Uma Conspiração Permanente Contra o Mundo: Reflexões sobre Guy Debord e os situacionistas


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Uma Conspiração Permanente Contra o Mundo: Reflexões sobre Guy Debord e os situacionistas

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_III_ TERÃO OS SITUACIONISTAS SIDO A ÚLTIMA VANGUARDA?

Hoje em dia está na moda apresentar os situacionistas como

Sabe-se que Guy Debord nunca almejou ser um artista no

a “última vanguarda artística”. Afirmação absurda (a menos que

sentido habitual do termo e menos ainda um teórico da estética. O

ela se aplique a interesses banais) que pretende estabelecer uma

que ele visava era a superação da arte e sua realização na vida. Ele

ligação entre os situacionistas e outras pretensas vanguardas dos

a enunciou como programa social e a executou, em larga medida,

anos 1960, tais como o Fluxus ou o Happening. Na verdade estes

na sua própria vida. Mesmo a Internacional situacionista e suas

foram ignorados, por vezes desprezados, pelos situacionistas.

ações, incluindo Maio de 1968, deviam ser uma espécie de obra de

Outros acreditam poder passar a bandeira de vanguarda aos

arte. Nesse caso, Debord concluiu efetivamente o ciclo das

movimentos artísticos atuais ou poder vender, na qualidade de

vanguardas iniciado na segunda metade do século XIX. Se

novidades sempre interessantes, os elementos singulares da

autoliquidar para dissolver-se na vida sempre foi a pretensão das

produção situacionista dos primeiros anos, como o détournement,

vanguardas. Já Kant e Hegel afirmaram que a arte tinha por missão

a deriva ou a psicogeografia, agora arrancados do seu contexto.

operar a mediação entre o sentido e a razão, a forma e o conteúdo,

Por outro lado, caracterizar os situacionistas como a “última

a natureza e o homem, o indivíduo e a sociedade. À arte foi suposto

vanguarda” contêm uma verdade involuntária. Sua história, ou

poder reconciliar esses aspectos e juntar o que estava separado.

pelo menos a de Guy Debord, levou à conclusão lógica a trajetória

Para Hegel a arte é uma alienação do Espírito, destinada a retornar

histórica das vanguardas. Ela coloca um ponto final e mostra ao

no final à unidade superior que é o próprio Espírito. Certamente os

mesmo tempo a impossibilidade de uma vanguarda na atualidade.

artistas modernos não tiveram a intenção de seguir os preceitos

Ela faz compreender que a vanguarda não é uma categoria supra-

desses filósofos ou de outros pensadores. No entanto, quando a arte

histórica, eterna, não mais que a própria arte, mas que ela pertence

refletia sobre sua própria função ela a formulava geralmente como

a um determinado momento do desenvolvimento da sociedade

uma tentativa de se unir à vida e anular a separação das esferas que

capitalista.

se acentuava cada vez mais no seio da sociedade capitalista. A arte

era destinada a representar a subjetividade pura, a livre criação e o

Este fato não é desmentido pelo verdadeiro culto da arte ao qual se

sujeito dominando seu mundo. Porém, era inevitável entrar em

abandonavam numerosas de suas correntes, às vezes com acento

conflito com o que parecia a real negação da subjetividade operada

quase religioso. A hipervalorização da arte decorre do fato das

pela lógica da produção moderna.

vanguardas estarem conscientes da pobreza que reveste a vida real

Esta abordagem reúne as formas mais diversas da arte

sob o capitalismo. Ela visava assim, ao menos inicialmente,

moderna. A aspiração de reconduzir a arte na vida não se acha

atenuar a realidade com a ajuda de valores artísticos. Isso é uma

somente no surrealismo e nas outras correntes que se pode chamar

aspiração tipicamente moderna. Tal objetivo não é próprio nem da

de românticas, mesmo se lá elas são mais visíveis. Encontramos

arte das sociedades pré-capitalistas, nem da arte acadêmica.

esse desejo igualmente em correntes opostas, entre elas o

Chegar ao seu próprio desaparecimento é o que resta, portanto,

construtivismo russo, assim como em todas as correntes do

inscrever, como gostam de dizer hoje, no “código genético” das

funcionalismo: em Mondrian, na Bauhaus, etc. Todas essas

vanguardas.

correntes queriam terminar com o estatuto separado da arte, para

Os surrealistas foram os artistas que proclamaram de

que ela mudasse a realidade da vida capitalista, submissa

maneira mais consciente essa necessidade de autosuperação da

unicamente ao critério da rentabilidade econômica – mesmo que

arte. Sabe-se, no entanto, que eles aceitaram muito rapidamente

alguns imaginassem essa união entre arte e vida como uma

que sua revolta se tornasse objeto de museu e recaísse novamente

revolução social inspirada pela poesia, enquanto outros a

na “arte”. Os situacionistas, tomando explicitamente a aspiração

concebiam como aplicação dos princípios artísticos à produção em

inicial dos surrealistas, tentaram transpor definitivamente o

série de arranha-céus, toalhas de mão e xícaras de café. Disso resta

Rubicão: eles recusaram o status de artistas e procuraram fomentar

que tais vanguardas tenham como denominador comum a vontade

uma revolução social que estivesse à altura das promessas contidas

de não fazer mais somente arte ou de não mais fazer da arte o todo.

na arte moderna.

