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Portuguese Pages [62] Year 2014
_III_ TERÃO OS SITUACIONISTAS SIDO A ÚLTIMA VANGUARDA?
Hoje em dia está na moda apresentar os situacionistas como
Sabe-se que Guy Debord nunca almejou ser um artista no
a “última vanguarda artística”. Afirmação absurda (a menos que
sentido habitual do termo e menos ainda um teórico da estética. O
ela se aplique a interesses banais) que pretende estabelecer uma
que ele visava era a superação da arte e sua realização na vida. Ele
ligação entre os situacionistas e outras pretensas vanguardas dos
a enunciou como programa social e a executou, em larga medida,
anos 1960, tais como o Fluxus ou o Happening. Na verdade estes
na sua própria vida. Mesmo a Internacional situacionista e suas
foram ignorados, por vezes desprezados, pelos situacionistas.
ações, incluindo Maio de 1968, deviam ser uma espécie de obra de
Outros acreditam poder passar a bandeira de vanguarda aos
arte. Nesse caso, Debord concluiu efetivamente o ciclo das
movimentos artísticos atuais ou poder vender, na qualidade de
vanguardas iniciado na segunda metade do século XIX. Se
novidades sempre interessantes, os elementos singulares da
autoliquidar para dissolver-se na vida sempre foi a pretensão das
produção situacionista dos primeiros anos, como o détournement,
vanguardas. Já Kant e Hegel afirmaram que a arte tinha por missão
a deriva ou a psicogeografia, agora arrancados do seu contexto.
operar a mediação entre o sentido e a razão, a forma e o conteúdo,
Por outro lado, caracterizar os situacionistas como a “última
a natureza e o homem, o indivíduo e a sociedade. À arte foi suposto
vanguarda” contêm uma verdade involuntária. Sua história, ou
poder reconciliar esses aspectos e juntar o que estava separado.
pelo menos a de Guy Debord, levou à conclusão lógica a trajetória
Para Hegel a arte é uma alienação do Espírito, destinada a retornar
histórica das vanguardas. Ela coloca um ponto final e mostra ao
no final à unidade superior que é o próprio Espírito. Certamente os
mesmo tempo a impossibilidade de uma vanguarda na atualidade.
artistas modernos não tiveram a intenção de seguir os preceitos
Ela faz compreender que a vanguarda não é uma categoria supra-
desses filósofos ou de outros pensadores. No entanto, quando a arte
histórica, eterna, não mais que a própria arte, mas que ela pertence
refletia sobre sua própria função ela a formulava geralmente como
a um determinado momento do desenvolvimento da sociedade
uma tentativa de se unir à vida e anular a separação das esferas que
capitalista.
se acentuava cada vez mais no seio da sociedade capitalista. A arte
era destinada a representar a subjetividade pura, a livre criação e o
Este fato não é desmentido pelo verdadeiro culto da arte ao qual se
sujeito dominando seu mundo. Porém, era inevitável entrar em
abandonavam numerosas de suas correntes, às vezes com acento
conflito com o que parecia a real negação da subjetividade operada
quase religioso. A hipervalorização da arte decorre do fato das
pela lógica da produção moderna.
vanguardas estarem conscientes da pobreza que reveste a vida real
Esta abordagem reúne as formas mais diversas da arte
sob o capitalismo. Ela visava assim, ao menos inicialmente,
moderna. A aspiração de reconduzir a arte na vida não se acha
atenuar a realidade com a ajuda de valores artísticos. Isso é uma
somente no surrealismo e nas outras correntes que se pode chamar
aspiração tipicamente moderna. Tal objetivo não é próprio nem da
de românticas, mesmo se lá elas são mais visíveis. Encontramos
arte das sociedades pré-capitalistas, nem da arte acadêmica.
esse desejo igualmente em correntes opostas, entre elas o
Chegar ao seu próprio desaparecimento é o que resta, portanto,
construtivismo russo, assim como em todas as correntes do
inscrever, como gostam de dizer hoje, no “código genético” das
funcionalismo: em Mondrian, na Bauhaus, etc. Todas essas
vanguardas.
correntes queriam terminar com o estatuto separado da arte, para
Os surrealistas foram os artistas que proclamaram de
que ela mudasse a realidade da vida capitalista, submissa
maneira mais consciente essa necessidade de autosuperação da
unicamente ao critério da rentabilidade econômica – mesmo que
arte. Sabe-se, no entanto, que eles aceitaram muito rapidamente
alguns imaginassem essa união entre arte e vida como uma
que sua revolta se tornasse objeto de museu e recaísse novamente
revolução social inspirada pela poesia, enquanto outros a
na “arte”. Os situacionistas, tomando explicitamente a aspiração
concebiam como aplicação dos princípios artísticos à produção em
inicial dos surrealistas, tentaram transpor definitivamente o
série de arranha-céus, toalhas de mão e xícaras de café. Disso resta
Rubicão: eles recusaram o status de artistas e procuraram fomentar
que tais vanguardas tenham como denominador comum a vontade
uma revolução social que estivesse à altura das promessas contidas
de não fazer mais somente arte ou de não mais fazer da arte o todo.
na arte moderna.
