazio (as duas pequenas figuras fo-
gem do movimento encontra-se a enorme impressão suscitada no ambiente artístico parisiense pela exposição dos pintores ingleses; Constable, especial-
mente, aparece como o típico artista “moderno”, que enfrenta a realidade de modo direto, livre de esquemas preconcebidos. Surpreende, acima de tudo,
ram acrescentadas muito depois pelo próprio artis-
a novidade da sua técnica: rápida, larga, brilhante, resoluta, tão precisa que dá a impressão de se distingui-
ta); há um biombo formado por um monte de pedras
rem as folhas da árvore, em que, olhando-se melhor,
de entalhe e uma colina com uma erva escassa e duas
se vêem apenas manchas coloridas. Evidentemente, o valor que Constable procurava não era a precisão,
arvorezinhas. Por que colina, que limita a perspectrva e nada tem de pitoresco? O amontoado de terra opaca valoriza o corte nítido c a transparência dos
planos do edifício; a luz concentrada sobie os blocos
mas a “justeza” dos tons de cores e suas relações. Porém, como explicar o fato de que essa mancha, mesmo não descrevendo nada, dizia tudo, até a for-
cortados estabelece uma relação entre o céu e a volumerria luminosa da catedral; as duas arvorczinhas,
ma dos ramos e das folhas? Essa mancha faz com que
escuras contra o céu claro, acompanham em contra-
evoca uma experiência que está em nós, em nossa
ponro o ímpeto dos zimbórios mais luminosos do fundo. O que interessa ao pintor não é a aproximação dos objetos, pictoricamente atraentes (a bela catedral, os biombos arbóreos, o movimento das nuvens prateadas no céu azul), e sm a definição de um espaço pictórico unitário, onde nenhum elemento
memória. À mancha, em si, não representa senão a
se sobrepõe aos outros ou os subordina; as zonas de sombra têm uma qualidade tonal própria, como os planos de luz; o céu não é um fundo, mescla um véu azul a todas as tonalidades; o próprio edifício, relegado ao segundo plano pela colina, não é o protagomista da paisagem. É, em suma, motivo e não suyeito: por isso, pode-se dizer que o dado objetivo (a paisagem) se apresenta ao artista como motivo quando
se presta a ser experimentado ou vivido como um espaço unitário, onde não é possível qualquer gradação, mas apenas um perfeito igualamento de todos os valores.
reconheçamos a árvore: não fornece uma noção, mas
impressão súbita experimentada diante do verdadeiro, numa condição específica de lugar, tempo, luz; todavia, como a emoção aciona a nossa memória, a
percepção em si, instantânea e superficial, adquire uma profundidade psicológica. Rousseau especifica em que consiste o conhecimento da natureza pro-
porcionado pela emoção; evidentemente não é um conhecimento objetivo, científico, mas “as vozes das árvores, as surpresas de seus movimentos, a variedade de stias formas, até a singularidade dos modos como são atraídas pela luz” Não se chega a reconhecer
uma árvore pelo modo como a fronde se agita e 1€ssoa com o vento ou como reage à luz, se não se tem uma familiaridade profunda e contínua com a natu-
reza, e não se a adqune olhando-a como um belo espetáculo, à maneira dos pintores clássicos (e do próprio Corot), mas vivendo dentro dela
CAPÍLLO UM CLÁSSICO L ROMAN [ICO
Eis a razão do reu1o em Barbizon e do círculo de
dos olhos ou dos lábios num rosto humano, se este
artistas que se forma em torno de Rousseau, cada
qual empenhado em esclarecer a st mesmo o modo
não lhe fosse familiar ou querido? Ao se propor a estudar a “psicologia” das árvores ou das nuvens, e as-
próprio e singular de “sentir” a natureza. À cada es-
sim retomando num clima cultural romântico um
colha corresponde uma recusa: o que os pintores de Barbizon recusam, com um gesto incontestavelmente romântico, é o ambiente artificial da cidade.
tema fundamental da poérica inglesa do “pitoresco”, os pintores de Barbizon estudavam, de fato, a
No entanto, na 1a1z do realismo deles (e de todos os
atitude psicológica do homem moderno Frente à natureza. O valor que sentem ameaçado pela nova ordem da sociedade e pelos novos modos de vida, e
outros) há um interesse social: o que mais pode um artista procurar na familiaridade com as árvores e os animais da floresta, senão uma sociedade “natural”,
o como insubstituível, é o sentimento da naturezg:
muito diferente da sociedade burguesa da cidade? É
esclarecem o modo como ele se gera, a partir de um
verdade, o que se quer viver na pintura é a emoção que se experimenta naquele lugar, naquela hora, na-
quela condição específica de luz; mas, se o quadro representa e comunica essa emoção instantânea, re-
movimento conjunto da sensibilidade que faz vibrar a emoção c da memória que amplia c aprofunda a emoção em conhecimento, e os efeitos que produz a intuição de um caráter humano, ou me-
presenta e comunica simultaneamente a condição
lhoi, social, nas coisas naturais. (É de se lembrar as
da alma que a torna possível, a experiência de uma
anotações sobre a psicologia das árvores no Journal
longa e íntima familiaridade com a natureza.
intime de Amuel.) Em relação ao natural, portanto,
Veja-se este estudo de Rousseau: capta um efeito singular de luz sobre a clareira, logo depois de um temporal, mas o que a emoção instantânea revela é a
não se assumirá uma postura contemplativa, como se devesse nos transmitir uma mensagem extraterrena, mas uma postura prática e afetiva, como a que
vastidão, a figura, a amosfera, a espacialidade, enfim, de um local profundamente conhecido e amado Quem jamais podera compreender o significado
se tem para com as pessoas e as coisas com que se
de um movimento mínimo, quase imperceptível,
que, portanto, empenham-se em salvar mostrando-
mantêm relações na vida cotidiana. À natureza co-
mo espaço “social”, habirável e habitado, a que cabe uma preferência muto maio: que o da cidade:
Narcisse Diaz de la Doria No bosque (1855) tela 0SUx 06! m Paris, Louvre
61
62
TICO CAPÍTULO UM CLÁSSICO E KOMÁX
es (1830); Camille Corot: 4 catedral de Chartr tela, 0,65 «0,50 m Paris, Louvre.
CAPÍTULO UM
homens), modificada a estudo (a natureza em vez dos
vez de polêmica), disposição de espírito (simpatia em idade possut incona postura de Rousseau frente à real
63
à de Daumier testavelmente pontos de contato com e pode-se notar à afi(com quem manteve amizade); as no monocronidade nas escolhas de cores fundad va dos signos. mático e mesmo na qualidade expressi
ira que O moviCom tanto mais razão, não adm
pintor não promento de Barbizon conte com um MILLET (1814priamente paisagista como FRANÇOIS os € cuja pintura 75), de interesses sociais bem clar
inata, à seriedade exalta a sanidade moral, a nobreza
iedade indusdiligente da classe camponesa, que à soc trial tende a destruir.
tabur
mente da pintura este é um tema que passará rapida kiniano da coitapara a arquitetura, com O ideal rus espaço natural. ge, da casa intimamente ligada ao de Taliesin, à CaAté às prairie houses, aos edifícios O interesse social sa junto à cascata, de É. L. Wright. lismo paisagístico que se encontra na origem do rea certas afinidades e dos pintores de Barbizon explica maneira incomcertos desenvolvimentos, de outra cado o objeto de preensíveis, de sua poética. Modifi
CLÁSSICO E ROMÂNIICO
Vista da Théodore Rousseau Temporal, , 1850) lc planície de Montmartre re. Louv Paris, m 0,36 x 0,23 tela,
Ga
CAPÍTULO LM
CLÁSS CO FROMAN
HONORÉ QUEREMOS
FUO
DAUMIER BARRABÁS
Daumii R foi desenhista, ilustrador, caricaturista político — enquanto tal, colaborador corajoso e constante (apesar das leis contra a liberdade de imprensa) de Caricature e Chartvari, sempre pronto a
atacar à política hipócrita de Luís Fipe e o corrupto sistema legislativo, judiciário e burocrático do Estado burguês. Amigo de Balzac, Daumier também es-
creveu dia a dia a sua comédie humaine; mas, melhor do que Balzac, soube ver no povo vitimado o herói da lura pela liberdade contra o poder Foi também esculror e pintor, cuja grandeza só veio a ser avaliada recentemente, após a experiência daquele Expressionismo que nele encontra seu precursor distante. Contudo, não há um Daumier político e um Daumier artista: Daumier foi o primeiro a fundar a arte sobre um interesse político (vendo na política a for-
ma moderna da moral), o primeiro a se valer de um meio de comunicação de massa, a imprensa, para com a arte influir sobre o comportamento social. A imprensa, para ele, não foi apenas um meio de divulgar suas imagens; foi a técnica com que produziu imagens capazes de alcançar e influenciar seu público. Na litografia, que originalmente era apenas uma
técnica de reprodução gráfica, desenha-se com lápis gordurosos sobre a lâmina em que scrá pressionada à
folha de papel; a força da prensa e a espessura do pa-
pel influem na qualidade do signo, na densidade ou transparência dos escuros. É as litogravuras, que são impressas e difundidas em muitas cópias, eliminam o preconceito da ligação necessária entre a imagem e
um “produto” nobre, como o quadro e a estátua. Pode-se dizer que Daumier inventa suas imagens como imagens ltográficas, evitando assim qualquer solução de continuidade entre invenção e reprodução: à comunicação, portanto, é direta, imediatamente persuasiva, peremptória À caricatura política não foi inventada por Daumuer, e a interpretação dramática e moralista da histórta contemporânea tinha um pre-
cedente próximo e muito elevado nas gravuras de Goya. Mas pense-se: a vinheta sempre vem acompa-
nhada poi uma frase nônica — figuras c palavras, separadas, seriam incompreensíveis. Visto que uma
parte do que se quei comunicar é expressa em palavras escritas, Daunmer enxuga e intensifica o signo, até condensar à comunicação numa solicitação vistal. Em outros termos: Daunmuer conserva da representação apenas aquilo que pode atuar como estímulo € despes tai no espectador uma reação moral. E mais: a imagem não é a representação ou a narração de um
fato, esim o juízo que se tece sobre ele. Observe-se esta pintuta: para demonstrar que não é, e não quer ser,
a representação de um cpisódio da parxão de Cristo. bastaria o faro de que não há cor, é monocromática. O artista se serviu da pintura a óleo para obter um efeito semelhante ao da litografia, porque quer dar aos signos uma densidade material, uma existência teal, IstO é, apresentá-los como cosas, carregados de uma força própria, e não como meros para representar coisas. Às figuras não estão dispostas numa ordem natativa, que as distribua num espaço onde se daria determinada ação; ocorre, sim, apresentação simultânea, sobre o mesmo tundo, de duas situações: Pilatos instigando a multidão contra Cristo, a multidão
instigada seguindo tolamente o apelo demagógico do poder. À representação é a que normalmente recebe o titulo de Ecce homo: Daumuer a transforma em Queremos Barrabes, assim integrando a imagem às palavras gritadas pela multidão. Quando representa pessoas do povo. Daumier lhes confere um sentido heróico, um vigor quase michelangelano. Aqui, porém, não
se trata do povo, e sim da multidão: o povo resiste e se rebela, a multidão cede ao poder É necessário, portanto, apresentar a multidão como algo amorfo, disforme, impessoal. A deformação das figuras não é
determinada por condições particulares de espaço ou de luz, tampouco pelo desejo de caracterizar caricatualmente rostos e gestos, é uma deformação mais
moral do que física, que quer dar o sentido e a repugnância da fraqueza. do caráter manipulável da multidão Veja-se o sujeito com a criança no colo: mal tem um rosto humano, com riaços grosseiros e sumários, como se fosse uma máscara de papelão. Tampouco é sensível à luz. que se concentra na testa e no zigoma como uma matéria suja e viscosa
Com a direita indi-
ca Cristo ao menino. exortando-o a pedir. ele também, a morte do inocente, mas é apenas um sinal da mão sem a mão. O menino é a nota mais clara, a que imediatamente atrai o olhar. É, de fato, uma “chave”
CAPÍTULO
LM
CLÁSSICO L ROMANTICO
Honoré Diumier Querernos Barnabas (e. 1850) tela, 1,60x | 27m Essen lolkwang Museum
65
66
CAPNLLOUM
CLÁSSICO E ROMÂNTICO
do quadro: a multidão é inconsciente, fraca, incapaz
como esse monstrinho que logo mais, também ele, pedirá hstericamente o perdão para o bandido e a
morte para o santo. Compare-se, agora, o gesto do homem na multidão ao de Pilatos, o homem do po-
der, que aponta igualmente para Cristo, não para pedir, e sim para impor sua escolha. Notar-se-á como é
exclusivamente a própria qualidade do signo, tenso num caso e frouxo no outro, que define o significado
diverso dos dois gestos. Analogamente, algumas fi-
guras na multidão são sugeridas apenas pelo impreciso contorno vazio da cabeça: não pessoas, mas pre-
senças indistintas no rebanho As manchas claras e escuras não estão contidas nos contornos, não cor-
respondem a efeitos de luz e sombra: dão a sensação de uma atmosfera opaca e estagnante, em que os signos espessos dos contornos se movem sem ordem nem direção, como serpentes no lodo. Daumier, em
suma, não representa 0 fato — exprime visualmente seu significado moral: a inculpável e tola maldade da multidão obediente à maldade turva dos poderosos. Por que a pintura francesa, que com Géricault,
Daumier e Courber, por volta de 1850, parece se orientar em sentido realista-expressionista, assumirá,
após 1860, uma direção totalmente diferente, com o Impressionismo? Com o fracasso dos movimentos revolucionários operários de 1848, extinguem-se os
fermentos de revolta popular, mas a busca da liberda-
de segue por outros caminhos, no próprio âmbito da burguesia culturalmente mais avançada. Daumier acreditava que um firme empenho moral também influía sobre o modo de ver a realidade; os impressio-
nistas acreditam que uma visão lúcida, sem precon-
ceitos, nova da realidade influi sobre o modo de ser e agir. Para Daumier, a vontade moral abria uma nova
perspectiva para o conhecimento; para os impressionistas, o claro conhecimento da realidade abria uma nova perspectiva moral.
Honore Daumier Ranporl(c bronze, (1,44 m de altuxa. Paris, Musée d'Orsay
1850),
CAPITULO UM
ta como um paradigma, e sim como ato de um drama anda não concluído, do qual se participa vivendo intensamente o presente.
A CRÍTICA ROMÁN LICA BALDELAIRE
CONSTANTIN PELA RUA
CLÁSSICO E ROMÂNTICO
GUYS
O tema do presente como história em ação domina a cultura e caracteriza a crítica de arte do segundo
Romantismo, aquele que corresponde à afirmação HONORÊÉ DAUMIER O VAGÃO DE TERCEIRA
do poder da burguesia c à sua intenção de legirimáCLASSE
lo, não mais com uma autoridade hereditária, mas com a pronta compreensão das situações atuais € à
capacidade de enfrentá-las. Assim, ao pensar a históPara os 1omânticos, o belo não é eterno, e sim contungente; não deve ser buscado na natureza (a não ser
como pano de fundo ou cenário dos acontecimentos humanos), mas na sociedade. À primeira onda romântica, na França, corresponde à revolta da burguesia e do povo, solidários contra a anacrônica restaura-
ção dos privilégios de casta após a queda de Napoleão, à concepção reacionária da história como história da
autoridade e legitimação do poder, contrapõe-se a concepção liberal da história como história da liberdade, isto é, da luta contra a autoridade. À história
“antiga”, demonstrativa de conceitos (o Estado, a lei, o dever etc.), o historicismo romântico contrapõe a uistória de épocas mais próximas, que não se apresen-
Constanan Guys
ria, à ênfase já não recai sobre o antigo, e sim sobre o moderno. Se o que legrtima o poder não é maus a aristocracia do sangue, mas a da inteligência e da cultu-
ra, a alta burguesia culturalmente avançada se separa da média e pequena burguesia culturalmente retrógrada: a qualificação de burguesa, que significa “mentalidade estreita” e “mau gosto”, torna-se, na boca dos novos “aristocratas”, insultante. À arte, que o peque-
no-bu guês considera como uma perda de tempo, é objeto de interesse para o burguês de elite; ao mostrar que a entende, manifesta a sensibilidade de seu espírito, a presteza em captar e interpretar os pensamentos c aspirações da época, que têm no artista, como intelectual, seu portador.
No período neoclássico, a crítica de arte era teóri-
Lrêr mulheres ensadas(c 1860-4), bico de pena e lapis. U2?xv35m Paris, Musee Carnavale:
68
CAPTTETO
UM
CLÁSSICO
ROMÂNTICO
Constanun Guys Pela rua(c cela Paris Louro
1860)
ca, fundada na razão; no período romântico, é lirerá-
éa sensibilidade; e como a natureza não é “moderna”,
Rh]
ria. O maior crítico de arte é também o maior poeta
o belo não é uma qualidade da natureza, e sim da so-
do século — Charles Baudelaire (1821-67) —, e di-
rige explicitamente suas observações sobre os salons
ciedade, e deve ser buscado na sua melhor parcela, que se distingue da média pondo-se acima não só da
(de 1846, 1855, 1859) aos “burgueses”, advertindo-
vulgaridade, mas também da moral comum
os de que, como donos da força e do governo, devem ser capazes de sentir o belo, pois, assim como não podem dispensar o poder, também não podem dispensai a poesia, O Romantismo, para ele, é “a expressão mais recente e atual do belo”, e a arte consiste em
com a droga, o vício, a perversão). “O belo é sempre
“uma concepção conforme à moral do século” (por
outros termos, o dândi, como upo exemplar do homem “moderno”, cria arte em sua própria pessoa, sem outra finalidade, e, apenas com a sua elevação
moral entendendo a psicologia, os sentimentos, as inclinações, os costumes). Evidentemente, “a moral do século” não pode ser objeto de juízo, mas apenas de uma interpretação aguda, interessada, participante, empenhada em distinguir entre o que é vivo e móvel e o que é inerte e insignificante. A faculdade crírica que capta “o belo no moderno”
(talvez
estranho”; os verdadeiros “aristocratas do espírito” são os dândis, “seres que não têm outro cuidado se-
não cultivar o ideal do belo em sua própria pessoa, satisfazer suas próprias paixões, sentir e pensar”. Em
acima da média, oferece-se como modelo ou guia O arusta, segundo esse modelo, não tem outro dever senão o de satisfazer (ou exprimir) seu próprio
sentir, mas isso não teria qualquer interesse se fosse o sentir comum. O artista tem o dever de ser uma ex-
CAPITULO
Honote Daumier (1862)
CLASSICO
Uh
E ROM
ANTICC!
O pagão de tercerra clane
vela 067709%m
Ottawa,
Namonal Gallery ol Canada
ceção, de sentir mais e de modo diferente dos outros;
panham, descrevem, comentam dia a dia os aconte-
ap nas na medida em que se coloca de fora da sociedale terá condições de analisar, interpretar e, dentro cos Limites de suas possibilidades, orientar e dingir a socredade, Conseguirá isto rejeitando tudo o que é repetição, hábito, convenção, tédio e contormidade ao gosto da média, e saberá ser novo, despreconcei-
cimentos políticos, a vida mundana, a crônica de Pa-
tuoso. brilhante, inventivo, emotivo. O artista ro-
manrico ideal, para Baudelaire, é Delacroix, nele (e não mais no “retórico” Victor Hugo) vê unirem-se os dois m
aspectos essenciais e reciprocamente integrantes da ar: o conungente e o eterno, o característico e o belo
()s dois aspectos, na verdade, são apenas um; com cito, o belo não é uma categoria formal em si — po-
ris
Como
literato, vê, naquelas figuras que chegam
ao público na imprensa cotidiana, uma arte a ser an-
tes lida do que contemplada, sinal da presença viva, da intervenção do artista na sociedade. CONSTANTIN GUYS é para ele o verdadeiro “pintor da vida moderna”, o artista “homem do mundo” que
vive no meio da multidão com o gosto do convalescente pela vida e a curiosidade preênsil da criança. Era de fato um desenhista extremamente vivo, ágil em captar, rápido e eficaz em representar não só o ca-
rátex, como também a qualidade de “espírito”, os es“
+ ure pelos desenhistas e caricaturistas que acom-
moda (e a moda, impulso acelerador de um comércio
m
c mal, da média. Mesmo o cômico e o feio, levados a“ extremo, tornam-se belos: daí o interesse de Bau-
tigmas da elite social, o belo como “classe” ou estilo de vida, em suma, “a bela alma” dessa burguesta-aristocracia — e capaz de organizar e determinar tal elegância, pois não desdenhava criar os figurinos da
[aê
po)
&-se discerni-lo em tudo o que sai do habitual, do
“
69
70
CAPÍTULO UM CLÁSSICOT ROMANTICO
que começa a ser superalimentado pela produção in-
Daumier político: “Seu desenho é naturalmente co-
dustrial, interessava imensamente a Baudelaire, do
ponto de vista psicológico e sociológico). Baudelaire admirava o estilo gráfico ágil e refinado de Guys, mas
lorido, suas litografias e gravuras em madeira despertam a idéia da cor. Seu lápis é bem diferente de um simples negro que delimita contornos, sugere a cor
ainda mais o seu dandismo, que não só o fazia esco-
junto com o pensamento, e é o signo de uma arte su-
lher na vida social o que havia de mais raro e signifi-
perior”. Mas por que, então, não compreende a fun-
cativo, como até mesmo desprezar sua profissão de
do a pintura de Manet, que, no entanto, era seu ami-
artista, levando-o a se proteger com o anonimato, a
go pessoal? Evidentemente porque, em toda a sua
evitar O sucesso.
força, a pintura de Manet, embora também
No pólo oposto do altivo desinteresse de Guys pelos aspectos negarivos da realidade social, Baudelaire admira imparcialmente o empenho moral, a dura
uma pintura de manchas coloridas sem contornos
descritivos, já estava além das poéticas românticas; sua cor não captava “o transitório, o fugaz, O contin-
crítica social de DAUMIER, de cujas opiniões políticas certamente não compartilha; admira-o por realizar
gente”, porém era o princípio de uma nova estrutura formal, sem referências visíveis à sociedade presente.
fosse
uma arte que tem como objeto a sociedade, e realiza-
Seu interesse social, enfim, não residia na descrição
a não como espectador e sim como militante, mas
ainda assim consegue fazer com que o belo nasça mesmo da representação das piores torpezas sociais.
mais ou menos penetrante e crítica dos fatos, mas na nova função à qual a pintura se via capacitada e destinada por essa nova estrutura, que já se poderia dizer
É verdade que distingue entre o Daumier artista e O
impressionista.
Hanoré Daumier: Ne votesy frotrez pas (1834);
gravura publicada na Revue Mensuelle 0,31x0,43m
CAILEO
RONAN
ICO
um passo para trás. Regride do Realismo ao Naturalssmo românuco, escolhe conteúdos “poéticos”, ama as penumbras envolventes que unem figuras e paisagem, os efeitos sugestivos de luz, os motivos patéticos.
NQUESTÃO SOCIAL
FRANÇOIS MILLET O ÂNGELUS CAMILLE PISSARRO VEREDA NO BOSQUE NO
LRE CLSSSICO e
Daumier escolhe a ação política O povo, para ele, é a classe operária em luta contra os governos liberal-
burgueses, que falam de liberdade, mas são submussos VERÃO
Desde que, com o Iluminismo, afirma-se a autonomia da arte, coloca-se o problema da sua função no interior da sociedade. No período neoclássico, é uma das forças que contribuem para adequar a sociedade real ao modelo ideal descrito pelos filósofos. Esse modelo abstrato, com os românticos, é substituído pela sociedade histórica: o povo constituído em nação livre com uma mesma Jíngua, religião, moral e tradição. Com o Realismo, as idéias de liberdade e nação também parecem ideais abstratos; uma nação onde há conflitos entie uma classe dirigente que explora e uma classe trabalhadora explorada não é livre nem unida. Numa sociedade dilacerada como a industrial, os artistas não podem preenche: qualquer Finção social, senão depois de terem feito, explicitamente ou não, uma escolha política.
Em 1848, o ano do Manifesto comunista e das grandes lutas operárias, FRANÇOIS MILLE T expõe um quadro que representa um camponês no trabalho: a érica e a teligiosidade do tiabalho rural continuarão
sendo os temas dominantes de sua obra. Pela primer14 vez apresenta-se um lavrador como protagonista da representação, como um herói moral. Porém ain-
da que sincera, a escolha política de Miller é ambígua. por que os camponeses e não os operários das fá-
bricas, cuja miséria cra ainda mais negra? Porque o
ao capital, Sua ação é dura e engajada, porém ainda romântica. a liberdade é a França; a França, 0 povoro povo, a classe operária. Mas, se Miller, com seu populismo, regride ao Romantismo, Daumuer leva-o à
frente, exacerba-o: a arte não é representação comovida, e sim instrumento de uma vontade de luta. O Romantismo, com ele, torna-se Expressionismo avant la
lettre, e sua obra, passando por Van Gogh, 1epresenta a raiz romântica do futuro Expressionismo. Não é verdade que os impressionistas, interessados em problemas exclusivos da visão, não tenham inte-
resses sociais; certamente não tiveram uma linha política unitária, mas, ao se empenharem em definir o que era a pintura em si, também queriam definir sua
razão de sei na sociedade da época. Em seu grupo, o homem politicamente mais engajado foi CamiLLE PissarRO, entre socialista c anárguico Amigo de Monet e Renoir desde 1865, parncipou fielmente de todas as manifestações e batalhas do Impressionismo. Foi íntimo de Cézanne, deu estímulo a Gauguin e Van Gogh. Em 1886, foi atraído pela teoria cienti-
fica do Neo-Impressionismo; afastou-se dela em 1890, ao perceber que não era inspirada po: impulsos progressistas. Em sua grande modéstia, jamais
teve a ambição de ser um gênio: queria ser apenas um trabalhador honesto e consciente. Seguiu o exemplo de Courbet, a quem conhecera e admiiara, na busca de aperfeiçoar o ofício da pintura, experrmentando
todas as técnicas. Não procurou
repre-
operário já é um ses atrancado do seu ambiente natu-
sentar a sociedade, e sim 1ealizar coisas úteis a ela: demonstrando, por exemplo, que tomar conheci-
vida tradicionais, à moral e à religião dos pais. Como
trabalho que não requer o raro dom do gênio, mas empenho, experiência, labor. Num momento em que se procurava relançar o mito do gênio e da ins-
aí, tagado pelo sistema, perdido; o camponês está ligado à terra, à natureza, aos modos de trabalho e de
*e vê em O Angelus: um quadro que, exposto em 1867, alcançou enorme sucesso, logo passando para O» alimanaques e os cartões-postais. A burguesia se entustasma com Millet por pintar os camponeses,
qu: sao trabalhadores 4075, ignorantes, sem rervindiCaçóes salariais nem veleidades progressistas; mas Mille
expia seu erro político dando, como pintor,
mento do mundo, interpretar seus aspectos. é um
piração (o mito wagneriano), o não-gênio de Pissarro assume uma importância histórica única: revela
como os impressionistas rejeitaram a excepcionalidade da missão histórica em favor da normalidade da função social da arte.
Tl TJ
CAPÍTULO UM
CLÁSSICO É ROMÂNTICO
Camille Pissarro Vereda no bosque no verão (1877), tela Paris, Musee d Orsay
CAMINO
TLM
CLÁSSICO F ROMÂNTICO
François Millet O Ángetus (1858-9) tela U55x066m Paris, Musve d'Orsay
73
Claude Manet As papoutas(1873) tela 0,50
0,65 m Paris, Musee d'Orsay.
CAPÍTULO
DOIS
A REALIDADE E A CONSCIENCIA Ls
IMPRESSIONISMO
O E
Csanpa anunciara seu programa desde 1847: realismo integral, abordagem direta
da realidade, independente de qualquer poética previamente constituída. Era a superação simultânea do “clássico” e do “romântico” enquanto poéticas destinadas a mediar, condicio-
nare orientar arelação do artista com a realidade. Com isso, Courbet não nega a importância da história, dos grandes mestres do passado, mas afirma que deles não se herda uma concepção de mundo, um sistema de valores ou um ideal de arte, e sim apenas a experiência de enfrentar a realidade e seus problemas com os meios exclusivos da pintura. Para além da rup-
tura com as poéticas opostas e complementares do “clássico” e do “romântico”, o problema que se colocava era o de enfrentar a realidade sem o suporte de ambos, libertar a sensação visual de qualquer experiência ou noção adquirida e de qualquer postura previamente orde-. nada que pudesse prejudicar sua imediaricidade, e a operação pictórica de qualquer regra ou costume técnico que pudesse comprometer sua representação através das cores. * O movimento impressionista, que rompeu decididamente as pontes com o passadoe abriu caminho para a pesquisa artística moderna, formou-se em Paris entre 1860 e 1870; apresentou-se pela primeira vez ao público em 1874, com uma exposição de artistas “inde-
pendentes” no estúdio do fotógrafo Nadar. É difícil dizer se era maior o interesse do fotógrafo por aqueles pintores ou o dos pintores pela fotografia; o que é certo, em todo caso, é que um dos móveis da reformulação pictórica foi a necessidade de redefinir sua essência e finalidades frente ao novo instrumento de apreensão mecânica da realidade.
A definição remonta ao comentário irônico de um crítico sobre um quadro de Monet, intitulado Jmpresston, soleil levant, mas foi adotada pelos artistas, quase por desafio, nas exposições seguintes.
As figuras emergentes
do grupo
são: MONET,
RENOIR,
DEGAS,
CEZANNE, PISSARRO, SISLEY. Na primeira fase da pesquisa participou também um amigo de Monet, J. E BAzILLE (1841-70), morto em combate na guerra franco-prussiana. Embora
considerado um precursor, MANET não fazia parte do grupo: de fato, este artista mais velho e já famoso desenvolvera a tendência realista num sentido essencialmente visual, afastando-
se, porém, do integralismo de Courbet e remetendo os pintores modernos à experiência de mestres do passado muito distantes do Classicismo acadêmico: Velásquez, Rubens, Frans Hals. Recusa o embate brutal com a realidade, propondo, ao contrário, libertar a percepção
de qualquer preconceito ou convencionalismo, para manifestá-la em sua plenitude de ação cognitiva. O retorno a um leque de valores, que Courbet rejeitava, sem dúvida afastou-o do extremismo revolucionário (Courber virá a aderir impetuosamente à Comuna) é aproxi-
76
CAPÍTULO DOIS A REALIDADE LA CONSCIENCIA
mou-o, pelo contrário, de leratos e poetas (foi amigo de Baudelaire e depois de Mallarmé).
Após 1870, acercou-se cada vez mais do Impressionismo, eliminando o chiaroscuro eos tons intermediários e solucionando as relações tonais em relações cromáticas. À primeira expost-
ção no estúdio do forógrafo Nadar, seguiram-se as de 1877, 1878, 1880, 1881, 1882, 1886, sempre provocando reações escandalizadas na crítica oficial e no público bem pensante. Os
únicos críticos que compreenderam a importância do movimento foram Duret e Duranty, e ainda, com algumas reservas, o escritor Émile Zola, amigo de Cézanne. Nenhum interesse ideológico ou político comum unia os jovens “revolucionários” da arte: Pissarro era de esquerda; Degas, conservador; ourros, indiferentes. Não tinham um programa preciso. Nas
discussões no café Guerbois, porém, haviam concordado sobre alguns pontos: 1) a aversão
pela arte acadêmica dos salonsoficiais; 2) a orientação realista; 3) o total desinteresse pelo objeto — a preferência pela paisagem e a natureza-morta; 4) a recusa dos hábitos de ateliê de dispor e iluminar os modelos, de começar desenhando o contorno para depois passar ao chiaroscuro e à cor; 5) o trabalho en plein-air, o estudo das sombras coloridas e das relações entre cores complementares. Quanto a este último ponto, há uma referência inegável à teoria óptica de Chevreul sobre os contrastes simultâneos; a tentativa deliberada de fundar a
pintura sobre as leis científicas da visão ocorrerá apenas em 1886, com o Neo-Impressionismo de SEURAT e SIGNAC. Mesmo antes da exposição de 1874, as motivações e interesses dos diversos componentes do grupo não são os mesmos. Monet, Renoir, Sisley, Pissarro realizam um estudo ao vtvo direto, experimental; trabalhando de preferência às margens do Sena, propõem-se representar da maneira mais imediata, com uma técnica rápida e sem retoques, a impressão lumi-
nosa € a transparência da atmosfera é da água com notas cromáricas puras, independente-
mente de qualquer gradação de chiaroscuro, deixando de utilizar o preto para escurecer as cores na sombra
Ocupando-se exclusivamente da sensação visual, evitam a “poeticidade” do
tema, a emoção e comoção românticas. Cézanne e Degas, pelo contrário, consideram a pesquisa histórica tão importante quanto a da natureza; Cézanne, principalmente, dedica murto tempo a estudar as obras dos grandes mestres no Louvre, fazendo esboços e cópias interpretarivas.
Ele defende que, para definir a essência da operação pictórica, é preciso reexaminar sua história; mas, como Monet e os outros também aspiram ao mesmo objetivo através da investigação das possibilidades técnicas atuais, os dois processos convergem para um mesmo
fim: demonstrar que a experiência da realidade que se realiza com a pintura é uma experiência plena e legítima, que não pode ser substituída por experiências realizadas de outras maneiras. À técnica pictórica é, portanto, uma técnica de conhecimento que não pode ser excluída do sistema cultural do mundo moderno, eminentemente científico. Não sustentam
que, numa época científica, a arte deva fingir ser científica; indagam-se sobre o caráter e a função possíveis da arte numa época científica, e como deve se transformar para ser uma técnica rigorosa, como a técnica industrial, que depende da ciência. Neste sentido, pode-se demonstrar que a pesquisa impressionista é, na pintura, o paralelo da pesquisa estrutural dos engenheiros no campo da construção. E não só a polêmica dos impressionistas contra os acadêmicos é semelhante à dos construtores contra os arquitetos-decoradores, como também
existem claras analogias entre o espaço pictórico dos impressionistas e o espaço construtivo
da nova arquitetuia em ferro. Em ambos os casos, não se parte de uma concepção predeterminada do espaço: o espaço se determina na obra pela relação entre seus elementos constitutivos.
CAPÍTULO DOIS 4 REALIDADE É A CONSCIÊNCIA
Gustave Courber Mar em tempestade (1869) tela, 1,17 x 1,60 m Paris, Musée d'Orsay
Claude Moner: Mrlheres na pazrelim (1866 7): tela, 2,03 x 2,55 m Paris, Musee 'Orsay.
77
os CONSCIÊNCIA
78
A
FOTOGRAFIA O problema da relação entre as técnicas artísticas c as novas técnicas industriais se con-
cietiza, especialmente para a pintura, no problema dos diferentes significados e valores das
imagens produzidas pela arte e pela fotografia. Sua invenção (1839), o rápido progresso técnico que reduz os tempos de exposição e permite alcançar o máximo de precisão, as tentativas de fotografia “artística”, as primeiras aplicações da fotografia ao registro de movimentos
(fotografia estroboscópica, cinematogiafia), mas principalmente a produção industrial das câmeras c as grandes transformações na psicologia da visão, determinadas pela utilização ge-
neralizada da fotografia, tiveram, na segunda metade do século passado, uma profunda influência sobre o direcionamento da pintura e o desenvolvimento das correntes aitísticas, l1gadas ao Impressionismo.
sociaisui passam do pintor para o fotógrafo Com a difusão da fotografia, muitosCE erreserviços ga rama
(retratos, vistas de cidades e de campos, reportagens, ilustrações erc.). À crise atinge sabre: tudo os pintores de ofício, mas desloca a pintura, como arte, para o nível de uma ativ idade de ele. Sea obra de arte se torna um produto excepcional, há de interessar apenas aum pú-
blico restrito, e ter um alcance social limitado; além disso, à produção de alta qualidade na
sera ATA Bernherde ue Sarah Nadar
CARITLTO
DOS
A REALIDADE
arte também deixa de ter função, caso não sirva de guia a uma produção média. Não mais se qualifica como um bem de consumo normal, e sim como arte malograda; tende, portanLo, a desaparecer. Em um nível mais clevado, as soluções que se apresentam são duas: 1) evita-se o problema sustentando que a arte é atividade espiritual que não pode ser substituída por um
meio mecânico (é a tese de Baudelaire e, posteriormente, dos simbolistas e correntes afins); 2) reconhece-se que o problema existe e é um problema de visão, que só pode ser resolvido definindo-se claramente a distinção entre os upos e as funções da imagem pictórica e da
imagem fotográfica (é a tese dos realistas e dos impressionistas). No primeiro caso, a pintu1a tende a se colocar como poesia ou literatura figurada; no segundo, a pintura, liberada da tarefa tradicional de “representar o verdadeiro”, tende a se colocar como pura pintura, isto
é, mostrar como se obtém, com procedimentos pictóricos rigorosos, valores de outra maneia irrealizáveis.
de que a fotografia reproduz a realidade como ela éc a pintura a reproduz coAhipótese mo se q vêé insustentável: a objetiva fotográfica reproduz, pelo menos na primeira fase de seu,
desenvolvimento técnico, o funcionamento do olho humano. Também é insustentável que a objetiva seja um olho imparcial, e o olho humano um olho influenciado pelos sentimen-
tos ou gostos da pessoa,o fotógrafo também manifesta suas inchnações estéticas e psicolóeicas na escolha dos temas, na disposição e iluminação dos objetos, nos enquadramentos, nó
enfoque. Desde meados do século x1x, existem personalidades fotográficas (por exemplo, Nadar) da mesma forma que existem personalidades artísticas. Não há sentido em perguntar se “fazem arte” ou não; não há qualquer dificuldade em admiur que os procedimentos totográficos pertencem à ordem estética. Po outro lado, é um erro supoi que, enquanto tais, substituam procedimentos da pintura, os pintores “de visão”, de Courber a ToulouseLautrec. estão prontos a admitir que a fotografia, assim como a gráfica ou a escultura, pode sei uma arte distinta da pintura Portanto, não interessa o problema teónico, e sim a realidaconsiste no enorrecíprocas Outro aspecto importante da relação de histórica das relações z 5
me crescimento do patrimônio de imagens. a fotografia permite ver um grande número de
CA CONSCIÊNCIA
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SU
CAPITLTO
DOIS
4
ADTDADE F A CGONSO
Jues Mares
NCIA
Experimento
e ranufintografoe atISR7)
coisas que escapam não só à percepção, mas também à atenção visual. O Impressionismo, . estreitamente ligado à divulgação social da fotografia, tende a competir com ela, seja na compreensão da tomada, seja em sua instantaneidade, seja com a vantagem da cor. Os sim-
bolistas, pelo contrário, recusam qualquer relação, reconhecendo implicitamente que, quanto à apreensão e representação do verdadeiro, a pintura é superada pela fotografia
Afirma-se frequentemente que a fotografia deu aos pintores a experiência de uma magem destituída de traços lineares, formada apenas por manchas claras e escuias; a fotografia, portanto, estaria na origem da pintura “de manchas”, isto é, de toda a pintura de orientação realista do século xIx Evidentemente, David e Ingres. mesmo mantendo o culto do desenho a TrAÇO,
Nunca
sustentaram
que
a linha
se encontra
na
natuteza:
suscentavam
que
nenhuma
representação da realidade poderia ser satisfatória se não viesse amparada pela noção intelec-
CABÍLLLO
DOIS
A RIATIDADE
tual do real que se icaliza no desenho. A fotografia fornecia uma representação satisfatória sem um delincamunto preciso dos contornos; mas a história da pintura, dos vênetos a Rem-
brandt e Frans I als, de Velásquez a Goya, também conta com inúmeras representações sem um suporte visível de desenho. Pode-se, portanto, dizer que a fotografia ajudou os pintores “de visão” a conhecer sua verdadeira tradição, mais precisamente, apresentando-se como
puro fato de visão, ajudou-os a separar, nas obras desses mestres, os puros fatos de visão de outros componentes culturais que, até então, haviam impedido avaliar essas obras do ponto de vista da pesquisa sobre a visão. Courbet for o primeiro a captar o núcleo do problema: realista por princípio, nunca
acreditou que o olho humano visse mais e melhor do que a objenva; pclo contrário, não hesitou em transpor para a pintura imagens extraídas de fotografias. Para cle, o que não podia
ser substituído por um meio mecânico não era a visão, mas a manufatura do quadro, O trabalho do pintor, F isto o que faz da imagem não mais a aparência de uma coisa, e sim uma coisa diferente, igualmente concreta Proudhoniano e mesmo marxista avant la lettre, Cour-
bet se interessa apenas pelo que se poderia chamar de a força de trabalho que fabrica o quadro: apresentando ambos as mesmas imagens (por exemplo, um cabrito montês na neve),
no quadro há uma força de trabalho que não existe na fotografia. Nem se pode afirmar que a pintura captc da realidade significados ocultos ou transcendentais que escapam à fotografia: a força de trabalho é utilizada simplesmente para constrmrr
a imagem, para lhe dar uma concretude e um peso que fazem dela uma coisa real — com a evidente finalidade de demonstrar que não se pode mais considerar a imagem artística cosuperficial, ilusório, mais lábil e menos sério do que a realidade. Assim estabelece uma distinção entre a imagem pesada e a protura (menos realista e menos verdadeira), Após este esclarecimento, compreende-se como os impressionistas puderam utilizar, sem problemo al go
ma algum, materiais de imagens fornecidas pela fotografia. À fotografia torna visíveis inúmeras coisas que o olho humano, mais lento e menos preciso, não consegue captal; passando a fazer parte do visível, todas essas coisas (por exemplo, os movimentos das pernas de uma dançarma ou um cavalo a galope), como também os universos do infinitamente pequeno e
do infinitamente grande, revelados pelo microscópio e pelo telescópio, passam a fazer parte da experiência visual e, portanto, da “competência” do pintor. Degas e Toulouse utilizaram largamente materiais fotográficos, e para tanto não precisaram enfrentar qualquer problema teórico. Neste sentido, é correto afirmar que a fotografia contribuiu para aumentar o in-
teresse dos pintores pelo espetáculo social. Os fotógrafos, por sua vez, mesmo se deixando guiar de bom grado pelo gosto dos pintores na escolha e preparação dos objetos, jamais pretenderam concorrer com a pesquisa pictórica. Nadar foi amigo dos impressionistas, tendo
acolhido a primeira exposição deles em seu próprio estúdio (1874); mas nunca tentou fazer fotografias impressionistas. Ele percebia que a estrutura de sua técnica era profundamente diferente da que é própria da pintura, e, se dessa sua técnica podia nascer um resultado esté-
tico, não haveria de ser um valor tomado de empréstimo à pintura. As fotografias “artísucas”, tão em voga no final do século passado e no início do século xXx, são semelhantes às estruturas perfeitas em ferro ou cimento que os arquitetos “estruturais” revestiam com um medíocre aparato ornamental para dissimular sua funcionalidade. e assim como só surgirá
uma grande arquitetura estuuturalista quando os arquitetos se libertarem da vergonha pelo suposto caráter não-artístico de sua técnica, só surgirá uma fotografia de alto nível estético quando os fotógrafos, deixando de se envergonhar por serem fotógrafos e não pintores, ces-
sarem de pedir à pintura que torne a fotografia artística e buscarem a fonte do valor estético na estiuturalidade intrínseca à sua própria técnica.
F À CONSCIÊNCIA
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4 REALIDADE E A CONSCIÊNCIA
O
NEO-IMPRESSTONISMO Em
1884,
GEORGES SEURAT (14
-91), PAUL SIGNAC (1863-1935),
MAxXIMILIEN,
Luce (1858-1941) e alguns outros se associaram com a intenção expressa de ultrapassar O ao processo visual e operacioImpressionismo, no sentido de dar um fundamento científico do Im-. À essa tendência opuseram-se, em nome das exigências originárias nal da pintura. pressionismo, Monet e- Renoir; estabeleceu-se entre um Impressionis-a iDeleceu ses assim uma oposição ção entr
mo dito “romântico” e um Impressionismo dito “científico”. À intenção rigorosamente ERA ; ps RR ão E ao espiritualismo igualmente absoluto dos se contrapõe, numa antítese explícita, científica simbolistas..
Remetendo-se às pesquisas de Chevreul, Rood e Sutton sobre as leis ópticas da visão e, principalmente, dos “contrastes simultâneos” ou das cores complementares, os neo-impressionistas instauraram a técnica do pontilhismo (pointillssme), que consiste na divisão dos tons em
seus componentes, isto é, em várias pequenas manchas de cores puras reunidas entre si de modo a recompor, na visão do observador, a unidade do tom (luz-cor) sem as inevitáveis impure-
zas do empaste que anula e confunde as cores. O caráter científico do Neo-Impressionismo, porém, não consiste no recurso a leis ópticas recentemente apuradas: não se pretende fazer uma pintura científica, mas instituir uma ciência da pintura, colocara pintura como uma ciência em si.
É de importância fundamental: 1) que a análise da visão esteja presente no procedimento técnico; 2) que, decompondo a sensação visual, reconheça-se que ela não é uma simples impressão, mas tem uma estrutura e se desenvolve através de um processo; 3) que o qua-
dro seja construído com a matéria-cor e que esta tenha um caráter funcional, como os elementos de sustentação de uma arquitetura; 4) que o quadro não seja mais considerado como uma tela onde se projeta a imagem, e sim como um campo de forças em interação que
formam ou organizam a imagem. O pontilhismo, principalmente com Signac, irá progressivamente tornar-se menos
denso e transformar-se num tecido de toques largos e planos, verdadeiras lasquinhas de cor, por meio das quais cada nota cromática encontra seu timbre próprio em relação ao das notas contíguas. O processo amplia as possibilidades do leque de acordos entre as cores muito além dos limites permitidos pelo empaste.
Pelo seu caráter técnico-científico, o Neo-Impressionismo foi um dos grandes compomento contemporâneo das tecnologias científicas da indústria, e sobretudo da fotografia.
SIMBOLISMO O Simbolismo se concretiza em tendência paralela e em antítese superficial ao Neo-
reep
O
e “p
nentes do vasto movimento modernista que, na virada do século, tentou resgatai a pintura da condição de inferioridade e não-atualidade em que se encontrava, devido ao desenvolvi-
— e
Impressionismo: configura-se como uma superação da pura visualidade impressionista, más em sentido espiritualista e não científico. À antítese prestava-se a ser facilmente resolvida, re-
conhecendo o caráter ideal ou espiritual da ciência. De fato o Simbolismo, que encontrou suporte nas poéticas literárias contemporâneas,
e sobretudo em Mallarmé, recoloca um problema de conteúdo, ligando-se, assim, às primeiras exigências românticas de Blake e de Fussli, à pintura-literatura de GUSTAVE. MOREAU (1826-98), ao alegorismo das evocações clássicas de PIERRE PuvIs DE CHAVANNES (1824-
98). O Simbolismo, ainda que contrário à pura visualidade impressionista, não se contra-
a
CAPÍTULO DOIS
a
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CAPITULO DOIS
A REALIDADE F A CONSCIÊNCIA
põe ao Impressionismo como conteudismo ou formalismo, mas tende a transformar os con-
teúdos assim como o Impressionismo muda o valor das formas.
À arte não representa — re-.
vela por ssgnos uma realidade que está aquém ou além da consciência, As imagens que se erguem das profundezas do ser humano encontram-se com as que provêm do exterior: o qua-
misteriosa osmose, se estabelece droé como uma tela diáfana através da qual a se gaopera uma uma continuidade entre o mundo objetivo e o subjetivo. o fim me e Como a luz não é visível enquanto não for interceptada por uma tela sólida, é apenas mm
no limite entre interior e exterior, pessoa e mundo, que o fluxo da imaginação se projeta em imagens visíveis. Se o Impressionismo pretende fornecer sensações visuais que já são, en-
quanto tais, atos cognitivos, o Simbolismo pretende suscitar reflexões sobre tudo o que é incontestavelmente real, mesmo que não se apresente à vista. Todavia, não há, em princípio, antíteses radicais com o Impressionismo. Mallarmé gostava de se definir como “poeta impressionista e simbolista”, e assim os neo-impressionistas como Gauguin não excluem uma síntese das duas tendências, pelo contrário, aspiram a ela. Puvis de Chavannes tenta uma interpretação simbolista da arte clássica, evocada como dimensão mítica. Na literatura,
Pierre Puvis de Chavannes. O verão (1891); tela, 3,50 x 5,07 m.
Paris, Musée POrsay
Flaubert antecipa o Impressionismo em Madame Bovary, mas se aproxima do simbolismo de G. Moreau em Salammbô. Há um confronto polêmico entre o “naturalismo” literário de Zola e o “espiritualismo” de Moréas, o autor do Manifesto do Simbolismo (1886): contudo, um simbolista como REDON, ao pintar flores, encontra notas de intensidade cromática dig-
nas de Renoir. À pintura, de fato, perdendo sua função social tradicional, torna-se um instrumento de pesquisa da mente humana, de seus conteúdos e processos, da qual a sensação visual é decerto um segmento, e exatamente o consciente, aquém e além do qual, porém,
existe um subconsciente e um sobreconsciente. O Simbolismo também é um dos componentes essenciais da corrente modernista, e influi não apenas sobre a pintura, mas ainda sobre a arquitetura (Horta, Van de Velde, Gaudí etc.), a decoração e os costumes. Como cada coisa, natural ou artificial, pode assumir um sig-
nificado simbólico para nós, não existem mais limites para a morfologia e a simbologia da arte. As distinções tradicionais entre artes maiores e menores se desfazem por se mostrarem tecnicistas: tudo é concebido como originariamente artístico, seja em substância seja em poten-
cial (CAys una, species mille”). As novas técnicas industriais permitem realizar formas total-
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CAPÍTULO DOIS A REALIDADE E À CONSCIÊNCIA
mente diferentes de toda a morfologia tradicional, sempre numa relação mais ou menos direta com a morfologia natural; atribui-se a essas formas, não mais explicáveis em termos de
“analogia” com as formas naturais, o valor de signos de uma existência transcendental ou profunda, cuja infinitude escapa à apreensão dos sentidos e à reflexão do intelecto, mas que é fenomenizada e revelada pela arte, e apenas pela arte. É uma posição semelhante àquela segundo a qual, na poética simbolista de Mallarmé, as palavras não valem pelo seu significado ha-
bitual ou lexical, e sim pelo que assumem no contexto, como geradoras de imagens. Se o Neo-Impressionismo está na base das pesquisas estruturais dos fauvese do Cubismo, o Simbolismo antecipa a concepção surrealista do sonho como revelação da 1ealidade profunda do ser, da existência inconsciente.
A ARQUITETURA
DOS
ENGENHEIROS
A construção em ferro e aglomerados plásticos não é uma invenção moderna: o con-
creto era conhecido pelos construtores da Roma antiga; no século XVIII construíam-se estufas, galpões, pontes em ferro. A substituição da lenha pelo carvão na extração do ferro permite seu processamento e produção industrial, e, quase simultaneamente, nascem as pri-
meiras fábricas de cimento. As condições efetivas que levam à utilização do ferro e do cimento como materiais de construção são: 1) a produção desses materiais em grandes quantidae a baixo custo; 2) a possibilidade de transportá-los facilmente, também sob a forma de des
elementos pré-fabricados, das fábricas aos canteiros de obras; 3) suas qualidades intrínsecas de materiais de sustentação e a possibilidade de cobrir amplos espaços com uma área míni-
ma de suportes; 4) a economia no tempo e custo da construção; 5) o progresso da ciência das construções e do cálculo matemático das cargas e empuxos; 6) a formação de escolas espe-
cializadas para engenheiros. Quando JoserH PaxTON (1803-65), inicialmente construtor de estufas, projeta e rea-
liza o Palácio de Cristal para a Exposição Universal de Londres de 1851 (a primeira entre as várias feiras mundiais consagradas aos faustos do progresso industrial), ele não inventa uma nova técnica, mas instaura um novo método de projeto e execução. A novidade é o emprego de elementos pré-fabricados (segmentos metálicos e lâminas de vidro), produzidos em sé-
Guuseppe Mengons Galeria Vítor Fasaneel FIÇI86S 7) em Milão.
CASÍLULS DOIS
ARESLIDADE EA CONSCIENCIA
rice levados aos canteiros de obras prontos para seem utilizados. Economiza-se tem po e dinheiro: a construção se reduz à rápida montagem de peças pré-fabricadas, e o material pode
ser recuperado Por trás do interesse prático, havia uma idéia revolucionária: empregar materiais e técnicas da construção uulitária para levantar um edificio altamente representativo, fazer arquiterura com os procedimentos da engenharia. Ainda que não ousc reabsorvei inteiramente a decoração na estrutura, Paxton obtém três resultados essenciais no plano estético: 1) valoriza o desenvolvimento dimensional, libertando do peso da massa a geomerria dos volumes; 2) rea-
liza uma volumetria transparente, eliminando a distinção entre espaço interno e espaço externo e dando um grande predomímo ao vazio (as vidiaças) em relação ao cheio (os delgados segmentos metálicos); 3) obtém no interior uma luminosidade semelhante à do exterior. As vantagens práticas do método favorecem sua difusão: H. LABROUSTE (1801-75) constrós em ferro evidro o Salão da Biblioteca Nacionalde Paris (1868); G. MENGONI (182977), o importante cruzamento viário da Galeria Vítor Emanuel de Milão (1865). Apesar da
polêmica, acirrada principalmente na França, entre os pioneiros da funcionalidade técnica e os conservadores da arquitetura “dos estilos”, isto é, entre estruturalistas e decoradores, firma-
s€ cada vez mais a convicção de que apenas com as novas metodologias construtivas será possível alcançar aquela configuração dinâmica do espaço que corresponde à sensibilidade, ao senudo da vida da sociedade moderna. A vitória dos técnicos é consagrada pela construção da Zorre projetada por A. G. ErrrEL (1832-1923) para a exposição de Paris de 1889; com trezentos metios de altura, recebe da curvatura dos perfis angulares e da tensão dos tirantes, que tecem a treliça metálica, o em-
puxo que a eleva acima do horizonte urbano como uma gigantesca antena ou um simbélico farol. É uma construção tecnicamente funcional, cuja única finalidade, porém, é dar visualidade e magnitude aos elementos de sua estrutura: sua inegável função representativa (é o ponto alto da exposição, mas torna-se imediatamente o símbolo da Paris moderna, assim
como o Coliseu é o símbolo da Roma antiga e a cúpula de São Pedro o da Roma católica) se cumpre na representação de sua funcionalidade técnica. É, portanto, um elemento macros-
«ópico de decoração urbana, que prevalece decididamente sobie os velhos símbolos das rorres de Notre-Damee da cúpula dos Invalides, um monumento cuja singularidade é não ter nada de “monumental”, poís não comemora nem celebra um passado, não exprime princípios de autoridade nem dá expressão visual a ideologias, contudo glorifica o presente e anuncia o futuro (Veja-se, como antítese, a concepção inteiramente retrospectiva do contemporâneo Vitorzano de Roma, que quer ser o símbolo “monumental” da Roma moderna,
c o é em certo senudo, por simbolizar da melhor maneira possível o obtuso conservadorismo do poder burocrático. E veja-se também, com outro tipo de empenho progressista, a Mole construída em Turim por A. ANTONELLI (1798-1888), com uma intenção urbanísti-
ca análoga à da torre Eiffel, mas com técnicas tradicionais e um compromisso significanvo entre monumentalidade e funcionalidade técnica: símbolo típico de uma situação urbana paleoindustrial.) Na torre Eiffel, e justamente por não ter outra função além de visualizar sua própria funcionalidade técnica, vê-se claramente como a pesquisa estruturalista, no campo da areuitctura, era o equivalente da pesquisa impressionista na pintura. Uma estrutura linear que não interrompe a continuidade do espaço e desenvolve seu enticlaçamento “às claras” na luz « no ar é, imcontestavelmente, um caso típico de plern-air aquitetônico. Não tem massa nem volume. está inscrita no céu como um desenho de contorno numa folha de papel, com Eaços mais grossos e mais finos, que permitem diferenciar a qualidade cromática do fundo,
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A REALIDADE EA CONSCIÊNCIA
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CAPITULO DOIS
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Antonciloa rá Al MaleAos Antoneiltii Alessandro Antonelli: ca 1863 de e projeto O em Tunm
zy W sl ifFel torre ksfeitI887 Alexandre Eiftel Gustavesniueatles em Paris Construida cm aço,
construção teve ico em 1878
atinge a altura de 300 metros
como os desenhos dos impressionistas. Simultaneamente, porém, traz uma grande carga simbolista, pois suas estruturas e formas não mais se submetem ao princípio naturalista do equilíbrio estático dos pesos e resistências; acima de tudo, todavia, ela já não pretende ser re-
presentativa da autoridade política ou religiosa, e sim expressiva de uma ideologia progres[a sista no próprio arrojo de suas linhas. É um “projeto” desmedidamente engrandecido c “rei”
ficado”. Entre a concepção gráfica e a forma construída não há um processo, um zter: a técnica construtiva do ferro é rápida e direta, como a técnica instaurada pelos impresstonistas. Não teme, antes descja se adequar aos temas, aos ritmos, aos modos de vida da cidade moderna. Tem ainda um caráter explicitamente, quase descaradamente publicitário; mas Toulouse-Laurrec também sentiu a necessidade de fazer pintura (e uma pintura comunicativa
como um anúncio) com os cartazes publicitários. É justamente com o limearismo pictórico
de Toulouse que, fazendo-se uma referência estilística a distância, pode-se comparar o lincarismo construtivo de Eiffel. Não aceitando qualquer imagem espacial preconcebida, com a qual concordaria a imagem do edifício, Eiffel determina o espaço com os próprios signos da construção — pela primeira vez na arquitetura, cabe falar em signo, em vez de forma.
Esse paralelismo não é uma analogia o estruturalismo no campo da construção eferua
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4 REALIDADE LACONSIÊNCIA
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A Amrras!
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CAPÍTIA O DOIS
Vietor Contamin e Herdinand Duere" Galersa
das Magtunasem Panis construída em
1889 por ocasião da Exposição
Universal, arcada de 108m
Eugêne Freyssinct Hangar pura dirigívess (1916 24) em Orly
destruído em 1944
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CAPÍTULO DOIS
4 REALIDADE EA CONSCIÊNCIA
L Joseph Paston Palacio de Cristal (RS) em andres
Decimus Burton e Richard luzmer. es
Garden estufa em ferro e etáro (1845-7; em Londres
Hena Labrouste Salão ee lestura da Biblvochegue Nasonale (1858 68) de Paris
Robert Malla
Pavsiirão dus Cometas Portland
na Expostcão Nacronal de Zureque (1939)
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CAPILLO DOIS
A REALIDADE E ACONSCIÊNCIA
o mesmo tipo de operação que, no campo da representação, é efetuada pela pintura que parte das premissas impressionistas e, em nível complementar, das ssmbolistas. Para os arquitetos oriundos da escola das “belas-artes”, pelo contrário, havia um repertório de “estilos”
pseudo-históricos, passíveis de combinação segundo os esquemas do ecletismo e adaptáveis a qualquer tipologia construtiva. O paralelo à sua arquitetura, sempre a serviço dos poderes institucionais e indiferente aos impulsos vitais de uma sociedade em progresso, é a pintura dos Bouguerau e dos Cabanel que triunfa nas academias e salões oficiais. Existiam dois ní-
veis muito distintos: o útil e o decorativo. Para a mentalidade da burguesia, o banco devia ter a aparência externa de um palácio renascentista, « a casa de campo a de um castelo feudal, Essa hipocrisia encontra sua condenação junto aos construtores com formação científi-
ca séria. Se a arte é ecletismo dos “estilos”, a arquitetura renunciará a ser arte, será engenharia, Não existem dois níveis o artístico e o utilitário: existe apenas a função, ao mesmo tem-
po da estrutura do edifício e de sua razão de ser no espaço urbano. É um embuste construir com ferro e cimento, para depois ocultá-los sob uma camada “artística”; por outio lado, os
novos materiais € a nova ctência das construções permitem definir novas relações entre pesos e empuxos. E, principalmente, uma nova imagem do espaço, dinâmica. Com o Art Nouveau (Horra, Van de Velde, Gaudí), a decoração também se torna tensão, elasticidade, expressão simbólica de uma funcionalidade cuio dinamismo é uma característica do mundo moderno. Como no Gótico, a que se remete, uma única corrente de força se difunde em todas as nervuras, até se dispersar nos milhares de regaros de uma ornamentação agora integrada às estruturas. À operação consiste essencialmente na rejeição do conceito unitário de “arte”, sob o
qual se classifica cada arte individual, e na delimitação do campo ou estrutura especifica para cada uma delas: campo e estrutura cuja especificidade não pode ser senão a de suas respectivas técnicas. O campo da pintura é a percepção, o campo da arquitetura, a construção — a primeira diz respeito ao modo de receber a realidade, a segunda, ao modo de intervir na
realidade, modificando-a. Os dois procedimentos são independentes e não possuem parãmetros formais em comum; no entanto, têm um ponto de convergência porque, assim como o pintor estrutura ou organiza a realidade recebida num espaço perceptivo, os novos arquitetos estruturam e organizam o ambiente da vida num espaço construtivo. Tanto a arquitetura como a pintura, afinal, pretendem transformar a atividade artística de representativa em estruturante, À utilização do concreto (ou, para usar O termo corrente, o cimento) também gerou longas polêmicas: devia ser considerado como um material em si, com características próprias, ou como um sucedâneo econômico da pedra? Devia ser utilizado apenas como substituto da alvenaria e recoberto com um ornamento decorativo de outros mate-
riais, ou devia-se estudar uma nova decoração adequada à natureza do novo material? Mas qual era a natureza desse material, empregado em estado líquido, tornando-se a seguir mais
duro do que a pedra? Seria realmente difícil definir a natureza de um material artificial, contudo era possível definir sua técnica; e esta técnica diferia radicalmente da técnica construtiva tradicional, pois não consistia em sobrepor elementos sólidos, mas em verter uma matéria líquida dentro de formas vazadas (os moldes de madeira).
Quando passa a predominar, com razão, o conceito de que o concreto não deve servir
apenas como fundo, mas como verdadeiro material de construção a que deve corresponder uma morfologia adequada, o problema se torna estilístico: a forma arquitetônica nasce em negativo (os moldes vazados) e se apresenta a seguir como uma forma compacta é contínua, plasmada. É fácil notar que ela permite realizar os motivos formais típicos do Art Nouveau: desenvolvimentos lineares e plásticos contínuos, ondulados, sinuosos, arrojados. O apara-
CAPÍTULO DOIS
À REAJIDADF FA CONSCIÊNCIA
9]
Jon Ponriore Menna hab Pyanepprea dan Forth (1879-90) perto de Edimburgo, arcada de533m,45,72 m dealtuta
to ornamental se une ao aparato de sustentação, resultante do mesmo processo de “fundição”. A força ea elasticidade do material solidificado e a própria técnica da fundição trans-
formam radicalmente a estrutura da imagem arquitetônica: não mais massas e volumes, mas superfícies e delgados pilares de sustentação, não mais equilíbrio entre espaços cheios plásticos e espaços vazios perspectivos, mas nítido predomínio dos grandes vazios sobre su-
portes finos e vigorosos; não mais apenas arcos verticais e horizontais a pleno cimbre, mas oblíquas e curvas parabólicas, arabescos; não mais distinção entre partes de sustentação e partes de preenchimento, mas modulação da forma na própria matéria. No final do sécu-
lo, principalmente por obra de FRançoIs HENNEBIQUE (1843-1921), 0 concreto armado se torna de uso corrente, por meio de astrágalos de ferro inseridos na massa: assim não só aumenta a força de sustentação do conglomerado, como também a flexibilidade linear do ferro se combina com a modelação plástica do cimento. Sobre as extraordinárias possibilida-
des de flexão e tensão do concreto armado e os progressos de sua respectiva técnica fundam-se os desenvolvimentos do estruturalismo arquitetônico do século xx. À construção em ferro e cimento é sem dúvida a causa principal do rápido processo de mdustrialização da arquitetura, através de uma outra metodologia do projeto e uma nova organização do canteiro de obras. Foi enorme a contribuição da nova ordem metodológica
e tecnológica ao processo de transformação da arquitetura em urbanismo, tanto para a construção civil em série como para a construção da infra-estrutura da cidade e da região.
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CAPÉILLO DOIS
4 REALIDADE FA CONSCIÊNCIA
GUSTAVE COURBET MOÇAS À MARGEM DO SENA (VERÃO)
de margem, um gramado com algumas árvores. Tudo o que se considerava poéuco a priori é repudiado: o belo, o gracioso, o sentimento da natureza. Courbet quer viver a realidade como ela é, nem bela nem fera: para chegar a isso, não tendo outro caminho, desfaz-
se de todos os esquemas, preconceitos, convenções, Às poéticas românticas atribuíam a maior importância ao significado dramático ou patético do obje-
to; COURBET crê que a força da pintura reside na pintura e não no objeto. As bases do Realismo, que lança em 1847, são Enterro em Ornans e O quebra-pe-
dras, nos quais, mais do que representar a realidade, identifica-se com ela.
tendências do gosto. Para tocar a verdade, ele elimina
a mentira, a ilusão, a fantasia. Tal é o seu realismo, princípio antes moral do que estético: não culto e amor, devota imitação, mas pura e simples constatação do verdadeiro. Ainda que pareça 1epresentar a realidade como ela
é, o quadro tem uma construção complexa e extre-
Em 1854, num quadro famoso (Bonjour Monstenr
mamente nova, O horizonte é alto, quase não hácéu;
Courbel), ele apresentara nada mais que o encontro
além da margem gramada, está o esmalte celeste da água sob o sol; o que deveria ser o fundo e dar espaço earà composição, é sufocado pela densa massa das ár-
com dois amigos no campo; em 1857, ele apresenta duas moças da cidade fazendo a sesta sob as árvores à margem do rio. Ingres teria apresentado essas moças como ninfas das águas ou dos bosques; Delacroix, co-
mo as heroínas de uma aventura de outroia. Couibet não idealiza nem dramatiza. As moças, com seus trajes vistosos, são mais agradáveis do que belas; não estão posando, suas roupas estão desalinhadas;
nada
têm de “espiritual”, são indolentes, pesadas, sonolentas. Seriam duas levianas que tiraram um dia de descanso? E a paisagem não passa de um pequeno trecho
vores. As folhas que despontam são especificadas uma a uma, não pelo gosto do particular, mas para dar a sensação da imobilidade do ar Mais do que apresentai uma paisagem com figuras, Courbet quis repre-
sentar a atmosfera pesada, O torpor entre sensual e opressor da tarde estival, a vida puramente física das pessoas e das coisas; no gramado florido, as duas mu-
lheres, com as roupas desalinhadas, são duas flores enormes, carnosas, desabrochadas demais. São vistas
E Gustave Courber tela, 0,45 = 0,54 m
O quebra-pedras (849) Milão coleção parcular
Te
a
+ A ERÓ r
SA E
4
DA
CAPETULUA DOIS
À REALIDADE LA CONSCIÊNCIA
Gustave Coubero Moças a margem do Sena, Verão ttRST) tela, 1,74 x 2m Par:s, Masce du Peut Palais
de cima, os corpos quase premidos sobre a gama, belas (se tanto), de uma beleza animal, e, assim como
suas formas não se modelam num espaço envolvente, as cores das carnes e dos trajes também não se
é remetido mais adiante, para os vermelhos-vivos da bolsa. Tudo tem a mesma importância, ou não tem importância alguma: não há razão para atribuir às fi-
pere próximo do gramado verde. Deliberadamente
guras humanas um significado diferente do das ár vores, da grama, das flores, do bote amarrado. Embora cada cotsa seja vista e se apresente aos olhos com a
talta um centro, um eixo ordenador da visão. O olha) é levado a se deslocar de um ponto a outro, cedendo
mesma intensidade, a descrição não é pormenorizada. a pintura é larga e de empaste denso, a escala das
“o apelo das notas de cores brilhantes, disseminadas
cores se limita a poucos tons dominantes (branco,
no contexto, todavia extremamente coeso, do quacio. Ele procura o horizonte naquele pequeno trecho de céu, e é interceptado por um galho que desponta
vermelho, verde, castanho). À unidade do plano de
apresentam sobre um fundo arejado, e sim sobre o ta-
»erdejante sobre o azul; tenta adivinhar as formas ou
disposição (gramado-ro) e a ausência de uma arguiretura compositiva têm duas finalidades: deter a fuga do olhar em direção ao horizonte, fazer com que to-
a disposição das figuras c divaga pelo amontoado
das as notas cromáticas, cada qual com seu timbre
confuso e luminoso dos tecidos; dij Ige-se aos rostos e
próprio. se apresentem simultaneamente à atenção.
94
CAPÍTULO DOIS
A RLALIDADF T 4 CONSCIÊNCIA
Esta simultaneidade de várias notas cromáticas. à
sobreposição dos significados nelas contidos não têm nenhuma relação com a unidade da sensação visual que, alguns anos depois, Manetalcançaráem Le
déjeuner sur lherbe; são, no entanto, suas premissas necessárias. Manet e os impressionistas tentarão fixar a autenticidade do real na absoluta pureza da sensação visual. inaugurarão, assim, toda uma nova pesquisa baseada na percepção. Courber realiza uma obra de ruptura. destruindo todas as concepçoes q prior: da realidade, defendendo a necessidade do confronto direto e sem preconceitos do 1eal com todas as suas contradições, ele coloca as premissas étcas sem as quais a pesquisa cognitiva de Maner e dos impressionistas não teria sido possivel. O que Courbet supera decididamente em Les demosselles é, por um lado, a construção formal unitária da arte clássicae, por outro, a continuidade melódica, a subordinação de todos os componentes da visão a um sentmento dominante. O quadro não apresenta um epi
porque não refleuria a realidade como ela é, e sim como se gostaria ou não que ela fosse. O realismo de Courber, todavia, responde à necessidade de tomar consciência da realidade em suas dilacerações e contradições, de se idenuficar com ela, vivê-la, isto é, de se formar aquela noção da situação objeriva sem a qual a ideologia não é ímpeto
revolucionário,
mas
pura utopia
EDOUARD MANET LE DÉJEUNER SUR L'HERBE
Onze anos antes da famosa exposição dos impressionistas no estúdio do fotógrafo Nadar, ÉDOUARD
MANE | apresentou esta tela, recusada pelo salon oficial, no Salon des refusés. O público e a crítica se indignaram com o “absurdo” do tema (uma mulher nua, num bosque, conversa com dois senhores vesti-
sódio ou uma anedota, mas um fragmento de reali-
dos) e a composição
dade; a paisagem não pretende representar a nature-
relevo, de zonas de cores lisas
pictórica sem chiaroscuro nem
za, mas um lugar qualquer; as figuras são vistas co-
Manet não tinha velerdades revolucionárias nem
mo meras presenças físicas, sem a pretensao de se interpretarem seus sentimentos. Há o prazer do descanso, mas também a opressão da tarde abafada,
em política nem em arte. Pertencia a uma família da alta burguesia, frequentava a sociedade elegan-
sensualidade e tédio, beleza e vulgaridade, provoca-
larre e depois Mallarmé) Como pintor, formara-se no estúdio de um acadêmico (Couture) e traba-
te, viajava, era amigo de literatos e poetas (Baude-
ção e indolência A realidade é complexa, às vezes confusa: é preciso aceitá-la como ela é. Não há necessidade alguma de que o pintor ame as coisas que
lhando no Louvre sobre as obras dos mesties do passado: os vênetos quinhentistas (especialmente
pinta, nem de que o espectador se apaixone pelo
Ticiano), os holandeses serscentistas (Frans Hals),
quadro. E o próprio quadro não é a projeção do real,
os espanhóis (Velásquez e Goya) Naruralmente, entre os contemporâneos, interessava-lhe Courbet (o antecedente direto do Déjeunes é Moças à mar-
csim um naco de realidade: os empastes de Courbet são espessos e pesados, o material pictórico não é de forma alguma dissimulado — é como uma arg; dem gue o artista plasma aquela coisa real, e não nccessa-
riamente agradável, que é o quadro. Em política, Courbet foi um revolucionário, ou melhor, um rebelde: recusou a Legião de Honra, foi ardoroso partidário da Comuna (1871) e, como tal,
aprisionado, obrigado a se refugiar na Suíça, despojado de todos os seus bens. Mas não rranspôs sua paixão política para a arte, ao contrário do que, em 1830, fizera um artista muito menos “engajado”, Delacroix; sua pintura, porém, foi realizada com uma consciência certamente política Um realismo ideologicamente orientado já não seria realismo,
gem do Sena, de 1857), porém, a inverossimilhança do objeto do quadro mostra que ele aceitava apenas parcialmente, e com reservas, o programa rea-
lista de Courbet Seu propósito explícito é: “ser do seu próprio tempo”, “pintar o que se vê” Mas isso não significa retratar as pessoas, narrar a crônica de sua época: fazia parte “da época” (pense-se em Baudelaire) negligenciar e desprezar o caráter anedótico ou narrativo da obra de arte, « a aparente incongruência do objeto ajudava a ver poi fora de toda convencionalidade narrativa. Não é verdade que Manet era indiferente ao objeto (a que as poéticas românticas conferam
uma
CAPÍTULO
DOES
A REALIDADE
É & GONE
IÊNCIA
Édouard Manet O balcão (1868), tela, 1,70x 1 24m Paris, Musée d'Orsay
especial importância) e se preocupava apenas com o efeito brilhante das cores. Ele estudou longamente o
tema c a composição do Déjeuner. O tema da “conversa de figutas nuas e vestidas numa paisagem se encontra num quadro vêneto do início do século xvi (O comeerto campestre, então atribuído a Palma, o Ve-
jeto enquanto ação ou mântico), mas elabora mático que pertence à to, como homem “de
episódio (isto é, no sentido roum material compositivo e tehistória da pintura. No entanseu tempo”, transforma as di-
vindades fluviais em parisienses em férias; o concerro, em refeição ao ar livre; para “pintar o que se vê”,
rênci. casual, porque o motivo dominante, no DéJeumes é a transparência da água na sombra úmida do
transpõe a composição clássica “para a transparência do a!”. A operação não diz respeito à captação do real, e ssm às grandes estruturas da representação pictórica: uma imagem “histórica” é recomposta segundo os valores a que é sensível a consciência “moderna”. Observem-se as figuras: mesmo quando vistas de esguelha, apresentam-se como zonas de cores lisas,
bosque, Manet, portanto, não se preocupa com o ob-
sem
lho, noje em dia é atribuído seja a Giorgione, seja ao jovem
Ticiano,
seja a Sebastiano
del
Piombo).
A
com| vsição retoma, a partir de uma gravura de Mar-
cantonio Raimondi, um grupo de divindades fluviais num Jlgamento de Páris, de Rafael: e não é uma refe-
passagens
em
chiaroscuro,
variando
levemente
95
DO
CAP
LEO DOIS A REALIDADE É ACONSC.ÊNCA
Edouard Maner Le eegruner sur d herdu (1863); tela 208»264m Paus Muses d'Orsar
Marcantorio Rasmond:
O pelgamento de
-egundo Rajnet, detalhe, gravura
Paris
Grorgione e Liciano jovem O concerto campestre te 1510) tela 1,10 x 1 38 m Paris, Louvre
CAPTLLO DOIS
SRTA IDADLEA CONSCIÊNCIA
Fdonard Manet. Of, mpu (1865) rela 130: 1,90m Paris Musecd Orsay.
pelas diferentes maneiras como a luz é absorvida o róseo-pastoso e quase radiante da mulher nua,
os castanhos, os negros, os brancos das roupas. À ly não é um raio que atinge os corpos, acentuando as partes salientes e deixando as reentrantes na sombra: a quantidade de luz se identifica com a
alidade das cores. Observe-se a paisagem; como pa pintura seiscentusta holandesa e na pintura setecentusta inglesa, ela tem uma estrutura perspectiva, «. bastidores arbóreos, com três aberturas em ócu-
iu sobre a luz do fundo; mas a água, a grama ea ramagem formam várias cortinas transparentes e par: elas, que se sobrepõem compondo zonas mais d..1sas ou mais ralas de penumbra verde-azulada.
Na sensação visual, não há uma distinção entre as coisas € o espaço, tal como existe entre conteúdo e continente, Se o artista se propõe a exprimir a sensa-
ção em estado puro, antes de ser elaborada e corrigida pelo intelecto, é porque ele julga que a sensação é uma experiência autêntica, e a noção intelectual uma experiência não-autêntica viciada por preconceitos ou convenções. A sensação, portanto, não é um da-
do, mas um estado da consciência; ademais, a consciência não se realiza na experiência vivida e refletida, e sim na experiência que se vive. Idennfica-se, pois, com a própria existência. Assim como não há distinção de positivo e negativo entre as coisas e o espaço, também não há dis-
À» tamagens verdes se espelham na água; o azul-ce-
tinção de positivo e negativo entre luz e sombra: a
leste da água se evapora na armosfera colorida pelo verde das árvores Neste jogo móvel de véus aéreos, as notas intensas das figuras constituem a estrutu-
sombra é apenas uma mancha de cor que se justapõe às outras, mais ou menos luminosas. Existem relações entre todas as manchas de cor, cada uma in-
ra de sustentação de toda a composição.
fluencia e é influenciada pelas outras: embora Manet ainda não aplique a lei das cores complementa-
+ evidente que, se a luz se identifica com a con, as-
sim não tendo uma incidência precisa, não pode modelas a forma com as passagens ou relações entre claro
res (ou “dos contrastes ssmultâneos” ), como poste-
c.scuio; não havendo um efeito de volume, não po& haver um efeito de vazio correspondente. Não há
ço pictórico é entremeado por essas relações. Exem-
Dai» distinção entre os corpos sólidos e o espaço que os contém; na imagem (e para Manet a imagem é a sensação visual) não existem elementos positivos e nesanvos, tudo se apresenta à vista através da cor Às
hguras e o espaço formam, pois, um único contexto: N amet não vê as figuras dentro, e sum como ambiente.
riormente farão os impresstonistas, todo o seu espaplo típico, a natureza-morta de roupas e fiutas em primeiro plano: o azul-celeste dos tecidos e o verde das folhas (tons frios) ganham valor em contato com os amarelos do pão e do chapéu de palha, com o ver-
melho das frutas (tons quentes); o branco dos linhos e o negro da fita de veludo no chapéu não são os dois extremos (positivo e negativo) de uma gradação cro-
98
CAPÍTULO DOIS
A REALIDADE F A CONSCIÊNCIA
mática, mas duas notas ou timbres de cor, com a
perspectiva. Adota-se uma técnica rápida, de toques,
mesma intensidade e valor. Branco e negro são puras
evitando fundir as cores na tela e misturar 0 branco e o preto nas cores para formar o claro e o escuro. Apesar das premissas comuns, os dois quadros pintados
cores, já não mais claro e escuro, luz e sombra. Da mesma forma, a cultura pictórica é bem mais importante na escolha e combinação das cores do que a preocupação com o verdadeiro: Manet aprendeu as
mente] atestam dois diferentes estágios da pesquisa;
combinações
(ou rosa)
Sisley fica atrás, pois, mesmo propondo-se uma obje-
um inglês serecentista, Reynolds; os negros
tividade rigorosa com a tomada frontal, não consegue se afastar inteiramente do sentimento da natureza para colocar decididamente a questão da sensação
com
em
negro, cinza, amarelo
aveludados e brilhantes, com um holandês do século xvit, Frans Hals; a pincelada ampla e construtiva, a força das veladuras, com Velásquez; as rransparên-
cias das ramagens, com outro inglês, Gainsborough, e, evidentemente, com Goya. Empenhado demais em reviver a história da pin-
por SisLey e MONET em 1873 [e 1872, respectiva-
visual. Em seu quadro, as árvores despidas formam uma cortina transparente que serve como plano interme-
diário ou de ligação entre a superfície da água e a pro-
tura “como homem do seu próprio tempo”, Manet
fundidade da atmosfera. Na casa, as partes ilumina-
não quis fazer parte do grupo dos impressionistas,
das e sombreadas são obtidas com tons justapostos
que ainda assim consideravam-no como guia; no en-
(como em Corot), mas na relação tonal continua presente uma relação em chiaroscuro. A água é pintada com pinceladas densas e miúdas, em três notas
tanto, ele acompanhou as pesquisas dos impressionistas com interesse e simpatia, aproximando-se cada vez mais, principalmente na última década de sua
vida, dos desenvolvimentos da pintura ex plein-air, a
combinadas: o ouro antigo do reflexo das árvores, o azul-celeste e o branco do céu. Três notas combina-
que ele próprio dera início com o Déjeuner.
das também no alto, mais vibrantes. O que segura o
ALFRED ILHA DA
sa é menos concreto do que a coisa. À idéia comum também o impede de solucionar a profundidade do espaço na superficie da pintura: através do ralo dia-
pintor é a idéia comum de que o reflexo de uma coiSISLEY GRANDE
JATTE
fragma das árvores, o olhar vagueia em distâncias sugestivas, poéticas, românticas. Com a nova técnica, CLAUDE MONET REGATAS EM ARGENTEUIL A CATEDRAL DE ROUEN
Sisley procura uma natureza mais verdadeira, mais sutilmente emotiva. No entanto, não era este o problema: o problema não era a natureza (o objeto), e
sim a atividade mental do sujeito que a percebe. Monet tem a coragem de eliminar todos os intermediários entre ele e o objeto: não só as convenções de ate-
Nos anos anteriores à primeira exposição (1874)
liê (perspectiva etc.), não só as noções habituais e o
dos que serão chamados impressionistas, Monet, Sis-
senso comum, mas também o tão celebrado “senti-
ley e Renoir frequentemente trabalham juntos nas margens do Sena, às portas de Paris. Finalidade da
mento da natureza”. Leva para a água azul-celeste os vermelhos, os verdes, os brancos das casas, das árvores, das velas. Não importa que o reflexo de uma coisa seja menos certo e firme do que a coisa: a percepção
pesquisa: exprimir a sensação visual em sua absoluta imediaticidade. Método: trabalho ex plein-air do começo ao fim. Tema de estudo: as transparências da água e da atmosfera. Renuncia-se ao procedimento habitual, que consistia em desenvolver os esboços do
verdadeiro no estúdio, aplicando determinadas regras de composição e iluminação. Escolhe-se o tema fluvial por excluir a estabilidade dos planos perspectivos e a iluminação fixa, que estavam na base da
do reflexo é, enquanto percepção, tão concreta quan-
to a percepção da coisa. Sisley se concedia o tempo para reconhecer a espécie das árvores e, nas casas, a
disposição das paredes e do teto; Monet fixou as notas de cores sem se perguntar a que tipo de objeto correspondiam. Com os brancos insistentes das velas e seus reflexos, ele solucionou a profundidade num
CAPITULO DOUS
A READIDADE E A CONSCIÊNCIA
único plano: o espaço é profundo, a retina não. E a
agora devia levá-la adiante, determinar as razões pe-
pintura não deve representar o que está diante dos
las quais era uma experiência necessária, vital. Mo-
olhos, e sim o que está na retina do pintor. Tampou-
co distingue entre as coisas e o ambiente espacial e luminoso em que se encontram: as cores não são iluminadas, são farores luminosos, e, portanto, os elementos construtivos do quadro.
net, certamente, não se movera no vazio durante aqueles vinte anos; acompanhara o debate entre o Neo-Impressionismo “científico” e o espiritualismo simbolista, sabia muito bem a que difícil pesquisa Cézanne se dedicava em seu retiro provençal, era um
Sisley não chegou à sensação, deteve-se na sensibi-
dos frequentadores das “terças-feiras” literárias de
lidade: como um arquiteto que, com extrema habilidade, leva uma estrutura tradicional ao limite de re-
Mallarmé. São fatores que indubitavelmente influem sobre a orientação de seu trabalho, contudo
sistência, conseguindo que ela realize novos efeitos.
sua pesquisa ainda era, e deveria continuar a ser por
Moner, deixando de lado o sentimento e a sensibilidade, estabeleceu uma estrutura não só mais forte ou rmais elástica, mas radicalmente nova. Seu salto é qualitativo, semelhante ao dos construtores que, em-
um bom tempo, uma pesquisa avançada e plenamente coerente com as premissas do Impressionismo “hustórico”, o que é demonstrado pela importância
pregando o ferro em vez da pedra, definem um espaço total e estruturalmente diferente. Por esse caminho, Sisley não poderia avançar muico; de fato, continuou a tornar cada vez mais sensível, modernizando-a com aparas das descobertas impressionistas, a imagem da paisagem romântica de Co-
rot, Daubigny, Constable (ele mesmo era de origem melesa). Monet, pelo contrário, ao pintar muito mass tarde (1894) a catedral de Rouen, percorreu um
longo caminho, todavia numa direção tão inespera-
da que se poderia dizer que, naquela época, Sisley era mais impressionista do que ele. Ainda assim, não é absolutamente verdade que, percebendo o limute físico ou ótico da pesquisa impressionista, Monet a te-
nha abandonado para se dirígix aos valores do espírito à poesia. Ele sabia raciocinar: descobrira a sensaq40 visual autêntica, em estado puio, mas e daí? Sua
que teve entre artistas deliberadamente modernos como Vuillard e Bonnard. Pode-se admitir, portanto, que a catedral, neste quadro, aparece poetizada ou
sublimada, assumida como símbolo de uma antiga cidade ou, talvez, de todas as catedrais, da Igreja; € pode-se observar como ela se sobressai em relação à
casinha ao lado, assim significando a proteção divina sobre a comunidade urbana. Talvez seja o símbolo da espiritualidade da comunidade dos cidadãos, ou talvez da relação entre céu e terra, ou tudo isso é outras coisas mais. É verdade que o “motivo” é um monu-
mento bastante conhecido e que o pintor parece ter se proposto
torná-lo irreconhecível,
imergindo-o
numa bruma crepuscular e apresentando-o apenas parcialmente, ou melhor, apresentando apenas uma parte de sua fachada. O grande pano oblíquo é torturado por escavações e saliências, que fazem vibiar a
atmosfera vaporosa, violácea, em que está envolto: a
finalidade, evidentemente, não haveria de ser o for-
pouca luz fria que penetra por esse manto e é devol-
necimento de materiais de estudo para a psicologia
vida pela pedra se refrata num jogo extremamente móvel de raios e reflexos. É sempre o estudo das refra-
experimental; supor que o dado autêntico da sensa-
ção visual devia ser elaborado intelectualmente, retificando a impressão imediata com o senso comum e as noções disponíveis, equivaleria a destruir a desco-
ções, difrações, reflexos e dissolvências que Monet iniciara muitos anos antes às margens do Sena e leva-
não poderia ser feito nem pela ciência nem pelo sen-
rá até o fim, um estudo que, em última análise, pretende separar a imagem, como fato interior, da exterioridade e objetividade da coisa. Aqui, a “coisa” só é
so comum, mas apenas pela nova pintura, era a definição do tipo de atividade que se poderia construir
coisa definida, a imagem tende a se ampliar, a ocupar
sobre essa nova experiência sem destruí-la, isto é,
e até ultrapassar todo o espaço de nossa consciência.
qual poderia ser seu percurso e desenvolvimento na
Sente-se que a fachada se prolonga além dos limites do quadro, sai de nosso campo visual; portanto, o campo visual não coincide mars com o campo da consciência. É verdade que, em torno do diafragma
beria e voltar à rotina da pintura acadêmica. O que
vida interior: numa interioridade que, além do mais, tendia a se expressar por meio da atividade do pintor, a mesma que havia conduzido a essa experiência e
vista em parte, e mal; mas, se a coisa é sempre uma
99
ÁTIO,P 9PSNIA “Seg tu EO x 4041 “ep (FG) p2uposro y aouoj, apnejoy
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102
CAPÉTL LO DOIS
A REALIDADE E 4 CONSCIÊNCIA
escalavrado dessa fachada, agiegam-se e soldam-se muitas outras imagens que emergem da memória ou brotam da imaginação — por exemplo, o vôo das an-
dorinhas que nos dá a sensação da vertiginosa altura da torre. Enfim, a impressão visual não se manteve colada à retina: sendo desde o início um fato da imaginação, prosseguiu sua viagem pela dimensão psíquica do
imaginário até se transformar em visão. Não terá psicologia experimental provado que as imagens que se formam na mente independentemente das coisas são “percepções”, da mesma exata maneira que as
imagens determinadas pela visão das coisas? Quando jovem, Monet havia elaborado e aplicado uma técnica rápida para captar em flagrante uma imagem perceptiva que não podia durar senão poucos instantes;
mais tarde, ele elabora uma técnica capaz de registrar e dar visualidade às durações da impressão, sua ocorrência nos longos tempos da existência psíquica e não apenas no espaço plano, superficial, do choque perceptivo. Para explicar Bonnard, deveríamos recorrer ao pensamento bergsoniano do continuum espácio-
temporal, mas valeria a pena verificar o quanto a experiência da pintura de Monet teria contribuído para à formação do pensamento de Bergson, sempre muito atento às questões da arte e da poesia.
forma como a poesia, para Verlainc e Mallarmé, não reside na elevação dos pensamentos, e sim no contex-
to fonético e rítmico dos sons. O pintor trabalha com as cores, assim como o poeta trabalha com as pa-
lavras. A natureza é um pretexto, talvez um meio; à finalidade é o quadro: um tecido denso, animado, rico, vibrante de notas de cor sobre uma superfície. Renoir pinta acuradamente, com pequenos toques, €
cada um deles põe sobre a tela uma nota cromática, a mais pura possível, precisa no timbre que a isola e no tom que a une às outras. À luz do quadro não é a luz
natural, ela emana e se difunde a partir da miríade das notas coloridas. O espaço do quadro não é a projeção perspectiva do espaço real, tendo exatamente a extensão e a profundidade definidas pelas gamas claras e brilhantes
das cores. As figuras não passam de aparências geradas por esse espaço e essa luz; não é o conteúdo que
gera a forma, mas a forma que, em sua plenitude, evoca um conteúdo. Na maturidade, Renoir chegará a sonhar com um novo classicismo: suas ninfas florescentes serão as figuras mitológicas daquele seu es-
paço, composto apenas de sonoridades e vibrações cromáticas. O ideal já não é a bela natureza, e sim a
bela pintura. No entanto, a idéia do belo, combatida por Degas e a que os outros são indiferentes, permanece: é por isso que, especialmente após a viagem em
RENOIR AUGUSTE LE MOULIN DE LA GALETTE
O Impressionismo nasce com a ligação de Monet e Renoir, que, entre 1869 e 1874, frequentemente
trabalham juntos às margens do Sena, en plen-air, decididos a acabar com as regras de ateliê (perspectiva, composição, chzaroscuro, tema histórico) e a descobrir uma pintura que representasse a “impressão”
visual na sua imediaricidade e flagrante. No entanto, RENONIR será o primeiro, em 1878, aabandonar as exposições do grupo, a recusar qualquer programa de
tendência, a buscar o sucesso nos salons oficiais: “Penso que é preciso fazer a melhor pintura possível, eis tudo”. À pintura não é meio, é fim, da mesma
Auguste Renoir Verses prctrax (1914) bronze Londres, Tate Gallery
CAPÍTULO DOIS
1881 à Itália, Renoir retorna idealmente aos grandes
mestres do “belo”, a Ingres e, recuando progressivamente, a Rafael e à pintura de Pompéia. Na maturidade, ele executa algumas esculturas:
4 REALIDADE
| A CONSCIÊNCIA
um amigo de Renoir, E BRACQUEMOND, pintor, gravador, ceramusta e teórico que, entre outras coisas, foi o primeiro a estudar e divulgar a arte japonesa como
uma arte que não distinguia entre “conceito” e deco-
grandes e míticas figuras femininas que, na plenitu-
ração, e rransmitia com a síntese entre signo c cor não
de plástica dos corpos, parecem dar forma e figura a
mais Os pensamentos ou as emoções do artista, e sim a sua extraordinária perfeição de “estilo”.
todo o espaço, a toda a luz do mundo. À posição de Renoir, que pode parecer autonomista e quase des-
comprometida frente à empreitada reformista dos impressionistas, tem suas razões históricas: coincide com a dos poetas contemporâneos (e de um músico, Debussy) e, apesar das declarações absenteistas, é
também reformista e polêmica. Fazer uma pintura puta significava concentrar a pesquisa em uma técnica cuja finalidade era produzir um objeto, o quadro, considerado absoluto e realizado em si mesmo, sem fins utilitários, exemplar. O artista é o artesão que o
A técnica como estilo, portanto, ou a salvação no estilo artístico dessa técnica artesanal que a indústria desacredirava e aviltava: tal foi o compromisso profundo de Renoir. Mas recusava as rinplicações ético-
religiosas das quais Ruskin e Morris deduziam a necessidade de um retorno à religiosidade medieval, e
tampouco há qualquer afinidade (pelo contrário, há
uma oposição) entre sua pintura sensual e pagã c o zelo religioso, quase ascético, dos pré-rafaelitas ingleses, bem como não se deixará atrair pelo espiritualis-
pintor de porcelanas, e sempre nutriu interesse pela
mo abstrato dos simbolistas. Tampouco nesse terreno Renoir podia admitir que a pintura tivesse segun-
decoração); assim como o quadro é o objeto ideal, a
das finalidades, religiosas, morais ou sociais: a pintu-
técnica que o produz é uma técnica ideal. Era o que,
ra só podia se justificar na realidade concreta de sua própria história. Todavia, a história da pintura, para ele, não era a história das idéias expressas com a pin-
fabrica (Renoir teve uma formação artesanal, como
na Inglaterra, defendiam Ruskin e Morris no plano teórico e com fortes argumentos polêmicos, assim ter tando combater a decadência do gosto, a perda do sentimento da espiritualidade do trabalho, geradas pelo mecanicismo da técnica e pelo utilitarismo da
produção industrial. E era o que na França defendia
tura; pelo contrário, nos mestres do passado, que “lia” com extraordinária agudeza, ele procurava as soluções encontradas, a cada vez e diante do cavalete, para os pequenos problemas essenciais do oficio pic-
“e
Pta
:
a ) ) erra) A
Auguste Renoir Caneerro; em Chaton (1879), tela, 0,81» Im Washington, sé Nawaona: Gallery of Arts
103
CAPÍLULO
DOIS
A REAVIDADE
É À CONSCIÊNCIA
tórico: como combinar dois tons, obter uma transparência ou uma dissolvência, manter a pureza do
timbre sem perder a unidade do tom. O que lhe interessava não cra a concepção formal, e sim a frase pictórica, assim como aos poetas e aos músicos já não in-
teressava a arquitetura do poema ou da obra teatral, e sim a frase poética ou musical. Para ele, não tinha qualquer importância que a solução feliz estivesse em
Ingres ou Delacroix, em Watteau ou Tiepolo, em Rafael ou Veronese: sua história não era uma construção lógica, mas um conjunto de anotações de leituras feitas, por assim dizer, com o pincel na mão, em vista do trabalho a ser realizado. Mais do que uma história, portanto, é uma poética, no sentido específico que este termo assume com Mallarmé, cuja poesza é a atuação ou a explicação, a única possível, de sua poésica. Assim se explica, e não mais como intolerância
ao problema, a aversão de Renoir frente a toda formulação teórica alheia à concretude do fazer pictóri-
co, € ao mesmo tempo a atenção com que acompa-
ii
104
ZEO E RE Rs
nha a pintura dos outros, tirando inspiração não só dos grandes mestres do passado distante e próximo, como também de Manet, Monet, Cézanne (a quem
sempre teve em sua justa medida) e Seurar. Era exatamente este seu modo de dedicar ao presente absoluto da obra em elaboração toda a experiência do passado
que o impedia de se perder em nostalgias absurdas, em revocações anacrônicas — sua rigorosa defesa da pintura, extremamente resoluta, não celebra uma grandeza perdida, mas afirma a sua atualidade.