Para motivar a necessidade de ultrapassar a arte, Debord

pareça paradoxal, é graças a uma citação de Bertolt Brecht que

recorreu (ao contrário das teorias vanguardistas anteriores) à crítica

Adorno conseguiu explicar essa idéia: “O que torna a situação tão

marxista do fetichismo da mercadoria. Como se sabe, Debord

complicada é o fato de que a simples ‚réplica da realidade‘ nos

chamou de “espetáculo” o estado contemporâneo do fetichismo da

informa menos do que nunca sobre essa realidade. Uma fotografia

mercadoria. Contra todas as recuperações pós-modernas e

das fábricas Krupp ou AEG não diz quase nada sobre essas

estetizantes desse conceito, convém sublinhar que, para Debord, o

instituições. A realidade autêntica se tornou funcional. A

espetáculo é uma forma da mercadoria, no sentido de Marx. No

reificação das relações humanas, por exemplo, a fábrica, não mais

espetáculo, a mercadoria se apresenta como algo dado e leva o

se manifesta”. [i] Para Adorno, o fetichismo (a subordinação do

espectador a uma permanente contemplação passiva. Trata-se de

indivíduo às coisas) constitui um fenômeno real. A arte deve

superar (aufheben no sentido hegeliano) a arte porque ela também

exprimir essa dominação exercida pelas forças abstratas, a perda

é uma forma de espetáculo que se contempla passivamente. Ela é,

de sentido, a destruição da linguagem. Mas ela deve fazê-lo

pois, uma forma de fetichismo. Mas à medida que a arte se torna

utilizando-se de todos os meios artísticos existentes. Somente

um projeto que visa a transformação consciente da vida, ela assume

assim a arte estará à altura das forças produtivas atuais e poderá

uma função claramente “desfetichizante”.

deixar entrever um outro uso possível. É nisso que reside, segundo

No século XX, duas outras estéticas importantes de inspiração

marxista

atribuíram

à

arte

uma

Adorno, o lado emancipatório da arte moderna. Este indica a

função

possibilidade de uma relação diferente, não repressiva, entre o

“desfetichizante”: a de Theodor W. Adorno e a do último Lukács.

sujeito e a natureza, e subtrai a obra de arte do imperativo

Em Adorno, é, sobretudo na arte abstrata que aparece tal função.

categórico da sociedade mercantil segundo o qual todas as coisas

A arte deve abandonar a crença ilusória segundo a qual sob o

devem ser “úteis” e participar da troca. De tal modo, a arte

capitalismo o homem seria ainda um sujeito. Mesmo que isso

moderna, por ser abstrata e aparentemente distante da experiência

vivida é, na verdade, segundo Adorno, sempre ligada ao

expressionista ou surrealista (em menor medida), são, aos olhos de

desenvolvimento da realidade.

Lukács, o auge da fetichização (mesmo tendo mudado de opinião

Para Lukács, ao contrário, a arte que se pretende “desfetichizante” – deve ser “realista”, e não abstrata, porque ela

quanto à obra de Kafka). As posições estéticas diferentes de Debord, Adorno e

tem por tarefa recolocar o homem no centro da sociedade,

Lukács

estão

estreitamente

ligadas

às

suas

diferentes

enquanto a aparência fetichista o faz acreditar que ele já não se

interpretações do conceito de fetichismo. Em Lukács, o fetichismo

encontra mais nesse centro. Sua concepção de fetichismo é, deste

é somente uma forma de falsa consciência, uma falsa representação

modo, diametralmente oposta a de Adorno: o fetichismo, no

de mundo que é preciso substituir por uma visão justa, que ele

sentido de Lukács, atribui falsamente as ações dos indivíduos e dos

denomina “realista”. Para Adorno e para Debord, as relações

grupos sociais às forças impessoais, subtraídas do controle e da

humanas são realmente falsificadas. O fetichismo transformou a

responsabilidade humana. Por conseguinte, a arte, por ser

natureza da vida social. É preciso denunciar o escândalo em lugar

“desfetichizante”, deve ser também “antropomorfisante”. Ela deve

de ver nele uma simples mistificação.

mostrar que, sob a superfície reificada, é o ser humano que age.

