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D/t Organizadora
Simone Mainieri Paulon
Nietzsche nao morreu. Talvez esse seja o aforismo com cuja luz possamos ler a coletânea de textos organizados por Sin1one Paulon que ora ganha a intensidade corporal de livro. Nietzsche não
morreu,
tampouco se tornou o fantasma a obsedar a prática dos filósofos e psicanalistas reunidos pelo carisma e pela dedicação da organizadora desta obra. Ele é a fonte luminosa a qual é preciso voltar para pensar as práticas psicológicas atuais e pensar novamente, pois a clinica é sempre um lugar para pensar, para que o paciente se pense, para que o analista se pense e pense em sua prática. Nestes tempos cm que a apatia subjetiva tornou-se uma constante cultural, concomitante à histeria coletiv.i do desejo, o que pode a filosofia trágica dizer à psicanálise? Podemos falar ainda em sujeito trágico quando a normalidade no seu sentido autoritário ganhou todas as batalhas, quando a acomodação e o medo de tentar a diferença conduzem os rebanhos de
NIETZSCHE PSICÓLOGO: A CLÍNICA A LUZ DA FILOSOFIA TRÁGICA
Conselho Editorial Alex Primo - UFRGS Álvaro Nunes Larangeira - UTP Carla Rodrigues - PUC-RJ Ciro Marcondes Filho - USP Cristiane Freitas Gutfreind - PUCRS Edgard de Assis Carvalho - PUC-SP Erick Felinto - UERJ J. Roberto Whitaker Penteado - ESPM João Freire Filho - UFRJ Jurem ir Machado da Silva - PUCRS Marcelo Rubin de Lima - UFRGS Maria lmmacolata Vassallo de Lopes - USP Michel Maffcsoli - Paris V Muniz Sodré - UFRJ Philippe Joron - Montpellier Ili Pierre le Quéau - Grenoble Renato Jani:ne Ribeiro - USP Rose de Melo Rocha - ESPM Sandra Mara Corazza - UFRGS Sara Viola Rodrigues - UFRGS Tania Mara Galli Fonseca - UFRGS Vicente Molina Neto - UFRGS
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NIETZSCHE PSICOLOGO: A CLÍNICA À LUZ DA FILOSOFIA TRÁGICA
ÜRGAN IZADORA
Simone Mainieri Paulon
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© Os autores, 2014
Capa: Eduardo Miai/o Projeto gráfico: Da11iel Ferreira da Silva Revisão gráfica: A11gelo Cabeda Revisão: Care11 Capaverde e V/l11ia Moller Edi1or: Luis Antl)nio Paim Gomes
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação ( cip ) Bibliotecária Responsável: Denise Mari de Andrade Souza CRB 10/960 N677 Nietzsche psicólogo: a clinico à luz da filosofia higica / organizado por Simone Malnicri Paulon. •· Porto Alegre: Sulina, 2014. 239 p. ISBN: 978-85-205,0707-0 1. Psic.ologia Clinica. 2. Psicologío.. 3. Filoso6a. 4. Medicina. 1. Paulon, Simone M.iinieri. COU: 101
159.9 61 COO: 100
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Todos os direitos desta edição reservados à Editora Meridional Ltda. Av. Osvaldo Ara nha, 440 cj. 101
Cep: 90035-190 Porto Alegre-RS Tel: (051) 33 11-4082 Fax: (051) 3264-4194 www.editorasu Iina.co m.br
e-mai l: [email protected] (Ourubro /20141
IMPRESSO NO BRASILIP RtNTllD IN BRAZIL
SUMÁRIO
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Apresentação da coletânea SIMONE M AINIERI PAULON
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Prefácio BENILTON BEZERRA JÚNIOR
PAKrE 1
Nietzsche psicólogo Sobre saúde, doença e ressentimento
29
ÜSWALDO ÜIACOIA JUNIOR
Nietzsche e a repetição: entre a necessidade e a contingência
59
MARJO FLEIG
A vulgarid ade e o devir nobre da critica cm Nietzsche
71
DANIEL O UTRA TIUNDADE
Psicologia, ciência e moral: um a reftexão nietzschcana sobre a "vontade de verdade" na Psicologia
91
RALF KAYSER
O corpo: a gr ande r azão
111
Ce1,so CÃNDJD0 DE A2AMBUJA
Nietzsche e a lógica da suspeita F EUPE ÜARRAFIEL PIM ENTEL
121
PARTE li
A clínica à luz da filosofia trágica A psicanálise e a herança de Nietzsche sob a forma de dez mandamentos
145
ALFREDO NAFFAH NETO
Do esgotam ento à convalescença: a clinica
167
D ÉBORA DE MORAES COELHO
O sujeito na tensão entre a memória e o esquecimento
187
LIANE P ESSIN
A série Nier.i:sche-grupos-insti tuições
195
R EGINA B ENEVIDES DE BARROS
Você sa be o que é ter um amor, meu senhor? Notas sobre ressentimento e " dor de cotovelos"
2 15
SIMONE MAIN IERI PAULON
Pós-Scriptum
236
POR ALICE GRASIELA CARDOSO REzENDE CHAVES
Sobre os a utores
238
Dedicatória Ao Erva11dro Welp, cuja arte de temperar o cotidiano deixa um gosto de infinito a cada instante. Ao Artur Pau/011 Rodrigues e a La11ra Welp, com quem temos tido o prazer de saborear a vida e aprender que querer mais dela é desejar a própria superação.
Apresentação da coletânea
SIMONE MAINIERI PAULON
Mas nenhum de nós foi hábil para elucidar o fenômeno e suas bases psicológicas tão exaustivamente e, ao mesmo tempo, tão agudamente quanto Nietzsche em um de seus
aforismos (Além do Bem e do Mal, cap. IV): "- Euftz isso - diz a memória. - Não, eu não posso ter/eito - diz meu org11/ho, e permanece inexorável. No fim - a memória cede." (Freud1)
Nietzsche se dizia "médico da civilização". Freud também se colocou nesse lugar ao criar uma clinica baseada na análise das vicissitudes da existência humana enquanto processo civilizatório. A par dos inúmeros mistérios e das inumeEm nota adicionada em 191Oao capítulo VU da Psicopatologia da Vida Cotidiana, e citada novamente em Notas sobre 11111 caso de Neurose obsessiva. 1
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ráveis lendas que acompanham as possíveis aproximações que o psicanalista teria tido à obra filosófica do maior crítico da modernidade, o que é indubitável é que Freud não teria ficado indiferente à mesma. Um dos motivos para isso, qualquer leitor de Freud poderia supor, seria a estratégia de pensamento, a perspectiva genealógica proposta pelo filósofo para que alguém lograsse tomar-se o que é. 2 Concordando com alguns comentadores da obra nietzscheana como Deleuze, Derrida e Kofmann -, Robert Pippiu afuma que os textos de Nietzsche parecem conter uma espécie de armadilha a qual tira com uma mão aquilo que parecia ter dado ao leitor com a outra. No trabalho ''Nietzsche, Psychology & First Philosophy", Pippin se dedica a argumentar por que entende a psicologia como a principal categoria para Nietzsche, assim como a analisar por que mesmo ela é tão "retoricamente complicada e elusiva". 3 Recusando uma interpretação psicologizante da obra, a que tantas vezes se viu tentado a fazer e da qual muitos de seus seguidores não se furtaram\ o criador da psicanálise teria feito escassas, porém contundentes, referências ao filósofo do eterno retorno. Possivelmente, a primeira dessas encontra-se numa passagem em carta a Fliess, em 1900 (curiosamente escrita 6 meses antes da morte do filósofo, que já se encontrava inativo há mais de uma década), na qual Freud anunciava certa ambiguidade que perpassaria boa parte dos testemunhos deixados por ele em relação às leituras feitas de Nietzsche. "Acabo exatamente de pegar as obras de Nietzsche onde encontrarei, espero, palavras para muitas coisas que pennanecem mudas em mim, mas ainda não abri o livro".5 1
Em alusão ao subtítulo que Nietzsche coloca em seu último livro - Ecce
Homo: como olguém se toma o que é.
) A obra referida foi publicada pela editora da Universidade de Chicago em 201 O(citação da p. XVI do capítulo introdutório livremente traduzida por mim). • Conforme apresentado em Assoun, P.-L. Freud e Nietzsche - seme/l,a11ças e desseme/hanças. São Paulo, Brasiliense, 1989; e retomado em Fleig, Pimentel e Naffah Neto nos textos que seguem. 'Apud Assoun, op.cit. p. 39. 8
É dificil imaginar que o espírito inquieto e o pensamento ousado de Freud a tantos padrões morais de sua época, pudessem refrear a curiosidade de abrir as páginas que poderiam expressar aquilo para o que ele não encontrara palavras por "preguiça" termo o qual ele usa para justificar ao amigo o movimento de retardar (evitar?) a leitura. Assenta-se aí a hipótese defendida por Assoun de uma possível resistência de Freud a Nietzsche, com base nas aproximações que o psicanalista encontrava a cada tentativa de adentrar mais profundamente a obra do filósofo. Uma afinnação feita por Freud relativa ao poeta de Zaratrustra, em uma das lendárias quartas-feiras da Sociedade de Psicanálise da Viena, em 1908, ratifica essa tese. Durante as sessões destinadas ao debate da "Genealogia da Moral", em abril, e de "Ecce Homo", em outubro do mesmo ano, ele teria confidenciado a seus pares não suportar a leitura de mais de meia página de Nietzsche, talvez pelo que o conteúdo produzido por uma mente perturbada lhe despertasse, ou mesmo pelo incômodo narcísico que a extrema coincidência entre suas ideias lhe produzisse.6 Pudera que a genialidade do poeta e pensador trágico mobilizasse de tal forma o criador da psicanálise! Sem o verniz da hipocrisia moral, tão comum aos meios intelectuais quanto avesso às ácidas críticas que boa parte de sua obra dirige à enaltecida racionalidade moderna, Nietzsche não apenas se autointitulou psicólogo das profum.lezas - "que precisa fazer falar em voz alta exatamente o que gostaria de permanecer em silêncio" - como chegou a se apresentar como o primeiro psicólogo da Europa "Quem, entre os filósofos, foi antes de mim psicólogo e não o seu oposto, superior embusteiro, idealista? Antes de mim não havia absolutamente psicologia". Definindo, não obstante, a Psicologia
No posfácio que Paulo Cesar de Souza faz ao Ecce Homo, São Paulo: Cia das Letras, 1995.