Para motivar a necessidade de ultrapassar a arte, Debord
pareça paradoxal, é graças a uma citação de Bertolt Brecht que
recorreu (ao contrário das teorias vanguardistas anteriores) à crítica
Adorno conseguiu explicar essa idéia: “O que torna a situação tão
marxista do fetichismo da mercadoria. Como se sabe, Debord
complicada é o fato de que a simples ‚réplica da realidade‘ nos
chamou de “espetáculo” o estado contemporâneo do fetichismo da
informa menos do que nunca sobre essa realidade. Uma fotografia
mercadoria. Contra todas as recuperações pós-modernas e
das fábricas Krupp ou AEG não diz quase nada sobre essas
estetizantes desse conceito, convém sublinhar que, para Debord, o
instituições. A realidade autêntica se tornou funcional. A
espetáculo é uma forma da mercadoria, no sentido de Marx. No
reificação das relações humanas, por exemplo, a fábrica, não mais
espetáculo, a mercadoria se apresenta como algo dado e leva o
se manifesta”. [i] Para Adorno, o fetichismo (a subordinação do
espectador a uma permanente contemplação passiva. Trata-se de
indivíduo às coisas) constitui um fenômeno real. A arte deve
superar (aufheben no sentido hegeliano) a arte porque ela também
exprimir essa dominação exercida pelas forças abstratas, a perda
é uma forma de espetáculo que se contempla passivamente. Ela é,
de sentido, a destruição da linguagem. Mas ela deve fazê-lo
pois, uma forma de fetichismo. Mas à medida que a arte se torna
utilizando-se de todos os meios artísticos existentes. Somente
um projeto que visa a transformação consciente da vida, ela assume
assim a arte estará à altura das forças produtivas atuais e poderá
uma função claramente “desfetichizante”.
deixar entrever um outro uso possível. É nisso que reside, segundo
No século XX, duas outras estéticas importantes de inspiração
marxista
atribuíram
à
arte
uma
Adorno, o lado emancipatório da arte moderna. Este indica a
função
possibilidade de uma relação diferente, não repressiva, entre o
“desfetichizante”: a de Theodor W. Adorno e a do último Lukács.
sujeito e a natureza, e subtrai a obra de arte do imperativo
Em Adorno, é, sobretudo na arte abstrata que aparece tal função.
categórico da sociedade mercantil segundo o qual todas as coisas
A arte deve abandonar a crença ilusória segundo a qual sob o
devem ser “úteis” e participar da troca. De tal modo, a arte
capitalismo o homem seria ainda um sujeito. Mesmo que isso
moderna, por ser abstrata e aparentemente distante da experiência
vivida é, na verdade, segundo Adorno, sempre ligada ao
expressionista ou surrealista (em menor medida), são, aos olhos de
desenvolvimento da realidade.
Lukács, o auge da fetichização (mesmo tendo mudado de opinião
Para Lukács, ao contrário, a arte que se pretende “desfetichizante” – deve ser “realista”, e não abstrata, porque ela
quanto à obra de Kafka). As posições estéticas diferentes de Debord, Adorno e
tem por tarefa recolocar o homem no centro da sociedade,
Lukács
estão
estreitamente
ligadas
às
suas
diferentes
enquanto a aparência fetichista o faz acreditar que ele já não se
interpretações do conceito de fetichismo. Em Lukács, o fetichismo
encontra mais nesse centro. Sua concepção de fetichismo é, deste
é somente uma forma de falsa consciência, uma falsa representação
modo, diametralmente oposta a de Adorno: o fetichismo, no
de mundo que é preciso substituir por uma visão justa, que ele
sentido de Lukács, atribui falsamente as ações dos indivíduos e dos
denomina “realista”. Para Adorno e para Debord, as relações
grupos sociais às forças impessoais, subtraídas do controle e da
humanas são realmente falsificadas. O fetichismo transformou a
responsabilidade humana. Por conseguinte, a arte, por ser
natureza da vida social. É preciso denunciar o escândalo em lugar
“desfetichizante”, deve ser também “antropomorfisante”. Ela deve
de ver nele uma simples mistificação.
mostrar que, sob a superfície reificada, é o ser humano que age.
Às diferentes interpretações do fetichismo correspondem
Como se sabe, o grande exemplo citado por Lukács é Balzac. A
avaliações diferentes do período do pós-guerra. Segundo Adorno,
arte tem igualmente por missão revelar que a falta de sentido, o
a intervenção do Estado e dos grandes monopólios a partir dos anos
isolamento e o absurdo aos quais o homem moderno vê-se exposto
30 bloqueou a dinâmica interna do capitalismo: as forças
não constituem a realidade mais profunda, mas uma aparência
produtivas não se encontram mais em contradição com as relações
fetichista atrás da qual se escondem os interesses de classe. Os
de produção. Para a teoria crítica de Adorno, a situação política,
mesmos autores que, para Adorno, representam a verdadeira crítica
econômica e social está completamente congelada e só resta a arte
do fetichismo como Beckett ou Kafka, mas também as pinturas
como única liberdade e única esperança. Para os situacionistas, o
capitalismo do pós-guerra conhece uma evolução rápida, e o
sujeito externo poderá colocar fim. Esta intervenção parece
momento do fim da sociedade de classes parece aproximar-se,
possível a Lukács e Debord (mesmo que seja de maneira
porque o novo proletariado vai parar de suportar seu papel de
fundamentalmente diferente), enquanto Adorno praticamente
espectador passivo. Ele colocará um fim à arte, assim como a todas
abandona toda esperança de vê-la colocada em marcha. Eis porque
as outras alienações. Para Lukács, enfim, a sociedade burguesa
a arte moderna que Adorno faz o elogio corre o risco de
representa uma etapa importante no desenvolvimento da
simplesmente reproduzir a vida e de embelezá-la – é exatamente
humanidade, embora esteja em declínio e destinada a sucumbir na
isso que os situacionistas reprovavam nas tendências artísticas de
concorrência com os países socialistas.
