O Manifesto Comunista. 150 anos depois

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Ma11ifesto

do Partid.o Colllunista IUR.L MARx

M

e

FRIEDRICH ENGELS

o espectro do comunismo. Todas as potências da velha Europa aliaram-se numa sagrada perseguição a esse espectro, o Papa e o Czar, Met­ ternich e Guizot, radicais &anceses e policiais alemães.

U

ESPECTRO RONDA A EUROPA-

Onde está o partido de oposição que não tenha sido difamado como comunista pelos seus adversários governistas, onde está o partido de oposição que não tenha arremessado de volta, aos opositores mais progressistas tanto quanto aos seus adversários reacionários, a pecha estigmatizante do comunismo> Duas coisas decorrem desse fato. O comunismo já é reconhecido como uma potência por todas as potências européias. Já é tempo de os comunistas exporem abertamente, perante o mundo todo, sua maneira de pensar, os seus objetivos, as suas tendências, e de contraporem ao conto da carochinha sobre o espectro do comunismo um manifesto do próprio partido. Com esse objetivo, reuniram-se em Londres comunistas das mais diversas nacionalidades e esboçaram o seguinte manifesto, que está sendo publicado em idioma inglês, &ancês, alemão, italiano, flamengo e dinamarquês. 1 Burgueses

e Proletários (1)

A história de todas as sociedades até o presente (2) é a história

das lutas de classes. Homem livre e escravo, patrí�o e plebeu, senhor feudal e servo, membro de corporação e oficial-artesão, em síntese, opressores e oprimidos estiveram em constante oposição uns aos outros, travaram uma luta ininterrupta, ora dissimulada, ora aberta, que a cada vez ESTUDOSAVANÇADOS 12 (34), 1998

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terminava com uma reconfiguração revolucionária de toda a sociedade ou com a derrocada comum das classes em luta. Nas épocas remotas da história, encontram.os por quase toda a parte uma estrnturação completa da sociedade em diferentes esta­ mentos, uma gradação multifacetada das posições sociais. Na Roma antiga tem.os patrícios, cavaleiros, plebeus, escravos; na Idade Média, senhores feudais, vassalos, membros de corporação, oficiais-artesãos, servos, e ainda, em quase cada uma dessas classes, novas gradações particulares. A moderna sociedade burguesa, emergente do nau.&ágio da

sociedade feudal, não aboliu os antagonismos de classes. Ela apenas colocou novas classes, novas condições de opressão, novas estrntoras de luta no lugar das antigas. A nossa época, a época da burguesia, caracteriza-se, contudo, pelo fato de ter simplificado os antagonismos de classes. A sociedade toda cinde-se, mais e mais, em dois grandes campos inimigos, em duas grandes classes diretamente confrontadas: burguesia e proletariado.

Dos servos da Idade Média advieram os buraueses emw-muros 1 das primeiras cidades; deste estam.ento medieval desenvolveram-se os primeiros elementos da burguesia. A descoberta da América, a circunavegação da África criaram

um novo terreno para a burguesia ascendente. Os mercados das Índias Orientais e da China, a colonização da América, o intercâmbio com as colônias, a multiplicação dos meios de troca e das mercadorias em geral deram ao comércio, à navegação, à indústria um impulso jamais conhecido; e, com isso, imprimiram. um rápido desenvol­ vimento ao elemento revolucionário na sociedade feudal em desagregação.

1

Pfahlbürger no

original ("burguês da paliçada"); o termo designa os habi­

tantes de um espaço situado entre as muralhas do castelo e uma circundante fronteira de paliçada. Em sua condição social, o

Pfahlbürger corresponde

parcialmente ao "vilão" do feudalismo português. Em sentido figurado,

Pfahlbürger significa

uma pessoa demasiado limitada, de concepções con­

vencionais e enrijecidas. (N. d.

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T.)

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O funcionamento feudal ou corporativo d.a indústria, existente até então, já não bastava para as necessidades que cresciam. com os novos mercados. A manufatura tomoú o seu lugar. Os mestres de corporação foram sufocados pelo estrato médio industrial; a divisão do trabalho entre as diversas corporações desapareceu perante a divisão do trabalho no interior d.a própria oficina particular •

.Mas os mercados

continuavam. a crescer, continuava a aumentar a necessidade de produtos. Também a manufatura já não bastava mais. Então o vapor e a maquinaria revolucionaram. a produção industrial. A grande indústria moderna tomou o lugar da manufatura; o lugar do estrato médio industrial foi tomado pelos milionários industriais, os chefes de exércitos industriais inteiros, os burgueses modernos. A grande indústria criou o mercado mundial, que a descoberta d.a América preparara. O mercado mundial deu ao comércio, à navegação, às comunicações por terra um desenvolvimento incal­ culável. Este por sua vez reagiu sobre a expansão d.a indústria, e na mesma medida em que indústria, comércio, navegação, estradas de ferro se expandiam, nessa mesma medida a burguesia desenvolvia­ se, multiplicava seus capitais, empurrava a um segundo plano todas as classes provenientes d.a Idade Média. Vemos, portanto, como a própria burguesia moderna é o produto de um longo processo de desenvolvimento, de uma série de revoluções (Umwãlzungen) nos meios de produção e de transporte. Cada uma dessas etapas de desenvolvimento d.a burguesia veio acompanhada de um progresso político correspondente. Estrato social oprimido sob o domínio dos senhores feudais, associação ar­ mada e com administração autônoma na comuna (3); aqui cid.ade­ república independente, ali terceiro Estado tributário d.a monarquia; depois, na era d.a manufatura, contrapeso à nobreza na monarquia estamental ou absoluta; base principal das grandes monarquias de uma forma geral, a burguesia conquistou finalmente para si, desde a criação d.a grande indústria e do mercado mundial no moderno Estado representativo, o domínio político exclusivo. O poder estatal moderno é apenas uma comissão que administra os negócios comuns do conjunto d.a classe burguesa.

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A burguesia desempenhou-na-história um papel extremamente revolucionário. Onde quer a burguesia tenha chegado ao poder, ela destruiu todas as relações feudais, patriarcais, idílicas. Ela rompeu impiedosamente os variegados laços feudais que atavam o homem ao seu superior natural, não deixando nenhum outro laço entre os seres humanos senão o interesse nu e cru, senão o insensível "pagamento à vista". Ela afogou os arrepios sagrados do arroubo religioso, do entusiasmo cavalheiresco, da plangência do filisteísmo burguês, nas águas gélidas do cálculo egoísta. Ela dissolveu a dignidade pessoal em valor de troca, e no lugar das inúmeras liberdades atestadas em documento ou valorosamente conquistadas, colocou uma única inescrupulosa liberdade de comércio. A burguesia, em uma palavra, colocou no lugar da exploração ocultada por ilusões religiosas e políticas a exploração aberta, desavergonhada, direta, seca. A burguesia despojou de sua auréola sagrada todas as atividades até então veneráveis, contempladas com piedoso recato. Ela transformou o médico, o jurista, o clérigo, o poeta, o homem das ciências, em trabalhadores assalariados, pagos por ela. A burguesia arrancou às relações familiares o seu comovente véu sentimental e as reduziu a pura relação monetária. A burguesia revelou como o dispêndio brutal de forças, que a reação tanto admira na Idade Média, encontrava a seu complemento adequado na mais indolente ociosidade. Apenas ela deu provas daquilo que a atividade dos homens é capaz de levar a cabo. Ela realizou obras miraculosas inteiramente diferentes das pirâmides egípcias, dos aquedutos romanos e das catedrais góticas, ela executou deslocamentos inteiramente diferentes das Migrações dos Povos e das Cruzadas. A burguesia não pode existir sem revolucionar continuamente os instrumentos de produção, portanto as relações de produção e, assim, o conjunto das relações sociais. Conservação inalterada do velho modo de produção foi, ao contrário, a condição primeira de existência de todas as classes industriais anteriores. O revolucio­ namento contínuo da produção, o abalo ininterrupto de todas as

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situações sociais, a insegurança e a movimentação eternas distinguem a época burguesa de todas as outras. Todas as relações fixas e enferrujadas, com o seu séquito de veneráveis representações e concepções, são dissolvidas; todas as relações novas, posteriormente formadas, envelhecem antes que possam enrijecer-se. Tudo o que está estratificado e em vigor volatiliza-se, todo o sagrado é profanado, e os homens são finalmente obrigados a encarar a sua situação de vida, os seus relacionamentos mútuos com olhos sóbrios. A necessidade de um mercado cada vez mais expansivo para seus produtos impele a burguesia por todo o globo terrestre. Ela tem de alojar-se por toda parte, estabelecer-se por toda parte, construir vínculos por toda parte. Através da exploração do mercado mundial, a burguesia configurou de maneira cosmopolita a produção e o consumo de todos os países. Para grande pesar dos reacionários, ela subtraiu à indústria o solo nacional em que tinha os pés. As antiquíssimas indústrias nacionais foram aniquiladas e ainda continuam sendo aniquiladas diariamente. São sufocadas por novas indústrias, cuja introdução se torna uma questão vital para todas as nações civilizadas, por indústrias que não mais processam máterias-primas nativas, mas sim matérias-primas próprias das zonas mais afastadas, e cujos produtos são consumidos não ape�as no próprio país, mas simultaneamente em todas as partes do mundo. No lugar das velhas necessidades, satisfeitas pelos produtos nacionais, surgem novas necessidades, que requerem para a sua satisfação os produtos dos mais distantes países e climas. No lugar da velha auto-suficiência e do velho isolamento locais e nacionais, surge um intercâmbio em todas as direções, uma interdependência múltipla das nações. E o que se dá com a produção material, dá-se também com a produção intelectual. Os produtos intelectuais das nações isoladas tornam-se patrimônio comum. A unilateralidade e estreiteza nacionais tornam­ se cada vez mais impossíveis, e das muitas literaturas nacionais e locais vai se formando uma literatura universal2• 2

Provável referência de Marx e Engels ao conceito de literatura universal ( Weltliteratur) exposto por Goethe a Eckermann em 31 de janeiro de 1827. Goethe também traça um paralelo entre a constituição da literatura universal e a expansão internacional do comércio. (N. d. T.)

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Através do rápido aperfeiçoamento de todos os instrumentos de produção, através das comunicações infinitamente facilitadas, a burguesia arrasta todas as nações, mesmo as mais bárbaras, para dentro da civilização. Os módicos preços de suas mercadorias são a artilharia pesada com que ela põe abaixo todas as muralhas da China, com que ela constrange à capitulação mesmo a mais obstinada xenofobia dos bárbaros. Ela obriga todas as nações que não queiram desmoronar a apropriar-se do modo de produção da burguesia; ela as obriga a introduzir em seu próprio meio a assim chamada civilização, isto é, a tornarem-se burguesas. Em uma palavra, ela cria para si um mundo à sua própria imagem. A burguesia submeteu o campo ao domínio da cidade. Ela criou cidades enormes, aumentou o número da população urbana, em face da rural, em alta escala e, assim, arrancou do idiotismoª da vida rural uma parcela significativa da população. Da mesma forma como torna o campo dependente da cidade, ela torna os países bárbaros e semibárbaros dependentes dos civilizados, os povos agrários dependentes dos povos burgueses, o Oriente dependente do Ocidente. A burguesia vem abolindo cada vez mais a fragmentação dos meios de produção, da posse e da população. Ela aglomerou a popu­ lação, centralizou os meios de produção e concentrou a propriedade em poucas mãos. Conseqüência necessária disso tudo foi a centralização política. Províncias independentes, quase que tão­ somente aliadas, com interesses, leis, governos e sistemas aduaneiros diversificados, foram aglutinadas em uma nação, um governo, um interesse nacional de classe, uma fronteira aduaneira. Em seu domínio de classe que mal chega a um século, a burguesia criou forças produtivas em massa, mais colossais do que 3

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Idiotismus, no original. Em sua "Introdução ao Manifesto Comunista", E. Hobsbawn observa quanto a essa expressão que, embora os seus autores partilhassem do costumeiro desprezo do citadino pelo mundo rural, ela possui antes o sentido de "horizontes estreitos" do que "estupidez". "Ela fazia eco ao sentido original do termo grego 'idiotes', do qual derivou o significado corrente de 'idiota' ou 'idiotice', a saber, uma 'pessoa preocupada apenas com seus pr6prios assuntos particulares e não com os da comunidade mais ampla'." (ln Sobre História, Companhia das Letras, 1998, p. 298.) (N. d. T.)

