A filosofia da educação
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O livie r Rebou

A FILOSOFIA DA

EDUCAÇÃO

N O V A B I B L I O T E C A 70

I edições 70

II

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A cultura como sistema aberto, como acto e drama que se expressa no conceito - na palavra ou imagem eis o horizonte desta colecção, que englobará as ciências humanas e sociais, a análise e a interpretação do quotidiano no mundo actual.

NOVA B IB L IO T E C A 70

1. 0 MISTÉRIO DA SAÚDE, de Hans-Georg Gadamer 2. AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS DESDE 1945, de Maurice Vaisse 3. ACTOS DE SIGNIFICADO, de Jerome Bniner 4. CONCEITOS SOCIOLÓGICOS FUNDAMENTAIS, de Max Weber 5. AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS DE 1918 A 1939, de Pierre Milza 6. TEMPOS CATIVOS: AS CRIANÇAS TV, de Liliane Lurçat 7. HERANÇA E FUTURO DA EUROPA, de Hans-Georg Gadamer 8. INTRODUÇÃO À PSICOLOGIA SOCIAL MODERNA, de Giovanni Gocci, Laura Occhini 9. 0 PROCESSO DA EDUCAÇÃO, de Jerome Bniner 10. QUESTÕES DE RETÓRICA: LINGUAGEM, RAZÃO E SEDUÇÃO, de Michel Meyer 11. O PARADOXISTA INDIFERENTE, de Jean Baudrillard 12. O MÉDICO NA ERA DA TÉCNICA, de Karl Jaspers 13. A EVOLUÇÃO PSICOLÓGICA DA CRIANÇA, de Henri Wallon 14. REVOLUÇÃO INDUSTRIAL E CRESCIMENTO ECONÔMICO NO SÉC. XIX, de Chantai Beauchamp 15. AS RELAÇÕES INTERNACIONAIS DE 1871 A 1914, de Pierce Milza 16. INTRODUÇÃO À SOCIOLOGIA, de Norbert Elias 17. O NASCIMENTO DO TEMPO, de Ilya Prigogine 18. A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO, de Olivier Reboul

A FILOSOFIA DA

EDUCAÇÃO

Título original:

La Philosophie de l ’Éducation (Col. «Que sais-je?») © Presses Universitaires de France Tradução: I o, 2° e parte do 3o capítulos: Antônio Rocha, com revisão de A. M orão; parte do 3° e 4°, 5°, 6o, 7o capítulos e conclusão: A rtur M orão C apa de Edições 70 D epósito Legal n.° 154077/00 ISBN 972-44-1021-8 Direitos reservados para todos os países de língua portuguesa por Edições 70 - Lisboa - Portugal EDIÇÕES 70, LDA. R ua Luciano Cordeiro, 123 - 2 ° Esq.° - 1069-157 LISBOA / Portugal Telefs.: 21 319 02 40 Fax: 21 319 02 49 Esta obra está protegida pela lei. Não pode ser reproduzida no todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado, incluindo fotocópia e xerocópia, sem prévia autorização do Editor. Q ualquer transgressão à lei dos Direitos do A utor será passível de procedim ento judicial.

Olivier Reboul

A FILOSOFIA DA

EDUCAÇÃO

In

y Iedições 70

1 INTRODUÇÃO À FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

A filosofia começa onde as coisas já não são claras, onde o que para todos era evidente deixa de o ser. A filosofia começa com a ironia socrática. A filosofia da educação será, pois, antes de mais, uma interrogação; não um corpo de saberes, mas o pôr em causa tudo o que sabemos ou julgamos saber sobre a educação. Como se caracteriza tal questionar? Em primeiro lugar, é total O filósofo não é, decerto, um topa-a-tudo. Mas pode filosofar-se sobre tudo: sobre Deus, sobre o civismo, sobre a arte, sobre as ciências, sobre a linguagem... Em rigor, nenhum domínio escapa à interrogação filosófica. E é isso que legitima a filosofia da educação. Tanto mais que a educação é o facto humano por excelência. O homem, dizia Kant, é o que é unicamente pela educação. Depois, é radical, no sentido de que vai até ao fundo das coisas. Assim, cada um interroga-se: «Que horas são?» E a filosofia questiona: «Que é o tempo?». O mesmo acontece quando se trata da educação. A filosofia não se interroga sobre como curar a dislexia, mas sobre o valor ou o sentido que implica o facto de saber 1er. Não procura construir um programa escolar, mas interroga-se sobre o que vale a pena ser ensinado e porquê. Não busca os meios mais seguros e mais eficazes, interroga-se sobre quais são os fins da educação. É por isso, por fim, que o questionamento filosófico é vital, no sentido de que aquilo que o suscita não é um interesse puramente especulativo. Quando se pergunta :«Que é o tempo?», tal questão concerne não só ao tempo mas também a nós, à nossa angústia e à nossa alegria, à nossa vida e à nossa morte. Amor da sabedoria, a filosofia é a procura não apenas de um saber, mas de um saber-ser pelo saber. Objectar-se-nos-á que esta procura é bastante descurada pelos filósofos actuais. Talvez, mas quando se trata de filosofar sobre a educação, não se pode deixar de a fazer. 9

A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

Esta procura foi a dos pensadores gregos. Sócrates, no Protágoras, pergunta ao sofista que se vangloriava de introduzir um ensino excepcional: «Que lucro se pode tirar das tuas lições?». Responde Protágoras: «Voltarás a casa melhor...» (318a). Belo programa, mesmo se não foi realizado! Em todo o caso, os Gregos conceberam sempre como inseparáveis estas duas grandes realidades humanas, a philosophia e a paideia. Mas noutras culturas, muito mais arcaicas, também se inquiriu o sentido da educação, também se fez filosofia. Testemunha-o esta passagem comovedora da Bíblia: « Q u a n d o , a m a n h ã , o te u f ilh o te p e rg u n ta r: “ Q u e re g ra s, le is e p re c e ito s sã o e s te s q u e o S e n h o r, v o s s o D e u s , v o s im p ô s ? ” - d irá s, e n tã o , a o teu filh o ...»

Quando, amanhã: chega sempre um momento em que a criança interroga os pais, em que o aluno critica os professores, em que uma geração inteira põe em causa a que a precede. Esse momento, quer queiramos ou não, é o da filosofia, aquele em que, encostados à parede, como Edipo diante da Esfinge, nos é forçoso responder ou morrer. Dirás a teu filho: a resposta da Bíblia pode parecer inactual; o que permanece actual é que ela não é tendenciosa, não tenta justificar as inumeráveis prescrições da Lei judaica por um apelo à autoridade, à utilidade ou aos bons sentimentos, vai directa ao essencial e incita a criança que questiona a apropriar-se, a passar do vosso ao nosso: «... p a r a q u e te m ê s s e m o s o S e n h o r n o ss o D e u s , a fim d e s e rm o s ete rn a m e n te

fe liz e s , p a r a n o s c o n s e rv a r a v id a » (D e u te ro n ó m io , V I, 2 0 ).

Subsiste uma questão: quem pratica hoje a filosofia da educação? Será ela reservada a um corpo de especialistas? Num sentido, cada um pratica-a no momento em que se interroga sobre os fins da educação. Um educador filosofa a partir do momento em que reflecte sobre o sentido da sua tarefa e se interroga porquê, ou melhor, para quê faz o que faz. Que pode, então, trazer de útil a filosofia dos «especialistas»? Uma só coisa, mas verdadeiramente essencial: o método. Que método? A realidade, neste caso a história da filosofia, obriga-nos a dizer que não há apenas um. Cada filósofo criou o método que lhe convinha, ou pelo menos modificou em proveito próprio o dos seus predecessores - o que mostra que a escolha de um método filosófico é uma escolha filosófica. Vamos, pois, expor cinco, sabendo que há muitos outros; estes são, pelo menos, os que utilizaremos neste livro. 10

INTRODUÇÃO

I. - A história da filosofia Observemos que, em face das ciências do homem, o filósofo está sigularmente desarmado, visto que não dispõe de estatísticas, de documentos, de inquéritos, de experimentação, em suma, não dispõe de nada exterior em que se possa apoiar. Não é o filósofo aquele que pensa sem rede? E, todavia, a filosofia dispõe de uma base sólida: a sua própria história. Esta é indispensável. Só se pode «fazer filosofia» ingressando na sua história, descobrindo que os nossos problemas foram já ventilados, que encontraram decerto soluções mais ou menos válidas, mas que, pelo menos, fornecem uma estrutura aos nossos debates. A história revela, sobretudo, a cada um o que pensa de maneira confusa e, por vezes, contraditória. Permite, assim, levantar os problemas, reconduzir as questões mais concretas, que são sempre as mais obscuras, a uma reflexão plurissecular que as situa e esclarece. Pensemos nas controvérsias sobre a não-directividade ou ainda sobre os «reforços positivos» (recompensas): podem verdadeiramente resolver-se sem se referir a problemas metafísicos, como valor e realidade, necessidade e liberdade? É inútil precisar que os grandes filósofos do passado abordaram o problema da educação. Platão, Aristóteles, os estóicos, Agostinho, Tomás de Aquino, Erasmo, Hobbes, Locke, Hume, Helvétius, Rousseau, Kant, Fichte, Hegel, Nietzsche... fizeram da educação um tema central do seu pensamento. O próprio Descartes, pouco preocupado com o ensinar, não abriu o seu Discurso com uma impugnação radical da educação que recebera? Em suma, a história da filosofia seria para o filósofo o que as Escrituras são para o teólogo, o fundamento sobre o qual pensa; e a filosofia, na verdade, é também uma tradição. Mas salta à vista o que a distingue da tradição religiosa. Enquanto o teólogo recebe as Escrituras como uma verdade que deve interpretar, o que o filósofo espera dos mestres do passado é uma lição que ele, sem dúvida, deve começar por compreender, mas que depois tem de retom ar discutindo-a, confrontando-a com outras para, finalmente, a aplicar aos problemas do seu tempo. Encontraremos um bom exemplo deste método em Alain, que se serve de Platão, de Descartes, de Hegel e, sobretudo, de Comte e de Espinosa para abordar os problemas mais actuais do ensino e da educação. Para filosofar é preciso pois ir à escola dos filósofos, recordando, todavia, que uma escola é um lugar de onde se deve sair, uma instituição cujo fim verdadeiro não é apenas aprender tal ou tal verdade, mas aprender 11

A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

a pensar. «Não se aprende a filosofia» unicamente a filosofar.»

dizia Kant - «aprende-se

II. - A reflexão sobre as ciências Hoje, existem ciências da educação. O filósofo da educação já não pode ignorá-las, como o filósofo da linguagem não pode ignorar a lingüística. O seu propósito é reflectir sobre os enunciados dessas ciências, interrogar-se sobre o seu valor, o seu sentido, os seus limites. E aí está o que constitui o nosso segundo método. Uma primeira observação: há ciências da educação, e este plural é irredutível. Com efeito, estas ciências são duplamente plurais, pois se agrupam em duas espécies bem distintas. Em primeiro lugar, há as ciências teóricas aplicadas à educação. F ala-se assim de um a etnologia, de um a sociologia, de uma sociolinguística, de uma economia, de uma história... da educação. O menos que se lhes pode pedir é que respeitem duas condições. Primeiro, que aqueles que as praticam sejam realmente especialistas nas suas respectivas ciências, realmente historiadores, realmente economistas. Depois, que todos se obriguem a uma efectiva interdisciplinaridade, isto é, que cooperem correndo o risco de ter de modificar o seu ponto de vista. Por exemplo, sobre um problema como o insucesso escolar, se cada um permanece fechado na sua disciplina, será tentado a explicá-lo unicamente por esta; e então, da sociologia, cair-se-á no sociologismo, da psicologia no psicologismo, em suma, num dogmatismo redutor. Ora há ciências específicas, que brotaram de problemas postos pela própria educação: como melhorar tal ensino, como avaliar, como facilitar as relações professor-alunos, como obter melhores movimentos no desporto? Foi assim que surgiram as didácticas, a docimologia, a psicopedagogia, as ciências das actividades físicas, etc. Sem dúvida, não se pode exigir às ciências da educação o rigor e a objectividade das ciências exactas. Aliás, elas só podem denominar-se «ciências» sob duas condições; em primeiro lugar, devem explicar, ou pelo menos interpretar os factos educativos; depois, têm de verificar, ou pelo menos argumentar em prol das suas hipóteses explicativas. Porquê? Tomemos um exemplo, um problema que aparentemente é o apanágio das ciências humanas: que é ser adulto? A biologia estabelece as normas da maturidade orgânica, que variam, aliás, de um orgão para outro, mas ignora a maturidade psíquica, que constitui menos uma idade do que um estádio, estádio que certos homens jamais atingem, e que 12

INTRODUÇÃO

talvez ninguém de todo atinja. É preciso então virar-se para a psicologia do desenvolvimento. E a obra de Piaget procura efectivamente critérios que permitam avaliar a maturidade psíquica: as operações formais, o equilíbrio, a descentração, a reversibilidade, a reciprocidade. Só que estes critérios definem não um estádio real e observável, como aqueles que precedem e preparam a maturidade, mas um ideal que poucos seres humanos realmente atingem. Será a psicanálise mais objectiva? Freud denuncia constantemente o «infantilismo» das neuroses e das perversões, define a cura analítica como «uma educação progressiva para superar em cada um de nós os resíduos da infância». Mas os seus critérios de maturidade - a sexualidade «génital», o primado do princípio da realidade sobre o do prazer, a passagem do Id ao ego - estão longe de ser indiscutíveis e, sobretudo, parecem constituir um ideal inacessível à maior parte. Este fracasso das ciências da educação explica-se, a nosso ver, por duas razões. Primeiro, estas ciências são múltiplas, logo, parciais, enquanto a maturidade é um facto global que diz respeito a toda a pessoa. Em segundo lugar, querem-se objectivas, enquanto a maturidade assenta num juízo de valor. O fracasso é pois normal; de nenhum modo prova que as ciências da educação sejam inúteis, e também não significa que o problema da maturidade seja insolúvel. Quer apenas dizer que a solução não pode ser puramente científica. III. - A análise lógica Todo o educador pode, de facto, ver-se obrigado a resolver questões deste gênero. Que se quer dizer quando se afirma que um sujeito não é «maduro» para tal formação ou tal emprego? Ora, esta questão: «Que se quer dizer...?», é por excelência a da análise lógica, método muito considerado pelos Anglo-saxónicos, que consiste em interrogar-se sobre a linguagem corrente para daí extrair uma norma. Exemplifiquemos. Que se quer dizer quando se fala de «ensinar»? Israel Scheffler (1950, cap. V) começa por confrontar este verbo com os seus sinônimos aparentes: ensinar, quer dizer, mostrar, fazer saber, ou formar, etc.? De seguida, esclarece que há três significações próprias a partir das suas três construções: teaching that, ensinar que, teaching how to, ensinar a (fazer), teaching to, ensinar porquê. Vejamos, por exemplo, estes dois enunciados que correspondem a «ensinar que»: 1) Pedro aprendeu que Colombo descobriu a América em 1492; 2) Pedro aprendeu que é preciso ser honesto; 1) tem apenas um sentido, enquanto 13

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2) é ambíguo, pois pretende dizer que Pedro se tomou honesto, e que ele sabe que é preciso sê-lo sempre que o não é. Assim, na educação moral, mas também na educação física e mesmo intelectual, prefere-se o «ensinar a», o ensino que forma àquele que informa; 3) Pedro aprendeu a ser honesto; logo, é-o. Só que, atendendo a 3), pode sê-lo sem saber porquê; por hábito cego ou por temor. O mesmo acontece, evidentemente, noutros domínios. Pode muito bem saber-se - saber de cor, mas também saber falar um língua, calcular, etc. - sem compreender o que se faz. Na verdade, «ensinar a» é uma formação; mas uma formação que fosse conseguida só com certezas e apressadamente seria ainda uma educação? É por isso que é preciso levar a sério o terceiro sentido, «ensinar porquê»: um ensino que forma fazendo compreender, e que se pode ilustrar em 4) - Pedro compreendeu que é preciso ser honesto. Esta análise, que afrontosamente simplicámos, faz lembrar o método de Sócrates. Com efeito, a análise lógica tem sobretudo o mérito de pôr em evidência a ambigüidade de certas fórmulas, que são, como que por acaso, as mais correntes. «A motivação»: consiste em motivar os alunos ou em esperar que eles estejam já motivados? «A socialização»: será integrar a criança na sociedade, mas em que sociedade? «Democratizar o ensino» : trata-se de o tomar mais liberal, deixando os alunos participar na sua gestão, ou mais igualitário, dando a todos as mesmas oportunidades de sucesso, ou ainda desigual, dando mais oportunidades àqueles que estão, à partida, desfavorecidos. Além disso, a análise lógica não fomece nenhuma síntese. Se se vangloria, e como justa razão, de dissolver as falsas questões (depararemos com muitas neste livro), deixa-nos no limiar das verdadeiras. Ao recusar todo o juízo de valor, «deixa as coisas onde estão», como da filosofia dizia Wittgenstein; contenta-se com tomá-las mais claras.

