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Portuguese Pages 241 Year 2000
ORIGENS DO ENSINO
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul Chanceler: Dom Altamiro Rossato
Reitor: Ir. Norberto Francisco Rauch
Conselho Editorial: Antoninho Muza Naime Antonio Mario Pascual Bianchi Délcia Enricone Jayme Paviani Luiz Antônio de Assis Brasil Regina Zilberman Telmo Berthold Urbano Zilles (presidente) Vera Lúcia Strube de Lima
Diretor da EDIPUCRS: Antoninho Muza Naime
Margaret Marchiori Bakos leda Bandeira Castro Letícia de Andrade Pires (organizadoras)
ORIGENS DO ENSINO
Porto Alegre, 2000
© EDIPUCRS 1ª edição: 2000 Capa: Carolina W. Campos e Samir Machado de Machado Preparação de originais: Eurico Saldanha de Lemos Revisão: das organizadoras Diagramação da versão digital: Laura Guerra Editoração e composição: Suliani Editografia Impressão e acabamento: Gráfica EPECÊ Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) O69
Origens do ensino / Organizado por Margaret Marchiori Bakos, leda Bandeira Castro e Letícia de Andrade Pires. – Porto Alegre: EDIPUCRS, 2000. 225 p. ISBN: 85-7430-166-3 Palestras proferidas na IV Jornada de Estudos do Oriente Antigo – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. 1. Ensino na Antiguidade 2. Ciências (Oriente Antigo) – Ensino 3. Sociologia do Conhecimento I. Bakos, Margaret Marchiori II. Castro, leda Bandeira III. Pires, Letícia de Andrade CDD 370.901 Ficha Catalográfica elaborada pelo Setor de Processamento Técnico da BC-PUCRS Proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa da Editora. EDIPUCRS Av. Ipiranga, 6681 – Prédio 33 Caixa Postal 1429 90619-900 – Porto Alegre – RS Brasil Fone/fax: (51) 320.3523 http://ultra.pucrs.br/edipucrs/ E-mail: [email protected]
SUMÁRIO
Apresentação ................................................................................................... 7 Elvo Clemente Introdução ...................................................................................................... 11 Margaret Marchiori Bakos O nascimento da Saúde Pública ..................................................................... 15 Moacyr Scliar História e História Pessoal: o significado [para nós] do ensino da filosofia na Grécia Antiga ........................................................... 20 Sérgio Sardi A pedagogia de Deus ..................................................................................... 49 Geraldo Luiz Borges Hackmann Terra e Espaço:um aprendizado de Astronomia .............................................. 64 Geraldo Rodolfo Hoffmann O conhecimento geográfico: práticas e teorias .............................................. 106 Ieda Bandeira Castro Algumas contribuições da Arqueologia para o conhecimento da instrução no Mundo Romano .......................................... 136 Pedro Paulo Funari A formação do escriba no antigo Egito .......................................................... 148 Margaret Marchiori Bakos Ensino, escrita e burocracia na Suméria ....................................................... 172 Katia Maria Paim Pozzer Fazendo educação com uma (re)leitura da Alquimia ..................................... 188 Attico Chassot
A formação do jovem no Mundo Grego ......................................................... 201 Harry Bellomo Educação indígena: parâmetro social, necessidade nativa ou invenção ocidental? Algumas considerações ........................................... 208 André Soares Autores ......................................................................................................... 236
APRESENTAÇÃO OS ESTUDOS NA ANTIGÜIDADE *
ELVO CLEMENTE
Na abertura dos trabalhos da IV Jornada de Estudos do Oriente Antigo, dedicada às origens do ensino na antigüidade, tenho a satisfação de tecer algumas considerações quanto à equipe organizadora na pessoa da Profª Dra. Margaret Marchiori Bakos e quanto ao tema escolhido. A equipe vem enfrentando com denodo e abertura de horizontes os grandes desafios; selecionar a temática base e fundamento das ciências e das culturas que vêm atravessando os séculos, as regiões, os continentes e os oceanos. Como eram feitos os estudos na antigüidade? Eis a pergunta que guarda em seu bojo muita curiosidade e muitas respostas. O fato é que desde que o ser humano se colocou em pé começou a transmissão de conhecimentos. O que uma geração aprendia transmitia às outras. Pois afirma o Vate da Língua Portuguesa: “O SABER de experiência feito”. Quem diz experiência diz transmissão de idéias, de usos, de conquistas às gerações subseqüentes. Era a comunicação oral, era a observação do que o outro ia fazendo e assim iam crescendo as ciências e as técnicas. Não vou mergulhar na noite dos tempos em que encontramos o Oriente sempre desperto aos primeiros clarões do alvorecer quer no início da jornada, quer no madrugar do ensino.
*
Ex-Presidente da Comissão Organizadora do Cinqüentenário da PUCRS.
Apresentação: os estudos na antigüidade 7
Giorgio Colli no opúsculo sob o título O nascimento da filosofia, traduzido por Federico Carotti e publicado pela UNICAMP, defende a tese de que a filosofia nasceu da poesia. Apresenta as lides e as lutas das divindades e dos mitos Apolo versus Dionísio, as figuras de Artêmis e de Ariadne tudo envolto em símbolos, em metáforas a fim de descobrir o verdadeiro caminho para Teseu no Labirinto. Tudo isso serve para sentir e para perceber como não foi fácil e ainda, hoje. Não é fácil vencer o dédalo das ciências. Toda a transmissão era oral, a escrita foi inventada pelo deus egípcio Thot que a entregou ao faraó para passá-la aos homens. Platão, no Fedro, comenta o mito, acusando de ingenuidade quem pensar transmitir por escrito em conhecimento e uma arte, quase como se os caracteres da escrita tivessem a capacidade de produzir algo sólido. Transcrevendo uma citação de Homero feita por Platão: “Toda a pessoa séria evita escrever as coisas sérias para não expô-las à malevolência e à incompreensão dos homens” (p. 94). Os intérpretes modernos não levaram e não levam a sério a sentença de Platão. Como é difícil a hermenêutica a verdadeira e fiel penetração dos textos! ... Giorgio Colli afirma: “Platão é dominado pelo demônio literário, ligado ao filão da retórica, e por uma disposição artística que se sobrepõe ao ideal do sábio. Ele critica a escrita, critica a arte, mas seu instinto mais forte foi o do literato, do dramaturgo. A tradição dialética lhe oferece simplesmente o material a plasmar. E tampouco devemos esquecer suas ambições políticas, coisa que os sábios não conheceram. Da mistura desses dons e instintos surge a nova criatura, a filosofia” (p. 96).
Na mesma Atenas de Platão estava o concorrente e adversário de notável envergadura, Isócrates. Ambos dão o mesmo nome ao que oferecem – FILOSOFIA, ambos afirmam visar a um idêntico fim, a PAIDÉIA, ou seja a educação, a formação intelectual e moral dos jovens atenienses.
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Conclui Colli: “Assim nasce a filosofia, criatura demasiado compósita e mediada para encerrar em si novas possibilidades de vida ascendente. Apagou-as a escrita, essencial para este nascimento.”
Depois veio o Estagirita, Aristóteles, que ensinava aos discípulos no vaivém nos jardins do Acadmo. Vieram tantos outros filósofos e sofistas que aprenderam, que ensinaram a tantos discípulos Os caminhos do saber, das ciências e das artes em todos os povos da Antigüidade, sobressaindo a Hélade nessa concentração de saber e de conhecimentos para levá-los em fachos luminosos no suporte sonoro dos dialetos helênicos a outros povos, a outras geografias. Na distância de oito séculos, na era cristã surgiu Agostinho, (nascido em Tagaste, 354 – falecido em Hipona, 430) continuador de Platão, nas principais teses da Filosofia. É do consenso geral de historiadores e filósofos que o bispo de Hipona foi a maior e mais brilhante inteligência que nasceu no Ocidente. Vale a pena ver como foi a sua educação, como escreve Marcos Roberto Nunes Costa: “Em Tagaste recebeu os primeiros ensinamentos de gramática, aritmética, latim e um pouco de grego que nunca chegou a dominar.” O autor cita texto das Confissões I, 14: “Aprendi sem a pressão correcional dos investigadores, impelido só pelo meu coração desejoso de dar a luz os meus sentimentos. Disso ressalta com evidência que para aprender, é mais eficaz uma curiosidade espontânea do que um constrangimento ameaçador.”
Giovanni Papini acredita que Agostinho se encantou com a FILOSOFIA já nos primeiros anos de estudos em Madaura sob a influência das obras de Lúcio Apuleio. Em contato com os autores latinos como Virgílio, Cícero e outros foi-se estruturando a grande bagagem filosóficoliterária de quem viria a ser o grande bispo de África, luz para os cristãos e força impávida contra Maniqueu e Pelágio.
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Vencendo os percalços, dominando as paixões, abraçando o ideal de Jesus Cristo que sua mãe Mônica lhe indicava, Agostinho tornou-se o grande intérprete da filosofia de Platão e Plotino que se conservam vivas ate nossos dias graças aos estudos sérios feitos e transmitidos aos discípulos atentos e fiéis. Os estudos na antigüidade tinham seus métodos e seus conteúdos para formar as pessoas das sociedades daquelas eras. A Grécia teve a grande expressão cultural e científica daqueles séculos por sua posição geopolítica, por seus homens de estudos e de investigações filosófico-pedagógicas. A expansão do mundo grego com Alexandre da Macedônia, com a adoção da koiné grega nos países civilizados tudo isso facilitou que os pedagogos gregos, prisioneiros dos romanos se dedicassem a educar os nobres do Lácio e dos outros pontos importantes do Império Romano. A própria língua latina sofreu a helenização pela qual tornou-se língua adaptada à poesia, à filosofia e às belas artes. Vale a pena mergulhar nos segredos e labirintos da antigüidade com o fio de Ariadne da Verdade e do verdadeiro Amor. Referências bibliográficas COLLI, Giorgio. O nascimento da filosofia. Campinas. SP: Ed. UNICAMP, 1988. COSTA, Marcos Roberto Nunes. Santo Agostinho. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1999.
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INTRODUÇÃO MARGARET MARCHIORI BAKOS
Nada mais natural que, no ano do cinqüentenário da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, a Jornada de Estudos do Oriente Antigo, em sua quarta edição, escolhesse como temática As origens do ensino. Este volume contém as palestras que foram proferidas naquela ocasião. A exemplo das anteriores, a organização da IV Jornada não levou ao pé da letra o título oriente antigo. Ela buscou trazer a discussão enfoques e preocupações universais, que ultrapassam as balizas cronológicas tradicionais para a antigüidade e que consideram o oriente como um conceito referencial, apenas. De fato, a partir da proposta restrita das duas primeiras jornadas: o estudo do Egito na antigüidade, esses encontros buscaram enfoques mais abrangentes. Ao sinalizar tais modificações, o objetivo era valorizar, principalmente junto ao público jovem, a historicidade das vivências humanas. Em outras palavras, colocar em discussão a possibilidade de conhecer e de entender o oriente não mais pelo seu lado exótico, hilariante, peculiar, mas pelo seu modo de viver organizado em coletividade e pelos seus princípios. Alguns deles, por exemplo, estão nas origens de nossas práticas na atualidade, como é o caso da escrita. A III Jornada anterior estudou como o homem buscou reter e registrar a palavra que é, por essência, fugaz. Investigou a história da escrita, que remonta à Suméria e nos chegou pelos fenícios, gregos e latinos. Inventada, em tempos imemoriais, a escrita veio para ficar. O registro escrito é dos melhores exemplos da necessidade do amadurecimento lento de problemática, em diferentes locais deste planeta, até a criação de sua solução, que nesse caso foi de uma
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magnitude excepcional. Dos registros manuais em tabuinhas de barro ao papel, digitado pelos computadores, a escrita orgulha os seus copistas, dá aos humanos a sensação “mágica” de imortalizar pelo registro, alguém, alguma coisa e/ou principalmente, sentimentos. Na IV Jornada, a preocupação girou em torno das Origens do ensino, quando profissionais de diferentes áreas apresentaram suas reflexões sobre a temática. Ilustrando a exposição com diapositivos, Moacyr Scliar encantou a audiência com sua reflexão, aqui sintetizada, sobre as origens do ensino da medicina. Ele mostrou como o temor a doença e o desejo de evitá-la é algo profundamente arraigado no ser humano, capaz de gerar e de evocar fantasias que persistem ao longo do tempo, coexistindo numa mesma época, numa mesma sociedade e, às vezes, numa mesma pessoa. Sérgio Sardi convidou-nos a refletir sobre o sentido que o filosofar pode ter no processo de criação e de desenvolvimento da nossa visão-de-mundo, na instauração de uma significação mais profunda às nossas existências. Geraldo Luiz B. Hackmann analisou a maneira como Deus se relaciona com o seu povo, ou seja, a pedagogia ou o modo utilizado por Ele para revelarse. O estudioso partiu da etimologia do termo pedagogia, para, após, caracterizar as maneiras diversas como Deus foi-se comunicando com os homens, ao longo da história. Geraldo Hoffmann, reforçando o pensamento de que a história da humanidade apenas arbitrariamente pode ser balizada por épocas e espaços, demonstrou que as orientações são relativas e sempre referidas a um determinado local ou indivíduo, o qual também designamos “observador”. Ieda Bandeira Castro ensinou que a Geografia, apesar de ser uma ciência relativamente nova, se comparada com outros ramos do conhecimento humano, sua prática já aparece na pré-história, quando os grupos começaram a
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migrar para diferentes regiões, deixando marcas de sua presença e assimilando novos traços culturais. Pedro Paulo Funari, através de fontes pouco conhecidas neste País, mostrou que havia diversos níveis e gradações de instrução na Roma antiga e que a educação não se restringia à elite. O aprendizado dos humiles diferenciava-se da erudição escolar, mas não deixava de permitir que, por meio também da escrita, esses populares pudessem participar ativamente da vida social, toda ela dependente das letras. Margaret Marchiori Bakos ao historiar as origens do ensino no antigo Egito, valorizou a severidade da rotina dos estudos daqueles que procuravam a formação de escribas, tão rígida que sequer lhes permitia folgar nos dias festivos. Nesse contexto, os estudantes eram obrigados a copiar longos textos, alguns ainda atuais pelos conselhos e advertências que continham. Katia Paim Pozzer privilegiou as questões da escrita e da burocracia ao refletir sobre as origens do ensino na Suméria. Ela explicou que podemos reconstituir uma certa orientação pedagógica nas escolas. A educação não era nem universal, nem obrigatória, e, tal como hoje, os antigos professores dependiam de seus salários para viver. Attico Chassot refletiu sobre as exigências aos professores, nestes novos tempos, em que devem deixar de ser informadores para se tornarem formadores, o que implica uma preocupação com um ensino que se enraíza na história da construção do conhecimento. Nesse sentido, avaliou a importância de conhecermos a história da alquimia e, principalmente, a do seu apagamento, pois a química do final do século XX não parece muito diferente, em seus objetivos maiores e mais imediatos, que daqueles medievos. Harry Bellomo falou sobre a educação do jovem no mundo grego. Explicou que a educação em Atenas partiu de três pontos básicos: artes para desenvolver a sensibilidade e a imaginação, ginástica para conseguir um corpo perfeito e filosofia para interpretar o mundo e organizar o pensamento. Este
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modelo era exclusivo dos rapazes das classes superiores, abrangendo todas as áreas da personalidade humana. Pode parecer estranho para muitos que em uma Jornada sobre história antiga tenha sido dado espaço para uma reflexão sobre os Índios americanos. Entretanto, ela se impõe ao sublinhar o caráter arbitrário das periodizações universais e suscitar um debate sobre o significado de antigüidade para este continente. André Soares refletiu sobre a educação indígena, seus objetivos e como ela se constrói, através do olhar do ocidental, desde o século XVI até os dias de hoje. Ele questionou a função da educação para os habitantes précabralinos e como a cultura se perpetua em um grupo específico, os Guarani. Procurou demonstrar que a educação posta à disposição dos Índios deveria ter a seguinte proposta: não educar os Índios mas educar para os índios. Além do fio temático que une as apresentações deste volume: as origens do ensino, está o interesse de lembrar como é importante o conhecimento do outro e de suas histórias, para repensarmos preconceitos e resgatarmos afetos. Mostra ainda que as balizas tradicionais de tempo e de espaço podem ser utilizadas como referenciais para apontar diferenças de um grupo humano para outro, mas que a forma como os seres humanos viveram e vivem tem elos comuns atemporais. Ao refletir sobre a história do ensino, podemos concluir que, se por um lado somos eternos aprendizes, de outro, as pedagogias mantêm raízes longínquas e alguns conhecimentos esquecidos, merecem ser revalorizados. Entre as muitas pessoas que colaboraram na organização desta IV Jornada, destaco Claudia Musa Fay (PUCRS) e Katia Pozzer (ULBRA). Graças a elas, aos conferencistas que nos cederam seus textos e ao estímulo da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, na pessoa de seu PróReitor de Pós-Graduação, Prof. Dr. Monsenhor Urbano Zilles, foi possível a publicação deste volume.
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O NASCIMENTO DA SAÚDE PÚBLICA MOACYR SCLIAR
Saúde pública pode ser concebida como a prevenção e o controle das enfermidades que afetam o corpo social. E, assim como o conceito de corpo social tem variado ao longo do tempo, também a saúde pública evoluiu de acordo com múltiplas variáveis, sociais, econômicas, culturais, que determinam a organização de uma sociedade. Podemos falar dos vários paradigmas de saúde pública, semelhante aos paradigmas que Kuhn1 descreveu para a ciência em geral. Tais paradigmas sintetizaram a forma de olhar o corpo social: a visão de saúde pública, que apresenta dois característicos principais; evolutiva e “telescopada”. Isto é, o surgimento de uma nova concepção do fenômeno saúde-enfermidade não implica necessariamente o desaparecimento de concepções anteriores. O temor à doença e o desejo de evitá-la é algo profundamente arraigado no ser humano, gerando idéias e evocando fantasias que persistem ao longo do tempo, coexistindo numa mesma época, numa mesma sociedade e às vezes numa mesma pessoa. Para Michel Foucault2, a história do pensamento médico se estrutura em discursos, separados por bruscos cortes epistemológicos estreitamente vinculados a realidade socioeconômica. Quais são estes paradigmas, estes discursos, estas formas de olhar o corpo social? No pensamento científico, de forma geral, existem, segundo Gaston Bachelard3 três períodos: pré-científico, compreendendo a antigüidade clássica e o Renascimento, chegando ao século XVIII; científico, dos fins do século XVIII 1
KUHN, T.S. A estrutura das revoluções científicas. 3. Ed. São Paulo: Perspectiva, 1978. FOUCAULT, M. The birth of the clinic. New York: Parthenon, 1973. 3 BACHELARD, G. O novo espírito científico. Rio de Janeiro: Tempo Brasiliense, 1968. 2
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até começo do século XX; e o novo espírito científico, que se inicia com a relatividade. Para uma história de saúde pública, estas fases têm de ser desdobradas, de acordo com os “olhares” lançados sobre o corpo social: 1) mágico; 2) empírico; 3) autoridade; 4) científico; 5) social. O período pré-científico empreende duas fases: uma fase mágica, em que as doenças são atribuídas a demônios, e a cura vêm da divindade: o intermediário entre o doente e as formas do bem e do mal é o feiticeiro, o “Shaman”. Na fase pré-científica, propriamente dita, da antigüidade clássica a crença nos poderes curativos da divindade persiste, mas já na época grega aparece uma fissura no pensamento mágico. Os gregos cultuavam, além da divindade da medicina, Asclepius, duas outras deusas – Hygieia (saúde) e Panacea (cura). Hygieia era uma das manifestações de Athena, a deusa da razão; simbolizava o princípio de que a manutenção da saúde depende de medidas racionais. Panacea representa a crença de que modo pode ser curado – mas esta cura, para os gregos, era obtida pelo uso de plantas e outros recursos naturais, e não apenas por procedimentos ritualísticos. Ao reafirmar estes princípios em suas obras, Hipócrates foi mais longe no combate as idéias místicas da ciência. A respeito da epilepsia, conhecida a época por “doença sagrada”, escreveu: “Se os aspectos peculiares de uma doença fossem evidência de presença divina, haveriam muitas doenças sagradas”. Na visão grega do fenômeno-enfermidades, mesclavam-se, pois, elementos mágicos e elementos empíricos. Não havia um método científico; o apoio tecnológico era praticamente nulo. É um fenômeno característico das sociedades
escravistas:
a
tecnologia
não
se
desenvolve,
porque
a
industrialização não o exige; e a industrialização não se desenvolve porque a utilização da mão-de-obra escrava a torna dispensável. Os gregos já conheciam
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uma forma rudimentar de máquina a vapor, mas esta era utilizada como brinquedo para crianças. O escravagismo é um obstáculo à constituição de um corpo social, e portanto às medidas de saúde. Os magníficos sistemas de abastecimento de água e esgoto de Roma destinavam-se não a toda a população, mas a uma reduzida parte dela. A Idade Média, uma era de pestilências, não trouxe contribuições apreciáveis para o desenvolvimento da saúde pública. Nesta fase surgiram os primeiros hospitais, mas esses eram estabelecimentos destinados sobretudo a caridade e não a cura dos doentes. Também nesta época a farmácia ganhou impulso, mas graças, sobretudo, a contribuição árabe no uso de plantas e drogas. As universidades, criadas no fim da Idade Media, pouco tinham, pois, a ensinar, mas contribuíram para a institucionalização das profissões de saúde. Com a Revolução Mercantil tem início a Idade Moderna, caracterizada pelo incremento do comércio e pela urbanização. O surgimento das cidades gerou problemas de saúde pública, sobretudo em termos de doenças transmissíveis. A primeira aproximação para o controle de tais doenças foi autoritária de acordo, aliás, com os princípios do Estado Absolutista. O conceito de política sanitária foi formulado em 1779 por Johan Peter Frank. Tinha caráter autoritário e paternalista; quando aplicado em problemas específicos, preocupava-se com as leis que tinham de ser aprovadas e com detalhes do que deveria ser feito; tudo baseado em informações empíricas, pois embora o microscópio existisse desde o século XVII, não havia ainda conhecimentos suficientes sobre a gênese das doenças, especialmente as transmissíveis. O que não impediu, diga-se de passagem, que em 1854 John Snow fizesse a primeira investigação epidemiológica em bases científicas, utilizando dados referentes à um surto de cólera. A fase científica da saúde pública encontrou um substrato tecnológico na Revolução Industrial. Graças aos novos recursos de laboratório nasce, com Pasteur e Hoch, a microbiologia. Pasteur era, aliás,
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um cientista muito ligado a indústria; suas pesquisas sobre fermentação, por exemplo, foram feitas a pedido de fabricantes de vinho. Da mesma forma, os governantes passaram a exigir, das profissões da saúde, respostas para os grandes problemas surgidos com a industrialização e urbanização, principalmente ao que se refere à mão-de-obra rígida. A medicina vincula-se ao processo de produção. O hospital, que até então fora um depósito de doentes, administrados em moldes caritativos passa a ser visto como instituição recuperadora de saúde; ao contrário, os loucos, que durante a Idade Média eram tolerados, têm agora de ser confinados por estarem alienados do processo de produção. O ensino médico passou a ser regulamentado. A centralização do poder, à medida que se foram estruturando as nações modernas, permitiu que a saúde pública fosse se definindo. Importante para isto foi a adoção de medidas legais de proteção à saúde, sendo de destacar nesse campo o trabalho pioneiro do advogado inglês Edwin Chadwick, que em 1842 apresentou um relato intitulado “Condições Sanitárias da População Obreira da Grã-Bretanha”. A publicação desse relato estimulou o Parlamento inglês a formular a Lei de Saúde Pública, de 1848. Em 1883 foi introduzido, na Alemanha, por Bismarck, o seguro doença obrigatório, como nota Sigerist, 4 isso ocorreu contra a vontade dos médicos e mesmo das classes dominantes: Bismarck porém teve suficiente visão para verificar que a própria estabilidade da sociedade dependia desta medida. Recentemente, um outro fator veio tornar mais necessário o controle social sobre a área de saúde e assistência médica: trata-se da escalada dos cursos, que nos EUA e na Europa Ocidental, sobem a um ritmo superior ao da inflação. É uma decorrência do que tem sido chamado “Complexo médicoindustrial”; a associação entre a assistência médica e o interesse de poderosas indústrias, entre elas a de medicamentos e de equipamentos.
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SIGERIST, H. E. Civilization and disease. Chicago: The University of Chicago Press, 1943.
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As sucessivas etapas acima descritas correspondem à evolução clássica num país desenvolvido, segundo o modelo capitalista. Nada impede que uma, ou várias dessas etapas possam ser “queimadas”. De outra parte, a visão da sociedade sobre seu próprio corpo social é, como foi dito, uma visão “telescopada”. Alguns setores podem ter uma visão social dos assuntos de saúde, enquanto outros continuam vendo o processo saúde-enfermidade por uma perspectiva mágica.
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HISTÓRIA E HISTÓRIA PESSOAL: O SIGNIFICADO [PARA NÓS] DO ENSINO DA FILOSOFIA NA GRÉCIA ANTIGA SÉRGIO A. SARDI
Convido-lhes a iniciarmos refletindo sobre o sentido que a Filosofia, ou melhor, o filosofar, pode ter no processo de criação e desenvolvimento da nossa visão-de-mundo, na instauração de uma significação mais profunda às nossas existências, horizonte que estamos cotidiana e continuamente a buscar, criar e recriar no decurso das nossas histórias pessoais. Mas qual o sentido de afirmarmos que o filosofar faz parte indissolúvel da nossa história, o que equivale a dizer, do nosso crescimento?1 Será possível recuperarmos o como e o quando de nossa apropriação desse gesto? E, ainda, o que significa filosofar? Dentre os múltiplos caminhos para a reflexão em que tais perguntas nos situam, quero sugerir aquele que aponta para uma determinada perspectiva da nossa atenção, o qual cada um poderá encontrar concentrando-se em si mesmo e nas suas memórias. No recolhimento do nosso olhar vislumbramos a morada do eu no tempo, sabendo-nos, para nós mesmos, com base nas camadas superpostas que expressam a trama, a tessitura da nossa unidade e, simultaneamente, indicam as rupturas deste ser-outro de nossa condição atual. Observemos, assim, a nossa própria história, pela atualização – que é continua reconstrução – de um passado que se tornou dimensão viva do nosso ser.
1
Busco conferir um sentimento amplo ao termo crescimento, o qual não se resume, evidentemente, ao seu aspecto físico.
História e história pessoal: o significado [para nós] do ensino da Filosofia na Grécia... 20
O sentido de tal recolhimento parece mesmo exigir uma pausa para que, por alguns momentos, vivenciemos a memória da história única e irrepetível de nossas vidas. Uma pausa para o silêncio da nossa existência. Deveremos, com isso, no entanto, correr o risco de nos deparar com imagens, emoções e significados cujas nuanças nos situam em um universo ainda não dito... e de lá ecoam, dispondo-nos a uma reflexão a qual, evidentemente, ultrapassa os limites da nossa expressão, o que nos conduz a buscar ampliar as possibilidades da mesma. A perda de significações cristalizadas talvez seja mesmo a medida da intensidade do nosso envolvimento em uma experiência. Denomino vivência a uma tal experiência, que é significativa em vista da sua produtividade. Essa vivência, pela força que emerge de um ato de desprendimento que é, também, ato cognitivo, gesta em si o desejo da expressão, do encontro do outro, quando então somos todos potencialmente filósofos e poetas, ao retornar as palavras e recriar as condições de efetivação da nossa comunicação. Adotamos, com isso, uma determinada postura com relação à linguagem, dotando-a de novas significações, as quais emergem de uma experiência vivenciada em uma integralidade que distende a nossa atual condição cognitiva. É preciso compreender, pela própria experiência, o sentido de uma postura filosofante, compreender o sentido de uma disposição que, ao reelaborar sentidos particulares, tende para a construção de uma concepção relativamente idiossincrática e unitária ou sistêmica do real, ampliando, com isso, os processos e os procedimentos pelos quais efetivamos o conhecimento e a comunicação. Aprendemos a filosofar filosofando, o que consiste, aqui, na condição primeira para a reflexão sobre a gênese e o sentido de tal postura ou modo de pensar, tanto em nossas histórias pessoais como na própria história. Trata-se do modo de realização de uma reflexão sobre a nossa história pessoal e, portanto, do próprio sentido de falarmos em história pessoal: uma
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reflexão realizada a partir de uma vivência interior, 2 quando então a memória denota um envolvimento no horizonte de um tempo só recuperável na medida mesma da percepção de nosso ser-outro atual. Isso implica em podermos reconhecer, no contexto da nossa história particular, camadas de significação às palavras, as quais, no seu desdobramento, expressam criativamente, a cada momento, o sentido do nosso ser no tempo. Talvez a unidade mesma da nossa história só se processe à base de uma retrospectiva que implique uma perspectiva sempre de novo reposta; isso porque devem ser inseparáveis a autocriação e a autopercepção. Talvez surja, com isso, que, ao revisitarmos e recriarmos o nosso tempo vivido, juntamente com o seu sentido, sejamos alcançados a um duplo e vertiginoso horizonte, onde o imaginário do nosso próprio futuro reclama o seu lugar no imaginário que fazemos do futuro da humanidade.3 Observemos, como filósofos e filósofas, poetas e poetisas, adultos e crianças, as condições de efetivação do nosso próprio crescimento. E, a partir do gesto admirativo que se dobra sobre as nossas existências, na ativa contemplação do sentido do tempo que continuamente nos escorre das mãos, ouçamos, por todos os poros do nosso ser, o sentido profundo de dizer “vida” e de dizer “história”. Ouçamos, como ouve quem se sente em pertença da “vida” e da “história”, como quem ouve em profundo silêncio. Neste instante, neste período de vida, aparecemos a nós mesmos como suspensos com relação ao tempo de nossas vidas4. 2
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A dimensão reflexiva ou interior de uma vivência é um momento de um processo mais amplo, o qual envolve a ação e a percepção. No entanto, o caso da relação com nossa memória, como em outros processos auto-relacionais, a reflexividade passa a assumir um papel preponderante. A vivência está, ainda, relacionada à admiração, mas inclui também a vontade, a disposição e seus efeitos na confirmação da subjetividade. Isso poderia nos sugerir uma reflexão sobre o potencial ético do imaginário do futuro, pois o respeito e a responsabilidade que possamos assumir pelas gerações futuras nos informa sobre o sentido que conferimos a vida e ao humano. Retornaremos a essa questão no decorrer do texto. Na alegoria da caverna (República, VII), Platão expressa a condição do conhecimento humano no interior de um processo no qual a cosmovisão atual, isto é, a visão sintética da realidade, está em suspensão com relação ao tempo vivido. A alegoria expressa, na perspectiva dessa interpretação, a possibilidade de superação de tal suspensão em função de uma evolução ético-
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Somos continuamente outros, incognoscíveis a partir de nossa condição anterior, como incognoscível é o ser-outro de nossa condição futura. É assim que, simultaneamente de posse e estranhos a nós mesmos, reconstruímos parcial e aproximadamente a trajetória aparentemente perdida do nosso crescimento. O mesmo fazemos ao interpretar e reconstruir a história. Como, pois, compreender a unidade do nosso ser, no tempo? Como compreender a unidade da história? Como conciliar a percepção da unidade do eu com a da metamorfose cotidiana, alquimia e sacralidade da vida no mistério do tempo inscrito na corporeidade? Até que ponto e em que sentido é possível efetivar este contato da nossa história individual com a história? A nossa história se constrói em uma teia de relações, distendida no tempo e no espaço. Essa história, ao mesmo tempo única e irrepetível, enquanto tece a trama dos seus contornos, não é, pois, apenas a história de cada um. Trata-se da história de nossas relações, quando se torna, por essa perspectiva, um momento singular de uma história universal. Ao mesmo tempo, a universalidade não elimina, como contingência, o que é próprio, o que é particular, o que caracteriza a id iossincrasia da vida de cada um. Poderemos perceber, portanto, ao menos aproximadamente, em nós mesmos, na nossa trajetória, certos processos que denotam características da história coletiva, da história da espécie. O primeiro deles consiste em nos percebermos, neste momento, neste período, e por toda a vida, em contínua e cumulativa transformação, isto é, em crescimento, e nos relacionarmos
cognitiva das almas (psychaí). Vejamos: a cosmovisão dos prisioneiros da caverna é diretamente relativa suas experiências: enquanto observam as sombras, não podem sequer supor uma realidade distinta; após saírem da caverna e contemplarem diretamente a luz do sol, deverão reaprender a condição anterior de seu conhecimento e de seu próprio ser, o que se efetiva com o retorno a caverna. A alegoria da caverna tematiza, nessa interpretação, o problema da unidade do indivíduo no tempo. Tal questão será tratada, em Platão, por um lado, na referência a um processo que transcende a própria vida, onde se justifica a discussão acerca da imortalidade da alma, da doutrina da reminiscência e do inatismo; por outro, de uma perspectiva ético políticoepistemológica. Devemos considerar, no entanto, que ambas as perspectivas se complementam, no contexto do platonismo.
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criativamente com nossa própria transformação, exercitando a conexão entre crescimento e criação. A Filosofia será, pois, também compreendida como um processo que participa da contínua reinstauração da nossa unidade, no tempo, como indivíduos e como espécie; assim como a processo de contínua ruptura com essa unidade. A Filosofia, compreendida desse modo, nos incita à contínua e cotidiana percepção do nosso crescimento criativo, coma forma primordial de intuição.5 Um pensar que configura um compromisso ético entre a nossa história e a história. Um pensar que revela o espaço primordial da significação da síntese entre vida e conhecimento. Um pensar que é, simultaneamente, envolvimento e alteridade, onde o pensar produz o pensar por um amor que se caracteriza pela busca interminável do ser amado e pelo contínuo compartilhar de uma realidade fugidia. Um pensar que está a sempre a se surpreender consigo mesmo e com a potencial infinitude da sua própria vontade de realidade. Desprendamo-nos, no entanto, deste processo de recolhimento, guardando-o na superação de um olhar que se dirige ao outro após transitar a própria interioridade. E, desde que buscamos a gênese do filosofar na nossa história e na história da racionalidade ocidental, observemos as crianças. Vou, aqui, me reportar a um fato concreto, o qual pude vivenciar em minha relação filosófica com crianças. A situação decorre de uma série de exercícios cujos processos cognitivos trabalhados visavam, dentre outras coisas, ao autoconhecimento. Observemos que, ao proliferar a utilização de metáforas, de novos termos que pudessem aproximá-la6 daquilo que estava vivenciando, daquilo que ela estava
5
6
Remeto ao sentido em que a intuição da duração, em H. Bergson, pode assumir relativamente à autopercepção. A criança chama-se Rúbia Liz Vogt de Oliveira, aluna, na época, da 3ª série primária, no Colégio Batista de Porto Alegre.
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sentindo, daquilo que ela estava perguntando, a criança passa, gradual e 7
autonomamente, a construir uma nova visão de conjunto sobre a realidade . Após algumas atividades, a criança em questão, refletindo sobre a sua própria memória, passou a perceber que a memória não é apenas uma recuperação de algo. Então, ela se pergunta: – eu trago de volta aquilo que me aconteceu? E ela mesma responde, e diz: – não, não trago de volta aquilo mesmo que me aconteceu, mas eu, quando trago de volta e me lembro de algo, modifico aquilo que lembro. Cada vez me lembro de um modo diferente. Com isso, ela inventa o termo “memória pensativa” para explicar o que é a memória, e diz: – não existe “memória”! Existe “memória pensativa”, pois a memória, ao mesmo tempo, lembra e modifica aquilo que lembra. Outro dia,
após a aula,
ela disse: não existe apenas um
“pensamento”... existe também um “pensamento intocável” porque às vezes, quando eu digo uma palavra, não sei por que a ligo com outra, Por exemplo, se digo “Guaíba”, penso em “doce”; se digo “Sapucaia”, penso em “salgado”... e eu não sei por quê. A formulação dos termos “pensamento intocável” e “memória pensativa” indicam uma profunda reflexão subjacente, a qual inclui uma admiração e um estranhamento com a realidade. Compreendemos, então, por este exemplo, que toda essa criação lingüística que uma criança de nove anos pode fazer e que, analogamente, e na medida de nossas próprias vivências, cada um de nós pode realizar, expressa o sentido de um modo de pensar e uma postura frente à vida. Imagino que isso possa ser compreendido ao longo de um processo histórico-cultural. A linguagem estabelece os liames, os nexos a partir dos quais construímos nossas relações socio-culturais, e o filosofar designa um modo de nos situarmos na linguagem e, portanto, no contexto de tais relações. 7
Uma visão-de-mundo, ou uma visão de conjunto sobre a realidade não é, no entanto, estruturada ou construída linearmente, mas ao modo de um mosaico, sempre incompleto e de fragmentos cambiantes.
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Mas o ensino da Filosofia tem se distanciado desse gesto, dessa postura, a qual podemos vislumbrar no cotidiano a ponto de a encontrar em sua espontaneidade. No ensino da Filosofia, na Grécia Antiga, na vertente que vai de Tales a Aristóteles, eram inseparáveis, no entanto, o processo de ensino e o 8
processo de criação . Isso, para nós, tanto no contexto universitário quanto no primeiro e no segundo graus, parece um tanto distante, um tanto remoto. Uma prática não-dogmática do processo de ensino-criação, fundada em uma relativa liberdade de pensamento9 resultou, em primeiro lugar, na articulação de métodos e metodologias e, mais além, em modo de pensar capaz de delinear as condições de um imenso aprimoramento da linguagem. Esse processo, efetivado privilegiadamente em um determinado período da história, está na raiz, na gênese da forma que veio a assumir a racionalidade no Ocidente. Ao resgatar esse ponto, que também justifica o adendo ao título, bem como o percurso até aqui realizado, julgo necessário acrescentar que não se trata apenas de compreendermos o sentido do filosofar ou do ensino da Filosofia na Grécia Antiga, mas também do seu significado para nós. A Filosofia, na Grécia Antiga, nascida a partir do discurso mítico, em um período de transição da oralidade à escrita, dizia respeito a círculos reduzidos, não consistia em
uma prática pública,
embora Platão já
houvesse
experimentado escrever para um público mais amplo e, do mesmo modo, a Academia e o Liceu foram experiências que divulgaram a Filosofia a públicos maiores. A repercussão política, no entanto, de tal ensino, foi imensa. E isso se deu em função da conexão entre Filosofia e retórica, no contexto da pólis grega. A construção individual e coletiva dos processos do pensamento e da linguagem, na Filosofia Grega, está relacionada com o momento histórico-
8
9
Observemos como os discípulos não se limitavam a reproduzir os ensinamentos de seus mestres, mas acresciam novas perspectivas de tratamento dos problemas apresentados por estes, rompendo, inclusive, em certos casos, com suas concepções. O exemplo mais claro e o da relação entre Platão e Aristóteles, seu discípulo durante cerca do vinte anos. A “liberdade do pensamento” é sempre circunscrita a uma determinada condição histérica, política, cultural e social, base necessária a partir da qual efetiva a sua produtividade.
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cultural e político de uma experiência de democracia direta, o que consiste em uma característica distintiva da pólis grega. Acresce considerarmos que este consistiu em um longo período de lutas e transformações, onde a guerra havia se tornado um modo de vida. Destaco as grandes guerras contra os Medos e a guerra do Peloponeso. Pode-se dizer que a segunda consistiu em uma continuidade, no piano interior da Grécia, da primeira, em resposta a pretensão imperialista de Atenas, sendo, no entanto, muito mais desastrosa para a civilização grega. O grego vivia a transformação, a luta, e a própria transformação que vivia se relacionava com a formulação do problema filosófico que viria a construir, a partir de Tales: a busca do princípio, do fundamento 10
(arché ) capaz de conferir estabilidade ao real, ao contínuo fluxo do devir
11
e
unidade à multiplicidade. No intervalo entre as guerras um espírito de otimismo esteve aliado à prosperidade econômica, ao desenvolvimento cultural e a uma nova relação para com a democracia, principalmente em Atenas, o que propicia o surgimento de um centro cosmopolita e de uma nova forma de conceber a relação do desenvolvimento político na relação com o desenvolvimento educativo. E, desde que nós refletimos sobre o significado da Filosofia e do filosofar – o que é um dos mais difíceis problemas filosóficos –, tendo observado a relação entre a vivência e a reflexão, busquemos nos situar no âmbito de um problema políticofilosófico que irá surgir no contexto da pólis grega, o da relação entre discurso e racionalidade, ou, em outros termos, entre retórica e verdade. Esse é um problema profundamente atual. Eu tenho um livro aqui, é de Arthur Schopenhauer, e se chama A Arte de Ter Razão – expresso em 38 estratagemas, ou seja, 38 formas de distorcer o discurso da outra pessoa para conseguir, por esse meio, ter “razão”, isto é, vencer o debate. Se alguém se interessa em saber como é possível que,
10 11
O significado do termo grego arché relaciona-se, também, a poder, autoridade e império. Devir: o vir-a-ser de todas as coisas, as quais estão em contínua transformação.
Origens do Ensino 27
mesmo sem ter razão, alguém possa conseguir ter “razão” no discurso basta, no entanto, apenas observar criticamente certas conversações cotidianas. Claro, o que está em jogo é o sentido mesmo de razão. Observemos o que diz Schopenhauer, por exemplo, no primeiro estratagema: “levar a afirmação do adversário além de seus limites e a tomar em sentido mais amplo, ou exagerá-la e, tomando essa afirmação no sentido mais amplo do que a pessoa quis dizer, rebater a afirmação”. E, no segundo, sugere utilizar uma ironia, quer dizer: você diz uma palavra e o oponente no discurso a interpreta noutro sentido, distorcendo o sentido da afirmação anterior. Seguem-se os demais estratagemas... O que é isso? É um manual de sofística, aquilo que os sofistas, na pólis grega, deveriam aprender para conseguir, através da retórica, persuadir aos outros e, com isso, ter eficácia política com o seu discurso. O discurso mais forte, para o sofista, é simplesmente o discurso que consegue convencer, e nele reside a “verdade”. Isso deu margem a uma interessante discussão filosófica, na antigüidade, sobre o sentido de falarmos em “verdade”, ou “erro”, conforme lemos em Platão e em Aristóteles. É interessante observarmos que tal questão não é apenas algo que remonta aos séculos IV e V a.C., mas diz respeito aos nossos dias, ao que acontece em nosso meio, pois poderemos facilmente observar como algumas pessoas exercem quase naturalmente o p otencial de realizar estratagemas “racionais”, onde a noção de “verdade” é condicionada ao âmbito de uma disputa. Desse modo, para os sofistas, tanto poderíamos afirmar
algo como verdadeiro como
o seu
contrário,
conforme
a
conveniência. Para Platão, ao inverso, a disputa de argumentos contrários cede seu lugar ao diálogo, onde os argumentos convergem, por uma disposição ética, para um consenso que tem por base uma aproximação crescente da verdade, concebida como única e universal.
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Esse consiste em um dos problemas centrais da História da Filosofia: o da conexão entre o ser e a linguagem, isto é, o da dignidade de um discurso que possa nos conduzir a verdade ou próximo dela. Neste ponto, estão interligados múltiplos outros problemas, e um deles consiste em saber se a verdade, assim como a realidade, é uma só e a mesma para todos. Outro problema consiste no equacionamento da relação entre discurso e liberdade. Mas não nos detenhamos nos inúmeros subproblemas derivados, os quais acabam por incidir sobre a própria formulação da questão. Concentremo-nos no seguinte: até que ponto nós podemos saber se pretendemos que o nosso discurso se dirija, ou não, a verdade? Tratamos da disposição ética da nossa participação no discurso. Há um livro de Platão, denominado Eutidemo, que é exemplar no que diz respeito à técnica sofística da manipulação do discurso. A passagem que vai de 275c a 276b pode ser assim resumida: Eutidemo, o primeiro sofista, faz a seguinte pergunta a Clínias, um jovem: quem são os indivíduos que aprendem, os que sabem ou os que ignoram? e o adverte de que, tanto se responder de uma maneira, como de outra, será refutado. Clínias responde, então, que os que sabem são os que aprendem. Eutidemo, com isso, expressa o seguinte argumento: se você aprende, não sabia ainda o que aprendia, e era ignorante ao aprender; logo, os que não sabem são os que aprendem. Clínias concorda. Mas Dionisodoro, outro sofista, toma a palavra, e pergunta a Clínias: se o gramatista12 recita, quem são os que aprendem, os sábios ou os ignorantes? Os sábios, disse Clínias. Então, complementa Dionisodoro, são os sábios que aprendem. Ora, seria a razão capaz de provar, com igual validade, duas teses contrárias? O que está em jogo, além do problema da relação entre discurso e verdade, é também o da educação dos jovens. A resposta de Sócrates aos sofistas, no livro citado, é expressa pela argumentação de que é necessário aprender o exato emprego das palavras (277d), sendo a técnica sofistica um 12
Mestre que ensinava a ler e a escrever.
Origens do Ensino 29
jogo de manipulação dos diversos sentidos das mesmas (278ab). Platão, no decorrer da sua obra, ocupa-se em buscar o sentido de uma verdade que evidenciasse um caminho, um método capaz de relacionar o discurso com a verdade. Mas seria necessário ainda mais, pois a necessidade da determinação de um caminho que evitasse um discurso falso e conduzisse a verdade estava relacionado, em Platão, com a ética, com o processo de desenvolvimento humano e com a paidéia, relativamente ao processo de educação dos jovens. Assim, Platão nos apresenta, em suas obras, um Sócrates preocupado em dialogar com os jovens, motivo do seu julgamento e condenação à morte. Tratase da mais eloqüente demonstração de que a educação é um ato profundamente político. Quando falo em “desenvolvimento humano” não me refiro ao ensino, como conjunto de técnicas, mas à educação, como formação integral, como construção do humano, o que expressa o sentido próprio de paidéia. O sentido de uma formação integral do ser humano pode bem ser compreendido a partir de outro texto de Platão, a alegoria da caverna: tratam-se de prisioneiros que, acorrentados pelo pescoço e pelos pés no fundo de uma caverna, observam, desde seu nascimento, as sombras que aparecem no fundo da mesma. É interessante observar, aqui, que eles nem sequer podiam imaginar a existência de uma outra “realidade”, além daquela das sombras e, para eles, portanto, esta seria a única e verdadeira realidade.
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Nós podemos observar isso nas nossas
vidas, quando estamos envolvidos em certas situações onde o próprio envolvimento não nos permite avaliar, com juízo crítico, as situações com as quais nos deparamos. Reparem como muitas vezes modificamos os nossos juízos após rompermos com determinadas relações, seja com um círculo social que compartilha um modo de pensar e agir, o qual pode ou não ser institucionalizado, seja com uma determinada pessoa; temos dificuldade em
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Há múltiplos sentidos em aplicarmos o termo realidade ao pensamento platônico, e o mais elevado é a Idéia.
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“ver de fora”, em modificar a disposição de nosso olhar para a “realidade”. Mas a analogia que fizemos é, ainda, superficial: Platão se refere à condição humana, como veremos a seguir. As “sombras” não dizem respeito apenas ao piano do ser, mas também a condição de um pensamento que ainda não tomou consciência mais plena de si mesmo. Na seqüência da alegoria o nosso personagem da caverna é liberto das suas correntes. A sua primeira constatação é a de que as sombras são imagens e, como tais, representam um nível inferior do ser. Em sua ascensão observará que há uma luz que produz as sombras e que, além dessa luz, fora da caverna, há o Sol, filho do Bem e condição da existência do ser e do conhecimento. A ascensão é difícil, e a dor que a luz excessiva causa aos seus olhos o faz pensar que seria melhor retornar à condição anterior. Seja a interpretação desse momento em analogia ao romantismo de uma felicidade ingênua, seja uma interpretação de caráter psicológico, ou outra, julgo fundamental resgatar apenas, para nossos fins, que a ascensão e, simultaneamente, um processo ético. E isso se evidencia ao final da alegoria, com o retorno a caverna. A formação integral do humano consiste, assim, para Platão, em uma ascensão simultaneamente ética e cognitiva.14 Mais ainda, ela se efetiva como ato político, o que implica uma concepção evolucionista da história.15 E esse é um ponto importante a ser ressaltado, no sentido que os gregos emprestavam para a educação, como formação da virtude. Nós nos contentamos com um significado de educação que se restringe exclusivamente ao aperfeiçoamento cognitivo, condicionado as determinações impostas pela economia, e desprezamos ou colocamos em segundo plano o desenvolvimento integral do humano, quando a dimensão ética da relação com o outro e com a 14
15
Há, também, um sentido místico e religioso de tal ascensão, do qual poderíamos nos ocupar a partir da leitura do Fédon de Platão, e um sentido relativo à pólis que, na República, circunscreve os demais. Nesse sentido, o papel da utopia, na história, como ideal de futuro, em Platão, é visível não apenas na República, mas também nas Cartas. Platão, no entanto, se ocupou também com a conformação de estruturas institucionais que garantissem o bom funcionamento da pólis e a continuidade do debate filosófico, tendo escrito as Leis e fundado a Academia.