Às diferentes interpretações do fetichismo correspondem

Como se sabe, o grande exemplo citado por Lukács é Balzac. A

avaliações diferentes do período do pós-guerra. Segundo Adorno,

arte tem igualmente por missão revelar que a falta de sentido, o

a intervenção do Estado e dos grandes monopólios a partir dos anos

isolamento e o absurdo aos quais o homem moderno vê-se exposto

30 bloqueou a dinâmica interna do capitalismo: as forças

não constituem a realidade mais profunda, mas uma aparência

produtivas não se encontram mais em contradição com as relações

fetichista atrás da qual se escondem os interesses de classe. Os

de produção. Para a teoria crítica de Adorno, a situação política,

mesmos autores que, para Adorno, representam a verdadeira crítica

econômica e social está completamente congelada e só resta a arte

do fetichismo como Beckett ou Kafka, mas também as pinturas

como única liberdade e única esperança. Para os situacionistas, o

capitalismo do pós-guerra conhece uma evolução rápida, e o

sujeito externo poderá colocar fim. Esta intervenção parece

momento do fim da sociedade de classes parece aproximar-se,

possível a Lukács e Debord (mesmo que seja de maneira

porque o novo proletariado vai parar de suportar seu papel de

fundamentalmente diferente), enquanto Adorno praticamente

espectador passivo. Ele colocará um fim à arte, assim como a todas

abandona toda esperança de vê-la colocada em marcha. Eis porque

as outras alienações. Para Lukács, enfim, a sociedade burguesa

a arte moderna que Adorno faz o elogio corre o risco de

representa uma etapa importante no desenvolvimento da

simplesmente reproduzir a vida e de embelezá-la – é exatamente

humanidade, embora esteja em declínio e destinada a sucumbir na

isso que os situacionistas reprovavam nas tendências artísticas de

concorrência com os países socialistas.

seu tempo. Adorno cita sempre Beckett e Kafka como autores

Nenhuma dessas concepções parece justa, porque nenhuma

exemplares, porque eles denunciam uma situação insuportável –

tem em conta a dinâmica interna que conduz o capitalismo à sua

mas hoje esses autores aparecem mais como a consciência infeliz

crise: essencialmente, a concentração sempre mais aguda entre a

e impotente de uma miséria presente. Assim, mesmo a arte

forma abstrata (o valor das mercadorias) e o conteúdo concreto. O

negativa pode tornar-se um ornamento e um monumento erguido à

modo de produção capitalista se baseia na exploração do trabalho

gloria da resignação.

vivo e, ao mesmo tempo, ele deve fazer todo possível para reduzir

Por outro lado (e contrariamente às esperanças de Debord),

este trabalho vivo utilizando as máquinas: não há solução para uma

a evolução social não ocorreu no sentido de uma superação da arte.

tal contradição que não deixou de crescer durante todo o século

O espetáculo mostrou que era capaz de resistir aos assaltos (como

XX. No entanto, nem para Adorno, nem para Lukács, nem para

em 1968) e conseguiu em seguida ascender às gerações novas que

Debord, o capitalismo está condenado por sua própria dinâmica

nunca conheceram outra coisa a não ser o próprio espetáculo.

interna a entrar um dia em uma crise profunda. Eles vêem no

Durante os anos 1950 e 1960 (os anos de agitação situacionista), a

capitalismo um sistema estável, ao qual só a intervenção de um

arte, seja ela moderna ou clássica, parecia uma coisa bem modesta

em relação à possibilidade de realizar seu conteúdo na vida

dar uma expressão mais elaborada aos conteúdos derivados das

cotidiana. Mas o espetáculo que terminou por triunfar está ainda

sociedades que o antecederam. A modificação de todas as

muito aquém do nível da arte tradicional. Em suas obras tardias,

condições de vida que ele produziu e a multiplicação dos meios

Debord começa a apreciar a arte do passado: ele lamenta que não

técnicos aumentaram as possibilidades de expressão, mas os

haja mais um Tucídides ou um Donatello, lamenta a destruição de

conteúdos a exprimir (a riqueza da experiência humana) só

pinturas e construções antigas e revela seu gosto pela métrica e

poderiam sair do mundo não capitalista. A arte então conheceu um

pelos autores clássicos. Não se deve ver nesse interesse pela

desenvolvimento intenso, tanto que o novo princípio capitalista

“grande” cultura uma simples evolução pessoal de Debord e menos

estava ainda em conflito com os resíduos das épocas anteriores. A

ainda uma retratação de suas opiniões anteriores. Ele apenas se dá

arte do século XIX vivia uma tensão entre a tendência social à

conta da inutilidade de se prosseguir a destruição artística dos

abstração e os indivíduos que ainda não estavam completamente

valores herdados.

submissos. Logo depois que o capitalismo começou a “coincidir

O capitalismo é uma “sociedade sem qualidades”, uma

com seu conceito”, para utilizar uma expressão hegeliana, o

sociedade que não pode ter uma cultura própria. Seu fundamento é

significativo desenvolvimento dos meios tornou-se tautológico,

o valor, a simples quantidade de trabalho abstrato representada

um fim em si mesmo, exatamente como a produção do valor. O

numa mercadoria, sem que se leve em conta sua utilidade ou sua

capitalismo realizou o fim da arte, da mesma maneira que ele tinha,

beleza. O capitalismo tem por único objetivo acumular

em outra ocasião, criado a arte como esfera separada.