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todas as gerações passadas em conjunto. Subjugação das forças da natureza, maquinaria, aplicação da química na indústria e na agricultura, navegação a vapor, estradas de ferro, telégrafos elétricos, arroteamento de continentes inteiros, canalização dos rios para a navegação, populações inteiras como que brotando do chão - que século passado poderia supor que tamanhas forças produtivas estavam adormecidas no seio do trabalho social! Nós vimos portanto: os meios de produção e de circulação, sobre cujas bases a burguesia se formou, foram gerados na sociedade feudal. Em um certo estágio do desenvolvimento desses meios de produção e de circulação, as relações nas quais a sociedade feudal produzia e trocava, a organização feudal da agricultura e da manufatura, em uma palavra, as relações feudais de propriedade, não correspondiam mais às forças produtivas já desenvolvidas. Elas tolhiam a produção, em vez de fomentá-la. Thansformavam-se assim em outros tantos grilhões. Precisavam ser explodidas, foram explodidas. Em seu lugar entrou a livre concorrência, com a constituição social e política que lhe era adequada, com o domínio econômico e político da classe burguesa. Sob os nossos olhos processa-se um movimento semelhante. As relações burguesas de produção e de circulação, as relações burguesas de propriedade, a moderna soci�de burguesa, que fez aparecer meios de produção e de circulação tão poderosos, assemelha­ se ao feiticeiro que já não consegue mais dominar os poderes subterrâneos que invocou. Há decênios a história da indústria e do comércio vem sendo apenas a história da revolta das modernas for­ ças produtivas contra as modernas relações de produção, contra as relações de propriedade que constituem as condições vitais da burguesia e da sua dominação. Basta mencionar as crises comerciais que, em sua recorrência periódica, questionam de maneira cada vez mais ameaçadora a existência de toda a sociedade burguesa. Nas crises comerciais extermina-se regularmente não apenas uma grande parte dos produtos fabricados, mas também das forças produtivas já criadas. Deflagra-se nas crises uma epidemia social que a todas as épocas anteriores apareceria como contra-senso - a epidemia da superprodução. A sociedade encontra-se remetida subitamente a um

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estado de momentânea barbárie; uma epidemia de fome, uma guerra geral de extermínio parecem ter-lhe cortado todo suprimento de alimentos; a indústria, o comércio parecem aniquilados - e por quê) Porque a sociedade possui demasiada civilização, demasiados suprimentos de alimentos, demasiada indústria, demasiado comércio. As forças produtivas que estão à sua disposição já não servem mais ao fomento das relações de propriedade burguesas; ao con1rário, elas se tornaram por demais poderosas para essas relações, são tolhidas por elas; e tão logo superam esse obstácnlo, levam toda a sociedade burguesa à desordem, põem em perigo a existência da propriedade burguesa. As relações burguesas tornaram-se demasiado estreitas para abarcar a riqueza gerada por elas. - Através de que meios a burguesia supera as crises) Por um lado, pelo extermínio forçado de grande parte das forças produtivas; por outro lado, pela conquista de novos mercados e da exploração mais metódica dos antigos mercados. Como isso acontece então) Pelo fato de que a burguesia prepara crises cada vez mais amplas e poderosas, e reduz os meios de preveni-las. As armas com as quais a burguesia derruiu o feudalismo

voltam-se agora contra a própria burguesia. Mas a burguesia não forjou apenas as armas que lhe trazem a morte; ela produziu também os homens que portarão essas armas -

os operários modernos, os pro1etários. Na mesma medida em que a burguesia, isto é, o capital, desenvolve-se, desenvolve-se o proletariado, a classe dos modernos operários, os quais só subsistem enquanto encontram trabalho, e só encontram trabalho enquanto o seu trabalho aumenta o capital. Esses operários, que têm de vender-se um a um, são uma mercadoria como qualquer ou�o artigo de comércio e, por isso, igoalm.ente expostos a todas as vicissitudes da concorrência, a todas as oscilações do mercado. O trabalho dos proletários perdeu, pela expansão da maqui­ naria e pela divisão do trabalho, todo caráter autônomo e, com isso, todo atrativo para o operário. Ele torna-se um mero acessório da máquina, do qual é exigido apenas o mais simples movimento de mãos, o mais monótono, o mais Scil de aprender. Os custos que o operário causa restringem-se por isso quase que tão-somente aos alimentos de que ele carece para o sustento próprio e para a

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EsTUDosAvANcADos 12 mica); além disso, a Guerra Fria dos dois sistemas legitimou o uso de

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somas astronômicas para a tecnologia militar. Desse modo era possível contor­ nar a barreira que a propriedade privada burguesa de meios de produção repre­ sentava para o desenvolvimento das forças produtivas. Hoje, o spin-ojfda pes­ quisa de tecnologia militar, financiada pelo Estado, define nosso cotidiano, desde a frigideira Teflon até o PC. No entanto, o fato de a antiga União Sovié­ tica ter se separado do círculo dos agentes hist6ricos não contradiz o Manifesto. Se o faz, segue os princípios populares e incansavelmente alimentados por po­ líticos e pelos meios de comunicação de massa de difamar o projeto de um internacionalismo proletário especialmente aos olhos dos trabalhadores, prin­ cipal público-alvo. Quanto menos política for a formação de um indivíduo e quanto mais ele se movimentar de maneira irrefletida e anist6rica pela hist6ria contemporwea, mais tenderá a considerar a estrutura de dominação estalinista e seu fracasso definitivo como a contestação de Marx: e a morte do projeto socialista. A irrealidade momentmea presente no internacionalismo dos trabalha­

dores assalariados modernos, esboçado no Manifesto, salta aos olhos. Por outro lado, ela pode ofuscar como falsa evidência de nossa época p6s-comunista. Basta observar a visão de mundo de um ilustre poeta espanhol contemporaneo. Para José Angel Valente, a ameaça foi substituída pelas ideologias totalitárias com o "fantasma da globalização" (e/ espectro de la mundialización). Ele nos vê regi­ dos por um volume de capital financeiro, do qual apenas um por cento atua produtivamente. Os que especulam com isso e comandam a situação não fo­ ram escolhidos por n6s e são até inexpressivos. Por trás disso, "como segundo círculo desse inferno moderno ou p6s­ modemo, agem os manipuladores dos grandes meios de comunicação de mas­ sà'. Somente então aparecem os políticos; seu poder parece fictício, mera fa­ chada. (Tal é o relato de Jorge Edwards, escritor chileno, em E/Pais, de 2 1 .7.98, p. 1 0: "La palabra sospechosà'.) Essa percepção do mundo global e capitalista ao final do século XX é representativa para inúmeros contemporweos. O que mais ela representa além daproktarização da enorme parte da população mun­ dial, seja ela feita de white ou blue-collars, e a despeito da diferença formal entre trabalho independente e dependente? Ainda que o Manifesto induza ao erro, onde prognostica a redução de todas as classes "em dois grandes campos inimigos, em duas grandes classes diretamente confrontadas: burguesia e pro­ letariado", não se deve ignorar a idéia de que, na relação com as potências que dominam o mundo, exploram a economia e governam sem mandato legítimo, a maior parte da população mundial encontra-se praticamente proktarizada: politicamente sem capacidade de ação e economicamente talvez com uma par­ ticipação secundária.

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Naturalmente isso é apenas um quaseproletariado. Suas múltiplas cisões em interesses parciais impedem sua representação política uniforme. Todavia, talvez esse pensamento seja útil para manter viva a provocação produtiva do

Manifesto. Pois nada é mais fatal para o espírito do que caminhar sem reservas com o espírito do tempo. O tempo é breve com seu pr6prio espírito. Cronos devora seus filhos. Na próxima virada da história, todos aguardam o inespera­ do. Apesar de a (pre)visão do Manifesto a respeito da globalização e do desen­ volvimento da técnica se confirmar, hoje o espírito do tempo parece ultrapassa­ do em sua principal suposição dialética: na verdade, parte-se do caráter contra­ ditório do desenvolvimento e, portanto, do fato de que nem as forças produti­ vas nem as respectivas relações e situações mundiais expressam uma condição homogênea. Todo fen6meno é transitório e atravessado por forças em conflito, cujas resultantes podem até constituí-lo. Hoje, sob a dupla impressão do pós-comunismo e da crise ecológica, seria possível estabelecer, sobretudo entre os esquerdistas, um amplo consenso de que essa suposição dialética tenha se tomado antiquada: antigamente as coisas eram contraditórias, porém tornaram-se inequívocas.

É preciso ser con­

tra a globalização e a tecnologia de ponta. No entanto, justamente agora que sobretudo seus adeptos o abandonam, o Manifesto poderia se revelar completa­ mente atual. Sendo assim, a luta não seria

contra

a globalização e as forças

produtivas, mas por elas.

Wol.frang Fritz Haug é professor da Universidade Livre de Berlim, Alemanha. Tradução de Karina Jannini. O original em alemão

-

Unzeitgemiisse Betrachtungen

zum Kommunistischen Manifest - encontra-se à disposição do leitor no IEA-USP para eventual consulta.

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Un fantasma reco rre el mundo ANÍBAL QUIJANO

M

!ENTRAS LO ESCRIBfAN, los autores del Manifiesto Comunista implicaban

sin duda el mundo entero en las tendencias centrales del movimiento

hist6rico de la sociedad capitalista. Pero las imágenes concretas de sociedad que tenían en mente se referían, ante todo, si no exclusivamente, a Europa Occidental. Así cobra sentido la poderosa imagen que abre el texto: "Un fan­ tasma recorre Europa - el fantasma del comunismo" . Después de 150 aiíos, las tendencias mundiales que Marx y Engels entonces registraban son ahora situaciones cristalizadas. Y sus imágenes concretas de sociedad remiten hoy a la experiencia concreta del conjunto del mundo. En la propia Europa la realidad social nunca fue quizás tan ceiíidamente representada en ellas. No debe sorprender, en consecuencia, que el fantasma del comunismo vuelva a visitar la historia y ahora no s6lo en Europa, sino en todo el mundo. Empero, si tanto tiempo después el mismo fantasma inquieta ahora el mundo, eso no puede significar sino dos cosas: una, que el movimiento de la historia ha seguido el camino y el patr6n vislumbrados en el Manifiesto para la sociedad capitalista. En otros términos, que la perspectiva de conocimiento allí implicada ha probado ser, básicamente, correcta. Y por eso, también las previsiones hist6ricas; otra, que las acciones y las medidas propuestas para blo­ quear ese camino y desintegrar ese patr6n - de modo que la historia pudiera encaminarse en la trayectoria del socialismo, hacia un patr6n de sociedad co­ munista - no fueron igualmente correctas, ni eficaces. Esa es una de las lecturas necesarias del más famoso texto político de la historia (1).

Las previsiones historicas mayores

"Globalización"y polarización social Un trozo del Manifiesto (cuya frase inicial dice: "La burguesfa, por medio de su explotaci6n del mercado mundial ha dado un carácter cosmopolita a la producci6n y al consumo en cada país") debe ser hoy citado en todas partes, ya que es casi una cr6nica actual de lo que hoy se denomina globalización (2).

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Aunque para la mayoria de quienes lo discuten,

globalización

es un

concepto que mienta, sobre todo, una nueva relaci6n entre espacio, tiempo y economia (o historia,

tout court,

para muchos) por la mediaci6n tecnol6gica,

para el Manifiesto se trata dei desarrollo de las tendencias dei capital hacia una mayor integraci6n dei control dei poder a escala mundial por medio de la explotaci6n dei mercado mundial, de la consecuente polarizaci6n social de la poblaci6n dei mundo entre una minoria en el control de recursos, de riquezas y de poder y una creciente mayoria despojada de todo eso y empujada a la pauperizaci6n. Y tales son, reconocidamente, los más visibles de los actuales procesos mundiales dei capitalismo. Cumplen, quizás mejor que otros fen6menos, las previsiones dei Manifiesto y ponen de relieve el poder de la mirada hist6rica de

Marx y Engels (3) .

La hegemoniafinal de la cultura de "mercado" Así mismo, nunca fue tan patente para todos que el capital necesita imponer - y ha impuesto en todo el mundo - el desnudo interés egoísta, cabal­ mente expresado en el cash payment, como el único nexo básico en la sociedad. Tal como fue formulado en el duro lenguaje dei

Manifiesto,

"la burguesia ha

desnudado de su halo a cada ocupaci6n hasta ahora honrada y admirada con reverencial temor. Ha convertido ai médico, ai abogado, ai sacerdote, ai poeta, ai hombre de ciencia, en sus trabajadores asalariados". Lo que el Manifiesto condena es, por supuesto, lo que hoy se canta en los himnos neoliberales a la gloria dudosa dei

mercado.

La palmera deshojada en el desierto "La burguesia no puede existir sin revolucionar constantemente los ins­ trumentos de producci6n, de ese modo las relaciones de producci6n y con ellas el conjunto de las relaciones de la sociedad", sostiene el Manifiesto. La propuesta te6rica culmina con la célebre imagen: "Todo lo que es s6lido se disuelve en el aire, todo lo que es sagrado es profanado y el hombre es compelido a encararse sin atenuantes con sus reales condiciones de vida, con sus relaciones con sus semejantes". �Quién podria negar la final protuberancia de este rasgo capitalista en las condiciones de la

globalización

y el recomienzo de la lucha por el re­

encantamiento dei mundo?