IV. - O argumento a contrario Por sorte, é possível com pletar a análise lógica com o que chamaremos o argumento a contrario. Consiste em fundamentar os valores partindo daquilo que, segundo o consenso geral, não se pode querer, do que ninguém pode reivindicar como um fim educativo. Este método, de inspiração platônica, revela-se muito eficaz quando se trata de definir os valores. Se se perguntar a alguém o que é a justiça, terá, sem dúvida, muitas dificuldades em responder. Mas se se lhe perguntar o que é a injustiça, já saberá; porque todos nós encontramos a injustiça sempre e em toda a parte. 14

INTRODUÇÃO

Ora, como poderia dizer-se «É injusto», se não se tivesse já uma ideia do justo, um saber ao menos implícito da justiça? Do mesmo modo, é singularmente difícil definir o que é, ou poderia ser, um ensino verdadeiro; em contrapartida, cada um de nós sabe muito bem o que é o treino, o condicionamento, a propaganda, e ninguém ousa reduzir a isso o ensino. E a partir desta recusa que se pode determinar a sua essência. Do mesmo modo, ninguém reduzirá a formação à informação, e ainda menos a uma deformação. Então, se a educação não é isto, o que é? O fazer desmente, sem dúvida, o dizer; por exemplo, vê-se com frequência o humanismo eufórico do discurso oficial dissimular uma realidade totalmente contrária. Mas, se esta realidade é inegável, o próprio facto que a denuncia é testemunha dos valores que ela contradiz. Qualificar a escola actual de antidemocrática é admitir a contrario o valor indiscutível da igualdade. Do mesmo modo, quando se afirma que certas formas de educação «infantilizam», admite-se a contrario que ser adulto é um valor, que o fim da educação é o pensamento pessoal e a autonomia. O limite do argumento a contrario é que ele se apoia núm consenso, que é o de uma sociedade e de uma cultura, e a cujo respeito nada prova que ele seja universal. Há sociedades em que se prefere o conformismo ao espírito crítico e à originalidade, em que a igualdade não é admitida. Com efeito, este método revela-nos o que pensamos, mas sem o legitimar.

V. - A dialéctica Na verdade, os métodos precedentes são excelentes, mas ignoram a síntese. Pensamos que só a dialéctica a pode alcançar. A dialéctica, entendida aqui no sentido hegeliano, parte das oposições de teorias, de «teses», que certamente não faltam no domínio da educação. Oposição entre a obrigação e a liberdade, entre o esforço e o interesse, entre os conteúdos e a pedagogia, entre a cultura geral e a especialização, entre a sociedade como fim e a criança como fim... Ora pode mostrar-se que cada uma das teses, devido à sua insuficiência, chama a sua antítese e inversamente, e que a oposição apenas pode ser superada por uma síntese de qualidade diferente, que integra o que cada uma das teses tem de efectivamente positivo. Voltemos à nossa definição de adulto. Frente à concepção tradicional, que faz do adulto simultaneamente o professor e o modelo de educação, assiste-se nos nossos dias a uma contestação radical desta norma; o adulto, protótipo da alienação, do conformismo e da esclerose, deve dar lugar à adolescência permanente e ao inacabamento. 15

A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

Ambas as teses são fortes sobretudo pela sua crítica da outra; e esta serve-lhes precisamente de argumento a contrario. A tradicional, que visa reprim ir na criança o que ela tem de livre e criador, leva, paradoxalmente, a infantalizá-la para sempre. Mas a outra, recusando o modelo adulto, leva ao mesmo resultado; porque nada é mais fácil para os poderes do que manipular os eternos adolescentes, instáveis e irresponsáveis. A dialéctica põe em confronto directo estes conceitos petrificados. O adulto «acabado» não é o fim da educação; esta só tem sentido se perm itir aos indivíduos não deixarem de aprender, encarregando-se eles mesmos da sua própria aprendizagem. Fixar-se, porém, para sempre na adolescência é encerrar-se numa caricatura, porque a característica do adolescente real é acima de tudo o seu desejo de «crescer», de se ultrapassar, ainda que seja pela revolta! Em suma, nem o fóssil nem o infantil são adultos, e a verdadeira maturidade não consiste em desprezar a juventude, ou em macaqueá-la, mas em salvá-la em si mesma. Ora, contrariamente aos marxistas, parece-nos que a dialéctica é sempre idealista, pelo menos na educação; porque se as oposições são claramente reais, a síntese não o é. Esta é da ordem da utopia. Mas a utopia não é o mesmo que nada; num certo sentido, faz parte do real, visto que, ao denunciar implicitamente as suas insuficiências, contribui para o mudar. Terminaremos esta introdução com algumas observações. P rim eiro, reg istar-se-á que nenhum dos cinco m étodos é «demonstrativo», no sentido em que se fala de demonstração nas ciências exactas. É por isso que a filosofia não é uma ciência exacta, nem sequer uma ciência! O seu propósito é levantar as questões fundamentais, dando-lhes respostas que nunca passam de mais ou menos prováveis, e sempre susceptíveis de serem retomadas. Estes métodos permitem-lhe ao menos evitar o dogmatismo e a arbitrariedade. Mas porquê cinco métodos, em lugar de um só? Não será substituir a filosofia rigorosa por uma série de tarefas soltas? Pode, é verdade, pensar-se, com Heidegger, que Denken ist ein Hatidwerk, que pensar é um ofício, um trabalho manual; aceitar-se-á, então, não uma máquina-ferramenta, mas uma simples caixa de ferramentas, onde cada um, a começar pelo autor, irá buscar, no momento certo, o instrumento mais apropriado, para depois de novo o arrumar. Se a escolha de um método é uma escolha filosófica, a pluralidade dos métodos decorre de uma filosofia pluralista. Haverá outra alternativa ao dogmatismo? Seja como for, parece-nos essencial mostrar que, mesmo em educação, e sobretudo em educação, as coisas não são evidentes. 16

2 QUE É A EDUCAÇÃO?

A filosofia da educação é, pois, duplamente específica. Em relação às ciências da educação, pelo tipo de questões que levanta. Relativamente aos outros ramos da filosofia, pelo seu objecto, a educação. Definir esta será, pois, o fim deste capítulo. Sabe-se que uma definição tem sempre algo de arbitrário; por isso, é indispensável argumentar. Tentaremos encontrar uma que restrinja, certamente, o sentido da palavra «educação», mostrando que não designa nem uma maturação natural nem um adestramento artificial; mas evitaremos reduzir abusivamente este sentido e mutilar a educação. I. - Criar, ensinar, formar Poderá a etimologia auxiliar-nos? Afirmou-se que educar provinha do latim educere, «fazer sair», «pôr fora». Não é exacto. O termo vem de um outro verbo, educare, que significa criar animais ou plantas e, por extensão, cuidar das crianças. A etimologia é sempre perigosa! Não podemos também continuar a apoiar-nos na história do termo. No francês do século XIX, «educação» tem sobretudo o sentido de sa­ ber-viver, o que implica a adaptação às normas da classe «superior», aos seus símbolos, aos seus valores, às suas convenções, mas também um real domínio de si; educado é o homem que sabe conter-se, no duplo sentido de guardar o seu lugar e guardar o seu sangue-frio. De todo diferente é a palavra inglesa, education, palavra enganadora, cujo sentido se introduziu sub-repticiamente entre nós. Education significa o ensino como instituição, o sistema escolar e universitário; an educated person é alguém instruído, o que não quer dizer bem educado... Nos nossos dias, quando se fala de problemas, de ciências, de ministério da educação é 17

A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

sobretudo no ensino que se pensa. Todavia, todos admitiremos que a educação significa algo mais do que o adestramento do homem ou a produção de diplomados. Tentemos, então, outro método, que consiste na análise de sinônimos. Partamos do verbo educar. Possui muitos sinônimos, os três principais são criar, ensinar e formar. Criar refere-se à educação em sentido restrito; no essencial, coin­ cide com a da família. Trata-se de uma educação espontânea; uma mãe que acaricia o seu bebé educa-o, porque desperta nele a consciência do outro e desenvolve, antes de qualquer linguagem, a aptidão do bebé para comunicar. Mas a mãe não programa isso, nem sequer o sabe; a sua ternura ê educativa, mas sem saber. Ensinar designa, pelo contrário, uma educação intencional; é uma actividade que se exerce numa instituição, cujos fins são explícitos, os métodos mais ou menos codificados, e que é assegurada por profissionais. Criar e ensinar são, portanto, actividades diferentes, e, por vezes, exclusivas uma da outra. Se as duas forem precisas, é difícil executá-las ao mesmo tempo e confiá-las a uma mesma pessoa. Os pais, mesmo instruídos, são pouco capazes de instruir os seus filhos, porque são sempre demasiado impacientes, ansiosos, apaixonados. Inversamente, um pro­ fessor não é um pai, e uma professora não é uma segunda mãe; o seu papel não é amar nem fazer-se amar: devem apenas fazer aprender. Formar tomou-se um termo muito em voga: «formação contínua, formação de formadores»; um termo, aliás, por vezes polêmico; ao «ensino esclerosado, livresco» opõe-se a boa formação, humana, generosa, que «aprende a ser». Tentaremos ultrapassar estes slogans e definir o termo por comparação com os dois precedentes. Que é a formação? Seja ela técnica, profissional, militar, desportiva, e inclua mesmo todas as reciclagens, a formação é sempre a preparação do indivíduo para tal ou tal função social. Será preciso ver nela uma forma de ensino? Todavia, a língua actual sugere-nos aqui ainda uma relação de exclusão: «Ensina-se alguma coisa a alguém», «forma-se alguém em alguma coisa». O fim do ensino, ou pelo menos o seu objecto, é o aluno. O objecto da formação é a função social: é o futuro socorrista, o futuro empregado ou o futuro médico que importa. Por exemplo, quando se forma uma dactilógrafa, ela é tratada como um meio; não se lhe pede que se exprima, que inove, mas simplesmente que escreva sem erros e o mais depressa possível. Pelo contrário, o ensino do piano trata o aluno como um fim; o teclado é para ele, e é por ele que aprende. Deixaremos de lado a relação, quase inexistente nos nossos dias, 18

QUEÉA EDUCAÇÃO?

entre educação familiar e formação; seria preciso estudá-ía noutras sociedades, arcaica, medieval, etc. Cada um pensa que as crianças faziam a sua aprendizagem em casa do seu pai. Mas nem sempre foi esse o caso: frequentemente, o pai enviava o seu filho pára um colega, o qual, por sua vez, confiava também o seu a outro colega, sendo os aprendizes tratados como membros de uma nova família. Será que não há humanidade sem mudança? De qualquer modo, criar, ensinar, formar, aparentemente sinônimos, têm entre si relações de exclusão. Embora se aprenda a mesma coisa nos três casos, jamais se aprende dá mesma maneira. Por exemplo, uma língua estrangeira. Na família aprende-se espontânea e globalmente, pela conversação. Na escola, é ensinada com um programa, métodos, técnicas e professores. Na formação também, mas com um espírito inteiramente diverso: não se formam intérpretes ou se ensina o inglês comercial como se ensina o inglês no liceu. Um professor que ensine a traduzir o melhor possível e o mais depressa possível faz formação profissional; um profes­ sor que mostra que há várias traduções possíveis e que leva o tempo que for preciso para encontrar a melhor, sem por vezes a encontrar, ensina. Criar, ensinar e formar: trata-se, sem dúvida, de tipos ideais (no sentido de Max Weber). Concretamente, é possível, e mesmo desejável, uni-los. No pré-escolar, criar é preparar para o ensino; na universidade, ensina-se ao mesmo tempo que se asseguram formações profissionais. Do mesmo modo, aquele que se prepara na profissão de pianista recebe ao mesmo tempo um ensino e uma formação. Contudo, nos dois casos, trata-se de um compromisso, e um compromisso faz-se, por definição, entre realidades antagônicas. Poderá, então, falar-se ainda de uma unidade da educação? Notemos que na nossa época de hiper-especialização se corre muito o risco de ir dar a uma educação fragmentada, em detrimento dos próprios educandos. Todavia, a filosofia não estuda os factos, mas o seu sentido. E, a este nível, os três termos, embora opostos, ou melhor, porque opostos, conservam uma relação de complementaridade. Se é assim, onde encontrar então o conceito que permitiria unificá-los? Aqui, uma vez mais, apoiamo-nos na linguagem. Na educação fa­ miliar, no ensino e nas formações aprende-se. Pode, pois, admitir-se que aprender é o verbo que corresponde ao substantivo educação, que não só unifica os três termos, mas lhes proporciona um «mais». Com efeito, quem aprende alguma coisa, desde a natação até à álgebra, aprende sempre também a tomar-se, pelo menos em parte, «melhor». T ornar-se m elhor, que quer isto dizer? D esenvolver as potencialidades do ser humano que cada um em si transporta. Em todos 19

A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

os domínios, desde o nascimento até ao último dia, a educação é aprender a ser homem. E a educação familiar, o ensino, as formações são partes deste «aprender». Em todos os casos, aprende-se a ser homem. Se, pois, pretendermos definir educação, é preciso reflectir sobre a palavra «homem».