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enquanto "senhora de todas a.s ciências"7, as pistas indicativas do que o psicanalista pode aprender com o filósofo não se limitam às provocativas designações que Nietzsche teria feito sobre si mesmo. Dirigindo-se, em alguns momentos, especificamente, a "esses pesquisadores e microscopistas da alma" no incisivo diagnóstico da modernidade empreendido pela Genealogia da Moral, o autor oferece preciosos elementos para a construção de uma ciência da subjetividade liberada dos preconceitos metafísicos e morais aos quais se manteve historicamente ligada. Como bem resume Giacoia Jr. em seu Nietzsche como Psicólogo, que deu origem ao projeto que este livro encerra: "A ousadia intelectual de Nietzsche recorre ao exame crítico dos pilares do pensamento metafisico procedendo à desconstrução do tradicional primado da consciência para evidenciar a psicologia como caminho que conduz aos problemas fundamentais".
Distantes mais de um século dos fatos que poderiam precisar se há, como afirmam vários psicanalistas, mna dívida teórica de Freud para com Nietzsche, toma-se rufiei! - e de utilidade duvidosa - tomarmos uma posição inequívoca diante de tal polêmica. Entretanto, analogamente à máxima freudiana que afirma não sabennos se o inconsciente existe, mas não podemos negar que ele insiste, bem poderíamos conjecturar que não sabemos, ao certo, o que há de nietzscheano em Freud, mas temos bons elementos para pensar que o psicanalista, no mínimo, gostou do que leu no filósofo. Os ensaios que seguem têm a pretensão de cumprir o mesmo destino para seus leitores. Eles foram elaborados em épocas diferentes e correspondem a projetos de investigação e estudos igualmente diversos em que os autores se debruçaram sobre algumas questões clinicas, geralmente extraídas de suas atividades como pesquisadores e/ 7
Em sequência, a primeira citação do parágrafo encontra-se no prefácio do Crepús· culo dos ídolos, a autodenominação de Iº psicólogo é retirada do capítulo Por que sou 11111 destino? de Ecce Homo e a última encontra-se em Além do Bem e do Mal e constituem o argumento inicial largamente debatido por Giacoia Jr. no primeiro movimento do livro Nielzsche como Psicólogo (2001 ). 10
ou terapeutas mantêm um mesmo fio condutor: o que as práticas clinicas da atualidade podem aprender com a ética trágica. O crescente interesse observado em diversos campos do conheci,nento pela articulação das duas grandiosas obras se inscreve em uma trajetória maior da qual esta coletânea é tributária. A filosofia trágica - aqui considerando Nietzsche como seu principal interlocutor - sustenta hoje, no Brasil como em outras partes do mundo, noções de sujeito e de clínica fundamentais no leque das construções teóricas sobre a subjetividade contemporânea. Sensível a tal apelo, o psicanalista Alfredo Naffah Neto desenvolveu uma série de trabalhos que exploram os ensinamentos nietzscheanos para elucidar aquilo que, no encontro com Dioniso, a clinica psicanalítica pode aventurar-se a se tornar. ''Vive em mim um Nietzsche que anseia por se tornar psicoterapeuta'', anunciava ele em 1994 ao abrir seu Livro8, que propõe uma releitura de conceitos clássicos da psicanálise a partir de uma suposta ''visita" do filósofo a Freud. Animados pelo convite contido nesse trabalho precursor de Naffah Neto e, na sequência, pela criativa leitura ofertada pelo trabalho do professor Oswaldo Giacoia Jr., vários outros potencializadores encontros com uma teoria psicológica em Nietzsche foram se produzindo.9
• NAFFAH NETO, Alfredo. A psicoterapia em busca de Dioniso: Nietzsche visita Freud. Escuta/Educ: São Paulo, 1994. 9 Refiro.me aqui ao Seminário realizado na Pós-Graduação em Psicologia Clínica da PUC-SP em 1999, que foi reprisado na UNTSINOS-RS em 2000, gerando a publicação do texto homônimo ao curso pela editora da universidade gaúcha e a demanda por uma segunda edição do evento, realizada em 2002, que contou, novamente, com o professor Giacoia Jr. na conferência de abertura intitulada "Saúde e Ressentimento em Nietzsche". Em 201 Oe 2012, já como docente do PPG de Psicologia Social da UFRGS, coordenei o Seminário "Nietzsche Psicólogo", que contou com alguns dos presentes autores como convidados. Não vinculada a esse circuito estabelecido pela parceria dos dois professores paulistas com as universidades do sul, mas de grande impacto no meio psicanalitico do país, cabe também citar a publicação, em 2004, do livro Ressentimento, em que Maria Rita Kehl se dedica à acurada análise dos efeitos clínicos e políticos do tema-titulo para a atualidade. 11
Ao brindar-nos com sua interpretação da construção teórica nietzscheana como base para se desconstituir a tradição moral e metafisica da ciência psicológica, Oiacoia Jr. apresentou a muitos de nós, autores aqui reunidos, uma perspectiva vitalizadora da psicologia e, com ela, a possibilidade de se construírem hipóteses clinicas originais que incidam e ajudem a pensar as questões pulsantes da subjetividade em nosso tempo. Em seu texto que abre esta coletânea e que constituiu a conferência de abertura da 2ª edição do curso "Nietzsche como Psicólogo", o autor nos convida aos labirintos da aventura nietzscheana rastreando o conceito de saúde no filólogo através da instigante questão colocada no prólogo da Gaia Ciência: O que ocorre com o pensamento quando adoece o pensador? "Eis a questão que interessa aos psicólogos: e aqui o experimento é possível". Lançados ao desafio e dispostos à experimentação prenunciada por Nietzsche, os autores reunidos na primeira parte deste livro muniram-se do "martelo" do filósofo para problematizar certas ferramentas conceituais de forma a dispô-las a serviço de indagações que ajudem a compreender o sofrimento do homem contemporâneo. Para introduzir a ideia de uin desmedido efeito que pode ter o encontro do psicanalista com a filosofia do eterno retomo, Fleig parte da hipótese de que Freud teria se dirigido a ela "na expectativa de encontrar ali as palavras que lhe carecem para dizer seu próprio indizível". Tomando a pista do portal do instante que permite a Zaratustra intervir no curso·do destino trágico, o artigo "Nietzsche e a Repetição" argumenta que "entre a necessidade e a contingência" o paradoxo do instante extraordinário pode oferecer algum ensinamento à operação modal de interpretação. A constituição subjetiva do "homem vulgar" é o foco do estudo empreendido por Daniel Trindade, que responde à tarefa de entrever, com o filósofo, o processo de mediocrização ou deterioração da vida. A "revolta dos escravos na moral" como 12
operação deflagradora da deterioração do homem é analisada por meio de uma genealogia nietzscheàna que revira a tábua de valores morais, para compreender como o arrebanhamento moral dos fracos determina um ethos vulgar da modernidade. Kayser explora a noção de "vontade de verdade" em Nietzsche, localizando-a na base da procura obsessiva de científicidade característica da modernidade e, com ela, dos valores metafisicos que sustentam a formulação da Psicologia como um instrumento de avaliação moral. No texto "A grande razão", o filósofo Celso Cândido de Azambuja apresenta-nos uma das mais importantes transvalorações operadas por Nietzsche. O corpo, renegado ou amaldiçoado na tradição iluminista e ascética, será elevado a valor de primeira grandeza. Desse modo, as paixões, os instintos e os sentidos serão considerados como instâncias primeiras na hierarquia dos valores. Felipe Pimentel completa essa sessão apresentando um estudo que compreende a obra de Nietzsche inserida no contexto histórico das vanguardas niilistas do final do século X IX. Assim como Schopenhauer, Dostoievsky e Freud, Nietzsche é tomado como um pensador da tragicidade da existência aberta pelo desencantamento do mundo e da noção de verdade, resgatando, dessa forma, a dimensão psicológica de sua obra normalmente relegada a segundo plano em nome da filosofia. No intuito de apontar as diretrizes para uma psicanálise trágica, a segunda parte da coletânea agrupa artigos que se debruçam sobre o foco anunciado no subtítulo do livro: a clínica à luz da filosofia trágica. É aberta com o trabalho de Naffah Neto, no qual os I Omandamentos são prescritos para uma terapêutica de inspiração nietzscheana. Seguindo propósito equivalente, duas ferramentas conceituais são tomadas como analisadoras à clínica psicanalítica. Débora de Moraes Coelho nos conduz a circular em uma atmosfera clínica na qual vivemos o desafio de escutar o discurso de quem vive mais do que um cansaço físico e psíquico. Como ampararmos os 13
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sujeitos contemporâneos e escutannos sua atual queixa: "eu não aguento mais"? Como transformar o esgotamento em um meio de passagem? Perguntas potentes para tempos confusos é a provocação do artigo "do esgotamento à convalescença: a clínica". Na sequência, para pensar "0 sujeito na tensão entre a memória e o esquecimento", Liane Pessin ficciona um diálogo entre Nietzsche e Freud, que permite produzir hipóteses sobre os processos de subjetivação. Para tanto, o artigo detém-se, mais especificamente, na capacidade de prometer tal como explorada pelos dois autores e a desdobra para problematizar aquilo com que o trabalho psicanalítico se depara cotidianamente: discursos que expressam conflitos da ordem do "quanto se conserva e do quanto se rompe com o si mesmo". No artigo "A série Nietzsche-grupos-instituições", Regina Benevides de Barros toma a proposta genealógica de Nietzsche para rastrear as condições de emergência e invenção do que denominou a Instituição-Grupos. As noções de verdade, moral, ciência, linguagem e consciência transformam-se em operadores conceituais meticulosamente retirados dos escritos nietzscheanos para revigorar a perspectiva analítico-institucional no trabalho com gn1pos. A proposição da autora de que a intervenção com grupos possa ser trabalhada no sentido de intensificação da Vontade de Potência permite abandonar a compreensão do grupo como categoria ou entidade e passar a compreendê-lo como dispositivo analítico. No encerramento dessa segunda parte, o artigo de minha autoria discute a Psicologia do Ressentimento, pensando a ftmção estética dos "desejos de morte ou de dor" expressos nos célebres sambas que entoam as mundanas tragédias das rupturas amorosas. As lendárias letras de Lupicínio Rodrigues, reconhecido como o sambista que popularizou a "dor de cotovelo", são evocadas no intuito de aproximar as noções de desamparo e niilismo que permitem entender o processo de autocomiseração a que todo seduzido abandonado parece se condenar. 14
Desde o percurso aqui sintetizado, a especificidade do que a filosofia trágica tem a oferecer à clínica psicanalítica passou a constituir não só o foco de nossas atividades docentes e práticas clinicas como, fundamentalmente, passou a nortear inúmeras investigações teóricas, trabalhos acadêmicos e projetos de pesquisa que, não fossem essa sucessão de "bons encontros", no sentido spinoziano do termo, talvez não se tivessem produzido. Cabe ainda destacar que, entre os encontros que viabilizaram a presente publicação, a fraternal parceria da professora Mareia Tiburi é uma das boas heranças que a organização dos Seminários "Nietzsche como Psicólogo" me legou. Também importa marcar o fundamental dispositivo oferecido pelo professor Alfredo Naffah Neto como responsável primeiro, para muitos de nós, pela articulação filosófico-psicanalítica aqui explorada. Ao professor Giacoia Jr. nosso especial agradecimento, tanto pela crescente interlocução que seu minucioso trabalho filosófico tem oferecido ao pensamento psicológico quanto pela cedência de sua conferência de 2002 que, desde que foi proferida, com o rigor e a generosidade que caracterizam o autor, nunca mais deixou de produzir efeitos e provocar desdobramentos acadêmicos e existenciais em vários de seus leitores. Graças a pessoas como essas, lançarmo-nos ao exercício do pensamento estimulado pelas profícuas ressonâncias entre as obras de Nietzsche e Freud tornou-se, mais do que um projeto teórico, um alegre trabalho que, além de bons amigos e eventos, permite produzir hipóteses mais complexas, profundas e menos morais sobre a vida e prática clínica.