seu tempo. Adorno cita sempre Beckett e Kafka como autores
Nenhuma dessas concepções parece justa, porque nenhuma
exemplares, porque eles denunciam uma situação insuportável –
tem em conta a dinâmica interna que conduz o capitalismo à sua
mas hoje esses autores aparecem mais como a consciência infeliz
crise: essencialmente, a concentração sempre mais aguda entre a
e impotente de uma miséria presente. Assim, mesmo a arte
forma abstrata (o valor das mercadorias) e o conteúdo concreto. O
negativa pode tornar-se um ornamento e um monumento erguido à
modo de produção capitalista se baseia na exploração do trabalho
gloria da resignação.
vivo e, ao mesmo tempo, ele deve fazer todo possível para reduzir
Por outro lado (e contrariamente às esperanças de Debord),
este trabalho vivo utilizando as máquinas: não há solução para uma
a evolução social não ocorreu no sentido de uma superação da arte.
tal contradição que não deixou de crescer durante todo o século
O espetáculo mostrou que era capaz de resistir aos assaltos (como
XX. No entanto, nem para Adorno, nem para Lukács, nem para
em 1968) e conseguiu em seguida ascender às gerações novas que
Debord, o capitalismo está condenado por sua própria dinâmica
nunca conheceram outra coisa a não ser o próprio espetáculo.
interna a entrar um dia em uma crise profunda. Eles vêem no
Durante os anos 1950 e 1960 (os anos de agitação situacionista), a
capitalismo um sistema estável, ao qual só a intervenção de um
arte, seja ela moderna ou clássica, parecia uma coisa bem modesta
em relação à possibilidade de realizar seu conteúdo na vida
dar uma expressão mais elaborada aos conteúdos derivados das
cotidiana. Mas o espetáculo que terminou por triunfar está ainda
sociedades que o antecederam. A modificação de todas as
muito aquém do nível da arte tradicional. Em suas obras tardias,
condições de vida que ele produziu e a multiplicação dos meios
Debord começa a apreciar a arte do passado: ele lamenta que não
técnicos aumentaram as possibilidades de expressão, mas os
haja mais um Tucídides ou um Donatello, lamenta a destruição de
conteúdos a exprimir (a riqueza da experiência humana) só
pinturas e construções antigas e revela seu gosto pela métrica e
poderiam sair do mundo não capitalista. A arte então conheceu um
pelos autores clássicos. Não se deve ver nesse interesse pela
desenvolvimento intenso, tanto que o novo princípio capitalista
“grande” cultura uma simples evolução pessoal de Debord e menos
estava ainda em conflito com os resíduos das épocas anteriores. A
ainda uma retratação de suas opiniões anteriores. Ele apenas se dá
arte do século XIX vivia uma tensão entre a tendência social à
conta da inutilidade de se prosseguir a destruição artística dos
abstração e os indivíduos que ainda não estavam completamente
valores herdados.
submissos. Logo depois que o capitalismo começou a “coincidir
O capitalismo é uma “sociedade sem qualidades”, uma
com seu conceito”, para utilizar uma expressão hegeliana, o
sociedade que não pode ter uma cultura própria. Seu fundamento é
significativo desenvolvimento dos meios tornou-se tautológico,
o valor, a simples quantidade de trabalho abstrato representada
um fim em si mesmo, exatamente como a produção do valor. O
numa mercadoria, sem que se leve em conta sua utilidade ou sua
capitalismo realizou o fim da arte, da mesma maneira que ele tinha,
beleza. O capitalismo tem por único objetivo acumular
em outra ocasião, criado a arte como esfera separada.