II. - A educação entre a natureza e a cultura O homem é homem pelo nascimento ou pela educação? As ciências humanas admitem que o recém-nascido de hoje não difere do recém-nascido das idades pré-históricas. Tudo o que a humanidade conquistou através dos milênios é «cultural», não natural; por outras palavras, não se transmite por hereditariedade, mas pela educação. Em suma, tudo o que toma o homem humano, tal como a linguagem, o pensamento, os sentimentos, as técnicas, as ciências, as artes e a moral, o homem tem-no porque o aprendeu. A antropologia afirma que o homem é uip animal «nascido antes do tempo». O seu organismo, particularmente as conexões nervosas, é inacabado. Deve, portanto, ao contrário das crias animais, aprender tudo e, enquanto aprende, depende dos outros, dos adultos. Este inacabamento do homem é também a sua grandeza; enquanto o animal é o que é desde o seu nascimento ou se toma naturalmente pela maturação, a criança humana, como diz Fichte, deve tornar-se o que deve ser. Mas esta desvantagem constitui, na verdade, uma dupla vantagem. Primeiro, a fraqueza da infância, a necessidade de a proteger, cuidar, educar, durante anos, constitui sem dúvida um dos grandes factores da sociedade; com efeito, sem sociedade não poderia haver infância, logo também não poderia haver homens. Depois, a criança, porque inacabada, vai infinitamente mais longe do que o animal; a imperfeição da sua natureza é também a sua plasticidade (cf. Dewey, 1966, cap. IV). Esta natureza humana, privada da educação, reduz-se, aliás, a quase nada. Lembremos o caso das «crianças selvagens», em particular das duas meninas encontradas num covil de lobos, na índia, em 1920. Estas crianças, Amala (cerca de dois anos) e Kamala (oito anos), incapazes de se terem de pé, corriam apoiados nos cotovelos e nos joelhos; desprovidas de palavra, uivavam como os lobos, atiravam-se à carne crua, degolavam galinhas vivas. Em todas as crianças selvagens o olfacto está sobredesenvolvido, a necessidade sexual é muito fraca. Ignoram o uso das mãos, o rir e o sorrir, não distinguem uma imagem em relevo de um objecto, não se reconhecem ao espelho, etc. Alguns defenderam que o 20

Q UE É A EDUCAÇÃO?

seu caso não provava nada, porque eram apenas débeis profundos. Mas Lucien Malson (Les enfants sauvages, «10/18», 1964) responde muito vigorosamente que o seu comportamento em nada se assemelha ao dos débeis. Em todo o caso, elas são a prova viva de que um filho de homem que não é educado pelo homem não tem «nada de humano»; veremos mais à frente o porquê destas aspas. Certos filósofos, aliás, negam pura e simplesmente a natureza humana e dizem que cada homem é o que é apenas pela educação. Era já o ponto de vista dos sofistas, como ilustra o belo mito de Epimeteu (Platão, Protágoras, 320 s.) Os empiristas do século XVIII afirmam que o homem no início é uma tábua rasa, sobre a qual a experiência pode inscrever todas as coisas. «A educação faz-nos o que somos», dizia Helvétius: não apenas o que sabemos, mas também o que somos, um homem, este homem, com os seus sentimentos, a sua inteligência, a sua moralidade. E os culturalistas actuais retomarão esta outra tese dos sofistas: não há valores universais, os homens diferem nos seus gostos, nos seus sentimentos, nos seus costumes, nas suas categorias intelectuais e morais, tal como diferem as culturas em que foram educados. Em suma, como dizia Helvétius, «a educação pode tudo», precisando bem que a educação compreende ao mesmo tempo as experiências fortuitas e a instrução voluntária e metódica. Um neobehaviorista como Skinner pretenderá dar um conteúdo científico a esta doutrina. Para ele, se a educação pode tudo, deverá sabê-lo e saber o que faz; programa cientificam ente o devir da criança, em vez de a abandonar aos condicionamentos cegos e incontrolados. O futuro é dos especialistas. Assim, o homem seria natural enquanto animal e cultural enquanto humano; não teríamos outro ponto em comum senão o corpo. Voltemos, todavia, às aspas da página 20: pode dizer-se que as crianças selvagens não têm «nada de humano»? Em todos os casos se fez tudo para as educar, em vez de as manter na sua animalidade para fins de estudos científicos. Aqueles que se entregariam a tais experiências parecer-nos-iam do mesmo tipo que os médicos nazis... Uma criança selvagem, como um débil ou um louco, permanece um ser humano; e admitimos que, se a ciência afasta, pelo método, a natureza humana, a ética afirma-a como inalienável. Toda a criança humana é, de modo real ou simbólico, um filho de Deus. Aliás, os filósofos empiristas ou culturalistas, para glória da educação, bem poderiam legitimar o imperialismo pedagógico mais abusivo. Seja como for, é preciso responder à questão de Kant: se o homem é o produto da educação, «quem educará os educadores?» Acrescentemos uma observação capital. É possível educar, mais ou menos, as crianças selvagens, ao passo que ninguém poderia ensinar a 21

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linguagem, as técnicas ou a moralidade a um animal. Há pois, claramente, uma natureza hum ana universal, que consiste precisam ente na possibilidade de aprender. E esta observação não é apenas teórica. A importância do conceito de natureza humana é mostrar que em educação nem tudo é possível, que o educador encontra uma resistência que não pode ignorar nem forçar sem arruinar a educação. Esta resistência é, em primeiro lugar, a da natureza psicológica da criança. Autores tão diferentes como Piaget, Freud, Wallon mostram que a criança passa necessariamente por estádios, e que o educador não os pode impunemente omitir nem mesmo abreviá-los. É por isso que Rousseau preconizava, até à idade de doze anos, uma «educação negativa» cujo papel não é apressar o crescimento, mas preservá-lo, não instruir a criança, mas prepará-la paia se instruir. Há um fundo de verdade nestes exageros. X natureza é também o carácter próprio de cada criança, a sua maneira de agir, de sentir e de aprender. Ignorá-lo, querer fazer entrar a criança num molde comum, forçá-la a «ser trabalhadora como o seu irmão», é arriscar-se a desencorajá-la para sempre, por falta de confiança na sua força própria. Educar não é fabricar adultos segundo um modelo, é libertar em cada homem o que o impede de ser ele mesmo e lhe permite realizar-se segundo o seu «génio» singular. Em suma, se o conteúdo da educação é variável, a necessidade de ser educado é universal, porque ela é inerente ao homem. A natureza humana é o que exige ser educado; é também o que faz que a educação não seja tudo. Inversamente, se a educação não pode tudo, não se pode nada sem ela. III. - Os fins da educação: para a sociedade ou para a criança? Será possível a partir daí determinar os fins da educação? Voltaremos ao conteúdo destes no último capítulo. Aqui limitar-nos-emos à sua forma, ao que faz que um fim se possa dizer educativo. As doutrinas empiristas ou culturalistas, que rejeitam a natureza humana, dirão que se eduque a criança para a sociedade, em função dos valores próprios desta. Pelo contrário, os partidários da natureza exigirão que se eduque a criança por si mesma, para lhe permitir desenvolver-se segundo a sua natureza própria. A primeira tese tem a seu favor o realismo. Com efeito, se se visar apenas o desabrochar da criança, não se fará dela um marginal, inapto para se integrar num meio que de qualquer modo será o seu? Além 22

QUEÉA EDUCAÇÃO?

disso, toda a sociedade tem exigências a que não pode renunciar sem se pôr em perigo; tem necessidade, a todos os níveis, de competências comprovadas. Mais ainda, não está no direito de exigir à educação que transmita à criança aqueles valores sem os quais a vida social seria impossível? A começar pela língua, que é o patrimônio inalienável de um povo. Se, sob o pretexto de respeitar a espontaneidade criadora dos alunos, se renuncia a obrigá-los a exprimir-se bem e a bem compreender, acaba-se por destruir a própria comunicação. Do mesmo modo, destroem-se, desde que se renuncie a transmiti-los aos jovens, os tesouros da ciência, da arte, da moral, que são os únicos que lhes permitem tornar-se inteiramente adultos. Em suma, a força desta tese é mostrar que, adaptando e integrando a criança na sociedade, se trabalha também para seu bem. Os partidários da natureza responderão que esta doutrina, devido à sua recusa em reconhecer todo o valor transcendente, se deve apoiar em normas pretensamente «científicas», como o «normal», a «adaptação», a «socialização», o «equilíbrio», levando assim a um conformismo total. Afinal de contas, Mozart e Beethoven, Rousseau e Nietzsche, Van Gogh e Gauguin foram inadaptados, e o seu génio deve-se à sua própria inadaptação. Do ponto de vista moral, sobretudo, a integração social está longe de ser uma norma indiscutível, porque toda a sociedade comporta uma parte de fanatismo, de egoísmo sagrado; será preciso adaptar os jovens a uma sociedade racista - e, pouco ou muito, que sociedade não é racista? O cúmulo é que uma tal educação é nociva à própria sociedade, visto que contribui para a imobilizar, para tapar tudo o que ela comporta de abertura. A sociedade (era preferível dizer uma sociedade) não é nem simples nem estática; e a educação deve preparar a criança para a sua complexidade e para a sua evolução. Consideremos a linguagem: porquê impor aos alunos uma língua escolar, até certo ponto artificial, enquanto a língua de um país comporta tanta diversidade e evolui continuamente? Em suma, ao pretender-se fazer do indivíduo um meio da sociedade, esquece-se a sua dignidade própria e, o que ainda é mais, faz-se dele um meio muito pobre. Para a sociedade ou para a criança? Trata-se porventura de uma falsa alternativa, em que cada um dos termos vale apenas pela deficiência do outro. Porque entre o indivíduo e a (uma) sociedade existe um terceiro termo, que é a humanidade. A própria educação testemunha-o. Não se educa a criança para que ela não vá mais longe. Mas também não se educa para fazer dela «um trabalhador e um cidadão». Educa-se para se Tazèr dela um homem, isto é, um ser capaz de compartilhar e comunicar com as obras e as pessoas humanas. Pois, para além de todas as culturas, há a cultura, que consiste, acima de tudo, no facto de todas elas poderem 23

A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

comunicar entre si; do mesmo modo, há línguas, mas nenhuma é intraduzível. Ora o modelo humano não é imposto a partir de fora: ao despertar a inteligência e a personalidade da criança, converte-a num homem mas, permitindo-lhe ser ela mesma. Insistindo ainda na linguagem, Montaigne e Rabelais, Gide e Proust aprenderam a mesma língua, mas cada um, para além dos lugares-comuns, soube encontrar o seu próprio estilo e exprimir-se nele. Assim, parece-nos que o fim da educação é permitir a cada um realizar a sua natureza no seio de uma cultura que seja verdadeiramente humana. Se tal fim parece utópico, é o único que resguarda a educação tanto do abandono como do endoutrinamento. Por conseguinte, é esta ligação fundamental com o humano que faz da educação mais do que um adestramento ou uma maturação espontânea. Ser homem é aprender a tomar-se tal. Precisemos duas coisas. Primeiro, há duas maneiras de aprender: um processo espontâneo, que vem do próprio facto de viver em sociedade, e um conjunto de métodos intencionais, com os seus professores e os seus objectivos. Depois, jamais se deixa de «tomar homem», e o fim do caminho da cultura humana jamais é alcançado: não há diploma de humanidade que considere concluída a educação. Eis então a definição que propomos: A educação é o conjunto dos processos e dos procedimentos que permitem a qualquer criança aceder progressivamente à cultura, pois o acesso à cultura é o que distingue o homem do animal. Onde se realiza a educação, como, por quem e para quê, é o que veremos nos próximos capítulos.

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3 AS INSTITUIÇÕES EDUCATIVAS

A família, a escola, a universidade, do mesmo modo que os movimentos de juventude, as formações continuas, as federações desportivas, entre outras, são instituições ditas educativas: Limitar-nos-emos aqui a reflectir sobre as três primeiras, e, em primeiro lugar, a procurar saber o que faz delas instituições. I. - Que é uma instituição? Não se fala em «instituição animal», o que prova que a instituição é uma realidade humana, mais precisamente social. Social, visto que varia de uma sociedade para outra; a justiça, a família, a escola são tão diferentes ao longo dos séculos que se pergunta, por vezes, se estas palavras designam exactamente as mesma coisas. No seio de uma sociedade global, cada instituição é relativamente autônoma. Isto não é um pleonasmo; a autonomia é por essência relativa. Assim, a justiça é mais autônoma do que a polícia, pelo menos em democracia; um movimento de juventude é-o mais do que a escola. Mas uma instituição sem nenhuma autonomia seria impossível; seria apenas uma parte de uma instituição. Assim, o colégio X... faz parte da Educação nacional. Por isso mesmo, uma instituição é estável no sentido de que preexiste aos seus membros - «entra-se» na escola - e subsiste depois de eles partirem. Ou, pelo menos, é regular no sentido de que se reproduz em datas fixas e sob formas previsíveis, como o bacharelato ou a licenciatura. Inversamente, uma crise, uma guerra não são instituições, porque não são nem estáveis nem regulares; pertencem a um outro tipo de factos sociais. 25

A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

Uma instituição é constrangedora, visto que exerce uma autoridade sobre os seus membros e limita a sua liberdade, resistindo sempre às pressões extemas. Precisemos que este constrangimento é menos de ordem material do que simbólica e que, mesmo quando é privada do seu suporte material, a instituição permanece. Uma escola sem edifício permanece uma escola, tal como a «igreja do deserto» permaneceria uma igreja. O constrangimento exerce-se sobre os próprios chefes; ver-se-ia mal um papa decidir dissolver a sua Igreja! Assim, Max Weber distingue a associação (Verem), que depende do acordo dos seus membros e pode por eles ser dissolvida, da instituição (Anstalt), que se impõe aos seus membros e mesmo às pessoas de fora. Ora, este constrangimento não é arbitrário. Com efeito, a instituição está submetida a regras, que definem o constrangimento ao mesmo tempo que o legitimam. Estas regras podem ser explícitas, como as «instruções oficiais» no ensino, ou implícitas, como as tradições que regem as maneiras de ensinar e avaliar. Na família, as regras são implícitas, o direito apenas intervém em caso de crise: crianças espancadas, fugas, etc. Até aqui, falámos só da anatomia da instituição. Esta só se pode compreender se tivermos em conta o facto de que ela tem sempre uma função social. Por exemplo, que é que distingue as escola das prisões ou das fábricas? A sua função, a sua função de ensinar, que supostamente exercem, mesmo se de facto a desempenham mal. Aliás, é a função que dá um sentido às «coisas» na instituição, que as qualifica como meio, desde o giz até aos programas didácticos, ou como obstáculos. Sobretudo, a função dá o seu sentido aos actos. Um professor que se assoa não age como docente, a não ser que o faça «com um fim pedagógico», por exemplo, para ensinar uma língua pelo método directo! Não se pode definir uma instituição sem ter em conta a sua função. Em resumo, pode definir-se assim a instituição: uma realidade so­ cial, relativamente autônoma, estável ou regular, constrangedora segundo regras, e que se especifica pela sua função social. II. - Pode evitar-se a finalidade? A noção de função é, todavia, problemática. Os sociólogos utilizam-na para evitar a de finalidade. Esta é uma explicação pelos fins, que pressupõe um ente capaz de os estabelecer - ele comprou uma pá para arranjar o seu jardim - portanto, um sujeito consciente e livre. Mas pode-se utilizar a finalidade onde falta a consciência? Se se trata de uma associação, que se funda quase inteiramente no acordo dos seus membros, pode falar-se de finalidade. O «porquê» da 26

AS INSTITUIÇÕES EDUCATIVAS

associação é, na verdade, um «para que». Tratando-se da escola ou da universidade, é de todo diferente. Elas só se podem compreender rejeitando duas atitudes que desconhecem o carácter social da instituição, precisamente porque ambas abusam da finalidade. A primeira é o juridicionismo, que considera que a escola, por exemplo, é instituída pelo legislador; a sua função é então definida pelos textos que a regem. Todavia, um texto oficial não faz mais do que organizar ou reformar uma escola que lhe preexiste; aliás, não pode mudá-la para lá de certos limites. A realidade da instituição ultrapassa a consciência e a vontade dos indivíduos, sejam estes os detentores do poder ou os agentes da própria instituição. Se as instituições evoluem, não é por decreto. O psicologismo é a segunda atitude, que, em rigor, dá melhor conta desta evolução, visto que tende a fazer da instituição uma associação «instituída» pela vontade dos seus membros, que podem portanto mudá-la. Só que a instituição não é uma associação. Aqui reside, sem dúvida, o erro da «pedagogia institucional»; por mais rica que seja a sua prática, ela equivoca-se sobre o carácter da escola, crendo ingenuamente que os seus alunos e os seus professores podem exercer um poder «instituinte». Eles podem, sem dúvida, «fazê-la mudar», mas em limites muito estritos e como uma realidade cuja existência não depende deles. A instituição não se reduz nem ao psicológico nem ao jurídico: ela é genuinamente social. E é para explicar a especificidade irredutível do social que Durkeim, em Les règles de la méthode sociologique, propõe substituir o conceito de finalidade pelo de função. A função é o papel efectivo que uma instituição desempenha no todo social, mesmo que esse papel seja diferente daquele que lhe é destinado na origem, o que se observa nos nossos dias com a Formação contínua. Presentemente, o termo «função», que se foi buscar às ciências naturais, manterá a sua objectividade, uma vez transposto para o domínio social? De qualquer modo, a nosso ver, a função não elimina a finalidade: introdu-la sob uma outra forma. Isto mesmo se observa no próprio Durkeim. Para ele, a função é a utilidade da instituição. Ora, como ele vê na sociedade um organismo caracterizado pela sua harmonia fundamental, é normal que conceda a todos os seus orgãos, justamente as instituições, um papel útil, não obstante certas discordâncias passageiras. Com efeito, sem o concurso dos fenômenos sociais, «de modo a pôr a sociedade em harmonia consigo mesma e com o exterior», a sociedade não poderia sobreviver. Tomemos, por exemplo, a escola. Na sociedade moderna, a sua função é dupla: uma função diferenciadora, que prepara as crianças para a sua futura tarefa profissional; e outra função unificadora, assegura a unidade da nação 27

