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Renato Janine Ribeiro (orlo)
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• Ao Leitor sem Medo - Hobbes escrevendo contra o seu tempo - Renato Janine Ribeiro • Crime, Violência e Poder - Paulo Sérgio Pinheiro (org.)
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Elegia Erótica Romana - Paul Veyne Escritos Indignados - Paulo Sérgio Pinh~iro Literatura como Missão - Nicolau Sevcenko Nietzsche Hoje? - Scarlett Marton (org.) A Ordem Médica - Jean Clavreul Passeios ao Léu - Gérard Lebrun Pornéia - Aline Rousselle Repressão Sexual - Essa nossa (deslconhecida - Marilena Chauí Sade, Meu Próximo - Pierre Klossowski Terra Sem Mal - O profetismo tupi-guarani - Hé/(me C/astres
Recordar Foucault Os textos do Colóquio Foucault
Coleção Primeiros Passos • O que é Poder -
Gérard Lebrun
Coleção Tudo é Hist6ria • A Etiqueta no Antigo Regime -
Renato Janine Ribeiro
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f Copyright © dos Autores Capa: João Baptista da Costa Aguiar Revisão: José W. S. Moraes Lenilda Soares Mârcia Copola
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Editora Brasiliansa S.A. R. General Jardim, 160 01223 - São Paulo - SP Fone (011) 231-1422 ~
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Apresentação - Renato Janine Ribeiro. . . . . . . . . . . . .. . 7 Transgredir a finitude - GérardLebrun' .. . ; :0_. . • •• • • • 9 O discurso diferente-RenatoJanine Ribeiro . ... ; ... 24· Foucaultleitor de Nietzsche - Scarlett Marton ........ 36 Nas origens da História da Loucura: uma retificação e seus limites - Pie"e Macherey ..................... 47 A corporeidade outra -José Carlos de Paula Carvalho .. 72 Uma arqueologia inacabada: Foucault e a psicanãlise RenatoMezan ... ;'........................... 94 A loucura antes da história -JoãoA. Frayze-Pereira . . .. 126 História e doença: a partitura oculta (A lepra em São Paulo, 1904-1940) ....,.italoA. Tronca .............. 136 , O Alienista de Machado,de Assis: a loucura e a hipérbole -Luiz Dantas ... _... :' .... _. : .. '... ': ..... '. '.. '. '. '144 .. A vinha e a rosa: sexualidade e simbolismo em Tristão e Isolda -Hilário FrancoJr. ..................... 153_ Charles Baudelaire: o discurso em desordem - Nicolau Sevcenko . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .. 186 O lugar das instituições na sociedade disciplinar - Salma TannusMuchail .......... _................... 196 Genealogia e política - Antonius Jack Vargas Escobar .. 209 De Eva a Santa, a dessexualização da mulher no BrasilL. Margareth Rago ........................... 219 O castigo exemplar dos escravos no Brasil colonial SilviaHunoldLara ............................ 229 0 ••
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rf Foucault: levantamento bibliográfico de artigos e periódicos - Márcia C. Sampaio Ferraz, Vera Lúcia Junqueira, Márcia N. dos Reis Carvalho e Eunice do Vale 239
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Michel Foucault faleceu em junho de 1984. Estava em plena produção intelectual, e sua morte foi muito sentida inclusive no Brasil, onde, das vezes em que esteve, deixou amigos, admiradores e idéias. Em São Paulo, especialmente, lecionou duas vezes no Departamento de Filosofia da USP, uma em 1965, na rua Maria Antônia, outra em 1975, já na Cidade Universitária - interrompendo este segundo curso em protesto contra atos de repressão policial. Também deu conferências, acorridas, no Rio de Janeiro. Para lembrá-lo, O Departamento de Filosofia da USP promoveu um Col6quio sobre a sua obra e os seus temas, de 15 a 20 de abril de 1985, com O apoio da FAPESP e da Brasiliense Produções Culturais. Este volume publica parte dos trabalhos apresentados ao Col6quio Foucault, que teve a participação de quarenta pesquisadores, comunicando-se seus interesses, discutindo suas inquietações. Recordar Foucault, para n6s, não é porém pagar uma dívida da instituição com O visitante: é marcar a nossa proximidade de um pensamento que não nos proporcionou apenas conhecimentos, infundiu-nos, também, inquietações - que são a consciência de nossos desconhecimentos. Não é esta uma velha obsessão filos6fica, a de saber-se que não se sabe? De S6crates a Hobbes, a Merleau-Ponty, entre tantos outros, a paixão de conhecer esteve ligada a uma depuração, a um desprendimento; a douta ignorância, os elogios da curiosidade e dafilosofia marcam uma ascese - que é um processo de vida.
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APRESENTAÇÃO
Este moto perpetuo da curiosidade, que consiste em desfazer as figuras que se construiu, desfazê-las com tanto rigor quanto se pôs em edificá-las, é um dos sentidos fortes, para n6s, do que é pensar. Há, certamente, muitos estilos de pensamento e filosofia; neste proprio livro aparecem vários, distintos; mas a cercania que temos de Foucault está neste amor a um pensamento que, como o de Heidegger (O que significa pensar?), jamais se reduziu à mera razão, a um trabalho de obra que nunca restringiu a descoberta em favor da exposição, neste amor, enfim, à descoberta que faz e desfaz. Pudéssemos n6s, antes de passarmos às falas sobre Foucault, fazer nossas as frases dele, perto de morrer, na bela página em que resume o que entendeu por filosofia:
Transgredir a tinitude Gérard Lebrun*
O motivo que me impulsionou [a escrever este livro] foi muito simples. Para alguns, espero, este motivo poderá ser suficiente por ele mesmo. É a curiosidade - em todo caso, a única espécie de curiosidade que vale a pena ser praticada com um pouco de obstinação: não aquela que procura assimilar o que convém conhecer. mas a que permite separar-se de si mesmo. De que
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oucauit descreve em várias ocasiões, e sob vários enfoques, a grande ruptura que ocorre na cultura ocidental ao passar-se do século XVIII para o XIX, quando desaparecem os saberes da "Representação" (Gramática Geral, História Natural, Análise das Riquezas). Durante a "idade da representação", era óbvio que conhecer consistia em reconstituir o encadeamento das naturezas simples, ou o encaixamento das espécies naturais. Também era óbvio que a ordem das coisas, já por seu princípio, era passível de desdobrar-se num quadro. Conhecer era ver, "no sentido de perceber". E, mercê do bom uso do Método, esse saber não passava, em todos os domínios, da contínua supressão da distância - aliás puramente aparente - entre a representação e o ser. Ora, é essa aliança que se rompe quando emergem, desligados da Representação, es· tes objetos novos que são a Vida (para a biologia), a linguagem (para a filologia), o trabalho (para a economia política), e se dissolve "o campo homogêneo das representações ordenadas" . 1 Tudo então se modifica, a começar pelo sentido do conhecimento-visão: ver será "conservar, da experiência, a maior
valeria a obstinação do saber se ele assegurasse apenas a aquisição dos conhecimentos e não, de certa maneira, e tanto quanto possível, o descaminho daquele que conhece? Existem momentos na vida onde a questão de saber se se pode pensar
diferentemente do que se pensa, e perceber diferentemente do que se vê, é indispensável para se continuar a olhar ou a refletir. (... ) O "ensaio" - que é necessário entender como experiência modificadora de si no jogo da verdade, e não como apropriação simplificadora de outrem para fins de comunicação - é o corpo vivo da filosofia, se, pelo menos, ela for ainda hoje o que era outrora, ou seja, uma "ascese", um exerclcio de
si, no pensamento. (O uso dos prazeres, trad. Maria Thereza Albuquerque, Rio de Janeiro, Graal, 1984, p. 13) Renato Janine Ribeiro Organizador do Colóquio Foucault i
Este é o momento de agradecer: à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo, pelo auxilio que proporcionou ao Colóquio; a Marilena Chaui, pelo impulso; a Jorge Coli, que se deu ao trabalho de transcrever, pelo telefone internacional, a comunicação de Luiz Dantas, para que chegasse a tempo; a Djalma lsidoro de Mello, a Scarlett Marton, aos funcionârios do Departamento de Filosofia da USP e a todos os que apoiaram o Col6quio, trazendo-lhe os seus textos e idéias, a sua curiosidade ou a sua atenção.
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(*) Da Universidade de São Paulo. (1) Les mots et les choses, Paris, Gallimard, 1966, p. 255. (As citações são traduzidas do francês, diretamente; damos, porém, 'quando possrvel, a página da tradução disponivel em português - neste caso, As palavras e as coisas, Lisboa, Portugâlia Editora, 1968, pp. 318-319 - N.T.)
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opacidade corporal" possível, e "penetrá-Ia com um olhar que nunca lhe traz mais que a sua própria claridade". 2 O ser humano, portanto, deixa de ser esse embaixador do Verbo Divino que detinha o poder de fazer desdobrar-se a mathésis ou a ordem taxionômica. Submetido "à Vida, à Vontade, à Palavra", o ser humano - transformado em homem - agora somente poderá praticar o "Conhece-te a ti mesmo" mediante recurso a saberes que não mais dependem de sua clara consciência, e que ameaçam o seu estatuto de Sujeito. Assim sendo, esses novos saberes encerraram o ser humano numa finitude muito diferente da que fora delineada pela ontoteologia. 3 Relativamente ao saber divino, a finitude clássica designava tudo o que tolhia o acesso do homem à verdade. Qual era o meio excelente de reconhecê-Ia? Os erros dos sentidos e da imaginação. Vejo o Sol a duzentos passos, o bastão quebrado dentro d'água, a Lua maior no horizonte do que no zênite: nostrae naturae infirmitas... Contudo, quando a Vida, a Linguagem e o Trabalho se tomam, na sua própria opacidade, objetos de saber, é uma outra idéia de finitude que se impõe. Para marcar esta nova Finitude, já não é mais preciso meditar na dependência da substância criada relativamente ao Criador, ou na fragilidade do "junco pensante" perante um universo que pode esmagá-lo a qualquer momento. Não é mais preciso, sequer, confrontar as condições de meu conhecimento com a Idéia de um "entendimento intuitivo". Estamos postos, agora, diante de um Faktum que escapara ao pensamento clássico: a saber, que o ser humano somente se pode pôr como sujeito e como indivíduo porque já está "aprisionado" num elemento estranho, investido por algo que lhe é Outro. - Por certo, o classicismo podia falar de "meu lugar limitado no universo, (de) todos os marcos que medem o meu conhecimento e a minha liberdade" - mas não chegava a reconhecer esta alienação constitutiva, inextirpável. Ê verdade que a Terceira Meditação me recorda que "não sou o autor de meu nascimento e de minha existência". Mas, no âmago desta existência, ainda há enorme lista das
coisas de que não sou autor: a língua que falo, a sexualidade que me coube, as relações de produção que me tomam, etc. Ora, nestes temas, o pensamento clássico apenas poderia identificar outras tantas formas de minha posição de inferioridade perante o infinito - sinais suplementares de uma situação humilhante, é certo, porém ainda assim invejável na ordem da Criação. Nada, em todo caso, que indique que algo contesta, ameaça o pensamento no seu próprio interior. Uma tal eventualidade cuida Descartes de descartar desde o início: "Nunca se pode excluir que o homem enlouqueça, porém o pensamento, enquanto exercício da soberania de um sujeito que atende ao dever de perceber o que é verdadeiro, não pode ser insensato". 4 - Será preciso aguardar o homem da episteme moderna - ou melhor, "a figura nova" que recebeu "esse velho nome" 5 - para que a Finitude não seja mais pensada como um território cujos limites posso traçar, mas sim entrevista como a própria sombra do homem, como uma opacidade origmária que nenhum exercício da consciência de si jamais poderá dissipar. Ê desta "experiência" que brota a analítica moderna da Finitude: "(o homem), desde que pensa, desvenda-se a seus próprios olhos apenas sob a forma de um ser que já é - numa espessura necessariamente subjacente, numa irredutível anterioridade - um vivo, um instrumento de produção, um veículo para palavras que a ele preexistem". ' Assim nasce o "Cogito moderno", a respeito do qual disse Merieau-Ponty que "ele não define a existência do sujeito pelo pensamento que tem este de existir, nem converte a certeza do mundo em certeza do pensamento do mundo" . Um cogito, portanto, que constata a impossibilidade de igualar-se, um dia, o Eu penso ao Eu sou - e que Foucault analisa, pastichando Descartes. - Quando Descartes pretendia determinar, de maneira apoditica, "qual eu sou eu, eu que eu reconheci ser", ele procedia por exclusões: "Não sou, absolutamente, esta reunião de membros ... não sou, absolutamente, um ar sutil e penetrante ... não sou, absolutamente, um vento, um sopro ... ". O sujeito moderno certamente tam-
(2) Naissance de la clinique, Paris, PUF, 1963, p. IX. Nascimento da cllnica, Rio de Janeiro, Editora Forense-Universitãria, 19n, p. XII. 13) Naissance de la clinique, p. 200; Les mots et les choses, pp. 3Zl e segs. Nascimento da clinica, p. 228; As palavras e 8S coisas, pp. 411 e segs.