tautologicamente o trabalho morto, porque ele é estruturalmente

Pode ser uma função explicitamente crítica da arte ela

indiferente a todo conteúdo. Daí a impossibilidade de uma cultura

mesma não ser mais necessária hoje. A cada dia nós

propriamente capitalista. O capitalismo pode somente (e mesmo

testemunhamos como a sociedade capitalista entra em colapso por

isso apenas em sua fase inicial, fundamentalmente no século XIX)

si própria. No presente, é o problema das alternativas que é

colocado: o que virá quando o capitalismo entrar em colapso,

ignora), um homem que não segue seu pensamento racional e

deixando atrás dele um amontoado de reúnas? Trata-se de salvar

lógico, mas obedece a impulsos inconscientes, indiferente à moral

uma base para os desenvolvimentos futuros, além do niilismo da

e separado dos laços sociais, um homem que percebe o mundo

sociedade atual, para que o capitalismo não arraste a sociedade

como que sob o efeito de uma droga e vagueia ao acaso: pode-se

inteira para o seu túmulo. Então, vê-se a essência do capitalismo

compreender que por volta de 1925 uma tal ideia tenha podido

não somente na opressão e na exploração econômica, mas também

fascinar aqueles que não suportavam mais a monotonia da vida

no empobrecimento e na destruição sócio-cultural, demonstrando

burguesa. Mas esse indivíduo que os surrealistas chamavam

que o papel da arte moderna parece independente de suas

“desejantes” tornou-se realidade sob a forma do indivíduo

intenções, sendo ele nitidamente menos crítico do que se pensa

contemporâneo e de uma maneira tão cruel quanto irônica. Para se

geralmente.

impor na sua integridade, a sociedade mercantil capitalista tinha

De fato, o aspecto iconoclasta da arte moderna se revela

necessidade de um indivíduo inteiramente “novo”, e esse homem

ambíguo. O processo de decomposição das formas artísticas,

“novo” se encontrava ao mesmo tempo no projeto declarado de

começado pelas vanguardas, acompanhou o triunfo do capitalismo

numerosas vanguardas artísticas.

sobre os resíduos das épocas anteriores. Aquelas vanguardas que

Particularmente significativo dessa visão é o culto que os

se queriam revolucionárias acreditavam que a burguesia

surrealistas, diferentes vanguardas literárias e às vezes os próprios

conservava seu poder no nível das “superestruturas”, dos

situacionistas, devotaram ao Marquês de Sade, culto que nos dias

comportamentos, dos valores e da vida cotidiana. A arte se

atuais tornou-se banal. O repúdio de todos os valores morais

propunha então mudar as estruturas e criar novas. Mas assim ela

tradicionais tão fundamentais como a proibição de matar, foi

somente puxou para baixo o que já ruía, como diria Nietzsche. Um

considerado um ato de libertação permanente para alcançar a

homem em ruptura total com o passado e com as tradições (que ele

realização de todos os desejos. Na verdade, como mostraram

Horkheimer e Adorno na Dialética do Esclarecimento, o mundo

comum da arte moderna e da técnica? Por volta de 1914, o poeta

descrito por Sade constitui uma antecipação do sistema industrial

chileno Vicente Huidobro, fundador do “criacionismo”, proclamou

e do sujeito moderno da concorrência total, cuja única regra é o

que a poesia não queria mais servir à natureza, mas criar árvores

direito do mais forte e que está disposto a tudo em troca de prazeres

mais belas do que as árvores naturais. Nesta época, tal programa

mecânicos e repetitivos. O caso do Marquês de Sade mostra

poderia parecer muito poético. Hoje, ele seria visto como uma

claramente que a libertação total de um sujeito fetichizado é apenas

antecipação da manipulação genética.

a libertação total do sujeito capitalista.

Quase sempre, foi dito que a poesia moderna, e a cultura

Como se sabe, a arte e a literatura moderna não estão longe

moderna em geral, compreendidas de acordo com a intenção de

da tarefa que tradicionalmente lhes foi atribuída: a de representar

seus criadores, eram um protesto contra o progresso “sem alma”

ou de imitar a natureza. Ao mesmo tempo, as ciências não estão

(interpretação

limitadas a imitar a natureza e começaram massivamente a

(interpretação de esquerda). Nos dois casos, a poesia e a cultura

“reinventá-la”. O destacamento do “significante” em relação ao

modernas teriam representado uma oposição à evolução

“significado” foi apresentado como uma libertação, um

tecnológica e econômica. Mas o que não se vê mais habitualmente,

desenvolvimento

abandono

é que a arte moderna apesar de sua atitude contestatória por vezes

da mímesis constitui sem dúvida a origem de tudo o que a arte

radical, evolui quase sempre no interior da moldura constituída

moderna teve de grande. Mas como ignorar que foi em conjunto

pela sociedade mercantil, atuando freqüentemente como uma

com um processo durante o qual a técnica e a ciência tornaram a

pioneira involuntária. Vê-se facilmente o paralelo com o marxismo

natureza “supérflua”, que se afirmou o homem como criador do

do movimento operário[ii]. O produtivismo da indústria encontra

seu próprio mundo, um mundo independente da natureza? Como

seu prolongamento no produtivismo da poesia. O domínio da

ignorar que os fantasmas de todo poder e manipulação são um traço

forma sobre o conteúdo constitui igualmente o centro da cultura

do

espírito

humano.