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ensinando a mesma linguagem, os mesmos saberes fundamentais, os mesmos valores. O que eqüivale a dizer que a escola existe para alguma coisa, a supor uma finalidade que é da alçada não da ciência, mas da filosofia. Porque os factos podem ser interpretados muito diversamente. Tomemos o exemplo do marxismo. Para ele, se a função de uma instituição reside na sua utilidade, esta raramente é para benefício de todos; só uma classe a usufrui. A escola, em regime capitalista, está ao serviço da classe dominante. A sua função diferenciadora é de selecção e, por isso, de reproduzir desigualdades. A sua função unificadora é inculcar a ideologia dominante e justificar a selecção (mostrar que o insucesso era merecido, etc.). Raciocinando assim, o marxismo não suprime a finalidade, desdo­ bra-a. Há a função que vai «no sentido da história», e há a função que vai contra. Mas, nos dois casos, trata-se de uma finalidade. A instituição, reacionária ou progressista - e a escola é «dialecticamente» as duas - , é sempre para uma classe. Tomemos um último exemplo: o ponto de vista «ecológico» de N. Postman, para quem a função de uma instituição se define como oposta e complementar à de outras instituições, todas contribuindo assim para o equilíbrio social. No caso da escola, é claro; a sua função é, como a de um músculo, «antagonista». Numa cultura estática e fechada, ela assume uma função de progresso e de abertura; pelo contrário, numa cultura como a nossa, sujeita a incessantes mudanças, assegura uma função de memória e de juízo. Ou melhor, deve assegurá-la, e Postman é o primeiro a dizer que a escola americana, que pretende alinhar-se pelos media e renuncia a ensinar o que só ela pode transmitir, trai a sua função. Se, para Postman, a instituição não vale por si mesma, já o equilíbrio social sim, e é para ele que funcionam as instituições, é para ele que a escola deve «resistir» às modas e aos media. E, ainda, a finalidade. Em suma, a função relativiza a finalidade social, libertando-a de um ponto de vista estreitamente psicológico ou jurídico. Mas o que de facto distingue a função de uma instituição do seu funcionamento é que ela introduz uma referência ideal, um valor. Uma instituição educativa sem finalidade não seria educativa. Seria apenas uma instituição? Levantemos uma última questão. Toda a instituição cumpre mais ou menos bem a sua função própria, frequentemente antagonista à de outras instituições, no jogo complexo da sociedade. Mas não é isso uma função comum a todas as instituições? Pensamos que sim, e que esta função comum consiste em inspirar uma certa confiança, sem a qual a vida social seria totalmente impossível. Temos confiança no corpo médico que nos trata, nos juizes que nos julgam, 28

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no corpo de professores que ensina e avalia as nossas crianças. E esta confiança na instituição tem por corolário a competência dos seus membros. A confiança pode, decerto, ser traída; os médicos, os juizes, os professores podem defraudar. Seja por falta de saber, de discernimento, de competência efectiva, seja por falta de moralidade, que vai da preguiça até à corrupção. Quando a desconfiança se generaliza, a instituição arruina-se ou transforma-se (a polícia toma-se uma mafia\). Mas, no caso normal, a confiança épresumida, no sentido em que cada um admite que os membros de un^ instituição são capazes de assumir a função específica - os professores de ensinar, por exemplo - e se alguém declara o contrário, é ele o incumbido de prová-lo. Sem esta confiança presumida, não haveria vida social possível.

III. - A família Definimos, pois, as instituições educativas pela sua função. Ora a primeira função consiste em preparar a educação, formando os hábitos, as emoções, os sentimentos da criança, em «educá-la» antes de todo o ensino intelectual e conceptual. Os Antigos fizeram-no admiravelmente. Platão diz assim: «Entendo por educação (paideia) a virtude que a criança primeiramente adquire»; esta educação primeira consiste em formar, por meio de bons hábitos, os sentimentos mais primitivos, «o prazer, a afeição, a dor, o ódio», de form a a que concordem espontaneamente com a razão quando mais tarde ela aparecer na criança (Leis, 653 a). O papel da primeiríssima educação, a mousikè, é formar a criança, por meios estéticos, a fim de amar o bem e odiar o mal, muito antes de ser capaz de raciocinar e compreender: «E quando a razão chega, abraça-a e reconhece-a como familiar com muito mais temura do que aquela com que foi alimentado na música» (República, III, 402; cf. Aristóteles, Ética a Nicómaco, X, 1179). Platão e, em menor grau, Aristóteles queriam confiar esta educação primordial à cidade, segundo o modelo de Esparta; hoje, pensamos que essa é a função da família. Mas será esta ainda capaz disso? Não é a família contemporânea essencialmente deficiente? Sabe-se que se reduziu não só em volume, mas também nas suas funções e na sua autoridade. Com efeito, os pais já não podem decidir o casamento ou a profissão dos seus filhos; poderão ao menos decidir alguma coisa? Todavia, a família conserva ainda as suas 29

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duas funções p rincipais relativam ente aos filhos: protegê-los (alimentá-los, vesti-los, cuidar deles) e educá-los. Surge aqui um paradoxo: mesmo controlada, mesmo contestada, a autoridade dos pais sobre os filhos permanece infinitamente mais forte do que a que um monarca absoluto podia sonhar exercer sobre os seus súbditos. Se os pais não têm o direito de vida e de morte, é pelo menos por eles que a criança vive e escapa à morte; podem não só impor-lhe ou proibir-lhe determinada conduta, mas também moldar os seus pensamentos e nos seus sentimentos mais íntimos, os mais duráveis. Na actual cidade democrática, o poder parental permanece profundamente monárquico, e aqueles que o exercem têm como única competência a que lhes dá o nascimento. Assim se explica que tantos pensadores se insurjam contra a família: «Fazer filhos» - escreve Sartre - , «nada melhor; tê-los, que iniqüidade!» (Aí Palavras). Para ele, este «ter» é uma forma exorbitante do direito de propriedade, a posse de um ser humano, cujo destino se tem o poder de determinar. Enquanto protectora, a família, sociedade fechada, tem um papel conservador; desconfia de toda a inovação, de todo o não-conformismo, de toda a revolta, mesmo de todo o pensamento. Enquanto educadora, tende necessariamente a impor a sua estrutura hierárquica e desigual; tirar a razão ao mais velho, mais ainda a um pai ou a uma mãe, é cometer uma injúria. Piaget (1957) mostrou que a família tende a manter na criança uma moral de coacção e de submissão a uma regra que é tanto mais sagrada quanto mais incompreendida for. Ao proteger e ao educar a criança, a família arrisca-se sempre a fazer dela um eterno menor. As críticas não visam só a má família, dividida, egoísta, mas também a família unida, afectuosa, feliz. A ela justamente Gide reprova o ser «um regime celular», cujas «grades são os braços das pessoas amadas». A afeição mútua, o cuidado de não causar sofrimento, de aceitar e ser aceite, é também um freio a toda a tentativa de emancipação. A família permanece unida porque, uma vez e sempre, cada um aceita dempenhar o mesmo papel, sem mudança, sem surpresa. Aqui reside, decerto, uma das grandes causas da famosa crise da adolescência: os pais não admitem, não compreendem que a criança de ontem se toma repentinamente outro ser, com os seus segredos, as suas ideias, as suas paixões; daí o conflito. Em suma, fundada num princípio monárquico, a família só protegeria sufocando, e só educaria obstruindo. Estas críticas não são recentes. Nem sequer são próprias de racionalistas como Platão, visto que se encontram no Evangelho: «Se alguém vier a Mim sem odiar o seu pai e a sua mãe...» (Luc. XIV, 26). Nos nossos dias, a autoridade familiar é contestada tanto no Terceiro Mundo, como nos países industrializados; aparece por toda 30

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a parte como o que entrava o progresso social e o livre impulso do indivíduo. E, como bem se disse (cf. Lacroix, 1948), a identidade do homem moderno passa pela morte simbólica do pai. Não é justamente por isso que ele é modemo e se concebe como homem? Estas críticas da família não a destruíram. Ela tende, contudo, a modificar-se, aliás em dois sentidos opostos; por um lado, a família monoparental e, por outro, a família alargada em comunidade. Mas, sob estas formas novas, preserva as suas funções, que tendem até a reforçar-se: função de protecção num mundo em que o indivíduo está cada vez mais só e indefeso; função de educação num mundo onde desaparecem os meios educativos espontâneos, como a aldeia, a oficina, a Igreja, etc., e onde a escola apenas fornece uma instrução. De facto, passa-se com a família o mesmo que com a escola; as críticas radicais que se lhes dirige, longe de as fazer desaparecer, parecem pelo contrário reforçá-las. O que parece indicar a presença de uma necessidade mais forte do que todas as razões. Esta necessidade é a da educação primordial, como os Gregos tinham considerado. E necessária, como dizia Alain, uma escola do sentimento antes de qualquer outra escola, e é difícil ver o que poderia substituir a família nesta função. Pensadores tão diferentes como Comte e Freud afirmam que o papel da família é transformar o que no homem é o mais animal, mas também o mais sólido: os seus instintos. Para Freud, trata-se sobretudo da libido, que a família recalca e sublima, com o aparecimento do complexo de Édipo e a formação do superego; Freud afirma que é aí que se encontra o centro das neuroses, e insiste nos perigos da educação familiar. Mas nem por isso a rejeita, como farão alguns dos seus discípulos. Para ele, o recalcamento da libido e a formação do superego são indispensáveis ao devir humano; ser homem é ser recalcado. É possível sê-lo mais ou menos bem, mais ou menos mal; é impossível não sê-lo. Auguste Comte é mais afirmativo. O seu estudo da família (Système, t. II, cap. III) é o que, sem dúvida, melhor nos esclarece sobre o papel específico desta função que consiste em transformar os instintos mais brutais, a sexualidade e a maternidade, em tendências sociais, destinadas a humanizar o homem. É essa a educação primordial que a família leva a cabo, não ensinando mas existindo, deixando a cada um desempenhar o seu papel específico. Basta ser criança para descobrir no amor materno o modelo de todo o amor, na afeição patema o modelo de toda a obediência e também de toda a admiração. Basta, mas é necessário. Como escola do sentimento, a família é insubstituível. Comte não tem ilusões sobre o que o laço familiar pode ter de abusivo e de doentio; vê nele, todavia, o único meio de permitir ao homem conhecer e amar o homem. Segundo ele, 31

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toda a tentativa revolucionária que desconhece a raiz das nossas afeições está votada ao fracasso, porque se apoia então numa fraternidade abstracta, tanto mais fraca quanto mais pura é, e que acaba por se manter apenas pela violência. Acrescentemos que a família não é somente educadora para as crianças. É escola do sentimento também para os pais. Também eles, na experiência de serem um casal, depois na de terem filhos, aprendem o sentim ento, não já com o em oção ou com o paixão, mas com o responsabilidade e como reciprocidade para com outros seres. A criança é a educadora dos seus pais. E educadora, sem dúvida, de muitos modos, e que variam segundo a sua idade. E é educadora, em primeiro lugar, por esta expectativa infinita, total, que ela tem para com eles e à qual eles só podem responder aprendendo a ser adultos, isto é, a ser. Eis, pois, as nossas conclusões. Io A função essencial da família é formar ós sentimentos, partindo das pulsões mais animais e transfigurado-as. A história mostra que esta função subsiste por trás das formas mais diversas que a família pode assumir. 2° Esta parece ser a única instituição capaz de assumir tal função. E esta tese é corroborada por muitos estudos psicológicos que mostram que a família privada de pais (naturais ou adoptivos) está cruelmente desfavorecida no início da sua vida, por vezes até fisicamente; no confronto com uma sociedade fria, e até hostil, sente-se inclusive culpada de existir, o que a impede de crescer normalmente, pois o crescimento normal exige a afeição. 3o A família assume a sua função, não ensinando, mas contentandose com existir, isto é, amar. O amor familiar é muitas vezes cego, tempestuoso, cruel. Constitui, todavia, a ocasião única no mundo para o indivíduo, homem ou mulher, adulto ou criança, se descobrir como ser insubstituível. 4o Esta educação familiar é proveitosa tanto para os pais como para os seus filhos, que são os educadores dos seus educadores. Se existe uma educação “permanente” em sentido próprio, é essa. 5o Vimos que uma instituição só subsiste pela confiança presumida. A sociedade global confia em cada família para educar os seus filhos como ela entender, pelo menos até uma certa idade e em certos limites; as leis coercivas só intervém quando se demonstrou que a família é indigna de tal confiança. Ora, como escola do sentimento, a família aprende esta confiança nos outros e em si mesma, sem a qual a vida seria impossível. Eis o que a legítima.

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IV. - A escola A escola é actualmente uma das instituições mais prósperas. Em toda a parte, os seus efectivos não cessam de crescer, bem como os anos de escolaridade obrigatória. E é, sem dúvida, a instituição a que a sociedade contemporânea mais importância atribui, quase tanto como outrora à Igreja; a abundância dos projectos, das reformas e até das críticas que lhe são dirigidas dão testemunho de tal importância. Que é a escola? Deixemos de lado os sentidos acessórios, como “a escola do sofrimento”, a “Escola de Francoforte”. Deparamos com três significados. Em primeiro lugar, um estabelecimento destinado a proporcionar um ensino colectivo. Em seguida, a instituição, nacional ou privada, de que este estabelecimento não passa de um órgão. Por fim, a instituição, parte da precedente, que prodigaliza o ensino fundamental, idêntico para todas as crianças e sem finalidade profissional; neste terceiro sentido, “a escola” é uma expressão elíptica para a escola primária, ou elementar, ou básica. Notemos que existem sociedades sem escola, e que, onde ela existe, a escola varia de uma sociedade para outra. A escola dita “tradicional” não passa de um mito pacificador ou de um espantalho cômodo. Na realidade, o curso magistral, ou ainda a classe primária que recebe um ensino colectivo com horários, programas, dispensado a crianças da mesma idade, são “inovações” da segunda metade do século XIX. Antes, a escola era de todo diferente. Então, porquê a escola? A melhor maneira de responder é partir das críticas que lhe são movidas, não das que incidem no seu funcionamento e que encontraremos no próximo capítulo, mas daquelas que chegam a pôr em causa a sua existência. O mérito de Ivan Illich (1971) é ter, pela sua recusa radical da escola, mostrado a contrario o que esta tem de insubstituível. Para ele, a escola é ao mesmo tempo ineficaz porque, sendo obrigatória, rouba às pessoas o gosto de aprender, e nociva porque, se fracassa maciçamente em instruir os pobres, consegue todavia endoutriná-los, inculcando neles o sentimento irremediável da sua inferioridade e da sua culpabilidade. Deixemos de lado as “organizações”, facultativas todas elas, pelas quais o autor pretende substituir a escola, e distingamos os dois objectos da sua crítica: por um lado, a escola obrigatória e, por outro, o monopólio da escola. Que se passaria, na nossa civilização contemporânea, se se suprimisse a obrigação escolar, substituindo a escola por “bilhetes de formação” que cada indivíduo poderia utilizar, durante toda a sua vida, em organizações da sua escolha? 33