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natureza é fator fundamental. Platão afirma, na República, VII, após a exposição da alegoria da caverna, que os maus possuem uma certa inteligência e que, na medida mesma de sua inteligência, mais mal poderão praticar. Contextualizando o problema, eu pergunto: será que Hitler, para citar um único exemplo, era desprovido de inteligência, já que ordenou o genocídio de milhões de inocentes? O que é, afinal, “inteligência”? Ou será que Hitler, e tantos outros, seriam apenas produtos de uma determinada época e condições sócio-histórico-culturais? Mas, então, qual o sentido em falarmos em liberdade e, conseqüentemente, em responsabilidade? Observemos que, na história, a inteligência, ou um certo tipo de inteligência, esteve sempre associada às guerras, à dominação e, hoje, à própria destruição ecológica. Há alguma relação intrínseca entre razão e dominação? Qual a relação entre ciência, tecnologia e evolução humana? Qual o sentido do humano? Eis uma questão que urge responder face aos avanços da tecnologia e, mormente, da biotecnologia. Tratamos da história, do sentido do humano na história. E a história se ergue sobre o passado, avançando criativamente no contínuo presente na direção de um futuro antecipado no imaginário social. Mas que perspectiva de futuro orienta a humanidade? Ora, essa projeção do futuro condiciona e é condicionada pela forma como concebemos a educação. Retornaremos a essa questão. A partir do momento em que possamos perceber que a educação deve envolver não apenas os processos cognitivos instrumentais, mas também os éticos, passamos a considerar a educação a partir de um duplo olhar, que inclui não apenas a relação com o outro mas, também, a relação consigo mesmo. Esses dois processos são inseparáveis, denotando a estrutura do diálogo platônico: ao mesmo tempo em que eu estou falando com você eu também estou, mentalmente, dialogando comigo mesmo; veja: você, neste momento, dialoga consigo mesmo e, ao mesmo tempo, ouve o que eu digo. Um processo duplo, onde o diálogo com o outro intercruza o diálogo interior, ou seja, não há,
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aqui, pura intersubjetividade, assim como não há pura subjetividade; tais são apenas dissecações analíticas que realizamos no âmbito da linguagem. Assim, a educação consiste, também, em auto-educação. A inseparabilidade entre fazer Filosofia e ensinar-aprender Filosofia, o que implica considerar o filosofar como condição para um diálogo crítico com a História da Filosofia, impõe uma nova forma de considerar o problema. E impõe reeducar a nossa própria “razão”, como parte indissolúvel de uma educação que pretende romper com uma determinada crise que se instalou na trajetória da racionalidade Ocidental. É necessário filosofar, como prática social, para que possamos travar um diálogo crítico com a nossa própria história. Mas compreender a nossa própria racionalidade, bem como os seus limites, requer recuperarmos muito mais o que ela deixou de afirmar ou, talvez, o que ela tratou de ocultar: a liberdade inscrita na irredutível unicidade do modo como cada indivíduo concebe e concebeu a vida e a si mesmo; a nãodominação; a codeterminação entre razão e emoção; as múltiplas dimensões do conhecimento humano não-redutíveis a uma lógica universalista; o respeito profundo à alteridade; a inter-relação entre subjetividade e intersubjetividade; os direitos dos oprimidos e a determinação ética da relação entre ciência, economia e tecnologia, dentre outros motivos. Pela perda contemporânea do sentido originário do filosofar e da admiração, o ensino da Filosofia, bem como de outras disciplinas, incluindo a História, quase se resumiu à retransmissão acrítica de concepções, métodos e metodologias, no exercício retórico, na confusão entre erudição e reflexão, na utilização
dos
preestabelecidas,
textos na
clássicos inércia
do
com
fins
de
pensamento
justificação reflexivo,
em
de
idéias
exercícios
interpretativos segundo esquemas padronizados. Mas, aproximando-se da espontaneidade, o filosofar, como postura frente à vida e processo criativo, como gesto que caracteriza uma das múltiplas dimensões da transcendência do humano, a partir da história de cada um, tensiona a própria história. E essa
Origens do Ensino 33
tensão é ainda mais profunda no contexto contemporâneo. A história, assim, parece ter alternativas subterrâneas à própria “razão”. Outro sintoma de uma perda diz respeito a que o ensino, em nosso tempo, e considerado apenas enquanto um elemento a mais dos cálculos da política econômica. Nesse sentido, o objetivo de se fazer um curso determinado – e, no nosso caso, um curso universitário – consiste, quase exclusivamente, na profissionalização, sem levar em conta a antecedência de um sentido mais amplo e profundo à educação. O ensino da Filosofia, na Grécia Antiga, esteve relacionado com uma concepção de educação compreendida como formação ou construção do humano e, mesmo em sua conexão com a política, não abandonou essa perspectiva. O ensino-criação filosófica, na vertente platônica, resultou no desenvolvimento e na apropriação dos procedimentos metodológicos relativos ao ensino, à aprendizagem e à teoria do conhecimento, na gênese de uma reflexão antropológica de caráter teleológico. Estabeleceu, com isso, uma epistemologia no contexto da perspectiva da realização de um ideal de homem e de organização política. O aprimoramento da investigação acerca do conhecimento humano resultou em uma concepção de ciência (epistémê) como conhecimento racional da realidade, embora condicionado à sofia, sabedoria, a que Homero já faz referência, na Odisséia. Era necessário, ainda mais que à ciência, ser amante da sabedoria, de onde se origina o termo filos+sofia. Isso se deve a que a filosofia, na Grécia Antiga, designava não uma disciplina especifica, mas uma forma superior de conhecimento, a qual dava unidade e sentido a todo o conhecimento humano. O que hoje compreendemos como disciplinas específicas, que são demarcações relativamente arbitrárias no campo do conhecimento, encontrariam, na filosofia, sua unidade. Assim é que se deve compreender os motivos da concepção platônica do rei-filósofo, pois a própria filosofia convergiria para uma unidade primordial entre ciência, ética e política. Poderíamos, inclusive, acrescentar a teologia. Em Aristóteles, a ciência
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do ser enquanto ser é a única realmente livre. Em Platão, a dialética das Idéias visa a coincidir verdade e liberdade. E, embora a liberdade deva ser concebida, no mundo grego, a partir de uma certa perspectiva finalística, ou teleológica, esteve indiscutivelmente relacionada a uma criação que resultou na gênese da própria racionalidade Ocidental. Tratamos, ao início, de um processo de construção e reconstrução do conhecimento, da linguagem e, com isso, das próprias condições de compreensão, apropriação e ampliação da nossa racionalidade a partir de uma perspectiva mais ampla do pensar. Dissemos ser necessário passarmos pela experiência de irmos ao fundo a partir do qual se constitui a significação das palavras, para reconstruir o significado das mesmas. Dissemos, ainda, ser o diálogo uma forma privilegiada de construção do conhecimento, o qual se gera no “entre”, na relação, a qual oferece sempre mais que a disputa de verdades particulares. E nesse processo reside a gênese da dialética, ciência do ser e do pensar. Mas, se eu digo “pensar” ou “pensamento” e, de uma perspectiva interior, me aproprio da significação contida nesta palavra, surge a questão: o que é pensamento? Convido-vos, pois, ao diálogo: – Luciano, o que é “pensamento”? – Reflexão! – Reflexão é pensamento ou um modo de ser do pensamento, dentre outros? Essa pasta, aí em frente, é pensamento? – Enquanto pasta, não! – Mas de que modo nós a percebemos? Você a sente com o tato, com os olhos, com todas as sensações do corpo. Senti-la pelo tato, por exemplo, não é um modo de pensá-la? – Ao senti-la eu a pensava, sim! – E vê-la não é, também, um modo de pensá-la? – Sim! – Então, o que não é pensamento? – Há um momento em que eu não interagi com ela e, assim, eu não refleti!
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– Ora, podes supor, então, que ela não é pensamento na medida que ela for nada relativamente ao seu pensar? – Aí sim! – Mas se ela é nada, enquanto não a pensamos, relativamente ao pensar, e se ela é isso efetivamente, isto é, “nada”, então sua existência, independentemente do pensar, será impensável. – Mas, ora, pensamos que ela permaneceu aí e, se nos depararmos novamente com ela, depois de algum tempo, afirmaremos, então, que ela existiu independentemente do pensamento. – E se agora imagino algo como, por exemplo, um Unicórnio, e se, depois de algum tempo, voltar a imaginá-lo, poderei dizer, com isso, que ele existe independentemente do meu pensar? Ora, como posso distinguir o pensamento da “realidade”? De algum modo tudo o que pensamos não é “real”? Mas, se assim é, então a multiplicidade de todas as coisas e mera ilusão... e tudo é Um, pois tudo é pensamento? – [...] – Mas se concordarmos que tudo, tudo ao nosso redor e nós mesmos somos, de algum modo, pensamento, ficará a suspeita de que tudo não pode ser apenas “pensamento”. O que é, pois, “pensamento”? O meu próprio corpo, de algum modo, quando aparece para mim mesmo em interação com o que eu penso, aparece como pensamento. Então, o que não é pensamento?
Observem este exercício que realizamos, o qual se refere a um processo de reconstrução do significado de uma palavra, no caso a palavra “pensamento”. Esse problema, o mesmo que tratamos, em distintas formulações, está na origem da História da Filosofia, há mais de 2.500 anos. Parmênides, no Poema, foi o primeiro a se pôr esse problema, o qual, no decorrer da história, foi retomado sob distintas perspectivas e formulações. Seria interessante analisarmos a formulação do mesmo em Leibniz, Kant, Fichte e Berkeley, ou no contexto do existencialismo, por exemplo, apenas para citar alguns, mas isso foge aos nossos objetivos. Acrescento apenas que, ao citar o existencialismo, penso no problema da morte, como problema assumido
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filosoficamente. A morte me situa frente à finitude do pensamento, de uma perspectiva do próprio pensamento; mas, quando a morte é, disse Epicuro, eu – ou o pensamento que possa ter disso que denomino “eu”, completo – não sou, e se eu sou, a morte não é. Meu corpo, de algum modo, nas camadas subterrâneas da minha carne, não expressa uma Inteligência? E mais, haverá apenas um modo de conceber o pensar? O pensar, ao pensar em si mesmo, incorre numa insuficiência que é a de sempre faltar a si mesmo, enquanto é aquele que pensa. A criança, a qual citei anteriormente, pode nos ensinar algo acerca daquilo que denominava “pensamento intocável”: o autoconhecimento talvez resida na fronteira última e sempre de todo intransponível ao próprio conhecimento. Uma reflexão sobre o “pensamento intocável” deverá nos conduzir mais além daquilo que a psicologia compreende por “inconsciente”, desde Freud e Jung. O que poderia significar, pois, nesse contexto “educar o pensamento”? O problema está relacionado, ainda, ao da ampliação das condições de efetivação da nossa liberdade. E esse é também um problema político. Seja qual for o significado que a Filosofia possa ter, para nós, ele está inscrito em um processo de instauração de sentido à nossa condição humana, em todos os níveis, inclusive o que nos relaciona com a vida, o cosmos e a transcendência. A Filosofia trata da unidade do fenômeno humano. Retomo, assim, o conceito de “unidade”, como é concebido no âmbito da Teoria dos Sistemas. Gostaria, com isso, de trazer a nossa discussão o conceito de autopóiesis, de H. Maturana. A autopóiesis implica uma concepção de unidade onde o todo, o sistema, contém propriedades emergentes, sendo, com isso, mais que a mera soma ou justaposição de suas partes constituintes; e mais, uma unidade em continuo câmbio, um processo onde as microtransformações afetam as propriedades emergentes do sistema como um todo. No âmbito de tal concepção, o homem, como ser vivo dotado de autoconsciência, opera sobre si mesmo e se redescobre de forma sempre inusitada, sempre criativa, sempre
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nova, como forma superior de realização da autonomia que caracteriza todos os seres vivos. A autonomia, como uma das propriedades da autopóiesis, em Maturana, é um fenômeno fundamentalmente biológico, sendo que o próprio sentido de “biológico” é, nesse contexto, ampliado, passando a incorporar os processos psíquicos, embora sem reduzi-los a um esquema mecanicista. Todo ato educativo, nesse sentido, diz sempre respeito à integralidade de cada ser humano e a própria educação deve ser concebida como um fenômeno contínuo. A liberdade, assim como a racionalidade, é uma construção e uma conquista histórico-social. Não existe liberdade absoluta, sequer liberdade exclusivamente individual, embora haja uma dimensão subjetiva da mesma. Todos podemos constatar isso por nossa própria experiência. Mas a racionalidade, no modo como se articulou no decorrer da história, carrega, no entanto, consigo, uma pretensão de absolutidade, embora liberdade e racionalidade devessem ser concebidas em sua unidade. Nos últimos 2.500 anos da nossa história, e principalmente a partir do Renascimento, produziu-se uma racionalidade extremamente condicionada pela idéia de desenvolvimento tecnológico, isto é, pela finalidade de domínio da natureza. Podemos observar isso desde os primórdios do desenvolvimento da agricultura, quando tal tecnologia deu início, de um modo ainda incipiente, a um processo milenar de redução da alteridade da natureza a identidade do humano, pela transformação da mesma com o objetivo de que esta se adaptasse aos nossos desígnios. A anexação, domínio e transformação da natureza demarcam a característica distintiva da ação da espécie humana no planeta, sendo que tal processo acabará por constituir a história, a qual é, também, história da racionalidade. Podemos, assim, assumir a seguinte hipótese de interpretação dessa história: quando o homem nômade emigra para outra região, o faz em função das transformações do meio, ou do aumento populacional, ou, ainda, por outras razões;
mas
o
importante
é
percebermos
que
ele
se
adapta
sem
necessariamente controlar o meio, tendo a sua atenção voltada para fora, para
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aquilo que lhe circunda. Ele dirige sua atenção para além e se transforma, adota uma determinada postura de conhecimento na relação consigo mesmo e com o mundo. Mas um dia ele pára, torna-se sedentário, dirige a sua atenção para si mesmo e transforma o seu exterior, adaptando-o a si mesmo. Todo o planeta passa a ser, aos poucos e gradualmente, uma extensão do corpo do homem, sua morada, como essa sala em que estamos agora, que é natureza transformada para se adaptar aos nossos corpos e aos nossos desejos, sendo, com isso, de algum modo, uma extensão dos nossos próprios corpos e desejos. O homem visa a reduzir o planeta a sua identidade, visa a reduzir aquilo que é natureza a si próprio. Assim como observarmos anteriormente que o pensamento contém um certo grau de autismo, enquanto tende a reduzir todo o pensado a si mesmo, há também um certo autismo da espécie humana, na medida que ela atua no sentido de submeter a natureza, não a reconhecendo em sua alteridade. A Grécia foi, sobremaneira, o palco onde se encenaram os primeiros e decisivos atos que permitiram que o conhecimento do conhecimento se tornasse conhecimento dos meios da intervenção científico-tecnológica quando, por outro lado, esboçou-se também a formulação de um outro problema, ainda maior, o da possibilidade de uma ética, de uma sabedoria que se instalasse como horizonte de um sentido mais profundo a condição humana. Há um projeto utópico da humanidade, cujas bases foram elaboradas há milhares de anos, e pode ser expressa como uma aproximação entre o humano e a idéia humana do divino. Essa utopia está expressa na literatura e nos filmes de ficção científica. O que se observa nesses filmes? O poderio da tecnologia em um futuro onde o homem se aparta cada vez mais da natureza e, constituindo seu próprio meio, torna-se um semideus. Ele vive em uma nave espacial ou em um mundo completamente artificial. Seu próprio corpo, em alguns casos, e também artificial. A espécie humana, no seu autismo, não se questiona mais, por exemplo, sobre qual o valor intrínseco de uma planta, de um animal, de um ecossistema, da vida. Há outros valores, cegos e absolutistas.
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Em termos de Educação Ambiental, o que se ensina na escola? Partese, comumente, de um valor antropocêntrico à natureza. A árvore, por exemplo, tem valor pelo que representa exclusivamente para a vida humana, e assim toda a vida do planeta. Mas a Educação Ambiental deveria partir da vivência de um amor que reconhece um valor intrínseco a vida. O amor é uma forma de conhecimento. Vivemos, no entanto, em uma cultura que confere a razão o valor absoluto de verdade. Mas essa razão instrumental não é capaz de perceber nada mais além de si mesma. Dizer, no mundo contemporâneo, que o amor é uma forma de conhecimento, poderá, inclusive, soar como algo estranho. Mas a Filosofia é amor e conhecimento, amor ao conhecimento e conhecimento com base no amor. É preciso conhecer para amar e amar para conhecer. Uma forma de conhecimento que cada um aqui talvez já tenha podido experimentar no seu cotidiano, na relação com as crianças, na relação com o amigo ou amiga, com seu companheiro ou companheira, com sua família e consigo mesmo. A auto-estima é uma forma superior de autoconhecimento. Para finalizar, gostaria de poder resgatar a questão da possibilidade de um contato com o nosso tempo a partir de um contato com o futuro e observar a história desse modo. Trata-se de um modo inusitado de conceber nossa relação com a história, pois buscamos aqui compreender a história através do imaginário social futuro. Como assim? O imaginário social do futuro, que é o futuro antecipado na nossa imaginação e expresso na arte da literatura, por exemplo, está diretamente relacionado com a projeção social do futuro, isto é, com a forma como o estamos efetivando, dia a dia, minuto a minuto; nós o construímos numa determinada direção, e isso diz respeito diretamente à forma como percebemos o desenvolvimento, a educação humana. Há possibilidade de exercermos uma crítica sobre a direção na qual projetamos o futuro, visto que o mesmo está fortemente condicionado no nosso imaginário social? Pergunta: – Um pensador disse, em certa ocasião, que “eu penso, logo existo”! Outro disse: não, nós somos resultado do meio concreto, e aí se
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estabeleceram duas visões antagônicas. Como se enquadraria essa tua colocação de que tudo e resultado do nosso pensamento, como, por exemplo, que a pasta é o meu pensamento? Dentro dessas duas visões, qual delas se aproximaria mais desta questão, porque, a partir do momento que alguém diz “eu penso, logo existo”, existe uma visão de como trabalhar a questão da educação, e a outra, quando diz que eu sou resultado do meio, também afirma uma outra concepção do processo educacional. Resposta: – Quando eu fiz esse exercício de nos relacionarmos com o pensamento de um outro modo, buscando reconstruir a significação desse termo a partir de uma vivência, eu não quis afirmar que aquele resultado parcial que nós obtivemos naquele momento, o qual indicava que tudo é pensamento, seja a verdade. Há um processo fenomenológico da descoberta na verdade, ou seja, a partir do aparecer desta realidade eu vou desvelando formas sucessivamente superiores do seu aparecer. Em grego, “verdade” se diz alétheia, que pode ser melhor traduzido por desvelar. O termo é derivado do verbo lantánein, que significa “colocar véus”, e o véu mostra e oculta. Concebo, assim, a seguinte imagem: se tiro um véu, há outro, e a verdade consiste em um processo de des-velamento em direção a uma realidade superior. Disso podemos inferir um sentido à dialética e, desde que a dialética seja um modo não apenas relativo às operações lógicas, mas também diga respeito à construção do próprio sentido da lógica, então nós teremos uma concepção de educação para a qual o problema não se restringe ao inatismo ou a experiência empírica. Para a Física, a Psicologia, a Biologia ou qualquer ciência só é possível avançar produzindo novas questões e, muitas vezes, rompendo com paradigmas preestabelecidos. O perguntar é um momento fundamental do processo de aperfeiçoamento cognitivo, assim como do aprendizado de novos processos cognitivos. Que outras perguntas poderíamos nos fazer sobre o educar, sobre o ensinar? Eu coloquei uma outra questão: é possível que a educação seja livre, no sentido em que deveria se referir não apenas ao que
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fazemos ou ao que construímos, como prédios e naves espaciais, mas no sentido de atuar sobre nosso ser integral? Ora, ao indicarmos um operar sobre nós mesmos e sobre nossas relações, surge o problema da liberdade. Assim, aquela questão anterior, isto é, a de saber se o conhecimento e adquirido ou se e inato, ela entra no bojo da questão que apresentei, como um aspecto de um problema maior. Veja-se ainda que há, na História da Filosofia, outras alternativas à relação principal posta pela sua pergunta. Para Platão, por exemplo, há um conhecimento inato e há, também, um conhecimento adquirido. O que, afinal, queremos dizer com “inato” ou com “adquirido”, em relação ao conhecimento? Observe que nossas perguntas nos apontam novos caminhos, dirigem nossa investigação. É claro, devemos também encontrar respostas que, embora sejam provisórias, formam a base para o nosso operar. Mas o exercício consciente da crítica impõe aprendermos a trabalhar com a formulação de questões, criando e recriando novas questões, o que se efetiva, no meu entender, pela articulação entre processos lógicos e vivências e, desse modo, pela distensão dos próprios procedimentos lógicos e das condições de realização da linguagem. Incluo aí a matemática, como uma forma especial de linguagem. Assim, eu propus que cada um realizasse um exercício, operando a partir do seu próprio interior. A noção de “trabalho interior”, como processo de auto-educação, é exatamente o fundo de onde o professor tira a sustentação do processo de ensino, de modo que ele suscita uma descoberta e uma criação, cuja significação remete a uma vivência do próprio indivíduo. A partir desse processo é que compreendo que se pode realmente ensinar, o que não consiste meramente em transmitir conteúdos, mas em motivar a reflexão, orientar a pesquisa e propor desafios. A partir disso, os conteúdos poderão ser criticamente trabalhados. Pergunta: – Eu acho tão rico esse trabalho que você faz com as crianças e me interesso demais por essa parte do ensino, até por causa da minha profissão. Se você pudesse falar algumas palavras que me dessem
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idéias de como motivar... por que acho que, para o ensino da História, a principal tarefa nossa é fazer com que todo mundo goste de História (no fundo, vamos dizer assim), mas o principal é dizer para as pessoas que a História não é só uma coisa do passado, é do presente, é da vida delas. Então, como motivar, como encantar, como seduzir? Resposta: – Como motivar? Eu suponho que toda motivação diga respeito a uma emoção. À medida que nós tratamos de um determinado tema de uma forma puramente lógico-racional, descritiva e classificatória nós tendemos a desmotivar... e é isso que muitas vezes se faz, não só em História, como também em Filosofia e em todas as disciplinas. Os professores põem a matéria no quadro e o quadro no caderno e o caderno na cabeça. Isso está relacionado com a emoção. Mas o significado de “emoção” é difícil de ser acessada de modo exclusivamente racional; no entanto, ela tem algumas características. Vejamos: você se lembra de acontecimentos da sua infância, certamente, mas você se recorda de todos os fatos? – Não, apenas alguns. – Por que apenas alguns? – Lembro os que foram mais marcantes. Ora, por que recordamos de alguns fatos e não de outros? No meu entender, trata-se de que eles continham uma emoção que fazia parte indissolúvel da significação da experiência e, assim, marcaram a sua história pessoal. Eu observo fatos da minha infância que fazem parte do meu processo de desenvolvimento; são marcas, são referenciais do meu crescimento, quando pude me emocionar por vivenciar novas relações com o mundo e com meu próprio pensamento. Podemos observar isso no nosso cotidiano, quando certas relações vão se desgastando pela rotina, isto é, pela perda da emoção, e a perda da emoção se dá pela repetição de gestos, repetição de atos, repetição de costumes, em tornar mecânico o ato de viver. Não será apenas na medida em que podemos descobrir algo novo no outro e com o outro que nos
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emocionamos? Nesse sentido, o trabalho interior do professor, a pesquisa e a criação com relação àquilo que ensina, são indissociáveis do processo de ensino, pois somente a partir da sua relação com o seu próprio processo criativo ele poderá despertar formas novas de ver e de imaginar, porque ele sabe o que isso significa. Eu propus que pudéssemos ver algo como se fosse a primeira vez, que nos admirássemos com as coisas e o mundo, para que pudéssemos ter interesse. Na medida que o professor realiza isso, ele sabe em que consiste e vai, assim, proporcionar que o aluno descubra isso por sua própria experiência. Eu creio que todos podemos nos interessar pela História, pela Matemática, pela ciência, enfim, sempre que possamos nos emocionar por admirar a realidade. Por isso, o amor é uma forma de conhecer. Mas a disposição de vermos qualquer coisa como se fosse a primeira vez, de nos admirarmos, está muito mais próxima das crianças. Para nós, a água, por exemplo, é somente água; para uma criança não, ela põe o dedo na água e pergunta: como e que isso aqui não fura? Para nós essa pergunta poderia não fazer sentido. Mas talvez haja um modo adulto e um modo infantil de admiração. Observemos, então, que isto aqui, sobre a mesa, consiste em um agregado monstruosamente grande de átomos; mas como podem estar assim, unidos? Como podemos conceber que uma única e minúscula parte deste objeto tenha mais átomos do que o número de pessoas que residem em toda a cidade de Porto Alegre? O que é o mínimo e o máximo absolutos? O que é o vazio que “existe” nos interstícios desse átomos e que é muito maior que a parte “cheia” da matéria? Ora, se pudéssemos fazer um átomo crescer até atingir o tamanho de todo o campus da Universidade, o elétron ainda seria muito pequeno, em comparação; o resto é “vazio” e a matéria é muito mais “vazia” do que “cheia”... como é, afinal que tudo se sustenta? como é que “tudo não cai de tudo”, poderia perguntar uma criança? O que, afinal, é “matéria”? Eu sei o que significa a rotina na medida que eu passo por ela e eu sei o que significa uma emoção ou uma questão determinada, na medida que eu
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possa vivenciá-la. E se eu puder rememorá-la com a “memória pensativa”, eu a irei revivenciar. Assim, a admiração consiste em um manancial inesgotável. Poderíamos trabalhar sobre o problema do “tempo” ou do “determinismo”, por exemplo, por via de uma explicação. Nesse caso, diria que o problema do determinismo está relacionado com a noção de causa/efeito e que, supondo-se que todos os efeitos já estão contidos em uma causa primeira, não podendo existir efeitos que não estivessem presentes na causa, então, é lógico, há conseqüentemente uma determinação do tempo e da história. Pois, se o efeito está todo na causa, e essa causa é o efeito de uma outra causa, e assim por diante até o princípio, então tudo está determinado, num desdobramento da causa primeiro. Ora, o que são leis? Leis são estruturas regulares do movimento, regularidades observáveis, isto é, dadas as mesmas condições, os mesmos fenômenos devem se repetir. Isso nos possibilita a previsibilidade, a ciência e a técnica. Mas, se as leis regem tudo no universo, que espaço sobra para a liberdade, ao nível da materialidade? A Física estabelece teorias expressas
em
relações
matemáticas,
regularidades
que
expressam,
matematicamente, a estrutura do universo, a qual consiste em processos necessitários, e isso repercute na compreensão que possamos fazer da história. Tudo isso é tão lógico, que nos paira a suspeita de se realmente, exclusivamente pela lógica, podermos conhecer a liberdade. Mas, afinal, o que é conhecimento? Bem, se esquecêssemos isso tudo por um momento, para trilharmos um outro caminho, e eu simplesmente lhe perguntasse: você nunca pensou se não estava marcado que você ia estar sentado neste lugar exatamente agora?... com a perna cruzada deste jeito?... e rir exatamente neste momento?... e, exatamente neste instante, você iria pensar o que está pensando agora, embora sem saber que isso tudo estava marcado para acontecer?... Eu não estou afirmando que tudo já estava marcado, que você ia fazer exatamente isso... exatamente agora. Estou apenas propondo que você sinta isso, que vivencie este problema, que o relacione com a sua presença no
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mundo, que o problema não consista apenas em um jogo de palavras e, muito mais, que o conheça emocional e racionalmente, conheça o problema por vivenciá-lo. Isso consiste em um conhecimento sintético, enquanto a lógica é uma forma de conhecimento analítico. Se eu posso vivenciar os problemas eu sei o que ele significa, porque sei o que ele significa para mim. Pergunta: – Eu gostaria de perguntar o seguinte: se o senhor definir o filosofar como falou antes, e se hoje nós estudamos em busca de uma profissão, o que, no seu entender, os filósofos faziam então, já que não se tratava da busca de uma profissão? Resposta: – Para os sofistas, a Filosofia, compreendida como arte retórica, foi uma profissão, e esse foi um dos motivos das críticas de Sócrates aos sofistas, a de que eles tornaram a Filosofia uma mercadoria, lhe deram um valor monetário. Sócrates queria resgatar este outro aspecto da Filosofia, que é o seu aspecto mais fundamental, já que ela remete a outros valores, enquanto faz parte do modo de vida, quando ela e um modo de olhar a vida e é um modo de viver. Claro, não se trata de uma crítica à Filosofia, ou à História, ou qualquer disciplina, concebidas como profissão: o problema é que sejam apenas isso. Pergunta: – É o seguinte: não sou filósofa, mas se a gente seguisse mais a intuição, não a lógica, não parece que está tudo “aqui dentro”, inclusive esses pensamentos todos? A Filosofia toda é uma intuição, ela vem de dentro? Resposta: – Quando utilizamos termos como “intuição”, “vir de dentro”, ou outras do gênero, a gente sempre suspeita que falta algo para que elas realmente adquiram a força que a gente gostaria que elas tivessem para poderem atingir aquilo que queremos expressar. Ao dizer que algo “vem de dentro”, pressupomos um “fora”, do qual não podemos estar completamente apartados, ou sequer poderíamos pressupô-lo. Mas qual o sentido que damos a uma separação entre “dentro” e “fora”? “Vir de dentro” e “vir de fora”, “vir da relação com o outro” e “vir de mim mesmo” podem ser compreendidos como um
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processo único: ouço tuas palavras enquanto, simultaneamente, dialogo comigo mesmo e, só por isso, posso compreendê-las. Então, eu pergunto: o que você quer dizer exatamente quando diz “intuição”? Quero dizer: como conceber a relação entre um processo interior e a relação com o outro? Tratamos do problema da educação. Preocupo-me, assim, não com a busca de um ideal de “perfeição”, mas com o desvelamento de um caminho, cujo horizonte só pode ser compreendido eticamente. E esse caminho se processa em nossas relações, sendo simultaneamente um modo de perceber a mim mesmo e a pessoas que me cercam, e são dois lados de um único processo. Então, eu vejo o filosofar como uma forma de me relacionar com a vida e com os outros, com o mundo e comigo mesmo. É por isso que eu sustentava, antes, a necessidade política, social, histórica e humana de nos colocarmos uma questão, que é a seguinte: qual é o nosso imaginário social do futuro? E outra: podemos atuar criativamente com relação ao imaginário social futuro? Essas são questões realmente fundamentais. Pergunta: – Sabemos, então, que a partir deste princípio, a gente poderia dizer que a Filosofia está dentro de tudo, que ela faz parte da nossa vida como um todo. Então, se isso acontece, eu gostaria de saber por que e a partir de quando a filosofia se distanciou da realidade do aluno dentro da sala de aula? Resposta: – A gente sempre se distancia dos outros na medida em que opera formalmente com as pessoas. Então, agora posso lhe encontrar noutro local e dizer “bom-dia!”, apertamos as mãos, vamos embora... e permanecemos distantes, apesar de termos nos falado e de termos apertado a mão. Enquanto nós nos mantivermos formais, e eu lhe tratar como Sra. e você me tratar como Sr. (os europeus fazem isso muito mais do que nós mesmos, o que, a meu ver, denota uma interessante característica da nossa cultura nacional), vamos continuar distantes, pois a formalidade substitui a emoção. O mesmo acontece com o ensino, pois tratar de forma exclusivamente lógica aquilo que se está
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aprendendo nos torna distantes da vida, distanciando-nos das emoções que dão sentido ao nosso agir. Mas no império do “cientificamente correto”, a própria ciência se desmente, enquanto não reconhece seus próprios limites. Julgo, assim, ser necessário que o ensino deixe de ser apenas lógicoinstrumental ou transmissão de conteúdos, que passe a ser emoção e criação, porque assim ela deixa de ser “humano”. O filosofar sempre esteve presente na história, na vida de cada um, mas creio que, desde que o ensino esteve dependente de determinações políticas e econômicas e daquelas impostas pela própria história da nossa racionalidade Ocidental, ele tende a sufocar este processo vivo que, no entanto, tensiona com tais determinações. Pergunta: – Se ela não filosofar, ela não dá um passo à frente? Ela tem que filosofar para poder chegar Iá, não é isso? Resposta: – É necessário reconstruir as formas de conceber e formular nossas questões: você não pergunta quais são as leis que regem determinado fenômeno num espaço de tempo, mas pergunta o que é o próprio espaço e o próprio tempo, por exemplo. Daí emergem múltiplas subquestões, como: vemos as coisas se moverem e vemos as coisas correrem para lá e para cá, no espaço e no tempo, mas não nos perguntamos: o que é velocidade? Há uma velocidade do próprio tempo? Que outras questões poderíamos elaborar? Como, então, podemos dar “um passo à frente”? Observo, para finalizar, que o sentido do filosofar remete a constituição da nossa própria personalidade e que o seu significado e dado pela intensidade com que possamos “escutar” este nosso momento vivido, o que nos ensina que participamos de um contexto mais amplo, quando olhamos profundamente para nós mesmos ao encontro do outro e da natureza e nos dirigimos ao outro e a natureza ao encontro de nós mesmos, respeitando-os, contudo, em sua alteridade. Agradeço as questões formuladas: elas me ajudaram a compreender um pouco melhor o que eu mesmo penso e, sobretudo, a observar mais de perto aquilo que eu não compreendo.
História e história pessoal: o significado [para nós] do ensino da Filosofia na Grécia... 48
A PEDAGOGIA DE DEUS GERALDO LUIZ BORGES HACKMANN
O objetivo deste artigo é analisar a maneira como Deus se relaciona com o seu povo, ou seja, a pedagogia ou o modo utilizado por Ele para revelarse. Partir-se-á do estudo da etimologia do termo pedagogia, para, após, caracterizar as maneiras diversas com que Deus foi se comunicando com o seu povo, ao longo da história. A etimologia da palavra A palavra pedagogia, do original grego, é composta, por sua vez, por outras duas palavras: a) paîs, dós, que significa “menino, criança”, e mais ágein, com o sentido de “conduzir, levar”. Daí se origina o termo grego paidagôgía, traduzido para a língua portuguesa por pedagogia. Por essa razão, pedagogia pode ser definida como a “arte de conduzir o menino, levar a criança”. Reinhold Mühlbauer diz que há muitas significações para o termo “pedagogia”, adotando dois conceitos: a “totalidade do pensar, falar e escrever sobre temas de educação em sentido mais lato e em todas as formas” e “ciência teórica, independente e pura, cujo objeto é a totalidade dos fenômenos da educação, que ela fixa, descreve e separa dos outros fenômenos da vida, e os estuda em sua peculiaridade e trata de entendê-los e interpretá-los”.1 Diante dessas duas definições, entender-se-á por “pedagogia de Deus”, de modo amplo, tudo o que Deus faz para se comunicar com os seres humanos, e, de modo particular, a comunicação de sua Revelação. 2 No
1 2
Cf. R. MUHLBAUER. Pedagogía. In: Sacramentum Mundi. Barcelona: Herder. 1977, col. 361. Sobre o conceito cristão de Revelação, ver LATOURELLE. Rivelazione. In: LATOURELLE e FISICHELLA. Dizionario de Teologia Fondamentale. Assisi: Cittadela, 1990. p. 1013-1066.
A pedagogia de Deus 49
entanto, pode-se unir as duas concepções expostas acima, resultando na abordagem do tema a partir da Revelação de Deus. E a tarefa será, portanto, examinar como esta acontece ao longo da história, que se deu, particularmente, quando Deus elegeu um povo, o povo de Israel, ou, como vem denominado 3
posteriormente. Povo de Deus, enquanto povo eleito e com o qual Deus estabeleceu uma aliança. Isto significa que a tarefa e examinar o fenômeno da Revelação de Deus ao Povo de Israel, em todos os seus acontecimentos, procurando entendê-los e interpretá-los. Do ponto de vista da etimologia, a pedagogia de Deus é a arte de Deus conduzir o Povo de Israel, para que O conheça, O ame e O siga. Para tal, é necessário estabelecer algumas premissas, que ajudarão a estabelecer a forma como Deus se comunicou com o Povo de Israel. Premissas O ponto de partida é a afirmação do Diretório Catequético Geral, que mostra como deve ser entendida a pedagogia de Deus, quando diz o seguinte: “Na história da revelação, Deus usou a seguinte pedagogia: anunciou o seu plano salvífico, na Antiga Aliança, mediante profetas e figuras, e desta forma preparou a vinda de seu Filho, autor da Nova Aliança, e consumador da fé (cf. Hb 12,2)” (Diretório Catequético Geral 33).
Tal afirmação entende a pedagogia de Deus como o seu plano de salvação, iniciado já no Antigo Testamento como preparação para o advento do Messias, Jesus Cristo. A partir desta, é necessário esclarecer duas premissas, que nortearão a caracterização da abordagem do tema, ajudando a compreendê-lo melhor:
3
Sobre o conceito de povo de Deus, seja no Antigo Testamento quanto no Novo Testamento, ver SCHARBERT. Povo (de Deus). In: BAUER, J. Dicionário de Teologia Bíblica. São Paulo: Loyola, 1983. p. 880-889. 2 v.
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A primeira premissa: Não se trata de simplesmente transmitir um conhecimento ou um saber humano, mesmo o mais elevado que se queira pensar. Trata-se, sim, de comunicar, na sua integridade, a Revelação de Deus. A segunda premissa: A Revelação de Deus encontra-se na história sagrada, ou seja, na Bíblia, particularmente nos Evangelhos. Características da pedagogia de Deus Podemos estabelecer as seguintes características da pedagogia que Deus usou para revelar o seu plano de salvação para o Povo de Israel, e, como conseqüência, a todos os povos e pessoas, válido até os dias de hoje:
Deus é amor Essa é a base da pedagogia divina. O evangelista João assim define Deus: “Deus é amor” (1Jo 4,8.16). Não é uma especulação metafísica, mas a forma como a escola joanina argumenta, de forma histórico-salvífica. O amor de Deus pelo mundo e pela história se manifesta através do envio de seu Filho: “Pois Deus amou tanto o mundo, que entregou o seu Filho único, para que todo o que nele crê não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3,16). O Pai e o Filho se unem na comunhão de amor, no qual todas as pessoas podem estar inseridas (cf. Jo 17,21), que, pela vinda do Espírito Santo, estão presentes no mundo.4 E, como tal, o amor fraterno torna-se o meio decisivo de conhecimento de Deus: “Caríssimos, amemo-nos uns aos outros, pois o amor é de Deus e todo aquele que ama nasceu de Deus e conhece a Deus. Aquele que não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor. Nisto se manifestou o amor de Deus por nós: Deus enviou o seu Filho único ao mundo, para que vivamos por ele. Nisto consiste o amor: não fomos nós que amamos a Deus, mas foi ele quem nos amou e enviou-nos o seu Filho como vítima de expiação pelos nossos pecados” (1Jo 4,7-10).
4
Cf. D. SATTLER/T. SCHNEIDER, Dottrina su Dio. In: T. SCHNEIDER (ed). Nuovo Corso di Dogmatica. Brescia: Queriniana, 1995. p. 99. 1 v.
Origens do Ensino 51
O mistério se esconde na história Deus evita todo o alarde e triunfalismo, preferindo alternar manifestação e ocultamento, daí a dificuldade de encontrá-lo na história. Ele antepõe o segredo de sua divindade e de seu poder, impedindo o uso ideológico de sua mensagem, ao se esconder, e chamando à conversão e à fé, ao manifestar-se abertamente. A tantos Jesus Cristo se revelou durante a sua vida pública, mas poucos responderam positivamente ao seu convite: o fariseu Nicodemos: “Havia, entre os fariseus, um homem chamado Nicodemos, um judeu importante” (Jo 3,1; 7,50; 19,39); o saduceu José de Arimatéia: “Chegada a tarde, veio um homem rico de Arimatéia, chamado José, que era também discípulo de Jesus” (Mt 27,57); o publicano Levi: “Quando ia passando, viu Levi filho de Alfeu, sentado junto ao balcão da coletoria e lhe disse: „Segueme‟. Levi levantou-se e o seguiu (Mc 2,41); o rico Zaqueu: “Havia ali um homem 5 rico, chamado Zaqueu, chefe dos cobradores do imposto” (Lc 19,2-10).
Esta maneira de Deus agir respeita a liberdade pessoal, enquanto ele espera pacientemente uma resposta consciente e livre por parte de seu interlocutor.
Deus se revela progressivamente A história da salvação mostra Deus agindo de forma progressiva, e sempre respeitando os passos que o Povo de Deus podia dar. Inicialmente, elegeu um povo, formando-o paulatinamente. Chamou Abraão, denominado “pai da fé”, por ter sido o primeiro a crer e obedecer a Deus. Depois foi chamando outros, até chegar aos profetas, verdadeiros mensageiros de Deus e interlocutores da vontade e dos desígnios de Deus para com o seu povo. Até chegar a Jesus Cristo, que leva a revelação à plenitude, ao cumprir as promessas salvíficas e anunciar a vinda do Espírito Santo. O seguinte
texto
exemplifica
o
respeito
de
Deus
pelas
fases
de
amadurecimento do povo: 5
V. G. FELLER. O Deus da Revelação. A dialética entre Revelação e Libertação na Teologia Latinoamericana, da “Evangelii Nuntiandi” à “Libertatis Conscientia “. São Paulo: Loyola, 1988. p. 149-151.
Origens do Ensino 52
“Ele disse: Moisés, por causa da dureza dos vossos corações, vos permitiu repudiar vossas mulheres, mas desde o princípio não era assim” (Mt 19,8).
Deus fala de forma compreensível Deus quer ser claramente compreendido, apesar de usar também a linguagem indireta dos sinais, que servem como um aviso indicador de sua vontade. É o caso da sarça ardente: “Apareceu-lhe o anjo do Senhor numa chama de fogo no meio de uma sarça. Moisés notou que a sarça ardia mas não se consumia, e disse consigo: „Vou achegar-me para ver este maravilhoso fenômeno: como é que a sarça não pára de queimar‟. O Senhor viu que Moisés se aproximava para observar e Deus o chamou do meio da sarça: „Moisés! Moisés!‟ Ele respondeu: „Aqui estou!‟ Deus lhe disse: „Não te aproximes daqui! Tira as sandálias dos pés, pois o lugar onde estás é chão sagrado‟. E acrescentou: „Eu sou o Deus de teu pai, o Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacó‟. Moisés cobriu o rosto, pois temia olhar para Deus” (Ex 3,2).
Exemplar é o encontro de Deus com o profeta Elias no monte Horeb: “Lá entrou numa caverna e passou a noite. De repente a palavra do Senhor lhe foi dirigida neste teor: „O que estás fazendo aqui, Elias?‟ Ele respondeu: „Estou apaixonado pelo Senhor Deus Todo-poderoso. Pois os israelitas abandonaram a tua aliança, demoliram os teus altares, mataram a espada os teus profetas e sobrei apenas eu. Mas também a mim procuram tirar-me a vida‟. O Senhor respondeu: „Sai e põe-te de pé no monte, diante do Senhor! Eis que ele vai passar‟. Houve então um grande furacão, tão violento que dilacerava os montes e despedaçava os rochedos diante do Senhor, mas o Senhor não estava no vento. Depois do vento houve um terremoto, mas o Senhor não estava no terremoto. Depois do terremoto houve fogo, mas o Senhor tampouco estava no fogo. Finalmente, passado o fogo, percebeu-se uma brisa suave e amena. Quando Elias a percebeu, encobriu o rosto com o manto e saiu, colocando-se na entrada da caverna. Então uma voz lhe falou: O que estás fazendo aqui, Elias?‟ Ele respondeu: „Estou apaixonado pelo Senhor Deus Todo-poderoso, pois os israelitas abandonaram a tua aliança, demoliram os teus altares, mataram à espada os teus profetas; apenas fiquei eu. Mas também a mim procuram tirar-me a vida‟. Mas o Senhor lhe disse: „Vai e toma o caminho de volta em direção à estepe de Damasco. Chegando lá, unge a Hazael como rei dos arameus. Unge também a Jeú filho de Namsi como rei de Israel, e a Eliseu filho de Safat, de Abel-Meula, como profeta em teu lugar. Quem escapar da espada de Hazael, será morto por Jeú, e quem escapar à espada de Jeú, será morto por Eliseu. Eu deixarei como resto em Israel sete mil homens, isto é,
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todos os que não dobraram os joelhos diante de Baal e cuja boca não o beijou‟.” (1Rs 19,9-18).
Deus tem uma palavra eficaz A Palavra de Deus sempre acontece e a seu tempo. Ele cumpre o que promete, pois a sua palavra não é vazia. Como exemplo, pode-se citar o episódio das dez pragas do Egito (a água transformada em sangue, as rãs, os mosquitos, as moscas, a peste dos animais, as úlceras, a chuva de pedras, os gafanhotos, as trevas, a morte dos primogênitos – Ex 7,14-11,34), que conseguiram demover o faraó. Também o caso de Elias e dos sacerdotes de Baal, que vem descrito a seguir: “Então Elias se dirigiu a todo o povo e disse: „Por quanto tempo ainda andareis mancando com os dois pés? Se o Senhor é o verdadeiro Deus, segui-o, mas se é Baal, segui a ele!‟ Mas o povo não respondeu uma palavra. Elias continuou falando ao povo: „Eu fiquei como único profeta do Senhor, ao passo que os profetas de Baal são 450. Dêem-nos dois tourinhos; escolham eles um tourinho e o cortem em pedaços e depois o coloquem sobre a lenha, mas sem pôr fogo. Em seguida eu prepararei o outro tourinho e o colocarei sobre a lenha e tampouco lhe porei fogo. Invocai o nome de vosso deus, ao passo que eu invocarei o nome do Senhor. E valerá: o Deus que responder com o fogo, este é o Deus verdadeiro‟. Todo o povo respondeu: „Apoiado!‟ Então Elias disse aos profetas de Baal: „Escolhei o vosso tourinho e começai, pois sois maioria. Depois invocai o nome de vosso deus, mas não metais fogo!‟ Eles tomaram o tourinho que lhes deu e o prepararam; a seguir invocaram o nome de Baal desde a manhã até ao meio dia, exclamando: „Baal, responde-nos!‟ Mas não se ouvia nem voz nem resposta, apesar de eles dançarem com o joelho dobrado ao redor do altar que tinham feito. Quando se fez meio-dia, Elias começou a zombar deles: „Gritai mais forte, pois ele é deus, tem suas preocupações; teve de se ausentar ou está de viagem; talvez esteja dormindo e precisa acordar‟. Eles gritaram mais alto e, segundo o costume, se faziam incisões com espadas e lanças, até o sangue escorrer. Passado meio-dia, eles entraram em delírio até a hora da oblação, mas não se fez ouvir nenhuma voz nem resposta alguma; não houve qualquer reação. Então Elias disse a todo o povo: “Aproximai-vos de mim!” E todo o povo veio para perto dele. Ele refez o altar do Senhor que tinha sido demolido. Tomou doze pedras – uma para cada tribo dos filhos de Jacó a quem o Senhor tinha dirigido a palavra neste teor: „Teu nome será Israel‟. Com as pedras levantou um altar em honra do Senhor, e ao redor do altar abriu um aceiro com a superfície para duas arrobas de semente. Em seguida empilhou a lenha, esquartejou o tourinho e o colocou sobre a lenha. Feito isto, ordenou: „Enchei de água quatro baldes e derramai-os sobre o holocausto e a lenha!‟ Eles o fizeram. Ele repetiu: „Mais uma vez!‟ E eles o fizeram uma segunda vez.
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Acrescentou ainda: „Uma terceira vez!‟ E assim foi feito. A água se espalhou ao redor do altar, e também o aceiro ficou impregnado de água. Chegada a hora do sacrifício, o profeta Elias se aproximou e rezou: „Senhor Deus de Abraão, Isaac e Israel, saiba-se hoje que tu és Deus em Israel, e que eu sou teu servo e por tua ordem fiz tudo isto. Escuta-me, Senhor, escuta-me, para que este povo reconheça que tu, Senhor, és Deus e fizeste voltar seu coração‟. Então caiu o fogo do Senhor, que devorou o holocausto e a lenha, as pedras e a poeira, e secou até a água do aceiro. À vista do espetáculo, todo o povo se prostrou, exclamando: „O Senhor é Deus, o Senhor é que é Deus!‟ Então Elias Ihes ordenou: „Agarrai os profetas de Baal. Que nenhum deles escape!‟ E eles os agarraram. Elias os fez descer até o riacho de Quison, onde os mandou degolar” (1Rs 18,21-40).
O nível de relacionamento de Deus com o seu povo é o da confiança A confiança é um elemento indispensável para haver uma verdadeira relação com Deus. É o que demonstra o relato do sacrifício do filho de Abraão: “Depois destes acontecimentos, Deus submeteu Abraão a uma prova. Chamando-o, disse: „Abraão‟, e ele respondeu: „Aqui estou‟. E Deus disse: „Toma teu único filho Isaac a quem tanto amas, dirige-te à terra de Moriá e oferece-o ali em holocausto sobre um monte que te indicar‟. Abraão levantou-se bem cedo, selou o jumento, tomou consigo dois criados e o filho Isaac. Rachou lenha para o holocausto e se pôs a caminho para o lugar do qual Deus lhe havia falado. Ao terceiro dia Abraão levantou os olhos e viu de longe o lugar. Disse então aos criados: „Ficai aqui com o jumento enquanto eu e o menino vamos até Iá. Depois de adorarmos a Deus, voltaremos a vós‟. Abraão tomou a lenha para o holocausto e pôs às costas do filho Isaac, enquanto levava o fogo e a faca. E os dois continuaram caminhando juntos. Isaac disse ao pai Abraão: „Pai!‟ – „O que queres, meu filho?‟ respondeu. E o menino disse: „Temos o fogo e a lenha mas onde está o cordeiro para o holocausto?‟ E Abraão respondeu: „Deus providenciará o cordeiro para o holocausto, meu filho‟. E os dois continuaram caminhando juntos. Chegados ao lugar indicado por Deus, Abraão ergueu ali o altar, colocou a lenha em cima, amarrou o filho e o pôs sobre a lenha do altar. Depois estendeu a mão empunhando a faca para imolar o filho. Mas o anjo do Senhor gritou-lhe dos céus, dizendo: „Abraão! Abraão!‟ Ele respondeu: „Aqui estou!‟ E o anjo disse: „Não estendas a mão contra o menino e não lhe faças mal algum. Agora sei que temes a Deus, pois não me recusaste teu único filho‟. Abraão ergueu os olhos e viu atrás de si um carneiro preso pelos chifres num espinheiro. Pegou o carneiro e ofereceu-o em holocausto em lugar do filho. Abraão passou a chamar aquele lugar: „O Senhor providenciará‟. Hoje se diz: „No monte em que o Senhor aparece‟. O anjo do Senhor chamou Abraão pela Segunda vez Ia dos céus e lhe falou: „Juro por mim mesmo – oráculo do Senhor – uma vez que agiste deste modo e não recusaste teu único filho, eu te abençoarei e tornarei tão numerosa tua descendência como as estrelas do céu e como as areias da praia do mar. Teus descendentes
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conquistarão as cidades dos inimigos. Por tua descendência serão abençoadas todas as nações da terra, porque tu me obedeceste‟. Abraão retornou até aos criados e juntos puseram-se a caminho de Bersabéia, onde Abraão passou a residir” (Gn 22,1-19).
O relato deixa claro que Abraão teve uma confiança inabalável em Deus, pois ele sabia que Deus não faltaria com a promessa que Ihe havia feito. Confiou na providência de Deus e não se enganou. O mesmo transparece quando Moisés se encontra no Monte Horeb: “Mas toma cuidado! Cuida com grande desvelo de nunca esqueceres tudo que viste com os olhos e de não deixares escapar do coração por todos os dias da vida. Antes ensina-o a teus filhos e netos. Lembra-te do dia em que estiveste diante do Senhor teu Deus, no Horeb, quando o Senhor me diss e: „Convoca-me o povo para que lhe faça ouvir minhas palavras e eles aprendam a temer-me todos os dias que viverem sobre a terra, e o ensinem a seus filhos‟. Então buscareis o Senhor vosso Deus e o achareis, se o procurardes com todo o coração e com toda a alma. Quando todas as angústias tiverem caído sobre ti, nos últimos tempos, voltarás para o Senhor teu Deus e lhe ouvirás a voz. Pois o Senhor teu Deus é um Deus misericordioso. Não te pretende abandonar nem destruir totalmente, nem se esquecerá da aliança que jurou a teus pais” (Dt 4, 9-10;29-31).