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(4) Histoire de /a folie à /,âge classique, Paris, Gallimard, 2~ ed., 1972, p. 58; História da/oucura, São Paulo, Perspectiva, 1978, p. 47. (5) Lesmotsetleschoses, p. 333; Aspa/avrss8as coisas, p. 419. (6) Lesmotsetleschoses, p. 324; Aspalavraseas coisas, p. 408 .
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bém poderia praticar a mesma exclusão indefinida: "Poderei eu dizer que sou esta linguagem que falo ... ? Poderei eu dizer que sou esta vida que sinto no fundo de mim ... ?". 7 Não, não posso. E no entanto, por estranhos que me sejam estes elementos, não resido neles como um piloto em seu navio. "Tanto faz eu dizer que sou, ou que não sou, tudo isto." Por isso, é preciso reformular a questão cartesiana, e perguntar: "Que devo ser eu, eu que penso e que sou o meu pensamento, para eu ser o que eu não penso, para que meu pensamento seja o, que eu não sou?". 8
sem fim, entre a descrição e a fundação. Praticamente não nos reserva surpresas, pois jã estamos previamente assegurados de "descobrir no homem o fundamento do conhecimento, a definição de seus limites e, para concluir, a verdade de toda a verdade". 10 Mais ainda: esse discurso nos mantém num novo sono dogmãtico, que só acabarã quando se tiver a coragem de reconhecer que o homem não passa do nome de um dispositivo da episteme moderna, e quando se tiver "suspendido ... o preconceito antropológico sob todas as suas formas", para "tornar a interrogar os limites do pensamento". Nietzsche, acrescenta Foucault, foi quem deu o sinal para isso. - Sartre parece constituir o principal alvo dessa pãgina. Mas Foucault visa, para além dele, toda a analítica da finitude isto é, a fenomenologia e sua derivação existencialista. Depois de analisar a sua dialética com uma minúcia que o leitor desprevenido confundirã com simpatia, declara-nos sem mais cerimônias que toda essa filosofia é estéril, e que o seu esgotamento bem poderã marcar, de uma vez por todas, a falência de todo um estilo de pensamento. Hã, porém, em pelo menos uma outra passagem de As palavras e as coisas, a abertura de um enfoque algo diferente sobre a fenomenologia. A analítica da finitude - é o que diz Foucault - mostra "como o pensamento pode escapar de si mesmo", e às vezes acontece que ela questione o ser do homem, "nessa dimensão' pela qual o pensamento se dírige ao impensado e se articula nele". Incorreríamos, portanto, em equívoco, se levãssemos demasiado a sério o projeto oficial de Husserl. A fenomenologia não é "a retomada de uma velha destinação racional do Ocidente" . 11 Ela também foi uma filosofia da "era do homem", de modo que não hã o que estranhar se, "apesar de principiar por uma redução ao Cogito, ela sempre foi levada a questões, à questão ontológica". Não hã o que estranhar se a fenomenologia, transgredindo-se a si mesmo, foi levada a "pensar o impensado", esse Outro absoluto do homem, que o pensamento do século XIX evocou de maneira intermitente. - A fenomenologia, por sinal, não é uma exceção. Outras anãlises de Foucault nos dão a entender que a
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Contudo, é hora de recordar que Foucault não estã falando aqui, em seu próprio nome: contenta-se em designar um lugar, em seu mapa arqueológico, à "Finitude moderna" - e, muitas vezes, dã a palavra a Merleau-Ponty, esse incansãvel crítico do "pensamento que sobrevoa". Como poderia o pensamento, perguntava Merleau-Ponty, elidir o seu enraizamentono corpo, na linguagem, na infância? A menos que vã viver em Sírius, ele terã de reconhecer que "o espírito é o outro lado do corpo", que ,"o mundo sensível é mais velho que o universo do pensamento". Este tema Foucault retoma quando vai descrever o "Cogito moderno": "Como pode o homem ser o sujeito de uma linguagem que se formou sem ele, desde milênios, e cujo sistema lhe escapa ... ?". 9 Vale a pena repetir: Foucault fala aqui como arqueólogo, e descreve a forma de Finitude que devia necessariamente corresponder à "era do homem" . Da mesma maneira, mutatis mutandis, que a Fenomenologia do Espírito descrevia "a consciência infeliz" ou "a Aufkliirung" . Acontece, porém, que o arqueólogo se desfaça de sua neutralidade e emita um juízo - severo - sobre a analítica da finitude. Pois este discurso gira no vazio. O seu combate contra o cientismo e o positivismo jã de nada serve: "A verdadeira contestação ao positivismo não estã num retorno ao vivido ... ". O retorno ao vivido fica aprisionado num vaivém (7) Les mots et Iss choses, p. 335; As palavras e as coisas, p. 422.
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(S) Los mots et les choses, pp. 335-336; As palavras e as coisas, p. 422. {9l Les mots et les choses, p. 334; As palavras e as coisas, pp. 420-421.
(10) Les mots et les choses, p. 352; As palavras e as coisas, p. 444. (11) Les motsetles choses, p. 336; As palavras ees coisas, p. 423. '0. 0
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Em poucos anos - os que são marcados pelos nomes de Tuke e Pinel-, o internamento muda de função. Deixa de constituir uma simples medida de proteção social. Desde então, os loucos não serão mais misturados com os debochados, os pródigos e os blasfemos: de elementos a-sociais, convertem-se em doentes, objeto de observações e cuidados clínicos. Sem dúvida, o asilo continua sendo um recinto de exclusão, e o louco não é um paciente qualquer. Se voltou a ser nosso irmão, é também uma razão expulsa de si mesma, devolvida à "inocência animal", embora conserve - o que é pior - as aparências da razão. Pois esses insensatos raciocinam e respeitam o princípio de contradição. Quem se toma por Napoleão nega ser Luís XIV. Aquele que pensa ter um corpo de vidro evita' esbarrar em objetos duros ... A essa razão naturalizada, é preciso dar um estatuto - e foi com este fim que se inventou a psicologia: "O que era doença dependerã, agora, do orgânico; e o que pertencia à desrazão, à transcendência de seu discurso, serã nivelado no psicológico". IJ O nascimento da psicologia marca portanto, a um só tempo, o abandono da noção de Desrazão (que a partir de então se terá por obscurantista) e o reconhecimento do fato de que a "doença mental" é, porém, alguma coisa que ultrapassa os processos orgânicos - de que o tratamento no asilo não se pode reduzir à ducha fria, ao chicote ou aos sedativos. Ê preciso falar com os doentes, ter a paciência de desemaranhar suas ilusões, tentar devolvê-los à sua essência de "sujeitos responsáveis". Se o psiquiatra não é um médico como os outros, é portanto porque sua tarefa consiste, na verdade, em exorcizar por novos meios a antiga Desrazão. Como explicar, então, o inesperado banimento desse conceito? Ê nesse ponto que encontramos, pela primeira vez na obra de Foucault, o grande corte que separa a era da Representação e a era do homem. A Desrazão era um conceito típico da Representação. Do louco ela fazia um homem cegado, apartado da verdade - mais um insensato no sentido bíblico do que um doente. Com a "loucura" medicalizada, tudo serã bem diferente. Nela, o homem não perde mais o acesso à Verdade, o contato com o Verbo Divino: estes traços já não per-
episteme moderna por mais de uma vez esteve a ponto de superar a figura de finitude, ainda aconchegante, por ela mesma constituída, e que ela própria nos convida a problematizar a base da qual trabalhava.
* * * Em que consiste exatamente o carãter insatisfatório da "Finitude Moderna" descrita pelos filósofos? Por que precisa ser suspensa essa estrutura? - Uma passagem de Diferença e Repetição, de Deleuze, pode esclarecer esse aspecto da leitura que Foucault faz do século XIX. Os filósofos, diz Deleuze, e em particular os do século XIX, muitas vezes tentaram ampliar a imagem do qUe eles (comodamente) chamavam de "negativo", de modo a não mais o reduzirem ao erro por distração, tão caro a Platão (vejo Teeteto, e digo-lhe "Bom-dia, Teeteto"). Mas não foram por essa via tanto' quanto deviam. Se tivessem meditado sobre Flaubert, por exemplo, compreenderiam que uma noção como a da burrice "é objeto de uma questão transcendental: como é possível a burrice". 12 Como é que o indivíduo é tomado por "uma animalidade distintivamente humana?" Não se ousou enfrentar esse tipo de questões. Mas tais questões tampouco foi possível escamotear por completo. - Ora, não é justamente essa situação ambígua que vemos descrita, em algumas pãginas de Foucault? Pãginas que merecem ter a nossa atenção, pois nos previnem contra a tentação de reduzir sua obra a uma alegre e ligeira demolição de saberes ingênuos e farisaicos. Não hã dúvida de que Foucault, do começo ao fim, é esse demolidor. Mas serã ele apenas isso? Tomemos o exemplo de um saber que ele jamais isenta de sua severidade: a psicologia, nascida no século XIX, da forma como aparece na Hist6ria da loucura. Serã que a psicologia apenas cumpre uma tarefa de oblitera· ção e recalcamento? Não apontarã, mesmo sem o saber, para a idéia de uma outra "finitude" _ que, esta, jã não seria considerada dominãvel? Um dos momentos decisivos da Hist6ria da loucura é o do apagamento, no final do século XVIII, da noção de Desrazão.
(13) Histoire de /a folie, pp. 359-360; História da loucura, p. 337.
(12) Gilles Deleuze, Différence et répétition, Paris, PUF, 1968, pp. 194-
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tencem, como sabemos, à "finitude moderna". O que lhe sucede é outra coisa: ele se afasta de sua essência (de ser razoãvel e de cidadão). Não hã dúvida de que a fronteira entre o alienado e o são de espírito continua nitidamente traçada, mas a divisão jã não se efetua segundo o mesmo critério. É que, agora, "o ser humano não se caracteriza por uma certa relação com a verdade, mas detém como seu bem próprio, a um tempo exposto e escondido, uma verdade".14 E o que mais importa, para o saber do século XIX, é que essa verdade apenas esteja ocultada, e que fazê-la reaparecer dependa da arte do terapeuta. Essa nova percepção que se tem do insensato aparece com toda a clareza no texto da Enciclopédia de Hegel a respeito da loucura (§ 408). O louco deixou que o "gênio mau" da particularidade triunfasse dentro dele, mas não perdeu a razão. Os loucos continuam sendo sittliche Wesen, essências morais, continuam tendo consciência do Bem e do Mal - e é por isso que o seu lugar é no asilo, não na prisão (nada têm a ver com os perversos, cujo "único delirio é o do vício", como dizia Royer-Collard acerca de Sade). O terapeuta, acrescenta Hegel, pode assim apoiar-se no que hã de "racional" no doente para devolvê-lo a seu besseres Selbst, ao melhor de si mesmo. O louco é um ser reintegrãvel na razão. Essas pãginas contrastam com as que a Fenomenologia do espírito consagra ao Sobrinho de Rameau (Foucault referese a elas). O louco, medicalizado por Pinel, não submete mais o homem racional à prova que o Sobrinho impunha à "consciência honesta" da Aufkliirung. O discurso de desrazão do Sobrinho era a "perversão de todos os conceitos e de todas as realidades" a que se apega a "consciência honesta", era a encenação cruel de suas contradições. Em Hegel, é este o momento em que a dialética se alia com a Desrazão contra o Entendimento. Mas tal momento serã de curta duração. E o elogio de Pinel, na Enciclopédia, mostra o quanto Hegel aprecia que o asilo moderno tenha transformado a Desrazão numa doença em princípio curãvel - o quanto estã satisfeito de ver neutralizada mais essa figura da "Finitude". - Hegel constitui um bom exemplo da maneira como saberes e filosofias
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tornaram inofensiva a questão da loucura, preferindo relegar ao esquecimento a risada do Sobrinho e o que nele, segundo Foucault, se anunciava: "que o homem é remetido sem cessar da razão à verdade não verdadeira do imediato". - Este é o primeiro aspecto pelo qual a razão esclarecida assume a tutela da loucura. Mas quem sabe ler entre as linhas pode interpretar de outro modo a "experiência" da loucura tal como foi constituída pelo começo do século XIX. Não serã, a fronteira que separa o louco do são de espírito, mais indecisa do que parece à primeira vista? Podemos até nos perguntar se, nessa episteme que postula que "o ser humano deve poder, pelo menos teoricamente, tornar-se transparente por inteiro ao conhecimento objetivo", não seria a loucura "a primeira figura de objetivação do homem". 15 Desde que os loucos são tidos por seres racionais em potência, o ser racional é considerado como um candidato à loucura. De resto, ele precisa do louco para conhecer melhor, por contraste, a sua essência, e determinar o perfil de sua normalidade. Assim, diz Foucault, libertando o louco de suas cadeias, Pinel "acorrentou ao louco o homem e sua verdade. Desde esse dia, o homem tem acesso a si mesmo enquanto ser verdadeiro; mas este ser verdadeiro somente lhe é dado sob a forma da alienação ... o homem, hoje em dia, só tem verdade pelo enigma do louco que ele é e não é" . 16 Foucault pretenderã apenas debochar, aqui, do objetivismo das ciências humanas? É pouco provãvel, pois o objetivo da arqueologia não é diretamente polêmico. O arqueólogo propõe-se remontar até as condições de possibilidade de uma "experiência" (da loucura, da clínica). E o Nascimento da clínica precisa: "Este livro não é escrito em favor de uma medicina e contra outra, ou contra a medicina, em favor de uma não-medicina. Aqui, como em outros lugares, trata-se de um estudo estrutural que procura decifrar, na espessura do histórico, as condições da própria história". 17 - Lendo esta pãsina de Foucault, parece-nos que a superação da "finitude moderna" estava incluída na própria cultura que a elaborava. - Não diremos que esse tema foi recalcado ou censurado por
b 114) Histoire de la fOlie, pp. 548-549; Hist6ria da loucura, p. 522. ~
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115) Histoire dela folie, p. 481; Hist6ria da loucura, pp. 456-457. 116) Histoire dela fo/ie, p'. 548; Hist6ria da loucura, pp. 521-522. (17) Nsissance de la clinique, p. XV; Nascimento da cllnics, p. XVIII.