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Desapareceria uma primeira função, a protecção das crianças. Contrariamente ao que pensa Illich, nada prova que entregar os jovens ao mundo do trabalho os livraria da manipulação e da exploração; tudo sugere o contrário: no trabalho produtivo, o indivíduo é antes de mais um meio. Ao passo que aquilo que o aluno faz na escola é para ele que o faz. Ora a escola não é uma simples creche, destinada a substituir a família na sua função protectora. Se protege, é para ensinar. Eis a sua função positiva que dificilmente outra instituição (ou ainda uma “ausência de instituição” - poderá exercer. Ensinar, mas quê? Também aqui Illich nos é de uma ajuda preciosa. Afirma que na escola se aprende uma “sintaxe”, isto é, um sistem a de regras constrangentes e vazias, ao passo que, na vida, se adquire uma “semântica”, isto é, uma massa de experiências ricas de sentido e de conotações; sintaxe: o formalismo sem objectivo do cálculo escolar; semântica: o esforço para construir conjuntamente um instrumento útil. A tal pode responder-se que uma língua sem sintaxe é apenas mescla verbal, e igualmente que o saber sem regras não passa de uma massa incoerente de informações desvairadas e de um saber-fazer cego. Dito isto, pode reter-se a metáfora de Illich, virando-a contra ele, pode dizer-se que o saber escolar é para a experiência da vida o que a sintaxe é para a língua, o seu princípio organizador. Que é que, pois, caracteriza o saber escolar? Em primeiro lugar, trata-se de um saber a longo prazo. Se se indica a alguém que a rua que ele busca é a terceira à direita, dá-se-lhe uma informação útil no imediato, mas que nunca mais lhe servirá. Se for ensinado a orientar-se com um mapa, terá adquirido um saber que sempre lhe servirá, e nas circunstâncias mais diversas. É este gênero de saberes que a escola pretende transmitir, saberes para mais tarde, para se orientar na vida. Na realidade, esquecemos a maior parte dos factos históricos apreendidos na escola, mas eles permitem-nos na idade adulta 1er um livro de história, compreender um monumento. Esquecemos os elementos de inglês ou de matemáticas, mas somos capazes de os reaprender muito depressa em caso de necessidade, de qualquer forma, capazes de aprender. Em segundo lugar, trata-se de saberes organizados, que se encadeiam de modo lógico. Não há química sem uma base matemática, nem literatura sem competência lingüística e retórica, numa palavra, não há ensino sem um programa que defina os seus pré-requisitos, por outras palavras, o que é necessário já saber para prosseguir. Quem nunca fez astronomia, e portanto matemáticas superiores, poderá visitar um observatório; verá 34

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aparelhos e talvez estrelas, falar-se-lhe-à de números imensos, de relatividade... mas nunca saberá astronomia. Em terceiro lugar, trata-se de saberes adaptados, postos, pela didáctica, ao alcance dos alunos. O saber que a escola ensina não é o saber que se faz nos centros de investigações universitárias; é um saber comprovado, simplificado, e tanto mais quanto menos elevado é o nível dos alunos. Não se trata de ensinar as matemáticas no liceu do mesmo modo que no Collège de France, nem La Fontaine na escola como na universidade. Em quarto lugar, trata-se de saberes argumentados. Não dizemos “provados”, porque seria reduzir o conteúdo do ensino às simples ciências exactas. Mas saberes que se apresentam com a sua justificação e são sempre susceptíveis de serem criticados, pois estas duas actividades, justificar e criticar, são sem dúvida mais importantes do que os próprios saberes (ainda a sintaxe!). “E verdade, porque o dizes” é o gênero de frase que não se deveria ouvir na escola, que nega a escola. Inversamente, um professor cujos dizeres os alunos criticam segundo os métodos que ele lhes ensinou pode considerar que teve um êxito pleno; fê-los chegar ao seu nível. Em quinto lugar, trata-se de saberes desinteressados, isto é, sem finalidade profissional ou outra, pelo menos no imediato. Podem, sem dúvida, introduzir-se técnicas na escola, desde a construção de objectos até à gestão de uma cooperativa. Pode igualmente, como em certos países socialistas, associar-se cada escola a uma empresa de produção, indus­ trial ou agrícola. Intelectual ou manual, o trabalho escolar é diferente por essência do trabalho produtivo, em que o trabalhador, o torneiro, o cirurgião ou o secretário, pouco importa, é sempre o meio de um fim que lhe é exterior. Na escola, o aluno é tratado como um fim, é para si que trabalha, é a sua própria autonomia que ele aprende. A formação profissional só pode fazer-se fora da escola, ou depois da escola, e será sempre tanto mais eficaz quanto tiver sido precedida de um ensino pessoal, capaz de estruturar a memória e de formar o juízo. Capaz igualmente de permitir a cada um dispor do seu próprio corpo; basta apenas reflectir sobre o que distingue o desporto escolar do desporto profissional para compreender em que é que o trabalho escolar se distingue do trabalho produtivo. Tais são, pensamos nós, os cinco traços do saber escolar. Poderiam censurar-nos de ter excluído toda a educação moral. Nada disso. Lembremos que a escola garante uma formação moral específica, que ensina valores que não se encontram na família, nem decerto no mundo do trabalho: a igualdade, a justiça, o esforço, o espírito crítico. Precisemos 35

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que se a escola “ensina” estes valores, não é dando cursos de moral, é sendo ela própria. Se a escola for o que deve ser, o próprio facto de a freqüentar constitui uma educação tanto moral como intelectual. Não se trata, claro está, de idealizar a escola, e veremos que ela, muitas vezes, atraiçoa as suas funções. Mas o próprio facto de ela ser censurada dá testemunho da permanência dessas funções. Terminemos com a segunda censura de Illich: a escola na sociedade contemporânea teria atribuído a si o monopólio da educação e teria transformado a velha máxima da Igreja em seu próprio proveito: fora da escola, não há salvação! Infelizmente, ele parece ter razão. Este monopólio é abusivo. É certo que se aprendem muitas coisas fora das aulas, e que se aprendem tanto melhor quanto menos constrangimento existe. Eis porque a nossa filosofia da escola só tem valor se for completada por uma filosofia do terceiro meio educativo: os movimentos de juventude, as casas da cultura, as associações de amadores, certas formações contínuas de objectivo cultural, etc. E a juventude popular teria, sem dúvida, maior necessidade deste terceiro meio do que a juventude privilegiada. Por outras palavras, é iníquo que o povo não tenha escola para se instruir. O monopólio da escola, ou onde ele tende a impor-se, é patológico; prova / que a sociedade se tomou antieducativa.

V - A universidade Como a escola, a universidade não cessa de crescer no mundo actual. Simplesmente, enquanto se sabe mais ou menos o que esperar da escola, a desorientação campeia a partir do momento em que alguém inquire as funções da universidade. E este “alguém” inclui os próprios universitários. Se a universidade está em crise, trata-se essencialmente de uma crise de identidade. Ensino cultural ou formação profissional? Investigação fundamental ou aplicada? Primado da investigação ou primado do ensino? Selecção dos estudantes, com o risco de elitismo, ou acolhimento do maior número, com o risco de nivelamento? Unidade do saber ou saberes especializados? Não podemos aqui responder a estas questões, admitindo que algures tal seja possível. Contentar-nos-emos com indicar as funções sem as quais não há universidade. Da universidade pode dar-se a definição seguinte: uma instituição que alia o ensino superior à investigação fundamental. A partir daí é possível indicar três tipos de funções genuinamente universitárias. Em primeiro lugar, as funções de ensino. Não se pode conceber uma universidade que não ensine, uma universidade sem estudantes. 36

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Todavia, este ensino assume também funções diversas e, por vezes, antagônicas. Há o ensino cultural, que prolonga o secundário e se caracteriza pelo seu conteúdo geral e desinteressado, mas já especializado. Há o i ensino profissional, que forma juristas, médicos, docentes, etc. E há, finalmente, o ensino da investigação, que forma especialistas ao serviço da universidade ou de estabelecimentos exteriores, como a indústria ou o exército. Estes três tipos de ensino confundem-se muitas vezes nos factos; mas permanecem distintos, e às vezes em conflito. Tentemos ultrapassar estas oposições perguntando: que é que faz que um ensino seja universitário? Em primeiro lugar, trata-se de um ensino “superior”. Este termo nada tem de antidemocrático. Um ensino é “superior” no sentido preciso de que nada mais há além dele, pelo menos no interior da instituição. Eis porque é tão difícil nomear universitários, pois não há instância acima da sua, porque o único recrutamento logicamente possível é a cooptação, não sem risco de nepotismo e de favoritismo! Sem dúvida, o ensino superior é também dispensado, e muitas vezes melhor, pelas grandes escolas. Mas o ensino “universitário” não se pode reduzir a um ensino profissional^ mesmo quando forma docentes ou médicos, possui um mâts, que é a sua união íntima com a investigação. Um mais que é também um menos. Enquanto o ensino profissional deve fornecer aos alunos saberes perfeitamente elaborados e prontos a servir, saberes com chave na mão, a universidade ensina saberes que se fazem e ensina-os fazendo, com todas as questões, com todas as dúvidas que tal fazer comporta. Eis porque um curso perfeito, que se pode repetir tal qual, corre o risco de não ser universitário. Quer isto dizer que na universidade o ensino é inseparável da investigação. Mas que é a investigação? Parece-nos que a pesquisa universitária desempenha pelo menos três funções. Primeiro, a investigação aprofundada, ou fundamental. Em sentido geral, a investigação é a produção de saberes novos, cujo conteúdo é publicamente controlável. Comporta dois momentos. Em primeiro lugar, a invenção, que não pode ser programada: não se inventa por encomenda; a invenção só pode ser fecunda se assumir o risco de ser livre, livre de toda a instrução dos poderes e de todo o constrangimento de aplicação, ou até de êxito. Em seguida, a prova, que deve ser programada, segundo uma disciplina por vezes fastidiosa, mas indispensável. Por exemplo, nada impede uma universidade de fazer pesquisas sobre os fenômenos parapsíquicos; com a condição de ela ter o direito de utilizar todas as técnicas de provas, a começar por aquela que consistiria em reproduzir o 37

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fenômeno em condições inteiramente diferentes. Um facto científico é aquilo que se pode refazer. Que é que distingue então a investigação universitária da investigação industrial ou m ilitar? Primeiro, ela é fundamental, isto é, livre e desinteressada. É também publicamente difundida; na universidade, não pode haver segredo da investigação. Ora, como escreve Alain Touraine, a universidade não é “somente um laboraiório, mas também um conservatório”. Por outras palavras, a pesquisa assume uma segunda função, uma função de manutenção. Ela conserva, ao mesmo título que uma biblioteca ou um museu; conserva não Só coisas, mas saberes e valores. Esta função de manutenção foi preponderante em certos períodos. Por exemplo na universidade bizantina (do século V ao século XV!), que não ensinava outra língua a não ser o grego ático, e uma matemática abstracta, sem relação com a prática dos arquitectos ou dos administradores do fisco. De facto, a função de manutenção predomina nas sociedades ameaçadas, como o império bizantino, ou dominadas, como os países árabes colonizados. Então a tarefa primeira da universidade é preservar uma identidade cultural. Mas não nos dirá ainda respeito esta função? Sem dúvida. Acha-se normal, por exemplo, que uma universidade ensine uma língua em via de desaparecimento, não porque é útil, mas, pelo contrário, porque, sendo inútil, corre o risco de para sempre se perder. Em suma, a universidade é a memória intelectual e crítica de uma sociedade. Transmite uma herança cultural sagrada; sagrada porque inútil e frágil, que sem ela desapareceria. Que seria a nossa civilização sem a universidade bizantina? Memória "crítica”, apesar de tudo. E aqui se mostra a terceira função da pesquisa universitária, uma função de reflexão, que justamente a distingue de todas as outras instituições. Ela está aí para reflectir, isto é, pensar o já pensado, interrogar-se sobre aquilo que se sabe ou julga sa­ ber. Esta função, que surgiu com maior nitidez em certas disciplinas, como a epistemologia, a filosofia, a estética, esta função é, de facto, indispensável a todo o saber universitário, a toda a investigação. Porquê? Primeiro, porque a reflexão é uma demanda da unidade do saber, unidade sem dúvida irrealizável hoje, mas que permanece o ideal para que deve tender toda a cultura, sob pena de se fragmentar numa poeira de especializações cegas. Foi importante para a universidade medieval reflectir sobre as relações da razão e da fé; esta reflexão 6 a própria alma da universidade medieval, cristã ou muçulmana. De igual modo, é importante para uma universidade africana reflectir sobre as relações entre a cultura tradicional e a cultura ocidental, por exemplo na medicina ou na pedagogia. A interdisciplinaridade que, infelizmente, se proclama mais 38

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do que se pratica não é uma opção entre outras; dela depende a sobrevivência da universidade. Em seguida, porque a reflexão é indispensável à justa aplicação do saber. Em que medida se podem manipular os genes e os embriões humanos, e porquê? Que créditos atribuir respectivamente à investigação espacial e à pesquisa econômica? Sem este gênero de reflexão, a floração das ciências toma-se tão pouco controlável e tão nociva, finalmente, como uma proliferação cancerosa. Sem dúvida, a função crítica exerce-se noutros lados. Mas a universidade é o único lugar em que a crítica é institucional, oficial de algum modo; um lugar que deve, ou deveria ser, antes de tudo um lugar de “ócio” e de independência. Sim, pode criticar-se num jornal tal artista ou tal homem político; podem criticar-se também os seus amigos e os seus parentes; mas sempre com os seus riscos e perigos! E a crítica ressentir-se-á, pecará por excesso quer de gentileza quer de agressividade. É necessário um lugar em que a crítica possa ser uma reflexão serena, protegida pelas suas tradições e pelos seus métodos, um lugar onde, a todo o instante, se tenha o direito de perguntar “porquê?”, reciprocamente, o dever de responder. Restam as funções que a universidade assegura para com a sociedade que a engloba e, por outro lado, a financia. A primeira função social é a concessão dos graus. Notemos que uma universidade a pode garantir sem dispensar o ensino coirespondente. Assim, no século XIX, as “faculdades” concediam o bacharelato e a agregação, que eram preparados noutro lugar. Regressaremos a esta função com o problema da avaliação. A segunda é a formação dos adultos, prevista expressamente na França pela lei de 1968. Esta não é o monopólio da universidade; por outro lado, o seu público não é um público de estudantes, e muitas vezes o seu conteúdo não está ligado ao ensino superior. É, todavia, normal que a universidade, instituição rica em saberes, traga proveito à região que a acolhe e, por vezes, a financia. Acima de tudo, esta formação é benéfica não só para os formados, mas para a própria universidade, porque ela força-a a dirigir-se a um público totalmente diferente, portanto, a experimentar outras formas de ensino, a responder a outras questões. Por fim, a universidade pode beneficiar da experiência prática e profissional daqueles que ela forma. As funções da universidade: descobrimos já oito. As três funções de ensino; as três funções de investigação, e as duas funções sociais. Por fim, será possível encontrar uma unidade de todas as suas funções? 39

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A análise lingüística sugere-nos, em todo o caso, uma palavra que poderia englobar tudo, a palavra estudo, que designa uma maneira de aprender, distinta ao mesmo tempo da informação (aprender que) e da aprendizagem (aprender a), um ensino e uma investigação que valem por si mesmos e progridem um pelo outro. Ora qual é a meta do estudo? Se retomarmos todas as nossas análises, ver-se-á que este fito se resume numa só palavra: compreender, aprender porquê. Compreender, eis a razão por que existem universidades. Definimos, pois, três instituições educativas pelas suas funções respectivas, distinguindo estas funções até à sua oposição. Objectar-se-nos-á que esta compartimentação, sem dúvida inevitáyel para a análise teórica, se revela, na prática, desastrosa, e eqüivale a legitimar duas terríveis carências da nossa educação. Por um lado, resignamo-nos assim ao antagonismo entre institui­ ções - entre a escola e a família, a indústria e a universidade, etc. -, conflito prejudicial para a sociedade e para os próprios educados. Resignamo-nos, por outro lado, às rupturas - entre a primária e a “grande escola”, entre o escolar e o profissional, etc. - igualmente prejudiciais para a sociedade e para os jovens. Com esta compartimentação, produzem-se muitas angústias, fracassos, dramas. Voltaremos a este tema. Digamos, desde já, que toda a sociedade concebeu a educação como uma série de antagonismos e de rupturas, a começar pela iniciação primitiva. Antagonismos e rupturas, não será este o preço a pagar para que a juventude se subtraia à omnipotência de uma autoridade única, a do pai, do professor, do patrão, e se tome realmente adulta? É ainda necessário fazer disso factores de libertação, não de morte. Tal é o problema da pedagogia.