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El Estado de los capitalistas: otra reprivatización "Cada paso en el desarrollo de la burguesía fue acompafiado por un cor­ respondiente avance político de esa clase", sostienen los autores dei Manifiesto. La burguesía ha expropiado dei control dei poder politico a todas las demás dases sociales antes dominantes y ella lo tiene ahora exclusivamente. Así, "El ejecutivo dei Estado moderno no es sino un comité de administración de los asuntos comunes dei conjunto de la burguesíà'. Esta última afirmación, que apunta ai hueso dei Estado Burgués moderno, ha sido una de los más continua­ mente cuestionadas y resistidas proposiciones de Marx-Engels. Sospecho, sin embargo, que esa resistencia era más pertinente y característica dei período anterior, entre la Segunda Guerra Mundial y la crisis de mediados de los 70s, y sobre todo antes de que la globalización, el neoliberalismo y el descarnado dominio de la acumulación financiera se hicieran tan evidentes. Durante ese período, el desarrollo de lo público dei Estado en los moder­ nos Estados-nación consolidados y el avance, relativo pero importante, de las luchas por la democratización-nacionalización de sociedades y estados en el resto dei mundo, abultaban la manera reduccionista de esa proposición dei

Manifiesto. En efecto, en el Estado-nación desarrollado la representación polí­ tica de los intereses sociales no-burgueses era real, aunque reconocidamente subordinada, y quizás apareda más real de lo que era en la medida en que no sólo las instituciones dei liberalismo, sino sobre todo el Welfare State, eran plenamente vigentes. Y el avance en los procesos más o menos consistentes hacia la formación de Estados-nación en la periferia, permitían también la constitución, si no la consolidación, de esas formas de representación política de intereses sociales no-burgueses en el Estado. O, mejor dicho, tal avance produda la ilusión de que en todo el mundo dei capitalismo el Estado tenía que ser una esfera de representación y de articulación de todos los interesses sociales no obstante su desigualdad. La globalización, esa contrarrevolucionaria reconfiguración dei poder en el capitalismo, conducida bajo la hegemonía dei capital financiem, lo que produce es, sin embargo, la tendencia a la creciente reducción de esos márgenes de igual representación política de desiguales intereses sociales en el Estado. En la mayor parte dei mundo, en la periferia pues, no se trata solamente de una reducción, en algunos lugares, América Latina por ejemplo, Africa y Asia, sin duda, está en curso una auténtica reprivatización dei control dei Estado en manos de los núcleos burgueses más globalizados. No se trata solamente de la ciudadanía, en general, sino, para comenzar, de los rastros de Welfare State que las luchas populares habían logrado conquistar. Y en el centro, aunque más

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lentos, más graduales, resistidos por los trabajadores y las capas medias, los respectivos procesos están sin duda alguna avanzando. De todos modos, más o menos según las particulares correlaciones de fuerzas polltico-sociales, la bur­ guesfa tiende ai exclusivo controle dei Estado. En fin, el hueso dei Estado capi­ talista que los autores dei Manifiesto trataban de hacer visible, tan temprano, es casi lo único realmente visible en las condiciones de la globalización (4). En eso consiste hoy, en lo fundamental, la contradicción concreta entre interés social e identidad nacional que elManifiesto coloca en la entraíía misma dei patrón de desarrollo político de la historia dei capitalismo. La perspectiva de conocimiento

Aquí es pertinente apenas apuntar las cuestiones centrales de esa manera de conocer y de producir conocimiento. Y sus dificultades.

La totalidady la historicidad en el conocimiento El poder, sobre todo en el capitalismo, requiere excluir de la perspectiva cognitiva todo aquello que en la realidad lo cuestiona o lo desaffa. Por eso, cuando no se refugia en el azar o la providencia, o en la objetivación de alguna entidad suprahistórica, sólo puede admitir mutilándolo el campo de relaciones o totalidad en el que encuentra explicación y sentido todo fenómeno histórico. Esa mutilación de la totalidad no es hecha solamente en el plano de la coetaneidad de los fenómenos, sino igualmente en el largo tiempo histórico. Es contra esa manera de conocer que Marx trabaja una alternativa, que con él da sus primeros pasos en el siglo XIX y cuyos núcleos decisivos son la idea de totalidad e historicidad de los fenómenos sociales. Es de allí que provienen las ideas de clasificación de la población de la sociedad en el poder, de articulación y conflicto de heterogéneos y antagónicos intereses sociales, la inherente tendencia mundial dei capital y; en consecuencia, el mundo como el especifico campo de relaciones dei capitalismo, como totalidad en la perspectiva cognoscitiva y, en fin, dei largo plaw histórico como elemento de esa totalidad. �Entre el evolucionismo eurocéntrico y la heterogeneidad histórica dei mundo? En el Manifiesto se establece, desde la partida, una distinción neta entre la Europa dei capital y el mundo dei capitalismo: el fantasma dei comu­ nismo recorre Europa, no el resto dei mundo. Y esa distinción también recorre el texto. Así, mientras de un lado se afirma que "las diferencias y antagonismos nacionales entre los pueblos están desvaneciéndose cada dfa más, por el desarrollo de la burguesfa, la libertad de comercio y el mercado mundial, la uniformización

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del modo de producción y de las correspondientes condiciones de existenciá', y que "la supremada del proletariado hará que esas diferencias se desvanezcan aún más rápido", por otro lado se estampa que "la unidad en la acción, por lo menos en los países más civilizados, es una de las primeras condiciones para la emancipación dei proletariado" (negritas afiadidas). �Qué veían en el resto dei mundo los autores del Manifiesto como obstá­ culo para la unidad mundial dei proletariado y la postulaban, ante todo, para "los paises mas civilizados" (léase Europa Occidental)? Esta es una pregunta que sólo puede ser contestada con el conjunto de su obra posterior. Es imprescindible anotar, de todos modos, que su visión de las relaciones entre Europa y el resto dei mundo no dejó de ser prisionera de una perspectiva eurocéntrica. Las cuestiones de raza, de la colonialidad mundial dei poder, de la heterogeneidad histórica de lo que se articulaba en el capitalismo mundial, entre otras, ingresaron de modo tardío, parcial y finalmente irresuelto en el debate marxiano del conocimiento.

Lasfrustraneas propuestas políticas Quizás hay alguna relación entre esos limites eurocéntricos de la perspec­ tiva cognoscitiva y el carácter de las propuestas políticas para la revolución comunista en Europa. Después dei colapso dei socialismo realmente existente, sin duda es más llamativo aún el hecho de que la estatización de la economía y la total centralización dei poder político en el Estado, fueran los instrumentos estratégicos que el Manifiesto propone como el punto de partida de la revolución comunista. Es decir, no solamente para destruir el dominio de la burguesía sobre la economía y sobre el Estado, sino para toda la trayectoria de revolución de la sociedad hasta su conversión en una sociedad comunista. Sabemos bien que Marx tuvo tiempo y ocasión de hacer una correción radical a esas propuestas después de la experiencia de la Comuna de Paris, en 1 87 1 . Sabemos también que Marx fue consciente ai final de las cuestiones planteadas en la perspectiva eurocéntrica dei conocimiento histórico. Pero, así mismo, que no llegó a resolverias. Y no hay como olvidar que esas propuestas fueron, precisamente, el eje central en torno dei cual se organizó el socialismo realmente existente y que probablemente contiene la explicación de su trágica experiencia. Sin la hegemonía dei eurocentrismo en la perspectiva de los marxis­ tas posteriores a Marx, no se podría encontrar explicaciones eficaces a esa historia. Después de 1 5 0 afios, hoy tenemos una conciencia más clara de las opciones alternativas ai eurocentrismo en la producción del conocimiento. Y

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América Latina es uno de los más activos veneros de esas opciones. Pero tenemos,

dei mismo modo, una más clara conciencia de las tendencias que en el propio desarrollo actual dei capitalismo llevan a la reconstituci6n de la comunidad y de la reciprocidad en la lucha contra la explotaci6n, la dominaci6n, la discriminaci6n. Es por ellas, con certeza, que en el momento mayor de triunfo dei capitalismo en el mundo, el fantasma dei comunismo vuelve a ser visible.

Notas

1 De la plet6rica riqueza de cuestiones que toda lectura dei Manifiesto hoy no puede dejar de abrir y en cuyo debate todos somos tentados de participar, en el limitadísimo espacio asignado a estas notas me restringiré apenas a plantear unas pocas de ellas.

2 Tres afios atrás acepté presentar en el Colegio Nacional de Soci6logos dei Perú los primeros resultados de una indagaci6n de las relaciones entre globalización y Estado-nación. Comencé leyendo ese párrafo y pregunté, después, si la fuente era familiar a la audiencia. S6lo algunos entre los menos j6venes podían identificaria.

3 Incluso economistas adversarios de Marx, no pueden sino reconocer estos hechos. Así la curiosa nota de John Casidy: The retum of Karl Marx, en New Yorker, Oct.

20-27, 1997. 4 He abierto esas cuestiones en Estado-naci6n, ciudadanía y democracia: Cuestiones abiertas. En Helena Gonzáles & Haidulf Schmidt (comps.).

Democracia para

una nueva sociedad (Caracas, Venezuela, Nueva Sociedad 1997).

Aníbal Quijano, soci6logo, é professor ela Universidade de São Marcos, em Lima (Peru).

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A atualidade do

Manifesto

na p eriferia do cap italismo PLÍNIO DE ARR UDA SAMPAIO ]R.

O

e triunfalista do Manifesto Comunista contrasta com a sombria situação em que se encontram as forças anticapitalistas neste final de milênio. Escrevendo em um momento de grande efervescência do movimento operário, seus jovens autores subestimaram a capacidade de TOM GRANDILOQÜENTE

sobrevivência da burguesia e superestimaram o ímpeto revolucionário do pro­ letariado. O desperdício de conjunturas revolucionárias nas sociedades capita­ listas avançadas e o caráter inconcluso e problemático das revoluções socialistas nas economias atrasadas permitiram que a burguesia organizasse uma contra­ revolução de longa duração em escala mundial. A História foi implacável com os perdedores. Depois de amargar os horro­ res de duas guerras mundiais, de uma grande depressão mundial e do fascismo político, as classes populares estão sendo castigadas pelo fascismo de mercado. Os modernos métodos de cooptação e opressão tornaram adverso e hostil o ter­ reno da luta de classes, gerando desalento e confusão no movimento socialista.

Capitalismo e barbárie Ainda que as suas previsões otimistas sobre o desenrolar da luta de classes não tenham se concretizado, o Manifesto aponta as razões pelas quais a contra­ revolução permanente não é capaz de congelar a História por tempo indefini­ do. Com muita clarividência, Marx e Engels inferiram que as leis imanentes do processo de valorização do capital, ao provocar a mercantilização ilimitada da vida social e o progressivo desenvolvimento das forças produtivas, levariam à degeneração da própria sociedade burguesa. Muito antes da crise da civilização ocidental ter ficado patente, o memo­ rável panfleto anunciava: o caráter imperialista do capitalismo é antagônico à sobrevivência da sociedade nacional; a natureza predatória da concorrência eco­ nômica é incompatível com a reprodução dos mecanismos responsáveis pela coesão social; as relações monetárias deturpam a personalidade dos indivíduos e solapam os laços familiares; a metamorfose dos ciclos industriais em crises econômicas intermináveis transforma a barbárie em um estado permanente.

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Passados 1 50 anos de sua publicação, o Manifesto impressiona pela preci­ são de seus vaticínios. Terminada sua missão de libertar o homem das relações servis e de revolucionar seu controle sobre a natureza, o capitalismo voltou-se contra si mesmo, solapando as bases da civilização burguesa. Após ter conquis­ tado o mundo e subjugado todas as resistências ao império dos negócios, o capitalismo passou a confundir-se com a barbárie. A transformação revolucio­ nária da sociedade tornou-se, então, uma necessidade histórica. ''A sociedade burguesa moderna, que conjurou gigantescos meios de produção e de troca, assemelha-se ao feiticeiro que já não pode controlar os poderes infernais que ,, . mvocou . A crescente contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e a propriedade privada dos meios de produção - contradição que se expressa

pela recorrente negação de trabalho vivo - vulnerabiliza a burguesia. A incapa­ cidade do capitalismo de alimentar seus escravos gera um forte sentimento de insatisfação e revolta contra a ordem burguesa. Pode-se abafá-lo mas não há como suprimi-lo. Por esse motivo, mesmo quando as classes subalternas estão prostradas, o fantasma da revolução social atormenta os donos do poder. As derrotas do proletariado nunca são definitivas.

A perspectiva comunista "Proletários de todos os países, uni-vos!". Eis a fórmula concisa e direta invocada por Marx e Engels para impulsionar as forças políticas anticapitalistas. A tarefa primordial dos comunistas consiste em promover a conexão dos movi­ mentos operários, imprimindo-lhes uma dinatnica revolucionária. Para tanto, o trabalhador precisa adquirir consciência de classe, superando o caráter local e corporativo de suas reivindicações e dando uma conotação antiburguesa e internacionalista à luta política. A mensagem última do Manifesto é clara. O fim da liberdade do capital de subjugar trabalho alheio é uma pré-condição para liberar os indivíduos para sua plena realização humana. Pode-se sintetizar a fórmula sugerida pelo Manifesto para fazer avançar a revolução proletária em três consignas básicas: somente a negação da proprie­ dade privada é capaz de aglutinar as forças sociais comprometidas com o fim da exploração capitalista; somente a teoria revolucionária é capaz de catalisar o descontentamento anticapitalista de modo a transfonná-lo em prática revolu­ cionária geradora de novos horizontes históricos; somente a perspectiva comu­ nista - a utopia de inverter a relação de dominação da tecnologia sobre o Ho­ mem e do passado sobre o presente - é capaz de transformar a negação do capitalismo em um salto de qualidade no processo civilizatório.