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tal cultura (assim retomaríamos aos pressupostos da exegese, que faziam horror a Foucault). Antes diremos, para seguir a metodologia do autor, que esse tema constitui uma linha de "regularidade" legivel nessa "formação discursiva". Tomemos um outro exemplo. Um dos traços característicos do século XIX é o privilégio epistemológico que se concede ao patológico. "Não foi por acaso.que o século XIX preferiu perguntar à patologia da memória, da vontade e da pessoa o que era a verdade da lembrança, do querer e do indivíduo." 18 Esse tema já aparecia nas aulas de Foucault, entre 1953 e 1955: será por acaso que a psicologia dos testes e a psicologia da criança nascem do estudo das crianças anormais? de onde vem a noção de idade mental, se não for da patologia? de onde vem a pedagogia moderna, se não for da intenção de integrar na escola as crianças retardadas? - Não, não foi por acaso que o desaparecimento da Desrazão transformou a função do patológico, deixando este de constituir o mero "negativo" da normalidade. O doente mental tomou-se um documento vivo, uma mina de informações. Ele é irredutivelmente o meu Outro, mas é decifrando este Outro que eu tenho as melhores oportunidades de aprender quem eu sou. Eis o esboço de uma figura de Finitude que não mais se poderá desdobrar sob o olhar de um Sujeito. - Relendo o fim da Hist6ria da loucura, quase ousaríamos dizer que ocorre como que um "progresso epistemológico", do ponto de vista do arque6logo, ao passar-se da era clássica à idade da psiquiatria. Na "loucura" moderna, "o homem não é mais considerado numa espécie de retiro absoluto perante a verdade; ele é a sua verdade e o contrário de sua verdade; ele é ele mesmo e outra coisa que não si mesmo ... " . E o mesmo tom reaparece na página de As palavras e as coisas que retoma e resume esse tema: "nossa consciência ... vê surgir o que, perigosamente, está o mais próximo de nós ... ; a finitude, a partir da qual somos e pensamos e sabemos, aparece subitamente à nossa frente - existência a um só tempo real e impossível, pensamento que não podemos pensar, objeto para nosso saber, mas que sempre se furta dele" .19 - Contudo, uma coisa é a "expe-
(18) Histoire dela folie, p. 481; História da/aucura, p. 457.
(19)- Les mots et les choses, p. 387; As palavras e as coisas, p. 487.
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riência" que aparece, outra coisa são OS discursos dos psicólogos, médicos e filósofos que vivem nessa "experiência". Eles preferem representar, a seus olhos e aos nossos, o louco como um ser racional diminuído, quando na verdade o louco, por obra deles, tomou-se aquele cuja presença me faz sentir (ou deveria fazer-me sentir) a minha fragilidade de vemünftiges Wesen, de ser racional. Os saberes esquivaram aquilo mesmo que se anunciava nas suas práticas, nos seus métodos. Ê o que Foucault afirma com toda a clareza no final da Hist6ria da loucura. A psicologia, desde que nasceu, esteve "na encruzilhada": ou enfrentar a escura verdade do homem e "terminar filosofando a marteladas", ou então tentar, interminavelmente, submeter o homem a um "conhecimento verdadeiro", travando ao mesmo tempo uma polêmica, não menos interminável, com as Analíticas da Finitude. Escolheu-se esta última via, a da facilidade. Ajeitando-se de modo a poder. sempre recuperar - quer pelo conhecimento objetivo, quer pelo retomo ao vivido - o sentido dos conteúdos da Fínitude, o pensamento moderno pecou por excesso de timidez . Já a medicina não teve tais pudores. E talvez seja nestas páginas, que descrevem a irrupção da anatomia patológica no saber médico, que melhor se pode perceber o que Foucault esperava de uma radicalização da Finitude. Desde Bichat, a doença não é mais compreendida como uma "contranatureza", como uma desrazão orgânica, como o foi na era clássica. Também neste domínio a divisão "ser/não-ser" vê-se posta em xeque. Percebe-se que a degeneração dos órgãos não somente obedece a leis, mas que ela é o avesso do funcionamento do organismo - que "a morte não se insinua apenas sob a forma do acidente possível; ela forma, com a vida, com os seus movimentos e o seu tempo, a trama única que a um só tempo a constitui e a destrói". '" Essa túnica de Nesso, como poderíamos considerá-la como "negativo"? A doença não é desvio: é também uma análise, epistemologicamente preciosa, dos sistemas de tecidos, de seus diversos graus de resistência e fragilidade. E a própria morte não se reduz a "uma noite em que a vida se apaga": 21 é, antes de mais nada, a melhor fonte
(20) Naissance de la clinique, p. 159; Nascimento da cllnica, p. 180. (21) Naissance de la clinique, p. 146; Nascimento da cllnica, p. 165.
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de informações para o médico. "A partir de agora, é do alto da morte que se podem ver e'analisar as dependências orgânicas e as seqüências patológicas". 22 O que foi denominado o "vitalismo" de Bichat consistiu portanto, acima de tudo, no reconhecer "a ligação fundamental entre a vida e a morte". "Foi quando a morte se tornou o a priori concreto da experiência médica que a doença pôde desligar-se da contranatureza e tomar corpo no corpo vivo dos individuos".23 Foi nessa nova problematização que nasceu o conhecimento objetivo do individuo vivo, assim como, acrescenta Foucault, "da experiência da desrazão nasceram todas as psicologias e a própria possibilidade da psicologia". Em muitas regiões os novos saberes transferem, sigilosamente, a verdade do ser humano para uma alteridade indissolúvel - que, no limite, dissolve o homem. Eles abrem "uma enorme sombra" que as analiticas da finitude tentam dissipar - porém em vão. "Esta sombra que vem de baixo é como um mar que se tentasse beber." 24
* * * Valia, pois, a pena mostrar como a episteme do século XIX conseguiu, em tantos pontos, transformar numa Alteridade positiva o que até então fora relegado ao "negativo". É verdade que esses saberes, ao mesmo tempo, fundavam a "finitude moderna", na qual residiu a maior parte das filosofias desde a de Kant, e que continua sendo (por quanto tempo ainda?) a nossa morada. Mas a obra de tais saberes é bem mais instrutiva do que o discurso dos filósofos que só muito raramente consegue pôr-nos perante a alteridade que estã no âmago -de nós mesmos. Enquanto a psicopatologia, a medicina, a economia politica pelo menos foram capazes de nos deixar entrever essa Alteridade não dominãvel, os filósofos se preocuparam mais foi com nos orientar na finitude, e com nos persuadir de que, nela, ainda permaneciamos bei Hause. 2S Os filósofos, mesmo quando parecem enfrentar grandes riscos, continuam munidos de um fio de Ariadne; as verdades de fato 1221 Naissance de la clinique, p. 145; Nascimento da cllnica, p. 166.
1231 Naissance de la clinique, p. 198; Nascimento da cllnica, p.
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(24) Les mots st /6S choses, p. 224; As palavras e as coisas, p. 280.
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com que deparam podem, sempre, ser transformadas em verdades de razão. É por isso que, dessa finitude moderna, arrumada com tanta engenhosidade, era necessário sair. Não para propor outra coisa: simplesmente para viajar com toda-a liberdade. Era preciso cortar as amarras. E é a partir disto que adquire sentido a noção - à primeira vista tão estranha - de "era do homem": positivistas, fenomenólogos, marxistas, vocês não sabem que vivem num mesmo e único território; eu, porém, fui mais adiante. Parece que Foucault deve ter percebido desde cedo a urgência dessa transgressão - que o levou a cortar as pontes com a fenomenologia e, no mesmo gesto, a afastar de si todo o discurso filosófico. Esta é apenas - não resta dúvida - uma dentre as abordagens possíveis da obra de Foucault. Importa, porém, ver a que tipo de colocações ela força o leitor. Em primeiro lugar, deve-se admitir que é vão procurar por uma filosofia de Foucault - o que significaria reinseri-Io num tipo de discurso que ele pretendeu, de forma sistemãtica, subverter. Deve-se admitir que não teria nenhum interesse recolocã-Io à força na vizinhança dessas analiticas da Finitude cujo iminente falecimento As palavras e as coisas anunciam, nem tampouco forçã-Io para dentro do recinto, da clausura, da Metafísica - em suma, fazer aqui o mesmo tipo de exegese a que Heidegger submeteu a obra de Nietzsche. - Mas, em segundo lugar, também se deve admitir que seria grave equívoco reduzir a obra de Foucault a uma metodologia da história ou das ciências humanas, e confiná-Ia na arqueologia. A arqueologia foi um dos métodos de que ele se'valeu - o que lhe permitiu analisar "as formas mesmas da problematização", como diz no Uso dos prazeres, ao distingui-Ia do método genealógico. A arqueologia não dã a chave de seu projeto, mas sim a medida de sua desconfiança face aos "discursos sérios", que ele pretendia retirar de circuito de uma vez por todas. Não é a arqueologia que pode explicar, por exemplo, por que a sua investigação terminou por focalizar-se na questão do sujeito mas sim a velha paixão que o animava contra as analíticas da Finitude. Citando Veyne: "O método de Foucault tem provavelmente, como ponto de partida, uma reação contra a onda fenomenológica que, na França, se produziu logo após a Libertação [em 1944). O problema de Foucault talvez tenha sido o seguinte: como conseguir mais do que pode uma filosofia da
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consciência sem, com isso, cair nas aporias do marxismo?". 26 Essa curiosidade vinha de mais longe: de uma vontade de transgredir, que devemos tomar todo o cuidado para não confundir - nem em Foucault nem em Nietzsche - com um furor de destruir. Convém relermos o diâlogo entre o arqueólogo e o filósofo, que fecha a Arqueologia do saber. - Você precisou recuar em todas as frentes diante dos vãrios estruturalismos, diz o arqueólogo - e, agora, você lhes propõe um acordo amigável. Reconhece as conquistas deles mas, em troca, pede que reconheçam a seriedade das suas problemáticas - o seu direito a indagar sobre a origem, a esboçar uma teleologia da história, a instaurar os seus a priori materiais ... Ora, o arqueólogo recusa-se a firmar esse acordo com um pensamento que se empenha - diz - em "ocultar a crise na qual já faz muito tempo que estamos e cuja amplidão só vai crescendo", crise em que se joga o destino do sujeito transcendental sob todas as suas formas, o questionamento do ser do homem, "enfim e acima de tudo, a questão do sujeito"." Nessas condições, é impossivel um compromisso, um meio-termo. É ne: cessário escolher. Ou ficamos nessa "finitude", que permite a continuação das exegeses, das investigações constitutivas e das dialéticas. Ou então salmos dela, isto é, invertemos o procedimento dos filósofos: recusamo-nos a utilizar todos os conceitos-chave repetidos pelas analíticas da Finitude (consciência, indivíduo, sujeito) e vamos procurar a verdadeira identidade (ou melhor, as verdadeiras identidades) dessas personagens por demais familiares - perguntar quais são as modificações teóricas, as práticas, os dispositivos que as produziram sob tal forma, em tal época, em tal área determinada. Já não nos contentaremos, neste caso, com perguntar de maneira vaga: como é que o homem é sujeito na vida? como é sujeito de uma linguagem mais antiga do que ele? O que os filósofos chamam, tão laconicamente, de Sujeito ou "homem" resulta de milhares e milhares de trabalhos que divergem ou se entrecruzam. São esses trabalhos que precisamos reconstituir -
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(Tradução de Renato Janine Ribeiro)
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(281 Hubert Dreyfus e Paul Rabinow, Michel Foucault. Un parcours philosophique au·delà de I'objectivité et de la subjectivité, Paris, Gallimard, 1984,
(26) Paul Veyne, "Foucault révolutionne l'histoire". in Comment on
écritl'histoire. Paris, Seuil, 1978, p. 383; trad. bras., in Como se escreve B história. Foucault revoluciona B história, Brasflia, Editora da Universidade de BrasPia, 1982, p. 179. (271 Archéologie du &avoir, Paris, Gallimard, 1969, p. 266.
p. 298 (trad. francesa do original americano: Michel FoUC8UIt. Beyond structura/ism and hermeneutics, Chicago, University cf Chicago Press, 1982). (291 Dreyfus e Rabinow, pp. 296-298. ~.