O acontecimento do bezerro de ouro é demonstração contrária, porque o povo se cansou de esperar por Moisés e perdeu a confiança em Deus e na sua promessa, caindo no pecado da idolatria: “Vendo que Moisés demorava a descer do monte, o povo reuniu-se em torno de Aarão e lhe disse: „Vamos! Faze-nos deuses que caminhem à nossa frente. Pois quanto a um tal de Moisés, o homem que nos tirou do Egito, não sabemos o que aconteceu‟. Aarão lhes disse: „Tirai os brincos de vossas mulheres, vossos filhos e vossas filhas, e trazei-os a mim‟. Todo o povo arrancou os brincos de ouro que usava, e os trouxe para Abraão. Recebendo o ouro, ele o moldou com o cinzel e fez um bezerro fundido. Então eles disseram: „Aí tens, Israel, os deuses que te fizeram sair do Egito!‟. Ao ver isto, Aarão construiu um altar diante da imagem e proclamou: „Amanhã haverá festa em honra do Senhor‟. Levantando-se na manhã seguinte, ofereceram holocaustos e apresentaram sacrifícios pacíficos. O povo sentou-se para comer e beber, e depois levantou-se para se divertir” (Ex 32,1-6).
Deus exige fidelidade
Origens do Ensino 56
O decálogo é a manifestação da vontade de Deus, escrita nas tábuas da lei. Por essa razão, a observância dos mandamentos significa a observância da fidelidade por parte do povo de Israel: “Deus pronunciou todas as palavras que seguem: „Eu sou o Senhor teu Deus, que te libertou do Egito, do antro de escravidão. Não terás outros deuses além de mim. Não farás para ti ídolos, nem figura alguma do que existe em cima, nos céus, nem embaixo, na terra, nem do que existe nas águas, debaixo da terra. Não te prostrarás diante deles, nem lhes prestarás culto, pois eu sou o Senhor teu Deus, um Deus ciumento. Castigo a culpa dos pais nos filhos até à terceira e quarta geração dos que me odeiam, mas uso de misericórdia por mil gerações para com os que me amam e guardam meus mandamentos. Não pronunciarás o nome do Senhor teu Deus em vão, porque o Senhor não deixará impune quem pronunciar seu nome em vão. Lembra-te de santificar o dia do sábado. Trabalharás durante seis dias e farás todos os trabalhos, mas o sétimo dia é sábado dedicado ao Senhor teu Deus. Não farás trabalho algum, nem tu, nem teu filho, nem tua filha, nem teu escravo, nem tua escrava, nem teu gado, nem o estrangeiro que vive em tuas cidades. Pois em seis dias o Senhor fez o céu e a terra, o mar e tudo que neles há, mas no sétimo dia descansou. Por isso o Senhor abençoou o dia do sábado e o santificou. Honra teu pai e tua mãe, para que vivas longos anos na terra que o Senhor teu Deus te dá. Não matarás. Não cometerás adultério. Não furtarás. Não levantarás falso testemunho contra o próximo. Não cobiçarás a casa do próximo, nem a mulher do próximo, nem o escravo, nem a escrava, nem o boi, nem o jumento, nem coisa alguma do que lhe pertence‟. O povo todo presenciou os trovões, os relâmpagos, o som da trombeta e a montanha fumegando. À vista disso, o povo permaneceu ao longe, tremendo de pavor. Disseram a Moisés: „Fala-nos tu, e te escutaremos. Mas que não nos fale Deus, do
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contrário morreremos‟. Moisés respondeu: „Não temais, pois Deus veio para vos provar, para que o seu temor vos esteja sempre presente, e não pequeis‟. O povo manteve-se a distância, enquanto Moisés aproximou-se da nuvem onde Deus estava” (Ex 20,1-21).
Outro exemplo característico é a intercessão de Abraão pelos habitantes de Sodoma, que haviam sido condenados por causa de seus muitos pecados, e não queriam corrigir-se. De forma plástica, o texto descreve a reação de Deus ao pedido de Abraão: “Partindo dali, os homens se dirigiram a Sodoma. Abraão, porém, ficou ali na presença do Senhor. Abraão aproximou-se e falou: „Vais realmente exterminar o justo com o ímpio? Se houvesse cinqüenta justos na cidade, acaso os exterminarias? Não perdoarias o lugar por causa dos cinqüenta justos que ali vivem? Longe de ti, proceder assim, fazendo morrer o justo com o ímpio, como se o justo fosse ímpio! Longe de ti! O juiz de toda a terra não faria justiça?‟ O Senhor respondeu: „Se eu encontrasse em Sodoma cinqüenta justos, perdoaria por causa deles a cidade inteira‟. Abraão prosseguiu e disse: „Sou bem atrevido em falar a meu Senhor, eu que sou pó e cinza. Se dos cinqüenta justos faltassem cinco, destruirias por causa dos cinco a cidade inteira?‟ O Senhor respondeu-lhe: „Não destruiria se achasse ali quarenta e cinco justos‟. Insistiu ainda Abraão e disse: „E se houvesse quarenta?‟ Ele respondeu: „Por causa dos quarenta, não o faria‟. Abraão tornou a insistir: „Não te irrites, meu Senhor, se ainda falo. E se não houvesse mais do que trinta justos? ‟ Ele respondeu: „Tampouco o faria se encontrasse trinta‟. Tornou Abraão a insistir: „Já que me atrevi a falar a meu Senhor: e se houver vinte justos?‟ Ele respondeu: „Não a destruiria por causa dos vinte‟. E Abraão disse: „Que meu Senhor não se irrite, se falar só mais uma vez: e se não houvesse mais que dez?‟ E ele respondeu: „Pelos dez, não a destruiria‟. Terminando de falar a Abraão, o Senhor partiu e Abraão voltou para seu lugar” (Gn 18,22-33).
Deus é, ao mesmo tempo, misericordioso e justo Novamente, Abraão exerce um papel de intercessão, pois Deus salva Ló da destruição de Sodoma ao lembrar-se dele: “Assim, quando Deus destruiu as cidades da Planície, ele se lembrou de Abraão e retirou Ló de meio da catástrofe, na destruição das cidades em que Ló habitava” (Gn 19,29). É uma referência explícita à justiça e à bondade de Deus, que usa de misericórdia para com Ló ao recordar-se do pedido feito por Abraão em favor dos habitantes das cidades de Sodoma e Gomorra. Outro exemplo é a oração feita por Moisés,
Origens do Ensino 58
intercedendo pelo povo, após o episódio do bezerro de ouro, que consegue fazer com que Deus desista do castigar o povo pelo pecado de idolatria: “Moisés aplacou o Senhor seu Deus e disse: „Por que, ó Senhor, se inflama a tua cólera contra o teu povo que libertaste do Egito com grande poder e mão forte?‟ Por que deveriam os egípcios comentar: „Foi com propósitos sinistros que os libertou do Egito, para matá-los nas montanhas e exterminá-los da face da terra‟? Renuncia ao furor da tua ira e desiste de fazer mal a teu povo. Lembra-te de teus servos Abraão, Isaac e Jacó, com os quais te comprometeste por juramento, prometendo-Ihes: „Tomarei a vossa descendência tão numerosa como as estrelas do céu, e toda esta terra de que vos falei, eu a darei aos vossos descendentes como posse perpetua‟. E o Senhor desistiu do mal que havia ameaçado fazer a seu povo” (Ex 32,11-14).
Outro exemplo clássico, agora extraído do Novo Testamento, é a parábola dos trabalhadores da vinha, na qual fica clara a misericórdia e a justiça de Deus: “O reino dos céus é semelhante a um pai de família que, ao romper da manhã, saiu para contratar trabalhadores para sua vinha. Acertado com eles o preço da diária, mandou-os para sua vinha. Saiu pelas nove horas da manhã e viu outros na praça sem fazer nada. E Ihes disse: „Ide também vós para a vinha e eu vos darei o que for justo‟. E eles foram. Saiu de novo, por volta do meio-dia e das três horas da tarde, e fez o mesmo. E, ao sair por volta das cinco horas da tarde, encontrou outros que estavam desocupados e lhes disse: „Como é que estais aqui sem fazer nada o dia todo?‟ Eles lhe responderam: „Porque ninguém nos contratou‟. Ele lhes disse: „Ide também vós para a vinha‟. Pelo fim do dia, o dono da vinha disse ao seu feitor: „Chama os trabalhadores e paga os salários, a começar dos últimos até os primeiros contratados‟. Chegando os das cinco horas da tarde, cada um recebeu uma diária. E quando chegaram os primeiros, pensaram que iam receber mais. No entanto, receberam também uma diária. Ao receberem, reclamavam contra o dono, dizendo: „Os últimos trabalharam somente uma hora e Ihes deste tanto quanto a nós, que suportamos o peso do dia e o calor‟. E ele respondeu a um deles: „Amigo, não te faço injustiça. Não foi esta a diária que acertaste comigo? Toma pois o que é teu e vai embora. Quero dar também ao último o mesmo que a ti. Não posso fazer com os meus bens o que eu quero? Ou me olhas com inveja por eu ser bom?‟ Assim, os últimos serão os primeiros, e os primeiros serão os últimos” (Mt 20,1-16).
Deus põe à prova Mas Deus também põe seus escolhidos à prova, como fez com Abraão, conforme relata o texto seguinte, já citado anteriormente:
Origens do Ensino 59
“Depois destes acontecimentos, Deus submeteu Abraão a uma prova. Chamando-o, disse: „Abraão‟, e ele respondeu: „Aqui estou‟. E Deus disse: „Toma teu único filho Isaac a quem tanto amas, dirige-te à terra de Moriá e oferece-o ali em holocausto sobre um monte que te indicar‟.” (Gn 22,1).
Isso porque a fé é um risco. E os seres humanos são alunos difíceis, mas porque se trata de um caminho difícil, como o é de viver a fé, a esperança e o amor. É necessário entregar-se a Deus, que se torna presente na consciência das pessoas que nele passam a acreditar. A prova é crer em Deus 6
e na sua presença.
Jesus Cristo tem uma pedagogia própria Analisando a obra de Jesus Cristo, que foi enviado pelo Pai para proclamar o Reino de Deus, nota-se que Ele realiza essa sua missão através das parábolas, dos milagres e do perdão dos pecados, que servem como sinais da chegada deste Reino. E assim se manifesta a pedagogia de Jesus.
As parábolas Jesus explica a sua mensagem através de parábolas, utilizando exemplos concretos da vida do povo. Ele faz isso porque os anos vividos na obscuridade deram-lhe o conhecimento da vida do povo. As parábolas têm três momentos: 1. a surpresa da descoberta, que abre uma perspectiva para o futuro e se apresenta como revelação; 2. a tomada de consciência do acontecimento, que modifica a relação com o passado, trazendo uma avaliação nova dos valores, provocando, por isso mesmo, uma revolução; 3.
a decisão operativa, que modifica de forma radical a situação presente, levando a uma resolução. A parábola “reproduz um
6
CARRETO, C. O Deus que vem. São Paulo: Paulinas, 1976. p. 42-45.
Origens do Ensino 60
processo de transformação total com relação ao tempo histórico em 7
que se desenvolve a existência do homem”.
Os milagres A imagem de Jesus está ligada a milagres, expulsão dos demônios, prodígios
e
sinais,
conforme
Pedro
apresenta
Jesus
aos
judeus,
demonstrando inseparabilidade desse aspecto do Jesus histórico (cf. At 2,22). De modo geral, os Evangelhos apresentam os milagres como sinais de que o Reino de Deus chegou.
8
Os milagres caracterizam-se pelos seguintes traços: 1. relação explícita com a fé, pois esse deve levar à fé ao provocar a pergunta “quem é este?” (Mc 1,27). Da parte dos espectadores e da pessoa beneficiada, W. Kasper diz “que o milagre deve suscitar a reação originariamente humana de surpresa”, abrindo a pessoa, ao inquietá-la e sacudi-la. Mas o conhecimento e o reconhecimento do milagre como milagre supõe a fé, isto é, enquanto obra de Deus, supõe a fé. Como sinais, só à luz da fé podem ser bem interpretados;9 2. manifestação do “poder” de Jesus nos vários ambientes e situações; 3.
manifestação de autoridade-poder que age com força libertadora e benéfica em favor das pessoas desamparadas.10
Do ponto de vista teológico, os milagres são um evento sensível em que se verifica a irrupção de Deus, enquanto revelam a presença e a ação de Deus.
7
Cf. FABRIS, R. Jesus de Nazaré, História e interpretação. São Paulo: Loyola, 1988. p. 174. Id., p. 141. KASPER, W. Jesús, el Cristo. Salamanca: Sígueme, 1986. p. 120. 10 FABRIS, R., op. cit., p. 146-150. 8 9
Origens do Ensino 61
A expulsão dos demônios A expulsão dos demônios representa a vitória de Jesus sobre o maligno, ou seja, a luta e o triunfo sobre o anti-reino. A escravidão da pessoa ao diabo não e o último destino do ser humano, porque ele não tem a última palavra sobre o humano, pois esta pertence a Deus. Jesus, quando acolhe os pecadores, perdoa seus pecados e expulsa o demônio, está mostrando e efetivando a vinda do Reino de Deus e a necessidade de lutar contra as potências demoníacas, sempre antagônicas ao Reino anunciado por Ele.
11
A narração dos “discípulos de Emaús” A narração dos “discípulos de Emaús” (Lc 24,13-35) é paradigmática, pois demonstram muito bem a pedagogia de Jesus para mostrar aos dois discípulos o que aconteceu, enquanto cura a decepção sentida por eles diante da sua morte na cruz. “Nesse mesmo dia, dois dos discípulos estavam a caminho de um povoado, chamado Emaús, distante uns doze quilômetros de Jerusalém. Eles conversavam sobre todos estes acontecimentos. Enquanto conversavam e discutiam, o próprio Jesus se aproximou e pôs-se a acompanhá-los. Seus olhos, porém, estavam como que vendados e não o reconheceram. Perguntoulhes então: „Que conversa é essa que tendes entre vós pelo caminho?‟ Tristes eles pararam. Tomando a palavra um deles, de nome Cléofas, respondeu: „Tu és o único peregrino em Jerusalém que ainda não sabe o que aconteceu lá nestes dias?‟ Ele perguntou: „O que foi?‟ Eles disseram: A respeito de Jesus de Nazaré que tornou-se um profeta poderoso em obras e palavras diante de Deus e de todo o povo. Nossos sumos sacerdotes e nossos chefes o entregaram para ser condenado a morte e crucificado. Nós esperávamos que fosse ele quem iria libertar Israel. Agora, porém, além de tudo, já passaram três dias desde que essas coisas aconteceram. É verdade que algumas de nossas mulheres nos assustaram. Elas tinham ido de madrugada ao túmulo e não encontraram o corpo. Voltaram dizendo que tinham tido uma aparição de anjos e que estes afirmaram estar ele vivo. Alguns dos nossos foram ao túmulo, acharam tudo como as mulheres tinham dito; mas não o viram‟. E Jesus lhes disse: „Ó homens sem inteligência e de coração lento para crer o que os Profetas falaram. Não era necessário que o Cristo sofresse tudo isso para 11
SOBRINO, J. Jesucristo libertador. Lectura histórico-teológica de Jesus de Nazaret. Madrid: Ed. Trotta, 1991. p. 128-141.
Origens do Ensino 62
entrar na sua glória?‟ E, começando por Moisés e por todos os Profetas, foi explicando tudo que a ele se referia em todas as Escrituras. Quando se aproximaram do povoado para onde iam, Jesus fez menção de seguir adiante. Mas eles o obrigaram a parar: „Fica conosco, pois é tarde e o dia já está terminando‟. Ele entrou para ficar com eles. E aconteceu que, enquanto estava com eles à mesa, tomou o pão, rezou a bênção, partiu-o e Ihes deu. Então, abriram-se os olhos deles e o reconheceram, mas ele desapareceu. Disseram então um para o outro: „Não nos ardia o coração quando pelo caminho nos falava e explicava as Escrituras?‟ Na mesma hora se levantaram e voltaram para Jerusalém. Lá encontraram reunidos os Onze e seus companheiros, que lhes disseram: „O Senhor ressuscitou de verdade e apareceu a Simão‟. Eles também começaram a contar o que tinha acontecido no caminho e como o reconheceram ao partir o pão” (Lc 24,13-35).
Esta narração apresenta alguns elementos interessantes e que mostram, muito bem, a pedagogia usada por Jesus Cristo: 1. a decepção era o estado de espírito dos dois discípulos; 2. Jesus compartilha, ao caminhar ao lado deles e perguntar o que acontecia; 3. Jesus escuta, compreende e fala, explicando as Escrituras; 4. os discípulos o reconhecem pelo sinal do “abençoar, partir e distribuir o pão”; 5. os discípulos sentiam o “coração arder” quand o Ele lhes explicava as Escrituras; 6. as Escrituras é o instrumento utilizado pela comunidade apostólica para reconhecer a morte e a ressurreição de Jesus como acontecimentos salvíficos; 7. a missão de anunciar a ressurreição aos outros (discípulos). Eis, portanto, uma explanação da pedagogia de Deus feita a partir da Sagrada Escritura, pois, como foi explicitado no início deste trabalho, e neste livro que se encontra relatada a revelação de Deus para com o povo de Israel, possibilitando caracterizá-la como
amor,
histórica,
compreensível,
eficaz,
misericordiosa, justa e baseada na confiança e na fidelidade.
Origens do Ensino 63
TERRA E ESPAÇO: UM APRENDIZADO DE ASTRONOMIA GERALDO RODOLFO HOFFMANN
Introdução: duas reflexões essenciais A relatividade das orientações e da cronologia A própria temática referencial, “Oriente Antigo”, traz em si um certo impasse. O que representam efetivamente, na acepção de cada indivíduo ou grupo, as designações oriente e antigo? Um primeiro passo, nesta decifração, pode ser o significado de duas palavras de emprego bastante freqüente: nortear e orientar. Ambas sugerem um rumo, ou até mesmo um preceito a ser seguido. Nortear, etimologicamente encaminhar-se para (ou simplesmente procurar) o Norte, define o direcionamento em função deste ponto cardeal. O mesmo ocorre com o termo orientar que, numa variante geométrica de 90°, refere o rumo do assim chamado Oriente. O Oriente (e com ele o próprio direcionamento oriental) representa o Leste ou, simplificando, o lado do “Sol nascente”. Este evento tão trivial do surgimento solar, com o qual convivemos todas as manhãs, é a conseqüência mais marcante da rotação terrestre: o planeta “gira para Leste”. Portanto Oriente, oriental, horizonte do levante ou lado do Sol nascente, são de signações que subentendem o Leste relativamente ao observador. Convém não esquecer que, em oposição, usamos as designações Ocidente, ocidental, horizonte do ocaso ou lado do Sol poente, para referir o Oeste em função do observador.
Terra e Espaço: um Aprendizado de Astronomia 64
Uma nomenclatura similar, de orientações, é empregada em função dos posicionamentos polares: boreal ou setentrional para o Norte e austral ou meridional para o Sul. O que foi relatado ressalta algo muito importante: as orientações são relativas e sempre referidas a um determinado local ou indivíduo, o qual também designamos “observador”. Para o morador de Porto Alegre (sede desses encontros sobre o Oriente antigo), Tramandaí e Uruguaiana seriam (respectivamente) de localização oriental e ocidental, enquanto Vacaria e Pelotas seriam (no mesmo enfoque relativo) uma localidade boreal e uma austral. Conseqüentemente Porto Alegre é ocidental para o morador de Tramandaí e oriental para o de Uruguaiana. Além disto a capital do Estado é de posicionamento austral em relação a Vacaria porém acusa disposição boreal em função de Pelotas. Já
numa
uniformização
geográfica
global
as
orientações
fundamentais são estabelecidas em função do Equador e do meridiano de Greenwich. O desdobramento natural da Terra em hemisférios Austral (Sul) e Boreal (Norte) é feito em função do Equador. De modo similar o meridiano de Greenwich, seqüenciado pelo seu antípoda (o antimeridiano), divide o planeta convencionalmente nos hemisférios Ocidental (para Oeste de Greenwich até o antimeridiano) e Oriental (para Leste de Greenwich, também até o antimeridiano). O que vem a ser então o Mundo oriental se para nós (americanos lato sensu)
os
europeus,
africanos,
asiáticos
e
australianos
estão
em
posicionamento relativo oriental; e o estão, em sua maior parte, face ao próprio meridiano de Greenwich? Tomemos inicialmente a Bíblia como fonte de duas curiosas referências: o segundo capítulo do Genesis e o segundo de Mateus.
Origens do Ensino 65
Lemos em Gn 2.8: – E plantou o Senhor Deus um jardim no Éden, que fica no Oriente, e colocou nele o homem que havia formado.
E em Mt 2.1: – Tendo Jesus nascido em Belém da Judéia, em dias do Rei Herodes, eis que vieram uns magos do Oriente a Jerusalém.
Onde procurar, geograficamente, tais referências? O Jardim do Éden estaria em algum lugar da Mesopotâmia, equivalente ao atual Iraque, enquanto Jerusalém situa-se em Israel, junto à divisa com a Jordânia. Em função do Meridiano de Greenwich ambos estão no hemisfério oriental e, inclusive, orientalmente em função da própria Europa. Além disto Israel pertence ao que usualmente é designado Oriente Próximo e o Iraque ao Oriente Médio. Entretanto, de acordo com as citações anteriores, tanto o Jardim do Éden como a procedência dos Reis Magos são referidos ao “Oriente”. Estaríamos diante de “localidades” ao “Oriente do Oriente do Oriente”? Assim seria apropriado esclarecer o que, tradicionalmente, nos foi imposto como sendo Oriente; apesar de não haver, sequer, uma uniformidade. Existe uma tendência para considerar três regiões fundamentais: o Oriente Próximo, o Médio e o Extremo Oriente. Em obras como o The Eyewitness Atlas of the World o Oriente Próximo compreende apenas a Síria, a Jordânia, o Líbano e Israel. O Oriente Médio inclui o Irã (Pérsia), o Iraque, a Arábia Saudita, o Yemen, Oman e os Emirados Árabes. Conseqüentemente o Extremo Oriente abrangeria regiões ao Leste das antes referidas. Em outras fontes encontramos a aglutinação da Turquia, sudeste asiático e Norte da África (incluindo por vezes Afeganistão, Irã e Iraque) como constituindo o Oriente Médio, o qual passaria a ser confundido ou sinonimizado com Oriente Próximo. O Oriente Extremo (Extremo Oriente) compreenderia então os países do Leste asiático (China, Japão, Coréia, Mongólia, Manchúria e parte sudeste da
Terra e Espaço: um Aprendizado de Astronomia 66
Sibéria), incluindo usualmente outras regiões do Sul e sudeste do continente, bem como os arquipélagos da Indonésia e Filipinas. Nestas abrangências não costumam constar duas importantes áreas físicas do hemisfério oriental: a maior parte da Sibéria (possivelmente por seu posicionamento nórdico) e o subcontinente indiano. Este último seria um conveniente divisor de áreas para uma eventual simplificação. Surge pois a conveniência de estabelecer, para fins didáticos, um desdobramento elementar mas de cunho prático; sobretudo se levarmos em conta o “bairrismo europeu” propriamente dito, em séculos passados, superimposto a realidade física das massas continentais. Para tanto tracemos uma linha curva sinuosa, iniciando no Mediterrâneo e culminando no oceano Ártico. Avançando por um dos ramos do Mediterrâneo, o mar Egeu, situado entre a Grécia e a Turquia, seguimos a Oeste de Istambul (previamente Constantinopla e na “antigüidade” Bizâncio) alcançando o mar Negro e passando deste, ao longo do Cáucaso, para o mar Cáspio. Então acompanhamos, para noroeste, o trecho final do rio Volga, próximo à foz, arqueando depois para Leste e seguindo os montes Urais até o mar de Kara. Ao Sul do Mediterrâneo esta linha avança pela África dissociando a Líbia (Oeste) do Egito (Leste) (Vide Prancha I). Tal linha divisória separa a Europa propriamente dita (bem como grande parte da África) – na condição de Ocidente clássico – da Ásia (à qual está vinculado o nordeste africano em termos de evolução histórico-cultural). Finalmente o Oriente tradicional, configurado pela Ásia e pelo já citado nordeste africano, pode ser submetido a um desdobramento complementar. Tendo a Índia (considerada uma unidade independente) como região referencial, todos os territórios além dela configuram o Extremo Oriente. As regiões entre a Europa e a Índia passam a ser enfocadas de duas maneiras distintas, conforme a conveniência ou a perspectiva de um determinado autor. Se tomadas em
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caráter unitário compõe, num bloco único, o Oriente Próximo lato sensu; se submetidas a uma dicotomia desdobram em Oriente Próximo propriamente dito e em Oriente Médio. No Caso deste desdobramento, relativamente à Europa, a primeira região será proximal e a segunda distal. E tão complexa quanto à relatividade convencional das orientações, é também a problemática cronológica. Enquanto a primeira diz respeito ao onde estou, a segunda trata do quando algo ocorreu (ou ocorrerá). De entremeio um lembrete: “o que digo, leio ou escrevo, já não e mais presente; pertence ao passado no instante seguinte ao ocorrido”. Presente, no sentido mais rigoroso, seria o instante de transição do passado ao futuro. Assim como locais são definidos por seu posicionamento relativo, o que implica em referir orientações e distâncias, os acontecimentos são vinculados as unidades específicas do tempo. Se dispomos de unidades de mensuração linear, para uma gama que vai de dimensões astronômicas para valores atômicos e subatômicos, também dispomos de unidades para tratar de lapsos temporais de grande amplitude até ocorrências de uma rapidez que escapa a nossa percepção rotineira. Então falar de anos luz, quilômetros e angstroms é tão natural quanto citar eons, séculos ou nanossegundos. Portanto chegamos ao problema “Oriente ANTIGO”. Se já temos uma boa noção do que é Oriente, conforme o enfoque pelo qual optarmos, resta decifrar o que é “ANTIGO”. Os zigurates, os menires, as pirâmides e as estátuas da Ilha da Páscoa são considerados antigos; o que não é novidade para ninguém. Mas um rádio de válvulas, uma vitrola, um fogão a lenha, uma “caneta-tinteiro” e até uma “máquina de escrever” também são considerados antigos. Enquanto afirmarmos que a múmia de um faraó, dada sua relativa antigüidade, é velha, não podemos ignorar a criança que volta da escola dizendo: – “A professora é uma velha chata, já deve ter uns trinta anos...”.
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Mais uma vez deparamos com os inevitáveis enfoques relativos e a necessidade do estabelecimento de parâmetros apropriados a cada circunstância. A Terra, bem como o Sistema Solar ao qual pertence, tem uma idade avaliada em pelo menos 4.700.000.000 de anos. Tanto a história registrada da humanidade, como a própria duração de uma vida humana, são ínfimas se comparadas ao tempo de existência do nosso planeta. Na mesma proporção o tempo de detonação de um explosivo é minúsculo em relação ao transcurso da vida de uma pessoa. A lentidão relativa da evolução terrestre, desde sua origem, é referida em grandes blocos temporais: os eons, as eras e os períodos. O mesmo desdobramento do tempo é empregado quando se fala em evolução biológica. Já os eventos da história humana são associados a milênios, séculos e décadas. Os tempos do estilhaçar de um copo que cai, ou da progressão de um projétil recém-disparado, não podem ser avaliados através das unidades de tempo antes referidas; estamos ingressando no âmbito dos segundos e suas frações. Assim como longe e perto, alto e baixo, fundo e raso, largo e estreito, longo e curto (ou tantos outros pares), representam conceitos vagos, o mesmo e válido para antigo e recente ou para novo e velho. Em termos geológicos a definição do protocontinente de Ur, ocorrida há 3.000.000.000 de anos, é um evento “antigo”, enquanto os derrames basálticos que formaram a Serra Geral, estimados em 120.000.000 de anos, são acontecimentos “recentes”. Em contrapartida o domínio de Akhenaton e Nefertiti, iniciado por volta de 1530 a.C., é incondicionalmente aceito como um fato histórico “antigo”; mas pouco representa comparado aos “recentes” derrames basálticos. A Segunda Guerra Mundial, tida como um evento “recente”, ocorreu quando a maioria das pessoas, atualmente vivas, ainda não tinha nascido.
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Seria “antigo” o que vem antes e “recente” o que vem depois do início da contagem do calendário convencional? A própria noção de Idade Media é um tanto vaga. É por estas razões que a própria temática do “Oriente Antigo” flutua, como um barco desgovernado e sem estabilidade, ora jogado para diante, ora lançado para trás, ora adernando ao sabor das ondas, no nosso caso nada mais que os enfoques relativos humanos. As próprias culturas grega, romana e ameríndia (esta em condição especial) participaram do elenco de temas abordados por ocasião da “IV Jornada de Estudos do Oriente Antigo: As Origens do Ensino”, ocorrida na PUCRS nos dias 21 a 23 de maio do ano de 1998. Como em todas as outras áreas do conhecimento humano, também na História são estabelecidas convenções. Em termos práticos a História antiga diz respeito a épocas anteriores ao ano 476, data da queda do Império Romano no Ocidente. O “Oriente Antigo”, portanto, deveria abranger não só as culturas que surgiram, evoluíram e eventualmente extinguiram, na área física inicialmente delimitada, como os eventos pertinentes que tenham precedido o último quarto do quinto século do calendário convencional. Nossa herança cultural Os diversificados conhecimentos que compõem o acervo científicocultural sul-americano pouco têm de autóctones. Provêm do acúmulo de elementos, efetivado com parcialidade ao longo de cinco séculos, como decorrência da intromissão dos povos boreais e outras influências posteriores. Assim a colonização sul-americana pelos europeus, oriundos do hemisfério Norte, à semelhança do também ocorrido em grande parte da África, ocasionou diversos aspectos negativos. Embora só o Sul da África seja efetivamente meridional, os povos africanos eram tratados, cultural e geograficamente, como “inferiores”; talvez apenas por não serem europeus (“brancos”). A riqueza cultural dos povos ameríndios foi censurada, ou aniquilada, para favorecer a implantação de uma imposição cultural européia.
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Não podemos esquecer, por outro lado, o fato de ter havido uma diferença acentuada nos graus de aculturações ao compararmos a América do Norte com a Central e a do Sul. Isto se deve aos distintos países europeus que assumiram o “dever” (segundo sua própria visão e conveniência) da colonização do “Novo Mundo”. Na América do Sul, na Central e no sul da América do Norte ocorreram as influências portuguesa e espanhola, distintamente do verificado na maior parte da América do Norte. A chegada dos escravos negros, às Américas, aumentou a miscigenação, não só física como também cultural. Por outro lado não pode ser esquecida uma nova aculturação, de caráter intra-americano, induzida pela grande força político-econômica representada pelos Estados Unidos da América do Norte. Basta lembrar, a título de curiosidade, que graças aos tão divulgados filmes de “faroeste” (efetivamente Far West: o Oeste distante ou longínquo Oeste), os brasileiros conhecem mais nomes tribais de índios norte-americanos – e seus costumes – do que dos próprios índios brasileiros. Mas algo fundamental em todo este panorama é o fato dos navegadores que detonaram tal processo terem partido, sobretudo inicialmente, da península Ibérica. Nas embarcações vinham poucos elementos eruditos mas, tanto eles como o restante das tripulações, portadores das culturas de suas terras de origem; culturas mescladas de componentes circumediterrâneos, isto é, tanto europeus como norte-africanos. Esta cultura amalgamada, já por si bastante complexa, tinha suas próprias raízes históricas no mundo grecoromano. E estas raízes, por sua vez, ancoram-se em outras ainda mais remotas, particularmente mesopotâmicas. O fato é que tudo o que sabemos sobre o mais remoto passado provém de documentação efetiva, quando a mesma existe, ou de reconstituições calcadas em dados falhos e suposições, e portanto passíveis de serem fictícias. E pairando, acima de tudo, a célebre citação de que a história foi (e naturalmente continua sendo) escrita pelos vencedores.
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Contudo ainda existe, em tudo isto, uma implicação muito peculiar. Embora para os gregos de dois milênios passados, e até mesmo para alguns eruditos de cinco séculos atrás, a Terra fosse um corpo globóide, no âmbito popular era considerada plana. Portanto os marinheiros portugueses, espanhóis ou outros tantos (bem como o povo em geral), viviam num mundo plano e com receio constante de que as embarcações despencassem quando – e se – chegassem aos limites do “mar-oceano”. Foi necessário redemonstrar a esfericidade terrestre pela circun avegacão. Afinal, as teorias não devem ser “demonstradas”? O fato é que viajaram e vieram para o Sul (a bússola já era conhecida de muito tempo antes), chegando ao que julgavam ser o lado oposto da Terra. Portanto saíram de seu mundo original e vieram para outro que ficava “embaixo”: sob as suas pátrias. E tantas palavras surgiram ou reacenderam seu primitivo significado: submundo, subordinado, subalterno, subdesenvolvido, subnutrido, submisso e assim por diante! Não herdamos apenas a cultura circumediterrânea, mas também um “condicionamento progressivo de inferioridade” o qual, lamentavelmente, permanece
numa
condição de
inconsciente
espontaneidade.
Ouvimos
constantemente frases ressaltando nossa “posição inferior”, ditas sobretudo por nossos conterrâneos; – “O Canadá fica lá em cima”. – “Na próxima semana vou subir até os Estados Unidos”. – “Que inveja dos europeus, lá em cima agora está nevando”. E por que não considerar o próprio contexto em termos nacionais? É tão freqüente ouvir um gaúcho ou um catarinense afirmando: – “Os deputados e senadores, lá em cima em Brasília...” – “Tenho um vôo agora no fim da manhã; vou subir até São Paulo”. – “Quando estive Iá em cima, na Amazônia...” etc., etc., etc.
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Será que estamos realmente “embaixo”? Basta sair à noite para olhar um céu repleto de estrelas. Ao levantarmos os olhos não veremos os Estados Unidos, a França ou a Itália, nem tampouco São Paulo ou Brasília; veremos apenas o panorama celeste. Abaixo de qualquer habitante do planeta está a Crosta da Terra, depois o Manto e, finalmente, o Núcleo terrestre. Estamos ligados à Terra por sua força gravitativa e o verdadeiro “embaixo”, para qualquer ser vivo existente no planeta, é o centro da própria Terra. Independentemente do grau de dependência que tivemos, e ainda temos relativamente aos habitantes do hemisfério Norte, os tempos ditos modernos trouxeram uma incomensurável acessibilidade aos conhecimentos das mais diversas fontes e as descobertas relevantes dos múltiplos campos do saber humano. Estamos, pois, capacitados a recuar no espaço e no tempo para tentar reconstituir as origens, no presente caso, do conhecimento e transmissão daquilo que nossos ancestrais mais remotos decifraram em relação ao Universo.
A Terra no contexto espacial Onde está a “Nave Gaia”? Dentre os mais célebres mitos gregos encontramos o de Hércules, renomado por sua força e pelos trabalhos com os quais foi confrontado. Filho de Zeus, com a mortal Alcmene, foi levado ao Olimpo, logo após seu nascimento, para ser amamentado por Hera. Extraordinariamente robusto, mesmo quando ainda um bebê, apertou e sugou os seios divinos com tanta força que grande parte do leite escorreu para o céu manchando-o com uma faixa de nódoas brancas. Surgiu ali uma trilha leitosa, a Via Láctea, a nossa galáxia! Em termos astronômicos, porém, qualquer galáxia é um aglomerado, usualmente regular, formado por dezenas a centenas de bilhões de estrelas.
Origens do Ensino 73
O Sol, apenas uma modesta dentre as muitas estrelas da Galáxia, está localizado numa região de baixa densidade estelar, no espaço entre dois ramos oriundos da bifurcação de um dos braços. Estes, em número provável de três, emergem do núcleo galáctico circundando-o em disposição espiralada. E o Sol está distanciado cerca de 30.000 AL (anos luz) do centro daquele núcleo (Vide Prancha II: figura 1). Orbitando o Sol encontramos planetas e muitos corpos menores, como por exemplo os asteróides. Na terceira órbita encontra-se um binário: o sistema planetário duplo integrado pela Lua e pela Terra, esta com um diâmetro praticamente quatro vezes maior que o lunar. O termo latino terra equivale ao grego gea (eventualmente gaia). Diante de seu movimento orbitando o Sol, e juntamente com ele na sua viagem em torno do centro do núcleo galáctico (além de portar vida em sua superfície), a Terra é por vezes designada “Nave Gaia”. Plutão, o planeta mais afastado do Sol, está numa distância média de seis bilhões de quilômetros. O mais próximo vizinho estelar, o sistema ternário (tríplice) da Alfa do Centauro, está a 4,3 AL (anos luz), portanto num afastamento (relativo ao Sol) 6.800 vezes maior que o de Plutão. Isto, numa escala mais acessível, significa: se um ponto representando Plutão estivesse a um metro do Sol (também um ponto), a Alfa do Centauro estaria numa distância de 6.800 metros (6,8 km). Portanto as distâncias dos planetas ao Sol são desprezíveis se comparadas às distâncias entre as estrelas. Na prática, conseqüentemente, tanto faz referirmos a distância de determinada estrela ao Sol ou a Terra. As estrelas, aparentando pontos luminosos no céu noturno, podem ser vistas em todos os sentidos no espaço. Em algumas destas orientações a quantidade das estrelas visíveis (e inclusive detectáveis por instrumentos) é menor, noutras maior, dependendo de sua concentração relativa. Se olharmos na orientação do ramo externo (região de Touro e Gêmeos) ou do ramo interno (região do Escorpião e do Sagitário), do braço galáctico ao qual
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pertencemos, a concentração de estrelas é tão grande que aparenta uma faixa branca irregular: a Via Láctea propriamente dita. Esta faixa por nós observável representa, portanto, apenas a parte efetivamente visível da nossa galáxia. Zonas do céu noturno com poucas estrelas são um indicativo de estarmos olhando para fora do plano principal do corpo galáctico.
Um primeiro contato com o céu Na observação do céu noturno atual, como naquelas efetuadas em décadas, séculos ou milênios passados, algo não mudou. Com o gradual obscurecimento do céu, após o entardecer, surgem progressivamente pontos luminosos, sendo mais brilhantes os primeiros. Isto naturalmente subentende um céu sem nuvens ou com poucas delas. Não só algumas estrelas brilham mais que outras, como a concentração estelar é maior em algumas regiões do que noutras. Embora se constate que umas em relação às outras mantenham seu posicionamento relativo inalterado, o conjunto de estrelas – como um todo – sofre um progressivo deslocamento. Isto é mais notório junto aos horizontes Leste e Oeste. As estrelas próximas ao horizonte
Oeste
desaparecem
gradualmente
enquanto
as
do
Leste
aparentemente sobem, surgindo outras em seu lugar. A Terra, girando para Leste em seu movimento de rotação, possibilita a ascensão, no céu noturno, das estrelas antes abaixo do horizonte Oriental. Assim uma estrela, que no início da noite está logo acima do horizonte Leste, parece percorrer o céu e ir ao encontro do horizonte Oeste antes do amanhecer. Todos os povos atuais constatam isto, e os do passado constataram também. E algo mais pode ser observado, como igualmente o foi em tempos passados. Se determinada estrela, ou constelação de referência, está acima do horizonte Leste no início de uma noite de verão, a mesma estará “descendo” para o horizonte Oeste, no mesmo horário, em uma noite de inverno. E tudo isto os “antigos” também já sabiam.
Origens do Ensino 75
E enquanto davam nomes às estrelas, e aos grupamentos que as mesmas formavam, nasciam as constelações. Nossos ancestrais também reconheceram que algumas estavam dispostas numa faixa peculiar que ficou conhecida como o “Círculo dos animais”, o clássico Zodíaco. E igualmente perceberam que, no decurso dos meses e dos anos, tanto a Lua como também o Sol percorriam o céu ao longo daquela faixa. E, mais curiosamente ainda, constataram que havia certos pontos luminosos que não mantinham suas posições fixas em relação aos outros pontos brilhantes de uma constelação. Percorriam o Zodíaco indo, inclusive, de uma constelação a outra: as “estrelas errantes”, “peregrinas”, “andarilhas”, “vagabundas”; mais precisamente, os planetas. Percebido o posicionamento de certas zodiacais no horizonte, ao “nascer” e “pôr” do Sol (e conseqüentemente no seu alinhamento), tudo isto coincidindo com épocas especiais do ano, os homens relacionaram estes fatos com as épocas sazonais: podiam prever as estações, os tempos de seca e os de muitas chuvas. Assim surgia o primeiro elo utilitário da observação do céu, possibilitando prever acontecimentos fundamentais para a sobrevivência humana. Outro procedimento muito importante para o avanço desta ciência, então ainda por nascer, foi o de classificar e posicionar as estrelas e constelações: o “primeiro passo” para o mapeamento do céu. Fazer isto com exatidão requer coordenadas e algumas, naturais, sobressaem logo: o Equador e os pólos celestes são simples projeções, no céu, do Equador e dos pólos da Terra. Outras duas constatações feitas por nossos antepassados, que continuam fundamentais em tempos modernos, são as dos solstícios e dos equinócios. Cumpre lembrar que, em função das posições solsticiais, são determinados os trópicos de Câncer e de Capricórnio. Por que “vemos o que vemos”? É chegada a hora de devolver a atenção ao nosso planeta.
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A Terra orbita o Sol seguindo uma elipse de baixa excentricidade, isto é, quase circular. No periélio, a posição de maior proximidade da Terra ao Sol, a distância é de 147.250.000 km, enquanto no afélio, a posição de major afastamento, o valor passa de 152.078.000 km. A distância media, convencionada como Unidade Astronômica propriamente dita (UA), equivale a 149.675.000 km. O movimento orbital da Terra, circulando em torno do Sol, constitui sua translação e requer um tempo de 365 dias e um quarto. A órbita da Terra costuma ser, para fins práticos, reduzida a um plano conhecido pelo nome de Eclíptica. Em todas as orientações, relativamente ao Sistema Solar, estão as estrelas e, segundo a interpretação humana, as constelações por elas formadas. Das oitenta e oito (88) constelações, oficialmente reconhecidas, parte é própria do hemisfério Norte e parte do hemisfério Sul. Doze, entretanto, estão alinhadas segundo a Eclíptica e compõe o Zodíaco. Mas só podemos observálas à noite, em decorrência de uma circunstância óbvia. O Sol emite energia (e as partículas do “vento solar”) radialmente, isto é, em todos os sentidos no espaço. Devido ao seu afastamento a Terra recebe apenas uma diminuta fração da emissão solar. Convém lembrar que, de toda a emissão solar em como das estrelas em geral, a de interesse prático imediato é apenas a da luz visível. A luz solar é emitida radialmente mas, devido a grande distância (150.000.000 km), atinge a Terra em condição praticamente paralela. A figura 2 da Prancha II ressalta que a face iluminada do planeta, portanto, e aquela metade da “esfera terrestre” voltada para o Sol. Devido à rotação do planeta o ponto md (no posicionamento do “meio-dia”) estará, 12 horas mais tarde, na condição de “meia-noite” (mn). Agora consideremos a Terra posicionada em A (vide figura 3 da Prancha II) por exemplo em determinado dia do mês de janeiro. O lado voltado para o Sol estará iluminado e, portanto, em fase diurna, com o “meio-dia” no
Origens do Ensino 77
alinhamento solar. O lado oposto, não iluminado e, portanto, correspondente a face escura, representa o estágio noturno. Mas diante da rotação terrestre, num período referencial de 24 horas, um ponto superficial diretamente voltado para o Sol (“meio-dia”) estará, seis horas depois, em fase crepuscular, mais seis horas a “meia-noite”, outras seis horas no alvorecer e, finalmente, em novo estágio de “meio-dia”. Durante o dia, dado o ofuscamento solar e a difração atmosférica da luz, não podemos ver as estrelas; à noite sim. Com a Terra em A, como referido antes, enxergamos estrelas no céu noturno (orientação geral I, inclusive acima e abaixo), mas não no sentido do próprio Sol. Meio ano depois (julho) a Terra estará em C, com o Sol brilhando em seu lado diurno na orientação I. Durante a noite serão visíveis estrelas na orientação geral II, as quais não podiam ser vistas da Terra quando na posição A, pois então encontravam-se mascaradas pelo Sol. Se a Terra fosse uma pequena bola, de algumas dezenas ou centenas de metros de diâmetro apenas (e pudesse sustentar nossa vida), veríamos sua curvatura efetiva e talvez até fossem possíveis observações como as antes citadas. Mas a Terra tem um diâmetro superior a 12 mil quilômetros (diâmetro equatorial referencial de 12.756 km por arredondamento para menos) e assim a abrangência visual celeste, por parte de cada indivíduo, é limitada por seu horizonte. Somos tão pequenos em relação ao planeta, que sua curvatura efetiva desaparece e fica reduzida, localmente, a um simples plano delimitador do nosso horizonte (Vide Prancha III: figura 1). Observando a Terra pelo pólo Norte constatamos uma série de eventos entre o anoitecer e o amanhecer. No início da noite o observador (por exemplo em posicionamento equatorial) verá estrelas nas orientações possíveis da abóbada celeste então visível (alinhamentos a até f no exemplo da figura 2A da Prancha III), portanto numa abrangência – horizonte a horizonte – de 180°. Nas horas seguintes a, depois b, e assim por diante, desaparecem no horizonte do poente, enquanto a região f será acrescida de estrelas em novas orientações: g, h, etc., até o
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amanhecer (conferir as figuras 2B e 2C da Prancha III). Isto, em realidade, só nos impede de ver as estrelas posicionadas no alinhamento do Sol. Como no prolongamento do plano da Eclíptica estão as 12 zodiacais torna-se óbvio que, durante a noite, podemos observar sucessivamente 11 delas, menos a décima segunda que está além do Sol. Este é o significado horoscópico de frases como, por exemplo: – “Deoclécia Ermengarda é taurina porque, na ocasião de seu
nascimento, o Sol estava na casa de Touro”; isto é, alinhado com a constelação em questão. Portanto no final de abril e início de maio, época referencial para os taurinos, o Sol deveria estar diante das estrelas de Touro e ofuscar a constelação. Mas basta observar o horizonte Oeste ao anoitecer, em tal época, e constataremos que o Touro ainda está acima dele. O Sol, na verdade, “ofusca” Áries, o Carneiro. Devido a um movimento conhecido como “precessão equinocial”, a cada 2.160 anos ocorre um deslocamento relativo de uma casa zodiacal. Portanto o Sol realmente já esteve diante do Touro, em tal período do ano, mas na época de Cristo. Nas quatro semanas seguintes, com a Terra avançando gradualmente trinta graus em sua órbita, o Sol prossegue percorrendo outra zodiacal. Mas existem estrelas (e conseqüentemente constelações) que não podemos ver, a não ser viajando pelos dois hemisférios: o Austral e o Boreal. Alguém em posição literalmente equatorial, dispondo de um horizonte completamente desimpedido (um oceano, no caso), poderia – teoricamente – observar todas, mas as polares confundiriam com a linha do horizonte. Como nossa visão é limitada pelo horizonte local, o panorama celeste abrange um circuito de 180 graus (180°), enquanto o outro hemisfério celeste, na mesma ocasião, estará abaixo do referido horizonte. Face à rotação terrestre podemos ver, durante a noite, o céu noturno mudar como se girasse no alinhamento Leste-Oeste. Contudo as estrelas circumpolares boreais estarão sempre fora do nosso campo de visão.
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Porto Alegre está na latitude austral de trinta graus (30° S). Assim a projeção celeste do pólo Sul da Terra, definindo o pólo Sul celeste, também estará trinta graus acima do horizonte (vide figura 1 da Prancha IV). No sentido contrário, o boreal, estarmos limitados aos sessenta graus (60° N) e não podemos ver estrelas além deste limite. Isto impede a observação, em nossas latitudes, de algumas constelações famosas, tais como a Ursa Menor e Cefeu. Do mesmo modo os europeus, norte-americanos e canadenses, não podem ver o Cruzeiro do Sul e o Triângulo Austral. Para facilitar a compreensão deste fato é conveniente comparar a figura referida com sua simétrica, a de número 2 na Prancha IV. Na observação celeste noturna podemos ver estrelas e constelações, com trinta graus de declinação austral, passarem pelo zênite, isto é, na vertical do observador. A declinação representa o afastamento angular em função do Equador celeste. Estrelas e constelações de declinação boreal equivalente (30° N) estariam em igual elevação acima do horizonte Norte (também 30°) para o observador porto-alegrense. Por esta razão a estrela Fomalhaut (declinação 30° S), do Peixe Austral, passa praticamente sobre Porto Alegre; assim como as constelações do Cão Maior, do Escorpião e do Sagitário. Já a estrela Alpheratz (atualmente Alfa de Andrômeda), situada no limite
desta
constelação
com
Pégasso
(cujo
quadrilátero
integrava
antigamente), e praticamente comum às duas e apresenta uma declinação de 29° N. As duas constelações citadas estão dispostas obliquamente sobre o paralelo celeste boreal de 30°, alinhamento no qual também estão constelações como o Boiadeiro, a Coroa Boreal e Gêmeos. Nesta última a estrela Pollux possui a declinação de 28° N. Assim como nós vemos Alpheratz (na época e horários compatíveis), cerca de 30º acima do horizonte Norte, os habitantes da Mesopotâmia viam – como ainda vêem – Fomalhaut em elevação similar no horizonte austral. O que para nós representa o Cruzeiro do Sul, em posicionamento celeste, a Ursa
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Maior e Cassiopéia representam para os povos boreais. A razão de tudo isto é a latitude geográfica. Porto Alegre, trinta graus ao Sul do Equador, está na mesma faixa meridional da Austrália (a linha mediana deste continente está sobre os 25°). Nahr-Dijlah e Nahr al Furãt, respectivamente os rios Tigre e Eufrates, confluem num trecho final comum (Shatt al Arab) cuja foz está junto ao Golfo Pérsico. A latitude local é de 30° N. A cidade do Cairo, próxima ao delta do Nilo, igualmente
detém
tal
latitude.
A
Pérsia,
por
exemplo,
estende-se
aproximadamente de 25° N a 35° N, enquanto a Grécia abrange latitudes gerais de 36° N a 41° N. O equivalente austral desta última iria de Buenos Aires e Montevidéu até a Península Valdés. Isto mostra que só teremos uma melhor compreensão do “Oriente antigo” boreal (pois a Austrália e a Nova Zelândia costumam ser ignoradas como Oriente por serem austrais), no que diz respeito ao conhecimento do céu, fazendo o necessário paralelo com o como e o que pode ser observado do hemisfério Sul.