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Utopia comunista e dilemas dos povos de origem colonial Formulado para atender às exigências da luta operária nos países mais desenvolvidos da Europa Ocidental, o Manifesto trata de problemas que pres­ supõem Estados nacionais já consolidados. Por isso, não surpreende que o pan­ fleto preparado a pedido da Liga dos Comunistas não enfrente os dilemas da luta de classes nas sociedades que fazem parte da periferia do sistema capitalista mundial. Encontramos nele, entretanto, metodologia para o preenchimento dessa lacuna. Trata-se de buscar no processo hist6rico de cada formação social as tendências concretas da luta de classes. '�s proposições te6ricas dos comu­ nistas não se baseiam, de modo algum, em idéias ou princípios inventados ou descobertos por este ou aquele reformador do mundo. São apenas expressão das condições efetivas de uma luta de classes que existe, de um movimento hist6rico que se desenvolve diante dos olhos" . Em economias capitalistas de origem colonial, como o

�rasil, o sentido

da formação social é dado pela longa transição da colônia de ontem para a nação de amanhã (1). O dínamo desta transição é o sentimento de profundo mal-estar da população com relação à situação de pobreza, irracionalidade, corrupção e instabilidade que caracteriza a vida nas economias periféricas. As esperanças e as aspirações destes povos polarizam-se, em conseqüência, em tor­ no de um objetivo maior: controlar os fins e os meios do desenvolvimento. O desafio é completar a formação da nação, livrando a sociedade de suas três principais mazelas: o caráter dependente de seu sistema econômico - uma for­ ma de organização da vida material que deixa o país sujeito às vicissitudes dos movimentos especulativos do capital internacional; a natureza particularmente assimétrica das estruturas sociais - um padrão de estratificação social que cria um abismo entre ricos e pobres; o pesado fardo do colonialismo cultural que compromete a capacidade da sociedade de discernir suas verdadeiras necessida­ des - uma concepção de mundo estreita que transforma a c6pia dos padrões de consumo das economias centrais na prioridade absoluta que orienta a organi­ zação da economia e da sociedade.

A utopia possível na periferia do capitalismo "Os homens fazem sua pr6pria hist6ria, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunsd.ncias de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente, legadas e transmitidas do passado", escreve Marx em O

Dezoito

Brumário. A utopia do Manifesto supõe um grau de desenvolvimento econômico, social e cultural que não está presente nas economias capitalistas dependentes.

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Logo, antes de almejar a sociedade comunista, os trabalhadores da peri­ feria devem enfrentar um difícil processo de consolidação de seus Estados nacio­ nais e de superação do subdesenvolvimento. Tal ruptura não é a utopia comu­ nista apregoada por Marx e Engels, mas representa, para os povos de origem colonial - as maiores vítimas da pilhagem e espoliação capitalista -, o único meio de resgatar a esperança de uma vida digna. Enquanto o patrimônio tecnol6gico da civilização ocidental permanecer monopolizado pelas grandes potências capitalistas e pelas empresas transnacionais, o raio de liberdade das economias atrasadas será muito reduzido. O máximo a que podem aspirar os países que se rebelarem contra a ordem hegemónica é socializar pelo conjunto da população os padrões de vida material e cultural que lhes são acessíveis, tendo em vista o grau de desenvolvimento de suas forças produtivas e as possi­ bilidades de assimilação de progresso técnico geradas pela participação na eco­ nomia mundial (variável que depende em última instaticia da reação dos cen­ tros decis6rios do imperialismo). Não é pouco quando se considera que a alter­ nativa - avançar, em maior ou menor velocidade, na modernização mimética dos padrões de consumo - está conduzindo a uma acelerada desagregação social. Na era da globalização dos negócios, em que a burguesia dependente re­ nunciou a qualquer veleidade nacionalista, associando-se definitivamente ao imperialismo, é muito difícil imaginar que o esforço de superar o mito da mo­ dernização a qualquer custo possa ser feito nos mru:cos do capitalismo. Vencer o subdesenvolvimento, construir as bases de uma sociedade socialista e derru­ bar as fronteiras que separam os povos, começando pelos vizinhos com dilemas históricos análogos, são os passos possíveis, quando vistos de uma perspectiva histórica de longo prazo, para diminuir a distancia entre

um

ideal comunista

ainda muito distante e a dura realidade do capitalismo selvagem na periferia. São tarefas heróicas que devem ser realizadas por aqueles que só perdem com a continuidade do status quo: a classe operária e todos os segmentos sociais que estão condenados a viver as agruras do capitalismo e a permanecer marginali­ zados de seus benefícios. Nota

1

Entre as interpretações que fundamentam esta interpretação sobre o sentido da formação social em sociedades de passado colonial, cabe destacar os seguintes clássicos do pensamento brasileiro:

Formação do Brasil contempordneo, de Caio

Prado Jr.; Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Hollanda; e Formação econami­

ca do Brasil, de Celso Furtado. Pllnio de ArrUda Sampaio Jr.

é professor do Instituto de Economia da Universidade

Estadual de Campinas (IE-Unicamp).

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O travo amargo da história GABRIEL COHN

e

ONVENHAMOS.

Um manifesto não pode durar 1 50 anos. Há algo de errado

nisso. Mas não é nele e sim no curso do mundo que se encontram as razões dessa teimosa persistência. Seus autores não se propunham mais, nem menos, do que um texto de ocasião: na ocasião da mudança do mundo. Estranho desti­ no, o de Marx e Engels. O manifesto que redigiram quando jovens é lido um século e meio depois como se fosse obra científica, a ser testada pela acuidade das análises e pela validade das suas previsões. E a obra que apresentaram ao mundo como sendo do mais alto rigor científico, a sua crítica da economia política, ainda é lida por muitos como se fora um manifesto. O Manifesto Comunista é o documento constitutivo de uma classe, para a qual até inventa o nome. É o anúncio do nascimento de uma nova entidade hist6rica (vale dizer, capaz de fazer hist6ria). Ao fazê-lo, presta homenagem, na figura da burguesia, à classe que inadvertidamente preparou o cenário para esse advento. Pois é de um advento que se trata. Visto por este aitgulo o Manifesto é a expressão mais plena da secularização do messianismo. Despojado da fé religio­ sa e das ilusões, dedica-se a introduzir uma dimensão nova na concepção de hist6ria e de política: a da responsabilidade hist6rica coletiva. Cumpre à nova classe pôr-se à altura do seu momento e converter-se em sujeito racional. Há uma interpelação no Manifesto, mais do que um anúncio ou uma celebração. Neste texto em que ética e política se entrelaçam sem recorrer a quaisquer apoios externos, a nova classe é conclamada a provar sua condição de sujeito, pela capacidade de conscientemente dar início ao novo. Está em causa uma respon­ sabilidade sem qualquer pacto prévio que lhe dê legitimidade ou apoio; seja o pacto com Deus, seja o contrato social constitutivo da sociedade civil profana. Todos os grandes temas de um pensamento que desembocara na razão ilustrada encontram guarida no registro turbulento e alegre deste radical texto de juven­ tude, em que jovens intelectuais falam da jovem classe. A referência do Manifesto é a uma classe que se quer universal e tem condições para tanto. O ato de gênio de Marx e Engels consiste em perceber que, na perspectiva da hist6ria, o advento de uma classe social não é o mero acréscimo de uma categoria classificat6ria, nem se reduz a um passo entre ou­ tros de um processo de diferenciação daquilo que antes s6 era mais simples. A

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nova classe, ao constituir-se (vale dizer, ao ganhar condições para organizar-se politicamente por suas pr6prias forças) rompe a continuidade hist6rica e lhe imprime nova forma. Desde que seja capaz de organizar-se pelas pr6prias for­ ças, claro. Do contrário, outros falarão por ela. E é exatamente isso que Marx e Engels queriam evitar; daí o tom ansioso do seu texto. A união da classe é a marca da sua organização particular. Mas, ao ocorrer, confere-lhe essa dimensão universal que fecha o círculo da argumentação do Manifesto. Historicamente o proletariado teria tudo (por não ter nada, salvo os grilhões) para alcançar o inteiramente novo: o particular que, ao unir o seu poder ao seu querer e conver­ ter-se em universal, realiza, numa nova dimensão, aquilo que a classe anterior preparou. E o legado da burguesia não é de pouca monta, nem o é a tarefa de alçá-lo em nível mais elevado. Têm razão os que enfatizam o crédito positivo que o

Manifesto lhe

reserva, embora em geral não percebam o papel que esse

reconhecimento desempenha no texto. Não por acaso Marx e Engels sempre desconfiaram dos dispositivos de representação política.

.'É que toda a sua atenção está voltada para a capacidade

de uma classe de fazer o que lhe cabe por suas pr6prias forças. A sua tarefa consiste em realizar na sua plenitude hist6rica a grande exigência que fascinava e embaraçava o idealismo alemão: a autonomia. Mas, um legado é um legado. E isto vale para as aquisições hist6ricas da burguesia tanto como, no seu registro pr6prio, para o

Manifesto Comunista.

Quando não levado adiante por seus legítimos herdeiros ele se converte em objeto de disputas estéreis e de degradação. E se os herdeiros não chegarem a falar por sua pr6pria voz outros falarão por eles. E a heteronomia se instalará no coração mesmo do processo hist6rico: no ponto de onde deveria ter sido expul­ sa, segundo o

Manifesto.

Textos alegres de juventude que cobram sem culpa e

sem concessões aquilo que depois se revelou impossível s6 podem ser relidos com um travo amargo. Enquanto isso o mundo segue seu curso e prepara novas juventudes, talvez mais felizes.

Gabriel Cohn é professor do Departamento de Ciência Política da FFLCH-USP e editor da revista Lua Nova, do Centro de Estudos de Cultura Contemporinea (Cedec).

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Esronos AvANÇADOS 12 (34), 1998

A modernidade e as razões do

Manifesto

MARco A URÉLIO NOGUEIRA

A

o LONGO DO ÚLTIMO SÉCULO e meio o

Manifesto do Partido Comunista

-

redigido entre janeiro e fevereiro de 1 848 por Marx e Engels e publicado

em Londres logo depois como parte da estratégia de divulgação do então nascente movimento dos trabalhadores - tornou-se o texto político mais lido e difundido da hist6ria contemporatiea. Foi consumido voraz e apaixonadamente tanto pelos que viram nele a ante-sala de uma nova era para a humanidade quanto por seus inúmeros adversários. Tornou-se objeto de dedicada, exaustiva e meticulosa pesquisa por parte de seus admiradores, muitos dos quais convencidos de que ali estaria a chave para a explicação dos mistérios e sutilezas da hist6ria humana. Houve também os que preferiram atribuir ao texto o

status de guia autorizado

para a ação, enquanto outros entregaram-se à tarefa de submetê-lo a verdadeiros ritos de culto e adoração, cercados de uma liturgia que seguramente horrorizaria seus autores. Recebeu tratamento menos empenhado e regra geral acrítico da parte de seus contestadores, muitos dos quais o repeliram com veemência injustificável, incapazes de encontrar no texto algo mais do que as raízes do totalitarismo moderno, da estatização e do

ódio de classe.

O Manifesto sobreviveu a tudo isso. Quando hoje, em muitas partes do mundo, sucedem-se manifestações e eventos destinados a registrar seu sesquicentenário e, ao mesmo tempo, diversas vozes se alçam para decretar a morte do socialismo e a vit6ria definitiva do capitalismo, o texto ainda consegue reluzir, impondo-se com vigor exuberante e excepcional poder de fascinação. Não há quem permaneça indiferente ao se pôr em contato com ele. Quem não se inquiete com o cenário por ele descrito com tanta objetividade e paixão. Quem não se pergunte se, no fundo, não estaria ali, naquelas poucas e contundentes páginas, uma saída para os impasses que insistem em atormentar homens e mulheres de todas as épocas. Impasses que se repõem a cada dia sob formas novas, mais perversas e sutis, como que a simbolizar a grandeza e a dureza da vida, as promessas e os obstáculos do progresso técnico, da produtividade, do engenho humano e da expansão do intercâmbio entre os povos. Marx e Engels cantaram em prosa, sintetizando-a, toda a série de grandes utopias típica da hist6ria do pensamento político. Puseram em outro patamar a aposta racionalista,

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iluminista e humanista no homem como ser eminentemente vocacionado para o progresso, para a hist6ria, para a convivência dignificante napó/is. Realizaram-se desse modo como clássicos no melhor sentido da palavra: "intérpretes de seu pr6prio tempo que permanecem atuais em todos os tempos", como afirmou certa vez o fil6sofo italiano Valentino Gerratana. Essa talvez seja a primeira razão da capacidade que teve o Manifesto de resistir ao tempo. Mas o texto também seduz porque procura, inspirado numa ousada proposta filos6fica e empenhado num deliberado esforço te6rico para dessacralizar o mundo dos homens, afirmar uma identidade. Identidade, como se sabe, de uma parte da sociedade - de um partido enquanto idéia e programa, não tanto enquanto forma organizacional. Mas uma parte vocacionada para se Jazer todo, expressar a unificação do gênero humano e a superação das diversas diferenciações s6cio-econômicas que opunham os homens uns aos outros. Põe-se como arauto do protagonismo de um novo sujeito, enraizado no mundo do trabalho industrial e despojado de toda propriedade e de toda a possibilidade de se emancipar, diretamente interessado, por isso mesmo, no estabelecimento das bases de uma nova convivência, quer dizer, disposto a lutar por uma revolução social profunda, que viabilizasse a constituição de uma sociedade democrática, igualitária, justa. Um sujeito, em suma, que não tendo "nada a perder a não ser ,, . , . suas cade1as, , tinha "um mundo a ganhar . A identidade de que falavam Marx e Engels nascia de um impetuoso movimento de mudança: a revolução capitalista, liderada pela burguesia européia e destinada a espalhar seus frutos pelo mundo. A descrição da natureza dessa revolução, de seus efeitos sobre a vida dos homens e de suas contradições, talvez seja imbatível em poder de convencimento. Nunca como naquelas páginas o capitalismo foi apresentado com cores tão fortes. Nunca o socialismo foi mostrado como algo tão viável: afinal, do ventre da revolução burguesa parecia saltar o destino inovador da humanidade, uma transformação de qualidade absolutamente nova, que tendia a comprometer os homens para sempre, a inseri-los na trilha do progresso, do bem-estar, da solidariedade, da cosmopolitização, a arrancá-los do "idiotismo da vida rural". O discurso não pecaria por falta de estilo: "O contínuo revolucionamento da produção, o abalo constante de todas as condições sociais, a incerteza e a agitação eternas distinguem a época burguesa de todas as precedentes. Todas as relações fixas e cristalizadas, com seu séquito de crenças e opiniões tornadas veneráveis pelo tempo, são dissolvidas e as novas envelhecem antes mesmo de se consolidarem. Tudo o que é s6lido e estável se volatiliza, tudo o que é sagrado é profanado, e os homens são finalmente obrigados a encarar com sobriedade e sem ilusões sua posição na vida, suas relações recíprocas". O que libertava trazia consigo o seu oposto: o s6lido, o que era sagrado, conhecido