Este

conservadora)

ou

contra

o

capitalismo

moderna, como na lógica do valor. O isomorfismo entre a poesia

decomposição e na desarticulação do real para que a criação se

moderna e a lógica do valor é tão claro, e sempre se admite

faça, com ajuda de elementos desprovidos de sentido e das relações

abertamente. Sobre esse assunto, pode-se citar o estudo do

entre eles, a partir das novas construções arbitrárias, que já não

pesquisador

poesia

correspondem mais a nenhuma experiência. Segundo Friedrich, os

moderna [iii](1956), porque se Friedrich não é mais um defensor

conceitos chave da lírica moderna são: a deformação, a abstração,

incondicional da lírica moderna, ele é ainda menos hostil a seu

a dissonância, a desumanização, a preferência pelo inorgânico, a

respeito. Em algumas palavras que ele consagra à relação entre a

admiração da beleza de cidades sem homens, a imitação da

evolução lírica e a evolução social, se exprime a opinião corrente

matemática, a imaginação ditatorial, os simples jogos do espírito,

quanto ao caráter “contestador” da poesia moderna: segundo ele,

a liberdade puramente negativa, a desorientação, a tendência à

pode-se cair na “tentativa mais extrema” de “salvar pela ditadura

crueldade, a falta de pulsões humanas, a indiferença. Na poesia

do imaginário a liberdade do espírito numa situação histórica

moderna, o movimento, o ritmo e a forma tornam-se os objetivos

onde o racionalismo científico e os aparelhos do poder de ordem

em si. O movimento tautológico do valor, nós acrescentamos, se

cultural, técnica e econômica terminam por organizar e coletivizar

exprime na autoreferencialidade da arte: numa poesia cujo

a liberdade, tirando assim sua natureza própria” (p. 129). Apesar

conteúdo é apenas ato poético propriamente dito (como em

disso, as observações de Friedrich mostram involuntariamente que

Mallarmé) e, em geral, nos conteúdos arbitrários e intercambiáveis

a partir de Rimbaud e Mallarmé (assim como todas as outras

que querem somente exprimir uma dinâmica que, enquanto tal, é

técnicas e procedimentos da arte moderna: Friedrich evoca sempre

totalmente vazia (o que se produziu por volta de 1910 na pintura

Picasso), a poesia não combateu a lógica da mercadoria e da

rayonista)[iv]. Como a mercadoria, a poesia moderna abole todas

ciência, muito pelo contrário, na verdade ela as imitou

as diferenças: entre o bonito e o feio, o alto e o baixo, o espaço e o

alemão Hugo Friedrich, Estrutura

da

antecipadamente. A lei fundamental da poesia moderna reside na

tempo, o interior e o exterior. O tempo e o espaço se destacam da

artistas dessas correntes aplicavam também em suas obras a lei

experiência e tornam-se completamente abstratos.

fundamental da arte moderna: isolar e recompor. Estamos diante

Certamente, essa afinidade entre arte moderna, ciência e

de um traço fundamental que é comum a todas as tendências

indústria foi sempre colocada em relevo, muitas vezes pelas

artísticas modernas, o que prova, além disso, que a caracterização

próprias tendências artísticas (é verdade que várias dentre elas não

(ou auto-caracterização) da arte moderna como “irracional” (tanto

tinham intenção explícita de criticar a sociedade do seu tempo). A

faz se ela é enunciada como censura ou elogio) é inapropriada: no

afirmação segundo a qual a destruição das formas artísticas

essencial, a arte moderna fica inscrita no quadro da razão mercantil

tradicionais constituiria por si só uma crítica da sociedade moderna

e quando ela cai no irracional, trata-se geralmente do gênero de

foi repetida muito mais frequentemente pela reflexão sobre a arte

irracionalidade que constitui o simples reverso da razão mercantil.