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Prefácio
8ENtLTON BEZERRA JÚNIOR
Nada mais na contramão do cenário atual no campo dos saberes e práticas psi do que uma discussão sobre os fundamentos e o horizonte da clínica com base nas ideias de Nietzsche. E exatamente por essa razão, para qualquer um que deseje interrogar os impasses e desafios fundamentais das construções teóricas e das práticas clínicas contemporâneas, o livro que o leitor tem em mãos neste momento é mais do que pertinente, é necessário. As transformações pelas quais o campo da clínica tem passado nas últimas décadas são visíveis, poucos discordarão: proliferação crescente de diagnósticos que semeiam patologias em experiências inerentes à vida cotidiana; recurso cada vez maior a uma gramática de nomeação do mal-estar que tende a descrevê -lo em termos de desvio (que demanda regulação), em detrimento da experiência de conflito ou enigma existencial (que exige entendimento ou ressignificação); uso crescente de reorientação comportamental ou reajuste neuroquímico como estratégias terapêuticas; impregnação, no imaginário social, de uma ideologia cientificista que faz das "evidências" empíricas o padrão-ouro de
avaliação de procedimentos clínicos; desprestígio de abordagens fenomenológicas, psicodinâmicas ou socioculturais na elucidação de processos causadores de pathos; transformação da saúde em otimização do desempenho flsico e gestão bem-sucedida de funções mentais, e assim por diante. O vetores dessas transformações são bastante conhecidos e de natureza bastante diversa. Dentre eles estão o surgimento da biologia como ciência do homem total, estimulando a inclinação a conceder a abordagens reducionistas um privilégio epistêmico na elucidação dos fenômenos humanos; a emergência da indús11
tria e do mercado da saúde, com a consolidação da psicofarmacologia como um dos setores mais poderosos; o ocaso da cultura da intimidade psicológica e da interioridade reflexiva, modificando processos de subjetivação, e construção identitária; expansão do imaginário do risco e da concomitante adesão â ideia de regulação biotecnológica da vida; a fetichização na cultura dos ideais de autonomia e saúde e sua transformação em imperativo inalcançável de gozo pleno e permanente. É fácil, diante desse quadro, adotar uma perspectiva de análise que ressalte seus efeitos política e eticamente negativos: um processo acelerado de medicalização da existência, a hegemonia crescente de práticas nonnalizadoras e corretivas, a proliferação de identidades sociais calcadas em classificações psiquiátricas, a emergência de uma neurocultura que, agora lastreada em noções de plasticidade entendida de modo redutivo como flexibilidade em frente a injunções, renova os caminhos de submissão ideológica dos indivíduos, e assim por diante. No entanto, uma reflexão que pretenda ir além da crítica fácil , e queira fugir tanto do colorido saudosista em relação ao passado quanto de visões apocalípticas em relação ao futuro, precisa dar dois passos iniciais. Primeiro, reconhecer que toda transformação histórica aca rreta efeitos complexos, perdas previsíveis e ganhos inesperados. Além disso, que é necessário um esforço para discernir com clareza uns e outros - a exacerbada propagação da autonomia i ndividual como valor principal nas culturas ocidentais é um exe,nplo interessante. Esse processo ao mesmo tempo tem papel central na transformação da depressão em sintoma fundamental de nossa época (a depressão como experiência de insuficiência ou impotência diante das expectativas de fruição máxi1na de uma existência autônoma e bem-sucedida) e se transformou em peça-chave para a e1nergência de fenômenos sociais que se voltam contra a fetichização desse valor. Esse é o caso do movimento das deficiências (disabilities), que lastreou seu ca,npo inicial de ação com base na pren1issa da autonomia 18
plena como traço humano universal (somente limitado por constrangimentos de ordem social), para em seguida reorientar seu horizonte teórico e prático, apostando firmemente na defêsa da diversidade de formas de vida humana - o que implica necessariamente aceitar a existência de diferentes níveis e graus de autonomia de indivíduos (algo que se manifesta de maneira persuasiva no caso de deficiências de ordem cognitiva). O segundo passo é procurar ir um pouco mais adiante e entender o pano de fundo que sustenta o quadro no qual todos esses processos têrn lugar. Por que somos hoje tão permeáveis à adoção de práticas de regulação tecnológica do nosso bem-estar? Por que o discurso científico (ou melhor, que se apresenta como científico) detém esse privilégio crescente em relação a outras formas de saber sobre a vida, sobre nós mesmos, e o mundo que habitamos? Por que essa modalidade específica de produção de conhecimento se transformou na única que parece ter garantido o estatuto de produtora de verdades acerca da existência humana? Por outro lado, o que permite compreender, por exemplo, que num contexto sócio -histórico usualmente caracterizado pelo desprestígio da ação política, pela imposição de uma normalidade institucionalizada e pela patologização das 1nínimas diferenças emerjam com tanta força novas formas de afirmação política do valor da diversidade? O que torna possível a coexistência de modos padronizados de existência ao lado de tantos movimentos sacudindo as fronteiras tradicionais entre normalidade, diferença e patologia, entre natural e artificial? Se vivemos um momento de domesticação generalizada da imaginação crítica, como entender o surgimento de atores coletivos antes invisíveis e que hoje atraem nosso olhar para a potência normativa presente em modalidades inéditas, insólitas ou atípicas da experiência humana? Questões como essas são fundamentais para que possamos nos situar de um modo efetivamente crítico diante dos impas19
ses e desafios das práticas clinicas contemporâneas. Em outras palavras, se quisermos sair do plano da denúncia ou do lamento em relação a eles e se desejarmos abrir perspectivas de ação inovadora, é preciso não apenas enxergar o que se encontra na superflcie dos problemas que atingem o campo da clínica hoje, mas adentrar o terreno que subjaz a eles e explorar suas raízes, procurando entender como elas se entranham em nosso modo espontâneo de pensar, sentir e agir. É dessa perspectiva que a contribuição deste livro em tomo de Nietzsche se torna mais clara, pois as discussões promovidas pelos autores giram em torno de perguntas fundamentais como: O que é e para que serve a ciência, qual o seu papel na existência humana? Qual o lugar da verdade dentre os valores que norteiam a ação humana no mundo? Que papel a psicologia pode exercer no exame crítico das práticas científicas? Encadeando os tratamentos dados a essas e outras questões, encontram-se alguns elementos cruciais do pensamento nietzschiano, que poderíamos sintetizar em três pontos: a) a crítica à ciência de sua época, tomada como um projeto inacabado, coartado em sua realização plena por sua adesão inconsciente a valores culturais dominantes (fundamentalmente, ao ideal ascético e à moralidade) e a exortação à constituição de uma ciência reformulada; b) a discussão da psicologia como peça-chave nessa reformulação por sua capacidade de revelar, de trazer à tona os valores inscritos em toda ação humana (incluída aí a ciência); c) a adoção do perspectivismo como estratégia epistemológica fundamental. Sobre esses pontos valeria a pena trazer um ou dois comentários. Para compreender o tratamento que Nietzsche dá à ciência e a seu papel na existência humana é preciso atentar para a maneira peculiar com que ele aborda o tema. Nietzsche é conhecido por seus ásperos ataques à ciência, ou 1nelhor, ao lugar de destaque e primazia quase absolutos que a ciência ocupa na sociedade moderna. Como ele diz em A Gaia Ciência, a 20
interpretação cientifica do mundo e da vida pode ser uma das interpretações mais estúpidas produzidas pela mente humana, pois veiculadora de preconceitos e produtora do maior de todos os males humanos, o niilismo. Por outro lado, ao tratar da psicologia, ele a considera uma ciência fundamental - nas suas palavras, "a rainha das ciências". Como se pode entender essa aparente contradição entre uma posição detratora e outra laudatória em relação à ciência? E por que a psicologia seria, a seus olhos, a rainha das ciências? Em primeiro lugar, é preciso lembrar que Nietzsche usa o termo "ciência" em duas acepções distintas: quando adota uma atitude crítica, ele se refere à ciência corrente em seu tempo, à ciência entendida como um projeto de decifração objetivista e quantitativista do mundo que considera que a única interpretação correta do mundo é aquela capaz de "contar, calcular, pesar, ver, dominar, e nada mais". Para ele, esse é um projeto falido porque " um mundo essencialmente mecanístico seria um mundo essencialmente sem sentido". Mas nem sempre a posição de Nietzsche em relação à ciência é tão ácida. Afinal, ele descreve a si mesmo em Além do Bem e do Mal como "um homem científico", e em várias ocasiões se refere à ciência que ele vê como um objetivo a ser alcançado - uma ciência renovada, transformada, despida de seus vícios e reformulada em termos dos valores que organiza1n sua prática. É nessa transformação que ele enxerga um papel crucial para a psicologia. Desse modo, se é verdade que Nietzsche ergue uma crítica feroz às pretensões da ciência de sua época, que visa ilegitimamente um lugar privilegiado no mundo humano, é verdade também que frequentemente se refere à ciência como uma espécie de projeto desviado de seu n1mo, à espera de uma "terapêutica" propiciada pela psicologia - que a levaria à sua plena realização. O eixo principal de sua análise da ciência está na critica ao privilégio absoluto concedido ao valor da verdade, ou mais precisamente, ao privilégio concedido ao esforço de buscar a verdade a 21