A questão solstício-equinocial Eis que surge um detalhe astronômico capaz de afetar e complementar aquelas condições ideais de observação do céu: a inclinação axial terrestre. O que foi até aqui exposto seria perfeito para uma Terra com o eixo perpendicular ao plano da Eclíptica. Contudo o eixo terrestre está inclinado de 23°27‟ em relação a uma normal (linha de referência ortogonal) ao plano da Eclíptica (Vide figura 1 da Prancha V). Como o Equador é perpendicular ao meio do eixo terrestre, assim como a normal também o é relativamente à Eclíptica, todos cruzados num ponto representado pelo centro da Terra, aquele mesmo ângulo (23°27‟) também é subtendido entre o Equador e a Eclíptica. Pela mesma figura podemos constatar que o alinhamento da Eclíptica intercepta o planeta em dois pontos (m
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e n). É a propagação superficial destes pontos, diante da rotação terrestre, que gera os trópicos de Câncer e de Capricórnio. No seu bailado em torno do Sol a Terra conserva a inclinação axial, não só constante, como sempre voltada para o mesmo lado. Por esta razão a Eclíptica não coincide com o Equador, mas forma, em sua projeção durante a translação anual, uma longa linha sinuosa em relação ao mesmo. Junto a esta linha sinuosa desenhamos, nos mapas celestes, as constelações zodiacais. Observando a figura 3 da Prancha IV constatamos que, se numa dada ocasião a Terra estiver na posição A, em relação ao Sol, meio ano depois estará na posição B. Em cada uma destas ocasiões um dos hemisférios recebe mais energia que o outro: num hemisfério será verão e no outro inverno. O momento extremo do verão de um hemisfério decorre da incidência da energia solar diretamente (verticalmente) sobre o trópico correspondente, definindo o solstício de verão. No outro hemisfério ocorre o solstício de inverno. Meio ano depois, diante da translação terrestre (mas da inclinação axial inalterada) a situação inverte. Nos termos médios de dois solstícios consecutivos a Terra acusa incidência máxima de energia solar diretamente sobre o Equador. Nestas posições terrestres, que caracterizam os equinócios (de outono num hemisfério e de primavera no outro), ocorre uma partilha igual de energia para os dois hemisférios. Assim, no decurso de cada ano, a latitude de incidência solar máxima (perpendicularmente a superfície terrestre) varia, gradualmente, de um trópico a outro, passando pelo Equador; depois inverte o sentido retornando ao “estágio” original. Um importante detalhe é o fato de, em dois momentos no decurso de cada ano, a incidência de energia solar ocorrer verticalmente sobre o Equador: os instantes dos equinócios. Geometricamente estes dois eventos anuais ocorrem no cruzamento da linha equatorial com a linha da Eclíptica.
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Os dias dos equinócios de outono e primavera, bem como dos solstícios de verão e inverno, já constavam dos calendários dos povos da “antigüidade”; mais de seis milênios antes dos dias atuais. Eram datas marcantes e usualmente festivas. E muitos simbolismos nasceram, para a história da humanidade, pelo fato de certas constelações zodiacais estarem exatamente em tais orientações solares. Tecnicamente cada solstício de verão corresponde (como já referido anteriormente) à data da incidência vertical de energia solar sobre um dos trópicos, portanto o auge do verão; enquanto no hemisfério oposto teremos o ponto máximo do inverno. Nos equinócios a incidência vertical (direta) de energia solar é constatada exatamente sobre o Equador. Embora os solstícios e os equinócios constituam os momentos sazonais máximos (seus auges), estamos acostumados a considerar convencionalmente, e isto não deixa de ser uma continuidade da herança cultural dos “antigos”, cada uma destas quatro datas como o início da estação em questão. Constelações Embora para um astrônomo cada constelação seja uma região celeste poligonal, delimitada por coordenadas e portanto compreendendo tantas estrelas quantas os recursos técnicos de observação permitam detectar, na prática – e para o assim chamado “leigo” – a constelação clássica é apenas uma figura formada por algumas estrelas mais representativas. Dada a nossa “subserviência austral”, o aparato didático-pedagógico nos chegou – e ainda chega – do hemisfério Norte: não só métodos mas, acima de tudo, livros e outros recursos equivalentes (mais recentemente filmes, vídeos e o universo computacional). Até poucos anos passados estudava-se zoologia, tanto no Rio Grande do Sul como no Brasil em geral, através da anatomia e modo de vida dos animais europeus (e eventualmente africanos). Na abordagem botânica eram
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mostradas árvores européias e norte-americanas. Livros destinados ao ensino fundamental e ao ensino médio (primeiro e segundo graus) estavam repletos disso e alguns ainda trazem reminiscências. Com a astronomia não era diferente. Quando os alunos de Ciências e de Geografia eram confrontados com referências às constelações, livros (bem como os próprios professores) lhes apresentavam um belo e clássico exemplo: a Ursa Menor com Polaris, a estrela polar. E as crianças pegavam os livros, com eventuais figuras (que eram raras), e ficavam noites olhando o céu e procurando. E isto é verídico! Naturalmente não encontravam nem a constelação nem a estrela polar, pois esqueceram (sic) de lhes dizer que elas não podiam ser vistas de nossas latitudes. E os ressentimentos contra as matérias e os professores, para não falar na própria obrigatoriedade daquele estudo, cresciam revoltando as crianças. Em compensação sabiam apenas que o Cruzeiro do Sul estava desenhado em viaturas (jipes, caminhões, tanques) do Exército – e em outros equipamentos das forças armadas – e também na bandeira nacional (em geral nem ali sabiam encontrá-lo). Localizá-lo no céu, então, era uma incógnita. E é tão simples quando sabemos para onde (e quando) olhar, pois o Cruzeiro do Sul representa uma constelação muito apropriada para fins de exemplificação; e é um grupamento austral. Embora integrado por grande número de estrelas, as fundamentais são em número de cinco. Estas cinco estrelas fundamentais estão a diferentes distâncias da Terra e também possuem distintas luminosidades. Os brilhos aparentes resultam do efeito do afastamento sobre a luminosidade real, a semelhança de uma lâmpada muito forte (intensa), que com o aumento da distância fica cada vez mais fraca (menos luminosa) para o observador (Vide figura 2 da Prancha V). Sua localização, no céu noturno, depende de três fatores: época do ano, horário e orientação. E o próprio nome já ajuda bastante: Cruzeiro do Sul.
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Se for março, por exemplo, estará pouco acima do horizonte sudeste, no início da noite, em posição quase horizontal (“deitada”). Em junho seu posicionamento é praticamente vertical, e bastante elevado, no alinhamento Sul. Já em setembro, no mesmo horário, estará acima do horizonte sudoeste. No mês de dezembro estaria em condição “rasante”, no Sul, só visível (e nem em sua totalidade) com um horizonte completamente desobstruído. As posições citadas são sempre para o início da noite, na época referida., ,. Entre o anoitecer e a madrugada a constelação percorre um arco, em sentido horário devido à rotação terrestre (esta anti-horária), assumindo algumas das posições citadas no decurso de uma mesma noite. Assim, em marco, estará acima do horizonte sudeste no início da noite, verticalmente a “meia-noite” e em deslocamento para sudoeste durante a madrugada. A estrela Alfa (Acrux, estrela de Magalhães), situada numa extremidade do braço maior do Cruzeiro do Sul, representa um recurso clássico de orientação. Uma extensão equivalente a quatro vezes e meia o comprimento do braço maior, direcionada pela referida estrela, praticamente define o pólo Sul celeste. A projeção deste, no horizonte, indica o Sul geográfico. Já Polaris, a estrela mais brilhante da Ursa Menor, quase coincide com o pólo celeste Norte (Vide Prancha V: figura 3). Mas também podemos ver numerosas outras constelações. Muitas delas os mesopotâmicos, os chineses, os indianos, os gregos e os egípcios (entre tantos povos) também viam. Curiosamente tantos nomes de constelações vêm do grego e tantas estrelas têm nomes de origem árabe. Aqui, naturalmente, cabe a clássica pergunta: – “Por quê”? Nossa herança cultural não é apenas o somatório das contribuições de muitas culturas, mas também o resultado da filtragem seletiva sofrida pela influência de cada uma sobre as anteriores.
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Graças à continuidade das buscas dos estudiosos surgem novas descobertas e, com elas, é ampliado o conhecimento do passado. Assim são redescobertos nomes de constelações (e estrelas) que possibilitam reconstituir uma linhagem seqüencial dos mesmos através de diferentes povos. Na prática, entretanto, são mantidas as designações convencionais para as 88 constelações oficiais (e para um grande número de estrelas mais representativas)
com ênfases greco-romanas
e árabes,
salvo para
constelações austrais externas. Fossem quais fossem os nomes dados, pelos diversos povos da antigüidade, o que eles viam no céu não era essencialmente diferente do que vemos hoje, em regiões equivalentes do planeta; naturalmente se consideradas observações não-instrumentais (sem recursos ópticos). E isto também requer alguns esclarecimentos. Instrumentos e técnicas cada vez mais sofisticados permitem um conhecimento igualmente crescente do universo detectável. Sabemos que existem estrelas mais próximas e outras mais afastadas, e possuímos recursos para determinar as medidas correspondentes. Só que isto não vale para o observador comum. Todos os pontos luminosos que vemos no céu parecem igualmente longínquos. Somos tão impotentes quanto nossos ancestrais para determinar as distâncias das estrelas simplesmente olhando para elas. E se, numa primeira impressão, julgássemos as estrelas menos luminosas como as mais afastadas, estaríamos incorrendo num grande erro; nem todas têm o mesmo brilho real. Qualquer indivíduo, de capacidade visual regular, pode avaliar distâncias, ao menos aproximadamente. Isto se o objeto em questão não estiver muito longe, pois existe um limite; e as estrelas são demasiado remotas. Para corpos razoavelmente próximos recorremos aos princípios mais elementares da perspectiva, dentre os quais sobressaem três critérios práticos: cor, tamanho e ângulo de observação.
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Árvores próximas usualmente apresentam um verde intenso, mas quando afastadas, como por exemplo a vegetação de um morro, tendem – com ele – para tonalidades azuis. Tudo porque a transparência do ar é uma questão de grau; maior distância, no caso, implica numa maior quantidade de ar interposto. Por outro lado estamos acostumados a constatar que se um objeto, por estar próximo e “grande” (dentro de determinado parâmetro), parecerá pequeno quando distante. Mas mais eficiente que estes dois métodos é a nossa visão binocular: graças a posição frontal dos olhos, e ao seu afastamento, vemos cada objeto – simultaneamente – de duas orientações. Assim tomamos conhecimento tanto da sua tridimensionalidade como de sua distância. Mas isto também traz um sério inconveniente: quanto major for o afastamento de um determinado corpo (objeto), menos acurada será a precisão de avaliação da medida da distância. As estrelas estão tão distanciadas que escapam à nossa capacidade ordinária de reconhecer seu afastamento efetivo. Parecem todas pontos igualmente distantes e, conseqüentemente, pontos presos à superfície de uma calota contínua: a abóbada celeste. E esta ilusão que temos, ao olhar o céu noturno, não é nada diferente daquela de nossos ancestrais: “o céu real dos antigos”. Com sua incomensurável diversidade as nuvens podem sugerir formas identificáveis com coisas que conhecemos e imaginamos. Por que não fazer o mesmo com grupos de estrelas? É natural que, ao longo da história da humanidade, os grupos de estrelas sugerissem as mais variadas coletâneas de imagens: de animais a objetos inanimados, de homens a heróis e a deuses. Se por um lado os navegadores, que vieram para o Sul, viram no céu o clássico símbolo cristão (uma cruz), seu reconhecimento e divulgação com a constelação ocorreu em 1604 graças à Uranometrie de Johannes Bayer. Entretanto as quatro estrelas que formam as extremidades dos braços da cruz já eram conhecidas bem antes disto. Cláudio Ptolomeu, que viveu entre
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os anos 90 e 160 da “nossa era” (d.C.), já as incluíra em seu catálogo de estrelas do ALMAGESTO. Ali constavam como fazendo parte da constelação do Centauro. Para os romanos de dois milênios passados constituíam a “Trono de César”. Sua observação, nas épocas referidas, era possível desde a latitude de Alexandria, embora numa posição muito próxima ao horizonte e par pouco tempo durante o decurso da noite. A precessão equinocial não mais permite vê, em tais regiões, mas houve épocas passadas em que isto foi possível. Trono para uns, uma parte do Centauro para outros, uma cruz na interpretação convencional atual, esta constelação também foi vista configurada em outras imagens. Neste enfoque as constelações clássicas nada mais são que figuras, usualmente imaginárias e propostas ao longo da história da humanidade, as quais aceitamos convencionalmente. Uma típica exemplificação é encontrada nas zodiacais, a seguir relacionadas através de alguns grupos comparativos.
Bastante curiosa torna-se a comparação se acrescentarmos a visão suméria do “UL.HE” (o “Brilhante Rebanho”), demonstrativo não só do elevado
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grau de afinidade como – sobretudo – do caráter alicerçante da herança mesopotâmica perpetuada.
No confronto da constelação como abrangência de uma determinada região celeste, com o conceito clássico da figura formada por estrelas, surgem componentes que os assim chamados “antigos” desconheciam, salvo no caso de poucas exceções (e sem a identificação da sua natureza): os “corpos nebulares”. Com o advento dos primeiros telescópios foi constatado um fato notável: o número das estrelas – aqueles pontos luminosos no céu – era efetivamente muito maior. Quanto mais sofisticados os instrumentos, maior a quantidade de astros descobertos. Além de pontos luminosos também foram detectadas pequenas manchas, de diversas configurações, as nebulosas e galáxias. Para os primeiros observadores instrumentais do céu não havia diferenças em suas constituições; aquelas minúsculas manchas pareciam todas iguais. As resoluções crescentes, de telescópios cada vez mais potentes, acabaram mostrando que havia diferenças marcantes. Algumas daquelas manchas representavam concentrações de gases e foram especificamente designadas nébulas ou nebulosas. Os imensos aglomerados
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de estrelas, ao contrário, passaram a receber uma atenção especial; tratava-se das galáxias propriamente ditas. Por outro lado foi constatado que, em torno de alguns planetas, circulavam corpos menores, os quais passaram a ser conhecidos por satélites. O Universo se afigurava muito mais amplo e sobretudo complexo. Só que nada disto os “antigos” sabiam (ou supõe-se que não soubessem). Sua visão do Universo, bem mais restrita, não era maior que a de qualquer “humano” que hoje olha o céu com seus únicos recursos naturais: os olhos. Mas aquilo que viam, e tentavam explicar, deixaram em seus registros. O legado e sua transmissão Um vínculo do passado ao presente O conhecimento da origem e evolução das estrelas, da natureza das galáxias e nebulosas, das distâncias dos astros, das características planetárias e tantos outros tópicos astronômicos, são o fruto de descobertas ocorridas no século XX, sobretudo nas suas últimas décadas. Mas aquilo que podemos observar no céu visualmente, isto é, sem os recursos ópticos da telescopia, era conhecido em séculos e milênios passados por todos os povos do planeta. As estrelas, alguns planetas (Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno), cometas, meteoros e – sobretudo – a Lua e o Sol, eram tão ou mais familiares para os povos da antigüidade quanto para as pessoas nos dias atuais. Uma atmosfera menos poluída, em especial pela luz, não afetava tanto a observação do céu em épocas mais remotas. Só condições atmosféricas adversas, tal como um céu encoberto por nuvens, dificultavam, mas isto obviamente não mudou. Cada grupo humano, independentemente da sua dita “primitividade”, observou o céu visível da região que habitava. Deu nomes a algumas estrelas, criou constelações, viu que a Lua e o Sol, bem como alguns pontos luminosos em
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particular (os planetas) tinham peculiaridades, aprendeu a associar a configuração do céu com as estações do ano e tantas outras coisas mais. Muito diferente do homem dito moderno, que só raramente – se alguma vez – olha o céu. Dependendo do grau de propensão mística de cada povo, e particularmente do poder inerente a certas castas sacerdotais (ou eventuais “gurus”), o conhecimento dos astros foi vinculado – em maior ou menor grau – com enfoques religiosos. O quanto tal conhecimento era conveniente, do ponto de vista político, dependia do grau de intimidade – e benefícios mútuos – dos governantes e religiosos. Afinal o conhecimento da previsão das estações e da periodicidade lunar, por exemplo, possibilitava a confecção de calendários com épocas de plantio, colheitas e outras atividades; com a conseqüência óbvia das coletas de impostos correspondentes. E se isto ocorreu na Mesopotâmia e em toda a Europa, igualmente ocorreu no Japão, na Índia, na África (da qual apenas a parte representada pelo Egito esteve diretamente vinculada a “nossa” herança cultural), na Austrália, nas Américas e em quaisquer formações insulares habitadas. Apesar de sabermos algumas coisas das tradições e dos padrões culturais de certos povos geograficamente mais “distantes”, como os chineses ainda os conservam, até eles aderiram (em grande escala) a uniformização decorrente da recente “imposição ocidental”. É curioso lembrar que, sob a égide da Igreja Católica Apostólica Romana foram propostas, numa carta celeste específica, as constelações cristãs: hoje elas pertencem à História. Eventualmente
chegamos
a
conhecer
constelações
criadas
e
denominadas por povos afastados da “nossa” linha de evolução cultural tradicional. A relevância destes povos, igualmente participantes dos primórdios da escalada cultural, não é expressiva; suas contribuições originais foram ignoradas a favor de outras e portanto não chegaram a influir no contexto global. Constituem meras “temáticas de pesquisas” para ampliação da erudição
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repousando, após concluídas e caso o sejam, na inglória solidão das prateleiras. Ocasionalmente chegam a ser consultadas para o deleite de uns poucos intelectuais – ou curiosos – interessados. O que permanece representa apenas uma fração do conhecimento humano antigo, uma versão delineada pela sucessão dos legados da Mesopotâmia e do Egito, através dos gregos (ou eventuais outros povos vizinhos) e romanos, até nossos dias. Contudo tal legado do passado, embora fragmentado, chegou até nós. E chegou pelos registros em pergaminhos, papiros, pinturas, esculturas e, sobretudo, em um material que resistiu particularmente à ação cronológica: as placas de argila. Para nossa satisfação, sem querer desmerecer as sofisticações da moderna tecnologia, as documentações mais antigas feitas em placas de argila são, invariavelmente, as mais conservadas, e isto por milênios. Que fita magnética duraria tanto?
Necessidade a procedimentos de registros No cotidiano deste final de século, bem como do próprio milênio, convivemos com livros, revistas, jornais e tantos outros recursos de divulgação. Por falar em séculos e milênios, o que também é válido para décadas, um pequeno aparte. Apesar do que é propalado por apressados antecipadores, alardeando que a última década, o último século e também o presente milênio do qual fazem parte, terminarão no dia 31 de dezembro de 1999 (31-12-1999), isto não é matematicamente correto. Uma década é concluída ao final de dez anos, um século aos cem anos e um milênio em mil anos. Assim como um cento de laranjas não é formado por 99 frutos, o século não é composto por 99 anos.
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O novo milênio, efetivamente, começará no primeiro dia do primeiro mês do ano 2001, e não do ano dois mil. Este último, na verdade, seria um término e não um começo. Afinal a primeira década, o primeiro século e o primeiro milênio (do calendário convencional) começaram no primeiro dia e no primeiro mês do primeiro ano: O ANO UM. Nosso século (o século atual) começou na data de primeiro de janeiro de 1901 (1º-1-1901), pois 31 de dezembro de 1900 (31-12-1900) – e NÃO 1899 – foi o último dia do século anterior. Mas como a temática não é esta, voltemos ao assunto original. A familiaridade com letras, sílabas, palavras e frases, torna a leitura um procedimento
condicionado
e
corriqueiro;
obviamente
para
um
indiví-
duo alfabetizado. Mas nem todos os povos usam, ou usaram no passado, palavras compostas por letras. As primeiras tentativas para o registro inteligível de dados, que depois poderiam ser compreendidos pelo próprio indivíduo ou por outros, constaram de simples símbolos representativos de seres vivos, de objetos ou de eventos. Talvez não nos apercebamos da amplitude e do significado deste tipo de representação mas, mesmo na atualidade, ela é extremamente difundida. Embora não constituam um procedimento regular de “escrita e leitura”, tais símbolos gráficos povoam um mundo praticamente independente; uma espécie de “universo paralelo da comunicação”. Alguns destes símbolos nos são ensinados, enquanto outros – fora do nosso âmbito social, profissional ou de simples familiaridade – acabam sendo interpretados através da consulta a referências específicas –, por intuição ou pela simples associação com coisas ou idéias do cotidiano. Incessantemente deparamos com sinais de trânsito, placas alertando para alta voltagem ou existência de cães, conclamações para respeito a gramados, indicadores de sanitários masculinos e femininos, orientações para setores especializados em lojas de departamentos e
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supermercados, bem como um número infindável (pois continua aumentando) de outros. E isto sem esquecer o fantástico universo das siglas. Foi com meros símbolos, muitas vezes estilizados, que nossos antepassados mais remotos deram início a trilha de seus registros e, com eles, a elaboração de um fantástico acervo documental; o qual não deixou de ser uma “mensagem para o futuro”. Gradualmente vieram as palavras propriamente ditas, as simplificações de caráter silábico e, finalmente, os alfabetos propriamente ditos. Reconstruir
a
abrangência
global
dos
acontecimentos,
num
seqüenciamento procedente das remotas fontes mesopotâmicas, até o mundo atual, seria uma tarefa praticamente impossível. Através de uma trilha simplificada, ressaltando apenas os fatos mais marcantes, será apresentado um sumário dos eventos em questão. Partindo da “escrita sintética”, ou de “pictogramas”, chegamos à “escrita analítica”. Esta, representada por figurações de palavras isoladas, finalmente dá lugar à codificação escrita de sons, inicialmente sílabas e, por último, um alfabeto propriamente dito. A primeira categoria, subentendida como a da “escrita sintética”, compreende figuras representando fatos ou idéias. Inclui pinturas espeleológicas (em paredes de cavernas), pinturas sobre couros ou, até mesmo, gravações em ossos, marfim e outros materiais rígidos. Tais representações geralmente envolvem acontecimentos, mostrados como se fossem verdadeiras estórias: um “relato” de caca, de uma batalha, de um sacrifício ou outros. Equivalem perfeitamente aos pictogramas atuais de estórias em quadrinhos (ou “tirinhas”) mudas, isto é, sem palavras. Na
Suméria,
no
Egito
e
na
China,
como
exemplos
bem
representativos, encontramos os casos clássicos da “escrita analítica” e suas representações figuradas de objetos, corpos, órgãos ou até simbolismos restritos de idéias abstratas.
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Os dois passos seguintes consistiram na busca de símbolos abreviados para sons ou grupos de sons (a “escrita fonética” propriamente dita) e o alfabeto com letras individualizadas, oriundas da decomposição dos elementos silábicos. Para chegar a esta sofisticação foi necessário decompor as palavras, antes representadas inteiras por figuras específicas, em sílabas e estas, finalmente, em letras. Divergiam os métodos e os materiais empregados, para portarem os registros, mas o objetivo persistia. Os sumérios, como os mesopotâmios por extensão, usavam pequenas placas de argila imprimindo nelas séries de marcas com o auxílio de hastes de juncos. Para aumentar a precisão destas impressões os juncos eram cortados de um modo peculiar, em cunha, o que motivou a designação de cuneiforme para o tipo de marca deixada na placa de argila ainda mole. A secagem, primordialmente natural e depois por “cozimento”, assegurava o endurecimento responsável pela grande longevidade desse material. Já na mesma época surgiram os “selos cilíndricos”, pequenas peças (freqüentemente de natureza pétrea) com aproximadamente 1,5 cm de diâmetro e 2,5 cm de comprimento, dotadas de uma perfuração longitudinal para alojar um eixo. Sua superfície, esculpida em baixo relevo, equivale aos nossos atuais carimbos, porém com caráter rotativo. Ao ser rolado sobre uma placa de argila, ainda mole, imprimia nela seu desenho em relevo. O uso de tais “selos” era prerrogativa dos poderosos, usualmente reis ou dirigentes de escalão equivalente. Também eram usados outros tipos de “selos”, menos sofisticados, de formato piramidal e em formato de telhado de “duas águas”. Os egípcios, por seu lado, chegaram à sofisticação do desenvolvimento de três escritas fundamentais, conforme sua destinação: a demótica ou popular, a hierática ou hieroglífica cursiva (para textos religiosos) e a monumental ou hieroglífica pictórica.
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A introdução do alfabeto fonético é atribuída, com maior probabilidade, aos cananeus, o que teria ocorrido por volta do 1600 a.C. Na sua representação, baseada em hieróglifos, cada símbolo indicava o som da consoante referencial. A introdução das vogais chega, sobretudo com os gregos, no primeiro milênio antes de Cristo. Em termos cronológicos mais específicos, temos a origem da “escrita” propriamente dita datando de quase seis milênios passados, isto é, cerca de 3300 a 3500 a.C. para os sumérios e seguramente também – conforme dados mais recentes – para os egípcios. Aliás é a assim chamada “invenção da escrita” que define o início da história das civilizações. Na cultura egípcia, convém salientar, a alfabetização era restrita mas a “nobreza” era instruída: todos tinham a obrigação de saber “ler e escrever”. Conseqüentemente os nobres, ao menos em certa etapa da sua vida, tinham alguma função de escriba. A escrita egípcia, também é interessante lembrar, era efetivada em colunas verticais e da direita para a esquerda; do mesmo modo que a cuneiforme mesopotâmica original. Mas a criação e o aprimoramento progressivo da escrita, bem como seu aprendizado pelas sucessivas gerações, não ocorreu em função da astronomia que, na época, era de um caráter astrológico bem mais marcante; não subordinada à dicotomia atual. O termo astrologia, hoje empregado num sentido mais “místico” seria, na verdade e por sua própria natureza etimológica, o estudo dos astros numa abrangência global, portanto a palavra certa para designar a ciência em questão. Foi a preocupação dos governantes com seu futuro, julgando estar o mesmo associado a uma predestinação inscrita nos astros e seu comportamento, que levou a alguns dos registros. A própria associação dos eventos celestes com possíveis “divindades” mereceu especial destaque nos registros mesopotâmicos, como é o caso da divisão do céu em vias: a Via de Anu correspondente à faixa zodiacal, a Via de
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Ea representada pelo céu austral e a Via de Enlil que seria o céu boreal. Algo similar é encontrado nas lutas envolvendo Marduk, Tiamat e Kingu, possíveis alegorias de um estágio da evolução do Sistema Solar. As controvérsias de interpretações atingem um verdadeiro clímax com a gravação oriunda de um selo cilíndrico com 4.500 anos, registrada como VA 243 e depositada no acervo do Museu Estatal de “Berlim Oriental”. Mostra os planetas
Urano,
Neptuno
e
Plutão
(desconhecidos
na
época
pela
impossibilidade – ? – de observação instrumental). Como alguns eventos celestes são cíclicos (por exemplo as fases da Lua) e outros praticamente imprevisíveis (ao menos naquelas épocas) como um meteoro ou o aparecimento de um cometa, e estando subjacente a tudo isto a incansável busca do homem em antecipar seu futuro, o enfoque astrológico ganhou mais e mais poder; o que persiste até nossos dias. Também a definição das estações e da duração efetiva do ano, importantes para controle de tributações, mereceram um grande destaque. Assim os registros correspondentes não foram motivados pelo puro interesse astronômico mas sim pelo seu uso prático e sua possível importância transcendental. Portanto é natural que a ocorrência de eventuais dados de caráter astronômico seja simplesmente entremeada a toda uma avalanche de registros “administrativos”. Independentemente do enfoque sob o qual os astros eram estudados, algo muito importante não pode ser ignorado. A observação do céu, e sobretudo a procura de um significado para toda aquela magnificência, parece ter sido uma das fascinações mais antigas da humanidade. Os materiais sobre os quais foram feitos os registros variavam de acordo com as regiões e seus recursos naturais. Na Mesopotâmia a opção mais prática foi a das placas de argila e as informações de caráter astronômico nelas contidas são de caráter mais técnico. No Egito a escolha recaiu sobre o papiro, porém os sacerdotes mostravam pouco interesse pelo lado técnico do estudo do céu; apenas o mínimo necessário para definir calendários, o interesse maior estava voltado para o destino do homem após a morte.
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O conteúdo temático dos registros é o mais diversificado possível, mas a finalidade primária da escrita era de caráter eminentemente burocrático. Um fato que sobressai, em toda a documentação de placas e papiros, é a existência de numerosos registros (sobretudo nas placas de argila) representados por meras listagens. Tais relações, compreendendo diferentes categorias de palavras, como por exemplo listagens de ensaio com nomes de cidades, de profissões ou de pássaros (entre tantas outras), possivelmente eram empregadas como recurso de ensino e de aprendizado. Os “estudantes”, se assim chamarmos os escribas aprendizes, usavam tais listas para exercícios de cópias. Outras listagens, como de grãos, gado, cerveja e diferentes outros produtos, inclusive escravos, já representavam registros de propriedade, de estoques ou ainda “notas” de transações comerciais. Em ambos os casos, seja nas listagens para aprendizado seja nos registros de posse ou comércio, havia uma incipiente atividade que poderíamos considerar como sendo científica, ainda que preliminar, denotada na preocupação e no critério de ordenação: uma típica atividade classificatória. Há realmente um predomínio efetivo em termos de arquivamentos propriamente ditos, pouco relativamente as tecnologias da época ou relatos de “estórias”. Só ocorrem eventuais informes sobre as pessoas mais importantes: como, aliás, ao longo de toda a história da humanidade. Também é apropriado destacar que para estrelas e outras “formações” celestes, visíveis pelos antigos, sempre foram mais práticas as representações mediante figuras, em lugar de textos descritivos ou explicativos. Estes, entretanto, existem em grande quantidade, sobretudo na forma de listas de estrelas e constelações, incluindo seus posicionamentos. Outro fato documentado com muita antigüidade, para os sumérios em especial, é seu conhecimento matemático; aliás de grande importância para a arquitetura (por exemplo a dos zigurates – as pirâmides mesopotâmicas), para cálculos astronômicos e para tantos outros fins. De uma época que remonta a pelo menos dois mil anos antes de Cristo ficaram documentos incluíndo tabelas de
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multiplicação, cálculos potenciais de quadrados e cubos, raízes quadradas praticamente perfeitas, logaritmos em bases dois e dez e o uso de um valor pi (π) bastante correto. Além disto dispunham de equações lineares e equações de segundo grau, bem como cálculos de áreas e volumes para figuras geométricas. Também fundamentavam sua matemática numa base sexagesimal, o que ainda hoje empregamos em dois casos muito importantes da vida cotidiana: a divisão horária em minutos e segundos e os desdobramentos de ângulos também em minutos e segundos, porém angulares. A astronomia surgiu com o próprio despertar da humanidade. As primeiras criaturas humanas, pelo simples fato de olharem o mundo circundante, também depararam com as belas e intrigantes luzes do panorama celeste. Começaram simplesmente desenhando e pintando o que viam. Depois, tentando descrever e explicar, criaram estórias e plantaram as sementes de tantas e belas lendas. Interpretaram eventos e deixaram as provas documentais do que descobriram. Muitas coisas foram apagadas, na longa jornada da humanidade, por povos ou indivíduos levados a ocultar ou destruir o que outros fizeram; mas muitas também foram redescobertas, recuperadas e continuadas pela teimosia de outros que almejavam o conhecimento. Novas civilizações, novas mentes, novas maneiras de encarar o universo, incorporação dos benefícios de uma matemática de sofisticação crescente (e bem recentemente a tecnologia instrumental), expandiram a ciência dos conhecimentos do céu; embora surgida de uma forma originalmente intuitiva diante da impressão causada por aquela estonteante beleza percebida através dos olhos. Um esplendor visual para o leigo e para o profissional o qual associa, ao seu prazer de usufruir as belezas do céu, sua contribuição individual ao somatório do conhecimento acumulado no decurso dos milênios.
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O CONHECIMENTO GEOGRÁFICO: PRÁTICAS E TEORIAS IEDA BANDEIRA CASTRO
Tratar sobre a aplicação do conhecimento geográfico e suas diferentes teorias na IV Jornada de Estudos do Oriente Antigo: Origens do Ensino é, sem dúvida, um assunto delicado e instigante, pois todas as investigações sobre a origem da Geografia nos levaram a Grécia Antiga, portanto, nos conduzem a uma sociedade do “mundo ocidental”. Por outro lado, para visualizar as informações geográficas que esses povos possuíam teremos que analisar a sua práxis, fazendo uma relação com os diferentes fatos do cotidiano. Iniciaremos esta apresentação, com um pequeno resumo da evolução do pensamento geográfico, objetivando demonstrar que, desde os primórdios, o “fazer geográfico” constituiu uma realidade constante na vida das populações, mesmo que o homem não tivesse consciência disso. O conhecimento geográfico: evolução de suas práticas e teorias Apesar da Geografia ser uma ciência relativamente nova, se comparada com outros ramos do conhecimento humano, sua prática já aparece na pré-história, quando os grupos começaram a migrar para diferentes regiões, deixando marcas de sua presença e assimilando novos traços culturais. Partindo do centro de origem – provavelmente da África – o homem ultrapassou os grandes obstáculos da natureza, inclusive montanhas e mares, e ocupou
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terras nas mais variadas latitudes, povoando, no decorrer dos milênios, as áreas ecumênicas do Ártico até o extremo sul da América. Conforme Emile Bréhier, entre 12.000 a 3.000 a.C. ocorreu um povoamento relativamente rápido do Antigo Mundo (terras da Ásia, da África e da Europa), de tal maneira que no decurso do Mesolítico e do Neolítico, a população humana se decuplicou ou, talvez, tenha se centuplicado. Ao mesmo tempo, os homens despertaram para os fenômenos que ocorriam a sua volta, olhando-os, primeiramente, com curiosidade e, depois, utilizando as plantas e os animais, não sé como alimentos, mas também, como abrigo, transporte, instrumentos e medicamentos.
Figura 1 – Agricultura neolítica. Homens e mulheres, em território que é hoje alemão, usando arados, enxadas e esterroadores de ponta de pedra. (De H. F. Cleveland, “Our Prehistoric Ancestors”; segundo K. Schumacher). Fonte: Burns, 1989, p.18.
Desta maneira, foram se estruturando e organizando seus espaços que, apesar de serem diferenciados e apresentarem aspectos culturais próprios, não dispensavam a prática diária dos conhecimentos empíricos.
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Dos povos primitivos às grandes sociedades, do ocidente ao oriente, todos exerciam a práxis geográfica, conforme evidências deixadas em seus legados. Porém, até os gregos não encontramos nenhuma teoria geográfica. A observação do sol, da lua, das estrelas é um exemplo dessa afirmativa. Desde a época mais antiga, o céu sempre seduziu o homem, pois sua aparência, além de ser fonte para o imaginário, também servia de meio de orientação nos grandes deslocamentos. Foi descrito por vários sábios do Oriente Antigo, sem que fizessem interrogações sobre as causas dos fenômenos observados, colocando-os entre lendas, deuses e mitos. Os gregos foram os primeiros a estudar “os conhecimentos sobre a superfície da Terra”, criando o vocábulo Geografia para designá-los. Na Grécia Antiga foram construídos inúmeros trabalhos, alguns contendo idéias que, até hoje, nos surpreendem por suas deduções, tendo em vista as condições materiais e as tecnologias existentes na época. Mas, apesar disso, a geografia não se desvinculou das outras ciências, embora tenha deixado marcas em todos os estudos do espaço terrestre e de cosmologia. E esse andar continuou, século após século, passando por diferentes períodos da história da humanidade e por ciclos de evolução e de declínio do pensar geográfico. Mesmo conhecendo a forma da Terra e estudando suas dimensões, o homem demorou muito tempo para se afastar do Mar Mediterrâneo, o que só foi efetivamente acontecer no período das grandes navegações. Assim, em contato com outras regiões, o europeu começou a se interessar pela constituição do seu planeta e, mais tarde, a estudar a origem e formação do mesmo, apesar de autores árabes já discutirem o assunto desde o século X e existirem teorias sobre a formação dos continentes a partir do século XII. Só no final da Idade Moderna é que os conhecimentos geográficos começaram a apresentar condições de se emanciparem, tendo em vista, entre
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outros fatores, o momento histórico, com as transformações decorrentes da 1ª Revolução Industrial e a ascensão do capitalismo. Os precursores da geografia científica foram dois autores prussianos. Alexandre von Humboldt (1769-1859) e Karl Ritter (1779-1859), professores da universidade alemã, cujas obras bastante divulgadas, além de constituírem a base da Geografia Tradicional, estão nas formulações geográficas posteriores. Porém, a disciplina só surgiu como ciência no século seguinte, na Prússia, antes da Proclamação do Império Alemão em 1871, num contexto em que as questões do espaço eram discutidas e de fundamental importância para a ordem mundial que estava se formando. Também esse país foi o primeiro a instituir o ensino público obrigatório extensivo a todos cidadãos e a adotar a geografia escolar produzida nos centros universitários, que logo se expandiu para outras nações européias, como a França, a Inglaterra e a Itália, onde seu ensino “auxiliava” na constituição e no fortalecimento dos Estados. Na França começou a fazer parte de todas as séries do ensino básico, onde foram criadas, mais tarde, as cátedras e os Instituto de Geografia. Ainda no século XIX, surgiram a Escola Geográfica Alemã e a Francesa – baseadas, respectivamente, nas formulações de Frederico Ratzel e Paul Vidal de La Blache – cujos princípios atendiam aos interesses do país de origem e que, junto com seus desdobramentos, influenciariam inúmeros geógrafos nas diferentes partes do mundo. Como vemos, apesar de sua prática ser milenar, a Geografia só alcançará o status de ciência a partir de 1850. A partir daí, o pensamento geográfico começa a alçar vôos: primeiramente, apresenta conceitos prontos e descrições e, depois, parte para outras reflexões, com discussões que contestam, inclusive, o seu objeto de estudo. Nesse ínterim surge um movimento de renovação que dá origem à Geografia Moderna que, a partir de 1970, rompe definitivamente com a Tradicional.
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Em conseqüência, ocorrem várias mudanças no pensamento vigente que, além de abrirem novas perspectivas de análise e reflexão, oportunizam outras correntes mais sociais e atuantes, como a Crítica ou Radical que possui um conteúdo explícito, claramente identificado na afirmativa de Yves Lacoste: “a Geografia é uma prática social em relação à superfície terrestre.” E nesta superfície terrestre aparecem, inter-relacionados, os elementos da natureza e os aspectos sócioeconômicos, formando um todo único, o espaço geográfico, que constitui o espaço de existência do homem. Por sua vez, o conhecimento geográfico faz parte das atividades cotidianas das pessoas, estando presente, inclusive, no seu deslocamento diário, como da casa para o trabalho; do trabalho para a Universidade; da casa para o sítio ou para a praia. É o empirismo coexistindo com as reflexões e teorizações sobre a superfície da Terra, matriz dos estudos geográficos. Partindo dessas realidades, será possível demonstrar que os povos do Oriente Antigo e da Grécia possuíam e utilizavam, sob diferentes formas, o saber geográfico.
Oriente Antigo e as práticas geográficas Onde estava localizado o Oriente Antigo? Como os povos da Antigüidade utilizavam os conhecimentos geográficos? Elaboravam teorias sobre eles? Essas são algumas perguntas orientadoras que nos possibilitarão uma melhor procura dos fatos geográficos entre os povos do Oriente Antigo. Examinando as relações que o lugar mantém, procuraremos desvendar as práticas geográficas realizadas na Antigüidade Oriental, sempre levando em conta que a “Geografia ainda não existia”. É necessário salientar que há muitas discordâncias entre os estudiosos sobre a exata localização geográfica e os limites territoriais do Oriente Antigo, também denominado, por alguns, de Oriente Próximo e Oriente Médio. (Esta
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última expressão começou a ser usada com maior freqüência a partir da década de 1940, tendo um caráter mais geopolítico e militar e uma concepção cujo ponto de referência é a visão européia). O Oriente Médio atual, com uma área de quase 7,2 quilômetros quadrados, engloba países da porção ocidental da Ásia, do nordeste da África e a parte européia da Turquia, além de outros que estão diretamente envolvidos com a região, como o Egito, aí incluído por suas características culturais e raízes históricas. Portanto, se estende por terras de três continentes, pertencendo tanto ao mundo árabe quanto ao muçulmano. A posição geográfica tornou o Oriente Próximo, desde a Antigüidade, um local de passagem, o que propiciou influências de diferentes culturas e um verdadeiro mosaico de povos, sendo que alguns praticamente desapareceram, como os babilônios e os assírios. Mas, retornando à pergunta inicial. Mário Giordani escreve sobre a localização do Oriente Antigo: “Em nosso estudo daremos um sentido amplo à expressão «Próximo Oriente», compreendendo sob tal designação a extensa área que se enquadra, de um modo geral, entre os seguintes limites: o vale do Nilo, o Mediterrâneo Oriental, o Mar Negro, o Cáucaso, o Mar Cáspio, os rios do Turquestão, as montanhas do Afeganistão, o vale do Indo, o Golfo de Oman, o Golfo Pérsico e o Mar Vermelho. Dentro desses vastos limites podemos distinguir várias zonas distintas que foram cenários de importantes acontecimentos relacionados com as origens de nossa civilização: ao forte, uma zona de planaltos e de montanhas a qual abrange a Anatólia (Ásia Menor), a Armênia e o Irã; mais para o sul, encontramos o chamado „crescente fértil‟, constituído por uma faixa de terras produtivas que acompanha o litoral mediterrâneo desde a península de Suez e, descrevendo um semicírculo, dirige-se pelos vales dos rios Eufrates e Tigre até o Golfo Pérsico. As estepes da Síria, o deserto da Arábia e, finalmente, o vale do Nilo a perder-se no interior africano, completam o cenário geográfico” (Giordani, 1997, p. 48).
Nessa região, entre 5000 e 3000 a.C., surgiram duas grandes sociedades: a Egípcia que, com ressalvas para alguns períodos, sempre se constituiu no centro das atividades políticas e culturais do Oriente Antigo, e a Mesopotâmia, “região entre rios”, banhada pelos Tigre e Eufrates.
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O meio físico influenciou sobremaneira o modo de vida das populações dessas regiões, manifestando-se nas atividades socioeconômicas, assim como nos aspectos religioso, artístico e intelectual. Mesmo não se preocupando em conhecer as ciências da natureza por elas mesmas, possuíam noções de Astronomia, sendo que os egípcios observavam os astros de maneira menos sistemática e eficaz que os macedônios. O Egito Antigo tinha no Nilo sua “fonte de vida”. O rio propiciava a pesca, a agricultura e a pecuária; era meio de comunicação e de relações comerciais, assim como estava presente nas manifestações culturais do povo. Desde muito cedo, os sacerdotes-astrônomos perceberam que o nascimento helíaco da estrela Sírio (Sothis) coincidia com as cheias que abençoavam suas terras. Todo ano, em julho, quando apareciam as “águas da renovação”, Sírio “levantava-se no horizonte ao mesmo tempo que o sol”, sendo que entre um acontecimento e outro semelhante passavam 365 dias. Essa constatação propiciou a criação de um calendário, com o ano dividido em 12 meses de trinta dias cada um, a que agregavam mais cinco dias intercalados, num total de 365 dias. Os meses eram divididos em três semanas de dez dias e estes eram divididos em dois tempos de 12 horas, um para o dia e outro para a noite. O ano, normalmente, era dividido em três períodos agrícolas, de quatro meses cada um: inverno, verão e outono, época em que ocorria a inundação que deveria ser controlada para que trouxesse os benefícios esperados, pois a terra, preparada pelas cheias, propiciava trabalho e abundância de rendimentos. Porém, essa mesma água poderia recobrir a região, transformando cada aldeia numa ilhota, com prejuízos para o camponês. Desta forma, empregando diferentes sistemas para conduzir a água do Nilo ou dos canais mais próximos para suas terras, os agricultores começaram
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a drenar as áreas alagadiças e a desenvolver técnicas de irrigação e de construção de diques e canais, bem como habilidades para repará-los.
Figura 2 – Colheita de papiro. Fonte: Giordani, 1997, p. 24.
Além de terem noções de agrimensura, também exploravam o ouro, a prata, cobre, esmeraldas, turquesas, lápis-lazúli, topázios, recursos minerais existentes principalmente nos desertos (Arábia e da Núbia), no Sinai e no entorno. Essas matérias primas exigiam árduos esforços para a escavação de poços ou para a extração dos enormes blocos de minérios, portanto, exigiam conhecimento do solo e do relevo a serem trabalhados. Os arquitetos e engenheiros deveriam conhecer o espaço físico onde seriam edificadas as casas, templos e pirâmides, sendo que os egípcios já se preocupavam com o tempo meteorológico, medindo, inclusive, a velocidade dos ventos para prever os furacões. Isto significa para nós que, além de observarem as formas do relevo e os tipos de solo, também consideravam outros elementos estudados pela Geografia, como a direção dos ventos, a incidência solar e o senso de orientação. Entretanto, é difícil elaborar uma idéia completa e precisa dos conhecimentos geográficos no Egito, pela escassez de dados sobre o assunto.
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Otto Neubert descrevendo a pirâmide tumular de Quéops tece o seguinte comentário: “A planta da pirâmide representa um quadrado cujos lados estão exatamente sobre os eixos leste-oeste e norte-sul. É digno de atenção também a sua localização em relação aos graus de longitude e latitude que cortam o monumento, os quais, segundo o mapa, abrangem maior área do que quaisquer outros ângulos. Foi por acaso ou intencionalmente que se determinou aquele ponto como o „Meio‟ da superfície terrestre? Não o sabemos e deixamos o julgamento às suposições. Mas, se for verdadeira a tese de que Quéops tinha conhecimento da situação geográfica, então pode-se supor que os egípcios eram, há mais de 5.000 anos, melhores geógrafos do que os homens da época de Colombo!” (Neubert, 1962, p. 89).
As pirâmides, voltadas para o norte, mesmo apresentando um erro insignificante de orientação, demonstram que os egípcios conheciam o norte verdadeiro, apesar da bússola ter sido inventada pelos chineses bem mais tarde. Todos os seus conhecimentos estavam impregnados de fatos religiosos e de muito misticismo, o que contribuiu para que não avançassem na compreensão do Universo. Apesar de possuírem um dos mais avançados calendários da Antigüidade e uma bagagem de práticas geográficas, tinham uma visão mais voltada para a religião do que para a ciência. Assim, o céu era uma imensa deusa, Nut, que cobria a Terra; a estrela Sothis identificava a Ísis; o Sol (deus Rá) cruzava o céu num barco a remo, enquanto que na agricultura apareciam o deus-Nilo e o deus-grão. Os pensadores da Grécia, apoiados nessas interpretações, não consideravam os trabalhos como “científicos”, pois viam neles a necessidade da coleta e do exame atento, para que pudessem descobrir o que era verdadeiramente real. Contudo, a sabedoria do Oriente Antigo, principalmente do mundo egípcio, fascinava os gregos. Conta a tradição, que o filósofo Platão, os matemáticos Tales e Pitágoras, o legislador Sólon, assim como outros notáveis, estiveram no Egito,
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colhendo ensinamentos dos sacerdotes, apesar do empirismo e da forma que apresentavam os fatos, não diferenciando o real da fantasia. No séc. V a.C., Heródoto, nos Livros II e III da obra História, apresenta inúmeras descrições do espaço físico e da cultura do Egito que, durante muito tempo, se constituíram na principal fonte de informações sobre essa região. Denominado o “Pai da História”, muitos o consideraram também o “Pai da Geografia” por ter colocado os acontecimentos históricos dentro de um contexto geográfico. Uma de suas contribuições ao conhecimento da região se refere ao Nilo: observando atentamente o solo negro existente ao longo do rio, associou-o aos sedimentos depositados por suas águas. Também constatou que a planície inundável com seu solo característico se prolongava até o mar, concluindo que este fato decorria do deposito de material fluvial. Além
disso,
as
águas
ao
desembocarem
no
Mediterrâneo
apresentavam um aspecto diferente dos demais rios conhecidos, pois o terreno aluviônico tinha uma configuração triangular que lembrava a quarta letra do alfabeto grego (delta). Assim, a denominação dada ao tipo Nilo se estendeu a todo rio que tem a foz semelhante à dele. É o caso de outros deltas famosos como o do Ganges, o do Ródano e o do Zambeze, além de dois brasileiros, o do Paraíba do Sul e do Parnaíba. Heródoto também escreveu sobre outros povos da Antigüidade, inclusive sobre os babilônios e a influência que tiveram sobre os gregos.
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Figura 3 – Delta do rio Nilo. Fonte: Dicionário de Geografia – Globo, 1970.
Na obra O Vale dos Reis, Otto Neubert transcreve um relato de Heródoto: “Muitos egípcios ganhavam do rei um pedaço de terra e pagavam impostos. Mas, se as enchentes do Nilo retiravam todos os anos um pouco de terra de sua borda, vinham outras pessoas para inspecionar e fazer medições, a fim de acertar os impostos. Parece-me que os egípcios inventaram a agrimensura, que depois passou para a Grécia. Porém foi dos babilônios que os gregos aprenderam a conhecer o passar das estações do ano, o relógio de sob e as doze partes do dia” (Neubert, 1962, p. 176).
Como se verifica, a Babilônia forneceu elementos para a ciência em seu estado nascente, onde vários povos como os sumérios, semitas, hititas e cassitas deixaram suas contribuições, algumas relacionadas com o geográfico. Os mesopotâmios ultrapassaram os egípcios em muitos setores, apresentando originalidades nos campos religioso, intelectual e artístico. Entretanto, seu maior interesse estava ligado à prática da astrologia que, de uma maneira ou outra, os aproximava da astronomia. Estudavam as estrelas, seu movimento aparente, o nascer e pôr-do-sol, determinando eclípticas e um calendário lunar, que fazia coincidir o início do mês com o aparecimento da lua nova. Há dois mil anos antes de Cristo, em Nínive e na Babilônia – regiões do atual Iraque – existiam monges que se dedicavam à observação dos astros.
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Contemplavam o firmamento instalados nos zigurates, templos em forma de pirâmide escalonada, cujas torres funcionavam como observatórios. A
agricultura desempenhava importante papel na coletividade:
possuíam um cadastro da terra e suas divisões, assim como usavam canais de irrigação ou de drenagem, o que demonstra que conheciam seu meio ambiente. Tinham intensas atividades econômicas que deram origem a diferentes organizações do setor terciário, como a comercial e a bancária. Os rios, principalmente o Eufrates, permitiam que alcançassem regiões além de suas fronteiras. Assim, mantinham relações com lugares longínquos, como o Vale do Indo, o Cáucaso ou o ocidente da Ásia Menor, pois não eram fechados em si mesmos. Os sumérios preparavam listas geográficas para os seus escribas e utilizavam informações com os nomes dos lugares com os quais mantinham comércio. Também anotavam criteriosamente os itinerários e as distâncias, além de terem plantas dos monumentos, dos canais e das cidades. Tais conhecimentos propiciaram a elaboração de mapas, dois dos quais chegaram até nossa época: um do mundo e outro da cidade de Nipur, cuja precisão auxiliou os arqueólogos na escavação da região, no século XIX. O mapa-múndi, com descrição em escrita cuneiforme, contém a Babilônia e alguns territórios que são representados por uma área circular envolvida pelo Golfo Pérsico constituindo um dos primeiros “mapas circulares” que, mais tarde, foram copiados pelos árabes e europeus da Idade Média. Para Ronan, os mesopotâmios, ao representarem o próprio país e seus vizinhos mais próximos, demonstravam uma visão da Terra plana com os oceanos em suas extremidades, descrevendo o homem sob a cúpula celeste. Porém, o mapa mais antigo que se conhece, com idade calculada entre 2.500 e 3.000 anos a.C., foi feito numa placa de barro cozido onde consta o vale de um rio, provavelmente o Eufrates, entre os montes Zagros e o Líbano. O norte, o leste e o oeste estão indicados por círculos com
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descrições, o que demonstra que utilizavam os pontos cardeais, como os mapas atuais. Encontrado nas ruínas da cidade de Ga-Sur, a uns 300 quilômetros ao norte da Babilônia, atualmente encontra-se no Museu Semítico da Universidade de Harvard, nos Estados Unidos.