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e valorizado como referência para a vida - relações familiares, crenças, afetos, sensações, coisas que garantiam alguma inteireza ao indivíduo - convertia-se em mercadoria. Tudo tenderia, assim, a se fragmentar e a se transformar em objeto de cálculos frios, embalados pela progressão de uma racionalidade de novo tipo, eminentemente instrumental. Esvaziavam-se, desse modo, os tradicionais recursos de que dispunham os indivíduos para imprimir um sentido ao mundo: libertavam­ se, mas também perdiam boa parte da

magia que dava graça à vida. Mais tarde,

Weber falaria em "desencantamento do mundo" (1). Com base nessa dinrunica frenética e (auto)subversiva - nesse modo de vida que não pode existir sem "revolucionar continuamente todo o conjunto das relações sociais", sem atirar os homens na "incerteza e na agitação eternas" -, o socialismo tornava-se um programa factível. Saía-se do sonho para a realidade. Tudo estaria, a partir de então, em condições de ser realizado por quem se mostrasse disposto a construir organizações, a mobilizar consciências, a repor e estabelecer vínculos sociais, a acenar com novos projetos de vida, a mergulhar em árduos e prolongados embates políticos. Afinal, a burguesia não se cansava de "produzir seus próprios coveiros", de fornecer incessantes "elementos de educação, isto é, armas contra si mesma'' aos proletários, dando a eles condições de se realizar como "classe que traz o futuro nas mãos". Com isso, o socialismo podia ser concebido como algo mais do que uma mera "socialização da miséria'', ou seja, como um efetivo passo adiante:

superar o

capitalismo, apoiando-se

precisamente nas "poderosas e colossais" forças produtivas que a burguesia havia despertado no seio do trabalho social, mais imponentes do que as forças criadas por "todas as gerações passadas em conjunto".

O Manifesto tinha seus limites, é evidente. Era prisioneiro da mesma juventude do movimento de que cantava as possibilidades futuras. Não concebia o processo político por uma via que não fosse a da "guerra civil", a da luta violenta entre a classe que enriquecia sempre mais e a classe que empobrecia sem cessar. Passou batido pelo problema de saber como poderiam os proletários, reduzidos à pauperização absoluta, protagonizar uma revolução. Muitas de suas propostas soam hoje como ingênuas ou anacrônicas, como já haviam antevisto seus próprios autores em 1872, quando sugeriram que não se atribuísse "nenhuma importância particular às medidas revolucionárias" estabelecidas no texto. O

Manifesto não

conseguia visualizar os efeitos da integração dos trabalhadores, extrair os desdobramentos práticos da monumental "socialização política'' que se seguiria ao avanço da industrialização e da urbanização e que, no século XX, levaria os países ocidentais à experiência do

We/fitre State, do sufrágio universal, das reformas

sociais, dos ganhos educacionais e científicos, do crescimento cultural das grandes massas, em suma, da democratização. Não fazia isso, dentre outras coisas, porque

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seus autores ainda engatinhavam em termos te6ricos e apostavam que a revolução socialista era iminente, imposta que estava pelos pr6prios problemas de realização do capitalismo. Além do mais, como evitar tais limites 150 anos atrás? O Manifesto era filho do tempo. E o tempo não podia deixar de impor, às emergentes massas de trabalhadores, uma perspectiva revolucionária, de confronto, de combate. A democracia não era uma realidade já evidenciada, nem se encontrava funcionando na grande maioria dos países do mundo. A "socialização da política" seria um fenômeno posterior a 1 848, derivado em boa medida das pr6prias lutas do movimento operário, ao menos em parte referenciado pelas idéias de Marx e do

Manifesto (que ganhariam expressão progressivamente, ao ponto de jogar um papel de peso na Associação Internacional dos Trabalhadores, nos anos 60, e no processo de constituição de numerosos partidos social-democratas a partir de então). Décadas depois, Marx e Engels iriam recompor os termos de seu programa de ação: sem abrir mão das convicções revolucionárias e do entendimento de que o capitalismo estava fadado a funcionar sempre na crise (mas não necessariamente a desaparecer pelo mero jogo de suas contradições econômicas) - tal como o feiticeiro "que já não pode controlar as potências infernais por ele postas em movimento" -, veriam com outros olhos as possibilidades de uma transição de longo prazo, mais processual que diruptiva. Se devidamente contextualizado e posto em sintonia com a hist6ria real em que nasceu e com a qual dialogou, o texto de 1 848 compensa folgadamente suas fraquezas. Até mesmo por isso, tornou-se muito mais do que o manifesto de um programa político, convertendo-se num libelo emancipador de largo fôlego, capaz de emocionar por seu estilo pungente e indignado. Balizando a reflexão da esquerda nos mais diversos países, acabaria colado ao imaginário mesmo do mundo contemporatieo. Hoje, quando se comemoram os 150 anos do Manifesto, não cansamos de nos surpreender com a complexidade e os desafios da época. Talvez se possa dizer que estamos imersos em uma fase mais avançada do mesmo processo de mudanças radicais que em 1848 mobiliwu a energia política e intelectual de dois jovens comunistas alemães. São reais e gigantescos os problemas com que nos defrontamos, mas são igualmente reais e gigantescas as possibilidades de que se coloque em curso uma etapa hist6rica efetivamente nova para a humanidade. Hoje, como ontem, continuam vivas (mesmo que sedadas ou adormecidas) as expectativas e a disposição de engajamento de homens e mulheres no mundo todo. Crise e mudança

acelerada: esse o binômio com que temos de nos haver nessa transição verdadeiramente epocal que coincide com a chegada do século XXI.

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A difícil arte de mudar Precisamente por alterar o sentido do tempo e mexer tanto com os fundamentos, as estruturas e as representações da ordem vigente, o binômio crise/mudança acelerada traz consigo duas grandes tentações: a da resistência em nome de velhas postulações e a da apologia dos novos dados da vida. Não são reações que se excluam. Buscar apoio no passado - nas antigas verdades, nos conceitos comidos pelo tempo, nos sujeitos em extinção, nas frases surrupiadas de textos consagrados - tem muitos pontos de contato com o discurso dedicado a amplificar as novidades do presente. Ambos são comportamentos

ingênuos,

independentemente da virulência verbal com que possam apresentar

seus argumentos e da maior ou menor sofisticação técnica de que os revestem. São igualmente impostos pela realidade, funcionando como atitudes típicas, das quais não conseguimos nos livrar e que em boa medida estão entranhadas na natureza mesma do homem. Voltar-se para o passado é um dos mais conhecidos comportamentos humanos. Trata-se de algo 16gico em quem tem e faz hist6ria. No passado estão as verdades aprendidas, as certezas conquistadas, os fatores que nos dão segurança e identidade. Com o passado, conseguimos compensar as agruras do presente e as dúvidas com relação ao futuro. Quanto mais, aliás, uma época (uma comunidade, uma pessoa) vê cobrir-se de névoa sua visão do futuro, mais ela tende a buscar proteção no passado. Sobretudo os poetas sabem disso: "quando o futuro é incerto, o coração volta ao passado" (Gabriel Garcia Marquez). Mas não há quem não tenha experimentado na pele o problema, quem não tenha sido por ele desafiado, quem não tenha a ele dado alguma atenção. Agarrar-se ao passado é uma reação comuníssima, que desrespeita todos os credos e todas as disposições subjetivas, aí incluídas as mais resolutamente revolucionárias, como costuma dizer o fil6sofo Leandro Konder. Trata-se de algo que sustenta o conservadorismo e o medo de mudar tão visceralmente inerentes ao mundo dos homens.

O que não significa que a desvalorização do passado, se chegar a ser possível e não for mero truque ideol6gico, traga em si alguma virtude. Ela, em boa medida, representa tão-somente a confissão de que o presente não vale muita coisa, não tem muito sentido nem pode ser visto como plataforma para a construção do futuro. A depreciação do passado - sua rejeição em bloco - s6 consegue mesmo impulsionar a adesão abstrata ao novo, ou seja, forçar o abandono de qualquer tentativa de pensar criticamente o que está nascendo, se constituindo ou se redefinindo. Entende-se assim a racionalidade dos que vêm o presente sem crise ou contradições, como a negação absoluta do passado, como um tempo integrado

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apenas por coisas boas e positivas, realização plena de uma nova era. Trata-se de uma racionalidade fria e cega, incapaz de compreender que o presente "nada mais é do que a metade do espólio de um passado que se obstina em sobreviver" e o passado, "por suas regras, diferenças e semelhanças, nada mais do que a chave indispensável de todo e qualquer conhecimento do presente", como afirmou certa vez Fernand Braudel. Sem a compreensão do passado, sem uma explicação crítica do presente e sem um projeto de futuro, é impossível dirigir a mudança. Não basta a mera repulsa ao presente: sua rejeição em nome de épocas pretéritas melhores, de convicções doutrinárias cristalizadas, de compromissos anteriormente assumidos, de interesses prejudicados, de perspectivas políticas vazias de materialidade so­ cial. É preciso adicionar à crítica do presente uma proposta de futuro, entender em que medida e por que motivos o hoje prepara o amanhã, delinear quais futuros possíveis temos diante de nós e quais os caminhos que se nos oferecem para que os alcancemos. Hoje, quando o mundo se dobra à grave ausência de perspectivas e à aguda crise de referências, devemos nos empenhar sinceramente para olhar além. Não é aceitável que nos entreguemos ao diagnóstico de uma "crise que piora sempre mais", que é mortífera em sua magnitude e abrangência, que nos sufoca e im­ pede o vislumbre de qualquer saída. Não basta denunciar os culpados pelas mazelas do presente, sejam eles governantes, classes, interesses ou megatendências. Não basta acumular dados que comprovem que hoje estamos piores do que ontem, que denunciem retrocessos e vitimizações amorais ou que relativizem a euforia dos adoradores de tudo o que é novo. É preciso ir além. É preciso descobrir no presente os elementos que anunciam o futuro, que condensam o que de melhor fizemos e que por isso mesmo podem alicerçar um projeto razoável de mundo. Apesar de tudo e em meio a terríveis conflitos e contradições, a humanidade continua viva, conquistando novas possibilidades a todo momento, rompendo limites históricos que até então bloqueavam a autodeterminação, a liberdade, a inteligência, a criatividade, o diálogo de todos com todos. Não será esse um bom ponto de apoio para se ver além? Nunca como hoje reuniram-se tantas condições para uma construção inteligente do futuro. Esse é o grande produto da fase de radical mundialização do mundo em que nos encontramos: da desterritorialização, do avanço tecnológico e científico, das possibilidades de produção material, do salto gigantesco em termos de comunicação e acesso a informações, do surgimento de novos espaços de troca e convivência, do aumento das chances de fundação de uma democracia de novo tipo. O mundo se desprovincianiza a olhos vistos, perde os vínculos

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estreitos com o território, vê abrirem-se verdadeiras fendas nas velhas soberanias, nas velhas estruturas, nas velhas instituições, ou seja, em tudo aquilo com o que se construiu o progresso passado (mas com o que também se viabilizaram tantos horrores). Fiel à sua natureza, o capital continua a subverter incessantemente todas as bases produtivas, sócio-culturais e políticas da vida humana, a conduzir as sociedades a repentinos "estados de barbárie momentaitea'', a revolucionar constantemente todas as ordens, inclusive a sua própria, empurrando-nos todos para a "incerteza e a agitação eternas". Subversão da ordem, que hoje concretamente produz um comportamento defensivo da esquerda (muitas vezes para preservar certos direitos e espaços conquistados no interior da própria ordem burguesa) e exige, ao mesmo tempo, empenho redobrado para que se restabeleçam as bases e a alma de uma subversão de outra qualidade, direcionada para a recomposição da unidade do gênero humano: uma nova unificação do homem no mundo, assentada na reciprocidade, no reconhecimento do outro, no revigoramento da comunidade, na democracia e na justiça social.