todo custo, evidência maior do "ideal ascético", vinculado à moralidade, que a contamina - e que ele via não apenas como uma ilusão, mas como algo hostiJ ao florescimento da vida em suas múltiplas expressões. Por que hostil à vida? Porque a busca da verdade a qualquer preço, a ideia de que nada é mais necessário e importante que a verdade (sendo tudo o miais secundário), se opõe à constatação do que a vida implica essencialmente deriva, equivoco, engano, aparência, turbulência, inexatidão, incerteza, erro - que "a vida", como dizia Clarice Lispector, "ultrapassa todo entendimento". Ao afirmar, portanto, o valor de verdade como absoluto em relação aos demais, a ciência acaba por nos arrastar sub-repticiamente para um mundo diferente daquele que habitamos, um mundo ascético depurado das intensidades da vida. Ao privilegiar a contemplação do mundo em detrimento da ação nele, a ciência tenderia a nos tornar existencialmente impotentes e niilisticamente incapazes de afirmar outros valores que não aqueles a que somos levados a aderir. Por essa razão é tão necessária, para Nietzsche, a crítica à ciência. Não para negá-la ou destruí-la, mas para reconstruí-la com base numa compreensão mais clara de seus fun. damentos e de seu alcance - exatamente a contribuição que ele enxergava que a psicologia poderia lhe oferecer. É preciso lembrar que, além da crítica ao privilégio absoluto concedido ao valor de verdade por parte da ciência, Nietzsche desenvolve uma outra linha de contestação à ciência de sua época, que se dirige não à adesão incondicional à verdade, mas à dificuldade de a ciência efetivamente alcançar aquilo que ela mes1na designa como verdade. Isso porque, segundo ele, a ciência, longe de ser um empreendimento racional desinteressado q1Ue buscaria simplesmente espelhar na mente a realidade do mundo, é, de fato, urna atividade atravessada inevitavelmente por interesses (dos quais é inconsciente) que norteiam o modo corno constrói e configura suas imagens da realidade, A ciência é fundada em premissas metafisicas acerca do que constitui a realidade que ela explora, produz 22
conhecimento não pelo desvelamento de uma realidade supostamente existente antes da investigação, pelo polimento progressivo do espelho da natureza (para usar a expressão rortyana), mas por meio de aproximações metafóricas e construções muitas vezes extraídas de outros campos (como a ideia de "leis naturais"). Esses procedimentos são inevitáveis e úteis para muitos propósitos, mas é preciso recordar que a investigação científica se volta para a descrição e o conhecimento de quantidades, sendo incapaz de apreender qualidades - e esse é que é o cerne de toda experiência de mundo. Por conta de todas essas críticas, Nietzsche é frequentemente interpretado como se posicionando de forma radical contra a ciência e sua busca da verdade. Mas ele deixa clara sua aposta numa ciência refundada e aponta o papel decisivo desempenhado pela psicologia nessa aposta. O que exatamente Nietzsche entende por essa psicologia? A psicologia explica nosso comportamento evidenciando as razões pelas quais agimos como agimos, ao analisar os valores subjacentes ou inscritos em nossa ação. Nessa definição se encontra um ponto central de toda a interpretação nietzsclúana do humano: para ele, toda e qualquer atividade, seja teórica ou prática, um pensamento ou uma ação, implica valoração, aqui entendida num sentido muito mais amplo do que a atribuição consciente de um valor positivo ou negativo a qualquer fato ou experiência, ou a simples adesão a um valor já dado. Valorar significa algo prévio à avaliação, ou à valorização. Valorar, para além da consciência, é um atributo da própria vida. Citando u1na conhecida frase de corte nietzschiano de Georges Canguilhem, o filósofo autor do clássico O nonnal e o patológico, "a vida é posição inconsciente de valor". A psicologia convocada por Nietzsche para a renovação da ciência, portanto, é uma prática cujo objetivo é o revelar, tomar visíveis, razões e valores detenninantes das ações e dos objetivos dos humanos - razões e valores nonnalmente mantidos à margem da nossa consciência. Esses detenninantes, no entanto, não 23
devem ser co1npreendidos como existindo em algum espaço recôndito da interioridade psicológica. A psicologia compreendjda como procedimento de elucidação da experiência e da ação opera necessariamente interrogando os diversos níveis que compõem o universo em que o sujeito se constitui e se move, ou seja, opera na articulação entre os planos natural, social e histórico. A psicologia explicita aquilo que nos move e que tende1nos a desconhecer por estar inscrito de maneira profunda e silenciosa nos processos sociais e históricos que nos envolvem. Ela anda, portanto, de braço dado com a genealogia. Ela elucida a matéria histórica de que somos feitos, por trás da aparência de universalidade que ilude nossa consciência. É desse 1nodo que a psicologia pode permitir uma transformação nas demais ciências: pelo esclarecimento dos valores e das motivações que subjazem ao fazer científico aparentemente desinteressado de químicos, neurobiólogos, psicólogos etc. Essa ênfase na presença de valores e motivações em qualquer ato humano está articulada à adoção, por parte de Nietzsche, do perspectivismo con10 estratégia epistemológica. Para o filósofo, a realidade só se torna apreensível sob descrição. Não se pode vê-la "tal co1no ela é em si mesma". Assim, toda descrição da realidade é no fundo uma interpretação, pois expressa sempre um ponto de vista, uma perspectiva - o ponto a partir do qual emergimos como u1n sujeito que vê diante de si o mundo. Como não temos acesso ao ponto de vista absoluto (o ponto de vista de lugar nenhum, como dirá Thomas Nagel), toda descrição da realidade cria aquilo que, uma vez criado, aparece como se tivesse estado lá sempre, à espera da descrição que o revelaria. Adotar uma perspectiva não é ter acesso a uma aparência do mundo, ao invés de aceder ao mundo ele mesmo. Nós só conseguimos ver o mundo a partir de alguma perspectiva. O que a ciência faz com seus métodos é produzir descrições do mundo construídas com base em certas regras que permitem sua revisão constante. 24
A realidade não é algo que se situa aquém ou além das aparências produzidas por essas descrições, mas, sím, a totalidade das aparências que resulta de nossa capacidade de organizar nossa experiência do que nos cerca, necessariamente selecionando aspectos que capturamos com nosso aparato sensório-motor e linguístico, e deixando de lado outros - sempre com base em motivações e valores, sempre visando certos interesses em relação à vida, e não outros. O que existe para além dessa realidade, somos tentados a dizer depois de Lacan, é o real privado de consistência inerente, de estrutura intrínseca. Toda estrutura que "descobrimos" existir (a constelação do Cruzeiro do Sul, por exemplo) é tributária da ação do nosso equipamento perceptual e das intepretações que produzimos para organizar seus efeitos. "Não há fatos eternos, nem há verdades absolutas", diz ele em Humano, Demasiado Humano. Adotar o perspectivismo implica, portanto, afirmar que nenhum ponto de vista particular é epistemicamente privilegiado (no sentido de propiciar uma visão do mundo mais próxima daquilo que ele "realmente é"), e nenhum objeto é internamente autoconsistente (no sentido de apresentar uma "essência" ou substância independente de descrições e de relações com outros objetos). Tudo isso tem consequências diretas sobre nosso entendimento de dois pontos fundamentais para nós: a natureza da experiência de ser um eu, e o horizonte da clínica. Na versão nietzschiana, o eu não tem substância ou centro, ele é o conjunto complexo mutante de desejos, crenças, emoções, pensamentos, estados de espírito que se constituem como impulsos, forças, (que Nietzsche nomeia, de forma mais ou menos indistinta, de Triebe ou Instinkt, diferentemente de Freud) que impelem o organismo individual à ação no mundo e à relação com os outros. Assim, não há uma unidade ou identidade imutável que o defina essencialmente. Do mesmo modo, não pode haver uma definição única do que seja a saúde mental. Se a clínica, para de novo 25
lembrar Canguilhem, ao lidar com o palhos visa à defesa, restauração ou an,pliação da capacidade normativa do eu, é preciso admitir que se há uma noção de pouca utilidade para a prática clínica, essa é a noção de normalidade. Nesse ponto, Nietzsche prefigura a visão freudiana do lnunano: um ser dilacerado que se ergue em meio a um turbilhão de impulsos e passividade, autonomia e dependência, submissão e revolta, que o constitui e com o qual necessariamente se encontra em pennanente tensão. O melhor que a clinica pode fazer é alargar as possibilicllades de cada sujeito tornar sua vida mais interessante de ser vivida. Tudo aquilo de que ela se utiliza (diagnósticos, teorias da mente, psicofármacos, terapias do corpo ou da palavra etc.) só se justificam quando postos a serviço desse horizonte. Esse é o pano de fundo dos trabalhos que o leitor encontrará neste livro. Essas são algumas das razões pelas quais ler Nietzsche hoje pode iluminar os desafios com os quais a clínica se defronta boje.