tautologicamente o trabalho morto, porque ele é estruturalmente
Pode ser uma função explicitamente crítica da arte ela
indiferente a todo conteúdo. Daí a impossibilidade de uma cultura
mesma não ser mais necessária hoje. A cada dia nós
propriamente capitalista. O capitalismo pode somente (e mesmo
testemunhamos como a sociedade capitalista entra em colapso por
isso apenas em sua fase inicial, fundamentalmente no século XIX)
si própria. No presente, é o problema das alternativas que é
colocado: o que virá quando o capitalismo entrar em colapso,
ignora), um homem que não segue seu pensamento racional e
deixando atrás dele um amontoado de reúnas? Trata-se de salvar
lógico, mas obedece a impulsos inconscientes, indiferente à moral
uma base para os desenvolvimentos futuros, além do niilismo da
e separado dos laços sociais, um homem que percebe o mundo
sociedade atual, para que o capitalismo não arraste a sociedade
como que sob o efeito de uma droga e vagueia ao acaso: pode-se
inteira para o seu túmulo. Então, vê-se a essência do capitalismo
compreender que por volta de 1925 uma tal ideia tenha podido
não somente na opressão e na exploração econômica, mas também
fascinar aqueles que não suportavam mais a monotonia da vida
no empobrecimento e na destruição sócio-cultural, demonstrando
burguesa. Mas esse indivíduo que os surrealistas chamavam
que o papel da arte moderna parece independente de suas
“desejantes” tornou-se realidade sob a forma do indivíduo
intenções, sendo ele nitidamente menos crítico do que se pensa
contemporâneo e de uma maneira tão cruel quanto irônica. Para se
geralmente.
impor na sua integridade, a sociedade mercantil capitalista tinha
De fato, o aspecto iconoclasta da arte moderna se revela
necessidade de um indivíduo inteiramente “novo”, e esse homem
ambíguo. O processo de decomposição das formas artísticas,
“novo” se encontrava ao mesmo tempo no projeto declarado de
começado pelas vanguardas, acompanhou o triunfo do capitalismo
numerosas vanguardas artísticas.
sobre os resíduos das épocas anteriores. Aquelas vanguardas que
Particularmente significativo dessa visão é o culto que os
se queriam revolucionárias acreditavam que a burguesia
surrealistas, diferentes vanguardas literárias e às vezes os próprios
conservava seu poder no nível das “superestruturas”, dos
situacionistas, devotaram ao Marquês de Sade, culto que nos dias
comportamentos, dos valores e da vida cotidiana. A arte se
atuais tornou-se banal. O repúdio de todos os valores morais
propunha então mudar as estruturas e criar novas. Mas assim ela
tradicionais tão fundamentais como a proibição de matar, foi
somente puxou para baixo o que já ruía, como diria Nietzsche. Um
considerado um ato de libertação permanente para alcançar a
homem em ruptura total com o passado e com as tradições (que ele
realização de todos os desejos. Na verdade, como mostraram
Horkheimer e Adorno na Dialética do Esclarecimento, o mundo
comum da arte moderna e da técnica? Por volta de 1914, o poeta
descrito por Sade constitui uma antecipação do sistema industrial
chileno Vicente Huidobro, fundador do “criacionismo”, proclamou
e do sujeito moderno da concorrência total, cuja única regra é o
que a poesia não queria mais servir à natureza, mas criar árvores
direito do mais forte e que está disposto a tudo em troca de prazeres
mais belas do que as árvores naturais. Nesta época, tal programa
mecânicos e repetitivos. O caso do Marquês de Sade mostra
poderia parecer muito poético. Hoje, ele seria visto como uma
claramente que a libertação total de um sujeito fetichizado é apenas
antecipação da manipulação genética.
a libertação total do sujeito capitalista.
Quase sempre, foi dito que a poesia moderna, e a cultura
Como se sabe, a arte e a literatura moderna não estão longe
moderna em geral, compreendidas de acordo com a intenção de
da tarefa que tradicionalmente lhes foi atribuída: a de representar
seus criadores, eram um protesto contra o progresso “sem alma”
ou de imitar a natureza. Ao mesmo tempo, as ciências não estão
(interpretação
limitadas a imitar a natureza e começaram massivamente a
(interpretação de esquerda). Nos dois casos, a poesia e a cultura
“reinventá-la”. O destacamento do “significante” em relação ao
modernas teriam representado uma oposição à evolução
“significado” foi apresentado como uma libertação, um
tecnológica e econômica. Mas o que não se vê mais habitualmente,
desenvolvimento
abandono
é que a arte moderna apesar de sua atitude contestatória por vezes
da mímesis constitui sem dúvida a origem de tudo o que a arte
radical, evolui quase sempre no interior da moldura constituída
moderna teve de grande. Mas como ignorar que foi em conjunto
pela sociedade mercantil, atuando freqüentemente como uma
com um processo durante o qual a técnica e a ciência tornaram a
pioneira involuntária. Vê-se facilmente o paralelo com o marxismo
natureza “supérflua”, que se afirmou o homem como criador do
do movimento operário[ii]. O produtivismo da indústria encontra
seu próprio mundo, um mundo independente da natureza? Como
seu prolongamento no produtivismo da poesia. O domínio da
ignorar que os fantasmas de todo poder e manipulação são um traço
forma sobre o conteúdo constitui igualmente o centro da cultura
do
espírito
humano.