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mediante estudos precisos, exame de arquivos, anâlise de práticas. Perguntando, por exemplo: como, no Ocidente, numa época tal, o homem foi feito sujeito individual? ou se fez sujeito de uma "sexualidade"? É nisso que vai dar a transgressão da "finitude" boazinha e sem surpresas, na qual estávamos contidos: na possibilidade de irmos escavar, fuçar em toda parte, até mesmo zombando daqueles que nos peçam documentos de identidade - na possibilidade de fazer o Sujeito, tornado "sujeito", explodir em mil estilhaços. O objetivo de minhas pesquisas nos últimos vinte anos, escrevia F oucault em 1983, foi o de "produzir uma história dos diferentes modos de subjetivação do ser humano em nossa cultura". E esse estudo das modalidades de transformação "dos seres humanos em sujeitos" dividiu-se em três eixos: 1?) a transformação do sujeito em objeto de saber: "objetivação do sujeito falante sob a forma de Gramática Geral, de filologia, de lingüística ... ou ainda, a objetivação do mero fato. de ser vivo, sob a forma de História Natural ou de biologia"; 2?) produção do sujeito individual para fins políticos, sob a égide da divisão normal/patológico (louco/são de espirito, criminoso/homem de bem ... ); 3?) "a maneira pela qual um ser humano se transforma em sujeito ... a maneira pela qual o homem aprendeu a se reconhecer como sujeito de uma sexualidade". ia E Foucault acrescenta: "Não é portanto o poder, porém o sujeito, que constitui o tema geral de minhas investigações".29 - Eu quis apenas indicar um enfoque possivel, que permitiria tornar essa frase menos desconcertante.
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camelo; 1) et coetera; m) que acabam de quebrar a bilha; n) que de longe parecem moscas'. No deslumbramento desta taxinomia, o que alcançamos imediatamente, o que, por meio do apólogo, nos é indicado como o encanto exótico de um outro pensamento é o limite do nosso: a pura impossibilidade de pensar isto". 2 Nenhuma outra obra de Foucault exibe igual fascinação pelo literário/artístico: o prefácio e o livro nascem de Borges, o capo 1 trata de Velázquez, o capo 3 abre-se com D. Quixote. Estamos, talvez, em pleno exotismo: não apenas porque, via Borges, Foucault cita uma fantástica enciclopédia chinesa; mas porque suas três referências vêm do mundo hispânico dessas Espanhas que, no imaginário francês, representam desde muito tempo uma relação diferente, desmedida, com as paixões. A idade clássica de que Foucault vai tratar em As palavras, abre-se, assim, sob invocações espanholas: interessante maneira de recusar a tradicional ruptura classicismo/ barroco, de nomear como idade clássica algo que não é o classicismo do moi hafssable. No entanto, que são Borges, Velázquez, o Quixote nas análises do Foucault? Se procuramos ver o que, de cada um deles, resta no texto, parece ser pouco: servem a seduzir a atenção, a pontuar o discurso, a ressaltar algo que, adiante, será trabalhado conceitualmente. Exemplar é a conclusão do capo 1, que é fazer o balanço das Meninas de Velázquez (o que explica que muitos leitores de As palavras façam a economia desse capitulo, indo "direto aos conceitos"), como exemplar é, também, a moral que se extrai de Borges. Pensa-se com Borges, com Velázquez; mas o conceito depois explicita, aclara o que primeiro se viu sob a forma da figura. Da questão borgiana da impossibilidade de pensar - que Borges igu8J.mente elabora na sua Busca de Averrois e nos Tradutores das Mil e uma Noites'3- chega-se ao problema file
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181 Carl von Clausewitz, De la guerre 11832-341, livro 111, capo 9, pp. 207-208 da trad. francesa; Paris, Minuit, 1970.
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a falar so.bre isso. do. que o.s so.ciólo.go.s ... Esse texto. me incito.u, de certo. medo., a tentar analisar o. que ele chamo.u de "técnicas de co.rpo.". Cerne essas técnicas do. co.rpo. pedem traduzir uma "co.rporeidade própria" eu traduzir um co.rpo. Outro. _ cem O maiúsculo., cerne Lacan dizia -, escapando. de certo. medo. à regulação. so.cial do. co.rpo.? Ora, to.do.s sabem que isso. aco.ntece dentro. do.s quadres de uma iniciação.; e, se aco.ntece no.s quadres de uma iniciação., aco.ntece dentro. do.s quadros de uma regulação. so.cial. O mesmo. se pode dizer do levantamento. fenomenológico. de Eliade. Não. o.bstante, o. texto. de Mauss abre espaço. para se estudar aspecto.s que ho.je em dia eu tenderia a chamar de "biótico.s" - que significa a "física vital" e a "física social" da corpo.reidade - , para acabar cem a briga entre o.s biólo.go.s e o.s so.ciólogo.s, so.bretudo após o. mal-entendido. da socio.bio.lo.gia. Seria isto. po.ssível? É aqui que, per uma o.utra linha, entra Fo.ucault. Eu tinha o.utro. trabalho. paralelo.; era meu projeto. o.riginal de Doctorat d'État so.bre Bataille (que li per muito. tempo.). Em Bataille temes um centramento. so.bre a idéia de transgressão.; e a co.rpo.reidadeem Bataille apresenta-se de um medo. to.talmente éclaté ... Fo.ucault co.menta Bataille: é o. Préface à la transgression, texto. este difícil, ho.je, de se enco.ntrar. Mas um grupo. francês de pesquisa temática, chamado. "Inco.nsciente e Cultura", co.mpo.sto. per D. Anzieu, R. Kaes e o.utro.s, publico.u uma o.bra que se chama justamente O interdito e a transgressão, 19 co.ntendo. excerto.s - irifelizmente! - daquele trabalho. de Fo.ucault. '" Em Fo.ucault há algo. muito. interessante. Per um lado., na História da sexualidade 21 ele estuda o. "bio.po.der". O bio.po.der seriam exatamente aquelas técnicas de regulação. so.cial, de no.rmalização. eu, se vocês preferirem, de manipulação. da co.rpo.reidade vísando. fundamentalmente ao. co.nceito. de espécie e ao. co.rpo. dócil. É evídente que isso. aco.ntece na ótica do. Vigiar e punir, eu seja, na ·do. "Pano.ptico.n" eu das técnicas de co.nfissão..
cação. do. que as técnicas do.s culto.s de po.ssessão.. Mas Mary Do.uglas diz que há um quarto. tipo. que R. Firth não. co.nsidero.u, e que seria o. caso. em que o. espírito. vem; o. indivíduo. não. está co.nsciente nem inco.nsciente, o. indivíduo. eu o. grupo. não procuram exercer uma ação. so.bre o. espírito., o. indivíduo. se terna um "canal" (no. sentido. da teo.ria da info.rmação.). . Mary Do.uglas analisa cases muito. significativo.s entre o.s din' kas, o.s bo.squímano.s e o.s antilhano.s; e mestra que neste quarto. caso. - "o. culto. po.sitivo.do. transe" e a "o.rganização. social zero." - nós po.deremo.s ter certa liberação.. Mas a pergunta ainda persiste em Mary Do.uglas: no. xamanismo. já havia uma relativização. do.s código.s culturais que regulamentam a relação. cem a co.rpo.reidade; se nesse quarto. caso. a regulamentação. é ainda mais fro.uxa e, po.rtanto., na expressão dela, a efervescência religio.sa é ainda maio.r, cerne ficaria a imagem social do. co.rpo.-grupo.? Esse é um pro.blema que me apareceu inicialmente. Assim, já intro.duzi uma parte do. que queria indicar para vocês via antro.po.lo.gia, eu seja, através das o.bras de Mary Do.uglas e de Reger Bastide sobre o.s culto.s "afro.s". Mas depo.is disso. me lembrei de o.utro. pente de partida, não. semente para to.do.s o.s antro.pólo.go.s, mas para muito.s filóso.fo.s, que é o. velho. Marcel Mauss. Num estudo. tão. famo.so. quanto. inexplo.rado., chamado. "As técnicas do. co.rpo.", 17 ele faz uma afirmação. que, de certa fo.rma, perturba o.s so.ciólogo.s. Mauss o.bservara, desde o.s trabalhes de Granet e Maspéro. so.bre as técnicas so.mato.-psíquicas do. tao.ísmo. - cerne Eliade evidenciaria amplamente 18 - , que há estado.s místico.s pro.vocado.s pelo. "saber do co.rpo." que jamais fo.ram estudado.s aqui, mas que o. fo.ram cem perfeição., desde muito. tempo., na China e na Índia. Mauss pro.põe que seja feito. um estudo. sócio.-psico.-bio.lógico. da mística, e "penso. que há necessariamente meio.s bio.lógico.s de entrar em co.municação. cem Deus" . É interessante no.tar que o.s texto.s que mencio.nam esse trecho. de Mauss não. co.ntinuem na citação., o.nde diz que o.s so.ciólo.go.s teriam muito. a aprender cem o.s biólo.go.s, que teriam mais
(19) Foucault, M., "Préface à la transgression" (extraits). in R. Kaes e D. Anzieu (dir.), L'interditetla transgression, Paris, Dunot, 1983. (20) Foucault, M., idem, in Critique, n? 195-196, a90.-set. 1963, 75. (21) Foucault, M., Histoire de la sexualité, 1,2 e 3, Paris, Gallimard, 1976·1984.
(17) Mauss, M., "Les techniques du corps", in M. Mauss, Sociologie et anthropologie, Paris, PUF, 1968 (hã trad. bras. EDUSP). (18) Eliade, M., Le yoga: immortalité et liberté, Paris, Payot, 1972, cf.
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Interessava-me saber se em Foucault haveria também a tematização de um corpo Outro, que funcionasse como contraponto ao "biopoder". Para isso, tinha indicações no Prefácio sobre Bataille. Mas eu não conseguia juntar as coisas, até que deparei com o livro de Dreyfus e Rabinow, Michel Foucault, beyond structuralism and hermeneutics. Eu trabalhava no início da minha tese com a noção de paradigma; mostrei como por trás de toda essa colocação havia um "paradigma", no caso, o "paradigma clássico" (Durand) ou "paradigma simplificador-disjuntor" (Morin). Estava preocupado se haveria um paradigma por trás de uma outra visão do corpo ou da corporeidade; e há o caso de Foucault, que situa muito bem tal paradigma (os epistemas "clássicos"). Em Kuhn-Collingwood, 22 o paradigma é um conjunto de mecanismos de normalização no campo da ciência, e Foucault descreve um conjunto de mecanismos de normalizações sociais; pode-se aproximar muito claramente a idéia de paradigma, e a idéia de epistemas, sem o "sentido mutacional" ainda ... Fica a questão de um paradigma "outro", dotado de caráter "mutacional". 23 Encontrei no texto de Dreyfus e Rabinow o seguinte: "Entretanto fica em suspenso uma questão, se considerarmos a análise que Foucault faz dos efeitos nocivos da norlllalização: outros paradigmas, que definissem tipos diferentes de sociedades, poderiam ser vislumbrados? Não encontramos tematização explicita em Foucault nem, a fortiori, generalização sobre a função essencial que os paradigmas desempenham como elementos unificadores de práticas dispersas, acentuando-as e dando uma orientação às estratégias que aí estão implícitas. Seria, entretanto, uma interessante descoberta .. , saber se houve no passado, ou se no futuro poderia haver, ou se ainda há potencialmente paradigmas que enfoquem problemas importantes de nossa cultura, sem decidir de antemão, de modo normalizador, sobre as respostas consideradas como adequadas"." Quer dizer que a questão ficava em aberto em Foucault. (22) Prado Coelho, E"
1982, cf. capo 11. 1 a 4.