A força do Manifesto No campo específico da esquerda, porém, há muito mais dúvidas que certezas, muito mais confusão e falta de transparência do que identidades e propósitos claramente demarcados. Sequer se consegue deslindar, hoje, a presença dos comunistas. As indagações se acumulam, sem trazer consigo uma corres­ pondente profusão de respostas. A perspectiva da luta de classes como motor da história e, também, na sua forma-limite, como porta de entrada do socialismo, deve ser mantida hoje, quando uma classe inteiramente estranha - a classe dos excluídos e dos sem-emprego - parece crescer e se multiplicar sem cessar, cortando as possibilidades de que se materialize a tendência percebida no Manifesto de um choque cada vez mais agudo entre burgueses e proletários? Seriam os excluídos os proletários do século que se aproxima? Quem é hoje o sujeito da revolução? Ainda faz sentido imaginar o comunismo como etapa mais avançada de socialismo, como organização inteiramente afastada da dinamica mercantil e da propriedade privada, numa fase da história tomada pelo ideal consumista, pela apropriação individual, pela cultura da privacy? Seria a social-democracia - não enquanto rótulo de partidos políticos hoje existentes, mas como programa- a nomenclatura realista da grande utopia de Marx e Engels, proposição mais factível com as imposições de uma época firmemente assentada na mercantilização, no intercambio ampliado e, ao mesmo tempo, na convivência de diferentes formas de regulação (pelo mercado, pelo Estado, pela comunidade)? Podemos continuar alimentando a aposta no desaparecimento do Estado, na sua redução a mera

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administração das coisas", nesse mundo que exige sempre mais instâncias superiores de totalização, articulação e equalização? O que fazer com a questão democrática e com o seu lugar na transição para uma sociedade socialista numa época em que não se consegue sequer viabilizar a forma representativa da democracia e que talvez esteja a exigir, da esquerda, mais do que nunca, um esforço concentrado para salvar, renovar e reinventar a democracia em si mesma, sem adjetivos ou qualificações? O Manifesto não responde a qualquer dessas questões. Seria absurdo exigir

que o fizesse. Mas há nele um incontestável estímulo para que continuemos com os olhos prega.dos na realidade viva das coisas, nas possibilidades efetivas de uma transformação em sentido progressista, isto é, destinada a estabelecer as bases de uma nova convivência entre homens e mulheres, de uma unificação categoricamente superior do gênero humano. Afinal, a força desse texto vigoroso não está na apresentação de um programa pronto e acabado, fundado num conjunto de "princípios inventados por esse ou aquele reformador do mundo". Sua força repousa, ao contrário, no empenho de ser a "expressão geral de um movimento hist6rico que se desenrola sob nossos olhos". O pr6prio Marx não se cansou de repetir que, para ele, comunismo era essencialmente "o movimento real que abole o estado de coisas existente". De resto, o que esperar de um texto

que se mostra leglvel 150 anos depois de escrito senão uma perspectiva de análise, se se preferir um

método?

A grande sugestão a se extrair do Manifesto é a de que as armas da crítica

não podem ser entregues jamais. Até mesmo porque ainda vivemos no mundo do capital - com toda a sua desumanidade visceral, com todo o embrutecimento subjetivo por ele alimentado, com todas as suas desigualdades e injustiças, mas também com toda a sua capacidade de impulsionar a produção, universalizar o interd.mbio, ativar gigantescas forças sociais, mostrar "o que pode realizar a atividade humana" -, a crítica radical, a crítica que vai à raiz das coisas para revelá-las em sua inteireza e superá-las, continua na ordem-do-dia. Não há como imaginar uma situação na qual "o livre desenvolvimento de cada um seja a condição do livre desenvolvimento de todos" sem o aprofundamento da crítica ao império da economia (do mercado e da moeda) e do Estado (da força e da potência) sobre a sociedade e sobre o indivíduo. Não há como caminhar nessa direção sem uma reflexão rigorosa sobre as possibilidades e a natureza do socialismo - uma reflexão que seja simultaneamente despojada de preconceitos e dogmas principistas, aberta para uma visão renovada da liberdade, do indivíduo e da democracia, inconformista, insatisfeita consigo mesma e, por isso, determinada a se reinventar a todo momento.

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Esrunos AVANÇADos 12 (34), 1998

Seriam necessárias outras razões para que continuássemos a ler o Mant-

fasto?

Nota

1

A respeito desses aspectos dilemáticos da modernidade, a partir dos quais tende a se generalizar a sensação de um típico mal-estar, indício de que os homens passam a traduzir certos traços da época como perda ou declínio, remeto ao belo e instigante ensaio de Charles Taylor, The malaise ofmodernity, de dei/a modernità. Roma-Baris, Laterza,

1994).

1991

(edição italiana: II disagio

Marco Aurélio Nogueira é professor do Departamento de Política da Faculdade de Ciências e Letras da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Araraquara, e pesquisador da Fundação do Desenvolvimento Administrativo (Fundap). Tradutor, dentre outros, do Manifesto Comunista (Editora Vozes,

1988)

e autor de As possibilidades da política:

idéias para a reforma democrática do Estado (Paz e Terra,

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1998).

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Teses sobre Karl Marx FERNANDO HADDAD 1 s

SOCIALISTAS,

até hoje, incidiram no erro de acreditar que o desenvolvi­

O mento das forças produtivas, sob o capitalismo, faria explodir as relações

de produção que o configuram, quando na verdade, ao contrário das antigas

formações sociais, o capitalismo se vale desse desenvolvimento para se legiti­ mar, sendo que a dialética entre as forças produtivas e as flexíveis relações capi­ talistas de produção se desdobra de uma maneira historicamente nova, a um s6 tempo dinlimica e estaticamente. II Os socialistas se valem das crises do capitalismo, expressão do seu caráter inerentemente contradit6rio e irracional, para afirmar seu ponto de vista. Não obstante, a questão sobre qual será a crise final desse sistema é uma questão polí�co-prática e não econômico-te6rica. III Os socialistas querem erradicar do mundo a pobreza de espírito. To­ mam-na como produto direto das atuais condições materiais de existência. O movimento socialista funda-se no materialismo, mas entendido como crítica social, tendente a sua consumação. N

O socialismo não deve ser tomado como um fim, como telos, mas como um novo começo, como reconciliação entre homem e natureza que não reivin­ dica um passado longínquo, pois essa reconciliação se dá num outro plano, num patamar jamais atingido. V O socialismo não deve ser tomado como uma ordem fundada em valores por ele criados. O socialismo é o desentrave definitivo do processo de individuação, obstruído pela sociedade de classes. O socialismo é a exuberancia dos indivíduos de uma vez por todas libertos de valores prescritos, unidos soli­ dariamente pelos laços de justiça, exclusivamente.

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VI O socialismo é igualmente o desentrave do processo de formação de uma comunidade internacional que preserva as diferenças entre os povos, e que faz delas o testemunho da riqueza do enfim realizado gênero humano. VII O socialismo é o reino da justiça onde se exerce a liberdade. VIII Os socialistas pretenderam transformar o mundo; cabe, porém, transfor­

mar os

homens, isto é, motivá-los para aquela transformação. O socialismo

depende de um salto psicoterapêutico para além da dominação oiquestrada democraticamente na esfera pública. IX O socialismo não é um desdobramento lógico do capitalismo, embora seja uma possibilidade objetiva. O l6gico é tão-somente o histórico que se im­ p8s, por vezes ilogicamente. O socialismo é a saída talvez ilógica de um mundo certamente irracional. X O socialismo é a superação prática da metafísica realmente existente. Como a dialética é tão-somente o fruto do esforço mental de compreensão da fantasmagoria reinante, o advento do socialismo implicará sua obsolescência. XI Até lá, os socialistas devem reinterpretar continuamente o mundo social para uma práxis transformadora sempre renovada.

Fernando Haddad é professor do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo.

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Nem tudo que é sólido desmancha no ar

·

PA ULO EDUARDO ÀRANTES

e

OMO A MAIS ABSOLUTA dominação sobre os homens continua a ser exercida

por meio de processos econômicos de exploração - mesmo sobre a cres­

cente parcela da humanidade que está sendo

rifada precisamente porque dei­

xou de ser economicamente rentável -, o Manifesto

Comunista ainda cruzará o

milênio como uma mensagem na garrafa. Muito mais atual inclusive do que há

150 anos, quando a proletarização dos pobres e demais expropriados ainda não parecia irreversível, a ponto de considerável número deles procurar escapar à danação do assalariamento - s6 viver se encontrar trabalho, e s6 encontrar tra­ balho se este incrementar o valor do capital - reagrupando-se à margem da or­ dem burguesa nascente na fonna de comunidades cooperativas, por meio das quais sonhavam. recuperar a antiga independência econômica petdida. Porém a Modernidade anunciada pelo Manifesto viera também para abortar o não-lu­ gar dessa utopia. Com a atual mundialização do capital enfim, ninguém mais está fora, sobretudo as grandes massas precarizadas e desconectadas na corrida ao corte de custos: em tempos de pressões competitivas globalizadas, literal­ mente não têm mais para onde ir. Nunca estiveram tão irremediavelmente in­ cluídas. Continuamos portanto na mesma, a mesma desgraça econômica de sem­ pre, desde que a terra, o trabalho dos homens e a moeda de troca entre eles foram transformados em mercadoria, como qualquer outro artigo de comér­ cio. Mas também continuamos na mesma numa outra acepção igualmente som­ bria da expressão, por assim di:zer mítica. Era o que Marx e Engels queriam dizer, no momento mesmo em que chamavam a moderna exploração econômi­ ca pelo nome, ao declarar que a hist6ria de todas as sociedade tinha sido até então a hist6ria da luta de classes. Pois bem: se toda a hist6ria é hist6ria da luta de classes é porque a hist6ria sempre foi a mesma coisa, numa palavra, pré­ hist6ria. Como de resto se pode ler num dos rascunhos preparat6rios do Mani­

festo:

"assim como a fonna mais recente da injustiça lança luz sobre todas as

* O título deste texto é o mesmo de uma novela inédita de Jorge Migud Marinho.

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ESTUDOS AVANÇADOS 12 (34), 1998

demais, a crítica da economia é uma crítica da hist6ria no seu todo, de cuja imobilidade a classe dos capitalistas, como outrora seus antepassados - senhor de escravos, patrício romano, barão feudal -, deriva o seu privilégio ( ...) O silêncio arcaico das pirâmides repercute o barulho infernal do sistema de fábri­ cas".

Não por acaso - numa conhecida interpretação - para o poeta das Flores do

mal (livro rigorosamente contemporweo do Manifesto Comunista), essa mes­ ma e famigerada Modernidade era a cifra de um mundo sempre-igual de ruínas recorrentes, as destruições criativas, no vocabulário da apologética mais recen­ te, pr6prias de um sistema que não pode subsistir sem a morte precoce de seus instrumentos de reprodução. Assim, no suposto auge renascentista que estaría­ mos atravessando - a chamada globalização, na opinião apote6tica de um varão sabedor local -, no rumo sabe-se lá de que apogeu econômico futurista, não se achará muito mais do que outro espasmo pré-hist6rico do sistema tautol6gico a que se resume a absurda e interminável acumulação de capital comandada pelo único e exclusivo fim de se acumular mais capital. *

*

*

Tudo isso, não obstante, é fato que Marx e Engels não resistiram à tenta­ ção progressista da época, deixando-se impressionar pela nova prosa modernis­ ta do mundo, pela irresistível escalada dos preços baratos da mercadoria bur­ guesa tomando de assalto quantas muralhas da China lhe surgissem pela fren­ te. E como poderiam, naqueles tempos de legitimação

revolucionária dos acu­

muladores de dinheiro e poder? Mas ocorre que deslizando pelo plano inclina­ do da rnodernolatria deram com a plataforma de urna outra humanidade, a qual corresponderia enfim verdadeiramente ao seu conceito.

É que entreviram

naquela novidade avassaladora do capitalismo com relação às civilizações ante­ riores a chance providencial de quebrar o feitiço pré-hist6rico da alienação. Nunca será demais nota dissonante do

evocar

o essencial dessa reviravolta. E para realçar a

Manifesto neste final

de século de harmonia extorquida,

por que não evocá-lo nos termos mesmos das teorias sistêmicas em voga? Com efeito, não é muito difícil admitir que a evolução hist6rica da espécie humana sempre se deu por urna adaptação passiva do quadro institucional da sociedade à pressão das forças produtivas. A ser assim, a inovação da modernidade capita­ lista reside na circunstancia, sem dúvida, inédita de que pela primeira vez essa pressão material não s6 é auto-impulsionada pelo imperativo da acumulação infindável mas solapa, também em permanência, as formas culturais de legitimação social herdadas, provocando por sua vez novas rodadas de adapta­ ções passivas. Ora, ao contrário de urna solene declaração burguesa de reconhe­ cimento e sanção de tendências hist6ricas consumadas, o contradiscurso do