EDGAR DEGAS VCABSINTHE
Admirador e, quando jovem. seguidor indireto de Ingres, DEGAS fez parte do grupo de ponta dos im-
Auguste Renosr Le mol de la Galetse
pressionistas, embora sua pesquisa divergisse da deles
(1876): rela
e, mais tarde, o levasse a procurar na escultura o meio mais adequado para realizar a síntese entre movimento e espaço a que aspirava. Continua-se a afir-
mar que ele era mais desenhista do que colorista; mesmo que seja o caso, nem por isso foi um antiimpressionista entre os impressionistas ou, pior, um espírito ambíguo debatendo-se entre um impulso progres-
131
Musee d Orsay
x1,72m
Paris
CANÍTUTO NOIS
A REALIDADE F À CONSCIÊNCIA
105
106
CAPITULO DOIS
A RLATI
ADE
FA CONSCIÊNCIA
sista € uma incerteza conservadora. Opõe ao impressionismo de Monet ou Renoir uma objeção de fundo: a sensação propriamente dita é um faro mental, mais do que visual, e não pode existir um novo modo de ver sem um novo modo de pensar. O artista não é um aparato receptor, uma tela imóvel sobre a qual se projeta a imagem imóvel do criado; é um ser empenhado em captar a realidade, em se apropriar do espaço. Este, portanto, não possui uma estrutura dada e constante, a perspectiva geométrica euclidiana; tem a extensão, a profundidade, o ritmo
motor da ação humana e, assim como não há ação sem espaço, não há espaço. mas apenas extensão inerte e amorfa, sem a ação humana. Não é apenas
uma questão da vista, como declarava Monet: o impulso da inteligência que quer ver e captar é também um gesto da mão, de todo o ser físico e psíquico. O desenho de Degas é um gesto rápido, preênsil, resolutivo, que arrebara algo do real e dele se apropria. Não é contemplação: o que se chama de sensação vi-
de pintar paisagens), e sim psicológico e social: daí
seu interesse extremamente agudo pelo mundo presente, não-histórico. Ele desenvolve uma técnica não de representação [expressar], mas de tomada (captar):
suas cores são áridas e dissonantes, sem corpo nem brilho, porque no dinamismo da imagem nada deve
se fixar e perdurar. Frequentemente utiliza o pastel, com o qual pode traduzir imediatamente em cor o gesto rápido do desenho. Recorie sem preconceitos
ao auxílio da fotografia, que revela aspectos ou momentos do verdadeiro que escapam à vista; como a fotografia, a pintura deve ver e tornar visíveis coisas que o olho não vê e, principalmente, fornecer uma imagem instantânea onde a vista e a mente ainda não conseguiram separar a coisa que se move do espaço
onde se move. Mas a fotografia apresenta um instante, é a pintura uma síntese do movimento; por isso, a pintura não pode ser substituída pela fotografia. Foi
dos primeiros a estudar as estampas japonesas, não por gosto ao exotismo, e sim pela novidade desse sis-
sual é o produto do ágil mecanismo de captação e
tema de figuração que, elimmando a corporeidade
possu! uma estrutura própria — o que chamamos de espaço real é a nossa própria presença na realidade. Não é estático, mas dinâmico; como a existência é um todo, não há separação entre o sujeito que vê e o objeto visto. Em sua obra, o espaço aquém do quadro, o espaço da vida, sempre prossegue no quadro, inscreve-se, acelera a corrida das linhas para o hori-
do volume e da cor, fundia no mesmo gesto-signo o
zonte. Tampouco o gesto que fazo espaço pode ser o gesto deliberado, consciente, histórico: o que formava o espaço privilegiado, perspectivo da pintura clássica ou “de história”, e que podia ser apenas contemplado como exemplar. É uma arremetida de impulso, espontânea e ao mesmo tempo rítmica Dois temas sc repetem frequentemente na pintura de Degas. as
movimento dos corpos e do espaço. Na maturidade, fo1 escultor, e com ele se inicia a transformação da es-
cultura, que ainda permanecia ligada à tradição, apesar do episódio romântico do animalista Barye, amigo de Delacroix. Sintetiza na frase rítmica do movimento um núcleo plástico, um ponto de máxima intensidade do dinamismo espacial; obriga a forma a spaccate acrobáticas, fixa-as no ápice do ritmo num
equilíbrio temerário como o das enérgicas estruturas da nova arquitetura Embora sua pesquisa ultrapasse a da sensação vi-
sual e revele momentos psicológicos ou situações humanas que o olho não registra sem a vontade cogniti-
bailarinas do Ópera e as mulheres banhando-se ou
va do pensamento, Degas nunca cedeu a simpatias ou
penteando-se No primeiro caso, são corpos plasmados pelo exercício de um movimento rítmico, essencial: no segundo, corpos que executam movimentos
aversões, a impulsos do sentimento. É e se mantém um impressionista: não lhe interessa o que está além, e sim o que está dentro da sensação, sua estrutura interna. Seu grande achado é ter justamente descoberto que a sensação visual não é um fenômeno de superficie, mas uma verdadeira estrutura do pensamento
que já se tornaram habituais, e com eles plasmam o espaço onde se movem como peixes na água. Mas o corpo humano não é uma entidade abstrata, sempre igual: suas ações têm móveis físicos e psíquicos, dos
Labsinthe pertence ao momento destacado do Im-
quais nem sempre — ou melhor, raramente — se
pressionismo: dois anos após à primeira exposição no
rem consciência. O espaço de Degas, embora seja um espaço absolutamente concreto, não é “natural” (ele não gostava
estúdio do fotógrafo Nadar. Mesmo sendo um quadro impressionista também na intenção e no tema da vida parisiense, está muito longe dos motivos alegres
CARTEL
Edgar Degas Deamsemwe(c Paris, Musée 'Orsay
1886)
TO DOIS
AREADIDADE
FA CONSCIÊNCIS
bronze
Ldgar Degas Ante de dança (1874) tela 0,85 = 0,75m, Paris. Musce d Otsar
107
Edgar Degas L abssmrhe (1876) tela 0,92x068m Paris Muséc d Orsay
CAPÍTULO DOIS
e das gamas vivas dos impressionistas. Degas sacrifica a tendência do grupo seu culto a Ingres, o qual por
nada no mundo teria tomado como modelo dois tipos humanos tão comuns e decadentes: um bohé-
men € uma pequena prostituta entorpecida pelo álcool. Tampouco Courbet, Manet, Renoir o teriam feira, é Baudelaire também não o teria aprovado. No
A REMUIDADE FA CONSCIÊNCIA
espelhos embaçados. Apesar do gelo da análise, a sensação visual está lá, intacta: não foi aprofundada, in-
terpretada, elaborada, o significado humano está implícito no dado visual. À impressão visual, portanto,
não é um limitar-se a ver, renunciando a compreender; é um novo modo de compreender e permitir compreender muitas coisas antes incompreendidas.
entanto, Degas não o faz por polêmica social: não
Assim Degas desfaz a ligação que ainda vinculava a
pulga, não condena, não se apieda, não ironiza. Bas-
sensação visual impressionista à emoção romântica, E é ele, fundamentalmente ingresiano, que se liberta
ta-lhe descobrir objetivamente a solidariedade que
une aquelas figuras àquele ambiente. A descoberta do caso humano, dada a capacidade de captação de seu
aparato pictórico, é quase involuntária (mas Degas pagou em vida esse excesso de lucidez com a solidão e a angústia).
Es como funciona sua máquina de captação, eis a
do complexo de inferioridade que o próprio Renoir, o próprio Cézanne experimentam frente à perfeita lucidez de Ingres. Para ele, tão sensível à realidade do seu tempo, o clássico já não é beleza nem razão; é simplesmente recusa do patético em favor de uma
objetividade superior.
estrutura do fotograma. Uma grande parte do quadro e ocupada pela perspectiva enviesada, com um abrupto desvio em ângulo agudo, das mesinhas de
marmore, Entra-se no quadro por este rumo imposto, como se estivéssemos pessoalmente naquele café,
num: dessas mesinhas. O desvio retarda nosso encontio com os dois personagens; primeiramente, nossa atenção é detida pela garrafa vazia sobre a ban-
dj! a seguir é remetida aos dois copos com as bebidas. quase por uma associação espontânea de idéias.
No primeiro copo há um líquido amarelo, em relação com as fitas amarelas no corpete da mulher; no
segando, um líquido vermelho-castanho, em relação com o terno, a barba, a cor do homem. Chega-se assim ao centro do tema, mas o tema não está no centro do quadro. Os dois não se movem, estão absortos,
sem expressão nem gesto; contudo, aprisionados no pequeno espaço entre a mesa e o encosto do sofá, des-
lizam numa perspectiva que a parede de espelhos, por trás, torna ainda mais incerta e fugidia. Mas é es-
sa nova perspectiva que põe as figuras em foco. Na
PAUL CÉZANNE E OS LADRÕES O ASNO A CASA DO ENFORCADO AUVERS JOGADORES DE CARTAS O MONTE SAINTE-VICTOIRE
EM
A biografia sem acontecimentos de CÉZANNE aju-
da a entender sua pintura, que conclui a parábola do Impressionismo e forma o tronco do qual nascem as grandes correntes da primeira metade do século XX.
Cézanne renunciou a ter uma vida para realizar sua obra, ou melhor, fez da obra a Sua vida. Com posses suficientes para viver de seus recursos, isolou-se em
grotescos: o falso luxo, totalmente profissional, dos
sua casa na Provença; logo renunciou também às esporádicas estadas em Paris, mantendo apenas raros contatos com os amigos mais caros, Monet, Pissarro, Renoir. Mas também não permitia que interferissem
laços dos sapatos, dos enfeites do corpete, do cha-
em seu trabalho; trabalhava incansavelmente, com
Peurinho periclitante; no homem, impressiona a vulgaridade corpulenta e sanguínea, a tola presun-
método, consciente da enorme importância do que
moça, antes mesmo do que a doentia palidez do rosto, impressionam certos detalhes miseráveis, quase
fazia, e, no entanto, sempre insatisfeito Se às vezes ocorria-lhe desejar o sucesso que lhe era
ção É uma humanidade macilenta e desperdiçada, parada no tempo vazio e no espaço estagnante: fria
negado, nem
como o mármore das mesinhas mal lavadas, surrada
em obtê-lo. Não pretendia criar obras monumentais,
e desbotada como o veludo dos sofás, opaca como os
obras-primas; a descoberta de pequenas verdades,
por isso empenhava-se
minimamente
109
No
CAPÍTULO
DOIS
A REMLIDADE PA CONSCIÊNCIA
vem € arisco provençal sentia que a renovação pretendida deveria ser algo muito diverso de uma re-
que demonstravam a correção de sua pesquisa, compensava-o pela labuta cotidiana. Concebeu a pintura como pesquisa pura e desinteressada, semelhante à
volta contra o gosto acadêmico e a conquista da li-
do cientista ou do filósofo, mesmo que diferente no
berdade de olhar o mundo sem preconceitos. Tal-
método — pesquisa de uma verdade, justamente,
vez lhe tenha sido proveitosa, nos dois anos que pas-
que não podia ser alcançada senão com aquela reflexão ativa frente ao verdadeiro em que, para ele, con-
sou em Auvers-sur-Oise, a proximidade daquele pintor corajoso e meditativo, aberto à pesquisa
sistia o pintar. Já se aproximava da morte quando o
avançada mas avesso a aventuras, que era Pissarro: o
mundo percebeu a inigualável grandeza de sua pin-
fato é que Cézanne, quase de súbito, compreendeu que do Impressionismo poderia e deveria nascer um novo classicismo, não mais fundado sobre a imitação escolar dos antigos, e sim dedicado a for-
tura. Formou-se sem mestres, procurando escolher,
desenhando e pintando, o núcleo expressivo, a estrutura profunda das obras dos pintores do passado —
principalmente italianos (Tintorerto, Caravaggio),
mar uma imagem nova e concreta do mundo, a
espanhóis (El Greco, Ribera, Zurbarán) — e modernos (Delacroix, Courbet, Daumier). Este úlumo,
qual, porém, não mais deveria ser buscada na realidade exterior, mas na consciência.
talvez, mais do que os outros, não por seus conteúdos
A pintura não era literatura figurada, tampouco uma técnica capaz de transmitir a sensação visual ao
sociais e políticos, e sim por seu modo de construir a imagem modelando-a duramente na matéria pictórica. Nas diversas estadas em Paris, a partir de 1861, frequentou os pintores que posteriormente seriam chamados de impressionistas; participou da primei-
ra (1874) e terceira exposição (1877), mas as obras desse período não mostram um grande interesse pelo programa renovador deles. Provavelmente também por influência de Zola, seu amigo de infância e
de escola, permanece obstinadamente ligado a um romantismo agora extemporâneo, todavia exasperado; retira seus temas da lireratura e da pintura romântica (especialmente de Delacroix) e trata-os com um ímpeto quase furioso, amontoando com a espátula densas camadas de cores escuras e fortemente contrastantes. Evidentemente não aceita a pintura puramente visual de seus amigos impressionistas, quer sei um poeta, um literato; porém quer realizar essa literatura como pintor, e não traduzindo o tema
em figuras, mas construindo a imagem com os pesa-
vivo: era um modo insubstituível de investigação das estruturas profundas do ser, uma pesquisa ontológica, uma espécie de filosofia.
Não se pode pensar a realidade senão enquanto é recebida de uma consciência; não se pode pensar a consciência senão enquanto é preenchida pela reali-
dade. Tampouco se pode conceber uma estrutura, uma ordem constitutiva da realidade e do seu devir,
que não seja a estrutura ou a ordem da consciência em seu constituir-se e formar-se. Por isso, Cézanne
nunca poderá dispensar o modelo ou o tema, isto é. a sensação visual (a que chamava de “pezrte sensation”), nunca colocará o mínimo toque na tela senão em
presença do verdadeiro; tampouco nunca proporá abstrair, mas sempre e unicamente “compreender”. Seus esforços são inteiramente dedicados a manter a sensação viva durante um processo analítico de pes-
quisa estrutural, que certamente é um processo do pensamento; durante o processo, a sensação não só se
dos materiais da pintura. Em sua pintura nada é 1n-
mantém, como ainda torna-se mais precisa, organi-
venção, tudo é pesquisa.
za-se, revela toda a coerência ca complexidade de sua
Por isso, reroma e exagera o empaste encorpado
de Courbet, a composição agitada do último DelaCroix, Os grossos contornos negros e as luzes alvas de Daumier; Manet, venerado mestre dos impressio-
estrutura, À operação pictórica não reproduz, e sim produz a sensação: não como dado para uma reflexão posterior, mas como pensamento, consciência em ação. À idéia de que o conhecimento da realidade
nistas, rorce O nariz, não aprecia “a pintura suja”.
não é contemplação, porém nasce de uma vontade
Mesmo assim, esta fase de generosa impureza, em que descarrega toda a sua bagagem romântica, e à sua própria resistência inicial ao programa dos impresstonistas são importantes; evidentemente, o jo-
de tomar e se apropriar, era típica da estética e da ar-
te romântica, e dela passou para Cou bet, cujo realismo é um ato de apoderamento, e os impressionistas, cada um deles empreendendo um modo próprio de
CAPÍTULO DOUS
receher, captar e até mesmo arrebatar a realidade.
4 REM IDADE FACONSCIÊNCIA
A casa do enforcadoé uma das primeiras obras impressionistas de Cézanne, após a fase inicial barroco-
Apenas Cézanne supera o que havia de arbitrário e eticamente injustificável nessa vontade de tomar e se
romântica: basta compará-la com as Regatas de Mo-
apropriar, restabelecendo um equilíbrio absoluto, e
net, do mesmo ano, para constatar que Cézanne,
até mesmo uma identidade, entre a realidade interior
após as primeiras resistências, já passara decididamente para a vanguarda. No quadro de Monet, tudo
e exterior, entré o eu e o mundo, entre o efetuar-se da consciência e o eferuar-se da realidade.
é distendido, leve, brilhante, transparente; no qua-
Se há af uma filosofia, não é, porém, uma filoso-
dro de Cézanne, a composição é densa, os volumes
fia que procede por silogismos, mas se efetua junto
pesados, a cor opaca. E não para alcançar maior pre-
com a experiência viva e atual da realidade efetua-
cisão descritiva: a sensação continua a ser sensação,
da pela consciência. O modo de fundir e estabele-
não se define como noção. No entanto, o que lá se apresentava como superfície, aqui se apresenta co-
cer uma identidade entre a experiência (a sensação) e o pensamento éa pintura: o único que não só per-
mite acompanhar a transformação, como também transforma concretamente a impressão sensorial tugidia, quase inapreensível, em pensamento con-
ereto, vivido, de modo a realizar a consciência em sua totalidade. Ele tinha consciência de efetuar com a pintura uma filosofia que não poderia se efe“tuar de outra maneira, e, numa carta de 1889, as-
sim justifica seu isolamento: “Eu tinha decidido trabalhar em silêncio até o dia em que seria capaz de sustentar teoricamente minhas tentativas”. Por-
mo volume; a planície distante se interpõe à força
entre a casa e O outeiro, nem mesmo o céu se destaca, mas une-se à crista das colinas. Há uma profundidade evidente no avanço das trilhas, nos escuros
profundos que fundem os volumes, todavia a profundidade não cria distância e nada se esfuma ou se dilui, tudo se aproxima e se adensa. Chama a atenção a espessura da camada de cores, árida e grumosa como um reboco; mesclada à cor, a luz se torna ma-
téria, não tem transparência nem brilho, apenas
tanto, a teoria devia ser posterior, derivada da obra: se pensarmos que a filosofia moderna não é, nem
uma vibração pesada, como um zumbir nos ouvidos. Absorvida pelos volumes, deixa poucos traços seus na superfície: certo raleamento imprevisto do
quer ser, senão uma reflexão sobre a experiência em
tecido cromático, certas veladuras transparentes so-
seu realizar-se, ou mesmo o seu realizar-se à luz da
bre a camada endurecida, certos flocos como que de estopa sobre ramos secos. À profundidade, portan-
consciência, é impossível deixar de reconhecer que a pintura de Cézanne (como reconheceu um filósoto, Merleau-Ponty) contribuiu para definir a di-
mensão ontológica do pensamento moderno. Assim se explica como ele superou aquilo que parecia ser o caráter tipicamente francês do Impressionismo, como ele recuperou, para além do racionalis-
mo neoclássico, certas qualidades de imediaticidade
e desenvoltura cromáticas próprias da pintura franCesa setecentista, e, quase lançando uma ponte entre 9 psicologismo francês e o idealismo alemão, formou
à base de uma cultura figurativa européia. Evidentemente, isso não significa que se deva ver em Cézanne O artista Que superou e renegou a suposta superficiali-
dade de uma arte inteiramente fundada sobre a labilidade e inconsistência da sensação visual. É exatamentt o contrário: levando a sensação visual ao nível da consciência, Cézanne ampliou imensamente o hori-
Zonte da pesquisa impressionista inicial e realizou o que podemos denominar Impressionismo zntegral.
to, não está no vazio em torno das coisas, e sim dentro da matéria da cor, e não é apenas densidade, mas estrutura quase cristalina das massas cromáticas. Vemos, por exemplo, apenas uma parede da casa onde
a luz se solidifica e forma uma camada, porém basta a cunha de sombra que a separa da construção vizinha para se sentir o volume, como um cubo do qual
se vê apenas um lado. Mais tarde, Cézanne virá a afinar o empaste, pintará com veladuras transparentes e nos últimos anos
chegará a utilizar frequentemente o meio mais diáfano, a aquarela. Decompondo as formas em várias nesgas coloridas, estudando a amplitude e a fregiiência das pinceladas de modo que a cada nota de cor corresponda uma definição formal precisa, ele determina com extrema clareza a razão estrutural, a função específica de cada pente sensarion num contexto de relações no espaço. Mas o espaço já não é uma construção perspectiva q priori, e sim resultante; não
11
112
CAPÍLULO DOIS AREAS IDADE EA CONSCIÊNCIA
Paul Cézanne A casa do enforcado em Auvers 0,66m Paris, (1873) rela, 055 Musée E Orsay
é um esqueleto constante sob as aparências mutáveis,
é a rítmica profunda e sempre variável dessa mudan.ça das aparências ou, mais precisamente, de sua contínua e variada combinação e constituição, como sistema de relações em ação, na consciência.
Numa carta de 1904, ele escreve que é preciso “tratar a natureza conforme o cilindro, a esfera, o cone, o conjunto posto em perspectiva”, e pretendeu-se ver nessa frase uma antecipação teórica do Cubismo, movimento que inquestionavelmente descende de sua pintura, mas interpreta-a em sentido racionalista. Cézanne não afirma que se devam reduzir as aparências naturais a formas geométricas; ele não se refere a um resultado, e sm a um processo (“tratar”).
As formas geométricas, ab antiquo expressivas do
espaço, são instrumentos mentais com que se efetua a experiência do real: se uma laranja, no quadro, aproxima-se da esfera, ou uma pêra do cone, não sig-
nifica que a laranja seja esférica e a pêra cônica, mas que o artista conseguiu especificar a relação entre os
dois objetos singulares e o conjunto da realidade, 1sto é, fazer com que essa laranja e essa pêra sejam uma laranja e uma pêra, e ao mesmo tempo uma esfera e um cone, isto é, formas expressivas da totalidade do espaço. Como as formas geométricas não são o espaço, porém modos através dos quais o homem pensou o espaço, elas não são idéias inatas, e sim formas históricas; fortalecida pela sua experiência histórica, a consciência se apresta para a experiência do real pre-
sente. Por isso, Cézanne diz que sua aspiração é refazer
CAPÍTULO DOIS
Poussin a partir do verdadeiro, isto é, reencontrar a história na natureza, a experiência refletida do passado no flagrante da sensação É este o classicismo (mas sera mais correto dizer a classicidade) de Cézanne.
À REAI IDADE
A CONSCIÊNCIA
um espectador no teatro. Aí não pode existir uma separação entre o espaço da vida, ou do artista que pin-
ta, e o espaço do quadro. É uma exigência que todos os artistas, a partir de Delacroix, percebem e tentam resolver de várias maneiras: ora fazendo-se envolver
Depois de falar sobre o cone e a esfera, ele acrescenta: “À natureza, para nós homens, está antes na pro-
pela espacialidade atmosférico-cromática do quadro
tundidade do que na superfície, e daí a necessidade de
(Monet, Renoir e, mais tarde, Bonnard), ora levando
introduzir em nossas vibrações luminosas, represen-
o espaço da vida para a tela e além da tela (Degas,
tadas pelos vermelhos e amarelos, uma quantidade suficiente de tons azulados para dar a sensação de atmosfera”. As vibrações luminosas são as que emanam dos objetos envolvidos pela atmosfera; logo, trata-se
Toulouse-Lautrec).
ainda da relação objeto-espaço: em seu processo formativo, a consciência opera essa distinção na sensa(ão em que os tons quentes dos objetos iluminados se apresentam mesclados aos tons frios da atmosfera. Mas, a seguir, a distinção opera a síntese, porque o espaço é a representação global do conjunto dos objetos; assim, na pintura de Cézanne, a estrutura é o tecido cromático resultante da divisão das cores locais
Os primeiros se interessam aci-
ma de tudo pela realidade natural, em que incluem também o social; os últimos, pela realidade humana
ou social, e assim apresentam a natureza-ambiente.
É ainda o problema do subjetivo e do objetivo, da alternada predominância do impulso romântico sobre o equilíbrio clássico ou vice-versa. Em Cézanne, não há uma ruptura entre realidade interna é externa; a consciência está no mundo, e o mundo na consciência; o eu não conquista o mundo e não é por ele conquistado.
Não há apenas um equilíbrio paralelo,
nos componentes quentes e frios (vermelhos-amare-
há uma identidade. Por isso, seu classicismo não é um classicismo histórico, e sim uma classicidade pu-
lados, azulados) e de sua combinação no ritmo cons-
ra como a de Fídias ou de Giotto, os únicos grandes
truttvo das pinceladas. À pintura de Cézanne, enfim, ciência, ou melhor, o construir-se da consciência
clássicos”. Mas não se chega a esta sua classicidade absoluta abstraindo-se da experiência vivida, do presente, e assim ela não abre espaço a uma nostalgia pelas formas do passado, e nunca poderia ter sido alcan-
através da experiência viva da realidade (a sensação).
çada senão depois de ter realizado e esgotado a expe-
não parte de uma concepção espacial a priori, o espaço não é uma abstração, é uma construção da cons-
“e
O pintor, portanto, representa não a realidade como
riência do Romantismo, como a realizou Cézanne,
eia é nem como a vemos sob o variado impulso dos
com maior profundidade do que qualquer outro, no primeiro período de sua carreira.
sentimentos,
mas a realidade na consciência ou o
equilíbrio absoluto, finalmente alcançado, entre a totalidade do mundo e a totalidade do eu, entre a infinita vartedade das aparências e a unidade formal do espaço-consciência. O Impressionismo integral não é. pois, senão um Classicismo integral. Ão dizer que a natureza, para o homem,
está na
profundidade, Cézanne não está absolutamente vol-
Mas como conciliar a atualidade de Cézanne com sua aparente indiferença pelos problemas sociais típicos de sua época? Encerrado em seu estiúdio, distante do mundo, ele pensa apenas na pintu-
ra, não Ihe aflora a suspeita de que seja possível 1solar um problema social dentro do problema geral da realidade. Um único quadro (em várias versões) pa-
tando à concepção perspectiva tradicional, ainda que
rece roçar a questão: Jogadores de cartas (1890-2). É
certamente se oponha à redução impressionista ini-
cial da profundidade à superfície. Ao pretender reali-
um tema que poderia ter sido tratado por Daumier, Courber, Miller, e mesmo Van Gogh no período
z:r a unidade do espaço (como unidade da consciên-
holandês inicial — com ênfases diversas, realistas
cial, evidentemente não poderia conceber a profundidade como algo além de uma superfície, nem a supeiticie como um plano que intersecciona a profun-
diciade, A profundidade é una e contínua, e não uma peispectiva diante da qual se coloca o artista, numa contemplação que permanece exterior a ela, como
ou moralistas, ressaltando o que não escapa sequei a ele, isto é, a compostura € a seriedade dos dous camponeses, que têm no jogo o mesmo empenho e a mesma moralidade que têm no trabalho. Ao abor-
dar esse tema inusual, Cézanne certamente pretendia prestar uma homenagem a Courbet, a quem
113
CAPÍTULO DOIS
A RTALIDADE E A € QNSCÍÊNCIA
consciência, era também um realismo integral Não seria justo descartar a situação expressa pelo
lado dele, enquanto do outro lado aponta em ângulo. A atenção, a mobilidade psicológica do outro, é apresentada pelas cores mais claras e sensíveis à luz do paletó, do chapéu, do rosto e do desenvolvimento
pintor na relação psicológica entre os dois jogadores: um deles empenhado em escolher a carta que jo-
menos rígido, mais ondulado, dos traços. O que varia não é a caracterização psicológica, e sim o modo
gará, o outro à espera. Mas é preciso observar como
como os volumes de cor se desdobram no espaço e reagem à luz. A intensa passagem de tons escuros, avermelhados € negro-azulados, no fundo e sobre a
sempre reve na conta de mestre; seu impressionismo
integral, como
ascensão
77 toto da realidade à
se define essa situação, embora a posição e os gestos das figuras sejam perfeitamente simétricos e não ha-
ja em suas faces a mínima busca de uma expressão psicológica. À imobilidade do jogador à espera é de-
finda pela forma cilíndrica do chapéu que se repete na manga, pela linha reta do encosto da cadeira, pe-
mesa, liga e compõe os volumes numa unidade, envolvendo-os assim como a atmosfera, numa paisagem, envolve as árvores próximas e os montes distantes. O eixo do quadro é o reflexo branco na garrafa e não recai exatamente no centro, dando assim uma li-
mo a toalha avermelhada sobre a mesa cai a prumo ao
geira assimetria à composição. vê-se por inteiro o
e
asse
las notas brancas do cachimbo e do colarinho; mes-
mig
&
nnc. fogadores de carras (1890-2) 57 m Pas,
A
e os ladrões (1869-70), Vaul Cézanne O asno la,0,41x0,55m Milão, Galleria d'Arte Moderna.
Y
Paul Cézanne
OU monre Same Viciwrre
(1904-6); tela, O,6U x 0,73 m
Zunque, Kunsthaus
16
cCaptTULO DOIS
A REATIDADE E A CONSCIÊNCIA
grande volume cilíndrico do jogador de cachimbo, e atrás dele há um vazio, enquanto o volume mais solto e luminoso do outro jogador é cortado pela borda
do quadro. À cor já não é um tom cromático local ligado às coisas, e sim a substância do espaço pictóri-
co; o quadro é todo um tecido de notas cromáticas a que o toque dá uma densidade e uma direção autônomas em relação à forma dos objetos. Todavia, é o mesmo tipo de relação que, numa
paisagem, passa entre uma montanha e o céu, entre uma casa e uma massa de folhagens, entre a margem pedregosa e um espelho de água; as variações de densidade e vibração não rompem a unidade do espaço,
não alteram sua estrutura. À substância, a qualidade fundamental da cor, mantém-se sempre a mesma; Cézanne não preenche nem recobre volumes plásticos com cores predeterminadas, mas constrói massas c volumes por intermédio da cor. Veja-se (para dar
“especulativas” ou “ontológicas” de Cézanne, ponto.
de chegada de sua pesquisa dirigida à compreensão
global do ser e de sua estrutura vital: mas pode-se negar que esta “filosofia” pura seja pura pintura? E poder-se-ia porventura censurar um artista empenhado nesse problema total, disposto a demonstrar que, se o
contaro direto com o mundo é pensamento, o pensamento também é contato direto com o mundo, por não ter considerado tal ou qual problema particular de sua época, mesmo se tratando da guerra francoprussiana ou da Comuna? De qualquer maneira, Cézanne enfrentou implicitamente o problema social, como problema central da época, ao definir não só a função, mas também o
dever do artista no mundo, e naquele tipo de mundo. O “problema do quadro”, seu problema de representar a natureza, a sociedade ou a vida interior e secreta do artista, é o problema central da pintura oitocentis-
apenas um exemplo) como é construído o volume
ta, não sendo senão o problema, cada vez mais pre-
geométrico do jogador de cachimbo: um cilindro
mente devido à afirmação do pragmatismo industrial
que termina em ogiva, no qual o cilindro oblíquo do braço se insere como um tubo. É impossível dizer qual é a cor exata desse paletó: não há uma cor única
e capitalista, referente à razão de ser e à possibilidade de ação do artista nesse tipo de sociedade, Tal problema não se resolveria com reações psicológicas, senti-
que se estenda na superfície ou que se ilumine nas saliências e se obscureça na sombra. Há verdes, verme-
mentais, práticas, optando por este ou aquele, repre-
lhos, amarelos, roxos, azuis, postos com pinceladas oblíquas que parecem se impelr umas às ourras; a própria variedade tonal determina esse aumento e
diminuição, essa expansão e contração da cor, até O ponto em que é bloqueada por outra forma colorida. Numa das obras mais tardias e grandiosas, a última das várias imagens do Monte Sainte-Victoire, vê-
sentando os camponeses no trabalho ou os senhores a passeio no Bois de Boulogne.
Tampouco com o lamento pelos belos tempos de outrora, com as vagas evasões simbolistas ou as fugas para os trópicos. No final do século, quando se instaura o mito do Progresso, o problema se converte em dilema: a existência do artista tem ou não tem sendo. Não há compromisso possível. Há a solução
seo grau de lucidez estrutural a que chegou o mestre.
negariva de Van Gogh: o artista é rejeitado pela socie-
Impossível imaginar uma sensação mais fresca, ime-
dade e recusa-a, está sozinho perante a realidade, sem
diata e, ao mesmo tempo, definitiva que no ponto
poder resistir ao seu impacto. Após um vôo fulmi-
em que os azuis e cinzas do céu invadem a montanha ca planície, assim como o verde das árvores colore as nuvens. Porém, note-se como o ritmo, a fregiiência
nante e vertical como o de Ícaro, precipita-se, desa-
das pinceladas largas e transparentes preenche todo o quadro, decompõe a imagem num contínuo facetamento de prismas refringentes, e como a luz, mesmo não chegando a tons elevados, adquire uma incrível intensidade de movimento, torna sensível o
dinamismo universal do espaço, ou melhor, o dinamismo da consciência que, no próprio ato de receber a realidade e identificar-se com ela, converte-a
em espaço. É esta, sem dúvida, uma das obras mais
parece, morre. Van Gogh éa última expressão do “su-
blime” romântico: de um início significativamente semelhante ao início romântico de Cézanne, ele chega à conclusão oposta. A solução positiva é a de Cézanne; e isso porque Cézanne viu na abertura impressio-
nista, que a Van Gogh se afigurara como o limute extremo do Romantismo, a perspectiva de um novo classicismo, a premissa de uma nova dimensão da consciência e da existência, de uma relação nova, não mais con-
traditória, não mais angustiada, entre o homem e o mundo. Perguntar sobre o alcance social da nova estru-
CAPITE LO DOIS
ARFALADADE
A GONSCTÊNCIA
“
ra não deve ser um tom unido, nem ser obtido com a
guntar sobre o alcance social do novo estruturalismo
mistura das tintas, e sim resultar da aproximação de
to definiram o processo pelo qual a sociedade moderna
vários pontinhos coloridos que, a certa distância, recompõem a unidade do tom e tornam a vibração luminosa. À primeira obra demonstrativa, La “baigna-
tura espacial definida por Cézanne é o mesmo que per-
arquitetônico com que os técnicos do ferro e do cimen-
constrói seu espaço, a dimensão de sua existência; e de-
vemos insistir uma vez mais sobre o paralelismo, se não a analogia, entre os dois fenômenos. Depois de Cézanne e Van Gogh, as soluções de compromisso indecisas e vacilantes se tornaram aca-
dêmucas e inúteis. À partir daí, tudo, na cultura artística curopéia da primeira metade do século, gravitará em torno dos dois termos opostos do dilema e de sua relação dialética cada vez mais tensa: Cézanne ou
Van Gogh, clássico ou romântico, Impressionismo ou Expressionismo.
GLORGES UM
SEURAT
DOMINGO
DE
de (1884), causa impressão em outro jovem pintor,
PauL SIGNAC, que havia estudado com Monet: se de início o problema, para Seurat, consistia inteiramente na correlação entre o processo pictórico e os processos da visão que se comprovaram cientificamente mais corretos, com a intervenção de Signac, a pesqui-
sa dos dois artistas (cuja ligação perdura até a morte prematura de Seurar) se orienta no sentido de uma
retomada do programa dos impressionistas, mas expurgado de seus resquícios românticos e reproposto em termos científicos. Assim nasce o Nco-Impressionismo, O primeiro movimento a colocar a exigência
da relação arte-ciência, o primeiro também a que se VERÃO
NA
reúne um crítico (F. Fénéon) para o controle metodo-
GRANDE JATTE
lógico da operação na poética. Favorecido pelo cien-
PAUL
tificismo positivista do final do século, o movimento teve ampla difusão; a repercussão mais notável ocorreu na Itália, em Milão, com o Divisionismo.
SIGNAC
ENTRADA DO MARSELHA
PORTO
DE
Colocada a questão da relação arte-ciência, havia três hipóteses: 1) o processo científico e o processo
artístico tendem para o mesmo resultado cognitivo, e neste caso um dos dois é supérfluo, e trata-se de es-
Na segunda metade do século XIX, a fisiologia e a
colher o melhor; 2) levam a resultados igualmente
psicologia da percepção são objetos de intensa pes-
válidos, mas diversos, no plano cognitivo, e neste ca-
quisa científica: é importante averiguar o funciona-
so é preciso distinguir claramente o que se conhece
mento dos processos com que se efetua a experiência do rcal e verificar sua confiabilidade. Os estudos exsenvolvem as descobertas de Chevreul sobre o contrate simultâneo e as cores complementares que, publicadas em 1839, haviam dado um fundamento
com a ciência e o que se conhece com a artc; 3) a arte tem uma finalidade e uma função totalmente diferentes das da ciência. A primeira hipótese está excluída porque, se fosse verdadeira, a atividade que sucumbiria seria a arte. O valor da terceira hipótese se restringe à conversão do problema estético, em sua
científico ao Impressionismo. Em 1880, Sutter, estu-
passagem da órbita cognitiva para a ética (Van Gogh
dando os fenômenos da visão, sustenta que a arte deve cncontrar um plano de entendimento com a ciên-
cia. «entro vital da cultura da época. Ao mesmo tem-
e, em parte, Gauguin). À segunda vale para os dois fenômenos diferentes, porém contemporâneos e complementares, do Neo-Impressionismo e do Sim-
po, um
bolismo. O conteúdo da teórica neo-impressionsta
perimenrais de Helmholtz (1878) e Rood (1881) de-
jovem
pintor, SFURAI, começa a elaborar é
experimentar uma teoria própria da pintura, baseada
é derivado da ciência, à qual, evidentemente, não
na otica das cores, à qual corresponde uma nova téc-
acrescenta nada, todavia, Seurat e seus companheiros
mica cientificamente rigorosa. Um problema central é a divisão dos tons: como a
luz é a resultante da combinação de diversas cores (a luz branca, de todas), o equivalente da luz na pintu-
de grupo crêem que a arte também aspira (como a ciência) ao conhecimento objetivo, mas não lhe cabe experimentar e verificar as proposições da ciência,
À arte enfrenta problemas que não podem ser re-
uz
LIR
CAPÍTULO DOIS
ARPADIDADE FA CONSCIÊNCIA
solvidos com os métodos científicos normais, mas para enfrentá-los precisa renovar sua técnica. A ques-
tão da técnica (o pontilhismo) tem uma importância fundamental; de fato, o avanço dos meios científico-
mecânicos de representação (a fotografia) obriga a técnica da pintura a se qualificar como técnica de precisão (tão rigorosa quanto a da pesquisa científica), renunciando à habilidade extraordinária, todavia ainda empírica, dos impressionistas. Um domingo de verão na Grande Jatte (1884-6),
a segunda grande tela de Seurat, é demonstrativa e afirmativa: um programa. Seurar trabalha deliberadamente sobre o material temático dos impresstonistas — um dia ensolarado de férias às margens do Sena. O modo de elaborá-la é totalmente diverso — nenhuma nota captada ao vivo, nenhu“ ma “sensação” imprevista, nenhum diverumento
episódico. O espaço é um plano, a composição é construída nas horizontais e verticais, os corpos e suas sombras formam ângulos retos. Os persona-
gens são manequins geometiizados, colocados na aléia gramada como peões sobre um tabuleiro de xadrez, em intervalos num ritmo calculado quase
matematicamente, segundo a les da proporção áurea. Entende-se: se a luz não é natural, mas recomposta a partir de uma fórmula científica e, portanto, perfeitamente “regular”, a forma assumida pela luz, identificando-se com as coisas, deve ser regular e geométrica. Por um motivo não essencialmente diverso — forma absoluta numa luz abso-
luta —, a forma de Piero della Francesca também era geométrica. No entanto (e pode-se notá-lo também nas paisagens), o espaço não é definido
por uma perspectiva euclidiana: não sendo um vaz10, e sim uma massa de luz, ele rende a se expandir, a apresentar-se como um globo de substância atomizada e vibrante.
Os corpos sólidos, neste espaço-luz, são formas geométricas curvas, moduladas pelo cilindro e pelo cone; têm um desenvolvimento volumétrico ao qual não corresponde um peso de massa; são compostos pela
mesma poeira multicor que percorre o espaço; não interrompem a vibração da luz. Não é, portanto, um retorno à geometria do espaço perspectivo e à concretude física das coisas; o espaço que Seurat reduz à lógica geométrica é o espaço empírico dos impressionistas, que assim é transformado em espaço teórico.
CAPÍTULO
DOIS
A REALIDADE
F A CONSCIÊNCIA
Georges Seurat Um domingo de verão na Grande Jatte (1884-6), tela, 2,05 x 3,05 m. Chicago, Art Institute,
H9
[20
CAPITULO DOIS AREALIDADE FACANSCIÊNCIA
Georges Seurar O circo (1890), inacabada; tela, 1,85 x 1,52 m Paris Musé d'Otsay.
CAPÍTULO DOIS
4 REALIDADL LACONSCIÊNCIA
Paul Signac, Retrato de Félix Péneon (1890), tela, 0,74 x 0,03m Nova York, coleção foshua Logan.
Georges Seurar Banhistas em Asmeres (La “hargnade”, 884), telas 2 » 3 m Londres, National Gallery
12]
122
CAPÍTULO DOIS A REALIDADE E A CONSCIÊNCIA
Paul Signac: Entrada do porto de Marselha (1911); tela, 1,17 x 1,62 m Musée des Beaux-Arts.
Marselha,
Este novo espaço tem suas proporções, mas elas se exprimem em relações de luz e cor, e não de grandeza e distância. Embora o “motivo” seja uma paisagem fluvial sob o sol de uma tarde de verão, a tonalidade geral não é brilhante: a pintura não deve reproduzir o brilho da luz absoluta (que levaria ao branco puro), e
sim reencontrar a harmonia universal da luz absoluta num nível de menor intensidade, que permita distinguir as tonalidades das cores. O que Seurat realiza, portanto, é uma média proporcional cromático-lu-
minosa, isto é, um equilíbrio, uma espacialidade ou uma arquitetura interna da percepção global, que não poderia ser descoberta por nenhuma pesquisa científica; com efeito, Seurat se interessa não tanto pela física das cores ou pela fisiologia do olho, mas pela economia racional da visão. Neste ponto, porém, devemos nos perguntar se ain-
da é o caso de falar na ciência ou, de preferência, na
ideologia de Seuraz; de fato, o que ele nos apresenta é a imagem de um mundo onde tudo — natureza e sociedade — é condicionado, ou melhor, até mesmo configurado pela ciência. É, em outros termos, a imagem de um ambiente moldado pela mentalidade científicotecnológica do homem moderno: um nivelamento entre sociedade e natureza ao nível da sociedade, e não
mais da natureza. Essas pessoas em passeio dominical também são sérias demais; nada têm a ver com as 7midinettesde Renoir e as bailarinas de Degas. E essa natureza, onde os troncos são cilíndricos e
as ramagens esféricas, onde nem um sopro de vento
encrespa a água do rio, também é educada demais, chega a dar a impressão de que o espetáculo de tanta ordem foi uma das causas da fúria desesperada com que, logo mais, Van Gogh viria a se arrojar sobre a natureza, tentar abalá-la com sua paixão. Há, porém, certa incongruência deliberada e significativa: a se-
CAPÍTULO DOIS
nhora com o macaquinho pela coleira, um homem que toca a trompa, a dama empertigada que pesca com a vara, para nem falar dos homens de negócios, das cartolas, das enormes crinolinas. É claro que se trata de uma sociedade de manequins e autômatos. Falta apenas que o rouxinol mecânico apareça entre as folhas, cantando enquanto durar a corda — René Clair o incluirá posteriormente num filme famoso, que será a sátira, e não mais (como aqui) a polida iro-
nia, da burguesia industrial extremamente séria, respeitável e mais ou menos moderna. Signac desenvolve o pontilhismo em texturas cromáticas mais largas e dispersas, seus quadros são marchetados como mosaicos da Antigiiidade tardia. Pretende.alcançar novas gamas de timbres interpolando noras dissonantes, rompendo a linha melódica da cor. Sua tendência, mais do que uma recomposição ótica
da unidade tonal, é a de gerar na superficie pintada oscilações e vibrações dinâmicas, que se transmitem ao espectador; por isso, sua concepção do quadro como estímulo visual é uma premissa essencial dos fau-
A REALIDADE E À CONSCIÊNCIA
ves, para os quais o quadro será uma realidade viva e autônoma, e não mais uma representação.
VINCENT VAN GOGH RETRATO DO CARTEIRO
ROULIN
Com VAN GOGH, inicia-se o drama do artista que
se sente excluído de uma sociedade que não utiliza seu trabalho, fazendo dele um desajustado, candidato à loucura e ao suicídio. E não só o artista: uma sociedade pragmatista que atribui ao trabalho a finalidade exclusiva do lucro não pode senão rejeitar aquele que, preocupado com a condição e o destino da humanidade, desmascara sua má consciência.
Van Gogh ocupa um lugar ao lado de Kierkegaard e Dostoievski; como estes, ele se interroga, cheio de angústia, sobre o significado da existência, do estar-nomundo. Naturalmente, coloca-se ao lado dos deserdados e das vítimas: os trabalhadores explorados, os
Vincent Van Gogh: Esmrada com exprestes é estrelas (1890): tela, 0,92 x 0,73 m
Rijksmuseum Krôiler-Miiller
Orrerlo,
123
124
CAPÍTULODOIS
4 REALIDADE E A CONSCIÊNCIA
camponeses dos quais a indústria tira, com a terra c o pão, o sentimento da eticidade e religiosidade do trabalho. Não é pintor por vocação, mas por desespero. Tentara se inserir na ordem social e fora rejeitado: de-
dicara-se ao apostolado religioso, tornando-se pastor e missionário entre os mineiros de Borinage; no entanto, a igreja oficial, solidária com os patrões, expulsara-o. Revolta-se aos trinta anos, e sua revolta é a pintura: paga-la-á com o manicômio e o suicídio.
violento, Muda-se para Arles (1888), e em dois anos
realiza sua obra de artista; seu sonho é criar com
Gauguin (que prudentemente recua) uma “escola do sul” que, levando as premussas do Impressionismo a suas últimas consequências, renovaria os próprios
fundamentos da arte. Por que ele abandona a polêmica social no momento em que seu empenho moral se torna mais resoluto e agressivo? Em contato com os movimentos
ria e o desespero dos camponeses. São quadros quase
franceses de deve ser um formação da cia que faz o
monocromáticos, escuros; uma polêmica vontade de
rir no ativismo geral como uma força ativa, todavia
fealdade deforma as figuras. A industrialização que
de sinal contrário: cintilante descoberta da verdade
prospera nas cidades trouxe a miséria aos campos,
contra a tendência crescente à alienação e mistificação. A técnica da pintura também deve mudar, opor-se à técnica mecânica da indústria, como um
Num primeiro momento, na Holanda, aborda frontalmente o problema social; inspirando-se em Daumier e Miller, descreve em tons sombrios a misé-
acabando por privá-los não só da alegria de viver, co-
mo também da luz e das cores. Então decide seguir para Paris, onde já estivera em 1875, como emprega-
do da loja de gravuras Goupil. Retorna em 1886, encontra os impressionistas, torna-se amigo de Toulouse-Lautrec;
abandona
os temas
sociais,
passa das
variações em negro e castanho para um cromatismo
ponta, ele compreendeu que a arte não instrumento, mas um agente da transsociedade e, mais aquém, da experiênhomem do mundo. À arte deve se inse-
fazer gerado pelas forças profundas do ser: o fazer ético do homem contra o fazer mecânico da máquina. Não se trata mais de representar o mundo de ma-
neira superficial ou profunda: cada signo de Van Gogh é um gesto com que enfrenta a realidade para
Vincent Van Gogh Os gerassórs (1889), tela, 0,95 x 0,73m Amsterda, Stedelijk Musenim
APÉIL
LO DO 5 À REALIDADE E A CONSCIENTES
da. Aquela vida que a sociedade burguesa, com seu
e os olhos azuis. É uma realidade que não julga nem comenta: pode apenas sofré-la passivamente ou
vabalho alienante, extingue no homem. O Impressionismo fizera muito, porém não basta-
apropriar-se dela, re-fazê-la com o material e os procedimentos que pertencem ao próprio ofício do pin-
va preparar-se para receber sensações não-adultera-
tor, à própria existência. Na verdade, ele a constrói,
cas da realidade: não se vive de sensações. Os próprios impressionistas, a partir de 1880, sentem a necessidade de um aprofundamento — principalmen-
modela-a com a cor; vsvea espessura do pano na densidade opaca do turquesa, a aspereza espinhosa da barba numa eriçada composição de pinceladas secas
te Cézanne, que se dedica a investigar a estrutura da sensação, pretendendo provar com fatos que a sensa-
e duras, a transparência das carnes nas veladuras frias sobre o rosa. Não divaga descrevendo o ambiente: o fundo é uma parede caiada de branco, vêem-se apenas os braços e o assento da cadeira de vime, apenas o
captal ese apropriar de seu conteúdo essencial, a vi-
ção não é uma matéria bruta oferecida à consciência,
mas é consciência que, em sua plenitude, faz-se existência. Van Gogh não acompanha Seurat e Signac na tentativa de fundar uma nova ciência da percepção
a mesa é esverdeada, e não da cor da madeira? Por
sobre a autenticidade da sensação, nem se propõe a superar o caráter físico da vista no espiritualismo da
de (amarelo + azul) funde os dominantes do quadro;
visão. À pesquisa cognitiva, ao classicismo total, ele
canto da mesa em que se apóia o antebraço. Por que que os cantos são marcados com linhas azuis? O ver-
opõe sua pesquisa ética, seu romantismo extremado; por isso, se a pintura de Cézanne se encontra nas raí7:s do Cubismo, como proposta de uma nova estru-
os cantos são azuis como a túnica; destarte, esses acessórios necessários também se incorporam ao contorno da figura e, ao invés de colocá-la em comunicação com o espaço, isolam-na, contribuem para
tura de percepção, a pintura de Van Gogh, por sua vey, encontra-se nas raízes do Expressionismo, como
apresentá-la como uma realidade que está ali, não pode ser removida, exige ser enfrentada. Antecipan-
proposta de uma arte-ação.
do o pensamento dos existencialistas, Van Gogh pa-
À pergunta que assedia Van Gogh: como se dá a
rece refletir: a realidade (o senhor Roulin ou o café de
realidade, já não a quem a contempla para conhecêla mas a quem a enfrenta vivendo-a por dentro, sen-
Arles, os trigais, os girassóis) é outra em relação a mim, mas sem o outro eu não teria consciência de ser
undo-a como um limite que se impõe, da qual não pode se hbertar senão tomando-a, apropriando-se dela, identificando-a com aquela “paixão da vida” que, ao final, leva à morte? Não a impressão, a sensa-
diferente, incomunicante, tanto mais eu sou eu, tanto melhor descubro minha identidade, o sentido-
ção, a emoção, a visão, o intelecto, e sim a pura e sim-
ples percepção da realidade em sua existência aqui e
agora: apenas tomando consciência e forçando o li-
cu mesmo, cu não seria. Quanto mais O outro é outro,
não-sentido de meu estar-no-mundo. E tanto mais o
mundo manifesta à consciência aterrorizada sua própria descontinuidade e fragmentariedade. A partir disso, evidencia-se que Van Gogh aprendeu
mute é que se chegará a rompêé-lo. O que Van Gogh quer é uma pintura verdadeira até o absurdo, viva até o paroxismo, até o delírio e a morte. Vejamos como ele enfrenta a realidade. Pinta o re-
com os impressionistas tudo o que diz respeito às in-
trato de um carteiro, o senhor Roulin. Vê-se que é
terior do quadro. Em virtude dessas relações e contras-
fluências recíprocas entre as cores, mas tais relações o interessam não como correspondências visuais, e sim como relações de força (atração, tensão, repulsão) no in-
um carteiro pelo uniforme azul-turquesa com galões,
tes de forças, a imagem tende a se deforma, a se distor-
pela inscrição em maiúsculas no boné; o cromatismo dominante do quadro é justamente o realce do ama-
cer, a se lacerar; pela aproximação estridente das cores,
tclo-guro sobre o azul do tecido. Não há aí um interesse social — Van Gogh não retrata o senhor Roulin po! ser, ou apesar de ser, um carteiro, tampouco por
pelo desenvolvimento descontínuo dos contornos, pelo ritmo cerrado das pinceladas, que transformam o
quadro numa composição de signos animados por uma vitalidade febril e convulsa. A matéria pictórica
interessá-lo como tipo humano. É verdade que é um
adquire uma existência autônoma, exasperada, quase
Carteiro, usa esse uniforme, tem essa barba hirsuta
insuportável; o quadro não representa: é.
tomo restolho, com a qual contrastam a pele rosada
Onde está, então, o “trágico” no retrato do cartei-
125
126
CAPITULA DOIS A ELALIDADE [A CONSCIÊNCIA
Vincent Van Gogh
Retraso do cartesro
Routbn (1888), tela, 0,79 x 0,63 m
Bostan, Museum of Fine Arts
CAPE
A Co Des
MRE
IRA
LACAN E TE NCIA
« alegres, É trágico ver a realidade e ver-se na 1ealida-
daquele novo “gênero” artístico, upicamente urbano, que éa publicidade — desenhar um cartas ou a capa de um programa constituía, para ele, um compromus-
de1 com uma evidência rão clara e peremptória. É trá-
so tão sério quanto fazer um quadio.
q. 1econhecer nosso Iimnute no limite das coisas é a 1 pode hber tar-se dele. É trágico, frente à realida-
ção, a comunicação é mais importante do que a repre-
jo Roulin? Não na figura, que está em pose tranquilo « sem drama; não nas cores, que são sonotas, qua-
Entende-se: na publicidade, para suscitar uma rea-
não poder contemplá-la, mas ter de agir, e agir
sentação. Se a representação é algo que se fixa e mos-
1 paixao é fúria: lutar para impedir que sua existncia domine e destrua à nossa À arte então se tor-
tra, à comunicação se insinua e atinge. Se um impres-
de c
vil: que Van Gogh contrapoc desesperadamente ao
stonista. por exemplo, Manet, representava um caneco de cerveja. era porque lhe interessava o dourado do iguido, o branco da espuma, os reflexos do vidro; no
da indústria, que não é vida. À
cartaz publicitário, o caneco de cerveja pretende ape-
po" nica imual, portanto, não foi abandonada, e si.” Jevada a um nível mais profundo. onde está em jog: não só o conteúdo, o abjeto, a rese, mas também
nas despertar (e não no observador isolado, mas em todos) a vontade de uma cerveja fresca. Com Toulou-
ni
ca
trasalho
“
Pavese) o “oficio de viver”, é este ofício da mecânico
se, pela primeira vez a auvidade do arusta não mais
tende a se concluir num objeto acabado, o quadro, mas se desdobra na série ininterrupta das pinturas, das
a essencia é a existência da arte.
gravuras, dos desenhos. no álbum de esboços que to-
DE HINRI UTREC USE-LA IUÚULO A !OALETE
* pintura é a gráfica de TOULOUSL-LAUTREC fo-
lheamos como se léssemos uma coletânea de poesias É a exigência que Mallarmé, nos mesmos anos. coloca para a poesia. a arte não é mais a visão do artista, mas a quintessência de sua existência e experiência. Se Toulouse se interessa mais pela sociedade do
ra n comparadas à narrativa de Maupassant, compos-
que pela narureza, é porque ele a sente mais animada,
ra mmcciramente de golpes de luz e esboços co! tantes,
maus propensa a se modifica: sob a pressão dos impulsos psicológicos; se privilegia o mundo efêmero e brlhante do teatro de vanedades, não é porque o considere mais verdadeno, mas porque sua artificialidade ostensiva é consciente lhe parece significativa da artificia-
Para além das preferências temáticas
(Toulouse é o
prstor de Montmartre e de sua vida artificial e brilhante os cabarés, o teatro de variedades, o circo, os berdéis). ele tem o propósito efetivo de executar uma fic ação rápida, dúcul, intensamente significativa e comunicativa, semelhante não só externa. mas tambom estruturalmente à expressao linguística, Com 8. reportagem concisa c dotada de naturalidade, o qu. pretende é não tanto representar a realidade sob o» úlhos, e sim captaro que, ultrapassando a pura sensa. 1) visual, atua como estímulo psicológico. Fm vez da pintura, ele prefere o meto mais rápido do desenho, unliza de bom giado a litografia e o pastel, que L: smitem a imediaticidade do bosquejo, e mesmo pintando transforma a pincelada impressionista em
lidade essencial da sociedade de sua época. Mimi, bar-
algo
larinas é prostitutas, com o rimo truncado e exasperado de sua dança, são os corifeus da comédie bumaine. Á toalete é um quadro no sentido tradicional do termo, nele. porém, cada signo, seja gráfico seja cromático, vale não por si, mas por sua capacidade de transmiti! uma energia que logo se comunica à todo o espaço. Impossível isolar uma bela cor, um belo arabesco linear em sua composição densa e animada O espaço não é profundidade nem tela de projeção: é um plano fugidio, movediço, onde, ao invés de permanecer, as figuras e coisas deslizam A luz não bate sobre superfícies coloridas dando-lhes brilho ou vibração: ela passa pelos filamentos de cor como a energia elétrica pelos fios do circuito À cor,
17 ovel, mas como um tema Lítmico que se transmite au « spectadoi, atua no nível psicológico como salici-
quire em movimento o que perde em intensidade, à
Lido motora
divisão
por
etrante
tiaço colorido.
Tal como
Van
Gogh
(com
qu m privou em 1886), Toulouse estuda as estampas jap onesas, porém com uma finalidade totalmente diVeisas
nele,
d
Imagem
não
se
aplesenta
como
Foi o primeiro a intuir à importancia
desintegrando-se nos traços breves e incisivos, addo
tom
(em
que
Seurat
procurava
uma
uni-
128
CAPÍTULO DOIS
À REALIDADE FA CONSCIÊNCIA
dade luminosa plena) torna-se irradiação e difusão.
vimento irregular, em ziguezague: aponta para a di-
A vista de cima, que apresenta o espaço não mais
como um vão, c sim como um plano inclinado, im-
reita com o braço e a perna da moça, desvia para a esquerda com os filetes do soalho, interrompe-se e
pede uma separação entre o espaço e as coisas, entre o fundo e os objeros; o que o artista quer mostrar
direita, com sua base de vimes retorcidos, imprime
ressurge depois do obstáculo da bacia. À poltrona à
não é uma figura num ambiente, mas um fragmen-
às linhas e à luz um movimento em vórtice. À maté-
to de espaço onde a figura é apenas um núcleo de movimento. Apresenta-a de costas (veja-se, em comparação, a banhista de Ingres, em que predomi-
ria da cor é parca e árida, as pinceladas são como
na a figura,
reduzindo
o ambiente
ao mínimo);
contudo, já não é mais, como em Degas, uma figura em movimento que transmite seu ímpeto ao es-
paço — cla é como que atraída e tragada pela pers-
pectiva retesada do quarto. À toalha enrolada em torno das ancas oculta o eixo do movimento, confunde-o e dispersa-o no halo do lençol amarrotado. A figura não está em primeiro plano: note-se como os três planos sobrepostos (lençol, tapete, assoalho)
parecem deslizar um sobre o outro, impelindo a figura para o fundo. À perspectiva tem um desenvol-
Hear de Toulouse-Lautrec: No errco Fernando amazona (1888), tela, 1x1,61m Chicago, Art Institute
fios de um tecido esticado a ponto de se romper, e traem em sua seca dureza o traçado do lápis em várias direções. Não há nenhuma caracterização pst-
cológica explícita nessa figura sem rosto. seu significado humano (ao qual, como sempre, Toulouse dedica extrema atenção) transparece no modo de sentar no chão, na graciosidade das costas sob cuja pele se intuem os músculos prontos para o movimento, no coque dos cabelos ruivos, nas coisas em torno. Tem-se a impressão de que o artista evitou
deliberadamente tudo o que atrai a vista, para isolar o que, através dos olhos, penetra e desperta uma reação, uma resposta do pensamento
CAPITULO DOIS
A REALIDADE b A CONSCIÊNCIA
Henn de | oulouse-Laurrec A soatere (1896), óleo sobre papelão, 0,67 x 0,54 m Paris, Musée d"Orsay
129
130
CAPÍTULO DOES
4 REALIDADE É À CONSCIÊNCIA
Assim, Toulouse também parte do Impressionis-
mo (é clarissima a evocação, também temática, de
PAUL GAUGUIN TE TAMARI NO ATUA
Degas) e o ultrapassa, não mais para “superá-lo”, e sim para extrair suas consequências. Antes de mais nada, a percepção é atividade não só visual, mas tam-
bém psicológica. Capta-se a presença da imagem muito
além
da
retina,
tanto
mais
intensa,
ainda,
quanto mais se despoja, nesse percurso mental, de
GAUGUIN criou sua própria lenda, a do artista que se põe contra a sociedade de sua época e dela foge pa-
ra ieencontrar numa natureza e entre pessoas não corrompidas pelo progresso a condição de autentici-
sua superficialidade brilhante para desnudar seu ritmo interno vital, como uma folha cuja superfície
dade c ingenuidade primitivas, quase mitológicas, na
polpuda se destrói para recuperar-se o tecido cerrado das nervuras. Sobre o novo valor da percepção senso-
qual ainda pode desabrochar a flor da poesia, agora exótica, que é destruída pelo clima da Europa indus-
rial, descoberto pelos impressionistas, Cézanne constrót todo um pensamento, quase uma filosofia; Van
trial. É o tema central de sua poética, se não mesmo de sua prudente política cultural. O acerto de suas escolhas e iniciativas determinou a influência que sua
Gogh, uma mo ral exasperada, e Seurar uma nova ciên-
lógico, e do nível individual passa naturalmente ao ní-
ação, embora empreendida à distância, teve sobre a cultura artística e o gosto da época: sobre o destino
vel da sociedade, porque nada é em sz, tudo é relação.
social do Art Nouveau e da decoração moderna, sobre
cia. Toulouse analisa a sensação como estímulo psico-
Por isso, sua pesquisa está em sintonia com a pesquisa contemporânea do Art Nouveau, isto é, da arte que tende a se inserir na sociedade, a interpretá-la, a pôr-se em uníssono com o ritmo de sua existência.
Há, porém, uma objeção que a obra pictórica e gráfica de Toulouse levanta contra o Impressionis-
mo: buscar o “belo” na plenitude da luz e no brilho da cor não difere essencialmente de buscá-lo, como Ingres, na pureza das proporções e da forma plástica. É sempre uma contemplação da natureza, uma superação da realidade. Todavia, se o homem pode se dis-
unguir da natureza para contemplá-la, já a sociedade
a transformação da pesquisa em ação artística, sobre a superação das tradições nacionais, sobre a ilimitada ampliação do horizonte histórico da arte, que a par-
rir de então passou a incluir as expressões dos “primitivos”, pelo menos em igualdade de valor, junto com as das culturas clássicas. Ele tinha uma grande admiração (não retribuída)
por Cézanne, e foi um dos primeiros a avaliar sua grandeza. Era ardorosamente admirado por Van Gogh, mas não quis, embora solicitado, associar-se à sua de-
sesperada aventura artística. Não quis trabalhar em
não se contempla a si mesma, e não pode ser bela ou
Paris, e foi inicialmente para a Bretanha, a seguir para o Panamá c a Martinica, e finalmente para o Tati.
feia: vive-se dentro dela e, em seu interior, só é posst-
Não são fugas como as de Rimbaud, o qual, ao ir pa-
vel comunicar-se com os outros que, como nós, fazem parte dela. À arte é identificada não só com a vida, mas também com um modo mais intenso, mais
raa África, renuncia à poesia; são viagens de trabalho. Para um pintor que percorre o caminho aberto pelo Impressionismo, é muito importante o ambiente
lucidamente crítico, até irônico, de viver a vida. é um
concreto em que opera, a fonte de suas “sensações”. Gauguin não podia trabalhar num terreno já explorado pelas pesquisas opostas de Cézanne e Van Gogh, o Sul da França. Com efeito, em sua primeira evasão dirige-se para a Bretanha, na França do Norte. Seu entusiasmo pela natureza e povos de terras
modelo do estar-no-mundo não passivamente, e sim de modo ativo e brilhante. É nesta definitiva renún-
cia à arte-contemplação, em favor da arte-comunicação, que reside a razão da extraordinária “atualidade”
de Toulouse, que Picasso, no início de sua obra, foi o primeiro a perceber.
distantes não é uma retomada do exotismo romântico: na Martinica e na Polinésia, não procura algo no-
vo ou diferente, mas a realidade profunda do próprio ser. Não explora o mundo em busca de sensações novas, explora a si mesmo para descobrir as origens, os motivos remotos de suas sensações.
CAPÍTULO DOIS
Os quadros de Ganguin não têm relevo nem protindidade, mas não são planos, inteiramente resolvi-
dos na superfície, como os de Manet, A profundidade deles não é espacial, e sim temporal. Não é o instante fixado, como em Degas ou Toulouse, nem o tempo que flui, como posteriormente em Bonnard; é um rempo distante e profundo, sobre o qual a imagem do presente se assenta e se dilata, como um nenúfar na
água parada,
4 READIDADE k À CONSCIÊNCIA
ção entre os mitos indígenas da Polinésia, estava con-
denando a barbárie essencial do colonialismo? Se, como
já consideravam
os românticos,
a arte
deve atuar sobre o estado de espírito de quem a recebe, o quadro já não é, como o entendiam os impressionistas, o resultado de uma pura pesquisa intelec-
tual, mas é comunicação e mensagem. O problema não reside mais na coisa que se percebe e no modo de
percebê-la, e sim em comunicar um pensamento por
Cézanne dava à sensação a dimensão intelectual,
meio da percepção de signos coloridos. Gauguin não
ontológica da consciência; Gauguin a situa na dimensão da imaginação. Baudelaire via o realismo como uma “guerra à imaginação” e a imaginação como a hbertação da banalidade do real; para Gauguin, as umagens formadas pela mente frente às coisas (as per-
recusa os resultados da pesquisa impressionista no
cepções visuais) não se diferenciam das que brotam
das profundezas da memória, e estas não são menos “percebidas” do que aquelas. Ele defende que se deve pintar de memória, e não ao vivo, e na chamada barbárie dos primitivos reencontra a juventude, um tempo perdido.
campo da percepção, mas utiliza-os para, com o qua-
dro, oferecer um campo perceptivo que contém e no qual se expressa um pensamento. Isto é, transforma a estrutura impressionista do quadro numa estrutura de comunicação que, forçando os termos, poder-seia dizer expressionista. Com e tamari no atua (o nascimento de Cristo, filho de Deus), Gauguin
quer
apresentar visualmente o sentido da inocência « da
Gauguin pressupõe a de Cézanne e pretende, defini-
integridade moral dos indígenas, cuja sexualidade não reprimida, imune a complexos de culpa, leva à revelação da profunda sacralidade do amor. Os fantasmas eróticos que atravessam o sono da moça se materializam na imagem de uma Sagrada Família (indígena) Ao lado da figuração cristã, a estaca pintada evoca os símbolos do paganismo prinurivo: faz alusão à continuidade, à unidade do sagrado. Apenas
Gauguin se separa da corrente derivada do Impressorismo (em 1887) porque agora está convencido de que a sensação visual direta é apenas um caso particu-
rar da imaginação. E a imaginação não está além da consciência, ela a inclui; é por isso que a pintura de tivamente, estender a área da consciência para além
uma imagem visual poderia apresentar simultanea-
do intelecto. Aliás, Gauguin, que sempre ambicionou
mente a realidade física da adormecida e a realidade
mediar e sintetizar as tendências, não podia descartar « exigência ética de Van Gogh, considerá-la fora da consciência apenas porque não se incluía na cons-
imaginária de seu sonho, nenhuma delas é mais con-
ciência-intelecto de Cézanne (para quem, na verdade, Van Gogh não passava de um pobre louco). Na poética de Gauguin, sente-se fortemente uma exigência ética que leva a uma intervenção direta nas situações (e não a fúteis evasões). Se, para dar um
sentido ativo à função da imaginação, é preciso afastar-se da sociedade moderna, é porque nela não há mais espaço nem tempo para a imaginação. Sua vontade de “rejuvenescer” numa mítica barbárie é uma sugestão ao mundo “civilizado” para que inverta sua rota. E tal sugestão era particularmente oportuna num momento em que o mundo “civilizado” sustentava seu progresso sobre a não-civilização, o escânda-
io moral do colonialismo, Como não perceber que Gauguin, ao ir procurar — e não levar — a ctviliza-
creta, mais certa, do que a outra. Não há símbolo nem alegoria: a Sagrada Familia não aparece entre as
nuvens, mas está ali ao lado da cama; o estábulo com os bois é um elemento da iconografia tradicional do presépio, mas é também um elemento em si, que alude à lei natural e divina do amor entre os seres vivos.
Em 1895, Gauguin declara: “Em meus quadros, cada elemento é antes considerado e estudado atentamente (...]. Estimular a imaginação como faz a músi-
ca [...] apenas através da misteriosa afinidade que existe entre certas combinações de linhas e cores e a nossa mente”. Neste quadro, tudo é previamente es-
tudado, não há uma única nota que traíia um contato direto com a cena ao vivo. Gauguin certamente viu e relembra a moça ador-
mecida, mas é na memória que se desvenda o sentido do que viu. Agora, tudo adquire significado: a figura
131
CAPÍTULO DOES
4 REALIDADE
TA CONSCIENCIA
Paul Gauguin. Te tamart no artta, Nartusdade (1896), tela, 0,96 x 1,28m Munique, Bayerische Staarsgemaldesammlungen.
Paul Guuguin To Ma Tese Milheressecianas centadas mem iuenco (1892), tela, 0,73
A READIDADE LA CONSCIENCIA
toa
CAPITULO DOIS
134
CAPÍTULO DOIS ART 4 DADE FA CONSCIÊNCIA
solitária no leito nupcial, seu sóbrio abandono, a colcha amarela que se torna um halo de luz em torno do
HENRI ROUSSEAU, LE DOUANTIER
corpo moreno, os quadros na parede que adquirem
A
vida. A memória não apresenta detalhes « ensurdece
dito
GUERRA
as cores; o desenvolvimento dos contornos é ssmples,
a cor se estende em zonas largas e planas, sem brilho nem vibração. À emoção, recuada no tempo, amadureceu na memória (portanto, no tempo da existên-
cia), deixou aflorar seu significado profundo, tornou-se pensamento. Como a imagem ocupa um espaço e um rempo in-
tenores, não podem existir efeitos de luz, de fato, a luz não incide, e sim emana das próprias coisas: do contraste do corpo oliváceo e da roupa turquesa com
o amarelo-claro da cama-nimbo. O azul e o amarelo são complementares, juntos formam o verde, e verdes são as sombras da colcha, verdes e azuis os tons domi-
nantes no fundo. Gaugun, evidentemente, constrói o sistema de signos perceptivos segundo as estruturas da percepção definidas pelos impressionistas c por Cézanne. Por conseguinte, não contrapõe a imaginação enquanto poética à sensação visual enquanto prosa: em seu pensamento, a imaginação não se põe con-
tra, nem vai além da consciência da realidade, mas é uma extensão da consciência, que assim também
compreende a vida vivida, o passado. É verdade que o próprio Cézanne se colocava o problema do passado, das razões que fundam a consciência enquanto consciência do presente; porém, resolvia-o historicamen-
te, buscando na arte do passado as premussas necessárias daquele presente que se apresentava na sensação. Gauguin busca no passado não as razões lógicas, mas
os mouvos profundos do ser presente, se a clareza da
história é causa, a vaguidade do mito é motivo; se a causa se verifica no efeito, o motivo se traduz num impulso irracional (mas nem por isso inconsciente), em
energia vital. Por isso, a pintura de Gauguin teve a mesma importância para a formação da corrente dos
fauves que a de Cézanne para a formação do Cubismo.
No momento em que a arre se qualifica como atividade intelectual no nível mais elevado, sente-se a necessidade de distingui-la da cultura oficial ou burguesa por uma característica própria de espontanei-
dade criativa; afirma-se, em suma, que a arte pode
existir mesmo sem, mesmo contra aquela cultura. Do culto romântico pela arte medieval. indevidamente definida como “priminiva”, passa-se ao interesse pelo artista inculto, ingênuo, popular, devendo esta última definição ser sumariamente excluída, de-
vido à longa série dos n4:/5 que despertam o entusiasmo de uma sociedade saturada de intelectualismo, dir-se-ia que pelo prazer da autopunição. Têm seu
fundador em ROUSSEAU, um fiscal de impostos que, aos quarenta anos, deixou o emprego para se dedicar àpintura Ão contrário de Toulouse, que participa intensamente da vida parisiense de sua época, quase se confundindo com seu torvelinho multicolorido.
Rousseau se abstrai, recoloca a arte em seu pedestal, manifesta frente a ela a ilimitada admiração do ignorante, do primutivo, pelos grandes valores do espírito. Na verdade, ele não era um inculto, e sim um autodidata. que certamente carecia da cultura profissional que se ensinava nas academias e triunfava nos salões, mas; ainda assim, pertencia ao âmbito de uma cultura não-oficial. Com efeito, ele é “adotado” por
artistas e literatos que combatiam a cultura preferida pela alra burguesia parisiense: de Signaca Picasso, de Jarry a Apollinare Em 1894, pintou um retrato de Jarry, o autor de Ubw ros, e este, com seu cinismo bufão e dessacralizante, foi sem dúvida um de seus pon-
tos de referência, ainda que sua pintura não tenha inrenções sarcásticas e polêmicas. Suas figurações, amiúde extraídas da iznagerte popular, foram, de faro, utilizadas como argumentos
polêmicos contra a “mistificação” hedonista do Simbolismo, mas a própria exaltação em torno de sua obra ainda era uma mistificação, e o Rousseau pintor é muito diferente da máscara, entre cômxa e patrética, que seus amigos pintores lhe aurmbuíram. É mais correto enquadrar o “caso Rousseau” numa situação
1
cultural agora caracterizada pela aversão à ctvilização
industrial, na qual já amadureciam os germes da re-
volta intelectual que eclodiria por volta de 1910, cem os movimentos de franca ruptura, como o Cubismo e as várias “vanguardas” européias, Os anos do “caso Rousseau” coincidem com a fuga de Gauguin para o Tairi e de Rimbaud para a Áfiica; se um Gauguin rejeita os trastes de uma falsa
cultura para recuperar nas ilhas do Pacífico uma virgindade de primitivo, como deixar de aplaudir o surgimento, no coração de Paris, de um artista vir-
gem e primitivo? Logo mais, crer-se-á descobrir a arre pula na escultura negra: o “caso Rousseau” é o anrecedente direto da crise cultural que levará Picasso a refazer Les demorselles d Avignon (1907) segundo o modelo negro.
intencional ou não, foi importante a incidência de Rousseau sobre uma cultura que vinha acentuando sua rendência simbolista — não mais no sentido de
A guerra é uma alegoria apocalíptica composta de acordo com o processo descritivo das gravuras populares: do grande cavalo negro que atravessa todo o espaço do quadro, desce a Discórdia sobre o campo
cheio de mortos, trazendo nas mãos a espada e o archote incendiário. Como o pintor ignora ou dispensa qualquer artifício paia tornar a figuração alegórica
“verossímil”, ela mantém seu caráter de visão extática. No entanto, neste momento, intervém o escrúpulo do “sagrado” ofício: tudo deve ser minuciosamente descrito, desde os torrões do solo até a crina do cavalo. Assim, a visão se fixa como um entalhe de pedras duras, nada consegue fazê-la desaparecer; já não é algo imaginário, é uma imagem que se mostra
presente, concreta, irremovível. Por isso, não vem acompanhada por atributos sugestivos, que inspirariam terror: fumaça, fulgores, figuras contorcidas, es-
gares espasmódicos. É justamente a serenidade da execução cuidadosa, da delicada escolha das cores, da
liação à tradição impressionista de uma arte in-
descrição atenta, que confere à visão a certeza de um
terramente visual, mas no sentido de uma clara subversão da linha simbolista.
mito realizado. Tudo é símbolo: os galhos quebrados e as folhas que caem, o cavalo apocalíptico e os coi-
LUI
Hear Roussezu, le Douar ter O pequeno cabrrole de pere Junter 9083 tela 0,97 4 1,29m Paris Louvre
136
CAPÍTULODOIS
4 RLALIDADE F A CONSCIÊNCIA
vos, a mulher com a roupa esfarrapada e os mortos já quase cobertos pelos torrões de terra. Mas nada será “simbólico”, isto é, transposto da realidade para a idéia? É a idéia, se tanto, que desce e se encarna na imagem. Se para os simbolistas o símbolo é transcendência, signo espiritual além da realidade das coisas, para
Rousseau o símbolo é descendente: não abstrai, encarna-se, chega a oprimir com sua fixidez e rigidez, e
até mesmo com a aparente beleza que seduz e impede de removê-lo, de esquecê-lo. Agora, mesmo aquilo
gue poderia parecer elementaridade e desajeitamento torna-se um problema; e se, removidas as convenções que lhes dão uma outra aparência, as pessoas e as coisas
fossem como o pintor as apresenta, símbolos concretos como realidades, ou realidades extintas, mortas como símbolos? Sem dúvida, numa época em que se falava apenas em progresso, a pintura de Rousseau só
poderia se mostrar assustadoramente regressiva: revelava não tanto o seu próprio primitivismo, e sim o de uma civilização que, convencida de possuir a chave da verdade, afundava-se cada vez mais na superstição
dos símbolos, mitos e da magia. Gauguin, no Tait, via os mitos “bárbaros” com os olhos do parisiense em férias; Rousseau, em Paris, vê os mitos da civili-
zação moderna com os olhos do primitivo deslocado numa sociedade evoluída. Assim, estava certo Picasso ao reconhecer um mestre no velho Rousseau: em determinado sentido,
este foi o ingênuo feiticeiro com quem aprendeu os rudimentos de sua magia sob outros aspectos nada ingênua. Mas é de Rousseau, e exatamente deste quadro, que ele se lembra, em 1937, ao pintar Guer-
nica: a profecia sobre o fim da civilização, que le Douanrer entrevia em sua “ingenuidade”, havia se traduzido em pavorosa realidade.
AS E ACONSCIÊNCIA ) DOIS ARBALIDADE Pl CAPÍTULO
le Douanter A guerra Henr: Rousseau, = Si d'Orsay. e Musée o aris,
3 137
138
CAPÍTULO DOIS 4 REALIDADE É A CONSCIÊNCIA
ODILON REDON NASCIMENTO DE
um”, diz Baudelaire), e é exatamente este continuo
VÊNUS
GUSTAVE MOREAU A APARIÇÃO
movimento espiritual, este reenvio de ecos ou “correspondências” (todavia a visão “concreta” dos impressionistas também consiste inteiramente em “cor-
respondências” de notas cromáticas) que permite captar não mais as aparências definidas e visíveis da realidade, e sim o ritmo de uma transmutação secre-
À corrente realista que, de Courber a Cézanne,
desenvolve uma pesquisa cognitiva, contrapõe-se a corrente espiritualista — mais reduzida, porém mais sugestiva e fluente — do Simbolismo. Deriva,
passando por THÉODORE CHASSERIAU (1819-56) e Gustave MOREALU, do idealismo formal de Ingres; separa o “belo” dos aspectos visíveis da natureza, mas procura na própria natureza, sob ou sobre esses aspecros ou além deles, um “belo” que se revela apenas às “almas belas”, aos artistas. Assim se liga à poética
do “sublime”, ao deliberado arbítrio fantástico de Blake e Fissli, à transfiguração da paisagem de Turner, e se refina através da sensibilidade inquieta, entre o êxtase e o pesadelo, da poesia de Baudelaire e, por seu intermédio, da prosa poética de Poe. Contudo, não se pretende desfigurar ou desmaterializar a arte; O processo é oposto: quer-se trazer à realidade, tor-
nar presente e visível algo que se supõe pertencer apenas ao espírito. O importante é o perceber, não é necessário que ao percebido corresponda um objeto real.
Afirmando a unidade e a eternidade do espírito, nega-se a idéia de progresso que, para a corrente realista, é intrínseca à sua concepção da arte como pes-
quisa; a idéia de pesquisa é substituída pela idéia de uma contínua aspiração à transcendência. Exclui-se, portanto, a transformação radical dos procedimentos artísticos, e o que se pretende para a arte é, pelo contrário, seu refinamento levado até o esgotamento. Recusa-se também uma distinção clara entre as
artes, a estruturalidade específica de cada uma delas; a pintura deve ser poética e musical, a poesia e a música devem ser pictóricas. Como essa aspiração à transcendência não encontra termo sequer em Deus, a inspiração do artista não provém do alto, mas emana da vida, da transcendên-
cia recíproca e da sublimação final dos sentidos (Cméramorphose mystique de tous mes sens fondus en
ta e misteriosa. Mais do que uma substituição das aparências por simbolos, o que se pretende é a interpretação das aparências como símbolos da harmonia universal: o Simbolismo, assim, não se coloca como a an-
títese do Impressionismo, mas como sua superação. 1s-
to é, como a exploração de um mundo que, mesmo estando além do sensível, tem-no como pressuposto. “Um pouco estreito”, julgava-o ODILON REDON (1840-1916), o maior protagonista do Simbolismo, artista que por muito tempo trabalhou isolado, preferindo o desenho, a aquarela e o pastel à pintura a óleo, demasiado sólida e brilhante, e que apenas em 1886 foi descoberto por escritores simbolistas do cfrculo de Mallarmé. Alimentava o culto pelo desenho antigo (especialmente de Leonardo), que não se detrnha na aparência das coisas, mas penetrava mais fundo, indagava sua estrutura secreta, o mistério eterno
da vida. Somente após esse exercício (também praticado por Blake), era Redon arrebatado como que num êxtase, abriam-se-lhe visões oníricas, e a fantasia não
era arbítrio, mas revelação de uma realidade infinitamente mais vasta do que a que se apresenta aos sentidos e sobre a qual a razão constrói seu sistema. Ele passa da análise para a síntese, do grafismo minucio-
so para as grandes manchas de cores vivas ou evanescentes, que parecem se formar e se dissolver como nuvens ao vento. Sobre fundos vaporosos e indistintos, as notas cromáticas assumem timbres e vibrações sonoras: as flores poderiam ser borboletas, as figuras poderiam ser estranhas flores. Redon, com as cores, não quer apenas apresentar sensações visuais, e sim
sons e perfumes (lembremos a poesia de Rimbaud, da mesma época, sobre as cores das vogais). Chega mesmo a superar o simbolismo das coisas, a conferir
um significado simbólico aos próprios elementos da figuração: as linhas e seus diversos desenvolvimentos (rera, curva etc.), as cores e suas modulações.