Eu retomei, de certo modo, a investigação do Prefácio à transgressão, onde Foucault analisa a "heterologia" em Bataille e, em Maurice Blanchot, o que se chama de "principio de contestação". Ambos desembocani naquilo que Foucault chama de "uma filosofia da afirmação não-positiva". E aqui estaria o germe de um paradigma outro. Não posso entrar em detalhes e vou dar só algumas linhas do texto de Foucault, que vai me poupar, aqui, uma ampla exposição. A "heterologia" de Bataille consiste exatamente na valorização do que "está fora". Heterologia significa, em Bataille, a valorização do "fora". O "fora" e o ato de "passar fora" é heterologia como escatologia num duplo sentido: de ir além do fim, de exceder (passar fora, além, ex-) e de escatologia no sentido de "matéria excremencial", como acontece no discurso literário e econômico de Bataille; seria, então, um ato do fluxo do excesso, o fluxo do excesso transgressor que se manifesta como êxtase, como heterotexto, como excrémentiel, etc. Em última análise, a heterologia de Bataille capta a noção de transgressão por várias vias, dentre as quais a mais conhecida de todas é o erotismo que, em Bataille, tem um sentido místico muito especial. 25 De qualquer modo, acontece aqui uma valorização do "fora", ou seja, uma valorização do que está para lá do limite. Mas há uns textos de Bataille meio "perigosos", onde ele ameaça cair na tal da "definição correlativa", sobretudo porque nós sabemos que na época em que Bataille escrevia ele escreveu os primeiros artigos sobre etnologia -, fazia parte do famoso "Collêge de Sociologie", 26 que reunia Leiris, Caillois, Klossowski, dentre outros, ou seja, do início da "so-. ciologia do sagrado", e que estava inspirado pelas noções durkheimianas, das separações entre o sagrado e o profano. Então, de certo modo, Bataille acaba definindo a transgressão pelo interdito e o interdito pela transgressão. Se nós fizermos
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(25) 8ataille, G" L'érotisme, Paris, Minuit, 1957. __ , "L'histoire de I'érotisme", in Oeuvres completes, VIII, Paris, Gal~ limard, 1976. __ , "La part maudite, I. Ia consomation", in Oeuvres completes, VII, Paris, Gatlimard, 1976. __ , "La part maudite, 111. Ia souveraineté", in Oeuvres completes, VIII. Paris, Gallimard. 1976. (26) Hollier, O., Le College de Sociologie (1937~1939)T textes presentés, Paris, Gallimard, 1979.
Os universos da crítica, Edições 70, Lisboa,
(23) Balandier, G" $ens et puissance. Paris, PUF, 1981, cf.
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1~ parte,
cap.ll.
(24) Dreyfus, H. e Rabinow, P., Michel Foucault, un parcours philosophique, trad. F. Durand-Bogaert, Paris, Gallimard, 1984, p. 284.
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transgressão não prescinde do interdito: Bataille fala numa relação de Aufhebung e Derrida fala em relevement, pois "a trangressão não é a negação do interdito mas, superando-o, completa-o", diz Bataille. Há, pois, uma relação econômica: se o interdito institui o. trabalho, só pode fazê-lo denegando a gratuidade, entretanto, estocando-a como part maudite. A transgressão libera a part maudite (esse excesso e esse fluxo de excesso e violência), sendo, portanto, da ordem do dispêndio e da dilapidação, da abundância e do consumo desenfreado, do luxo e da festa. Apart maudite é a "reserva de violência" incontornável e que explode na a-estruturalidade como práticas transgressivo-transgressoras. Desta "negatividade", que é uma afirmação "não-positiva", Foucault diz que a transgressão é um gesto que concerne o limite; lá, na tenuidade do traçado fronteiriço, é que se manifesta o relâmpago de sua passagem, mas talvez também a totalidade de sua trajetória, a própria origem. O marco que ela cruza bem poderia ser todo o seu espaço. O jogo dos limites e da transgressão parece regido por uma obstinação simples: a transgressão atravessa e incessantemente recomeça a atravessar uma fronteira que, imediatamente, se fecha num fluxo de pouca memória, assim novamente recuando ao horizonte do inabordável. Mas este jogo põe em jogo mais que esses elementos; situa-os numa incerteza, em certezas logo invertidas, onde o pensamento se encontra em dificuldades com o querer apreendê·las. Ao limite e à transgressão, reciprocamente, se devem a densidade de seu ser: a inexistência de um limite que não pudesse absolutamente ser franqueado; a reversiva vaidade de uma transgressão que não atravessasse senão um limite de ilusão ou de sombra. Mas terá o limite uma existência verdadeira, sem o gesto que, gloriosamente, o cruza negando-o? O que seria depois, e o que teria sido antes? E a transgressão não se esgota na totalidade do seu ser no instante em que atravessa o limite, não existindo noutro lugar senão nesse ponto de tempo? Ora, esse ponto, essa estranha encruzilhada de seres que, fora dele, não existem, mas, ao contrário, nele comutamse totalmente naquilo que são, não é também tudo aquilo que, por todos os lados, transborda? Ele opera como que uma glorificação daquilo que exclui; o limite abre violentamente sobre o ilimitado, freqüentemente achando-se arrastado pelo conteúdo que rejeita, assim realizado por meio dessa plenitude
um exame dos três discursos de Bataille, poderemos ver que realmente há o perigo desse tipo vicioso e viciado de discurso. Mas, por outro lado, nós sabemos, sobretudo pela obra literária e pelo que há nos ensaios daquilo que ele chama de "antropologia mítica", 27 que há uma transgressão possível, que há um corpo Outro que emerge, ainda que seja através da violência e do excesso, que portanto contesta a sociedade, porque ontologicamente tem que ser, porque ontologicamente é assim. E Foucault vai mostrar que em Blanchot encontramos uma formulação mais precisa, naquilo que Blanchot chama de "o princípio da contestação". O princípio da contestação seria o princípio dos limites, ou seja, a contestação nunca pára porque, no momento em que parar, o limite já se torna uma norma. Então, a contestação deve se articular de um modo tal que ela não seja "anti" ou que ela não seja tético-posicional, mas que vá conduzindo de limites em limites para o que Blanchot chama de "Limite" e que corresponderia, mais ou menos, àquilo que nebulosamente Heidegger chama de "a dobra do Ser". Segue-se o texto de Foucauit, que sintetiza isso e que abre, a meu ver, exatamente o que ele chama de uma "filosofia da afirmação não-positiva", que está implícita na dialógica da transgressão, mas que foi deformada por todas as correntes que se empenharam em transformar experiências vividas, ou que grupos transformaram em praxeologias revolucionárias. Bataille dissera: "Aquilo que a lei proíbe não é um domínio onde o homem nada teria a fazer. O domínio do interdito é o domínio trágico, ou melhor, é o domínio sagrado. É verdade, a humanidade o exclui, mas para magnificá-lo. O interdito diviniza aquilo a que ele veda o acesso. O interdito subordina esse acesso à expiação, à morte, mas nem por isso deixa a interdição de ser um convite, ao mesmo tempo que um obstáculo".28 Pela transgressão em Bataille, instaura-se o excesso e o desfrute, o consumo e a morte. Por isso há uma relação de complementaridade entre o interdito e a transgressão: o interdito repudia a violência, mas pede à transgressão que a libere. Tais movimentos não são exteriores entre si e, nessa relação, a (27) Bataille. G., "Dossier de I'oeil pinéal", in Oeuvres completes, 11,
Paris, Gallimard, 1970. (28) Bataille, G., "La littérature et le mal", in Oeuvres completes, IX, Paris, Gallimard, 1979, p. 190.
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rituais de inversão e de rebelião, ou seja, nas sociedades tradicionais onde há uma necessidade de se manter a ordem - e esta ordem deve ser a ordem de uma mentalidade, ou seja, de uma memória longa - nós precisamos contar com momentos em que seja possível uma explosão manipulada das forças dominadas. Então são elaborados os rituais de inversão, por exemplo, rituais de inversão de papéis, rituais de inversão dos valores - estes são celebrados em festas - e rituais de rebelião, que chegam mesmo a rituais de violência, como a morte dos reis nas sociedades africanas. Acontece que estas reflexões dos antropólogos já tinham sido feitas por Leiris - que junto com Bataille fazia .parte do Collêge de, Sociologie - para a sociedade urbano-industrial; mais recentemente, ele escreveu um artigo muito interessante mostrando como o 1968 francês podia ser um grande ritual de rebelião, sugerindo como todos os movimentos de contestação na linha do "anti", da afirmação positiva, poderiam ser vítimas dessas técnicas sociais de controle, ou de manipulação em circuito fechado pelos rituais de rebelião - idéia que, de certa forma, Marialice Foracchi já tinha lançado em seu livro O estudante e as transformações na sociedade brasileira. Esta corporeidade outra só conseguirá se manifestar se nós conseguirmos descobrir ou liberar, seja a "palavra instituinte", como prefere Guattari, J3 seja o espaço do desejo, ou seja, o espaço do potencial. De qualquer forma, os olhos devem se voltar para aqueles fenômenos, para aquilo que um etnólogo chamou de "fenômenos a-estruturais", E sobre esse assunto Duvignaud'" tem um texto muito bonito, "O dom do nada", onde mostra, por exemplo, como na sociedade urbano-
estrangeira que o invadia até o âmago. A transgressão leva o limite até o limite de seu ser; condu-lo ao despertar sobre sua iminente desaparição, a reencontrar-se no que exclui (mais exatamente, talvez, a se reconhecer aí pela primeira vez), a experienciar sua verdade positiva no próprio movimento de sua perda" . 29 E por aí ele continua. O interessante é o texto que se segue, onde Foucault marca que esta transgressão, que inicialmente se definiria correlativamente em relação aos interditos, pode, de um certo modo, ir além dos limites, se nós entendermos o princípio de contestação, tal como o entendeu Blanchot, por exemplo, na "Experiência do infinito". Seguese um pequeno trecho: "Esta filosofia da afirmação não-positiva, istoé, da provação do limite (e, Foucault marca bem, não é o ato de provar um limite, mas o de sermos provados na nossa estrutura experiencial interna pelo limite e, portanto, pelas nossas potencialidades), é a que Blanchot definiu por meio do princípio de contestação. Não se trata aí de uma negação generalizada, mas de uma afirmação que não afirma nada: em plena ruptura de transitividade. A contestação não é o esforço do pensamento por negar existências e valores, é o gesto que reconduz cada um deles aos seus limites e, por aí, ao Limite onde se dá a decisão ontológica: contestar é ir até ao âmago vazio, onde o ser atinge seu limite e onde o limite define o ser. Lá, no limite transgredido, ressoa o sim da contestação".3O Este texto de Foucault - de que faço uma exegese de cerca de doze páginas JI - a meu ver seria todo um projeto de pesquisa. E o que isso teria a ver com a corporeidade? Ora, em Batai1le, e aqui vou ficar meio dogmático, nós temos um corpo Outro. Em Blanchot, através da idéia de contestação, há a possibilidade de conter os limites pela transgressão sem sermos vítimas do circuito de uma" definição correlativa" ou de uma "transgressão em circuito fechado", daquilo que os antropólogos identificaram muito bem nas soCiedades tradicionais como os "rituais de inversão" e OS "rituais de rebelião" . Especificamente Turner e Gluckman 32 estudaram estes
__ , Dramas, fields and metaphors; symbolic action in human society, Londres, Cornell University Press, 1975. Gluckman, M., Order and rebel/íon;n tribal Africa, Londres, Cohen and
West, 1963, __ , Politícs, law and ritual in tribal society, Chicago, Aldine Publ.
Co" 1965,
(29) Foucault, M., Préfaceà/a transgression, pp. 95-96.
1331 Guanari, F., "Ellugar dei significante en la institución", in L. Forte led.) La otra locura: mapa antológico de la psiquiatrfa alternativa, Barcelona, Tusquests,1976. 1341 Duvignaud, J., Le don du rien: essai d'anthropologie de la fête, Paris, Stock, 1977.