Este
conservadora)
ou
contra
o
capitalismo
moderna, como na lógica do valor. O isomorfismo entre a poesia
decomposição e na desarticulação do real para que a criação se
moderna e a lógica do valor é tão claro, e sempre se admite
faça, com ajuda de elementos desprovidos de sentido e das relações
abertamente. Sobre esse assunto, pode-se citar o estudo do
entre eles, a partir das novas construções arbitrárias, que já não
pesquisador
poesia
correspondem mais a nenhuma experiência. Segundo Friedrich, os
moderna [iii](1956), porque se Friedrich não é mais um defensor
conceitos chave da lírica moderna são: a deformação, a abstração,
incondicional da lírica moderna, ele é ainda menos hostil a seu
a dissonância, a desumanização, a preferência pelo inorgânico, a
respeito. Em algumas palavras que ele consagra à relação entre a
admiração da beleza de cidades sem homens, a imitação da
evolução lírica e a evolução social, se exprime a opinião corrente
matemática, a imaginação ditatorial, os simples jogos do espírito,
quanto ao caráter “contestador” da poesia moderna: segundo ele,
a liberdade puramente negativa, a desorientação, a tendência à
pode-se cair na “tentativa mais extrema” de “salvar pela ditadura
crueldade, a falta de pulsões humanas, a indiferença. Na poesia
do imaginário a liberdade do espírito numa situação histórica
moderna, o movimento, o ritmo e a forma tornam-se os objetivos
onde o racionalismo científico e os aparelhos do poder de ordem
em si. O movimento tautológico do valor, nós acrescentamos, se
cultural, técnica e econômica terminam por organizar e coletivizar
exprime na autoreferencialidade da arte: numa poesia cujo
a liberdade, tirando assim sua natureza própria” (p. 129). Apesar
conteúdo é apenas ato poético propriamente dito (como em
disso, as observações de Friedrich mostram involuntariamente que
Mallarmé) e, em geral, nos conteúdos arbitrários e intercambiáveis
a partir de Rimbaud e Mallarmé (assim como todas as outras
que querem somente exprimir uma dinâmica que, enquanto tal, é
técnicas e procedimentos da arte moderna: Friedrich evoca sempre
totalmente vazia (o que se produziu por volta de 1910 na pintura
Picasso), a poesia não combateu a lógica da mercadoria e da
rayonista)[iv]. Como a mercadoria, a poesia moderna abole todas
ciência, muito pelo contrário, na verdade ela as imitou
as diferenças: entre o bonito e o feio, o alto e o baixo, o espaço e o
alemão Hugo Friedrich, Estrutura
da
antecipadamente. A lei fundamental da poesia moderna reside na
tempo, o interior e o exterior. O tempo e o espaço se destacam da
artistas dessas correntes aplicavam também em suas obras a lei
experiência e tornam-se completamente abstratos.
fundamental da arte moderna: isolar e recompor. Estamos diante
Certamente, essa afinidade entre arte moderna, ciência e
de um traço fundamental que é comum a todas as tendências
indústria foi sempre colocada em relevo, muitas vezes pelas
artísticas modernas, o que prova, além disso, que a caracterização
próprias tendências artísticas (é verdade que várias dentre elas não
(ou auto-caracterização) da arte moderna como “irracional” (tanto
tinham intenção explícita de criticar a sociedade do seu tempo). A
faz se ela é enunciada como censura ou elogio) é inapropriada: no
afirmação segundo a qual a destruição das formas artísticas
essencial, a arte moderna fica inscrita no quadro da razão mercantil
tradicionais constituiria por si só uma crítica da sociedade moderna
e quando ela cai no irracional, trata-se geralmente do gênero de
foi repetida muito mais frequentemente pela reflexão sobre a arte
irracionalidade que constitui o simples reverso da razão mercantil.
do que pela arte mesma[v]. Na maioria dos casos a arte queria “ir
É possível objetar que a arte moderna não se reduzia
com seu tempo” e considerava vantajoso utilizar procedimentos
simplesmente à lógica da abstração social nem fechava os olhos
próximos daqueles utilizados pela ciência. A ciência e a indústria,
diante dela, mas que visava a apropriação das novas técnicas
a técnica e a vida urbana estabelecida, aos olhos dos artistas
(consideradas sempre, como já afirmamos, desenvolvimentos
modernos, eram dados objetivos e socialmente neutros; mesmo
neutros e não elementos estruturalmente negativos) para fazer
quando a arte se propunha uma função crítica ela se limitava à
delas melhor uso. Não rejeitar abstratamente a modernidade, mas
intenção de mudar o uso social desses dados. Em diversas correntes
criar uma modernidade melhor; não é somente o objetivo
construtivistas a adoção de métodos científicos não é mais
declarado de certos movimentos artísticos, mas igualmente dos
espantosa. Em contrapartida, ela pode surpreender no caso de
situacionistas: “(…) não há liberdade artística possível antes de
certas correntes “românticas”, como o surrealismo, que pretendia
nos apoderarmos dos meios acumulados pelo século XX, que são
buscar o que é inconsciente e mágico, arcaico e primitivo. Mas os
para nós os verdadeiros meios de produção artística (…) O
domínio da natureza pode ser revolucionário ou tornar-se a arma
nisso a única saída frente ao nada ontológico que, em sua visão,
absoluta das forças do passado” [vi]. Isso se acha também na base
representa a verdadeira forma do absoluto. Friedrich faz
da estética de Adorno: “A arte é moderna graças à mímesis do que
explicitamente do “aniquilamento do real” uma característica de
é endurecido e alienado. É assim, e não pela negação da realidade
toda a lírica moderna (p. 133). Com Mallarmé, as coisas existem
muda, que ela se torna eloqüente (…) Baudelaire não vitupera
somente enquanto destruídas. Ele dizia dele mesmo: “A destruição
contra a reificação, ele não a reproduz também, ele protesta
fez minha Beatriz”, e sua criação mais conhecida foi a página
contra ela na experiência de seus arquétipos”[vii]. Mas tais
branca. Em geral, os poetas e artistas modernos proclamaram
observações não invalidam em nada as análises desenvolvidas
alegremente seu programa de destruição, sempre se opondo à
acima, porque existe uma tendência em subestimar as similitudes
mentalidade “construtiva” do burguês execrado. “A ausência do
independentes da intenção subjetivas dos artistas.