CAPITULO DOS
À REALIDADE E A CONSLIÊNCIA
O fenômeno do Simbolismo se explica facilmente
influência; rejeitado pelo Cubismo, que, partindo de
do ponto de vista sociológico: se o Impressionismo
Cézanne, reafirma a concepção da arte-conhecimen-
rende Inserir a pintura, como atividade de especialistas. dentro de um sistema de atividades altamente especializadas, e assim instaurar uma verdadeira tecnologia pictórica (paralela à nova tecnologia construtiva instaurada pelos “engenheiros”), o Simbolismo coloca aarre como uma atividade de elite e de compensação—
to, ele retomará impulso com o Expressionismo do
opoe-se ao pragmatismo industrial e, ao mesmo tempo, constitur uma das 1eservas intelectuais em que a burguesia capitalista baseia sua pretensão à direção cultural, As manifestações de alto nível, como a obra de Redon, vêm acompanhadas por manifestações de
nível mais baixo, que se entrelaçam à moda corrente do Art Nouveau, e por outras que chegam mesmo a prerender resgatar, numa medíocre literatura pictórica, o mau gosto burguês (kzrsch).
Se era impossível estabelecer um acordo entre o Simbolismo e a pintura-consciência de Cézanne, por outro lado seria fácil estabelecê-lo com o cientificismo neo-impressionista que, visando a uma maior especia-
lização da pintura, delimita seu campo, deixando espaço para um espiritualismo que é, definitivamente, par-
te .ntegrante sua; no final do século passado, o positivismo e o espiritualismo constituem, também na arte, os dois termos de uma cerrada dialética cultural. E o próprio crentificismo dos neo-impressionistas não será
talvez um respeito simbólico pela ciência? A partir de agora, com suas várias correntes, a arte re-
cobre roda a área da imaginação: se o Neo-Impressionismo explora o domínio das imagens da percepção visual e Gauguin o das imagens mnemônicas, Redon e os
simbolistas, por sua vez, percorrem o campo das imagens eidéticas, que se formam na fantasia sem a presença ou a lembrança das coisas. Tem-se a convicção
crescente de que a fantasia, por mais desenfreada que seja, não inventa, mas revela: revela os processos € os fenômenos da existência biológica e psíquica que escapam ao controle da razão, embora ainda assim constituam processos e fenômenos da existência. O
mundo ilimitado do inconsciente — para o qual Freud elabora um método rigoroso de análise — não é inacessível, e revela sua realidade justamente no so-
nho, antes considerado como pura irrealidade. Assim, O Simbolismo continua a exercer uma grande
Blane Reiter, especialmente com Kandinsky e Klee, e as várias correntes da vanguarda européia. Após a
Primeira Guerra Mundial, tornará também a obter crédito na França, com o Surrealismo, que coloca a
experiência onírica como o fundamento da arte; após a Segunda Guerra, com as tendências “informais” ligadas às filosofias da existência, que recusam a distinção entre consciente € inconsciente, partcularmente com Wols.
F
” 140
CAPÍTULO DOIS A REALIDADE É A CONSCIÊNCIA
Odilon Redon. Nascimento de Vênus (c 1912): madeira, 1,41 x 0,61 m
For Worth
(Texas), Kimbell Arc Foundation
F CAPÍTULO DOIS A RLALIDADE F A CONSCIÊNCIA
to Ô
Gustave Moreau
A aparição (c 1875),
aquarela Paris, Louvre
14]
142
CAPÍTULO DOIS A REALIDADE E 4 CONSCIENC4
Nenhum outro artista pode mostrar melhor do que Bonnard a enorme influência do pensamento filosófico de Henri Bergson sobre toda a cultura e a arte francesa das primeiras décadas do século xx, em-
PIERRE BONNARD A TOALETE DA MANHÃ
tendências mais fortes eram o Neo-Impressionismo,
penhado em explicar os processos da vida interior, o sentido profundo do tempo, da memória, da imagi-
com suas teorias científicas sobre a divisão dos tons,
nação e da matéria; isto explica por que, na história
e o Simbolismo, com suas aspirações espiritualistas. Uma terceira corrente, que derivaya de Gauguin,
da pintura, cabe a Pierre Bonnard um papel sob muitos aspectos próximo ao de Marcel Proust na história da literatura
No período de formação de BONNARD,
as duas
passando por PAUL SÉRUSIER, tomou o nome de na-
bis (em hebraico, “profetas”). pretendia não só alcançar uma síntese das correntes avançadas, como também estabelecer uma íntima colaboração entre arustas e Iteratos. O ponto de encontro fo: a Revue
Blanche (para a qual Bonnard, em 1893. fez uma série de litogravuras), que pode ser considerada o órgão
do “modernismo” francês. O teórico dos nabis foi MauRiCE DENIS (1870-1945), defensor de uma essencial espiritualidade universal da arte, mas também de sua necessária concretização em objetos (um quadro não é senão uma superfície colorida), através
dos quais ela ingressa no mundo moderno, opondo a
“A presença do objeto, do tema, é um verdadeiro » incômodo”, dizia ele. Com efeito, a noção do objeto
não é absolutamente o primeiro ato da consciência; a própria impressão perceptiva, tal como era entendida
pelos primeiros impressionistas, pressupõe um longo percurso, desde a ativação, a progressiva abertura até o preenchimento da consciência. Proust chamou de rmpression véritable Aquela que tem a pessoa, ao acor-
dar, quando vê pela janela uma faixa clara, e ainda não sabe se é o mar ou o céu, e mesmo assim vive intensamente a experiência, tão plena e vital como a experiência de quem, ao experimenta: uma sensação, não sabe o quanto ela depende da presença da coisa que a provoca ou de lembranças, de associações mentais
liberdade da imaginação ao materialismo da máguina. Assim se explica sua aproximação ao pré-rafaelismo inglês, após a curta existência dos nabis, e, por fim, sua proposta de uma arte sacra moderna Vuillard também parte do sinteusmo de Gauguin, mas, através da poética de Mallarmé, pretende acima
texto de harmonias ou dissonâncias, de notas quen-
de tudo compor o quadro como um tecido de notas
tes e frias. A seguir, percebe-se que a trama deixa
cromáticas que se respondem de perto e à distância com um desenvolvimento tipicamente musical. Foi
transparecer profundidades, estratos ou camadas
sobretudo
pictórico; notam-se perspectivas mais ou menos tensas, que por vezes se sobrepõem ou se entrecruzam, por fim, como que evocadas pela insistência das linhas e cores, surgem as figuras, as coisas, como que suspensas ou imeisas na substância iareferta das vela-
um
pintor de interiores, concentrando
sua atenção em captar todas as variações e vibrações
das cores num espaço restrito e famihar. Por intermédio de Vuillard, com quem dividiu o estúdio duran-
te algum tempo, Bonnard estabeleceu relações com o círculo artístico-literário de Mallarmé; aprofundou, mais do que qualquer outro, a pesquisa sobre a afinidade profunda ou estrutural (e não só de analogias temáticas) entre a pintura e a poesia. Embora sempre atento aos acontecimentos artísticos, nunca se deixou atrair, em toda a sua longa carreira, por teorias ou programas; com ele, a tradição impressiomsta de Moner e Renoir sobrevive à revolta dos fauves e à revolução cubista, confluindo para a
que se agiegam e se somam à percepção direta, Nos quadros de Bonnard, o que se capta de imediato é o tom de conjunto, determinado por um con-
mais internas, mesmo
na continuidade do tecido
duras coloridas. E, por mais claro que seja o desenho
e mais vívidas as cores, a imagem sempre se mantém como que atomizada no ambiente, que também envolve o próprio pintor: como se este não estivesse
olhando as coisas à sua frente, mas olhasse dentro de si para se estudar no ato de olhar as coisas, c estas va-
lessem apenas como comprovação. À soalete da muanhi for pintada na época em que
triunfava o Cubismo, e o Cubismo se apresentava
corrente sachusta ou informal, que se desenvolverá na
como a síntese, finalmente descoberta, entre o espa-
França após a Segunda Guerra Mundial.
ço e o tempo, No entanto, parece objetar Bonnard,
LAPÍTULO
DOIS
Maurice Denis
AREAL
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EA CONSOTENTIA
Homenagem a Cézanne
(1900), cela 1,80 x 2 40m Paris Musec d Orsay
Prerre Bonnard Sata de paia) no parem (934) Nora York, | he Solomon R
Guggenheim Museum
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Pierre Bonnard A toalete da manhã (1914), tela, 1,20 x 0,80 m. Paris,
Musée d'Orsay
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CAPÍTULO DOIS
que síntese poderá algum dia existir entre duas entidades que não são, e não podem ser, distintas. porque
A REALIDADE E À CONSCIENCIA
AUGUSTE RODIN MONUMENTO A BALZAC
na realidade não são duas, mas somente uma, a existência? Neste quadro, ele assinala com a ascendente
vertical do armário o plano-limite entre o espaço interno e externo à superfície pintada; todavia, não é
um limite, é um diafragma através do qual ambos se
MEDARDO ROSSO IMPRESSÃO DE MENINO DIANTE DOS FOGÕES ECONÔMICOS
comunicam, e o próprio espaço externo, refletido no espelho, torna-se interno. A figura da mulher também se desdobra; contudo, a imagem direta, de cos-
ta. não é mais verdadeira e concreta do que a imagem refletida. Os contornos deliberadamente imprecisos não concluem, comunicam, pôem em relação.
Diferentes coisas parecem misturadas na mesma matéria' encontraremos na parede um pouco da maciez da carne, nas carnes um pouco da luz, da cor da pare-
A escultura não representa o objeto, ela o reproduz numa matéria diferente e o transpõe para uma dimensão metafísica: a história, a alegoria, o mito. Por isso, Hegel a definia como arte clássica, isto é, ligada a um ciclo agora encerrado. À arquitetura e a pintura modificaram seus procedimentos em sent-
de Não se pode ver uma cor sem lembrar, sentir no-
do moderno e técnico (o estruturalismo construtivo
vamente a cor que se viu antes: tudo é subjetivo, na« pode ser isolado, objetivado. Para os impressionis-
dos engenheiros, o estruturalismo pictórico dos impressionistas); a escultura se deteriorou porque não soube se separar da raiz clássica, AUGUSTE RODIN e
tas, o quadro era um conjunto de relações visuais, para Bonnard, as relações visuais se tornam psicológicas. Como a existência, da qual é antes o produto essencial do que um reflexo, o quadro é um contínuo, um contínuo de espaço e tempo, de coisas e ambiente,
nas, acima de tudo, para usar os termos de Bergson, de matéria e memória. Comparem-se Bonnard e Matisse: em Bonnard,
contornos e cores deliberadamente indeterminados, uma imersão, uma dissolução total das coisas no am-
biente, um fluxo contínuo e levemente modulado do sentimento, uma redução absoluta da fixidez do espaço à fluidez do tempo; em Mausse, contornos largos e precisos, grandes zonas lisas de cores intensas,
um interesse quase passional pelas coisas, uma redução total da fluidez do tempo a um espaço que, para ser mais verdadeiro, renuncia à terceira dimensão e sc apresenta como superfície. Em Bonnard, em suma,
percebemos o último eco da concepção romântica; em Matisse, a última configuração da concepção clássica da arte.
MEDARDO Rosso são dois grandes escultores, mas não chegam a reestruturar a forma plástica, como fez Degas, que se serviu da escultura apenas para ve-
rificar a capacidade da imagem fora da “ficção” da tela bidimensional da pintura. O que os detém é a idéia da dignidade literária do material e da técnica estatuária, do monumento (em Rodin) e do antimonumento (em Rosso). Não é correto dizer que trans-
feriram para a escultura a visão cromático-luminosa
dos impressionistas; seguindo em direções diferentes a partir da mesma premissa, procuraram, abrindo a forma, superar a contradição entre forma fecha-
da e espaço aberto. Rodin ultrapassa o equilibrio clássico com uma monumentalidade exaltada, pindárica. Faz explodir a estátua em ondas de massas liquefertas, sustentadas por tensões lineares súbitas, às
vezes espasmódicas; o núcleo plástico ocupa o espaço circundante com efeitos de esbatimentos e dissol-
vências de luz ao longo dos planos íngremes e irregulares. A ultrapassagem dos limites torna-se sublimação; mais do que se remeter aos impressionistas,
exaspera o inacabado michelangeltano. Todavia, como se vé no monumento a Les bourgeo:s de Calaisou na estátua de Balzac, modifica antes a concepção do
monumento que a da escultura. E, para tanto, é obrigado a mesclar Praxíteles e Michelangelo com o Simbolismo e o Art Nouveau. Acredita ainda que o
145
146
CAPÍTULO DOIS A REALIDADE E A CONSCIENCIA
escultor tem uma “missão” histórica: dar à cidade moderna monumentos modernos. Mas não existem monumentos
modernos,
a cidade
moderna
une-se ao objeto, deve se tornar escultura. Um ter-
ceiro material (Rosso piefere a cera) funde e unifica os dois diferentes materiais do corpo sólido e do es-
não é
monumental. À influência entre Rodin e Rosso foi recíproca: o despreconceito que Rosso, crescido no ambienre da Seapighatura lombarda,* levou a Paris em 1887 ajuda Rodin a perceber, tarde demais, que
paço atmosférico. Não é mais explosão e liquefação do núcleo plástico num espaço indeterminado; pelo
contrário, é o espaço indefinido que, na proximidade do objeto, concretiza-se, impregna-se de luz re-
o caminho certo era o de Degas. Rosso também tem
fletida, assume qualidade plástica, Os planos do modelado passam do núcleo figurado a esse invólu-
sua literatura, um incorrigível gosto pela anedota,
pelo esboço. É seu limite, mas também sua salvação
cro espacial, e vice-versa: e do rompimento da forma
frente ao wagnerismo plástico de Rodin. Circunscreve o problema: o fragmento de espaço em que es-
tradicional
emerge
uma
nova
estrutura,
comum
ao
objeto e ao espaço. É justamente essa nova estrutu-
tá compreendido o objeto, e no qual se desenvolve o
ralidade da forma plástica que irá atrair a atenção de Boccioni e dos futuristas para a obra de Rosso.
movimento das relações atmosféricas e luministas,
(*) Scapsgharura, movimento Iiterario e artístico que floresceu na Lombardia na segunda metade do século XIX, exaltando, em opasição à mentalidade burguesa, a liberdade e o individualismo do artista. (N
17.)
Medardo Rosso Impressão de mensmo danse dos fogoes eronômucos (1892), cera Roma,
Galleria Nazionale d'Arte Moderna
CAPÍTULO DOIS
A REVUIDADE E 4 CONSCIÊNCIA
Auguste Rodin Les bowrgeors de Calars (1884 6), bronze Paris, Musee Rodin
Auguste Rodin A porta do Inferno (1880 1917) bronze, 6,35 m de altura 4m de largura. Paris, Musée d'Orsay
147
148
CAPÍTURO DOIS
ARLAHD
DL LACONSCIÊNCIA
Auguste Rodin Monumento mn Bi broaze 2804 124m Paris, Vi secdl Drsav
CAPITULO DOIS A REALIDADE F 4 CONSCIÊNCIA
Medardo Rosso O bowkmaker (1894), vera, (1,34 m de altura Roma Galleria Nazonale d Arte Moderne
s PINTORFS
FDOUARD
VÃ:
DO
CÍRCULO
DE
MALLARMF
VUILLARD
E MENINO
supranacional, européia, da arte Entie os fregientadores da casa do poeta às terças-feiras, havia muitos pintores: entre outros, Redon, Gauguin, Vuillard,
Whistler. Ligada à poética de Mallarmé estava a Revue Blanche, na qual, com a intenção definida de comparar suas pesquisas, colaboravam ai tistas e literatos.
IAMES McNEILL WHISILER VOTURNO EM AZUL E DOURADO: | VELHA PONTE DE BATTERSEA
Mallarmé foi o teórico da poesta pura, cujo valor
não reside nos conceitos, e sim no som das palavras e
em sua capacidade de evocar imagens. O som adqui-
re valor a partir das pazisas e da ausência de um signi-
ficado dado das palavras; daí uma necessária ambi-
gitidade, pela qual as palavras adquirem um stgnificaComo a literatura, a pintura francesa das duas úl“mas décadas do século xIx, e especialmente a de rendência simbolista, também foi influenciada pela poética de Mallarmé; importante ammda porque, em «lação com a teoria da Iteratura de L. Poe (Mallar-
né vra professor de inglês) por um lado e, por outro, «om a teoria da música e do espetáculo de R. Wag-
wer, contribui para formar a base de uma concepção
do novo. No sistema de Mallarmé, as várias artes não
formam uma unidade: cada uma delas expressa com seus próprios meios (na atual condição de seu desenvolvimento)
uma experiência total do Universo €,
entre elas, existem correspondências. Como a poesia, à pintura deve sei igualmente uma pintura pura, deve utilizar todos os meios de seu estado atual, o que excluir o pluralismo das correntes (daí o “sintetismo”
149
150
CARETLLO DOIS
A REATIDADI
E A CONSCIÊNCIA
de Gauguin) e facilita a fusão entre os puros visuais
(epígonos do Impressionismo) e os ssmbolistas. Vejase este quadro de VUILLARD. A técnica deriva do ponulhismo
neo-impressionisra,
mas sem implicações
científicas; os toques coloridos não recompõem a luz
natural, porém sugerem, com várias frequências de vibrações, a atmosfera também social do ambiente.
Ambigiudade: cada toque é uma nota cromática, mas também um arabesco dos tecidos — destaca-se sobre um fundo que também é pausa (no sentido de Mallarmé), é vibração luminosa mais densa ou mais lenta, mas também um desenho diferente do orna-
mento do tecido. O próprio “motivo” (a senhora
Edouard Vuillard Mãe e menno (e. 1899) óleo sobre papelão, (151 = 0.59 m Glasgow Art Gallery and Museum
com o menino) surge apenas num segundo momento, como uma condensação daquele adejar de toques esvoaçantes. Evidentes, na figura e na perspectiva re-
tesada, as influências de Toulouse, Monet, Van Gogh: não há mais contraste entre sdéia e experiência, a pintura se faz elaborando a experiência da pintura, assim como a literatura se faz sobre a literatura. WHISTLER, um americano que viveu em Paris e
em Londres, interpreta outro aspecto, o mais musical, da poética de Mallarmé: continuidade sonora da cor, em dissolvências harmônicas nas quais se destacam os timbres de poucas notas mais intensas. Pinta “sinfonias” em prateado, azul, cinza, frequentemen-
CAPÍTULO DOIS
A REALIDADE F A CONSCIÊNCIA
). McNeill Whistler: Noturno em azsil é dourado avelha ponte de Bartersea (c. 1865); tela, 0,67 x 0,50 m. Londres, Tate Gallery
151
152
CAPÍTLLO DOIS
4 REA DAL!
PACONSCIENCIA
te evocando as refinadas gamas dos japoneses. Talvez ninguém melhor do que ele tenha compreendido o
Na Inglaterra, Whistler manteve com os pré-rafaelitas tardios uma relação de oposição tão aguda
significado profundo, de celebração quase ritual, en-
que culminou
rre pessoa e Universo. Sua cor não depende de impressões visuais: nasce da palavra poética, é como a sensação de ilimitado azul ou ilimitado prateado que em nós desperta o poeta, ao dizer que azul é a noite
Ruskin. Motivo do litígio: o caráter social dos pré-ra-
ou prateado é o rio. Vuillard interpreta a poética de Mallarmé no sentido da pintura pura; Whistler a interpreta no sentido das correspondências.
Edouard Vrillard: Axro-retrato com a enmate VA92 Nova York, Museum
of Madere Art
numa ação judicial contra o crítico
faelitas, com sua honesta récnica artesanal, e o supos-
to arbítrio de Whistler, para quem a arte consistia na intuição instantânea de um inefável instante de harmonia entre o indivíduo e o mundo Foi também através do estudo da arte japonesa que Whistler chegou a esta idéia da continuidade do todo.
CAPM
O
DOS
A RTATIDIDE
) McNeill Whistler sala dos Parões (concluda em 1876-7). Antesem Londres
agora em Washington,
Frec Gallery of Art
FA CONSCIÊNCIA
155
Giovannu Carnevalt, dito o Piccio. Agar e o anjo no deserro (1863); tela, 0,70 x 0,54 m. Bérgamo, Accademia Carrara
CAPÍTULO
TRÊS
O SÉCULO XIX NA ITÁLIA, ALEMANHA E INGLATERRA Eu
A ITÁLIA
ER
Ega
cd? &
.
À ue oitocentista italiana rem seus problemas, sob muitos aspectos interessantes, ainda que nos limites da condição histórica, social e cultural italiana. Nenhum deles contri-
buirá para a formação do conjunto de idéias, experiências e valores que, no final do século, irão compor o tecido de uma cultura figurativa consciente e programaticamente internacional ou européia. A situação frente à qual a arte italiana se encontra antes afastada e depois atrasada é a situação iomântica, Sairá dessa posição periférica ou provinciana apenas no iní-
cio do século xx, com o Futurismo, cuja tarefa histórica será justamente a de preencher a lacuna romântica e de inserira arte moderna italiana numa situação culrural européia. Não houve isolamento, interrupção ou falta de informação. Os contatos com a Fran-
ça (que com o Romantismo se colocara à frente da cultura artística européia) tornaram-se cada vez mais fregiientes, mas não levaram a uma convergência positiva, nem mesmo quando alguns artistas italianos foram a Paris e trabalharam junto aos impressionistas O malogro no aprofundamento das poéticas românticas certamente também não derivava da so-
brevivência da tradição clássica, cujas raízes na Itália não eram mais tenazes do que em outros lugares: Canova não era mais clássico do que David, nenhum italiano estudou Rafael melhor do que Ingres, ou Michelangelo melhor do que Delacroix. E um pintor de mitologras cantáveis como Ercole Raggi, de Faenza, com sua inspiração mais excêntrica do que re-
belde, neoclássicos áulicos como Andrea Appiani, o Monti da pintura,* ou Sabatelli são artistas inquesrionavelmente europeus, tanto quanto um escultor como Bartolini. A causa da pequena e incerta participação italiana no movimento romântico é mais |
sia
profunda. O tema central das poéticas românticas era o tema da liberdade como condição
primeira e fundante da consciência, e mesmo da própria presença do homem no mundo e de sua postura frente à realidade. O problema da liberdade também é fundamental na Itá. lta, mas posto nos termos mais restritos da independência nacional, a ser alcançada antes de
mais nada, apenas depois dela abrindo-se a possibilidade de uma reforma da sociedade. Não
podia ser de outra mancira: a dominação austríaca e as monarquias absolutas não eram tanto um ataque ao orgulho nacional, e sim a garantia da parte mais retrógrada da sociedade
italiana e a barreira contra qualquer perspectiva de reforma e progresso social. Era inevitável que as forças vivas da inteligência italiana pretendessem a transformação de um estado de coisas que aumentava, ano a ano, o atraso da Itália em relação aos outros grandes países eu(*) Referência a Vincenza Monti (1758 da Revolução Francesa e de Napoleão
(N.T)
1828)
Poeta italiano, rradutor da Miada. fo: um ardoroso detensor do neoclássico,
156
CAMIULOTRES
OSÍCLLOXIXNA TTADA
ALEMANHA F INGLA | KRA
ropeus, todos mais ou menos avançados na via do desenvolvimento industrial; todavia, era também inevitável que rais forças se esgotassem numa polêmica anticonsei vadora que, comparada aos grandes conflitos sociais que se preparavam e desenvolviam em outros países, era de interesse puramente local. Tampouco o impulso popular — que, mesmo sofrendo oposição no próprio âmbito da iniciativa unitarísta, influía decisivamente no processo do Resorgimento — * poderia se fazer
sentir no campo da arte, a não ser indiretamente. Na França, e em todos os outros países, as
comentes artísticas renovadoras também estavam em polêmica contra o academicismo defendido pelos governantes e pelo público; mas na Itália a polêmica era um fim em si mesma, como se vairer os escombros de uma cultura decaída fosse mais importante do que renovar suas premissas. E era-o em certo sentido, visto que o espírito de conservação na arte erao corolário da política reacionária, à qual todos os artistas mais abertos se opunham, muitas vezes
combatendo-o corajosamente. Com essa necessidade polêmica frente a situações diferentes
de região para região, explica-se um fenômeno sem equivalência em outros países e que caracteriza a situação italiana: a formação de co! rentes ou escolas regionais ou municipaus, cada qual aspirando a se apresentar como expressão da arte italiana, ou, pelo menos, a se unir a outras para cria! uma cultura artística nacional moderna. Por analogia, poder-se-ra qualificar a situação artística italiana, em meados do século, como neoguelfa, com a diferença de que o eixo unitário não é Roma, onde o frágil movimento purasta, na esteira dos nazarenos alemães,
tentara inutilmente um compromisso entre a tradição neoclássica-acadêmica e o misticismo
romântico reduzido a um conformismo devoto. Na Itália setentrional, os sentimentos liberais tinham um curso bem diverso do da Roma papal. O veneziano FRANCESCO HavEz (1791-1882), que desde 1820 trabalhou e ensi-
nou em Milão, foi o líder reconhecido de uma escola romântica italiana que se limitou ba-
sicamente a transpor para a pintura o tipo literário do romance histórico. Estudara em Roma no ambiente neoclássico de Canova e Camuccini, estivera em contato com nazarenos é
puristas, mas, sendo tendencialmente um leigo, afastou-se deles para se unir diretamente à rerratística e à pintura histórica de Ingres, que já havia se ormentado em sentido romântico (O sonho de Ossian, de 1813).
Daqui parte a pesquisa de Hayez, buscando combinar o tema de história medieval ou romança (portanto, vagamente nacional) com a correção do desenho ingresiano, talvez
acentuando com uma nota patética a sonoridade das cores, como se fosse possível constituir ce um “estilo iraliano moderno ” misturando um pouco de Veneza e um pouco de Roma, um
pouco de Ticiano e um pouco de Rafael. Em vez de armar o artista para o decidido embate
com a diamática realidade da história, esse estilo elaborado ajuda-o a fugir a ela, por exemplo, ao declarar-se antiaustríaco, narrando a comovente história das Vésperas sicihanas (1846). É o típico comportamento do intelectual que, não querendo se comprometer nem
permanecer neutro, solta uma referência erudita que poucos iniciados entendem e, naruralmente, não muda nada. E se trai: não revive o fato histórico no furor do fazer pictórico (como Delacroix), mas coloca-o numa cena de teatro. Pano de fundo, bastidores, trajes; ilumi-
nação bem regulada entre fundo e ribalta; distribuição equilibrada dos personagens, cada
qual com seu papel. Morre trespassado o barítono, cantando; cantando responde o tenor que, depois de tê-lo ferido, retrocede com movimentos graciosos; a moça desmaia, como prescrito, o coro comenta em surdina; os figurantes repetem os gestos de circunstância. Tu1) Rnorgemento periodo histórico — do final do século xvn aré aproxemadamente 1870 — em que a Lráhia reconquistou sua independência e unidade (N T.)
CAPA LLO IRÊS
O SECUI O NIX NA TIÁTIA, ALEMANHAÉ INGLALLRRA
157
Francesco Fayez. As vesperes siciluanas (1846), tela, 2,257 3 m
Roma, Galleria
Nasionale d'Arte Moderna
do é teatro, tudo incrivelmente falso; enfim, este quadro famoso é um típico exemplo de neogótico albertino (como o castelo em Pollenzo que Carlos Alberto, justamente nesses anos, encomendou a Melano, um cenógrafo do teatro da Ópera) e, como o romantismo político albertino, finge mudar tudo para não mudar nada. Ao lado desse clamoroso exemplo de mistificação pseudo-romântica, há na Lombardia um filão romântico tênue, mas inques-
tionavelmente mais autêntico: o que se inicia com G. CARNEVALI, dito IL PrccIo (1 804c 1873), e depois passa pela Seapigliatura lombarda de “FRANQUILLO CREMONA (1837-78), de DANIELE RANZONI(1843-89), do escultor GiuspPPk GRANDI (1843-94), assim preparando o primeiro artista italiano que consegue fazer ouvir sua voz no concerto europeu, o escultor MEDARDO Rosso (1858-1928). As paisagens de Piccio entre 1840 e 1850 são as
únicas que demonstram um conhecimento não-superficial da poética iluminista do “pito-
resco”: têm a “mancha” dos desenhos de Cozens e, às vezes, a densidade pictórica de Constable. Contudo, ao invés de levar adiante a pesquisa, Piccio volta atrás, para rastrear suas premissas numa história inteiramente italiana, ou melhor, vêneta e lombar da. Remonta aos vênetos setecentistas, aos bolonheses seiscentistas e principalmente a Correggio e Parmigianino, estudados em 1831, retornando pela peregrinação obrigatória e já igualmente inútil a Roma. Nos pequenos quadros de tema bíblico e mitológico, pintados com ágil desenvoltu-
ra, ele procura reanimar a extinta noção hustórica de “escola lombarda”, uma tradição que
158
CAPÍTULO
TRÊS
O SÉCULO XIXNA FLALIA ALEMANHA LINCLASFRRA
incluía vênetos, lombardos, emilianos e para a qual, muito mais do que a invenção, contava a qualidade refinada, a perfeição da execução. Agar no desertoé uma pequena obra-prima de “boa pintura”: figuras dissolvidas no arabesco da frase rítmica, luminismo composto com surpreendente vivacidade sem romper a continuidade das pinceladas leves e rápidas, frequentes cirações de Crespi, de Magnasco e do Guardi figurista Mas é uma pintura que, não levando em conta a incontestável aura romântica, se encaixaria na segunda metade do sécu-
lo xviL, ao lado da mais refinada “pintura de quarto” do Rococó austríaco: é evidente que Piccio vislumbra no romântico uma possibilidade de retomada barroca, a saída para secretos c preciosos filões de uma tradição lombarda esquecida com demasiada frequência para se assumir a cultura figurativa florentina e romana como a cultura tipicamente “ “taltana”.
Apenas indiretamente ligados ao Romantismo lombardo de Piccio, Cremona e Ranzoni conheceram o Romantismo francês principalmente através dos bem informados literatos da Scapiglzatura, como Praga e Rovani; e de nítido cunho romântico é o ardor com que Cre-
mona, apesar do afetado sentimentalismo de sua pintura, dedicou-se, seguindo o exemplo dos desenhistas franceses, à caricatura política. Exagera até a turbulência, até a dissolução da forma mente invoca tura a
e da cor, a fórmula romântica, demasiado correta, de Hayez; reme não ser suficiente“moderno” e, no entanto, para justificar uma falta de preconceitos apenas aparente, Schiavone e Tiepolo. Ranzom não tem esse tipo de mania e não tenta imitar na pinliteratura dos scapigliati; a forma que molda no material mais sensível e vibrante da
cor é ainda,
estruturalmente,
a forma
plástica que os acadêmicos
realizavam
com
o
chraroscuro, mas desfeita e desagregada para se fundir com a atmosfera do ambiente. Tampouco o escultor Grandi ultrapassa os limites da polêmica antiacadêmica. Recusa a tipologia tradicional da estátua-monumento: pela primeira vez, o monumento das Cinco
jornadasé um monumento não-monumental, em que o motivo dominante não é a figura humana, e sim o sino. Um recurso ousado e genial, porém, como o obelisco, de evidente or1gem barroca, berminiana; e, se a modelação impetuosa e fragmentada das figuras pode lembrar a escultura de Daumter, não se pode deixar de observar que Daumier nunca se obsti-
nou em fazer monumentos não-monumentais, mas simplesmente não fez monumentos por entender que a escultura moderna não mais podia se realizar no monumento, assim como a pintura moderna não mais podia se realizar no grande afresco ou no quadro histórico. Vê-se que na Lombardia, entre 1850 e 1860, tinham-se certas informações sobre as no-
vidades francesas, devido a algumas sugestões realistas, de origem courbetiana, na obra de o ELEUTÉRIO PAGLIANI (1826-1903) e FEDTRICO FARUFFINI (1831-69); mas, especialmente
neste último, a temática “nobre” pretende ser um resgate ou superação do Realismo, assim invertendo o processo histórico pelo qual o Realismo, na Fiança, surgira como superação do cc
Romantismo Observe o mesmo processo, que depende do insuficiente aprofundamento da experiência romântica, notado naquele que pode ser considerado o maior paisagista italta-
no do século xix, ANTONIO FONTANLSI (1818-82), um artista que se aproxima primeiramente da paisagem romântica do suíço Calame e, após 1855, mantém relações frequentes e imensas com Corote os pintores de Barbizon Há, em toda a sua pintura, uma tensão constante entre a exigência realista ca tendência romântica à intel pretação poética do tema; é esta que acaba por prevalecer, principalmente após uma viagem à Inglaterra (1865), onde descobre em Turner o “pintor-poeta” para quem tudo se transforma e se transfigura em luz No entanto, esta paisagem italiana, mesmo que primorosa, permaneceu alheia aos grandes problemas de sua época, o que é provado pelo fato de que, tendo visitado o Japão exatamente quando o japonesismo estava em moda na Europa, ele contribuiu, talvez, para ocidentalizar a arte japonesa, mas sem perceber sensivelmente o fascínio da arte oriental.
CAPÍLLLO
LRÊS
O SLCULO
NEN NA
LA
ATEAANHA
rc ENCLA!
FRRA
Feanquillo Cremona A melodia (1874), rela, 1 11x 129m
Milão, coleção Rossello
Antonio Fontanest Abri! (1873), tela 1.68 258m LIurim Galleria Crvica d Arte Moderna
159
Gaetano Previat. Vo prado (1889 90), tela,
0,62» 0,56m Florença, Galleria d Arre Moderna
Giovanni Segantint Volra a rerra naral (1895); tela; 1,6] = 2,29m Berlim, Staarliche
Muscen, Nationalgalerie
Giuseppe Pellizza da Volpedo: O Quarto Estado (1901), tela, 2.85 = 5,43 m Milão
Galleria d' Arte Moderna
CAPÍLULO
LRES
OSECULO XIX NA JTÁTIA
ALEMANHA
As províncias da Itália setentrional são as primeiras onde, no final do século, come-
ça a se desenvolver uma economia industrial, o que explica o surgimento de interesses
técnico-científicos, de impulsos progressistas e, ao mesmo tempo, de preocupações socrais também na arte. A última década do século, em Milão, é caracterizada pelo Divssionismo
de
GAETANO
PREVIATI
(1852-1920),
GIOVANNI
SEGANTINI
(1858-99),
Victor GRuBicY (1851-1920), GIUSEPPE PEILIZZA DA VOLPEDO (1868-1907) e muitos outros. Trata-se de uma visível repercussão do Neo-Impressionismo francês, cujos fun-
damentos teórico-científicos — mas, infelizmente, apenas eles — são retomados por Previati. O problema, de fato, é que não se trata de um verdadeiro interesse, e sim de en-
rtusrasmo pela ciência, e o entusiasmo se torna ideologia romântica da ciência e do pro-
gresso. Previati, Segantini e os demais não aceitam a idéia de uma arte-pesquisa, como a de Seurar ou Signac; e, o que é mais grave, não realizaram a experiência do Impressionismo, que é justamente o objeto da pesquisa “científica” do Neo-Impressionismo. Assim, o Divisionismo se mantém como uma técnica a serviço do “espírito”: da retórica histó-
rico-alegórica de Previati, do espiritualismo e simbolismo de Segantini, da ideologia político-social de Pellizza da Volpedo, autor de um grande quadro,
O Quarto Estado
(1901), que constitui o primeiro documento de um firme engajamento da arte na luta
política do proletariado. O “divisionismo”, pelo seu fundamento científico, era para ele (como será ainda para os futuristas) sinônimo de progressismo. Na Itália meridional, Nápoles ainda era, no início do século xIx, uma grande cidade européia e, para a cultura artística, um centro internacional Possuía uma florescente escola
de paisagistas, que descendia de Gaspare van Wittel e Filippo Hackert, e da qual faziam parte muitos estrangeiros, entre os quais se destacava o holandês PITLOO (1791-1837). A pai-
sagem local, onde a natureza se entrelaçava com o mito, era um tema de estudos caro aos pintores do início do século x1x; Turner se encontra em Nápoles em 1823, Bonington em 1824, Coror em 1825.
O processo que passa da vista documental, perspectivo-topográfica, para a vista “poética” se inicia, no interior dessa mesma tradição, com GABRIELE SMARGIASSI (1798-1882),
prosseguindo e culminando com GIACINTO GIGANTE (1806-76). A base cultural de Gigante é mais ampla: sua construção da paisagem se funda essencialmente sobre a poética serecentista inglesa do “pitoresco”.? As relações de distância já não são ordenadas ao longo das ltnhas convergentes do primeiro plano até o horizonte, mas são combinadas segundo a qua-
lidade das coisas, isto é, segundo as diferentes reações à luz daquilo que é sólido e opaco (árvores, rochas), móvel e reflexivo (águas) ou transparente (atmosfera). Como as possibilida-
des de variação são, assim, muito maiores do que na rígida organização perspectiva, a sensibilidade do artista é infinitamente mais livre: também na escolha do “movimento”, não mais
por seu efeito cenográfico ou panorâmico, e sim por sua força de solicitação da inspiração do pintor. A tomada dos objetos segundo suas diferentes reações à luz leva à composição da pintura por “manchas”: já no Setrecento inglês (com Cozens), a técnica correspondente à
poética do “pitoresco” era a técnica do blot (mancha). É, portanto, por esse caminho que o problema da “mancha”, fundamental para toda a arte oitocentista européia, entra na cultu-
raartística italiana; e é esta premissa, mais tardo-iluminista do que romântica, que explica o movimento posterior, programaticamente realista, da arte napolitana.
GiusepPE (1812-88) e FiLipro PaLIZzz) (1818-99) estão em relação direta com os paisagistas de Barbizon e indireta com Courber. em 1844, o mais velho dos dois irmãos já se encontrava em Paris. O segundo, que foi o protagonista do movimento realista napolitano, era um animalista com todos os limites do pintor de gênero, que se depara com um limite
FINGE
ATERRA
161
162
CAPÍTULO TRÊS O SECULO XIX NA LLÁLIA, ALEMANHA LINGUA ERRA
na própria escolha do campo de pesquisa: a realidade não é um problema a ser enfrentado, e sim uma noção a ser aprofundada, Ele parre do pressuposto de que os animais são mais na-
turais e, portanto, mais interessantes do que os homens; já existe, pois, um reperrónio definido de dados que o artista propõe analisar com um trabalho de interpretação e comentá-
rio. lrata-se de captar a aspereza ou a maciez do pelo, a naturalidade de um movimento, através de manchas ou toques de cor. São tipos ou noções que se determinam ou se concre-
tizam: o asno ou a cabra se tornam aquele asno ou aquela cabra. que se movem naquele am-
biente, e cujo pêlo reage daquela maneira à luz. Não é, enfim, uma descoberta, e sim uma verificação; não o realismo, mas 0 naturalismo. É esta a diferença radical entre Courber e Pa-
lizz1; O naturalismo de Palizzi é sempre ancdótico porque o pintor sabe que está captando e enfocando apenas um fragmento, um caso particular da realidade. Nos mesmos anos, em Nápoles, DOMENICO MORELLI (1826-1901) apresenta um programa aparentemente oposto: a pintura deve representar “figuras e coisas não-vistas, imagi-
nadas e verdadeiras ao mesmo tempo”. Com efeito, ele rejeita o limite do “gênero”, aspira à reforma, uma reforma em sentido romântico, da composição histórico-religiosa. Podia-se o facilmente objetar a Morelli que sua pintura podia ser substituída pela fotografia de um “objeto” previamente composto em atitudes recitativas ou dramáticas, com os trajes e ornamentos da época, artificialmente iluminado para lhe dar maior força emotiva. À reforma morelliana, em suma, diz respeito mais ao tema do que à tomada pictórica, à qual se exige “» apenas que seja rápida e eficaz, para que o “fotograma” seja mais impressionante. o
Assim, Morelli extrai não poucos recursos compositivos e luministas da pintura napolitana seiscenrista e, por vezes, de Tiepolo, admirando maus sua realização do que sua qualidade pictórica; uma vez mais, o impulso romântico se traduz numa retomada bar-
roca. Por outro lado, se o alvo próximo da polêmica morelliana é o modesto realismo da pintura “de gênero” de Palizzi, seu verdadeiro objetivo é a pintura histórica de Hayez e seus numerosos seguidores; em suma, ao Romantismo “frio” do Norte Morelli quer contrapor o Romantismo “quente” do Sul. Sob a aspiração unitarista, já se esboça a disputa regional, e não admira que, a partir dessas premissas, resultem como consequência lógica o compromisso entre realismo e retórica de F. P. MiCHETTI (1851-1929) e o falso Impressionismo vernacular, “napolitano”, de ANTONIO MANCINI (1852-1930). Ao pitores-
co ambiente napolitano opõe-se a severa e taciturna pesquisa tonal de G. TOMA (183691), desdenhando igualmente o sermão e a anedota; absorve-se numa idéia própria da história, que se entrelaça com as vicissitudes humanas, sem transcendê-las (Luisa Sanfelice no cárcere): não é gesta dos giandes, mas vida do povo, dolorosa realidade social (A
roda da Anunciada). Seu tonalismo, finíssimo nos cinzas, azuis-celestes e castanhos, é, mais do que uma escolha pictórica, uma postura moral, quase a antítese do historicismo ruidoso de Morelli.
O movimento dos macchiazolise desenvolve em Florença entre 1850 e 1860; possui um fundamento teórico e uma orientação programática: tem em vista um realismo, não, porém, de impressão direta, mas resultante de um sistema de enfoque e tomada do dado. Em torno dos toscanos congregaram-se artistas de outras regiões, impelidos pela perseguição política a r procurar asilo na Florença relativamente liberal dos grão-duques da [oscana; os propósitos de renovação artística constituíam, pois, um aspecto da renovação cultural que, nas esperanças dos intelectuais politicamente engajados, devia preparar e acompanhar a unidade da Itália. No grupo, GIOVANNI FATTORI (1825-1908), S. DE Tivoui (1 826-92), C. BAnTI (18241904), R. SERNESI (1838-66), T. SIGNORINI (1835-1901), O. BORRANI (1834-1905) eram
toscanos; G. COSTA (1827-1903) era romano; V. D'AncoNa (1825-84), marquejano;
Filippo Palizza
Vereda com padre, tela,
0,33x0,35m Roma, Galleria Nazsonale d'Arte Moderna
Domenno Morelli As senrações de Santo Antômo (1878) tela. 1,38 » 2,25 m. Roma, Galleria Nazionale d Arte Moderna
Croacchino Toma. é visa Sanfelice no cárcere (1877) tela, 0,61 x 078 m Roma, Galleria Nazionale d Arte Moderna
164
CAMPLIOTRES
OSÉCLLONINNA [TARA ALTMANTIA E INGLATERRA
V. CABIANCA (1827-1902), veronense; G. ABBATI (1836-68), napolitano Outros ainda mantiveram contato, embora menos direto, com os macchiaiol: D. Morelli, E. Dalbono, G.
de Nittis, G. Toma, todos do Sul. É, de fato, com os grupos artísticos napolitanos que os macchiaroli tentam formular uma ação conjunta, talvez justamente porque o “problema do Sul”, desde aqueles anos, vies-
se se delineando como o problema crucial da unidade italiana. De 1865 a 1867, CECIONI, que também era um crítico de lúcida visão, trabalhou em Nápoles e ali formou, com De Nirtis, De Gregorio e Rossano, uma escola parsagista (chamada Resina), fundada sobre os mesmos princípios da poética dos macchiaioli. Teóricos, críticos, polemistas dos macchraioliforam Cecioni, Signorini, DIEGO MARTELLI — foy este o primeito, na Itália, a falar do Im-
pressionismo francês (desde 1879), que lhe parecia um movimento afim e quase paralelo, embora mais vigoroso, ao dos macchiazol,
De fato, o movimento dos macchiaroli precede, mas não antecipa o Impressionismo, tendo com ele muito pouco em comum. À poética dos macchiaioli é uma poética decididamente realista, de acordo, talvez, com o realismo de Courbet e dos paisagistas de Barbizon, porém com uma marcada remissão à tradição local e uma inclinação à anedota. Devido à sua orientação realista, a poética dos macchiaioli se opõe ao Romantismo moderado e purista
dos pintores acadêmicos, como BEZZUOLI, CISERI, Ussi, defendendo, como Palizzi em Nápoles, a necessidade de se remeter ao estudo direto do verdadeiro. O princípio da “mancha” não é exclusivo dos macchrazoli; a rigor, os lombardos Cremona e Ranzon!, o napolitano Palizzi também são pintores “de manchas”. Mas os macchrazali elaboram uma teoria a respeito: defendem que o verdadeiro se vê como uma composição de “manchas de cor e chiaroscuro”, de modo que cada mancha tem um duplo valor, como cor local e como tom; à luz não muda a co1, no entanto altera a quantidade do tom; “a sombra não age como um pano, mas como um vét” (Cecioni). Em cada quadro, na medida em que representa fielmen-
te o que se vê, todas as cores funcionam como luz e como sombra; entre os dois registros de valores (cores-luz e cores-sombra), há uma relação de equilíbrio, de proporção. Naruralmente, o claro e o escuro não podem existir se não exisurem corpos sólidos que interceprem
a luz e se apresentem constituídos por partes iluminadas e partes sombreadas, se existem corpos sólidos, há um espaço preexistente que os contém. Evidentemente, não se pode d1-
Giuseppe Abbat. Claustro (c. 1860), tela, (1,19x0,25m Florença, Galleria d Arte Moderna
CAPMTLLO TRES
OSFCUTO XIX NATTAT EA, ATEMANHA PINGIATIRRA
ERES
165
TO AS
Giovanni Lattor À rozunda dos Bagnos Palmer: (1866), tela, 0 12
0,35 m
alleria d Arte Moderna
zer que uma visão que pressupõe as noções de espaço, luz e objeto seja direta e sem preconceitos. Os impressionistas, remontando à sensação pura, fundam um novo sistema de visão do real; os macchiaiol, por necessidade de clareza, simplificam a visão tradicional, isto é, a visão de estrutuia perspectiva, reconduzindo-a de alguma forma à sua origem histórica, a ar-
te florentina quarrocentista. Eliminando as habituais aplicações cenográficas da perspectiva, mas assim voltando à formulação quatrocentista original, realizam uma escolha histórica, porque a perspectiva e a clara disposição dos corpos no espaço são qualidades fundamentais da linguagem figurava toscana do Quartrocento em diante. Com efeito, a reforma dos
macchraroli quer ser justamente uma reforma linguística. o “toscano” reivindica, também na arte, o direito histórico de se tornar a língua oficial da lrália unida. Se todos os valores do quadro se limitam a luz e sombra, a construção resultará das linhas de limite entre cores-luz
e cores-sombra; assim se restabelece, revisto o princípio da tradição figurativa toscana, o desenho. Contudo, o desenho dos macchiaioli é muito diferente do desenho acadêmico, que consistia em delinear o objeto (ou em fixar sua noção intelectual), para depois passar ao co-
lortr (ou ao representar sua aparência contingente). Para os macchiazol: o desenho resultante da ligação entre as manchas não é o ato inicial, e sim o ato último e conclusivo da pintura, a síntese que ordena e constrói na forma as sensações cromáticas e luminosas. Reduzin-
do, simplificando, esclarecendo, o desenho elimina qualquer engrandecimento retórico, qualquer excitação emotiva, qualquer efusão patética: a mancha sintética dos macchiaroli é a antítese da mancha dispersiva dos lombardos, e Fattori é, em certo sentido, o anti-Cremona.
Comparado ao claro e conciso discurso toscano, o obscuro sentimentalismo dos scap?gliati revela o que realmente é a ficção sentimental de uma burguesia já industrial, cujos verdadeiros interesses nada têm a ver com o sentimento. É ainda uma disputa regional às vés-
peras e em vista da unidade, mas com algo de mais profundo: os macchrazoli intuem que a linguagem figurativa toscana, para se tornar a linguagem figurativa italiana, não deve ser a expressão de uma elite intelectual, e sim, no sentido mais amplo, do povo. No clima cultural do Risorgimento, enfim, a pintura dos macchiarol: é a única tendência figurativa que po-
de ser chamada, nas palavras de Gramsci, de nacional-popular. Vê-se isto justamente na parre da obra de Fartori erroneamente tida como secundária e ocasional: os quadros de tema multtar, nos quais o artista evita tanto a retórica patriótica quanto o anedotismo didático, co-
mo o de D. Induno.
1 lorença,
166
CAPITULO TRES
O SECUJO XIX NA TLÁLIA, ALEMANHA
É INGLA FERRA
FATTORI GIOVANNI DE SENTINELA
vo, da anedota bem contada. TI LMACO SIGNORINI,
em 1865. representa À sala das perturbadas de um
manicômio. Como Fartori no quadro acima descrito, Signorini define com despojada clareza a perspec-
tiva do salão, preenche-a de luz branca, ressalta as fiUma das obras-primas de FaTTORI, De sentinela
(1868-70), é um quadro até paradigmático. Há, em primeiro lugar, um espaço vazio, reduzido à essencia-
lidade de um plano horizontal e um plano vertical,
ortogonal; a esse espaço essencial corresponde uma luz essencial, levada ao maior grau de intensidade, o branco. De súbito, no encontro das coordenadas, surge a patrulha, da qual se separou um cavaleiro que se aproxima beirando o muro. Neste ponto, o tempo pára, o espaço da narração se interrompe: todos os valores do quadro se alinham na perfeita correspondência e equilíbrio de cores-luz
guras pequenas e escuras no grande vazio claro. Todavia, as linhas perspectivas convergem para um can-
to da sala, as figuras se perfilam nos planos fugidios, os contornos se tornam finos e cortantes para descrevei o carárer ou o gesto de cada figura. À perspectiva não é a estrutura do espaço, mas uma espécie de objetiva fotográfica que permite um enfoque rápido e
nítido: para Signorini, o “espírito toscano” é inteligência pronta, observação penetrante, comentário
leras nos casacos azul-turquesa, negros e brancos os
arguto. Não visa, como Fartori, ao núcleo profundo, à estrutura da língua, e sim ao emprego ágil, elegante, eficaz de uma linguagem familiar; assim, na cultura figurativa da época, sua obra não é senão um episódio toscano, brilhante porém limitado. Entre os macchuaroli, o que mais se aproxima da problemática
cavalos).
do primeiro Impressionismo, chegando quase a tocá-
A profundidade se nivela na superficie, como num entalhe perspectivo do Quattrocento. Fartori eliminou o efeito cenográfico da perspectiva, reconduziulo Uccello no Milagre da hóstia. Contudo, o espaço
la, é Si'vEsTRO LEGA. Um quadro como O caramanchão, pintado entre 1864 e 1868, não pode deixar de lembrar, mesmo no tema, as pesquisas contemporáneas en plein-air de Bazille e Monet. Contudo, na comparação, o quadro de Lega parece anedótico: não
não é abstratamente geométrico: o plano horizontal
se impõe ao espectador com a plenitude da sua toma-
éarenoso, com pequenos montes de derritos; o plano ortogonal é um muro, do qual se sente a caiação calcinada pelo sol. E a luz não é a luz universal de Piero
da da realidade, interessa-o como um aspecto agradável, bem escolhido e bem interpretado. À pintura de Lega é severa, não se entrega a frivolidades descritivas ou narrativas; mas utiliza dois sistemas representarivos diversos, que se sobrepõem sem se fundir:
e cores-sombra (o quepe branco no céu cinza-azula-
do, os uniformes escuros no claro, brancas as bando-
a à sua função original, compôs o espaço como Pao-
della Francesca: é a luz de uma manhã de verão, avan-
çada e sufocante, Quase milagrosamente, Fatrori consegue escolher
a mancha e a perspectiva. Não se repete o milagre al-
e fixar o instante em que o “detalhe”, o episódio dos soldados de cavalaria em exploração num lugar deserto e ensolarado, coincide com o “universal” do es-
cançado (e nem sempre) por Fattori; aqui, as manchas de cor e luz são obrigadas a se dispor segundo uma armação perspectiva predererminada (as traves
paço geométrico e da luz absoluta. Demonstra, as-
do caramanchão, as filas dos ujolos no chão, a mure-
sim, que sua linguagem histórica, universal, adapta-
ta, Os ciprestes distantes). Ainda que sonoras, vivas e
se muito bem à realidade presente, e que o sistema figurativo da arte toscana pode se rornar o sistema
magistralmente afinadas, as notas cromáticas e luminosas não fazem espaço (como, por exemplo, Mulhe-
figurativo da arte italiana moderna. Mas não se tornou, e não apenas porque a Itália
res no jardim, de Monet), e sim preenchem um espaço
dado; não movem o espaço impondo-lhe um ritmo, movem-se ao longo dos percursos necessários de um
unida não soube desenvolver os impulsos populares, a que devia a unidade. Se o próprio Fartori nem sempre alcança a identidade absoluta entre episódio vi-
espaço dado e imutável. E mostrando-se, ao se mo-
sual e construção espacial, os outros nacchiaioli freguentemente cedem à tentação do “esboço” expressi-
que não se modifica, a presença delas é episódica — se, por hipótese, a armação perspectiva desaparecesse, a
verem, como que mutáveis em relação a uma realidade
CAMTULO
ERES
Crobl ULO XIX NA TLÁDIA ALEMANHA E INGLALLRRA
solidez cromárica se dissolveria em vapores coloridos
ZANDOMENFGHI (1841-1917), que na juventude es-
(como justamente em Cremona ou Ranzoni).
teve em contato direto com os macchiatoli e foi amigo de Diego Martelli, estabeleceu-se em Paris em 1874 e trabalhou com sucesso junto'aos impressio-
(O) êxito do impulso renovador dos macchiaroli foi diferente do que se propunham os pioneiros do movimento, nas animadas discussões no café Michelangrolu; extinta a esperança de converter o toscano em linguagem pictórica italiana, aos epígonos dos macchussolr não resta outra saída senão a apologia do folclor: e do dialeto (FrRRONI, GIOLI, CANNICCI,
nistas, especialmente com Degas, repetindo seus te-
mas, imitando seus cortes composttivos e cores estridentes e frias, todavia sem compreender a novidade estrutural de sua pintura. GIOVANNI BOLDINI (1842.1931) se formou em Florença com os macchiaioli,
“TOMMAST). À amarga prova de que as veleidades re-
dando provas de um talento precoce e brilhante; em
formistas das duas “escolas” de Nápoles e Florença
1870, trabalhou em Londres c a seguir em Paris, tor-
nao podiam levar a uma renovação radical será dada
nando-se em pouco tempo o retratista da moda, com muita inspração e elegância, porém incapaz de ver na
justamente pelos artistas que decidirão trocar a província pela capital e irão trabalhar em Paris. À Dr NiITIS (1846-84), que se mudara para Paris em
aite dos impressionistas, apesar de serem seus amigos, mais do que uma técnica “moderna” a serviço de um
1867. coube a honra de participar, em 1874, da his-
virtuosismo gráfico-cromático surpreendente e fascr-
ronca exposição dos impressionistas no estúdio do
nante — certamente devido ao seu despreconceito —,
fotógrafo Nadar, mesmo que apenas para atenuar o
mas pretendendo, afinal, reaproximar a nova pintura
rom escandaloso; mas a experiência parisiense c londiima se manteve, para ele, como experiência mais mundana do que artística. O veneziano FEDERICO
a uma história que não era a sua, isto é (como queriam
os Goncourt),
o Serecento libertino
de Watteau,
Fragonard, Tiepolo e Guardi.
Grovanai Jarorr De sentinela (1868-70) madeira, 0,37: 0.56 m Valdagno coleção Marsotto
167
LG8
CAPÉTUTO
TRES
O sECUTO
MIN NA [TADIA
Salvestro Tega te
1866)
tela
ALEMANTIA
O caramanchão
DINGOATERRA
detalho
0,74 = 0,94 m
Milão, Brera
A ALEMANHA Como a história política, a história cultural alemã do século x1X também éa história do
atormentado processo de unificação nacional, que será alcançada em 1870, após a guerra franco-prussiana. Se o patriotismo alemão nasce em reação às invasões napoleônicas, o pro-
blema da unidade nacional alemã é a busca de um princípio de coesão espiritual entre povos do mesmo tronco étnico e lingiiístico, porém politicamente divididos, com crenças re-
ligiosas, tradições populares e hábitos sociais diversos. Pode-se invocar um princípio suprahistórico, um cosmopolitismo iluminista, uma sociedade conforme à razão (a tese clássica de Goethe), ou pode-se invocar o princípio da história (a tese romântica de Schiller), mas sob a condição de impeli a pesquisa para além das razões políticas que levaram à divisão do
país, a fim de reencontrar no erhos popular, nas profundezas do racional (ou da vida) a unidade espiritual do povo alemão. A síntese (Hegel-Fichre) é a redução da “nação histórica” ao
Estado ético: mais do que um passado comum, o que une os povos alemães é, infelizmente, a idéia de uma missão histórica da nação germânica no futuro. Sobre essa base se constrói,
nas últimas décadas do século xIx, o Kulturkampf bismarckiano: o sistema cultural que faz convergirem todas as forças para o desenvolvimento de uma poderosa tecnologia industrial, como instrumento da hegemonia política alemã. O debate tem lugar não só no terreno po-
lírico, como também no terreno filosófico e literário, interessando estreitamente à música, considerada como a verdadeira expressão artística da “alma alemã” (o germanismo universal de Wagner), e apenas aflorando a arte figurativa. Porém, é através desse intenso debate de
idéias que se criam as premissas para o que, no início do século XX, virá a ser a clara proposta de uma arte upicamente germânica, mas de alcance europeu — o Expressionismo —, ca-
paz de contestar, no sentido de uma alternativa dialética, a hegemonia da cultura artística francesa nascida com o Impressionismo A premissa é o desenvolvimento de uma estéticano quadro da filosofia idealista e, a seguir, de uma sZeorza da arte, disunta da filosofia do belo,
pois dedicada a estudar os procedimentos operacionais específicos da arte. Aliás, Hegel já
CAPÍTULO
Leitos OSECLLOXINNA
ITALIA
APEMANHA RING ATERRA
havia reduzido a estética à história da arte, apontando na arquitetura uma representação essencialmente simbólica; na escultura, a representação clássica e, na pintura, a representação
tipicamente cristã e romântica, quase prevendo a função preponderante que a pintura teria ocupado, no século xIx, como campo de pesquisa sobre a visão
Ao lado dos tratamentos propriamente filosóficos do problema estético, que constituem uma constante no pensamento teórico alemão, já na metade do século xvit! desenvol-
vera-se, em oposição ao racionalismo iluminusta, a poética paleo-romântica do Sturm und Drang, para o qual a arte é expressão do irracional e, portanto, dos impulsos e sentimentos com que a espiritualidade humana reage à realidade natural, enfrentando-a ou escapando pa-
ra o sonho. Paralelo à poética inglesa do “sublime”, o Sturm und Drang reflete a luta milenar do homem “do Norte” contra a natureza inimiga, acentuando o caráter mítico e espiritualista dessa luta e buscando sua presença nas sagas populares (Klopstock). Mas, quase para com-
pensar este rude ethos popular, evocam-se as fábulas do antigo povo alemão (Grimm), reencontrando a pureza da língua na qual foram narradas Sobre esses dois temas articula-se a arte dos dois marores pintores do primeiro Romantismo alemão. €
D
FRIEDRICH (1774-
1840) é o Klopstock da pintura; porém, mais do que a angústia e a fúria, ele expressa a eleva-
da e sublime melancolia, a solidão, a angúsua existencial do homem diante de uma natureza mais misteriosa e simbólica do que adversa. À relação com a natureza é quase sempre de atração (como, aliás, do contemporâneo Blechen), porém isso não exclu a separação e incomunicabilidade, o isolamento nostálgico do homem “civilizado” frente à natureza. PO. RUNGI
(1777-1810) é o Grimm da pintura; com o mesmo propósito de purismo linguístico, ele retoma o penetrante desenho analítico dos antigos mestres (Diirer, Holbein), assim tentando recuperar seu sentido religioso da realidade, que via símbolos não por trás ou sob, e sim na pura e simples verdade das coisas Como Friedrich, e, até mais explicitamente, Runge vê por
trás dos antigos mestres o velho povo alemão de artesãos sábios e laboriosos, ligados à terra e à tradição dos pais pelos próprios materiais e utensílios de seu trabalho. Não é um racionalismo orgulhoso nem um irracionalismo passional, mas um sentimento simultâneo do divino, da natureza, da comunidade
Já no final do século xvi1, W. H. Wackenroder (e, como ele,
Tieck e os Schlegel) vê na arte uma inspiração divina que se manifesta em formas simples e claras, produzidas por uma técnica honesta e intrinsecamente moral, como a dos artistas me-
dievais (um tema muito semelhante ao que, na Inglaterra, recebia a atenção de Ruskm e dos pré-rafaelitas). Dela deriva, mais interessante pelo programa do que pelos resultados, a “irmandade” artística dos nazarenos (1810), que se forma em Roma em torno de F. OvERRFCK (1789-1869) com o propósito de criar uma pintura religiosa inspirada nos mestres do Quattrocento e início do Cinguecento (Perugino e o jovem Rafael) — e foram, assim, o modelo do
Purismo italiano de Tenerani, Mussini e Minardh,
A pesquisa sobre a teoria da arte se desenvolve na segunda metade do século com as chamadas teorias da Einfiihlung (empatia, simpatia simbólica) e da pura visualidade. A primeira vê na arte a expressão do sentimento da realidade através de formas simbólicas extraí-
das da própria realidade (por exemplo, vertical = aspiração à transcendência, elevação; horizontal = efusão, expansão); portanto, a arte é identificação do eu com o mundo, a obra não é senão um meio, uma mensagem. A segunda, que tem suas origens em K. Fredler (1841. 95), teve maior influência sobre a crítica e a historiografia da arte, bem como sobre o desenvolvimento da arte moderna na Alemanha, e é significativo que, para a sua formação, tenham contribuído um pintor, Hans voN MAREES (1837-87), e um escultor, À. Hit DEBRAND
(1847-1921) O fundamento da arte é a percepção, com a reação motora por ela despertada (pintar, esculpir erc.) A natureza, tal como estudada e descrita pela ciência, é totalmen-
169
170
CaAMTUEO FRIA OSLCULONINNA [EÁDIA ADEMANHA E INGUA TERRA
Caspar Fredrch O marefragio do Paperançi (1821) tda 0,98 1 28m Hamburgo, Kansehille
Pi
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1p Ou
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132
Hans von Martes
Dicas amigas tela
Nápoles, Istinito Zeologico
Arnold Bockin
Ulisses e Calrpso
(1833), tela, 1,04 + 1,50 m Basileta, Kunstmuscum
Lovis Corth Parsugen de Inmtal 1921), tela U 64x 0,88m Berlim srsarhrho Muscen
Narinnaloalene
E E
+
CAPÍTULO
TRÊS
O SÉCULO
XIX NA FTÁLIA ALEMANHA
LINGLALIRRA
te diferente da natureza percebida e representada pelo artista: as leis da arte são, portanto,
exclusivamente as leis da visualidade. Por conseguinte, devem-se considerar apenas as formas (linhas, volumes, cores) com que uma obra de arte se apresenta à percepção. À teoria de Hedler havia de parecer talhada para explicar o Impressionismo, e certamente serviu para torná-lo conhecido na Alemanha; contudo, o Impressionismo conserva uma relação com a +
realitade objetiva que, para a teoria da visualidade, não é4 necessária, visto que, quaisquer
que sejam as premissas, o que se apresenta como percepção estruturada é apenas a forma que se percebe na obra. À única estrutura que pode ser investigada é a da obra: ela não é
reprodução, ainda que interpretativa, e sim produção erativa. A teoria da visualidade não exerceu uma influência imediata sobre o direcionamento da arte alemã; nem mesmo Ma-
rées e Hildebrand, que lhe deram respaldo com imporrantes textos teóricos, compreenderam seu alcance, e os artistas que se interessaram LIEBERMANN (1847-1935) e L. CORINTH
pelo
Impressionismo,
como
M.
(1858-1925), detiveram-se na superfície da cor
brilhante e da execução rápida, procurando, porém, seus precedentes históricos na pintura “nórdica” dos holandeses seiscentistas, por não perceberem que a novidade do Impressionismo residia na estrutura. Foram os expressionistas que, nos primeiros anos do século, encon-
traram no pensamento de Fiedler um apoio teórico para seu programa de dar importância não ao que o artista vê, e sim ao que derxa ver.
No final do século, a Alemanha, já em plena ascensão industrial, participa intensamente do movimento modernista que atravessa a Europa; o ponto de intersecção é Munique, ondese forma primeira Secessão (1892) e de onde se iradia o Jugendstil, o Art Nouveau alemão.
Se o Modernismo de Munique, num primeiro momento, ainda se encontra sob a influência romântica do velho Bockln (1827-1901), que reunia aos procedimentos de tipo acadêmico-
naturalista um alegorismo literário e um impetuoso realismo, sob a direção de MAX KLINGER (1857-1920) ele se abre a contatos mais fecundos com a França. A Secessão berlinense, que tem origem em Liebermann, é de insptração genericamente impressionista, mas sente tam-
bém a influência do norueguês Edvard Munch, que será um dos principais pontos de referência dos expressionistas. Se uma obra de arte é avaliável apenas em seus valores visuais, se cada linha e cada cor
são significativas, desfaz-se naturalmente qualquer distinção entre arte pura ou “conceitual” e arte decorativa ou “aplicada”; a pesquisa estética, assim, se estende a tudo o que forma o ambiente e serve à vida do homem. Na Alemanha, no início do século, a arquitetura tinha
um austero caráter monumental e representativo, acompanhado, porém, por uma ngorosa merodologia urbanista e de projeto; Schinkel era o típico arquiteto do Estado como entida-
de filosófica. O academicismo arquitetônico se prolonga até o final do século, quando a Secessão mclui a arquitetura na unidade ideal das artes; um formalista rigoroso como O. WAGNER (1841-1918) protege com sua autoridade o livre pictoricismo de J. M. OLBRICH (1867-1908), o Klimt da arquitetura; o belga H. vaN DE VELDE (1863-1957) e D BEHRENS (1868-1940) iniciam no âmbito da Secessão a carreira que virá a convertê-los em dois grandes expoentes do racionalismo arquitetônico do século xx.
Perer Behrens «Ítrio dos eserretrros da Hochsrer Farbrwerke (ULO 4) em
Erankfuri-am-Main
Joseph Marra Olbrch Casa da Arteste (DOT) em Darmstadr
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CAPÍTULO
A
TRÊS
OSC
LLONDENA
[LABIA
ATTMANHA
INGLATERRA Nos meados do século passado, abre-se na Inglaterra vitoriana o novo curso daquela
cultura romântica que, nascida do encontro entre o iluminismo inglês tardio e o nascente idealismo alemão, parecia ter se encerrado prematuramente, na própria Inglaterra, com a
morte de Blake, Fussli, Constable e lurner Depois de vencer Napoleão, o país gozava de grande prosperidade econômica, mas sua oposição às ideologias revolucionárias era paga ao preço do retrocesso social, da involução cultural e, a seguir, com o hipócrita moralismo vitoriano. O custo do progresso industrial era a impiedosa exploração dos trabalhadores, o
aviltamento do povo, a degradação cultural das classes dirigentes. À arte decai a um nível de baixo anedonsmo, de um humorismo de clube, com uma moral grosseiramente utilitária não podia coexistir um interesse estético. Quando renasce um interesse estético, é para combater a moral grosseiramente utilitária. Na Inglaterra paleoindustrial, afinal, a arte preten-
de ter uma função não tanto humanitária, e sim corretiva € saneadora. JoHa Ruskin (1819-1900), o maior crítico europeu do século, estreara em 1843 sau-
dando em Constable e Turner os “pintores modernos” por excelência, os únicos dignos entre os “primitivos”; a seguir, apercebe-se de que, naquela sociedade moderna, não podia existir uma arte moderna. Para quea arte pudesse sobreviver era preciso mudar a sociedade, e tal devia ser a missão dos artistas. Assim como defende o retorno do Gótico para a arquitetura, da mesma forma defende para a arte figurativa o retorno aos “primitivos”, aos artistas ante-
riores a Rafael é Michelangelo, isto é, antes do pecado do orgulho que transformara a arte numa atividade intelectual. Ruskin será o conselheiro e defensor da Irmandade dos Pré-Rafaelitas, formada em 1848 por três jovens pintores: HotMAN HUNT (1827-1910), Jorn EvERETT MIT AIS (1829-96) e DAN 11 GABRWL] ROSSETTI (1828-82). Este último, filho de
um exilado mazziniano, também é poeta, cultor de Dante, de quem traduziu a Vita nova. Deve-se principalmente a ele a formulação da poética pré-rafaelita e sua orientação no sentido de um revival do ideal cavaleiresco româmico e da idealização da mulher do “doce estilo novo”.
Londres, Tau
Gallery
É INC
TA PRRRA
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176
CAPITULO TRES O SÉCULO XIX NA ITÁLIA, ALEMANHA E INGLATERRA
O novo movimento tem seus precedentes em WiLLIAM Dvcg (1806-64), que transplantara para a Inglaterra a poética nazarena e purista, e FoRD MaDOX BROWN (1821-93), que ao anedotismo banal já havia contraposto uma pintura histórico-religiosa austera e meditati-
va, e que praticamente fará parte do grupo. O movimento pré-rafaelita também está indiretamente ligado à corrente religiosa do chamado redespertar carólico, que reage moderada-
mente à escandalosa conivência do puritanismo anglicano com o capitalismo e seu respectivo imperialismo; a componente religiosa, aliás, era fundamental num programa como o do grupo pré-rafaelita, visando a recuperar por meio da arre a eticidade e religiosidade intrínsecas do trabalho. Apesar da insistente remissão aos “primitivos” italianos (embora considerassem “primitivos” artistas como Gozzoli e Botricelli, Mantegna e Carpaccio), na pin-
tura pré-rafaelita não há referências patentes ao estilo desses mestres, que são invocados mais como exemplos de moral profissional do que como modelos formais. É significativo que os pré-rafaelitas escolham como modelos históricos os pintores do passado que foram acima de tudo narradores: Gozzoli, Carpaccio, Ghirlandaio. É evidente que concebem a pintura como uma narração figurada, pretendendo-a, porém, verídica, contida e profundamente inspirada. A arte não deve persuadir, e sim estar intimamente persuadida; apenas assim será poesia, pois a poesia é o “espírito de verdade” ” que está no fundo das coisas e das pessoas. Não se renuncia à ligação com a literatura, própria de toda a cultura inglesa, mas é necessário que haja na pintura, assim como na literatura, uma profunda humildade e honestidade do oflcio, por ser ele o intermediário entre o homem e as coisas.
Afirma-se a necessidade de um novo naturalismo, pois reconhece-se à natureza uma poericidade intrínseca própria e um sentido de misteriosa mensagem divina; contudo, o meio indicado para decifrá-lo não é o sentimento da natureza, e sim uma técnica pictórica humilde, honesta, precisa, semelhante à dos anngos mestres e artesãos. Procede-se a uma
imitação detalhista das coisas naturais, não mais para “representá-las”, mas para conviver com elas numa íntima comunhão que permitirá desvendar seu segredo, sua misteriosa espiritualidade; aproximando-se do verdadeiro com uma concepção do mundo já formada, es-
tar-se-1a comprometendo a possibilidade de receber com toda a humildade a mensagem das coisas. Nas obras de Rossetti, o “poeta” do grupo, esta iter elecironisé evidente: em Ecce ancilla domini, os detalhes da cama, da cortina, dos panos são executados com grande cuidado, porém se diria que com uma atenção passiva, sem nenhum gosto pela observação e com o pensamento voltado para outra coisa, para o mistério da anunciação, que se renova para to-
da jovem mulher no ato da concepção. Assim, aquela minúcia detalhista se desfaz, como por encanto, numa “sinfonia” serena de brancos, cuja vibração fria tem seus limites no vermelho do atril e no azul da cortina, os extremos opostos da gama de cores. E, se o caráter humano da mulher e do anjo certamente concorda com o conceito do artista, é evidente, no entanto, que o processo que o pintor quis percorrer e descrever é um processo do “natural” ao “metafísico”. Apesar dessa inclinação espiritualista, a poética pré-rafaelita não é absolutamente simbolista. Não há um salto do contingente para o transcendente, não há passagem de uma coisa a outra, que seria seu símbolo. À coisa não se transforma, evolui, e este evoluir é próprio de sua natureza, é o caráter mesmo de sua espiritualidade. Ássim se questiona a necessidade da representação figurativa: ao invés de, refazendo-
as, reviver a espiritualidade das coisas, não seria mais correto vivê-la fazendo-as? O trabalho do artesão que faz um objeto não será porventura mais válido (como também sugeria Platão) que o do artista que imita o objeto feito pelo artesão? Quem poderia negar que, ao
transformar um bloco de madeira num belo objeto, se esteja promovendo o processo universal da matéria ao espírito? E que, portanto, não existe um salto qualitativo entre a obra
CAPÍTULO TRES O SÉCULO XIX'N 4 ITÁLIA, ALEMANHA F INGLATERRA
Dante Gabriele Rossete: Ecce anerlta domens (1850), tela, 0,72 = 0,43 m
Londres, Tate Gallery
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CAPITULO
IRÊS
OSDC LLO XIX NA ITALIA AFTMANUTA FINIGLATERRA
Phihp Webb Red House (1859)
em Besley Hearh, Kent
de balanço (e 18601, Peter Cooper Cadesra aço com estolamento de vesudo, 0,99 mar altura Nosa York, The€ Museum for Arts and Decorarion
XIX NA CAPÍTULO FRÉS CISÉQUIO
E INGLATERRA PTALIA ALEMANHA
William Morus Pompernel(18706); papel de parede Londres. Victoria and Albert Muscum
da natureza e a obra do homem, e que o homem, sendo também cle natureza, é um agente
do processo universal do ser? Nesse caso, o artista não deve se ltmitar a dar exemplos abstra-
tos da espiritualidade do trabalho, mas deve fazer e ensinar a fazer coisas que sejam sim ulta-
neamente naturais e espirituais, úteis e belas. Este avanço decisivo, que altera substancialmente todo o problema da arte, foi realizado por WiLLIAM MORRIS (1834-96), pintor, escritor, polemista e propagandista, mas também homem de ação. Possuía idéias políticas claras, era um socialista militante; percebia que, na situação da época, a questão da arte devia ser colocada como uma questão
política, à qual deveria corresponder uma ação. Partia do pensamento de Ruskin, contu-
do, partilhando das novas idéias derivadas dos textos de Marx, ia além: não é muito im-
portante que o artista (um burguês por definição), com um gesto de santa humildade,
converta-se em operário; pelo contrário, o importante é que o operário se torne artista e,
assim devolvendo um valor estético (éuco-cognitivo) ao trabalho desqualificado pela indústria, faça da obra cotidiana uma obra de arte, “Quero falar daquele lado da arte que
deveria ser sentido e executado pelo simples operário em seu trabalho cotidiano, e que com 1azão se chama arte popular. Esta arte não existe mais, destruída pelo comercialis-
179
180
CAPÍTLEO TRÊS OSECULOXIXNA ITÁLIA
ALEMANHAE INGLATERRA
Walter Crane À casa que Jack constriszu (1875),
tapeçaria para quarto
de crança Londres,
Victoria and Alberc Museum.
Arthur H Mackmurdo
1he Cromer bi
algodão estampado Londres Victoria and Albert Museum
(884)
CAPÍTULO TRES O SECULO XIX NA ITÁLIA ALEMANHA PINGEALERRA
Edward Burne-Jones. O rer Copherma ca peguena mendrga (1884) tela 293x1,36m Londres 1are Gallery
18]
182
CAPULOTRES
OSÉCULO XIX NA ITÁLIA ALEMANHA T INGIA | ERRA
mo. Mas ela viveu e floresceu desde o início da luta entre o homem e a natureza até o sur-
gimento do sistema capitalista. Enquanto duiou, tudo o que o homem fazia era ornamentado pelo homem, assim como tudo o que faz a natureza é ornamentado pela natureza.” E note-se: Morris não mais fala em homem e natureza. Ao se passar da idéia que faz as coisas, não se está 'rebaixando” dão da imitação; afirma-se, em suma, que
harmonia ou comunhão, e sim em futa entre da arte que imita as coisas para a idéia da arte o artista a artesão, mas libertando-o da servias determinações formais do belo, não mais li-
gadas à morfologia natural, são infinitas. Decidido a passar para a ação, Morris começou encomendando ao arquiteto PHILIP WEBB (1831-1915) a construção de uma casa (Red House, 1859) que, rompendo com a ti-
pologia tradicional tanto no projeto quanto nos volumes, responde às exigências concretas
da vida: um novo modelo de “ambiente” para a família, núcleo originário da sociedade. A seguir (1861), ele formou um agrupamento de artistas, não mais seguindo o tipo arcaico da “irmandade”, mas com a idéia de criar um grupo operativo dinâmico, empenhado em pro-
gramas claros de produção. um empreendimento, em essência, capaz de concorrer a longo prazo com as indústrias monopolistas no plano da qualidade e dos preços. Era a chamada Morris, Marshall, Faulkner & Co., especializada em mobiliário e decoração — móveis, forrações, pratarias, vidros, tapeçarias etc. Nela colaboravam, além dos pintores do grupo pré-
rafaelita, Madox Brown e um novo adepto, o pintor E. BURNI-JONLS (1833-98), artista que terá uma importância notável, mesmo fora do círculo morrisiano, por ter sido um dos primeiros, libertando-se dos pressupostos religiosos c moralistas dos primeiros pré-rafaelitas, a propor a arte como fim da própria arte, isto é, a colocar o problema não maus da finalidade,
e sim da funcionalidade social da arte. A despeito do sucesso da empresa (logo a seguir surgiram outras parecidas), a sociedade se dissolveu em 1874; pouco depois renasceu, reformada c encabeçada apenas por Morris, que desta vez conseguiu se cercar de colaboradores mais especializados, como A. H.
MACKMURDO (1851-1942), idealizador de famosos papéis de parede, e W. CRANE (18451915), conhecedor de todas as técnicas de decoração, mas especialmente de ilustrações gráficas, nas quais via um poderoso fator de educação por meio da arte (foi um verdadeiro pio-
neiro da editoração popular, de alta qualidade e baixo preço). Enquanto os impressionistas na França enfrentavam o problema, cada vez mais grave, da relação arte-sociedade, demonstrando o caráter insubstituível da visão artística em qualquer sistema de conhecimen-
to ou pensamento, e assim procurando definir a especificidade estrutural da pintura (da mesma forma que os “engenheiros” em relação à especificidade estrutural da arquitetura), a cor-
rente pré-rafaelita e morrisiana, por seu lado, visa à eliminação da especificidade das artes, à inserção direta da experiência estética na práxis da produção econômica e da vida social, à indivi-
duação de um estrlo artistico capaz de se tornar estrlo de vida. Com efeito, da empresa de Morris deriva o modern style, que se difundirá rapidamente na Europa e nos Estados Unidos, em todos os níveis sociais: com o nome de Art Nouveau na França; Jugendsril, na Europa central,
Liberty, na Itália.
Os movimentos artísticos francês e inglês, embora possam parecer opostos em suas
premissas, na realidade convergem entre si. O objetivo por eles visado é, na verdade, o mesmo: estabelecido o princípio da insubstituibilidade da arte enquanto processo de experiência e, por conseguinte, sua absoluta autonomia, tal objetivo consiste em definir sua função no contexto socioculrural e, consequentemente, sua ligação com as outras atividades sociais
e sua fruição pela sociedade. Em vista dessa convergência, compreende-se como elementos de origem pré-rafaelita e elementos de origem impressionista se associam e se entrelaçam no
CAPÍTULO TRÊS O SÉCULO AX NS | LÁLIA, ALEMANHA LENGLA TERRA
desenvolvimento do Art Nouveau, o que é facilmente visível na obra de Gauguin, Toulou-
se-Laurrec, Munch, Bonnard e até Van Gogh. Um dos intermediários foi J. WHis | LER (1834-1903); americano de nascimento, trabalhou em Londres, embora mantendo contato com o ambiente parisiense. Foi amigo de
Courber, Manet, Degas c Mallarmé. Qpôs-se à diligência artesanal dos pré-rafaelitas (teve um litígio judicial com Ruskin, que o acusara de cobrar por suas obras preços desproporcionais ão tempo de trabalho), mas sua pintura, embora rápida e transparente, inteiramente composta de “harmonias” em tons vaporosos, não é impressionista, porque a cor não é “visual”, e sim “poética”, alusiva, cheia de significados espirituais e vagamente simbólicos. Todavia, influiu sobre os últimos desdobramentos dos pré-rafaelitas e o decorativismo do Art Nouveau, tanto com a delicadeza harmoniosa de seu cromatismo, quanto com seu entusiasmo pela cor não-naturalista das estampas japonesas, que conhecera em Paris frequentando Bracquemond e Degas.
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AHMACKMURDO,ARIBA CHECA
SUNNYSIDE
OPPINGTON
KENT
Arthur H Mackmurdo: Frontsspreio para Wren s Cary Churches" (1883)
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CAPITULO QUATRO € MODERNISMO
Henry van de Velde: Trapon (1898): cartaz trografia em cores, 0,367 0,27 m Berlim, Annahes Paulsen Museum
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CAPÍTULO
QUATRO
O MODERNISMO
Sob o termo genérico Modernismo icsumem-se as correntes artísticas que, na última, década do século xIx e na primeira do século xx, propõem-se a interpretar, apoiar e acom-.. panhar o esforço progressista, econômico-recnológico, da civilização industrial. São comuns às tendências modernistas: 1) a deliberação de fazer uma arte em conformidade com sua época e a renúncia à invocação de modelos clássicos, tanto na temática como no estilo; 2) o desejo de diminuir a distância entre as artes “maiores” (arquitetura, pintura e escultura) cas “aplicações” aos diversos campos da produção econômica (constiução civil corrente, decoração, vestuário etc.); 3) a busca de uma funcionalidade decorativa; 4) a aspiração a um essilo ou linguagem internacional ou européia; 5) o esforço em interpretar a espiritualidade que se dizia (com um pouco de ingenuidade e um pouco de hipocrisia) inspirar e redimir o industrialismo. Por isso, mesclam-se nas correntes 7modernistas, muitas vezes de maneira con-
fusa, motivos materialistas e espiritualistas, técnico-científicos e alegórico-poéticos, humanitários e sociais. Por volta de 1910, quando ao entusiasmo pelo progresso industrial sucede-se a consciência da transformação em curso nas próprias estruturas da vida e da ativida-
de social, formar-se-ão no interior do Modernismo as vanguardas artísticas preocupadas não mais apenas em modernizar ou atualizar, e sim em revolucionar radicalmente as modalidades e finalidades da arte.
E ARQUITETURA URBANISMO MODERNISTA formouA disciplina que estuda a cidade e planeja seu desenvolvimento, o urbanzsmo, rt ciplinas (sociologia, economia, arquitetura), não deve ser confundida com a antiga arquitetura urbana. Ela nasceu da necessidade de enfrentar metodicamente os graves problemas de-
terminados pela modificação do fenômeno urbano, devido à “Revolução Industrial”, e pela consequente transformação da estrutura social, da economia e do modo de vida. O que antes parecia ser uma questão basicamente quantitativa (o rápido crescimento demográfico) revela-se uma questão qualitativa € estrutural; já os primeiros urbanistas reconhecem que a
cidade pré-industrial não é capaz de se adequar às exigências de uma sociedade industrial, O que anda hoje impede a formação de cidades estruturalmente modes nas é o contraste entre,
ma tendência conservadora, que vê o problema em termos quantitativos e propõe soluções de compromisso, e uma tendência reformadora, que vê o problema em termos estruturais e propõe soluções rigorosas. À tendência reformadora é a dos urbanistas, a conservadora é a
186
CAPIUTO QUATRO
O MODERNISMO
quase sempre ligados aos interesses da especulação do solo e dos imóveis dos governantes, o = tada para o interesse da comunidade e a aliança dos interesses e privilégios privados: uma história de programas irrealizados e de intervenções parciais. Ainda hoje pede-se aos urbanistas que façam propostas e projetos, mas o poder de decisão permanece com os políticos
ou os burocratas. Originalmente, a pesquisa urbanista possuía um caráter humanitário: tratava-se de
subtrair a classe operária nascente à condição de extremo aviltamento moral e material, de abominável exploração, em que os empregadores e especuladores obrigavam-na a viver no século passado e início do século xx. Igualmente importante, porém, era a necessidade de
atender bem ou mal às necessidades habitacionais do grande número de pessoas que, abandonando os campos, procurava trabalho nas indústrias urbanas, dando lugar à formação de um enorme proletariado urbano que não encontrava espaço nas estruturas das velhas cida-
des burguesas. Nestas, aliás, vinham se extinguindo gradualmente as velhas classes sociais e as atividades tradicionais das comunidades (artesanato, pequeno e médio comércio etc.).