(301 Foucault, M., idem, p. 97. (311 Paula Carvalho, J. C. de, op. cit., 2~ parte, capo 11,2.4, pp. 871 e segs . (32) Turner, V" /I processo rituale: struttura e antistruttura, trad. N. Greppi Collu, Brescia, Morcelliana, 1972 (há trad. bras. Ed Vozes).
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industrial há um fluxo de excesso que explode em situações sociais que as pessoas normalmente desconsideram por preconceito. A sua análise começa exatamente por um ritual de umbanda em Fortaleza. Depois passa a analisar, por exemplo, o simbolismo; analisa o fenômeno do riso, o fenômeno da festa; faz uma espécie de elenco de fenômenos sociais abandonados pelos sociólogos - que estão muito preocupados com a banalidade cotidiana, mas não com uma sociologia da vida cotidiana,3S ou da cotidianidade... -, mostrando como, nestes fenômenos abandonados, nós podemos ter o aparecimento de uma a-estruturalidade. Essa a-estruturalidade permitiria exatamente o aparecimento dos "objetos transicionais", pois que normalmente as pessoas vivem atrás dos "objetos institucionais". 36 Estes introduzem a normalização de que Foucault e Kuhn falam, ao passo que nos fenômenos a-estruturais teríamos a possibilidade do aparecimento de "objetos transicionais". A análise que Duvignaud faz da incorporação em umbanda é belíssima, sobretudo porque eu tive a possibilidade de observar muito, de viver e de experimentar isso. É uma coisa realmente fantástica que escapa um pouco àquele "deslumbramento" em que fica um Lapassade, por exemplo, quando entra em contato com a macumba e escreve um livro horroroso, aproximando macumba e contracultura negra, ou Morin que diz "mas não é que realmente existe espirito!". O livro de Duvignaud não tem este caráter ainda de choque sobre quem não sofreu aquilo que Leiris chama de dépaysement. Duvignaud, depois, escreveu um livro ainda mais interessante, porque ele diz que nestes fenômenos a-estruturais nós lidamos com os estados de consciência outros e que só poderemos ter uma apreensão disso por uma via compreensiva, ou seja, por uma via empática, por uma via hermenêutica. Ora, estes estados de consciência outros significam que ao lado da reflexividade deve haver um outro estado de consciência, esse registro que Merleau-Ponty e Husserl chamaram de "pré-reflexi-
vidade". Nas técnicas orientais, Eliade e Corbin falaram em "transreflexividade" . Prosseguindo a investigação, Duvignaud escreve um livro muito bonito que se chama A anomia - heresia e subversão. 37 Neste texto ele diz que tais fenômenos não são assim tão fluidos quanto possam parecer e não dependem tanto do olho do investigador. É claro, isso é muito importante, nós temos que detectar estes fenômenos a-estruturais e estudar, temos que detectar estes momentos transicionais, temos que experienciar isto de um modo vivido para compreender e sentir. Todos os fenômenos se referem via corporeidade, isto é um pressuposto. Mas nós chegamos mesmo a ter o que ele chama de "personalidades anômicas". É um conceito que partiu da investigação sobre a sociOlogia do teatro, os "papéis anômicos" no teatro. Duvignaud foi um dos primeiros a investigar a sociologia do teatro na França, para lá levando experiências de bioenergética do living theatre; ele diz que estas personalidades anômicas seriam exatamente aquelas cujos papéis são anômicos, ou seja, não há papéis, são aquelas que improvisam e que "vivem deixando se surpreender". É uma frase do dr. Pethô Sandor. Mas, ele diz, nós não precisamos chegar ao movimento contemporâneo da contracultura para encontrar isso; e ele vai analisar exatamente as duas grandes explosões: a explosão do surrealismo - não na linha de Breton, mas na de Bataille e Artaud - e o que ele chama de la rêverie anarchiste, ou seja, o movimento anarquista. Vai mostrar como temos movimentos sociais e portanto uma dinâmica social, e temos personalidades, isto é, uma dinâmica psicossocial. Vai mostrar como o conceito de personalidade anômica permite detectar uma dinâmica psico-sociológica de uma corporeidade outra ou de uma outra vivência do corpo. Não vou me alongar, apenas dizer as três linhas em que tentei encaminhar meu trabalho, as três linhas dessa corporeidade outra; como seria compreensivel esta corporeidade outra? Porque, é preciso dizer, há muito preconceito. Enquanto se fala em Lacan, Guattari, tudo bem; quando se fala em movimento contracultural, já começa a não ficar muito bem; quando se começa a falar em paradigma mutacional, cujo método talvez seja anárquico,
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(35) Maffesoli, M., La conquête du présent: pau! une sociologie de la vie quotidienne, Paris, PUF, 1979. ' __ , L'ombre de Dionysos: contribution à une sociologie de /'org;e, Paris, Méridiens/ Anthropos, 1982. __ (org. " "Violence et transgression", Paris, Anthropos, 1979. (36) Guattari, F" Psychana/yse et transversalité: essais d'analyse institutionnelle, Paris, F. Maspéro, 1974, cf. capo "Le groupe et la personne".
1973. (37) Duvignaud, J., L'anomie: hérésie et subversion, Paris, Anthropos,
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mundus imaginalis, porque vê que desde a partida de Avicena e Ibn' Arabi, ou seja, desde o averroísmo latino, ficamos presos a um dualismo das idéias ou do mundo inteligível e do mundo sensível, e perdemos a noção do meio. Essa dimensão do imaginário, do mundus imaginalis, é o laeus - o local das experiências proféticas, visionárias, etc. Em árabe, há uma palavra para dizer isso. Quando os árabes falam em mi'râj, nós com a nossa tendência redutiva, entendemos "miragem". Não, mi'rfV significa exatamente o protótipo da experiência extático-visionária que o profeta Maomé teve, quer dizer, nós cruzam'os com mundus imaginalis de repente. Esta ·idéia de mundus imaginalis como mundos intermediários significa que eles têm um tempo outro, um espaço outro, uma configuração outra, uma corporeidade completamente outra. Se nós, com a nossa mentalidade científica, quiséssemos lembrar alguma coisa em termos científicos, poderíamos recordar Lupasco,40 que fala dos "antimundos" ou dos "mundos paralelos". Nas experiências microfísicas de Bohm, 41 isto seria exatamente o que ele chama de implicate arder, ou seja, uma realidade que está aquém das divisões do sujeito-objeto. É o que a "holografia" revela, na neuro-psico-fisiologia de Pribram. 42 Em MacLean e Laborit há o triunic brain, com registros que funcionam completamente segundo outras vastas categorias. Estes foram alguns dados científicos que eu usei para esclarecer estes "mundos imaginários" de modo a ficarem mais acessíveis à nossa positividade. Isso seria o numinoso. É a isso que Jung constantemente se refere quando fala do arquétipo como "noumeno" e "sincronicidade"; o arquétipo se refere à uma esfera "psicóide" ou "nomenal". É a isso que Jung se refere quando fala em sincronicidade, este outro registro e este outro ou outros mundos. E haveria técnicas que poderiam detectar ou apreender o funcionamento desta corporeidade outra inserida no mundo instituído?
como Feyerabend ou Morin o pensam, as coisas já começam a entrar em atrito com os objetos institucionais pelos quais nós vivemos. E as coisas se tornam ainda mais complicadas quando se envolve uma vivência, no sentido em que Jung define "vivência", que é uma experiência simbólica realmente vivida em profundidade, e sem senões, do sagrado? - não -, do religioso? _ não - , do mágico? - não -, o nome que Jung deu a isso é "numinoso", que é uma expressão que vem do famoso texto de Otto. J8 Numinoso seria a palavra! Mágicoreligioso já capta um magma pré-reflexivo que incomoda um pouco mais. Essa idéia de magma e de imaginário também causou fricções. O numinoso captaria um aquém do pré-reflexivo e um além do transreflexivo. Esta idéia é muito difícil de ser sintetizada. Só posso dar a indicação. É a idéia do "ima· ginal", que foi forjada pelo primeiro tradutor de Heidegger na França, um filósofo que depois se tornou especialista em filosofia iraniana, Henri Corbin. Corbin mostrou que o grande dilema que vivemos no Ocidente é que desde o triunfo do averroísmo latino, pelo qual nós perdemos Avicena, Ibn'Arabi, nós perdemos a dimensão do Anjo. A idéia de imaginai em árabe seria âlam al'mithal, que Corbin 39 traduziu por mundus imaginalis para evitar duas coisas: primeiro, porque o nome "imaginário", tal como nós o entendemos, iria no sentido de um mau-imaginário, quer dizer, um imaginário fantasioso cujo peso ontológico não seria mais que mera fantasia. Segundo, não seria um imaginário ligado à consciência reflexiva, mas a outros tipos de consciência. Então formou o termo (38) atto, R., Le sacré: I'élement non-rationnel dans l'idée du divin et ses rélations avec le rationnel, trad. A. Jundt, Paris, Payot, 1969. De Martino, E" "Mito, scienze relig'lose et c'lviltà moderna", in E. de Martino, Furare, simbolo, vaIare, Milão, Feltrinelli, 1980. (39) Corbin, H" "Mundus imaginalis ou I'imaginaire et I'imaginal", in Face de Dieu, face de I'homme: herméneutique et Souffsme, Paris, Flamma-
rion, 1983. __ , "pour une charte de I'lmaginal", in H. Corbin, Corps spi,;tuel et terre céleste: de I'Iran mazdéen à I'Iran shl'ite, Paris, Buchet Chastel, 1979. Durand, G., "Homo proximi Orientis: science de l'homme et ls1am spirituel", in G. Durand, Science de I'homme et tradition: le nouvel esprit anthropologique, Paris, Berg International, 1979. __ , "La reconquête de l'lmaginal", in Cahiers de I'Herne (H. Corbin),
(40) Lupasco, S., Les trois matieres, Paris, Julliard, 1960. (41) Bohm, D., Who/enessandtheimp/icateorder, Londres, Routledge
and K. Paul, 1980. (42) Colloque de Cordoue: "Science et conscience, les deux lectures de
CI. Jambet (éd.l, Paris, Éd. de I'Herne, 1981. Jambet, CI., La logique des Orientaux: Henri Corbin et la science des
j'Univers", Paris, France Culture-Stock, 1980.
formes, Paris, Seu'll, 1983.
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Uma noção que eu usei, moi corporel imaginaire, nas técnicas de Fretigny e Virei, 43 mostra como poderemos ter a existência de um outro corpo. Faz uma distinção entre o esquema do corpo ou a imagem do corpo, a imagem social do corpo, o corpo psíquico e o moi corporel imaginaire, que seria o corpo sutil. Há as investigações de Tart sobre os estados alterados de consciência. As técnicas do A. S. C. (estados alterados de consciência) 44 foram usadas de modo muito feliz por Lapassade. Lapassade 4S tem um livro muito interessante que se chama Ensaio sobre o transe: perspectivas para um materialismo histérico. Histérico e não histórico, porque a histeria é valorizada como símbolo da experiência transicional, que é exatamente o protótipo da a-estruturalidade e da neotenia neg-entrópica. Lapassade utilizou, para analisar o transe, que é a presença desta corporeidade outra, as técnicas dos estados alterados de consciência. Só que ele diz que no termo de Tart "alterados" já vai o pressuposto da normalização; assim ele prefere substituí-lo por "consciência éclatée, autre, défoncée". O importante é que Lapassade liga essas experiências de transe com a tipologia de sociedades, desde a sociedade tradicional até a urbano-industrial, e vê o sentido especifico de transe em cada tipo. Diz que a histeria, que seria a forma moderna do transe, acabou no divã ..... A tecnologia de Tart, dos estados alterados de consciência, diz ele, já é uma espécie de indução pelo centro, pela centralidade institucional e institucionalizadora de uma idéia de normalidade ou de padrão, a partir da qual haveria um desvio, e o que ele quer é dar todo o peso ontológico a isso, mostrando que não se trata de uma afirmação positiva antitético-posicional, mas de um totalmente outro, como Otto fala, e como a experiência de Rimbaudjá tinha mostrado.