Figura 4 – Mapa mais antigo do mundo. Fonte: Raisz, 1969, p. 14.
A Mesopotâmia também exerceu influência sobre os trabalhos científicos de outras partes do mundo, sendo que as denominações dadas pelos gregos aos metais, as constelações, aos instrumentos musicais, aos pesos e medidas são traduções, às vezes transcrições, de nomes babilônios. Entretanto, parece que não ultrapassaram o estágio do empirismo, pois não investigavam as causas dos fatos minuciosamente observados; sua “ciência” não apresentava grandes abstrações e organização lógica. Outros povos do Oriente Antigo, como os da Fenícia e da Lídia, só para citar mais dois, também possuíam vida econômica própria, inclusive com comércio externo; dependiam dos rios e do clima local para realizarem suas
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atividades básicas; viviam em áreas rurais ou em cidades estruturadas; utilizavam os astros como orientação; empregavam diferentes elementos da paisagem natural nas suas lides; portanto, tinham um conhecimento geográfico adquirido na prática da vida. Porém, não teorizavam sobre eles, assim como não relacionavam os procedimentos relativos aos sistemas naturais ou sócioeconômicos com um novo campo específico de estudo, no caso, a Geografia. O mesmo não aconteceu entre os gregos.
Evolução do pensamento geográfico entre os gregos da Antigüidade A Grécia, diferentemente do Oriente Antigo, propiciou o aparecimento de um pensamento filosófico que procurava explicar o mundo sem utilizar mitos. Mas isto não ocorreu de repente, houve todo um processo de transformação das concepções mitológicas e religiosas. A própria visão da cosmologia foi se modificando entre os gregos. Na antiga visão, a Terra (deusa Gaia ou Géia) era uma superfície plana semelhante a um prato ou disco, com exceção dos lugares que apresentavam irregularidades como as elevações montanhosas, enquanto que o céu era a metade de uma esfera oca. Entre eles existiam duas regiões: a mais baixa era a região do ar e das brumas; a segunda, a do ar superior e brilhante, azul, que é visto de dia (Éter). Embaixo da Terra havia uma região sem luz (Tartaros) e, em volta dela, três camadas da noite (Nyx). Também continha todas as regiões áridas, cercadas por uma espécie de rio circular, o oceano, que ia até a orla onde o céu e a Terra se encontram. Aristóteles de Estagira, no séc. IV a.C., expôs vários argumentos para demonstrar que a Terra era redonda, como o representado na figura 5.
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Porém, entre os séculos IX e VI a.C. ocorreram profundas mudanças socioculturais na Grécia, transformações que originaram outras concepções políticas, religiosas, filosóficas e científicas, com novos valores e uma sociedade mais aberta. Os mitos são criticados, aparecendo descrições intermediárias entre o imaginário e as idéias filosóficas, como a Teogenia, de Hesíodo (sec. VIII a.C.) que, em alguns pontos, utiliza uma concepção semelhante à dos babilônios.
Figura 5 – Um dos argumentos de Aristóteles para mostrar que a Terra é redonda. Se a Terra fosse plana (A), um navio que se afastasse no mar seria visto inteiro, cada vez menor, aproximando-se sempre do horizonte (B); mas, por causa da curvatura da Terra (C), a parte debaixo do navio deixa de ser vista primeiro e parece que ele já passou para o outro lado do horizonte (D). Fonte: Martins, 1994, p. 75.
Os trabalhos científicos relacionados com o nosso planeta surgiram, no século VI a.C., na costa oeste da Turquia, em Mileto, berço de uma linha de pensamento que teve inúmeros seguidores, mesmo após a cidade ter sido destruída por invasores. Tales de Mileto e considerado um dos primeiros a
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tentar responder com explicações científicas, sem utilizar o sobrenatural, à pergunta: “De que é feito o Universo?”. Como os demais filósofos pré-socráticos, ensinava que todas as coisas teriam sua origem numa única matéria comum, o “princípio” (arche). Tales afirmava que a água seria o princípio de todas as coisas materiais, tendo por base dois fatos: todos os seres vivos necessitam de umidade para viver; todos os seres vivos têm sua origem na umidade (inclusive o sêmen e as plantas). Dentro desse raciocínio, imaginava a Terra plana, como se fosse uma imensa bolacha, flutuando sobre a água. Pitágoras, em torno de 530 a.C., apresentou seus estudos sobre a forma da Terra, concluindo que a mesma seria redonda como uma bola. Não muito tempo depois, Parmênides, por volta do ano de 490 a.C., divulgava uma tese que, além de reforçar a idéia da Terra esférica, apresentava algumas explicações inéditas para a sua época. Expunha, entre outras, duas concepções que transformaram o pensamento grego; – o Sol seria como uma “grande bola de fogo” que iluminava uma fase da Lua, tornando-a brilhante somente do lado que recebia luz. (Esta formulação tentava explicar o fenômeno das diferentes formas que a Lua apresenta em suas fases). – toda a luz que originava o dia era proveniente do Sol. De Tales de Mileto a Parmênides transcorreu mais de um século de observações e estudos, o que permitiu que o segundo chegasse a seguinte idéia: a Terra, um corpo esférico solto no espaço, tem uma face iluminada pelo Sol (como ocorre com a Lua) e outra escura, não atingida pela luz solar. Aos poucos, vão surgindo novas informações sobre o Universo, grande fonte de observações e descobertas. Sabiam da existência de Mercúrio, Vênus, Marte, Júpiter e Saturno, sendo que denominaram de planetas as estrelas que estavam sempre variando de lugares. Também sabiam que a Lua estava mais próxima da Terra do que o
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Sol, assim como identificaram batizando 48 constelações, sendo que algumas conservam os nomes originais gregos, como Andrômeda, Perseu, Pégaso, Hércules, Órion e outras. Procurando compreender o mundo em que o homem vive, teve início a história da Geografia, não como ciência autônoma, mas como um conhecimento sistematizado que se fazia presente nos trabalhos de filosofia, de história, matemática e astronomia, bem como na literatura e nos registros dos viajantes e dos navegadores da época. A geografia aparecia de forma secundária nos estudos realizados por outras áreas do conhecimento que, de uma forma ou outra, poderiam tratar dela. Ainda não havia Geografia, portanto, nem geógrafos, na acepção que utilizamos atualmente. Enquanto isso, os gregos iam ampliando seus conhecimentos através do intenso comércio que realizavam com outros povos e das expedições colonizadoras que empreendiam. Sobre a posição da Grécia no Mundo Antigo, Nelson W. Sodré escreve: “[...] a Grécia se situava em posição privilegiada no extremo da Europa, às portas da Ásia, em face da África, entre o Mediterrâneo e o Mar Negro, ponto para os contatos e confrontos entre Ocidente e Oriente, fundindo culturas diversas e assimilando-as. [...] Dominando o Mediterrâneo, eles conhecem o litoral sul da Europa e o litoral norte da África como o estreito litoral oeste da Ásia; conhecem o Mar Vermelho como o Mar Negro, a Mesopotâmia e o Golfo Pérsico e as terras que estendem até a Índia. Percorreram esses mares e essas terras; em muitos lugares estabeleceram feitorias. Em grande parte os conhecimentos foram registrados nos „périplos‟ (circunavegacão); a „Odisséia‟ é a nítida reminiscência deles. Essa variedade de conhecimentos – e o fato de ser a Grécia o centro de gravidade do mundo de então – é que permite passar da coleta à sistematização e desta aos primeiros ensaios de teorização” (Sodré, 1987, p. 14).
Dentro deste contexto, passaram da prática do conhecimento geográfico para a descrição escrita dos lugares, levantando problemas e desenvolvendo teorias para explicar a Terra.
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Surge a Geografia Descritiva e Regional, que tem em Heródoto um de seus mais notáveis expoentes, e a Geografia Matemática e Geral, provavelmente fundada por Anaximandro e Tales de Mileto, nos séculos VII e VI a.C. O determinismo geográfico aparece em várias descrições deixadas pelos gregos, sendo que suas origens são anteriores a esse tempo. Um dos representantes desta visão geográfica foi Hipócrates (sec. V a.C.) que em sua obra. Dos Ares, das Águas e dos Lugares, apresenta as diferenças existentes entre os habitantes da montanha e os da planície, relacionando-as com a influência exercida pelo meio. Apesar de ter uma preocupação maior com o homem do que com o meio, aceita a supremacia deste. Portanto, para conhecer o mundo do qual faziam parte era necessário, além de estudar o Universo, observar e descrever a superfície terrestre, o que propiciou inúmeros trabalhos de cunho geográfico. Na época helenística, muitos desses estudos eram transmitidos e ensinados nas escolas, onde os aspectos ligados à Astronomia despertavam grande interesse entre os alunos das classes mais adiantadas. Certamente nas escolas primárias não estudavam os conteúdos relacionados com os conhecimentos
geográficos,
pois
a
educação
dava
muita
ênfase
à
aprendizagem da leitura e da escrita, só ensinando, na matemática, os conhecimentos rudimentares de aritmética. Possuíam, desde muito tempo, itinerários das principais rotas do Mediterrâneo oriental, incluindo mapas da região, sendo que Anaximandro e Hecateu de Mileto, em meados do século VI, elaboraram os primeiros esboços de um mapa do mundo. Sabedores que a duração do dia e a altura do Sol acima do horizonte diferiam de um lugar para outro, criaram uma divisão da Terra tendo por base as faixas de calor que correspondiam às zonas de latitude (klimata), dando origem aos conceitos de zonas tórridas, temperadas e frígidas, separadas por
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determinados paralelos. Essa idéia, apesar de não ser uma realidade climática, constitui um grande feito para a época. Os cientistas da Grécia Antiga deixaram pesquisas sobre vários fenômenos da natureza, como os relacionados com as temperaturas, com os ventos, mares, plantas, rios, vulcanismos, entre outros. Também elaboraram diversos trabalhos que descreviam o modo de vida e a distribuição da população no espaço, assim como a polis e sua organização. É a geografia tomando corpo, embora ainda estudada dentro de outros ramos do conhecimento humano. Nesta demonstração, não poderíamos deixar de examinar, mesmo que rapidamente, as teorias de Aristarco de Samos e Eratóstenes, pela originalidade de suas idéias e pela contribuição que deram ao pensamento geográfico, assim como alguns elementos compilados por Ptolomeu e que marcaram o conhecimento da geografia mundial.
Aristarco de Samos Em torno de 260 a.C., Aristarco de Samos, considerado o mais famoso astrônomo de seu tempo, apresentou algumas concepções de Universo que surpreendem pela atualidade, mesmo utilizando basicamente a observação e instrumentos muito modestos e limitados para os padrões modernos. Aristarco, ao mesmo tempo que aceitava a hipótese de Heraclides (388-315 a.C.) de que a Terra girava em torno de seu próprio eixo em 24 horas (movimento de rotação), fazia avaliações dos diâmetros do Sol e da Lua e das distâncias dos mesmos em relação à Terra, utilizando rigorosos métodos geométricos. Verificando que o Sol era muito maior que a Terra e que a Lua era menor, concluiu que o Sol seria mais importante e que, portanto, não poderia ficar girando em torno da Terra. O planeta, além de não ser o centro do Universo, descreveria círculos em torno do Sol imóvel (movimento de translação).
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É o heliocentrismo aparecendo pela primeira vez, motivo pelo qual Aristarco é, atualmente, chamado de Copérnico Helenístico. Essas concepções fizeram com que passasse a estudar as estrelas pois, segundo ele, também deveriam se apresentar alterando sua posição relativa. Como não conseguiu observar este fato, apesar dos esforços realizados, concluiu que as estrelas não são fixas no céu, que essa idéia decorria da enorme distância existente entre elas e a Terra, afirmando que a “imobilidade das estrelas é aparente”. (Na realidade, essa aparência se deve ao movimento da Terra.) Suas formulações colidiam com os ensinamentos de Aristóteles e com o pensamento da maioria dos astrônomos gregos, defensores do geocentrismo. Portanto, foram consideradas totalmente improváveis e não aplicáveis ao Universo, sendo rejeitadas por seus contemporâneos. Continuaram acreditando em modelos em que o Universo era constituído por esferas celestes, com a Terra no centro. Muitos esquemas foram propostos dentro dessa crença. Ptolomeu, no século II, além de defender um complexo modelo de Universo com esferas concêntricas que giravam em torno da Terra, apresentava um resumo do pensamento astronômico e geográfico existente na época. A Astronomia ficou mais ou menos estática depois disso, entrando com as mesmas idéias sobre o Universo na Idade Média. As formulações de Aristarco só foram revividas 17 séculos mais tarde, com o polonês Nicolau Copérnico (1473-1543), num período em que a atenção dos cientistas estava mais voltada para a ordenação do Cosmos do que para a superfície do planeta. Coincidência ou não, essa teoria, mesmo não sendo totalmente igual à de Eratóstenes, não foi bem recebida. Vários motivos contribuíram para isso, como a tradição cultural e religiosa e os conhecimentos que a ciência de então aceitava como sendo verdadeiros.
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Copérnico propôs um modelo heliocêntrico, onde a Terra girava em torno do Sol, como os demais planetas, numa visão não completamente diferente dos modelos gregos, pois adaptou-os em muitos sentidos. “Ele ainda acreditava em orbes transparentes, encaixados e girando uns dentro dos outros. A diferença é que eles estariam girando em torno do Sol e não da Terra” (Martins, 1994, p. 79). O seu heliocêntrico – posteriormente defendido por outros cientistas – foi considerado improvável e inverossímil para o Universo, situação que já havia ocorrido com Eratóstenes. Afinal, todos acreditavam, há milhares de anos, no Sistema Geocêntrico que tinha como base a obra de Ptolomeu, pois “sabiam” que a Terra, imóvel, estava situada no centro de um Universo relativamente pequeno, que ia até onde os seus olhos alcançassem. No centro desse sistema estariam a Terra e o homem, pois para ele tudo tinha sido criado. Desta forma, é fácil entender porque a hipótese de Copérnico não foi compreendida, inclusive nos meios científicos de sua época.
Eratóstenes de Cirenia Os gregos, já sabendo que a Terra era esférica, começaram a se preocupar com a dimensão do planeta, utilizando muita observação e seus conhecimentos matemáticos e de astronomia. Entre os vários trabalhos que chegaram até nós, merece destaque o de Eratóstenes pelo método utilizado e pela precisão dos resultados, tendo em vista que foi realizado há mais de 2.000 anos. Eratóstenes, entre 235 a 195 a.C., ocupou o cargo mais importante na direção do conjunto que continha o Museu e a Biblioteca de Alexandria, o de bibliotecário. Além desse posto, tinha a responsabilidade de orientar os estudos de Ptolomeu IV. Reconhecido por seus notáveis conhecimentos de matemática, astronomia, história, geografia, gramática e poesia, sendo um grande filólogo,
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foi quem escreveu a primeira obra com o título de Geografia, em três volumes, onde apresentava vários estudos sobre a Terra e uma história dos conhecimentos geográficos. Como cientista, Eratóstenes começou a se preocupar com o método que poderia utilizar para medir a circunferência do planeta visto não ser possível medi-la a passos, como era comum para as distâncias. Assim, surgiu a idéia de calcular a circunferência terrestre medindo apenas um determinado trecho, isto é, o comprimento de um arco de círculo entre dois pontos. A respeito das idéias de Eratóstenes, escreve Samuel Branco: “Partiu ele do princípio de que a distância entre dois pontos mede o ângulo entre as suas verticais, ou seja, entre dois raios da esfera. Tratava-se, pois, de medir o ângulo formado por dois fios de prumo colocados em dois pontos ou duas cidades distantes, o que era impossível fazer diretamente” (Branco, 1995, p. 10).
Sabendo que em Siena, ao sul do Egito – no local onde hoje está a Barragem de Assuã – ao meio-dia do dia 21 de junho (solstício de verão) o Sol iluminava diretamente a água dos fundos dos poços e que varetas retas e verticais não produziam sombras, enquanto que em Alexandria isso não ocorria, começou a questionar o fato. Eratóstenes acreditava que as duas cidades estivessem no mesmo meridiano: se soubesse a distância existente entre elas, no verão seguinte poderia calcular que ângulo o Sol fazia com as varetas verticais que seriam colocadas em Alexandria. Os relatos informam que contratou um homem para medir a passos a distância existente entre as duas cidades, utilizando o estádio egípcio, medida da época, que equivalia a 157,5 metros. Verificou que estavam 5.000 estádios uma longe da outra, o que hoje daria aproximadamente 800 quilômetros. Por outro lado, varetas que foram colocadas no percurso e em ângulos diferentes em relação aos raios solares, lançavam sombras de comprimentos diferentes. Analisou os diferentes comprimentos das sombras, imaginando que
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se fossem colocadas varetas em linha até o centro da Terra elas se interceptariam em um ângulo de sete graus. Esses sete graus correspondiam a, mais ou menos, um qüinquagésimo de 360 graus, o que significava que a distância entre os dois centros corresponderia a qüinquagésima parte do meridiano. Multiplicou a distância existente entre as cidades por cinqüenta, deduzindo que a circunferência terrestre seria de 250.000 estádios, ou seja, 39,4 mil quilômetros, medida muito próxima da realidade hoje conhecida. Esse trabalho, apesar de alguns erros, como o de situar as duas cidades no mesmo meridiano, merece toda nossa admiração, pois as falhas não devem superar o valor do feito, principalmente se levarmos em conta a precariedade dos instrumentos que Eratóstenes tinha a sua disposição. Elaborou o mapa do mundo mais exato de sua época, com a superfície terrestre dividida em graus de latitude e longitude, o que constituiu um grande progresso em relação ao sistema visto desde o século anterior. Ainda, expôs a teoria de que todos os oceanos seriam um único e foi o primeiro a levantar a possibilidade de alcançar as Índias navegando pelo ocidente. Os trabalhos deste sábio e de outros notáveis da Grécia Antiga conseguiram chegar até os navegadores dos séculos XV e XVI, através de dois compiladores da era romana: Estrabão (64 a.C. – 20 d.C.) e Ptolomeu, que viveu entre 90 e 160 d.C. Enquanto o primeiro demonstra em sua obra uma grande preocupação em fazer uma geografia descritiva do espaço conhecido e habitado, do ecumene, Ptolomeu tem maior interesse nos aspectos ligados a matemática, à elaboração de mapas e plantas.
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Figura 6 – O mundo segundo Eratóstenes. Fonte: Enciclopédia Delta Larousse, tomo I, p. 2.
Ptolomeu Cláudio Ptolomeu de Alexandria reuniu os conhecimentos de seus predecessores – principalmente os relacionados com a geografia, matemática e astronomia – no Almageste, oportunizando que o mundo conhecesse as diferentes idéias e teorias dos gregos sobre a Terra. Pouco se sabe sobre sua pessoa, mas sua obra marca um ponto culminante na cartografia do mundo antigo. Após ele, seguiu -se uma época de decadência nos estudos geográficos, que praticamente desapareceram na Europa Ocidental. Na Idade Média, ainda dependiam dos conhecimentos geográficos da tradição cartográfica dos romanos, fonte inferior a dos gregos. Seus oito livros só foram traduzidos para o latim no século XV, quando causaram um grande impacto no pensamento clássico durante o Renascimento pois, além de descreverem várias regiões do mundo e apresentarem inúmeras informações sobre a Terra, acrescentavam muitos dados que não eram conhecidos nessa época, especialmente os relacionados com a Astronomia e a Cartografia, anexando 27 cartas geográficas e uma relação de 8.000 nomes de
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lugares com as respectivas latitudes e longitudes. (Não se sabe se esses mapas foram preparados pelo próprio Ptolomeu mas, certamente, constituem o primeiro Atlas universal que se tem conhecimento.) Entretanto, Ptolomeu cometeu alguns erros, como o de acreditar que a África e a Ásia fossem unidas ao sul, sem passagem marítima para o Oceano Índico, e o de não aceitar a dimensão da circunferência terrestre de Eratóstenes, tendo preferido os cálculos de Possidônio que afirmava que a mesma teria cerca de 29.000 quilômetros, o que distorceu a localização de todos os pontos geográficos. Defendia a idéia de Aristóteles sobre a estrutura do universo, tendo elaborado uma detalhada teoria dos movimentos dos planetas que permitia prever, com muita precisão, as suas posições. Esse sistema, com a Terra no centro de tudo, foi ensinado até o fim da Idade Média. Desde o século VIII, esse farto material já era analisado por professores das Universidades Muçulmanas que iam acrescentando nos mapas as informações trazidas pelos viajantes e comerciantes árabes, merecendo destaque o geógrafo Al Idrisi ou Edrisi (1099-1166) que, “compreendendo que o conceito de cinco zonas climáticas não correspondia perfeitamente à realidade”, apresentou um sistema muito mais aperfeiçoado que o dos gregos. Na Europa, durante o período das grandes navegações, a obra de Ptolomeu tornou-se famosa, principalmente após a invenção da imprensa (1455, Gutenberg), quando foi amplamente divulgada. A par disso, os portulanos – mapas náuticos que existiam desde o início do século XIV – e as outras cartas geográficas deixavam muito a desejar. Um pouco antes, em 1454, o florentino Paolo del Pozzo Toscanelli tinha defendido a idéia da possibilidade de atingir a Índia viajando para oeste pois, segundo ele, a extensão do oceano não seria muito grande, sendo essa rota bem menor do que a utilizada pelos portugueses em suas navegações. (O grego Eratóstenes de Cirenia, conforme vimos anteriormente, já havia
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afirmado que era possível chegar às Índias pelo ocidente, visto todos os oceanos constituírem um só.)
Figura 7 – Estrutura do Universo, segundo Aristóteles e Ptolomeu. Fonte: Martins, 1994, p.76
Assim, a obra de Ptolomeu vai sendo revista e reformulada. Em conseqüência, surgem trabalhos mais atualizados, como o do navegador e “geógrafo” Martim Behaim que, em 1492, concluiu seu globo terrestre com a representação dos lugares conhecidos antes da descoberta do Novo Mundo. Consta que Cristóvão Colombo, influenciado pela obra de Cláudio Ptolomeu e pelas idéias de Toscanelli, pretendia chegar até o Japão, a China e a Índia viajando para o oeste sem contornar a África, utilizando, portanto, uma medida da circunferência da Terra que não permitia a exata localização dos pontos geográficos.
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Figura 8 – Oceano Atlântico segundo o globo de Martim Behaim (antes de outubro de 1492). A América, que figura em retícula, foi descoberta logo após a publicação deste mapa. A Ásia estava muito estendida para leste. Assim, o Japão aparece na longitude da Califórnia. Fonte: Enciclopédia Delta-Larousse, tomo I, p. 3.
Colombo, saindo da Espanha pelo ocidente, aportou em ilhas localizadas a oeste do continente africano e que não constavam nas cartas geográficas da época. Dessa forma, o mundo passou a conhecer “novas terras” que, como produto da história dos homens, receberam, mais tarde, o nome de América. Esse acontecimento – sem entrar nas controvérsias que envolvem a conquista do continente americano – reitera, mais uma vez, a influência exercida pelos gregos no campo dos conhecimentos geográficos, influência que se prolongou até o século XVIII.
Considerações finais O conhecimento geográfico, no decorrer dos milênios, passou por várias abordagens até ser reconhecido como ciência e oficialmente ensinado nas Escolas.
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As mudanças começaram a ser sentidas com mais intensidade no século XIX, quando a disciplina, ao se emancipar das demais, possibilitou o surgimento de diferentes concepções teóricas dentro das correntes geográficas tradicionais. Em 1812, foi criada a primeira “cadeira de Geografia” no ensino universitário, em Sorbonne, cujo titular era um historiador. Tal situação continuou por muito tempo pois, em 1877, após 65 anos, só existiam quatro faculdades com essa matéria, todas dirigidas por historiadores, o que explica o enfoque dado aos conteúdos geográficos ensinados à época. Sob pressão das Sociedades de Geografia foram criadas novas cadeiras da disciplina, ao mesmo tempo que começava a batalha pela reforma do ensino, tentando substituir a Geografia histórica por uma que fosse mais útil à compreensão do mundo e sua valorização. Essa reforma só foi levada a termo tempos depois, graças ao empenho de alguns professores de História e Geografia – que lecionavam em escolas que corresponderiam ao nosso Ensino Médio atual –, apoiados por membros das sociedades geográficas. Porém, as grandes e profundas alterações na ciência geográfica só ocorreram após a Segunda Guerra Mundial, com mudanças que alcançaram os aspectos filosóficos e metodológicos da disciplina e uma renovação científica que se acentuou a partir de 1960-1970, período de intenso trabalho intelectual. O profissional da área, professor ou geógrafo, foi conquistando espaço e mudando sua visão de interpretar os conhecimentos geográficos. Estudando e refletindo, passou da descrição da Terra, conforme a gênese da palavra Geografia, aos questionamentos sobre a própria disciplina e a formulação de perguntas (Para que serve a Geografia? O que é Geografia? Onde se aplica a Geografia?) que propiciaram múltiplas discussões e a formação de um novo espírito geográfico.
Origens do Ensino 133
Hoje, a Geografia não pode ser estudada somente nos gabinetes fechados e nas salas de aula, com os conteúdos dissociados da sociedade como ocorreu no passado, pois existe a consciência da sua presença nos mais diferentes aspectos do cotidiano. No ensino é necessário associar práticateoria, relacionar sociedade-natureza, procurando compreender o espaço geográfico, espaço que o homem constrói, destrói e (re)organiza, pois é o lugar onde se processa a sua história. Como vimos, para chegar aos paradigmas atuais, a Geografia teve que percorrer um longo trajeto, tendo trilhado sinuosos caminhos que passaram por diferentes sociedades do Ocidente e do Oriente Antigo e pelos povos que as antecederam, pois a prática do conhecimento geográfico ocorreu desde sempre.
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ALGUMAS CONTRIBUIÇÕES DA ARQUEOLOGIA PARA O CONHECIMENTO DA INSTRUÇÃO NO MUNDO ROMANO PEDRO PAULO FUNARI
Gostaria de começar agradecendo, aos organizadores desta Jornada, o convite para participar deste evento com um trabalho que tratasse do tema geral do encontro, “o ensino no mundo antigo”. Desde o início, minha intenção era mostrar como a Arqueologia tem contribuições próprias a respeito também da questão do ensino no mundo antigo. Rosella Frasca, professora de História da Educação da Universidade de Chieti, na Itália, que já nos havia oferecido diversas obras sobre a questão (Frasca 1991a; 1991b; 1994; 1995), acaba de lançar um volumoso tomo sobre Educazione e formazione a Roma, Storia, testi, immagini, em cujas mais de seiscentas páginas recolhem-se inúmeras referências da tradição literária. Frasca compulsou e reproduziu, ainda, muitas imagens ligadas ao tema. Contudo, a cultura material, em suas múltiplas manifestações, não se encontra explorada, assim como as imagens aparecem apenas sob a forma de ilustração. Este silêncio, na verdade, não se restringe a Frasca mas, ao contrário, pode afirmar-se que se toma, muitas vezes, a evidência da tradição textual, descontextualizando-a de seu entorno cultural mais amplo. Meu objetivo primeiro, portanto, consiste em mostrar como as evidências materiais, contextualizadas, naturalmente, podem fornecer-nos dados importantes sobre o aprendizado no mundo romano. Antes de adentrarmos no cerne do tema, convém perscrutarmos o sentido mesmo daquilo que estamos a tratar: instrução, instructio, “um empilhar de conhecimentos”, tomado aqui em sentido amplo, não restrito ao ludus primi
Algumas contribuições da Arqueologia para o conhecimento da instrução... 136
magistri, ao ludus grammatici e ao aprendizado superior com o rhetor (Frasca, 1996, p. 255- 314) e abrangendo, pois, tudo que se refira à posse cognitiva do mundo, por parte de ricos e pobres, livres e escravos. Para tanto, toma-se a cultura como capacidade de reflexão que não é apanágio de classe e, menos ainda, de um grupo étnico (cf. Gramsci, 1979, p. 133). Diferenças não são tomadas como sinal de superioridade e inferioridade, mas como características próprias que só adquirem sentido em seu contexto. Assim, o domínio da métrica, mais do que sinal de qualquer superioridade da cultura erudita, representa uma forma de discurso que tem seu sentido dado pelo ambiente social apropriado: as classes altas. A poesia popular (Funari, 1991a), que prescinde da métrica e que se utiliza de outros recursos, como a aliteração ou a representação visual, apenas adquire sentido no campo discursivo próprios das classes populares (sobre o conceito de classe, veja-se Saitta, 1994). A contextualização é, portanto, essencial, pois, do contrário, caímos em juízos de valor não apenas sem fundamento como perigosos: se há superiores, há inferiores, e estes devem amoldar-se àqueles. Assim, quando Ramsay MacMullen (1990, p. 54) propõe que a cultural superiority sufficient to Romanize whole provinces (friso acrescentado), pouco se explica (superior a que, em que, desde que ponto de vista? o que seria “Romanizar”?), mas se abre
as
portas
a
outras
generalizações
tão
pouco
fundamentadas.
Naturalmente, tratando-se de um sábio ianque, logo se conclui que “o mundo se americaniza, por que há uma superioridade cultural americana”, silogismo que, além de ser uma bobagem, novamente não dá conta do contexto em que as trocas culturais acontecem. Como lembra o arqueólogo Brian L. Molyneaux (1994, p. 3), esta descontextualização encobre opressões, pois the past that is presented may be that of a single, dominant group in a society. O arqueólogo, talvez por lidar com contextos materiais sempre ineludíveis, está em posição particularmente privilegiada para atentar para a necessária contextualização, até mesmo do próprio estudioso (cf. Shanks,
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1994, p. 21). Um exemplo parece-me paradigmático, a esse respeito e, de forma indireta, já nos conduz para o tema da instrução romana. O renomado historiador britânico, C. R. Whittaker (1989, p. 303), autor de inúmeros trabalhos da mais alta relevância, produziu um capítulo sobre o “o pobre”, para o livro organizado por Andrea Giardina, L‟uomo romano. Desenvolvendo seu argumento sobre a pouco estima gozada pelos pobres, Whittaker afirma que: “Sentiamo risuonare la disapprovazione morale della porvertà in un graffito pompeiano: „Odio i poveri‟. Se qualcuno vuole qualcosa per niente, è pazzo” (CIL 4, 9839b). No entanto, não se trata de grafite, mas de inscrição pintada em vermelho, um anúncio, cuja função era bem outra, visava publicizar, oficialmente, algo, era visível a distância, era obra de especialistas, os pictores. Em Seguida, encontra-se na parede de uma loja, junto a outros cartazes mandados colocar pelo dono do estabelecimento, junto à janela, para esclarecimento aos clientes: informa-se que aí se vendem ferramentas e instrumentos de madeira, que o dono se chama M. Epídio e... que não se vende fiado! Este o sentido da frase: abomino paupero(s). Quisqui(s) quid gratis, fatu(u)s est; aes det et accipiat rem, literalmente, “abomino os pobre, quem quer algo grátis, é louco; dê o dinheiro e terá a mercadoria”. Trata-se, portanto de uma proscriptio, ou anúncio, assim já assinalado no próprio Corpus Inscriptionum Latinarum, tendo sido publicado não com os grafites, mas com outros tituli picti. O contexto arqueológico, tanto no que se refere ao local exato da inscrição, como sua forma, estão a indicar que ela pouco tem a ver com uma “desaprovação moral”, como propunha o historiador britânico. E, no entanto, estas inscrições já nos dizem muito sobre a instrução, tanto do dono do estabelecimento, quanto dos leitores, passantes pelo local, na Regio I, Insula XII, bem em rua que desemboca em grande rua movimentada, Via dell‟Abondanza, a caminho da Porta do Sarno, local ideal para uma loja desse tipo. A advertência foi pintada em letras vermelhas que são bem visíveis e pode notar-se, pela forma do cartaz, que se tomou o cuidado de separar as
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palavras, até mesmo, quando há certa ameaça de uma scriptio continua (escrita sem separação de palavras), ao acrescentar um ponto após a palavra aes. Assim, esperava-se que o passante pudesse ler, com facilidade, o aviso. Em seguida, há coloquialismos que podem ser atribuídos tanto ao autor da frase como ao pictor, não o sabemos, mas, de todo modo, o dono da loja, autor intelectual da diatribe, não se preocupou em corrigi-la. Esses coloquialismos, como paupero ou quisqui, sem o s final, assim como fatus com apenas um u, estão a indicar a reprodução da fala e indicam, também, que os passantes leitores entenderiam a mensagem, em especial esses paupere (como os próprios pobres deviam pronunciar o plural da palavra). A instrução da elite, objeto central da atenção dos estudiosos do tema, é bastante bem conhecida, seja pelas referências na tradição literária, seja pelo fato de que historiadores, literatos, filólogos e educadores já se debruçaram, há séculos, sobre essas mesmas referências. Não me estenderei a este respeito, mas apenas alertaria para que não tornássemos a educação e a cultura eruditas como parâmetros para a instrução popular. Reconhecendo que eruditos e populares conviviam e, necessariamente, estavam em constante interação, não se pode supor que o treinamento para o otium fosse semelhante àquele para o negotium. Assim, o bilingüismo da elite romana, que, ao que parece, fazia com que esses docti, desde a mais tenra idade, fossem versados no grego koiné, antes que na língua do povo, o latim, e que se sentissem mais ligados emocionalmente ao grego do que ao latim (pace Dubuisson, 1992, passim). Seria algo como aquela experiência por que passam hoje os membros das elites em países como a Índia, para os quais o inglês possui valor semelhante, enquanto os vernáculos, aprendidos mais tarde, servem de meio de comunicação com a massa. Ora, neste contexto, não se pode imaginar que, fora deste restrito grupo social, a instrução tivesse os mesmos objetivos e, menos ainda, os mesmos métodos.
Origens do Ensino 139
A documentação arqueológica produziu, nos últimos dois séculos, um enorme manancial de documentos que refletem os resultados da instrução de camadas que não se confinam àquela elite retratada na tradição textual: grafites, parietais ou no instrumentum domesticum, cartas, imprecações, inscrições em geral. Não importa, nesta ocasião, discutir o grau de “popularidade” destes escritos, pois, na ausência de estatísticas, pode-se afirmar que “não podemos saber nada sobre nove décimos, ou mais, da população... nada sabemos sobre o que faziam” (MacMullen, 1990, p. 87), enquanto outros estudiosos, dedicados ao estudo desses documentos epigráficos, descartados por MacMullen (I also discount the graffiti of Pompeii...), preferem ressaltar a origem popular dos autores desses testemunhos (Tomlin, 1988; Jordan 1990, p. 438; Beard, 1991; Bowman, 1991, p. 123; Franklin, 1991, p. 81; 37; Hopkins, 1991, p. 152, Menella 1992, p. 7; cf. discussão em Funari, 1995a, p. 9-11). Naturalmente, entre os documentos materiais, há também importantes testemunhos referentes à educação erudita (Hochschule, nas palavras de Herzog, 1935), como é o caso do edito de Vespasiano, cuja cópia foi encontrada em epigrafe grega, em Pérgamo, publicada originalmente em 1935 ( Herzog, 1935; cf. texto e comentário recente em Cortés, 1995). A imensa maioria, no entanto, compõe-se de inscrições nãooficiais e, a partir destas, podemos tecer algumas considerações sobre a instrução das não-elites. Poucas são as evidências materiais diretas que nos possam referir a existência de escolas para as classes baixas, duas delas resultam do achado arqueológico de inscrições, no Fórum de Júlio César, em Roma, e no Fórum de Pompéia, estudas por Matteo della Corte (1933; 1959), ainda que, em ambos os casos, não possamos saber a condição social dos alunos (outro exemplo de escola, em Fabre, Mayer e Rodà, 1997, p.120-121). Possuímos, no entanto, uma infinidade de exemplos de escritos que refletem um aprendizado que não sabemos, exatamente, como se deu. Em primeiro lugar, deve-se notar que
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havia escribas que deviam freqüentar alguma escola que desse conta do domínio da língua latina e da sua ortografia. Assim, enquanto o letreiro de aviso aos compradores de Pompéia, que citei antes, apresenta incorreções quanto a norma culta, como assinalado, uma inscrição da mesma época, porém monumental, encontrada em Barcelona, embora se refira a gente simples, apresenta não apenas correção formal como estudada estética, resultado de um aprendizado especialista: “para Quinto Júlio... Nigélio, edil, duúmviro (duas vezes?), flâmen, Properato, seu irmão, Máxima, sua mãe, Pompeia Glene, liberta de Gnaeu, e para ela mesma”. Pompeia Glene, cuja mãe e irmão ainda eram escravos, era uma liberta e, no entanto, o monumento executado segundo a estética erudita, dominada pelo executor. Um outro escriba, ao que parece, transcreveu uma maldição de um tal Rufus, tendo sido encontrada uma tableta de metal em Uley, na Inglaterra, com os seguintes dizeres: “Mintla Rufus para o deus Mercúrio. Dei-os (sc. os ladrões), seja mulher, seja ... o material de um manto. Dei”. Neste caso, embora o editor da epígrafe (Tomlin 1995) esteja convencido que se trata de obra de um escriba, pela segurança da grafia e por que parece copiar, com erros, parte da imprecação, é notável como, à diferença da inscrição proveniente de Barcelona, estejam preservados diversos coloquialismos. A começar do nome do dedicante, Mintla, que parece estar por uma alcunha de Rufus, sendo Mintla a forma popular de mentula (pênis), assim como o uso de materia para designar “material”, prenunciando o uso neolatino da palavra. Ainda da mão de escribas provêm as cartas de Vindolanda, também na Inglaterra, como é o caso do convite de Cláudia Severa para que a amiga Lepidina venha à sua festa de aniversário (Bowman, 1994, p. 127; Funari, 1994), cuja correção e elegância permitem supor uma instrução formal muito acurada. O mesmo pode ser afirmado das inscrições, feitas por funcionários administrativos, escravos provavelmente, em diferentes suportes, como as ânforas, que estão a demonstrar domínio
Origens do Ensino 141
não apenas da ortografia como da estenografia, utilizando-se mesmo de abreviaturas especializadas, como é o caso de aaaa, por arca (“arca”, uma caixa administrativa; cf. Funari, 1991b; Funari, 1996). Outra categoria de documentos que revela a instrução profissional consiste nas tabulae cerate, muitas delas encontradas em Pompéia e publicadas no CIL IV, já no século passado, em volume próprio. Esses registros semi-oficiais apresentam um grau elevado de respeito às regras da norma culta, em especial aqueles a cargo de Secundus e Privatus, escravos da colônia de Pompéia. Pode concluir-se que haviam seguido uma instrução formal erudita, por oposição às tabuas escritas por outros, como um tal Blaesius Fructio (n. XXVI) que, ademais de escrever seu nome com grafia errada (Blesius), fazia pouco caso do acusativo e escrevia as palavras como pronunciava. Assim, auctionem, no acusativo, escrevia autione, facta, escrevia fata, e assim por diante. Outro caso interessante é a tábua de Nouellius Fortunatus (n. XXXVIII), que, como ironizou Zangemeister no CIL, itaque nulum unum vocabulum recte scripsit (não escreveu sequer um vocábulo corretamente!). Como teria aprendido a escrever? Novamente, não sabemos, mas é notável o fato que, embora distante da norma culta, se tenha permitido que escrevesse de próprio punho (chirographum) um documento, de certa forma legal, ainda que um “homem alheio tanto à arte de escrever como da gramática”, ainda nas palavras de Zangemeister (CIL IV, Tab. Cer. p.449). Os tituli graphi exarati, ou grafites, constituem, no entanto, a melhor evidência do grau de instrução das classes populares. Não se tem dúvidas quanto ao grande número de pessoas que escreviam com estilete, bastando, para tanto, consultar o CIL IV, referentes a inscrições das cidades vesuvianas, para se dar conta não apenas do seu grande número (mais de dez mil), como da variedade de mãos que escrevem. Teriam os autores destas intervenções freqüentado a escola primária? Não se pode saber, naturalmente, mas não cabe dúvida que, se passaram pelo ludus primi magistri, aprenderam ou
A formação do escriba no antigo Egito 142
assimilaram bem pouco não apenas das regras ortográficas, como da norma culta latina, em geral. Os autores que se debruçaram e estudaram essas inscrições chamam essa língua, para diferenciá-la da erudita, aprendida e reproduzida em outros meios de comunicação, como a literatura mas, também, como vimos, nas inscrições monumentais, de “latim vulgar”, sermo humilis, “latim popular”, “proto-românico ou neolatino” (Battisti, 1949; Väänänen, 1937; Väänänen 1974, p. 41). Não há dúvida que muitas dessas inscrições ecoam a cultura erudita, por exemplo ao citarem autores eruditos (cf. Funari, 1991b passim) ou ao escreverem poesia com métrica clássica (exemplos em Funari, 1995b). Além disso, mesmo inscrições simples comportam um jogo com o domínio da norma culta, como é o caso, por exemplo de CIL IV 5085: rusticus, que encontra uma provável resposta em CIL 5086: anumrub, urbanum, escrito com as letras fora do lugar. O uso do m, ao final, indicando um suposto acusativo (“veja, aqui, um urbano”) indica trato com a gramática escolar, pois, como vimos acima, não se falava mais desse modo. O mesmo pode se dizer de accepi epistulam tuam (“recebi tua carta”), escrito em perfeita grafia e com o acusativo marcado; a referência a uma carta já estaria a indicar tratar-se de alguém com formação escolar. Outros muitos, no entanto, apresentam desvios quanto a norma culta, como uma inscrição de um arquiteto, cujo próprio nome escreve erradamente: Cresces architectus (CIL IV 4755). Ou ainda, G. Hadius Ventrio eques natus romanus inter beta(m) et brassica(m) (CIL IV 4533). Pode concluir-se, desde breve exame, que havia diversos níveis e gradações de instrução e que a educação não se restringia à elite. O domínio da norma culta não era generalizada entre os letrados mas, tampouco devemos nos surpreender com isso, pois o sentido do seu domínio era diverso daquele que seria no mundo moderno. Provavelmente, os melhores scriptores, ou seja aqueles que efetivamente escreviam, os escribas, eram escravos, assim como talvez os grandes professores. A elite fazia uso, regularmente, destes serviçais que, no entanto, dominavam a norma culta. Por outro lado, as classes populares, os
Origens do Ensino 143
pobres, os escravos e libertos comuns, não possuíam o treinamento dos escribas, nem a erudição e aisance com o grego que os senhores, mas nem por isso deixavam de dominar aspectos importantes do mundo da escrita. Também aqui, a explicação deve ligar-se as necessidades práticas do domínio da escrita, em uma sociedade letrada e tão fortemente marcada pela escrita, como a romana (Desbordes, 1995). O aprendizado destes humiles não passava pelos mesmos trâmites, diferenciava-se da erudição escolar, mas não deixava de permitir que, por meio também da escrita, esses populares pudessem participar ativamente da vida social, toda ela dependente das letras. De uma forma ou de outra, ricos e pobres, livres e escravos, uns e outros viviam em sociedade graças à instructio, à reelaboração constante de conhecimentos. Agradeço aos seguintes colegas, que me ajudaram de diversas maneiras: Margaret Bakos, Alan Bowman, Marc Mayer, Brian Molyneaux, José Remesal, Dean Saitta, Michael Shanks, Peter Stone. Parte deste artigo foi composto quando de minha estada, como professor visitante, convidado pela Universidade de Barcelona, Espanha, em janeiro de 1998, com o apoio financeiro, ainda, do FAEPUNICAMP. A responsabilidade pelas idéias, naturalmente, restringe-se ao autor. Referências bibliográficas BATTISTI, C. Avviamento allo studio del latino volgare. Bari: Leonardo da Vinci editrice, 1949. BEARD, M. Writting and religion: ancient literacy and the function of the written word in Roman religion. Question: what was the role of writting in GraecoRoman Paganism? Literacy in the Roman World. Ann Arbor, Journal of Roman Archaeology. In: J. H. Humphreys (ed.) 1991 supplementary series #3, 35-58. BOWMAN, A. K Literacy in the Roman Empire: mass and mode. In: J. H. Humphreys (ed.), 1991, Literacy In the Roman World. Ann Arbor, Journal of Roman Archaeology supplementary series # 3, 119-131. ______
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Origens do Ensino 147
A FORMAÇÃO DO ESCRIBA NO ANTIGO EGITO MARGARET MARCHIORI BAKOS
Minha infância eu passei contigo; tu bateu nos meus dedos: tuas instruções entraram dentro das minhas orelhas. Eu fui como um cavalo submetido: o sono não pode entrar no meu coração durante o dia e não houve estio comigo durante a noite.
Esse registro informa sobre a severidade da rotina de estudos daqueles que buscavam formação de escribas, tão rígida que sequer lhes permitia folgar nos dias festivos, segundo informa Daressy. Ele obteve esse conhecimento através da análise de datas marcadas em alguns papiros literários, onde o aluno anotou todos os dias o trabalho que fazia, na maioria exercícios de caligrafia. Eles estavam corrigidos pelo professor, sendo que os signos malfeitos e as faltas de ortografia estavam marcados com tinta vermelha. Daressy informa ainda que a disciplina corporal era muito severa e os defeitos de atenção podiam ser castigados com bastonadas, como ilustra essa passagem. Da paleta de Narmer,1 o mais antigo registro em hieroglifos conhecido, à conquista do Egito por Alexandre Magno, seguida da imposição das linguagens escrita e falada gregas, esse texto abrange 27 séculos sobre relações entre aprendizes/mestres e suas famílias. Procuramos acompanhar o fluxo intenso de informações que nos chegam sobre a temática, consultando fontes diversas, desde textos clássicos até modernos, oriundos de transliterações de documentos escritos nas antigas escritas Egípcias. Recortamos fragmentos desse processo, pois um inventário completo seria impossível face ao longo marco cronológico escolhido e à
1
A Paleta de Narmer é normalmente referida como tendo sido feita ao redor de 3000 a.C. e a conquista do Egito por Alexandre Magno ocorreu em 332 a.C.
A formação do escriba no antigo Egito 148
diversidade de comportamentos teóricos e práticos utilizados nos atos de aprender e/ou ensinar a ler e a escrever no período. 2
O primeiro objeto que escolhemos – a paleta de Narmer – apresenta procedimentos da comunicação escrita que estão presentes ao longo de toda a história do Egito, fundamentais quando se tentam entender os princípios básicos para a transmissão de valores e as habilidades exigidas dos escribas para isso. A paleta exibe figuras humanas grandiosas feitas para evidenciar suas posições de comando – no caso referem o Faraó – em relação a outras imagens, cuja pequenez e postura indicam a submissão dos inimigos vencidos. Nessa paleta, ocorre pela primeira vez ainda, a escolha de representar o faraó na sua forma humana, em lugar da animal. Os bichos denotativos do faraó, que ainda ilustram setores da paleta são o falcão
e o touro
, apontados
pelas suas características próprias: o primeiro, a rapidez e a agilidade no ataque; o segundo, a força bruta e a capacidade explícita de reprodutor de sua espécie. Acompanhando essas imagens, aparecem na paleta os primeiros registros em hieróglifos de que se tem conhecimento. Assim, esse objeto é triplamente importante nesta apresentação ao evidenciar as habilidades do escriba como desenhista, os seus conhecimentos sobre a relação existente entre o tamanho de uma imagem e o poder que esse Ihe confere no conjunto das figuras, bem como o domínio e capacidade de utilização, na fase de gênese, da estrutura „mista‟ dos hieróglifos, constituída de ideogramas e de fonogramas. Na paleta, o falcão e o touro representam o Faraó, são ideogramas, e o nome deste governante: – Narmer – também está registrado foneticamente através de dois hieroglifos: um representado pelo peixe o outro pelo cinzel
2
e
, que certificam os sons nr e mr, respectivamente.
No decorrer da I Dinastia as paletas se transformam em objetos semelhantes a escudos, sobre os quais se esculpiam as vitórias dos reis sobre os inimigos, no centro das quais se reservava um espaço para moer o verde malaquita.
Origens do Ensino 149
Figura 1 – A Paleta de N3rmer. Fonte: Lousa de Hierakonpólis, Din. I, Museu do Cairo.