Já na primeira metade do século xIx, o inglês OWEN e o francês FOURIER propõem a construção de unidades residenciais para a habitação operária, com gestão cooperativa. Pouco a pouco, os próprios empresários se convencem de que as máquinas cada vez mais aperfeiçoadas exigem mão-de-obra qualificada e de que, melhorando a qualidade de vida e de cultura dos operários, melhora-se o rendimento: surgem, assim, as primeiras vilas operárias, em geral constituídas de casinhas unifamiliares “enfileiradas”. Enquanto as propostas ur-
banistas de Owen e Fourier, nitidamente ligadas à nascente ideologia socialista, permanecem em grande parte utópicas, por outio lado executa-se rapidamente o plano de reforma do centro de Paris idealizado pelo barão Haussmann, administrador de Napoleão Ill, como típica intervenção do poder sobre a imagem e funcionalidade urbana: consiste num cintu-
rão de grandes artérias de tráfego (boulevards), obudas com a demolição dos bairros populares. Melhoram o fluxo do trânsito viário, enriquecem a cidade com amplas perspectivas, mas respondem claramente a um interesse de classe. Os pobres continuam a viver amontoados nos velhos bairros, que os boulevards isolam, mas não saneram; em compensação, fa-
cilita-se às tropas a repressão dos movimentos operários e aos proprietários de imóveis a es-
peculação dos terrenos. O modelo parisiense serve de inspiração às principais intervenções urbanas realizadas após 1870 em algumas cidades italianas, embora sem igualar sua eficácia: a abertura da via Nazionale em Roma, da chamada “via reta” em Nápoles. A técnica vândala e ineficaz da “demolição” e do * 'saneamento”, aplicada em larga escala durante o fascismo, a seguir danificou irremediavelmente os centros históricos de diversas cidades italianas, especialmente os de Roma, favorecendo os especuladores e estimulando o cresci-
mento, sem resolver nenhum problema do proletariado urbano, de enormes periferias amorfas; na Alemanha, ocorreram intervenções autoritárias análogas. O contraste é, então, nítido: por parte do poder, deseja-se que a cidade, com seus “monumentos” modernos (sempre de péssima arquitetura) e suas perspectivas espetaculares, se-
ja a imagem da autoridade do Estado; por parte dos urbanustas, pretende-se transformar a cidade mova (respeitando na cidade antiga o documento histórico) no ambiente vital da sociedade, uma sociedade integral e orgânica, onde
classe operária seja considerada não mais
como instrumento mecânico da produção, e sim como parte da comunidade. No início do século xx, T. GARNIER (1869-1948) coloca o problema de maneira radical: projeta uma ci-
té industrielle, cuja estrutura é determinada pelas exigências de distribuição e circulação de uma comunidade 1nterramente dedicada à função industrial. É uma mera hipótese, mas im-
CAPLLO
QUATRO
O MOIMRNISMO
portante porque: 1) parte do princípio de que a função é a única determinante da estrutura urbana; 2) demonstra que, na época industrial, a sociedade deve se reorganizar de acordo
com a função; 3) afirma que os trabalhadores são os verdadeiros cidadãos da cidade do rrabaLho; 4) postula o princípio da incompatibilidade entre a estrutura comunitária da cidade tradicional e a estrutura da cidade na época industrial
E mim
Tony Garnier: Propero de esre
amdustricllo (1901-4)
Após a Primeira Guerra Mundial, os principais arquitetos (Gropius, Oud, Le Corbu-
sier) colocaram explicitamente a questão do projeto do espaço urbano como preliminar e prioritária em relação à da arquitetura: a tarefa do arquiteto é projetar o ambiente, e este re-
sulta sempre de vários elementos coordenados. Se o edifício é apenas uma unidade numa séri, € à construção em série exige a maior utilização possível de elementos industrialmente pré-fabricados, o processo que industrializa a produção de edifícios é o mesmo que transforma a arquitetura em urbanismo. Daí se deduz que o urbanismo não é uma ciência distinta
da arquiterura, mas é simplesmente a arquitetura tal como se configura, como disciplina, na civilização moderna enquanto civilização industrial. A Holanda é o primeiro país onde o
problema da casa na sociedade industrial é colocado no plano político, com a lei Woninguer, aprovada pelo Parlamento em 1901. Em nenhum outro país burguês o princípio do
controle público Holanda, graças sores, ainda hoje A passagem
sobre o uso do solo urbano foi definido com tanta nitidez esclarecida: a a seus regulamentos democráticos e à obra do grande Berlage e seus sucesé o país com o urbanismo mais avançado e democrático do mundo. da arquitetura tradicional para o urbanismo como arquitetura da cidade
não vem imposta de fora: ela se processa no interior da pesquisa artística, como um desenvolvimento histórico desta, entre 1890 e 1910. O Modernismo arquitetônico combate o
ecletismo dos “estilos históricos”, não só por seu falso hstoricismo, como também por seu caráter oficial, que implica a idéia de uma cidade representativa da autoridade do Estado (ou da burocracia governamental); o que ele pretende, pelo contrário, é uma cidade viva, ligada ao espírito de uma sociedade ativa « moderna. A arquitetura não pode continuar vinculada
a um repertório de formas agora despidas de significado, mas deve se adequar às novas for-
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OMODERNISVO
Herdnk Perus Berlige Jnteranr du edificio de Boisa U8I9A-1903) em Amsterdã
ecror Gumard do metrô (1899-
Deradve def uma cennada f) em Pars
CAD FULO QUATRO O MODERNISMO
mas por meio das quais a sociedade expressa seu sentimento do presente, às novas técnicas
que reflerem seu dinamismo interno.
A polêmica entre engenheiros e arquitetos se transforma em contraposição entre arquiretura moderna, enquanto arquitetura da soctedade, e arquitetura acadêmica, enquanto a1quitetura das instrtuições. A ideologia modernista se opõe também à tétrica desolação das cidades deturpadas pela nascente industrialização: os grandes blocos das fábricas com os muros cnegrecidos pela fumaça, as chaminés infectas, os armazéns, os bairros operários miseráveis c fervilhantes.
Contra essa assustadora degradação da cidade, Ruskin « Morris haviam enaltecido a poesia do cortage na floresta; mas era um modo de evitar, e não de resolver o problema. Como Toulouse-Laut ec e os pintores nabis, os arquitetos modernistas consideram a cidade o
local da vida: cabe à arte torná-la agradável, elegante, moderna, alegre. O estilo floraldo Art Nouveau gostaria de revesti-la com sua ornamentação alastrante como uma trepadeira, convertê-la numa segunda natureza. E com a idéia da cidade-paisagem (ou jardim) desloca-se a questão arquitetônica do edifício para o ambiente urbano. O maior bem-estar das classes médias e o menor custo das construções, graças à utilização de produtos industriais, favoreÉ cem a difusão do apuramento estético para a construção civil corrente, O novo gosto arquitetônico evita o bloco, aprecia as linhas e superfícies onduladas, os
grandes vãos arejados, as varandas e sacadas salientes: a casa deve ser luminosa e ventilada, apresentar-se com elegante naturalidade no espaço urbano. À questão urbanista ainda é co-
locada como uma questão de ornamentação e embelezamento urbano, mas, mesmo assim, é importante que se reconheça o aspecto psicológico do problema urbanístico e tente-se dar animação à deprimente paisagem da cidade industrial. Eis um exemplo típico de mentalidade modernista: a ferrovia subterrânea de Paris (o metrô) podia se tornar um pesadelo para os cidadãos obrigados a descer ao subsolo, a viajar em galerias escuras; H. GUIMARD (1867-1942) recorre ao expediente psicológico de orna-
mentar as estações do metrô em estilo floral, e o metrô ganha popularidade, torna-se um dos
aspectos alegres da Paris fin de ssêcle. Os portões da entrada são hastes e corolas de ferro recurvo, sem repetir, porém, a forma de uma flor determinada: daí o duplo significado, enquanto natureza e técnica, daquele feliz símbolo urbano. J. OLBriCH (1867-1908) chega a renunciar a qualquer tipologia e morfologia tradi-
cional, trazendo à arquiretura a desenvoltura linear e cromática da pintura secessionista, especialmente de Klimt. A. GAL DI (1852-1926) modela a forma arquitetônica com a mesma liberdade e fantasia com que um escultor plasma a argila, c reveste-a com mosaicos € esmaltes coloridos. A arquitetura do Art Nouveau deva em grande parte da ideologia de Morris, e assim se liga a toda a problemática da produção: móveis, alfaias, papéis de parede Estabelece-se uma continuidade estilística entre o espaço interno e o espaço externo, também favorecida pelas novas técnicas que, superando a relação estática tradicional, permitem que o vazio pre-
valeça sobre o cheio Da escala mínima do mobiliário doméstico passa-se, sem alterações de estilo, à escala máxima do mobiliário urbano. Neste sentido, é típica a biblioteca da Escola
de Arte de Glasgow, de CH R. MACKINTOSH (1868-1928), cujo espaço arquitetônico é determinadoa partir do interior, dos objetos e móveis, expandindo-se a seguir nas complexas estruturas plásticas do conjunto das prateleiras que, no material e na articulação construtiva, lembram mais as técnicas construtivas da mobília que as da arquitetura. H. van DE VELDE (1863-1957), um dos expoentes máximos do Art Nouveau, não ad-
mite senão um único método de projeto, válido tanto para a cafeteira como para a escriva-
189
ISO
caPÍTU] O QUATRO
OU MODERNISMO
Ono Wagner Fração do metrô em Kurlspluta (1894-9) em Viena,
Joseph Maria Olbrich. Palácio da Secessão (1898-9) em Viena.
Charles Rennie Mackintosh* Escala de Avie de Glasgow (1896-1909)
CAPIILLOQUAIRO
Victor Elorea Case Sofreey4 TRDA 9) em Bruxelas
Anton Gaudi Sagrado Fooeltoa (1882-1926) cm Barcelona
Victor Horta desta
Afarson du Pesple (1897),
em 1966) em Bruxelas
O MODERNISMO
19]
192
CAPTLLO
QUATRO
O MOLLRNISMO
ninha, para o quarto de dormir e para o grande edifício de interesse público, em escala urbanística. V. HorTA (1861-1947), um dos primeiros a perceber as potencialidades estético-
decorativas, e não só técnico-econômicas, do ferro, modula a fachada da Maison du Peuple, em Bruxelas (brutalmente destruída há alguns anos pela especulação), em relação com a es-
pacialidade da praça situada à sua frente, compondo-a como um painel atravessado por aberturas, extremamente sensível à armosfera e à luz. H. P Brri AGL (1856-1934), ao construir a Bolsa de Amsterdã, certamente ponderou que a Bolsa, na cidade moderna, é o edifi-
cio público por antonomásia, como o era o palácio da Comuna na cidade medreval. Ele confere ao edifício um desenvolvimento volumétrico que lhe permite impor-se como um “mo-
numento” no conjunto do centro; mas estuda com extremo cuidado as diversas qualidades da trama da alvenaria, o desenho dos detalhes, a decoração geralmente engastada no plano,
integrada na superfície. Dois registros de valores: uma vasta orquestração de volumes para converter o edifício num elemento dominante da paisagem urbana, uma delicada decora-
ção para proporcionar ao transeunte a sensação de estar naquela paisagem, de captar seus detalhes próximos, como alguém que, subindo por uma colina, vê o volume destacar-se à distância no céu e, perto de si, as pedrinhas e as flores na trilha. Berlage foi também o primeiro
a conceber os edifícios como componentes de um contexto urbano não uniforme, e sim articulado. Todavia, sua postura frente ao novo protagonista da cidade, o proletariado, mantém-se humanutária € paternalista. Para os arguitetos modernistas, as duas dimensões do urbanismo consistem na comu-
nidade e no indivíduo; entre esses dois termos, não deve haver oposição, e sim harmonia. É também a concepção de OTTO WAGNER (1841-1918), embora para ele a referência históri-
ca seja o Neoclassicismo, entre pomposo e burocrático, da época de Maria Teresa. O termo
distante não éa comunidade, como para Berlage, mas sim o Estado, com a rigidez de sua administração; o termo próximo, como na Caixa Econômica Postalde Viena, é a decoração sem retórica simbolista, à maneira de uma casa senhorial. Ao contrário da arquitetura oficial italiana (pense-se no grotesco Palácio da Justiça em Roma), que reflete o mau gosto de uma pe-
quena burguesia orgulhosa pela conquista do pode: burocrático, o motivo domunante na arquitetura de Wagner é o gosto, ao mesmo tempo sóbrio e refinado, de uma aristocracia que desempenha escrupulosamente tarefas governamentais. Não é nada surpreendente que Olbrich, discípulo predileto de Wagner, interprete a outra face, mundana e delicadamente irô-
nica, dessa sociedade, descrita com tanta sutileza por Musil. Poucos arquitetos tiveram uma influência comparável à de Wagner. À escola (comumente conhecida como Wagnerschule) que, entre 1894 e 1912, dirigiu em Viena com rigor e, ao mesmo tempo, ampla visão fo: um centro de irradiação, e pode ser considerada como o equivalente da Secessão vzenensede Kli-
mt. À influência de Wagner e de sua idéia de “fazer moderno” e responder a todas as solicitações da sociedade da época, sem renunciar aos que, para ele, eram os grandes temas institucionais da arquitetura, foi muito além de Viena e da Áustria, a ponto de poder ser vista co-
mo o principal agente de uma internacional arquitetônica. Nas residências da elite burguesa construídas por A. PERRET (1874-1954), com sua técnica de concreto (não-armado), que obtém a decoração a partir da plástica da argamassa modelando as formas em negativo, reencontra-se a armosfera da Paris elegante do início do século. Mais do que por uma verdadei-
ra reforma urbanista, os arquitetos modernistas se interessam pela psicologia da cidade; era exatamente isso que, em 1889, sugeria Camillo Sitre, o primeiro teórico do urbanismo, ao condenar as soluções esquemáticas que só se lêem no projeto, ao passo que na cidade “é artisticamente importante apenas aquilo que pode ser abarcado com o olhar, sei visto”. Era a nova teoria dos valores visuais aplicada à cidade. No entanto, Perrer também emprega as téc-
Otto Wagner Edeficeo det Caixa Ecomonnca Passal (1904 6) em Viena.
Auguste Perrer Casa na rue Frankten 25 bis(1903) em Paris
194.
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CAFTULO QUATRO O MODPRNISMO
nicas mais modernas, convencido de que podem eliminar o ecletismo dos “estilos” e levar a +
uma arquiterura moderna que, mesmo se libertando da tradição, conserve a essência de uma
“construtividade” moderna originária e perene. A única cidade espanhola em que havia um princípio de desenvolvimento industrial era Barcelona. Gaudí percebe o contraste entre esse impulso modernista e a tradição espanhola, e, católico convicto, não se propõe a descrever a psicologia, e sim a interpretar a vocação urba-
na. A igreja da Sagrada Família, na qual trabalha de 1882 até sua morte, pretende expressar a
devoção que se eleva de toda a cidade a Deus, “Ergue-se sobre uma base neogótica e, passando por portais Art Nouveau, termina com pináculos em estilo cubista” (Collins) e, com suas
agulhas, suas galerias, suas vias subterrâneas transitáveis, parece querer hospedar toda uma comunidade em movimento, como um imenso formigueiro. Tal como as catedrais góticas, ela deve revelar, na variação das formas, a sucessão das gerações e dos estilos; visto em conjunto, o edifício aparece como algo que se desfaz ou que se forma, dotado de um ciclo temporal Dir-se-1a concebido para jamais ser concluído, para que cada geração possa levá-lo avante. Fi-
xa-se no espaço, porém, com os volumes que se erguem como torres, as inserções plásticas € cromáticas. Nenhum destaque para as soluções técnicas, embora expostas e ousadíssimas: a
técnica é apenas o instrumento, a mecânica da prática ascética. Gaudí se opõe radicalmente
ao racionalismo da civilização industrial — a arte, em contraposição, é irracionalidade pura,
sua técnica é a técnica do irracional. Contudo, não é símbolo; o símbolo é intelectualista Sua arquitetura não pretende ser religiosa, esim sacra. não revela Deus, mas oferece-lhe o tormento existencial do homem, entrega-lhe a cidade, como num famoso quadro de El Greco. Também por isso não tem conteúdos profundos, entrega-se total e imediatamente à percepção: a forma não reveste, mas realiza a estrutura; a cor não recobre, mas se identifica com a forma.
Devido a essa visualidade expressiva, e não de impressão, a arquitetura de Gaudí, tal como a pintura de Van Gogh e de Gauguin, foi uma das raízes do Expressionismo. Um dos componentes do Modernismo é a arquitetura industrial, que se desenvolveu na Alemanha, onde o processo de industrialização se iniciou tarde, após 1870, no quadro do Kulturkampf bismarckiano. Ao fator tecnológico soma-se um fator ideológico: o trabalho industrial, entendido como luta e triunfo do espírito sobre a matéria, será o meio pelo qual o povo germânico cumprirá a função hegemônica e universal à qual se julga predestinado.
Assim se recompensam os trabalhadores exploiados pelos patrões: saudando-os como titãs e heróis. À fábrica é o local onde realizam sua missão histórica. Por toda parte, a crescente
complexidade dos trabalhos industriais exige construções mais articuladas do que os primrtivos galpões para as máquinas; para H. POELZIG (1869-1936), porém, a fábrica é uma mas-
sa imponente, geometrizada nos perfis agudos, e na qual os volumes são distribuídos de maneira a dar a impressão da lenta preparação de uma máquina gigantesca. Mesmo PETER
BEHRENS (1868-1940) — que, no entanto, quando jovem, esteve em contato com a Seces-
são vienense e com Olbrich — evoca nos torreões cilíndricos das oficinas da Frankfurter
Gasgesellschafi os tipos da fortificação medieval; contudo, será justamente ele que, logo de-
pois, eliminará o simbolismo tecnológico e criará a fábrica da AEG de Berlim, o protótipo
da arquitetura industrial claramente funcional. Foi também um dos maiores expoentes do
Werkbund alemão: um artista tenso como os expressionustas do início do século e, a seguir,
um dos grandes pioneiros do programa racionalista.
Nos Estados Unidos, o problema urbanista não foi prejudicado pela história antiga e pelo caráter monumental das cidades, as quais, até a Declaração de Independência (1791),
não passam de assentamentos de colonos, geralmente como uma rede uniforme de blocos
dispostos em ângulo reto entre vias ortogonais. No início do século xIx, percebe-se em qua-
. CAPITULO QUATRO
o O MODERNISMO
se todas as capitais da federação a necessidade de estudar planos de desenvolvimento: é típico o de Nova York (1811), que prevê uma malha uniforme de artérias longitudinais (4ve-
nues) e transversais (streets) sobre toda a península de Manhattan, muito mais ampla do que
exigiam mo um maioria atingem
as necessidades da época. Logo será ocupada e superada, e toda a área se definirá coenorme centro de negócios, enquanto os bairros residenciais, constituídos em sua de cotrages, serão deslocados para a periferia Na cidade dos negócios, as construções alturas vertiginosas: para aproveitar melhor o terreno, diminuir as distâncias, con-
centrar os serviços, mas também para ostentar O poderio técnico e financeiro das empresas.
Já no final do século passado o arranha-céu é o elemento caracterizador da paisagem urbana americana. Não é o único: a sociedade americana, cujas raízes históricas são menos
profundas que as da européia, é uma sociedade tanto de serviços quanto de funções — em pouco tempo, as cidades americanas se tornam as mais equipadas em matéria de escolas, hospitais, fábricas, estações, aeroportos, teatros, auditórios, museus etc. E, como a agricultura também se industrializa rapidamente, a estrutura do território (pontes, viadutos, ferrovias, estradas de rodagem etc.) não é menos importante do que a estrutura urbana. À cidade não é senão um núcleo de máxima concentração num território altamente urbanizado.
A arquitetura americana depende da curopéia desde a segunda metade do século xix. À ocasião que atrai o empenho dos arquitetos, quase rodos educados na Europa, a uma pro-
blemárica tipicamente americana é a necessidade da reconstrução de Chicago após o grande incêndio de 1871. A importância do tema e a urgência em resolvê-lo impõem soluções técnicas novas e ousadas, como, por exemplo, a estrutura metálica do primeiro arranha-céu, realizado por LF BARON JENNLY. H. H. RICHARDSON
(1838-86) é o primeiro a perceber que o fator dimensional rem
uma importância decisiva na tessitura da cidade americana, e que uma grande massa exige um determinado tipo de estrutura que não pode ser somente a ampliação das estruturas do sistema construtivo europeu. O grande bloco das Lojas Marshall, Field & Co. lembra apenas
Peter Bebrens filbnica À EF
Sala de omeanitagem da (1909) em Berlim
Peter Behrens: Zompedias pro, pjetadas parit a fabricaÀ É G (1909 10).
195.
196
CaPÍTULOQUAIRO
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Wilham Le Baron Jenrev Aome Imurastce Braalteng(:883-3) em Chicago
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Henry Richardson Lojas Marsball, tretd é Co (18857) em C ucago
CATTUICGATRO
vagamente a articulação românica das massas que certamente lhe serviu de inspiração: os grandes arcos que formam a faixa mediana do edifício já permitem perceber na superficie a profundidade dos espaços internos, e valorizam a rude qualidade da alvenaria e sua força de captação luminosa. Não é a dimensão maior, e sim à poderosa estrutura de imagem que dá
relevo ao bloco de Richardson num conjunto de blocos dimensionalmente semelhantes, mas esmuturalmente mais frágeis. |. SULLIVAN (1856-1924) é uma figura complexa: inteiramente dedicado à pesquisa de
“estilo” que o apaixonou nos anos de estudo na Europa, e ainda assim convencido da necessidade de uma técnica moderna e inovadora. No Audstorsum de Chicago, ele analisa, apio-
tunda e 1efina o tema das giandes arcadas de Richardson; a seguir, enfienta decididamente o rema do arranha-céu como protagonista da cidade dos negócios. Até então o arranha-céu
na prática, uma sobreposição de andares, um edifício comum com sua altura multiplicada des ou vinte vezes. com a conseguente ruptura de todas as relações proporcionais, Sul“van desloca a função de sustentação das paredes para as estruturas internas; as fachadas do
b oco se tornam simples painéis transparentes, que a decoração modula e define em relação àuz O edificio se torna um organismo unitário. uma “figura” urbana, sem romper a visível «uv tinuidade do espaço em que se insere. Sullivan é explícito: nos centros urbanos america;
a
e
nos. onde tudo é movimento de pessoas empenhadas em fazei funcionar à gigantesca má-
quina dos negócios. os espaços internos são também espaços da cidade — o vaivém das pesSOS Nas IUas continua nos grandes 4a/!s dos buildings, no incessante sobe-e-desce dos elevadores, nos corredores, nos escritórios. O edifício não interrompe o movimento da cidade, a
arquitetura não fecha nem segrega, e sim filtra e intensifica a vida, À arquitetura de Sullivan pao só é concebida como função urbanista, como também é o produto de planejamento urbano, À vida não se resume aos negócios, após a extenuante jornada de trabalho, as pessoas se retiram para os cortages na periferia da cidade, reencontram (ou se iludem em reencontal) um contato saudável com a natureza: as “zonas residenciais” assumem o lugar, como fatores complementares da vida da grande cidade, das antigas áreas campestres. E L. WRriGH1 (1869-1959) não vai à Europa para estudar; não se pode aprender abstitamente a arquitetura, que é um fato da vida e deve nascer espontancamente de circunstâncias concretas e específicas de tempo e lugar.-Forma-se com Sullivan, mas logo sente a necessidade de retomar a questão em suas raízes, de redefinir a relação primeira e essencial do
homem com o mundo. O primeiro campo de pesquisa não é o building, c sim o cottage, o qual, porém, não é o refúgio mais ou menos agreste após o trabalho na cidade, é uma reali-
cdide ssmultancamente urbana e natural. Asssm como ele rejeita qualquer tipologia e morfologia a priori, histórica, também rejeita o esquema a prior: da cidade. Já nas primeiras casas particulares de Wright, em torno de 1895, a forma não se mimetiza com a paisagem: tem forres estruturas horizontais e verricais, uma plástica compacta com nítidas contraposições
ac planos, uma decoração pi ofusa e ostensiva, mas não sobreposta, e sim entalhada nos volumese, por vezes, até de sustentação. Ássim como o “manufaturado” recebe destaque no exteror, analogamente há no interior paredes e pilares de mjolos, de grandes pedras à vista; a gcumetra da obra humana se impõe à natureza, a natuteza entra na vida humana. À planta
1ã9 se coaduna com esquemas distributivos habituais, é livre, determinada pela necessida-
de que sente o homem de viver em espaços mais amplos ou mais restritos; a estrutura é consurinda por núcleos plásticos aruculadores, dos quaus se projetam os planos de alvenaria. Não há lação com um espaço geométrico e abstrato, e sim com o local específico, sempre que possível,
'
Wright utiliza materiais locais. OO edifício, 3 com sua relação de verticais e horizonOriZO ticais ação o
tais, de planos e volumes, ressalta as linhas estruturais do local, dá-lhes precisão: é : “esse
O MOSPANSSO
1
krank Lloyd Wright
(1909) em Chicago
Kobre House
Efe E E ma
Lots Sullivan Zojas Croosom Parte e Senti (1899 1904) em Chicago
CAPÍTULO QUAL HO
determinado local”, mas reestruturado pelo homem para torná-lo um local da vida. É po
isso que a “manufatura” recebe destaque: a natureza é o material com que os homens fabricam o espaço. Posteriormente, Wright escreverá páginas candentes contra a “megalópo-
e” industrial; projetará uma cidade ideal (Broadacre ctty) onde se assegura a cada morador
um contato diseto, pessoal, físico com a realidade natural. Ele deresta a cidade como forma histórico-política de concentração do poder; condena o arranha-céu como expressão do poder econômico americano, assim como a cúpula de São Pedro é a expressão do poder religioso da Igreja romana. Apesar disso, a matriz de toda a sua longa e prodigiosa atividade de ar-
quiteto é urbanista, ou melhor, pan-urbanista: o ideal que ele se estabelece é, com efeito,
r mesmo os bosuma arquitetura tão forte, em sua realidade formal, a ponto de urbanizaaté território. de sim e cidade, de escala em projeta não Já ques, as cascatas, os desertos.
ART
NOUVEAU
Expressão típica do espírito modernista é o gosto ou o “estilo” que recebeu o nome de Art Nouveau.
Do ponto de vista sociológico, o Art Nouveau é um fenômeno
novo, impo-
nente, complexo, que deveria satisfazer o que se acredita ser a “necessidade de arte” da comunidade inteira. Interessa a todos os países europeus e americanos onde se alcançou certo nível de desenvolvimento industrial. Instaura entre eles um regime cultural e de costuo e o mes quase uniforme, apesar das ligeiras varrações locais, e de caráter explicitamente moder-
no e cosmopolita. É um fenômeno tipicamente urbano, que nasce nas capitais e se difun-
de para o interior. Interessa a todas as categorias dos costumes: o urbanismo de bairros n-
teiros, a construção civil em todas as suas upologias, o equipamento, urbano e doméstico, a
arte figurativa e decoraniva, as alfaias, o vestuário, o ornamento pessoal e o espetáculo. Pelo modo como se propaga, é uma verdadeira moda, no sentido e com toda a importância (já intuída e explicada por Baudelaire) que a moda assume numa sociedade industrial, inclusive em termos econômicos, como fator de obsolescência e substituição dos produtos. É o gosto da burguesia moderna, sem preconceitos, adepta do progresso industrial, que considera como um privilégio intelectual próprio a que também correspondem responsabilida-
des sociais. Penetra, na verdade, em todas as camadas da sociedade burguesa: a alta burgue-
sia possui os arquétipos, trabalhados por artistas e artesãos qualificados em mareriais nobres, a média ca pequena bur guesia consomem produtos do mesmo upo, mas banalizados pelos processos repetitivos da produção industrial c pela qualidade inferior dos materiais Apresenta-se como estilo “moderno”, isto é, de “moda”. Como a indústria acelera o tempo da
produção, é preciso acelerar o tempo do consumo e da substituição. À moda é o fator psico-
lógico que desperta o interesse por um novo tipo de produro e a decadência do velho. Assim
cc o Art Nouveau, enquanto estilo moderno”, corresponde ao que, na história econômica da “ civilização industrial, é chamado de “o fetichismo da mercadoria”. Independentemente das variações de tempo e espaço, o Ayt Nouveau tem certas características constantes: 1) a temática naturalista (flores e animais); 2) a utilização de motivos icônicos e estilísticos, e até tipológicos. derivados da arte japonesa; 3) a morfologia: arabescos lineares e cromáricos; preferência pelos ritmos baseados na curva e suas variantes (espi-
ral, voluta erc.), e, na cor, pelos tons frios, pálidos, transparentes, assonantes, formados por — a “4 zonas planas ou eivadas, irisadas, esfumadas; 4) a recusa da proporção e do equilíbrio simé-
trico, e a busca de ritmos “musicais”, com acentuados desenvolvimentos na altura ou laigu-
ra e andamentos geralmente ondulados e sinuosos; 5) o propósito evidente e constante de
O MODERNISMO
199
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202
CAPÍTULO QLATRO
O MODERNISMO
comunucar por empatia um sentido de agilidade, elasticidade, leveza, juventude e otimismo
A difusão dos traços esuilísticos essenciais do Art Nouveau se dá por meio de revistas de arte e moda, do comércio e seu aparato publicitário, das exposições mundiais c espetáculos. Os temas recorrentes da liberdade expressiva, da criatividade, da poesia, da juventude,
da primavera e da floração explicam-se pela rápida ascensão da tecnologia industrial; instituem-se suas futuras possibilidades quase ilimitadas, tem-se a impressão de que se está no alvorecer de uma nova era. De faro, as máquinas já estão razoavelmente apei feiçoadas, a pon-
to de poder executa: com notável precisão projetos feitos por artistas, e os empresários recorrem aos artistas também porque a indústria ainda não dispõe de uma metodologia e um aparato próprio de projetos. Além disso, acontece de o artista ou o artesão qualificado intervir no produro semipronto. ocupando-se das fases finais da execução. O Art Nouveau é um estilo ornamental que consiste no acréscimo de um elemento hedonista a um objeto útil; já Ruskin afirmara que a “poesia” da arquitetura reside snteiramente no ornamento, pois apenas para além do útil é que pode surgir um valor espiritual. É fá-
cil observar, porém, que, no desenvolvimento histórico do Art Nouveau, o elemento ornamental perde progressivamente o caráter de um acréscimo sobreposto à conformação funcional ou instrumental do objeto (tectônica). inclinando-se a adequar o próprio objeto como ornamento e assim se transformando de superestrutura em estrutura, À funcionalidade (o útil) se identifica com o ornamento (o belo), porque a sociedade tende a se reconhecerem
seus próprios instrumentos — é justamente este narcisismo que revela o limite esteticista de sua eticidade programática. O ambiente visual que o Art Nouveau tece em torno da sociedade não só favorece sua atividade, como também lhe oferece um reconforto em sua labuta, fornecendo-lhe uma imagem idealizada e otimista. a nascente civilização das máquinas não a condena a um mecanicismo obscuro e opressor; pelo contrário, libertando-a da necessidade e do trabalho, permitirá que ela plane nos céus da poesia.
Mas qual sociedade? Apesar da amplitude de sua fenomenologia e seus diversos níveis, na imagem do mundo traçada pelo Art Nouveau não há nada que revele uma clara cons-
ciência da problemática social inerente ao desenvolvimento industrial, Parece, pelo contráno, que sc pretende dissimular a dramática condição de sujeição ao capital, de aviltamento econômico e moral, de desesperadora “alienação” da nova classe trabalhadora, protagonista do progresso tecnológico. O Arr Nouveau é ornamentação urbana; mas o entusiasmo
pela nova “primavera”, que invade os centros dos negócios e os bairros residenciais das cidades com adornos florais e trepadesras, interrompe-se ao se miciar o subúrbio das fábricas
e dos intermináveis guetos da habitação operária. A explosão desse ornamentismo ligado à produção industrial de bens materiais se justifica, não tanto pelo desenvolvimento tecno-
lógico, e sim pela situação econômico-social, Como claramente explica Marx, o pilar da in-
dustrialização capitalista é a mais-valia, isto é, a diferença entre o preço do produto e o custo da força de trabalho. Procura-se uma aparente justificativa para o escândalo do lucro excedente, que continua a aumentar o capital, acrescentando e a seguir integrando ao pioduto um valor suplementar, representado justamente pelo ornamento; um valor, ademais, que é estimado em termos não de força de trabalho, e sim de “gênio criativo”. Mas o que é este gurd imponderável, senão a contribuição do artista, como expoente da classe burguesa dirigente, à produção indusrrial? E uma contribuição que, contrapondo o trabalho criativo ao mecânico, torna o intansponível abismo entre classe dirigente c classe operária ma-
nufesto e palpável, até mesmo na forma das coisas que consuruem o ambiente da vida? É signuficanvo que o inflamado socialismo de Morris, ao longo da ocoriência histórica do Art Nouveau, vá se dilundo aos poucos num vago é utópico humanitarismo, como sempre, a
1.
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Hecror Guimard O portão do Caste! Beranger (1894 8jem Paris
August Endell- Atelier Fletra (1897) em Mumgue, destruido pelos nazistas cm 1944 como exemplo de arte degenerada
204
CAMEULO QUATRO O MODERNISMO
burguesia capitalista neutraliza as oposições, apropriando-se de seus argumentos ideológi-
cos e tirando-lhes a vitalidade. O Art Nouveau, visto em conjunto, não expressa em absoluto a vontade de requalificar
o trabalho dos operários (como pretendia Morris), mas sim a intenção de utilizar o trabalho dos artistas no quadro da economia capitalista. Por isso, o Art Nouveau nunca teve o caráter
de uma arte popular, e sim, pelo contrário, de uma arte de elite, quase de corte, cuyos subprodutos são graciosamente ofertados ao povo: é o que explica sua constante remissão ao
que se pode considerar um exemplo de arte integrada aos costumes, o Rococó, e sua rápida dissolução quando a agudização dos conflitos sociais, que leva à Primeira Guerra Mundial, desmente com os fatos o equívoco utopismo social que lhe servia de base
Gustav Klimt As gê idades da mulher (1908) rela,1 80x 1,80m Roma,Gallena Nazionale d Arre Moderna
CAPÍTULO o
Á
ÃW 8 É R 2x et Charles Renmie Mackintosh: Brblsoreca de Escola de Arte de Glasgow (1907-9)
Alphonse Mucha. Medéra (1898), brografia, 2,03 -4,77m
Paris. Bibhothéque
du viusce des Arts Décorarifs
Emile Galé” Vaso com iruração de ametista (1889 95)
QLAIRO O MO sMO MoprNiiMo
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madeira com imeruscações de madrepérola Nancy, Musée de VEcole
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PARIS 1900
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Inerve Roche Lote !utler(1893), bronze, OU 94 m de altura Paris, Muséc des Arts Décoratifs
Charles Rennu Mackintosh Jó
(1902) prata e pérolas Edimburgo coleção Sturrok. Dunga Tor Framiespicro do exempla de D Encyelopédie die stécte para a Expunção Lamersal de Par s de 1900
Exposição Unerorsal de Parn de 4889 Pans, Umon Cenrrade Devon coleção Macrr
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CAPRTULO QUATRO
Creu
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Victor Horta Deralhe da clarabora da escada do Hotel Autreca (1899-1903) hoje destruido, em Bruxelas
Henry van de Velde Villa Blneneoatf (1893-61 em Bruxctas
2º
208
CAPÍLULO QUATRO
O MODERNISMO
A
PINTURA
DO
MODERNISMO
Na época do Modernismo, na passagem entre os séculos XIX e xx, discute-se muito a fi-
gura psicológica, social, profissional do artista, indício seguro da crise de sua função concreta na sociedade Os grandes pesquisadores como Cézanne, os inovadores como Van Gogh continuam a ser ignorados, mas não mais por culpa dos “acadêmicos”, que por toda parte es-
tão em baixa: a sociedade moderna, que se vangloria de ser avançada, quer artistas avançados, contudo não lhe agrada a arte que levanta problemas. Governos, municípios, bancos se
tornam mecenas, encomendam grandes decorações em “estilo moderno” para seus edifícios. As grandes feiras de exposições, que celebram o progresso industrial, oferecem oportunidades de sucesso mundano a arquitetos, pintores, escultores, e estimulam a busca de qualida-
de estética no produto industrial. Como a rica burguesia industrial não tem um interesse efetivo pela arte, ocupando-se dela apenas por motivos de prestígio social, ela utiliza o inter-
mediário do mercado: alguns mercadores dotados de intuição e gosto, como o francês Vollard, muitas vezes se antecipam à crítica na descoberta dos valores. Sabem que artistas ignorados ou ridicularizados pela crítica oficial (que era, afinal, a dos jornais) e pelo público serão celebrados mais tarde, e suas obras, que podem adquirir a um preço baixo, alcançarão uma grande valorização; aliás, nos Estados Unidos já estão sc formando as primeiras grandes coleções, e os compradores americanos, menos toldados pelos preconceitos de uma cultura oficial, são mais abertos e corajosos do que os europeus. Surgem nas capitais os primeiros museus de arte moderna, naturalmente destinados a consagrar as glórias daqueles que, para a burguesia no poder, são seus “ gênios”. Nasce (1895) a Bienal de Veneza, para incen-
tivar a comparação e rivalidade entre as nações: nas três primetras décadas do século, cons-
titui o centro do modernismo moderado e desde então oficializado. Os artistas preferidos pelo público têm seu tipo psicológico. como personagens que 1epresentam um papel: assumem o ar de iniciados, ogêmos inspirados e rebeldes, mas geralmente estão prontos a fazer todas as concessões. Na França, existem artistas de primeira grandeza, quase todos os impressionistas ainda estão vivos e em atividade; todavia, os dois
personagens da época são Rodin e Boldint: Rodin, o escultor de pensamentos profundos, o Michelangelo da belle épogue; Boldini, o retratista mundano, brilhante, superficial, São as duas faces da mesma moeda. Na Itália há Previan, que assume ares de progressistas; sua contraparte é Segantini, com ouvir as vozes da natureza. No início do século tística, um país europeu: o centro é justamente
teórico, de combatente em todas as batalhas seus ares de ascera solitário, empenhado em xx, a Itália já é, no que se refere à cultura arPreviati, invocado pelos futuristas, com Boc-
ciom, Russolo, Carrã e Aroldo Bonzagni, desenhista de talento extremamente brilhante, porém falecido prematuramente. A Alemanha, quem não o sabe”, tem uma alma romântica, Bocklin, e uma alma alegre e jovial, Von Stuck. Com o entusiasmo dos neófitos, a Espanha comparece na cultura européia com um movimento modernista catalão que, tendo à frente Picasso, produzirá muitos dos matores artistas do nosso século. O movimento se di-
funde por toda parte, na Europa central e nos países do leste europeu; nunca existiu uma cultura figurativa verdadeiramente européia como nas primetras décadas do século. O artis-
ta-personagem tem uma razão própria de ser: ele encarna a vocação artística que a rica burguesia industrial tem a certeza de possuir, mas ao mesmo tempo de precisar, a contragosto,
sacrificar ao imperativo categórico dos negócios. Os artistas de fama explícita geralmente se declaram contrários à burguesia capitalista, não mais por razões ideológicas, e sim porque
CAPÍTULO QUAIRO
O MODERNISMO
Giovanni! Boldini Mademprselle Lanthelme (1907) tela 2.27 = |,18m Roma, Galleria Nazionale d' Arte Moderna
209
Aubrey Beadslo / ar birse ca boucle, de Saito de Ouar Wilde (1893, gra
Lerdinand Hodler drorita (1895, [h” 245m Berna Kunsmuscum
Jan Ioorap Asses esposaste 1892) pintadose nanquim, U 19+126m Riksmuscum Kroller-Maller
tua
gessas O)
Rod'n' Dasarde Auguste DIE marmor UR(1886) E NENE
Gustav Ame Sure Rinrps (V89R). cetalhe tela 1,45» 1,46m Via Oesserreichasc we Galerie
Hana von Stuck Dançarrias (1896) tela Selivc infant, coleção parucular
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ao
CAPITULO
QUATRO
O MODERNISMO
Arnold Bockln. A she dos mortos (após 1880),
madeira, 0,80 x 1,50m Leipzig, Museum de! Bildenden Kunste
suas belas almas são perturbadas pelo materialismo dos negócios, sendo a própria burguesia que os quer antiburgueses, um pouco por complexo de culpa, um pouco por lhe parecer cômodo delegar aos artistas as coisas do “espírito”, das quais não dispõe de tempo para se ocupar. O suíço E HoDLER (1853-1918) é um dos artistas mais aclamados da época — não se pode negar que tivesse alguma notícia do que estava se passando na arte, em um nível bem
superior ao seu. É o tipo de bardo, de artífice incansável, que forja dardos de ouro e lançaos, sabe-se lá por que, ao sol. Os personagens de sua pintura decorativa, tão adequada às sedes dos governos e dos bancos cantonais, são montanheses e lenhadores, toda a progênie de
Guilherme Tell: a costumeira homenagem ao herói popular que combate pela honra e liberdade da pátria, e se abstém de apresentar reivindicações salariais. Ou, então, adolescentes, virgens, anjos, com significados simbólicos intercambiáveis. Quanto ao estilo, ele se faz de grande desenhista, como seu êmulo 1taliano A. DE CAROLIS; na verdade, sua austera conci-
são é apenas uma estilização decorativa. A Holanda tem J. Tooror (1858-1928), místico profissional, apaixonado pelos pré-rafaelitas ingleses, ligado àquela espécie de maçonaria,
aristocrática e hermética, em que consistia o grupo bem organizado dos Rosa-Cruzes, sendo a seguir atraído pela órbita mais vital do “Modernismo” sério de Van de Velde. Nos países da Europa central, os arustas modernistas formaram grupos que assumiram o nome de Secessão, aludindo à separação radical da tradição acadêmica: em 1892 funda-se a Secessão de Munique, tendo à frente Franz von Stuck; em 1893, a Secessão de Berlim, lide-
rada por Max Liebermann: em 1897, a Secessão de Viena, que publica a revista Ver Sacrum e tem como líder Gustav Klimt. Assim se determina, paralela à corrente francesa ligada ao
Impressionismo, uma cultura figurativa centro-européia. G. KLimi (1862-1918) é um arrista extremamente culto e sensível, refinado às raias da
morbidez, mas também hgado a uma fórmula decorativa própria, cheia de implicações sim-
bolistas. Dir-se-1a consciente da lenta e imelutável decadência da sociedade, sentindo-se seu
CAPFTULO QUATRO
Vdvard Munch Ansedade (1894) tela, (1,93 + 0.73 m. Oslo, Munch Muscer
melancólico cantor: a sociedade do velho império austro-húngaro, que agora conserva apenas a lembrança do antigo prestígio de instituição teocrática Klimt sente profundamente o fascínio desse crepúsculo histórico; associa a idéia da arte e do belo à da decadência, da dis-
solução do todo, da precária sobrevivência da forma ao final do conteúdo. Seu pensamento se dirige à arte bizantina, esplêndida c exangue, na qual se reflete um processo histórico aná-
logo: o declínio de um impéno teocrático, a sobrevivência da forma estética para além da morte histórica. Numa profusão de ornamentos simbólicos, mas cujo significado não subsiste sequer na lembrança, Klimt desenvolve os ritmos melódicos de um lincarismo que aca-
ba sempre por voltar ao ponto de partida e se fechar sobre si mesmo; acompanha-os com as delicadas e melancólicas harmonias das cores pálidas, cinéreas, peroladas, com agonizantes brilhos de ouro, de prata, de esmalte. Vivendo com extrema sensibilidade essa situação ripicamente austríaca (como Musil na literatura, todavia sem sua ironia). Klimr, quase invo-
luntariamente, toca o ponto neviálgico de uma situação bem mais ampla, européia: a arte
é o produto de uma civilização agora extinta, e na nova civilização industrial não pode sobreviver senão como sombra ou lembrança de si mesma. Sua voz não é a única: outros na Europa, embora vivendo num ritmo que crêem progressista, parecem perceber a inviabili-
dade, a inevitável decadência da arte na sociedade tecnológica « negocista que se vem formando. É o caso de WHISTI LR na Inglaterra, o qual, em sua fase mais tardia, renega o realismo dos primeiros tempos (quando era amigo de Courbet), reencontra o lirismo cromático do último Turmer, procura na arte japoncsa a evasão numa outra civilização; encarna o dân-
di de Baudelaire ou, num outro plano, de alguns artistas derivados da corrente pré-rafaelita, como Burne-Jones ou, no limite extremo do esteticismo, BEARDSLEY (1872-98), desenhista e
ilustrador para quem o desenho é poesia, c a poesia é esteticismo e erotismo “malditos” — co-
mo em Oscar Wilde, de quem Beardsley pode ser considerado o paralelo figurativo. A tensão entre os artistas e a sociedade burguesa bem pensante apresenta tons mais ásperos no norte da Europa, e espectalmente após os primeiros contatos com o Impressionis-
mo francês, cuja pureza despreconceituosa é contraposta à hipocrisia e ao conformismo im-
perantes. É uma passagem delicada e importantíssima na história da cultura artística no fi-
nal do século xIx e início do século xX: é ali que se aplica o “espírito de verdade” do Impres-
sionismo para a exame e o desvendamento não mais do mundo externo, mas do interior da psicologia individual e coletiva. A experiência impressionista do belga ] EXSOR (18601949) e do norueguês F. MUNCH é uma das grandes fontes do Expressionismo alemão.
O MODERN EMO
2 13
2i;4
CAPÉI
CARA
TRO
O MODERNISMO
O caso de Ensor é significativo. Os anos relevantes de sua longa carreira são os primeiros, até 1900 ou um pouco depois, quando é combarido e ridicularizado pelos próprios expoentes
do Modernismo belga; são os anos em que agride com maior violência a sociedade de sua época, desvendando por trás da respeirabilidade burguesa os segredos do inconsciente “de classe”, a orgia grotesca da superstição e do vício, o obcecante medo da morte. À seguir, ele é adotado pela própria sociedade que ataca, e agora pede-lhe que continue, que se repita, não se sabe se
pelo prazer masoquista de se ver atacada ou para se mostrar tolerante, liberal, superior. O fato é que o próprio Ensor é e se mantém como um burguês do interior (nasceu e viveu em Ostenda); seu espírito cáustico, seu humor negro também pertencem à tradição flamenga, remontam a Bosch e Breughel; seu esulo incisivo deforma, mas não transforma a pintura tradicional,
exorta as pessoas a reavaliar, mas não a modificar a idéia que têm a respeito da arte. Em suma, sua pintura, que pretende ser a crítica, é antes a autocrítica da burguesia. Ensor, típico caso do “barroco moderno”, como dirá Mondrian, não é senão a outra face, escura e sombria, da pintura confiante e glórificadora do Modernismo. No entanto, foi o primeiro (e ainda não se fa-
lava em Freud) a esquadrinhar com a pintura as profundezas do inconsciente, a descobrir o fervtlhar das imagens sob a cristalina clareza da forma. Para tanto, teve de subverter a identidade
entre arte e consciência posta pelos impressionistas; mais exatamente, o otimismo, a limpidez da vista e do espírito, o gosto pagão de Renoir pela vida, Horríveis larvas ao invés de belas don-
zelas, esqueletos ao invés de rósea nudez, velhos trapos ao invés de flores; se para Renoir os acordos por dissonâncias eram um prolongamento da harmonia cromática, para Ensor continuam, devem continuar como dissonâncias estridentes, assim como o signo deve se libertar da
cor, assumii uma vitalidade própria, agressiva e furiosa. Por vezes, como em A queda dos anjos rebeldes (1888), ele chega à destruição da figura, à rebelião dos signos frente à obrigação de sigmificar. Mas não é, como se chegou a dizer, o anúncio precoce do não-figuraLivismo: é apenas
o prelúdio (e provavelmente a fonte) daquele gosto amargo pelo indeterminado ou pelo des-
ferro que logo prevalecerá na pintura de Kokoschka (ourro típico caso de “barroco moderno”)
James Ensor A quede dos anjus rebeldes(USSE)
detalhe, tela, 1,08 - 1,32 m Antucipia. Musée Royal des Beavx-Arts
CAPÍLLLO QUATRO
que se torna quase automática na descrição angustiada e sardônica dos negros fantasmas que
ocupam o espaço do mundo sob a máscara colorida da vida cotidiana. Mais decisiva para o nascimento do Expressionismo é a influência de E. Munch. Ele não é do tipo cínico amargo, e sim do vidente inspirado, que prevê o destino trágico, a queda inelutável da sociedade. Desde sua primeira viagem da Noruega a Paris (1885), ele expe-
rimenta de tudo, num frenesi de leitura que o faz passar de Gauguin a Seurar, de Van Gogh a Toulouse. Iraz em si o sentimento trágico da vida, que permeia a literatura escancinava: Ibsen, mas sobretudo (e aqui a influência do escritor sobre o pintor é direta e co mprovada)
Strindberg. Como Ensor, porém com uma consciência mais clara, Munch também não acredita na superação, e sim na inversão do Impressionismo, deslocando-se da realidade externa para a realidade interna. Sua tendência espiritualista leva-o na direção do Simbolismo, mas também este sofre uma inversão: não deve ser um processo de transcendência, de baixo para cima, e sim um processo de cima para baixo, do transcendente para o imanente. O símbolo não está além, mas dentro da realidade, prende-se às próprias raízes do ser, a existência co amor—
o amo! se torna obsessão sexual, a existência se torna morte. À própiia represen-
tação deve, em certo sentido, se autodestruir: a palavra deve se tornar, ou voltar a ser, grito.
A cor deve se incendiar em sua própria violência. não deve significar, e sim expressar. É por isso que Munch adota a tendência de Gauguin em utilizar a gravura, mas entendida como uma pintura à qual, ao lado da cos, subtraiu-se o sentido da vida. E, se por vezes 1ecupera-se a cor na gravura, já não é uma cor ligada à sensação e emoção visual, porém uma cor aplica-
da posteriormente, que não pretende definir nada além do estado de espírito, do clima ou da atmosfera da imagem. A poética de Munch está direta ou indiretamente ligada ao pensamento de Kierkegaard,
que começa a ser conhecido na Alemanha apenas nas primeiras décadas do século xx: assim, é a Munch, que lá esteve por várias vezes, que se deve o ímpeto “existencialista” que dará origem ao Expressionismo, de fato nascido sob o nome e o signo de sua pintura. É, porém, de
se notar que a inspiração de Munch, tal como a de Ensor, extingue-se na primeira década do novo século: o rebelde strindberguiano torna-se um pintor oficial em seu país, ou melhor, o pintor que a classe dirigente atribui ao “povo”, para que nele reconheça seu cantor.
PONT-AVEN
E NABIS
Nas duas últimas décadas do século xIx, a situação na França é complexa. Os grandes mestres do Impressionismo, Monet, Renoix, Degas, ainda se mantêm em atividade; Cézanne trabalha isolado em Aix-en-Provence, mas começa-se a falar na importância de sua pesquisa. Van Gogh passa como um meteoro; contudo, após 1890 reconhece-se que sua obra,
ao propor uma dura exigência moral, arrasa todas as poéticas em curso: tanto o cientificismo dos neo-impresstonistas quanto o espiritualismo dos simbolistas. É preciso, pois, enconrrar uma síntese, obter a soma de tantas pesquisas divergentes, definir enfim qual pode ser à função e o valor da arte na sociedade da época. O protagonista de tal operação é P GAUGUIN, com o apoio de F. Fencon e É. Aurier, críticos, e dois críticos-artistas, E. BERNARD (1868-1941) e M
DeEnts (1870-1945). À part
de 1886, Gauguin tem sua pequena corte na pitoresca aldeia bretá de Pont-Aven: seu objetivo é superar o limite sensorial do Impressionismo, reencontrando uma possibilidade de contemplação para além da experimentação. Em nada renuncia à experiência impressionis-
O MODERNISMO
4 “
1)
216
CAPÍTULO QUATRO O MODERNISMO
ta, mas reflete sobre ela: fixada é aprofundada, a impressão visual muda— por exemplo, verse-á um vermelho tornar-se mais vermelho, alaranjado ou violeta. Isso não depende de circunstâncias objetivas, e sim do estado de espírito de quem contempla e do significado s7mbólico do qual vêm carregados não mais apenas os objetos, mas também os signos (linhas e cores), que assim se tornam os signos do nosso ser. Pode-se chegar a atribuir valores puramente imaginários às coisas (árvores vermelhas, cavalos azuis), a transformar a linha de con-
torno em arabesco colorido. No momento em que Van Gogh, em Arles, descobre o princípio moral, Gauguin des-
cobre o princípio técnico do que virá a ser o Expressionismo. Dá-lhe o nome de clononnisme, numa alusão ao esmalte e 2os vitrais medievais, nos quais cada campo de cor é delimitado
por uma borda metálica (closson). O sentido de cada cor é, portanto, dado poi sua expansão sobre a superfície, pela forma da zona colorida, pela relação-contraste com as outras, pela maneira como absorve e reflete a luz. Há aí um motivo historicista, O rerorno à intensa ex-
pressividade da arte medieval; um motivo ético-social, a simplificação da imagem, a expressão de sentimentos profundos, elementares, autênticos (o sentimento do sagrado, da vida, do amor, da morte); um motivo decorativo, a redução da pintura a zonas planas c harmonn-
zadas de cores dentro da grave rítmica dos contornos. Mas a sociedade européia moderna
ainda será capaz de fundar sua ética sobre o sentimento do sagrado? A resposta é negativa, € Gauguin irá buscar nas ilhas do Pacífico uma sociedade ainda capaz de contemplare de viver o sentido mítico-mágico, intrinsecamente sagrado, do real. O grupo dos nabis (em hebraico, “profetas”) tem como linha programática o “sintetismo impressionista-simbolista” de Gauguin. Forma-se em 1888, contando com B ce
3
SÉRUSIER (1864-1927), vindo de Pont-Aven com as últimas novidades de Gauguin, P. BoNNARD, M. DENIS, E. VULARD, K. X. ROUSsEL (1867-1944), P RANSON (1862-
1909), o suíço F. VALLOTTON (1865-1925), o escultor A. MAILLOL (1861-1944). A partir
de 1890, colaboram na Revue Blanche com desenhos e gravuras; mantêm contato com escritores e músicos, consideram Toulouse-Lautrec o guia ideal, tanto quanto Gauguin; interessam-sc por todos os ramos da decoração. O programa é semelhante ao de Pont-Aven: sintese entre “deformação objetiva” ” (de origem impressionista) e “deformação subjetiva” (de
origem simbolista). Mas (o que explica o interesse por Toulouse) o pano de fundo não é a Bretanha, e sim Paris: o caráter do movimento (bastante heterogêneo em sua composição) é intelectual-mundano, modernista sem retornos arcaístas e sem qualquer outro exotismo
além da admiração pela refinada civilização gráfica do Japão. A Paris da torre Eiffel se torna, com os nabis, a cidade-profeta do Modernismo do Art Nouveau. Declarando que um quadro não é senão “uma superfície coberta de cores dispostas numa certa ordem”, Denis anula a distinção entre pintura de representação e pintura decorativa: o valor não é mais a reali[e
dade representada no quadro (objetiva e subjetiva, visual ou imaginária), e sim o próprio quadro, como objeto fabricado e que, portanto, vale pelo que é, e não por aquilo com que se parece. Esta será a premissa de que partirão os fauves e os cubistas, na pesquisa sobre a
constituição e a estrutura intrínseca do quadro, movendo-se numa direção paralela à dos arquitetos, para os quais a forma do edifício depende, antes de mais nada, da estrutura.
CAPÍTULO QUATRO O MODERNISMO
Maurice Denis. As Mesas (1893) rela, 1,08 x 1,35 m Paris, Musée d Orsay
Emile Bernard
Lapecaria (1888)
217
218
TAPÉM LOQUALRO
OMODEENISMO
Edouard Viu Imrentor com pulheres, parnel da decoração der casa do dontar Vaques (1896) tempos sobre rela 2,14» 1,54 m Paris, Muse cu Pere Palais
Paul Sérusier O busqpricete cornos O ratrmnã (1838), madeira 0,27 - 022 m. Parss Musce d Orsa
CAPITULO QUATRO
OMODERNISMO
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Lausanne, coleção |
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Winterthur,
Kunsimuseum
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Pierre Bonnard + pequena tapadesre q 1896! Bremen Kunsihalle
é 5 óleo sobre ii in 1 óleo Rouisis her Navitr urIque 2 » 0,8 0,92 m q apciã 121» papeão, coleção W Folchenteldr
219
220
CapmTLLOQUATRO
O MODERNISMO
ANTONI GAUDÍ CASA MILÁ EM BARCELONA
veau. Em certo sentido, pode se aproximar dos fauves, e até de Matisse, todavia rraz dentro de si o asce-
tismo atormentado de El Greco. Gaudí, porém, não ADOLE LOOS CASA STEINER
é um barroco com atraso nem, apesar de sua ousadiíssima experimentação formal, um reacionário; per-
EM
VIENA
gunta-se sinceramente, como homem religioso que era, se o artista tem o direito de sacrificar ao mundo,
mesmo que por um nobre fim educativo, o impulso fantasioso que lhe vem de Deus. Responde pela negativa e, cocrente, dedica-se totalmente a Deus: seu
A obra de GAUDI levanta uma objeção de fundo ao utopismo urbanista do Modernismo e contesta antecipadamente o êxito racionalista que terá após a Pri-
caso é o único exemplo de arquitetura religiosa (que
meira Guerra Mundial. Gaudí é um grande arquite-
ter construído um santuário — sua arquitetura é in-
to: perfeitamente ao par das tendências da época, apesar de seu almejado isolamento, e mesmo mais
ousado e livre de preconceitos no léxico formal, na
não significa eclesiástica) do nosso século. Não por
trinsecamente religiosa, como a pintura de El Greco, tão religiosa nos retratos quanto nos quadros de altar. O estilo é que é religioso, c não apenas o conteúdo da
técnica, no abandono do impulso lírico do que um Van de Velde ou um Horta. Com a inesgotável novi-
obra. Assim, a técnica, a mitologia do século, é ape-
dade de suas invenções construtivas e decorativas, ele
justamente o fato de não ter implicações ideológicas
consegue demonstrar que a linguagem arquitetônica moderna teria possibilidades poéticas bem maiores,
se não a detivesse a preconceituosa ideologia social e o empenho de manter a “criação” artística no âmbito do útil. Gaudí é, por princípio, contrário à ideologia:
nasceu e cresceu numa sociedade retrógrada, que mal começa a experimentar as primeiras inquietações
modernistas. Não acredita na sociedade, é uma abstração; concreto é o povo, em seu caso o devoto povo catalão, do qual se sente parte e intérprete. A cidade, tal como a imaginam os primeiros urbanistas, também é utopia. concreta é a cidade viva, em seu caso Barcelona; é absurdo que cada geração pretenda re-
formar sua estrutura, mas é correto que acrescente aos signos do passado os de sua própria existência. O espaço é abstrato, concreto é o lugar: a intensidade
nas um meio; mas isso não a limita, pelo contrário, leva-a a manifestações cada vez mais ousadas. Não deverá talvez tornar visível o “milagre” da inspiração divina? Uma arte religiosa não é uma representação do divino, e sim um ato de devoção; portanto, é ornamento, imagem. À arquitetura laica se ocupa das
coisas, mesmo que tentando fazer com que coisa reflita sua própria razão de ser; uma arquitetura religiosa É uma arquitetura de pura imagem, assim como um cântico não é um discurso sensato e coerente, e 4
sim um impetuoso ritmo crescente de sons. Desse modo, Gaudí chegou a realizar uma arquitetura plenamente visual, cuja verdadeira estrutura é a estrutu-
ra da imagem; como o material da umagem é a cor, o material de sua construção há de ser a cor, apenas a cor; o restante, cimento, tijolos ou ferro, é apenas o material para o suporte. Essa totalidade de explicitação visual, essa busca do conteúdo intrínseco das for-
plástica e cromática das formas de Gaudí depende do fato de serem imaginadas para aquele local, aquela luz, aquelas pessoas. A Sagrada Familsa, em que trabalha durante toda a sua vida, não é uma igreja com
mas, e não de formas que se adaptem a um conteúdo
uma função social, catedral ou paróquia, e sim um templo que se ergue sobre a cidade e a reassume, co-
Gaudí. Ainda que, como místico, Gaudí tenha feito de tudo para permanecer fora da história.
mo uma oração coletiva expressa em formas e cores. O Parque Guel! é uma livre e animada combinação
dado, essa construtividade da imagem, em suma, constituem as razões da importância histórica de
Nos
mesmos
anos, em Viena, A. LOOS assumia
uma posição duramente polêmica contra a Secessão
entre formas plástico-cromáticas e formas naturais. Sabe-se que Gaudí contrapunha sua versão mediter-
eo Art Nouveau em geral, Sua posição ideológica e cultural é diametralmente oposta à de Gaudí —
roca) à versão nórdica, centro-européia do Art Nou-
também por ser um teórico e um polemisra. Quando jovem, esteve nos Estados Unidos, e esta é uma
rânica e católica (em suma, fundamentalmente bar-
A
+ acont Gaudr* Casa Meta (1905-10) «1 Barcelona
W
Adolfloos em Viena
Cosa Stesrer(1910)
ol e
CAPÍTULO QUATRO
O MODERNISMO
das fontes de seu rígido pragmatismo. Chega de utopias humanirárias: os problemas sociais se colocam em termos de economia e técnica. À sociedade, declara ele, não precisa de arquitetura, mas de
moradias. Enquanto faltarem moradias, é imoral gastar dinheiro para transformar as motadias em arquitetura. Ele condena a originalidade inventiva, apenas as invenções técnicas podem determinar modificações nas formas construtivas; denuncia o ornamento como crime porque pesa na economia da construção; nega a arquitetura porque, se não atende a necessidades práticas, é imoral c, se atende, não é arte. Como arquiteto, segue os princí-
epoder, que logo se difundirá para todas as atividades estéticas. Era este o dilema e ia bem além de uma contraposição entre o espírito mediterrânico
e o espírito nórdico.
ANTONI O PARQUE
GAUDÍ GUELL
EM BARCELONA
Uma das questões mais debatidas no século atual é
a da unidade ou separação das artes, isto é, se as artes são técnicas diferentes com as quais se realiza um va-
pios. Elimina a ornamentação, deduz a forma a
lor único e supremo, a arte, ou se cada uma delas rea-
partir da formulação rigorosa da questão funcional, Mais do que a técnica, o cerne de seu discurso
lza valores distintos. O problema está ligado ao da
é a economia, que é não só a economia de gastos su-
pérfluos, mas também emprego racional do espaço. Construir uma casa sobrepondo andares da mesma altura é um desperdício de espaço, não é necessário que todos os ambientes tenham as mesmas proporções. Portanto, é preciso projeta: não
relação entre as técnicas artísticas e a tecnologia da época e ao da função da arte no mundo atual. No Art Nouvean, de modo geral predomina a tese idealista da dependência de todas as artes, diferentes segundo a técnica, frente a um princípio espiritual único: ars una, species mille. Vambém
para GAUDÍ, mas com a
diferença de que a unidade é, antes de mais nada,
poi andares, e sim sobre toda a cubagem do edifi-
união, e não se dá na origem, e sim no final do pro-
habitacional
cesso, como consecução do fim ideal paia o qual, por caminhos diversos, tendem todas as técnicas. A oca-
cio, e desenvolvendo
cada
unidade
como uma entidade em si. Dessa maneira, o encarxe e a articulação dos volumes substituem a pura sucessão de planos sobrepostos: eis que a estrutura da casa está modificada, a modificação da forma ou
da imagem será apenas uma consequência. À economia vale também para o tempo, é preciso empregar materiais pré-fabricados, padronizados, entregues prontos pela indústria: es que o método do projeto arquitetônico está modificado. Nessa data, portanto, já estão claramente colocados os termos do problema que assediará os ar-
são para experimentar a possibilidade dessa soma (e não síntese) é o Parque Guell, o qual, pela intenção do comitente, devia integrar o plano urbanista de uma cidade-jardim, às portas de Barcelona. O tema
que Gaudí se propõe é a integração recíproca entre as formas artísticas e as formas naturais. O desenvolvimento reflete o postulado religioso, fundamental pa-
ra Gaudí, independentemente das finalidades da construção. As formas da criação são infinitamente variadas; como cada freio imposto à fantasia é um li-
quiteros europeus da primeira metade do século.
mitc à variedade das formas, é apenas deixando-se o
Arte pura ou serviço social? O artista tem um dever apenas em relação a si mesmo, o de se expressar, ou um dever em relação aos outios, o de comunicar? Autonomia ou heteronomia da arte? E a própria autonomia, podendo-se alcançá-la, será realmente autonomia ou antes uma servidão ainda prot, visto que, para os grupos de poder, é conveniente que o artista, livre para fantasiar à vontade, não interfira em
caminho livre para a fantasia que se alcança aquela
coisas que preferem decidir sozinhos? Em suma. determina-se para a arquitetura (e para o urbanismo) o problema da relação ou do conflito entre cultura
infinita variedade de formas capaz de realizar o acordo com a variedade infinita das formas naturais. Nenhuma imitação, nenhum mímetismo, portanto: ainda seriam limites à liberdade absoluta da fantasia. Como a técnica está a serviço da fantasia e a fantasia não tem limites, os problemas técnicos que se
apresentam a Gaudí são mais difíceis do que os inerentes a uma técnica a serviço da razão: Gaudí não só está ao corrente de todas as novidades técnicas de sua época, como também pretende superá-las, justa-
CAPÍTULO QUATRO
O MODERNISMO
apenas relativa. O Parque Giell tem um caráter ex-
cultor, que modela as massas, € a do pintor, que delmita as superfícies com a cor; além disso, faz conver-
plic tamente lúdico (L. V. Masini) — e uma técnica
gir para a obra várias especialidades do artesanato: o
que seja um jogo de habilidades não mostra nem
mosaico, a cerâmica, o ferro batido etc. Reconstrói, assim, o tipo de canteiro medieval, em que o artista
mente demonstrando que a técnica é de importância
exalta seu mecanismo,
mas permite aquilo que
Schiller, um século antes, já chamava de liberdade absoluta do jogo Há por rrás da liberdade incondrcional da invenção formal um complexo aparato téc-
era o chefe dos operários e se comportava não como
dançarmo, de cuja difícil récnica deve-se ver apenas o resultado, a liberdade com que se mantém em equilibrio ese movimenta no espaço, como se não ti-
arquitetura, como arte, deve se separar claramente da construção civil, recusar qualquer finalidade prá-
nico. o qual, porém, não se vê: como no caso de um
vessi peso. Ars est celare artem: eis uma primeira pro-
va de que a poética de Gaudí é ainda fundamental-
projetista, mas como maestro de uma orquestra. É evidente que esse procedimento exclui qualquer reconciliação com a tecnologia moderna industrial. A
tica, ignorar a problemática social do projeto urbanista, mesmo que apenas enfrentando-a é que poderia se inserir € atuar na realidade histórica atual. Não
mente barroca, semelhante à de um Borromini ou, melhor, de um Guarini. Portanto, não é por humildade que a hábil técnica de Gaudí não se mostra nem se exalta, e sim por uma espécie de orgulhoso desprezo du, se se preferir, de nobre generosidade com que
se deve ver aí, nesse recurso a técnicas artesanais e populares, uma atitude nem mesmo vagamente popu-
o aruista faz brincando o que, para os outros, se apiesenta como necessidade e demanda tanto esforço. E
des e os humildes. Apesar das intenções progressistas e da atualização (por vezes, antecipação) técnica, a
o jogo é até evidente demais: as construções são in-
posição de Gaudí é ssmultaneamente reacionária e
lista: O povo intervém como instrumento nas mãos
do artista, e sua participação na obra se justifica com o postulado religioso, que reúne na devoção os gran-
tencionalmente bamboleantes e cambaias, parecem
futurista. Afora a maior força criativa, sua arquiteru-
a ponto de desmoronar ou, por parecerem feitas de
ra encontra um paralelo significativo na pintura de
matcrial mole, de se dissolver como gelo ao sol.
Klimt, do qual, aliás, também se aproxima estilisti-
Mantêm-se de pé por milagre, e, naturalmente, é a
camente, tanto na resolução linear das massas como
técnica do artista que faz o milagre. Voltando à quesrão da unidade das artes, é significanva a concidêncin da concepção de Gaudí com a idéia wagneriana da obra de arte como resumo de todas as artes, a Gesammtkunstwerk [obra de arte total). Gaudí une a obra do construtor, que define as estruturas, a do es-
no gosto orientalizante da decoração (não se deve esquecer que a monarquia espanhola, no início do século, estava numa fase de declínio tal como o impé-
Anton! Gaud: Detalhe de um porção do Parque Guel
rio habsburguês). Ademais,
quanto
ao futurismo,
chega a antecipar Miró, A arte, para Gaudí, é o retorno a um passado que
Anton! Gaudi
Dezalhe de uma
fonse no Parque Guel
223
EX
Anton! Gaudí
Desalhes do Parque Guel!(1900
14) em Barcelona
CAPÍTULO QUA IRO
sobrevive apenas na fantasia, não por imitar formas históricas, é sim no sentido de inverter deliberada-
mente o movimento, fazer com que a roda do pro-
gresso tecnológico gire ao contrário, levando-a a rea-
lz41 valores ideológicos opostos aos que, segundo sua lógica, deverra visar. Na verdade, porém, condi-
cionado pela superestrutura do capitalismo, o progresso tecnológico não realiza os valores ideológicos que teoricamente deveria ter em vista. Por exemplo: sua pragmática normativa impede e no final paralisa
os impulsos vitais da imaginação, transforma a técnica de instrumento em modelo de ação, isola os ho-
mens do contato vital com a realidade natural. Com o profundo desprezo à coisae o culto à imagem arquitetónica, Gaudí protesta contra o pragmatismo da tecnologia. Sua técnica, com efeito, não é a técnica da cuisa, e sim da smagem. Suas estruturas são como
as 1: mações com que o escultor sustenta a massa de argila: não se vêem, mas permitem-lhe modelar as for:rias da escultura com absoluta liberdade. Por isso, a imagem de sua arquitetura é autônoma e vital: la-
mentar que não corresponda à corsa seria absurdo, tal como censurar uma figura de Picasso por não se assemolhar à figura real.
O contraste entre a posição de Gaudí e a de Loos é significativo. Ao contrário do que se gostaria, a arte
não pode ser “de seu tempo”: ela se antecipa a ele com o sentimento do progresso (é o caso de Loos, mas também de Van de Velde e Horta), ou se dobra sobre o passado com o sentimento da decadência (é o caso de
Gaudí, mas também de Munch, Ensor e Klimt). O progresso é racional, a decadência inevitável. O con-
traste reflete um dilema mais grave: o progresso, motivo de orgulho da sociedade moderna, é uma ascen-
são da humanidade para a salvação ou uma louca cor:ida para a ruína?
O MODERNISMO
775
a 2.54564;31 m. Antuétpia, E
Musée Royal des Beaux-Arts.
em
CAPÍTULO
CINCO
A ARTE COMO EXPRESSÃO pe
O
EXPRESSIONISMO qLia
chamada de expressionista é a arte alemã do início do século xx. O Ex-
pressionismo, na verdade,é um fenômeno europeu com dois centros distintos. o movimento
francês dos fauves (“feras”) e o movimento alemão Die Briicke (“a ponte”). Os dois movimen“«
tos se formaram quase simultaneamente em 1905 e desembocam respectivamente no Cubis«
mo na França (1908) e na corrente Der blaue Reiter (“o cavaleiro azul”) na Alemanha (1911).
À origem comum é a tendência antiimpressionista que se gera no cerne do próprio Impressio-
mismo, como consciência e superação de seu caráter essencialmente sensorial, e que se manitesta no final do século xIx com Toulouse-Lautrec, Gauguin, Van Gogh, Munch e Ensor.
E
Literalmente, expressãoé o contrário de impressão. A impressão é um movimento do extetior para o Interior: é a realidade (objeto) que se imprime na consciência (sujeito). À expressão é um movimento inverso, do interior para o exterior: é o sujeito que por si imprime o ob-
jeto. É a posição oposta à de Cézanne, assumida por Van Gogh. Diante da realidade, o Impressionismo manifesta uma atitude sensitiva, o Expressionismo uma atitude volitiva, por vezes até agressiva. Quer o sujeito assuma em si a realidade, subjetivando-a, quer projete-a sobre a realidade, objetivando-se, o encontro do sujeito com o objeto, e, portanto, a abordagem direta do real, continua a ser fundamental. O Expressionismo se põe como antítese do Impressionismo, mas o pressupõe: ambos são movimentos realistas, que exigem a dedicação total do artista à, questão da realidade, mesmo que o primeiro a resolva no plano do conhecimento e o segundo no plano da ação, Exclui-se, porém, a hipótese simbolista de uma realidade para além dos limites da experiência humana, transcendente, passível apenas de ser vislumbrada no símbolo ou imaginada no sonho. Assim se esboça, a partir daí, a oposição entre uma arte engajada, que tende a incidir profundamente sobre a situação histórica, e uma arte de evasão, que se consideraalheia e superior à história. Somente a primeira (a tendência expressionista) coloca o proble-
ma da relação concreta com a sociedade e, portanto, da comunicação; a segunda (a tendência simbolista) o exclui, coloca-se como hermética ou subordina a comunicação ao conhecimento
de um código (justamente o símbolo) pertencente a poucos iniciados. O Expressionismo nasce não em oposição às correntes modernistas, mas no interior delas, como superação de seu ecletismo, como discriminação entre os impulsos autenticamente progressistas, por vezes subversivos, e a retórica progressista, como concentração da
pesquisa sobre o problema específico da razão de ser e da função da arte. Pretende-se passar do cosmopolitismo modernista para um internacionalismo mais concreto, não mais fundado na utopia do progresso universal (já renegada pelo socialismo “científico”), e sim na su-
228
CAPÍTULOCINCO
|
A ARLE COMO EXPELSSÃO
peração dialética das contradições históricas, começando naturalmente pelas tradições nacionais À obra de Cézanne, cuja enorme importância somente então começava a ser avaliada, colocava sua premissa essencial: se o horizonte da arte corncide com o da consciência, não podem
mais existir perspectivas históricas unívocas. Todavia, a pintura de
Van Gogh também era uma descoberta recente e desconcertante, Van Gogh idenuficava a arte com a unidade e a totalidade da existência, sem distinção possível entre sentido
e intelecro, matéria e espírito. No tema da existência insistem os dois maiores pensadores da época, Bergson c Nietzsche, que exercem uma profunda influência sobre, respectivamente, o movimento francês dos fauvese o alemão da Briscke. Para Bergson, a cons-
ciência é, no senudo mais amplo do termo, a vida; não uma imóvel representação do
real, mas uma comunicação ativa e contínua entre objeto e sujeito. Um único elã vital,
intrinsecamente criativo, determina o devir tanto dos fenômenos como do pensamento. Para Nietzsche, a consciência é decerto a existência, mas esta é entendida como vontade de existir em luta contra a ngidez dos esquemas lógicos, a inércia do passado que oprime o presente, a negatividade total da história. Se não se pode negar que os movimentos dos fauves e da Bricke ainda mantêm relação
com as respectivas tradições figurativas nacionais, apresentando-se o primeiro como fenômeno tipicamente francês e o outro como fenômeno tipicamente alemão, é de excluig de ambos uma intencionalidade nacionalista: toma-se consciência dessas diversas tradições
com o desejo determinado de superá-las. para dar origem a uma arte Aistoricamenre euro-
péia. A corrente dos fauves não teria nascido se na situação francesa, caracrerizada pelo interesse cognitivo e pela orientação fundamentalmente clássica do Impresstonismo, não tives-
sem se inserido, no final do século, impulsos de origem nórdica e de acentuado caráter romântico; a ânsia religiosa (mas não católica, e sim protestante) de Van Gogh e o fatalismo, a idéia da predestinação, a angústia kierkcgaardiana de Munch. À corrente da Brucke não teria nascido se a cultura alemã, no decorrer do século XIX, não tivesse elaborado uma teoria
da arte na qual o Impressionismo se enquadrava pelo que realmente era: não um naturalis-
mo banal, mas uma rigorosa pesquisa sobre o valor da experiência visual como momento
primeiro e essencial da relação entre sujeito e objeto, fundamento fenomênico, não mais metafísico, da consciência.
A exigência fundamental, tanto do expressionismo dos fauves quanto do da Brucke, é a
solução dialética e conclusiva da contradição histórica entre clássico e romântico, entendidos como “constantes”, respectivamente, de uma cultura latino-mediteriânica e de uma
cultura germâmico-nórdica. Para Matisse, a personalidade de destaque do grupo dos fauves,
a solução é uma classicidade originária e mítica, universal, mas por isso mesmo privada dos conteúdos históricos do Classicismo. Para os artistas da Bricke, a solução é um romantismo entendido como condição profunda, existencial do ser humano: a ânsia de possuir a reali
dade, a angústia, porém, de ser arrastado e possuído pela realidade que se aborda. Cada uma das correntes tende a abarcar e resolver dentro de si as exigências da outra; superar os conteúdos históricos, contudo, não significa colocar-se fora e acima da história, e sim sentir que unia história moderna não mais pode, não mais deve ser uma história de nações.
Excluída a referência à herança do passado, a não ser para superá-la, a razão histórica comum dos dois movimentos paralelos é o compromisso de enfrentar resolutamente, com plena consciência, a situação histórica presente. E é exatamente aqui que se abre a dissensão com uma sociedade que preferia não a conciliação, mas a agudização da divergência entre
cultura latina e cultura germânica, inclusive para justificar por motivos ideais a disputa pela hegemonia econômica e política na Europa, que logo conduziria à guerra.
CAPITULO CINCO
Henri Mansse
4 ARIELCOMO
EXPRESSAO
229
Parsugem es Coltonre (1906),
estudo preparatório para La posede vivre tela, 0,38 = 0,45 m Copenhague, ; Stutens Museum tor Kunst,
O grupo dos fauves não é homogêneo e não tem um programa definido, a não ser o de se, opor aodecorativismo hedonista do Art Nouveau e à inconsistência formal, à evasão espiritualista do Simbolismo. Em torno de HeNRI MAarTIssF (1869-1954) encontram-se À. MARQUE! (1880(1875-1947), K vaN DONGEN (1877-1968), R. Dury (1877-1953), À. DERAIN 1954), O. FRIESZ (1879-1949), G. BRAQUE (1882-1963), M. VLAMINCK (1876-1958). Não
fazendo parte do grupo, mas apoiando suas pesquisas, está o escultor A. MAaiILLOL (18611944): entende melhor do que os outros que a pesquisa de cores de Matisse é também uma pesquisa plástica, sobre as possibilidades construrivas ou portadoras da cor. Embora não temessem a impopularidade ou o escândalo, os fauves não dispunham de uma bandeira ideológica; sua polêmica social estava implícita em sua poética. Talvez seja por isso que dois pintores
de orientação expressionista tenham permanecido fora do grupo: G. ROUAULI (1871-1958),
o qual, partindo do pauperismo evangélico pregado por Léon Bloy e remetendo-se ao extremismo de protesto de Daumier, denuncia o farisaísmo e a hipocrisia da sociedade que se dizia cristã, co jovem PABLO Picasso (1881-1973), cuja reação moral à mistificação social é atesta-
da pelos quadros dos períodos azul e rosa. Ambos preferem, em vez da violência visual dos fauves, o cunho cáustico e mordaz de Toulouse e o cunho agressivo de Daumier: será Picasso, precisamente, que colocará o movimento dos fanves em crise e abrirá com O Cubismo a fase decididamente revolucionária da arte moderna. Embora concebessem a arte como impulso vital, os fauves começam pela abordagem crítica de uma série de problemas especificamente pictóricos. Para além da síntese realizada e por Cézanne, havia uma única possibilidade: solucionar o dualismo entre sensação (a cor)
construção (a forma plástica, o volume, o espaço), potencializando a construtividade intrín-
da seca da cor. O principal objerivo da pesquisa, poitanto, era a função plástico-construriva
cor, entendida como elemento estrutural da visão. Ao lado da concepção extensiva de Céa visão a uma zanne, havia a concepção restritiva dos neo-impressionistas, que reduztam
ela ciência, assim deixando uma ampla margem à visão não-ótica (onírica, simbólica erc.);a
Kees van Dongen (1905),
cela
Retrato de Permunda
17 0,81] m Paris, coleção
Andre Derain. O Estague Irês arvores (1906), tela, 1 x 0,8] m
loronto,
Museu de Arte Moderna
DAN
Alberr Marquec
Vino atelsê dtvo
frase (1898), tela, (1,73 x 0,50 m Bordeaux Musce des Beaux-Ares
Henri Matisse JVir jsy attelre (1898), óleo sobre papelão, O 65 » 0,50 m Toquo Bridgestone Gallery
MOCINCO
a.
Fer
wtas
Pablo Prrasso Lobres 4 berra mar(1903) madeira, 1.05» 0,69m Washington Nat anal Gallerv of rc
SARIECOMO EXPRESSÃO
231
232
CANÍIVLOUNCO
4ARILCOMO! XPRESSÃO
opunha-se a concepção já não cogniriva, e sim ética, de Van Gogh. Um elemento comum a
Cézanne, Signac e Van Gogh era a decomposição da aparência natural, ou do
“
“motivo”, para
pôr em evidência o processo de agregação, a estrutura da imagem pintada: com efeito, eles pintam com pinceladas destacadas, nítidas, dispostas com certa ordem ou ritmo, que dão a idéia da matéria concreta, da core construção matersal da imagem. À pesquisa dos fauvesse dirige justamente à natureza dessa ordem ou ritmo, que para Cézanne correspondia à ordem
intelectual da consciência; para Signac, à lei ótica dos eteitos de luz; para Van Gogh, ao rir-
mo profundo da existência traduzido em gestos. O que os fawves querem destacar é a estrutura autônoma, auto-suficiente do quadro,
como realidade em si: da mesma forma, para André Gide (o equivalente literário de Matisse, apesar de incompreendido pelo pintor), a obra Ierária é um sistema autônomo e fechado, cuja lei estrutural não consiste na verossimilhança dos eventos narrados nem na coerência psicológica dos personagens. Se, porém, os fauves procuram combinar a decomposição analítica de Signac com a decomposição rítmica de Van Gogh, é sinal de que pretendem alcançar a unidade entre a estrutura do objeto e a estrutura do sujeito, isto é, estabelecer entre O interior e o exterior aquela continuidade e circulardade de movimento que, no pensamento de Bergson, constituía o “impulso vital”? ou a “evolução criadora”. O fato de que tal unidade só pode sei alcançada na arte, na medida em que a arte é justamente a realidade que se criaa partir do encontro do homem com o mundo, demonstra a absoluta necessidade da arte em qualquer contexto social, antigo ou moderno, conterrâneo ou exótico. Uma civihzação sem atte estaria desutuída da consciência da continuidade entre objeto e sujeito, da unidade fundamental do real.
po
Georges Braque
tela. 0530*06Im Galery of Caraca
O porra de A utmerpea (FINO):
Orrawa, Nanional
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COP IL TOCINE O A SRTECOMO EXbRENÇÃO
Maurice Vlamenck Jntemor de cozinha (1904) tela, 0,56 < 0 45 m Paris, Musée National d'Art Moderne
Raoul Duty Bore com baneesrac lc 1906) Ivon Musée 0,65m tela, 0.54 des Bcaux 4rts
NMa
234
CAPERUT
O CINCO
i A ARTECOMOEXTRESSÃO
Neste ponto surge o problema de Gauguin. Morrera poucos anos antes (1903) no Tai-
ti, para onde fora em busca de uma civilização em que a “crração” artística não fosse anacrônica nem incongruente. assim, considerava a civilização histórica incapaz de produzir e fruir a arte Era um juízo severo, mas fundado: onde o devir da sociedade consiste no progresso, não pode exisur criação, pois não se cria a não ser a partir do nada, colocando-se na condição do primativo. Que a sociedade contemporânea consutuía-se numa sociedade do progresso, era algo evidente. Assim, havia apenas duas possibilidades: seguir o exemplo de Gaugun ou impor a criação artísuca pela força à sociedade do progresso. Colocada diante da realidade autônoma, absoluta da obra de arte, a sociedade reagiria positiva ou negativamen-
te, mas não poderia deixar de percebé-la: percebendo-a, reconheceria que, se nesse âmbito
é possível reencontrar a condição do primitivo e errar, a lei do progresso não é absoluta. Repatriar Gauguin, trazê-lo de volta ao mundo do qual se exilara voluntariamente e que o aclamará agora como salvador ou profeta — eis aí outro motivo da poética dos fauves.
Henm Matisse La [75 240m Menon Barnes Foundation
ttni, The
É visível que La joie de vivre, de Matisse (1905-6), pretende ser uma imagem mítica do mundo, como se gostaria que ele fosse: uma idade de ouro em que não há distinção entre os seres humanos € a natureza, tudo se comunica e se associa, as pessoas se movem livres como se feitas de ar, a única lei é a harmonia universal, o amor. Num gesto que pode suscitar admitação, Mausse recupera a grande decoração classicista de Puvis de Chavannes, mas libertando-a dos estorvos do Classicismo histórico ou neo-humanístico, expandindo-a numa classicidade universal. Decoração? Evidentemente, pois a arte é feita para decorar: não o templo. o palácio real ou a casa dos senhores, e sim a vida dos homens. Matisse chega a esse puro lrismo, porém, através da crítica histórica. Retoma o tema clássico e “mediterrânico” d'As grandes banhistas, de Cézanne, e combina-o com o tema do mirologismo primitivo e oceânico de Gauguin. Elimina da visão cézanniana tudo o que ainda era profundidade espacial, solidez plástica dos corpos; chega a evitar a continuidade da superficie, pois o plano é agora uma delimitação do espaço. Assim reencontra, para além do próprio Cézanne, a cor límpida, transparente, brilhante do Impressionismo, mas já não condicionado pela vividez da sensação visual, Como a imagem não é mais um “reflexo” da coisa, ela possui a mesma
CeaMdt)
No universo das imagens, não cabem as alegorias. as metáforas, os sím-
bolos, pois nada tem um significado definido. nem pode ocorrer uma transposição de significados. Tampouco é possível fazer uma disunção entre belo e feio, a qual só pode ser aplicada às coisas pelo prazer ou pela dor que provocam no homem, mas não às imagens, que estão além de qualquer possibilidade de juízo. Como Cade, Matisse saboreia todas les nourritures terrestres; escolher seria renunciar Parece difícil conciliar a classicidade, o impressionismo universal de Matisse com a qualificação de expressionista. Mas a expressão da alegria é tão expressão quanto a expressão da dor de viver, e pode-se expressar a alegria de vivei sem representar a vida. Matisse não traz
ao quadro o equilíbrio, a simetria da natureza. Seu procedimento é inteiramente aditivo. cada cor sustenta, impulsiona, acentua as outras num interminável crescendo Cada : cor, no contexto, é muito mais do que seria isoladamente, como puro matiz, e o quadro só se complera quando todas as cores alcançaram o limite do espectro e concordam entre si em seus valores máximos. São zonas lisas, luminosas, expandidas; a fronteira entre as zonas não é lt-
Paul Cezanne As granetes bunustuas (1898-1906),
tela, 2 08» 2 49m Fihdelfia. Museum of Art
4
um
realidade da cosa.
A AHEL
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INCLUI
236
CAPELTACINCO
A PRTF COMO
XPRESSÃO
mite, € sim novo arremesso, de forma que todas as cores colorem por si todo o espaço, so-
mando-se uma às outras; , as linhas não são contornos, mas arabescos coloridos que asseguA ram a circulação, a irradiação cromática de rodo o tecido pictórico. É um discurso sem verbos nem substantivos, apenas adjetivos; todavia, não é retórico, porque os adjetivos não são elogio às coisas (que não existem), c sim efusão da alma. Se existem músicas sem palavras, por que não haveria de exist uma pintura sem coisas? Mas, nesse caso, evidencia-se que a
classicidade da pintura de Matisse não é senão a superação de um romantismo de fundo, a
inversão polêmica da melancolia romântica. Além de Cézanne, o arusta de quem Matisse se sente idealmente mais próximo não é Ingres, c sim Delacroix; será Picasso, seu grande antagonista, que recolocará abertamente a questão de Ingres. Porém Picasso, como vimos, é um
moralista, não pode evitar o gesto autoritário do juízo, deve distinguir e escolher entre belo e feio, entre bem e mal. Foi a irrupção imprevista, subversiva, mas certamente calculada, de Picasso que, em 1907, determinou a crise dos fauves Até aquele momento, ele havia permanecido à margem da situação: limitara-se a revelar, com o refinamento intelectual de seu desenho, a be-
leza ambígua e de certo modo deslocada, como divindades exiladas e incógnitas, dos seres que a sociedade exclui de sua ordem constituída (acrobatas, arlequins, vagabundos), por
não entender ou por temer sua nobreza inata. Agora, com Les demoiselles d'Avignon, apre-
senta-se contestando a mais ambiciosa obra de Matisse, La joze de vivre, demonstrando que um quadro, como qualquer acontecimento ou empreendimento humano, pode se alterar e mudar de significado no próprio aro de se fazer. Se a pintura é existência, ela está exposta a todos os riscos e eventualidades da existência, Podia parecer um gesto extremista tar-
dio de filiação ao grupo dos fanves: é, porém, o primeiro gesto da revolução que terá seu líder no próprio Picasso, o Cibismo Diante do fato novo e arrasador, os fawvessão obrigados
a fazer escolhas decisivas, e ocorre a diáspora do grupo Matisse, como comandante honrosamente dei rotado, retira-se da luta: até o final de seus dias, será o grande senhor da pintu-
ra, sempre sensível a tudo o que acontece, mas decidido a não mais se deixar envolver no jogo das correntes. Quase propositalmente, ele contrapõe a altíssima e inalterável qualidade de sua pintura, agora acima das vicissitudes históricas, à agitação frenética, ao transformis-
mo estilístico de Picasso, que quer a todo preço ses protagonista e árbitro da história, sempre pronto a tomar partido, a decidir bruscamente as situações dificeis.
Dufy segue, em tom menor, o exemplo de Matisse; afasta-se, dedica-se ao canto lírico, ostenta seu talento, mais brilhante do que profundo, improvisando variações de grande ele-
gância sobre o tema do arabesco cromático. Maillol, que partira de Renoir e encontrara o equivalente plástico da cor de Matisse, também se contenta com o equilíbrio alcançado entre a plenitude da forma e a espacialidade solar da “natureza mediterrânica”: se inquestionavelmente libertou o classicismo da escultura da versão acadêmica restiita, não conseguiu, porém, libertar a escultura do classicismo e convertê-la numa arte moderna. Vlaminck e Friesz, agora que o público e o mercado procuram o “moderno”, abandonam a pesquisa engajada em troca de um sucesso fácil. Van Dongen procura, através dos expressionistas alemães de que se aproxima, recuperar a incisividade perdida dos fauves, mas utiliza-a apenas para temperar com uma ponta de amargura a mundanidade de seus retratos da “bela sociedade” parisiense. Quanto a Braque, que entre os fanves fora o maus ficla Cézanne, capta imediatamente o sentido da situação: alinha-se sem hesitação ao lado de Picasso, e com ele se
porá à frente do nascente movimento revolucionário, o Cubismo.