Por fim, uma segunda experiência: eu tive oportunidade de,r com um grupo conduzir uma série de investigações em terreiros de umbanda, o lugar segundo a perspectiva de Tart, para verificar eSSes "estados". Lá pode-se ver claramente o conflito institucional, não, como se tem tendência a colocar, entre as federações e os terreiros, mas entre a figura do paide-santo, que é o iniciador, que dispõe de uma autoridade legal e normalizadora e reguladora e redutiva, e a experiência carismática do filho-de-santo, que tende a viver e a seguir as orientações de seus guias, de frente e de costas. Pode-se ver claramente este conflito institucional no interior do terreiro, e mais, pode-se ver até em termos individuais de polarização, como no estudo muito bonito de Monique Augras, O duplo e a metamorfose. 47 Mostra-se a polaridade entre o santo de cabeça, que representaria de um certo modo o fluxo em direção à ordem, e o capanga, ou protetor de costas, que seria o Exu. Liana Trindade mostrou Exu como um trickster, transgressor em direção à desordem, e "individualizador" da vivência mítica ... Então, se não há esta polarização, podemos ver o conflito de objeto institucional, de objeto transicional, inclusive ao nível do próprio filho-de-santo. E daí toda a ideologia montada, e a medida em que é ou não consciente. Mindell e Solie " desenvolvem uma perspectiva interessante nesse sentido, que é a primeira formulação junguiana a respeito da experiência simbólica do corpo. E deve-se destacar isto por duas razões: porque se costuma dizer, primeiro, que a teoria de Jung não trata do social e, segundo, que Jung desenvolveu uma postura ascético-mística na expressão do corpo. Ambas as afirmações são falsas, porque, na Dialética do eu e o inconsciente. as duas primeiras partes são postas como programas de uma psicologia social. O meu inspirador, Gilbert
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(47) Augras, M., O duplo e a metamorfose, Petrópolis, Vozes, 1983. (48) Trindade, L. M. S., "Exu: símbolo e função" (Tese de doutora-
(43) Frétigny, R. e VireI, A., L 'Imagerie menta/e: introduction à I'onirothérapie, Genebra, Éd. du Mont-Blanc. 1968. (441 Tart, Ch., States of consciousness, Nova Iorque, E. P. Dutton, 1965. (45) Lapassade, G., Essa; sur la transe: le matérialisme hystérique /.,
mento em Antropologia Social - FFLCHUSP, 1980, no prelo nos Cadernos do CER/FFLCHUSP, 19851. (49) Mindell, A. , Dreambody: the body's role ;n revealing the Self, S. Sternback (ed.), Santa Mônica, Sigo Press, 1982. Solié, P" Médécines initiatiques: aux sources des psychothérapies, Pa. ris, Epi, 1976. Psychanalyseetimaginal, Paris, Imago, 1980. Mythanalysejungienne, Paris, Les Editions ESF, 1981.
Paris. J. P. Dêlarge. 1976. (46) Hillman, J., Le mythe de la psychanalyse, trad. Ph. Midriammos, Paris, Imago, 19n. __ , Re-visioning psychology, Nova Iorque, Harper Colophon Books, 1975.
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Durand,50 escreveu um artigo muito interessante, onde mostra exatamente estes aspectos sociais dos arquétipos. E, por outro lado, Jung tem um texto belíssimo na Introdução à essência da mitologia, onde fala que os arquétipos se formam ao nível das vísceras, porque, como está na Bíblia, o espírito fala por gemidos. Na tese de doutoramento de Jung, ao estudar os fenômenos mediúnicos, ele já mostrava esta ancoragem biótica. Esta corporeidade outra foi trabalhada por Mindell e Solié, que desenvolvem a idéia do "corpo onírico", fazendo uma investigação belíssima desde as experiências mais institucionalizadoras e normalizadoras do Extremo Oriente até as da contracultura, passando pela psiquiatria, pela psicanálise freudiana e pelas "medicinas iniciaticas", mostrando como o corpo onírico ou esta corporeidade outra foi sempre objeto de uma redução visada, tentando-se bloquear, como diz Jung, a experiência simbólica vivida, vivenciada, desta corporeidade outra. É isso que eu queria indicar para vocês ... E concluir: 1) por que "corporeidade ima(r)ginal"? Porque as "margens", mostrou-o H. Desroches, costumam girar na ótica e na estratégia induzidas pela centralidade; devem ser comutadas pela e na vivência do "imaginaI"; 2) por que - e qual - um paradigma "outro"? Por que a imagem social do corpo e a vivência do corpo como imagem socializada - sua teoria, sobretudo - movem-se na esfera do normalizador paradigma "clássico" (ou analítico-simplificador-disjuntor, diz Morin), ao passo que o acesso, em termos de cognição compreensiva, à "corpo-
reidade ima(r)ginal", contraponto que é ao "biopoder", nos é dado pelo "paradigma hOlográfico", que Durand chama de ratio hermetica e Morin, de "hipercomplexidade". (Transcrito da gravação por Marina Appenzeller, COm revisão do autor)
(501 Durand, G., Les structures anthropologiques de l'imaginaire: introduction à I'archétypologiegénérale, Paris, Bordas, 1969. _ _ , L 'imagination symbolique, Paris, PU F, 1964 (há trad. argent. Amorrortu),
__ , Science de I'homme et tradition:
te "nouvel esprit anthropologi-
que", Paris, Berg International, 1979.
_._ , Figures mythiques et visages de I'oeuvre: de la mythocritique à la mythanalyse, Paris, Berg International, 1979. __ , L'âme tigrée: les pluriels de psyché, Paris, Oenoel/Gonthier, 1980. __ , La foi du cordonnier, paris, Denoel, 1984. __ , "La cité et les divisions du Royaume: vers uns sociologie des profondeurs", in ErânosJahrbuch, 45 (Einheit und Verschiedenheit), Leiden, E. J. Brill, 1976.
__ , Mito, símbolo e mitodologia, trad. H. Godinho e V. Jabouille, Lisboa, Editorial Presença, 1982.
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perfurou saberes e instituições com o ardor da toupeira critica de que falava Marx, e a melhor homenagem que se lhe pode prestar é escavar seus textos com a mesma pertinâcia e com a mesma paixão com que ele se dedicou a abrir túneis no solo de nossa cultura. Um destes percursos possíveis pela obra foucaultiana seguiria o fio vermelho de suas referências à psicanâlise. Numerosas, elas pontilham quase todos os seus livros, longas umas, breves outras, severas, irônicas ou respeitosas, marginais por vezes à trama do argumento ou, ao contrârio, no centro de suas preocupações. Ê-me impossível, neste momento, efetuar um tal trabalho; penso, contudo, que ele mostraria não apenas que "a sombra da psicanâlise acompanhou Foucault duunte os trinta anos. de sua produção, mas ainda que um dos eixos em torno dos quais se ordena seu pensamento consiste num confronto e numa interrogação permanentes quanto ao sentido dela e quanto ao lugar que ocupa no pensamento ocidental. Lugar, aliâs, múltiplo: a cada meandro do percurso de Foucault, ela se aloja em outro espaço, configura-se em outras redes de relações, desenha outros perfis de significação. Para o psicanalista, esta profusão de posições atribuídas à sua disciplina e à sua prâtica tem a principio efeitos desconcertantes. Ãs incertezas que constituem seu pão cotidiano, à dura e apaixonante tarefa de procurar captar algo de um objeto por definição fugidio - o inconsciente, seu e dos outros - à dúvida erigida em método quanto ao sentido do que escuta, do que pensa e do que sente, vem-se somar o questionamento insistente de Foucault quanto à sua identidade. Identidade problemâtica entre todas, porque o psicanalista não pode deixar de aplicar a si mesmo e à gênese de suas idéias OS mesmos princípios que o guiam na escuta de seus pacientes: ao fazê-lo, puxa constantemente o tapete de sob seus próprios pés, de onde a curiosa sensação de vertigem que muitas vezes se apodera dele. Ora, FoucauIt o questiona mas não é isto o inquietante, jâ que, questionar-se, ele o faz muitas vezes por dia. O inquietante é o que este questionamento venha a cada vez de outro lugar: ora é a consistência epistemológica da psicanâlise que é posta em xeque, ora sua inserção no social, ora a existência mesma dos objetos que estuda, ora o sentido e o alcance das teorias que a especificam. Sob o prisma de Foucault, nossa disciplina se refrata em mil
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GENEALOGIA E POLlTICA RECORDAR FOUCAULT
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mostra que ele se deslocou para fora do cotidiano da classe, cuja situação percebe como insuportável. Deste modo o militante, por oposição ao operário "alienado", não tem mais lugar nesta sociedade, pois ela o torna inumano. Afirmar a humanidade é afirmar uma outra sociedade, revoltar-se contra os valores dominantes e a exploração, deixar ou sonhar em deixar de ser operário, invocar a revolução. Como diz nosso articulista: "Nessas occasiões quizera possuir o poder de penetrar no mais recondito daquellas almas insensiveis, e dentro dellas gritar, como o jaguar de minha terra faz tremer o seio verde das florestas: homens! mulheres! Ã Revolta!" . A trajetória de Octávio Brandão é também um exemplo deste deslocamento de que estamos tratando. Nascido em uma. pequena cidade do interior nordestino, filho de um "pequenoburguês urbano empobrecido, prático de farmácia em Viçosa" ," Brandão entrou na "vida pela porta da pobreza. E foi pobre, a vida inteira. O pai não podia comprar leite. O filho precisava de alimentos fortes. No entanto, bebia café ralo. Não teve leite na infância. Comia feijão com farinha de mandioca e uma carne grosseira, o charque ou ceará. Nenhum legume, exceto jerimum. Fruta, apenas banana, quando era possível comprar. Vestia uma roupa ordinária de algodão. Era a pobreza em tudo" (p. 48). Formado pela Escola de Farmácia do Recife, a partir de 1915 abre um estabelecimento onde "trabalhava como farmacêutico, prático e enfermeiro, das 7 da manhã às 10 da noite", ao mesmo tempo que se dedica tanto à ciência quanto à literatura. Faz uma excursão pelo interior de Alagoas observando sua composição mineralógica, formação geológica, e fósseis. A partir dessa expedição escreve o livro Canais e lagoas, que é "um poema telúrico. Hino de amor à beleza e à grandeza da terra brasileira e alagoana" (p.92). Neste período Brandão lê Darwin, Haeckel, Humboldt e Martius, Hartt e Branner, Euclides da Cunha, Ratzel e Karl Ritter, Jean Brunhes e Elisé Reclus, os livros do Rig-Veda, Êsquilo, Sófocles e Eurípedes, Lucrécio e Virgílio, Shakespea-
re e Byron, Goethe, Heine e Nietzsche, Lermontov e Tolstoi. Perseguido em Alagoas, vai para o Rio de Janeiro, onde milita no movimento operário anarquista, para em "15 de outubro de 1922" dar o terceiro passo libertador de sua vida: "torneime um combatente do Partido Comunista do Brasil, soldado do povo brasileiro e da sua classe operária" (p. 232). Passa a ler a literatura marxista. Em 1924 escreve Agrarismo e industrialismo (p. 295), "a primeira tentativa de interpretação dessa realidade (a brasileira) do ponto de vista de Marx, Engels e Lenin" (p. 287) e que inspira as teses do 2? Congresso do PCB escritas por Astrojildo. Nesse texto encontramos: "Applicando a dialectica marxista à revolta de 1924, veremos
o seguinte:
"Affirmação: Bernardes, o grande burguez agrario, a grande propriedade rural. "Negação: Isidoro, o pequeno burguez, atraz do qual manobra o grande burguez industrial. "Negação da negação: a revolução proletaria, que affirmará Bernardes e affirmará Isidoro, que negará Bernardes e negará Isidoro. e que, por isso, fundirá os contrários, produ-
zindo o que, há millenios, o grego Heraclito chamava: uma harmonia. ( ... ) ( ... ) "Dentro da Harmonia Proletaria desapparecerão as classes e, por conseguinte, a guerra de classes. Dentro do fulgor da revolução proletaria, Hernardes e Isidoro, isto é, os burguezes agrarios e os burguezes itijIustriaes estarão em estado de aufgehobene Momente. Por outras palavras: a revolução
proletaria é a Aufhebung de Bernardes e Isidoro, isto é, a negação, a conservação e a elevação do agrarismo e do industrialismo" .16
A aplicação que Brandão faz da dialética à revolta de 1924 significa menos insuficiência teórica, e mais como é constituída uma relação quase selvagem com a cultura, isto é, uma
(15) Brandão, O., Combates e batalhas: memórias, São Paulo, AlfaOmega, 1978. As próximas citações desse livro não serão feitas em rodapé, mas no próprio texto, indicando-se apenas o número da página.
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(16) Fritz Mayer (pseud. de Brandão, O. l, Agrarismo e industrialismo.
Ensaio marxista-Ieninista sobre a revolta de S. Paulo e a guerra de classes no Brasil, Buenos Aires, 1926 (o local de pUblicação visava somente a desp:star a polícia; na verdade, o livro foi impresso no Rio de Janeiro).