do que pela arte mesma[v]. Na maioria dos casos a arte queria “ir

É possível objetar que a arte moderna não se reduzia

com seu tempo” e considerava vantajoso utilizar procedimentos

simplesmente à lógica da abstração social nem fechava os olhos

próximos daqueles utilizados pela ciência. A ciência e a indústria,

diante dela, mas que visava a apropriação das novas técnicas

a técnica e a vida urbana estabelecida, aos olhos dos artistas

(consideradas sempre, como já afirmamos, desenvolvimentos

modernos, eram dados objetivos e socialmente neutros; mesmo

neutros e não elementos estruturalmente negativos) para fazer

quando a arte se propunha uma função crítica ela se limitava à

delas melhor uso. Não rejeitar abstratamente a modernidade, mas

intenção de mudar o uso social desses dados. Em diversas correntes

criar uma modernidade melhor; não é somente o objetivo

construtivistas a adoção de métodos científicos não é mais

declarado de certos movimentos artísticos, mas igualmente dos

espantosa. Em contrapartida, ela pode surpreender no caso de

situacionistas: “(…) não há liberdade artística possível antes de

certas correntes “românticas”, como o surrealismo, que pretendia

nos apoderarmos dos meios acumulados pelo século XX, que são

buscar o que é inconsciente e mágico, arcaico e primitivo. Mas os

para nós os verdadeiros meios de produção artística (…) O

domínio da natureza pode ser revolucionário ou tornar-se a arma

nisso a única saída frente ao nada ontológico que, em sua visão,

absoluta das forças do passado” [vi]. Isso se acha também na base

representa a verdadeira forma do absoluto. Friedrich faz

da estética de Adorno: “A arte é moderna graças à mímesis do que

explicitamente do “aniquilamento do real” uma característica de

é endurecido e alienado. É assim, e não pela negação da realidade

toda a lírica moderna (p. 133). Com Mallarmé, as coisas existem

muda, que ela se torna eloqüente (…) Baudelaire não vitupera

somente enquanto destruídas. Ele dizia dele mesmo: “A destruição

contra a reificação, ele não a reproduz também, ele protesta

fez minha Beatriz”, e sua criação mais conhecida foi a página

contra ela na experiência de seus arquétipos”[vii]. Mas tais

branca. Em geral, os poetas e artistas modernos proclamaram

observações não invalidam em nada as análises desenvolvidas

alegremente seu programa de destruição, sempre se opondo à

acima, porque existe uma tendência em subestimar as similitudes

mentalidade “construtiva” do burguês execrado. “A ausência do

independentes da intenção subjetivas dos artistas.

mundo” que Lukács atribuiu com agressividade, mas nunca sem

Friedrich sublinha o caráter anti-subjetivo da poesia moderna, que passa sempre por estranhamente subjetivo. Na

razão, à arte moderna é a conseqüência desse prévio “aniquilamento do mundo”.

verdade, o arbitrário subjetivo e o despotismo face aos conteúdos

As grandes utopias sempre participaram na obra destrutiva

(ao material poético) se reverte continuamente numa ausência total

do capitalismo. A idéia de poder impor à realidade as concepções

do sujeito, absorvido pelo objeto. Mallarmé, sobretudo, com suas

nascidas da cabeça e de fazer “tabula rasa” de toda tradição

poesias etéreas sobre os anjos, os leques e quartos vazios exprime

corresponde, por um lado, à lógica do artista moderno que queria

sem nenhuma agressividade aparente a “pulsão niilista”, o “desejo

remodelar o mundo de acordo com sua própria subjetividade pura;

de aniquilar o mundo”, que anima a sociedade mercantil. Este

por outro lado, à lógica do valor que reconstrói o mundo de acordo

amável professor do liceu procurou desembaraçar-se do mundo

com a sua própria imagem, e lhe impõe violentamente uma forma

objetivo tout court para trocá-lo pela linguagem pura [viii]. Ele vê

sem conteúdo. Essa remodelação do mundo pode ser obra de um

aparelho de Estado (o Estado stalinista mais que qualquer outro),

avesso e o reverso da mesma medalha, a exemplo das luzes e do

mas isso também pode ser operado, ainda que de modo

romantismo. É necessário efetivamente “salvar o homem”, como

dissimulado bem como menos visível, pelas forças do mercado. É

queria Lukács, mas não lhe atribuindo por decreto um status que

tudo particularmente sensível no domínio da arquitetura

ele não tem na sociedade fetichista. A “perda dos sentidos” na

racionalista e funcionalista, fáceis de criticar. O mesmo vale para

sociedade capitalista é bem real, e não somente, como Lukács

a arquitetura aparentemente oposta, elaborada por um membro da

pensava, uma questão de “perspectiva”. É preciso então se

Internacional situacionista como o arquiteto holandês Constant. No

perguntar se não pode existir uma arte em forma tradicional, mas

final das contas, a cidade utópica “New Babylon” projetada por

atenta às fraturas e à negatividade. Esta foi a característica da

Constant (projeto que, segundo seu autor, devia cobrir o planeta

literatura barroca que, na forma e no conteúdo, antecipou

inteiro e que foram expostos no Centro Georges-Pompidou em

numerosos traços da arte moderna e afrontou a negatividade sem,

1989 e mais recentemente em Dokumenta 2002 de Kassel) não é

no entanto, tornar-se cúmplice dela. A esse olhar, a obra de Walter

tão diferente da “Cite radieuse” realizada por Le Corbusier, da

Benjamin continua sempre atual.

“máquina de habitar” como este último chamava com orgulho suas

Com Debord, o último vanguardista, tornado finalmente um

construções, em relação às quais a arquitetura situacionista de

estilista “clássico” o círculo se completa. Em 1955, Debord pediu

Constant era considerada um contraponto[ix].

a destruição de todas as igrejas, sem se dar conta de seu valor

Hoje em dia a arte não tem mais que ajudar na “destruição

artístico. 35 anos mais tarde, ele constata que esse programa foi

do mundo” operada pelo valor. A obra de aniquilamento que devia

realizado pelo progresso da dominação espetacular. Se Debord

acabar (e havia necessidade disso) se encerrou. Mas o retorno à

mudou de idéia, isso não teve nada a ver com o processo bastante

arte “clássica” do século XIX ou do “grande realismo” pregado por

comum pelo qual um revolucionário ou um velho vanguardista se

Lukács é irrealizável. A arte moderna e o neoclassicismo são o

reconcilia com seu inimigo, passando a apreciar o que antes era

desprezado. Trata-se, ao contrário, de uma importante tomada de

Tradução: Marcos Barreira

consciência. A natureza da dominação capitalista mudou profundamente na segunda metade do século XX, não somente no

Do original em francês Les situationnistes ont-ils été la

sentido banal de que ela está sempre em constante transformação,

dernière avant-garde? Em Jappe, A. L’Avant-Garde Inacceptable

mas no sentido de que, estando desembaraçada definitivamente

– Réflexions sur Guy Debord. Éditions Lignes, 2004. Uma versão

dos restos pré-capitalistas, ela começou verdadeiramente a

alemã foi publicada na revista Krisis 26.