mundo” que Lukács atribuiu com agressividade, mas nunca sem
Friedrich sublinha o caráter anti-subjetivo da poesia moderna, que passa sempre por estranhamente subjetivo. Na
razão, à arte moderna é a conseqüência desse prévio “aniquilamento do mundo”.
verdade, o arbitrário subjetivo e o despotismo face aos conteúdos
As grandes utopias sempre participaram na obra destrutiva
(ao material poético) se reverte continuamente numa ausência total
do capitalismo. A idéia de poder impor à realidade as concepções
do sujeito, absorvido pelo objeto. Mallarmé, sobretudo, com suas
nascidas da cabeça e de fazer “tabula rasa” de toda tradição
poesias etéreas sobre os anjos, os leques e quartos vazios exprime
corresponde, por um lado, à lógica do artista moderno que queria
sem nenhuma agressividade aparente a “pulsão niilista”, o “desejo
remodelar o mundo de acordo com sua própria subjetividade pura;
de aniquilar o mundo”, que anima a sociedade mercantil. Este
por outro lado, à lógica do valor que reconstrói o mundo de acordo
amável professor do liceu procurou desembaraçar-se do mundo
com a sua própria imagem, e lhe impõe violentamente uma forma
objetivo tout court para trocá-lo pela linguagem pura [viii]. Ele vê
sem conteúdo. Essa remodelação do mundo pode ser obra de um
aparelho de Estado (o Estado stalinista mais que qualquer outro),
avesso e o reverso da mesma medalha, a exemplo das luzes e do
mas isso também pode ser operado, ainda que de modo
romantismo. É necessário efetivamente “salvar o homem”, como
dissimulado bem como menos visível, pelas forças do mercado. É
queria Lukács, mas não lhe atribuindo por decreto um status que
tudo particularmente sensível no domínio da arquitetura
ele não tem na sociedade fetichista. A “perda dos sentidos” na
racionalista e funcionalista, fáceis de criticar. O mesmo vale para
sociedade capitalista é bem real, e não somente, como Lukács
a arquitetura aparentemente oposta, elaborada por um membro da
pensava, uma questão de “perspectiva”. É preciso então se
Internacional situacionista como o arquiteto holandês Constant. No
perguntar se não pode existir uma arte em forma tradicional, mas
final das contas, a cidade utópica “New Babylon” projetada por
atenta às fraturas e à negatividade. Esta foi a característica da
Constant (projeto que, segundo seu autor, devia cobrir o planeta
literatura barroca que, na forma e no conteúdo, antecipou
inteiro e que foram expostos no Centro Georges-Pompidou em
numerosos traços da arte moderna e afrontou a negatividade sem,
1989 e mais recentemente em Dokumenta 2002 de Kassel) não é
no entanto, tornar-se cúmplice dela. A esse olhar, a obra de Walter
tão diferente da “Cite radieuse” realizada por Le Corbusier, da
Benjamin continua sempre atual.
“máquina de habitar” como este último chamava com orgulho suas
Com Debord, o último vanguardista, tornado finalmente um
construções, em relação às quais a arquitetura situacionista de
estilista “clássico” o círculo se completa. Em 1955, Debord pediu
Constant era considerada um contraponto[ix].
a destruição de todas as igrejas, sem se dar conta de seu valor
Hoje em dia a arte não tem mais que ajudar na “destruição
artístico. 35 anos mais tarde, ele constata que esse programa foi
do mundo” operada pelo valor. A obra de aniquilamento que devia
realizado pelo progresso da dominação espetacular. Se Debord
acabar (e havia necessidade disso) se encerrou. Mas o retorno à
mudou de idéia, isso não teve nada a ver com o processo bastante
arte “clássica” do século XIX ou do “grande realismo” pregado por
comum pelo qual um revolucionário ou um velho vanguardista se
Lukács é irrealizável. A arte moderna e o neoclassicismo são o
reconcilia com seu inimigo, passando a apreciar o que antes era
desprezado. Trata-se, ao contrário, de uma importante tomada de
Tradução: Marcos Barreira
consciência. A natureza da dominação capitalista mudou profundamente na segunda metade do século XX, não somente no
Do original em francês Les situationnistes ont-ils été la
sentido banal de que ela está sempre em constante transformação,
dernière avant-garde? Em Jappe, A. L’Avant-Garde Inacceptable
mas no sentido de que, estando desembaraçada definitivamente
– Réflexions sur Guy Debord. Éditions Lignes, 2004. Uma versão
dos restos pré-capitalistas, ela começou verdadeiramente a
alemã foi publicada na revista Krisis 26.