O Faraó Narmer, que em um dos lados da paleta porta a coroa branca do Alto Egito
hdt, enquanto no outro segura uma maça, importante símbolo de
poder, e usa a coroa vermelha do Baixo Egito
dšrt, parece ter sido o primeiro
monarca a ostentar ambas. Esse fato confere extraordinária importância histórica a essa lousa como o mais antigo exemplo de documento com a grafia de hieroglifos, primeiro a demonstrar a unificação dos dois reinos sob um único governante e pioneiro ainda a representá-lo na sua forma humana. Que instrução era necessária para alguém grafar na paleta um conjunto de sinais capazes de transmitir tão numerosas e importantes informações? Para entender o processo educativo que conduziu a tais habilidades é importante inicialmente lembrar que essas imagens e seus significados fizeram parte do dia-a-dia daquela sociedade até o século IV d.C., quando foram
A formação do escriba no antigo Egito 150
proibidas, pelo fato de serem consideradas práticas pagas. O estudo desse processo histórico, da cosmovisão daquelas pessoas, são os meios de que dispomos para rastrear alguns dos princípios de formação e transmissão as sucessivas gerações dos valores e habilidades para sua reprodução. Alguns deles, inclusive, perpetuaram-se ao longo dos séculos. O primeiro princípio é a utilização da escrita para marcar a existência de forte hierarquia social e consolidar o lugar dos poderosos, o que se configura obviamente pelo tamanho concedido às imagens. O segundo é o estímulo à imitação, tendo as representações de obrigatoriamente instigar o respeito à ordem social e pedagogicamente ensinar a fazer isso, assim os conhecimentos eram transmitidos de geração em geração. O terceiro é a metodologia no ensino, que consistia na cópia e na repetição. Nessa ótica, estudar o processo educativo dos escribas leva a refletir sobre as suas representações e necessidades, bem como nos procedimentos técnicos e no universo material presente no seu dia-a-dia e em valorizá-los. Assim, o estudo das suas práticas didáticas pode revelar aspectos importantes da cosmovisão dos antigos Egípcios. Qual o papel e o significado da família na transmissão desses valores e no processo de educação dos jovens? Difícil responder pontualmente, pois o processo educativo como um modo pelo qual as sociedades perpetuam seus valores ainda é atualmente discutido. Neste texto, buscamos rastrear o aprendizado no Egito antigo, buscando saber como se dava a aquisição de habilidades para o aprendizado da escrita, mas também, e principalmente, a valorização desse conhecimento e as vivências sociais que se organizam em torno dele, especialmente no núcleo familiar. No Egito antigo, como em outros lugares, nas primeiras etapas do desenvolvimento da linguagem, a palavra possuía um caráter simpráxico, ou seja, recebia sua significação somente se inserida na atividade prática. Quando
Origens do Ensino 151
o sujeito realizava algum ato concreto, elementar, juntamente com outros indivíduos, a palavra entrelaçava-se com esse ato. É nessa relação que a família desempenha inicialmente um papel fundamental no processo de ensino/aprendizagem no antigo Egito. Entretanto, apesar dessa valorização da linguagem falada e da escrita, pouco sabemos do modo como as pessoas eram ensinadas. Os Janssen entendem que essa lacuna tem fundamento na característica dos antigos Egípcios de mostrar apenas aquilo que é permanente, desprezando o transitório; de ressaltar o resultado de um trabalho e não o modo como ele foi realizado. Alguns valores e habilidades básicas para a compreensão de seu mundo eram vividos pelas crianças desde a mais tenra idade. A própria condição agrária daquele povo, residente as margens de um grande rio, levou-o a acumular e a transmitir, desde tempos imemoriais, noções sobre a agrimensura e as ciências que lhes servem de base: a geometria, a astronomia e a matemática. Exemplificando, o sol foi um elemento da natureza tão importante no dia-a-dia do antigo Egito que foi adorado como um dos deuses mais importantes do seu panteão
, R, o deus-sol. Sua imagem está, desde então,
ligada, além das relativas à mitologia, às expressões indicativas do tempo. Vejamos algumas expressões freqüentes na escrita hieroglífica, em que a figura do sol era utilizada como determinativo ou como ideograma:
, wnwt, hora, e uma das importantes:
, hrw, dia,
, (n)hh, eternidade, em
meio a várias outras. Eram fundamentais, no Egito, as relações entre os homens e as cores da natureza. Elas denotam as diferenças entre o espaço da vida e o da morte. O deserto:
d‟shret a terra vermelha, que era temido; o Egito, a terra
A formação do escriba no antigo Egito 152
preta:
kemet que era amada e abençoada dos deuses com o rio
Nilo:
. Além das montanhas rochosas que delimitavam o início do
d‟srhet, viviam populações que os Egípcios julgavam desprezadas pelos deuses, pois elas obtinham a água de que necessitavam para viver das chuvas: hyt pouco regulares, se comparadas com as regradas enchentes anuais do Nilo, as quais tornaram o Egito muito próspero a ponto de ser conhecido como o celeiro da antigüidade e, nas palavras de Heródoto, uma dádiva do rio. Embora não exista nenhuma palavra que designe união estável, acontecia o fato de um casal „estabelecer uma moradia comum‟. A partir daí, a denominação da mulher passa a ser a de „a senhora da casa‟
nbt pr, o
que mostra que o matrimônio, para os antigos Egípcios, era mais um ato individual que uma relação legalizada. O objetivo mais importante dessa união era ter um filho, especialmente um menino, não somente para continuar a família, mas também para providenciar um enterramento próprio para seus pais e assegurar que os rituais funerários corretos seriam feitos (Stead, 1986, p. 18). Havia, então, uma „família restrita‟: um marido, uma mulher, com uma grande independência moral e financeira e os filhos emancipados. Para exprimir os principais laços de parentesco eles criaram seis expressões: pai:
(itf), mãe:
(mwt)), irmão
(S3), e filha:
(sn), irmã:
(snt), filho:
(S3t), além de outras compostas como
primo: que é o filho da irmã do seu pai. Nesse âmbito familiar, os rebentos, desde cedo, eram induzidos a valorizar a importância da palavra: quando no
Origens do Ensino 153
nascimento, eles recebiam uma denominação. Como orienta o pensamento mítico, era preciso, nomear alguma coisa ou pessoa, para lhe dar vida. Geralmente cabia à mãe, ou eventualmente a alguém próximo no ato de parto, a escolha do nome do bebê. Esse apelativo tinha muita importância, pois a criança o carregaria no futuro e podia relacioná-lo a várias coisas, normalmente positivas. Exemplificando, o nome podia significar uma qualidade física: Wersu: Ele é grande; uma origem, Paneshy: o Núbio; ou uma homenagem a um deus, Dhutmose: Thot vive (Janssen, 1996, p. 14). Os antigos egípcios parecem ter sido carinhosos com os jovens, o que se configura no hábito da adoção legalizada, que era prática corriqueira. Casos particularmente interessantes registrados informam sobre as adoções feitas pelos escribas de discípulos prediletos, os quais passavam a r eferir, nos documentos, seus dois pais. Exemplos clássicos são os de Ramose, adotado pelo escriba Huy e mulher e o de Kenhirkh opshef, adotado por Ramose, então já na função de escriba, e a mulher, como filho e herdeiro (Cerny, apud Bakos, 1996, p.165). Face a isto, a expressão “minha criança” é muitas vezes de tradução problemática, pois, embora, na maioria das vezes, refira filhos e filhas genuínos, a partir do Médio Império é muitas vezes empregada para designar alguém que age como filho, apenas. Freqüentemente, uma criança é referida como aquela que mantém a vida, expressão que remete novamente a preocupação dos antigos Egípcios para com a sua memória. As crianças de ambos os sexos eram normalmente bem-vindas pelo casal. Não ter ou perder um filho era um acontecimento muito trágico às famílias, sendo necessário muitos cuidados devido ao grande número de enfermidades que ameaçavam os seres naqueles tempos, especialmente os petizes. Havia um grande número de amuletos para garantir saúde aos filhos e muitos conjuros para reforçar as magias. Inúmeras cartas funerárias e estelas testemunharam essas afirmações. O que significa o fato de que você não foi até
A formação do escriba no antigo Egito 154
a mulher adivinha para saber tudo sobre as duas crianças que morreram quando estavam sob os seus cuidados? Esta é a pergunta inicial de uma carta que Kenhikhopeshef, operário de Deir el Medina, endereçou a uma mulher identificada apenas pelo nome de Inerwau. Quem era ela? E qual a relação do escriba com as crianças cujos destinos o preocupavam? Não sabemos. Em várias outras missivas, relações familiares aparecem de forma mais explícita, como na carta em que o trabalhador da mesma vila – Horemwia – enviou para sua filha, oferecendo-lhe abrigo se o marido a expulsasse de casa: Você é minha boa filha [...] Ninguém no mundo poderá tirar você daqui, diz textualmente o atencioso pai (Bakos, 1997, p. 215). Os escribas registraram como prazeroso, para as mães, o ato de amamentar, sendo a valorização de seu papel ligada a essa atividade. Ao leite, eles designavam o „líquido curativo‟
(irtt), que verte dos seios. Pelas
ilustrações, como a que se observa nesta figura
, sabemos que as
mulheres, mães ou amas, costumavam segurar o bebê no colo para amamentálo, o que geralmente era feito pelo período de cerca de dois anos. Unânimes quanto às dificuldades de estabelecer idades para as pessoas do Egito antigo, o que provavelmente não deve ter preocupado à época, os egiptólogos também concordam que, entre as expressões mais comuns para designar faixas etárias, salienta-se uma derivada do verbo desmamar, que também não era nada precisa ao designar um longo período de tempo, indicando, assim, apenas vagamente a idade de uma criança: de um ou dois até cinco ou seis anos. Há indícios de que, desde os três anos de idade, os meninos já eram ensinados a levar recados e a alimentar os animais. Se, no ano seguinte, eles não fossem encaminhados para aprender a ler e a escrever, tais responsabilidades aumentavam paulatinamente até que, aos 12 anos, eles recebiam efetivas tarefas nas lides do campo. Da mesma forma, as meninas eram cedo levadas a participar
Origens do Ensino 155
das atividades da família. Aos sete anos, elas já ajudavam na feitura do pão e na coleta de combustível para o forno. As crianças tinham, pois, uma importância econômica nas famílias menos abonadas, por executarem tarefas próprias da criadagem. Entre elas, sem dúvida, a mais comum era cuidar dos irmãos menores, para os quais elas serviam como modelos a serem imitados. Não há evidência de escolas no decorrer do Antigo Reino, exceto na corte, mas nada é sabido sobre quem eram os professores; possivelmente fossem os pais, que ensinavam os filhos e outros aprendizes privilegiados. No decorrer do Reino Médio, aparece a expressão Casa de Instrução, que certamente indica o que denominamos de escola. Somente depois do Novo Reino, começam a aparecer dados sobre a idade dos alunos, o número deles em cada classe, currículos e demais fatos didáticos. A partir dessa época (11 e 12 dinastias, cerca de 2133-1786 a.C.), o uso do livro de texto, como já podemos chamá-lo, torna-se cada vez mais freqüente e generalizado. O texto clássico de ensinamento usado nas escolas chamou-se KEMIT ou SUMA.3 Trata-se da compilação de ensinamentos que um escriba expõe, provavelmente um pai para o filho. Se assim for, confirma-se a hipótese de que originariamente o ensino da escrita era um fato interno à família, como outras habilidades técnicas, ou que um escriba que está formando seu aprendiz tende a considerálo como filho. O escriba informa o filho que também tinha sido educado pelo pai e se sentido mais respeitado na medida em que se tornava mais sábio (Manacord, 1989, p. 20). Certos textos permitem, segundo Drioton, conhecer um pouco da organização do ensino, no qual o aluno ingressava com a idade de quatro anos e de onde saía, com o título simples de escriba apenas, aos 16. O aprendizado da escrita era lento e servia apenas para expressar uma língua literária, arcaica
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Kemit é um título que pode ser traduzido como Compêndio e é o único livro escolar que conhecemos do antigo Egito (Janssen, 1996, p. 80).
A formação do escriba no antigo Egito 156
e diferente da linguagem falada. Sobre os métodos de ensino pouco sabemos. Drioton informa que eram de um empirismo sofrido e compreendiam dois ciclos de estudos. O primeiro consistia na memorização através da cópia de listas de hieroglifos numerados e classificados por categoria, juntamente com os seus significados (Drioton, 1949, p. 9). Um papiro descoberto por Flinders Petrie, nas ruínas de Tebas, contém um dos silabários disposto em colunas que, bem mutilados, apresentam ainda algumas centenas desses signos. Essa era a base que levava ao conhecimento e à escrita de todas as expressões da língua literária. Exercícios em ostracas, contêm enumerações de partes do corpo, de países estrangeiros, de festas religiosas, etc. Essa primeira fase prevê ainda exercícios de cópia de textos clássicos e sua transcrição para língua vulgar. Depois, os jovens passavam ao exercício de composição e tinham acesso a cartas privadas e administrativas, finalmente aos textos religiosos, em particular o de rezas a Thot, deus da sabedoria, o qual era invocado no início de cada lição e nas horas de angústia: “Vem a mim, Thot... o secretário dos grandes deuses de Hermópolis; vem a mim, ajude-me no meu destino, faça com que eu seja hábil nessa profissão. Teu ofício é o mais belo entre todos os outros: aqueles que preparam, terão condições de se tornarem magistrados, de prosperarem... etc.” (Daressy, 1885, p. 335).
No fim de um certo tempo, os estudantes alcançaram a posição de abordar os textos literários propriamente ditos, os de sabedoria e finalizavam o ciclo copiando os trabalhos de imaginação pura: os romances e os contos (Daressy, 1885, p. 357). Como referimos anteriormente com relação à metodologia, são poucas as informações sobre as técnicas do ensino. Os escribas escreviam tanto em pé como sentados, com suas pernas cruzadas na maneira oriental. A posição em pé podia ser usada somente quando o escriba escrevia em um pequeno pedaço de papiro, rígido o suficiente para ser segurado na parte inferior pela mão
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esquerda do escriba; o mais seguro, entretanto, era segurar a folha no topo com os dedos da mão esquerda e ampará-Ia com a palma e o antebraço. Quando escreviam em um papiro sob a forma de rolo, os Egípcios sempre sentavam, e essa é a posição que aparece nas estátuas dos escribas, das quais a mais conhecida é a do Museu do Louvre. Na posição agachada, o escriba esticava a tanga para que ela oferecesse um suporte firme para o papiro. Nessa posição, ele segurava na mão esquerda o rolo do qual ia puxando um pedaço de comprimento suficiente para escrever, com a mão direita, da direita para a esquerda. A paleta ficava no chão ao seu lado, ou em sua frente, e muitas vezes ele guardava seus pincéis atrás da orelha direita. Tem sido afirmado que a altura máxima de uma folha de papiro e, portanto, a de um rolo era 47 cm. Entretanto, conforme informa Cerny, raramente essa grandeza era usada em textos literários, somente em documentos oficiais ou de negócios. Para contas, esse tamanho era ideal porque dava espaço suficiente para escrever colunas longas de nomes e de figuras, cada uma com o total embaixo, sem a necessidade de dividi-las em diversas outras menores, com os totais na última coluna referindo as diversas colunas anteriores (Cerny, 1947, p. 15). Linhas verticais tinham uma desvantagem – uma linha recém-escrita, de tinta fresca, podia ser facilmente borrada pela mão, enquanto ela escrevia a linha seguinte. Essa foi provavelmente a razão pela qual, durante a XII Dinastia, uma mudança da linha vertical para a horizontal aconteceu. Ambas as direções passaram a ser usadas indiscriminadamente por algum tempo, até no mesmo manuscrito. Depois da vitória completa da escrita horizontal, a vertical ocorria excepcionalmente para títulos como era no período da prioridade das verticais, com as horizontais. Tudo isto se aplica ao hierático; hieroglifos nos manuscritos do Livro dos Mortos e textos religiosos eram escritos até o fim em linhas verticais em carreira – por razões desconhecidas – da esquerda para a direita. Quando o rolo estava escrito nos dois lados, o escriba podia lavar o velho texto em um lado ou nos
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dois e escrever um novo, produzindo o que se chama de palimpsesto. Quando o escriba fazia um erro, ele lavava os sinais errados e escrevia os certos no lugar. Embora parece ter havido um pedaço de pano para isto, ele provavelmente lambia a tinta, explica Cerny, ao observar que a palavra ftt para apagar (em inscrição) é determinada pela imagem de uma língua e de um homem com sua mão na boca. A tinta dos Egípcios consistia somente de carvão com resina, então não podemos saber o que apagaram, pois os seus vestígios não reagem a nenhuma química, conclui o egiptólogo (Cerny, 1947, p. 19-24). Para ter uma escrita em cor parelha e preta o escriba tinha de mergulhar o seu pincel várias vezes na tinta. Nos textos literários, raramente era usada a tinta de cor vermelha, ao passo que, nos documentos de negócio, ambas eram usadas para distinguir tipos de itens, assim medidas de cevada eram escritas em preto, enquanto as de trigo, em vermelho. Em datas, o mês e o dia eram grafados em vermelho, bem como os títulos dos textos literários e o começo das novas seções. Esse hábito persistiu e ainda se reflete no nosso termo „rubrica‟. Em meio a vários, salientamos como caso exemplo sobre a duração do período de aprendizado do escriba o relato de Amun Bekenkhons, da XIX dinastia, em hieroglifos, grafado em sua estátua funerária. Ele informa que Amun estudou quatro anos em uma escola, em Karnak, junto ao Templo da deusa Mut. Depois, preparou-se ao longo de 11 anos em estabelecimentos reais, quando, finalmente, pôde iniciar uma carreira no Templo, onde era, até então, um simples sacerdote. Pelos cálculos dos Janssens feitos sobre as informações, Bekenkhons foi longevo. Ele iniciou sua formação com cinco ou seis anos e exerceu-a, como escriba, até cerca de noventa anos de idade. As instruções4 de Ptahotep, um Vizir, provavelmente compostas durante a V dinastia († 2380 a.C.), é a denominação dada a um texto escrito
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Uma das características marcantes do gênero da literatura Egípcia denominado de Instruções e que eles expressavam um pensamento tão rígido e dirigido como Se tivessem sido criados dentro de uma moldura. Nesse sentido, tais textos manifestavam uma noção de sociedade regrada e perfeitamente organizada. Por veicularem essa idéia, certamente cooperaram e muito para
Origens do Ensino 159
pelo funcionário real, em resposta à solicitação do Faraó, quando Ptahotep pediu-lhe permissão para abandonar o cargo de vizir, pois sentia-se velho e cansado, indicando o filho para substituí-lo. O rei não se opôs à troca, mas solicitou a Ptahotep que instruísse o jovem a ser um bom funcionário, pois, segundo o faraó, ninguém nasce sábio. Em sociedades, como a do antigo Egito, em que as pessoas não pontuavam com exatidão suas idades, os critérios para determinar a velhice giravam mais em torno das atividades das pessoas, do que no período de vida em que se encontravam. Em outras palavras, envelhecer era diminuir a produtividade e/ou criar dependência de outras pessoas. Um dos termos que indica a velhice é a expressão
. Observemos, nesse conjunto de sinais, a figura que
determina o significado do grupo, que é a de uma pessoa arqueada e apoiada em um bastão, visualmente consolidando o significado do estado de velhice naqueles tempos. A instrução de Ptahotep para o seu filho inicia com essas palavras: “Não seja arrogante porque você tem estudo: não seja convencido porque você é bem informado. Consulte tanto o homem ignorante quanto o sábio”. Nela, a relação afetiva entre um pai e o filho é primorosamente destacada: “Se você for um homem de valor E produzir um filho pela graça de Deus, Se ele for honesto, tenha ele perto, Tome cuidado com suas posses Faça para ele tudo de bom, Ele é seu filho, seu ká criou-o, Não afaste seu coração dele” (Lichteim, 1975, p. 66).
A instrução possui cerca de 40 máximas, finalizando com a advertência de que, se o jovem escriba, na posição de vizir herdada do pai, satisfizer o faraó, terá uma vida longa. (James, 1989, p. 97). Nesse epílogo, Ptahotep evidenciou um dos institucionalizar máximas estruturalmente constitutivas do processo formativo da cosmovisão do antigo Egito (Lichteim, 1975, p. 5).
A formação do escriba no antigo Egito 160
três fatores que facilitavam a promoção social de um jovem: o nascimento, o talento e os favores de um faraó. Era o governante quem nomeava os funcionários civis, religiosos e militares. Em princípio, quem possuísse as duas primeiras credenciais tinha um caminho aberto para uma carreira bem-sucedida, fato que para a maioria da população conferia o destino de suceder os pais em seus ofícios ou ter a sorte de participar de uma atividade militar venturosa, que eventualmente poderia atrair os favores do Faraó para ele. Os filhos dos companheiros militares do rei e das amas de leite da família real podiam ser favorecidos pela convivência com os príncipes, receber uma boa formação e com isso fazer carreiras rápidas, conquistando postos de liderança na administração do Egito. Muitos deles faziam retratar em suas tumbas as imagens de suas mães amamentando o Faraó, com vistas a imortalizar a relação de „leite‟, em lugar da de „sangue‟ que tiveram com a realeza. No decorrer da décima oitava dinastia, aparece na escrita Egípcia a expressão kap, referente a uma parte do palácio, a qual poderia funcionar como uma espécie de escola maternal. Há uma hipótese de que os filhos dos governantes estrangeiros fossem ali atendidos. Seja como for, enquanto o termo foi usado, ser uma “criança da kap” era, segundo os Janssen, uma grande honraria (Janssen, 1996, p. 143). O ensinamento no Egito não era feito apenas para a formação de escribas. Eram necessários professores nos palácios reais, para os príncipes e princesas de sangue real, bem como para os filhos de monarcas estrangeiros que lá iam estudar. As residências províncias dos governadores, inspiradas sempre no modelo do Faraó, tinham as mesmas exigências. Os templos, de outra parte, demandavam os escribas versados nas ciências sagradas, que pudessem interpretar os velhos livros canônicos, para compor novos, formular as legendas que deveriam ser gravadas nas muralhas dos santuários construídos ou no pedestal das estátuas erigidas.
Origens do Ensino 161
Por essas razões, palácios e templos tinham, nas suas dependências, o
que os antigos textos denominam como Casas da vida
pr-„nh-pr,
quer dizer, um lugar onde se ensinava a ler, a escrever, além de literatura, e de ciências. Os estudantes que faziam sua formação nas escolas do Palácio saíam com o título de escribas do Rei; e os dos templos eram denominados de os escribas de Deus. A freqüência desses títulos nas estátuas funerárias, encontradas em vários locais onde não havia escolas, faz pensar que muitos dos diplomados retornavam aos seus lugares de origem nas vilas e para lá levavam os princípios e métodos em uso nas grandes escolas do País. Não havia lugar específico na burocracia para as meninas, o que leva a cogitar que elas não eram ilustradas. Talvez a grande maioria não fosse realmente, e, nesse sentido, é muito interessante um texto grafado em um monumento do rei Djozer, em Saqqara, reclamando das pessoas que escreviam nos muros: “É como o trabalho de uma mulher estúpida” (Drioton, 1949, p. 8). Sabidamente o ensino era para os piás, mas algumas meninas sabiam ler e escrever. Há indícios de que Meritaten e Meketaten, filhas de Akhenaton, tinham essas habilidades. Também na vasta coleção de ostracas, oriundas da Vila de Deir el Medina, algumas testemunham que mulheres e familiares dos trabalhadores eventualmente também aprendiam a ler e a escrever. Entretanto, esses registros sobre mulheres letradas são menos freqüentes que os textos, como as Instruções de Any, compostas no Novo Reino, e que valorizam as mulheres pelo seu papel de mãe. Diz Any textualmente: “Retribua em dobro a comida que sua mãe lhe deu, Sustente-a como ela sustentou você; Ela teve em você um fardo pesado, mas ela não o abandonou Quando alguns meses depois de você ter nascido Ela ainda o tinha como sua canga Seus seios em sua boca por três anos Como você crescia seu excremento ficava nojento Mas ela não se enojava, dizendo: „O que podemos fazer?‟ Quando ela mandou você à escola
A formação do escriba no antigo Egito 162
E você foi ensinado a ler e a escrever Ela ficou vigiando você diariamente Com pão e cerveja na sua casa Quando você como um jovem tomar uma mulher E você se estabelecer na sua casa Preste atenção no seu produto Faça-o crescer como fez sua mãe Não lhe dê motivo para amaldiçoá-lo Para que ela não tenha que levantar sua mão para Deus E ele tenha que a ouvir chorar” (Lichteim, 1975, p. 141).
Em suas Instruções, Any encerra o texto afirmando que “Feliz é o homem cuja família é grande; ele é saudado segundo a sua prole”. A adolescência, momento do processo de crescimento em que as crianças vão trocando as brincadeiras pelas atividades produtivas, dificilmente é encerrada por um fato convencionado que indique a entrada do indivíduo na idade adulta. Vários textos de literatura discutem essa transição afirmando que ela ocorre quando e se o homem vencer várias ordens de dificuldades, das financeiras às familiares, adquirindo bens materiais e constituindo um núcleo afetivo próprio, fatos que lhe dariam qualificação à maturidade plena. Nas biografias, encontradas em tumbas e estátuas dos mortos, eram comuns os auto-elogios e a ênfase as dificuldades vencidas pelo esforço próprio. Hapuneseneb, um dos mais poderosos homens no decorrer do governo da rainha Hatsepsut, no relato funerário que faz sobre a história meteórica de sua ascensão ao poder, explicou que ela se devia a excelência de seus projetos (Breasted, 1988, p. 162). O escriba era o único profissional que era reconhecido como maduro, no momento em que assumia seu primeiro trabalho independente, o que lhe garantia de imediato consideração social, talvez pela capacitação e pela responsabilidade exigidas a atividade. O processo de formação de um escriba foi-se tornando mais longo e complexo, na medida em que eles precisaram aprender, além da hieroglífica, a escrita hierática, uma forma cursiva de grafar aqueles signos, empregada para a
Origens do Ensino 163
redação em papiros. Os gregos denominaram-na de escrita dos sacerdotes, porque era muito usada para textos de cunho religioso. A diferença entre elas pode ser comparada à existente entre a nossa escrita a máquina e o texto manuscrito. Em cerca de 700 a.C., foi criado ainda um terceiro tipo de escrita, a partir da hierática: a demótica, através de novas ligações e símbolos. O aprendizado da grafia no antigo Egito complicou-se ainda mais quando, a partir de 332 a.C., com a conquista do Egito por Alexandre da Macedônia, a língua grega foi sendo imposta na região. Os Egípcios continuaram a falar sua própria língua, mas cada vez menos, porque toda a atividade administrativa e pública passou a ser falada e grafada em caracteres gregos. Conforme se passaram os séculos e as gerações, a antiga língua egípcia foi-se modificando. Os falantes, para facilitar o registro lingüístico, adotaram o alfabeto grego e sete caracteres da escrita demótica, criando, então, sua quarta escrita e uma nova linguagem: a cóptica.5 Durante esse processo histórico, o aprendizado da escrita no Egito foise tornando uma atividade extremamente complexa, acessível a poucos, o que tornava o escriba um profissional poderoso e incentivava a prática de tornar a atividade hereditária. No Egito, como em todo o oriente, o ensino da escrita era feito pelo escriba. Ele foi, então, o mais acabado “produto” da pedagogia dessas antigas civilizações, o continuador de seus métodos e o principal responsável pela perpetuação dos valores de suas épocas, em todos os sentidos: familiar e de estrutura social. As informações mais completas sobre o ensino dos escribas vêm de Deir el Medina, uma vila de trabalhadores, situada no Alto Egito: em um pequeno e estreito vale, à margem esquerda do Nilo, em frente à cidade de Tebas.6
5
6
O nome copta é derivado da palavra grega Aiguptos. O termo também designa, atualmente, os adeptos da religião cristã no Egito. A escrita cóptica foi a última forma de grafia da língua do antigo Egito. Ela sobreviveu aos períodos de dominação grega, romana, biza ntina e árabe, enquanto as outras grafias, a hieroglífica, a hierática e a demótica, foram abandonadas. Essa sobrevivência da escrita e da língua coptas possibilitou a decifração daquelas escritas mortas (Bakos, 1986, p. 23). Ela foi fundada pelo Faraó Ahmosis I, que iniciou com seu reinado a XVIII dinastia. Deir el Medina foi cercada por um muro de tijolos, sob o reinado de Tutmés I (1506-1493 a.C.), abrigando os construtores
A formação do escriba no antigo Egito 164
Poucos sítios arqueológicos do Egito Faraônico legaram registros minuciosos sobre aspectos da vida privada, em épocas longínquas, quanto a vila de Deir el Medina. Havia escolas nessa região, conforme atestaram as escavações de um prédio reservado ao ensino dos escribas e de uma pintura de tumba mostrando uma sala de aula, com a estátua de Thot, deus da escrita e das ciências. Na mesma cena, estavam pintados bancos para uso dos mestres e caixas para papiros, os quais provavelmente serviam como material didático. Entretanto, além dessas informações de cunho material; pouco sabemos sobre como era conduzido o ensinamento nas escolas, nem sobre o significado da adoção dos mesmos textos em diversos pontos do Egito para deveres dos alunos, tampouco como se fazia a uniformidade da escrita e das mudanças na forma dos signos e da estrutura gramatical, que sofreram de forma quase uniforme e simultânea no País, ao longo do período faraônico (Drioton, 1949, p. 12). É bastante conhecida a imagem em hieroglifo de um escriba, porque ele porta na mão ou no ombro um pedaço de cálamo ou caniço, talhado em ponta, apincelada ou rachada, usado como instrumento de escrita em papiro, a paleta, as pastilhas de tinta e o pote de água. Seu título na escrita hieroglífica escreve-se pela imagem desse material como traçado de seus signos:
. O título de
escriba diante do nome de um personagem possivelmente funcionava como um sinal distintivo, honorífico. Segundo Drioton, os grandes dignitários da corte real não o dispensavam, o que o leva a concluir que o termo escriba não exprimia apenas o fato de que ele portava conhecimento, mas era uma denominação oficial que correspondia a um saber reconhecido como os títulos atuais de bacharel, licenciado ou doutor (Drioton, 1949, p.9). Os determinativos que iam junto ao título da tumba desse Faraó, que inaugurou em 1540 a.C., o cemitério dos mortos reais no Vale dos Reis. Deir el Medina durou cerca de 450 anos, o que abarca o período da XIX e XX dinastia. Do período de Ramsés III, no início da XX dinastia, cerca de 1198 a.C., resta-nos um censo, o qual revelou a presença de 120 lares e de cerca de 1.200 habitantes na vila (Tosi, 1972, p. 11). O período de maior prosperidade do vilarejo foi no decorrer da XIX dinastia. Já nos inícios do reinado de Ramsés III, na dinastia seguinte, eram visíveis os sinais de decadência indicada especialmente pela rápida subida do valor dos cereais (Keller, 1971, p. 32).
Origens do Ensino 165
de escriba precisavam a que ramo ou grau de ensinamento eles pertenciam, se eram apenas escribas ou se escribas do Rei ou de Deus. Uma das titulações mais importantes que um jovem escriba poderia aspirar era o de , ou seja, Escriba-sacerdote na Sede da Verdade, o que significava um alto posto na Necrópolis de Tebas, junto ao Vale dos Reis, das Rainhas e dos Nobres (Cerny, 1973, p. 42-43). Com a idéia de ilustrar o objeto desta apresentação, qual seja o de indicar as relações entre família, escrita e ensino, julgamos fundamental referir a um caso da passagem dos conhecimentos e dos cargos de escriba de pai para filho. A história da pesquisa sobre este fato começou com a descoberta de um grafite feito na rocha de uma montanha de Tebas, no qual o escriba do rei deixou
a
valiosa
indicação
do
o pai, o de
nome
de
três
de
Dhutmose seus
ancestrais,
Harshire, seu avô, e o de
Amennakhte, o bisavô. A partir daí, Jaroslav Cerny desenvolveu paciente pesquisa que lhe permitiu agregar a esse grupo mais dois familiares: o filho de Dhutmose, denominado:
Butehamun e de seu neto:
Ankhefenamun. Jaroslav ainda descobriu que o patriarca da família era
, Escriba da Tumba da Necrópolis de Tebas (Cerny, 1973, p. 339 e
segs.). Essa passagem do ofício ao longo de seis gerações é surpreendente, porque é comprovada pela detalhada documentação, exaustivamente recolhida e analisada. Entretanto, é bem provável que tais casos de hereditariedade dos cargos de escriba tenham sido freqüentes. Há um texto, conhecido como a Sátira dos Ofícios, assinado com o nome de Dua-Khety, que parece tratar-se do discurso ao filho – Pepi – enquanto o conduzia para estudar em uma Escola de Escribas. Nesse texto, o pai vai enumerando para o jovem todos os problemas das
A formação do escriba no antigo Egito 166
diferentes atividades que ele poderia exercer, exceto o oficio do escriba. Esse, explicava Dua-Khety, só traz satisfação, pois esse profissional, esteja onde estiver, terá tudo de que necessitar. Pela leitura desse texto, ficamos com a certeza de que tornar-se escriba significava alcançar uma posição cômoda no antigo Egito. Entretanto, podemos questionar essa vida tão boa face as evidências sobre o lento e exaustivo processo de formação desse profissional, pelas dificuldades de aprender tantas escritas diferentes, e pelos tipos de atividades que Ihe eram exigidas, quando já qualificados. Retornando ao expressivo número de cartas pessoais que Dhutmose deixou, além dos registros profissionais, vamos encontrando preocupações pessoais muito graves, impróprias, em princípio, a um escriba, cuja posição naquela sociedade era tão
valorizada
e estimulada.
Dhutmose, que
abertamente confessava não gostar de viajar, mas precisava por ofício, para levar alimentos e armas para a Núbia, costumava rezar, no tempo em que estava fora de Deir el Medina, e fazer oferendas aos deuses locais para retornar são e salvo à família. Ainda, a cada saída de Deir el Medina, ele pedia a amigos que cuidassem de Hemtshere, sua segunda esposa, com quem tivera uma filha, da esposa de seu filho Butehamun, bem como dos dois netos, por parte dele. Em missiva direta para o filho, Dhutmose pede-lhe que cuide das crianças pequenas e especialmente da filha de Hemtshere, sua mãe e ama. Também rogava que Butehamun cuidasse dos jovens meninos que estavam na escola, evitando que eles deixassem de estudar. Tais cartas foram enviadas de lugares diversos, como Heracleópolis, Hermópolis, Elefantina e Núbia. Felizmente, dispomos também das respostas que ele recebeu de Butehamun, Hemtshere e Shedmde, a nora. Por elas, vemos como era extremamente carinhosa a forma como eles se comunicavam entre si. Dhutmose lamentava-se por não ter Hemtshere junto dele. Seus queridos também se preocupavam com a segurança dele, especialmente
Origens do Ensino 167
quando estava na Núbia, onde havia lutas e, por isso, aconselhavam-no a ficar longe dos campos de batalha (Bakos, 1996, p. 153-167). Uma carta da XIX dinastia dirigida por um escriba no importante posto de instrutor dos oficiais para a infantaria e cavalaria do faraó, a sua mulher morta, revela os pensamentos e angústias desse funcionário real. Ele está sofrendo alguns problemas pessoais e acredita que eles se devam à má vontade da falecida para com ele. Ele procura, então, relembrar coisas boas e o modo leal com que ele a tratara, presenteando-a com coisas finas, poupando-a de sofrimentos. Quando ela adoecera procurou um médico importante que a tratou. O fragmento do texto mais importante para esta apresentação é o que segue: “Quando eu fui acompanhar o Faraó na sua jornada para o sul, esta condição (isto é a morte) a derrubou, e eu passei diversos meses sem comer ou beber como uma pessoa normal. Quando eu cheguei em Mênfis, implorei uma licença para o Faraó e fui até onde você estava.”
De forma simples, o escriba informa sobre sua submissão ao Faraó, mesmo em alto posto, o que implica obrigações cotidianas, onde ele era impedido de tomar decisões pessoais repentinas (Bakos, 1994/5, p. 18). Vimos que a educação entre os egípcios era muito severa, o que começava ainda na infância e, se o objetivo era a formação de escriba, ela era longa e extenuante. Era difícil atrair jovens, cheios de vida e de imaginação para copiar e decorar os símbolos e p rincípios de tantas escritas e de velhos manuscritos, daí que castigos corporais e textos que encorajavam o estudo com vistas aos benefícios do exerceu profissional eram
necessários.
Entretanto,
bem
ou
mal,
os
aprendizes,
pelas
representações que deixaram, coloridas e sedutoras, de outras profissões, que ainda nos deleitam, quando observamos as pinturas que deixaram ilustrando seus textos, informam-nos que suas escolhas profissionais não os impediam de observar, e quem sabe apreciar, outras atividades. Quando Alexandre da Macedônia conquistou o Egito, acelerou-se o processo de transformação da sociedade egípcia pelo contato permanente,
A formação do escriba no antigo Egito 168
a partir de então, com a cultura helênica. Foram levados para a terra nilótica alguns princípios básicos da educação grega, que agregaram, à forma de ensino seletiva e discriminatória do antigo Egito, uma justificativa legal, em lugar da mitológica. Na longa convivência entre as duas sociedades, que perdurou até a conquista do Egito, pelos romanos em 30 a.C., paulatinamente foi se desenvolvendo um novo tipo de linguagem falada – a cóptica, que passou a ser grafada também. A nova expressão gráfica baseava-se no alfabeto grego, acrescido de sete símbolos da escrita demótica, importantes para grafar os sons da nova língua, cuja gênese incluía a antiga linguagem original dos antigos egípcios, a qual, a partir de então, foi sendo abandonada e terminou por ser definitivamente esquecida. Neste ano de 1999, em agosto, comemoramos o bicentenário da descoberta da pedra de Rosetta na pequena vila de Rashid, no delta ocidental por Pierre François Bouchard, membro da expedição de Napoleão Bonaparte no Egito. Desde a chegada da pedra ao Cairo, onde foi depositada no Instituto Nacional, fundado por Napoleão, ela despertou um interesse enorme no meio intelectual contemporâneo. Foi graças aos esforços de diversos estudiosos, que nela identificaram um mesmo texto registrado em três escritas diferentes a hieroglífica, a hierática e a demótica que, através de um método comparativo, François Champollion conseguiu decifrar o texto nela contido, compreender os princípios da escrita hieroglífica e desencadear um extraordinário interesse por aquela civilização, o qual levou a criação de uma nova ciência: a Egiptologia. Esse fato nos permite, hoje, conhecer as histórias dos escribas, contadas por eles mesmos. Referências bibliográficas ANDREWS, Carol. The Rosetta Stone. Londres: British Museum, 1989.
Origens do Ensino 169
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Origens do Ensino 171
ENSINO, ESCRITA E BUROCRACIA NA SUMÉRIA KATIA MARIA PAIM POZZER
Falar sobre as origens do ensino no Mundo Antigo oriental é uma tarefa tão rica e diversa quanto instigadora. Porém, inicialmente, devemos dizer que, por mais contemporâneas que possam parecer, muitas das considerações que tecemos, hoje, sobre educação estão relacionadas à civilização mesopotâmica, que existiu há cerca de 4.000 anos, no Oriente Próximo. Esse fato vem reforçar uma antiga máxima que diz: conhecendo melhor o passado, podemos compreender melhor o presente e, quem sabe, construir um futuro melhor.
Invenção da escrita A descoberta e a difusão da agricultura e da pecuária, durante o período neolítico (7000-4000 a.C., aproximadamente), favoreceram o processo de sedentarização das comunidades nômades e de formação de novas organizações da sociedade. O desenvolvimento da agricultura gerou uma elevação das reservas alimentares, possibilitando uma maior especialização das atividades artesanais e técnicas, provocando um aumento da divisão social do trabalho. Esse fenômeno econômico acompanhou-se de uma aceleração do processo de descobertas e invenções decisivas, que marcaram essa época. O nascimento da escrita inserese, portanto, nesse contexto histórico. Os documentos mais antigos conhecidos até hoje foram encontrados em um templo, na cidade de Uruk, com data aproximada de 3200 a.C. São tabletes de argila em escrita cuneiforme, apresentando sinais pictográficos. O nome da escrita cuneiforme vem do latim cuneus – canto –, pois ela é o resultado de uma incisão de um estilete, impresso na argila mole, tendo três
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dimensões (altura, largura e profundidade). Atualmente, avalia-se que foram encontrados entre 300 mil e 500 mil desses documentos, mas estima-se que a produção tenha sido de 1.000 tabletes por dia durante três milênios, o que daria um total de um milhão! Atrás dessa surpreendente produção desenha-se um homem especializado: o escriba.
O personagem do escriba Conhecemos os nomes de alguns milhares de escribas que se sucederam desde a metade do segundo milênio a.C., pois era padronizado o uso da aposição, no colofão, do nome do redator do texto como garantia de autenticidade do documento. O que aparece, claramente, na documentação é que o fato de que se saber ler e escrever, no Oriente Antigo, era considerado não somente um privilégio, mas, sobretudo, uma superioridade social. Somente as famílias abastadas podiam assegurar a instrução de um futuro escriba, pois o custo dessa educação era muito elevado, e os estudos, bastante longos. Os escribas, geralmente, provinham de grandes famílias, que abrigavam: funcionários; responsáveis por grandes extensões de terra; governadores; sacerdotes; ricos mercadores; etc. Outra característica, dessa profissão, era seu caráter hereditário. Há inúmeros documentos atestando que o ofício de escriba passava de pai para filho. Uma questão filológica aparece como um caso intrigante quanto à (presumida) pronunciação das letras. O logograma sumério para escriba e DUB.SAR, que, em acádico, é tupšarru e, em hebreu, tiphsar. Em textos mais recentes, encontra-se o logograma (LÙ).A.BA, também traduzido por tupšarru. A questão é que, enquanto o tradicional DUB.SAR era utilizado em tabletes, o sinal (LÚ).A.BA era grafado em relevos assírios ou em pergaminhos e papiros no mundo semítico. Este sinal (LÚ).A.BA pode ser interpretado como “o homem do alfabeto”.
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Se essa etimologia está correta, os assírios, aparentemente, conheciam as duas primeiras letras do alfabeto aramaico como o “a” e o “ba”, no início do primeiro milênio a.C. Estima-se que os assírios tenham começado a utilizar esse termo a partir do século XI a.C., mas em Ugarit (cidade situada na costa do Mediterrâneo – antiga Fenícia), desde o século XIII a.C., em listas lexicais, na forma de AB.BA. É provável que, em ugarítico as duas primeiras letras podiam ser pronunciadas assim. Todavia, o abecedário bilíngüe de Ugarit sugere que a segunda letra chamava-se BE. Podemos fazer uma analogia entre o a-ba, para a palavra alfabeto no acádico de Ugarit e no neoassírio, com o aleph-beit para a palavra alfabeto em hebraico, no período intermediário, ou, ainda, para a palavra alfabeto no português, baseado nas letras gregas. O que fica claro e que não somente a ordem, mas também os nomes das letras do nosso alfabeto moderno possuem um antecedente direto na invenção do silabário oeste-semítico do segundo milênio a.C. Conhece-se muito pouco sobre as origens da profissão de escriba, mas, através de textos sumérios tardios, sabemos da importância social desse personagem. Um fato marcante é que, durante o segundo e o primeiro milênios a.C., nenhum escriba registrava a sua posição pessoal, suas idéias ou impressões a respeito do documento que elaborava. É certo que, com o advento do alfabeto, o prestígio do escriba diminuiu: a maior facilidade permitiu o acesso às práticas de leitura e de escrita a uma camada mais ampla da população.
A escola e a formação do escriba O escriba realizava seu processo de aprendizagem dentro das escolas especializadas, mas é possível que, originalmente, o ensino tenha sido feito pelos centros administrativos dos palácios ou dos templos; porém, as
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informações atuais de que dispomos dão ênfase à existência de escolas privadas, por conseguinte, pagas. Na segunda metade do terceiro milênio a.C., houve um florescimento do sistema escolar sumério. A escola suméria era chamada de eduba (é.dub.ba.), “casa dos tabletes”, em acádico, bît tuppi. Foi criada com a finalidade de formar os escribas para trabalharem nas tarefas econômicas e administrativas do país, sobretudo do templo e do palácio. Porém, com o tempo, ela se tornou um centro de difusão da cultura e do saber. Entretanto, até hoje, não podemos descrever, com precisão, como seriam essas escolas, pois não há registros de instalações particulares características. Nessas condições, subsistem poucos elementos característicos: a argila ou os estiletes indicam um local de trabalho e não, necessariamente, de aprendizagem. Um único grupo de objetos, então, é significativo: o dos tabletes escolares. Estes possuem uma forma circular particular, completamente diversa dos formatos habituais utilizados para os atos da administração, afastando, assim, a possibilidade de engano ou dúvida sobre a natureza do documento. Arqueólogos norte-americanos encontraram, em Nippur, cidade situada ao sul da Babilônia, três casas contíguas contendo uma grande quantidade de tabletes escolares. Esse achado arqueológico suscitou a discussão sobre a estrutura das escolas. Duas hipóteses foram levantadas: a primeira é a de que tratar-se-ia de três escolas de escribas diferentes, e a segunda, e mais provável, diz que duas das casas seriam habitadas por professores, que ensinariam a domicílio, e a terceira casa seria uma escola, pois nela foram encontrados mais de 1.400 tabletes e fragmentos escolares. Contudo, devemos considerar que a transmissão do saber poder-se-ia realizar, também, no espaço doméstico, com o escriba, por exemplo, ensinando seu próprio filho em casa. A aprendizagem dava-se de uma maneira bastante simples: através da cópia de um modelo feito pelo professor: um sinal cuneiforme, um grupo de sinais
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ou uma frase escritos sobre uma das faces de um tablete ou em uma linha eram, em seguida, copiados sobre a outra face ou na linha de baixo do modelo. O estudante aprendia, inicialmente, a forma dos sinais e seu significado. Os exercícios complicavam-se à medida em que avançava o estudo: de sinais simples passava-se a combinações mais complexas, isto é, das sílabas aos ideogramas, depois, as listas de sinônimos ou categorias de objetos, sem se esquecer a gramática; dever-se-ia memorizar a pronúncia, isto é, os valores fonéticos desses sinais; e, em uma etapa posterior, passava-se às obras literárias, que eram copiadas e memorizadas da mesma maneira. Segundo
a
documentação
encontrada
na
Suméria,
podemos
reconstituir uma certa orientação pedagógica que havia na escola. Os estudos iniciavam com exercícios silábicos simples, seguiam com listas de sinais cuneiformes de cerca de 900 entradas, estudando-se, ao mesmo tempo, a pronúncia e, depois, listas cada vez mais complexas. Dentre elas, havia listas com nomes das partes do corpo humano, do corpo de animais, plantas e minerais, listas com nomes de profissões, de ferramentas e utensílios, toponímios, etc. Tal como hoje, os antigos professores dependiam de seus salários para viver. A escola suméria, que, provavelmente, começou como uma dependência do templo, tornou-se uma instituição secular e privada. A educação não era nem universal, nem obrigatória. O ensino iniciava na infância e seguia até o início da vida adulta. Sabemos que o professor era chamado de ummia, ou o pai da escola, e os estudantes eram os filhos da escola. Haviam vários funcionários, como, por exemplo, o encarregado do desenho, do sumério, da aritmética, da disciplina, etc. Ainda segundo os textos, sabemos que a disciplina era bastante rígida e que os castigos corporais eram habituais na tentativa de correção de erros e insuficiências dos alunos.
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Alguns desses textos foram conservados, como o do documento conhecido, somente, através desta tradução, realizada pelo grande sumerólogo americano Samuel Kramer. O tablete que contém o texto, hoje conhecido como Os Tempos da Escola, trata da situação de um aluno, de sua relação com a escola e com o professor. O texto foi redigido por um professor da escola de escribas, por volta do ano 2000 a.C., e não se conhece o seu lugar de origem, pois existem várias cópias com fragmentos. O texto começa com uma pergunta do professor ao estudante: “– Estudante, onde tu tens ido desde tua primeira infância?” E o estudante responde: “– Tenho ido à escola.” “– O que tens feito na escola?” “– Decorei o meu tablete, almocei, preparei o meu novo tablete, escrevi-o, terminei-o; depois, apresentaram-me os tabletes de recitação: e, à tarde, trouxeram-me os meus tabletes de exercício. No fim da aula, eu fui para casa, entrei em casa e encontrei o meu pai. Expliquei os meus tabletes de exercício ao meu pai, recitei-lhe o meu tablete, e ele ficou deliciado, pois enchi-o de alegria.” O estudante, então, entra na casa dos criados e diz: “– Tenho sede, dá-me água para beber; tenho fome, dá-me pão para comer; lava-me os pés, faz-me a cama, que quero ir deitar-me. Acorda-me de manhã bem cedo, para eu não chegar atrasado, senão, o professor vai me bater com a vara.” Então, no outro dia, pela manhã, o estudante fala que: “– Quando levantei-me de manhãzinha, encarei a minha mãe e disse-Ihe: Dême o meu almoço, quero ir para a escola! A minha mãe deu-me dois pãezinhos e eu fui para a escola. Na escola, o vigilante encarregado de verificar a pontualidade disse: Por que chegaste atrasado? Temeroso e com o coração batendo, apresentei-me ao professor e fiz-lhe respeitosa reverência.” “O meu professor leu o meu tablete e disse: Falta aqui qualquer coisa, bateu-me com a vara.
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O vigilante encarregado da limpeza disse: Andaste na rua e não cuidaste das tuas roupas, bateu-me com a vara. O vigilante encarregado da assembléia disse: Por que falaste sem autorização?, bateu com a vara. O vigilante encarregado do bom comportamento disse: Por que te levantaste sem autorização?, bateu com a vara. O vigilante encarregado do portão disse: Por que saíste sem autorização?, bateu com a vara. O vigilante encarregado do sumério disse: Por que não falaste sumério?, bateu com a vara. O meu professor disse: – A tua ortografia não é satisfatória, bateu com a vara.
E assim eu comecei a odiar a arte de escriba, comecei a negligenciar a arte de escriba. O meu professor não teve mais alegrias comigo, deixou de me ensinar a arte de escriba.” Desesperado, o estudante voltou-se para o pai e disse-lhe: “– Dá-lhe algum salário suplementar e que ele fique bondoso [...], que ele me corrija também.” Daqui em diante, o próprio autor retoma a narrativa: “Àquilo que o aluno disse, o pai prestou atenção. Convidou o professor e, 1
quando este entrou em casa, fizeram-no sentar na cadeira grande.”
O pai ordenou aos criados: “Derramem-lhe óleo puro, tragam-no para a mesa. Façam com que o óleo corra como água sobre o seu ventre e costas; quero que o vistam com boas roupas, que lhe dêem algum salário extra, lhe ponham um anel no dedo.” Os criados fazem o que Ihes foi ordenado, e então o professor diz ao estudante: “Jovem, porque não desprezaste as minhas palavras, completarás a arte de escriba desde o princípio até o fim Porque deste-me tudo sem poupar, pagaste-me um salário maior do que mereço e honraste-me, que Nidaba, a rainha dos anjos da guarda, 1
O lugar de honra, na peça principal da casa, segundo os costumes mesopotâmicos.
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seja teu anjo da guarda; que teu estilete afiado escreva bem; que teus exercícios não tenham erros. Dos teus irmãos, possas ser o guia; dos teus amigos, possas ser o chefe; que sejas o maior dos formados. [...]. Realizaste bem as tarefas escolares, és um homem de saber. Exaltaste Nidaba, a rainha dos estudos!”
O local de trabalho Até os dias de hoje, foram encontrados, pelos arqueólogos, alguns raros testemunhos do material e do local de trabalho dos escribas. Devemos, contudo, diferenciar os centros de arquivos, ou as escolas, do posto de trabalho ocupado pelo escriba. Podemos pensar que ele trabalhava no mesmo local onde classificava seus arquivos, mas não existe nenhuma prova que confirme essa hipótese. Um exemplo é o sítio arqueológico de Tell ed-Der, na Síria, recentemente escavado por uma missão belga. Nele, foi encontrada e escavada a casa do sacerdote Ur-Utu, com mais de 2.000 tabletes e um lote de estiletes, provando que a escrita era ali praticada. Porém, não foi encontrada nenhuma instalação especial para essa atividade. Uma situação diferente aconteceu na cidade de Terqa, às margens do Eufrates, 60 km ao norte de Mari, onde os arqueólogos pretendem ter encontrado o posto do escriba dentro de uma casa. Trata-se de modestos meios: um lugar com pavimento coberto com lajes para se agachar, um pote semi-enterrado no piso para conservar a argila ao alcance da mão, uma jarra com tabletes e, atrás, um pequeno armário; perto da porta, há um cesto, que pode ter servido para o transporte dos tabletes. Sabe-se que, em Mari, o escriba podia escrever um tablete em qualquer lugar do palácio; onde o rei estivesse, ele o redigiria. Contudo, essa constatação não deve colocar em dúvida a existência de centros onde os escribas trabalhassem, pois, para realizarem a contabilidade da gestão do palácio, deveria haver uma certa centralização nas dependências da própria construção.