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P ARTE
I
Nietzsche psicólogo
Sobre saúde, doença e ressentimento•
ÜSWALDO ÜIACOIA JUNIOR
"Mas deixemos o sr. Nietzsche de lado: que temos nós com o fato de o Sr. Nietzsche haver recuperado a saúde?" (Nietzsche, 2001 , p. 10). Com efeito, pouco nos importaria se o senhor Nietzsche esteve ou não enfermo, caso se tratasse simplesmente de alguém que tivesse adoecido, entrado em convalescença, ou recuperado a saúde perdida. O fato é que não se trata de um anônimo alguém, mas precisamente de quem pretende ter sido o primeiro psicólogo da Europa. Ora, um psicólogo, assim como entende o sr. Nietzsche, é um wissenschaftlischer Mensch, cuja vocação consiste em produzir, extrair, criar saberes, até mesmo - e principalmente - de seus próprios estados, saudáveis e doentios. Sua curiosidade científica o impele, como um caçador, a percorrer o inteiro âmbito da alma humana, suas planícies, culminâncias e abismos, mesmo dobras mais obscuras, rastreando o vasto campo de experiências que constitui a história da "alma", sempre em busca daquilo que Nietzsche denomina "a grande caça" (Nietzsche, 1980, v. 5, p. 65, tradução minha2) . Para dizê-lo de outro modo, importa propriamente ao psicólogo nato interpretar o inteiro âmbito dos pensamentos, sentimentos, desejos, crenças, ações e estados de uma pessoa - mas também de um povo, de uma cultura - como sintoma e transfiguração de impulsos e afetos, gerados a partir de energias fisiopsicológicas que, por sua vez, estão sujeitas a um jogo permanente 1
Aula inaugural do curso "Nietzsche como Psicólogo", 2' edição, ministrado pelo autor em setembro de 2002 na UNlSfNOS. 2 A partir daqui, utilizarei "t.m." para indicar que o trecho citado do texto origina~é de minha tradução.
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de elevação ou desfalecimento de sua potência, de tonificação e enfraquecimento. Para tal psicólogo, nada do que diz respeito ao domínio dos processos mentais, tanto aqueles de natureza cognitiva qua11Jto afetiva, ou volitiva, está imune à influência da alternância entre estados de saúde e doença, responsáveis pelo incremento ou debilitação das energias s01náticas e psíquicas; nem sequer a atmosfera espiritual mais rarefeita dos pensamentos lógicos e matemáticos. Sendo assim, também os pensamentos que constituem uma filosofia partilham dessa condição de sintoma e traduzirão justamente a filosofia dos estados de uma pessoa. Aliás, se esse intérprete de sintomas é, além disso, tam.bém um filósofo e decifrador de enigmas - justamente como é o caso dó sr. Nietzsche - então para ele: "poucas questões são tão atraentes como a da relação entre filosofia e saúde" (Nietzsche, 2001 , p. JO), pois a ele importará saber se mna dada filosofia e, com ela, a pessoa de que ela constitui a memória involuntária são sintomas de saúde, ou de doença; e, mais importante do que isso, "no caso de ele próprio ficar doente, levará toda a sua curiosidade científica para a doença" (ibid., p. 1O). Interpretada como sintoma, uma filosofia poderá significar, então, "apoio, tranquilização, medicamento, redenção, elevação, alheamento de si" (ib.id. , p. 1O), ou seja, narcótico de que necessita a pessoa enferma e deficiente. Inversamente, no caso da pessoa saudável e inteira, a filosofia será a transfiguração em conceitos do sentimento de gratidão por essa plenitude alcançada, um luxo, um adorno e uma gratificação a mais. Caso tome por objeto de seu minucioso escrutínio a história da filosofia, o psicólogo não poderá evitar a suspeita e a curiosidade de saber se nela predominaram os pensamentos que expressam a indigência ou a abundância, a patologia ou a saúde transbordante. E, na hipótese de o resultado do exame tornar plausível a suspeita de que, na história da filosofia, predominam os pensamentos e os pensadores enfermos, então aquela curio30
sidade científica pode mesmo se aprofundar e assumir a forma de uma questão mais incisiva: "que virá a se.r do pensamento mesmo que é submetido à pressão da doença" (ibid., p. 11). O que ocorre com o pensamento quando adoece o pensador? "Eis a questão que interessa aos psicólogos: e aqui o experimento é possível" (ibid., p. 11 ).
Condições Gerais do Experimento Aquilo que nos interessa no presente trabalho é tomar a sério, na devida medida, justamente essa questão. Partindo dela, perguntaremos, por nossa vez, por que precisamente essa é, para o psicólogo Nietzsche, a questão que interessa? Por que razão é aqui, como ele o afirma, que o experimento se toma possível? Além disso, e mais propriamente, de que experimento se trata? A título provisório, adiantamos as seguintes respostas: essa é a questão que interessa porque é por meio da solução que dermos a ela que se poderá explicitar o problema mais ·intrincado até então posto pela filosofia, o problema ancestral da própria filosofia: a relação do pensamento {mente, intelecto, sentimento, alma) com o corpo, na medida em que a doença e a pressão que ela exerce afetam fundamentalmente o corpo, suas energias e seus regimes. A resposta, mesmo provisória, envõlve necessariamente também o sujeito e o olbjeto do experimento; quanto a eles, digamos: trata-se de saber o que acontece ao pensamento sob a pressão da doença. Logo, esta constitui como que a matéria do experimento. Este, enquanto tentativa de responder àquela questão crucial, se torna possível num âmbito detenninado: na própria pessoa do aludido sr. Nietzsche, na medida em que nela vemos reunidas as três condições indispensáveis para tanto. Em primeiro lugar, trata-se de um filósofo, portanto de um homem do pensamento; além disso, também de um psicólogo, cuja curiosidade científica é mobilizada pela doença até sua n1áxima intensificação, no sentido de adquirir o esclarecimento, por 31
experiência própria, sobre o que acontece ao pensamento sob a pressão da doença; e, por fim, temos, na pessoa dele, um paciente de epocais enfermidades. O experimento é, pois, o caminho sui generis que conduz a esse tipo de saber: não por introspecção, por autoexame de uma consciência clarividente, mas por um esforço de reflexão de que não estão excluídos vários movimentos e processos inconscientes. Vemos, pois, que as condições impostas pelo sujeito e pelo objeto de tal experimento exigem que o contraste, acima mencionado, entre a constituição saudável e a doentia da pessoa, seja transformado numa oposição dinâmica entre distintas perspectivas sobre a doença existente no interior de uma mesma pessoa, "de uma mesma alma doente", pois que somente dessa maneira se poderia decifrar o sentido da doença para o conhecimento. Tenhamos claro, desde logo, que o "Eu" dessa pessoa não se identifica com a unidade simples e pretensamente autárquica da tradicional consciência de si; esse "Eu" só pode ser pensado como unidade de organização, cuja lábil e sempre ameaçada estabilidade resulta da integração de seus estados, dos compromissos, combates, das alianças e oposições entre suas forças fisiopsicológicas, unicamente em relação às quais se pode falar em estados mais ou menos saudáveis ou patológicos do "Eu". O experimento que descrevemos tem também seu característico modus operandi. O procedimento em questão parte de uma suspeita e tem pronunciada semelhança com aquele de quem se coloca à espreita - "à caça" - de alguém que, por sua vez, está fazendo alguma coisa escusa; semelhança com a atitude de quem se obstina em apanhar alguém de surpresa, "no ato". Para ilustrar esse modo de proceder, Nietzsche recorre a um s4gestivo paralelo entre os personagens do viajante e do fi. lósofo com dotes de psicólogo nato. Traço comum aos dois personagens é que ambos simbolizam a errância, a transitividade, o estar sempre a caminho (Wanderung), a curiosidade, o périplo por novas e desconhecidas paragens. O viajante - aquele que 32