“coincidir com seu conceito”. Essa vitória é também o início da verdadeira crise. Em tais condições, um soneto ou um busto de
Tradução pubicada em Sinal de Menos 9
Donatello representam talvez a verdadeira arte subversiva – isso
http://sinaldemenos.org/2013/01/21/sinal-de-menos-9/
porque eles nos lembram toda a riqueza qualitativa da experiência humana anterior à unificação quantitativa operada pela mercadoria capitalista, e todas as promessas de emancipação e felicidade que
[i] Citado em Th. W. Adorno, “Lecture de Balzac”, em Notes sur la littérature, trad. S. Muller, Paris, Flammarion, 1984.
nelas estavam implicitamente contidas. A “reviravolta” de Debord
[ii] Ao mesmo tempo, não é necessário superestimar este
não representa o malogro do seu projeto inicial de levar a arte
aspecto. A arte moderna exprimiu (muito mais que o movimento
moderna à sua conclusão. Não foi a arte moderna que fracassou,
operário da mesma época) tudo o que era refratário à lógica
mas a própria sociedade mercantil. No entanto, ela não é a única
mercantil, como, por exemplo, a resistência ao trabalho e à
sociedade possível.
subordinação da vida às exigências da produção. Em certos momentos, a arte era mesmo a única possibilidade de formular esta situação de mal-estar.
[iii] H. Friedrich, Structure de la peésie moderne, Paris, Le
objeto” (citado por Johanna W. Stahlmann, Teses sobre o fim do
Livre de poche, 1999; Previamente Paris, Denoël-Gonthier, 1976.
belo, in: Krisis 12 [1992], p. 175). Certamente, artistas como
(Die Struktur der modernen Lynk. Von Baudelaire bis zur
Mallarmé ou Malevitch têm um lado místico que se inscreve numa
Gegenwart, Rowohlt, Hamburg, 1956).
longa tradição para a qual o mundo é apenas um disfarce e um jogo
[iv] O Rayonismo é um movimento artístico russo criado
de aparências. A “destruição do mundo” executada no espírito não
pelo pintor M. Larionov e sua esposa N. Gonchárova entre 1910-
pertence, por conseguinte, apenas à sociedade mercantil. Contudo,
12. É reconhecido como uma das primeiras manifestações da
a forma especifica e não religiosa que toma essa idéia em certas
moderna arte abstrata (N.d T.).
correntes da arte moderna (os exemplos são numerosos) é típica da
[v] Autores como Mallarmé, Joyce ou Beckett mostraram muito pouco interesse pela praxis social (mesmo levando em conta a defesa dos anarquistas feita por Mallarmé). Em autores como Rimbaud ou Picasso, uma atitude convencional “de esquerda” ou revolucionária não tem relação íntima com os aspectos formais de sua arte. Diferentemente, os dadaístas e os surrealistas procuraram criar conscientemente esta relação. [vi] Internationale Situationniste, I/8(1958). [vii] Th. W. Adorno, Théorie esthétique, trad. M. Jimenez e E. Kaufholz, Paris, Klincksieck, 1995, p. 43. [viii] Malevitch escreveu um pouco mais tarde: “O que expus não era um quadro vazio, mas a sensação de ausência do
sociedade da mercadoria. [ix] Sobre a arquitetura de Constant, ver o dossiê na Sinal de Menos #5, p. 26-71 (N. E.).
_IV_ GUY DEBORD, UM AUTOR COMO OS OUTROS?
Escrevi meu estudo sobre Guy Debord, o primeiro no gênero,
Com efeito, para impedir que a paz reine entre Debord e a
antes da publicação de suas obras completas pela Gallimard em
“sociedade do espetáculo”, há, por um lado, o seu marxismo. É
fins de 1992. O nome de Debord era apenas reconhecível entre
quase unânime que se decidiu ultimamente classificar Debord
iniciados. Seria espantoso encontrar numa enciclopédia ou num
como um autor de estilo notável, abstraindo-se o conteúdo dos seus
texto universitário alguma referência a ele ou aos situacionistas. E
textos. Mesmo que a maior parte de sua obra (aquela parte ligada
mesmo imaginando que essa conspiração do silêncio terminaria
às atividades situacionistas) seja reduzida a um simples exercício
um dia, era difícil prever que, em apenas alguns anos, falar-se-ia
de estilo, não se poderá negar futuramente que a análise do
abertamente sobre Debord nos grandes jornais sem que fosse
espetáculo realizada por Debord baseia-se na redescoberta de
necessário apresentá-lo. Era igualmente difícil imaginar que
certas categorias marxistas fundamentais como a mercadoria, o
encontraríamos pelo menos cinco volumosas biografias suas nas
valor e o fetichismo.
prateleiras das livrarias, que seus filmes seriam projetados no
Por outro lado, ainda que se considere apenas suas obras
festival de Veneza e que ele seria citado pelos políticos
mais “poéticas” e mais “pessoais” (admitindo-se que tal distinção
tradicionais.