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O currículo de estudos do escriba De acordo com os documentos até hoje encontrados no Sul da Mesopotâmia, sabemos que a maioria dos textos escolares eram da prática administrativa. Os alunos começavam com exercícios básicos, que facilitavam a aprendizagem dos sinais cuneiformes; depois, procediam a leitura de hinos divinos e reais, debates, cartas literárias, mitos, épicos e outras composições literárias – todas em sumério. Há pequenas evidências de modelos de contratos, de exercícios matemáticos e de cartas em acádico. As escavações arqueológicas trouxeram à Iuz dois tipos de documentos bastante instrutivos: – tabletes que continham apenas o início dos textos literários, jamais o final: tratava-se de textos copiados pelos estudantes em nível avançado, como um exercício; quando o professor estimava que os alunos haviam adquirido a técnica necessária para tal tipo de documento, ele decretava o fim do trabalho; – silabários, também chamados vocabulários, que eram listas de sinais cuneiformes
dispostos
em
estreitas
colunas
verticais,
às
vezes,
acompanhadas de palavras (de grupos de sinais), destinadas à aprendizagem de mnemotécnicas nas séries de sinais. Esses textos tornaram-se, ainda na Antigüidade, manuais de referência e, após, uma fonte importante para os assiriólogos, sobretudo quando se trata de listas bilíngües, com o equivalente acádico de palavras sumérias, por exemplo.
Funções do escriba O escriba precisava, antes de mais nada, dominar as centenas de sinais o sistema cuneiforme, em todos os seus sentidos, conhecê-los e reproduzi-los. Depois disso, que era a base de sua atividade, devia estar apto a redigir cartas e conhecer os formulários dos contratos. Mas ele precisava, também, conhecer as técnicas contábeis que permitiam gerirem-se os grandes patrimônios, garantir a
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distribuição dos salários sob forma de quantidades de cereais, de óleo, de vestimentas, que remuneravam os serviços prestados. Ele devia saber glorificar os altos feitos do rei, compor as inscrições reais, redigir os tratados e as alianças entre os Estados, levando em consideração os hábitos de cada reino. A diversidade de tarefas mostra a importância desse homem na sociedade, sendo que, quanto mais conhecimentos ele possuísse, em cada um desses domínios, mais ele seria procurado e mais teria riqueza e prestígio. As funções do escriba eram diversas. Na maior parte do tempo, ele trabalhava na administração dos templos e dos palácios. Raramente, o escriba estava a serviço de um particular, exceto no caso dos mercadores, quando as principais atividades do letrado eram a produção de mensagens, cartas, reconhecimento de dívidas (que hoje conhecemos como nota promissória) e recibos. Por outro lado, os reis, as rainhas, os príncipes e os altos funcionários possuíam um secretário particular, sobretudo nos períodos babilônico (séculos XIX e XVIII a.C.) e assírio (séculos VIII e VII a.C.). Outros escribas trabalhavam como escrivães públicos nas portas das cidades, mas, possivelmente, estes possuíam apenas rudimentos da ciência cuneiforme, e o seu saber não era comparável ao dos escribas da corte. Cabe aqui um parêntese para explicarmos o significado das portas das cidades no urbanismo oriental. Ainda que os conhecimentos no domínio dos espaços públicos sejam imprecisos, pois a Arqueologia sempre se interessou mais pelos templos e palácios do que pelas ruas, mercados ou praças públicas, sabemos que a porta da cidade, em acádico, bâbum, tinha um papel importante na vida social. A porta, como elemento integrante da cidade oriental, 2 era o ponto de encontro entre o interior da vida urbana e o mundo exterior, o lugar de chegada das caravanas e das feiras. Era um espaço de realizações de negócios, portanto, um local de trabalho para os escribas. Devemos ressaltar que, a partir da época do rei Hammurabi de Babilônia (século XVIII a.C.), as mulheres passaram a ter acesso a essa profissão, como 2
A etimologia da palavra Babilônia é bâb – porta, îlum – deus; tradução literal: a porta de deus.
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atestam os documentos provenientes de Mari e Sippar. Um exemplo disso é uma carta escrita pela princesa Nin-šata-pada, filha do rei Sîn-kâšid de Uruk e sacerdotisa da divindade Meslamtaea, na cidade de Durum, onde a nobre identificava-se como escriba (linha 16 no texto). Assinalamos a raridade de textos 3
provenientes de mulheres-escribas. Depois de longas saudações, Nin-šata-pada implora ao rei Rîm-Sîn que a tenha em consideração e queixa-se do próprio estado físico4, do fato de que sua família tenha sido dispersa e de que ela mesma viva no exílio5, na condição de escrava, fora da cidade de Durum. Reproduzimos, abaixo, um trecho do documento6:
Burocracia O
termo mais comum
utilizado para se nomear a
burocracia
mesopotâmica é DUB.SAR, tradicionalmente traduzido como escriba. Porém, vários estudiosos questionam isso, dizendo que escriba é um título, que não se
3
4
5
6
HALLO, W. W., Individual Prayer in Sumerian: the continuity of a tradition. JAOS 88, 1968. p. 78; CHARPIN, D., Le Clergé d‟Ur au siècle d‟Hammu-rabi. Genève-Paris: Droz, 1986. p.203, nota 1. Nota-se um paralelo entre as linhas 37, 38 e 39 desse texto e as linhas 4‟ e 10‟ do reverso da carta. A.1258+S.16OSN, editada por D. CHARPIN, Les malheurs d‟un scribe ou de l‟inutilité du sumérian loin de Nippur. In: ELLIS, M. Nippur at the centennial-35° R.I.A.Philadelphia, 1992. p.12 e 21, nota 16. Entre as seis cópias dessa carta, existe uma variante, que fala de quatro anos de exílio ao invés de cinco. HALLO, W.W., The Royal Correspondance of Larsa: III. The Princess and the Plea, In: CHARPIN, D. et JOANNÈS, F.. Marchands. Diplomates et Empereurs. Paris: ERC, 1991. P. 377-388.
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refere a uma ocupação específica, simplesmente designando um graduado na escola de escribas. No período de Ur III, DUB.SAR era um termo geral para burocratas de baixo e médio escalão. Isso pode ser demonstrado pelo estudo das impressões de selos-cilindros em numerosos tabletes administrativos do período. Também foram encontradas listas de selos oficiais registrando uma função especifica, nos quais o funcionário era apenas designado como DUB.SAR na inscrição do selo. Alguns desses títulos incluíam ì-rá-rá, kagur7, kuš7 e sanga (perfumista, superintendente dos silos, chefe dos barqueiros, administrador do templo, respectivamente). O número de escribas apurado permite supormos que o título abrangia uma variedade de ocupações – só para o período de Ur Ill, conhecemos os nomes de mais de 1.560 escribas DUB.SAR. Sabemos que os futuros membros dos altos escalões administrativos usavam o título de escriba. Um bom exemplo disso é o caso de Ilšu-iliya, filho de Ituria, governador de Ešnunna. Em seu selo, era chamado de escriba, mas ele sucedeu seu pai como a maior autoridade da cidade-Estado. Se DUB.SAR era uma palavra geral para burocrata, podemos concluir que o saber ler e escrever (não podemos falar de alfabetização, pois esse período é anterior a invenção do alfabeto) era um pré-requisito para se ingressar no serviço administrativo. Isso pode parecer redundante, mas, de fato, há poucas evidências que garantam a hipótese de que a maioria dos burocratas pudesse ler e escrever. O que pode ter ocorrido é que muitos oficiais, não sabendo escrever, tivessem escribas trabalhando para eles. Esse deve ter sido, muitas vezes, o caso, mas é importante lembrarmos que os membros do baixo e médio escalão da burocracia passavam pela eduba, a academia de escribas, antes que pudessem aspirar a alguma função. As conseqüências desse fato não devem ser subestimadas, pois muitos estudiosos ainda tratam essas duas palavras – escriba e burocrata – como sendo distintas, mas, no período de Ur III elas eram indissociáveis.
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Ensino e poder A relação entre o ensino, o domínio da escrita e o poder é bastante discutida entre os historiadores. Um caso exemplar insere-se nas reformas administrativas realizadas por Naram-Sîn e Šulgi, reis da dinastia Acádica (2400-2200 a.C.), e por Ur III (2100-2000 a.C.). Antes da dominação sargônica, a língua acádica era utilizada no forte da Mesopotâmia, enquanto que o sumério dominava no Sul. Durante o período sargônico, o acádico foi usado conjuntamente com o sumério, em todo o império, como a linguagem oficial da administração e da propaganda. Com o ascenso da terceira dinastia de Ur, o sumério tornou-se a língua mais importante em toda a região. Cabe aqui explicar, rapidamente, a diferença entre essas duas línguas. O sumério, língua do povo sumério, cuja origem desconhecemos, possuía, originalmente, uma base ideogramática. Podemos definir o ideograma como um sinal (primitivamente, um desenho, tendo-se tornado uma simples convenção ao longo de seu desenvolvimento) contendo, ao mesmo tempo, um sentido e um som. A língua suméria é aglutinante, na qual cada idéia básica – nominal ou verbal – é expressa por uma sílaba estável, ou por várias sílabas. O acádico, língua do povo amorrita, é uma língua semita, do mesmo modo que o árabe, o hebreu, o aramaico, etc. É uma língua flexionada, ou seja, suas palavras modificam-se e variam de sentido com a adição de prefixos, sufixos, infixos e desinências diversas. O acádico teve três grandes dialetos: acádico antigo, babilônico e assírio. O sumério e o acádico são, portanto, línguas diferentes, com origens étnicas distintas. Piotr Michalowski7, um importante assiriólogo norte-americano, questiona a razão pela qual pessoas que dominavam várias línguas e dialetos semitas
7
MICHALOWSKI, P., Charisma and Control: On Continuity and Change in Early Mesopotamian Bureaucracy Systems. In: GIBSON, M. and BIGGS, R., The Organization of Power: Aspects of Bureaucracy in the Ancient Near East. Chicago: SAOC 46, 1991. p. 52.
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deveriam estudar, com tanta profundidade, a língua e a literatura suméria. Para ele, a resposta é clara. A escola seria “um molde ideológico de consciências e opiniões, o lugar onde os futuros membros da burocracia seriam sociabilizados, onde receberiam um fundo comum de idéias e atitudes, que juntos enquanto uma classe, ou individualmente, teriam o mesmo background original”. Sob esse ponto de vista, os textos literários adquirem uma significação ideológica própria, como os hinos reais celebrando a magnificência do soberano e os mitos perpetuando certos conceitos de eterna ordem cósmica. Podemos citar como exemplo a obra A Maldição de Akkad, uma descrição poética, em língua suméria, completamente fictícia, da queda do Estado de Akkad (2400-2100 a.C.). Ela narra, em vários momentos, a história do julgamento do rei. Esse texto oferece a imagem do soberano Narâm-Sîn, que reinou em Akkad de 2245 a 2218 a.C., como o único culpado pela dispersão de seus Estados, depois de ter ofendido a religião e os deuses. Os escribas acádicos (de 2000-1800 a.C.), prováveis autores da lenda, fizeram, de Narâm-Sîn, o arquétipo do rei mau. Sabemos que a tentativa de interpretação das peripécias da história humana, segundo a cólera divina, ela mesma gerada por um ato de impiedade da parte de um rei humano, não era familiar a literatura suméria. Contudo, ela era notória na produção literária da língua acádica. O documento permite-nos entrever outra função da escola – a de modernizadora da burocracia, a qual podia ser independente da figura do rei. Akkad já havia passado, mas a história prolongava-se, distorcida e manipulada pela escrita e pelos escribas. O ensino podia ser um importante instrumento de poder: o Estado controlava a disseminação da informação mantendo um forte apoio prático e ideológico às classes literatas. As tradições alimentadas pela escola proporcionavam uma continuidade ideológica para a burocracia, independente dos caprichos de quem estivesse no poder. No contexto de perpetuação de
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uma linguagem literária morta, que era o sumério, ser escriba definia uma função, a de se pertencer a um clube exclusivo o do mundo da burocracia.
Conclusão As escolas de escribas mesopotâmicas conheceram uma expansão em todo o Mundo Antigo oriental e proporcionaram o desenvolvimento da escrita das línguas faladas em vastas áreas. Porém, essa escrita, provavelmente, nunca foi “popular”, no sentido etimológico do termo: ela sempre permaneceu no domínio de um grupo restrito de especialistas – o dos escribas. Em nível cultural, podemos dizer que um dos grandes êxitos das escolas de escribas foi o de terem mantido vivo o ensino do sumério durante cerca de 2.000 anos depois de seu desaparecimento como língua falada (de 2000 a.C. a 200 d.C.). Em nível econômico, podemos estabelecer um paralelo entre o tamkâru e o tupšarru. Sem o tamkâru, homem de negócios, seria impossível compreender-se por que a Mesopotâmia teria saído do Neolítico e dominado, por tanto tempo, o Oriente Próximo. Sem o tupšarru, escriba, teria sido impossível gerir-se o sistema econômico que se instalara a partir daquele momento. A burocracia que reinou na Mesopotâmia foi a conseqüência de uma dupla necessidade: a de se assegurar ao país, de maneira regular, o aprovisionamento de produtos de primeira necessidade, sem os quais a vida teria sido impossível; e a de se instaurar um Estado suficientemente forte para se garantir esse aprovisionamento e organizar-se um sistema econômico, permitindo-se a redistribuição da produção, alimentar sobretudo, em troca de um trabalho a serviço do poder. Essa burocracia foi, de certa forma, um freio à evolução, mas, excetuando-se os períodos de crise, ela permitiu, ao sistema, funcionar durante três mil anos.
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FAZENDO EDUCAÇÃO COM UMA (RE)LEITURA DA ALQUIMIA ATTICO CHASSOT
Quando pensamos o nosso ser Professor e o associamos com a nossa especialização, muito provavelmente nos convençamos que usamos este conhecimento, do qual nos dizemos (ou nos dizem) especialista para fazer Educação. Não há em nós, usualmente, a pretensão de sermos transmissores de conhecimento. Em outro texto (Chassot: 1997c) discuto quanto o professor informador é um profissional superado; quanto hoje há exigência de professores e professoras formadores. Assim é fácil entender como um professor de Química fala em uma IV Jornada de Estudos do Oriente Antigo Não sou historiador. Paradoxalmente, sinto-me cada vez menos Químico. Sinto-me num continuado fazer-me Professor. Acho que posso dizer que me sinto mais perto de cada uma e de cada um de vocês que faz Educação. Nas reflexões e análises de comportamentos deste ocaso bimilenar, o presenteísmo (Chassot, 1998a; 1998b) é destacado como algo que distingue as atuais ações, especialmente das gerações mais jovens. Há um viver o presenteísmo. Eis a análise de Eric Hobsbawm a respeito de um dos grandes problemas deste final de milênio: “A destruição do passado – ou melhor, dos mecanismos sociais que vinculam nossa experiência pessoal à das gerações passadas – é um dos fenômenos mais característicos e Iúgubres do final do século XX. Quase todos os jovens de hoje crescem numa espécie de presente contínuo, sem qualquer relação orgânica com o passado público da época em que vivem. Por isso os historiadores, cujo ofício é lembrar o que os outros esquecem, tornam-se mais importantes que nunca no fim do segundo milênio” (1995, p. 13).
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Nas exigências às professoras e aos professores, nestes novos tempos, onde devem deixar de ser informadores para se tornarem formadores, está presente uma preocupação com um ensino que se enraíza na história da construção do conhecimento. Esta é uma alternativa para nos opormos ao presenteísmo. Esta é uma direção que tenho desenvolvido, também, nos trabalhos envolvendo a formação de Educadores. Ao se analisar a situação da Educação, uma das características que avulta como comprometedora de um ensino mais engajado, com propostas transformadoras, é quanto esse ensino tem uma marca muito forte na ahistoricidade (Chassot, 1996a, p. 51). Essa a-historicidade é creditada pela falta de formação (ou talvez melhor seria dizer de uma não-familiarização) de professores e professoras na área da História da Ciência. É preciso registrar também quanto (o ensino d) a História teve / tem marcas do dogmatismo. Tenho defendido que as professoras e os professores tem, também, o ofício de lembrar o que os outros esquecem, e isso os torna mais importantes que nunca, quando tantas reconfigurações ocorrem no mundo do trabalho (Chassot, 1995; 1996b; 1996c; 1998c). Nesta minha fala nesta IV Jornada de Estudos do Oriente Antigo, que tem para mim um título complementar muito atrativo e até sedutor: origens do ensino, pretendo mostrar quanto se pode(ria) usar a História da Química, ou ainda numa mirada mais ampla, a História da Ciência não apenas em propostas interdisciplinares, mas fazer desta um fio condutor não só para entender como se deu/dá/dará a produção dos diversos saberes, mas até para a facilitação da construção de novos conhecimentos. Na formatação que idealizei para esta fala está a apresentação de alguns exemplos de atividades de ensino formal, e também não-formal, tanto no ensino fundamental e no ensino médio. Tenho outro texto onde trabalho uma experiência localizada no ensino superior (Chassot, 1998c). A história da construção do conhecimento tem sido central, também, em atividades
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envolvendo a formação continuada de Educadores. O estudo da História da Ciência, ocorre com a ajuda de um texto básico (Chassot, 1997a), destinado aos que fazem uma primeira leitura do tema. Em A ciência através dos tempos procuro fazer tessituras com a história da Filosofia, a história da Educação, a história das religiões, a história das artes, e para a surpresa daqueles mais ortodoxos, com a história das magias. Também busco inserir a esquecida história “da história daqueles e daquelas que usualmente não são considerados como os autores (oficiais) da história”. Aqui cada vez mais têm lugar propostas que visam privilegiar posturas afinadas com as vertentes do multiculturalismo (Chassot, 1998c). Há ainda uma outra dimensão para este inserir a História da Ciência no fazer Educação. Este fazeres têm sido facilitadores de uma continuada eliminação de posturas cientificistas, ainda muito presentes no ensino, nos seus diferentes níveis de escolarização formal. Nesta direção é preciso um despir-se de posturas eurocêntricas, brancas, cristãs, machistas, assim olhar uma Ciência despida de alguns rótulos. Isto, evidente não quer privilegiar uma Ciência asséptica e imaculada. Ao contrário, é preferir vê-la suja, contaminada e encharcada de realidade. Há uma continuada busca para ver – e o propósito é pretensioso – a Ciência que está mais próxima de nós. Nesta dimensão as propostas de Educação estão centradas numa dimensão de não se fazer um ensino exclusivamente dependente de empréstimos culturais. Parte-se do pressuposto que nós ajudamos a escrever a História a cada dia e por isso temos responsabilidades com o nosso passado. Cada um e cada uma de nós é continuamente convidado a reescrever uma nova História, buscando um novo marco zero. Precisamos fazer também uma (re)leitura da Ciência como homens e mulheres latino-americanos que somos. Há algumas propostas marcadas pela preocupação de se levar para as aulas de Ciências os conhecimentos produzidos pelos pré-colombianos (Chassot, 1997b). É preciso que nós falemos, também, como professores e professoras que vivem numa Terra que
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tem uma História anterior àquela que usualmente nos transmitiram e nós, ainda, lamentavelmente, continuamos contando e até, ensinando. Aqui e agora, quero, uma vez mais, fazer um confiteor sobre o quanto eu fui reducionista e simplista em A Ciência através dos tempos. Em um livro de quase 200 páginas, onde busco fazer uma mirada panorâmica na História da Ciência, eu, latino-americano, escrevo apenas um parágrafo, muito pouco elucidativo, ao referir às civilizações que existiram nas Américas antes da chegada dos “colonizadores”. Tenho escrito textos e feito palestras para resgatar esta minha omissão. Vejam como e por quem nos estão sendo impostas as comemorações ufanistas dos 500 anos do descobrimento do Brasil. Observemos que a simples referência a descobrimento de um povo implica numa leitura a partir da ótica do dominador. Para aqueles que se fizeram os donos da festa é importante que desconheçamos, por exemplo, a Educação que se fazia nesta terra antes da chegada dos “civilizados”, que destruíram uma História. Não importa que tenhamos que reconhecer que hoje nenhum de nós saiba o nome de um homem ou de uma mulher que viveu nesta terra antes de 22 de abril de 1500. É preciso, por isso, denunciarmos, com uma veemência, cada vez maior, quanto há de fanfarria nestas já agora badaladas comemorações dos 500 anos do descobrimento do Brasil, quando deveríamos nos envergonhar por nada saber daqueles e daquilo que houve nesta terra antes de 1500. Ao invés de festas e comemorações, devíamos chorar em funeral. Ao invés de laudações aos europeus brancos destruidores, façamos dobrar sinos em réquiem aos que matamos. Precisamos fazer também uma (re)leitura da Ciência e da História como professores e professoras latino-americanos que somos. Avancei em meus acenos preambulares. O assunto me seduz. Mas preciso adentrar na alquimia que está no título de minha fala. A alquimia, mais uma vez, como em muitos séculos da história da humanidade está muito presente nas discussões e nas interrogações de muitas pessoas. Há, pelo
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menos três leituras que se pode fazer da alquimia e estas decorrem, até, das muito diferenciadas representações sociais que as pessoas têm sobre a alquimia. Vou revisitar rapidamente estas três usuais leituras para a Alquimia e com duas destas buscarei uma outra – que pretende ser a central. Nesta compararei as metas da Química neste ocaso bimilenar com aqueles que eram os propósitos dos alquimistas medievos. As três possíveis leituras são: (1) uma leitura cética que apresenta a Alquimia como algo apenas eivado de charlatanismo e destituída de qualquer significado científico, para qual se concede, não sem desprezo, algumas contribuições acidentais, do tipo “[...] então um alquimista que buscava transmutar metais menos nobres em ouro, quando estava mexendo em um caldeirão, descobriu o ácido nítrico ou inventou a retorta”. Pinta-se os alquimistas como velhos barbudos, com corujas no ombro e caveiras sobre suas bancadas de trabalho. O alquimista é, em geral, descrito como um mago que sempre busca vantagens, daí porque sua associação à bruxaria e como conseqüência com a Inquisição, como veremos na leitura seguinte. (2) uma leitura histórica que revisita criticamente os períodos mais distantes da História, principalmente do medievo, contextualizando a alquimia e os alquimistas nestes períodos, dos quais ainda sabemos tão pouco e que devem ter sido muito mais férteis em “conhecimentos” do que aqueles que, muitas vezes, reduzem a Idade Média como uma noite de mil anos, onde conhecimento pouco avançou. Aqui caberiam comentários mais extensos sobre a Inquisição e a bruxaria. (3) uma leitura com um realismo-fantástico, que não é sinônimo de fantasia, mas que tem muito de quase incrível ou de, ainda inexplicável. Nesta não só se aceita como possível ter havido transmutações alquímicas, como se coloca figuras tão singulares como Newton na galeria daqueles que operaram estes feitos. Não vou me deter nas duas primeiras. Uma delas, para as minhas análises pode ser considerada irrelevante e também eivada de erros, mesmo
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que esta leitura seja o “senso comum” de muitas pessoas. Esta leitura é aquela que fazem alguns cientistas, inclusive químicos, aos quais falta uma visão crítica de História da ciência. Por razões opostas não vou me deter na leitura histórica, que deveria ser objeto de um detalhamento muito amplo e talvez se pudesse elucidar alguns fatos e até propor certas correções ou talvez, mais adequadamente, aproximações. Com a leitura histórica deveria, ou pelo menos poderia, desaparecer a leitura cética. Mas, aqui e agora, não há espaço para isso. Vou ampliar um pouco a terceira leitura que nomino como de uma leitura com um realismo-fantástico. É preciso referir aqui que a terceira leitura, mesmo que não tenha, ainda, muito trânsito entre os cientistas, também não se relaciona com livros do gênero do qual Paulo Coelho é hoje o magomáximo. A referência aos mesmos é, apenas para referir que os mesmos não emprestam qualquer contribuição para as considerações que pretendo apresentar nesta ótica do realismo-fantástico. Antecipo que, com a leitura histórica (que anunciei que busca um resgate da Alquimia) e a com esta que faremos em seguida que rotulei de um realismo-fantástico (que representa um posicionamento pouco ortodoxo na Academia), pretendo encontrar um sincretismo entre estas duas leituras, não apenas resgatando a validade da Alquimia, mas mostrando quanto esta foi importante e está presente na Química Moderna. Assim, com duas das três leituras antes referidas (a histórica e a de um realismo-fantástico), pretendo amalgamar um recorte sincrético.1
1
SINCRETISMO é aqui usado no sentido de amálgama de elementos culturais diferentes, ou até antagônicos, em um só elemento, continuando perceptíveis sinais dos elementos originários. O sentido etimológico do termo – reunião de vários estados na ilha de Creta contra adversário comum – parece adequado para o que se pretende fazer com as duas leituras mencionadas
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Uma leitura com realismo-fantástico Quando se contempla um pouco da longa caminhada percorrida pela Química para ser admitida no rol das ciências e se consideramos a discriminação (e a perseguição) imposta aos alquimistas e à Alquimia, parece oportuno que se reconsidere o status atual da Alquimia. Aqui se poderiam fazer extensos relatos das inúmeras descrições de transmutações que se encontram em diferentes tempos, inclusive alguns que nos são muito próximos temporalmente. Vou partir para uma proposta mais radical. Talvez invoque em minha defesa o anarquismo epistemológico de Feyerabend que indica que não devo me submeter à obediência a regras fixas e a padrões imutáveis, estabelecidas em “o” método, concentrado, na sua versão contemporânea mais fiel, nas seguintes regras: “Só aceitar hipóteses que se ajustem a teorias confirmadas ou corroboradas; Eliminar hipóteses que não se ajustem a fatos bem estabelecidos”. Vou formular uma hipótese apoiado em Feyerabend: os alquimistas também fizeram transmutações. Como não fiz a descrição de inúmeros estudos nessa terceira leitura, quero explicar primeiro o também, que coloquei na minha hipótese feyerabendiana. Poderia estender por várias páginas o relato de experimento onde se descreve como plantas e animais parecem realizar aquilo que modernamente classificamos como uma transmutação de elementos e que ensejou que em moderníssimos laboratórios se sintetizasse, por exemplo, os elementos que na Tabela Periódica estão depois do urânio. Se aceitarmos a hipótese que vegetais e animais realizam transmutações, podemos também reconhecer como válida a hipótese de Soddy, que outros já tenham conhecido os segredos transmutações que hoje são feitas em alguns poucos centros de pesquisas nucleares. Aos céticos, que vêem a impossibilidade devido às grandes exigências energéticas aí envolvidas, apresento uma analogia: um cofre pode ser aberto de duas maneiras: conhecendo o segredo ou por arrombamento. Todos sabemos as grandes diferenças de energia envolvidas
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em uma e outra situação. Hoje, a transmutação nuclear corresponde a uma violência contra um núcleo – e o arrombamento. Se estiverem corretas as evidências que plantas e animais fazem transmutações, porque não levantar a hipótese que tenha havido alquimistas que conheceram o segredo e tenham realizado as transmutações que se referiu na leitura anterior. A pergunta que logo se impõem é: Por que, se a ciência tem o conhecimento cumulativamente adquirido, estes segredos ou práticas dos alquimistas, não chegaram até nós? Antes de apresentar cinco hipóteses para que tal não tivesse ocorrido, é preciso questionar preliminarmente, a cumulatividade dos conhecimentos científicos. Se aceitarmos que determinadas culturas se desenvolvem orgânica e separadamente das demais, possuindo uma infância, atingindo depois um esplendor, numa idade adulta, para sofrer uma decadência, podemos admitir que os conhecimentos das mesmas, se não foram comunicados para outras culturas, puderam estar, em diferentes momentos, mais ou menos avançados. As razões da não-comunicação aparece na primeira das hipóteses que se menciona a seguir, na busca de uma explicação para que se tivessem “perdido” os segredos das transmutações alquímicas. Nesta terceira leitura, na tentativa de responder porque os segredos ou práticas dos alquimistas não chegaram até nós, apresento cinco hipóteses, que serão objeto de uma discussão maior: (1) Dizimação por uma peste: A “peste negra”, por exemplo “devastou o mundo ocidental, desde 1347 até 1351, matando 25-50% da população da Europa
e
causando
ou
acelerando
significativas
mudanças
políticas,
econômicas, sociais e culturais” (Gottfriend, 1989). Ora, se nos dermos conta que muitas comunidades de alquimistas viviam em guetos afastados da cidade para preservarem seus segredos ou para se protegerem de perseguição (ver hipótese 2), é fácil imaginar como grupos inteiros de alquimistas possam ter desaparecido e com eles suas práticas, até porque estas, na busca do
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resguardo do segredo, não eram escritas ou eram escritas em códigos. Estes códigos são, inclusive, uma explicação para a hermética linguagem química. (2) A forte influência da Igreja: Sabemos que a Igreja “para proteger seus fiéis dos embusteiros” proibiu as experiências de Alquimia, através de uma Bula Papal de João XXII, em 1317. Também fez referência à vigilância dos tribunais inquisitoriais sobre publicações de qualquer natureza, como os trâmites do Exame de Artilheiro, obra de aritmética, geometria e artilharia. (3) Destruição pela própria descoberta: A hipótese levantada por Soddy parece muito provável. Se recordarmos que o mercúrio estava muito presente nas tentativas de transmutações, envenenamentos por este metal não podem ser descartados. Se aceitarmos a possibilidade que existiram civilizações que conheceram a energia nuclear, é muito provável aceitar que uma má aplicação as pudesse ter destruído. Recordemos dois exemplos: Marie Slodowska Curie (1867-1934), ao morrer, teve no diagnóstico de sua medula revelado o verdadeiro criminoso: o elemento Rádio, que ela descobrira em 1898. Manuel de Abreu (1894-1962), médico brasileiro, inventor do registro radiográfico em filmes de 35 mm, conhecido como Abreugrafia, teve lesões generalizadas nas mãos devido a radiações. (4) Poder econômico: É muito provável que fortes pressões econômicas tenham retardado e impedido a divulgação de muitas descobertas. A afirmação de Newton, anteriormente transcrita, é taxativa: “a fabricação do ouro não pode ser comunicada, sem que o mundo corra um imenso perigo [...]”. Basta que imaginemos o que significaria para os mercados mundiais, se o grama de ouro, que hoje custa mais de 10 dólares, passasse a valer (devido a sua fácil fabricação) 10 centavos de dólar o grama... Aliás, vale sempre perguntar porque o ouro vale/custa tanto. Qual o seu valor de fato? Quando apresentarmos a visão sincrética vamos referir materiais muito valiosos que não são fabricados. Ainda uma interrogação: Por que, após o anúncio da fusão a frio a mesma foi repetida com anunciado sucesso em muitos outros laboratórios para, logo a seguir, ser cognominada como
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uma “fria” fusão a frio? Que interesses passaram a determinar esta reversão? Não poderia ser apenas porque seus descobridores eram de um Estado pobre e marginalizado cientificamente ou porque, talvez, o preço do petróleo se reduzisse a valores insignificantes. (5) Inveja e o conhecimento “científicos”: Deter o monopólio do conhecimento sempre foi uma maneira de assegurar o poder. Podemos remontar aos povos primitivos e verificar o que significava ter o fogo ou verificar, nos dias atuais, como uns poucos detêm informações privilegiadas, subjugando milhões (e talvez possamos dizer sem exagero bilhões) de pessoas. Consideremos que cinco grupos controlam as sementes dos cereais e das oleaginosas cultivados em todo o mundo. O impacto da biotecnologia no setor de sementes resulta, negativamente, na criação de mercados cativos (compra de sementes híbridas todo ano), na uniformização genética, com conseqüente vulnerabilidade as doenças e aos predadores aumentada (acrescente-se que são as divisões de sementeiras de firmas globais que, também, vendem os herbicidas “mata-tudo”) e no desaparecimento de um patrimônio genético diversificado (ver Hathaway, 1992). O mesmo se pode dizer da dependência quase mundial de alguns poucos (três ou quatro) produtores de ovos e matrizes de aves para postura e corte. O que aconteceria a alguém, hoje, que descobrisse o código genético para produzir uma determinada raça de galinha, que é comercializado por uma destas empresas globais? O que poderia ter acontecido a alguém que soubesse fazer transmutações que tornassem o ouro desvalorizado?
Uma tentativa de uma mirada sincrética A Química, deste final do Século XX, não parece muito diferente, em seus objetivos maiores e mais imediatos que aqueles dos alquimistas medievos. Hoje, buscamos o elixir da longa vida, que só os remédios que buscam melhorar a qualidade de vida, e até prolongá-la. O recente sucesso do Viagra na imprensa é um exemplo. Os resultados de coquetel contra a AIDS são outra
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tradução, assim como as continuadas buscas de remédios contra o câncer. A pedra filosofal pode ser traduzida pelas continuadas tentativas nos laboratórios de se criar novos materiais para melhorar o vestuário e habitação. A busca de novos materiais de vestuário (vejam nomes recentemente incorporados a nossos costumes: nylon, tergal, acrílico...) ou de construção (aço, plásticos, fórmica...) se assemelha ao que faziam os alquimistas que, com a evaporação dos líquidos ou com a recalcinação de sólidos, procuravam melhorar a qualidade das substâncias. As retortas, os crisóis, os alambiques de então estão nos modernos laboratórios de hoje, na sofisticada aparelhagem de vidros especiais e nos diferentes reatores, onde o controle que era feito pelos alquimistas (como os que se descreveu no início deste texto) é agora realizado por computadores. Hoje, como então, há muitos acertos – e aí estão as maravilhas que a Química cria diariamente – e, como então, há retumbantes fracassos. Entre estes, há os que catalogam a fria fusão a frio que tanta emoção causou em 1989. Nos dias atuais, como ocorreu na época de Newton (que alertava para o perigo de se divulgar certas descobertas que pudessem desestruturar o sistema monetário), se faz reserva ao uso, ou melhor, ao fabrico em massa de certos materiais. Os fluorcarbonetos exemplificam bem esta situação. O Scientific American publicou, já nos anos 50, um texto que até parece ficção científica: “Os fluorcarbonetos não se queimam, não se corroem, não se deterioram e nem se desintegram. Os roedores ou os fungos também neles não encontram qualquer alimento. Podem ser usados na fabricação de tintas, plásticos, borrachas, fibras para tecidos, óleos e solventes que desafiam o fogo ou o ataque pelos organismos nocivos. A mobília, as cortinas e outras decorações que transformam uma casa ou um hotel em fulgurante fogueira, quando atingidos pela chama, podem ser completamente incombustíveis quando feita por fluorcarbonetos. Os futuros produtos de fluorcarbonetos podem, semelhantemente, propiciar melhoramentos para os automóveis. Quando forem preparado fluídos adequados, poder-se-á ter motor com lubrificantes que não necessitam substituição. O líquido do sistema de refrigeração também será de
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fluorcarboneto. Será também dispensável qualquer anti-congelador e o radiador nunca enferrujará. Os pneus durarão toda a vida do carro. [...]. As coberturas dos assentos serão repelentes ao fogo e à sujeira. O carro será pintado com cores brilhantes, indesbotáveis pela ação da luz” (Scientific American, 1960).
O artigo segue relatando que com fluorcarbonetos se poderiam fabricar roupas que não sujariam e nem se consumiriam. Se a descoberta destes maravilhosos fluorcarbonetos houvesse ocorrido no final do ano passado, estaríamos esperando um futuro maravilhoso. Ocorre que já faz quase meio século que os fluorcarbonetos foram sintetizados e estudados. Quem hoje, em larga escala, usufrui de sua aplicação? Ao lado desta pergunta poderíamos colocar outras, cujas respostas estão na mesma linha: Por que o filamento das lâmpadas incandescentes queimam? Por que as lâminas de barbear perdem tão rapidamente o fio? Por que certos programas de computadores se autoextinguem em data predeterminada? Nos dias atuais, como ocorreu na época de Newton (que alertava para o perigo de se divulgar certas descobertas que pudessem desestruturar o sistema monetário), se faz reserva ao uso (ou melhor, ao fabrico em massa) de certos materiais. Os fluorcarbonetos serão usados para exemplificar esta situação. Com esta leitura, na qual se busca um sincretismo entre a Alquimia medieva e Química moderna, se propõe uma (re)leitura dos alquimistas, talvez até se podendo fazer resgates de discriminações que se fez (e ainda se faz) em nome da Ciência (oficial). Acredito que aqui estão algumas pistas para se fazer da história da Ciência uma facilitadora para conseguirmos uma Educação mais comprometida com a construção de uma cidadania mais crítica.
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A FORMAÇÃO DO JOVEM NO MUNDO GREGO HARRY BELLOMO
A evolução da educação grega Na Grécia a educação era, sobretudo, uma obrigação e um direito dos pais. No entanto, a partir de um determinado momento os pais delegavam ao Estado o direito de educar seus filhos. Em Creta os meninos ficavam com seus pais até aos 17 anos, quando passavam para uma escola especial, onde ficavam até os 27 anos, adestrandose para as funções de soldados e administradores. Em Esparta a educação dos rapazes e moças era basicamente militar, com destaque para os exercícios físicos. A educação intelectual resumia-se à música, dança e poesia, todas direcionadas para a finalidade de formar bons militares. A partir dos 7 anos, o Estado espartano encarregava-se de todas as etapas da educação.
A educação ateniense Ao contrário da educação espartana, a educação ateniense era feita, visando à formação do homem integral, tornando-o um cidadão consciente dos seus direitos e deveres. A educação em Atenas partiu de três pontos básicos: Artes: música, dança e poesia para transmitir as tradições do passado e adestrar o corpo, dentro de um padrão de harmonia e beleza.
A formação do jovem no mundo grego 201
Exercícios ginásticos e militares: a ginástica visava formar um corpo belo, correspondente a uma alma bela. “Mente sã em um corpo são” era o lema citado como sintetizador desta visão educacional. Os exercícios ginásticos compunham-se de lutas, corridas, natação e exercícios físicos. Os jovens praticavam os exercícios nus e untados de azeite. Os mestres acompanhavam de perto, corrigindo os erros com bastonadas ou chicotadas. O treinamento militar era feito através de marchas, lutas com espadas e lanças, treinamento estratégicos e exercícios com arco e flecha. Filosofia: o terceiro tripé da educação ateniense, era a Filosofia, incluindo nela todas as Ciências, como: Geografia, História, Astronomia, Biologia, Ética, Estética, Metafísica, etc. Este modelo educacional era exclusivo dos rapazes das classes superiores, abrangendo todas as áreas da personalidade humana. Artes para desenvolver a sensibilidade e a imaginação, ginástica para conseguir um corpo perfeito e Filosofia para interpretar o mundo e organizar o pensamento. As moças tinham uma educação voltada para os afazeres do lar, incluindo também ler, escrever, poesia e música.
A efebia ateniense O jovem ateniense ao chegar aos 15 anos passava a ser um efebo e deveria começar a preparação para o ingresso na vida adulta. A efebia natural era simplesmente a idade da adolescência, ou melhor, da puberdade, a partir dos 15 ou 16 anos. A efebia legal, porém, era o noviciado militar a que ficavam obrigatoriamente submetidos, entre os 18 e 20 anos, todos os jovens cidadãos das três classes políticas. A inscrição nos registros efébicos era precedida de uma dupla docimasia, ou inquérito, feito pela assembléia do demo e pelo Senado dos Quinhentos. Em seguida, os efebos eram conduzidos ao santuário de Aglaura, prestavam o juramento cívico, recebiam as suas armas e começavam a sua educação militar, a qual era ministrada, inicialmente, pelos dez sofronistas,
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eleitos pelo povo, e, mais tarde, por um cometa, nomeado por um ano e chefe supremo da efebia. Aos exercícios propriamente ditos presidiam dois pedótribas. Os efebos passavam em Atenas o primeiro ano do noviciado e participavam oficialmente de diversas festas importantes não se falando das festas particulares efetuadas na escola. No segundo ano de prática, eram eles enviados para fortalezas da fronteira e, sob o nome de perípolos, percorriam o país, fazendo serviços de policiamento. Em tempo de guerra, conservavam-se, geralmente, na Ática, para a defesa do território, mas, em caso de necessidade, podiam ser enviados para além das fronteiras. Tal era a efebia primitiva. Esta instituição, toda militar, começou a sofrer alterações nos fins do século IV a.C. Primeiro deixou de ser obrigatória; depois, deixou de ser exclusivamente nacional, passando a admitir também cidadãos estrangeiros. A prática foi reduzida para um ano. Aos exercícios militares juntaram-se estudos literários e até musicais. Ao mesmo tempo, desenvolviam-se as festas, os jogos, os concursos. O colégio efébico, no tempo do Império Romano, não era mais do que uma associação de moços ricos reunidos por uma educação de luxo, sob a vigilância do Estado. E nesta fase, com breves alterações, se conservou até ao século III. O local onde os efebos praticavam os exercícios físicos era chamado de Efebião. Mais tarde, pela influência romana, o Efebião passou a ser semelhante a palestra, com alpendres, colunatas, vestiários, salas de repouso, estátuas de deuses, heróis e atletas, locais de banho e piscinas. Neste período, além dos exercícios ginásticos comuns, o jovem praticava o pentatlo e o pancrácio. A recreação era feita através da natação e jogos de lazer. Ao terminar a efebia os jovens iam, em grupos e armados, ao Templo da cidade prestar o juramento solene de respeitar as tradições e defender a comunidade. A partir deste momento eram hoplitas.
A educação e os pensadores gregos A formação do jovem no mundo grego 203
Os processos educacionais na Grécia eram organizados segundo a tradição de cada cidade, no entanto, alguns pensadores tentaram teorizar os modelos de educação, sugerindo novos processos. Analisaremos os três modelos mais significativos.
O modelo educacional de Platão (Plato, Patõn) (c. 429-347 a.C.) Pertencente a uma família aristocrática de Atenas (Crícias era primo de sua mãe), Platão tornou-se membro do círculo de amigos de Sócrates e seu seguidor devotado. Depois da morte do mestre, em 399 a.C., refugiou-se junto de Euclides, em Mégara, e depois viajou durante alguns anos, época em que conheceu Dionísio I, governante de Siracusa. Visitou essa cidade mais duas vezes depois da morte do soberano e ajudou Díon na tentativa de transformar o governo de Dionísio II num exemplo do governo dos “reis-filósofos” discutido na República. Se a história é verdadeira, a tentativa falhou. Mas Platão pode ter sido apenas pouco mais que um “filósofo de corte”. Fundou uma “escoIa”, a Academia, num pequeno bosque do mesmo nome, nos arredores de Atenas. O âmbito dos estudos desenvolvidos é um pouco incerto, mas incluía matemática e astronomia. Seu sobrinho Espeusipo sucedeu-lhe como chefe da agremiação, e a Academia sobreviveu, talvez, com algumas interrupções, até ser fechada por Justiniano, em 529 d.C.
A Educação no modelo platônico Platão propõe o Estado ideal com um sistema destinado a formar filósofos-governantes. A educação deveria ser estatal e atender três aspectos: (1) a área do desejo (instintos); (2) a área do coração (sentimentos); (3) a área da razão (inteligência).
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O ensino básico seria composto de literatura, música, dança e exercícios militares. Os governantes deveriam ter esta instrução básica e estudar Filosofia e Ciências.
O modelo educacional de Aristóteles (Aristóteles) (384-322 a.C.)
Era filho de um médico e nasceu em Estagira, na Calcídica. Aos 17 anos foi para Atenas e estudou na Academia de Platão até a morte deste, no ano 347. Passou então algum tempo em Asso (na costa da Ásia Menor), em Lesbos e em Pela, na Macedônia, onde foi tutor de Alexandre (mais tarde, “o Grande”) durante três anos. Em 355 a.C. voltou para Atenas e fundou uma escola no Liceu, pequeno bosque público. A aléia coberta (peripatos), por onde costumava caminhar enquanto ensinava, deu nome à escola (Peripatética). Depois da morte de Alexandre, em 323, a.C., Aristóteles foi acusado de “impiedade” e afastou-se para a Eubéia, onde morreu no ano seguinte. Segundo Aristóteles, a educação deveria começar pela educação da família, fundamental para o desenvolvimento do ser humano. A educação deve ser progressiva e integral, começando pelo corpo (instintos) e terminando pelo intelecto. A educação física garante um corpo saudável e a moral cívica forma cidadãos aptos a prática da justiça e da virtude. A ética é uma filosofia prática e seu propósito é determinar que tipo de vida um homem deve viver. Para Aristóteles, a melhor vida para o homem e aquela em que ele desempenha bem, ou de acordo com as virtudes, as atividades que são características dos homens. Ele discute as virtudes humanas com grandes detalhes: as virtudes do caráter – coragem, liberalidade, temperança (cada uma das quais está num ponto médio entre dois vícios extremos) – e as virtudes do intelecto. Estas últimas o envolvem na discussão
A formação do jovem no mundo grego 205
do raciocínio prático e do problema, a ele ligado, da possibilidade de agir contra nosso melhor julgamento. Esta é, talvez, a parte mais difícil e impressionante de seus trabalhos sobre ética. A política é uma parte da ética, pois o homem só atinge sua forma superior de vida em sociedade e, de fato (supõe Aristóteles), em uma cidade-Estado no estilo grego (pólis).
O modelo educacional de Xenofonte (soldado mercenário e escritor, morto depois de 355/4 a.C.) Xenofonte provinha de família ateniense próspera (o suficiente para qualificá-Io para servir na cavalaria) e, na juventude, foi companheiro de Sócrates. As duas circunstâncias teriam encorajado uma visão distorcida da democracia radical ateniense, e ele não estava entre os que abandonaram a cidade durante o governo dos Trinta Tiranos (404-403 a.C.; v. Crícias), embora, como Platão, tenha posteriormente manifestado sua desaprovação a eles. No período 402/1, a convite do próxeo beócio, deixou Atenas para tentar a fortuna no exército de Ciro, o Moço. Dessa maneira, envolveu-se em sua rebelião, e depois de Cunaxa desempenhou papel fundamental na volta do exército derrotado para o ocidente da Ásia Menor. No ano 399, o exército de Ciro foi incorporado ao de Tíbron, e em seguida Xenofonte lutou, como mercenário, por Esparta, tornando-se admirador e amigo de Agesilau. No início da Guerra de Corinto, em 395 a.C., resolveu continuar lutando por Esparta e participou da Batalha de Coronéia (394 a.C.) contra seus conterrâneos atenienses. Isso teria provocado sua condenação ao exílio, se já não fora exilado antes, como pensam alguns, como parte das tentativas de Atenas de ganhar a boa vontade de Artaxerxes II. Xenofonte na sua obra Ciropedia apresenta o seu modelo de educação, fingindo estar descrevendo a educação do Rei Ciro da Pérsia. Segundo Xenofonte a educação teria duas etapas:
Origens do Ensino 206
1 – a etapa infantil patrocinada pelo Estado. Nesta etapa as crianças ficariam nas casas de instrução, aprendendo a justiça e as virtudes (não mentir, não roubar, obediência e sobriedade). Além disto, aprenderiam hábitos sociais e higiênicos. Esta etapa terminaria aos 15 anos. 2 – a segunda etapa seria dos 16 aos 25 anos, também sob o controle do Estado. Neste período seria dada especial atenção à caça, aos valores guerreiros e ao treinamento militar. Referências bibliográficas
BOWDER, Diana. Quem foi quem na Grécia Antiga. São Paulo: Art, 1982. FLACELIERE, Robert. A vida quotidiana dos gregos no século de Péricles. Lisboa: Livros do Brasil, [s.d.] GIORDANI, Mário. História da Grécia. Petrópolis: Vozes, [s.d.] MARROU, Henri. História da educação na antigüidade. São Paulo: EPU, 1975. WICKERT. Historia de la educación. Buenos Aires: Losada, 1950. ZURETTI. Historia general de la educación. Buenos Aires: Sastre, 1978.
A formação do jovem no mundo grego 207
EDUCAÇÃO INDÍGENA: PARÂMETRO SOCIAL, NECESSIDADE NATIVA OU INVENÇÃO OCIDENTAL? ALGUMAS CONSIDERAÇÕES* ANDRÉ LUIS R. SOARES
Devo dizer, inicialmente, que minha formação é da graduação em História e mestre em Arqueologia, portanto, um não-especialista na causa indígena. Entretanto, através da paciência e da dedicação de um colega, Prof. Ivori Garlet, tive contato com os índios mbyá-guarani, que me tiraram dos ácaros dos documentos dos séculos XVI ao XVIII e me colocaram frente a frente com a realidade das aldeias atuais. Meu conhecimento se deve, em grande parte, aos livros, conhecimento este limitado mas de grande valor para contrastar com a persistência de diversos hábitos e costumes dos guarani das calçadas, das aldeias e da mendicância, malgrado cinco séculos de exploração e espoliação. Não falo aqui como especialista da sociedade indígena, mas como um interlocutor que, graças à confiança e as „palavras sagradas‟ dos mbyás, busca uma reflexão das sociedades indígenas. Outra questão relevante que deve ser levantada é sobre as ditas „sociedades indígenas‟. No Brasil, atualmente, são cerca de 300 mil índios que falam em torno de 170 línguas diferentes, pertencentes a cinco troncos lingüísticos. Se considerarmos a época dos primeiros contatos, deveriam ser aproximadamente 5 a 6 milhões de habitantes falando em torno de 300 a 400 línguas distintas e, por extensão, culturas diferenciadas. O primeiro problema vem daí: nossa visão de „sociedade indígena‟ é um todo homogeneizante que não distingue uma cultura da outra, embora possa-se afirmar com certeza que existem atualmente no Brasil grupos que são tão
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semelhantes como um africano Bantu é parecido com um Nunamiut esquimó. Estas singularidades nunca foram respeitadas pelo invasor, que a título de conquista e dominação sempre se referiu aos grupos nativos como „índios‟, repetindo nem tão inocentemente o erro consagrado de Colombo. Esta questão é ainda mais pertinente quando, no mundo dito civilizado, as diferenças são cada vez mais lembradas. Senão sob o aspecto puramente formal, mas pela diversidade na qual se encontram grupos distintos disputando o mesmo território, seja na Bósnia, em Kosovo ou na Macedônia. Como estes conflitos étnicos estão em áreas da Europa civilizada e não mais em tribos africanas, as explicações buscam ser, a medida do possível, tão complexas como são as identidades étnicas. Se, por outro lado, a diversidade dos grupos chamados indígenas no Brasil não tem repercussão alguma, trata-se de uma política previamente estabelecida que trata o autóctone como invasor em sua própria terra, deixando-o na categoria de selvagem para ser civilizado. Esta idéia é inconscientemente reproduzida por muitos de nós, cada vez que fala de „os índios‟ ou „dos nativos‟, colocando no mesmo patamar culturas tão diversas. Apesar de ser inconsciente a repetição, em boa dose, da cultura dominante, não podemos esquecer que esta cultura está atrelada a dois paradigmas básicos: primeiro, que o europeu seiscentista vem para o novo mundo „trazer a luz‟ da civilização moderna aos povos bárbaros e atrasados; desta forma todos os povos dominados na América serão tratados como índios até pela necessidade de submissão ideológica na relação dominador-dominado. Segundo, quando da criação da antropologia como ciência, os povos „avançados‟ eram, por ordem, os britânicos (fundadores da ciência antropológica), seguidos dos germânicos e franceses, para depois, sucessivamente, os outros europeus e finalmente os outros continentes (Ásia e África) fatiados durante o surto colonizador do final do século XIX e início do séc. XX. Desta forma, aprendemos desde a mais tenra infância a nos colocarmos como colonizadores
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superiores frente aos autóctones subdesenvolvidos, desconhecendo cada vez mais as razões que nos afastam tanto de nossas raízes africanas quanto indígenas, mais ainda quando esquecemos que é totalmente impossível (para não dizer ridículo) falar em pureza racial num país como o Brasil. Além disso, „esquecemos‟ a historicidade que cada uma destas culturas possuía antes do contato com o branco, seja através da história não-escrita, oral e mitológica, seja pelo patrimônio próprio em forma de cantos, rezas, enfim, desconsiderados enquanto História a fim de justificar a colonização. Porém, fazer um arrazoado de cada cultura e sua forma de trabalhar a educação enquanto processo é um trabalho bem além do que é possível aqui. Desta maneira, e mesmo com a certeza de estar „homogeneizando‟ culturas diferentes, tratarei das sociedades indígenas nos seus aspectos semelhantes. Quando me referir à educação indígena nas suas singularidades, farei referência direta aos grupos que mais tive contato bibliográfico, os Guarani ou os Tupinambá do litoral durante o século XVI. Quando não me referir ao grupo, trata-se de aspectos que podem ser generalizados, salvaguardadas as restrições, a todas ou a uma boa parte dos grupos indígenas, ressalvando as particularidades expostas. Tratar da educação na sociedade indígena pode envolver diversos aspectos, como: a sociedade indígena anterior ao contato com o europeu e uma possível reconstrução etno-histórica; a questão de como é a educação dentro da sociedade indígena e qual seu objetivo no período pré-contato; a educação formal proporcionada pelas escolas bilíngües na atualidade; e os aspectos políticos que envolvem educar os índios ou para os índios. Neste sentido, um apanhado desta grandeza só pode ocorrer aqui como apresentação ou reflexão, haja vista a amplitude que tal estudo necessita e as limitações pessoais.