CAMILLOCINCO
A ARTE COMO
Dre Brricke é uma formação mais compacta, uma verdadeira comunidade de artistas, com um programa escrito, não muito diverso daquele do Werkbund. Seus principais
expoentes são: E. L. KIRCHNER (1880-1938), E. Heckrt (1883-1970), E. NoLDE (1867-1956), K. Sc1imiD1-ROTT LUFF (1884-1976), O. MU
LER (1874-1930) e o escul-
tor E. BARLACH (1870-1938). A situação alemã era confusa. para além do raso naturalismo acadêmico estimulado pe-
lo ambiente conservador da Alemanha guilhermina. pálidos reflexos do Impressionismo [iancês se mesclavam às veleidades simbolistas e pré-exptessionistas da Secessão de Munique. Die Briicke propõe a união dos “elementos revolucionários e em efervescência” para consti-
tur uma frente comum contra o “Impressionismo”. Este se refere mais às insignificantes repercussões alemãs do que aos impressionistas franceses, fazendo-se uma exceção a Cézanne, cujo compromisso construtivo e rigor quase filosófico são reconhecidos pela Briicke. lodavia, a oposição à visão impressionista é profunda. Ào realismo que capta, contrapõe-se um realismo que cria a realidade. Para ser criação do real, a arte deve prescindu de tudo o que
preexiste à ação do artista: é preciso recomeçar a partir do nada.À experiência de mundo do artista não difere, em sua origem, da de qualquer outra pessoa. É este o material sobre o qual opera o artista. os temas dos expressionistas alemães geralmente estão ligados à crônica da vida cotidiana (a rua, as pessoas nos cafés etc.). Em suas obras, porém, percebe-se uma espécie de incômodo, de indisfarçada rudeza, como se o artista nunca tivesse desenhado e pintado
antes daquele momento. Por que se recusa toda linguagem constituída, por que a expressão se dá de modo deliberadamente penoso, excessivo, sem nuances? Na origem da linguagem, não existem palavras que tenham um significado, mas apenas sons que assumem um signuficado. O Expressionismo alemão pretende ser precisamente uma pesquisa sobre a gênese do
ato artístico: no artista que o executa €, por conseguinte, na sociedade a que ele se dirige.
ensiss
Ceira ee
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Max Pechsrein Natureza-morta (1913) tela Karlsruhe, Staatliche Kunsthalte
Karl Schmide Roceluff Muber fazendo a roalete (1915). tela Hamburgo, Kunsthalle
LXPRESSÃO
3é
37
238
CAMLLIOCINÇO AARTE COMO ENPRESSÃO
Se no princípio não está o verbo (a representação), e sim à ação, o primeiro problema é o fazer, a técnica. Para os impressionistas, assim como para os clássicos, a técnica era o meio
com que se representa uma imagem. Mas, se a ação deve ser criativa, nem mesmo a imagem, seja ótica, seja mental, pode preexistir à ação: a imagem não é, ela se faz, e a ação que a faz comporta um modo de fazer, uma técnica. É um ponto fundamental, que explica a orienta-
ção ideológica, tipicamente populista do movimento. À técnica não é nada de pessoal ou inventado, ela é trabalho. Sendo antes de tudo trabalho, a arte está ligada não à cultura especulativa ou intelectual das classes dirigentes, e sim à cultura prático-operacional das classes trabalhadoras. Assim, se a arte realiza a aspiração criadora do trabalho humano, com tanto maior razão ela se distingue do trabalho mecânico, que depende da racionalidade ou da ló-
gica da cultura intelecrual; em outros termos, se o trabalho industrial obedece a leis racionais, o trabalho do artista como momento supremo da cultura do povo é necessariamente não-racional
Nasce, pois, da experiência de uma longa práxis, que acabou por se traduzir
em atitude moral. Assim se explica a importância predominante atribuída às artes gráficas, espectalmente à xilogravura. mesmo em relação à pintura e à escultura: não se compreende a estrutura o . Eis “po da imagem pictórica ou plástica dos expressionistas alemães, a não ser que se procurem suas raízes nas gravuras em madeira
À técnica da xilogravura é aicaica, artesanal, popular, pro-
fundamente arraigada na tradição ilustrativa alemã Mais do que uma técnica no sentido moderno da palavra, é um modo habitual de expressar « comunicar por meio da imagem. E o importante é justamente esta identidade entre expressão e comunicação: a expressão não
é uma misteriosa mensagem que o artista anuncia profericamente ao mundo, mas sim comunicação de um homem a outro. Na xilogravura, a imagem é produzida escavando-se uma matéria sólida, que resiste à ação da mão e do ferro, a seguir espalhando-se tinta nas partes em relevo, e finalmente prensando a marriz sobre o papel. A imagem conserva os traços dessas operações manuais, que implicam atos de violência sobre a matéria, na escassez parcimo-
Frnst Ludwig Kirchner tela, 0.95 » 0,96 m
particular
Basderimas (914);
Turim, coleção
CAPIELOCINCO
Ench Heckel Passero no Ciruneraldsee (1911), tela. 0,71 » 0.80 m Essen,
Nisseus Pole
A ARTE COMO EXPRLSSÃO
Emil Nolde 4 lenda de senta Mera Perpereco Um (1912), retábulo esquerdo, O 86
[amburgo. Kunschalle
Ono Muller
Cast! ra prova (1914),
cola cm cores, 0,87»
Colonia, coleção parr
120 m
239
240
CAMÍTULOCINCO a ARTE COMO EXPRESSÃO
niosa do signo, na rigidez e angulosidade das linhas, nas marcas visíveis das fibras da madeira. Não é uma imagem que se liberta da matéria, é uma imagem que se imprime sobre ela num ato de força. Ela também mantém este caráter na pintura, onde se liga à pasta densa e recoberta da tinta a óleo ou à mancha alastrante da aquarela, e ainda se mostra na ausência de matizes e esfumaduras, na violência brural das cores, e na escultura, onde forma uma uni-
dade com o bloco compacto da madeira talhada com a gorva ou da pedra lascada a marteladas. À co! na pintura, o bloco (em geral de madeira) na escultura não constituem um meio
ou uma linguagem para manifestar as imagens, mas uma matéria que, sob a rude ação da técnica, torna-se imagem.
Na medida em que a obra materializa diretamente a imagem, não é necessário que o pintor escolha as cores segundo um critério de verossimilhança: ele pode realizar suas figuras em vermelho, amarelo ou azul, da mesma maneira que o escultor é livre para executar
suas obras em madeira, pedra ou bronze. É um processo de atribuição de significado através da cor, análogo àquele pelo qual, na imagerie popular, o diabo é vermelho ou verde, o anjo é branco ou azul-celeste. O atributo implica um juízo, uma postura moral ou afetiva em relação ao objeto a que se aplica; como o juízo se apresenta à percepção juntamente com o objeto, ele se manifesta como deformação ou distorção do objeto. À deformação expressionis-
ta, que em alguns artistas chega a ser agressiva e ofensiva (por exemplo, Nolde), não é deformação ótica: é dererminada por fatores subjetivos (a intencionalidade com que se aborda a realidade presente) e objetivos (a identificação da imagem com uma matéria resistente ou relutante). Como os fauves, os expressionistas alemães adotam como ponto de referência a arte dos primitivos. Nos fetiches negros, porém, não vêem os símbolos de mitos remotos, as criações de uma civilização mais autêntica. Vêem o trabalho humano em seu estado puro ou
de plena criatividade. O escultor tomou um tronco de árvore e, entalhando-o, impôs-lhe um significado, transformou-o num deus: não, note-se, a imagem de um deus, e sim um deus em pessoa. Ele não representou o não-visível através do visível, nem revelou o significado oculto do tronco: com a força mágica de sua técnica, obrigou a totalidade do sagrado a se identificar com um fragmento da realidade. É um processo paradigmático, mas ambíguo. Ambígua, aliás, é toda a poética dos expressionistas alemães, e não se pretende fugir à ambiguidade, pois a própria condição existencial do homem é considerada ambígua. A deformação expressionista não é a caricatura da realidade: é a beleza que, passando da dimensão do ideal para a dimensão do real, inverte seu próprio significado, torna-se fealdade, mas sempre conservando seu cunho de eleição. Devido a essa beleza quase demoníaca da cor, que fre-
quentemente vem acompanhada por figuras ostensivamente fezas (pelo menos segundo os cânones correntes), a imagem adquire uma força de peremptoriedade categórica, como se
realmente já não pudesse existir pensamento para além dela.
A poética expressionista, que, no entanto, permanece sempre fundamentalmente idealista, éa primeira poética do feio: o feto, porém, não é senão o belo decaído e degradado. Conserva seu caráter ideal, assim como os anjos rebeldes conservam, mas sob o signo negativo
do demoníaco, seu caráter sobrenatural — a condição humana, para os expressionistas ale-
mães, é precisamente a do anjo decaído. Há, portanto, um duplo movimento: queda e degradação do princípio espiritual ou divino que, fenomenizando-se, une-se ao princípio material; ascensão e sublimação do princípio material para unir-se ao espiritual, Esse conflito ativo determina o dinamismo, a essência dionssíaca, orgiástica e ao mesmo tempo trágica, da
imagem e seu duplo significado de sagrado e demoníaco. A polêmica social dos expressionistas alemães não se limita à renúncia do artista à sua
condição de intelectual burguês, em favor da condição de trabalhador, de homem do povo.
CAPÍTULO CINCO
4 ARTE COMO EXPRESSÃO
A burguesia é denunciada como responsável pela inautenticidade da vida social, pelo fracasso das iniciativas humanas, por aquilo que, para Nietzsche, constituía a total negatvidade da história. Se para existu é preciso querer existir, lutar para existir é sinal de que há no mundo forças negativas que se opõem à existência. À existência é autocriação, mas, se o mecanismo do trabalho industrial é anticrianvo, por isso mesmo é destrutivo. Destrói a sociedade,
dilacerando-a em classes exploradoras e exploradas; destrói o sentido do trabalho humano,
separando concepção e execução, acabará por destruir, com a guerra, toda a humanidade. Recomeçar tudo desde o princípio significa refazer ex novo a sociedade. Assim se entende por que os expressionistas alemães insistem obsessivamente no tema do sexo: é a relação homem-mulber que funda a sociedade, e é justamente isso que a sociedade deforma e torna perverso, negativo, alienante. A sociedade industrial se debare sem saída na alternativa entre a vontade de poder c o complexo de frustração: apenas com a condenação total do traba-
lho não-criarivo imposto à humanidade é possível brotar uma nova civilização. Somente a arte, como trabalho criativo, poderá realizar o milagre de reconvertcr em beloo que a socie-
dade perverteu em feio. Daí o tema ético fundamental da poética expressionista: a arte não é apenas dissensão da ordem social consuituída, mas também vontade e empenho de transformá-la. É, portanto, um dever social, uma tarefa a cumprir.
A Áustria pertence à órbita cultural alemã, mas seu tempo histórico tem um ritmo mais
lento; no longo crepúsculo do império habsburguês, a sociedade hierárquica sc dissolve sem que se vislumbre o início de uma nova sociedade. E. SCHIELE (1890-1918) desenvolve em sentido expressionista, com uma violência tétrica e desesperada, a melancolia de Klimt: é
um mergulho nas profundezas da psique, uma busca da morte na própria rasz do ser da sensualidade; é a primeira vez que a crueza carnal do sexo ingressa na pintura. Não por acaso, um grande desenhista e ilustrador, A. KUBIN (1 877-1959), explora o domínio vago e ilimi-
tado do sonho no exato momento em que, na mesma Viena, Sigmund Freud fundamentava sua pesquisa psicanalítica sobre o estudo da atividade onírica.
Egon Schuele Mulher derrada (1914), lápis e têmpera, 0,48 x U 31 m Galleria Galatea de Turam.
241
242 2
CANTLLOCINCO Car
à ARTECOMO EXPRESSÃO
O
KokoscHka (1886-1980), parundo de Klimt, logo entra em contato com os ex-
pressionistas alemães; sua pesquisa, porém, é crítco-analítica, em profundidade, sem pers-
pecrivas de um resgate “criativo”. Para atingir o nivel da “vida”, é necessário corroer as camadas formadas por tudo o que é habitualmente chamado de “a vida”, chegar até onde a existência individual se dissolve no “todo” Também para Kokoschka o problema da sociedade nasce com a relação onginátia entre homem e mulher: mas o amor e a morte são comuni4 cantes, c ainda por tal caminho o indivíduo retorna à indistinção do “todo” (a arte como re-
torno ao venue do ser é igualmente o rema da poética de Rilke, o grande poera austríaco). A cor-signo se rebela contra qualquer ordem; , não aceita à perspectiva nem o tom, todavia cede inopinadamente a impulsos de ternura ou cólera, de alegria ou tormento. O impressio-
nismo, para ele, não é a autenticidade da sensação, e sim a autenticidade e hberdade do exisur. Libertário e, no fundo, anárquico, Kokoschka não acredita na atual nem numa futtira ordem social: o mundo é uma
multidão de indivíduos, um
turbilhão de átomos. Nada se
cria, nada se destrói, nada do que foi pode não ser. A realidade é caótica, mas, precisamente por não existir uma estrutura que os contenha, os fragmentos de que é composta são mais vitais Um quadro é uma miríade de sinais coloridos, que parecem se agitar sobre a tela; calembrança. e ssm da um é um momento vivido, que não se apresenta, porém, como apagada >
como sensação znterzor imediata. Os retratos desse período são extraordinariamente carac-
terizados, as paisagens são retratos de locais muito específicos; o ponto em que a realidade precípua daquela pessoa ou daquele local se anima e adquire vida é o mesmo em que cla se estilhaça e se desagrega no movimento molecular do rodo. Assim, a pintura de Kokoschka se liga, por um lado, à dissolução formal do Rococó austríaco e, por outro, ao Impressionismo; com a ressalva de que já não há distinção entre sujesto e objeto, o mundo que se vê é o mundo em que sc cstá, move-se à nossa volta, movemo-nos
nele. Já não existe o problema
da forma ou da imagem: o primerro problema a ser colocado por Kokoschka é o do sigro, como transcrição imediata de um estado sensorial ou afeuvo
[al anmclassicismo manestis-
ra constitin também o limite de sua estatura pictórica, que não é a de um El Greco, e sim a
de um Magnasco. Lançando uma ponte entre o Expressionismo c o Impressionismo, a pintura de Kokoschka teve ampla repercussão na Europa, especialmente após a Primeira Guerra Mundial, quando ele se dedica a representar com um alegorismo frenético a desintegração do mitologismo clássico na fúria desvairada do mundo moderno. Prestava-se a ser interpretada como uma nova e persuasiva proposta européia. historicamente fundada naquele tardio Barroco que, levando roda linguagem formal constituída ao extremo da dissolução, estabelecera, se não um inicio de união, ao menos uma possibilidade de livre circulação entre as culturas fi-
gurauvas européias. De fato, foi assim que a interpretou C. SOUTINF (1894-1943), expressionista em Paris e um dos maiores expoentes da heterogênea Keole que reuniu pintores de
todos os países (muntos deles judeus) naquele que, com todo o dieito, era tido como o centro irtadiante de uma cultura figurativa cosmopolita. Dre Brircke dissolveu-se em 1913, quando o novo grupo Der blaue Rerter já havia imcrado a pesquisa em sentido não-figuranvo. Quase se opondo a essa orientação menos engajada na problemática social. agudizada pela derrota na gueria, forma-se a corrente, ainda ti-
picamente expressionista, da Neue Sachltchker (“nova objetividade”), que quer apresentar uma imagem atrozmente verdaderra da sociedade alemã do pós-guerra, sem os véus idealiantes e mistificadores da “boa” pintura ou Ireratura. À ela pertencem M. BECKMANN (1884-1950), O, Dix (1891-1968) e G. Grosz (1893-1959). Beckmann é um pinror de tormaçao classicista que aprecia as grandes e retóricas composições alegóricas: um Hodler
CAPÍTULO CINCO
y
,
AARTLCOMO
IXPRESSÃO
e a
81» 2.20m
Basiléia,
243
244
CAPNTULOCNÇO
O TT XPRISSAN TLEGM
Alfred Kubn
O perco vos; wla
Linz,
Oberosterreichasches |.andesmuscum
Cham Soutne Retrato de Maria Lary (1929), wta 0,71 7058m Nova York Maseim of Modern &rr
Creoge Ghost Frncianário do Esedo pra “es pensúes dos mundos de guerra 192, tela, 1.15 = 0,80 m. Berlim, Sraarliche
Muscen, Nautar algalerie
CATÍVI
FO CINCO
1 ARTE COMO EXPRESSÃO
Quo Da Lrinchesra os Flandres 1936) Berlim, «Cenica mista sobre tela, 2> 250n Staarhche Musecn Nanonalgalene
Max Beckmann 4 mosre(1918-9), cela Dusseidort Kursisammlung Nurdrhen-Westfalon
245
246
CAPÍTULO CINCO
A ARLE COMO
EXPRLSSÃO
trunta anos depois, que canta não mais Inverte a visão: os deuses decaídos (o monstros, mas sua fealdade conserva a a pintura o que Remarque, o autor de
a ascensão, mas a apocalítica queda da humanidade. tema da (ótterdammerung de Nietzsche) tornam-se grandeza e o fascínio da beleza perdida. Dix foi para Nada de novo no front, foi para a literatura: o exposi-
tor lúcido, impiedoso, quase fotográfico das misérias, das infâmias, da macroscópica estupidez da guerra. O processo de desmistificação da classe dirigente alemã é aprofundado
por um artista explicitamente político, o desenhista e caricaturista George Grosz. De 1916 a 1932, quando a perseguição nazista o obriga a se refugiar nos Estados Unidos, conduziu uma luta política sem quartel, atacando e denunciando com rude sarcasmo as classes dirigentes, militares e capitalistas, responsáveis e exploradoras da guerra e da derrota. Ele não precisa recorrer à invecriva; a fria análise da situação basta para revelar, sob a máscara da respeitabilidade burguesa, a perversão dos instintos, a sombria luxúria de violência e de poder.
Utiliza os mais modernos processos de comunicação visual (inclusive o Cubismo e o Futurismo) para sintetizar na mesma figura os aspectos contraditórios de uma socialidade exte-
nor e uma associalidade de fundo; é o primeiro a desvendar no autoritarismo político, na avidez pelo poder, na corrida à riqueza os sintomas da neurose, de uma loucura perigosa e ralvez fatal, de um censurável embrutecimento do mundo. Sua obra demandava o desdém ea fúria contra a burguesia ávida e cruel, posteriormente degenerada no nazismo. Nos Es-
tados Unidos, sem o estímulo da revolta política, seu veio se esgota. À arquitetura expressionista se desenvolveu no clima agitado do pós-guerra alemão. Era preciso reconstruir uma sociedade em ruínas: as forças democráticas queriam uma economia de paz e cooperação internacional; as forças reacionárias queriam uma economia que prepa-
rasse um novo esforço bélico, a revanche. Os arquitetos percebem que representam o espírito “construtivo” da nova Alemanha democrática, tomam consciência da importância de sua condição de técnicos responsáveis. Agrupam-se, organizam-se, inserem-se no processo revo-
lucionário que vinha se desenvolvendo no país (e que será decapitado pelo nazismo), isto é, seguem o exemplo da “vanguarda” artística russa, que vinculara o processo de renovação da arte ao processo revolucionário da sociedade. Instirui-se um Conselho do Trabalho para a Arte; forma-se o Grupo de Novembro (Novembergruppe), núcleo de pesquisa e experimentação da construção civil e, ao mesmo tempo, elemento de pressão para conseguir que o Estado apóie as novas experiências, voltadas para um urbanismo capaz de responder às exigências
de vida e de trabalho do povo, e não subordinado ao lucro dos especuladores. A alma do grupo é BRUNO TaU1 (1880-1938); participam do movimento praticamente todos os arquire-
tos “modernos”, desde os mais velhos, como Poelzig e Behrens, aos mais jovens, como E. MENDELSOHN (1887-1953) e H. SCHAROUN (1893-1972). A orientação do Grupo de No-
vembro pode parecer utópica, arbitrária, aberrante — a Alemanha do pós-guerra necessita-
va de algo muito diferente das fantasias arquitetônicas, como as de Finsterln, de improváveis “cidades alpinas”, de imaginários “teatros de massa” onde finalmente se realizaria o sonho, mais wagneriano do que expressionista, da “obra de arte toral”, síntese unânime de to-
das as artes. Na verdade, o Grupo de Novembro teve vida breve: seus homens de ponta, como Gropius e o próprio Taut, logo se colocam à frente do rigoroso racionalismo arquitetônico alemão. É importante, porém, que, nos anos imediatamente posteriores à guerra, tenha-se recorrido à invenção e à criação como antídoto à depressão geral, tenha-se aberto o campo à expe-
rimentação formal mais audaz, tenha-se procurado utilizar todas as novas sugestões que ha-
viam se manifestado no âmbito do modernismo arquitetônico, incluído Gaudí. A Torre Emstein (1919-23), de Erich Mendelsohn, é a chave da arquitetura expressio-
nusta. O arquiteto dererminou a função específica do edifício (observatório astronômico e
CAPÍLULO CINCO
AARTE COMO EXPRESSÃO
centro de pesquisa científica); a partir da função, modelou o bloco de alvenaria exatamente
como um escultor; a partir do gesto da figura, modela as massas plásticas da estátua. E sem dúvida há uma evocação à escultura, talvez à síntese plástico-dinâmica de Boccioni. O edifício já não é concebido como uma combinação de planos, e sim como um bloco unitário
plasmado e escavado. “O edifício |...) constituía uma integração entre maquinário e ambientes úteis, uma espécie de corpo de alvenaria e cimento.” (F. Borsi) Do mesmo modo, em
suas construções urbanas, Mendelsohn realiza soluções formais que não só correspondem à função, como também expressam-na enquanto movimento vital integrado ao dinamismo da
realidade social. Ele passa da análise dos diversos temas funcionais à determinação de sua síntese, da função unitária que abrange e resolve as funções particulares em seu dinamismo; e da síntese funcional passa à definição de uma forma que a transfira para o espaço, que afinal é o espaço da vida social, a cidade. Pode-se talvez censurar em Mendelsohn um tom às
vezes enfático ou exclamativo, um gosto pela “personagem” arquitetônica que, sob certos aspectos, aproxima-o de Beckmann; não é justo, porém, censurá-lo por ter centrado seu interesse na realidade objetual-funcional do edifício individual, negligenciando o problema ur-
banista geral. Na verdade, Mendelsohn tende a transformar o edifício funcional num protagonista do cenário urbano, assim substituindo a representatividade estática dos “monumentos” pela evidência do dinamismo funcional
Hans Scharoun Edsficias da Sremenszadr (1929) em Berlim
Ainda que não tenha existido uma verdadeira corrente expressionista, a experiência expressionista realizada por alguns dos maiores arquitetos modernos, nos anos imediatamente seguintes à guerra na Alemanha, teve notável importância para o desenvolvimento posterior
da arquitetura. Ela deslocou o problema da funcionalidade do plano da pura técnica construtiva e da resposta a exigências práticas para o plano de uma funcionalidade visual ou comurucativa. À concepção da arquitetura que interpreta uma realidade natural ou social dada, ela
contrapôs a concepção da arquitetura que a modifica, isto é, instaura uma nova realidade. Estabeleceu na invenção um valor integrativo do puro projetar sobre dados objetivos. Abriu à arquitetura européia a possibilidade de relações mais profundas com a arquitetura de Wright.
24
248
CaritTr TOCINCO
A ARTE COMO EXPRESSÃO
Hans Scharoun
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Bruno Taut Peasibão em mero peer a exposta dio Werkbiue Colônia (1914)
Tiich Mendelsohn Lajes Sefracken (1928) em Chem 12 Berhm
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250 RE REEREE
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251
Max Pechstcin Aso-rerrato com rachondo
(1920, xilograãa Cambridge (Mass) Foge Art Musetira Max Beckmann. Os destiuedretos Hi (19224 liografia (da pasta Berliner Reisc)
Frich Heckel nitografia
Dines mulheres(1910),
Christian Rohits Vo/ra de filho prodego (1916), detalhe xdoy afia
Kad Schoude-Rotluft xuograha
Garo (1914)
Cmul Nolde
Os Kers
hrografia em cores
Magos(e
1913)
CAPILULÓO CINCO VARLECOMUO LSPR SSÃO
ne a composição. exagera a expressão psicológica chegando à caricatura. mas não pode evita um ponderado equilíbrio tonal Ele precisa sustar a efusão dos tons, pois a cor também é desenho: é fá-
ANDRÉ DERAIN MULHER DE COMBINAÇÃO ERNST
LUDWIG
cil notar que os largos contornos azuis, nos braços
KIRCIINER
e no peito, têm uma função plástica, modelando
MARCELLA
às afinidades e as divergências entre o movimento francês dos fauves e o movimento alemão da Brixcke sur sum na comparação entre Mulher de combinação. do DLRAIN, é Marcella, de Kire.tINLR. O motivo e o
interesse psicológico pelo motivo são análogos: as
du is figuras sentadas estão inclinadas para a frente: os corpos mal são mostrados, para dar destaque à cabeça em primeiro plano. Também análogo é o modo
mar ginalmente os volumes. À contraposição tonal em que se constrói o quadro culmina na intensa expressividade do rosto: é todo olhos e boca, mas os olhos são turquesa como as meias. a boca vermelha como os cabelos. As mãos são grandes, e a que se destaca sobre a
sombra azul-celeste da camisa chega a ser exagerada. Essa larga mancha rósca era necessária para equilibiar (cor quente sabre coil fria) o azul-celeste
maticos e pesados. Apesar das visíveis analogias, po-
da camisa; no entanto, Derain a emprega também para acrescentar uma nota de vulgaridade (ainda Toulouse) à graça ligeira da figura. Contraste visual e contraste psicológico: para Deraim, o Expressiomsmo fauveé apenas uma intensificação do Im-
tém, a estrutura dos dois quadros é muito diferente:
pressionismo.
de ssmplficar a imagem: largas zonas de cores lisas
no figuras e no fundo, com contornos azuis esque-
atrela Impresstonista na pintura de Derain,
nitida-
rente expressionista na de Kirchnei. Derain quer carregar a sensação visual com uma
forte emotividade psicológica: o dado sensorial dev. se traduzir em estímulo sensual. Ele recorre à 1ntensa violência de Van Gogh « à penetrante descrinvidade de Toulouse-Lautiec,
mas
a estrutura do
eu atlro continua a se basear no princípio impressio-
Sobre um tema muito parecido, Kuchner faz um quadro amargo, quase desagradável. Mas sua estrutura, embora
muito menos exudita que a de De-
rain, é nova. Aqui também o quadro é elaborado sobre poucos tons fundamentais: vermelhos e amarelos, verdes e azuis. E aqui também eles culminam numa nota branca, o laço nos cabelos Todavia, os tons, que no quadro de Derain sustentavam-se
Há poucas cores
mutuamente num luminoso crescendo, aqui pare-
fundamentais, graduadas de modo variado: verde e
cem se subtrai! esc retrair, recusando a luz. O col-
nista dos contrastes simultâneos.
azul (cores frias), vermelho (cor quente). Às varia-
co.» tonats são destacadas, culminando no branco da camisola: o rosa forte da parede devolve o vermelho fl. mejante dos cabelos; paralelamente, no registro dos tons frios, o verde-azul do fundo devolve o turquesa das meias. São cores que traduzem não uma sensação visual, mas uma reação aferiva do artista: [rain quer demonstrar que o interesse psicológico amplia os registros cromáticos muito além das possibilidades visuais. Aquele vermelho-fogo e aquele | irquesa são os dois tons-chave da composição das cures, o que é demonsuado pelo fato de insistirem | o eixo médio do quadro, na brusca charneira for-
mada pelos braços e pernas. Derain utiliza a justaposição de tons quentes e tros para impedir que um dos dois registros domi-
po, que no quadro de Derain era maliciosamente disssmulado e sugerido pela nuvem da camisola, aqui é quase destruído, é apenas algo nu, frágil, dolorosamente contraído sob o rosto emagrecido, devorado pela enormidade dos olhos e da boca, pela massa dos cabelos soltos Derain utilizava os contrastes simultâneos para colocar a figura num estado de equilíbrio, ao passo que Kirchner procura
colocá-la num estado de não-eguilíbrio, que cria
no observador uma sensação de mal-estar, quase de
angústia. Os contornos já não intermedeiam a relação ente figura e fundo, mas cortam até o âmago
como tesouradas; os vermelhos e amarelos do fundo se põem à frente, quase destroem o róseo das carnes A mancha de sombra nos cabelos e em volta do pescoço
4 é verde-escuta, é como que uma /0-
153
254
CAPILLOCINCO A ARTE COMO EXPRESSÃO
Andre Derain Midher de combração (1906), 1x0,8!m Copenhague, Statens Museum for Kunsr
CAPÉEITO CINCO
AARTLCOMO
FXPRESSÃO
Ernst Ludwtg Kirchner Marcella (1910), tela, 0,71 = 0,61] m Estocolmo, Natonalmuscum
255
256
CAPÍLLLOUINÇO
A RT COMO EXPRESSÃO
na vazia, um buraco. Ela, assim como os contornos dos braços, parece escavada à força no plano compacto da cor. É claro que estes signos, o próprio recorre da figura, chegaram à pintura a partir da xilogravura. conservam a dureza do sulco escavado pelo ferro na superfície fibrosa e resistente da madeira. O
MUNCH EDVARD PUBERDADE
próprio achatamento e a esquemarização da imagem
A agressividade da imagem do Expressionismo nasce antes do realismo simbólico de MUNC H que da for-
parecem trair sua origem de imagem em negativo, que se torna visível pela estampa, pela prensagem. É verdade que Kirchner também deve seu modo de
percebe pela comparação deste quadro com a Macelta, de Kirchner.
compor a Matisse, com
vastas zonas de cores lisas,
mas a insistência sobre as linhas retas e os ân gulos, de
preferência às curvas, converte a expansão da imagem cromática matisstana num eferto contrário de contração. Aliás, Kirchner chegou a Matisse por uma
via que não a do Impressionismo — na origem dessa
melancólica figura de adolescente inquieta, encontra-se
Munch,
com
sua
angústia
seu
existencial,
complexo erótico-trágico de sensualidade e culpa. A figura de Derain é uma imagem da percepção projetada sobre uma
tela, a seguir comentada
com
ênfases ora galantes ora irônicas A figura de Kirchner ou extrai penosaé uma imagem que o pintor exprime mente de si, um fragmento vivo de sua própria exis-
tência.
É, em suma, algo inquietante, quase mons-
t:uosamente vivo, que o pintor introduz no mundo,
comunica: é exclusivamente essa descarga de tensão politiva que caracteriza a estrutura expressionista, em face da estrutura ainda representativa dos impressio-
nistas, dos faivese do próprio Cubismo.
ma exasperada e dilacerada de Van Gogh, o que se
Por sua vez, a imagem
realistico-simbólica
de
Munch nasce em Paris, após 1885, a partir da ampla tendência de superar a pura visualidade do Impresssonismo. Mas não é o simbolismo de Redon que mreressa ao jovem pintor norueguês. Neste quadro. é de Gauguin que deriva o tema da menina que tem “a revelação da vida” e, nua no ambiente nu, olha com perturbada ansiedade para o futuro, para seu destino
de mulher; por outro lado, é de Toulouse que provém o desenho penetrante e delgado, que surpreende não tanto os movimentos, e sim o frêmito nervoso, O estremecimento secreto do corpo. Há apenas o
essencial: a moça, a cama, a sombra da moça na parede. A figura é realista, com mãos e pés grandes e um pouco avermelhados, como freguentemente ocorre com os adolescentes; delicados, como de menina, são
o peito e os braços, e plena, já de mulher, é a curva dos quadris e da bacia. O rosto indeciso e amedrontado indica a perturbação da moça pela transformação que sente se realizar em seu próprio ser. Realista é à
sombra, projetada pela iluminação frontal, apenas levemente deslocada para a esquerda; todavia, essa sombra agigantada, que nasce do próprio corpo da
menina, toma forma e avulta como um fantasma,
possui um claro sentido simbólico, é a prefiguração da vida futura. A cama também é realista, vê-se a
marca, sente-se a tepidez deixada pelo corpo; no entanto, certamente se refere aos que, para Munch, são os dois pólos da existência, o amor e a morte. A passagem do estágio de menina para o de mulher, cujo destino obrigatório é amar, procriar e morter, não é para Munch um acontecimento fisiopsicológico, mas um problema social: na literatura escandinava, de Ibsen a Strindberg, um dos temas mais frequentes é precisamente a condição social da mu-
lher, o profundo vínculo que a liga à natureza e à espécie, mas limita ou impede sua participação na vida
CARMTULE
Edvard 150
NÇO
Munch
110m
AARTEÇOVO
Prberdade
EXPRESSÃO
(1895)
Oslo Nisjonalgallener
tela
257
258
CARRO
CINCO
A ARTE
COMO
EXPRESSÃO
intelectual e ativa da sociedade moderna. Até aqui, o
há nada mais real do que o símbolo O Amor é o se-
quadro de Munch poderia ser a Hustração de um drama ou de um tomance, e, pela sensação de ansiedade
xo, a Morte é o cadáver ou o ataúde; a Sociedade é à
louca, à Palavra é som inarticulado, grito. Na realida-
que emana da figura para o espaço vazio, O primeiro
de, nada possui a estabilidade, a clareza, o significado
sinal da influência do existencialismo de Kierkegaard
na arte. O faro realmente importante não é a descrição, inquestionavelmente aguda, de uma situação psicológica; é a concepção extremamente nova do valor,
certo da forma, tudo possui a precariedade, a instabilidade, a inconsistência do evento. Ou da imagem Note-se nesta figura a extraordinária fluidez das |inhas, a desenvoltura do signo, a ausência de partidos contrastantes de sombra e luz, de cores fortes — ru-
da função do símbolo, que é sempre o signo de uma
do, mesmo as menores notas gráficas ou cromáticas,
proibição, de um tabu social, à maneira de significar algo que não pode ser dito em termos claros. É isto
é uma alusão à continuidade do tempo, ao transcur-
que diferencia essa imã européia, ou melhor, nórdi-
mente por estar cheia de símbolos mmexpressos, a imagem é inquietante, agressiva, perigosa, como a sombra gigante é ameaçadora do quadro que, afinal, é ainda a imagem de uma imagem À imagem deve não tanto impressionar o olho, mas penetrar, atingir profindamente; talvez seja pot isso que a concepção realista da imagem de Munch teve consequências decisivas, ainda mais do que na pintura dos expressionistas alemães, naquela técnica da imagem que pode ser
ca, das ingênuas primitivas de Gauguin, a qual teme seu destino, sabe que deve se mover entre censuras e imterdições que reprimiam seus instintos naturais € limitaram sua existência social O símbolo não é algo além da realidade; é algo de morto que se mescla à vida. À sociedade, dizia Ibsen, É como um navio com um cadáver a bordo, e o cadáver é o símbolo-tabu
Aos vários simbolismos da época, do espiritualismo de Redon ao alegorismo de Bocklin, Munch responde que não se escapa da realidade evadindo-se no símbolo; a realidade é inteiramente simbólica, não
Edvard Munch (1905)
tela
Quatro moças na ponte
] 26»
1 26m
Waliraf-Racharrz Museum
Colônia
so da vida, à inevitabilidade do desuno. Mas, justa-
considerada a mais moderna e eficaz, o cinematógra-
fo (principalmente o cinema expressionista e a direção de Dreyer e Bergman).
Edvard Munch. Oguo (e 1893) madeira QR3-0,66m Oslo Munch-Musecer
CAPEELTOCINCO
HENRI MATISSE A DANÇA
Esca grande composição, uma das maiores obrasprumias de nosso século, é a resposta serena, mas decididamente negativa, de MAI Issr ao Cubismo triunfante Aarte (parece ele dizer) anda pode penetrar as
vercLales supremas do ser, as infinitas harmonias do Universo — é talvez a única atividade humana que A and: pode fazê-lo, e as perspectivas postrivistas práticas la sociedade contemporânea não podem impe-
SARIE
COMO
ENPRESSÃO
tado apenas por uma sensibilidade estimulada além de seus próprios limites. Matisse, agora, opera para além de todos os registros, de rodas as gamas, de to-
das as combinações a que o olha: humano está acosrumado pela experiência da natureza: na dimensão ultra-sensível, mas não transcendente, das ultracores. Tal era sua intenção, prova-o uma carta, em que
afirma rer procurado “para o céu um belo azul, o mais azul dos azuis (a superfície é pintada até a saturação, vale dizer, até um ponto em que finalmente emerge o azul, à idéia do azul absoluto), e o mesmo vale para o verde da terra, para o vermelhão vibrante dos corpos”
di-lo O quadro tem um significado mítico-cósmico.
o solo é o horizonte terrestre, a curva do mundo; o céu cm a profundidade azul-turquesa dos espaços ter estelares; as figuras dançam como gigantes entre a terra e o firmamento Ào Cubismo que analisa racion ilmente o objeto, Matisse contrapõe a intuição
sinrerica do todo. É este precisamente o quadro da síntese, da máxima complexidade expressa com a máxima simplicidade. É a síntese das artes. A mústca: a poesia confluem na pintura, e a pintura é concenida como uma arquitetura de elementos em tensão 10 espaço aberto; é síntese entre a representação e a decoração, o símbolo e a realidade coipóiea, entre o volume, a linha e a cor. Todavia, a síntese ainda
EMIL NOLDE ROSAS VERMELHAS
E AMARELAS
OSKAR KOKOSCHKA CHAMONIX, MONTE BRANCO
Entre os expressionistas alemães, NOLDE é um dos mais empenhados: nutre fortes interesses reli-
giosos e morais, « cm seus quadros com figuras a deformação chega poi vezes à violência da diatribe e do grito. E, no entanto, entre os expressionistas, é o
poe ser um cálculo racional; é preciso ir além, identificá-la com uma beleza nunca vista e quase monsLusa, sobrenatural, para além dos diferentes naturalismos do belo clássico e do belo romântico. F deve ser um belo que também abarque e resolva em sto seu contrário, o feio, pois um belo que uvesse um contráro não seria universal: o mesmo módulo de belzza deve valer para as figuras, a terra é o céu. Portanto, o belo não pode ser uma forma finita, e sm corrinua e rítmica: as figuras se alongam e se dobram no Litmo que as transforma, e sua beleza, cósmica e nas física, não se dissocta da beleza do espaço em que se movem. Ássim como não pode haver um equilíbrio estárico, não pode haver um ritmo regular e uniforme, o ritmo deve se gerar no quadro (veja-se o pé de «ma das figuras que calca a terra, como se esta fosse elástica, e o círculo sempre interrompido e reto-
pintadas por Monct, nos primenos anos do século xx, a sensação visual tende a se idealizar como visão poética, nos quadros de Nolde, ela se torna pesada e exacerbada. Como que por uma fúria reprimida, as flores se tornam mais vermelhas e mais amarelas, c a relva mais verde. O empaste da cor é denso, ao mesmo tempo sombrio e brilhante, como se cintilasse na escuridão Cada rimbré é forçado, como se quisesse prevalecer sobre os outros. As pinceladas seguem o andamento das pétalas das rosas, das folhas da relva, como que para reconstruir a part da sensação visual
mado dos braços) e ascender progressivamente a um
não a idéia da coisa, mas a própria coisa. À deforma-
ctrnax de máxima intensidade, levando todos os vales..s (cores e linhas) a um vértice onde pode ser cap-
ção de Nolde não é uma representação a que sc acrescenta um juízo ou um comentário, geralmente rude;
que mais se aproxima dos impressionistas, pela necessidade de fixar seus impulsos interiores em imagens imediatamente perceptivas, que não demandem qualquer esforço de interpretação Este quadro
é quase uma homenagem a Monet. Mas nas obras
299
Leningrado, Museu Ermirage
Henn Macrsse Jearo (1944 7) ilustração para Jazz. a ante decoupe, técrá fimem a colagem papier executada pele artista 193 seis a). mes anos
«: Kokoschka € 0 (1927), tela Karl tlichen Kunsthalle
(1907). tela, 0,64 x 0,82 m W'allltaf-Richartz Museum
Colôma,
262
CAPITULO CINCO
A ARTE COMO EXPRESSÃO
é um processo de reificação e, simultaneamente, de
degradação ou corrupção voluntária da imagem. KoKkOSCHKA, austríaco, formou-se em Viena nos anos da Secessão; assim como o arquiteto Loos, ele
reage em sentido “europeu” à requintada decadência, lenta e exaurida, de uma sociedade que, ligada a instituições políticas antigas em processo de esboroamento, parece decidida a deixar-se morrer com elas.
Liga-se aos pintores alemães da Briicke, mas também se volta para os impressionistas, ou melhor, o Expressionismo de seus primeiros anos cede gradualmente a um Impressionismo não mais perceptivo, que poderia ser dito interior ou mnemônico.
Aliás, logo abandona a Áustria, viaja muito e acaba por se estabelecer em Londres; mas sua pintura,
cheia de curiosidade pelos vários aspectos do mundo, deixa transparecer uma “paixão da vida” que, por sua vez, oculta a ansiedade, a torturante idéia da morte. Como em El Greco, que se mantém como seu modelo ideal, o apego sensual às coisas e a aspiração à
transcendência se identificam: a transcendência não é senão um dissolver-se nas coisas. Nesta tardia paisagem impressionista, há apenas a
pincelada rápida e esvoaçante que dispersa por todas as partes pequenas notas de cores puras: carmim, verde-esmeralda, azul-cobalto, amarelo. A primeira coisa a chamar a atenção é a imensidão da montanha que domina a aldeia abaixo; Kokoschka, o último dos românticos, ainda tem em mente a poética da montanha
do Sturm und Drang. As cordilheiras cobertas de bosques se empinam, erguem-se velozes em direção às neves resplandecentes; paralelas e repetidas, como em certos fundos de ícones bizantinos que ainda guardam traços em El Greco. À imagem é vasta, mas
frágil, diáfana, dilacerada como um cortinado ao vento, composta por curtas frases pictóricas extrema-
mente vívidas, porém logo interrompidas, e a seguir retomadas como numa repercussão de ecos. À luz do crepúsculo que se aproxima é um turvo fulgor no horizonte, mas se decanta em fios cintilantes de ouro nas neves e no céu. Raros rasgos de azul sobre o castanho dos cumes tingem o ar já escuro do vale. Os bosques são de um verde sombrio. O vermelho dos telhados se reencontra solto por toda parte, em pequenos toques avulsos. É como se, com o calar da noite, a natureza devesse se desintegrar, dissolver-se num caos pleno de animação: esses fragmentos es-
voaçantes de cor são como que a emanação das coisas que, antes de se dissolverem, cedem sua luz ao espa-
ço. Brilham no espaço como as primeiras estrelas num céu ainda claro. Em Nolde, intensificação da sensação visual até a reconstituição das coisas; em Kokoschka, desintegração das coisas em infinitos átomos lumunosos e coloridos, de extrema mobilidade.
São dois aspectos típicos da crise da representação ou do objeto em dois artistas que, no entanto, per-
manecem claramente figurativos. É a prova evidente de que a busca de novas estruturas de imagem não é um ato arbitrário,um gesto subversivo: um quadro como esta paisagem de Kokoschka, de 1927, comparado às obras contemporáneas de Kandinsky ou Klee, de Picasso ou Braque,
mostra-se historicamente superado, apesar de sua qualidade ainda elevada, assim como, por volta de
1450, uma pintura de Angelico ou um relevo de Ghiberti, não obstante sua altíssima qualidade, mostram-se historicamente superados em comparação a
uma pintura de Piero della Francesca ou um relevo de Donatello.
CAPÍTULO
SEIS
A ÉPOCA DO FUNCIONALISMO ARQUITETURA, URBANISMO, INDUSTRIAL DESENHO
Á pameira Guerra Mundial determinou, evidentemente, uma diminuição no ritmo da construção civil, tão florescente na primeira década do século. Na retomada, os consti u-
tores se encontraram diante de uma situação social, econômica e tecnológica| arofundamenLe modificada. A guerra acelerou por toda parte o desenvolvimento da indústria, tanto em
sentido quantitativo quanto no sentido do progresso tecnológico. Indiretamente, produziuse em decorrência um grande crescimento das populações urbanas. À classe operária, consciente de ter contribuído e sofrido com o esforço bélico mais do que qualquer outra classe,
vem adquirindo um peso político decisivo; ademais, a revolução bolchevique demonstrou que o proletariado pode conquistar e manter o poder; na arte, com seus movimentos experimentais e de vanguarda, ela pode 1caliza: uma transformação radical não só da estrutura e da finalidade, como também da figura social do artista. A burguesia profissional, por sua vez, está se transformando em classe de técnicos dirigentes. Devido à transformação quantitativa e qualtativa de seus conteúdos e scu dinamismo funcional, como também ao crescente desenvolvimento da mecanização dos serviços e transportes, a estrutura da cidade já não responde às exigências sociais. O problema urbanista, que antes da guerra se apresentava como prefiguração quase
utópica de uma situação que ocorreria no futuro, agoia se apresenta com extrema gravidade e premência. Possui um aspecto funcional: a cidade é um organismo produtivo, um
aparelho que deve desenvolver certa força de trabalho, e, portanto, precisa se libertar de tudo o que emperra ou retarda seu funcionamento. Possui um aspecto social: a classe operária é, a partir de agora, o componente mais forte da comunidade urbana, já não podendo ser considerada pelo critério de um instrumento manobrável e irresponsável. Possui um aspecto higiênico, em sentido fisiológico e psicológico:a cidade-fábrica é insalubre devido às emanações que a invadem e à densidade da população; além disso, é um ambiente opressor, psicologicamente alienante. Possui um aspecto político: para proporcionar à ci-
dade certo coeficiente de agilidade e funcionalidade, isto é, para utilizá-la, é necessário tirá-la das mãos de quem a explora simplesmente em bencfício próprio. Objetivamente, o que impediu e ainda hoje impede a adequação da estrutura à função urbana, c é a causa primeira da desordem das cidades, é a especulação imobiliária. Possui, enfim, um aspecto tecnológico: não só a tecnologia industrial substitui a técnica tradicional ou artesanal das construções, como também, se o problema da arquitetura é colocado, como o é necessa-
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CAPÍTULOSEIS
A EPOCA DO FUNCIONALISMO
riamente, em escala urbanista e, portanto, de construção civil em série, tal problema não pode ter solução fora da tecnologia industrial.
Esse conjunto de fatores modifica radicalmente a figura profissional do arquiteto: antes
de ser um construtor, deve ser um urbanista, projetar o espaço urbano. Imediatamente se determina uma nítida distinção entre os inúmeros oportunistas que se põem a serviço da espe-
culação imobiliária e ajudam a piorar as condições da cidade, e os poucos conscientes de sua função, sua responsabilidade, sua dignidade de profissionais ou técnicos, que tentam opor projetos de utilização racional à exploração descontrolada dos terrenos. Já não se trata da velha distinção entre empíricos e teóricos, entre artistas e engenheiros, e sim de uma distinção de ordem moral, segundo a qual os arquitetos que se colocam concretamente o problema
funcional da cidade são os únicos a empreender uma livre pesquisa e a alcançar resultados esreticamente válidos. Se os oportunistas a serviço do capital imobiliário visam à exploração do solo urbano segundo os procedimentos operativos tradicionais, opondo-se, portanto, aos novos métodos de projeto, às novas tecnologias e às novas formas arquitetônicas (exceto por imitá-las banal
e superficialmente, quando entram em moda), essa sua oposição não nasce, como no passado, de um verdadeiro apego às tradições: no século XX, sempre que se ouve falar na necessi-
dade de defender a “tradição clássica” da arquitetura, pode-se ter a certeza matemática de que
se está falando de má-fé, e de que o que se pretende defender é o direito à exploração especulariva indiscriminada, em detrimento do dever de utilizar funcionalmente o solo e o aparato
urbano. O classicismo adotado como arquitetura oficial do fascismo na Itália e do nazismo na Alemanha não tem o menor fundamento na arquitetura clássica, pressupondo, pelo con-
trário, uma total ignorância desta. À luta pela arquitetura moderna foi, por conseguinte, uma luta política, mais ou menos inserida no conflito ideológico entre forças progressistas € reacionárias; prova-o o fato de que, lá onde as forças reacionárias tomaram o poder e sufoca-
ram as forças progressistas (com o fascismo na Itália, o nazismo na Alemanha, o predomínio da burocracia de Estado sobre os movimentos revolucionários na URSS), a arquitetura moderna foi reprimida e perseguida. A arquitetura moderna se desenvolveu, em todo o mundo,
segundo alguns princípios gerais: 1) a prioridade do planejamento urbano sobre o projeto arquitetônico; 2) o máximo de economia na utilização do solo e na construção, a fim de poder resolver, mesmo que no nível de um “mínimo de existência”, o problema da moradia; 3) a ri-
gorosa racionalidade das formas arquitetônicas, entendidas como deduções lógicas (efeitos) a partir de exigências objenvas (causas); 4) o recurso sistemático à tecnologia industrial, à pa-
dronização, à pré-fabricação em série, isto é, a progressiva industrialização da produção de todo ripo de objetos relativos à vida cotidiana (desenho industrial); 5) a concepção da ar-
quiretura e da produção industrial qualificada como fatores condicionantes do progresso social e da educação democrática da comunidade. No âmbito do que podemos chamar de ética fundamental ou deontologia da arquitetura moderna, distinguem-se diversas formulações problemáticas e diversas orientações, li-
gadas às diversas situações objetivas, sociais e culturais. Assim, podem-se distinguir: 1) um racionalismo formal, que possui seu centro na França e tem à frente Le Corbusier; 2) um ra-
cionalismo metodológico-didático, que possui seu centro na Alemanha, na Baulrus, é em à frente W. Gropius; 3) um racionalismo ideológico, o do Construtivismo soviético; 4) um racionalismo formalista, o do Neoplasticismo holandês; 5) um racionalismo empírico dos
países escandinavos, que tem seu máximo expoente em A. Aalto; 6) um racionalismo o1gãnico americano, com a personalidade dominante de F. L. Wrighr.
CAPPFECOSFIS
AFPOCA DO FUNCIONALISMO
Le Corbusier Figuração do Modulor
t. LE CORBUSIER (1887-1965), tal como Picasso, do qual pode considerar-se o equivalente na arquitetura, foi não só um grande artista, mas também um magnífico agitador cultural, uma inesgotável fonte de idéias, um farol. Teórico, polemista combativo e brilhante,
propagandista incansável, com sua obra de arquiteto e de escritor (que ocupa um lugar de
destaque na literatura artística contemporânea), ele transformou o problema do urbanismo e da arquitetura num dos grandes problemas da cultura do século xx. Para alguns, sua obra arquitetônica parecia destituída de uma coerência intrínseca e unívoca: qual a relação que
pode existir entre a Villa Savoye e a capela de Ronchamp? Há uma relação, ainda que Le Corbuster, como Picasso, tenha várias vezes mudado de estilo. A coerência reside em sua conduta, e ela é, antes de mais nada, política, no sentido mais elevado do termo: uma grande política, generosa e esclarecida, do urbanismo e da arquitetura. O fundamento do racionalismo de Le Corbusier é cartesiano, ele próprio o declara; seu desenvolvimento é iluminista, de tipo rousseauniano. O horizonte é o mundo, mas o centro da cultura mundial, para Le Corbusier, continua a ser a França. Considera a sociedade fundamentalmente sadia, e sua ligação com a natureza originária e ineltminável; o urbanista-arquiteto tem o dever de fornecer à sociedade uma condição naturale ao mesmo tempo racio-
nal de existência, mas sem deter o desenvolvimento tecnológico, pois o destino natural da sociedade é o progresso. Portanto, nenhuma hostilidade de princípio em relação à indústria:
bastará pedir aos industriais (que naturalmente fingirão não ouvir) para fabricarem menos canhões e mais habitações. A forma artística é o resultado lógico do “problema bem formulado”: os navios a vapor, os aviões, cuja forma corresponde exatamente à função, são belos como o Partenon. Evidentemente, o problema bem formulado é o que traz todos os dados em ordem, e cuja solução
não deixa incógnitas nem resíduos. Reduzindo os dados a um denominador comum, restam apenas dois: de um lado, a natureza; de outro, a história ou a civilização Eis a equação que é necessário resolver, convertendo em simerria o que parece ser uma contradição. Como no
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206
CAPTTULCISTES
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EUNCIUNALISMO)
Te Carbuster Psredo pera o pleno srbeaeta de São Parto lt Brasil) (1929)
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Pstreeto putval 7) plano
de Menetenidén( | 929)
domínio da razão pura não subsistem contradições, não pode haver oposição entre o objetoedificio e o objero-narureza, entre coisa é espaço. São entidades semelhantes, redutiveis uma à outra com simples relações de proporções. Le Corbusier encontrará a fórmula, prragórica: o homem como medida de todas as coisas, a medida humana, o Modulor O edifício não atrapalhará a natureza aberta colocando-se como um bloco hermético; a natureza não se deterá
à soleira, entrará na casa. O espaço é contínuo, a forma deve se inserir, como espaço da civi-
lização, no espaço da natureza. Quando jovem, Le Corbusier foi pintor (com seu verdadeiro nome, Jeannejer, lançou com Ozenfanto manifesto pós-cubista do Purismo): sua concepção
de espaço continuo, inseparável das coisas que circunda, atravessa c penetra, sendo também por elas penetrado, de faro deriva do Cubismo. Não é abstração nem formalismo: a construção ideal do espaço torna-se a construção material do edifício A casa como volume erigido sobre pilares (92/0125), de maneira que se possa circular por baixo dela, sem que o movimento
da cidade seja interrompido pelos blocos maciços das construções nem canalizado para os cunículos sufocantes das ruas; a cidade que enta nas vias internas dos edifícios com scu reduzido tráfego de lojas e serviços para a vida condiana; os apartamentos não estratificados, e sim encaixados uns nos outros em múltiplos níveis; os jardins nas sacadas, a natureza que entra na construção. eis outras idéias que passaram de Le Corbusier para a construção civil cor-
rente, mas que tinham sido deduzidas pelo arquiteto a partir da concepção cubista do espaço continuo, plástico, praticável, de diversas direções e dimensões. Le Corbusier desdobra es-
se espaço em todas as escalas de grandeza. Na escala urbanista: são os projetos urbanistas que elabora ou apenas esboça para várias cidades da Europa (Genebra, Antuérpia, Barcelona, Marselha, Paris), da África (Argel), da
América do Sul (Buenos Aires. Rio de Janeiro, Bogotá), da Índia (Chandigarh, a única interramente realizada): ou as enormes “unidades habrracionais” de Marselha e Nantes, verdadei-
ras cidades-casas, nas quais se combinam a exigência de intimidade individual e a de “viver junto” com a comunidade Na escala da construção civil: são os edifícios públicos ou destinados à assistência social, as escolas, os museus, os prédios de apartamentos, as casas. Na escala de objeto: como a capela de Ronchamp, que é um perfeito objeto plástico, uma escultura ao ar livre, ou como os móveis de metal projetados para a indústria. Le Corbusier é um clássico, como Picasso: tudo se resolve na clareza da forma, e esta re-
solve tudo, pois a forma correta é, ao mesmo tempo, a forma da realidade e da consciência,
CABÍILLOSEIS
AIPOCADOTI
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Le Corbusier Esquema consenenvo a Aderson Dont Fuo (VIA)
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Habutation (1946)
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268
CAPÍTLLOSEIS
AZPOGA DO FUNCIONALISMO
LeCorbusser: Projera de uma cidade conteraporinea de três milhões de habitantes N922
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Le Corbuster Proseto do pavilhão suiço na Cué Untwerszasre de Paris (930)
da natureza e da história. Contudo, sua grande figura humana tem um limite: o de ter pretendido ser um benfeitor da humanidade, tê-lo sido (mais oumista, sob esse aspecto, do que Picasso, que se fez defensor, paladino em armas, da humanidade em perigo). Sentiu-se investido de uma missão histórica, dedicou-se a ela com um empenho lúcido e corajoso que seria mesquinho não admirar; mas afinal, apesar de seu enorme e desprendido interesse pela vida
social, sempre se sentiu acima dela, um salvador. Para cada problema, tinha a solução correta já pronta, «sempre era a mais simples, porque o complicado não é o raciocínio, e sim o preconceito. Todavia, no entreguerras e com a evidente tendência do capitalismo mundial em
se transformar de sistema econômico em sistema de poder, a humanidade não precisava de um são Jorge que lutasse com o dragão, mas de alguém que a ajudasse a tomar consciência de seus dilaceramentos, de seus males internos, e a encontrar em st mesma a força e a vontade de resolvê-los. Não precisava, em suma, que lhe dissessem “não se mexa, eu cuido disso”, e
sim “vamos, cuide de suas coisas”.
CAPÍUULO St Is
4 ÉPOCA DO FLENCIONALISMO
rm. No final da Primeira Guerra Mundial, a Alemanha derrotada encontra-se numa
condição política, social e econômica trágica Está dilacerada por conflitos de classe. de um lado, os militares e os grandes capitalistas que quiseram a guerra, anteviram grandes lucros com ela, e agora atribuem a culpa pelo fracasso ao derrotismo da classe operária, in-
vocando o rearmamento e um Estado forre que desencadeic uma nova guerra, de revanche, de outro lado, o povo, que arcou com todo o peso da gueira e agora é o único a sofrer as consequências da derrota. Os intelectuais reivindicam e realizam uma rigorosa autocrírica da sociedade e também da cultura alemã: exaltara-se excessivamente o mito da nação,
do Estado ético, da missão de domínio e guia atribuída pelo destino à raça germânica e a seus nibelúngicos paladinos. Agora é necessário opor a este irracionalismo político, que leva à exasperação das contradições sociais e à violência, um racionalismo crítico, que dialetize todos os contrastes e resolva-os pelo fio da lógica e não pelo da espada. Prova de que o
funcionalismo arquitetônico alemão se insere nessa situação histórica é o fato de ter nascido a partir do Expressionismo do Grupo de Novembro (1918), no qual se refletiam simultaneamente a consciência da catástrofe e a ânsia, não por uma vingança brutal, e sim por um renascimento ideal. O próprio W. GrorIUs (1883-1969), que logo a seguir tomará a
frente do racionalismo alemão, participou da crise do utopismo expressionista; o que patece ser um frio rigor de seu programa é, na verdade, uma lúcida defesa da consciência a
partir da desordem e do desespero da catástrofe histórica. Como Le Corbusier, Gropius deve ser visto em seu duplo aspecto de artista e animador cultural. Mas Le Corbusier é um vulcão de idéias, ao passo que Gropius é o firme defensor de uma idéia, de um programa, de um método. Le Corbusier dita leis, lança declarações, dis-
cure, argumenta, persuade; Gropius funda (1919) e dirige uma escola exemplar, a primeira escola “democrática”. Le Corbusier leva a cabo uma política inteiramente sua, a política da Groprus analisa a sia destruir; razão que leva naturalmente a sociedade a construir, e não E A
tuação e faz sua escolha, coordena seu programa de ação com o programa de uma corrente
política claramente determinada, a social-democracia. Como arquiteto, Le Corbusier riva-
liza com os grandes pintores de sua época, pois o ideal clássico da forma é universal; ora se aproxima de Braque, ora de Gris, ora de Picasso; Gropius não crê na universalidade da arte, mas convoca em torno de si, na Bauhaus de Weimar, os artistas mais avançados (Kandinsky, Klee, Albers, Moholy-Nagy, Feminger, Itcen), obtém a colaboração deles, convence-os de
o lugar do artista é a escola, sua tarefa social o ensino. Entende-se a razão disso: a finalique dade imediataé a de recompor entre a arte e a indústria produriva « o vínculo que unia a arte
ao artesanato; a arte, portanto, constitui um dos dois dados do problema, e não é absoluta mente abstrata, mas isso apenas no que se refere àquela arte realizada pelos artistas mais, avançados, cuja presença€ dedicação, por conseguinte, são indispensáveisà escola, A Bauhaus foi uma escola democrática no sentido pleno do termo: precisamente por isso, O nazismo, tão logo chegou ao poder, suprimiu-a (1933). Fundava-se sobre o princípio da colaboração, da pesquisa conjunta entre mestres e alunos, muitos dos quais logo se tornaram docentes. Além de ser uma escola democrática, era uma escola de democracia: a sociedade de-
mocrática (isto é, funcional e não hierárquica) era entendida como uma sociedade qque se aué orienta seu próprio progresso. por si, organiza e se desenvolve istoag é, pre forma-se toderermina, ———s Ca nie ese Fanta me mana ut mi me
Progresso é educação, e o instrumento da educação é a escola; portanto, a escola é a semente
da sociedade democrática Bauhanssignifica “casada construção”: por que uma escola democrárica é uma escola da construção? Porque a forma de uma: Sotiedade é a cidade e, ao construir a cidade, a sociedade constrói a si mesma, No vértice de tudo, portanro, está o urbanisporque cada ação educativa ensina a fazer a cidade e a viver civilizadamente como cidamo, porq
259
270
Ls
HTULO SLIS
VUPOÇA
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Walter Groprus Manras do propero
Nvalter Gropius
do Iezalthearer 1926)
VISTA axCrOometrnca
Pragrso du Tatulitrentes (1926)
e resolvendo cada Ive civilizadamente racionalmente, colocandoQet viver raciona dão. Viver izadamente significa significa viver Aa ques-
tão em termos dialéticos. A racionalidade deve enquadrar as grandes e pequenas ações da vIda: racionais devem ser a cidade em que se vive, a casa em que se mora, a mobília e os utensihos que se empregam, a roupa que se veste. Apenas um método de construção ou, mais precisamente, de projeto deve determinar a forma racional de tudo o que serve à vida e a condiciona; como tudo é ou será produzido pela indústria, rudo se reduz a projetar para a indústria: o
plano urbanístico de uma grande cidade é o desenho dustrial, da mesma forma que o projeto de uma colher. É claro que um plano uibanístico comporta a distribuição e coordenação de todas as funções sociais — habitação, trabalho, instrução, assistência, lazer: mas também a eliminação de tudo o que impede a circularidade e continuidade das funções, começando a par-
tir da propriedade privada « da utilização especulativa do solo urbano. A cidade não consiste num repositório de funções. a fábrica não é um barracão onde se trabalha, a escola não é uma casa onde se ensina, o teatro não é um edifício onde as pessoas se entretêm. É o dinamismo da função que determina não só a forma, mas também a tipologia dos edifícios. O próprio Gropius o demonstra; por considerar a escola como o núcleo formador da sociedade, ele estuda seu organismo funcional, começando pela escola por ele dirigida, a Bauhazs, para a qual constrói, em 1925, uma sede em Dessau, que constitui uma das grandes obras-primas do funcio-
nalismo arquitetônico europeu; como considera que o teatro é também um centro educativoTeatro Total, cuja arquitetura está inteiramente em social, ele pesquisa para o diretor Piscatoro em mm —
função das ações cênicas e onde o público não é espectador, mas participante do espetáculo. Passa-se logicamente do problema dos conteúdos funcionais para a questão da comunicação.
Na cidade do passado, os edifícios representativos, os monumentos, também significavam é
CAP
OSS
ALPOCADO
TT NLIGN ALISA SO
comunicavam: a catedral significava e comunicava a presença de Deus ou a autoridade da [greja; o palácio real, o poder soberano; toda casa senhorial, o nível ou o patrimônio do proprietário. Em suma, comunicavam a ordem hierárquica imposta de cima à sociedade; em outras palavras, a comunicação era preceito, norma, ordem. A sociedade democrática não tem classes, tem apenas funções; todas as funções são igualmente necessárias; ela é inteiramente constituída de comunicações, mas as comunicações não descem do alto, e sim circulam. À comunicação que constitui o tecido vital da sociedade democrática é comunicação de pessoa para pessoa, intersubjetiva A concepção da cidade como sistema de comunicação, que hoje está na base de qualquer estudo urbanístico sério. já se encontra presente, ainda que apenas como
intuição, na teoria é na didática da Bauhaus. Constituem comunicação: o traçado da cidade; as formas dos edifícios, dos veículos, dos móveis, dos objetos, das roupas, a publicidade; as
marcas de fábrica; o invólucro das mercadorias; todos os tipos de artes gráficas; os espetáculos de teatro, cinema e espoites. Tudo o que se inclui no vasto âmbiro da comunicação visual é, na Bauhaus, objeto de análise e projeto | E E “Muntos tipos de objetos para a produção industrial em série que a seguir foram, e ainda hoje são, amplamente difundidos (por exemplo, os móveis em tubos metálicos, luminárias,
a nova estrutura da publicidade e da paginação) nasceram das pesquisas analíticas da Bauhaus. Teoriza-se e especifica-se o princípio da forma-padrão. fundamental, do ponto de vista técnico, para a produção mecânica em série, e extremamente importante, do ponto de vista sociológico, pelo acordo que supõe, por parte do conjunto dos consumidores, quanto à forma mais adequada e, portanto, padronizada de certos objetos. Mas é possível imaginar ma sociedade em que tudo seja padronizado: Desejável ou não, é a sociedade que está sendo preparada pelo industrialismo, e nada diz que deva ser como um formigueiro ou uma colméia. Ela o será se esses objetos tiverem o mesmo significado para todos, não o será se os indivíduos uverem condições de decifrá-los e inter pretá-los de diversas maneiras, isto é, se a forma desses objetos for capaz de instigar uma tomada de posição, mas sem condicioná-la 11gidamente, por parte de seus usuários. Na teoria e na didática da Bauhaus, certamente pre-
domina a tendência de geomerrização das formas: todavia, não se tata de um cânone, como no Purismo francês. Poder-se-ia dizer que a forma geométrica é uma forma pré-padronizada;
Walter Gropius c Marccl Bicuer Casa Gropntes 192%" emo Eancal (Mass *
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2725«
CAPITUS
O Skts
4 ÉPOCA
DO FUNCIONALISO
3 Jecrdos produztdos pele escola de receliagem da Barebass (1927-28)
Tosef Knau (escola do metal da Bauhaus) e esparatesva (1924), alpars prateada
Chaterra
recido delãcravon de algodão c rayon de algodão e celofane
é-nos tão familiar que podemos utilizá-la independentemente de seu significado conceitual originário, como um signo a que se podem atribuir, conforme as circunstâncias, diferentes significados. É exatamente o que Kandinsky pretende demonstrar nas pinturas posteriores a
1920, nas quais parece estudar deliberadamente os infinitos significados que o mesmo signo geométrico pode assumir, conforme se modifique a cor ou a situação espacial. O método projetual da Bauhaus, porém, não é um método para encontrar a forma correta, a gure Form: esumulante para os processos psíquicos da consciência é a forma que não se apresenta como
dada, mas é captada em sua formação, isto é, no dinamismo que a produz. Tão importante quanto o problema da forma ( Gestalt) é o da formação (Gestaltung). Aqui, especialmente, O racionalismo alemão diverge do racionalismo francês, para o qual a forma deve ser racional, por corresponder a uma racionalidade inata do ser humano Não, a vida é naturalmente irracional: racional é o pensamento que se entrelaça à vida, resolve os problemas continuamen-
te colocados por ela, transforma-a em consciência da vida. A arte é justamente o modo de pensamento pelo qual a experiência do mundo realizada através dos senudos assume um sigmficado cognitivo, pelo qual o dado da percepção se apresenta instantaneamente como for-
ma. É nessa passagem extremamente delicada que a contribuição de Klee à didática da Bauhaus toi fundamental, preservando-a do perigo de conformar-se ao racionalismo mecânico da tecnologia industrial; inteiramente dedicado a perscrutar as profundezas do ser para captar as raízes primeiras e mais secretas da consciência, Klee nunca sucumbe à vertigem, nunca perde o fio de Ariadne do pensamento. Não traduz a imagem em conceito, o que equivaleria a destruí-la; limita-se a torná-la visível, pois a percepção já é consciência. Além disso, embora no primeiro programa de 1919 já se negasse o privilégio da inspiração ao attista e se lhe impusesse a obrigação moral de uma práxis produtiva, a Bauhaus sempre foi uma escola de arte, ou melhor, um centro de cultura artística extremamente vivo,
em contato com todas as tendências avançadas da arte européia. com o Neoplasticismo holandês, com o Construrivismo russo, e mesmo com o Dadaísmo e o Surrealismo. Nos pro-
gramas e nas manifestações internas da Bauhaus, apesar do propósito racionalista, sempre se deu muita importância às atividades dirigidas a estimular a imaginação. Nessa escola-mãe do racionalismo arquitetônico alemão, o ensino da arte teatral era fundamental, sendo confiadoa O ScHLEMMER (1888-1943); e não apenas como arquitetura do teatro e cenografia, mas também como direção, coreografia, ação cênica e dança.
CAPÍTULO
Oscar Schlemmer Desenho ele trate para o 7 riadisches Baller(c 1921 )
SEES
A EPOCA
Oscar Schlemmer Personagem do Fradisebes Ballet(c 1921)
urbanista e arguiretônica de Gropius também não pode ser considerada como a A obra o pura e simples aplicação de uma fórmula racionalista. Aluno de Behrens, já em 1911, como. projeto da fábrica Fagus, modifica radicalmente a concepção da argutetura industrial resolvendo simultaneamente o problema da instrumentalidade do edifícioe o das condições hiCa
giênicas e psicológicas do trabalho. As grandes paredes de vidro anulam a separação entre es-
paço externo e interno; as estruturas de sustentação se limitam a uma sucessão de planos ortogonais; o edifício já não é uma massa plástica, e sim uma construção geométrica de planos transparentes no espaço. Logo a segur (1914), na “fábrica modelo” para a exposição do Werkbundem Colônia, mostra ter aproveitado vá! ias sugestões da obra de Wright, o qual mal começava a ser comentado na Europa; e, logo depois da guerra, é um dos protagonistas do movimento arquitetônico expressionista (Grupo de Novembro). O espaço, para Gropius, não é nada em si; é uma pula, inclassificávele ilimitada extensão. Começa a existir, a se delimitar, a tomar forma quando é considerado como dimensão vir-
tualdo agir ordenado, projetado, formativo de um grupo social; por grupo social, entende-se
não a sociedade em abstrato, e sim poucas ou muitas pessoas que compartilham uma expe-
riência formativa, quer se trate dos membros de uma família, dos alunos de uma escola, quer de um de uma fábrica, dos-espectadores de um teatro, dos habitantes se trate dos operários bairro. O elemento de coesão do grupo social não são os interesses de classe (utopicamente ttdos como superados), nem a função em sentido mecanicista, e sim uma condição psicológica semelhante, uma mesma disposição à experiência a ser realizada. Projetar o espaço significa projetar a existência, e a recíproca é verdadeira: não há existência consciente que não seja de alguma maneira projetada. Toda a obra de Gropius assim se resume na definição de uma metodologia do projeto: em escala urbana (bairros de Karlsruhe e Berlim), em escala de construção civil (escolas, prédios de apartamentos e unifamiliares, chalés): de desenho industrial (a carroceria do automóvel Adler). Como a existência que se projeta é a existência social, o pro-
jeto também deve ser uma atividade social, de grupo, interdisciplinar; é uma garantia da seriedade do trabalho, mas também de sua democraticidade intrínseca. Convencido de que a ar-
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UNCIONATISMO
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CAPÍTT
LO SEIS
À FPROCA DO FUNCTION 4
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W alter Gropius Hifbyica fagus(1911-2) em Alfeld an der Lene
A DO FL NCLOSADISMO
Walter Gropius 2 Hannes Mover Predio dos escrrtorios ma Exposição
do Werkbund em Culoma (1914)
Walter Gropius Edifícios no barro Sremenssigat em Berti (1929-311
Walter Gropius e Konrad Wachsmarn lento do Packaged Honse System puiret exa! Panel Corporarau (1942) Wit Gropius Amronóve! Adies te « “hado em 1930)
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CARBTULOSIIS
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CAPTLLO SEIS
4 ÉPOCA SO TUNO OR
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quitetura não pode ser a obra individual de um artista, Gropius quase sempre trabalhou em colaboração, principalmente quando, ao deixar em 1928 a direção da Bauhaus, já não tem à
sua volta o aparato operacional de uma escola. Quando foge para a Inglaterra, em 1934, colabora com MaxwkLL FRY; a parti de 1937, quando é convidado a lecionar na Harvard University, nos Estados Unidos, colabora com BRIUER, um ex-aluno e professor da Bauhaus que também havia emigrado, e a seguir com K. WACHSMANN, com quem estuda um método de
pré-fabricação integral. Finalmente, forma com seus alunos uma cooperativa de arquitetos
(TAC) e, a partir daí, não mais separa o trabalho pessoal do trabalho em grupo. Nas obras do período americano, sempre precisas do ponto de vista da metodologia do projeto, inquestionavelmente falta a firme vontade de rigor, o engajamento problemático das obras alemãs de 1920 a 1930. É outra prova de que, apesar da postura racionalista e das declarações acerca do caráter absoluto da teoria, a obra de Gropius nascia da situação histórica extremamente dramática do pós-guerra alemão — era uma intervenção decididamente política. Mas, se isso refuta a acusação de abstração teórica tantas vezes dirigida à sua obra, revela também seu limite ideológico: Gropius, socialista na Alemanha, deixou de sê-lo nos Estados Unidos.
Ludwig Mies van der Rohe (1952) em Elmbuis: (TIL)
Casa MeCormnke
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O outro grande protagonista do racionalismo na Alemanha é L. MIES VAN DER ROHE (1886-1969), um arquiteto ligado a Gropius por uma estranha mescla de afinidade e aversão. Como Gropius, foi aluno de Behrens; a convite de Gropius, assume a direção da Bauwhaus em 1930; como Gropius, em 1937 deixa a Alemanha e realiza o restante de sua obra nos Estados Unidos
Ao contrário de Gropius, não se coloca problemas sociais e não tem interes-
ses urbanistas diretos. Provavelmente julga que as velhas cidades estão destinadas a desapareces, e não as leva em consideração; seus arranha-céus serão os primeiros elementos da cidade futura, composta por enormes prismas transparentes com grandes espaços vazios entre si. À partir de 1920, como pura pesquisa formal, começa a projetar arranha-céus como invólucros de vidro ao redor de uma alma estrutural. Na Europa desse período, o arranha-céu ainda era considerado um elemento característico do folclore urbano americano. Mies, pelo contrário, considera-o como resultado lógico da ideologia do Grupo de Novembro: a “casa de vidro” límpida como um cristal, clevando-sc até o céu Também para ele o racionalismo é uma utopia lógica, uma utopia-hipótese que não deixará de ser realizada pela técnica do amanhã. O ar-
ranha-céu é o tema central em todo o leque de sua pesquisa; quando não projeta para grandes alturas, projeta para mínimas, em extensão; edifícios no nível do chão, amplas coberturas planas sobre baixas paredes de vidro, com estruturas de sustentação no interior coincidin-
CAPITULO stIs A LPOCA DO | SCION ISO
do com as divisórias, os cortes do espaço habitado. Ligado à experiência neoplástica, que pasa ele fora decisiva, Mies admite apenas dois eixos estruturais, um vertical e um horizontal, e
uma única entidade formal, o plano. O espaço natural não existe, somente seus termos cx-
iremos têm valor: solo e céu, unidade e infinito. Nenhum interesse, portanto, pelo ambiente natural, social ou doméstico: em seu racionalismo idealista, a obra de arte é um absoluto, não pode ser relativa a coisa alguma. Tampouco os homens a que se destina a arquitetura têm existência própria: são os pontos que constituem a superfície, os números que constituem a série aritmética. A arquitetura não auxilia nem projeta suas vidas, mas prescreve-as — é co-
mo um imperativo categórico. Mais do que um modo de pensar, a racionalidade é um dever.
A personalidade de Mies pode parecer enigmática, até contraditória e, para além de sua extraordinária lucsdez expressiva, dramática. Levando a crença racionalista às últimas consequências, sua arquitetura pode parecer, mais do que futurista, extremista. À nenhum outro
ocorreria colocar no meio de uma cidade um ou mais paralelepípedos com cem metros ou mais de altura, transparentes, quadriculados como um papel milimetrado: e, além disso, sem
aqueles grandes corpos de apoio, aquela graduação dos volumes, aqueles pilares vigorosos e cranquilizadores com que os construtores americanos procuravam tornar suas montanhas arquitetônicas, integrando-as ao ambiente, psicológica e visualmente aceitáveis. No entanto, embora seus arranha-céus sempre sejam concebidos como repetições em série de elementos padronizados e só possam ser construídos com técnicas industriais avançadas, Mies sempre re-
cusou transformar-se em técnico industrial, assim como recusou se transformar em sociólogo
urbanusta. Sempre quis ser um arquiteto no sentido tradicional do termo: um artista, um poeta que se mede com a ciência e a técnica de sua época, domina-as e obriga-as, à sua própria revelia, a criarem beleza. Como Goethe, que se sente espiritualmente rão próximo de seu mestre ideal, o neoclássico-romântico Schinkel, Mies está convencido de que a poesia e a ciência equivalem à verdade, a verdade é racional, e a poesia também o é. A grandeza de Mies não pode consistir apenas no fato de ter se conservado poeta, enquanto praticava a tecnologia. Praticando a tecnologia da produção em série, ele descobriu que a scrialidade não exclui o ritmo, e que o novo projeto é um projeto de ritmos seriais Evidentemente, o ritmo não é determinado apenas por fatores quantitativos: se assim fosse, a batida do metrônomo corresponderia à
música perfeita. Tal como na música é a qualidade das notas, na arquitetura é a qualidade das formas que desenvolve um ntmo a partir de sua repetição social. F, este é um grande avanço,
mesmo em relação à perfeita metodologia projetual de,Gropius. Como além do projeto não há senão a produção mecânica e a montagem dos elementos, a obra do arquiteto se realiza com
o projeto; e este não é uma preliminar da arquitetura, e sim a arquitetura em sua integralidade Uma arquitetura, poderíamos dizer, mmfinita Aí está, portanto, explicada a aparente ambigúidade de Mies, artista e cientista, místico e racionalista: se a forma artística é a forma teori-
camente reprodutível ao infinito, a forma de um edifício é uma forma no limite entre o fini-
to e o infinito, uma forma que, com seu duplo caráter de realidade e abstração, coloca-se no
termo último, no horizonte exemo da consciência, e vem a defin-la. A transferência do racionalismo alemão para os Estados Unidos, devido às perseguições nazistas, foi o móvel de uma crise que possuía razões profundas. Groprus, que na Alemanha lutara corajosamente por uma arquitetura e um urbanismo democráticos, nos Estados Uni-
dos considera como perfeita democracia o bem-estar econômico mais difundido, o avanço
tecnológico, a hberdade de opinião, a injustiça social menos visível. Deixa de lado as ideolo-
gias como armas inúteis; dedica-se na cátedra a formar os técnicos profissionalmente irrepreensíveis e politicamente neutros que requer o sistema. Colaborando com Breuer, que já fora seu aluno na Baxhaus, sacrifica o rigor da pesquisa em favor do sucesso profissional; jun-
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CAPÍTULOSLIS
LETOTA
DO
FUNCIONALISMO
Ludwig Mies van cer Rohe Frplarade Aparmnenes (19 Jem Clruago
tamente com Wachsmann, desenvolve uma metodologia técnica da pré-fabricação, que acelera o indispensável processo de industrialização das construções, mas exime o projetista de
qualquer preocupação social O grupo cooperativo que foima com seus alunos americanos é efeuvamente uma organização de ótimos especialistas a serviço do capital e dos empreiteiros imobiliários; é o que infelizmente demonstra o grande arranha-céu no centro de Nova York. que atende aos interesses de grandes grupos financeiros, mas agrava perigosamente a condição urbanista já crítica da cidade Assim se revela, retrospectivamente, a falha da raiz ideológica do racionalismo de Gropius: é uma reação humana e civilizada à prepotência autoritária do capitalismo, que não consegue, porém, aprofundar a análise, reconhecer no totalitarismo não a degeneração, mas
a consegiiência mevitável do sistema. Em certo sendo, Mies, que nunca professou um credo ideológico, é mais coerente; manifestando, desde os primeiros estudos sobre o tema do arranha-céu, sua inclinação pelo mito americano, ao chegar aos Estados Unidos permanece firmemente ligado ao seu “sentimento europeu” pela forma, Contudo, o mesmo rigor racionalista que, no projeto, leva-o a substituir a composição pela repetição serial, acaba por deslocar a racionalidade para o plano da abstração; a tacionalidade, enfim, já não coloca nem re-
CAPITULO STIS
A ÉPOCA DO FUNCIONADISHO
solve os problemas concretos da existência, contentando-se em realizar a si mesma, Daí o ou-
tro aspecto da crise, oposto ao do profissionalismo: a metafísica ou utopia do racionalismo, com a decorrente identidade entre metodologia e tecnologia. A ciise afeta todas as premissas teóricas, programáticas e didáricas da Bauhaus em prmeiro lugar, a tese fundamental da dispensável substituição da concentração do valor estético numa categoria privilegiada de bens (as obras de arte) por uma experiência estética
difundida, através do projeto urbanista-construtivo-industrial. É significativo que esse aspecto da crise se manifeste justamente na obra de BREUER (1902-62), indiscutivelmente o
maior designer oriundo da Bauhaus Desde 1925, ao criar os móveis em tubos metálicos, ele instaurara uma nova tipologia, uma nova tecnologia, uma nova funcionalidade do móvel. Não fora apenas uma invenção genial. Havia entendido que o problema do móvel era, sem dúvida, um problema arquitetônico, o qual, todavia, não devia ser resolvido nos termos da
“pequena arquitetura”. A questão possuía um aspecto prático econômico: em casas reduzidas ao “mínimo da existência”, os móveis não podem ser maciços, volumosos, pesados. Os móveis em tubo metálico são leves, quase imateriais; são econômicos por serem facilmente produzidos em série; são feitos com materiais de baixo custo, mas não vulgares; não aceitam
ornamentos. À questão também possuía um aspecto psicossociológico: como a relação tradicional entre pessoa e casa se modificou, a relação com a mobília da casa também se modificou O móvel já não é uma espécie de monumento domésuco, e sm um objeto útil, práuco, simpático. Por isso, para solucionar o problema do móvel, Bieuei se remete ao linearismo intensamente expressivo de Kandinsky e Klee — de Kandinsky porque no móvel ainda se reflete uma intuição do espaço; de Klee porque o móvel é como uma “personagem”, uma imagem a ser interpretada, ainda que apenas com o uso que lhe é dado. O móvel metálico de Breuer cra, pois, a primeira síntese operacional e funcional das artes, a primeira grande virória do “desenho industrial”. Entretanto, nos Estados Unidos, Breuer realiza um processo em
sentido inverso, retornando do design a uma arquitetura tradicional, embora formalmente moderna. Constrói para a rica chenrela americana casas e mansões que também são belíssimos objetos arquitetônicos, magnificamente inseridos na paisagem, extraordinariamente cô%
modos e agradáveis. Obras únicas, porém “arte de luxo”: uma arte que utiliza técnicas indus-
triais, já muito refinadas e precisas, mas que, na verdade, volta a ser artesanal. É sintomático que o protagonista do outro aspecto da crise do racionalismo, K. WACHSMANN (nascido em 1901), também seja um colaborador direto de Gropius; juntos, estudam um plano para a produção de casas pré-fabricadas com painéis padronizados e pro-
duzidos industrialmente Por conta própria Konrad Wachsmann empreende uma pesquisa essencialmente teórca, com o objerivo de determinar o que poderíamos chamar de átomo construitvo: um, no máximo dois elementos (um segmento e uma articulação nodal) que permitem qualquer combinação construtiva. Evidentemente, a determinação dos elementos é anterior a qualquer intencionalidade projetual; visto que a montagem a seco é tão ou mais simples e rápida do que o jogo do meccano,* o projeto se identifica com a construção; teoricamente, identfica-se também com a desmontagem e recuperação dos mareriais, naturalmente utilizáveis pa-
ra outras construções. São as premissas do racionalismo levadas às últimas conseqiiências, à Rb beira do absurdo — eliminado qualquer resíduo de “monumentalidade ; alcançada a funcionalidade pura, a possibilidade de tecer e articular o espaço em cada momento seu; destruí(7) Meceano jogo composto por varios elementos metahicos, que sc podem combririar e unir entre ss através de porcas e para(NT) fusos, para obter construções e múquinas em nuniitar
27 “o
9
280
CAPÍTULO seis à EPE A DO FUNCIONALISMO
[ udy tg Mies van der Rohe Caderra “Barcelona (1929, por ocasião da Exposição Internactonal de Barcelona)
estrutura metalica
Mure) Breuce Polirona “Wassilt (19268: tuho metalico cromado e tela branca
CAP
LLOSLIS
À LPOCA DO FENCIONALISMO
New Canaan M ircel Breuer Casa Bremer, 1947) em úlano teto-s e sabent a Varand ). tConn preso por cabos
tects Marcel Brevei & Associated Arebu trem “Fheng Cloud (1955)
Kantad Wachsmann: Ectrieturá forma com sm elemento de construcão-padrão
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282
Le CAPLLOSEIS Ania a
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do puvilhdo norte-americano na Expossção Universal de Montreal
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da, não apenas figurarvamente, a materialidade do edifício. Todos poderão urdir o espaço, como a aranha sua teia; apenas precisarão se munur de segmentos e articulações. Mas essa tessitura do espaço, que leva ao paradoxo a intuição da arquitetura 77finita de Mies, exclui qualquer intencionalidade ou finalidade da obra do construtor; sua tarefa, de modo geral, con-
sistirá em aperfeiçoar, se possível e nos limites do possível, a medida, o peso, o material, a componibilidade dos segmentos e articulações, produzidos em série pela indústria. Levada a uma dimensão já nitidamente metafísica, a racionalidade se torna fantasia ou jogo, e não mais poderá ser separada de seu oposto, a irracionalidade absoluta, A pesquisa do norte-americano
BUCKMINSILR
PULLER (1895-1983) se vincula a esse
racionalismo metafísico, embora não dependa dele: ela também parte da utilização serial de elementos pré-fabricados e da dedução de infinitas possibilidades estruturais a partir do cálculo matemático. Por este caminho, Fuller chega à constiução de suas famosas cúpulas geodésicas, geralmente de rreliças metálicas e plásticas, sem limites estáticos e dimensionais, a maior até hoje realizada dominava como uma enorme bolha transparente, iridescente de dia e irradiando luz à noite, a Exposição Mundial de Montreal em 1967. À construção já não é a inserção de um objeto no ambiente natural. e sim uma modificação das condições ambientais; a construção não é senão um invólucro ou uma cobertura, no interior da qual se podem determinar condições climáticas ideais. Assim desaparece a função detensiva ou isolante que, ao longo dos séculos, havia determinado toda a morfologia c toda a tipologia da arquitetura.
Se algum dia, generalizando a utopia de Fuller, fosse possível revesur o mundo com um único invólucro protetor, não apenas se modificariam as formas das construções, mas também toda a existência biológica e até a constituição geológica. Modificar-se-ia ainda a concepção de todos os valores éticos, estéticos, sociais, políticos; e não mais seriam as idéias e as decisões
humanas a modificá-los, e sim os cálculos dos computadores, o automatusmo dos processos
tecnológicos. Num tal mundo, puramente tecnológico, não só a ideologia política e o interesse social, mas também a pesquisa artística já não teriam razão de ser; e todas as tentativas
realizadas com a finalidade de unir novamente a “criação” artística à “produção” industrial chegariam a um fim, tendo a pesquisa estética ou qualitanva sido total e definitivamente ex-
cluída dos processos puramente “quânticos” da tecnologia pura.