vaga pelos mais remotos pãradeiros. O filopsicólogo: aquele que transita pelos recônditos labirínticos da alma humana. Nessa alegoria, Nietzsche chama a atenção para a frequente experiência do viajante que, fatigado das andanças, porém obrigando-se a despertar em hora determinada, entrega-se confiantemente ao sono, pois está seguro de que algo o despertará no momento necessário. Analogamente, nós filósofos, fica:ndo doentes, nos sujentamos à doença de corpo e alma por algum tempo - como que fechamos os olhos para nós mesmos. E, tal como ele sabe que alguma coisa não dorme, que algo conta as horas e o despertará, também nós sabemos que o momento decisivo nos encontrará despertos (Nietzsche, 2001, p. 11). O paralelo entre o sono e a enfermidade permite desdobrar a analogia entre o viajante e o filósofo sob um ponto de vista que nos descortina um novo problema fundamental. O sono embota no viajante a vigilância da consciência (de seu "pequeno eu"); ele, porém, con:fia em que algo maior do que esse "eu" da consciência irá despertá-lo no momento certo. Temos aqui, portanto, uma alegoria do abandono ou defecção da consciência. Entregar-se à inconsciência, perder os sentidos são estados associados ao desfalecimento, a alhear-se de si , mergulhar no torpor, ou perder-se no delírio do sonho, enfim desligar-se do reaE, adoecer. Porém, o viajante sabe também que alguma coisa nele não dorme; que essa alguma coisa é suficientemente poderosa para, resgatando as horas, despertá-lo, mesmo sem consciência, no momento preciso. Se, para o viajante, o sono pode ser aproximado de processos doentios, para o filósofo, inversamente, é a doença que cçipstitui uma espécie de sono, de sedativo, ou dellrio entorpecente, que leva à perda temporária (quiçá permanente) de si, à alienação; e, nesse sentido, reencontram-se novamente as experiências dos dois andarilhos: adormecer significa perder força, lucidez, alienar-se. 33
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Porém, para o filósofo, cuja missão consiste precisa. mente em "permanecer desperto" 3, toda a forma de desgarra. mento é, em sentido enfático, doença. Nos termos do experimento que investigamos, isso implica que todas as vezes que o filósofo "adormece" e sonha, como ocorre quando se "sujeita de corpo e alma a algum tipo de doença", com isso ele se sujeita a "ser pego em flagrante", pois, no caso do filósofo, o torpor do sono, ou a ilusão onírica, denunciam uma condição doentia do espírito. Por isso, escreve Nietzsche, assim como o viajante, "também nós sabemos que o momento decisivo nos encontrará despertos que alguma coisa saltará e surpreenderá o espírito em flagrante" (Nietzsche, 2001, p. 11 ). A expressão empregada aqui (den Geist aufder Tat ertappt) tem o sentido policialesco de flagrar alguém em delito. No caso, o personagem flagrado é ninguém menos do que o espírito, e seu ato censurável consiste "em fraqueza, recuo, rendição, endurecimento, ensombrecimento ou como quer que se chamem os estados espirituais doentios que, em dias saudáveis, têm contra si o orgulho do espírito" (ibid., p. 11 ). Esse orgulho é, no filósofo, um modo de expressão daquela "coisa que nele não donne", a inquebrantável e sempre vibrátil consciência moral de sua 1nissão e vocação, que nele se transforma em carne e sangue, e que sempre de novo o chama à razão, despertando-o daqueles tempos sombrios de desfalecimento intelectual. É então que sua consciência moral o leva aos mais intensos momentos de questionamento de si, autoexame, experin1entação consigo mesmo, dissecação na própria carne, que não teme fazer dos abismos do sofrimento uma fonte inestimável de conhecimento. Nietzsche tematiza essa condição dranlática e sacrifical do conhecimento num precioso aforismo poético de Aurora:
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Precisamente essa imagem do estar desperto é empregada por Nietzsche, como tarefa do espírito filosófico, em várias ocasiões, entre elas no primeiro parágrafo do Prefácio de Para Além do Bem e do Mal. 34
Do Conhecimento do Sofredor- Não é sem valor para o conhc• cimento o estado de homens doentes, que sã.o longa e terrivelmente martirizad os por seus sofrimentos e cujo entendimento, apesar disso, não fica turvado por eles; - ainda desconsiderando completamente os beneficios intelectuais que trazem consigo toda profunda solidão, toda súbita e permitida liberdade em relação a todos os deveres e hábitos. A partir de seu estado, o sofredor grave olha para as coisas a distância (hinaus): todos aqueles pequenos e enganadores encantamentos em que nadam costumeiramente as coisas, quando o olho sadio as contempla, desaparecem para ele: sim, ele próprio se encontra diante de si sem plumagem e sem cor. Suposto que ele tenha vivido até então em alguma perigosa fantasmagoria, aquela extrema desilusão pelo sofrimento é o meio de retirá-lo dela: e talvez o único meio. (É possível que o fundador do Cristianismo tenha se confrontado com isso na cruz: pois as mais amargas de todas as palavras, "Meu Deus, por que me abandonastes", se entendidas em toda profundidade, como podem ser entendidas, contêm o testemunho de uma decepção e esclarecimento geral sobre a ilusão de sua vida; no momento da suprema aflição, ele se tomou clarividente sobre si mesmo, como o relata o poeta a respeito do pobre Don Quixote moribundo). A formidável tensão do intelecto, que quer fazer contraparte ao sofrimento, faz com que tudo o que ele olhe se ilumine com nova luz: e o inefável estímulo que todas as novas iluminações proporcionam é com frequência forte o bastante para sustentar resistência contra todas as tentações ao suicídio, e, para o sofredor, deixar o continuar vivendo aparecer como aquilo que é o supremamente desejável. Com desprezo, ele se recorda do tépido e confortável mundo de névoas, no qual transita despreocupadamente o homem sadio; com desprezo, recorda ele as mais nobres e amadas ilusões, em que antes brincava consigo mesmo; ele se deleita em conjurar esse desprezo desde a mais profunda caverna, e assim inflige à alma o mais amargo sofrimento: por meio desse contrapeso, ele suporta o sofrimento fisico e sente que justamente agora é necessário esse contrapeso! Com terrível clarividência sobre sua essência (Wesen), ele exclama: "Sê uma vez teu próprio acusador e carrasco: toma uma vez teu sofrimento como o teu castigo autoimposto. Goza tua superioridade como juiz; mais ainda: goza tua vontade discricionária, teu arbítrio tirânico. Eleva-te 35
Cigitslizado co TI Ca1r.Sca11ner
sobre tua vida, como sobre teu sofrimento, mergulha o olhar nos fundamentos e na ausência de fundamentos!". Nosso orgulho floresce como nunca: para ele, há um estímulo sem igual em defender justamente a vida contra tal tirano, como o é o sofri. mento; e contra as insinuações que ele nos faz para que depo. nhamos contra a vida. Nesse estado, defendemo-nos com amargura contra todo pessimismo, para que ele não nos apareça como consequência de noss•O estado, e nos humilhe como aos vencidos. Do mesmo modo, nunca é maior do que agora o estímulo para exercer a justiça do juízo, pois agora é um triunfo sobre nós e sobre o mais excitante de todos os estados que tomaria desculpável qualquer injustiça do juízo; - porém, não queremos ser desculpados, precisamente agora queremos mostrar que podemos ser "sem culpa". Achamos-nos em autênticos espasmos de soberba. - E então, vem o primeiro resplendor de aurora do abrandamento, da convalescença - e quase seu primeiro efeito é que nos defendemos contra a prepotência de nossa soberba: chamamos a nós mesmos de tolos e orgulhosos - como se tivéssemos vivenciado alguma coisa de único! Sem gratidão, humilhamos o onipotente orgulho, por meio do qual justamente suportamos o sofrimento, e energicamente exigimos um antídoto contra o orgulho: queremos nos despersonalizar e nos alienar de nós mesmos, depois que, violentamente e por tempo demasiado, o sofrimento nos tomou pessoais. "Fora com esse orgulho", exclamamos, "ele foi uma doença e um espasmo a mais". Miramos novamente os homens e a natureza com um olhar mais exigente: melancolicamente sorridentes, lembramo-nos que agora sabemos algo de novo sobre eles, sabemo-lo de maneira diversa de antes, que caiu um véu. - Recreamo-nos, porém, em olhar desse modo as luzes esmaecidas da vida, e nos retirarmos da terrível e sóbria claridade na qual, como sofredores, víamos as coisas e através das coisas. Não nos zangamos mais quando os encantamentos da saúde novamente começam a brincar - transformados, nós os contemplamos, brandamente e ainda cansados. Nesse estado, não se pode ouvir música sem chorar (Nietzsche, 1980, V. 2, p. f 04-5, t.m.).
São essas experiências que tornam o olhar mais aguçado, refinado, multifacetado e sutil, multiplicando os campos de vi36
são. Anos mais tarde, refletindo sobre os mesmos problemas em A Gaia Ciência - justamente um livro que reflete o convalescer da profunda enfermidade e abatimento que estiveram na origem das vivências de Aurora - , Nietzsche escreve: depois de tais experiências aprendemos a olhar mais sutilmente para todo o filosofar que houve até agora; adivinhamos melhor os involuntários desvios, vias paralelas, pontos de repouso, pontos solares do pensamento,
aos quais os pensadores que sofrem silo levados e aliciados justamente por sofrerem; sabemos agora para onde o corpo doente, inconscientemente, por sua necessidade, empurra, impele, atrai o espírito - para sol, sossego, brandura, paciência, remédio, bálsamo em todo e qualquer sentido (Nietzsche, 2001, p. 11 ).