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Manifesto simplesmente demonstra que contra tais fatos há argumentos, além do mais fornecidos por eles mesmos, a saber: esse mecanismo de reprodução social em que a iniciativa cabe apenas à inovação econômica define justamente a pré-hist6ria da humanidade e, portanto, o capitalismo ele mesmo é pré-hist6rico, não espantando que nele ainda se apresente como um destino o cego movimento da economia; e tal engrenagem não saltará dos trilhos enquanto uma rotação cicl6pica de eixo não passar o controle prático das transformações estruturais da sociedade para as mãos de indivíduos autônomos e cooperativos, encerrando assim a idade mítica de submissão absoluta do metabolismo social às suas condições materiais de reprodução. (E pensar que hoje quem se ajusta, e não por acaso mediante sucessivas e infinitesimais adaptações passivas, acre­ dita que nesse último enunciado jurássico da causalidade sistêmica se concen­ tra a quintessência do materialismo hist6rico, em nome do qual de alma leve pede a benção aos vencedores.) Está claro, porém, o encanto não se romperia por simples decreto emancipat6rio; não basta apontar para a fantasmagoria para que ela se dissipe. Além de ser materialmente tangível, a peça subversiva que faria girar a porta de saída da pré-hist6ria precisaria pertencer, ela mesma, ao encadeamento arcaico que mandaria pelos ares. Estava assim designado o lugar a ser ocupado pela luta de classes: à mola perpetuadora da eterna recaída na barbárie seria delega­ da a tarefa de encaixar a alavanca numa muralha aparentemente sem brecha, se é fato que haveria mesmo um grão de transcendência na assimetria brutal de poder social entre as classes em luta. Nesse entorse da pré-hist6ria, Marx e Engels apostaram todas as fichas da emancipação. Ou quase todas: é bom não esquecer a ressalva acerca da ruína comum que também espreita o conflito de morte nessa guerra social por onde corre ainda a pré-hist6ria da humanidade. Como se essa reviravolta não bastasse, Marx e Engels repetiram uma segunda vez, naquele mesmo Manifesto, a prova do caráter pré-hist6rico do capitalismo: sacudida por crises peri6dicas em que o capital torna redundante sua pr6pria fonte de valorização queimando força produtiva, a sociedade burguesa "vê-se subitamente reconduzida a um certo estado de barbárie" que se abate sobre os indivíduos como outrora a fome e as guerras de extermínio, s6 que agora na forma invisível de poderes subterrftneos autônomos e incontroláveis. Nessa segunda prova dos nove - a experiência da impotência social máxi­ ma no confronto com as forças anônimas da exploração - ressaltava novamente a novidade hist6rica do capitalismo: sob o inv6lucro ultramoderno do progres­ so, a derradeira sociedade primitiva, mergulhada na inconsciência coletiva do desastre que se avizinha. Digamos então que o essencial do Manifesto reside na :figuração contemporftnea do nexo entre essas duas formas pré-hist6ricas da

1 02

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opressão: a primeira, contrapondo campos sociais antag8nicos e visivelmente personificados; a segunda, a dominação, sem sujeito designado, exercida sobre o conjunto da sociedade pela economia de mercado autonomizada, a ponto de transformar os seus beneficiários diretos em meras funções de seu próprio apa­ relho de produção. Uma dimensão não vai sem a outra, assim como o proleta­ riado do Manifesto se exaure enfrentando ora a burguesia, ora o capital, do qual a primeira é "portadora involuntária e incapaz de reação", na fórmula do Mani­

festo, mas nem por

isso desprovida de vontade e do poder de disposição sobre

os homens que lhe confere um sistema que, por sua vez, a sujeita se não quiser perecer, como aliás se pode ler noutro rascunho famoso redigido dez anos de­ pois, os

Elementos fundamentais para uma critica da economia política:

"na

redução dos homens a simples agentes do mercado se esconde a dominação de homens sobre homens. Porém a classe dominante não é apenas dominada pelo sistema, domina através do sistema. A tendência objetiva do sistema é redobra­ da e sancionada pela vontade constante daqueles que o servem. Como é cego, o sistema é a própria dominação, e por isso mesmo funciona sempre a favor dos dominantes, mesmo quando os ameaça de ruína; os trabalhos de parto a que eles se entregam nos momentos de crise atestam o pleno conhecimento desse fato". *

*

*

Estando assim entrelaçadas as duas dimensões desse diagnóstico do capi­ talismo como derradeira sociedade pré-histórica - ele mesmo cifra de uma rup­ tura de época tanto mais paradoxal por implicar um momento de auto-reflexão da espécie humana sob o mais espesso invólucro de uma segunda natureza -, compreende-se que nenhuma das duas pode sobreviver à morte da outra. Os 30 anos de calmaria que sucederam à óltima grande guerra - efeito anestésico da Guerra Fria, do

Welfare europeu e da industrialização consentida da periferia -,

varreram da memória o abismo entreaberto pelo apocalipse nazista, na verdade cavado pela mítica espiral da normalidade burguesa, o envolvimento pré-histó­ rico da luta de classes na engrenagem da exploração econ8mica. Há menos de duas décadas rompeu-se o dique novamente. Como um sinal de alarme entre duas catástrofes, o

Manifesto Comunista ainda continua soando,

ontem como

hoje, para despertar a humanidade do mesmo pesadelo ancestral da dominação.

Paulo Eduardo Arantes

é professor do Departamento de Filosofia da Faculdade de

Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP.

EsTuDos AvANçADos 12 (34), 1998

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Ace rtos e d i fi c u l d a d e s do

Manifesto Comunista

RUYFA USTO

"A

HISTÓRIA DE TODA sociedade até hoje é a hist6ria de luta de classes". ''.As

idéias dominantes de uma época sempre foram as idéias das classes do­

minantes". "O poder de Estado moderno não é mais do que um comitê, que administra os neg6cios comuns do conjunto da classe burguesa''. "Os trabalha­ dores não têm pátria''. "[Numa revolução comunista] , os proletários não têm nada a perder se não as suas cadeias". "Em lugar da velha sociedade burguesa, com suas classes e suas oposições de classes, surge uma associação na qual o livre desenvolvimento de cada um é a condição para o livre desenvolvimento de to­ dos" (1). O

Manifesto é conhecido, antes d e mais nada, por algumas frases famo­

,.., sas. Algumas delas, como aquela que fala do poder de Estado, são muito verda. . ,, . deiras; outras, como a que cons1dera os trabalhadores como "sem-pátr1a nao

são literalmente verdadeiras e se legitimariam antes no interior de um projeto político; outras ainda, como aquela com que se abre o texto, são "problemáticas".

A hist6ria não é - apenas - a hist6ria da luta de luta de classes, pelo menos por três razões. Uma, indicada por Engels na edição inglesa de 1888, é que parece haver existido sociedades sem antagonismos pelo menos comparáveis com os antagonismos modernos; outra é a de que as oposições existentes na maioria das sociedades anteriores ao modo de produção capitalista não foram a rigor oposições de "classes" (o conceito de classe, como já diz um texto da Ideo­

logia Alemã,

s6 se aplica rigorosamente ao modo de produção capitalista); o

terceiro é o de que, como Marx e principalmente O

Capital ensinam abundan­

temente, a hist6ria não é s6 luta, ela é também inércia. A hist6ria até hoje é também hist6ria das "estruturas", em relação às quais os indivíduos não são "agentes-sujeitos" mas suportes. (A tensão entre "sujeitos" e suportes, dupla função das individualidades, é um dos achados dialéticos de Marx, infelizmente reduzido ao imperialismo das práticas ou ao imperialismo das estruturas, am­ bos no registro do entendimento.) O pr6prio

Manifesto, que por mais de uma

razão (por ser um manifesto, e por pertencer a um período determinado do [>ensamento de Marx, do qual falarei mais adiante) privilegia as práticas, refere-

l04

ESTUDOS AVANÇADOS 12 (34), 1998

se de qualquer forma à função de suportes: "O progresso da indústria, cujo suporte

( Trãger)

sem vontade

(willenlos)

e sem resistência

(widerstandlos) é

a

burguesia (... )" (w. 4: 474; M: 77-78). Há problemas assim relativamente às lutas, às classes e às lutas de classes, mas a frase com que se abre o Manifesto não é propriamente falsa: o marxismo não é uma teoria geral da história, é uma crítica ao capitalismo que pressupõe apenas (em sentido dialético: o pressupos­ to é ao mesmo tempo posto e não posto) um esquema geral da história. As dificuldades, veremos, são outras. O

Manifesto pode ser apreciado de um ponto de vista estritamente teóri­

co ou de uma perspectiva política (claro que há teoria política, mas aqui tomo "política" num sentido mais estreito) . Num outro plano, ele pode ser lido ou como momento da história das lutas socialistas, ou como momento da história do pensamento e da prática do seu autor principal (ou de seus autores). Enquanto momento da história do pensamento de Marx, o

Manifesto,

independentemente do gênero a que pertence, corresponde bem nitidamente a um período de transição de que faz parte igualmente, entre outros textos, a

Ideologi,a Alemã. As obras desse período caracterizam-se por certos traços pecu­ liares que as distinguem, por um lado, do momento dos Manuscritos de 1844 e, por outro, das obras de maturidade, sobretudo O Capital e os Grundisse. No momento dos Manuscritos de 44, Marx escreve como filósofo (mesmo se fil6so­ fo não-filósofo à maneira de Feuerbach - o texto é feuerbachiano mas como um componente hegeliano); na época de transição que consideramos, o discurso de

Marx se pretende, pelo contrário, claramente antifilosófico; e na época da ma­ turidade poder-se-ia falar em "supressão" em sentido hegeliano, supressão-con­ servação da filosofia. Além de antifilosófico, nas suas intenções pelo menos, o discurso da tran­ sição tende a uma espécie de historicismo: a teoria e todas as formas de consci­ ência aparecem mais ou menos no nível da história (enquanto em 44 elas se elevam como uma espécie de transcendental; na maturidade, tem-se uma posi­ ção intermediária). Finalmente, o pensamento da transição

tende

a evitar todo tipo de

totalização. Em particular, faz-se um imenso esforço para apresentar a revolu­ ção como uma revolução do mesmo tipo genérico das outras, e que, se encerra a história da exploração, é apenas porque o modo de produção burguês é o

mo.

últi­

(Nos Manuscritos de 44, a revolução é pensada como visando antes o con­

junto da "pré-histórià'; enquanto n' O

Capital e nos Grundisse, o alvo é, sem universal concreto, que contém em si

dúvida, o capitalismo, mas pensado como

mesmo, de certo modo, o conjunto do desenvolvimento anterior. No período

ESTUDOS AVANÇADOS 12 (34), 1998

105

de transição, em vez da universalidade, tem-se antes a generalidade): "O que caracteriza o comunismo não é a abolição da propriedade em geral, mas a abo­ lição da propriedade burguesa./ Mas a moderna propriedade burguesa é a últi­

ma e a mais perfeita expressão da fabricação e apropriação de produtos, que se baseia em oposições de classes, na exploração de uns pelos outros [da maioria pela minoria: Engels, 1888]./ Nesse sentido, os comunistas podem resumir sua teoria nessa única expressão: supressão (Aujhebung) da propriedade privada" (w. 4: 474; M: 80, grifado por RF) (2). Como momento da hist6ria da crítica socialista, o Manifesto - como em maior ou menor medida Marx em geral - traz a novidade de fazer da autodeter­ minação do proletariado o motor da transformação revolucionária, e fazer da revolução um processo cujo sujeito é a maioria: "Todos os movimentos prece­ dentes foram movimentos de minorias ou no interesse de minorias. O movi­ mento proletário é o movimento aut8nomo (selbstãndige) da imensa maioria no interesse da imensa maiorii' (W. 4: 473; M: 77, grifado por RF). Do mesmo modo, lê-se mais adiante, a prop6sito dos socialistas ut6picos: "Eles não vêm nenhuma auto-atividade (Selbsttiitigkeit) hist6rica da parte do proletariado, nenhum movimento político que lhe seja pr6prio"(W. 4: 490; M: 96, grifado por RF). Essa perspectiva rompe com as formas tradicionais de pensar o proces­ so de ruptura da velha sociedade. Nessas formas tem-se ou a figura do educador, ou a figura do ditador (3), de qualquer forma, um socialismo "de cima'', que como diz a terceira tese sobre Feuerbach, tende a separar a sociedade em duas partes. A referência clássica do socialismo pré-marxista era freqüentemente o Discurso sobre a origem da desiguaMade de Rousseau, sem que se supusesse a possibili4ade do contrato {é duvidoso que o pr6prio Rousseau o supusesse) no interior de uma sociedade corrompida. O recurso à figura do legislador rousseauista é insuficiente. Necessita-se de um "mestre", ditador ou educador. Mas quem educará o educador? A novidade de Marx é a de ter encontrado um elemento inerente à sociedade corrompida, capaz de auto-educação, o qual se auto-educando poderia reconstruir toda a ordem social. O Manifesto foi escrito em nome da Liga dos Comunistas, organização de

artesãos alemães que sucede à Liga dosJustos cuja direção se trasladara de Paris a Londres. Publicado em Londres, em alemão, algumas semanas antes da eclosão da Revolução de 48 na França, ele pretende exprimir as posições "dos comunistas". Em termos organizat6rios, se o Manifesto afirma que "os comunistas não constituem (sinel) nenhum partido particular diante dos outros partidos operá­ rios (Arbeiterparteien)" (w. 4: 474; M: 79, grifado por RF) ele diz ao mesmo

106

ESTUDOSAVANCADOS 12 (34). 1998

tempo que "os comunistas se distinguem dos

outros partidos proletários

por

( ... )".(ib., grifado por RF) e que "o objetivo imediato dos comunistas é o mesmo demais partidos proletários" (w. 4: 474; M: 80, grifado por

que o de todos os

RF). Na realidade Marx parece propor a estratégia do partido dentro de um partido, de que seriam exemplos a atividade da seção londrina da Liga no inte­ rior do cartismo, mediante uma outra organização intermediária, e a da

Social ReformAssociation dos comunistas alemães de New York no interior da National ReformAssociation (a qual é caracterizada pelo Manifesto, junto com o cartismo, como um partido operário ou dos trabalhadores (Arbeiterpartet} (ver W. 4: 492; M: 98) (4). Do ponto de vista tático, o

Manifesto

tem a particularidade de propor

para a Alemanha uma luta "junto com a burguesia" - ainda que com a ressalva: "sempre que ela se conduzir como revolucionárià' - luta cujos adversários são "a monarquia absoluta, a propriedade fundiária feudal e a pequena

burguesia"(W.