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4 A PEDAGOGIA E AS SUAS ANTINOMIAS

Tentemos agora uma filosofia da pedagogia, não para tomar esta mais eficaz, mas para nos interrogarmos em que consiste ela, e os problemas que a sua própria existência levanta. A palavra “pedagogia” tem pelo menos dois sentidos. Primeiro, o facto de ser pedagogo, de possuir a arte de ensinar e de educar, um saber-fazer que se aprende sobretudo pela prática. Em seguida, a teoria desta arte, uma “teoria prática”, dizia muito bem Durkheim, pois ela cuida de aplicar as ciências humanas à arte de educar. Agora os problemas. Basta ver os debates, os conflitos entre pedagogos para se convencer de que a pedagogia é profundamente ideológica, que comporta a mistura de razão e de paixão que caracteriza as ideologias. Mas, para lá destes debates contingentes, pensamos que há antinomias subjacentes à própria pedagogia. Tentaremos delas tomar consciência para, talvez, as ultrapassarmos. I. - O sofista e os saberes A primeira de todas as antinomias surgiu com a própria pedagogia. De facto, a partir do momento em que existe uma pedagogia, não se é incitado a opor o conteúdo da educação e a sua forma, a matéria a ensinar e a maneira de ensinar, e a escolher um dos termos em detrimento do outro? Nos nossos dias, assiste-se assim a um debate maniqueu entre pró- e anti-pedagogos, tão sectários uns como os outros. É inútil deter-nos aqui; o que importa é ver que a antinomia remonta, na realidade, muito longe. Pensamos que a primeira pedagogia conhecida foi a dos sofistas gregos, que se vangloriavam de paidagogein (Teeteto, 167 c; República. 491 e), de “guiar os jovens”, com a ideia de que o modo de conduzir 41

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importava mais do que o ponto de chegada. Como dizia o maior dentre eles: “Reconheço que sou um sofista e que educo os homens” (Protágoras, 317 b). Que bela divisa! Numa época em que a educação se reduzia ao desporto e à religião tradicional, os sofistas foram os primeiros a praticar o ensino como uma arte metódica, a proclamar que tudo se pode ensinar e, portanto, que a “virtude” (por outras palavras, toda a excelência intelectual e moral que um homem pode alcançar) não é um dom, mas algo que se aprende. Se acreditarmos em Platão, os sofistas descuraram apenas buscar a verdade e o valor real daquilo que ensinavam; contentavam-se com definir os objectivos do seu ensino, de precisar os seus prazos e de fixar o seu preço. Daí o seu pragmatismo - o verdadeiro é apenas o que é eficaz - e o seu relativismo, que Platão denuncia: ao seduzirem os jovens com a sua retórica, levam-nos a pensar que “o bem não vale mais do que o seu contrário, nem o justo...” (República, VII, 538 é). Longe de nós confundir o jiedagogo e o sofista. Mas parece que a educação dos homens privada de toda a verdade e de todo valor objectivo tem necessariamente por corolário o homem medida de todas as coisas, a divisa de Protágoras; por outras palavras, que a pedagogia, a partir do momento em que se exalta a si mesma, é sempre tentada a desprezar os saberes que está encarregada de comunicar. O pendor de toda a pedagogia é ser um dogmatismo quanto à forma, a maneira de educar, ligado a um relativismo quanto ao conteúdo. Resta apenas que a pedagogia, tanto a arte como a sua teoria, é indispensável à educação. Efectivamente, não basta ser honesto para que o seu filho também o seja, nem saber chinês para o saber ensinar. A pedagogia é a arte metódica que dá àqueles que se educam os meios e a ânsia de aprender o que eles não sabem. Como evitar então tal “pendor"? É necessário talvez começar por fazer o que muito raramente fazem os pedagogos, por tomar consciência de que não há uma pedagogia, mas várias, e que esta pluralidade é a melhor defesa contra o dogmatismo. Nos nossos dias, as teorias pedagógicas podem agrupar-se em três grandes correntes. A corrente clássica, ligada aos modelos e menos preocupada com a maneira de transmitir do que com aquilo que é preciso transmitir. A corrente inovadora, que parte da criança, com as suas experiências e os seus desejos próprios, e exige que se adapte o que se ensina aos discentes. Finalmente, a corrente funcional, ou tecnicista, que tende a fazer da pedagogia uma ciência exacta ou, pelo menos, uma técnica eficaz e garantida. Encontraremos sem cessar estas três correntes no que se vai seguir. 42

A PEDAGOGIA E AS SUAS ANTINOMIAS

I I . - O constrangimento e o desejo A pedagogia, dizíamos, “proporciona os meios e a ânsia de aprender”... E surgiu então uma nova antinomia, tanto mais aguda quando ela diz directamente respeito à prática: a que existe entre a necessidade e o desejo de aprender. Conhece-se bem a posição dos clássicos. A escola prepara para a vida, e a vida não é um jogo. A criança deve assimilar em alguns anos o que a humanidade levou milênios a descobrir; deve, pois, ser submetida a uma estrita disciplina e a impor a si mesma esforços de todos os instantes. O inovador responde que o esforço imposto apenas consegue matar na criança o desejo de aprender. Se ela trabalha, será para móbiles sem relação com o valor dos saberes, móbiles pouco confessáveis, como o arrivismo ou o medo. De igual modo, a disciplina imposta mascara uma indisciplina profunda, que se nota tanto nos devaneios doentios como nos jogos violentos. Em suma, em vez de constranger, importa primeiro descobrir “a pergunta”, “a motivação”, “o desejo” daqueles que se educam. Mas quem nos garante que este “desejo” será verdadeiramente o desejo de aprender aquilo de que o sujeito teria uma verdadeira necessidade? Que ele será diferente de um capricho? John Dewey (cf. 1967) tentou encontrar uma síntese, situando-se para além do desejo imediato e do esforço imposto. Para ele, nem um nem outro são educativos, por que são apenas motivações a curto prazo e superficiais. O pedagogo deve suscitar o interesse verdadeiro, isto é, a participação do eu inteiro na obra que ele leva a cabo. Para o lá do desejo efêmero e do esforço ingrato, importa encontrar o interessante, que suscita por si mesmo o esforço em profundidade e a alegria verdadeira. Como? De facto, diz Dewey, todo o ensino deve ser uma resposta, isto é, partir das questões ao mesmo tempo intelectuais e afectivas que os alunos levantam. Ora esta dialéctica questão/resposta realiza-se concretamente na obra. Na obra (quer se trate de um trabalho de marcenaria, de um romance escrito em equipa ou de uma cooperativa), os alunos levantam problemas que não podem resolver a não ser graças aos saberes científicos ou outros; interessam-se pelos programas porque tem deles necessidade, e esforçam-se por aprender, não para obter uma recompensa, mas para fazer a sua obra; ela motiva-os porque é “sua” e porque nela se exprimem . Síntese bela, mas utópica. Por exemplo, suponhamos que um colégio (como vimos na Escócia) decide montar uma ópera, e bem, e em público. Para que a obra tenha êxito, seleccionar-se-ão naturalmente os melhores cantores, os melhores instrumentistas, os melhores desenhadores para os cenários, os melhores calculadores para o orçamento... os “bons para 43

A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

nada” são relegados para serem figurantes e para a venda de bilhetes. A obra terá “interessado” a toda a gente, mas agravando o fosso entre os ases e os coitados. O problema da escola não é que se interessem, mas que se interessem por aquilo que importa aprender. Não poderá encon­ trar-se uma outra síntese? Que se trate das culturas ditas orais, ou dos mestres do pensamento antigo, ou ainda de Cristo, encontra-se em toda a parte o mesmo movimento pedagógico, que é o do segredo. O mestre “motiva” não ostentando os seus saberes, mas ocultando-os, mostrando aos discípulos que lhes será necessário tempo e muitos esforços para alcançar o segredo dos segredos. As parábolas de Cristo têm um sentido escondido que intrigava os discípulos e que, por vezes, nos intriga ainda (por exemplo, a dos Talentos). De igual modo, o que nos fascina ainda em Platão é a arte com que ele sugere que existe uma verdade transcendente (o Bem, para lá de tudo) sem nunca nos dizer o que ela é, deixando-nos o desejo de a encontrar; põe-nos assim no caminho e aí nos deixa; para sempre. A pedagogia do segredo não é o apanágio de alguns mestres, mais ou menos esotéricos. Poderia aplicar-se, pensamos nós, a todo o ensino. Assim, pode ler-se aos alunos A cigarra e a formiga perguntando-lhes: quem tem razão? Depois, fazer que a leiam dando razão ora à cigarra ora à formiga; em seguida, levá-los a discutir, sem nunca lhes dar a resposta, que, decerto, não existe. Sim, motivar os alunos pelo enigma a buscar, até que compreendam, no fim de contas, que o segredo se encontra neles.

III. - A transmissão e a espontaneidade Uma terceira antinomia retoma a segunda em termos um pouco diferentes, porque insiste no problema dos conteúdos. Por um lado, a educação (em todos os sentidos do termo) deve transmitir tipos de saber-fazer, saberes e valores, por outras palavras, permitir a cada um apropriar-se da maior e da melhor parte possível do patrimônio humano. Mas, por outro lado, não será verdade que impor modelos leva a fazer do educado um ser passivo e submisso, destruindo nele a maravilhosa criatividade que apenas se quer exprimir e que, impedida, explodirá sob formas aberrantes ou viciosas, como o vandalismo, a agressão? Notemos que o termo de transmissão não passa de uma metáfora, e até infeliz, porque faz do saber uma coisa inerte, e do discente um recep­ tor passivo. Lembremos a magnífica sentença de Aragon: “A experiência não é transmissível; só o dogmatismo.” A fortiori, não se pode transmitir 44

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um saber matemático, nem a inteligência de uma obra; quando muito, instruções cegas, como a uma sentinela. Será então preciso renunciar aos modelos e insistir na criatividade de quem aprende, no texto livre, no desenho livre, na expressão livre? É fácil responder que a criatividade da criança é também um produto, modelado pelo meio, pela família, pelos instrumentos de comunicação, etc. Além disso, a liberdade, no sentido de espontaneidade, de desembaraço, de expressão de si, deve ser apreendida. Para chegar a escrever o que se quer e como se quer, importa passar pela aprendizagem da sintaxe c do estilo para, depois, as infringir, se se achar bem. Igualmente para o desenho: a facilidade, a ligeireza do traço, o enquadramento, a expressão são o fruto de uma longa paciência. Também para o juízo; é necessário aprender a ver, a ouvir, a compreender para “se fazer uma ideia pessoal”, para se libertar dos chavões e dos preconceitos. Também aqui é necessário encontrar uma síntese entre os dois termos que são, por fim, apenas caricaturas da educação. Uma síntese que consistisse em mostrar que o verdadeiro saber é por essência dinâmico e corresponde à actividade daquele que o adquire; que aprender é “o acto comum” de quem aprende e do apreendido. Importa, sim, encontrar este acto comum. Tomemos, por exemplo, uma língua estrangeira. Ela comporta, sem dúvida, muitos elementos inertes, uma “bagagem” léxical e sintáxica completa que é necessário aprender. Simplesmente, ao aprendê-la, adquire-se um saber de outra ordem; não um código inerte, uma série de autom atism os do gênero: Danke schõn - Bitte schõn, mas uma competência lingüística, isto é, a aptidão para formar e compreender um número ilimitado de frases correctas nesta língua. O mesmo se passa nas matemáticas, em que não se aprendem regras cegas, mas algoritmos que permitem raciocinar c construir. Igualmente em todos os domínios estéticos, onde se adquire a dupla competência de se exprimir e de interpretar. A competência, para lá da transmissão e da espontâneidade, é o acto que buscávamos. Supõe duas coisas. Em primeiro lugar, que o espírito humano é, à partida, capaz de aprender, que possui no estado implícito as regras que lhe permitem utilizar e, antes de mais, assimilar os saberes lingüísticos, matemáticos, éticos ou outros, saberes pelos quais o espírito é “humano”, a aptidão para os adquirir, pois é isso que o define como “espírito”. A competência supõe também que os saberes não constituem uma bagagem inerte, mas uma forma dinâmica; a competência do jogador de xadrez não se reduz a conhecer as regras, nem sequer a reter um grande número de jogadas típicas; consiste em encontrar de 45

A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

cada vez a melhor solução, já que as regras e os modelos não passam de auxiliares. Que queria, pois, dizer Platão como o seu célebre paradoxo: nunca se aprende a não ser o que já se sabia? É verdade que ninguém traz em si. inatas, as regras da gramática chinesa; contudo, cada um traz em si a gramática universal que lhe permitirá compreendê-las e aplicá-las, no dia em que as aprender. É verdade que não se pode inventar um quadro que nunca se viu, mas pode compreender-se quando se vê, e mais e melhor se contempla, até nele nos "encontrarmos”. Inclusive a aprendizagem da dança ou do desenho confirma o paradoxo; pois o aluno parte sempre do que sabe fazer, que lodo o seu progresso consiste em eliminar os gestos parasitas e em encadear os gestos bem sucedidos. Defendemos uma pedagogia da competência.