tenha algum significado), como o filme In girium… ou sua
Debord foi finalmente “recuperado”, como temiam seus
autobiografia Panegírico, não estaríamos equivocados ao ver em
partidários mais ortodoxos, ou como esperavam aqueles a quem
Debord um autor para todos os gostos, que poderíamos dispor ao
parecia insuportável a idéia de que uma pessoa pudesse se subtrair
lado de um Gide ou de um Mauriac. Provavelmente, em cinqüenta
do “espetáculo” durante toda a sua vida. O certo é que Guy Debord
ou cem anos, Debord também aparecerá como um autor que
já não é um autor “clandestino”, longe disso. Transformaram-no
seremos forçados a admirar por seu estilo, sua verve e suas
em um autor “como os outros”, mas tiveram êxito ao fecha-lo no
observações justas, mas que, no fundo, detestamos.
falso pantheon dos “clássicos modernos”? Nada é menos certo.
Terá a mesma sorte que alguém como o duque de Saint-
partidários. Entre os que hoje admiram as suas frases assassinas
Simon. Esta aproximação com o memorialista não pretende repetir
não há muitos que poderiam honestamente se identificar com seu
a afirmação, que já se tornou banal, segundo a qual Debord escreve
ponto de vista ao invés de serem herdeiros daqueles que, tal como
e pensa como os moralistas do Grande Século. Considerando-se a
Colbert, foram vilipendiados pelo duque. Se Saint-Simon
extensão média das frases ou o número de páginas, Debord e Saint-
condenou sua época, considerando-a decadente, ele o fez a partir
Simon são antípodas um do outro. Mas ambos são, e assim
de sua própria situação, muito particular.
permanecerão, estrangeiros na literatura francesa. É significativo
Pode-se dizer a mesma coisa a respeito de Guy Debord.
que um dos maiores manuais escolares de literatura francesa
Quem, entre os novos leitores de Debord, não deveria se sentir
consagre a Saint-Simon muito menos importância do que, por
visado pela descrição que é feita dos seus contemporâneos, por
exemplo, a um Lamartine, afirmando que “o homem é pouco
exemplo, no início do filme In girium…?. Quem poderia pretender
simpático”, porque vê apenas o lado negativo das coisas. Não
compartilhar a posição a partir da qual Debord escreveu as suas
devemos nos surpreender: na genealogia da modernidade, supõe-
obras “literárias”? Certamente não os que encontram alguma coisa
se que todos os autores franceses a partir do século XVII pertencem
que se possa poupar nas condições existentes, como diria o próprio
ao Iluminismo ou aos seus precursores. Saint-Simon é o único
Debord. E certamente não há nenhuma vantagem para os que
grande autor dessa época que definitivamente não se pode incluir
atualmente contestam o mundo. Nas suas últimas obras, Debord
em tal esquema. Do mesmo modo, não pode se pode incluí-lo entre
continua mostrando-se implacável em relação aos poderes
os “reacionários”, porque combatia a monarquia absolutista.
dominantes e à situação que criaram, mas já não encontra em parte
Enojado pelo novo poder estatal, da mesma maneira que pela nova
alguma os revolucionários. Alguns ocultam que, no documentário
burguesia, distante de qualquer preocupação “democrática”, esse
Guy Debord, sua arte, seu tempo, no qual Debord é também
defensor da antiga feudalidade era a voz de um partido sem
coautor, ele apresenta imagens de escolas do subúrbio apenas sob
o signo da decadência do mundo espetacular, e não sob o da
Queria-se escrever como eles, ser maldoso como eles, mas não se
contestação e da criação de uma cultura nova. É certo que Debord
tem absolutamente o desejo de considerar a natureza dos seus
não apreciava o hip-hop. Ele certamente não era “politicamente
ataques.
correto” e não se inscrevia de forma alguma no conformismo de esquerda. Combateu a guerra da Argélia, mas nunca se referiu ao
Podemos dizer sem temor: Guy Debord não será recuperado para sempre.
“antirracismo” ou ao “multiculturalismo” que vigoram nos dias de hoje.
Tradução por Marcos Barreira Proclamou e viveu a liberdade dos costumes, mas ficou
distante do feminismo e ironizou esse novo crime que seria chamado “homofobia”. Nas obras literárias dos seus quinze últimos anos, aparentemente mais “inofensivas”, ele se permite julgar o mundo a partir do caráter único de sua própria vida. É o que com prazer se chama sua “atitude aristocrática”. Nesse aspecto, Debord assemelha-se ao escritor austríaco Karl Kraus. Kraus também tinha muitos admirados que não podiam estar certos de não figurar entre os seus alvos. Todos os três, Debord, SaintSimon e Kraus, são testemunhas nos processos contra as suas épocas, mas são aqueles testemunhos que escapam às classificações habituais. Qualificou-se Saint-Simon e Kraus de “reacionários” e começou-se a fazer o mesmo com Debord.
Título original: Guy Debord, um auteur comme les autres? Publicado em L”Avant-garde inacceptable. Réflexions sur Guy Debord