4: 492; M: 99, grifado por RF). Como assinala Hal Draper (5), essa posição é diferente da que exprimira Engels pouco antes, e da que adotariam Marx e Engels imediatamente depois. O

Manifesto

afirma "que o primeiro passo da

revolução operária é ( ... ) a conquista da democracia (die Erkampfong der Demokratie)" (W 4: 48 1 ; M: 86). Mas "a democracià' representava, para Engels, a aliança "do proletariado, do pequeno campesinato e da pequena burgu,esia" (Engels, "Os Comunistas e Karl Heinzen", W. 4: 3 12, grifado por RF, citado por Hal Draper, op. cit., II: 1 86, cf. id.: 1 90). E, segundo Draper, já num panfleto escrito pelos dois autores um mês depois da publicação do Manifesto, eles se manifestam favoravelmente ao bloco das três classes "democráticas", tal como o definira Engels (6). Quanto à aliança com a burguesia ela vai igualmente desaparecendo como proposta. Na célebre Mensagem

Liga,

da direção central [da Liga dos Comunistas]

à

de março de 1 850, o aliado eventual, de resto duramente criticado, é a

pequena-burguesia, não a burguesia. A perspectiva do Manifesto é assim, talvez, excepcionalmente "progressistà', no mau sentido do termo (a experiência de 48 teria tido o papel de reforçar a crítica), mas essa perspectiva estratégica tem alguma ambigüidade (cito agora o texto completo): "Já vimos acima que o pri­ meiro passo na revolução operária ou dos trabalhadores

(Arbeiterrevolution) é a

elevação do proletariado a classe dominante, a conquista da democracià' (p.

48 1 -486). É possível que o texto pense em três momentos: vit6ria da burguesia com o apoio do proletariado, vit6ria da "democracià' (mas excluída a pequena burguesia, o proletariado talvez s6 organizasse forças políticas e não propria­ mente sociais na "democracià'), dominação progressiva do proletariado. De qual­ quer maneira, como nos textos anteriores e posteriores, o processo é de "revolu-

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ção permanente" (expressão com que Marx encerra a Mensagem de março de 1 850) . Para o' caso do Manifesto, ela toma a seguinte forma: é preciso não deixar

de desenvolver em nenhum instante nos operários "uma consciência a mais clara possível da oposição hostil entre burguesia e proletariado", para que utili­ zando as condições criadas pela dominação da burguesia "imediatamente após a derrubada das classes reacionárias na Alemanha, comece imediatamente a luta contra a burguesià' CW. 4: 493; M: 99). Voltando aos problemas teóricos. Se o texto do Manifesto pertence a uma fase que tem alguma coisa de "historicistà' (7), a dialética não está inteiramente ausente dele. Um exemplo é o emprego da noção de classe. Em vários momen­ tos (8) fala-se em "organização do proletariado em classe" (zur Klasse), o que levou os críticos do entendimento a quebrarem a cabeça. O proletariado não­ organizado já não é uma classe? O resultado foi que, de parte de certos althusserianos, denunciou-se a falta de rigor do Manifesto. Na realidade, a ex­ pressão implica que antes de ser organizada a classe é e não classe. O estatuto da classe é nesse "momento", que pode ser recorrente, contraditório. A classe só é classe quando posta como classe. O que, em termos filosóficos, significa um escândalo para entendimento: contra o que afirma Kant, na crítica do argumen­ to ontológico, a posição não se acrescenta à determinação, ela lhe é constitutiva. (Com algum pedantismo, mas também com alguma verdade, dir-se-ia que para entender bem a lógica do Manifesto é preciso ter lido Santo Anselmo e a sua formulação clássica do argumento ontológico ... ) De qualquer forma é verdade . que mesmo nesse texto "pratico , . " (ou talvez por ser e1e um texto pratico, as duas ,

coisas às vezes convergem), há um investimento considerável - embora limitado com relação a outros textos - das "maquinas de guerrà' do idealismo alemão). Quanto à frase "mas toda luta de classes é uma luta políticà' (W. 4: 471 ; M: 75) , frase que representou para o entendimento o escândalo máximo, ela provavelmente deve ser entendida como se o "é" não exprimisse a predicação usual, mas sim o que chamei de juízo de reflexão: "toda luta de classes é ... uma luta políticà', ou seja, toda luta de classes se reflete em, ou se torna, luta política. Outro momento dialético é o movimento barbárie/civilização. Limito­ me aqui ao mais belo texto. A crise, que nas obras posteriores é pensada como irrupção da memória posta do sistema, é vista aqui no contexto da idéia de uma civilização afetada de barbárie: "Nas crises irrompe uma epidemia social, que em todas as épocas precedentes teria parecido um absurdo ( Widersinn) a epi­ demia da superprodução. A sociedade vê-se repentinamente reconduzida a um estado de barbárie momentânea: é como se uma [situação de] miséria (Hungernot) ou uma guerra geral de extermínio houvesse suprimido todos os meios de sub-

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sistência; a indústria, o comércio, parecem aniquilados, e por quê? Porque a sociedade possuiu demasiada civilização (zuviel Zivilisation), demasiados meios de subsistência, demasiada indústria, demasiado comércio" (W. 4: 468; M: 72, grifado por RF). Fazendo um balanço, se posso dizer assim, quais são os acertos e os desa­ certos do Manifesto? O problema é complicado porque implica, de uma forma ou de outra, uma avaliação global do marxismo. Já falei da grande densidade teórica do texto. A novidade de Marx é ter investido em ciência, e aqui em política, a herança lógica muito rica e complexa do idealismo alemão. Apesar de os limites assinalados, não conheço manifesto político algum que incorpore desse modo um legado lógico-filosófico daquele porte.

É costume criticar o Manifesto porque ele supõe uma simplificação das oposições de classe (ver W. 4: 463; M: 67) que não teria ocorrido. A observação me parece válida, mesmo se há uma discussão a respeito do alcance da temática da decadência das classes médias (ver W. 4: 460-46I ; M: 73) (9). Mas as observa­ ções críticas que farei mais adiante não enveredarão por aí. A análise da história do capitalismo é sólida, e está bem mais próxima d' O Capital que a da Ideologia Alemã ( 1 0). Nela se reconhecem a história material e a história formal do modo de produção capitalista, e o capital já é tratado como potência (Macht) social (ver W. 4: 476; M: 8 1 ) . O modo de produção capitalista (a noção de "modo de produção" encontra-se, por exemplo, em W. 4: 466; M: 70) ( I I) e aparece numa passagem clássica efetuando uma espécie de desencan­ tamento do mundo. Mas o paralelo com Weber é em parte enganoso. O univer­ so do capitalismo é para Marx um universo encantado; só que o seu encanto é o das abstrações desencadeadas. É como se houvesse um desencantamento "se­ mântico" do mundo, mas não um desencantamento "sintático" (o que Weber parece ter perdido de vista) (I2). Cito o texto, muito conhecido embora: "Onde quer que tenha chegado ao poder, a burguesia destruiu todas as relações feudais, patriarcais, idílicas. Dilacerou impiedosamente os laços feudais multicores que ligavam o ser humano aos seus superiores naturais, e não deixou subsistir entre homem e homem outro vínculo que não o interesse nu e cru (das nackte Interes­ se), o insensível "pagamento em dinheiro". Afogou nas águas gélidas do cálculo egoísta os sagrados frêmitos da exaltação religiosa, do entusiasmo cavalheiresco, do sentimentalismo pequeno-burguês (spiessbürgerlich)" (w. 4: 464; M: 68). O fato de o texto ter assinalado a tendência cosmopolita e globalizante do sistema (ver W. 4: 466; M: 69-70), inclusive no plano da "produção espiritual",

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assim como a tendência a universalizar a relação salarial (ver W. 4: 465; M: 69), são pontos fortes e atuais. Já falei das crises. Politicamente, a ênfase no automovimento do proletariado, e na revolução das maiorias, apesar das opiniões correntes, fazem do Manifesto um texto que, em primeira instância, é dificil­ mente compatível com a leitura da política marxista que farão alguns no século XX: Creio que a política do Manifesto - que não fala em "ditadura do proletaria­

do", só em "dominação" (Herrschafi) do proletariado, mas não é isso o essencial - é em primeira instdncia incompatível com o vanguardismo bolchevique. Do Manifesto é difícil tirar a idéia de partido único. Entretanto, como veremos a partir de uma outra vertente, ele pode dar armas a um projeto antidemocrático (nos limites desse texto, diria que são os direitos da "minoria'' não-revolucioná­ ria - não necessariamente contra-revolucionária - que ficam vulneráveis. Mas a partir dessa brecha, tudo se torna possível, mesmo a autodeterminação do pro­ letariado acaba sendo ameaçada). As dificuldades do Manifesto são em geral dificuldades do marxismo, embora a fase particular do pensamento de Marx a que o texto pertence talvez as tenha agravado. Retomo aqui, no contexto do Manifesto, uma linha de pen­ samento que desenvolvi no posfácio sobre a política de Marx do meu livro O

capital e a lógica de Hegel (dialética marxista, dialética hegeliana) ( 13). A dificuldade do Manifesto - como a meu ver, em maior ou menor medi­ da, do marxismo em geral - está em ter pensado que deve haver uma passagem "catastrófica" do capitalismo ao socialismo. Não me refiro especificamente ao problema da revolução violenta em oposição à transição pacífica, embora a ques­ tão a discutir tenha efeitos sobre ele. Quero dizer que Marx não pensa que possa haver alguma continuidade deformas na passagem do modo de produção capi­ talista ao que ele chama de comunismo. Isso significa que, no plano das formas (políticas ou econbmicas), ele não vê nenhum tipo de acumulação. O comunis­ mo deve destruir as formas capitalistas e construir novas formas (se há progres­ so político no capitalismo é essencialmente porque - ou no sentido de que - ele permite a eclosão da revolução) ( 14). Essas características remetem a uma noção muito estreita de forma. As formas aparecem fundamentalmente como expres­ sões ilusórias, sem densidade própria e, o que é importante, sem um mínimo de verdade própria. A ideologia é vista menos como uma forma contraditória do que como uma forma negativa em sentido corrente. Vai na mesma direção a idéia de uma história com "terceiro excluído" (isto é, sem "terceiro"). Há, de um lado, o modo de produção capitalista; de outro, o comunismo como movimen­ to futuro. Mesmo se o processo não é considerado como fatal (o texto diz que ele é inevitável - ver W. 4: 474; M: 78 - mas o problema não é bem esse), não se pensa a possibilidade da emergência de outras formas de exploração e de domi-

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nação. Ora, o século parece ter mostrado essa possibilidade. E o texto Manifes­

to, pensado uma passagem "catastr6ficà' (no sentido indicado) do, capitalismo ao que chamamos de socialismo, recusando qualquer progresso político que não seja o da criação de condições favoráveis à revolução, reduzindo as formas jurí­ dicas e ideol6gicas a pouco mais do que uma tênue camada ilus6ria, produz uma espécie do que chamei de "ponto cego" no marxismo, que o torna suscep­ tível de uma utilização relativamente cômoda como ideologia das sociedades burocráticas do século XX. Vejamos alguns textos: "Os proletários nada têm de seu para salvaguar­ dar, têm de destruir toda segurança privada (Privatsicherheit) e todas as garanti­

asprivadas (Privatversicherungen) existentes até aqui" (W. 4: 472; M: 76, grifado por RF). Texto extremamente perigoso, a meu ver, e que pode facilmente ser instrumentalizado por poderes burocráticos. Abuso de leitura por parte desse poderes? Sem dúvida, mas não inteiramente. Muito dificilmente Marx seria favorável aos regimes burocráticos. Mas o problema é que ele não viu o risco da emergência desses regimes (cf. sua discussão com Bakunin) . Por isso também não viu a importância das garantias jurídicas obtidas. "As leis, a moral, a religião são para [o proletário] igualmente tantos pre­ conceitos burgueses, por trás dos quais se ocultam tantos interesses burgueses" (W. 4: 472; M: 76). Interessam-me aqui as leis e a moral (embora evidentemente seja defensor da liberdade religiosa). Marx e Engels não condenam estas ou aquelas leis, nem esta ou aquela moral. O problema é discutido explicitamente no texto, e tem a ver com a questão da generalidade tratada anteriormente (mas

mesmo com a universalidade introduzida pelas obras de maturidade, o proble­ ma subsiste). Trata-se de erradicar, a longo prazo sem dúvida, mas erradicar, de qualquer modo, o direito e a moral. Com isso, imediatamente, direito e moral se tornam suspeitos. São expressões da hist6ria da exploração. De novo a con­ vergência entre os interesses burocráticos e o discurso de Marx (mesmo se Marx - e Engels - visavam de fato o capitalismo) é, a meu ver, evidente. Quem quer que faça apelo às leis ou à ética diante desses poderes pode facilmente ser neu­ tralizado, com algum abuso é certo, mas também com uma semijustificação, a partir desses textos. Marx pensa numa situação final de transparência social, em que não ha­ verá mais Estado. Os textos são conhecidos: "Quando no curso do desenvolvi­ mento as diferenças de classe desaparecerem e toda a produção se concentrar nas mãos dos indivíduos associados [observar que ele faz dos indivíduos os su­ jeitos, contra todo "holismo" (RF)], o poder público (die õjfentliche Gewalt) perderá o caráter político (politscher Charakter). O poder político em sentid