E LLOSLIS A EPOCA DO PUNUIONATISMO
Erich Mendelsohn. Maquete para ma smubstras têxial em Leningrado (1925)
111. Embora se tenham delineado movimentos de vanguarda na Rússia desde os primeiros anos do século, nas artes Figurativas e no teatro, as dificuldades políticas e econômicas,
aproximadamente desde 1920, impediram o desenvolvimento de amplos programas construnivos. As primeiras ações da vanguarda arquitetônica se enquadram, evidentemente, no movimento construtivista, já florescente, das artes plásticas
Desde o início, teoriza-se, lan-
çam-se conclamações e manifestos, projeta-se pelo puro amor à pesquisa; não há dinheiro para a execução, falta a contribuição técnica e produtiva de uma grande indústria, e os arquitetos modernos carecem de qualquer preparação profissional. Visto que o Construrivismo derruba todas as barresras tradicionais entre as artes, os modelos formais dos novos arqurtetos são as obras de Malevich, Tatlin, Pevsner e Gabo, os quais, por sua vez, enfrentam o problema da arquitetura, c não apenas no plano teórico. O teatro é outra fonte vital, na qual os artistas de esquerda vêem um poderoso meio para a educação do povo; é à experiência teatral
(cenografia, coreografia, direção) que a nova arquitetura soviética deve sua tendência às soluções formais ousadas, dinâmicas, intensamente emotivas. Confere-se grande importância ao que ocorre na Europa Ocidental; todas as correntes avançadas da arguitetura ocidental são tendencialmente socialistas, e a novidade de suas propostas formaus está solidamente funda-
da sobre as possibilidades das técnicas modernas. Mendelsohn constrói uma grande fábrica em Leningrado (1925); Le Corbusier projeta (1929) a sede da União das Cooperativas em
Moscou. À intervenção de Mendelsohn é particularmente importante: o Construtivismo, que visa expressar nas formas arquitetônicas o ímpeto dinâmico da revolução, possui um for« te componente expressionista. À estética do Construtivismo pretende que “todos os acréscimos que a rua da grande cidade traz à construção (placas, propagandas, relógios, alto-falan-
tes e até os elevadores internos) sejam incluídos na composição como pontos de igual importância”: exatamente como fazia Mendelsohn para expressar na forma o conteúdo do edifício. Numa sociedade revolucionária, as construções, com a precisão e os movimentos de suas formas, constituem o símbolo visível da edificação do socialismo. a arquitetônica soviética. EtrA qualidade: É esta a qualidade e é este o limitesata daaa em vanguarda me Clin E arquiteturaé concebida como comunicação em ato. O limite: ainda que em sentido funcioformalista, a responder nal não representativo, a arquitetura tende a se tornar cenográfica e e E,
283
CAPÍTI [O SEIS A ÉPOLA DO FUNCIONALISMO
a funções mais ideais e imaginárias do que reais. Uma das causas do limite é também a dif-
culdade de inserir a pesquisa arquitetônica num planejamento urbano concreto, que o novo regime ainda não tem condições de implantar; poderá fazê-lo somente após 1928, no qua-
grandes diretrizes pç gi dro da reorganização radical da economia do país (plano quinquenal) As
teóricas do Construtivismo no campo urbanista são duas: 1) converter a cidade em expreso vida do bairro, dos edifícios, a animaçãda são do dinamismo revolucionário com as formas a vivacidade das solicitações e comunicações visuais, 2) no quadro de uma programação polírico-social mais ampla, transformara relação entre cidade e território (projeto de cidade li-
near de Ochtovich e Ginsbutg), com a finalidade de anular o desnível entre o proletariado industrial urbano e o proletariado rural.O processo de urbanização da União Soviética, que
da economia russa agrícola em economia industrial, é um dos acompanha a transformação grandes fatos históricos do século; mas ele se realizou quando os movimentos de vanguarda já haviam sido oficialmente proscritos e sufocados (1932).
O ponto de partida da nova arquitetura é o projeto de Tatlin para o Monumento à Terceira Internacional (1919) Contém todas as premissas do Construtivismo. Indistinção das artes: é arquitetura, estutura provisória, escultura construtivista em escala gigantesca; funcionalidade técnica e sistema de comunicação: expressividade simbólica do dinamismo ascendente da espiral inclinada (como uma torre Eiffel vista por Delaunay). EL LISSITZKY bm 4 (1890-1941), arquiteto, pintor, artista gráfico e teórico, é um grande animador do movrmento, é a ligação entre Suprematismo e Construnvismo. Desenvolve também uma febril
atividade de, como se diria hoje, “relações públicas”; viaja, está em permanente contato com
Gropius, Mies, Van Doesburg. Seu grande projeto é uma “internacional do Construtivismo”, da qual a arquiretura russa, a única “engrenada” numa revolução em andamento, deve-
ria ser o centro coordenador e propulsor. A posição de Lissitzky e dos outros arquitetos do
grupo Asnova (Ladovsly, Melnikov, Vesnin, Golosov e outros) é clara: geomecrismo, pois a
geometria expressa o espírito racionalista da revolução; soluções formais extremamente ou-
sadas (corpos salientes, estruturas à mostra, mecanismo estrutural a descoberto), pois a téc-
nica que permite sua realização reflete a ética revolucionária; dinamismo e simbolismo formais, pois a construção deve ser a imagem-símbolo da sociedade socialista que se autoconstrói. Em 1923. o próprio Malevich se insere no movimento, restringindo-o principalmente aos temas formais do Neoplasticismo holandés, que considera o movimento artístico oct-
dental mais válido: projeta a casa do futuro, o planita, que permutirá aos habitantes viver numa situação espacial pura e rigorosamente geométrica.
O sucesso da vanguarda russa na Europa Ocidental inicia-se em 1925, quando o pavilhão soviético executado por Melnikov para a Exposição Internacional das Artes Decorati-
vas, em Paris, conquista o grande prêmio. É enorme o interesse pelo extraordinário florescimento arquitetônico russo: se a arquitetura racional pretendia ser, e em certo sentido é, um processo revolucionário incipiente no próprio interior dos regimes burgueses, a arquitetura
da revolução russa é o guia e o modelo ideal. Seu prestígio é tal que, nos dois concursos anun-
ciados em 1930 para o teatro estatal de Charkow e para o edifício do soviete em Moscou, participam todos os grandes nomes da arquitetura moderna européia. Mas, justamente quando a arquitetura soviética está prestes a assumir a liderança da arquitetura munchal, a burocracia
do partido conquista a supremacia, contrapõe à vanguarda revolucionária oportunistas aca-
dêmicos como Jofan e Fomun, e consegue obter a condenação política da arte da revolução
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284
CAPILLLO
SEIS
VÉROCA
DO FUNCIONALISMO
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(1883-1931) cria um movimento de van-
1v. Em 1917, quando THLO vaN DOESBLRG
(também chamado De Styt, a partir do nome da revista fundada por guarda, o asiNeoplasticismo los Van Doesbuig e Mondiian), a Holanda possuía uma escola arquitetônica entre as mais avançadas do mundo. Era dingida por BERLAGE, de início neo-românico e “modernista”, mas a
seguir cada vez mais aberto a todas as experiências européias c não-curopéias. Cabe a ele o
mérito de ter estabelecido a primera ligação sólida entre a arquitetura holandesa (e européia)
e Wright, antes mesmo da exposição do grande mestye americano em Beilim (1910). O mo-
vimento De Str! derxou oficialmente de existir em 1928, quando a revista interrompeu suas publicações; mas já havia vários anos alguns dos expoentes mais respeitados do movimento, como Mondrian é Oud, haviam-no abandonado, não partilhando da orentação pessoal de Van Doesburg. Este, com efeito, era o único que concebia o Neoplasticismo como uma “van-
guarda”, com seu conjunto de programas, manifestos, polêmicas, alianças e batalhas; para os outros, era uma ordem nova e mais lúcida. No entanto, a experiência neoplástica permane-
ce essencial mesmo para os dissidentes da linha extremista do mesrre: De Styjl foi, de fato, um dos episódios-chave da história da arte contemporânea. Pela sua tensão intelectual, a vanguarda holandesa não encontra paralelo senão na vana violência irracionasce da revolta moral contra guarda russa; mas possu outras origens, e ii F — e
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CAPÍIILLOSEIS
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NCIONALISMO
Hen var Doesburge Cor van Lesteren, Prazer
des disee pertacteteo
(1920).
Theo van Doesburg, Lstudo de cor pare tem arqunetura (1922), Paris,
coleção Nelly van Doesburg,
nal da guerra que assolavaa Europa. Dela se deriva um juízo negativo sobre a história; não e a
Cmapa
violência, e sim a razão é que deve determinar as transformações na vida da humanidade, e devem se dar nos diversos campos da atividade humana, através de uma as transformações revisão rachcal das premissas e das finalidades. De Stij/não é uma revolução contra uma cul-
tura envelhecida afim de renová-la:é uma revolução no interior de uma cultura moderna à os perigos de qualquer corrupção ou impureza possível. contra fim de imunizá-la pm a ver uma atividade criativa, numaa condição de imunidade histórica absoluta. O que isso significa? Significa eliminar todas as “formas históricas” como se procedessem de um ambiente impuro, sob a suspeita de trazerem os germes da infecção nacionalista. Faz-se exceção a Wright, expoenteede uma cultura que não possuía tradições nacionais; mas as formas de Wright também são submetidas a uma espécie de processo de esterilização, aceitas como puros fatos for-
técnicas tradias Slim EaSAiDÃAS CIA mais, esquemas de uma nova geometria do espaço. Eliminam-se também
delas derivadas. Se o princípio da forma (e, evidentemené a distinção «entre as artes, cionais E er ani
go
CARTILLOSEES
DO FOSCIONALISMO
A ÉPOCA
Ficabus |. Pieter Oud
Colónia Keefivock
(1925-30) ex Rotterdam
JacobusJ Prerer Oud Bairro Fosse drenalighes ent Rotrerdam (1918-20)
se reduzir ao mínideve te, da pura forma geométrica) é congênito no ser humano, Rea técnica E dd s mo necessário para manifestá-lo. Mas existe uma arte fora das técnicas e da história da arte? o problemaé improcedente: a arte é apenas um modo, o importante é a ação que realiza a experiência estética, a ação com que a consciência se torna forma. No limuar de uma purificação extrema, que pode se identficar com uma anulação da arte, De Styj/encontra um movimento oposto, Dada; há artistas que participaram dos dois movimentos, porque ambos re-
conduziam o problema da arte ao ponto de partida. Na poética neoplástica, o puro ato construtivo é estético: un uma vertical e uma horizontal ou duas cores elementares já é construção. É o princípio igualmente adotado por um pintor como Mondrian, um escultor como VANTONGTRIOO (1 886-1966). arquitetos como T. G. RIETVELD (1888-1964), ]. J. P. Oub (1890-1963) e C. VAN EESTEREN (nascido em 1897). Não é, pelo menos não de todo, o princípio de Van Does-
burg; convicto de que apenas um impulso genial, criativo, pode realizar a sintese absoluta das artes, ele une a visão bidimensional e a estereométrica numa morfologiatundada
287
So
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CAPÍILLOSEIS
ALEQO
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Thomas Gernt Reerveld (1924) em Utrecht
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NCONALEMO
Casa Sehroder
nas oblíquas, assim reintroduzindo um processo dinâmico que necessariamente se conclui em cfeitos opostos e dramáticos. Não é possível eliminar da arquitetura o problema da função social: constrói-se-para a vi-
da. Mas é preciso distingur entre função e finalidade: a arquitetura pode ter uma função social
sem com isso se propor especificamente a realização de uma reforma na sociedade. À eliminação da finalidade reformista aumenta as disponibilidades da arquitetura perante as exigências sociais objetivas, principalmente quando, como na Holanda, a qualidade de vida é geralmente
elevada A arquitetura funcionalista holandesa, e não apenas a oficialmente vinculada ao movimento De Stijl, teve uma importância fundamental no quadro geral «da arquitetura moderna européia, formando toda uma 27pologra da construção civil, a parnr da análise dos esquemas distributivos de espaço correspondentes às diversas situações funcionais. Assim, associou a um extremo ngor formal um empirismo que a salva da armadilha do esquematismo « priori. Rierveld é, entre os arquitetos diretamente ligados à poética neoplástica, o mais fiel às premissas teóricas e ao rigorismo formal do movimento. Nos móveis e bringuedos frobelianos que desenha entre 1918 e 1920, ele aplica escrupulosamente o princípio da elementari-
dade construtiva Nenhuma forma existe em si, a prior obtém-se a forma com a ação do construir, juntar, compor. A forma elementar só pode ser obtida por uma construção ele-
CAPÉLULO
SELY
A ÉPOCA
mentar. Isso não significa excluir materiais e clementos produzidos por técnicas industriais:
constrói-se ou compõe-se com o que se tem à mão. Mas o processo mental-manual do construir ou do compor é reconduzido a um estágio pré-técnico, e mesmo pré-artesanal. A Ca-
sa Sehróder, que Rietveld construiu em Utrecht em 1924, é o tipo ou modelo de habitação neoplástica: uma casa que se diria feita não para, e sim pelos moradores, utilizando elemen-
ros pré-fabricados como nas construções que as crianças fazem de brincaderra. Linhas, planos. cores são os elementos materiais da construção; estende-se um plano suspenso para deter o volume do corpo principal, “compensa-se-o” indicando com uma haste vertical a aresra de um volume vazio, contrapõe-se aos planos frontais o plano horizontal de uma cobeitura saliente, bloquera-se com uma linha negra a expansão luminosa de uma superfície branca, com a espacialidade negativa de um azul a espacialidade positiva de um amarelo. À forma geométrica já não é símbolo espacial; apresenta-se como perfil, tamanho, cor, espes-
sura, como uma coisa que se pode segurar na mão e manejar. Uniliza-se a forma geométrica
por ser a mais familiar, a menos inventada. e não uma proporcionalidade abstrata; mas essa familiaridade psicológica com a forma tornao espaço arquitetônico “neoplástico” um espaço à medida do homem,
Para Oud, a poética neoplástica é antes de mais nada uma simplificação radical dos processos construtivos e, portanto, uma possibilidade de construir em série com elementos padronizados e pré-fabricados. Os bairros de casas enfileiradas para famílias operárias que projera e realiza para Scheveningen (1917) e Rotterdam (1918-20) não são apenas modelos de
economia funcional, de clareza distributiva e formal, de qualidade estética integrada à utilidade, mas também de respeito civil e democrático em relação à classe a que o bairro se destina, é a qual o arquiteto não pretende ensinara viver ou a adquirir um direito de cidadania. Eliminando qualquer implicação ideológica e qualquer intencionalidade reformusta, como
exige a poética neoplástica, a arquitetura se aproxima da comunidade, torna-se realmente um serviço (e não mais um programa) social, C, van Eesteren, que, quando jovem, foi uma das principais figuras de De Stigl, desenvolve essa tese em sentido urbanista: em 1927 tornase o responsável pelo urbanismo da prefeitura de Amsterdam e, a partir desse momento,
preocupa-se apenas em proteger a cidade histórica das deformações de uma falsa modernidade e os novos bairros do tradicionalismo mal compreendido, tendo em vista sempre e principalmente a unidade c a coesão da comunidade urbana. A ação do movimento De Stsjl, como incentivo e esclarecimento no interior de uma si-
tuação cultural avançada, também faz sentir seus efeitos para além de seu âmbito específico. Embora o funcionalismo de J. A. BRINKMAN (1902-49) e L. C. vax DER VLUGT (1894-
1936) ou deJ. DuUIKER (1890-1935) não esteja ligado ao movimento neoplástico, distinguese pela identidade que alcança entre rigor científico e clareza empírica, precisão formal e praticidade. Para além dos resultados artísticos particulares, estabelece novos esquemas tipológicos, que não comportam compromissos formais, mas definem a formulação moderna de alguns problemas essenciais. A Fábrica Van Nelle (1928-30), de Brinkman e Van der Vlugt, em Rotterdam, é uma
movação na tipologia da arquitetura industrial no sentido de que, mesmo distribuindo e de-
senvolvendo os corpos segundo as exigências da função, não possui um aspecto maquinista; não pretende ser um templo do trabalho nem um mecanismo pulsante, mas simplesmente um edifício civilizado onde se trabalha. À obra-prima de Duiker é o Sanatório Zonnestraal, nas proximidades de Hilversum, o qual é também uma inovação na tipologia hospitalar —
com sua planta “urbanista”, aberta, constituída por múltiplos corpos independentes e distribuídos de modo que cada um se encontre nas melhores condições de iluminação e ventila-
DO FUNCIONAL
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Willem Dudok (1974 30)
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Willem Ducok Lscoa Mircheters (1925) em E lilycrsum.
ção, não se apresenta como um local de segregação do mundo, e sim como sede de uma pe-
quena comunidade. W.M. Depox (1884-1974), entre os arquitetos holandeses, talvez seja quem mais aprofundou a lição de Wright: é o caso típico de uma experiência internacional vivida sem sair do
próprio ambiente natural Com Wright, aprendeu que o espaço não é uma abstração universal, é sempre um lugar com suas caraterísticas, da mesma maneira que a sociedade é sempre uma comunidade determinada. Dedica toda a sua auvidade a uma pequena cidade, Hilversum, e sua finalidade não é reformá-la, mas defini-la e caracter izá-la; como os antigos pinto-
res de seu país, ele prefere as pequenas verdades às grandes hipóteses. Assim consegue ser “munucipal” sem ser provinciano. Sem se estabelecer um programa, mas com a pura evidência dos fatos, Dudok demonstra que, para se opor à desumana “megalópole” industrial, à ditadura das z grandes cidades, é necessário defender a autonomia das pequenas cidades, dando um sentido
moderno às comunidades históricas. Sua originalidade reside justamente em ser o construtor
de uma cidade, da mesma forma que Aalto e o designer do habitat finlandês
Alvar Aalto Visa ever do bloco de escaditi sas da Brblroteca de Vigpara (1927-353)
Gs
A LPOCA DO PENCTON AL 5140
Lo]
CAMELIC SEIS
1
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CAPTLLOSEIS A ÉPOCA DO FONCION AL iMO
v A crise do racionalismo arquitetônico
e
internacional”
»
possui, como dissemos, causas
internas; a primetra delas é a concepção do espaço e da sociedade como entidades abstratas. Há o desejo de se libertar do naturalismo romântico e do historicismo dos “ estilos”, mas, eli-
minando o naturalismo e o historicismo, não se elimina o problema da natureza e da história É necessário acrescentar, porém, que, após a experiência racionalista, o problema da na-
tureza e da história se coloca em termos radicalmente diferentes: a natureza já não é o “cria-
do”, a revelação visível da inteligência e vontade divinas, assim como a história já não é o de& . sígnio da Providência para a salvação final da humanidade, É uma dimensão totalmente di-
ferente: a natureza é o local; a história, o tempo da vida. E, antes de enfrentar a grande ques-
tão do destino da humanidade, é necessário resolver a da coexistência. dos homens entre si, dos homens com as coisas, com a natureza. Este problema não se resolve ditando regras e princípios, mesmo os mais liberais; resolve-se vivendo e interpretando a realidade. Isso não significa propor o programa da irracionalidade, como o racionalismo propusera o programa
da racionalidade; significa apenas substituir o termo abstrato raczonalidade pelo termo concreto razão Foi o que, na Europa, fizeram os arquitetos escandinavos, a começar por seu expoente, o finlandês ALVAR AALIO (1898-1976). “A caracterísnica fundamental de Aalto”, escreve B. Zevi, “em comparação aos mestres da segunda geração, é justamente a ausência de fórmulas compositivas, de um tom apodítico e de princípios teóricos.” Aalto partiu do racionalismo para depois se aproximar, principalmente após 1940, do princípio orgânico de Wright, o que lhe permite aprofundar, como observa Zevi, a pesquisa sobre os espaços internos, geradores não só da planta, mas também da volumetria da construção. É necessário acrescentar, porém, que sua autude é sutilmente crítica e desmistificadora cm relação tanto aos racionalistas quanto a Wright. Os racionalistas haviam destruído vários mitos: o “monumental”, a arte como espiritualidade, a bela casa como sinal de prestígio social ou cultural. Cultivavam ourros: a cidade funcional para uma sociedade muito distante de sê-lo, o maquinismo, o tecnologismo, o espaço como entidade geométrica a priori Wright, por sua vez, tinha invertido o processo tradicional da concepção arquitetônica: não projetava partindo do exterior, e sim do interior, do local da vida. Mas concebia esse processo como um ato de ”
força, titânico: o espaço interno, irrompendo, conquista o exterior, e dele se apropria.
O discurso de Aalto é mais plano: todo o espaço é znterno, mesmo os volumes externos do edificio estão envolvidos por um espaço concreto, que consiste em ar, luz, árvores, céu.
Único limite, o horizonte: o confim que se alcança com o olhar ou talvez com a imaginação. Aalto projeta a parrir do objeto, às vezes do móvel ou da lareira: e como objetos cujo desenho demanda cuidado para que se tornem instrumentos familiares da vida, ele projeta a sala de estar, a escada, os quartos de dormir, as sacadas para tomar sol. Utiliza amplamente materiais locais, especialmente a madeira de bétula, mas não para estabelecer uma espécie de continuidade biológica entre a natureza e a casa, simplesmente porque têm qualidades de elasticidaec de e de “textura” que os tornam sensíveis à luz, quase congênitos ao espaço “empírico” da casa ou da natureza. Como para os racionalistas, o desenho é um método de projeto, que vale 4
”
tanto para a cidade (plano regulador de Rovaniemi, 1945) quanto para os grandes e pequenos edifícios, para os móveis, para as alfaias. Todavia, inverte o processo: não se propõe resol-
vei o problema da construção civil no âmbito da grande indústria (talvez pedindo-lhe, como Le Corbusier, que fabrique casas em vez de canhões), mas criar uma indústria para a casa, is-
to é, para a vida. Uma corrente de empirismo já se manifestara, mesmo antes de 1930, na Suécia: com E. G. ASPLUND (1885-1940) e S. MARKELIUS (1889-1972). Consiste essencialmente na elimi-
nação de qualquer “retórica” da construção, quer seja tradicional quer moderna; na busca de
CAP
TLOSEIS
AFPOCA
DU
FUNCIONA
ISMO
Alvar Aalto é Arno Marsios Plano urbansseco de Rovansem (1945)
ERES
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Lrik Asplund Cremarório do Cemmierio Su! (1935-40) em Estocolmo
Sven Varkelias Sata para concérios (1932) em Halsngborg
293 Sa
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CARO
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AT LOCA
DO
PUNCIONAL
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motivos psicológicos profundos graças aos quais certas morfologias ou tipologias se torna-
ram habituais, familiares como a língua que se fala; no aperfeiçoamento desses tipos, sua adequação a exigências mais atuais recorrendo aos meros, às Invenções mais modernas sem pre-
conceitos de gênero. A grande contribução dos países escandinavos no campo do desenho industrial se concretiza de fato num verdadeiro esclarecimento linguístico: a máquina executa com maior precisão; logo, exige maior precisão no projeto. Não pode, porém, mod!ficar a
raiz, o étumo original do objeto, cujo desenvolvimento continua a ser, portanto, um desenvolvimento histórico.
Frank Lloyd Wright Lundação Latin Wee (1938-359), perto de Phocmix
CAP
LLOSEIS ATPOCADOTENCION 4 ISMO
ví. Para os mestres do racionalismo europeu, o problema central era urbanista: integrar o proletariado industrial à comunidade urbana Não bastava dar-lhes moradias decentes; para
que não permanecessem nos guetos, era preciso reformar toda a estrutura da cidade e da pró-
pua sociedade, transformando em unidade funcional a antiga estratificação de classes. À guinada histórica exigia uma transformação radical de todos os valores tradicionais, também na arre; não só os arquitetos, mas todos os artistas devem renunciar à glória da obra-prima e às prerrogativas do gênio para cumprir, como técnicos qualificados, um serviço social indispensável.
A situação americana era diferente. Não havia uma estrauficação de classes antiga e sedimentada; o indivíduo possuía possibilidades ilimitadas, cada qual trazia para o novo empreendimento industrial o espírito de iniciativa e de aventura dos pioneiros que, até poucas
décadas antes, haviam explorado e aprendido a utilizar o solo do continente. Iavia, certamente, a questão do subproletariado negro, mas não era considerada uma questão, no máximo uma praga social — apenas mais tarde virá a se compreender que este cra o problema
mais dramático da história e da sociedade americana. No início do século, o problema dominante é diferenciar a cultura americana da cultura européia, anular qualquer resquício de co-
lonialismo, também na arte opor os valores do Novo aos do Velho Mundo. Assim, enquanro na Europa declina, nos Estados Umdos nasce o mito da obra-prima, do artista-gênio. É maugurado por um grande arquiteto, F. L. WRiIGH'T (1869-1959). Este se apresenta como
um grande iniciado, um profeta. Fora aluno de Sullivan, e entra em jogo no exato momento em que a batalha de Sullivan por uma arquitetura americana à altura da européia parecia perdida: a Exposição de Chicago de 1893 marcara o triunfo do mau gosto, do baixo profissionalismo, da insensibilidade intelectual, do grande negocismo. Wright, muito jovem, reage, não procurará dar aos Estados Unidos uma arquitetura à altura da européia, e sim uma arquitetura totalmente diferente. Une-se a Ruskin, a Morris, ao ideal de uma harmonia ou comunhão entre artista e natureza, que fora destruída pelo intelectualismo do Renascimen-
to. Ele afirma que a arquitetura é pura criação; enquanto tal não deriva da história, mas subverte sua ordem, contesta-a, é anti-hustória. Enquanto a arquitetura européia se prepara para levar às últimas consegiiências o historicismo romântico engajando a arte nas lutas políticas em curso, Wright nega a existência de uma relação entre a arte e a história, contesta o va-
lor da história como ordem da experiência humana. Assim afirma, implicitamente, que apenas um povo como o americano, que não trazia nos ombros o peso de uma história, pode rcalizar uma arte plenamente criativa. Os acontecimentos, em certo sentido, deram-lhe razão: as relações entre Wright e a Europa são um dos sinais mais expressivos da crise cultural euro-
péia. Desde 1910, quando se apresentou à Europa com a exposição de Berlim, Wright for considerado pelos maiores arquitetos europeus como uma das referências fundamentais da cultura artística moderna; a relação é de interesse, de crítica, de discussão aberta e civilizada Após a Segunda Guerra Mundial, Wrighr é redescoberto como messias e salvador. Mas o fe-
nômeno coincide com uma fase de involução maneirista — com a abjuração do programa
social do racionalismo, o descompromisso político, a colaboração servil dos arquitetos com o capitalismo “iluminado”. Não é culpa de Wrighr se sua influência sobre a arquitetura curopéia, positiva em Dudok
ou em Aalto, em outros casos tenha se tornado negativa; todavia, mesmo nos postulados ético-sociais de sua obra, houve um processo de desengajamento. Começa por uma crítica severa, termina pela justificação, se não uma celebração, do grande capitalismo americano. Nos primeiros vinte anos de atividade, até 1910, ele se apóia na classe média, na qual, muito mais
do que no círculo dos magnatas da indústria e das finanças, encontra a força impulsionadora do progresso americano. É o período das Prairie houses, e culmina numa obra-prima, a Robie
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CAPÍJULO SEIS
A ÉPOCA
DO FUNCIONALISHO
house, de 1909. Embora já se evidence a polêmica contra a “megalópole” industrial e a vonta-
de de retomar o problema da arquitetura a partir da raiz, da relação forma-natureza, evitando a mediação da cidade, a posição de Wright não é naturalista: não, pelo menos, no sentido do mimetismo formal ruskiniano. O contato direto do indivíduo com a realidade se lhe afigura antes como o princípio da democracia, no sentido próprio da máxima lincolniana: liberdade é a possibilidade reconhecida a cada indivíduo de definir de maneira direta e pessoal sua relação com o mundo. A casa não deve ser um espaço dado e rigidamente subdividido, que condiciona a existência; deve ser o meio de um contato com a realidade, onde cada qual realiza a « si mesmo. Consequências no plano formal: eliminação da caixa” espacial, redução das determinantes formais às horizontais e verticais e ao cruzamento de planos, planta livremente arti-
culada, concentração das forças de sustentação num núcleo plástico interno, anulação das se-
parações nítidas entre espaço interno e espaço externo, união entre o edificio e o ambiente natural entendido como local determinado, situado. Ainda em 1934, quando determinará num plano de cidade ideal (Broadacre City) suas idéias a respeito do urbanismo, ele fixará como critério de base a disponibilidade de um lote de terreno para cada habitante. Segue-se o período de atividade japonesa (constrói em Tóquio o Hotel Imperial, recentemente destruído de maneira vândala) e do entusiasmo pela antiga arquitetura do Ex-
tremo Oriente. Como isso se concilia com o anti-historicismo por princípio? É fácil: Wrighr é contrário ao hustoricismo europeu, vinculado a uma idéia de progresso que exclui a da criação. À arquitetura japonesa pertence ao passado, mas não é intrinsecamente históri-
ca: é o sinal de uma aliança íntima, profunda, capilar entre homem e natureza, quase de sublimação da realidade na inteligência e na obra humana. Indiscutivelmente Wright (como Klee na pintura) contribui de maneira decisiva para a união entre cultura artística
oriental e ocidental; e, se se considerar que o acordo entre os modos de vida e pensamento
do Oriente e do Ocidente é uma das grandes necessidades históricas do século XxX, não se pode negar que a influência de Wright no mundo moderno ultrapassa largamente o âmbito específico da arquitetura e da própria arte. Mas, enfim, essa continuidade orgânica entre o homem civilizado e a essência íntima da natureza exige o distanciamento da contem-
plação e da meditação, o refinamento de uma sensibilidade longamente exercitada, heredirária. Em suma, o que impressiona Wright, apóstolo da democracia americana, é de fato o caráter absolutamente aristocrático da arquitetura japonesa: essa experiência que propõe à América dos pioneiros é, portanto, o oposto daquela experiência da bárbara expressividade negra, que os fauves, os expressionistas e Picasso propõem à refinadíssima cultura
curopéia. À investigação da arte c das filosofias orientais teve duas consegiiências essenciais no desenvolvimento de Wright: 1) inspira-lhe o método de ensino (e, portanto, o processo de projeto) que aplicará em sua casa-escola de Talzesin, oposto ao da Baihacus: Fa-
miliaridade cotidiana, existencial, entre o mestre (quase um sábio oriental) e os discípulos; comunhão profunda com a natureza, seus materiais e seus processos formativos; aproxi-
» “ mação espontânea em relação à arte através de uma experiência “superior, metafísica da vida; 2) aumenta seu interesse pelos processos tecnológicos mais modernos, que à luz de uma sabedoria mais madura não mais lhe parecem ofensivos à natureza, mas desenvolvimentos verdadeiramente transcendentais de suas leis, Com efeito, Wright considera não
tanto os aspectos exteriores da realidade, e sim os ritmos internos de agregação e desenvol-
vimento: o princípio fundamental da arguretura orgânicaé o de que a construção deve ser natural como um crescimento. É um erro ver no organicismo de Wright uma concordância com uma liberação desenfreada dos instintos, com o “brutalismo” formal. Assim como em todo o pensamento anglo-
CAPITLLOSEIS
ATIRE
AIM
NELONALISMO
Frank Llogd Wrighe Corsa Hickox (1900) um dos primeiros em Hankakec exemplos de Prame Eouses
Frank Lloyé Wright utrada principa? do Hotel de E áureo (1915-22 Impertal arualmento destrundo)
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CAILLO SE ES LEPOÇA DO FUNCIONA
MO
saxão e sua respectiva terminologia, para Wright também é orgânico aquilo que forma um sis-
tema: orgânica, por exemplo, é a concepção do espaço como campo de forças, em vez de como relação de grandezas. A arte, portanto, é o que forma um sistema entre a realidade natural e a realidade humana, entendida não só como natureza, mas também como civilização ou cultu-
ja. Na origem está sempre um ato de força, o qual se expressa no núcleo plástico que articula toda a construção e determina o po de sua relação com a realidade em que se insere; contudo,
esse ato de força não é senão um 571, uma afirmação de existência Se a arte é criação, é como se nada preexistisse: com esse ato de força eu nasço no mundo, ex começo a ser, e O gesto com que mecrio, cria essa parcela de m undo que, nesse instante, é para 7710 mundo todo. Então,
resumindo, eis a grande inovação de Wright para a história da argtutetura: pela primeira vez a arquitetura não é pensada como determinante de objetos, e sim como ação de um sugerto. Como Gropius, Wrighr também acredita que o arquiteto é mais do que um profissional ou um artista: é um mestre que, com sua sabedoria e sua obra, leva os homens a viver uma vida mais autêntica. Sua escola é sua casa em Talhesin, seus alunos formam uma pequena comunidade, que aprende com o mestre não só a projetar e construir, mas também a interpretar à natureza,
compreender o espírito dos materiais e a espacialidade concrera do local. Os desenhos dos arquitetos são indicativos: um projeto de Gropius ou de Mies van der Rohe é um gráfico explicativo para os construtores; os desenhos dos expressionistas, de Wrighr. de Aalto já contêm a imagem do edifício ambientado no espaço que o circunda, com sua configuração geológica, orográfica, botânica. Wright reage energicamente à grande cidade americana. O grande museu Guggenheim (1958) é um organismo plástico-dinâmico, que não só sc opõe ao alinhamento das ruas de Nova York, como o contraria com violência, quase numa afirmação de que a arte moderna,
à qual ele é dedicado, opõe-se à regularidade uniforme da cidade. Mas, justamente por isso,
também rompe esse tecido uniforme com a extraordinária beleza plástica de sua forma cilíndrica e espiralada. É rambém muito importante a relação que, no século xx, se estabelece entre a arquitetura européia e os Estados Unidos. Os primeiros arquitetos europeus a escolher os Estados Undos, isto é, o país tecnologicamente mais avançado, como campo de trabalho são: em 1920, o suíço W. Lescazr (1896-1967); em 1923, o austríaco R. NEL TRA (1892-1970), aluno de Loos; no mesmo ano, o finlandês E. SAARINEN (1910-61)
A conjunção entre o geometrismo
racionalista e o estruturalismo orgânico nota-se principalmente em Neutra, cuja atividade na + Cahfórnia contribuiu para a formação de uma florescente “escola californiana” e para a deter-
nunação da ripologia da “casa de campo refinada” e, cm geral, da residência das classes ricas. Foi o arquiteto preferido pelo efêmero mundo do cinema em Hollywood. A perseguição nazista causou a emigração para os Estados Unidos de arquitetos e artistas de primeira grandeza: Gropius, Mies van der Rohe, Breuer, Moholy-Nagv, Albers. Alguns deles haviam constado entre os mais engajados expoentes do racionalismo; eliminada a razão política de sua polêmica, não vêem contradição alguma entre seu ideal democrático e o de Wright, tampouco ente O princípio racional e o orgânico. A relação dialética que se estabelece, de 1937 a 1945, entre o pensamento europeu de um Gropius ou de um Mies e o pensamento americano de right é um dos episódios notáveis na história da cultura ocidental do século xx. À convergência é especialmente sensível no campo urbanista. O princípio da descentralização urbana atra-
vés da formação de “comunidades orgânicas”, social e admunistrativamente independentes das grandes cidades, tornou-se o cânone do urbanismo moderno, pelo menos teoricamente. Num âmbito mais amplo, pode-se com toda a certeza afirmar que Wright inaugurou o ciclo histórico da arte americana. Sua arquitetura determinou sua orientação da
CAMILLOS dº 4 FROCA DO HUNCIONALISMO
destes aérea e detatire Frank Lloyd W'r do rsrextos do Sotomen R Guggenhesm Museo (1957 9 em Nova York
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capTUTOSIS
A LPOCA DO EUNCIONAT SMO
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George Howe e William Lescaze
Suvsngs
Fund! Socrety Bratding (1931 -32)
mesma maneira que a arquitetura de Brunelleschi determinou a orientação de toda a arte (e não apenas da arquitetura) do Quattrocento. Quase todos os temas de pesquisa da arte moderna americana, que irá se afirmar em todo o mundo após a Segunda Guerra Mundial, estão mais ou menos explicitamente prefigurados na arquitetura de Wright: 1) a concepção do espaço como crração humana, dimensão da existência, que a própria exis-
tência determina com sua atuação; 2) a concepção da arte como gesto, com a qual se afirma simultancamente a existência indissociável do sujeiro e da realidade; 3) a adoção na imagem artística de materiais ou elementos extraídos diretamente da realidade; 4) a ten-
são entre operação artística e operação tecnológica, 5) o poder, que o artista se atribui, de
impor às coisas um significado diferente daquele que lhe é habitualmente conferido e de transformar a obra de arte num ato que intensifica e aumenta o valor da existência. Também nesse sentido pode-se dizer que a obra de Wright é o primeiro e grandioso sintoma, no próprio interior da sociedade americana, da determinação de forças que rendem a encarar o perigo de se transformar, por efeito da tecnocracia capitalista, numa-sociedade
afligida pelo fetichismo das mercadorias.
CAPÍTULO SkIS
PINTURA
E
À BROCA DO TUNCIONA
ESCULTURA
A função de uma máquina é o trabalho que ela produz, o funcionamento é o movimen-
to coordenado de seus mecanismos. Depois do Expressonusmo, a arte não é mais a representação do mundo, e sim uma ação que se realiza; possui uma função que, evidentemente, depende do funcionamento, do mecanismo interno. Na época do funcionalismo (de 1910 até
aproximadamente a Segunda Guerra Mundial), diversas correntes pretendem definir a rclação entre O funcionamento interno e a função social da obra de arte. A exigência de desenvolver a funcionalidade da arte se inclui na tendência geral da sociedade, já totalmente envolvida no ciclo econômico de produção e consumo, em realizar a máxima funcionalidade. Os artistas querem participar na demolição das velhas hierarquias estáticas de classes e no advento de uma sociedade funcional sem classes. Suas pesquisas se incluem no processo rumo a uma ordem democrática da sociedade, na história da luta das forças progressistas contra as forças conservadoras. Visto que o capitalismo, que controla a indústria, pretende conservar e reforçar a separação hierárquica entre classe dirigente e classe trabalhadora, opondo-se à unidade necessária da função, a posição ideológica dos artistas é contrária à da burguesia capitalista. À oposição se tornará mais explícita e ferrenha quando a burguesia capitalista, em alguns países, vier a se organizar em regimes políticos totalitários. No que consiste a intervenção da arte? Com o advento da indústria e a crise do artesa-
nato, o trabalhador perdeu qualquer autonomia de iniciativa e decisão: o trabalho repetitivo da indústria não é livre, portanto não é criativo, não depende de uma experiência da realida-
de e não a renova. É a condição de estranhamento da icalidade que Marx chama de altenação. Como último herdeiro do espírito criativo do trabalho artesanal, o artista tende a fornecer um modelo de trabalho criativo, que implica a experiência da realidade e a renova; passando a seguir do problema específico para o geral, tende a demonstrar qual pode ses, na unidade funcional do corpo social, o valor do indivíduo e de sua atividade. Ele se põe assim no próprio centro da problemárica do mundo moderno. Também Gauguin e os fauves consideravam a arte como atividade que se opõe ao trabalho alienante da indústria, mas lhe atribuíam como fundo e ambiente uma sociedade imagi-
nária, primitiva, diferente da sociedade real. Porém, para que o “modelo” pudesse funcionar era preciso, ao contrário, inseri-lo no contexto da função real da sociedade. Assim, procura-
se reformar na estrutura O funcionamento interno e portanto o processo genérico da operação artística, com o intuito de poder propô-la como modelo de função: não mais se reconhece
um valor ey» si na obra de arte, mas apenas um valoi de demonstração de um procedimento operativo exemplar ou, mais precisamente, de um tipo de procedimento que implica c reno-
va a experiência da realidade. Pode-se dizer, pois, que nesse período se realiza a transformação do sistema ou da estrutura da arte, passando de representativa a funcional. Excluída, evidentemente, a hpótese da subordinação da atividade artística à finalidade produtiva, permanecem duas outras: 1) a arte, como modelo de operação criativa, contribu para modificar as condições objetivas pelas quais a operação industrial é alienante; 2) a arte compensa a alienação favorecendo uma recuperação de energias criativas fora da função in-
dustrial, Para além dessas duas hipóteses de máxima e mínima função, não há outra possibi-
lidade senão afirmar a absoluta irreduribilidade da arte ao sistema cultural vigente e, portanto, seu anacronismo ou até sua impossibilidade de sobrevivência. Das duas primeiras hipóteses partem os movimentos de caráter construtivista: Cubismo, Blue Rester, Suprematismo
MO
3m
5U2
CARTE
O SFIS
A FPOCA
DO FUNCE
e Construtivismo russos, De Stijl. Seu desenvolvimento é paralelo ao do funcionalismo ou racionalismo arquitetônico, do desenho industrial. Por outro lado, da tese da irredutibilidade e do individualismo absoluto partem a Metafísica, o Dadaísmo, à Suriealismo. Como também para cssas correntes, apesar da solução negativa, o problema central é o da relação
indivíduo-sociedade, não há uma incompatibilidade ideológica entre os dois grupos, e sim uma possibilidade de relação e intercâmbio,
O Cubismo (1908) é a primeira pesquisa analítica sobre a estrutura funcional da obra de arte. Para a determinação desse movimento revolucionário contribuíram:
1) a primeira gran-
de exposição da obra de Cézanne em 1907; 2) o “fenômeno” Rousseau: 3) o estudo da aire negra. Na pintura de Cézanne, os objetos são decompostos e reconstruídos na trama do espaço; o quadro já não é a superfície sobre a qual se projeta a representação da realidade, e sim o plano plástico em que ela se organiza. Como a visão dos fizuves procedia de duas concepções diferentes da superficie pictórica (a da imagem visual dos neo-impressionistas c a da imagem mítico-simbólica de Gauguin), a “descoberta” de Cézanne põe em crise a linha dos fauves e modifica as premissas da pesquisa. Aparentemente, os pioneiros do Cubismo não devem nada à visão do “Douanier”, mas for Rousseau quem fez sabula rasa de todas as técnicas tradicionais de representação (perspectiva, relevo, relações tonais) e reconduziu a pintura ao grau zero; for Rousscau quem
renegou, involuntartamente, o exotismo é o mitologismo oceânico de Gau-
guin enquanto condições da imaginação; foi Rousseau quem desacreditou o culto da “bela
pintura” dos impressionistas. A escultura negra, considerada objetivamente em sua realidade formal, é a antítese dialérica da pintura de Cézanne: Cézanne é inteiramente espaço, um espaço que incorpora os objetos, assimila-os em sua própria estrutura; a escultura negra é inteiramente objeto, um objeto que não admite relações com o ambiente, crta ao seu redor o vazio
absoluto. Em sua obra de ruptura, Les demoiselles d'Avignon (1907), Picasso define com extrema clareza os dados extremos do problema. Cézanne é a súmula, a escultura negra é a antítese da cultura européia. Encontrando uma solução dialética ente esses dois opostos, ele demonstra que a arte é a única atividade que extrai suas forças propulsoras deitando raízes vitais em toda a história da humanidade, sem exceção de tempos e locais, e que, portanto, é a única capaz não só de superar, mas também de resolver concretamente a contradição de fundo, o complexo de culpa « de orgulho pelo qual a cultura enropéia sente necessidade de se contrapor, enquanto humanidade que progrediu, a uma humanidade primitiva. A fase inicial do Cubismo, cézanniana e analítica, é o resultado da primeira pesquisa de grupo na arte moderna; de 1908 a 1914, Picasso e Braque colaboram tão estreitamente que é dificil distinguir entre as obras de um e de outro. À finalidade era transformar o quadro nu-
ma forma-objeto que possuísse uma realidade própria e autônoma e uma função específica própria. Diante do quadro, não é mais necessário perguntar o que ele representa, mas como funciona. É tampouco quem o fez: a pergunta pressupõe o preconceito de que ele representao mundo interior, a individualidade do artista. Hoje, avaliando retrospectivamente, pode-
se talvez observar que a ênfase, nos quadros analíticos de Picasso, encontra-se nos fatores plásticos, e, nos de Braque, nos fatores cromáticos. Muito mais imporrante é obsei var o que têm em comum: 1) a não-distinção entre imagem e fundo, a eliminação da sucessão dos pla-
nos numa profundidade ilusória; 2) a decomposição dos objetos e do espaço segundo um único critério estrutural; à concepção da estrutura não mars como esqueleto ou armação fixa, e sim como processo de agregação formal, 3) a sobreposição e justaposição de múltiplas visões, a partir de diferentes ângulos, com o propósito de apresentar os objetos não só como
se mostram, mas também como são, isto é, não só no aspecto que possuem de um dererminado ponto de vista, como na relação entre sua estrutura e a estrutura do espaço; 4) apresen-
CARE
LLOSES
SÉFOCA DOF UNCIONATISMO
Manolo (Manuel Mart.nez Huguc!
Muliver sentada (1912), pedra Paris Galerie L Lens
Pablo Gargalo (1911)
cobre
Pequena mascara Paris, coleção
Gargállo-Auguera
Aleksangt Archipenko Camerhando (1912) bronze, 1.33 m dealtura Roma Galleria Naztonale d Are Moderna
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CAMILIOSEIS
A ÉPOCA DO EUNCION AU ISMO
Henri Laurens
O boxeador (1920)
coleção De Bocl
Bruxclas
Jacques Lipehurz 4 dançarina
OVA
14)
Paris Musce d'Ar: Moderne
unidade esens sucessivas No tempo, realiza-se uma imag ço espa no nte eame ltan simu o tand to poderá aparensão), de maneira que o mesmo obje pácio-remporal absoluta (quarta dime torno, mas tamespaço poderá sc desenvolver não só em o e ço espa do os pont rsos dive em cer cromáticos, resulidentificação entre a luz e os planos bém dentro e através do objeto: 5) à de novos meios récentre os objetos e o espaço; 6) busca ão graç inte e ção osi omp dec da e tant ações de espaço-objeto não mais formado por grad nicos para realizar no plano plástico esse do quadro (ou da de qualidade. Sendo a espacialidade ções fica modi por sim e de, tida quan ento cubista, porém absolutamente real, o procedim escultura) absolutamente não-natural, no sentido de de cunho nitidamente realista, não mais é rio, ilusó o efeit quer qual i exclu que ”, dirá Braque), (“não se imita aquilo que se quer criar que imita os aspecros do verdadeiro o. dotado de objero em si, irredutível a qualquer outr um a em orig dá que de ido sent no mas am como . Os objetos que Picasso e Braque ador uma estrutura é funcionamento próprios cais; e, mais tat-
Copos, frutas, instrumentos musi “motivos” são objetos cuja forma (pratos, conhecida. Trabalha-se sobre um letras do alfabeto, números) é bem de, cartas de baralho,
particularer comprovação de uma visão direta e material menta! adquirido, que não Tequ experiêndeve se inserir é funcionar no contexto da mente sensível: o mecanismo do quadro cáveis forem tanto mais eficaz quanto menos identifi cia habitual. Ou melhor, sua ação será
CARL
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Ragarond DuchirapVilioa
SFIS
A EPOÇA
DO
FUNCIONALISMO
O cavalo DIA,
bronze fm de altura. Parts, Musee National d Ari Modeme
(UV), Ossip Zadkine” Mulher cura é mota bronze alterna Stundhal de Milão
, afinal, preue do espectador desprevenido. a quem choq o for r maio e ro quad do tos os obje objeto, fundacomo parte integrante da realidade do rende-se ensinar a considerar a forma o um to para set emprego. À tinta, já não send quan nto ime hec con seu para o tant al ment como essência do o uma realidade objerual por si só, meio de representação, mas possuind que se rial, não raro misturada com areia para marc e idad qual sua em a-se sent apre quadro, aplica um reboco, eliminando lhada no quadro como se torne mais sólida; e a tinta é espa
enbrilho da superfície. O espaço do quadro, quer qual e e toqu do smo uosi virt quer qual uma das entos retirados diretamente da realidade; quanto espaço real, é capaz de acolher elem do etc. fato, a aplicação de pedaços de papel, de teci de é, nais acio sens mais icas técn ções mova ro cra o preconcerto de que à superfície do quad (collage) . É uma maneira drástica de destruir ento a pintura, a par-
ia a invenção de um acontecim um plano para além do qual se distingu ática sobre o suporte da superfície. tir de agora, é uma construção crom técnica, enplástico elimina a distinção, também o plan o com ro quad do o epçã conc A (DUCHAMPuma grande adesão entre Os escultores tre pintura e escultura: O Cubismo teve O), e os próprios Picasso e LAURENS, LIPCHITZ, ARCHIPENK LO, GAL GAR , OLO MAN ON, ViíL tável na arquiteespaço cubista se tornará viável e habi Braque fizeram peças de escultura. O lismo arquitetônico.
p rincípio estrutural do funciona tura, contribuindo para a formação do
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LEG SLES
VEPOCA
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LUNCION A
[SO
O poeta G. Apollinane, teórico e crítico do Cubismo, fo; quem transpôs para a poesia o principio estutural cubista: realizaram-se pesquisas estruturais semelhantes na música, principalmente por | Stravinsky, na cenografia e na direção teatral, especialmente no balé (por vezes com a intervenção direta de Picasso, Braque e outros pintores), e no cinema Como
rodo processo dialético, o Cnbismo traz em sio princípio de sua própuia críti-
ca, R. Driaunay (1885-1941), cuja pesquisa está entrelaçada à de sua mulher, SONTA TrRk (1885-1979), também uma pintora de vanguarda, critica no Cubismo analítico sua carga revolucionária insuficiente e seu caráter ainda demasiado estático. o que prova o uso
frequenre do chraroscuro Por que adnutir que, entre as infinitas configurações possíveis do objeto, uma delas seja a forma verdadesra e todas as outras variantes ocasionais, que dependem de suas “evoluções” no espaço? As formas do objeto são tantas quantas forem as sen-
sações que se possam receber de sua posição móvel no espaço e na luz; além disso, não existem “revoluções”, e ssm movimentos contínuos é imprevisíveis tanto do objeto como do espaço. do arnista, do espectador. Delaunay, em suma, critica o fundamento anda racionalista, cartesiano, “clássico” do Cubismo analítico e remonta idealmente à origem, ao Im-
presstonismo, como notação imediata das impressões, independentemente de qualquer
princípio preestabeleado de ordem ou de estrutura Na série de quadros com a Tour Esffel, que se inicia em 1909, Delaunay capta o instante da decomposição e desintegração do objeto (a torte) no dinamismo. no ritmo imtenso do espaço celeste; como a torre Eiffel é o
simbolo visível do espaço urbano de Paris, os dois ritmos antagônicos que o artusta tenta sincronizar (ao preço de explodir o objeto) são o espaço urbano ou civilizado e o espaço cósmico Um pouco depois, pintará seus primeiros quadros decididamente não-figuianvos: foi mas circulares girarórias e rutilantes, pintadas com as cores do prisma segundo a lei dos contrastes smultâncos, visando comunicar a sensação imediata c puramente visual do
movimento cósmico da luz. Assim, a pesquisa de Delaunay. que tende a imprimir um ca, rátei mais arrojado de “vanguarda” ao Cubismo, liga-se por um lado à poética do dinamismo do Futurismo e, por outo, à penetrante intuição cósmica das fmprovisairorns de KaNDINSKY
único artista fiancês presente na exposição do Blaue Reiter, em 1912) e (foro
como Raísmo do russo LARIONOV M. DucHamp ( 1887-1968) também assume, desde o início, uma posição crítica em re-
lação 20 cartesimismo cubista”, aproximando-se do dinamismo dos futuristas. Após um início impressionista e fauve, Duchamp (que se tornará mais tarde o protagonista do movimento dadaísta) entua em cena em 1912, com o Net descendant un escaler um quadro de ruprura como, cinco anos antes, Les demoiselles, de Picasso. O dualismo entre objeto e espaço, antigo fundamento da cultura figurativa ocidental, não se resolve com uma operação dialética, que anda consiste na introdução de uma estrutura lógica 4 prior: no contexto da realidade. Ele se resolve na realidade física do movimento. Espaço e objeto não são duas entidades definidas c imóveis, que se pôem em movimento quando entram em relação recíproca. são dots sistemas em movimento relativo, e o que vemos não é uma forma antes imóvel e de-
pois decomposta e recomposta por um ntmo de movimento, mas é a própria forma do movimento, E significativa a coincidência cronológica entre a pesquisa figurativa de Duchamp ca pesquisa científica de Finstein sobre a relatividade dos movimentos. À fase cubista de Duchamp logo é superada; com o grande painel de vidio (La marsée muse à mu par ses célibatares, même), ele questiona o quadro como plano de projeção, representação e, logo a seguir, a própma arte, como criadora de objetos não mais significativos. Ão lado da tendência a desenvolver a analítica cubista em sentido dinâmico, há a pesquisa oposta, que pretende instutuir uma nova ler estrutural, essencialmente tão “canôni-
ines pale Pulemella de Igor Stravinsky (1920)
[ee
Edo ma TR
[gnaty Newvensha Esboço cenográfio pera “Irrandor de Carta Gaza, direção
del. Vacbrangoo(1921)
Pernand ego Lsbuço cenogrdino para “La créatron dr morde” batde sueco
AD Miband (1923)
Oscar Schlemmer Bate dos Bessues
Loma cene do
308
CAMPLLOSEIS À EPOCA DO FONCION VISIO
Juan Grs Homenagem a Preaso (1912), tela.0 93» 0,74m Chicago, Art Enstinute -
ca” quanto a teoria clássica da perspectiva e das proporções. JUAN GRis (1887-1927), um í espanhol trabalhando em Paris desde 1906, põe-se em busca de uma espécie de “propor-
ção áuica”, que seja válida tanto para o espaço como para os objetos, tanto para os volumes como para as cores. Seu Cubismo (que é chamado de szntético) pretende substituir a teoria
clássica por uma nova teoria dos valores, e assim representa um desvio em sentido sdealista do propósito cogrztivo do Cubismo analítico. O objeto não constitui um problema, c tampouco é dado: dada é a estrutura proporcional do espaço, como equilíbrio de planos coloridos, e ela se realiza, quase se personifica em objetos que, em relação ao espaço, assumem um caráter ssmbólico e quase emblemático. O elemento que opera a síntese é a luz, substância espacial que revela os objetos; uma luz que, naturalmente, não existe em si, mas
apenas como medida dos valores cromáticos, como tom. O próprio Picasso, por algum tempo, irá se aproximar dessa concepção quase clássica da arquitetura do quadro, todavia
será principalmente Braque que virá a adotá-la em 1917, quando volta a trabalhar depois de uma interrupção devido a um grave ferimento de guerra. “Amo a regra que corrige à emoção”, diz ele, e a regra não é senão uma estrutura superior em que a ruptura emotiva do equilíbrio normal se recompõe num novo equilíbrio.
CAMÍULLOS ds A ÚPICA DO FUNCIONA ISMO
AO
Fernand Leger Liementos mecânicos (1918-2.,. 1 68m rela, 211 Runsimusçum
Basiléia,
Também E LfgiR (1881-1955) dedica-se à busca dos objetos simbólico-emblemáticos do espaço da vida moderna Foi um admirador da pureza e simplicidade das imagens de Rousseau; foi um dos primeiros a se associar, em 1910, à pesquisa cubista; é, ese mantém por toda a vida, um homem do povo, um trabalhador que acredita cegamente na ideologia socia-
lista, a qual ingenuamente associa ao mito do progresso industrial. Para ele, os objetos simbólico-emblemáticos da civilização moderna são as engrenagens, as tubagens, as máquinas, os operários da fábrica: sua finalidade é decorar, isto é, qualificar figurativamente o ambien-
te da vida com os símbolos do trabalho da mesma maneira que, antigamente, decorava-se a igreja com os símbolos da fé. Com Léger, enfim, o Cubismo tem um desenlace iconográfico, heráldico, decorativo, que em 1911 impressiona fortemente a Malevich. À tendência a redu-
zi1 o alcance revolucionário do Cubismo manifesta-se desde logo no interior do próprio movimento. Derain, que passou dos fauves para o Cubismo, percebe que o movimento, apesar da aparência revolucionária, é na verdade uma operação de resgare histórico da disciplina clássica: historicismo por historicismo, então é melhor voltar a praticar, como fez ele, a pintura dos museus. Para outros, como LE FAUCONNIER (1881-1946), LA FrEsNavr (1885-
1925), JACQUES Vi LON (1875-1963), o Cubismo não é senão o desenvolvimento da visua-
310
CAPÍULOSEIS
AFPOLA DO FUNCIONA
ISMO
do discurso picrórico. Mas Villidade dos impressionistas e de Cézanne, uma nova sintaxe
l, extremamente refinalon, irmão de Duchamp, empreende uma pesquisa singular, origina «+ “impressionista, atmosférida, sobre a decomposição em planos transparentes de um espaço co e luminoso”.
como uma grande ação poA Primeira Guerra Mundial, hipocritamente apresentada amente
acia, contribuiu extern pular pela afirmação da liberdade, do progresso € da democr do movimento cubista (e do Fupara dispersar a carga revolucionária que animou os inícios sobre os impérios centrais, abre-se a turismo na Itália). Mesmo antes da vitória da Entente de paz e progresso, não mais ameaperspectiva (infelizmente ilusória) de um longo período
lista; diante do anelado çado por sobrevivências ou regurgitamentos do absolutismo imperia s póstuclassicidade, as ideologias revolucionárias parecem intempestivo
renascimento da e sua pintura serena e inmos românticos. A estrela de Matisse ressurge e se ergue, ao zênite, rrânire da classicidade “latina e medrte corruptível aparece realmente como o carmen caecula . d fe , a ca”
»
novamente
“cuia
Serio
rriunfante. À crítica
de arte, que intervem com
torça cada vez maio! nos mo-
Ocidental) da vimentos artísticos, contribu: para o afrouxamento (pelo menos na Europa na Irália, e buscantensão ideológica, unindo-se à filosofia de Bergson na França, de Croce
do contatos com a poesia, a música e o teatro. ão O processo de distensão, psicologicamente compreensível, torna-se refluxo e involuç
e mas muito mais profunda em movimentos como o Purismo (e, na Itália, a menos inocent
Ozenfant “pintura metafísica”). O manifesto Aprês le Cubisme, publicado em 1918 por A.
geral, evidentemente à à, Jeanneret (Le Corbusier), é 0 sinal de um “apelo de volta à ordem”
-se à forordem clássica, à realidade inalienável do objeto, de cuja forma particular remonta
Renega-sc o espírito ma universal do espaço, regida pelas leis invioláveis da “divisão áurea”. revolucionário do Cubismo, conserva-se e acentua-se seu espírito le Gris, à heráldica memomento analítico de Picasso e Braque, visa-se ao sinterismo formal de >;
canicista de Léger.
»” «e contrário, Afirma-se que existe um espírito novo” e já não é tempo de revoluções; pelo
trazê-lo paé preciso reduzir esse espírito novo a uma condição de normalidade, difundi-lo, t era um pintor medíocre;al mas, raa vida, para os costumes sociais. Comoai Ozenfant, Jeannere id dear de LE CORBU quaiquer com o nome de LE CORBUSIER, tornar-se-á um grande arquiteto, que, mais do que
as da vida, transoutro, procurou dar uma saída estética para a solução racional dos problem habitado e formando o objeto-quadro no objeto-casa e a nova estrutura espacial no espaço animado da cidade moderna.
a. EnO Futurismo ntaliano é o primeiro movimento que se pode chamar de vanguard
co na arte, prétende-se, com esse termo, um movimento que investe um interesse ideológi até dos costumes parando e anunciando deliberadamente uma subversão radical da cultura e a por uma ousasociais, negando em bloco todo o passado e substituindo a pesquisa metódic da experimentação na ordem esulística e técnica. (1878-1944), em O movimento se abre com o manifesto literário de F. T. MARINETTI
BALLA 1909; um ano depois, segue-se o manifesto da pintura futurista, assinado por G. (1874-1958),
C. CARRA
(1881-1966),
U
Bocciont
(1882-1916),
L. RussoLO
(1885-
em Paris, 1947). Em 1913, A. Sorríci (1879-1964), que estivera em contato com Os cubistas
em 1913, aderiu ao movimento, mas desligou-se bruscamente dois anos mais tarde. Também
do Futurisingressou no movimento E. PRAMPOLINI (1894-1956), a quem se deve a ligação SANTELIA mo com os outros movimentos europeus avançados entre as duas guerras. A,
tentou revo(1888-1916) publicou, em 1914, 0 manifesto da arquitetura futurista. Russolo também interessou lucionar a música com seu “intonarumor!” [entoa-ruídos) mecânico (que
CAPÍIULOSL
Ss ALPOCS
DOLUSCONALESMO
Roger de la Fresnaye O homem sentado (1913), tela, 1,31 x 1,62 m
Paris, Musée
National d' Arc Moderne
Eranusek Kupka
Formação mus verticass
noi 2rada u5880,72
Pur
Musée Nanonal d'Art Moderne.
a
Jacques Vilion Soldados em marcha (1913) rela 0,65x0,92m Paris coleção pareular
Louis Marcoussis Vartureza rinrta com
sabuleito (1912), tela, 1,30 x 0,93 m
Paris. Musee National d'Art Moderne
Rober: Delaunay. 4 forre Fafrel (N910-1) filadelfia, Museum of Art
31]
“
a)
1
CAPÍTULO SUS A ÉLOUA DO LU NCIONAL ISMO
Umbeco Rocoem Fetados de alma nº d Osadesses (1911), tela, 0,71 x 0 94 m
Nova York coleção Nelson Rockfeller
et COMP ad tatéria Enrico Prampo! (1930) oleo e diversos materiats sobre madeira
1x0,80m
Roma. coleção particular
Luigi Russolo Denermesno de um astomorel (1912 3, teta, 1 04 = 1 40m Pas, Muses National d Art Moderne
CAPITULO SFtS
a Mondrian). Deve-se a PRAMPOLINI,
1
4 FROCA DO FUN ONO INCL.
BRAGAGLIA, DEPERO e DUDREVILLE a extensão da poé-
tica futurista para a cenografia e a direção teatral e para o cinema. Alguns jovens artistas, que depois se desenvolveram em outras direções — G. MORANDI, O Rosar, À MARTINI, P ConTI, R MELII, E FERRAZZI —, foram atraídos momentaneamente para a órbita do Futurismo, que entre 1910 e 1916 reuniu e coordenou todas as forças vivas da arte italiana. As vanguardas são um fenômeno típico dos países culturalmente menos desenvolvidos capresentam-se como rebeltão contra a cultura oficial geralmente moderada, ap roximandose dos movimentos políticos progressistas. Seus esforços, embora intencionalmente revolucionários, em geral reduzem-se a um extremismo polêmico. Nos manifestos futuristas, pedese a destruição das cidades históricas (por exemplo, Veneza) e dos museus; exalta-se a cidade nova, concebida como uma imensa máquina em movimento. À revolução que se deseja é, na verdade, a revolução industrial ou tecnológica, isto é, ainda uma revolução burguesa; na nova civilização das máquinas, os intelectuais-arustas deverão representar o impulso espiritual
do “gênio” Sob o gosto pelo escândalo e o desprezo pela burguesia oculta-se um oportunis-
mo inconsciente e involuntário, e essa contradição explica todas as demais. Os futunistas se dizem anti-românticos e pregam uma arte que expresse “estados de alma”, fortemente emotiva; exaltam a crência e a técnica, mas querem-nas intimamente poéticas ou “líricas”; proclamam-se socialistas, mas não se interessam pelas lutas operárias. pelo contrário, vêem nos intelectuais de vanguarda a aristociacia do futuro. São internacionalistas, mas anunciam que 4 ” Con o “gênio italiano” salvará a cultura mundial. No momento da opção política, prevalece o nacionalismo: querem a guerra “higiene do mundo” e participam dela como voluntários (Boc-
on
e Sant'Elia, dois dos maiores cérebros do grupo, perdem a vida em combate); após a
guerta, porém, o movimento se desintegra, alguns de seus maiores expoentes passam para O Jado oposto, para movimentos antifuturistas, como a “metafísica”, Posteriormente, haverá também uma relação equivoca entre Futurismo e fascismo: Marinetti e Soffici se tornam fascistas, e também membros da Accademia d'Italia, assim pondo-
se ao lado de conservadoristas como Ojetti, a quem sempre haviam combatido. Os protagonistas são Balla, Boccion!, Carrã. Balla tem o gosto pela experimentação e o dom da intuição
genial; passa do estudo das vibrações luminosas (divisionismo) para o da representação sintética do movimento, de ritmos dinâmicos cósmicos, independentes do objeto em movimento. É uma pesquisa que, por um momento, acerca-o muito de Kandinsky. Boccioni, por sua vez, preocupa-se em determinar a posição do dinamismo plástico e sintético do Futurismo em relação ao Cubismo e seus antecedentes históricos. Carrã também considera o Futu« rismo como uma renovação da linguagem formal, que transforma tudo no interior do “sistema das artes”, mas não dest) ói suas premissas. Tanto um como outro, em essência, preten» dem “legitimar” ou jusuficar historicamente o Futurismo, enquanto Balla, pelo contrário,
gostaria de preservar seu caráter de vanguarda aberta a problemas sempre novos. A explicação dessa contradição se encontra nos lúcidos textos teóricos e críticos de Boccioni. Para sair de seu provincianismo tradicional, a cultura italiana deve se alinhar com a européia, ou seja, deve incorporar a experiência do Romantismo, do Impressionismo, do Cubismo e, ao mesmo tempo, superá-las criticamente. O Impressionismo aparece simultaneamente como um enorme progresso e como um limite; o Cubismo, como um fato revolucionário, mas não o suficiente. Boccioni, como Delaunay e Duchamp, percebe que a solução dialérica proposta pelo Cubismo ainda é racionalista e, em última análise, clássica. Independentemente dos franceses, cle chega a definir o movimento fistco, a velocidade, por exemplo, como o fator de coesão que permite a fusão entre objeto é espaço c, no limite, a superação do dualismo fundamental da cultura tradicional. A unidade do real não deve ocorrer no pensa-
314
LAPILLOSkIS
A
ELOS ADO FUNCIONALISMO
mento, por meio de um procedimento do raciocínio, mas na sensação fortemente emotiva seu dinamisda realidade: a ação do artista, pottanto, deve aplicar-se à realidade, intensificar percebe vida, sua de anos últimos nos mo, torná-la mais emocionante. O próprio Boccioni, engajou a Itália se que o extremismo futurista se dissolvia em um limite: na medida em que
lugar numa histói ia européia, politicamente numa guerra européia, ela precisa encontrar seu
si Uma aite moderna a situar-se com clareza em relação aos grandes movimentos, criar para até do Expressiopartir do museu, como o caso não só do Impressionismo e dos fauves, mas , Boccioni procura mismo e do Cubismo. De fato. em suas últimas obras, não mais futuristas o claramente encontrar uma síntese entre Impressionismo e Expressionismo, mas apontand a arte italiana para em Cézanne a fonte de todas as pesquisas avançadas e assim preparando aquela unidade européia que esperava resultar da crise da guerra.
Anton Gruno Braga 119119, estudo de fo
Cara Carra. Os fiorerare da (lereere patio 2,600 m Nova York Geth (191%) cola 199 Muscum ot Modem Ati
Vigtustcelista mimiLa
CAPÍLULOSFIS
Antonio Sant Elia À cidade mova (1914; aquarela sobre papel, 0,45 «035m Coleção parncular
A ÉPOCA DO
FUNSIONALISMO
315
Giacomo Balla Compenctração iretescente n“2 077 m (19 Roma,
cole,
To) Balla
sorrtci ng
45
034 m “ão colecão | de Arteo Moderna
Cano Severina Heerógisfo denâmico du Bal Faberio (1912) teta, 1,61 x 1,56. Nova York Museum of Modern Art
316
CAPITULO SEIS A ÉPOCA DO | UNCIONALBMO
DER
BLAUE
REITER
1911, não é a segunda onda não-figurativa do Expressionismo da Briicke— no quadro da cultura européia da época, ele deve ser considerado em relação e em oposição ao Cubismo, reconhecendo sua ação renovadora, mas contestando, como um limite a essa própria ação,
seu fundamento racionalista e implicitamente realista. KANDINSKY (1866-1944) deixara a Rússia em 1896. No ambiente da Secessão de Mu-
mque, ele havia tomado uma posição de ponta, como líder do grupo À Falange (1902) e, a seguir, da Nova Associação dos Artistas (1909). Der blame Reiteré um grupo mais restrito, sem um programa preciso, mas com uma orientação decididamente espiritualista. À finalidade é coordenar e defender, através de exposições internacionais cudadosamente escolhidas e com textos teóiicos e polêmicos, todas as tendências pelas quais (como explica Kandinsky) a esfe-
ra da arte se distingue nitidamente da esfera da natureza e a determinação das formas artísticas depende exclusivamente dos impulsos interiores do objeto. Às idéias dos artistas do grupo avançado de Munique não são revolucionárias, havia em toda a Secessão uma tendência
simbolista e esprritualista, que subordinava o tema figurativo ao desenvolvimento de harmonias cromáticas e de cadências lincares amiúde inspiradas na música. Nas obras de Klimt, Lí-
der da Secessão vienense, o núcleo figurauvo rende frequentemente lineares e cromáticos, que formam ao seu redor uma aura luminosa, ra luminosa tende tanto mais a se abstrair, a se apresentar como luz plas radiações de prismas, triângulos, estrias de luz. À possibilidade
a se dissolver em ritmos indescente. Assim, a aupura, pronta nas múlude uma arte não-figura-
tiva, já admitida no plano teórico, encontrava comprovações sempre maiores no plano his-
tórico. Em 1908, um historiador e filósofo da arte, W Worringer, já havia apontado na
abstração uma das duas grandes categorias das formas artísticas, precisamente a forma própria das civilizações nórdicas primitivas, que, ante a natureza hostil, adotam uma postura de afastamento e defesa; a outra, a Einfuhlung ou a identificação com o objeto (a natureza), é, po! sua vez, própria das civilizações clássicas, mediterrânicas. Outro estudioso, J. Strzygowsky,
partindo das pesquisas de Riegl sobre o ornamento, procurava inverter (às vezes forçando o sentido dos documentos) a perspectiva tradicional da historiografia da arte: a origem da arte não estava nas culturas clássicas, e sim nas civilizações orientais, num enorme arco que ia da Pérsia à Irlanda e à Sibéria.
O movimento criado por Kandinsky, russo de origem siberiana, é anticlássico porque formula a renovação necessária da arte como a vitória do iriacionalismo oriental sobre o ra-
cionalismo artístico ocidental; portanto, também sobre o Cubismo, que realmente se apresenta como uma revolução, mas uma revolução no interior do sistema, visando, ao fim c ao cabo, a consolidá-lo e generalizá-lo. Quem são os artistas que fazem parte do Blaue Reiter ou do grupo circundante? A. JawLLNSKy (1867-1941) é um russo, como Kandinsky, em Paris, entusiasma-se pela pintu-
ra de Mausse, com suas amplas superfícies de cores planas, mas vale-se delas para uma simplificação icônica e uma reconsagração da imagem que o levam de volta à antiga pintura russa e aos esmaltes bizantinos, não lhe parecendo ser o caso de demonstrar sua extraordinária atualidade “européia”. A. KUBIN (1877-1959), austríaco, desenhista imaginativo (ilustra Hoffmann, Poe, Gogol, Kafka). F. Marc (1880-1916) professa o misticismo e cultua a arte
oriental; pinta apenas animais, não para estudar suas características, mas porque seus movi-
mentos espontâneos lhe revelam uma naturalidade original perdida pelo homem A. MACKE
CAPÍTLTOSESS ALTOÇA DO TEUNCIONALISMO
August Macke Mulher com emavo verde (1913) tela,0 44x 0,43m Colônia,
Wallrat-Richartz Museum
krany Marc Doss garos (1912), tela, < 0.98 m. Basiléia, Kunstmuseum
317
318
CAPITULÓSTIS
à FROCA
DO FUNCIONALISMO
(1887-1914) é um puro visualista, em contato com Delaunay e com o Futurismo; um artis-
ta, portanto, que considera o Cubismo um passo atrás, uma volta à ordem clássica, que mal se dissimula sob os propósitos de renovação.
O único com a envergadura de Kandinsky é PauL Ki Fr (1879-1940), suíço, e sua concepção da arte, embora em certo sentido integre a de Kandinsky, na verdade representa sua
outra face. Ambos, porém, têm um princípio em comum, que hoje poderíamos enunciar nos termos do estruturalismo linguístico (o que prova sua atualidade): a categoria do “significante” éincomensuravelmente mais ampla e mais aderente à realidade da existência do que a ca-
tegoria do “racional”. Em outras palavras: os signos correspondentes a significados dados, isto é, as linguagens representativas cujas formas estão logicamente ligadas aos objetos, são signos pálidos, porque sua comunicação é medrada pelos objetos da experiência comum (a narureza). À comunicação estética quer ser, pelo contrário, uma comunicação intersubjetiva, de
homem a homem, sem a intermediação do objeto ou da natureza. No texto Sobre o espiritual na arte (1910), Kandinsky explica que toda forma tem um
conteúdo intrínseco próprio; não um conteúdo objetivo ou de conhecimento (como aquele que permite conhecer e representar o espaço arravés de formas geométricas), e sim um conteúdo-força, uma capacidade de agir como estímulo psicológico. Um triângulo suscita movimentos espirituais diferentes dos de um círculo: o primeiro dá a sensação de algo que tende para o alto, o segundo de algo concluído. Qualquer que seja a origem disso, que podería-
mos chamar de o conteúdo semântico das formas, o artista se serve delas como das teclas de um piano; ao tocá-las, “põe em vibração a alma humana”. Evidentemente, as cores são formas como o triângulo ou o círculo: o amarelo possui um conteúdo semânuco diferente do azul. O
conteúdo semântico de uma forma varia segundo a cor a que ela está ligada (e reciprocamente): “As cores pungentes ressoam melhor em sua qualidade quando são dadas em formas agudas (por exemplo, o amarelo num triângulo); as cores profundas são reforçadas pelas formas redondas (por exemplo, o azul pelo círculo)”. Naturalmente,
não se está afirmando que as
qualidades de uma cor e de uma forma devam se reforçar mutuamente. o pintor pode urilizar escalas tanto descendentes como ascendentes. As possibilidades combinatórias são infinitas; uma forma é significante não apenas por possuir, mas por assuznir um significado, todavia não se torna significante a não ser na consciência que a percebe, da mesma maneira que uma comunicação não é comunicação se não for recebida. A primeira exposição do Blaue Rester (1911) rende homenagem a H. Rousseau, falecido no ano anterior; o único francês vivo é Delaunay. São escolhas significanvas. Rousseau é o artista que soube renunciar a todo o aparato representarivo tradicional, reconduzindo o problema da comunicação por imagens ao grau zero; Delaunay é o artista que aceita o espíuto revolucionário do Cubismo, mas recusa como contraditório o racionalismo “cartesiano” de sua fase analítica.
O “espiritual”, para Kandinsky, não é de forma alguma o “ideal” dos simbolistas; o simbolo também é uma forma à qual corresponde um significado dado, e deve ser rejeitado. O “espiritual” é o não-racional; o não-racional é a totalidade da existência, na qual a realidade psíquica não se diferencia da realidade física. O signo não preexiste como uma letra no alfa-
beto; é algo que nasce do impulso profundo do artista e, portanto, é inseparável do gesto que o traça. No primeiro período não-figurativo Kandinsky reage decididamente tanto às cadências incares e cromáticas ritmadas da Secessão quanto à decomposição analítica, segundo as coordenadas geométricas, do Cubismo. Parece se remeter ao primeiro estágio do grafismo infantil, à fasc que os psicólogos chamam “dos rabiscos”; é, de fato, no próprio âmbito do Blane Reiter que se radicaliza a exigência difusa do “primitivismo”, identificado com a con-
CAPÍTUT OSEIS ALPOCA DO FUNCIONATISMO
nr
Vassili Kandinsky
ue
“ '
Boo SE.
fmprovestção
R+26(1912), cela, 098» 1.07 m
Munique, Stadtische Galerte.
dição de rabula rasa da primeira infância. Evidentemente, Kandinsky quer se remeter ao estágio inicial de uma pura intencionalidade ou vontade expressiva, que ainda não se apóia em nenhuma experiência visual ou linguística. Às Improvisations (o próprio título é indicativo) se apresentam como movimentos agregados de signos, sem qualquer suporte estrutural ou
ordem aparente. No mesmo quadro existem sinais de diferentes origens, impossíveis de serem combinados num discurso morfológica e sintaticamente coerente: pontos, vírgulas, zi-
guezagues, curvas, retas, manchas, nuvens de cor. Se se quiser, é possível recuperar a origem de alguns deles numa remota experiência da realidade — por exemplo, um sinal ondulado
pode descender do movimento rítmico de um cavalo a galope. Mas esse sinal derivado do movimento de um cavalo a galope não serve absolutamente para representar um cavalo a galope. Da realidade em que o pintor, como qualquer outro, está mergulhado, ele não recebeu nem reteve senão imagens caducas, fragmentárias, desconexas; não de objetos definidos, mas de coisas paradas ou móveis, agudas ou arredondadas, filiformes ou expandidas.
Essas impressões não servem para reconhecer os objetos e menos ainda para representálos; interessam ao sujeito, cuja existência também é constituída de estases e movimentos, tensões e distensões, e se realiza num ambiente igualmente consutuído por estases e movimentos, tensões e distensões. É justamente a condição existencial que Worringer descreve como típica do “primitivo”, que recebe apenas imagens perceptivas “caducas e incoerentes” da rea-
lidade, a partir das quais deduz. laboriosa e hipoteticamente, certas “imagens conceituais” que, eventualmente, poderão servir-lhe para se orientar num “mundo de fenômenos” que, no entanto, permanece agitado, caótico, incognoscível. Entre uma realidade ainda não objerivada e o indivíduo ainda não subjetivado, há uma indistinção absoluta, uma continuidade até biológica. Nesse nível, em que nada pode ser distinguido e objetivado, uma impressão
visual se traduz imediatamente em estímulo motor, um estímulo do qual nos ibertamos reagindo ou exprimando, isto é, traduzindo o movimento interior em signos visíveis. À tendên-
319
320
CWITULOSEIS
4 ÉPOCA DO FUNCIONALISMO
Vassil Kandinsky a) linha ondulada livre com
Vassiti Kandinsky Lsboço para o almanaque do Cavaleiro Azul (1911)
acentuação
Munique,
posição horizontal, b) a mesma
linha ondulada acompanhada por hnhas
Sradrische Galerie
geomerricas. De Ponto imba e superficie
(1925), livro que reune as experiências didatiças de Kandinsky na Bauhaus
cia de fazer da pintura expressão de uma atividade subjetiva já estava difundida no Art Nouveau, no Expressionismo e no Futurismo. Boccioni sustentava que um quadro não é se-
não a expressão de um “estado de ânimo”; Larionoy e Goncharova, com seu movimento “raísta”, recusam-se a representar coisas iluminadas ou em movimento, e pretendem representar a Luze o Movimento em abstrato. Kandinsky vai muito além do episódio psíquico, toca no fundo da condição primária do ser; aquela em que o ser não se mostra como saber ser, e sim como querer ser. Qual é, então, o significado de um quadro? É um puro teste psicológico destituído de valor estético. É fácil observar que a imagem num quadro de Kandinsky
apresenta-se desordenada, mas não confusa; destituída de lógica, mas não de sentido. À exda existência é, inquestionavelmente, uma pressão gráfica da condição primária e essencial maneira de tomar consciência dela; assim, toma-se consciência de toda uma realidade que escapa à consciência, entendida como ordenamento racional dos fenômenos. É a categoria dos
significantes, infinitamente mais ampla do que a categoria dos significados, isto é, da natureza. À arte, portanto, é a consciência de algo de que, de outra forma, não se teria consciência: não há dúvida de que ela amplia a experiência que o homem tem da realidade e lhe abre novas possibilidades e modalidades de ação. E o que é conscientizado pela consciência que se realiza na operação artística? O fenômeno enquanto fenômeno. A consciência “racional” assume
o fenômeno
enquanto
valor,
mas
no
mesmo
instante
perde-o
como
fenômeno.
À
fina-
lidade última de Kandinsley é levar o fenômeno enquanto tal à consciência, de fazê-lo ocorrerna consciência; como o fenômeno é existência, aquilo que se leva e se faz ocorrer na cons-
ciência é a própria existência. Esta é a função insubstituível da arte. É também uma função social. Se a arte é comunicação, e não há comunicação se não há um receptor, uma obra de arte funciona apenas na medida em que atinge uma consciência. É outro motivo de divergência em relação ao Cubismo: um quadro cubista tem um funcionamento em si, perfeito e exemplar, é um 70delo de comportamento que o espectador pode
apenas imitar mentalmente, procurando repetir a operação “racional” executada pelo artista sobre a realidade. Um quadro de Kandinsky é apenas um rabisco incompreensívele insensa-
CAPÍTULO SEES
4 ÉPOCA DO FUNCIONALISMO
to, até que entre em contato com o tecido vivo da existência do “fruidor” (é então que se afirmao princípio da fruição, e não o da contemplação da obra de arre) c comunique seu impul-
so de movimento: não é um modelo, é um estímulo. Não é apenas pelo gosto da experimentação que Kandinsky, em 1910, hberta-se de todos os aparatos, os sistemas de representação que, no entanto, havia utilizado em sua atividade figurativa anterior; é evidente que quer co-
locar-se na posição de quem ignora roralmente os expedientes e procedimentos da arte, não possui seu código. O quadro não é uma transmissão de formas, é a existência do artista que se liga diretamente à dos outros. À za entre 1910 e 1920 não exige senão certa destreza da vista e da lizar o movimento correto sem hesirar nem se confundir; não
é uma transmissão de forças: pintura que Kandinsky realimão, uma capacidade de reasão estas as qualidades que o
trabalho industrial desenvolve ou deveria desenvolver no indivíduo, e que, pelo contrário, mortifica e reprime”? A consciência para a qual Kandinsky drrige seus estímulos visuais não é uma consciência em absoluto ou em abstrato; é a consciência típica do homem moderno, e
não reflete sobre o agido, mas é ação consciente. E chega-se à conclusão: a descoberta sensacional de Kandinsley consiste em ter eliminado a arte como disciplina ou doutrina institucionalizada, histórica, e tê-la substituído pela pura operação estética, o modo estético como modo de existir e agir Muitas vezes considera-se o período das Improvisations como o mais livre, o mais aforrunadamente criativo da obra de Kandinsky, e o período posterior de ensino na Bauhaus co-
mo um recuo em que o artista renuncia a produzir o signo no estado nascente e recorre a morfemas facilmente identificáveis como círculos, triângulos, curvas, espirais. É o costumer
ro preconceito romântico segundo o qual onde existe ordem, não existe arte. Ora, essa pes-
quisa geométrica certamente pode ter sido favorecida pelo desejo de ordem e de clareza que permeia toda a arte européia do primeiro pós-guerra, mas constitui o desenvolvimento necessário da poética das Improvisatsons. Da fase da tabula rasa, na qual ainda não há forma nem imagem, mas apenas uma viva agitação de embriões sígnicos, Kandinsky passa a consi-
derar uma fase mais adulta, em que a consciência já está repleta de símbolos formais, que certamente perderam seu significado original, mas justamente por isso permanecem disponí-
veis como significantes. A problemática de Kandinsky se torna cada vez mais especificamentc linguística; a cada vez que se tem algo a dizer, não se cria uma linguagem do nada, mas à
estrutura da linguagem se transforma continuamente porque as velhas palavras, agora inexpressivas, são captadas no fluxo da existência. Triângulos, círculos, retas, curvas e espirais são “imagens conceituais”, que se reconvertem em fenômenos na medida em que são mostradas
naquele tamanho, naquela cor, naquele ponto do quadro, naquela relação com os outros signos. Assim, uma linguagem geral ou comum, social, volta a ser individual e específica; os grandes símbolos ou temas do ser se traduzem no “ presente” fenomênico do existir.
[ambém para Klee, assim como para Kandinsky, a arte é operação estética, e a operação estética é comunicação intersubjetiva, com uma clara função formativa ou educauva. Toda
asua obra se diria inspirada, mesmo em seus aspectos lúdicos evidentes, no conceito de educação estética como educação para a liberdade, do grande romântico que foi Schiller Também para Klee, é fundamental o recurso à atividade gráfica da infância, que documenta os
primeiros atos de uma auto-educação estérica. Mas a condição da primeira infância não é de forma alguma uma condição de primitividade absoluta, de não-experiência; cada vida que
nasce traz a marca das experiências de muitas vidas vividas. Klee certamente foi o primeiro artista a penetrar— mas conservando uma grande clareza de consciência e uma extraordinária limpidez expressiva — naquela região ilimitada do inconsciente que Freud e Jung tinham aberto recentemente para a pesquisa; uma região onde nada se apresenta como representa-
32]
322
CADÍTLLOSEIS A ÉPOCA DO FLNCIONAIISMO
masi MO meiat ot
Paul Klee Exemplos livremente figurados da medição arnficial de aumento ou
£ Mn" Va
diminuição a) base acima: chuva, desenho a bico de pena (1927); b) base no meio pagode sobrc a água, desenho a bico de pena (1927); base de baixo. detalhe do desenho em bico de pena, Cidade das catedrais (1927) De Teorea da forma e da figiração, ed 1956
as a ponta uam el mo a
4 te
Paul Kiee, Porsão de jardim M (1932).
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aros
CAPÍTULO SEIS À ÉPOCA DO FUNCIONATISMO
ção ou conceito, e tudo se dá por imagens e signos. Tomada em seu conjunto (um conjunto que é antes um contínuo, milhares de pequenos quadros a óleo, aquarela, têmpera, e uma in-
finidade de desenhos, esboços, gravuras), a obra de Klee é uma espécie de diário de sua pró-
pria vida interior ou profunda, de tudo o que permaneceu no estágio de impulso ou motivo, e não se traduziu como causa de dererminados efeitos, não constituiu história. Nesse sentido, Klee pode ser considerado, na pintura, um paralelo de Joyce; assim como em Joyce as palavras e as frases, em Klee as imagens também se decompõem, se recompõem e se misturam segundo nexos alógicos e assintáricos, mas vitais e sensíveis como ligamentos nervosos.
Sua formação, bem como a de Macke, grande amigo seu, recebeu uma grande influência de Delaunay, com sua estruturação da imagem fundada na lei óptica dos contrastes simultá-
neos; e Klee sempre admirou Picasso, rão distante quanto à índole, por sua extraordinária faculdade de explicitar a imagem, transformá-la numa coisa viva no espaço da vida. O interesse pela óptica das cores é pelas técnicas da arte não contradiz de maneira alguma a concepção, extremamente sólida tanto em Klee como em Kandinsky, da absoluta subjetividade da arte. Seu
objetivo não é representar, e sim visualizar; a visualidade segue as leis da percepção. Representa-se algo que já possui uma forma no mundo exterior ou na imaginação do artista; visualiza-
se algo que, antes de ser visualizado, não tinha uma existência fenomênica. Para Klee, a operação artística é semelhante à do pesquisador que, recorrendo a certos meios técnicos, torna vistveis (porém não representa) os microorganismos que certamente existem, mas que de outra
maneira não se fariam visíveis. Klee opera sobre microorganismos que povoam as regiões profundas da memória inconsciente; e eles começam a existir, como fenômenos, apenas no instante em que são revelados. O que os revela, todavia, não é uma introspecção penetrante, e sim a operação artística, os cuidadosos movimentos do olho, do braço, da mão, de todo o ser do ar-
tista que se torna sensível aos impulsos que vêm das profundezas. Se Klee estuda e pratica todas
as técnicas, não é para dispor de meios mais eficientes de levantamento e transcrição, mas para poder fornecer à imagem que vem se urdindo o material mais adequado ao seu tornar-se real. Essa ligação intrínseca, quase física, da imagem com a realidade da vida vivida explica como Klee pôde se dedicar com tanto empenho à docência na Bauhaus (1920-31): uma es-
cola que pretendia dedicar a arte à solução dos problemas concretos, práticos da vida social, e sobretudo fazer da educação estética o eixo do sistema educacional de uma sociedade de-
mocrática. Na Bauhaus, ele transforma sua poética em teoria, a teoria em método didático — a estrutura da forma não pode ser senão o processo do formar-se (Gestaltung). Sua concepção do espaço como ambiente físico-psíquico da existência, intimamente ligado às pes-
soase às coisas, facilmente se sobrepõe, sem perturbá-lo, ao espaço rigorosamente geométrico da arquitetura “racional”; o que é a geometria, o que é a perspectiva, senão frágeis estru-
turas mentais que se tramam no espaço da experiência ou da vida? Os globos luminosos com que os técnicos da Bauhaus subvertem os sistemas tradicionais (e, no fundo, naturalistas) da iluminação dos ambientes têm seu precedente, e talvez seu modelo, em certas formas que,
nos quadros de Klee, exaltavam a luminosidade das cores. O mais lúcido designer saído da Bauhaus, Breuer, deve em parte a famosa invenção da cadeira de tubos de aço cromado aos
ensinamentos de Klee: construção rarefeita, filiforme, de linhas em tensão, que percorre o espaço em vez de ocupá-lo, anima o ambiente com a agilidade de seu ritmo gráfico, substitui a consistência maciça do objeto pela quase-imaterialidade do signo.