IV. - A incerteza e a tecnicidade Tal não impede que a educação comporte uma parte de inércia, de gestos mecânicos, de termos que se devem saber de cor, etc., e que é sobre este soclo que se constrói a competência. O interesse maior das técnicas pedagógicas é reduzir tanto quanto possível esta parte de inércia. Técnicas, sempre as esteve a educação. Técnicas externas, como o abecedário, o ábaco, e até a palmatória! Técnicas internas, como a retórica e a dialéctica, que dominaram o ensino até ao século XVIII. Mas, nos nossos dias, trata-se de outra coisa. Em primeiro lugar, assistimos a uma proliferação de inovações técnicas: o ensino programado, o audiovisual, os objectivos pedagógicos, o micro-ensino, o ensino assistido por computador (EAC) com ou sem inteligência artificial, os programas didácticos LOGO, para apenas citar os mais conhecidos. Em seguida, estas inovações inspiram-se nas técnicas industriais, como mostram os conceitos de “programas”, de “objectivos”, e podem aspirar a uma certa científicidade; sem dúvida, o argumento para tal inovação, muitas vezes, é apenas uma publicidade sem a menor base científica, mas o que importa aqui é que a científicidade é a norma reconhecida. Em fim e sobretudo, estas inovações, embora sejam exclusivas umas relativamente às outras, assentam todas na mesma tese pedagógica. Esta tese pode enunciar-se assim: um educador (ou um sistema educativo) não tem o direito de se desinteressar dos resultados da sua acção. É necessário, pois, fornecer-lhe os “instrumentos” que lhe permitirão controlar estes resultados, avaliar assim o seu ensino do modo 46

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mais objectivo e mais exacto, e corrigir sem cessar a sua acção educativa em função de tal avaliação. O computador aparece hoje como o instrumento ideal, mas o essencial não reside no instrumento. O essencial é saber exactamente o que se quer (objectivo terminal), como aí se chega (objectivos operacionais) e, por fim, o que se realizou (avaliação). A tese instrumental está hoje tão difundida e parece tão convincente que é de perguntar que tese se lhe poderia opor. Aparentemente, contudo, a antítese pode aparecer nesta frase de S. Paulo: “Nem o que planta nem o que rega é alguma coisa, mas aquele que faz crescer.” (1 Co III, 7). Para S. Paulo, quem faz crescer é Deus; o semeador e o cultivador são apenas os seus synergoi, os seus auxiliares, que trabalham mas sem conseguir saber em que é que a sua acção contribui para o resultado. Nos nossos dias, falar-se-á de um “crescimento” natural da criança, de que o os educadores são apenas os auxiliares, que farão o seu melhor para facilitar, mas sem nunca estarem certos do resultado, sem jamais poderem dizer se o crescimento terá lugar, nem quando, nem como. A tese instrumental parece ir no sentido da história. Pode, aliás, refutar-se a objecção ingênua que muitas vezes se lhe dirige, a saber, que as técnicas pedagógicas tornariam inútil o professor. Nada disso. Admitamos o EAC; vê-se que os professores são aqui indispensáveis, primeiro para cooperar na construção dos programas didácticos, em seguida para ajudar os alunos a deles se servir, responder às suas questões, etc. As técnicas não suprimem o professor; libertam-no das tarefas ingratas, repetir, corrigir, etc. Simplesmente: poderão controlar-se de modo científico os resultados da educação? Advertir-se-á, em primeiro lugar, que semelhante pretensão se aplica apenas ao ensino. O que bizarramente tem o nome de “objectivos sócio-afectivos”, isto é, os da educação moral, estética, cívica, etc., tudo isso é remetido para o século XXI. Ora, no próprio ensino, a que preço se paga este controlo “científico”? A tentação técnica será sempre reduzir o real ao que se pode observar, controlar, medir; por exemplo, dir-se-á que um ensino teve êxito quando 90% dos discentes atingiram 90% dos objectivos. Além disso, estes objectivos designam condutas observáveis e mensuráveis, como a de fazer uma incisão numa lista, ou de enumerar, ou de reproduzir. À medida que nos afastamos deste gênero de objectivos, afastamo-nos do mensurável, de tal modo que para actos como compreender, julgar, criar, as técnicas não tem grande coisa a dizer. O incômodo é que elas pretendem reduzir o ensino ao que dele conseguem dizer, e portanto eliminar dele tudo o que não é observável e mensurável, todo o qualitativo. Ignoram-se assim os aspectos mais 47

A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

profundos do ensino. Em primeiro lugar, a duração, porque o que se observa é por definição um resultado imedialo e a curto prazo; mas o que escapa a todo o controlo técnico é o modo como este ensino modificou a personalidade do aluno, o que dele restará dentro de vinte anos. O que se também elimina é a liberdade. Ou ela se nega ou se programa, o que eqüivale ao mesmo. Assim o "objeclivo de criatividade”: quais são as qualidades de um bom jornal? Sim, a resposta do estudante pode ser avaliada, mas em função de critérios previamente definidos, que excluem toda a liberdade. O modelo subjacente é o das técnicas industriais. Nestas, sabe-se exactamente tudo o que se faz e, ao encadear um número muito grande de operações parcelares, perfeitam ente analisadas e dominadas, obtém-se um resultado muito complexo e, todavia, de todo previsível: se há imprevistos, são imputados a carências técnicas que a própria técnica pode corrigir. É assim que se constroiem computadores e naves espaciais. Mas será assim que se educa? Se sim, reduzir-se-á o ensino aos resultados imediatos, mensuráveis, que as técnicas podem produzir, ignorando ao mesmo tempo o essencial: a formação, a prazo muito longo, de um espírito livre, capaz de pensar e de julgar, resultado que nada tem a ver com um encadeamento de objectivos. Muitos docentes franceses, ou europeus, responder-nos-ão que não é assim, neste sentido “mecanicista”, que eles utilizam as técnicas pedagógicas, como se servem dos objectivos ou do computador. Sem dúvida. Mas na medida em que reintegram o qualitativo, abandonam o postulado instrumental, já não podem pretender avaliar rigorosamente os resultados da sua acção. Será então preciso abandonar a metáfora industrial em prol da metáfora “hortícula”, será preciso contentar-se com semear e regar deixando a Deus, ou à natureza, de qualquer modo ao desconhecido, o cuidado do essencial? Esta tese, muito negativa, tem pelo menos dois méritos. Primeiro, uma vantagem ética, porque respeita o ser daquele que se educa, ao recusar fazer dele um produto. Em seguida, uma vantagem prática, porque privilegia o global em relação ao analítico; quando se trata de nadar, de fabricar, de andar de bicicleta, é preciso começar por fazer aquilo que se pretende aprender, fazê-lo antes de o saber para saber fazê-lo. Até as competências como a leitura, que exigem uma aprendizagem prévia, não se reduzem a tal; há um momento em que se passa do soletrar ao 1er, à compreensão global, e este momento é a fase essencial, que não se analisa, não se programa. Semear, regar... trata-se, todavia, também aqui de actividades técnicas; é, pois, inteiramente legítimo tentar aperfeiçoá-las, e servir-se 48

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das técnicas pedagógicas para o fazer. Pode pensar-se que o educador verdadeiro faz o seu melhor para aperfeiçoar os seus métodos, para os tomar mais eficazes, sabendo ao mesmo tempo que o essencial está noutro lado, no trabalho do educando sobre si mesmo, trabalho imprevisível e oculto, que ninguém pode programar. E este “não poder” da pedagogia não se deve a falhas técnicas que uma melhor técnica poderia ultrapassar; deve-se à própria natureza da educação. Ao reduzir-se a uma técnica, ela deixaria de ser uma educação. /

V. - A ruptura e a continuidade Há, pois, um mistério no coração da educação, uma “caixa negra” que se interpõe entre os métodos pedagógicos e o seu resultado, sobretudo se se trata de um resultado realmente educativo, isto é, profundo e duradouro. O que nos encaminha para uma última antinomia pedagógica, entre a ruptura e a continuidade. A corrente clássica insiste na necessidade das rupturas em educação. Esta, com efeito, faz passar a criança, o adolescente ou adulto para outro estádio diferente daquele onde ela o encontrou, leva a cabo um salto qualitativo, e isto a todos os níveis. Saber 1er não consiste em soletrar uma série de sílabas, como também compreender um sistema científico não se reduz a encadear uma série de operações. Em ambos os casos, aprender é uma verdadeira mutação interior. O mesmo acontece com uma língua estrangeira; não se vai de modo contínuo do francês para o alemão; é necessária uma ruptura fonética, e sobretudo sintáxica. A corrente inovadora - como num sentido diferente a funcional existe, pelo contrário, na continuidade, afirmando que toda a progressão educativa é o desabrochamento do que a precede. A escola “tradicional” constrange a criança sem se ocupar das suas experiências e dos seus interesses, impõe-lhe soluções a problemas que ela não se põe e que não são os seus, abafa a sua livre actividade a tal ponto que, na aula, toda a iniciativa surge como um delito, toda a cooperação como uma fraude. Resultado: nos bons alunos, um saber pespegado e valores hipócritas; quanto aos outros, a sua falta de atenção, a sua preguiça e a sua indisciplina dão testemunho do carácter nocivo do ensino. Pensa-se no Cancre de Prévert: “Diz não com a cabeça mas diz sim pelo amor diz sim ao que ama diz não ao professor”... 49

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Importa partir deste “sim ” e, como dizia Rousseau, “deixar amadurecer a criança na criança”. Nenhuma das duas teses é defensável no estado puro, e cada uma é refutada pela outra. Uma ruptura forçada só pode levar ao fracasso ou ao endoutrinamento, o que não é melhor! Mas a continuidade descura o valor positivo da educação. Se, com efeito, existe uma educação é porque ninguém vai directamente da sua experiência à ciência; porque aprender não é, ou apenas, fazer o que interessa, mas interessar-se por aquilo que, à partida, não nos diz respeito; porque a criança não está na escola para receber a solução dos seus problemas, mas para aprender a levantar outros, problemas de homem. Maine de Biran escrevia: Homo simplex in animalitate, duplex in humanitate. Nele, esta máxima incidia essencialmente no acto voluntário, no esforço. De facto, quando se realiza um esforço é sempre “contra” alguma coisa, mas o quê? Onde está a resistência que importa vencer? No fundo, em si mesmo. Esforçar-se é lutar contra os seus desejos, con­ tra os seus hábitos, a sua fadiga, o seu medo. É assim que nos desdobramos, que somos homens recusando, pelo menos por um instante, o animal em nós. Sem este poder de se desdobrar, de romper consigo mesmo, não se vê como seria possível a educação. Mas poderá aí permanecer-se? Será preciso verdadeiramente escolher entre a ruptura e a continuidade? Escutemos uma vez mais uma mensagem muito velha. Na Cavema de Platão, os prisioneiros encadeados não podem virar a cabeça para a luz do dia; aliás, não têm o desejo nem sequer a ideia, porque imaginam que as sombras que vêem desfilar no fundo da cavema são a própria realidade; a sua cadeia, para este cativos, é sobretudo a sua ignorância, a sua ilusão de ver e de saber. Para libertar um deles, é preciso, pois, alguém que “o solta e obriga a levantar-se, a virar o pescoço, a andar e a olhar para a luz” (República, 515 «). Este cativo vai, pois, sofrer por ser libertado, e a luz cegá-lo-á. Mas, no llm do longo percurso em direcção ao sol, “será feliz por ter mudado” (516 c). Importa ver aqui o fito da ruptura; não aprisionar, mas libertar; não fazer sofrer, mas levar a descobrir uma alegria mais profunda e duradoira. É necessário ver também a natureza da ruptura; não é renunciar a si mesmo que se impõe ao aluno, mas, pelo contrário, romper com aquilo que o impede de ser ele próprio, com a sua passividade de consumidor de imagens eternamente sentado, com a sua ancilose física e espiritual, com as suas ilusões que são as suas verdadeiras cadeias. Advirtamos que, para Platão, não se trata de dar a vista ao cativo, pois ele já a tem (518 é), mas de o levar a olhar para aquilo que vale 50

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apenas ser visto; não transmitir um saber, mas virar o seu espírito para aquilo que ele merece saber. O mestre, nesta história, não é aquele que transmite; é aquele que interroga e força, pelas suas questões, a inquirir. Sair da caverna e chegar a contemplar, “com toda a sua alma”, a luz do verdadeiro e do bem, será esse o fim da educação? Conhece-se a resposta de Platão: não. Para ele, sair da caverna é apenas o longo desvio que deve ser seguido de um retomo à cavema, à cidade, onde, uma vez habituados à obscuridade, os antigos prisioneiros verão “mil vezes melhor do que os outros”, porque terão compreendido “a verdade do belo, do justo e do bem” (520 c). Na nossa opinião, a alegoria da Cavema não envelheceu; situa-nos no centro da vida pedagógica, mostrando-nos que o ensino só pode ser um longo desvio, portanto, uma ruptura seguida de outras rupturas, que o professor impõe não para constranger mas para libertar, não para transmitir mas para virar o espírito para a luz, não para fazer sofrer mas para levar à alegria. A antinomia ruptura/continuidade poderia ser substituída pela oposição entre desvio e retomo. Não será o ensino o longo desvio que prepara o regresso à vida activa de adultos conscientes e responsáveis? É neste sentido, julgamos nós, que a pedagogia está ligada, do modo mais profundo, à política. N O T A S O B R E A A N T IN O M I A : E s ta s a n á lis e s , c o m o a s d o c a p ítu lo s e g u in te , m o stra rã o se m d ú v id a o q u e im p o rta e n te n d e r p o r “ a n tin o m ia ” . E m p rim e iro lu gar, v c -s e q u e a n tin o m ia n ã o é u m a s im p le s c o n tr a d iç ã o e n ­ tre te o ria s. A p a la v ra te m u m s e n tid o filo s ó fic o , p o r ta n to rig o ro s o e p re c iso . A a n tin o m ia é a c o n tra d iç ã o e n tre d u a s " íe is " , isto é , d o is p r in c íp io s d o s q u a is c a d a u m é , e m si, le g ítim o . S e re to m a rm o s o s n o s s o s e x e m p lo s , v e r -s e - á q u e c a d a u m a d a s teses é ju sta , v álid a, su sc e p tív e l d e “fa z e r a le i” , m a s q u e c a d a u m a d a s an títe se s p o d e te r a s m e s m a s p re te n sõ e s . O ú n ic o m é to d o p a r a re s o lv e r a a n tin o m ia é e n tã o d e s lo c a r- s e p a r a o u tro n ív e l, p a r a u m a sín te s e q u a lita tiv a m e n te d if e re n te . A d v e rte -s e , e m se g u id a , q u e a a n tin o m ia n ã o d e r iv a d e u m c o n f lito d e in te re s s e s , d e p a ix õ e s o u a té d e id e o lo g ia s , q u e d im a n a d a p r ó p ria n a tu r e z a d a c o is a e m q u e s tã o ; a p a r tir d o m o m e n to e m q u e e x is te u m a p e d a g o g ia , c o m o a rte e te o ria d a e d u c a ç ã o , s u rg e m a n tin o m ia s . P o r e x e m p lo : a p e d a g o g ia n ã o p o d e d is p e n s a r té c n ic a s ta n to e f ic a z e s c o m o p o s s ív e is , m a s s e as té c n ic a s p e d a g ó g ic a s fo s s e m p e rfe ita m e n te e fic a z e s , a e d u c a ç ã o n ã o s e ria m a is u m a! O r a e x is te u m a a n tin o m ia a in d a m a is p ro fu n d a ; n ã o s e d e v e à p e d a g o g ia , m a s à p ró p ria e d u c a ç ã o . E d u c a r é f o rm a r a d u lto s, isto é, s e re s liv re s, re s p o n s á v e is p o r si m e sm o s; a e d u c a ç ã o d e v e , p o is, e x c lu ir to d o o c o n s tra n g im e n to d o e d u c a d o r s o b re o e d u c a n d o . M a s u m a e d u c a ç ã o se m c o n s tra n g im e n to , lo n g e d e lib e r ta r a c ria n ç a , e n tr e g a - a a to d a s a s in f lu ê n c ia s e d e ix a - a d e s a r m a d a p e r a n te a s su a s p u ls õ e s . S e r á e n tã o p re c is o a d m itir q u e o a d u lto se f o rm a n ã o p e la e d u c a ç ã o q u e re c e b e , m a s c o n tr a e la ? A b o rd a m o s e s ta a n tin o m ia d a a u to r id a d e n o p r ó x im o c a p ítu lo .

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5 "A AUTORIDADE

A educação aparece como uma relação vertical, no sentido de que o professor se situa acima do aluno, o responsável acima do irresponsável, aquele que sabe acima daquele que ignora, o adulto acimà da criança. Uma relação de autoridade, portanto, e que se manifesta de muitas maneiras: a autoridade do pai, do professor, do examinador, da instituição. Tal parece evidente. E, contudo, não é bem assim, pelo menos nos nossos dias! A autoridade é contestada, tal como os seus sinônimos, a directividade, o poder, os modelos, a instituição, o adulto, etc. Contestação que pode assumir muitos graus, desde a exigência de liberalismo até à recusa radi­ cal de toda a autoridade. E não podemos subtraír-nos ao problema: será legítima a autoridade educativa? Se sim, como fundamentá-la? Se não, substituir por que outra coisa... a educação?