“coincidir com seu conceito”. Essa vitória é também o início da verdadeira crise. Em tais condições, um soneto ou um busto de

Tradução pubicada em Sinal de Menos 9

Donatello representam talvez a verdadeira arte subversiva – isso

http://sinaldemenos.org/2013/01/21/sinal-de-menos-9/

porque eles nos lembram toda a riqueza qualitativa da experiência humana anterior à unificação quantitativa operada pela mercadoria capitalista, e todas as promessas de emancipação e felicidade que

[i] Citado em Th. W. Adorno, “Lecture de Balzac”, em Notes sur la littérature, trad. S. Muller, Paris, Flammarion, 1984.

nelas estavam implicitamente contidas. A “reviravolta” de Debord

[ii] Ao mesmo tempo, não é necessário superestimar este

não representa o malogro do seu projeto inicial de levar a arte

aspecto. A arte moderna exprimiu (muito mais que o movimento

moderna à sua conclusão. Não foi a arte moderna que fracassou,

operário da mesma época) tudo o que era refratário à lógica

mas a própria sociedade mercantil. No entanto, ela não é a única

mercantil, como, por exemplo, a resistência ao trabalho e à

sociedade possível.

subordinação da vida às exigências da produção. Em certos momentos, a arte era mesmo a única possibilidade de formular esta situação de mal-estar.

[iii] H. Friedrich, Structure de la peésie moderne, Paris, Le

objeto” (citado por Johanna W. Stahlmann, Teses sobre o fim do

Livre de poche, 1999; Previamente Paris, Denoël-Gonthier, 1976.

belo, in: Krisis 12 [1992], p. 175). Certamente, artistas como

(Die Struktur der modernen Lynk. Von Baudelaire bis zur

Mallarmé ou Malevitch têm um lado místico que se inscreve numa

Gegenwart, Rowohlt, Hamburg, 1956).

longa tradição para a qual o mundo é apenas um disfarce e um jogo

[iv] O Rayonismo é um movimento artístico russo criado

de aparências. A “destruição do mundo” executada no espírito não

pelo pintor M. Larionov e sua esposa N. Gonchárova entre 1910-

pertence, por conseguinte, apenas à sociedade mercantil. Contudo,

12. É reconhecido como uma das primeiras manifestações da

a forma especifica e não religiosa que toma essa idéia em certas

moderna arte abstrata (N.d T.).

correntes da arte moderna (os exemplos são numerosos) é típica da

[v] Autores como Mallarmé, Joyce ou Beckett mostraram muito pouco interesse pela praxis social (mesmo levando em conta a defesa dos anarquistas feita por Mallarmé). Em autores como Rimbaud ou Picasso, uma atitude convencional “de esquerda” ou revolucionária não tem relação íntima com os aspectos formais de sua arte. Diferentemente, os dadaístas e os surrealistas procuraram criar conscientemente esta relação. [vi] Internationale Situationniste, I/8(1958). [vii] Th. W. Adorno, Théorie esthétique, trad. M. Jimenez e E. Kaufholz, Paris, Klincksieck, 1995, p. 43. [viii] Malevitch escreveu um pouco mais tarde: “O que expus não era um quadro vazio, mas a sensação de ausência do

sociedade da mercadoria. [ix] Sobre a arquitetura de Constant, ver o dossiê na Sinal de Menos #5, p. 26-71 (N. E.).

_IV_ GUY DEBORD, UM AUTOR COMO OS OUTROS?

Escrevi meu estudo sobre Guy Debord, o primeiro no gênero,

Com efeito, para impedir que a paz reine entre Debord e a

antes da publicação de suas obras completas pela Gallimard em

“sociedade do espetáculo”, há, por um lado, o seu marxismo. É

fins de 1992. O nome de Debord era apenas reconhecível entre

quase unânime que se decidiu ultimamente classificar Debord

iniciados. Seria espantoso encontrar numa enciclopédia ou num

como um autor de estilo notável, abstraindo-se o conteúdo dos seus

texto universitário alguma referência a ele ou aos situacionistas. E

textos. Mesmo que a maior parte de sua obra (aquela parte ligada

mesmo imaginando que essa conspiração do silêncio terminaria

às atividades situacionistas) seja reduzida a um simples exercício

um dia, era difícil prever que, em apenas alguns anos, falar-se-ia

de estilo, não se poderá negar futuramente que a análise do

abertamente sobre Debord nos grandes jornais sem que fosse

espetáculo realizada por Debord baseia-se na redescoberta de

necessário apresentá-lo. Era igualmente difícil imaginar que

certas categorias marxistas fundamentais como a mercadoria, o

encontraríamos pelo menos cinco volumosas biografias suas nas

valor e o fetichismo.

prateleiras das livrarias, que seus filmes seriam projetados no

Por outro lado, ainda que se considere apenas suas obras

festival de Veneza e que ele seria citado pelos políticos

mais “poéticas” e mais “pessoais” (admitindo-se que tal distinção

tradicionais.