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324
CAPÍTULO SLIS A EPOLA DO FUNCIONA] SMO
A
VANGUARDA
RUSSA
De todas as correntes de vanguarda, animadas por propósitos revolucionários, a que se desenvolve na Rússia nos primeiros trinta anos do século com o Raísmo, o Suprematismo e o, Construtivismo é a única a se inserir numa tensão e, a seguir, numa realidade revolucionária
concreta, e a colocar expliciramente a função social da arte como uma questão política, Na primeira década, uma viva tendência modernista acompanha a revolta dos intelec-
tuais contra o regime anacrônico dos czares. É centrífuga e centrípera. O desenvolvimento industrial, por um lado, em grande parte devido ao capital estrangeiro, determina uma gravitação crescente rumo à cultura ocidental, especialmente a de Munique e da França; por outro, não podendo dispensar a contribuição dos trabalhadores, demanda o interesse dos intelectuais pelo povo, suas tradições, suas capacidades criativas inatas A ponte com o Ocidente europeu foi Burliuk, na primeira década com relação a Paris é Munique, a seguir com os futuristas e especialmente Maiakovski. Todos os grandes artistas russos (Kandinsky, Male-
vich, Pevsner, Gabo, Tatlin, Chagall; e pode-se acrescentar o romeno Brancusi) começam
numa vertente populista, assim se remetendo ao patrimônio icônico e estilístico da antiga arte eslava. As próprias correntes do modernismo ocidental recebem uma vaga coloração ideológica; pelo simples fato de serem européias e modernas, assumem um tom de protesto e, ao mesmo tempo, futurista.
A segunda década é a época dos movimentos organizados. O primeiro é o Raísmo (1913), liderado por MICHEL
LARIONOV (1881-1964) e NatALIA GONCHAROVA
(1881-
1962). No “manifesto”, o movimento é apresentado como uma “síntese entre cubismo, fururismo e orfismo”, Lartonov visa à construção de um espaço sem objetos, absoluto, constiruído apenas por movimento e luz — ritmo dinâmico de raios entrecruzados, que se decompõem nas cores do prisma Nele predomina o tema “órfico”, mas com tom sublimatório e ” simbolista, enquanto em Goncharova predomina o tema “futurista” do dinamismo maquinista, do mecanismo pulsante, da velocidade como síntese entre col pos e espaço.
K. MALEVICH (1878-1935) empreende uma pesquisa metódica sobre a estrutura funcional da imagem. Estuda Cézanne, Picasso (período negro e analítico) na essência dos fatos formais; com o mesmo rigor, procura nos antigos ícones russos não mais O filão genuíno de
um ethos popular, mas a raiz semântica, o significado primário dos símbolos e signos expressivos. Do período cubo-futurista (1911), que trai as primeiras experiências parisienses (Léger)
e no qual o quadro resulta da combinação entre módulos formais geométricos, chega em 1913 à formulação da poética do Supremartismo: identidade entre idéia e percepção, fenomenização do espaço num símbolo geométrico, abstração absoluta. Malevich nega tanto a
utilidade social quanto a pura estericidade da arte; altás, se a esteticidade educa ou agrada, ela entra nas categorias do necessário ou do útil, Como o conhecimento da realidade através das coisas é telativo e parcial, é preciso tender ao conhecimento do mundo como “não-objetivo”; e, se a arte é um meto para a redução do objeto à não-objerividade, é também o meio para a redução do sujeito à não-subjerividade. O quadro não é senão um meio para comunicar o estado não apenas de equilíbrio, mas também de identidade entre um sujeito e o objeto. O que Malevich propõe, também de acordo com a revolução social « política em andamento (embora seus expoentes se declarem realistas e combatam o “abstracionismo”), é uma transfor-
mação radical, sem dúvida, porém não ideologicamente finalizada. A verdadeira revolução não é a substituição de uma concepção de mundo decadente por uma nova concepção: é um
CAPITULO SeIS
4 LPOCA DO FUNCIONALISMO
Michel Lanonov Rasa (1911), rela, 0,54 « 0,70m Panis, coleção Tarionos
mundo destituído de objetos, noções, passado e futuro, uma transformação radical em que o objeto e o sujeito são igualmente reduzidos ao “grau zero”. Daí as razões de sua dissidência em relação a um movimento revolucionário que transforma uma ordem para instaurar outra, e que produz outros objetos, mesmo que seja para o povo. Para Malevich, no período suprematista, o quadro não é um objeto, e sim um instrumento mental, uma estrutura, um sig-
no, que define a existência como equação absoluta entre o mundo interior e o exterior. A partir de 1915, o Suprematismo de Malevich e o Construrivismo de TATLIN (18851953) são as duas grandes correntes da arte avançada russa; ambas se inserem no vasto mo-
vimento da vanguarda ideológica e revolucionária, liderada por Maiakovski e oficialmente sustentada pelo comissário para a instrução do governo de Lenin, Lunacharsky. Malevich é
um teórico; não se ocupa da exaltação e da propaganda dos ideais revolucionários, mas da rt-
gorosa formação intelectual das gerações que irão construir o socialismo. À concepção de um mundo “sem objetos” é, para ele, uma concepção proletária porque implica a não-propriedade das coisas e noções Sua utopia utbanista-arquitetônica também se inspira nesse prin-
cípio: a ordem da sociedade futura será a de uma cidade onde “objetos” e “sujeitos” se exprimem numa única forma. O programa, que não terá sequência na Rússia, exercerá, por outro
lado, notável influência na Alemanha, na formação do método didático da Bazhazs
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326
e 2 EPOCA DO FONCIONA LISO CAÍTUOSAS
Natalia Goncharova
Composição le 1913)
tela 0,942 x060m Paris, Muséc Nat anal d'Arr Moderno
A posição de latlin não difere radicalmente da de Malevich, mas visa a uma intervenção na situação de fato. É um programa preciso de ação política. A arte deve estar a serviço da revolução, fabricar coisas para a vida do povo, como antes fabricava para o luxo dos ricos. Qualquer distinção entre as artes deve ser eliminada como resíduo de uma hierarquia de classes; a pintura e à escultura também são construções (e não representações) « devem, portanto, utilizar os mesmos materiais e os mesmos procedimentos técnicos da arquitetura, que, por sua vez, deve ser simultaneamente funcional e visual, isto é, visualizar a função. Não mais
existem artes maiores e menoies: como forma visual, uma cadeira nao difere em nada de uma escultura, e a escultura deve sei funcional como uma cadeira. À arte deve ter uma função precisa no desenvolvimento da revolução: a excitação revolucionária potencializa as faculdades imventivas. as faculdades inventivas conferem um sentido criativo à revolução
É preciso dar
ao povo a sensação também visual da revolução em andamento, da transformação de tudo, a começar pelas coordenadas do tempo e do espaço. Os artistas se tornam os geniais diretores do “espetáculo” entustasmante da revolução são eles que organizam as festas populares, as comemorações, os desfiles, as representações teatrais. Encarregado de estudar o Monumento à Terceira Internacional (1919), Tatlin projeta sua torre Eiffel proletária: uma gigantesca es-
piral inclinada e assimétrica de treliça metálica, que gira sobre si mesma é funciona como
cam Mis HOST
DO Ao PD
Kumar Malevich
Kazmmr
IRO DUE A NS Ba ASA,
Composição suprenarsra
Malevich. Rose cobesta (1913)
tela 0,80 + 095 m S edeii,k Muscam
Arsterda,
7
328
CAMIULOSEIS AÉPOCA
El Lissuzky
DO ELNCIONALISMO
Larhn srabalhando no projero do
Monsemento à Lercerra Internacional le 19201, colagem Londres, Grosvenor Gallery
FEV
AnTASA ST
MCARTYNPADALHUA JAF O ITA
ki Lossitray Come é ceenira vermelha, golpe os brancos
(1919),
cartaz
EL Lissitals+ Projeto para a imônna Lent (1920)
CAPITLIOSEIS
Escola de Novgorod Exaltação de cruzíséc XIL detalhe, terra, 76,44 70,5 m . Moscou, Qaleria Est Tretiakov
A EPOLADO FUNCIONALISMO
Kazsmir Malevich Flemenros fundamentais do Suprematemo (o 1913), tela, Amstet Sredelyk Museum
uma antena emissora de notícias e sinais luminosos A cidade soviética deve ter uma estrutura e uma figura novas. À arte, que não mais pode ser representativa, pois não há mais valores msttucionalizados para representar, será informativa, visualizará instante por instante a história em ação, estabelecerá um circuito de comunicação intencional entre os membros da comunidade. É uma intuição profética, que será retomada apenas muitos anos depois; mas já não no quadro de uma revolução em andamento, e sim no de uma sociedade neocapitalista ou de consumo. Kandinsky,
A.
PLvsxER
(1886-1962)
e seu irmão
NAUM
GABO
(1890-1 977),
e
CHaGatI (1887-1985), que já tinham uma posição européia, mas voltaram à Rússia devido à guerra, também participam da ação cultural revolucionária. Kandinsky com a tarefa de organizar uma rede de museus para a instrução artística do povo, os dois irmãos Pevsner
apoiando o movimento construtivista, Chagall fundando uma academia aberta a todas as
novas tendências, e depois pintando decorações e cenários para o Teatro Judaico de Moscou. Como sua pintura, repleta de fábulas e do folclore judaico, seu teatro revolucionário quer sei pura fantasia; foi também com este propósito que Chagall criou sua escola em Vitebsk, on-
de se deparou, porém, com a oposição de Malevich c dos construtivistas, para os quais a re-
volução não era fantasia, e sim rigor. Depois da vitória sobre os exércitos brancos, a União
Soviética formula um amplo programa de reconstrução econômica e social. Delinera-se então, no campo da ação artística, uma dissidência que terá como consequência a volta de Kan-
dinsky, Chagall, Pevsner e Gabo para a Europa Ocidental. Para eles, assim como para Malevich, a função do artista deve ser essencialmente espiritual, educativa: seus instrumentos são a escola e o museu Para os construtvistas, a ação artística é uma ação governamental e se desenvolve principalmente na planificação urbanista, no projeto arquitetônico, no desenho industrial. Como artistas, canto A. RODCHENKO (1891-1956), o teórico marxista do Constru-
tivismo, como EL LISSITZKY, o artista gráfico para quem a teoria da forma é teoria da comurucação visual, dão grande importância ao rigorismo formal suprematista; no plano da ação cultural-política, porém, querem demonstrar que, num sistema onde a indústria não está vinculada à superestrutura capitalista, não pode subsistir nenhuma contradição entre a operação estética e a tecnologia industrial. As técnicas industriais não só abriram possibilidades iumitadas à invennvidade dos artistas, como também constituíram o aparato funcional por meio do qual o impulso criativo da arte entrará no círculo da vida social e, reciprocamente,
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OS DÊ CAPÍTULOSTIS
| 4 4 TA DO FUNCIONALISMO ÊAFPOÇA
a sociedade estimulará a criatividade da produção. Assim, a arte industrial será a nova e verdadeira arte popular: não mais será a timida expressão de uma classe culturalmente inferior, esim o sinal da vitalidade interna de uma sociedade que se forma e se transforma numa condição de liberdade democrática. arte Após a morte de Lenin e a queda de Lunacharsky, a nova burocracia stalinista nega à qualquer autonomia de pesquisa e de orentação, reduzindo-a a um instrumento de propagana velha academia, da política e de divulgação cultural. A vanguarda é desautorizada e reprimida; 4 3 ES , uma revalorizada. À arte da revolução se sucede, usurpando os títulos de realista” e “socialista”
arte de Estado, que de fato não é arte, e sim uma ilustração banal e enfática de temas impostos. Os Mais que opressão política e condicionamento ideológico, é à desforra dos medíocres.
maiores responsáveis não apenas pelo bloqueio das vanguardas e pelo retrocesso ao pior convencionalismo burguês, mas também pela perseguição à qualquer pesquisa avançada, foram
um mau pintor, Zdanov, e um mau arquiteto, Jofan. A partir de 1930 aproximadamente, a pinrura, a arquitetura e a escultura da União Soviética, às quais se devolve anacronicamente o prespintígio acadêmico perdido, serão, infelizmente, semelhantes em tudo, exceto na temática, à tura, à escultura € à arquitetura oficiais do fascismo italiano e do nazismo alemão.
A
SITUAÇÃO
ITALIANA
Arquitetura. O manifesto da arquitetura futurista, lançado por À. Sanr Elia (18881916), não teve e não podena ter adesão. À indústria, na Itália do Norte, encontrava-se em fase de desenvolvimento; a primeira fábrica moderna é a da FIAT, em Turim, construída por MATTÉ | RUCCO (1869-1934) após 1920. Quanto ao problema das habitações operárias, era
praticamente ignorado por toda parte. Nas cidades reinava (e conunua à reinar) a especulação imobiliária, protegida pelas burocracias governamentais e muniupais moderadas. Quando se acentua a pressão das reivindicações sociais, a resposta das classes dirigentes é um regime de repressão policialesca, o fascismo Como a iniciariva da construção civil estava, em grande parte, nas mãos dos poderes públicos, a história da arquitetura moderna italiana é a história de suas difíceis relações com o regime fascista. Essa história tem dois períodos: o primeiro é de compromisso, o segundo de luta. Em
1926 forma-se o Grupo 7 (FiGINI, FRETTE,
LARCO, LiBiRA, POLLINI, RAVA, TERRAGNI), que, a seguir, ampliando-se, especifica-se como o MIAR (Movimento ltaano para a Arquitetura Racional); a alma do movimento cia Libera.
De início, a atitude do regime não é decididamente hostil. Seu arquiteto oficial, M. PIACFNTINI, adota uma polírica de compromusso: não renega a tendência moderna porque o « regime diz ser favorável ao “desenvelhecimento” da cultura; na essência, porém, apóia O tra-
dicionalismo dos praricantes insípidos e oporrumstas Uma expressão típica do compromisso (depois sufocada pelo predomínio das pressões 1cacionárias) foi a grande Exposição Decenal de 1932, não isenta de soluções modernas de certo interesse formal, mas totalmente alheias ao espírito e aos problemas da arquitetura moderna européia. Em clima de compromisso, o movimento moderno consegue colher alguns sucessos: à líder do grupo Estação de Horença (de um grupo de jovens, entre os quais MICIFIUCCI — é GAMBLRINI) é uma batalha duramente vencida numa guerra potencialmente perdida
A política de Piacentini é insidiosa tende a desagregar o movimento moderno e a redu-
zir o problema à uma questão de escolhas formais (arcos e colunas, ou concreto armado). O triunfo do compromisso piacentino é a Cidade Unrversitária de Roma (1936): há edifícios em estilo monumental e edifícios em estilo moderno — e isso não é o pior. O pior é a falsa
CAPILCLO SHIS
DO FUNCIONALISMO — 331 VÉPOCA
Grupo roscaDo de arquitetos
Micheluca
líder Giovanm
Vera da galera de chegada
du estação de santa Maria Novell
(1933) em ! iorença.
Gauseppe Pigano e G. Lev-Montalcim Pesvilbrio det Iuília na Exposição
Pose mat tonal de Letge (1930)
1 igore Ginomo Matte Irucco Fabrica3) brar em Turim vam passa de astro
1919-2
225º
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nuno
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O SFT
4 EPOCA
DO FUNCIONALISMO
Franco Albini Musen do | esouro de São Eosrenço (1957 tem Gênova
Giovanni Micheluccr Botsa de Mercadorias (1932, pa destruidae reconstruída) em Pastora
lgnazio Gardelia Dipensario de esxberculosos (1935-8) em Alessaneia
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Grupo toscano de arquiteros lider Grovann: Miche cor Estação de santa Maria Novelia (1933) em Florença
AL SICA DOFUNC ONALISMO
Graseppe Terrignr
Via Branca 19371
em Ponte Seveso
Pagano, Albini, G irdella, Minolere, Palanti Predival, Romaao
Proposa para o batera
Sempron eme Milão (1938,
pa . em
CAPITULO CPIs
334
CAPÍTUTO SLIS A EPOCA DO TUNCIONADISMO
Niculay Diulgheroff; Progero de um faro!
Luig Colombo fila e Alfredo Orar
(antes de 1931)
agrega fretreresta em Latrrm (antes de 1931),
Projeto de
formulação urbanista, que não leva em consideração o fato de que a universidade é um orga-
nismo social, um centro ativo de pesquisa científica, um local de encontro dos jovens, o núcleo cultural de uma grande cidade, e não um recinto para segregar os jovens e desencorajarlhes qualquer veleidade de iniciativa.
Se não se poderia esperar do fascismo uma interpretação democrática da função da
escola, menos ainda poder-se-ia esperar uma interpretação democrática da função da cidade. As iniciativas foram até excessivas: reformas das velhas cidades, fundações de novas cida-
des. E aqui se aprofunda o contraste. Para os arquitetos “oficiais”, a intervenção moderna sobre a cidade antiga geralmente consiste na “demolição” e no chamado saneamento dos centros históricos, no afastamento das classes pobres do centro das cidades, para relegá-las à desolação dos bairros populares e das choupanas infectas da periferia. O “vulto monumental” ou “imperial” era pouco mais do que um pretexto: desalojar os pobres do centro urbano sig-
nificava, na verdade, colocar os terrenos mais nobres à disposição dos especuladores. Desenvolver um urbanismo moderno significava, pelo contrário, sacrificar a exploração especula-
dora dos particulares à função pública urbana, reformar a estrutura classista da comunidade, isto é, enfrentar todos esses problemas sociais que o regime, guardião dos interesses da buguesia conservadora, considerava perigosos para a ordem do Estado. Não poucas cidades italianas tiveram seus centros históricos parcialmente destruídos, como Brescia; a mais afetada foi Roma, com as infelizes demolições do chamado bairro do Rinascimento e dos Borghi Va-
ticani Os protagonistas da fase de luta são um crítico, E. PERSICO (1900-36), um arquiteto, G. PAGANO (1896-1945), e, fruto da colaboração entre eles, a revista Casabella. Persico tinha
idéias claras também quanto à política; sabia que a arquitetura curopéia moderna partia de premussas ideológicas e de uma temática social irredutíveis, sem as quais e sem a problemática urbanista decorrente ela não teria sido racional nem democrática, e nem sequer interna-
cional. Pagano era um polemista corajoso e impulsivo, embora de inicío tivesse a ilusão de
CAPÍTULO SELS A EVOCA DO FUNCIONALISMO
poder persuadir o regime a adotar uma política urbanista mais aberta (mas a seguir, desiludido, passou ao antifascismo militante e à Resistência; morreu num campo de extermínio alemão). À revista Casabella, cumprindo uma valiosa função de informação crítica, impediu
o isolamento dos arquitetos avançados italianos, mantendo vivo o debate sobre os grandes problemas da arquitetura mundial. Em torno desse núcleo, principalmente em Milão, reúnem-se os jovens arquitetos de tendências avançadas, estudam, entre outras coisas, um pla-
no urbanista para Milão (Milão verde), que naturalmente não tinha qualquer possibilidade de ser levado em consideração pelas autoridades da época, mas demonstra que, apesar das diretrizes do regime, os melhores arquitetos italianos estavam conscientes de que seria impossível excluir o problema da arquitetura de uma programação urbanista mais ampla. Alguns desses jovens, como F. ALBINI (1905-77), I. GARDFILA
(nascido em
1905) e E. ROGERS
(1909-69), serão os protagonistas da reconstrução após a Segunda Guerra Mundial. A obra de G. TERRAGNI (1904-42) parece contestar essa interpretação da situação da a!-
quitetura italiana durante o fascismo, na verdade, porém, confirma-a. Terragni não tinha interesses ideológicos, projetou e realizou edifícios a cargo do regime; contudo, foi incontestavelmente o maior arquiteto italiano da década anterior à guerra. Não fez concessões ao mau
gosto da arquitetura oficial, não dissimulou sua fé nos mestres do racionalismo curopeu. Por algum tempo, tivera a ilusão de que o fascismo era uma força revolucionária, o que prova seu
interesse pelas experiências do Construtivismo soviético. Talvez se sentisse o herdeiro de Sant'Elia (nascido, como ele, em Como) e aguardasse um segundo Futurismo. Mas o rigor
purista de sua pesquisa formal não era apenas um recolhimento, uma resignação ao programa mínimo. Como para Pagano e os outros jovens arquitetos, seu objetivo supremo era uma arquitetura internacional, européia. No entanto, se para Pagano tratava-se basicamente de evitar uma fronteira infelizmente indestrutível, para Terragni a única via consiste cm desenvolver uma consciência internacional ou européia no interior da consciência ou, mais precisamente, da problemática nacional. Não era um problema de adequação, mas de amadurecimento era este, e não outro, o “problema italiano”.
Pintura e escultura No final da guerra, o Futurismo estava em crise; mortos Sant Elia e
Boccioni (que nas últimas obras, de 1916, já havia se desligado do Futurismo), Severini agora estavelmente inserido na escola pós-cubista francesa, Carrá, Soffici e outros na oposição. Contudo, o ciclo da vanguarda futurista não havia se encerrado. O sucesso do Construtivismo russo, do qual Marinetri vaidosamente se dizia padrinho, mantém acesas, no “ “apelo
de volta à or-
dem” geral, as esperanças dos saudosistas da vanguarda. É verdade que a vanguarda russa era favorecida pelo agitado clima da Revolução de Outubro; mas o fascismo, tão logo chegou ao po-
der, também proclamava-se revolucionário, e teve em Marinerti um entusiasta. Não surpreende que alguns jovens, depois de esperar em vão que a guerra trouxesse uma renovação da cultu-
ra italiana em sentido europeu, tenham acreditado de boa-fé que poderiam ressuscitar o Futurismo, colocando-se na esteira da “revolução” fascista. Como a vocação do fascismo era reacionária, a avaliação política estava equivocada. Mas a escolha cultural era correta.
Em Turim, a cidade mais industrial da Itália, forma-se um pequeno grupo neofuturista, liderado por L. €. FiLLia (1904-36), Mino Rosso (1904-63) e N, DIULGHEROFF (nascido em 1901). Fillia, mais crítico do que pintor, percebe que o contato com a pintura européia deve ser buscado para além da já previsível divulgação do Impressionismo e do Expressionismo; Rosso, escultor, filia-se ao dinamismo plástico de Duchamp-Villon; Diulgheroff,
um búlgaro formado na Alemanha, serve de ponte para a vanguarda russa e a cultura centro-
445
336
CAPÍTULO SEIS À EPOCA DO FUNCIONAL SMO
Mino Rosso Renato abstrato (1932), meral e madeira, 0.45 » 0.30 m Tunm, coleção Benoid:
européia. É ainda arquiteto e artista gráfico, e relaciona-se com Pagano e o nascente movi-
mento italiano pela arquitetura racional.
A breve existência e o pequeno peso cultural do Neofuturismo explicam-se também pela oposição do ambiente cultural turinense, antifascista em sentido idealista-crociano com
Gobetti ou em sentido marxista com Gramsci. A razão profunda, porém, é a ausência de im-
pulsos ideológicos, o que retira vigor à neovanguarda turinense: um aeroplano sem motor não pode voar. A carência ideológica repercutia nas escolhas históricas, superficiaise insegu, ditadas sobretudo pela intolerância em relação às poéticas antimodermstas da Metais ca e dos Valores Plásticos, e, portanto, também pela polêmica contra o “provincianismo” da situação artística italiana. Os neofuturistas, porém, foram os únicos a compreender que o de-
senvolvimento de uma arte moderna italiana deveria parnr necessariamente do Futurismo e sua crise, apontando suas causas na ênfase neo-romântica e no historicismo, o qual, nos últimos tempos, levara Boccioni a afastar-se de seu próprio programa, para tentar uma síntese européia entre o Impressionismo cézanniano e o Expressionismo. Do lado negativo, esse juizo era correto: era preciso não tanto relançar o Futurismo “he-
róico”, e sim radicalizá-lo, extinguir seus furores polêmicose românticos, a pretensão de ser
a “via italiana” da arte moderna. Era preciso, em suma, contornar Boccion!. O que não compreendiam era que, ao contornarem Boccioni, sena preciso reconhecer na pintura de Balla a
primeira manifestação de uma nova estrutura da forma e, por conseguinte, o caminho para uma ligação direta com as vanguardas históricas européias. Haviam-no reconhecido, algum tempo antes, dois ourros artistas, E DEPERO (1892-1 960) e E. PRAMPOLINI (1894-1956),
que tinham aderido ao Futurismo quando este já se encontrava em pleno desenvolvimento, respectivamente em 1913 e 1912. Ambos assumem, desde o princípio, uma posição de reserva crítica perante a vontade de Boccioni em refazer a história: discernem em Balla o pio-
neiro de uma pesquisa aprofundada sobre a gênese e a estrutura funcional da forma. Depero
leva-a adiante quase em silêncio, analiticamente, especificando e elucidando os fios que, di-
retamente ou não, ligavam o Fururismo às correntes heterodoxas, não-cartesianas, do Cubis-
mo, especialmente a Duchamp. Prampolini, por sua vez, coloca-se em contato direto com os
CAPÍTULO SUIS À ÉPOCA DO FUNCIONALISNO
Fortunaro Depero O magueismo babéltco (esboço para v balé The New Babel,
gal
ve
JD
1930)
Rovereto, Musco Depero
mais avançados grupos franceses e alemães, organiza sua pesquisa em sentido claramente ex-
perimental, sendo o único a dar um sério impulso, em meio à indiferença geral, ao processo de atualização da cultura artística italiana no entreguerras e nos anos posteriores. Tanto Depero, entre as paredes de seu laboratório, quanto Prampolini, com sua vontade de dispor de informações completas c em primeira mão, chegam a pressentir a crise iminente do objeto artístico tradicional, o quadro: não apenas se dedicam a pesquisas estruturais e materiais, como também interessam-se ativamente pelo problema fundamental do teatro como arte agrda, assim apoiando a generosa iniciativa de A. G. BRAGAGLIA por um teatro italiano de van-
guarda. Mas Balla, o mais ousado e genial, percebe a irreversibilidade da crise e prefere a volta suicida ao mais desacreditado tradicionalismo: é a mesma, e quase voluntária, queda de Picabia. À esta sobrevivência latente e sinuosa das profundas motivações futuristas numa cultura que as negava, deve-se ainda a formação de uma primeira tendência não-figurativa engajada, entre os anos 30e 40. O movimento se desenvolve em Milão (que agora havia arre-
batado a Turim a supremacia ta relação com o movimento nistas” italianos incluem-se: RADICE (nascido em 1900),
industrial, sendo a única cidade moderna na Itália), em estreipela arquitetura racional. No grupo dos primeiros “abstracioL. FONTANA (1899-1968), A. SOLDAII (1896-1953), M. REGGIANI (1897-1980), M. RHO (1901-57), O. LiciNI
(1894-1958) e F MeELOTTI (1901-86). Não contam com um programa definido; em vez de
sc oporem polemicamente ao italianismo genérico da corrente dominante, o Novecento, afastam-se dele e ignoram-no. Sentem que existe um problema italiano, o qual não consiste, porém, na renovação das “antigas tradições” nem na importação clandestina de uma cultura européia para a Itália, e sim na solução das contradições internas que isolam a cultura artística italiana da cultura artística européia. Assim, intentam reabsorver o Futurismo e a Metafísica de maneira crítica (e não eclética), e alcançar uma funcionalidade poética, uma comunicação
lírica de conceitos espaciais. A operação tem êxito: o grupo dos “abstracionistas milaneses”, negligenciado e ignorado em sua época, fo: uma das principais premissas da arte italiana após a Segunda Guerra. Lucio Fontana, de volta depous de passar alguns anos na Argentina, será a ponta de todos os movimentos avançados na Itália.
338
CAMIULOSIIS
ABPOCADOTUNCION
Enrico Prampobni P
,
Espaço censco e
E? potiaimenstoneal (1925)
.
ua
(Composição
Rho
Manito i
=
a
omposição
coleção Renzo Rh
Osvaldo Licini paderra 0,67 particular
Cestelos no ar (1932) 01.90 m. Milão coleção
911935).
têmpe
9(1935),
têmpera
sobre papelão, 0,54» 0.42 m
Como.
CAIMTUOSEIS A LPOCA DO FUNCIONALISMO
Lucio Hontana: Escutrmva (1934), REdeS E Roma,
Galleria
tero
Martborough
Mario Radice Composção C de À (1933), afresco reproduzido sobre maslura
Mauro Reggian Composição 7(1935), madeira, 0,55 xU 54 m Milão coleção
Como, propridade do autor
particular
TOS
340
CAPITULO SEIS
4 ÉPOCA DO FUNCIONA] ISMO
ÉCOLE
DE
PARIS
A razão histórica das vanguardas é absorvida e “normalizada” pela Bauhaus, que transforma os impulsos revolucionários em processos metodológicos, a projeção pata o futuro em
programação e projeto. Os pontos essenciais do programa eram: 1) a redução da arte a um meio da experiência estética coletiva; 2) a redução das técnicas das diversas artes à unidade
metodológica do projeto; 3) a integração de qualidades estéticas a todos os produtos indus-
triais, entendidos como agentes de comunicação e educação social; 4) a organização da educação estérica coletiva por intermédio da escola; 5) a alocação e a dedicação total dos artistas
no sistema educacional escolar; 6) a eliminação do mercado, o qual certamente constituía o melhor intermediário com a sociedade, mas subrraía à arte sua função de instrumento de for-
mação da sociedade democrática. Apenas em tais condições prosseguiria a arte em produzir experiência estética, e esta, por sua vez, em constituir um componente cultural da sociedade industrial. Tal proposta de socializar a arte recebeu uma negativa da maioria dos artistas europeus.
Mesmo os holandeses do grupo De Stijl, ao perceberem o fundo político do problema, recuam- uma tentativa de coordenação e colaboração com a Bauhaus, em 1921, encerra-se com
um famoso litígio entre T. van Doesburg e Gropius. Seria possível que, para continuar a cumprir sua função, o artista teria de renunciar ao prestígio do gênio?
Os socialistas da Bauhaus não eram os únicos a afirmá-lo: afirmavam-no ainda mais drasticamente os dadaístas, para os quais a arte morrera e era absolutamente inútil tentar sal-
vá-la. Mas a cultura burguesa poderia, da mesma forma, não levar a sério essa espécie de vanguarda às avessas. O programa da Banhause do “desenho industrial”, por sua vez, depositava garanuas sobre a direção do sistema produtivo, pretendendo que atendesse à uma função educativa e não apenas econômica, A cultura burguesa não aceitaria destruir-se com suas
próprias mãos: poderia conceder a máxima liberdade de expressão ao artista, sob a condição, porém, de que permanecesse em seu campo e deixasse à iniciativa e a direção da produção a
cargo dos empresários. O próprio Mondrian, do qual não se pode duvidar que não tenha reflerido seriamente antes de escolher, no final decide conservar-se como um artista, no senti-
do tradicional da palavra: como fizera Van Gogh muitos anos antes, deixa a Holanda e segue para Paris, que, para a arte, era “a escola do mundo”.
Na realidade, era não tanto a escola, e sim o mercado artístico; a verdadeira escola era a Bauhaus, com seus mestres e alunos, seus programas e métodos, seus cursos regulares, seus
equipamentos técnicos. Mas numa sociedade burguesa, que sempre é uma sociedade mer-
cantil, o mercado é mais importante do que a escola e, em certo sentido, também é escola, na medida em que a sociedade burguesa baseia-se sobre a lei da oferta e da procura, da produção e do consumo. Assim, acima de tudo, o mercado parisiense se dirigia a uma sociedade
existente, ea Bauhaus a um projeto de sociedade futura. Deste modo explica-se por que a influência da chamada École de Paris sobre a formação e irradiação da arte moderna for muito maior que a da Bauhaus, onde, no entanto, trabalhavam e ensinavam artistas de primeira grandeza como Kandinsky e Klee.
Não é o caso de subestimar a função cultural do mercado; em nosso século, ela tem sido determinante. A mercadoria, naturalmente, é a obra de arte, a qual, portanto, deve
possuir um valor em si, e não apenas como agente educativo; mas é, sobretudo, o artista. Os marchanels disputam para descobrir e lançar artistas de talento, o patriarca dos marchands parisienses, Vollard, entendeu Cézanne (e não apenas Cézanne), enquanto críticos
CAPÍTULO SEIS 4 ÉPOCA DO FUNCIONALISMO
e artistas (afora uns poucos amigos) consideravam-no um iludido e um fracassado
É um
puro dever de objetividade reconhecer que o mercado influenciou a crítica em grau mu to mator do que a crítica terá influenciado o mercado. O sistema mercado-colecionismo organiza a atividade dos artistas, mas não limita sua liberdade expressiva. À arte é tida co-
mo a única atividade não-programável numa sociedade de atividades programadas; a or1ginalidade da invenção artística aparenta ser um recurso vital para uma sociedade que deseja mudar constantemente os tipos e produtos Sustentando que a vocação artística é um
dom da natureza, e que seria apenas sufocada pela escola, os artistas são encorajados a tentar o sucesso tal como se tenta a sorte no jogo de azar. A École de Paris é uma espécie de no-
va bohême: pintores e escultores vindos de todas as partes do mundo vivem de esperança e morrem de fome, na admiração dos poucos “deuses” beneficiados pela sorte. Paris, em suma, foi para Os pintores e escultores o que Hollywood viria a ser para o cinema; a ligação entre Paris e os Estados Unidos. por intermédio da escritora c colecionadora Gertrude Stein, foi de extrema importância. Que a arte seja internacional, como igualmente sustentavam os teóricos da Bauhaus, é
um fato indiscutível; nos grandes cafés de Montparnasse, onde a École de Paris realiza suas reuniões noturnas, encontram-se italianos, espanhóis, russos, romenos, búlgaros, americanos, negros. Porém, mais do que internacional, a Ecole de Paris é, em resumo, cosmopolita; internacionalista é o programa da Bauhaus. Não se procura uma unidade da linguagem, todas as linguagens são aceitas por igual. Às inúmeras tentativas de delimitar e caracterizar a
Ecole de Paris conseguiram apenas desfigurar seu aspecto mais significativo: o de um grande bazar, onde são admitidas e misturam-se todas as correntes e tendências, sob a única condição de serem “modernas”. O faro historicamente mais significativo é que, nesse contexto, a tradição do Impressionismo deixa de ser uma tradição francesa, e a do Expressionismo uma tradição alemã. A antítese entre a École de Parise a Bauhaus é, em essência, a antítese entre
duas imagens da Europa — tal como ela é de fato, no pleno êxito do capitalismo, e tal como desejá-la-ia a periclitante utopia socialista.
A École de Paris, naturalmente, não segue uma linha política; uma condição fundamental da liberdade artística consistia em sua independência em face de qualquer diretriz política e religiosa, bem como de qualquer tradição nacional. Ela virá a assumir, malgrado seu, um tom político quando, em alguns países europeus como a Itália, Espanha, Alemanha e Rússia, suprimirem-se não apenas a liberdade artística mas todas as formas de liberdade. Então,
o artista da École de Paris se converterá automaticamente em defensor da liberdade, e não só artística; os artistas impacientes com a oficialidade acadêmica dos regimes totalitários buscarão um refúgio na liberal e hospitaleira Paris. Os três numes da Ecole de Paris são também os três pilares do mercado internacional: Picasso, Matisse e Braque, os três “monstros sagrados”. PICASSO é, sem dúvida, uma das mais
vigorosas inteligências do século. Em 1907, com Les demoiselles d'Avignon, ele colocara em crise toda a tradição figurativa, e a seguir, com o Cubismo, abrira o novo curso da arte. À par-
tir de 1914, já não é possível identificar a trajetória de sua arividade polimorfa (é pintor, artista gráfico, escultor, ceramista) com uma linha de pesquisa ou uma sucessão de fases. Passa da decomposição cubista para uma monumentalidade quase clássica (ainda que irônica); de um desenho límpido à maneira de Ingres para a deflagração da forma; de um naturalismo sereno para uma violenta dilaceração da imagem; do belo para o horrendo. Seus movimentos inesperados tocam sempre o cerne de uma situação problemática e solucionam-na, por vezes levando-a a explodir. Picasso não se filia a nenhum movimento, mas intervém em todos; ca-
so não intervenha, sua própria abstenção é significativa. É uma “potência” que, com um ace-
341
VAZ
“API CARPLULOSLIS
A LTOCA DO FENCIONAL ISMO
Pablo Picasso Lay Menina: (1957) vela 1,94 x 2,60 m Coleção parncular
Dicgo Velázquez Las Mentnas (1656), tela. 318-2,76m
Madn, Prado
no, pode salvar ou destruir, sabe perfeitamente que é um dos protagonistas máximos, uma
das pessoas mais representativas do século. Por cerca de quarenta anos, dirige de cima a “política” da arte, e indiretamente também o mercado; ele é o vértice da escala de valores. Afirma que não busca, encontra: renega toda a arte de pesquisa, de Mondrian a Kandinsky e Klee, c afirma a superior idade da invenção artística em relação à ciência e à técnica, que pressupõem a pesquisa. Quanto à “civilização industrial”, a arte é sua grande antítese: à teoria do “consumo”, ela opõe não mais a eternidade, e sim a indestruribilidade, a inconsumibilidade, a inalterável
atualidade e até mesmo a oscilação dos valores. O Dada também contesta a ética-economia e a causalidade lógica da oferta e da procura da civilização industrial; mas o gesto de Picasso não é gratuito, e sim histórico. Seu aparente arbítrio é um sentido deliberado da oportunidade, uma intervenção fulminante e decisiva que nasce de uma avaliação extraordinariamente hícida das situações. Estilisticamente é sempre variado, seu trabalho não possui um desenvolvimento coerente; os “estilos” do passado, em suas maos, são puros sentimentos, como as técnicas. Diante de suas obras, é muito fácil reconhecer as referências históricas: Grécia antiga, asteca, românico, negro. Mas a referência histórica não é senão uma sonda com que espicaça a consciência dos contemporâneos, para despertar-lhe a reação. Em si não tem impor-
tância, não mostra uma adesão e tampouco um interesse pelo dado histórico. Acaba por fazei um jogo aberto: reelabora à sua maneira quadros de Velázquez, Holbein, Poussin, Cour-
ber e Manet. Com que finalidade? Para demonstrar que um fato artístico nunca passa, não é
um valor adquirido, classificado, imutável: é um acontecimento flagrante, que pode se trans-
formar com nossa intervenção. Ao movermo-nos no tempo, altera-se a perspectiva histórica,
assim como, ao movermo-nos no espaço. altera-se a perspectiva. Mais uma razão pela qual é 9 nume invisível da babel parisiense, que, sem sua presença sempre perempória e sui pieendente, seria apenas uma concentração de artistas na praça do mercado. Não se limita a negar que as tradições nacionais tenham algum sentido, como também que a arte possa ter tradições. Como presente absoluto, é antitradição por antonomásia: justamente por isso, pode se mover livremente, sem complexos, tanto na superficie como nas profundezas do tempo. As-
TULL EPOCA LM ANTON à ; CAPÍEULO SEIS A ÉPOCA DO FUNCIONALISMO
sim, todas as tendências são legítimas e, ao mesmo tempo, todas igualmente inúteis: são maneiras de alcançar o valor, mas o que importa não é a maneira, é sim o valor. A segunda pessoa dessa trindade é BRAQUE, o eterno e refinadíssimo artesão, o faberda
pintura moderna, “Um quadro está concluído quando apagou a idéia”: quando, em vez de
uma idéia na mente do artista, há um objeto que todos podem ver e rocar. O artista não cria
tipos de objetos, mas o tipo do objeto no absoluto: fixa « define, na condição histórica do
momento, o significado e o valor. É evidente que, ao definir o objeto, define paralela mente
9 sujeito. O sujeito é o homem em sua totalidade, no sentido humanista do termo, na com-
plexidade de seu sere na pureza de sua expressão, que deve ser límpida e sintética, sem ser fria
e impessoal; a humanidade do puro teórico não é completa, tampouco a do puro técnico, e suas experiências são sempre unilaterais. “Amo a regia que coriige a emoção”, portanto, não éa regra, ou a teoria, que precede — no início está o fato humano, à emoção, mas esta deve se inserir em seguida numa teoria dos valores, tornar-se valor. E a teoria, por sua vez, não é uma norma abstrata, é um compêndio de experiências, a síntese de uma longa práxis. A obra de Braque, vista em seu conjunto, apresenta-se como uma coletânea de pensamentos é máximas: Montaigne, La Rochefoucauld, Pascal. É um compêndio de sabedoria que deriva da experiência estética do mundo. Após a guerra, o artista de que se sente mais próximo é JUAN GRIS O ponto controverso é ainda a relação entre o objeto e o espaço; mas o problema é considerado apenas na medida em que se coloca e se resolve no âmbiro da pintura. Para Braque,
há, de um lado, o espaço e a consciência; de outro, o antiespaço e a matéria. À matéria, para
ele enquanto pintor, não corresponde à matéria das coisas: é a cor, como para o escultor é o mármore ou o bronze (ele também fez esculturas, nas quais a matéria é tratada como um bloco de co1) O artista elabora a matéria, confere-lhe valor espacial — o objeto não é senão um estágio em tal processo. Gris, pelo contrário, parte do objeto, como matéria à qual já está integrada certa espacialidade, e, com a pesquisa das relações proporcionais ou métricas (já sen-
do o tema da “proporção áurea”, retomado a partir dos “puristas” Ozenfante Jeanneret), desenvolve a espacialidade dos objetos como uma espacialidade unitária total. À disputa passa
por sutilezas tomistas (como observa um escritor católico c tomista, Maritain, e confitma-o Severini); mas, em verdade, o que está em jogo é o conceito de valor, mais do que o dualismo de objeto e espaço. Tanto Braque como Gts parecem pretender realizar e fixar no quadro um novo tipo de valor, um valor que é próprio e específico do quadro, como objeto produzido, e
não dependente daquilo que é representado. Pretendem, em suma, numa sociedade que abriga o culto do « produto “ou da mercadoria, identificar e estabelecer o valor do quadro co-
mo produto intelectual, autônomo e insubstituível. À terceira pessoa da trindade é MATISSE, imóvel e eterno como o Espírito Santo. Demonstra que a arte se faz fora e acima da história. Assim como o mundo dos mitos mediterránicos, que constitui a substância perene de sua pintura, é a inesgotável reserva da imaginação criativa, da mesma forma a arte constitui a reserva áurea que a sociedade deve evitar dilapidar on
em suas pequenas transações cotidianas. É o capital da humanidade, e dia após dia os artistas
aumentaram-no com suas obras imunes à decadência histórica. Como todos, Matisse viveu
duas guerras; como rodos, com elas sofreu; mas não permitiu que se revelasse na pintura uma
ponta sequer da doi do mundo. Se o mundo, em suas crises de loucura, destrói os valores da civilização, o sábio deve criar c acumular outros valores: a humanidade irá utilizá-los para se recuperar dos golpes da história. A arte conserva ou restabelece nos homens à alegria de viver, destruída pela tragédia da história. Assim, também paia Matisse, os acontecimentos mudam, mas as grandes estruturas do sistema não podem se transformar, e a arte é um dos componentes do sistema, o mais estável dentre eles. Por ser um dos valores supremos da humanidade,
242 343
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CAPÍIULOSEIS À ÉPOCA DO FUNCIONALISMO
não pode se misturar à história das nações, sendo supranacional. Esta é ourra razão pela qual Matisse é um dos grandes pilares da ponte entre a Europa e os Estados Unidos: sua pintura confirma a tese de Dewey sobre a autonomia e a integridade da experiência estética Entre as diversas correntes e tentativas individuais que, na primeira merade do século, entrecruzam-se no âmbito da Ecole de Paris, o tema comum é o ideal romântico da arte co-
mo poesia e da poesia como vida. Portanto, a arte é linguagem, a única por sobre as línguas
nacionais, permitindo a comunicação e o entendimento entre os homens de diferentes paí-
ses. As linguagens figurativas não desempenham uma verdadetra função, mas realizam uma
circulação contínua no corpo vivo da sociedade. Não são instrumentos, como as linguagens “técnicas” que já vêm se formando e acabarão por desacreditar as linguagens históricas, e sim valores; e o são por serem, não dadas e utilizadas, mas vividas ou sofridas. As próprias corren-
tes ou tendências, que haviam se originado da congregação de vários artistas em torno de um
mesmo tema de pesquisa, personalizam-se; tende-se não tanto a encarar e experimentar novos modos de expressão e comunicação, mas antes a desfrutar, purificando-o ou refinandoo, um patrimônio linguístico comum. Os apátridas não abandonam nem renegam as tradi-
ções de seus países de origem: pelo contrário, introduzem-nos, combinando-os, na circula-
ção da sociedade cosmopolita. Paradigmático é o exemplo de Chagall, que durante toda a sua , “ vida representa magistralmente, no grande teatro da arte mundial, o papel da alma russa” e
0
Maru Chagall. O moisusta verde (1923) ela 1,95 x 1,08 m Nova York, Salomon R Guggenheim Museum
Georges Rouault O palhaço ferido (e 193%, tela, 2» 1,20 m Paris, coleção particular
CAPITUT
O SFIS
ALPOCA
DO FUNCIONALISMO
do judeu desenraizado, ou o de Soutine, que faz o papel do boêmio genial, ou ainda o de Brancusi, de maior vulto, que impõe à cidade a elevada pureza da arte camponesa. Os próprios franceses se “desnacionalizam” , não mais adotando linguagens supranacionais (como a
linguagem geométrica de um Mondrian ou um Pevsner), e sim procurando o fator comum numa simplificação linguística, num entendimento espontâneo sobre certos temas comuns. Dois casos típicos: RouAuLT (1871-1958) e UTRILLO (1883-1955). É inquestionável a pai-
xão social, e também a vocação religiosa, de Rouault, que com certeza se filia à vertente da literatura engajada e católica que vai de Bloy a Bernanos. Mas trata-se, de fato, de uma vocação essencialmente literária, que o leva à escolha consciente de um sermo humilas, capaz de
comunicação imediata, e por conseguinte à conexão entre uma linguagem figurativa atual (expressionista-fauve) e a linguagem arcaica da pintura e dos esmaltes românicos. O motivo da comunicação é, para cle, a idéia da necessidade da experiência religiosa, da presença vivificante de Cristo no pobre, da sacralidade que santifica a trágica condição humana do proletariado industrial. Num sentido totalmente diverso, Utrillo assume como fator comum o cenário urbano de Paris, que todos têm diante dos olhos. e é a Paris dos impressionistas, mas agora deliberadamente degradada, envilecida na miséria dos subúrbios. Aqui também, pois,
há um retorno intencional a uma espécie de pobreza primitiva, tanto mais literária enquan-
to derivada de toda uma sérte de experiências linguísticas: a Paris de Utrillo nasce com a so-
Maance Umilo. Visza de Montmartre, cela Paris, Musce National d'Art Moderne
345
346
CARL
seo SFIs
A FEOCA
PI FENCIONAFISMO
breposição, por transparência, da intensificação expressiva de Van Gogh à perspectiva mpressionista de Monet, e com uma maior simplificação por meio da aparente dificuldade dos
Nazfs com a linguagem. Em suma, Utnillo também contribu para “desnacionaliza” o Impressionismo, todavia não o gencralizando numa linguagem internacional e convencional, antes caracterizando-o como “popular”, com o recurso fiequente a locuções populares e ao argot. Assim amplia-se a tendência (pense-se em Apollinaire e Cendrars) a entrelaçar intimamente a linguagem figurativa não somente à linguagem lierária, mas também à língua falada. Após a Segunda Gueria Mundial, virá a desembocar em alguns casos de surpreendente afinidade, e quase de correspondência formal, entre fatos pictóricos « fatos poéticos: Fautrier-Ungaretti ou Fautrier-Ponge, Dubuffet-Queneau e, no limite, a poesia gráfica de Michaux. Entendida como confluência e mescla (não síntese) de linguagens figurativas, a Fcole de Paris possur origens bastante remotas: a vinda de Van Gogh da Holanda e de Munch da Noruega (1885-6). A segunda vaga. mais vigorosa, inicia-se na primeira década do novo século. Da Romênia chega C. BRANCUSI (1876-1957), pata estudar com Rodin, logo a seguu, porém, com uma guinada radical, ele se Iberta da rerórica monumental e da técnica prodigiosa do mestre e começa a estudar a escultura negra. O que o fascina não é a ingênua barbárie, e sim a essencialidade plástica dessas formas absolutas, que não admitem qualquer relação com um espaço externo e excluem qualquer mediação naturalista entre significado e significante Intenta assim captar a fonte originária da forma plástica. um estágio que poderíamos dizer pré-lingúístico, em que a forma não é a forma de um conteúdo, mas significa apenas a si mesma, sua própria gênese
Então reencontra em Paris uma experiência passada, que
havia esquecido nos anos do aprendizado acadêmico: a técnica do entalhe e até a simbologia da arte popular romena. Contudo não é uma simbologia do objeto: poder-se-ia antes dizer que é uma simbologia da forma Tal como o pastor que entalha um cajado, Brancusi obede-
4 e,
COM rami ma O ay
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Constantn Brancus O bespe (1910), pedra U59m deairura Filagelfia Miuserm of Art
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Amedeo Modighan
guache 0,90 particula-
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Caratede (191 3-4)
Milão, coleção
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Chain. Souane O corormba(IV28), 0,69 = 050 m. Paes, Louve
Amedeo Modighant
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(1910) pedra, 0.58m de altura Paris Alusec Mational
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DO FUNCIONAFEMO
348
CAPELULOSIS À El
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nascida atribui um gesto, e à forma u se à mo ut 1920) na que confere um DIGLIANI (1884a, Mo rm À. fo no da ia al to it in O st ia transpõe ce à um in Brancusi que inic É a, Modigliani ur lt a. cu ic es ól mb em si s a sentido, tornade alguns ensaio téria intrine sim como ma a que, depois experiênci escultura negra
mplemento, é folclómais como co o nã r co a gias Pp! mitivas al do st en no eb a nc nt co me não ah bem dipara a pintura: Brancusi, porém, um refinamento
preta (com Ao contrário de m te e, assim; mter seca da forma. en bi am O e cransmita tão be qu ta re da rp na te in há o, o ll Nã ri Ut ricas: como artístico parisiense. asse, famintos € muens de Montparn agens do mundo
os bohé r verso) os person elite intelectual que para além do caráre da a; a éi oc id ép a da os at pa tr ro re Eu uindo na quanto seus is que resabem estar constr ciedade artista Ma vezes embriagados, do da vida da so
muutas «centi com perfeição O em os à .. ut sm an tr , elegância, «Aedicad a do modelo em tr ra tenha perex de , as ic $84-1947), embo ões poér iç i os ss mp Ro co o no sã , Gr os trat a-se de 1923, 1918). A partir École de Paris junt e da 12 al 19 ur lt 7. cu 90 ra (1 fe s À es expressio três breves estada s com uma ênfase apenas durante ma s ri — Pa es em uv fa do 08 ci — to €hmane Sua opção é fitme ntar um cruzamen ce . à ar nt te pi en de rm io ou er rx doente, de que O leva post não teve continsa do desenho, ropéia de Rosst te eu a a ur iv ut at tr nt es te na À a past físico, sta. a volumetria cubi smo fururista, meta ni ee ia al uv ir fa mo do is es at ad tre o crom diversas varied foi anulada pelas e ia ál It na e ad siense, nuid e, no bazar pari qu a el o. qu nt da ce o ve nt No ligado ao O crescime após O período contribuem para e. G. SEVERINI, art da a rn Qutros italianos de mo guratinal e a decorativa e à fi ci uagem internacio ên ng nd li te a na m e co -s ma transfor nova linguagem colástica de Matenta conciliar a estética neo-es à a, st ém bi cu mb e ta a st do ri en a pata futu corr o Futurismo pass arte religiosa, re m da co a o it íc at pl nt ex co is vidade ma eiro e da meiginária, que em osição do verdad a divistonista or mp ci ên co ri de pe a ex um À a . e -o in va víta da cor, pesquisa qu es cromáticos, le de br da um ci ti de as o pl çã ma ma xi nu uma apro MAGNELLL à sua fixação m o Novecento À. cimultancamente, co €, e a ad ic id ór im st hi ox a pr ri de mó ntes Da vadepois de uma fase o es italianos atua or sm nt bi pi Cu os ao re á nt ir de reconduz realismo da mais importante ), é quase brutal o 07 , sem dúvida, o 19 foi ) (e. s 71 va 19 ti 8ra gu 88 ande fi (1 picróricos e uma gr s primeiras obras s Na io s. me ri Pa de de de e da ol ci éc negada extrema simpli contato com o obtida com uma a € um primeiro st a, is ri co tu fu da se fa em a ag um im do a anácromáticas. Após ção, assim evitan ra es st çõ ab si à po e ra es nt nt sí co força de nos anos 30: a capacidade de et Carrê, fundado se, levou a própri le en rc si Ce ri pa ta is te on en cr telabi am stra ro, obtido com a ad o-se do grupo ab qu nd ma do xi o ro ic ap âm e a am lise cubist é o equilíbrio M. CAMPIGLI l de sua pesquisa es € crománicas. ta ar ne en li am s nd õe fu ns te ma e para te O entr nt a base de apoio que contrastante, fa en a nd Oz ai de , o da sm ea ri nc ção bala rção 4urea” do Pu E DE Pisis (1896-
ra nê “propo que formal. el, is temático do ma (1895-1971) encont o, ic ân rr te à espacialidade imóv e tr ísmo medi en ca : ar da ca do li de da ma is uma reto unção ma rareferta, do procede a uma conj ema mobilidade, a, tr et ex po e de or l, nt ia pi or ns ), rara se 1956 € à espacialidade ossível), mas uma
ica (imp tafísica, articulação histór atemporal, da Me a um o e, de Tiepolo e nã e gu in st Assim di adição italiana qu . tr mo a is um on € si ta es is pr on do ImIm essi a pintura nascida e à tradição impr ir tr uz en nd a co ic re ét po de ia en cia viassonânc opõe nem pret levar a experiên Boldini. Não se pr até TANTO, procura a se eg as ch an , ah di it ar Gu re musia tradição a ao nível do timb iv o campo de um nt se ra pa de o a vr sm la om pa pressi ICO foi, em l do signo, à Paris, G. DE CHIR esia, à Cor ao níve em e, ir na li ol Ap cual ao nível da po formam eton. Possuía uma 10 em contato co Br 19 r e po sd o de ad iz o or nd re ta cal. Es Surrealismo 20 Futurismo, tal ponto de apoio do tranho « avesso es se eev nt 1925, um sólido ma e na Irália alquer implica-
qu a de progresso é de éi id er qu al qu de Cubismo. Immmgo como na França ão ã (Bôcklin).
alem ção romântico-
LAP
LO SLS
AÍ A
4 Ronda oceânica 193 Alberto Magaclh. onala Ar Paris, 'Vusce Natt Modernc
( 913) Bustavina + mio Gino Severo! o eçã col , eza 1037 0,86m Ven im Peggy Guggenhe
tela
) uluna te 1919 Descrição ais o çã le co Gino Ross za Venc x 0,96 papelão, (1.68 Barbantint
350
CAPÍTULOSEIS
A ÉPOÇA DO TENCIONATISMO
Massimo Camprglt' As antazonas (1928) tela,0 80x 1m
Jules Pascain
Pans
ut
Coleção par
Moça sentada com Moves (c
Musce d'Ari Moderne
1929)
E Amis
A
CAPÍTULO SEIS A EPOCA DO FUNCI ONALISMO
de florest19321, Euippo de Disis Buquê tela, 0,38 0,63 m Eorença. coleção Longiy
ção ideológica, contrapôs ao atualismo futurista e cubista, nos anos em que foi realmente
uma das grandes figuras da arte européia, a idéia de uma absolura exrratemporalidade da ar33 te, cuja classicidade de essência reside num além metafísico . O humanismo italiano não é o renascimento do naturalismo e do historicismo clássico, mas sua transposição para uma di
particular de Arte Moderna
sas ÍNQUEE tantes filão, cole ção
500
LAPÍLLLO SEIS A ÉPOCA DO FUNCION UISMO
Mas as grandes árvores da floresta tornam-se folhas, arbustos, fios de relva aumentados, vistos com os
ALBERTO SAVINIO NA FLORESTA
LICINI OSVALDO AMALASUNTA SOBRE VERDE
olhos da formiga; e “as colunas € os arcos” tornam-se brinquedos, como as construções das crianças. As-
FUNDO
sim, O incongruente, o absurdo surrealista (os monu-
mentos clássicos na selva) tornam-se fábula moral so-
bre a relatividade das grandes idéias ou dos grandes mitos.
Qutro grande artista isolado foy LICINI, o qual, en-
Com seu irmão De Chirico, SAVINIO participou
dos primeiros momentos do Surrealismo em Paris
Ao iniciar sua atividade de pintor, em 1926, já era conhecido, nos círculos da cultura mais avançada e dos
amigos de Apollinaire, como literato e compositor.
Definia-se como um “grande diletante”; mas, praticando diversas artes ao mesmo tempo, não pretendia fundi-las na “obra de arte total”. Afirmava que a arte rem uma razão especulativa, que a coloca acima dos limites inerentes a cada técnica e de qualquer função prática; cada técnica artística é uma modalidade auônoma e insubstituível do pensamento, Foi, sem dúvida, o mais “europeu” dentre os italianos de sua época: todavia, conhecendo bem os problemas, as dificuldades, a incipiente crise da cultura européia, não
cu no erro “provinciano” de fazer da Europa uma
ideologia. Seu sentimento europeu se traduzia em ceticismo e ironia, em melancólica consciência da deca-
dência inevitável do mito europeu. Neste quadro,
mesclam-se também os temas contraditórios do mito e da ironia. Floresta e arquitetura, natureza e civiliza-
ção: são os dois grandes motivos da cultura clássica.
Alberto Savinio. Srcília (1949-50), lapis e aquarela sobre papel branco, O 24 » 0,33 m Roma, coleção parricular
tre 1930 e 1940, veio a participar do grupo dos “abstracionistas” de Milão: Soldar, Melotti, Fontana. Em
sua obra, os motivos geométricos. de Kandinsky e Mondrian, alternam-se e mesclam-se com a iconografia do inconsciente de Klee e Miró. Leu e aprofundou o que havia de melhor na pintura européia desua
época, foi um dos artistas italianos mais cultos e me-
nos iludidos. A condição de sofrimento moral, em que o punha a situação político-cultural italiana, im-
pedia-o de seguir uma linha programática; contudo, da “periferia” italiana, cônscio que dela não podia e, no fundo, não queria sair, apercebia-se de que a “razão pura” de Mondrian era anda um mito agora de-
cadente, um sonho. O artista “europeu” de quem se sentiu mais próximo foi Klee; mas o que, em Klee, é
uma melancolia metafísica (sentimento da pequenez imfinitesimal do ex em relação ao todo) torna-se em Licini uma melancolia histórica (sentimento da história como
inconsciente e eterna “Idade Média”).
Como nesta Amalasunta, em que os últimos signos de uma razão matemática, os números, já se dissolvem
na longa norte do tempo.
CAPITULO SFIS A ÉPOCA DO FUNCIONALISMO
50]
Osvaldo Licini Anjo rebelde sobre vm fundo amarelo (1950), madeira, 0,92 x 2,14 m Bergamo, Galeria Lorenzelh
Alberto Savinio
Os genitores (1931);
cela, 0 73x 0,62m
Galeria !H Naviglio
Milão,
MM Alberco Savinio: Na foresta (1928), tela 0,65 x 0,81 m, Turim,
coleção prereiculás
W Osvaldo Licim:: Amalasunta sobre fundo verde (1956); tela, 0,55 x 0,65 m. Prato,
coleção G. Gori.
CAPÍTULO SEIS A ÉPOCA DO FUNCIONALISMO
mm
+
——— mp ——— — “À e
Giorgio Morandi Narureza-morra com fruteira (1916); tela, 0,64 x 0,57 m. Milão, coleção
particular de Arte Moderna,
503
504
CAPÍTULO SEIS A ÉPOCA DO FUNCIONALISMO
GIORGIO MORANDI NATUREZA-MORTA COM FRUTEIRA
O espaço é a realidade como vem colocada e expe-
rimentada pela consciência, e a consciência, se não abarcar e unificar o objeto e o sujeito da experiência, não é total. É o que podemos chamar de Postulado de Cézanne Dele partem, por caminhos paralelos e em direções opostas, Mondrian e Morandh. Mondrian
1916e 1920, é oposto ao de Carrã, que se refugiava na
imobilidade metafísica, fugindo ao dinamismo futurista. Objetivamente, a pintura de Morandi é a des-
truição metódica da perspectiva fundada na geometra euclidiana, isto é, da concepção espacial sobre a qual, desde Giotto, fundava-se a famosa “tradição italiana”, que se pretendia eterna e universal. É verdade que a perspectiva clássica já fora negada por De Chirrco, que a apresentara significando a nulidade ou o va-
zo, e não a realidade; mas o processo destrutivo de Morandi é, ao mesmo tempo, construtivo porque não
só demonstra a sobrevivência do espaço além da pers-
realiza figurativamente o espaço partindo das coisas; apenas quando as coisas desaparecem, dissolvendo-se
pectiva, como prova ainda que apenas para além da
paço exsste no quadro, isto é, a realidade é experimentada pela consciência que a recebe de dentro, porque a consciência também é a realidade. MORANDI! realt-
Nesta Natureza-morta de 1916 (no início do perío-
do metafísico), é evidente a destruição da perspectiva;
métrico que o representa) desaparece, dissolvendo-se
da, convertendo os objetos em outros tantos perfis
no esquema geométrico, é que se pode dizer que o es-
abstração perspectiva apresenta-se o espaço da consciência como realidade concreta e existente.
a profundidade perspecriva é de princípio sugerida
za figurativamente o espaço, partindo do conceito de espaço: apenas quando o conceito (o esquema geo-
(nos vários níveis das bases dos objetos no plano da mesa, no ângulo da parede ao fundo), e depois anula-
nos objeros, é que se pode dizer que o espaço existe no quadro — não mais como conceito abstrato, e sim como realidade vivida, como existência. Raciocinan-
suspensos e nivelando os planos coloridos da mesa €
tanto se falava na época, haveria de parecer que Mondrian e Morandi trocaram os papéis. Morandi dá um
xime-se momentaneamente da pesquisa de Modigliani). Agora, a profundidade já não existe como vazio capaz de conter as formas sólidas dos objetos: é um tecido espacial, contínuo, como um véu esticado, em cujo plano perfilam-se, quase por transparência, os objetos, a mesa, as paredes. Por que Morandi anulou
do segundo o princípio das culturas nacionais, de que fecho (e sobre isso não há dúvidas) à cultura figurati-
va italiana, que parte do conceito de espaço ou da
concepção unitária do real, para daí deduzir o conhecimento das coisas particulares; Mondrian dá um fecho à cultura figurativa flamengo-holandesa, que
parte das coisas particulares, e de sua coexistência e relação deduz o conjunto. Mondrian parte do espaço empírico, o ambiente, e chega a um espaço teórico; Morandi parte de um espaço teórico e chega ao espaço concreto, à unidade ambiental. Paradoxalmente, na pintura moderna, Mondrian é Paolo Uccello, Morandi é Vermeer. Mas, justamente por isso, Morandi
e Mondrian são os dois pintores mais concretamente,
historicamente, europeus de nosso século. A pesquisa de Morandk, partindo de um espaço teórico cuja possibilidade de existência pretende-se veri-
ficar, parte da perspectiva cúbica e vazia da Metafísica de De Chirico. Mas, atenção: a pintura de Morandi
não é evasão na, e sim da Metafísica; por isso, apesar
dos evidentes pontos de contato, seu percurso, entre
da parede e os planos dos objetos (é significativo que,
nessa junção de planos de diferentes profundidades
numa mesma superfície, Morandr, sem sabê-lo, apro-
a perspectiva? Porque a perspectiva definia em termos
de valor os principia individuatronis com os quais o artista conferia ordem e clareza à realidade, com o fito de representá-la; definia a linha como limite ou con-
torno das coisas, o volume como consistência física
dos objetos, o tom como cor local modificada pela distância e pela luz. Morandi não nega nem aceita 4
prior esses critérios formais, mas raciocina com uma
lógica perfeita: se a forma é o resultado a que se deve chegar no final do processo, o processo não pode partir de uma forma dada, de um significado preestabelecido da linha, do volume, do tom. Assim, tanto a acei-
tação quanto a negação a priori comprometeriam a
autenticidade e confiabilidade da experiência; no fi-
nal da experiência, de faro encontram-se linhas, volumes e tons no quadro, porém com um significado to-
CAPITULO SFIS À ÉPOCA DO EUNCTONALISMO
talmente novo e diferente, porque já não constituem
um espaço teórico, e sim um espaço concreto, chegando-se a ver sua substância física, a maior ou menor densidade da matéria. A linha não é o limite das cotsas, mas o confim e a mediação entre valores tonais comunicantes: o volume não é um relevo obtido com o chiaroscuro, mas uma distância regulada entre planos coloridos; o tom não é a incidência de Juz, mas equi-
paração ou proporção entre quantidade e qualidade.
Nada é dado em si, tudo é dado por relação. E as rela-
ções se deter minam no curso da experiência vivida da pintura: o sigiuficado dos valores se altera a cada vez,
porque a experiência é vida, e a vida é sempre diferen-
te. À pintura de Morandr é a história de uma contínua mudança do valor, mas no senudo de um constante crescimento qualitanivo; também por isso sua temática é constante, os objetos entre os quais ocorrem as
mutações dos valores são sempre os mesmos. À operação de Morandi, quanto aos valores tradicionais ou históricos da pintura, poderia ser definida, com um
termo da fenomenologia, como uma “suspensão do juízo”, uma epochê. Morandh recusa utilizar na experiência cognitiva enfrentada o que já é dado por conhecido: se sempre pintou, durante toda a sua vida, as mesmas garrafas, as mesmas latas, o mesmo ângulo de
paisagem, decerto não era por amar esses objetos, e
sim por precisar que o objeto, arquiconhecido, não apresentasse problemas, não invocasse e concentrasse em seu próprio ser o interesse cognitivo que, pelo contrário, almejava seu ser-no-espaço. Por isso, se um (e certamente o mator) de seus mestres ideais é Cézanne,
o outro é o douanter Rousseau: não imita sua poética
“ingênua”, que não lhe interessa, mas nele reconhece o artista que, abandonando ou ignorando todos os va-
Giorgio Moranei Grande natureza-morta
merafêsca (1918) tela, 0,68 = 0,71 m Milão, coleção Jess
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506
DO FUNCIONALISMO CAPÍTULO SEIS A ÉPOCA
za-morta (1919); tela, Giorgio Morandi: Nature ção Jesi. cole o, 0,56x 0,47 m Milã
partiu da estaca zero na bus lores codificados da arte, l Husser erência à fenomenologia de
ca do valor. A ref
é cante, não conhecia) não (que Morandi, naturalme apenas em
é interpretável sual: a pintura de Morandi a e elevadíssima
m a mesm chave fenomenológica. Co Morandi colocou a pintuconsciência de Mondrian, cãopéia”, não mais por um ra como uma “ciência eur proiglota, mas pela essência ráter internacional e pol
ivo. Superando sem nem funda de seu método cognit
euputa entre italianismo e dis l éri est à r ora afl uer seq crise da história, clamorosa ropeísmo, ele resolveu a nte turismo e silenciosame mente anunciada pelo Fu o a. Não a resolveu (com aprofundada pela Metafísic € as, arcaicas ou originári Carrã) recuperando formas ir dos
dev sformação e contínuo sim indicando na tran a história, as razões de um valores, no ritmo vital da precisapermanência OU, mais atualidade e de uma
na continuidade. mente, de uma mutação
CAPÍTULO
SETE
O M O C E T R A A A CRISE D A” I É P O R U E A I C N Ê «CI rna. da cultura artística mode tro cen O ser de xa dei pa ra, à Euro torno dele, formam-se Em k, Yor À pós a Segunda Guer va No é , til Amélmente cambém mercan e moderna no Japão, nã art -se faz O novo centro, natura , ria ife per a um um núcleo e va York e, secundariaNo Ser à m ue in outros centros; já não há nt co a os pontos de referênci rica Latina, mesmo que heição de autonomia e de pos a um o mente, Paris. mp te o sm maneira os atinge ao me presente (por vezes de A arte dos Estados Unid -se faz ia, opé eur era esf relações com à Bienal de São Paulo. Pos na , sel Kas de gemonia. Conserva as a nt me ia de qualde Veneza, nas Docu primeira delas é a ausênc a prepotente) nas bienais : is ve dí un nf co in fi€ cas próprias signo de uma dedução O z tra pa ro sui, porém, característi Eu na que s Unidos é todas as tradições. O ão em crise, nos Estado zaç quer inibição em face de ili civ a um de or ad arte mento desesper ncial apresentada pela ste exi em ag nal e constitui o docu im a que termos obfmpeto criativo. Não ente por isso ela é, em descoberta, invenção, na Europa, mas justam
mista do que americana seja mais oti segunda do homem moderno, nã o nd jetivos, mais vital. mu do bal glo ão à vis e com que S€ deixou «A exclusividade com que a pelas ciências positivas
que são deciaceitou ser determinad tamento dos problemas as metade do século XIX, af um u ico nif fasig as derivada, criam meros homens de os fat de as cegar pela prosperity del nci ciê s ra er. Ela exde autêntica. Às me ncia não tem nada a diz ciê a sivos para uma humanida est —, er diz e -s ve o qual, vida — ou entes para O homem, em pr os to... Na miséria de nossa são que s ma sentido ou amente aqueles proble tino; os problemas do des cluí de princípio exat do os mã nas se tees da Sementados, sen m, poucos anos ant si As e.” em nossos tempos ator dad ali tot Sua o & do sisstência humana em ciências européias”, ist s “da do não-sentido da exi se cri a l áve vit ine ites e na considerava nsciência de seus lim co na , gunda Guerra, Husserl te en lm ra tu na à lógica (a na racionalidade e, seja, a arte) em relação (ou tema cultural fundado ia tas fan ou ão aç in ciênural da imag cionalidade de base: a or op pr a ess complementaridade nat ora ign , n ista e não icana, pelo contrário ndamentalmente huma fu a ciência). A cultura amer tur cul a um m co u em contraste de erguer um arranha-cé po eto uit arq cia não é uma atividade O mo co a tor lansso, da mesma form da proporcional, ou 0 pin di me tem limites a seu progre er qu al qu lar vio r a m de altura se cor uniforme sem ofende a um m co com mais de cem metros e íci erf sup sim depois — cobrir uma enorme to» não nasce antes, e çar as tintas ao acaso OU tan se , ma le ob pr O a “criaRembrandt. serve ou o que significa que o a memória de Rafael ou par , ser qui se de perguntar, se apenas depois é que se po de de ssado e àprimeira meta pa ulo séc ção” do artista. do de ta me re à segunda rmos materiais) Não há dúvida que, ent dade (também em te com facili anos se apropriaram ic er am os , ulo séc nosso
508
CAPÍTULOSETE
A CRISE DA ARTE COMO
“CIÊNCIA ELROPPIA”
não apenas da cultura, mas também da arte européia; todavia, para eles, que (certo ou errado, talvez errado) sentiam-se um povo jovem em conquista da supremacia mundial, a cultura, a arte curopéia não implicavam, como implicam pata nós, o problema bustórico, isto é, da
relação entre nosso presente e aquele passado. À arte, para o novo mundo, era a criação ime-
diata de fatos estéticos, como a ciência de fatos científicos: uma maneira diferente, mas complera, de fazer a experiência do real (Dewey) Afinal, a arte é a não-inbição n um mundo onde a inflexível “regularidade” da vida social, inteiramente empenhada no esforço produrivo
e na acumulação capitalista, cria uma condição geral de inibição e neurose. Assim se expltcam a action paintinge a arte pop, que a sociedade americana aceita alegremente como sua contrapartida; na realidade, porém, a saúde esfuziante que parece caracterizar a arte americana, comparada à arte européia, era ilusória, assim como ilusória era a miragem de uma
América democrática, sempre pronta a correr em auxího dos oprimidos. À arte dita “concer-
tual”, que recusa qualquer função ou utilidade mundana, e que se dobra sobre si mesma para se autodefinir ou esgotar-se no levantamento de sua estrutura, é um típico indício do extremo a que chegara a crise
A grande novidade americana na cultura artística mundial, portanto, consiste em. 1) a
eliminação de uma categoria “arte”, que teria na arquitetura, na pintura, na escultura e nas
chamadas artes menores apenas espécies suas; 2) a substituição da questão sobre a função e a finalidade da arte num sistema cultural pela questão sobre o ser específico ou a pura e simples existência da coisa artística; 3) a renúncia às categorias técnicas tradicionais e o emprego de qualquer técnica capaz de “desmistificar” a arte, para inseri-la no circuito de comunicação
de massa. É interessante notar que as relações artístico-culturais entre a Europa e os Estados Unidos, já muito frequentes na primera metade de nosso século, tornam-se mais intensas com a larga abertura dos Estados Unidos aos artistas que chegam da Europa, atraídos pelo fascínio desse país jovem e progressista, ou emigrados da Alemanha para escapar à persegui-
ção germânica. O contato, nesta última fase, dá-se no terreno do Surrealismo (emigraram
Miró, Masson, Dalí, Ernst), o que explica tanto o afastamento definitivo da arte americana em relação às tradições acadêmicas, quanto o caráter de reação anti-surrealista da primeira o action painting americana. “Aliás, já havia ocorrido nos Estados Unidos, desde 1915, um movimento de revolta ra-
dical contra o mito da arte como expressão de espiritualidade profunda, com a dessacralização sistemática de Duchamp, o qual, com Man Ray e o fotógrafo Steglirz, criara um movimento de contestação radical de qualquer visualidade ou figuratividade: movimento que,
em 1917, confluirá no movimento dadaísta europeu
A dificuldade da relação entre arte e sociedade, que despertara a candente dialética das correntes após a Primeira Guerra Mundial, agravara-se depois da Segunda Guerra a ponto de
levar a crer que a “morte” da arte era inevitável, iminente e talvez já tivesse ocorrido. Na origem, há uma revolta moral: numa sociedade que aceita o genocídio, os campos de extermínio, a bomba atômica, não é possível que, simultaneamente, produzam-se atos criativos À guerra é o aspecto culminante da destruição sistemática e organizada, do fazer-para-destruir
de uma soctedade que se autodefine “de consumo”. Há aí uma antítese entre consumo e valor: em toda a sua hustória, a arte é um valor que se frui, mas não é consumido. Uma arte que se consome ao ser fruída, como um alimento que se come, pode existir ou não; em qualquer caso, será algo inteiramente diverso de roda a ar-
te do passado. Dizer que a arte morreu ou está em vias de morrer não significa que tenha ocorrido ou esteja se aproximando a “morre da arte”, preconizada por Hegel como dissolução final do conhecimento intuitivo da arte no conhecimento científico ou filosófico. À ar-
CAPÍILLOSETE
A CRISE DA ARTE COMO “CIÊNCIA EUROPÉIA
te certamente procurara “se racionalizar”, sacrificando-se como arte para contribuir na for-
mação de uma civilização absolutamente racional: fora rejeitada por uma sociedade cada vez menos racional e mais disposta a aceitar o arbítrio do poder. Tampouco pode-se falar de mor-
te da arte no sentido em que Nietzsche falava da morte de Deus: a arte não é uma entidade
metafísica, e sim uma modalidade histórica do agir humano. À arte teve um princípio, e pode ter um fim histórico. Tal como as mitologias pagãs, a alquimia, o feudalismo, o artesanato são finitos, a arte pode acabar. Mas ao paganismo sucedeu-se o cristianismo, à alquimia a ciência, ao feudalismo as monarquias e, depois, o Estado burguês, ao artesanato a indústria: o que pode suceder à arte? Tentemos ver com clareza. O que historicamente conhecemos como arte é um conjun-
to de coisas produzidas por técnicas diferenciadas, mas tendo entre si afinidades pelas quais se constituem em sistema: justamente o sistema que enquadra a experiência estética da realidade. Em toda a história da civilização, a experiência estética constitui um componente necessário da experiência global. Algumas dessas técnicas acabaram; pela primeira vez, porém,
tem-se uma crise simultânea de todas as técnicas artísticas, de seu sistema. Com elas findará também o que se chama de experiência estética? Entendendo-se por fenômeno estético a imagem, a resposta não pode deixar de ser negativa. Nunca o mundo foi tão ávido e pródigo
de imagens como hoje O aparato recnológico-organizativo da economia industiial não lr mita, e sim potencia a função da imagem. Existem grandes indústrias que produzem e vendem apenas imagens: o cinema, à radiotelevisão, a publicidade etc. Sem a informação por meio da imagem, não existiria uma cultura de massa, e a cultura de uma sociedade industrial não pode ser senão uma cultura de massa. Naturalmente, a informação através da imagem apresenta-se organizada, tem suas técnicas e técnicos, desenvolve-se com o progresso da tecnologia correspondente. Pode-se chamar tal técnica da imagem de arte? Não é apenas uma questão de nomenclatura: se o relato por meio de imagens é chamado de cinema, « não de pintura ou gravura, a diferença será apenas quantitativa, visto que ninguém haverá de negar que a potência imago-porética do cinema está para a da
pintura assim como a velocidade do automóvel está para a do cavalo. Desceriam os artistas de seu nível de intelectuais para se converterem em técnicos da imagem? Desde a época da Bauhaus, muitos artistas se mostram prontos a aceitar um novo serviço social, de menor prestígio, da mes-
ma forma que os poctas realmente modernos não querem ser senão técnicos da língua, e os músicos técnicos do som. Entendiam que o artista-gênio agora era inatual, como o poeta-vate; e que, para se reinserir na sociedade, deviam aceitar o sacrifício de seu individualismo absoluto.
Mas há algo que o técnico da imagem ou da língua, no limite qualquer cientista ou estudioso, não pode aceitar: a renúncia à autonomia de sua disciplina, colocá-la a serviço de um sistema de poder. Não podem admitir que a experiência estética seja desviada de seu fim institucional, cognitivo e instrumentalizado. Os operadores estéticos encontram-se hoje perante um dilema, me-
nos dramático, porém não diverso do que nveram de enfrentar os cientistas solicitados a orientar a pesquisa para produzir uma bomba de tremendo poder destrutivo: não poderiam fazê-lo sem contradizer os princípios e as finalidades institucionais da ciência.A pesquisa estética não pode servir à destruição lenta (o consumo), assim como a pesquisa científica não pode servir à destruição violenta (a guerra); pelo menos não sem deixar de ser o que sempre foi, pesquisa do valor, arte. À primeira pergunta, portanto, é a seguinte: pode existir arte que não seja valor, valor que não seja escolha, escolha que seja inconcilável com a cultura de massa? A crise da arte se insere no quadro da crise mais ampla e mais séria da relação entre cultura e poder. É, pois, indispensável estudar os desenvolvimentos da pesquusa estética em re-
lação com as situações concretas. O mundo arual se divide em dois grandes blocos, ambos
S09
E M
510
COMO =CIÊNCIA EUROPÉIA” ARTEE IS CAPÍTULOSETE A CRDA
Jasper Johns
Fool's house (1962): tela
e objeto, 1,10 x 0,70 m. Nova York, coleção Leo Casrelli
CAPÍTULO SETE A CRISE DA ARTE COMO "CIENCIA ruroPÉIA”
da vanguarda revolucionária, tecnologicamente avançados. Na União Soviética, após o final ada; o chamado “realismo sociaa pesquisa estética se interrompêu,e não há sinais de retom sequer se considerar como movilista” (que, a rigor, não é realismo nem socialista) não pode política. mento regressivo ou reacionário, sendo mera propaganda se de repercussões de ouviExastiram e existem movimentos dissidentes, contudo trata-
ocidentais. Até agora não surgiu uma arte do, tardias e incertas, de movimentos artísticos nem da dissidência nem do compromisso, mas
proletária nem do conformismo +danovista
nente próprio, ainda que não tectalvez possa existir uma cultura proletária com um compo nicamente artístico. Leste europeu, em particular a Inquestionavelmente, é outra a situação nos países do Movimentos de vanguarda opuseram-se energica-
Tchecoslováquia, a Polônia e a Iugoslávia. com o apoio do poder político. Na mente à tentativa dos “acadêmicos” em se fortalecerem acentuada; um pintor como PETER Iugoslávia, a ligação com a arte européia ocidental é mais sempre atento às harmonias toLUBARDA vincula-se claramente ao informal francês (Bryen), uma técnica de construção do nais, ao passo que o escultor DUSAN DZAMONJA inaugurou Na Tchecoslováquia, um involume através da composição puntiforme de cabeças de prego. o com às tendências européias avantenso movimento de pesquisas experimentais, em contat da “Primavera de Praga”, e seu impulso foi apenas momen-
cadas, afirmou-se antes mesmo
taneamente contido pela repressão soviética.
à vanguarda, lembrando Em Lodz, na Polônia, existe até mesmo um museu dedicado tempos heróicos da revolução sosob muitos aspectos o binômio vanguarda-revolução dos repetição dos € enigmáticas na densa viética. STEPHEN OPALKA busca tessituras inquietantes
criado por TADEUSZ KANTOR, sinais numéricos e alfabéticos; o teatro Cricot de Cracóvia, um ponto
m são pintores, representa pintor e diretor, e cujos atores, em sua maioria, també arda artística € vanguarda teatral. de convergência extremamente importante entre vangu titiva, tem-se o fenômeno já Nos países capitalistas, de economia altamente compe ca na conformação, apresentação € mencionado: busca de um coeficiente de qualidade estéti tos e o
para a difusão dos produ confecção dos produtos; larga utilização de fatores estéticos Soviética é praticado consumo. O projeto estético-industrial, que na União incremento em análises regulares do mercamente nulo, é acuradíssimo nos países capitalistas: apóia-se Se as grandes indústrias já não podo e levantamentos psicológicos e sociológicos precisos. no setor de projetos seja no de redem dispensar os pesquisadores e operadores estéticos, seja dois planos muito distintos: o dos lações públicas (publicidade etc.), permanecem, todavia, artistas que não renunciam ao paartistas inseridos no sistema tecnológico-industrial e o dos metodológica e tecnicamente mais pel de intelectuais. Seria correto considerar os primeiros Porque os artissão os outros: por quê? avançados, e, no entanto, os que mais nos interessam
pode aumentar o sucesso comertas-técnicos, visando à qualidade apenas na medida em que autônoma: colocam-na a serviço de um cial do produto, não realizam uma pesquisa estética se discute que contribuam para lucro que, como toda riqueza, traduz-se como poder. Não para criar um alto de cultura formal, elevar o padrão de vida, para determinar um nível mais
dependência do sistema político, na ambiente mais agradável; na verdade, porém, atuam na ao “realismo socialista”. O femesma medida do medíocre “acadêmico” russo que se dedica parte, nos Estados Unidos, isto é, no nômeno se observa, melhor do que em qualquer outra ho industrial, que no sistema teóripaís tecnológico e “consumista” por excelência. O desen produção industrial, quase sempre corco da Bauhaus constituía o método para moralizar a to, para torná-lo “psi-
ezamento do produ rompe-a com o típico processo do styling ou embel de modo que, tão logo atinja-se à saciedade, cologicamente” mais atraente ou “comestível”,
51]
SI
A FUROPÉIA” CAPITULO SETL AÚRISE DA ARTE COMO “CIÊNCI
senso, e sim aos complexos inconsdeve-se trocá-lo, fazendo apelo não mais à razão € ao bom erias
ado”. Um exemplo típico: as carroc cientes e mesmo às frustrações do consumidor “alien
e pontas para aguçar a vontade de aerodinâmicas do automóvel, rodeadas de estabilizadores de
. Pode-se dizer o mesmo potência inconsciente, a agressividade psicológica do consumidor anha o produto no mertodo o aparato de imagens (invólucros, publicidade etc.) que acomp r quais são os tipos de cado. Certamente, é preciso uma pesquisa rambém estética para decidi no entanto, trata-se nitidamente imagens, signos e cores que mais impressionam a quem vê:
e construtiva, mas emide uma pesquisa cuja finalidade não é produzir uma experiência clara endentes, ou que se tir apelos ou sinais fortemente sugestivos. À polêmica dos artistas indep nte de instrumentalizar a pesjulgam como tais, volta-se, portanto, contra à tendência cresce e está tanto mais dialeticaquisa estética, incluindo-a no círculo de produção e consumo;
mesmos meios e procesmente comprometida na medida em que, de modo geral, utiliza os o plano. Deste modo sos da pesquisa instrumentalizada, assim contestando-a em seu própri
são os próprios artistas que preexplica-se um dos aspectos mais paradoxais da situação atual: lista que se diz, porém, disconizam e ameaçam a morte da arte na mesma sociedade capita passo que os mesmos moviposta a “integrar” a arte em sua funcionalidade econômica, ao idamente antiburgueses são mentos que, nos países capitalistas, dizem-se de esquerda e decid ver até que ponto os movimencondenados como burgueses nos países socialistas. Mas resta er préstimo artístico ào sistos que se dizem de protesto, levando tal protesto a negar qualqu
lidade ou, pelo contrátema cultural dominante, são realmente forças que atacam sua estabi a para seus próprios fins. rio, “oposições autorizadas”, facilmente utilizadas pelo sistem
URBANISMO
E
ARQUITETURA
colocou-se em primeiO problema da integração no contexto econômico e tecnológico
o industrial. O processo ro lugar, e em termos mais definidos, para a arquitetura e o desenh e, correlatamente, em de transformação do projeto arquitetônico em programação urbanista
ndo ano a ano. Hoje, o urbaindustrialização das construções veio se acelerando e se amplia da construção civil nos núnismo já não é sequer a disciplina que regula o desenvolvimento
de lei, mas entrelacleos urbanos, por meio do estudo de “planos organizadores” com força por conseguinte, opções ça-se estreitamente com o planejamento econômico, implicando,
a coordenação funcional políticas de base. O problema já não é a adaptação da cidade, e sim inação dos núde diversos aglomerados sociais, a aparelhagem de vastos territórios, a determ
de comunicação. À própria cleos de condensação cultural e produtiva, o estudo dos sistemas
todos os seus problemas cidade, como instituição, está em crise; seu custo é enorme, quase
regimes capitalistas piossão solucionáveis em termos não de cidade, mas de território. Nos orgânicas dos problemas urpera a especulação imobiliária, que bloqueia rodas as soluções
dissociação dos granbanísticos. Assim ocorre que, enquanto de um lado teoriza-se sobre a mais de 5 milhões de des núcleos urbanos no território, de outro lado as “megalópoles” com o urbahabitantes tornam-se cada vez mais numerosas. Nascido como disciplina da cidade, de qualnismo acaba por colocar em questão a própria cidade enquanto instituição social; s, traçado € o proquer forma, a cidade industrial cerramente não poderá utilizar os antigos À questão blema da estrutura urbana terá de ser formulado em termos radicalmente novos. Não ante. estética, nesse complexo problemático, pode parecer secundária ou mesmo irrelev ade artística o é, mas certamente a questão estética já não pode se identificar com a da qualid . Mesurbana dos edifícios, individualmente considerados, ou com a perspectiva e cenografia
RW
CAPÍTULO SE LE
4 CRISE DA ARTL COMO “CIÊNCIA LUROPÉIA”
alterou-se no mo o enunciado de que o bom urbanismo faz a boa arquitetura já não vale, ou
sentido de que o bom urbanismo já é boa arquitetura; O problema estético, em suma, é posde to em escala de plano, mesmo que o plano seja apenas uma previsão máxima do emprego
grandes áreas do espaço. O próprio “zoneamento”, isto é, a operação preliminar em que se distinguem as zonas destinadas às várias funções (industrial, residencial, administrativa etc.),
os tradefine a proporção entre áreas construídas e áreas livres, e determina em linhas gerais da vida cados das vias de comunicação, ou seja, configura sumariamente o espaço ambiente
social. A partir daí, finalmente, decide-se sc o ambiente poderá ser fruído esteticamente ou
esteticanão. Um ambiente “alienante” ou repressivo não será esteticamente fruível, e será
mente fruível um ambiente expressivo ou significativo, onde o indivíduo e o grupo possam
se reconhecer e se integrar. Nossas cidades, oprimidas pelas construções intensivas da espe-
culação imobiliária, congestionadas por um trânsito desordenado e contaminador, estendi-
um amdas desmesuradamente por periferias amorfas, são infelizmente exemplos típicos de
biente repressivo ou alienante. Na relação entre cultura e poder, que se expressa em cada so-
s lução urbanística, o poder geralmente tem prevalecido: apenas em raros casos os urbanista conseguiram colocar suas idéias em prática. com a No plano teórico, o racionalismo arquitetônico havia identificado a cidade ideal cidade funcional; com efeito, a circularidade da função eliminava a estratificação hierárqui
ca das classes, causa primeira do imobilismo urbanístico. Evidentemente, não seria possível
esfera existir um urbanismo e uma arquitetura do Surrealismo; no entanto, o interesse pela iu innão-racional do pensamento c da existência, reivindicado pelo Surrealismo, contribu pafuncional de hnearida da dubitavelmente para transferir o problema urbanístico do plano
ra o da complexidade ambiental ou ecológica. Não apenas não se pode reduzir o espaço da existência a um traçado de uniformidade geométrica, como também não é possível desconsiderar o significado que a comunidade atribut a certos locais, núcleos ou pontos de condenconsesação; o que, obviamente, recoloca o problema de uma simbologia das formas e, por
guinte, de uma arquitetura que não deriva do traçado como um corolário seu, mas precede-
o, determina-o, torna-o significante, mesmo ao preço de romper sua continuídade. As idéias urbanistas que se impõem, após a Segunda Guerra Mundial, não são as de
Gropius, e sim as de Wright, cuja arquitetura não é definida pelo tecido urbanístico, mas, pe-
York, lo contrário, define-o. O Museu Guggenheim, que Wright construtu no centro de Nova argrande uma de vo insere-se como um bloco plástico em espiral no alinhamento perspecti
téria e interrompe-o; “local delegado” de uma experiência estético-cultural (museu de arte
na cimoderna), ele rompe a lei da uniformidade perspectiva da mesma forma como a igreja,
dade antiga. isolava e definia o local da experiência religiosa.