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De Eva a Santa, a dessexualização da mulher no Brasil *
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L. Margareth Rago**
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1873, o dr. F. Ferraz de Macedo apresenta na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro a tese de doutoramento "Da prostituição", na qual constrói uma história geral da "mais antiga das profissões". A segunda parte de seu trabalho é dedicada à análise da situação da prostituição na cidade do Rio de Janeiro no período. Desta,co o capítulo em que elabora um mapa cIassificatório das prostitutas cariocas, mapa este dividido em dois grandes itens: a prostituição pública e a clandestina. A partir deste "mapa c1assificativo", como ele denominava, o saber médico caracterizava as prostitutas catalogadas nos vários itens e subitens desta zoologia das subespécies. As mulheres do I? gênero da 1 ~ classe, por exemplo, as prostitutas trabalhadoras, como as floristas, modistas, costureiras, vendedoras de charutos eram definidas como pessoas com traços comuns como o tipo de roupa, a habitação, os costumes, "as horas de trânsito, o modo de se renderem, o modo de expressão (voz, estilo, termos, gestos, etc.)". As do 2? gênero da primeira classe - as prostitutas "ociosas" -, por sua vez, se caracterizariam pelo viver isola(*) o presente trabalho resume algumas das colocações desenvolvidas na dissertação de mestrado "Sem fé, sem lei, sem rei. Liberalismo e experiência anarquista na República", UNICAMP, 1984. (**) Do Departamento de História da UNICAMP.
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(continuação)
"tuicâo oública"
floristas, costureiras,
práticas antifísicas
vendedoras
1? gênero das prostitutas 'trabalhadoras'
nas mulheres
de charutos, figurantes de teatro,
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ou prostituição
etc.
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2? gênero das prostitutas
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reunidas em hotéis aristocráticos. I
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de colégios, de sobrados, de estalagens, bordéis, etc,
prostitutas
classe das fáceis
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classe das facílimas
reformadas ou gastas,
prostitutas
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destina' viúvas, casadas,
Em boas
divorciadas.
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classe
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Mulheres livres, libertas, escravas, etc.
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isoladas em casas aristocráticas
'ociosas'
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pederastas ativos, passivos, mistos,
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doutrina lesbiana, coito contra a natureza, onanismo.
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220 DE EVA A SANTA, A DESSEXUALlZAÇÁO DA MULHER NO BRASIL
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condições
(continua)
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das em casas aristocráticas, compondo-se em grande número por mulheres fornecidas pelos teatros. Já as da 3~ classe, das facílimas, seriam "marafonas que cuidam das paredes dos quartos com quadros e imagens de diversos santos! A sala tem por mobília um sofá, algumas cadeiras, às vezes aparadores enfeitados e uma mesa redonda no centro". As reformadas ou gastas viviam em casas "de mais grosseiro aspecto e mais despidas de adornos; a alcova nua, ( ... ) e a cozinha apenas consta de um fogareiro de ferro e algumas panelas. Geralmente as donas destas casas são pretas, pardas livres ou libertas, mas todas gastas na idade e no vicio ( ... )". Entretanto, as mais degradantes das meretrizes em seu mapa classificativo estavam entre as do 3? gênero da 3~ classe: ou seja, as que habitavam zungus, "habitação sombria, verdadeiro antro de paredes enegrecidas pela fumaça dos fogareiros e nauseabundos cachimbos dos freqüentadores e habitantes ( ... )". O trabalho continua descrevendo minuciosamente a personalidade das mulheres "da vida", assinalando seus principais traços físicos, intelectuais e morais, gostos, hábitos, formas de lazer, esmiuçando seu cotidiano, descrevendo suas habitações e os tipos de clientes que cada espécie recebia. A prostituição se torna objeto de conhecimento científico. Alguns anos depois, o delegado de polícia Pádua Fleury esboça o primeiro projeto de regulamentação da prostituição na cidade de São Paulo, considerando-o problema tanto da (1) Macedo, F. Ferraz de, "Da prostituição", tese de doutoramento apresentada à Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, 1873.
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Nesse sentido, a partir dos discursos médico-sanitarista, criminológico, dos filantropos, dos positivistas, da Igreja, de setores da burguesia industrial e, em alguns momentos, do próprio movimento operário, elabora-se e difunde-se no país um novo ideal de feminilidade, que define tanto a figura da "rainha do lar" quanto a da mulher pública e que implica a total dessexualização de ambas_ A figura da mãe, associada à Virgem Maria, santificada, pura, ingênua, trabalhadora, preocupada com a saúde dos filhos e do marido, toda sacrifício, é assimilada à estátua de pedra ou mármore, frigida, imaculada, sem corpo e sem sexo. A prostituta, mulher de má vida, extravagante, cheirando a perfumes exóticos e violentos, vestida escandalosamente, egoísta, gulosa e sobretudo preguiçosa, também é dessexualizada na medida em que sua atividade deve corresponder ao exercício de uma profissão, isto é, de um trabalho, e, portanto, deve ser realizado produtivamente, mas sem prazer. No discurso do poder, prazer e trabalho constituem categorias antitéticas e excludentes. Ao contrário, a mulher honesta, destinada à carreira exclusiva da maternidade, deve ser isenta de desejo, não desfrutando de qualquer prazer orgástico na relação sexual. Além de confinar-se no estreito espaço da vida doméstica, a mulher esposa-dona-de-casa-mãe-de-família deveria aceitar o enclausuramento representado por um modelo normativo rigido, autoritário e dessexualizante. A ciência médica e posteriormente a psiquiatria procurarão mostrar cientificamente, confirmando as opiniões dos positivistas, que o homem tem um desejo sexual mais acentuado do que ela por sua própria constituição biológica, o que, por sua vez, justifica a procura da prostituta pelo marido que respeita a esposa mas, ao mesmo tempo, deve afirmar sua virilidade. O retrato da mulher pública construído pelo discurso médico-sanitarista coloca-a num campo oposto ao da mulher honesta, laboriosa e fiel. A prostituta aparece, então, como a negação dos valores dominantes, como pária da sociedade que ameaça subverter a boa ordem de um mundo masculino. Seu objetivo principal, afinal, é a satisfação do prazer, é dar vazão aos seus instintos animalescos, incontroláveis e perversos, ca-
polícia, quanto da municipalidade e da Junta de Higiene, E, em 1896, é decretado o Regulamento Provisório da Polícia de Costumes, de autoria de Cândido Motta, visando a disciplinar as práticas sexuais extraconjugais e a conter a audácia crescente das meretrizes_ 2 A construção do rigido estereótipo da prostituta, símbolo do mal, dos pecados e vícios, associada à imagem de Eva, mulher sedutora responsável pela queda do homem, cujas práticas devem ser rigorosamente controladas a partir da própria domesticação das sexualidades insubmissas, inscreve-se num conjunto de dispositivos estratégicos de moralização da sociedade brasileira, entre final do século XIX e início do XX_ O contraponto desta figura maculada, por sua vez, reforça a possibilidade de valorização, de promoção e de imposição de um novo modelo de feminilidade: a mulher esposa-dona-decasa-mãe-de-família, vigilante, ordeira, higiênica, responsável pelos membros da família, porém dessexualizada: a "rainha do lar" _3 Promover uma nova representação simbólica da mulher, casta e pura, em oposição à imagem sombria, estigmatizada e degenerada da prostituta, constituiu peça fundamental da estratégia burguesa de redefinição das relações intrafamiliares, tanto nos meios sociais privilegiados quanto nos mais desfavorecidos. No contexto de integração do proletariado emergente ao universo dos valores burgueses, a construção de uma nova identidade da mulher constituiu uma brecha pela qual os dominantes procuraram penetrar no interior da habitação e da própria vida dos pobres e gerir seu cotidiano nos mínimos detalhes. Num momento histórico em que as mulheres, ricas ou pobres, invadem o cenário social, participando cada vez mais intensamente das solicitações de trabalho e lazer, de uma nova vida urbana, chama a atenção a emergência de todo um discurso altamente moralista, que, partindo de vários pontos do social, designa o espaço da vida privada como o campo privilegiado de atuação da mulher. (2) Motta, Cândido, "Prostituição, Polícia de Costumes, Lenocínio", relatório apresentado ao Chefe de Polícia de São Paulo, SP, 1897. {31 Rago, Luzia Margareth, "Sem fé, sem lei, sem rei. Liberalismo e experiência anarquista na República", dissertação de mestrado, UN1CAMP,
1984. capo 11.
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236 O CASTIGO EXEMPLAR DOS ESCRAVOS NO BRASIL COLONIAL
Em segundo lugar, esse deslocamento traz a análise dos dispositivos de poder (na linguagem foucaultiana) para a proximidade com uma relação de produção: o castigo exemplar dos escravos não é apenas exercício do poder senhorial, de reafirmação da dominação, mas deve cuidar também da reprodução de uma relação que é uma relação de exploração direta do trabalho. A exemplaridade do castigo não só marca no corpo dos escravos a sua submissão, a sua condição de escravo e reafirma o poder e a lei dos senhores em geral, mas também o poder e a dominação daquele senhor específico sobre aqueles escravos específicos e que ao mesmo tempo disciplina e produz um trabalhador particular, no local de uma produção particular. Ainda que, especificamente em Vigiar e punir, Foucault retome passagens do trabalho de Rusche e Kirchheimer, afirmando que o investimento político do corpo está ligado à sua utilização econômica, que o corpo só é útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso,!5 ainda que men· cione "um certo número de amplos processos históricos no interior dos quais" a formação da sociedade disciplinar teve lugar 16 e que na sua análise relacione a prisão com as escolas, quartéis, hospitais e as fábricas; ainda assim, cremos que, em Foucault, a relação entre estes "amplos processos históricos" e a análise da microfisica do poder, posta em jogo pelos aparelhos e instituições, é problemática. Acontece que a análise foucaultiana se preocupou com pessoas que estavam fora dos circuitos do trabalho produtivo: os loucos, os doentes, os prisioneiros, etc., pessoas para as quais o trabalho tinha uma função mais simbólica e de adestramento (ou disciplinar) que uma função produtiva. 17 Por outro lado, Foucault chegou a reconhecer trabalhar no interior de um "certo horizonte geral definido e codificado por Marx", ao mesmo tempo que adotou uma série de "precauções metodológicas" e combateu certas leituras do marxismo." Sua contribuição é, sem dúvida alguma, extremamente importante para nós, historiadores, ao
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(15) Michel Foucault, op. cit., pp. 27-28.
(16) Idem, p. 191.
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romper com certas noções de verdade, ao tratar da multiplicidade de sujeitos, da pulverização, densidade e difusão do poder. Por isso mesmo, esse deslocamento a que nos referimos, essa proximidade com a relação de produção mais importante na vida colonial que aparece em nosso trabalho, permite-nos indagar (para além da análise das estratégias e dos dispositivos de poder senhorial de que o castigo exemplar dos escravos faz parte) a respeito da conexão entre estas estratégias e dispositivos e a reprodução da exploração do trabalho, O castigo dos escravos é exemplar também porque o poder senhorial tem uma preocupação com o seu futuro, Não apenas se preocupa em punir um crime cometido no passado, mas prevenir rebeliões, conservar e manter os escravos, enquanto escravos, continuamente, Esta relação com a continuidade, com a reprodução da exploração escravista, efetivada por cada senhor no interior das unidades de produção, é que tem a ver \ com o conflito mencionado pelo juiz da Alfândega (e não só por ele, mas também por outros textos coloniais") entre os interesses senhoriais e os da Coroa na punição exemplar dos escravos que cometem furtos. A distribuição do poder no mundo colonial, suas diversas estratégias e mecanismos e os conflitos entre as várias instâncias de controle da massa escrava convergem, ainda que contraditoriamente, para a manutenção da exploração escravista, Finalmente, uma última observação: o castigo dos escravos deve ser entendido também como luta, Não apenas a luta do carrasco contra o condenado, do rei contra o súdito, mas como uma luta entre saberes diferentes, Há um saber escravo que se pretendia aniquilar com o exercício do poder senhorial. Os pretos que trabalhavam na Alfândega podiam ser "faltos de notícia e ignorantes" da lei senhorial, mas sabiam obter coisas para si, tiradas das mercadorias que transportavam dos navios aos armazéns. O texto impresso no corpo dos escravos podia ser lido de forma diferente pelos escravos: podia dizer sobre a qualidade do senhor que o havia imprimido, podia identificar um aliado possível numa fuga, numa rebelião, etc. Este saber, que informava as ações de resistência dos escravos diante do poder senhorial, apresentava também, ao mesmo
(17) Michel Foucault, Microfísica do Poder, trad. Rio de Janeiro, Graal,
1979, pp. 223·224. (18) Cf. especialmente Michel Foucault, Microfísica do Poder, pp. 2-7,
(19) Cf., por exemplo, Jorge Benei, op. cit., pp. 166-170.
142·143, 148, 164 e 182·191.