Essa suspeita e esse diagnóstico são testemunham aquela terrível clarividência que o sofrimento proporciona ao doente grave, ao arrancá-lo impiedosamente de todos os encantamentos da ilusão. Assim, sempre que um filósofo é atraído pelo encantamento de fantasias ultramundanas, que uma representação quaEquer de Sabbat, como paraíso ou Nirvana, proporciona a ele um consolo metafisico e hipnótico; sempre que uma figura de suprema beatitude, santidade ou paz perpétua se impõe como ideal negativo de felicidade, um fisiopsicólogo, que passou pela experiência de uma doença grave, tem sua suspeita excitada: não teria sido aqui a doença a inspiradora do filósofo? Não seriam essas as tépidas paragens, amornadas pelo sol, para onde o corpo debilitado conduz um espírito que desfalece? Ou, mais radicalmente aind!a, não se trataria aqui, antes de tudo, de má filologia e deficitária arte de interpretação? Também de má fisiologia, entendida esta como a arte médica de decifração de sinais? Com efeito, para Nietzsche, todo grande sistema de metafisica dogmática, toda tentativa de encontrar um fundamento e significação ética para a existência - ainda que desde os primórdios tenham determinado os rumos da história cultural do 37
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Ocidente - podem ser vistos como o resultado de formidáveis e fecundos erros de interpretação; como má exegese, "disfarce de necessidades fisiológicas sob o manto da objetividade, da ideia,
da pura espiritualidade" (Nietzsche, 2001, p. 11 ); portanto, e fun-
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damentalmente, como má compreensão do corpo, de seus afetos ' dos seus estados. O que, porém, autoriza ao sr. Nietzsche tal diagnóstico? Já adivinhamos por quais ca1ninhos o psicólogo pode chegar a ele. A vivência que forneceu a base para tal sintomatologia dos sistemas metafísic,os foi o penoso aprendizado haurido naquele escrupuloso exame que, uma vez redespertos, fazemos de nossos mais doentios estados de derrelição (derelictio), de severa enfermidade, quando ansiamos por nos recolher, agradecidos, no porto oferecido pelos consolos metafísicos - que nos ajudam a esquecer a chaga dolorosa em que nos transformamos, e que por vezes, com nossas forças exauridas, tememos não poder mais suportar. A tal diagnóstico chega o sr. Nietzsche porque, como psicólogo e filósofo, sabe que há tantas filosofias num pensador quantos são, nos momentos decisivos de sua vida, os estados de ascensão e declínio que nele se alternam; ou melhor, sabe que um verdadeiro filósofo, como aquele cuja alma padece em dores de parto, sob a pressão dos mais dilacerantes estados antagônicos, tem necessariamente que percorrer o sendeiro de muitas filosofias, pois estas não são senão as modulações filosóficas desse sofrimento. Sabe que, como filósofo, "não pode senão transpor seu estado, a cada vez, para a mais espiritual forma e distância" (ibid., p. 12), pois isso, justamente, é a filosofia - "arte da transfiguração". O Sofrimento como Tragédia do Conhecimento
Percebemos, pois, que um certo tipo de doentes graves conserva ainda uma reserva de potência, que se manifesta como gratidão até mesmo para com os períodos de mais severa enfer38
midade. Inclusive estados como esses poderiam trazer, para tais enfennos, um contributo, uma atração a mais para a vida e uma isca para o conhecimento. Sabemos o quanto Nietzsche meditou, desde os tempos de sua juventude, sobre os versos de Byron, o quanto ele próprio vivenciou, em profundidade, o destino trágico do conhecimento, cantado pelo poeta: "Sofrimento é conhecimento. Aqueles que mais sabem devem prantear mais profundamente a verdade fatal: a árvore do conhecimento não é a da vida"4 (Byron apudNietzsche, 2000, p. 86). Justamente por causa dessa tragédia, proíbe-se o filósofo toda espécie de pusilanimidade ou fuga romântica diante do sofrimento. É antes preferível a leviandade ou a melancolia à denegação. Buscar refúgio, por exemplo, na consolação cristã seria inaceitável para tais espíritos, [...] pois no presente estado do conhecimento já não é possível nos relacionarmos com ele [o Cristianismo, OGJ.] sem manchar irremediavelmente nossa consciência intelectual e abandoná-la diante de nós mesmos e dos outros. Essas dores podem ser bastante penosas: mas sem dores não é possível tomar-se guia e educador da humanidade; e coitado daquele que quisesse sê-lo e não mais tivesse essa pura consciência! (Nietzsche, 2000, p. 86).
Para o homem do conhecimento, a probidade intelectual tem que transfigurar em conceitos também a dor, também a doença, pois, nos termos de Nietzsche, nós filósofos [ ...] temos que parir nossos pensamentos em meio a nossa dor, dando-lhes maternalmente todo sangue, coração, fogo, prazer, paixão, tormento, consciência, destino e fatalidade que há em nós. Viver - isto significa, para nós, transfonnar continuamente em luz e flama tudo o que somos, e também tudo o que nos atinge; não podemos agir de outro modo (ibid., p. 13).
• Versos de Byron retirados por Nietzsche do Ato 1, Cena I do Manfred. 39
Assim somos nós, aqui chegamos e estamos; não pode. mos, pois, agir de outra maneira. Essa é a profissão de fé na virtude da honestidade intelectual, transmudada em corpo e espírito. "Aqui me posto Eu. Não posso ser de outra maneira". Alusão elíptica ao testemunho de Lutero - esse outro mãrtir da consciência moral, antagonista a quem Nietzsche se aferrou a vida inteira, com a enérgica repulsa que brota da atração poderosa. A expressão de que Nietzsche se vale aqui retoma e parodia aquela atribuída a Lutero, quando, confrontado com a decisão extrema sobre a abjuração, teria respondido exatamente o mesmo. Portanto, para uma certa classe de filósofos, nem a doença, nem o sofrimento podem ser vividos com amargura, suprimidos como meras figuras do negativo, a cuja existência haveria que se negar qualquer valor. Ao contrário, escreve Nietzsche, "não gostaria de despedir-me daquele tempo de severa enfennidade, cujo beneficio ainda hoje não se esgotou para mim: assim como estou plenamente cônscio das vantagens que a minha instável saúde me dá, em relação a todos os robustos do espírito" (Nietzsche, 200 l, p. 12). Existem, portanto, doenças e doentes, assim como regimes distintos de saúde e doença. Somente depois de firmam,os tal entendimento, estaríamos autorizados a nos perguntar a respeito das condições ligadas à saúde e à enfennidade de uma pessoa, de seu corpo e de sua alma, para descobrir a virtude que, em cada caso, seria apropriada a essa condição. Aqui se toma necessário, antes de tudo, separar cuidadosamente e distinguir com apurado senso clínico: Pois não existe uma saúde em si, e todas as tentativas de definir tal coisa fracassaram miseravelmente. Depende do seu objetivo, do seu horizonte, de suas forças, de seus impulsos, seus erros e, sobretudo, dos ideais e fantasias de sua alma, determinar o que deve significar saúde também para seu corpo. Assim, há inú· meras saúdes do corpo. E quanto mais deixannos que o indivíduo particular e incomparável erga a sua cabeça [...) tanto mais nossos médicos terão que abandonar o conceito de uma saúde normal,juntamente com dieta nonnal e curso normal da doença (Nietzsche, 2001, p. 144). 40
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Virtude e força, para uma determinada pessoa, poderia significar o contrário disso, no caso de uma outra. Para o psicólogo Nietzsche, em proveito do conhecimento, não se pode deixar de considerar que determinados doentes são capazes de discernir uma certa vantagem especial inclusive na enfermidade. Vantagem da doença - Aquele que frequentemente está doente não tem apenas um contentamento muito maior em estar são, por causa de seu frequente tornar-se saudável, senão que tem também um senso supremamente aguçado para o saudável e o doentio em obras e ações, próprias e alheias: de tal maneira que, por exemplo, precisamente os escritores doentios - e, entre eles, infelizmente estão quase todos os grandes - costumam ter, em seus escritos, um tom de saúde mais seguro e simétrico, porque eles, mais do que os corporalmente robustos, entendem melhor de filosofia da saúde e da convalescença anímica e daquilo que são os seus mestres: meio-dia, brilho de sol, floresta e fonte de água (Nietzsche, 1980, v. 2, p. 522, t.m.). Esta constitui, pois, uma das principais vantagens que, para certos doentes, proporciona a enfermidade assumida e vivida integralmente: a doença nos toma suscetíveis, aguçados para discernir o saudável e o patológico em nós mesmos, assim como nos outros. Ela nos instrui e prepara, tanto para o desfalecimento quanto para o retorno a si. Ela nos torna inteligentes, ou seja, suspeitosos e malvados; o que não é o caso dos robustos do espírito. "ln summa: os doentes e fracos têm mais comiseração (Mitgefiih[), são mais 'humanos'. Os doentes têm mais espírito, são mais cambiantes, múltiplos, interessantes - são mais malvados: foram os doentes que inventaram a maldade" (Nietzsche, 1980, v. 12, p. 365, t.m.). Porque a suspeita deles não cala fundo, porque não são suficientemente malvados, os robustos de espírito são maus filósofos· satisfeitos e acomodados, eles jamais são impelidos, com ' pressão exercida pela doença sobre o pensamento, en1 direção a wna nova condição. Por causa disso, um verdadeiro filósofo, 41
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enquanto um homem do conhecimento, não pode deixar de suspeitar precisamente da robustez do espírito. Como? Não seria ela uma forma de estupidez autocomplacente, de abrandamento da potência critica, enfim, de gorda mediocridade?
Um filósofo digno desse nome não deixa de suspeitar de que a dor e os estados doentios que a condicionam sejam indispensáveis para ele, pois elas mantêm aberto um fértil campo de questões: Enfim, permanecerá aberta a grande questão de saber se podemos prescindir da doença, até para o desenvolvimento de nossa virtude, e se a nossa avidez de conhecimento e autoconhecimento não necessitaria tanto da alma doente quanto da sadia; em suma, se a exclusiva vontade de saúde não seria um preconceito, uma covardia e talvez um quê de refinado barbarismo e retrocesso (Nietzsche, 2001, p. 144). Não seria a grande dor, o "mestre da grande suspeita", e, enquanto tal, "o extremo libertador do espírito?" (Nietzsche, 2001, p. 13). Para Nietzsche, não há dúvida. A severa enfermidade, trazendo consigo a grande dor, pode dar ocasião a uma restauradora perspectiva de libertação e, por isso, para um certo tipo de vida filosófica, se transforma em um precioso anzol do conhecimento, em um atrativo a mais para continuar a viver e a pensar, para percorrer o caminho da convalescença, conduzindo a uma nova e grande saúde. Apenas a grande dor, a lenta e prolongada dor, aquela que não passa, na qual somos queimados com madeira verde, por assim dizer, obriga a nós filósofos, a alcançar nossa profundidade extrema e nos desvencilhar de toda confiança, de toda benevolência, tudo o que encobre, que é brando, mediano, tudo em que antes púnhamos talvez nossa humanidade (Nietzsche, 2001, p. 13). A grande doença, portanto, amplia o espectro de visão,
dela retornamos como que renascidos, a modo da Fênix ressur42
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O corpo: a grande razão
CELSO CÂNDIDO OI! AZAMBUJA
O corpo sou eu inteiramente, e nada mais; e a alma não é senão uma palavra para qualquer coisa do corpo. O corpo é uma razão grande ...