Educação indígena: parâmetro social, necessidade nativa ou invenção ocidental? 210
Minha proposta é diferenciar a educação de uma sociedade igualitária – em seus aspectos gerais – e a forma como a educação é e vem sendo utilizada como mecanismo de poder e, neste sentido, a educação formal das sociedades indígenas enfrenta sérias dificuldades de consolidação.
Uma breve história: o período anterior ao contato com o europeu Em primeiro lugar deve-se, brevemente, sintetizar como funcionava a educação e qual seu objetivo nas sociedades indígenas antes da colonização efetiva do nosso país. “As sociedades indígenas dispõem de processos tradicionais de socialização e de reprodução de uma ordem social que é, basicamente, igualitária. Tais processos constroem-se a partir de relações entre os homens e seu ambiente; incluem sistemas sociais de classificação e avaliação da Natureza e das relações entre os homens; seu conteúdo exprime noções básicas das quais se constitui a visão de mundo e a identidade própria de cada povo” (Silva, 1981, p. 11).
Neste sentido, é importante ressaltar qual o objetivo desta formação, qual seja, compartilhar os meios de apreensão de conhecimento que possibilitam um uso ordenado e não-destrutivo do ambiente. Em sociedades indígenas como os Tupinambá (Fernandes, 1989) ou os Guarani préhistóricos (Noelli, 1993), veremos que o objetivo é a reprodução do modo de viver dos antepassados conforme o exemplo transmitido por estes. Educação, então, “São processos vividos pelo conjunto de membros de cada grupo local, onde a inexistência de especialização institucional faz, de cada um, um professor, e isto durante o desenrolar de cada atividade e de cada trabalho, o desempenho de cada ritual, a alegria de cada dança, a narração viva de cada mito” (Silva, 1981, p. 11).
Este educar contínuo e repetido lembra o que Schaden coloca a respeito da psicologia da educação indígena, na qual o melhor a se alcançar é a semelhança com os pais. Só desta forma a realização e a educação é completa.
Origens do Ensino 211
“Educa-se pela vida – aprende-se vivendo, participando. É uma educação que atinge igualmente a todos e que socializa os conhecimentos essenciais à sobrevivência e ao bem-estar. A oralidade, como elemento crucial destas sociedades, reúne as pessoas e faz com que educar e aprender sejam atividades coletivas, comunitárias” (idem, p. 12).
A educação, assim, longe de ser uma „carga‟ ao qual se deve carregar com utilidade duvidosa, é a forma de continuidade dos padrões culturais socialmente vivenciados e reproduzidos. “[...] por que com seu xeramunha rupi, como eles dizem, que vem a ser a doutrina de seus antepassados, em que estribam todo seu crédito [...] pois estimam eles mais o matarem e terem uma assadura humana em suas festas, visitas de amigos, acampamentos de dó, quando se armam cavaleiros, e em todo o tempo com que se possam presentear uns aos outros, do que quanta 1 fazenda, ouro, nem prata há no mundo.”
Acreditamos que esta educação repetia-se, desde os tempos préhistóricos até os primeiros contatos com os europeus, devido a uma continuidade
no
comportamento
dos
índios
no
início
da
ocupação,
comportamento este registrado pelos cronistas e padres que deveriam ser a seqüência da tradição oral das sociedades ágrafas. Esta unidade/continuidade dos grupos, Guarani e Tupinambá, no período pré-contato com o europeu, é reconhecida a partir de algumas conclusões aceitas para estes grupos: • A unidade/continuidade da reprodução da cultura material e da subsistência destas sociedades durante pelo menos 16 séculos (Brochado, 1984; Noelli, 1993), conforme indicam as datações radiocarbônicas dos sítios arqueológicos;2
1
2
América Abreviada. Suas notícias e de seus naturaes, e em particular do Maranhão, títulos, contendas e instruções a sua conservação e augmento mui úteis pelo Pe. João de Souza Ferreira [Lisboa, 20 de maio de 1693]. Revista Trimestral do Instituto Histórico Geográphico e Ethnohistórico do Brazil. Tomo XLIX. 3º trimestre de 1886. Rio de Janeiro. p.120. Esta continuidade da cultura material é atestada principalmente pela cerâmica que permanece sem alterações significativas ao longo do tempo e do espaço.
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• A unidade lingüística comprovada pelos dicionários ao longo da conquista e da colonização (Montoya, [1639] 1876; Restivo, [1722] 1892; Gatti, 1985; Cadogan, 1992); • A unidade da família lingüística Tupi-Guarani anterior ao contato com o europeu (como sugerida por Rodrigues, 1964; 1984/5); • A unidade da organização social entre os diferentes grupos de fala Guarani ao longo do contato e atualmente (Susnik, 1979/80; Melià, 1986, Soares, 1996). Considero que as características sociais descritas no período dos primeiros contatos representam uma continuidade do sistema anterior ao contato, assim como acontece com a cultura material e, possivelmente, com a subsistência (Noelli, 1993). Esta organização social persiste até a atualidade, com algumas mudanças3, conforme a bibliografia etnológica. Para tratar da organização social deve-se também realizar um recorte temporal, e aqui me refiro a uma continuidade entre o período anterior à conquista e os primeiros contatos com os europeus. A ligação entre os Guarani pré-contrato (arqueológico) e os históricos é inegável (Brochado, 1984; Schmitz, 1985, p. 6). Essa ligação é que permite fazer uma analogia histórica direta, ou seja, demonstrar a continuidade cultural entre o pré-contato e o histórico (Gould, 1971, p. 143-177). Essa continuidade remete diretamente à importância da língua enquanto veículo de informação (Root, 1983, p. 193-219) e manutenção da cultura em uma sociedade ágrafa. Nesta apresentação, seguindo diversos autores, repito enfaticamente que, para os Guarani, “tudo é palavra” e a educação, como segmento da organização social, espelha e remete a uma série de relações sociais que representam o universo imaterial.
3
As diferenças encontradas provavelmente devem-se a historicidade de cada grupo e distintos eventos que redundaram em mudanças.
Origens do Ensino 213
A língua Guarani, desde sua provável derivação e formação a partir do 4
proto-Tupi-guarani por volta de dois ou três mil anos atrás (proposto por Rodrigues, 1964), vem reproduzindo-se sem variações significativas e, com ela, a organização social e a própria ordem social (Noelli, 1993, p. 16). A língua e a própria sociedade 5
Guarani pode ser vista como resultante de um processo de „longa duração‟. A palavra, enquanto „alma‟ para os Guarani,6 é detentora de significado,7 ou seja, possui uma representação – um signo – que ao mesmo tempo traz seu conteúdo semântico, que resiste a mudança do seu sentido ao longo do tempo: “a linguagem é o lugar das tradições, dos hábitos mudos do pensamento”. 8 Segundo Noelli (1993, p. 14), essa continuidade cultural poderia ser re9
interpretada através do conceito de habitus, de Bourdieu (1972, p. 175). O conceito de habitus traz em seu bojo uma relação dialética: “o habitus tanto é determinado pelo mundo social quanto determinante da percepção do mesmo” (Hunt, 1985, Introdução): “O habitus não é apenas uma estrutura estruturante que organiza as práticas e a percepção das práticas, mas também uma estrutura estruturada: o princípio da divisão em classes lógicas que organiza a percepção do mundo social é, em si próprio, o produto da internalizarão da divisão em classes sociais” (Bourdieu, 10 1984, p. xiii).
Sendo assim, as estruturas estruturadas funcionam como estruturas estruturantes, determinando e sendo determinadas pelo mundo social, ou, simplificando, os Guarani responderiam a um estímulo novo com uma resposta velha, já conhecida. Este tipo de conceito se enquadraria perfeitamente no conceito de sociedade prescritiva proposto por Sahlins (1990, p. 17), ou seja, 4
Noelli (1993, p. 12-13) insiste em que se deve reconsiderar as datas, tornando-as mais antigas, uma vez que os sítios mais antigos no RS alcançam dois mil anos. Segundo Braudel (1978) e Hodder (1987), apud Noelli, 1993, p. 14. 6 Em Guarani, ñe‟e é a palavra-alma. “alma de origem divino; [...] ñe‟e mbyte: médula de Ia palabra, médula del alma [..] ñe‟engai: palabra-alma maligna.” (Cadogan, 1992, p. 125-126). 7 Significante é o signo lingüístico, significado é o conteúdo semântico (Saussure, Cours de linguistique générale. 1966). 8 Foucault, 1985, p. 314 apud Noelli, 1993, p. 14. 9 Apud Ortiz, 1983. 10 Citado em Hunt, 1985, p. 18, nota 34. 5
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aquelas sociedades onde a reprodução é a ordem social e o comportamento segue a tradição. No caso da sociedade Guarani, quando esta se depara com uma problemática nova, responde com uma atitude nova, baseada na tradição. Voltando ao conceito de “estruturas” de Bourdieu, veremos que as estruturas estruturantes funcionam como uma estrutura estruturada no passado, mas o presente não é o mesmo que o passado. Dito de outra forma, o Guarani se comporta de uma forma tradicional, mas o processo histórico pelo qual esta sociedade passa, ao longo do tempo e do contato com outras sociedades nãoGuarani, levam os Guarani a adequar o comportamento a nova situação, tendo como exemplo o passado. A historicidade do grupo pode ser encarada como uma estrutura, pois “organiza a percepção do mundo social [e] é, em si própria, o produto da internalização” (Bourdieu, 1984, p. xiii). Negar que havia contatos entre as sociedades pré-hispânicas e negar sua própria historicidade. 11 Sendo assim, o comportamento da sociedade se inspirará em um discurso com tradição no passado, mas não no próprio passado. A historicidade está sempre presente, como diz Sahlins, “o que os antropólogos chamam de „estruturas‟ – as relações simbólicas de ordem cultural – é um objeto histórico” (1990, p. 8). O caso Guarani, logo após os primeiros contatos, assemelha-se ao retratado por Sahlins (1990), onde a prescritividade vale para o ethos expansionista e as relações sociais e a performatividade valem para o acesso aos bens materiais (Sahlins, 1990, p. 87). Tratando-se do período pré-contato, os Guarani mantiveram-se reproduzindo com uniformidade a cultura material (atestados por mais de dois mil anos através das datações de C14, cf. Noelli, 1993) e a organização social, e, por extensão, a educação. Esta longa introdução serve para que possamos afirmar com relativa segurança 11
que
a
sociedade
indígena,
em
particular
os
Guarani,
Conforme Trigger, 1987; Sahlins, 1990; Lightfoot, 1995.
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reproduziam, até o momento do contato com o europeu, uma visão de mundo
ideologicamente
pouco
modificada,
adequando-se
as
novas
realidades a partir da tradição.
A educação dentro da sociedade indígena: reprodução ou manutenção? Quando observarmos o tema da educação na sociedade indígena, esta aparece diluída nos hábitos e costumes, às vezes nas categorias de idade, às vezes no comportamento. O que é importante salientar é que desde a infância as tarefas são como um reflexo, em pequena escala, da vida adulta. As tarefas são realizadas por meninos e meninas seguindo, dentro da sua capacidade, as atitudes dos pais ou avós (Fernandes, 1989, p. 118-120). O menino, quando começa a caminhar, recebe um arco e flecha, a menina aprende a fiar algodão, trancar embira. etc. As tarefas são desenvolvidas coletivamente, em mutirão, seguindo a faixa etária (categoria de idade) e os grupos familiares, para depois, de parentesco. “A convivência permanente com indivíduos do mesmo sexo e idade, nos grupos infantis e através de atividades subordinadas ao seu funcionamento, tem um significado todo especial na aquisição de experiências e no desenvolvimento da personalidade [...]. Na verdade, aquelas atividades colocavam -nos concretamente em situações reais, copiadas ou extraídas da vida dos adultos” (Fernandes, 1989, p. 247).
Esta divisão, por sexo e idade, ao mesmo tempo que distingue as atividades cumulativas de cada categoria, também representa o universo social do grupo, no qual a sociedade se reproduz em escala micro ( família) e macro (cultura grupal). Não se deve esquecer, ainda, o aspecto lúdico destes momentos considerados „de aprendizado‟. O pequeno arco que flecha a perna da avó e o pequeno balaio que carrega uma porção de produtos da roça são o brincar trabalhando e trabalhar brincando. Coletivamente reproduzidos ao longo do tempo, mantém aspectos como a sociabilidade dos personagens do grupo ao
Educação indígena: parâmetro social, necessidade nativa ou invenção ocidental? 216
mesmo tempo que trazem o lúdico da infância, condicionados a reproduzir a sociedade tal vivenciada pelos antepassados. Trabalho e lazer não se separam como na sociedade ocidental. Atividades coletivas de cunho aparentemente infantil se reproduzirão ao longo da vida sob a forma de caçadas, pescarias, derrubada da roça ou coleta de frutos. A sociedade indígena não considera estas atividades lúdicas, mas coletivas. Se assumem um aspecto aparentemente lúdico, é por que a ruptura entre infância, adolescência e a maioridade se darão por rituais de passagem, não por tarefas diferenciadas a serem realizadas. 12 De que forma se enquadrariam os superdotados ou os desviantes? Ao que tudo indica, a flexibilidade destas sociedades permitem, não raro, espaço de igualdade aos que não se destacam: desta forma, se o ideal de guerreiro, chefia política ou chefe de família não é alcançado, não existe nenhum tipo de represália (Fernandes, 1989, p. 247-248). Em outras palavras, não há competição, no sentido negativo da palavra. Aqueles que se destacam em suas atividades farão parte, naturalmente, das atividades de guerra, chefia política e, em casos especiais, da pajelança ou chefia religiosa (idem, p. 258). Outro detalhe a ser observado diz respeito à reprodução da sociedade com padrões preestabelecidos. Talvez os maiores indicadores sejam as „escolas matrimoniais‟, uma instituição na qual cabe aos indivíduos mais velhos do grupo condicionar e ensinar as obrigações familiares ao indivíduo que adentra no universo adulto. A princípio não aceita pelos europeus, a „escola matrimonial‟ consistia em iniciar os jovens, de ambos sexos, por um adulto de idade avançada do sexo oposto (Soares, 1997, p. 105). Florestan Fernandes assim coloca para os Tupinambá: “[...] o grupo tenta explicar o comportamento em termos da participação da cultura. A posição privilegiada das gerações velhas, a este respeito, atribui-lhes obrigações 12
Talvez a única atividade que não é aprendida desde a infância seja o xamanismo, uma vez que, de acordo com a sociedade, o pajé é escolhido pela comunidade de pessoas ou espíritos, de pessoas ou da natureza.
Origens do Ensino 217
especiais, como o adestramento das gerações novas. Como únicos portadores de todos os conhecimentos e das antigas experiências tribais, competia-lhes transmitir aos descendentes a cultura de seus ancestrais” (op. cit., p. 133).
Por isto era tão comum ver-se „casamentos‟ entre velhas e rapazes, velhos e meninas. A iniciação sexual dos adolescentes pelos mais velhos tinha dois
objetivos:
adestrar
os
iniciados
nas
obrigações
conjugais
para
manutenção-reprodução da sociedade; e condicionar os jovens às condições de obtenção de prestígio dentro da tradição e da manutenção do „modo de ser‟, o ethos. Neste sentido é importante ressaltar que, mesmo que a sociedade busque reproduzir, em sua essência, uma série de padrões preestabelecidos, dentro da sociedade existe uma gama de atividades diferenciadas que, mesmo que não formem castas ou grupos distintos, são símbolos de ascensão social. Por exemplo, como a diferença básica entre um homem comum, agregado a um grupo familiar, e um mburuvichá, chefe político da aldeia. Se o prestígio é perseguido, é mais por uma característica do ethos indígena do que por mudança no mesmo (Soares, 1997, p. 214). Estas questões colocam em pauta, novamente, o cunho da educação indígena: manutenção ou reprodução? Do meu ponto de vista, acredito que a palavra reprodução traz em si uma sociedade estática e sem assimilações das culturas ou contatos externos. Como diria Sahlins (1990), uma sociedade prescritiva em sua essência. No entanto, vemos nos Guarani, que tem sido meu objeto de estudo, uma abertura àquelas novidades que reduzem o esforço físico, e por que não dizer, diminuem o trabalho braçal. Neste sentido, o contato com o europeu trouxe um sem-número de novas situações, aos quais os Guarani adaptaram-se parcialmente de forma receptiva, aceitando o que lhes convinha. Porém, mantiveram-se fiéis as suas tradições, formas de casamento, ritos, poligamia, etc. Uma sociedade na qual a dinâmica dos contatos interétnicos se faziam sentir muito antes do contato com o europeu e, ainda assim, mantinha e impunha seu ethos bélico e expansionista, é melhor enquadrada como
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performática, mantendo uma estrutura socioideológica que respalde as atividades do grupo frente as novas situações. Para os Tupinambá, Fernandes coloca de seguinte forma: “O Conselho dos chefes constituía uma poderosa agência de conservantismo cultural e uma fonte permanente de atualização das tradições tribais” (Fernandes, 1989, p. 283).
Vemos então que, ao invés de conduzir ou comandar às atividades sociais, o „conselho dos chefes‟ conserva a sociedade dentro da sua manutenção cultural, através do „modo de ser‟ (ñande reko guarani) específico, que nada mais é que a continuidade da própria cultura, adequando-se às novidades, porém, com base na tradição.
Educação formal proporcionada pelas escolas bilíngües na atualidade Em primeiro lugar, buscando as origens deste artigo, me referi a uma reflexão sobre a educação formal entre os índios. Até aqui, pode-se perceber que, em uma sociedade grosso modo igualitária, a educação está restrita ou restringida à manutenção de diversos valores que podemos chamar de culturais a fim de perpetuar a existência desta sociedade tal qual ela e, como frisei no início. O problema está quando, através de uma ação dita civilizadora, nos, enquanto brancos, queremos enquadrar, civilizar, „ajudar‟ no pior sentido do termo, uma sociedade a ser integrada a um sistema produtivo que é completamente desconhecido da sua realidade. Esta afirmação pode ser desmembrada em diversas outras, que não custa lembrar: Qual o objetivo do Estado para o „enquadramento‟ da sociedade indígena? Por que buscamos „patrolar‟ uma cultura aos moldes do início do imperialismo britânico, impondo a nossa cultura como „A Cultura‟?
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Se, levado a cabo tal „enquadramento‟, quais os „benefícios‟ proporcionados às sociedades antes indígenas, agora nacionais? Tentando responder a uma questão de cada vez, o objetivo imediato do Estado em enquadrar estas culturas passa imediatamente pelo custo de cada uma delas. Traduzindo: uma sociedade indígena, para se manter nos moldes tradicionais, precisa ter um espaço tradicional (primeiro empecilho), cultuando sua religião tradicional (segundo empecilho) com uma relação produtiva tradicional (terceiro, mas não último). Ora, o espaço tradicional das sociedades nativas é cobiçado pelas européias (não-indígenas), desde a madeira sobre o solo, o potencial da lavoura no solo e as riquezas minerais do subsolo; a religião que os primeiros professam é paganismo, em detrimento da religião de origem judaico-cristã, das pentecostais ou das messiânicas; e para completar, a fonte da cultura indígena é a mata que mantém o sistema sem excedentes, e é justamente esta mata que precisa ser derrubada para instituir o capitalismo, a mais-valia, transformar a natureza em bem de consumo, seja através de ecoturismo (uma forma mais ecológica, com os índios tratados como animais em jardim zoológico, para serem vistos na „floresta primitiva‟) ou seja através da exploração dos vegetais e dos minerais, que é a base da cultura do tipo „praga de gafanhoto‟ que é a nossa cultura em relação aos ambientes preservados, ou seja, derrubada e agricultura intensiva ou pecuária extensiva. Neste quadro de pressão movido pela sociedade envolvente, a Escola (instituição) aparece como veículo do branco para transformar toda a barbárie em civilização, todo o sistema „pré-histórico‟ que estava „errado‟ em „modernidade‟ que está „certa‟ [sic]. Em nenhum momento passa na cabeça dos ideólogos do ensino „civilizante‟ que estas sociedades estão neste continente há, pelo mínimo, de dois a vinte mil anos, o que é, na pior hipótese, uma boa prova que sua cultura funciona e bem, haja vista não terem se extinguido até a chegada do civilizado.
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A escola, desde a chegada dos jesuítas no Brasil, traz este objetivo: levar o modo de vida, hábitos e costumes „corretos‟ em detrimento dos autóctones. Não é, senão isto, o que faziam os padres seiscentistas ao catequizarem os jovens e crianças? Pregar o abandono dos velhos costumes ancestrais em troca das novas verdades? Na atualidade, embora 500 anos tenham se passado, pouco mudou. A escola tornou-se o templo do saber na qual as trevas da selvageria serão rompidas pela luz do conhecimento (branco, naturalmente). Para se tornarem caboclos, para transformarem-se em bóias frias, para que percam sua identidade, a escola levou uma cultura branca no objetivo de desestruturar a organização existente, aparecendo como instrumento de poder, na qual a passagem é obrigatória para entender o branco ou ser como ele. “A educação para o índio de orientação oficial (estatal e missionária) historicamente tem servido para a sujeição e destruição das populações tribais” (Grizzi e Silva, 1981, p. 16).
Senão, vejamos: o intento da sociedade envolvente, a brasileira, diz que todo aquele que se enquadra no conceito de habitante anterior ao branco é “índio”. Com isso se apagam as diferenças culturais, lingüísticas, étnicas e tradicionais para um enquadramento puro e simples sob o rótulo de: “índio”. Qual a conseqüência primeira? Como nos tempos do Serviço de Proteção ao Índio (SPI), reunia-se em reservas minúsculas grupos tradicionalmente inimigos, que além de não manterem nenhuma simpatia cultural, disputavam o mesmo território ou possuíam culturas antagônicas. A política do dividir para governar foi a „pedra angular‟ da educação para os Índios, quando o Mobral reunia sob sua égide grupos rurais, camponeses e espoliados urbanos sob o mesmo manto paternalista do governo. Quando se estendeu a sociedade indígena, o resultado não poderia ser menos que um desastre. Uma experiência recente levada a cabo entre os Tapirapé demonstra bem como, apesar das ótimas intenções, a educação na sociedade indígena, de
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cunho formal ou não-tradicional traz em seu bojo a ruptura e a alienação. As Irmãzinhas de Jesus relatam desta forma: “Embora nossa proposição seja de oferecer escola apenas como um instrumento a mais para os Tapirapé, na prática sabemos que isto não 13 acontece, por ser ela uma instituição tipicamente tori, incidindo diretamente no processo de educação das pessoas. O fato de sermos professores de fora, com uma cultura diferente da dos Tapirapé, faz com que a escola esteja mesclada de nosso padrão cultural. Podemos detectar sinais de mudança na cultura sobre os quais a escola provavelmente exerceu influência: Os jovens conduzem a „política externa‟ – são eles que vão a Brasília, falar com a FUNAI, etc., isso modifica a estrutura de poder tradicional, em que o Conselho de velhos detinha o papel preponderante; A escola tori educa para uma sociedade em mudança, por isso ela se torna um elemento de contradição, principalmente em relação aos mais velhos; A escola ajuda a introduzir o padrão tori do valor material das coisas, no ensino da matemática, por exemplo, com a quantificação das coisas.” (Paula e Paula, 1981, p. 106).
Neste sentido, é sintomático que, apesar da tentativa de romper com estes vínculos de dominação, as Irmãzinhas nada puderam fazer, pois esta idéia, de que o correto é aquilo que é trazido do branco, está calcada, inconscientemente ou não, nos índios e nos brancos. Aquela sociedade na qual os valores advém das gerações mais velhas e que detêm a experiência dos antepassados, é substituída por uma sociedade jovem (como o Brasil se diz ser!) que busca freneticamente não perder o compasso da velocidade mundial. Ao mesmo tempo, a contradição está nas novas relações sociais que se inserem: se antigamente o cacique era somente o „Relações Públicas‟ da aldeia e possuía um papel de verbalizador dos anseios coletivos, agora os jovens fazem o contato com os brancos. Mesmo que em algumas sociedades, como é o caso dos Mbyá-Guarani do Rio Grande do Sul, esta figura mantém o papel de representante da coletividade, em outras, como os Kaingang, a centralização do poder nas mãos do cacique se tornou uma arma contra a qual toda a sociedade reluta. Para os índios, os brancos escolheram seu cacique: para os brancos, o 13
Tori, quer dizer do branco, do civilizado, do não-índio. (Paula e Paula, 1981, p. 100).
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cacique e dos índios. Entre os Tapirapé, ao que parece, estes jovens adquiriram mais „distinção‟ na aldeia, mudando a forma tradicional. Ainda um ponto a ser salientado é o que se ensina. Parece consensual que muitos grupos desejam aprender para não serem enganados nas relações comerciais. No entanto, a matemática ensinada adquire todo o ideário das relações econômicas, pois inicia-se com a noção de preço que rapidamente se transforma em juro e lucro. Um exemplo disto são os barracões de compra de borracha na Amazônia. Quando não se pode mais enganar o índio ao ponto de vê-los sempre devendo, passa-se a „empurrar-lhes‟ artigos sem necessidade. Visto desta forma, percebe-se então que: “O problema da educação para o índio é um problema político, que implica, obviamente a existência de vários outros: pedagógicos, antropológicos, lingüísticos, econômicos, etc. A educação para o índio jamais é neutra, e qualquer projeto está sempre orientado por uma postura básica: a crença de que o índio vai/deve desaparecer na sociedade nacional, ou a crença de que ele vai/deve sobreviver” (Grizzi e Silva, 1981, p. 16).
Sob este ângulo, percebe-se que não existe, para estes autores, uma terceira via. As atitudes frente às comunidades indígenas estão diretamente relacionadas à postura tomada em relação a elas: vão sobreviver? Vale a pena investir? Não vão sobreviver? Todo trabalho é só paliativo? Este binômio está mascarado em todas as iniciativas, institucionais ou não, pois se observamos as práticas oficiais, como a FUNAI até bem poucos anos atrás, podemos acompanhar quais as „soluções‟ adotadas nas áreas indígenas: um paternalismo mesclado com frases do tipo “não adianta, os índios são assim mesmo, imprevidentes ou indolentes”, uma vez que todas as aspirações de médio e longo prazo não são atendidas e, cabe 14
ressaltar, confunde-se dar uma enxada com dar condições de sustento. 14
Um exemplo pode ser bem colocado aqui. A mendicância atingiu um grau de insustentabilidade quando, no verão de Porto Alegre, uma jovem mãe guarani esmolava com uma criança de 16 dias de vida em seus braços. Alertado o Conselho Tutelar, a Procuradoria Geral da República convocou as lideranças indígenas para expor o caso e buscar uma solução. Os índios assim se
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É desta forma que age a educação formal entre os índios, tentando inseri-lo, mesmo que discretamente, nos padrões considerados adequados à sociedade nacional. “Alfabetizar não é uma atividade neutra. Quando é operacionalizada de tal forma que sejam minimizadas as interferências na educação indígena tradicional, pode ser uma arma que ajuda o índio no seu relacionamento com a sociedade envolvente; a medida que substitui a educação tradicional, torna-se uma arma contra o índio, um fator de divisão social na sociedade antes igualitária, um meio de afastar o índio de uma sociedade que de alguma forma ele já recusa” (Grizzi e Silva, 1981, p. 17).
Ora, se ao índio é recusada a história da sociedade branca, as lutas de classes, as diferenças sociais e de poder (por que são desconhecidas de sua sociedade) não é normal que, ao defrontar com a „riqueza‟ do homem branco, seu carro e seu celular, o índio queira entrar nesta “Terra sem Males”? Vendose habitar em uma choupana de barro e caminhando a pé, vendo as benesses que o dinheiro propicia e conduz, não é normal vermos tantos índios quererem entrar na “zoociedade” de consumo? Então, qual o caminho mais lógico e próximo para atingir este nível de vida, não é a escola? Não é dito e repetido tantas vezes (e até mesmo entre os brancos) que a escola é o acesso ao conhecimento e a riqueza? A Escola acaba sendo muito mais que isso. “A escola, instituição estranha às sociedades baseadas na oralidade, é um aparelho ideológico da etnia e das classes dominantes. A instalação de escolas em áreas indígenas não funciona apenas como veículo direto da dominação das populações tribais; serve também para convencer índios e brancos de que índio não aprende, e para legitimar perante a sociedade nacional uma „assistência‟ àquelas populações, confirmando e reforçando a superestrutura” (Grizzi e Silva, 1981, p. 17).
pronunciaram: não havia sementes, e mesmo se houvesse, a terra estava „cansada‟ sendo a produção insuficiente; ademais, aqueles que plantaram deveriam esperar o desenvolvimento dos cultivos, e comeriam o quê neste período? A mendicância era uma alternativa. Isto mostra a complexidade que envolve a situação indígena tanto nas cidades como nas aldeias. Isto aconteceu em fevereiro de 1996, na cidade de Porto Alegre, com grupos Guarani advindos de áreas próximas, como Cantagalo e Águas Claras (Viamão).
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É assim que, na memória coletiva do agricultor rural ou mesmo entre os setores urbanos menos avisados, o índio aparece como inculto por vocação própria ou por preguiça, vadiagem, ou coisa que o valha.
15
Frente à dificuldade
de pensar na língua nacional, de compreender os milhares de mecanismos diferentes que compreendem o mundo civilizado, a sociedade indígena engatinha em questões básicas como o papel de cada instituição, o que ela representa e de quem depende. Sendo assim, quando solicita a um órgão qualquer, religioso ou estatal, e percebe a demora como as coisas são conduzidas, vê se distanciarem suas reivindicações e aspirações nos meandros burocráticos totalmente desconhecidos das sociedades pré-estatais. Neste aspecto burocrático entra a Escola, que depende da permanência de um professor, da manutenção de uma sala de aula, do provimento do material escolar, tudo muito lento e muito custoso. Por isso e mais fácil pensar, para qualquer um que seja, que o índio é vadio e sem persistência, ao invés de olhar os reveses internos da aplicação de cada medida paliativa. As sociedades indígenas, querendo interagir com a sociedade nacional sem ser explorada, vê na escola uma alternativa que, a princípio, atende seus desejos imediatos, ao mesmo tempo que atende os anseios da própria sociedade nacional ao erradicar a barbárie da cultura indígena. “A ideologização da „escola‟ (alfabetização da língua nacional) é , como frisamos, resultado da relação dialética entre o que o índio pensa a respeito da sociedade nacional e o que o „civilizado‟ pensa do índio. O índio pode ver a „escola‟ como solução mágica para os problemas que enfrenta, como um lugar para as crianças; pode querê-la como meio de deixar de ser índio e ser como branco, procurar status através da alfabetização. O „civilizado‟ pode ver a escola como fator de progresso nacional e do índio, da erradicação da „selvageria‟, de „salvação‟ moral, espiritual e material, ou seja, vê-la como „aspirina‟, uma panacéia para todos os males: os do índio e de sua própria consciência” (Grizzi e Silva, 1981, p. 19). 15
Em História do Rio Grande do Sul ainda se mantém ensinando como os índios das Missões possuíam capacidade para imitar as obras dos padres, sem, no entanto, terem condições de criação pela sua própria imaginação.
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É por isso que a imagem que é vendida pela mídia „global‟ descaracteriza o índio como sociedade diferente, como são, por exemplo, um italiano e um alemão, preferindo incluí-los na ignorância na qual é impossível enquadrar sem a intervenção do branco com sua cultura superior que civiliza, e traz, a reboque, seu método civilizatório, a Escola. A visão que os órgãos oficiais – ou aqueles que direta ou indiretamente estão a seus serviços, como a televisão – pretendem passar é que, considerando que andar de pés descalços é sinônimo de atraso cultural, nada melhor que levar a nossa cultura para resolver este tipo de problema, tudo através do discurso da 16
professora e da Escola (por que na verdade é ela que „sabe‟). Além de representarem empecilhos em projetos de „desenvolvimento‟ como o Calha Norte, a sociedade indígena deve se render aos cultos dos brancos, à inteligência dos brancos, à medicina do branco, e assim por diante, tudo representado de forma concisa e eficiente como a Escola.
O que é uma escola para os Índios? Diferente de uma escola ao índio, que queira transformá-lo para melhor conduzi-lo à integração perversa da sociedade capitalista, uma escola para o índio é aquela que pretende atendê-lo em suas reivindicações, ou seja, que buscará explicar ao índio como se (des)constrói a sociedade branca e como funciona para melhor atuar sobre ela. Neste sentido a importância da escola para o índio é: “a) revitalizar a cultura tradicional; b) munir os índios de conhecimentos úteis ao seu trato com os brancos e à defesa de seus interesses” (Grizzi e Silva, 1981, p. 15). É necessário também que a escola não descaracterize os traços culturais independentes de cada cultura, evitando o erro crasso e seguidamente repetido
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A „professora‟ dos postos indígenas geralmente é a esposa do chefe do posto, por isso colocamos no feminino. Ressalvamos que assim as instituições „resolvem‟ dois problemas a um só tempo.
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que é, mesmo não intencionalmente, tratar o índio como aquele „saco de gatos‟ citado no início do trabalho, um todo idêntico e sem especificidades. Neste sentido é fundamental que aqueles espaços comunitários de diálogos e solidariedade se reproduzam conforme a historicidade de cada grupo. Para isto é preciso que a escola “[...] seja um espaço privilegiado para a discussão dos problemas fundamentais do grupo, quais sejam: a questão da invasão da terra, a busca de alternativas econômicas para o grupo, explicitação do preconceito racial contra o índio” (Altmann e Zwetsch, 1981, p.44).
Por esta razão não se pode confundir ensino tradicional dos índios com a forma tradicional do ensino branco, com quadro-negro e cópia de textos, baseada na idéia que o aprendiz é um recipiente vazio que se enche com o „conhecimento‟ do professor, processo unilateral que traz uma velha versão da dominação que representa o ensino branco tradicional. “A educação indígena é um meio de controle social interno do grupo e foi entendida como o processo pelo qual cada sociedade indígena internaliza em seus membros o próprio modo de ser, garantindo sua sobrevivência e reprodução. A educação para o índio é o processo que „envolve agentes estranhos à cultura e liga-se a realidade do contato‟. O campo da educação é amplo, toda ação indigenista é educativa, mas a expressão educação para o índio é aplicada aqui no seu sentido mais restrito” (Altmann e Zwetsch, 1981, p. 44).
A educação para o índio tem o objetivo que colocá-lo frente às cotidianidades da sociedade envolvente de forma a que ele possa entrar nesta nova realidade sem que seja por baixo ou pela porta dos fundos, semelhante às formas de „enquadramento‟ das outras minorias étnicas ao longo dos séculos. Parto de uma premissa que é impossível evitar o contato entre os índios e a sociedade envolvente, pois seja através das epidemias ou da redução inevitável do espaço ancestral, todas as sociedades nativas entram ou entrarão em contato com a sociedade envolvente, seja através da Funai,
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do SIL17 ou dos garimpeiros/madeireiros, de modo que sombra da morte e o perigo já chegou até eles. Se é inevitavelmente desta forma, como se constrói uma escola para os índios? Aqui cabe a reflexão de Mota (1981, p. 125-126). “Mas o que é uma escola realmente indígena? Ao me perguntar isto, vem-me a idéia de uma pedagogia anterior à nossa, uma pedagogia voltada para ensinar os novos membros da sociedade a fazerem parte dela, ou para se socializarem. Visualizo, então, os rituais de iniciação quando membros mais velhos da tribo passam para o iniciante o saber ancestral, a forma de se conduzir e de ver o mundo, de sobreviver. Penso na menina ao pé da mãe aprendendo a moer farinha; depois, já casada, ainda com a mãe, a trançar o cesto da coleta, com as palmas de buriti” (Mota, 1981, p. 125-126).
Nessa pedagogia, as formas de produção e reprodução são outras, as categorias de pensamento também são outras. Como estabelecer essa escola “realmente indígena” se não sabemos o que é existir como “indígena” dentro da nossa sociedade? No momento em que tentamos levar ao índio uma pedagogia que é nossa, estamos obviamente proporcionando mais uma forma de penetração do mundo do “civilizado” e da sociedade dominante num universo que era indígena, mas que passa a ser, desde o momento do contato com vias a integração indígena na sociedade nacional, ou como os jesuítas os categorizavam muito habilmente – “índios conversos”, isto é, nem “índio”, nem “civilizado” (Mota, 1981, p. 125-126). Ensinar uma pessoa a ler e escrever, enquanto as situações de exploração socioeconômica e de estrutura social continuam as mesmas, é tão somente
treiná-la
para
ingressar
na
sociedade
como
mão-de-obra
desqualificada, sem grandes perspectivas de desenvolvimento integral como pessoa humana autêntica e autônoma. Os grupos indígenas brasileiros na sua maioria estão sendo desculturados e aculturados, tornando-se mão-de-obra barata e sem-terra, ficando, portanto, à mercê dos interesses dos grupos do
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Summer Institut of Linguistic.
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poder que lhes reprime o pensamento, e recebendo uma visão de mundo que garante a reprodução do sistema capitalista. Sendo assim, não conseguem desafiar este mundo por que não o compreendem. O processo educacional, dentro de um contexto de dominação cultural e econômica, torna-se um “instrumento estratégico” para garantir a submissão dos grupos dominados. No caso do indígena, esse instrumento serve também para a sua melhor integração na sociedade nacional (Mota, 1981, p. 127). O processo de dominação sub-reptício que a Escola formal branca traz é, mais que um ensino, um conjunto de valores sociais, morais, éticos e formais, que conduzem, através de um parâmetro bem definido na figura do professor, a reprodução de uma cultura exógena à sua, mas ao mesmo tempo incompreensível em sua totalidade. “A educação proposta pelas escolas serve não só para transmitir alguns conhecimentos técnicos, como também a ideologia que rege as relações de produção e as reproduz, moldando o caráter e o comportamento dos membros da sociedade para o uso do sistema” (Mota, 1981, p. 128).
A Escola do branco é aquela na qual ainda se ensina uma história ahistórica, desprovida de qualquer desenvolvimento ou processo que apresente mudança na condição de seus personagens. Desta forma, aparece idealizada frente aos olhos de seus aprendizes. Não existem problemas, guerras ou discussões; não existem as lutas de classes ou os conflitos sociais. A sociedade do branco reproduz, de forma inalterada, uma falácia de História. É por esta razão que o índio tem na Escola formal uma estrutura distorcida e dependente, caótica e desestruturante: “Ao ser despojado de seu passado, de sua identidade cultural, de sua antiga organização social e lançado a um mundo cujas relações e modo de produção não compreende, não compreendendo, portanto seu papel social neste mundo, o indígena tem na escola um instrumento alienado e alienante. É uma escola que, fundada na maneira de pensar da cultura dominante, proíbe o pensamento crítico, pois „exclui a relação sobre os antagonismos sociais” (ibid., p. 128).
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Ou seja, a educação dada para o índio, em sua forma mais abrangente, revela uma realidade inexistente e inalterável, pois já se encontra pronta tanto na prática do professor como no exemplo (formal e informal) que se passa aos alunos. Analisados criticamente, textos dos livros de educação de adultos que tenham sido introduzidos nas escolas indígenas apresentam uma realidade ahistórica, acabada. As leituras, tanto do material para a escola primária como para os adultos, sugerem aceitação de um mundo já feito e harmonioso, onde basta ter os documentos necessários para se conseguir um emprego e alcançar a felicidade, onde ser um bom cidadão é ser obediente às autoridades e às leis da sociedade, sem questionar nada. É um mundo onde o trabalhador esforçado recebe sua recompensa, e a família que faz poupança dificilmente passa por necessidade econômica. Desta forma, a escola funciona desconectada ao real, alcançando, “facilmente, a submissão da minoria, pelo inculcamento em seus membros, de situações que acabam por levar a conclusão da complexidade do mundo dos brancos e a conseqüente incapacidade do indígena em compreendê-lo” (Mota, 1981, p. 129). Somando-se
o
providencialismo
religioso,
a
desestruturação
sociocultural dos 500 anos de contatos malfadados e das iniciativas incompletas das organizações governamentais e não-governamentais, o que resta àqueles índios que buscam sair da roda-viva da espoliação e entrar no mundo do branco via Escola é um paradoxo realmente difícil de entender: “Depois de um dia de enxada, trabalhando na terra alheia, o índio analfabeto tinha, portanto, duas opções educacionais: ir ao cursinho noturno e responder que o tijolo é feito de barro, ouvir que é necessário comer ovos e verduras todos os dias, ou assistir a programação da TV Globo no aparelho colocado na sala de reuniões comunitárias” (Mota, 1981, p. 129).
É por isso que a Escola como instituição terá sempre a tendência de colocar o índio em uma situação automática de inferioridade, por que a realidade não é diferente: o índio trabalha e não consegue nada, se esforça e
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não consegue mudar sua condição, é bombardeado por toda a espécie de apelos de consumo e bem-estar e não se possibilita a transformação em suas condições de habitação, saúde, higiene: o índio está errado! É esta idéia que alimenta a todos que ousam alcançar a Escola. Estando basicamente desligada da realidade local, é um sistema educacional que reforça idéias de que “o mundo dos brancos” é uma espécie de “terra sem males” a ser alcançada, mas cujo acesso estava cheio de empecilhos não compreendidos e vistos como muralhas indevassáveis. É uma educação, como já assinalamos, “desconectada do real” e, portanto, incapaz de formá-los para enfrentar a realidade. Uma educação para a manutenção de uma situação sempre a mudar-se, mas, sendo a-histórica, não preparava ninguém para a história. A educação, que deveria idealmente funcionar como porta de saída do beco onde se encontravam, como passagem para uma vida mais segura e respeitável, não conseguia cumprir tal destino. Além do mais, por ser uma forma de verdadeira aculturação, não ensinava como pensar mas o que pensar. O aluno indígena que tivesse conseguido ficar até o quarto ou mesmo quinto ano escolar, aprendia a ler e escrever alguma coisa, a fazer contas e ter algumas noções das regras sociais que regem o “mundo civilizado”, mas não aprendia a entender esse mundo. Nem poderia ser assim, pois se o entendesse teria a opção de aceitá-lo ou negá-lo conscientemente (Mota, 1981, p. 130). A política indigenista oficial é parte integrante deste modelo (liberal), e tem servido, sistematicamente, como instrumento de dominação e destruição dos povos indígenas. Dentro desse contexto, a educação institucionalizada, respaldada pelo Estado, é veículo privilegiado da dominação ideológica, pois desrespeita os povos indígenas, mascarando-a através de um paternalismo autoritário que aparentemente protege, quando na verdade cerceia e destrói. A política oficial desconhece a realidade do processo educacional próprio das sociedades indígenas. Tal processo é a garantia da manutenção
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de uma identidade étnica diferenciada, e sua redução ao ensino oficial não pode ser admitida por que nega o direito desses povos a autodeterminação (Silva, 1981, p. 149). O trabalho que realmente serve as sociedades indígenas é aquele que respeite suas liberdades individuais e sua existência enquanto coletividade diferenciada. Não é um modelo na qual se “insiram” os índios na sociedade nacional como querem os governos atuais. A “incorporação” das sociedades indígenas é somente um mecanismo de extermínio na qual se justifica o apelo do progresso e das frentes civilizatórias. Quando a sociedade branca e os interessados na diversidade cultural e biológica reagirem, os órgãos oficiais novamente remeterão à condição de “aculturamento”, dispensando assim maiores atenções. É contra estas iniciativas que se volta uma educação popular, baseada no direito da diferença e na possibilidade da convivência entre os diferentes espaços culturais, procurando conduzir a cidadania através da consciência de sua condição e das formas de mudá-la: “O trabalho de educação popular não visa criar subalternos educados: sujeitos limpos, polidos, alfabetizados, bebendo água fervida, comendo farinha de soja e cagando em fossas sépticas. Visa participar do esforço que fazem hoje todas as categorias de sujeitos subalternos – do índio ao operário do ABC – para a organização do trabalho político que, passo a passo, abra caminhos para conquista de sua própria liberdade” (Brandão, 1981, p. 159).
A educação popular – como trabalho de educação de crianças indígenas, de alfabetização de camponeses, de curso supletivo para operário, de pastoral popular, etc. – é um modo de participação de agentes eruditos (professores, padres, cientistas sociais e tantos outros) neste trabalho político. Estejamos conscientes – se não quisermos ser inocentes – de que a educação popular é um trabalho que tem a ver com questões políticas e, não apenas, pedagógicas e culturais. Não há trabalho pedagógico neutro ou
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de pura e simples “promoção humana e social” junto a minorias étnicas e a maioria dos excluídos. Toda a prática a que temos dado o nome de educação popular, e que melhora condições sociais de vida, sem acrescentar nada ao trabalho político do índio ou do povo, na verdade trabalha contra eles (Brandão, 1981, p. 160-161). Referências bibliográficas ALTMANN, Lori, ZWETSCH, Roberto. Projeto de educação para o grupo Suruí, Rondônia. In: A Questão da Educação Indígena. Comissão Pró-Índio. Coordenação Aracy Lopes da Silva. São Paulo: Editora Brasiliense, 1981. p. 44-50. BRANDÃO, Carlos R. Educação Popular: contribuição ao debate da educação do índio. In: A Questão da Educação Indígena. Comissão Pró-Índio. Coordenação Aracy Lopes da Silva. São Paulo: Editora Brasiliense, 1981. p. 152-161. BROCHADO, José Proenza. An Ecological Model of the Spread of Pottery and Agriculture Into Eastern South America. Urbana-Champaign: University of Ilinois at Urbana-Champaign PhD Tesis, 1984. CADOGAN, León. Dicionário Mbya-Guarani Castelano. Biblioteca Paraguaya de Antropologia. v. XVII. Asunción: CEADUC/CEPAG, 1992. FERNANDES, Florestan. A Organização Social dos Tupinambá. São Paulo: Hucitec/ UNB, [1949] 1989. FERREIRA, João de Souza Pe. América Abreviada. Suas notícias e de seus naturaes, e em particular do Maranhão, títulos, contendas e instruções a sua conservação e aumento mui úteis pelo Pe. João de Souza Ferreira [Lisboa, 20 de maio de 1693]. Revista Trimestral do Instituto Histórico Geográphico e Ethnohistórico do Brazil. Rio de Janeiro: Tomo XLIX, p. 120, 3 trimestre. 1886.
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Origens do Ensino 235
AUTORES
André Soares – Mestre em Arqueologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Professor do Departamento de Metodologia de Ensino e membro da Comissão Especial para Resgate do Patrimônio Arqueológico e Paleontológico da Universidade Federal de Santa Maria/RS. Autor de Guarani: organização social e arqueologia e Breve manual de patrimônio cultural: uma proposta de educação patrimonial. Attico Chassot – Doutor em Ciências Humanas e professor titular (aposentado) da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Professor no Centro de Ciências Humanas e Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Autor de A ciência através dos tempos e Para que(m) é útil o ensino? Geraldo Luiz Borges Hackmann – Doutor em Teologia. Diretor e professor do Instituto de Teologia e Ciências Religiosas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e Diretor do Jornal Mundo Jovem. Publicou vários livros, entre eles Vassula Ryden – impostora, visionária ou mística? e Jesus Cristo, nosso Redentor. Geraldo Rodolfo Hoffmann – Doutor em História Natural e Livre-docente em Geologia. Professor dos cursos de Graduação e Pós-Graduação da Faculdade de Biociências da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, onde atua também no Museu de Ciência e Tecnologia. Autor de vários trabalhos, sendo co-autor do livro Rio Grande do Sul: aspectos da Geografia.
Autores 236
Harry Bellomo – Mestre em História do Brasil e especialista em História da Cultura. Professor do curso de Graduação da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, onde também coordena grupos de pesquisa sobre Arte Funerária. Publicou vários livros, entre eles Estudos de Problemas Brasileiros e Vidas e Costumes. leda Bandeira Castro – Especialista em Metodologia do Ensino Superior. Professora do Departamento de Geografia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas e do Departamento de Métodos e Técnicas de Ensino da Faculdade de Educação, ambos da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Autora de vários trabalhos e co-autora do livro Inquietações Geográficas. Katia Paim Pozzer – Doutora em História pela Université Paris I PanthéonSorbonne. Professora-Adjunta do Departamento de História da Universidade Luterana do Brasil e professora convidada do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Margaret Marchiori Bakos – Doutora em História pela Universidade de São Paulo. Pós-Doutorado em Egito Antigo pelo University College London. Professora dos cursos de Graduação e Pós-Graduação em História da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Autora de vários trabalhos, destacando-se O que são os hieroglifos e Fatos e Mitos do Antigo Egito. Moacyr Scliar – Especialista em Saúde Pública. Professor assistente de Medicina Preventiva na Fundação Faculdade Federal de Ciências Médicas de Porto Alegre. Colaborador em vários órgãos da imprensa, no país e exterior, sendo autor de 48 obras, entre elas A paixão transformada: uma história da medicina na literatura.
Autores 237
Pedro Paulo Funari – Doutor em Arqueologia e professor Livre-Docente na Universidade de Campinas. Publicou diversas obras no Brasil e vários artigos científicos em revistas especializadas, no país e no exterior. É autor de La cultura popular en la Antigüedad Clássica e Roma, vida pública e vida privada. Sérgio Sardi – Doutor em Filosofia pela Universidade de Campinas. Professor dos cursos de graduação e Pós-Graduação de Filosofia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Ministra cursos de formação de professores em Filosofia com Crianças, escreve histórias Ilustradas de Filosofia e trabalha com a História da Educação Ambiental para Crianças. É autor de obras como Diálogo e Dialética em Platão.
Autores 238