tenha algum significado), como o filme In girium… ou sua

Debord foi finalmente “recuperado”, como temiam seus

autobiografia Panegírico, não estaríamos equivocados ao ver em

partidários mais ortodoxos, ou como esperavam aqueles a quem

Debord um autor para todos os gostos, que poderíamos dispor ao

parecia insuportável a idéia de que uma pessoa pudesse se subtrair

lado de um Gide ou de um Mauriac. Provavelmente, em cinqüenta

do “espetáculo” durante toda a sua vida. O certo é que Guy Debord

ou cem anos, Debord também aparecerá como um autor que

já não é um autor “clandestino”, longe disso. Transformaram-no

seremos forçados a admirar por seu estilo, sua verve e suas

em um autor “como os outros”, mas tiveram êxito ao fecha-lo no

observações justas, mas que, no fundo, detestamos.

falso pantheon dos “clássicos modernos”? Nada é menos certo.

Terá a mesma sorte que alguém como o duque de Saint-

partidários. Entre os que hoje admiram as suas frases assassinas

Simon. Esta aproximação com o memorialista não pretende repetir

não há muitos que poderiam honestamente se identificar com seu

a afirmação, que já se tornou banal, segundo a qual Debord escreve

ponto de vista ao invés de serem herdeiros daqueles que, tal como

e pensa como os moralistas do Grande Século. Considerando-se a

Colbert, foram vilipendiados pelo duque. Se Saint-Simon

extensão média das frases ou o número de páginas, Debord e Saint-

condenou sua época, considerando-a decadente, ele o fez a partir

Simon são antípodas um do outro. Mas ambos são, e assim

de sua própria situação, muito particular.

permanecerão, estrangeiros na literatura francesa. É significativo

Pode-se dizer a mesma coisa a respeito de Guy Debord.

que um dos maiores manuais escolares de literatura francesa

Quem, entre os novos leitores de Debord, não deveria se sentir

consagre a Saint-Simon muito menos importância do que, por

visado pela descrição que é feita dos seus contemporâneos, por

exemplo, a um Lamartine, afirmando que “o homem é pouco

exemplo, no início do filme In girium…?. Quem poderia pretender

simpático”, porque vê apenas o lado negativo das coisas. Não

compartilhar a posição a partir da qual Debord escreveu as suas

devemos nos surpreender: na genealogia da modernidade, supõe-

obras “literárias”? Certamente não os que encontram alguma coisa

se que todos os autores franceses a partir do século XVII pertencem

que se possa poupar nas condições existentes, como diria o próprio

ao Iluminismo ou aos seus precursores. Saint-Simon é o único

Debord. E certamente não há nenhuma vantagem para os que

grande autor dessa época que definitivamente não se pode incluir

atualmente contestam o mundo. Nas suas últimas obras, Debord

em tal esquema. Do mesmo modo, não pode se pode incluí-lo entre

continua mostrando-se implacável em relação aos poderes

os “reacionários”, porque combatia a monarquia absolutista.

dominantes e à situação que criaram, mas já não encontra em parte

Enojado pelo novo poder estatal, da mesma maneira que pela nova

alguma os revolucionários. Alguns ocultam que, no documentário

burguesia, distante de qualquer preocupação “democrática”, esse

Guy Debord, sua arte, seu tempo, no qual Debord é também

defensor da antiga feudalidade era a voz de um partido sem

coautor, ele apresenta imagens de escolas do subúrbio apenas sob

o signo da decadência do mundo espetacular, e não sob o da

Queria-se escrever como eles, ser maldoso como eles, mas não se

contestação e da criação de uma cultura nova. É certo que Debord

tem absolutamente o desejo de considerar a natureza dos seus

não apreciava o hip-hop. Ele certamente não era “politicamente

ataques.

correto” e não se inscrevia de forma alguma no conformismo de esquerda. Combateu a guerra da Argélia, mas nunca se referiu ao

Podemos dizer sem temor: Guy Debord não será recuperado para sempre.

“antirracismo” ou ao “multiculturalismo” que vigoram nos dias de hoje.

Tradução por Marcos Barreira Proclamou e viveu a liberdade dos costumes, mas ficou

distante do feminismo e ironizou esse novo crime que seria chamado “homofobia”. Nas obras literárias dos seus quinze últimos anos, aparentemente mais “inofensivas”, ele se permite julgar o mundo a partir do caráter único de sua própria vida. É o que com prazer se chama sua “atitude aristocrática”. Nesse aspecto, Debord assemelha-se ao escritor austríaco Karl Kraus. Kraus também tinha muitos admirados que não podiam estar certos de não figurar entre os seus alvos. Todos os três, Debord, SaintSimon e Kraus, são testemunhas nos processos contra as suas épocas, mas são aqueles testemunhos que escapam às classificações habituais. Qualificou-se Saint-Simon e Kraus de “reacionários” e começou-se a fazer o mesmo com Debord.

Título original: Guy Debord, um auteur comme les autres? Publicado em L”Avant-garde inacceptable. Réflexions sur Guy Debord