Instrumento de teu corpo é também tua razão pequena, meu imu1o, que 111 chamas "espírito", um instrumentozinho e joguete de tua razão grande. (Nietzsche, em Assim/alou Zaratustra)
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O que quere1nos quando nos dispomos a estudar a filosofia de Nietzsche e suas ideias? Qual é o sentido da interpretação de
sua obra? Diante de que problemas e de que desafios Nietzsche e sua filosofia nos colocam hoje? Fazer um trabalho sobre Nietzsche para obter titulação e avançar em uma carre,ira acadêmica? Conhecer, comentar a obra de Nietzsche no interior da história da filosofia? Fazer filosofia com e a partir de - ou contra - seus conceitos? Navegar na potência de vida de seus escritos aforismáticos? Tudo isso sim, mas também certamente mais. Pois prin-
cipalmente penso que um dos aspectos que chama mais a atenção daqueles que apreciam e desejam compreender a filosofia níetzscbíana é o modo como ela problematiza a questão da subjetividade. Em sua obra Ecce Homo, é Nietzsche ele imesmo quem diz ter sido o primeiro psicólogo da história por ter realmente colocado a questão do individuo como problema filosófico. Ao mesmo tempo, no núcleo de suas considerações, o "problema moral"
aparece como questão individual fundamental. No centro do pensamento nietzschiano encontra-se, pois, colocado de modo primordial, o problema da subjetividade o 111
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qual se transforma em uma crítica geral e total da modernidade e seus valores, suas instituições, sua ciência e política. Trata-se de operar uma monumental "transvaloração de todos os valores", uma verdadeira revolução moral e cultural de longo alcance que pretende atingir as bases morais e culturais da civilização socrático-ocidental e moderna. No centro dessa operação Nietzsche colocará em questão o valor do corpo e fará uma das mais intempestivas criticas à razão e ao modo como as tradições, ascética e iluminista, trataram o corpo. Tal será o assunto deste pequeno trabalho. 2
A razão, a razão grande, é para quase toda a tradição filosó. fica ocidental o elemento distintivo e um princípio de fundamentação moral próprio ao humano. A alma, o espírito, a consciência devem ser instâncias soberanas quando se trata de determinar o valor das e as ações dos indivíduos no mundo. Seja a psiche platônica, o nous aristotélico, o cogito cartesiano, ou então o kategorische Imperatív kantiano, tratou-se sempre de se colocar na perspectiva da primazia da razão e da alma relativamente ao corpo e aos instintos. A razão é grande e suficiente para determinar o certo e o errado, o justo e o injusto, o verdadeiro e o falso, o bem e o mal. Em oposição a essa tradição, Nietzsche proporá uma transvaloração segundo a qual o corpo e os instintos aparecerão como valores mais importantes e primeiros relativamente à razão e ao espírito. A tradição filosófica ocidental, segundo Nietzsche, pretende negar: [...) todos os que creem nos sentidos, todo o resto da humanidade: tudo isso é "povo". Ser filósofo, ser múmia, representar o monótono-teísmo com uma mímica de coveiro! - E, sobretudo, elimine-se o corpo, essa lamentável idéefixe dos sentidos! (Nietzsche, 1985a, p. 36) 112
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Essa história de negação dos sentidos começa com Sócrates. Ele foi, de acordo com Nietzsche, a grande cura para a dissolução dos instintos experimentados pelos gregos em Atenas, no período de decadência do império, após a derrota na guerra do Peloponeso. 1 Sócrates opôs aos instintos dispersos a razão e situou a virtude nos marcos da razão. Para Nietzsche, a fórmula socrática: "razão = virtude = felicidade" é a "equação mais extravagante que existe, e que tem contra si, em especial, todos os instintos do heleno antigo" (Nietzsche, 1985a, p. 28). Por isso, segundo o autor de Zaratustra, Sócrates deveria ser considerado o primeiro grande decadente do ocidente. Dessa maneira, por exemplo, Platão (1960), em seu Fédon, define claramente a superioridade da alma relativamente ao corpo o qual era considerado o responsável pela cobiça e, assim, de todos os males humanos. Enquanto a alma é a fonte e a expressão da própria pureza, o corpo é vício. Para Aristóteles (1973), também, a virtude racional é a virtude superior e distintiva do humano relativamente aos outros animais. Santo Agostinho (1990), ainda, considerará evidente a superioridade da alma diante do corpo.2 O imperativo categórico kantiano, por sua vez, propõe ao indivíduo uma ação pura1nente racional, ou melhor, postula a sua possibilidade, na medida em que existe o "fato da razão". Kant (J 984) acredita em uma pureza a priori da razão a qual deveria estar necessariamente descontaminada de corpo: humores, desejos, fantasias e necessidades materiais.
Ver TUCIDIDES. História da Guerra do Peloponeso. Brasilia: Editora Universidade de Brasília, 1987. 2 "O animante, isto é, o animal, consta de alma e de corpo. De ambos os elementos, a alma é por certo melhor que o corpo e, embora viciosa e fraca, é melhor que o corpo mais robusto e sadio, por ser de natureza mais excelente e não pospor-se ao corpo por causa da mácula dos vícios, assim como o ouro, apesar de impuro, é mais caro que a prata e preferivel ao chumbo, embora purlssimo" (Santo Agostinho, 1990, p. 350). 1
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Nesse horizonte de sentido, é a razão que se determina a si mesma um lugar próprio puro3, o melhor e mais perfeito lugar ela diz dela mesma. Essa teria sido sempre a crença da tradição socrático-ocidental na razão: a razão seria algo de divino. E tanto na Índia como na Grécia se cometeu o mesmo erro: "nós temos de haver habitado já alguma vez um mundo superior (em vez de wn mundo muito inferior: o que teria sido a verdade!), nós temos de haver sido divinos, porque possuímos a razão!" (Nietzsche, 1985a, p. 40). Consoante a perspectiva de Nietzsche, ao contrário, o ser humano não é essencialmente racional; tampouco ele considera que a razão distingue o humano acima dos outros animais ou que ela é divina, boa e pura em si mesma. Assim, Nietzsche manifesta explicitamente sua simpatia filosófica a pensadores como Tucídides e Maquiavel4, situando-os em uma outra tradição: A minha recriaça:o, a minha predilei,:ãu, a minha cura de todo o platonismo foi sempre Tucídides. Tucídides e, talvez, o Príncipe de ' Cf. MACHADO, R. Nietzsche e a Verdade. Rio de Janeiro: Rocco, 1984. ' T.mbém eslá em questão aqui uma certa ideia do humano, um certo jul20 de valor acerca do humano. Maquiavel pretendia que o Príncipe devesse saber "bem empregar o animal" que existe nos humanos. "É preciso, portanto, -diz Maquiavel -ser raposa para conhecer os laços e leão para atetTorizar os lobos. [...] um senhor prudente não pode nem deve guardar sua palavra, quando isso seja prejudicial aos seus interesses e quando desapareceram as causas que o levaram a empenhá-la. Se todos os homens fossem bons, este preceito seria mau; mas, porque são maus e não observariam a sua fé a teu respeito, não há razão para que a cumpras com eles" (Maquiavel, 1983). Em Tucídides é célebre o diálogo dramático entre os atenienses e os mélios, no qual a argumentação dos deputados atenienses era apenas um instmmento da vontade do mais forte para impor o seu domlnio. Também célebre é a Oração Fúnebre de Péricles, elogiada por Nietzsche; nesta oração Péricles relembra aos seus concidadãos a glória imorredoura do império ateniense o qual se construiu não sem sangue e guerras terríveis: "... em toda terra e em todo mar a nossa audácia abriu caminho, erguendo para si monumentos imperecíveis, no bem e no mal" (apudNietzsche, 1988, p. 39). 114
Maquiavel são-me os mais afins pela detenninação incondicional de não se deixar iludir em nada e de ver a raz.ão na realidade, - não na "razão", e menos ainda na "moral" [...] (Nietzsche, 1985a, p. 138). Desse modo, de acordo com Nietzsche, deveríamos considerar na hierarquia dos valores, os sentidos, os instintos e as necessidades propriamente humanas como mais importantes que a razão, na vida de um indivíduo. 4
É nesse horizonte que Nietzsche desenvolverá as noções fundamentais de vida ascendente em oposição à vida decadente. A moral da vida ascendente deve afumar as paixões, a vontade de poder, a sensualidade como valores fundamentais; enquanto a moral da decadência vai renegá-las a um plano dito inferior na natureza humana. Para o filósofo do martelo,"[...] todos os velhos monstros da moral coincidem unanimemente em que i/ faut tuer les passions [é preciso matar as paixões]" (Nietzsche, 1985a, p. 45). Por sua vez, os inimigos da sensualidade não deveriam ser cons.iderados como pessoas mentalmente perturbadas? De acordo com o filósofo, "A inimizade radical, o ódio mortal contra a sens1Ualidade não deixa de ser um. sintoma que induz a refletir: ele autoriza a fazer conjecturas sobre a saúde mental de quem comete tais excessos" (Nietzsche, 1985a, p. 47). Em Nietzsche, os instintos são eles mesmos identificados com a vidã ascendente, alegre, afirmativa. Para os "caluniadores da vida", os instintos devem ser combatidos e a sensualidade tornada pecado. "Ter que combater os instintos - esta a fórmula da décadence: enquanto a vida ascende felicidade é igual a instinto" (Nietzsche, 1985a, p. 33). A moral sadia ascendente será, então, associada com os instintos da vida; ela será necessariamente afirmadora dos instintos.
Todo naturalismo em moral, quero dizer, toda a moral sã está regida por um instinto da vida [...]. A moral contranatural, ou 115
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