Arribui-se erroneamente a LOUIS KAHN uma indiferença em relação ao problema urbanístico, a volta ao projeto “clássico” da forma arquitetônica como entidade plástica autônoma. Na realidade, a linha diretriz da obra de Kahn é “a construção da arquitetura a parur de uma idéia-forma originária, por meio do instrumento do design”; “assim reconhece-se a racionalidade autônoma (da arquitetura), que se explica na expressão formal-linguística, sem mediação de ra de Kahn posracionalidades externas científico-técnicas” (Accasto e Fraticelli). A arquitetu
gia do sui, portanto, uma racionalidade intrínseca própria (determina, com efeito, a metodolo
na “especificidade iter projetual), independente de modelos de racionalidade: traduz-se, assim,
e apenas semântica” ou na coerência intrínseca de uma linguagem tipicamente arquitetônica,
camente por extensão urbanística. É uma posição talvez inconscientemente, porém inequivo
a priori ; tofenomenológica, por eliminar qualquer esquema espacial, funcional, estrutural invenarbítrio um davia, o recurso a uma idéia formal originária não consurui absolutamente
513
S14
CAPÍTULO SETE
A CRISE DA ARCF COMO “LUDNCIA PUROPÉIA”
tivo, porque nesse caso seria contrariado e desmentido pela lógica do design que lhe dá desenvolvimento. É. afinal, uma racionalidade que não se justifica num postulado metafísico, mas se
verifica na exequibilidade e viabilidade concreta da forma. Em certo sentido, pode-se aproximar a posição de Kahn da de ALBERS, pintor que parte da idéia do quadrado como forma simbólica do espaço, contudo verifica-a por meio de uma construção cromático-ronal.
Kahn representa o caso-limite de uma arquitetura empenhada numa problemática onrológica, cognitiva; em muitos arquitetos modernos, por outro lado, a invenção formal fun-
ciona como libertação da disciplina metodológica do racionalismo e álibi em face das finalidades político-sociais do urbanismo. Ou scja, determina o que poderíamos chamar de boom tecnológico da arquitetura contemporânca. Não se põem limites à invenção formal, pois a tecnologia industrial pode fazer tudo, até mesmo transpor a utopia e a ficção científica para a realidade. À própria questão econômica, numa sociedade de consumo, acaba por ter pouca importância — o consumo da edificação deve ser incrementado tal como os outros. Chega-se assim a propostas contrárias ao programa racionalista da dissolução do fato arquirerô-
nico no faro urbanístico: projetam-se edifícios enormes, que deveriam ter não só a capacidade, mas a organização interna de uma pequena cidade, erguendo-se, imensos c altisssmos, em espaços vazios, porém equipados com sistemas de comunicação perfeitos. Toi o próprio Le
Corbusier que ofereceu o primeiro modelo com as Unidades habitacionais de Marselha e Nantes. Dessas hipóteses precursoras partem as diversas propostas, muitas vezes de extrema
ousadia e talento, para o urbanismo do futuro: cidades aéreas ou subterrâneas, cúpulas ou toldos isolantes em cujo interior pode-se organizar o espaço independentemente de qualquer exigência de proteção, como puro circuito de informação-comunicação. À disponibilidade sempre crescente de materiais novos e novas tecnologias, suprimindo qualquer condicionamento estático, elimina definitivamente as velhas tipologias e legitima as hipóteses de estrutura modular contínua, como a de K. WACHSMANN, ou de redução do edifício ou, utopicamente, da cidade a um imenso contêiner transparente e climatizado, como as cúpulas
geodésicas de B. FULLER. À imagem urbana do racionalismo, com seu espaço rigidamente subdividido em múltiplos e submúltiplos, segundo uma hierarquia de funções, sucede-se a imagem inquestionavelmente mais humana de LyNN, na qual prevalecem sobretudo os locais com que os habitantes mantêm uma cspécie de intimidade, uma ligação afetiva ou, mesmo, apenas habitual. Para construir a cidade, a psicologia vale tanto quanto a economia; pe-
lo menos em teoria, a cidade deveria ser o local da vida, e não apenas do trabalho organizado. À arquitetura rígida e volumétrica sucede-se, anda que somente no plano experimental, uma arquitetura flexível, como as estruturas « “infláveis”,” semelhantes a enormes tendas de nômades, do alemão OTTO FREI. A pesquisa metodológica qualificada vai, pois, afastandose cada vez mais da consideração dos problemas reais da existência, das rudes contradições
que dilaceram o tecido da sociedade A pesquisa urbanística avançada pode, em muitos casos, comparar-se à pesquisa científica que tem como objetivo o envio de mísseis ao espaço s1-
deral: com um desvio das premissas e finalidades institucionais da ciência que, em essência, não se distingue, a não ser pelos resultados incruentos, daquele desvio que orienta a pesquisa para a descoberta de armamentos termonucleares cada vez mais assustadores. Também o urbanismo, a julgar por certas prefigurações, nada improváveis, da cidade do futuro, está se
tornando uma espécie de dissuasor psicológico, a ponto de justificar o temor de que elas respondam, sem dúvida, a profundas aspirações psicológicas do homem integrado numa sociedade de massa, mas justamente também à aspiração negativa que gostaria de compensar com
um complexo de superioridade ou de poder (tecnológico ou racial, não importa) um tremendo e insuperável complexo de inferioridade.
CAPITULO SFTE
A CRISE DA ARTECOMO “CIÊNCIA FUROPEIAS
Louis Kahn: Projeso de reesrruturação para o centro da Filadélfia
Clauce-Nicolas Leloux Vesta perspecrena du mile soenate de Chates (1774
9)
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S16
CAPITULOSITE
ACRIST
DA ARTE COMO
A
CIENCIA 1 UROPEIA
PESQUISA
VISUAL
pressão condicionadora do poderio No campo da visão, não tão diretamente ligado à ém mais sensível, porém, é a crise dos vatecnológico, a resistência à absorção é maior; tamb pesquisa
sentação em técnicas de lores tradicionais, a transformação das técnicas de repre Ysentido foi dado, também no plano teórico, por MOOL
O primeiro passo nesse ismo russo, especialmente do SuNacyY. Húngaro, foimata-se no espírito do Constuutiv na Bauhaus de 1922 a 1928, e o contato prematismo de Malevich e | issitzky. Lectonou mento posterior. A partir de 1982, com Kandinsky foi determinante para seu desenvolvi o
ele mesmo, de pesquisa visual em ligaçã em Chicago, dirigiu uma escola, fundada por exclu-
isador, não seguiu uma linha com o desenho industrial. Como rodo grande pesqu a didática da Bauhaus, estudou os prosiva de investigação. [ambém aí desenvolvendo m em movimento, dela passou para à forogtafia e > blemas da cena teatral, isto é, da image significativos expoentes do Dadaísmo, o cinema, aproximando-se assim de dois dos mais expresso no título de um livro seu: ViRichter e Man Ray. O tema de sua pesquisa vem
eno estético integrado à existência não se sion mn motion [Visão em movimento]. O fenôm a se entijecer como forma, e sim numa apresenta na imagem isolada, que sempre tende
imagem, ela é sempre o momento 2 sequência de imagens. Mesmo quando é apenas uma depois. A imagem não é o resultacum antes um a ligado mente ideal ncia, de uma seguê Moholy utiliza frequentemente ima3» do, mas a matéria c o objeto da pesquisa: por isso
à “fotomontagem”, combinação gens ready made. Um de seus procedimentos preferidos é como insignificantes ou bade diversas imagens fotográficas fora de seus contextos, udos 4 derada conais, € compostas num
novo contexto, significativo. Como
a imagem é consi
se constitus — Moholy / utiliza mo fenômeno em si, ela é inseparável da matéria em que sensibslizado pela fotografia, o vipreferencialmente materiais modernos, como o papel e luluz, a análise da imagem (que é sempr dro, o plexiglas etc. Como não existe visão sem ento, o movimento e à luz são os dois minosa) torna-se análise da luz; sendo a luz movim
Bruno Muni Mispusna rentil (1956) Propriedade de autor
DA ART)
COMO
"CÊ NCIA
EUROPÍIA
ticro PPasmore Desenvolwmento azul ] em Victor srés mor imentos (1969), óleo sobre compensado, 1,22 x 0,5! m Londres Galeria Marlborough
Lung; Verones: Fotograma do fiime nº5(19407 O filme for quase inteiramente pintado pelo arusta sobre a pel ula
[o
ACRIST
Da
CAPÍLIOSETL
518
CAPITULO SETO
Max Bill
DAARTE
ACRISI
COMO
CIENCIA | UROPEIA
Consrução dertuadia de mma
cora cireiar (1942-4), mármor
Nicolas Schofter ua 10(1959), escultura
branco, O 40 m de altura
aibernenca e luminosa em metal. Paris propriedade do autor
Laszlo Moboiv Naga e de espaco (1922-301
4oztitutor ae luz elementos moveis
em metal 1,60 x 0,60m Cambridge (Mass ), Bush-Reisinger Muscum
Jose
alburs
fuera as
CAPITOPOSFIE
ACRESE
DA ARTE
COMO
componentes fundamentais da imagem. Portanto, é essencial o estudo das qualidades absorventes, refletoras, filtrantes € refratoras da superfície (texture) dos diversos mareriais.
Apenas captando o ritmo espacial da luz (e note-se a transposição do plano “espiritual” de Kandinsky para o plano experimental) é que se revela a coerência interna das seguências das imagens perceptivas, isto é, percebe-se ' estericamente”; o cerne da problemática de Moholy é, enfim, o processo motor da percepção, o elemento motron que se liga necessartamente ao elemento viston. O que, na origem, era o dinamismo de Duchamp e dos futuristas, e que pressupunha ”
uma ação de força, traduz-se asssm em “cinetsmo” + COMO associação e sucessão espontânca de imagens no campo psicológico-ótico; apenas com a finalidade de pesquisa analítica e demonstração, esse movimento de imagens é transfendo para um objeto que desenvolve um movimento programado. O espectador, então, vê matei ializado o que seriao próprio processo Óórico-mental, se tal fosse verdadeiramente um processo de experiência estéuca. MoholyNagy, embora tendo falecido em 1946, deve ser considerado como o fundador da pesquisa visual-cinética e da chamada Op-Art(op de optical), que irão se desenvolver na Europa e Estados Unidos por volta de 1960.
Naturalmente, a análise dos processos perceptivos e de sua subjetividade fundamental implica a descoberta do fato de que a percepção não é absolutamente uma coleção de materiais visuais em função de uma elaboração e um conhecimento intelectual, sendo antes um pensamento autônomo e auto-suficiente, precisamente aquele a que um grande psicólogo da percepção, R. Arnheim, deu o nome de “pensamento visual” A imaginação é pensamento
integral, libertado das censuras lógicas do racionalismo À pesquisa de Moholy foi prolongada e desenvolvida, também no plano teórico e em relação com a arquitetura e o desenho industisal, pelo suíço Max BILL, a quem se deve, ainda, a tentativa de um restabelecimento atualizado, segundo a situação presente da produção
industrial, da rigorosa didárica projetual da Bauhaus na Hochschule fiar Gestaltungde Ulm; na França, por NiCOLAS SCHÓFFTR, autor de grandes estruturas cinéuco-luminosas, às vezes em escala urbanística, e, na Itália, pelo pintor e artista gráfico L. VERONFSI e pelo destgner B.
MUNARL O concerto de arte “concreta”, que desde 1935 Bill contrapõe ao de
«
abstração”,
implica a refutação teórica radical da arte como representação; como pesquisa prática, é verdade que a arte se determina, necessariamente, num objeto, porém este se define não só co-
mo instrumento demonstrativo e didático, mas ainda como modelo de objeto, cujo funcio-
namento racional se realiza no próprio ato de seu ser percebido. ] Al BERS também lecionou na Bauhaus, de 1922 a 1933, « prosseguiu em suas atividades docentes nos Estados Unidos. O problema a que se dedica toda a sua atividade de pintor não é o movimento, e sim a densidade ou a profundidade do espaço, mas entendido como campo perceptivo. Parte de uma hipótese espacial a przori, o quadrado, assumido como forma simbólica do espaço. Não se trata, todavia, de uma simbologia cósmuca, relativa a uma metafísica do espaço o quadrado, para Albers, é forma simbólica no sentido que Cassirer atribui ao termo, em sua Filosofia das
formas simbólicas (1923), e Panofsky aplica à perspectiva (A perspectrva como forma simbólica, 1924). O símbolo não tem um caráter essencial, mas funcional; é, certamente, a expressão de um mito que se forma na psique humana e, portanto, serve ao pensamento, contudo o próprio pensamento, com seu processo, submete-o à verificação e, verificando-o, “desmrtifica-o”. Todos os quadros de Albers apresentam o mesmo esquema: quadrados inscritos um no outro e cobertos de camadas cromáticas uniformes, ente cujas quantidades implícitas de luz estabelece-se uma relação ao mesmo tempo métrica e tonal, racional e perceptiva. Temse assim um processo no interior da imagem imóvel: as superfícies planas desenvolvem um
"CIENCIA
FURÓPIIA”
519
520
CAPITULOSL IL ALRISLUA ARTE COMO "CIÊNCIA FURGRÉIA
volume, é não apenas passa-se do quadrado ao cubo, mas o próprio cubo pode ser lido como cavidade « volume. O processo de dosagem e nivelamento das quantidades-qualidades cromáticas define-se como um processo racional no interior da forma simbólica, que deixa de sê-lo no momento em que é verificada: trata-se, pois, de um processo mais psicológico do que abstratamente matemático, o que é comprovado pelo desenvolvimento imprevisível que reve a geometria de Albers na espacialidade expansiva e puramente cromática num dos maio-
res mestres do 1nformal americano, M. Rothko.
A pesquisa sobre a auto-suficiência da visualidade e a positividade daquilo que era ndo como erro sensorial da percepção foi levada para a frente, com resultados importantes, pelo
húngaro V. VASARFLY, pelo inglês RILEY, pelos italianos NIGRO é GRIGNANI, e de modo geral
pelos grupos de pesquisa que se formaram na Alemanha, entre 1950 e 1960.
A
PINTURA
NOS
ESTADOS
UNIDOS
Após a Segunda Guerra Mundial, o centro da cultura artística mundial, e consequente-
mente do mercado de arte, desloca-se de Paris para Nova York; o florescimento explosivo de uma arte americana constitui o fenômeno mais grandioso na história da arte nos meados do século. A cultura artística americana começou a se formar no final do século passado e no iní-
cio do século xx. As primeiras grandes coleções de arte foram reunidas por capitães da indús-
tria e das altas finanças americanas; quase todas, em poucos anos e por iniciativa dos próprios colecionadores, tornaram-se fundações e galerias públicas. O grande industrial “que se fez sozinho” sabe contribuir para formar uma sociedade realmente moderna, sem tradições vinculadoras; pensa que deve dirigir a cultura tal como dirige a triunfante economia amcricana: funda universidades, museus, centros de pesquisa. Em poucas décadas, os museus americanos se tornam os principais do mundo, servindo não apenas ao propósito de conservação e infor-
mação, mas ainda de propulsão da cultura artística. Formam-se também escolas de arte; embora inspirando-se no Romantismo, no Realismo, no Impressionismo francês, os artistas americanos começam a se interessar pelos aspectos de seu país. WixsLOW HOMIR, o primeiro pintor americano independente do academicismo europeu, foi um narrador denso e forte, com um vigor plástico que o aproxima, em temperamento, de um arquiteto como Richard-
son, e uma intensidade realista oposta à musicalidade cromática de Whistler e à elegância retratista de Sargent. Em
1913, abre-se em Nova York uma grande exposição, o Armory Show
expõe um
pouco de tudo, inclusive os pintores americanos, mas O principal destaque é dado a Matisse
« Picasso, os grandes mestres modernos que, na Europa, são alvo de risos ou desconfiança.
Logo depois vem a Primeira Guerra Mundial, com a intervenção dos Estados Unidos ao lado das democracias européias, em nome do ideal comum do progresso.
Nasce na Europa o mito, a ideologia dos Estados Unidos, o grande país industrial onde
o industrialismo não é um novo feudalismo, e sim o empreendimento coletivo de um povo jovem. É nos Estados Unidos que Duchamp e Picabia sentem que roda a arte européia enve-
lheceu e decaiu, e propõem recomeçar do princípio, criar uma arte não de forma, mas de ação, c lançam a primeira revista dadaísta, o 291. Aos poucos, os artistas americanos abandonam os modelos europeus. J. MARIx adapta a linguagem fauve e cubista à interpretação da paisagem urbana de seu país, L. HOPPER é um
realista sem ideologia, um primitivo sem falsas ingenuidades, cuja extraordinária força de ca-
Ben Shahn A paixão de Sacco e Vanzerte (1931 têmpera sobre tela, 1,20 x 211 m
as +jy
Nova York, Whitney Museum of American Art
Edward Topper
Domingo de manházenia
(1930), tela, 0,89 » 1,52m
Nova York,
Whiney Museun of American Art
Winslow Homer A corrente do Golfo(1899) tela, O /3x 1,24 m Nova York, Metropolan Muscum
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CAPITULOSETE ACRISE DA ARTE COMO
CIÊNCIA FE ROPÉIA”
racterização e a exasperada sensibilidade à miséria do mundo das metrópoles americanas traduzem-se numa narração figurativa de extrema eficácia. B. SHAHN aplica a gráfica seca dos
expressionistas numa crítica amarga e ardente, mas intencionalmente pedagógica, dos vícios de seu virruoso país puritano. É o mais agudo entre os pintores-testemunhas da “cena americana” — da “outra” América, é claro, a dos vagabundos, dos perseguidos, dos negros, de Sacco e Vanzetri. Talvez seja o primeiro artista “intelectual”, naitador e polemista mais do que pintor: mas como Dos Passos, o romancista da crise americana de 1929, precisa, para transmitir o sentido da realidade americana, soltar e desarticular os nexos lógicos do relato figurado e da própria linguagem.
John Marin Lansastas na zona da ponte do Brockiyn (1932), aquarela, 0,48 = 0,57 m Nova York, Whiney Museum of American Art
CAPÍTULO SEL ACRISL DA ARTE COMO “CIÊNCIA EUROPÉIA”
É por isso que, em Johns ou em Rauschenberg, o qua-
MORRIS LOUIS GAMA DELTA
dro chega a se apropriar de coisas que estão no espaço à sua frente ou ao seu redor.
Se o quadro não é uma tela da representação, mas um “local” onde se realiza visualmente um evento
existencial, coloca-se o problema de sua realidade objetual: o que é, na realidade, aquele retângulo de tela
De qualquer forma, o quadro é concebido como algo vivo: não como um espaço segregado e privile-
giado, mas como espaço existencial.
estendida numa armação, sobre o qual se produzem
ELLSWORTH
fatos, muitas vezes carregados de tensão dramática, consistindo em manchas de cor informes? LOUIS par-
VERDE,
AZUL,
KELLY VERMELHO
te; sem dúvida, do expressionismo abstrato, todavia rumando para a pesquisa sobre a identidade do qua-
dro, como superfície retangular com um certo com-
Este quadro de KtLiy (escolhido a puro título de
primento e uma certa largura, certas margens que a
exemplo entre os muitos possíveis) tem o caráter de uma demonstração científica sobre o processo da percepção e, em particular, sobre os patterns visuais. Pattern significa esquema ou estrutura; na terminologia
separam do espaço da vida, uma estrutura que lhe dá uma substância plástica (hard edge). A superfície da
tela é, antes de tudo, um campo no qual se produzem fenômenos coloridos, capazes de ocupar inteiramen-
te nossa faculdade perceptiva. Identifica-se, pois, com o campo visual, de modo que, à distância ade-
quada, não se vê nada além de suas margens. O fenômeno colorido é constituído por filetes de cor que correm rapidamente para as duas extremidades inferiores do quadro. De um lado azul e vermelho, de outro negro, amarelo, verde. A parte central é vazia, e
sua espacialidade é definida como sensibilidade à luz: o pequeno triângulo amarelo, abaixo, à direita, atua
da psicologia da percepção, corresponde à estrutura do complexo fisiológico e psíquico (ótico e mental)
em que se formam e se enquadram as sensações visuais, não mais concebidas como dados brutos para uma posterior elaboração mental, mas como estados completos de consciência. O quadro em exame é um plano vermelho sobre o qual se destacam dois recortes iguais e paralelos, um
azul e um verde. São três cores que se furtam aos esquemas normais de relação e não podem formar um
precisamente como fonte de luz Iluminando a tela
conjunto tonal; com efeito, a primeira impressão é a
vazia, dota-a de uma força de expansão que lhe permure conter e canalizar o fluxo das cores, que brotam
tela, sugerindo um princípio de absorção e fusão). O
de um choque visual, porque cada cor sugere uma profundidade diferente, sendo obrigadas a ficar no mesmo plano, isto é, a se situar no mesmo campo visual com valores iguais. Como o quadro é uma realidade objetiva com a qual devemos estabelecer uma condição de equilíbrio, nosso sistema perceptivo deve realizar algumas operações de “ajuste”, consistindo
pintor procura o equilíbrio da percepção no equilíbrio material do quadro: o próprio contraste com as
em supor ou imaginar tons intermediários, cuja média reconstrua o equilíbrio ea smetria cd campo em
das bordas e atravessam a parte inferior do quadro. É evidente que o pintor procura um equilíbrio entre o vermelho e o azul, à esquerda, e o verde, amarelo e negro à direita (note-se que apenas o negro “desbotra” na
faixas coloridas exalta a luminosidade do grande va-
nossa mente. O estudo dessas cores presumidas ou
zio central, que, embora não pintado, é o tema domnante do quadro. E ainda: o quadro que não recebe muitas projeções
imaginárias, com as quais o sistema ótico-mental elimina os traumas da percepção, deve-se especialmente
de imagens emana estímulos que intensificam a sen-
aos italianos M. Ballocco e M. Nigro.
Francis, em Rothko e Newmann o quadro preenche e sensibiliza todo o espaço que pesa sobre sua superfi-
A análise desses “ajustes” é importante por demonstrar a capacidade do homem-sujeito em compensar os desequilíbrios e pôr-se em sintonia com o ambiente-objeto. Não se trata apenas de compensa-
cie, mesmo aquele em que se encontra o observador,
ção: com efeito, parece profícuo aumentar as causas
sação existencial do frudor —
ral como em Sam
523
—
—
524
CAPÍTULO SETE ACRISE DAARVE COMO
CIÊNCIA EUROPÉIA”
!
do trauma visual para estimular as capacidades de
librar os contextos do visto ou para atenuar O impac-
sons). Dada a sua capacidade de estimular reações
tese da identidade entre percepção e imaginação. O
compensação do sistema a fim de aumentar, assim, a gama dos valores perceptíveis (como, por exem plo, as cores além do espectro ou, em acústica, os ultrapsíquicas imediatas, entende-se por que Os traumas
visuais produzidos artificialmente são usados em lar-
ga escala na publicidade ou na sinalização viária, ou
to das sensações, foi amp . Goethe em sua Farbenlehre mado pela Gestalipsychologre como fundamento da
problema
foi estudado epi
guns pintores contemporâneos (Veronesi,
)
ae alocco,
Nigro).
seja, a cada vez que se pretenda obter uma pronta resposta da mente perceptiva a um sinal visual. O estudo dos mecanismos perceptivos, por meio
dos quais o olho fabrica imagens coloridas para equi-
l
Morris Louis: Gama delta (1959-60), polimeros sintéticos, 1,02» 1,52m Nova York, Wiuiney Muscum ot American Art
CAPÍTULOSETL
4 CRISE DA ARTEÇOMO "CIÊNCIA EUROPÉIA”
Ellsworth Kelly
Verde, azul, vermelho
(1964); óleo, 0,73 x | m. Nova York, Whimey Museum of American Art
RA RA
E EUROPÉIA AMERICANA
ação dialética entre a cultura americana e a cultura européia estreita-se principalndo a situação política na Europa torna-se mais perturbada, e não são poucos os istas e estudiosos, em sua maioria alemães, russos c espanhóis, que procuram rena América livre. O fluxo da emigração intelectual aumenta quando, deflagrada a guer-
ra, OS nazistas invadem quase toda a Europa. Agora, os Estados Unidos tornam-se os deposios, em nome da democracia, dos valores da inteligência e da cultura; porém, no exato moESA,
que os adota, adapta-os à sua estrutura social, ao seu “modo de vida”. A rensão ca e polêmica, que opunha a arte moderna ao conservadorismo curopeu, já não tem
não ter razão de ser no quadro do modernismo e do progressismo americano; a da, que na Europa andava contra a corrente, nos Estados Unidos segue pari passu o tecnológico, mas perde o gume polêmico da vanguarda. As tendências não-fias, sendo as mais imunes a conteúdos e características nacionais, são naturalmente as
pioneiros é STUART DAvIS; mesmo os esquemas geométricos do “abstracionis»
peu adquirem no cromatismo intenso da pintura desse artista a intensidade de febservados pela primeira vez,
figuras-chave desse período são os pintores Arshile Gorky e Willem de Kooning. bra de GORKY pareceu, a muitos críticos europeus, pouco original. É fácil isolar a ada quadro seu: Cézanne, Picasso, Kandinsky, Masson. Entende-se: Gorky fo: um
grande “tradutor”, tornou inteligível nos Estados Unidos a melhor literatura pictórica euroÉ
suas traduções não são transposições de uma língua para outra (ademais, mal coformar, e justamente com Goiky, uma linguagem visual americana) nem aplica-
525
326
CAPITULO SLI E
Arshile Gorhy
ACRISL DA ARTE COMO
CIÊNUIA
LUROPÉ IA”
O figado e a crista do galo
(1944) tela, 1,83x 2,69 m Buffalo (NY), Albrighe
Knox Art Gallery
ções de meios expressivos europeus à realidade americana. Ocorre com Gorky o que sucede, nos mesmos anos, na narrativa: um Scott Fitzgerald, um Faulkner, um Hemingway escrevem
em língua inglesa, todavia fazem uma literatura americana, que ninguém poderia ainda con-
siderar como deformação vernácula ou colonial da literatura inglesa E, se é verdade que
Gorky não era americano, e sim um armênio emigrado em 1915, a condição do imigrado,
para quem os Estados Unidos consutuem uma experiência rude, porém vital, ou um ambiente estranho no qual é preciso se inserir, é exatamente a condição do verdadeiro america-
no. Não há nada de estranho, pous, no fato de que Gorky tivesse de reinventar um sistema de
signos que, ainda que seja morfologicamente semelhante ao da pintura curopéia e dele descenda, possui outra carga significativa. Já não estando ligado ao dualismo de sujeito e obje-
to. não corresponde à postura de quem se coloca diante da realidade para conhecê-la, mas à
excitação interna de quem a assume frontalmente e trava uma dura batalha contra o ambien-
te desconhecido ou adverso, a fim de abrir espaço para a sua própria vida. Gorky chega a in-
ventar, mesmo que se remetendo a Duchamp, uma iconografia abstrata, um vocabulá rio de
signos que se compõem segundo estranhas leis sintáticas: uma iconografia que reencontr atemos vivida, por vezes diabolicamente agressiva, nos grandes pictogramas de Matta. Assim se delineia a figura do artista americano. É homem de ação numa sociedade de ativistas, contudo seu “modo” de agir é outro, pretendendo ser um agir puro e desinteressado,
CAMBLEON
IO
ALRBEDAARLECOMO
CUNÇIAF
ROLL
um agir como existir, um modo de existência autêntica mteita mente diferente daquele modo
de vida, autêntico pois que orientado para falsas finalidades, que a socied ade americana ele-
geu para si como exemplar. O artista, pelo simples fato de ser artista, está na oposição. pertence a uma minoria intelectual, a uma “esquerda” cultural que não tem, ou não ainda, uma de-
finição ideológica, mas que mais tarde se organizará numa verdadeira “frente de oposição”.
Na pintura americana, que com Pollock virá a se chamar acrion paintin g, o signo (linha, massa ou cor. as categorias já não têm sentido fora da finalidade cognitiva da arte européia) tem a vitalidade intensa e tenaz do germe que se gera espontanea mente numa água pútrida, estagnada: e a água pútrida é o passado que, não se organizando racionalmente em perspectiva histórica, car no caos do inconsciente. O passado que não se conver te em história e pesa como um complexo de culpa é a contrapartida oculta do modernismo ativista da extroverti-
da sociedade americana, a nódoa sombria em seu Otimismo. À arte é ação desinteressada, que
não se permite uma falsa justificação moral elegendo como valores sociais supremos o lucro,
o bem-estar, o poder. Não se jusufica outorgando-se um fim, mas descobrindo suas motiva-
ções, e não teme procurá-las além das censuras sociais. A arte nos Estados Unidos tem suas várias correntes, porém todas partilham a infração das censuras, a coragem do excessivo e do paradoxal, da projeção em escala gigantesca. A arte é o local onde se regenera e se purifica o pragmarismo alienante da vida coridiana: ela tam-
bém é pragmática e ativista, mas positiva é criativa.
Ao lado de Gorky, anugo fraterno, W. Dk KOONING experimenta em si mesmo a carga
e o rumo do impulso motor de fazer pintura. Holandês emigra do em 1926, tem uma forma-
.
Ana
Nas
Stuart Davis
Ooh! fa San Prol 1951), rela,
1,32 :1,04m Nova York Whey Miuseunval Ameneand
Acshile Gorks
Nosrado (47), cela
[27»096m Nuvi York, Nssoinril Arvericii Ari
S2R
CAPITULO SIL
NCIS TRE! A CRISE Da ARTE COMO “QU
lc 1946), w lum de Kooning Luz em agosto 1 04m. 1,37 tela, sobre te esmal e oleo €. Dixon Seis ide coleç to Tlise
Pa
(1949), oleo, Willem de Koomng Mulher ] 2Im 1,33% tela, eo sobre c carvã esmalt E eavitt Bons ão coleç ), (Pens ver Lano
certaeuropéias, a expresstonista é as tiv ura fig s gen gua lin as re porém, os conção expressionista; aliás, ent de tons de protesto. Elimina, ada reg car s mai à ta, len vio e os, como mente a mais áspera mo; considera-os dispersiv nis sio res Exp do os tiv ura fig tórica. Com sua teúdos polêmicos, os temas a carga explosiva da ação pic iam rav ext e fim o fals um a os que desviam par a apresentar tipos OU modeda Brucke haviam se limitado stas arti os al, soci ica crít ndo o expresexplicita ning propõe cormgir substitui Koo De que erro o é tal ); vos do munlos (ainda que negati , que já não atinge a P 'alidade to” tra abs smo oni sss pre “ex rime à angústia da sionismo figurativo por um explode em profundidade, exp mas , ões diç tra con suas r as tindo desvendando sionista do pintar, de coloca res exp to ges O do. mun no, que desintegia condição humana, do estarKooning, um gesto explosivo De para é tela na las látas, atirá-las e manipu ção no magma devastado de sua
fato, os fragmentos de figura se, com UM « realidade. Recuperam-se, de do lodoso de um poço descobrefun no o com l”: rma “fo e ent pintura decididam águas.
infectou suas te análoga, na arrepio de nojo, a carcaça Que nte mística, mas essencialmen ame vag ca ógi col psi o içã pos tradições É outra a dis al mteiramente diverso, O das tur cul o ren ter num Ey ToB arem, na grande operação realizada por M. águas tranquilas a se mistur o Onente, levando suas
Naarte do figurativas do Extrem tadas das correntes européias agi s mai bem as águ as com os bacia cultural americana, signos de seus conteúdos poétic a sensibilíssima caligrafia dos
as branExtremo Orente, ele isola negativos nas famosas “escritur em vos iti pos de os á-l orm nsf tradicionais; o faro de tra prova que sua intentuem 9 melhor de sua obra — sti con 5, 193 de ur par a s, cas” — as quai a linguístico originário. Reos significativos fora do sistem sign s esse ar torn e ent tam jus é ção
CAPETULO SETE
ATRISEDA
AR PE COMONCIENCIA
EURO?
Lt
LEIO wWrliem de Kooning, Loro no rio 0.80» 0,70 m
Nova York Whitney
Museum of American Arm
paetfica 19 4 Mark Tobey: Transição guache sabre papel, 0,58 - rá mi Ari Museum Samt Lows (Mo 1), Cir e
aim Do
ç> ag2 Ú
ELE COMO UTENTIA PL ROP CAPÍTULO SP IE A CRISE DA
o som, € não o signifiqual se retenha apenas da a avr pal uma mo (co formados urado de seu contexto s de Tobey geralmente são dro qua os to: ini inf ao repetível porém,
cado), o signo torna-se
, iguais. Não idênticos s ralo, de signos quase mai ora o, rad cer s € do tempo, transcreve por um tecido, ora mai fixa um ponto do espaço
o tipo: cada signo m o alfabeto Morse, anda que todos do mesm mensagem transmitida co a um mo co É a. nci stê exi frequência, o 1num outro instante da significado muda com a o cuj mas , os sm me os o na em que os sinais são sempre to como O indivíduo isolad tex con no á est o lad iso no cia O sig formigante da rervalo, o ritmo da sequên com efeito, O movimento é, ey Tob de sa qui pes à limassa; O tema de que parte pela frequência dos signos ina erm det se que mo rit O cidade. estudou lonmultidão nas ruas da grande osofias orientais, que Tobey fil das ão liç a o, log ão: tamberta da opressão da multid rial. É uma angústia que ust ind le” ópo gal “me da à angústia ser levando-a gamente, ajuda a suportar á se libertar dela, a não seguir o qual, todavia, não con bém acometerá Pollock,
dilacerante. tossigno de F. ao extremo de um desespero Tobey, encontra-se o mac de no sig ros mic do que O Quase no pólo oposto o alfabeto pictórico, mas sim dis ina ref um de do é deduzi pictórico, mencionaKLINE; um signo que já não smo intrínseco do fazer mi na di ele aqu m co to, executa artista traça com seu ges te de dentro, contudo se par no sig o faz que to ges g. O ície branca da do a propósito de De Koonin ra € ameaçadora na superf neg bra som nde gra UMa a européia (em Haifora. avoluma-se, torna-se ráfico. Mesmo na pintur issimo plano cinematog tela, como num primen
nº 2611947), tela 4a 4 Rothko Pinta Parsons Reus ção Nona Tork coke
(1960): tela, Frans Khoe Sent muto coleção se Vare n. 0 150 «0,8 Panza d Biumo
CARILLOS
LE
AC RISE IA
ARTE
COMO
FU ROTLLA CUENÇIA
lação ou remoção; indipre um gesto negativo, de anu sem é o gest o ), ova Ved es, lag ece a sutung, Sou Kline, 0 signo negro que obscur Em sa. recu e lta revo de ana ca uma condição hum mácula de culpa no claro da jeção do inconsciente, uma pro uma é tela da nca contrairbra perficie besco. é carregado de fúria. Pode
sua ttmica de ara consciência; por isso, mesmo em dilarar-se até invadir ameaçadoramente profético, ou , vel nsí ree omp inc o lif róg hre se num surge naquele funcha negra do inconsciente ; mas sempre a man quase todo o campo da tela
ta. A obsessão do ininfinitas de sua espacialidade aber s ade lid tua vir as ia que blo , americana é a do branco ada ingenuidade da democracia
pa na decant contradição de consciente, a negra mácula de cul e sim como m 4 consciência. como questão social objenva, questão negra: não
base da ideologia americana.
conver-
” de MARK ROTHKO, de “impressionismo abstrato mar cha s emo pod que o o fator domiCom ponente da cultura curopéia: com nde gra ro out o ana ric ge para a pintura ame realismo de Masson e Miró, primeira aproximação ao su! uma s apó ão, maç for a da sua nante em expressionista, Rothko elimin
g em relação à imagem é Matisse Como faz De Koonim . o falso ponto de para mitologia naturalista do espaço , ção ura fig à ta nis sso res imp soas nem coisas: imagem Permanece O espaço, sem pes to. obje ao ito suje o liga tida da sensação que cromático-luminosa que se percebe como substância co, íri emp mas ico, teór não aço um esp a propósito de ado fala em pintuta de ação loc des r ece par e Pod . ante expandida e vibr o e leve que não deixa traços pupilas dilatadas, de gesto lent com o tiv pla tem con um , Rothko é calmo, cadencias pela neurose: O de Rothko ado dit são os gest os os tod No entanto, nem do uma, duas, tês demãos são que pinta uma pai ede, dan arte do o gest o o com plano me, for do, uni ou transparência, € onde havia um ade sid den de grau o cert ja atin e a atraaté que a superfíci passar à luz, ou mesmo emanaa deix que ra adu vel uma há rígido e impenetrável agora o de uma gradual acuemessada; realiza-se pot mei arr nem ada jet pro é não vés da cor. À ação dro de Rothko não é uma ia, enquanto ela se faz. Um qua ênc eri exp da to men ina ref e o mulaçã ima e grande obra aneamente à arquitetura (sua últ ont esp a cur pro te: ien amb superfície, é um em Houston), não em noéis — da “capela ecumênica” pain los amp e otz cat — ção Seu objeué a decora uma espécie de afinidade eletiva. poi mas s”, arte das tese “sín me de uma abstrata sua imaginação. Mesespectador, abrir um espaço pata O tar ien amb er, olv env , fato apartamenvo é, de parando do gesto do pintor de ema: sist ao es eçõ obj suas tem mo Rothko, afinal, minosa, ele demonstra , como substância cromático-lu aço esp do e lim sub ao gar che áno qualitos para como artista, ao passo que 0 ope uir evol e pod o sad pas do são que o pequeno arte o dirigente. e se tornar. no máximo, técnic ponto mais alficado da grande indústria pod ana aumenta de tom, atinge o ric ame ação de a tur pin a K, Com]. POLLOC só pode haver 0 silêncio, te último da crise, além do qual limi &o a: óric hist la ábo par uzu, os to de sua tragédia existencial parece reprod
Van Gogh, cuja «imobilidade, a morte. Como para período de busca k, são os últimos. Precede-os um loc Pol de ória hist na , tam inaudita con anos que ivos da fúria que explodirá, com mot os m nsa ade se ndo qua il, atormentada e febr érico-relhigrosa que o impeem, encontra-se uma tensão ong Na . ada déc ima últ na que 0 asa, violênci almente Siqueiros; em Picasso, o eci esp na, ica mex ção olu rev da le para os pintores Por intermédio de Gorky, comca. rni Gue , tico polí to men aja o não mais CO sombra é a obra de maior eng o novo valor que adquire o sign
Surrealismo: reflcpreende o sentido profundo do erioridade do artista. Lendo e int da rior exte o ent gam lon a grande reserva das mo expressão, mas como pro ra da arte é o inconsciente: é esfe a que de se ceven con g, didas, e tindo sobre Jun a dimensão das lembranças per é Não arte a com nas ape à ação O credo Forças vitais, à qual se chega onde provêm os impulsos para de ser, do te han bul bor e do é que é versim o mar profun te-se para fazer O contrário exis diz: dos Uni s ado Est da sociedade puritana dos
531
fmM “e
ACRISE DA ARLL COMO "CIENCIA EUROPEIA!
CAPOLLOSEIO
Jackson Pollock e pintura com
fue Potes (1953), duco
aluminio
sobre tela,
218x488m Nov York. coleção Ben Heller
dadeiro: faz-se para existir, é preciso fazer a existência. Antes da ação, não há nada: não um sujeito e um objeto, não um espaço onde se mova, um tempo em que se dure. Pollock parte
realmente do zero, do pingo de tinta que deixa cair na rela. Sua técmca de drzpping (gotejamento e borrifos de tinta sobre a tela estendida no chão, procedimento descoberto por Max
Ernst, mas utilizado em sentido totalmente diverso) deixa certa margem ao acaso: sem aca-
so, não há existência. dição de necessidade vistas. A salvação não dez a casualidade dos
O acaso é iberdade em relação às leis da lógica, porém é também a condevido à qual se enfrentam a cada momento, na vida, situações imprereside na razão que faz projetos, mas na capacidade de viver com luciacontecimentos. Tudo se resume encontrar o ritmo próprio e não per-
dê-lo, aconteça o que acontecer. A action paintinge o jazz são duas contribuições de imenso alcance dos Estados Unidos à civilização moderna: estruturalmente, são muito parecidos. O jazzé música sem projeto,
que se compõe tocando, e rompe todos os esquemas melódicos e sinfônicos tradicionais, tal como a action painting rompe todos os esquemas espaciais da pintura tradicional. No ema-
ranhado de sons do jazz, cada instrumento desenvolve um plano rítmico próprio: o que os
entrclaça é a excitação coletiva dos instrumentistas, a onda que se ergue do fundo do inconsciente e chega ao auge do paroxismo. Tal como nos coros religiosos dos negros americanos, cada qual grita sua fé e sua fúria, e cada voz é dissonante da outra, mas é exatamente dessa lancinante dissonância que nasce o ritmo de uma coralidade dilacerada. Da mesma forma, na
composição de um quadro de Pollock, cada cor desenvolve seu ritmo, leva à máxima intensidade a singularidade de seu timbre. Todavia, tal como o jazz constitui não tanto uma or-
questra, esim um conjunto de solistas que se apostrofam e respondem, estimulam-se e relançam um ao outro, analogamente o quadro de Pollock surge como um conjunto de quadros pintados na mesma tela, cujos temas se entrelaçam, interferem, divergem, tornam a se reunir num turbilhão delirante. O jazzé música negra, dos negros americanos: são a miséria e O desespero do presente que, com notas estridentes de ternura pungente e sombria ameaça,
evocam das profundezas a memória ancestral de um passado agora lendário. E elas se4 fazem,
' : ” 4 nas palavras de Faulkner, “som e fúria”. Em certo sentido, a pintura de Pollock também é “ne1
|
!
CALTLULOSELE ACHISE DANRIL COMO
CIÚNCIAFUROPIIA
Jackson Pollock Olhos na cator (1946) mia 1377110m Vencra coleção Peggy Guggenheim
Robert Sebastian Matra
Pacteremo estes
(1941), tela, 0.75 - 0,U5m Nova York Museum of Modern Art
533
534
PAPILTOSLIE
ACRISE
DA
REL
COMO
CIÊNCIA
ROPÉIA”
gra”: no período que precede os grandes spzrttuals da última década, é visível a busca de um
sentido totêmico da imagem, numa miscelânea bárbara, mas extraordinariamente vital, de
sacralidade « sensualidade. Pollock coloca o dilema à sociedade americana, orgulhosa de sua ordem e produtividade: contentar-se com a bela forma de seus automóveis e eletrodomésti-
cos ou, desejando-se a arte, procurá-la na agitação do inconsciente, na obscuridade de seu 1n-
delével complexo de culpa.
Com o chileno R MATTA, o qual, depois de ter aderido ao Surrealismo em 1936, em Paris, trabalhou nos Estados Unidos em contato com Duchamp, Miró e Gorky, a pintura se reconverte em relato, mas o relato nasce da vitalidade intrínseca dos signos « desenvolve-se
no dinamismo da ação pictórica. Os signos se tornam pequenos seres monstruosos, entre o homem e a máquina, e “atuam” na tela uma grotesca pantomima de ficção científica, cujo
sentido profundo éa crítica, levada à paródia, da irracionalidade essencial da tecnologia mo-
derna, em que a sociedade, sob a máscara da racionalidade científica, expressa as pulsações confusas e negativas de seu inconsciente.
O
DEBATE
ARTÍSTICO
NA
EUROPA
Após a Segunda Guerra Mundial, tentou-se recompor uma unidade cultural européia, que foi obtida apenas como constatação amarga da crise total e irreversível dos valores em que se fundavam o historicismo humanista e a própria noção histórica de uma kuropa, ago-
ra até geograficamente desmembrada. No plano das idéias, a crise da arre como componente do sistema cultural europeu teve três fases: 1) a recuperação crítica dos grandes temas da cultura artística da primeira metade do século, na intenção de ligá-los, reavivando-os, à perspectiva ideológica do marxismo, 2) uma forte influência das “filosofias da crise”, em especial do existencialismo de Sartre; 3) o
reconhecimento da hegemonia cultural americana e a inserção da operação estética na teoria e técnica da informação e cultura de massa. Quanto à situação histórico-política, a primeira fase corresponde às esperanças revolucionárias da cultura européia, saída das lutas da Resis-
tência com uma clara definição ideológica, de esquerda; a segunda, às frustrações dessas esperanças com a volta dos grupos conservadores ao poder; a terceira, ao controle não só da po-
lítica e da economia, mas também da cultura, nas mãos do neocapitalismo americano. Condição análoga à européia verificou-se em outro país de antiga civilização, o Japão.
Entre 1945 e 1950, Pablo Picasso, o velho campeão das batalhas artísticas da primeira metade do século, toma a liderança da “jovem arte” européia; seu passado é inatacável, sua orientação política explícita como sua vontade de intervenção, sua obra recente inteiramente engajada em termos ideológicos. Em essência, os artistas do imediato pós-guerra propõem reexaminar criticamente os movimentos artísticos da primeira metade do século, para separar e revalorizar o que havia de concreto em suas veleidades 1evolucionárias. O objeto principal do reexame é o Cubismo a decomposição cubista permanece como a grande descoberta do século, mas deve ser explosiva e não analítica, refletir no rompimento da forma a ima-
gem do rcal elaborada pela consciência dilacerada, contraditória do homem de nosso tempo. Entendido como linguagem, o Cubismo torna-se um modo de apreensão direta da realidade, capta e potencializa tom impressionista ou grandes troncos da arte BAZAINE) e os italianos
seus elementos mais emotivos e dramáticos: pode, pois, assumir um expressionista, e até mesmo combiná-los, assim reunindo os dois européia. Nessa direção seguem os franceses (PIGNON, MANESSIER, (BIROLLI, AFRO, SAN TOMASO, PAULUCCI, CORPORA), que são os re-
NCRIS
DA
COMO
MRE
TC EÊNCIA
TUROPÉLS
1.07
Jean Bazane O portade Dieppe (1948), tela Bérgamo, coleção Bruno Lorenzelh
Edouard Pignon O homem e a abeverra 1950h tela, 060 + 0,73m Ceres, Museu
Alfred Manesster
0,98 « 1,30 m
Les tuvandes (1959), tela,
Basiléia, Galeria Beyeler
nm
a. 1,18
TR
1
CAPITTIOS
E frase, a
Ps
Gustave Singjer Reconstrução do parto
(1951), tela Milão coleção parmeular
1954) é ; Lrire Winterpo Fsestado (1954). leo e verniz sobre cartão Turim,
d'Arte Modem
Theodor Werner 9,81=1m
Galleria Covica
Composição (1951), tela,
Brescia, coleção Cavelliny
Serge PoliakotF Compostção (1956),
Re
Ne o Eai Ds
Nicolasde Stael
ad
114: 1,62m
De Srael
Ny
dessado (1955)
Runa ala
| tela
Paris, coleção Mme
Ernsc Wilhelm Nay Oxnsrro aztl (19594 cela. 162-130m Basile K sEmusecum
ld
EL
A CRISE LDA ATE
COM
presentantes de um abstracionismo lírico, no qual a ausênc ia de relação com o objeto intensifica os tons expressivos. Um movimento análogo, mas partindo das posições da Brucke (Nay) e do Blaue Rerrer ON'TRNER, WINTER), verifica-se no lado alemão. A tendên
cia não-figurativa, que, no entanto, não exclui a emotividade anda naturalista da cor, reflete o caráter essencialmente lingiístico da pesquisa: quer-se a todo custo reabrir e generalizar um discurso, conceber meios de comunicação direta, fora de qualq uer questão histórica preliminar. Sente-se que a realidade já não tem qualquer atrativo, é um puro dado ao qual se tenta reagir de maneira ativa, como que para comunicar ao objeto uma vitalidade perdida. EsTivE, PoLiakor, SinGiER empenham-se em sensibilizar, em dar à esquematização geométrica do espaço uma tomada da realidade sensível Aprofundan do à pesquisa, N. Di StAbi constata com assombro, quase com desespero, que nenhuma idéia « prror: do espaço ou da forma elimina o probl
ema da realidade, que se
reabre angustiante para além de rodo sistema dado, como problema de um outro irredutível, que veda ao arnista a consciência segura e total de seu próprio scr. A fórmula ncocubista, que parecra conciliar a anális e e a intervenção direta na situação, surge como um compromisso. À frente dos intelectuais progressistas se desfaz; o debate sobre a arte se radicaliza na o posição entre realismo e forma lismo. O realismo socualisa gerou por toda parre uma pletora de obras inutilmente comem orativas ou propagandísticas; mas, para
além do conformismo mediocre às diretrizes do partido, o problema permanece. Num artista de talento,
engajado moral e polticamente, como Gurtuso, assum e aspectos «dramáticos. Sea arte não pode deixar de ser política ea política se materializa na luta de classes, a ação política do intelectual deve se desenvolver segundo a estra tégia do partido que conduz a luta: o artista renuncia à sua autonomua de pesquisa é expre ssão, por já ter realizado sua liberdade moral na escolha ideológica. Nao se trata apenas de comunicar certos conteúdos da maneira mais eficaz, e sim de levar a análise sobre à situação de fato da sociedade, de justificar moralmente a luta política com a decadência histórica da classe no poder. À tese oposta do puro formalismo tem sua expressão mais tí pica, mesmo em relação a movimentos europeus análo“ga Ns
&0s, no grupo italiano Forma Lino (1947), formado pelos i . pintoresVo DORAZIO > E e PERILI 1, e pe. ; lo escultor CONSA
GRA. Não se renuncia ao engajamento ideológico, acentuando-se, pelo contrário, a necessidade de intervir na situação social em fase de transformação: mas sustenta-se que
a arte, como todas as demais
atividades, deve contribuir para a transformação das estruturas sociais com à sua própria transforma ção. Existe. portanto, um problema específico da arte:
como volta ao princípio da forma, retomada e reexa me do rigorismo funcional de De Style da Bauhaus. À fase seguinte assinala não a conciliação, mas a super ação ssmultânea das duas posições, isto é, a busca de uma dimensão estética para além do conteudismo e do formalismo É de notar que o duali
smo conteúdo-forma (ou, embora impropriamente, figur atvo-
não-figurativo) inseria-se ainda no debate, upicamente europeu, do marxismo e do idealismo: portanto, a tendência à superação da forma, ou seja, 0 Informal, é também a tendência a superar a concepção do problema da arte como problema da cultua europ éia, ea encontrar um terreno de con-
vergência com as correntes avançadas americanas, cuja impor tância, por volta de 1950, começa a ser reconhecida. Falhando, com o programa da Bauhaus, a tentativa de ligar a arte ao industrialismo burguês; falhando, com o realismo socialista, a tentativa de inseri-la na luta poli-
tica da classe operária, a relação arte-sociedade afiguia-se agora quase impossível: qual o fundamen to, então, em continuar averaarre como lingu agem? Às ditas poéticas do Informal,
que entre 1950 e 1960 prevalecem em toda a área européia e no Japão, são indubitavelmente poéticas da incomunicabilidade. Não é uma hivic escolha; é a condi ção necessária em que vem a
“CIT Nets | LOL
538
CAPITULO
Se rf
ACRE
DA
AR
ECOVO
CIÊNCIA
EUROPEIA
se encontrar a arte, que fora colocada como forma por toda uma tradição cultural, numa sociedade que desvaloriza à torma e já não reconhece a linguagem como o modo essencial da co-
municação entre os homens. À arte não mais pode ser discurso, relação. Não mais se enquadra numa estética, isto é numa filosofia, o próprio concerto de poética (de porém, “fazer”), pre-
valecendo sobre o de teoria, indica que a única justificativa da arte é, agora, uma intencionaltdade prática. Para além da linguagem, que sempre reflete uma concepção de mundo e impltca a idéia de relação, não há senão a singularidade, a irrelatividade, a inexplicabilidade, mas também a incontestável realidade da existência. O artista existe, e existe porque faz: não diz o que deve ou quer fazer no e para o mundo, cabe ao mundo da um sentido ao que faz. Em verdade, a única coisa que pode fazer é, justamente, a existência: certo ou errado, supõe realizar na arte um tipo de existência “autêntica” negado à média social. O Informal não é uma corrente, menos ainda uma moda; é uma situação de crise, e precisamente da crise da arte como “ciência européia”, momento daquela “crise das ciências eu-
ropéias”, mais vasta, que é descrita por Husserl como queda da finalidade ou do “tetos que é congênito na humanidade européia desde o nascimento da filosofia grega, e que consiste na vontade de ser uma humanidade tundada sobre a razão filosófica”. Explica-se assim a aparente afinidade, acompanhada, porém, por uma profunda diferença, que liga as tendências informais curopóas 40 Expressionismo abstrato ou à actron painting americana. O que ocorre
por meio da mfluência dos artistas europeus sobre os americanos (especialmente pela mediação de Gorky) é uma autêntica transferência de poderes. Mas note-se: se, renunciando à Imguagem para reduzir-se ao puro ato, a arte européia renuncia à função que tivera numa civilização do conhecimento, que colocava o agir na dependência do conhecer, o ato artístico dos americanos, por seu lado, insere-se, com uma intensa força contestatória, numa civilização pragmatista, de ação A definição últuma, irredutível, de extrema lucidez, da arte como forma, e da forma co-
mo racionalidade absoluta, fora dada por Mondrian, cuja clareza cognitiva deveria refletir
se e refiatar-se em todos os produtos do agir humano, to! nar-se o signo da racionalidade fundamental da existência. Mas aquilo de que, agora, havia largos motivos para se duvidar, dace do o rumo tomado pelas coisas, era a racionalidade fundamental da sociedade: a “virtude” racsonal já havia perdido a batalha contra o “furor” dos regimes totalitários, das políticas de força. Para que continuar a contrapor a uropia da razão ao brural realismo do poder?
Hans llartung 0,49.
073m
7 194/-25(1947), tela, Paris
coleção 6
Fardel
CABLLOSLIE
2x1 0Om B. Istacl Rosen
sURIM DAARTECOMO
mote, coleção
se Musec Nº
O primeiro que vai além do mito racionalista é M. ILARTUNG: à fórmula racionalista de Mondrian, cle opõe, com a mesma lucidez, o ato que realiza uma vontade ética. Assim nasce a
poética do gesto, do “belo gesto”: decidido, rápido, preciso, sem possibilidade de reconsideração. A espacialidade indefinida do fundo converte-se, pelo signo traçado pelo gesto, num espaço que tem a medida e a estrutura da ação se para Mondrian o agir derivava do conhecer, para Hartung o conhecer deriva do agir. Mas o gesto que cria o espaço é também um gesto negauvo, que anula qualquer noção precedente da realidade: o signo traçado pelo gesto de | lartung atravessa, negro e decidido, o campo da tela, E é repeudo, reforçado: como se o pintor estives-
se acometido pela fúria de apagar uma página escrita. À eticidade flagrante do aro que sc realiza anula qualquer experiência passada, recomeça a vida. Com Hartung, nasce o que podemos chamar de iconografia ou, mais precisamente, a semântica da negação do mundo ou, quando menos, da suspensão de qualquer noção ou juízo do que foi, no aguardo do que está para ser. A iconografia do não torna-se um dos motivos fundamentais c recormntes: em SOULAGES, chega a ser uma barragem de faixas negras, grossas c pesadas, que deixam apenas pequenas frestas no espaço do fundo, o tempo e o local do dia que se furta ao não-ser e vivese Reencantramo-la também nos americanos, em C. STILL, em KLINE, cm MOTHFRWLL, mesmo que com um significado diferente, interrogativo, quase indicando a exiguidade do espaço que o peso de um obscuro passado concede à necessidade do agn presente
Adquire
um significado mais rude, de denúnuia e protesto moral, em E. VEDOVA: o único pintor na Europa que rejeita categoricamente a hipótese de um “descompromisso” da arte, e defende o dever da presença e intervenção do artista nas situações políticas existentes Na condição necessária do presente absoluto, existencial, não há ato moral que não seja político se o arrista
67 NOTA TA ROPELA
Ate Moderme
$39
mito Vedova
Cheque de situações (V9S),
telas 3» | my ]ropriedade de artista
wmper, sobre teta, 1 20= 1,30 m Veneza, propriedade do autor
Robero Morhervei)
e
cartão, 0,71» 091 m. Nova York, Museum ot Modern Arr
Paris, tela 203» 245 propredado do auto!
Karel Appel Osmechos 1923, ua (97
Lanche Velia morto ca ti
é olco com colagem sobre (1943), guache
Prerre Aiechunsky After grunase (IGT),
30m
Paris G lena árel
F+
E
Cc
HansHartuag
! iy57 7? 120959, 10
oleção Federico Leumann
como intelectual “engajado” já não tem uma função integrada no dinamismo do sistema, ainda assim tem o dever de intervenção e julgamento, de denúncia e protesto. E o oposto do ce
“realismo socialista”, que enquadra o trabalho do artista na ação política do partido; mas, reivindicando para o artista-intelectual o dever e a responsabilidade de uma intervenção pessoal, Vedova revela o drama do isolamento do arusta, profeta que prega no deserto, na atual condição do mundo Por 1ss0, sua posição quanto à política é semelhante à dos pintores de ação americanos perante o sistema tecnológico-capiralista, embora o próprio senudo político de sua ação revele seu móvel histórico europeu. À esfera das poéticas do gesto pertence o movimento Cobra, que se forma em 1949 na
Holanda, com o propósito de atran as fileiras do expressionismo nórdico e iepropor sua atualidade (o nome Cobra resulta das primerras sílabas de Copenhague, Bruxelas e Amsterdã): dele participam CORNFI LE, APPFI, ALFCHINSKY, À. JORN. É a inversão programática do « purismo formal de De Stile a resposta quase insultante ao horror de Mondrian pelo “barroco moderno” Situando a arte num nível pré-linguístico e pré-técnico, a atividade do artista reduz-se ao gesto, a obra à matéria não-formada, mas anda assim animada e significante. À arte já não tem relação com a sociedade, com suas técnicas e linguagem; é regressão a parut do objeto,
existência cm estado puro e, como a existência pura é a unidade ou a indistinção de tudo o que existe, na matéria o artista realiza sua realidade humana. O problema da matéria havia surgido no exato momento em que a forma artística tinha deixado de ser representação da realidade. para apresentar-se como realidade autônoma, em
0,97m
542
CAPIULOSETE
ACRISE DA ARTE CUMO “CILNCLA | UROPEI A”
Will Baumeister Monsart (1954) rela Brescia, coleção Cavelkint
Jean Taurrier Cabeça de refômn' 1 1943 (1944) oleo sobre papel, O 24 » (1,22 m Vilão, coleção parcicular
si: com a colagem cubista e o Construtivismo russo. À análise da relação entre imagem c matéria foi aprofundada por W. BAUMEISTER, até à concepção do quadro como um campo de forças em equilíbrio ou tensão. No âmbito das poéticas existenciais ou do Informal, o problema é colocado em termos totalmente diversos: a matéria tem, sem dúvida, extensão e duração, mas ainda não tem, ou já deixou de ter, uma estrutura espacial e temporal. Sua disponibilidade é ilimitada: manipulando-a, o artista estabelece com ela uma relação de continuidade essencial, de identificação. É verdade que não tem, nem pode adquirir um significado definido, isto é, tornar-se objeto; todavia, justamente por ser e permanecer problemári ca, o artista nela identifica sua própria problemanicidade, a mcerteza quanto ao próprio scr, a condição de estranhamento em que é posto pela sociedade. J. FAUTRIER evitou qualquer relação com as pesquisas estruturais cubistas e pós-cubistas; prefere ligar-se às últimas fimbr ias da tradição impressionista, ao tardo Monet c a Bonnard. Constata que a matéria pictó rica não é apenas o meio com que se explicitam as sensações, e sim uma substância sensív el ou impressionável que absorve e apropriase da extensão e duração das sensações. Tudo o que se vive torna-se matéria: logo (como dissera Bergson), a matér ia é memória, algo nosso que se estranha a nós e
existe por conta própria. Um fragmento de realidade: e exatamente por isso realiza de modo trágico nossa existência fragmentária, o drama de nosso esta r-no-mundo e. no entanto, estranhados pelo mundo. Apenas a matéria que seapropria de nosso ser realiza nossa condição humana: a condição
de um “exist” que não é um “viver”, descri ta por Sartreem La nausée [A náusea] e que se traduz em desesperadora realidade nos anos da ocupação alemã, quando se nega ao homem o direito de ser homem. Com eferro , é este o momento mais alto da obra de Faurrier,
CAPÍTLLOSETE ACRISE DA ARTL COMO “CIÍNCIA LUROPEIA
com a série dos Otages: o que faz dele o intérprete de toda uma trágica situ ação européia, determinada pela opressão nazista.
J. DuBurrEr, que atua nos mesmos anos e no
mesmo ambiente, é um espírito agudo, crítico, aberto ao ponto do cinismo. Por que procurar a matéria além da linguagem, como se a linguagem fosse algo espiritu
al ou racional? Mesmo à linguagem é matéria, e, como tal, dúctil, plástica, impressionável, suscetív el de transformações e corrupções. Sua pesquisa, tal como a de Queneau, seu amigo lite rato, é inteiramente lingiúística; mas o objetivo é destrun o mito da imunidade, da espiritualidade, da incorruptibilidade da linguagem. A pintura não representa, não exprime, não com
unica; é existência em estado brav io, sua fenomenologia é caótica e inconclusiva, porém extrao rdinariamente variegada e viva. Nad a demonstra tanto a indistinção, a massa mesclada de imagem e matéria quanto a lingua gem falada: com todos os equívocos, os sentidos duplos, as distorções, os lapsos a que dá lugar. Para Dubuffer (em quem revi ve o grotesco géli
do e feroz de Jarry), a tolice cons iste em mitificar a arte, em forSá-la a se relacionar com as chamadas atividades superiores” ou mesmo subl imes, como se a civilização de que nos orgulhamos fosse dife
rente daquilo que, ao falar de povo s de outras culturas, condescendentemente cha mamos de “folclore”. Na perspectiva céti ca de Dubuffer, enfim, a tão celebrada cultura euro péia não passa de um fenômeno na ili mitada fenomenologia da antropologia cultural.
Jean Dubuffer
TexturologXX ra (195);
técnica mista sobre tela, 1x 0,8] m Paris, Galeria Claude Bernacil
543
544
“CYÊNCIA EUROPÉIA” CAPÍTULOS IE A CRISE DA ARTLCOMO
ível, quase liberta-se da matéria demasiado sens Na Itália, A BURRI transpõe O abismo, velhos rasgados, trada pintura tradicional. Utiliza sacos predisposta à én fase e à sublimação, alho aparenteias. Costura, solda, cola com um trab pos, papéis e madeiras queimadas, latar isolar nos dilaceramen-
imo. Com certeza, é possível mente grosseiro, na verdade habilidosíss formal ou do sofrimento e, além dela, um princípio tos e feridas da matéria uma iconografia suplício da matéria (a consegue Ser anulado pela in) úria e
estrutural (a consciência) que não ta de uma nova € ainda uma passagem para à descober carne). Mas esse sofrer da matéria é
profunda estrururalidade da forma. na apresentam compostas, identificadas uma É evidente que a consciência e a matéria se uico faz-se ainda mais tort inguur: 1sso é trágico. O sentido do trág
outra, e não podem se dist ação política de retiza no caráter insuportável da situ rante no espanhol À. TÁPILS, que O conc a da a fechada, persiana baixada. Recebe a marc
port seu país. Sua matéria é muro, cimento, dos conbem e consignam a crônica da existência existência como as paredes das prisões rece à liberdade faz a vida reé, liberdade; cada limite imposto denados. A vida deveria ser, e não
a-se facilria. Da fenomenologia da matéria pass gredir à existência, à indistunção da maté , dos resresíduos; a poética das marcas de SCIALOIA
mente à fenomenologia dos vestígios e
(o primeiro RAUSCHENBERG). tos mortais (MILLARES), dos dejetos é a arte da subliental para a escultura que, ab antiquo,
O tema da matéria é fundam
a forre procuram ainda sublimar à matéria num mação da matéria em imagem. Arp e Moo do das poéVIANI, interprerando o sentido profun ma originária e genética, O orgânico; À. porém, a ina passagem da matéria à luz. Predom , ticas clássicas, define a figura plástica na ria “nobre” da escultura, como se ntegração da maté tendência oposta, de degradação e desi : destrói fisicaIER. A. GIACOMPTTI, suíço, vai além vê especialmente na francesa G. RICH a aderir alperfil quase filiforme ao qual continuam
mente a estátua, reduzindo-a a um
da condição alienacomo pingos de cera. É esta poética guns poucos resíduos de bronze, rpiete adequado de suas es-
como Genet o inté da, do prisioneiro, que fez de um escritor > “ re: não éaes“crescimento” orgânico de Arp e Moo culturas. É o contrário da poética do a estátua. Nos escultores ingleses posterio az desf que ço espa o mas ço, espa o faz tárua que tua se processo de desfiguração se acelera: à está res a Moore (CHADWICH, ARMITAGE), O que emana a séti redor um halo de ambigiit ca, máti enig mal, anor a form a num converte comtodas as ambigusdades, das mais estranhas dade. O próprio espaço se torna o local de as RA. à estátua se torna uma lâmina de muit binações de matéria e imagem. Em CONSAG ço, espa do de lado a lado pela pressão bilateral folhas, comprimida, lacerada, perfurada e. e urbano, iguala-se e define-o imediatament um painel que, inserido no espaço natural espa no ria nto de artista, faz explodir a maté V. MASTROIANNI, de impetuoso temperame umentalidade dinâmica, co-
ção, realiza uma mon ço, configura-a no instante da deflagra ria pobre e o. LEONCILLO traz à escultura a maté mo no Monumento à Resistência de Cune gestipologias plásticas tradicionais, busca no a técnica “menor” da cerâmica, afasta-se das com r, segui a inuidade do ser que se manifestará to que plasma a matéria branda uma cont e luz. o cozimento, na unidade de massa, cor
as plásticas fora das matérias e técnicas traAtente-se: já não se trata de definir estrutur ou Gabo. Pretende-se questioa, como no Construtivismo de Pevsner
dicionais da escultur
nticos ab protegida dentre todas, os conteúdos semâ nar a técnica clássica mais ciosamente história, upicamena, como atte profundamente ligada à idéia da
antiquo ligados à escultur da estrururalidade cubista, já havia rebaixare “européia”. O espanhol GONZALES, partindo um metal desde a Antiguidade destinado a do à matéria da escultura, passando do bronze, ílio. Não se trata l destinado ao instrumento, 40 utens realizar a forma, para o ferro, um meta
CAPÍILLOSFIE ACRISE DA ARTE COMO
CIENCIA LUROPLIA
545
bp (tuasm( nos My
dad, j
Dado rd
e
Eis ni Ne
1a
RS E
Alberto Burn Ferro grande (1958): metal, 2+ 1,96m Houston, Muscum of Tine Arts
Alberto Gracomert A floresta (1950), bronze, 0,57 mdealtara Zurique Kunsthaus
Antoni Tapics. Relevo azul sobre costunho (1957) meto misto sobre cela, 1,30 = 0,81 m Lausanne, coleção Didishem
Germame Richier A grande tatevromaquea (1 953), bronze, | 13 m dealtura Caen, Masson de la Culture
546
CAPÍTULOS IF AL RISE DAARLECOMO
CIÊNCIA
Kenneth Armitage A fureste(1965) modelo: bronze 1,04 m de>ltura Galeria Marlborough
Julio Gonzales Dancarmma (1933), ferro, n.80 m dealtura Roma, Galler
Leoncillo
Falta vermelho (1961) Roma !
Galeria Sarger
hamu Noguchi Agro: (1944) mármore róseo da Georgia, 2,96 m de altura Nova York Menopolitan Museum
Umberro Mastrorinni Apariçãoasalada (1957)+ bronze Tucin., Galleria Crvica d'Arc Moderna
| ondres,
CAPFFL LO SETE
AURISE DA ARTE COMO
Alberco Via Carmasde Nel 1958», marmore branco, 1,50 m dealtura Roma, Galleria Naziona.e d Arte Moderna
«sm
Piciro Consagra Plenos suspensos 1966-7), alt sa-escuro 1,82 = 1 30m
Rama, propriedade do autor
de uma adequação da escultura à nova tecnologia industrial: subitamente, a poética da matéria se define, na escultura, como poética do resto ou do refugo, portanto o oposto do “pro-
duto”, Partindo precisamente de Gonzales, o americano DAVID SMITH desenvolve, não sem
implicações surrealistas e construtivistas, O tema plástico da máquina O ponto de máxima lucidez é atingido por E. COLLA: O fragmento mecânico quebr ado ou abandonado redefinese como objeto, justamente por ter se subtraído à lógica funcio nal da máquina. Não, portanto, porque represente a “civilização da máquina”, mas por já não estar em relação com ela. Os restos que a americana L. NEVELSON ordena e fecha em armári os, muutas vezes recobrindo com vernizes brancos ou negros, são pedaços de madeira tornea da, elementos de um mobiliário fora de uso, produzidos por um artesanato desaparecido . É transparente a alusão ao “sótão” da memória, ao “armário” do inconsciente, mas també m a recusa da escultura em se adequar às técnicas industriais, e sua regressão, pelo contrário, à técnica do artesão, do marceneiro. CÉSAR se interessa, como escultor, pelo momento negati vo do ciclo industrial: aquele em que os refugos são comprimudos em blocos, para serem enviados à fundição, Isto é, o momento em que a indústria encerra seu ciclo, destrói seus produtos, reconduz esses produtos ao estado inicial de matéria bruta; mais tarde, passará a estuda r os imprevistos do plásrico em expansão. CHAMBERI AIN faz esculturas com as ca rcaças dos automóveis trombados: capta o clarão das latarias coloridas que se contorcem no « hoque, fixa o instante do incidente, do acontecimento. KEMENY, húngaro, multiplica, iepete, alterna séries de elementos me-
cânicos para, da quantidade, deduzir à qualidade da matéria. J.TiNGUEIY reconstrói a parur
de refugos máquinas fantasmagoricas e amiúde grotescas, às quais confere um movimento inútil, vagamente ameaçador. As chamadas poéticas do signo nao constituem uma terceira via. ao lado das poéticas do gesto e da matéria: pôem-se além da idenuficação entre arte e existên cia. O problema do sig-
CtENI
4 EU RUPÉL
548
CAPITULOS TE
AQRISE DAAR!=CONO
CENC
ATURÓPIIA
Jean Vinguely Homenagent a Nove York Obra de arte que se anroconstrar ese antodestros 1960)" piano vertica
fragmentos de maquinas balão meteorológica pedaços de bicicketas etu Jaem Nova York: Museum of Modern Ari
Jokn Chamberlam
Brenapuedes (1961)
Nova York, Galeria Dwan
Exore Colla Grande esp: 1I8m dealra Roma Galler: Naziona e d Arte Moderna
a
David South Paragem sobre o rro Hudsosr. ao 1262 187=0,:5m Nova York Whitney Museunr of American Art
CAVÍILCIOSETL
ACkISL
DAARTE
COMO
CIÊNCIA
no foi colocado logo após a guerra por WOLS, que, por sua vez, herdara-o indiretamente de
Klee. Seja ou traço, ou linha ou cor, desde que não seja dado como constitutivo de formas ou Imagens, o signo não representa nem exprime, apenas manifesta. Em Wols, é uma ligação
sensível e irritável entre dois estados do ser igualmente plenos de angústia; e não se trata sequer da interioridade do espírito e da exterioridade das coisas, mas apenas do que está den-
tro e do que está fora do invólucro físico. Entre o dentro e o fora há continuidade de essên-
cia, porém diferença de grandezas e disparidade de forças, uma desarmonia e um mal-estar,
em suma, que têm nos signos, como terminais nervosos excitados, seus sinais de alarme. Nos mesmos anos, Pollock também sentia a necessidade de uma continuidade cíclica e rítmica entre seu sei e o ser do mundo, atingindo-a apenas dramaticamente. Todavia, em Wols os signos são sintomas de arritmia, de sofrimento; dir-se-ia que faz a pintura em sua própria pele, como uma tatuagem, para sensibilizar o ser em contato com o mundo. Um contato que provoca uma dor quase insuportável, mas que é sempre vida. B. SCHUL!ZE, captando o sen-
udo quase fisiológico do signo de Wols, dá-lhe a consistência física de um fragmento de reEA
AAZASODS CE Emir t ams
meto eram
Wols. Ao luar, deraie guache, 0,:340,24 n Roma. Galeria Ta Medusa
cido orgânico. Entende-se: exatamente por não representar, significando apenas o estiramento e o prolongamento da existência da pessoa na realidade da qual não pode mais distinguir-se claramente, o signo tende a se infiltrar na matéria, como um condutor de corrente que lhe transmite eletricidade. Isso é visto, como em Wols, nos outros artistas alemães que,
após a guerra, vinculam-se novamente a Kandinsky e, em especial, a Klee: como C, BUCHHEISTER e J. BISSIER E é significativo que a pesquisa sígnico-material, anulando qualquer limite ou corte na continuidade espácio-remporal, associe-se à necessidade de sair do âmbito da cultura européia, intelectualista e hustoricista: Baumeister se inspira na arte asteca e peruana, Bisster se converte às poéticas do Extremo Oriente do Zen, GOETZ, com uma im-
prevista retomada romântica, funde a poética do signo com a poética do gesto que desperta
e domina as forças do ser — a mesma onda rítmica percorre e unifica os movimentos do mtcroespaço fisiológico e do macroespaço cósmico G. HogHME var além: tudo é signo, o universo é um universo de signos; o quadro não passa de um painel provisório, sobre o qual pousam e fazem-se visíveis os signos vagucantes da totalidade. Para SONDERBORG, O signo é escrita, transcrição diagiamática do movimento da existência. GAUL inverte seu sentido e exterroriza-o, traduz o signo numa sinalização vistosa: não vê por que deva preservar para o sig-
PI
ROPÉ IS”
550
CAPÍLULONFIR
Cesar
A CRISE DA ARTE COMO “CIÊNCIA FUROPÉIA
Compressão (1960); elementos de
Louise Neveison
Datem 5 wedding marror(1955),
carrocerta, 0,20 < 0,63 = |,50m. Pares,
madeira, Nova York, coleção
Musee National d'Art Moderne
Rufus Foshee
Julus Bissier, Quadro do3 de feverervo de
1959(1959), tela, 0,19 » 0,22 m Brescia, coleção Cavelhny
Gerhard Hoehme Borkenbilal (1955)
oleo e colager, 0,70 = 0,50 m Coleção partrcular
Ls ts
TE
SA CRIAE
DA ASTECOMO
Camille Brycr Deserro(.962) propriedade do autor
Bernird Schul se Desenho 122.641 t sonte papel emolautado, 1 65x Im Brescia caleçao Cavel
96T)
Das
euade E
no um significado íntimo ou profundo, num mundo que fala por signos conde a sinalização está, precisamente, tomando o lugar da linguagem. Na França, o signo conserva um sentido linguístico. em MICHAUX. que também é poeta, O signo é escrita rítmica, visualização do andamento métrico da poesia; em DuUBUITIT, é a tiama, O tecido ciculatónio da matéria linguística; em BRYEN, R. BissirRt é, mais tarde,
SERPAN, é livre anotação cromática. À noção de signo emerge. na arte curopéia. no cxato momento em que se esboçam as pesquisas semiológicas e estruturalistas em outras disciplinas, especialmente na glotologia, ou seja, quando cada disciplina. para desenvolver sua metodologia, sente a necessidade de
analisar e elucidar o signyficado de seus signos. Na arte, a pesquisa sígnica também é o início
da exigência de requestionar a razão e a função institucional da própria arte O signo é uma força que atua num campo, e cujos limites são os limites de sua influéncia. Muitos signos compõem um sistema; O sistema é um conjunto de signos em interação A relação de um único signo com seu campo também constitu um sistema Quando FONTANA [az do quadro um campo de cor, em seguida fendendo-o com um corte níudo. ele demonstra que o signo (o corre) é incompatível com uma delimitação do espaço é a destru-
ção simbólica da pintura com sua ambigiudade de espaço duplo, o fora c o dentro, o alem e o aquém
do
quadro
Há,
porém,
A
um
aspecto prático
da
maior
importância:
Fontara
nao se
contenta em sraica O signo, elco opera, corta realmente a tela com um talhe do comprimen£
“CIENCIA
E]
ROTITA”
ms
A
CAPÍTULO SITE
ALRISI DA VRITLOMO
Henri Michaus tualeria Nu
CIÊNCIA EUROPÉIA
Osdo()960)
Milão
Roger Bissiere A floressa (1955), cela Paris MuséeN atom! d Art Moderne
Lucio Fontana. Concerto espactat. espera (1965) têmpera sobre tela. Milão.
a
PA ae! “a
FEV
A
Giuseppe Capogrossi. Superfície 8(1951) Milão Galera 1 Navigho
coleção É ontana.
to certo no ponto certo. Com esse ato, confere ao campo uma dimensão tão precisa quanto a do espaço. Ora, as noções de signo e campo são indispensáveis para explicar a fenomenolo-
gia da produção industrial: um produto industrial não é, a rigor, um objeto porque não especifica um sujeito no frudor, é simplesmente uma unidade numa série à qual corresponde uma série de fiuidores. É, no entanto, um signo, precisamente o signo de um certo desenvolvimento tecnológico: e o campo é a área em que o produto sc difunde, marcando-a com o signo desse desenvolvimento. É a essa exata situação que se contrapõe o gesto-signo de Fontana: um unicum que apenas o artista pode produzir, irredutível a séries. Como esse gesto-
signo é o único que dá à vaguidade do campo a determinação de um espaço, daí decorre que, sem a presença colaterale independente do artista, a produção industrial não tem saída cognitiva. Na época do “progresso” tecnológico, Fontana reivindica para o artista a prerrogativa da invenção.
Carocross! aborda de maneira totalmente diversa o mesmo problema da repetição serial. Sua hipótese é que, na ordem estética, a serialidade é inteiramente diferente do que na ordem econômica e tecnológica. Seu signo tem uma estrutura constante com valências múl-
tiplas; é como a “articulação” universal das estruturas metálicas de Wachsmann, contendo em st a virrualidade de infinitas composições. É verdade que se repete de maneira serial, mas o que muda é o ritmo da serialidade, e isso resulta, naturalmente, da qualidade originária do signo. Os sistemas sígnicos ou Os campos de sua pintura são, de fato, sempre diferentes: em
outros termos, o que realiza com a pintura, e que não poderia se realizar de outro modo, é uma serialidade qualitativa, e não tanto quantitativa. Surge no mesmo âmbito de interesses, a partir da mesma exigência de diferenciar e justificar a operação arrística perante a operação
tecnológica industrial, o problema do “contínuo” e da “variação” ou “inutação” no contínuo:
isolando-se precisamente na mutação a qualidade permitida pela serialidade artística e excluida pela serialidade dos produtos. Tal é, em pintura, a pesquisa de P DORAZIO; em escultura, a de À. POMODORO, em cujas esferase colunas (formas simbolizando nitidamente a con-
unuidade e a globalidade) apresentam-se diversas séries de signos com mutações de frequências e intensidades, até mesmo no interior da mesma série. O critério básico da mutação sígnica e serial (tanto nesta quanto em pesquisas afins, como, por exemplo, a do alemão
“
E À
SC RISE DA ARTE COMO CLIÍNCIA EUROPÉIA
u
CAM PULOSLTE
554
CAPÍTULOST TT ACRISEDA ARTE COMO “CIÊNCIA FUROPÉIA '
Piero Dorazio Seus Parales (1963), tela, 1x 0,8]m Roma Galeria
Arnaldo Pomodoro Gerarório premeiro seccronel (1966), bronze dourado 0,80 m de diâmetro
Marlborough
Boston, coleção particular
Piero Marzonr
Achronte (1962), pão
Propriedade do autor
CAPÍILLOSEFEE
ACRISEDA 4RTECOMO CIÊNCIA EUROPEIA”
SCHREIBER) é o limite de tolerância psicológica, seja do artista que opera com os signos, seja do fruidor com quem o artista assim estabelece uma relação direta, de coexistência; é exata-
mente este limite da repetibilidade que determina as diferentes acentuações dos signos na mesma série e a mutação de “sentido” na série seguinte.
Como se vê, não mais se pensa sequer numa função, mas apenas no comportamento do artista no interior da icalidade social. Pode parecer uma grave limitação; na verdade, reflete a recusa de considerar a sociedade somente em sua organização com vistas à produção industrial, a vontade de participar de sua existência global, e mesmo de suas contradições e
frustrações. Este salto foi dado pelo francês Y. KLEIN, com suas sucessivas intervenções espetaculares, que são indubitavelmente “operações estéticas”, porém não mais “obras de arte” identificáveis num objeto produzido. Quando Klein enche a superfície da tela com uma única cor, sem a menor variação, certamente está propondo modificar a relação entre o fruidor
e o ambiente, mas não agindo sobre o ambiente (“combinando-o” com certa cor, como “e
Rothko e, em outro sentido, Fontana), e sim sobre o fruidor, levando-o a “sentir” o ambien>
te segundo uma determinada cor, isto é, a “viver”
»
em azul, rosa ou dourado. Por isso, acen-
tua o aspecto espetacular e ritual de seu gesto autoritário, recorrendo, poi exemplo, a “pin-
céis vivos” , ou seja, modelos nus molhados de tinta, que estampam sua marca na parede. É evidente
que já não está em jogo uma récnica nem, a rigor, um “estilo”: a operação consiste >
em atos de escolha, cujos motivos dizem respeito apenas ao artista, mas cujos efeitos agem sobre a sociedade inteira.
Ligado a Klein esteve o italiano PR. MANZONI, que chega a posições ainda mais drásticas, associadas a precedentes dadaístas, especialmente de Duchamp. Se desde o início, empre-
gando objetos de uso comum (pezinhos, chumaços de algodão ctc.), mas definindo-os pela cor, ele coloca a atividade do artista como atribuição de significado, logo consegue eliminar qualquer procedimento técnico e coloca a arte como puro ato: não apenas “assinando” e autenticando coisas e até pessoas como arre, como apresentando caixas hermeticamente fechadas que contêm uma linha traçada num rolo de papel, e mesmo sopros e fezes do artista.
Trata-se claramente de atos desmistificadores em relação não só à arte, mas a tudo a que a sociedade atribui valor; neles, porém, está implícita a idéia de que a experiência estérica diz respeito apenas ao artssta que a realiza, e que o fruidor só pode adquiri-la “em caixa fechada”, sem escolha nem julgamento, como, aliás, faz com os produtos industriais.
É fácil entender como a eliminação de qualquer técnica organizada e a redução da atividade do artista a intervenções que revelem sua presença, talvez incongruente, mas ineliminável, cede espaço a uma quantidade de fenômenos heterogêncos, todavia com intenções
iguais. Foram coordenados num movimento de longo alcance pelo crítico francês P. Restany, a quem cabe o mérito de ter interpretado sua função de crítico militante como participação direta e pessoal na operação estética. Essa união é importante: se o artista já não é o detentor de uma técnica, se já não produz objetos a serem “valorizados”, não pode existir uma crítica
julgadora, a posteriori. De outro lado, o puro ato do artista seria incomunicável e não teria
duração se não fosse verbalizado pelo crítico: fruidor primeiro e privilegiado, que oferece ao público o modelo de uma fruição eficaz, mas também redator de um “falado” que faz parte integrante da operação estética. O movimento que, em 1960, toma o nome de Nouveau Réalisme não compromete nem limita a liberdade de intervenção de seus membros. “Estes novos realistas consideram o mundo como um quadro, a grande obra fundamental da qual se tomam certos fragmentos dota-
dos de significado universal. Mostram-nos o real nos diversos aspecros de sua totalidade expressiva. O que se manifesta pelo tratamento dessas imagens objetivas é a realidade roda, o
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CAPÍTULO SETE AC RISE DA ARTL COMO CIÊNC
LA EUROPEIA”
Yves Klem [KB 184(1957) acrílico é areia sobre tela. Turim coleção particular
Christo Mesa com abjero empacosada (1964); 1,50 x 0.37 m. Milão,
Galeria Apollinarre
Daniel Spocrrt Tubarg HIST) carxa-armadiha, 0,35 7 0 3340 60m Milão Galera Sulmy azz
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XX, tecnológica, industrial, pubem comum da atividade dos homens, a Natureza no século
s: os cartazes publicitáblicirária, urbana” (Restany). Empregam-se os materiais mais variado as luzes de néon e ros, as imagens cinematográficas e as fotografias das revistas ilustradas, O evento estético deve se dai no fluorescentes, as tintas acrílicas, plásticos de todos os upos.
significativos contexto da fenomenologia do mundo moderno, iluminar certos aspectos o de altenão se seus: mas qual pode ser o sentido desse evento imprevisto e não solicitado, o? rar uma ordem pré-consutuída, de determinar uma ruptura na rotina do consum é a técntrecusa se A recusa da técnica, naturalmente, também é uma técnica: o que za sua atica organizada, projetual, istO é, a técnica com que a sociedade industrial organi
l, que consiste em tomar € vidade; e o que a ela se contrapõe é uma técnica não-projetua
a técnica uuilizar coisas ou imagens que fazem parte do contexto social, do ambiente. E
do que Lévi-Strauss, do ponto de vista da antropologia cultural, chama de bricolage: a
pré-históprimitivo que vive da coleta É o modo de comportamento próprio das épocas o de acabad projeto ricas; é 1sO justamente porque a humanidade ainda não formulou um paraseu desenvolvimento O processo pode ser estudado especialmente na obra, quase digmárica, de ARMAN.
Primeiro momento:
não o conhecimento
(isto é, a definição de
cem ao contexum objeto relativo a um sujeito), mas a “apropriação” de coisas que perten iva do gesto, instint to fenomênico do mundo moderno. Segundo momento: a repetição
Mimmo Rotella. U asjairo na norte É 136m Milão 1,50
(1962)
5 Presley
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ARTE
COMO
o acúmulo da presa. Este momento pode rer uma variante: a coisa apanhada vem furiosa-
mente despedaçada, É o oposto do acúmulo, do «ssemblage; poderiamos dizer desmembramento: dissemblage Restany observa com propriedade que “o acúmulo de x objetos da
mesma natureza