I. - As figuras da autoridade Que é a autoridade? O poder, diremos nós, que alguém tem de fazer que os outros façam o que ele quer, sem ter de recorrer à violência, poder devido quer à sua posição social, quer à sua competência ou ao seu ascendente. A nossa definição assenta no facto de que a obediência nunca é só constrangimento; com efeito, quem obedece pode desobedecer; acontece que tal não é sem risco, inclusive o de perder a sua vida, mas pode. Por outras palavras, toda a autoridade se baseia numa legitimidade que é de uma ordem totalmente diversa da força física, e as diferentes figuras da autoridade definem-se a partir daquilo que as toma legítimas. A primeira, a mais racional de todas, é a do contrato, em que cada 53

A FILOSOFIAJ)A EDUCAÇÃO

uma das partes está ligada pelo seu próprio consentimento. É a autoridade da regra sobre os jogadores, a do projecto sobre aqueles que o conceberam e aceitaram, da instituição democrática. A sua infracção significa fraude ou batota. A segunda é a do perito, do homem cujo conselho se segue sem mesmo o compreender, porque se reconhece a sua competência, porque “tem autoridade” na matéria. Eia não se exprime por ordens ou veredictos, mas por avisos, por prescrições médicas, relatórios, sempre por conselhos. A sua infracção não é uma fraude, mas uma imprudência. A terceira, ainda menos racional, é a do árbitro, que se encontra no desporto, mas também no juiz. Dirime um conflito por uma decisão que o árbitro nem sempre deve justificar, porque está previamente justificado a dá-la. Pensa-se, de facto, que vale mais um veredicto mesm arbitrário que põe fim ao conflito do que um conflito sem fim. O que se exigi do árbitro é, pois, menos conhecimentos do que a independência para com as partes. Aqui a infracção significa desobediência. A quarta, a autoridade do modelo, é de uma ordem totalmente diversa. Em contraste com as precedentes, ela é duradoira; o seu fundamento não é uma necessidade de ocasião, mas o prestígio que irradia do modelo e a admiração que ele suscita. O modelo pode ser uma personagem histórica, um artista, uma vedeta do desporto ou da canção, etc. Aqui a infracção surge como incultura. A quinta, a autoridade do líder, é ainda menos racional. Como a do modelo, assenta no prestígio, mas o prestígio do líder força os outros menos a imitá-lo do que a segui-lo. O seu ascendente responde naqueles que o sofrem a uma dupla necessidade: a de admirar e a de obedecer, no sentido em que a obediência pacifica e dispensa de querer. Curiosamente, é nas situações em que a autoridade adulta se toma ou inumana ou deficiente que os jovens cerram fileiras atrás dos chefes. O nazismo, que assentava neste gênero de autoridade, soube atrair os jovens, persua­ dindo-os de que os “libertava” da tríplice tutela da família, da escola e da Igreja. A última, a mais irracional, é a autoridade do Rei-Pai. A do chefe carismático, do monarca absoluto, do ajudante em campanha; antes de toda a explicação, antes de toda a discussão, ela já ali está, inexplicável e irrevogável; todavia, não é gratuita; nos regimes de poder absoluto, sempre se fez a diferença entre o monarca legítimo e o usurpador, entre o rei e o tirano. É que o prim eiro encarna a transcendência da sociedade relativamente aos indivíduos. Aqui, a infracção é sacrilégio. A figura que a criança primeiramente encontra é a do Rei-Pai, porque o primeiro poder que sobre ela se exerce apresenta-se-lhe como absoluto. 54

A AUTORIDADE

Justifica-se pelo facto de que aquele que a exerce representa a civilização, à qual a criança deve ser “elevada”, mesmo antes de a ter compreendido; também pelo facto de que, sob pena de morte, a criança deve ser protegida e cuidada. Notemos que nos regimes totalitários o poder se legitima argumentando que aqueles que lhe estão sujeitos não são “amadurecidos” para ser livres. O modelo do “direito divino” é a autoridade do adulto sobre a criança. /

II. - O debate sobre a autoridade na educação Como é que o homem se pode, então, emancipar? Não deve ele primeiro pôr fim a esta autoridade, levar a cabo o assassínio do pai? O drama é que este poder não é exterior; é um constrangimento interiorizado por aqueles que a sofrem e que subsiste mediante o seu consentimento. Em cada um de nós existe a submissão a um pai que, segundo Marcuse, explicaria o fracasso de todas as revoluções, porque aqueles que as fazem querem, em seguida, expiar o parricídio por uma submissão ainda mais total. É assim educado o homem que tem medo de ser adulto. Por isso, não se pode destruir esta autoridade por uma força exterior; só é possível afectá-la por uma violência do mesmo tipo que a sua, uma violência simbólica. Não se trata tanto de matar o rei quanto de mostrar que o rei está nu, de contestar a sua legitimidade. A tese radical segundo a qual o modelo e a fonte de toda a autoridade, e também de toda a opressão, é o poder do adulto sobre criança, é fácil responder que, ao suprimi-la, se aniquila a educação; procede-se como se o homem nascesse adulto. Jeremias atribui a Deus estas palavras: “N in g u é m e n s in a rá m a is o se u p ró x im o ou o se u irm ã o , d iz e n d o : A p r e n d e a c o n h e c e r o S e n h o r! P o is to d o s m e c o n h e c e rã o , d e s d e o m a io r a o m a is p e q u e n o .. . ” (Jer, X X X I, 3 4 )

Não ter já de instruir: poderá fazer-se como se a profecia estivesse já realizada, como se já estivéssemos no Reino? O que se pode observar nos “libertários”, nos “contestatários”, em suma, nos adversários de toda a autoridade, é que eles reduzem esta a uma só das suas figuras, a do Rei-Pai. Encerram-se assim numa alternativa algo infantil, como se fosse necessário escolher entre uma liberdade total e uma autoridade totalitária! Não espanta, pois, que os mesmos que pretendiam destruir sob todas as suas formas, a começar pela educação, o poder da burguesia, se tenham muitas vezes posto de joelhos perante 55

A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

os ditadores mais tirânicos e mais sanguinolentos. Também não causa surpresa se tantas pessoas, nos nossos dias, se comportam como neuróticas da autoridade; ou a ela se submetem abdicando de toda a responsabilidade pessoal, ou a rejeitam mesmo nas suas formas mais modestas e mais necessárias. Que adorem a autoridade ou que a rejeitem, mantêm para com ela o mesmo infantilismo cego, como se ela não pudesse ter outra figura excepto a do Rei. Não há uma figura da autoridade, mas várias. E o verdadeiro debate não é entre uma liberdade e uma autoridade igualmente abstractas, mas entre as diferentes figuras da autoridade: qual é a mais apta para educar, isto é, para formar a liberdade? Este debate é o que tem lugar entre os defensores da educação clássica e os da educação nova sob todas as suas formas. A educação clássica situa-se deliberadamente no ideal antigo da paideia. Não exclui de modo algum a liberdade da educação, mas confere-lhe um sentido muito preciso. Os “estudos liberais” pretendem, com efeito, libertar o indivíduo de uma tríplice constrição. Em primeiro lugar, o constrangimento inteiramente exterior de ganhar a sua vida, porque o estudo é desinteressado, todo ele orientado para a felicidade de compreender por compreender. Em seguida, o constrangimento familiar, já que a educação escolar transmite valores racionais que a família não conhece. Por fim, o constrangimento interior dos preconceitos e das paixões, que impedem o indivíduo de ser ele próprio. Assim, a educação clássica, cujo fito é formar o livre juízo, rejeita a autoridade do Rei-Pai. Insiste, pelo contrário, na do especialista e do árbitro, mas sobretudo na do modelo. Pois, segundo ela, é pela admiração e pela imitação dos modelos que se chega a ser si mesmo, a pensar e a julgar por si próprio. O professor, e é nisso que ele se distingue do líder, o professor é o representante (Gusdorf) dos modelos, e a eles vai buscar a sua autoridade; autoridade de perito, porque tem competência para os ensinar; autoridade de árbitro, pois é necessário exercer a disciplina, avaliar, corrigir. Em nome destes modelos, tem por missão sancionar todo o desvio, desde a falta de ortografia até à falta moral. Mas sempre com o fito de fazer seres livres. Simplesmente, será possível fazer seres livres com meios constringentes, impondo modelos que eles não escolheram, uma disciplina que nem sempre compreendem, uma avaliação que não é a sua? Além disso, esta tese não escapa à censura de elitismo. Desde a antiguidade até nós, a cultura “liberal” foi reservada a uma minoria, àqueles que justamente são chamados aos lugares de chefia. Forma menos homens livres do que chefes. 56

A AUTORIDADE

A Educação nova não rejeita toda a forma de autoridade. Aceita a do perito: o professor com efeito, a “pessoa-recurso” que vem em ajuda dos alunos e lhes fornece as explicações que eles pedem. Igualmente a do árbitro, que pode ser ou o professor, ou o Conselho de turma, ou os alunos eleitos pelos seus iguais, mas que permanece indispensável a partir do momento em que há conflitos. Nos dois casos, trata-se de uma autoridade funcional, que se legitima só pela necessidade que delas se tem e que, nem em poder nem em duração, pode exceder a sua função. Em que é que esta tese se opõe à precedente? Quanto ao essencial, na pretensão de substituir a autoridade dos modelos pela do contrato. Os alunos são considerados livres, mas é evidente que devem ir até ao fim do seu projecto, respeitar as decisões daqueles que eles escolheram, etc. A obrigação é sempre de ordem contratual, e as próprias crianças castigam aqueles que a infringem como castigam um trapaceiro (cf. Piaget, 1957). Em contrapartida, já não há modelo imposto. Onde a educação nova não está sujeita aos programas oficiais, os alunos escolhem o que querem aprender ou, melhor dizendo, o que querem fazer, por exemplo escrever conjuntamente um romance, em vez de estudar um autor imposto. Aprendem a autonomia sendo autônomos, a cooperação cooperando, a democracia através da sua prática. Em suma, em nome da liberdade, pretende-se conservar apenas uma obrigação de ordem contratual e uma autoridade de ordem funcional. A questão é saber se é possível ou se, inconscientemente, não se apoia em formas de autoridade que se pretendiam rejeitar. Por exemplo, a do líder. Se o professor renuncia à sua autoridade em favor dos alunos, quem garante que um destes não se erigirá em chefe, aproveitando-se de todos os poderes? De facto, muitas vezes, é o próprio professor que, sem dar por isso, se toma evidente; que, em virtude do seu ascendente, desempenha inconscientemente o papel de um chefe carismático, encarregando-se a colectividade dos alunos de reprimir os eventuais récalcitrantes. Pergunta-se se o êxito de tantas inovações pedagógicas não se explicará assim, pelo ascendente misterioso e, portanto, incontrolável do seu fundador. Mas o risco fundamental da Educação nova, sob todas as suas formas, é não trazer uma solução clara e coerente à questão dos conteúdos do ensino. Ou então abandonam-se pura e simplesmente, deixando aos alunos a escolha do que eles querem expressar e criar. Ou então pensa-se que, apesar de tudo, os alunos devem adquirir o essencial desses conteúdos, que eles não se podem dispensar de uma sólida instrução em todos os domínios, que o laxismo somente pode desfavorecer ainda mais as crianças desfavorecidas. Que fazer então, se não se pretende recorrer ao 57

A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

constrangimento? Enganar, manipular, para levar os alunos a aceitar o que eles devem aceitar, e levá-los a aprender o que não têm desejo de aprender. Estas artimanhas, estas manipulações nada têm de condenável; estes termos pejorativos, na verdade, apenas designam a própria pedagogia! Mas esta já não está legitimada, por se apoiar, sem o dizer, num tipo de autoridade que lhe era indesejável. Que fazer, então? Não negar uma forma de autoridade em favor de outra, mas passar progressivamente de uma a outra. Kant enunciou muito bem o problema: “Deve demonstrar-se à criança que se exerce sobre ela um constrangimento que a leva ao uso da sua própria liberdade” (p. 88). O constrangimento em si não é um mal; é necessário na arte e na ciência, na vida amorosa e na democracia. Sem ele, não se poderia contar com ninguém, e sobretudo consigo mesmo! Mal é a autoridade que impõe o constrangimento pela força ou pela artimanha, em vez de a “provar”. A autoridade constrangente é indispensável para impedir a criança de prejudicar e de se prejudicar, para a incitar a aprender o que por si mesma não aprenderia, para a avaliar quando ela de tal não é capaz. E isto vale, mutatis mutandis, para a educação dos adultos. Quem tem necessidade de ser educado carece de uma autoridade. O fim da educação é aprender a dispensá-la; o pronome “la” não visa aqui a educação, mas a autoridade! Por outras palavras, o fito da educação não é chegar a um estádio em que o educando já não teria de aprender, porque em toda a sua vida tem necessidade de aprender; é permitir a cada qual aprender por si mesmo dispensando o professor, e ir do constrangim ento para o autoconstrangimento, ser maior. Quanto mais cedo e mais concretamente isto se “demonstrar” à criança, tanto melhor.

III. - Educação e democracia Como vimos, os problemas pedagógicos têm uma dimensão política. Pode pensar-se, aliás, que há uma relação entre o regime político de uma sociedade e a pedagogia que ela utiliza no ensino. A relação, porém, não é de sentido único, porque se o ensino é determinado pela sociedade global, ele, por seu tumo, também a determina; ou a fixa ou a transforma. A partir daí, levantaremos a questão: como deve ser o ensino numa sociedade que se pretende democrática? Se a resposta é difícil, é porque a palavra “democracia" está longe de ser unívoca. É o que se adverte com a fórmula democratizar o ensino. Alguns traduzem-na por: dar mais liberdade, mais responsabilidade aos próprios 58

A AUTORIDADE

alunos; o conteúdo da democratização é, então, sobretudo pedagógico. Outros vertem a fórmula de um modo totalmente diferente; tornar todas as crianças iguais perante o ensino, quer dando a todas as mesmas oportunidades, quer, o que é mais lógico, dar mais oportunidades àquelas que estão menos favorecidas à partida, com turmas menos numerosas, cursos de apoio, etc. Para os primeiros, como se vê, o ensino pode permanecer inteiramente inigualitário, pois nada impede a pedagogia democrática de confirmar as diferenças, portanto, as clivagens entre os mais e os menos dotados, entre futuros chefes e futuros subordinados (cf. Meirieu, 1987). Para os segundos, o ensino pode permanecer autoritário, pois o essencial é que ninguém seja desfavorecido. Quanto a nós, pensamos que uma democracia não pode sacrificar nem a liberdade nem a igualdade. Estabeleçamos um primeiro princípio. Como bem mostrara John Dewey, uma sociedade só é realmente democrática se a escola formar realmente democratas. Uma pedagogia autoritária corre o risco de gerar seres submissos ou revoltados, uma pedagogia laxista irresponsáveis. Eis porque o ensino se deve basear, tanto quanto possível, na autoridade do contrato, por exemplo na gestão comum de projectos adoptados em comum. De qualquer forma, a democracia exige que os alunos adquiram, desde que for possível, a autodisciplina, o sentido da cooperação, o respeito do outro que estão no próprio princípio do seu funcionamento. Um segundo princípio é que o ensino fundamental dure o mais possível. Uma sociedade, de facto, não é democrática se ela constrange a maior parte dos jovens a entrar demasiado cedo no mundo do trabalho ou da formação profissional e deixa a uma minoria o lazer de se cultivar, porque essa cultura será apenas a de uma elite dirigente. Em suma, que todos recebam uma cultura de base tão completa quanto possível, portanto, tão longa quanto for necessário. A aplicação deste princípio não é evidente. Efectivamente, que é que ele em rigor exige: que se dê a todos o mesmo ensino fundamental (primário e secundário) ou, pelo contrário, que se diferencie o ensino para o ajustar às aptidões de cada qual? O mesmo ensino para todos: esta solução acaba realmente por reforçar as desigualdades ou, pelo menos, por confirmá-las. Ou então, trata-se de um ensino exigente; se houver alunos que têm necessidade de mais ajuda, ou simplesmente de mais tempo para assimilar, não continuarão e estarão em estado de fracasso permanente. Ou então, trata-se de um ensino fácil - como nos países em que quase todos os jovens se encontram diplomados no fim dos estudos secundários. E, então, sim, todos terão êxito, mas a um nível muito baixo, e os alunos verdadeiramente fortes 59

A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

impor-se-ão de outro modo, por exemplo seguindo cursos privados mais selectivos e mais ambiciosos. Numa palavra, se se reconhece que as crianças, para serem iguais, não são semelhantes, concluir-se-á que não podem receber o mesmo ensino, sem se tomarem realmente desiguais. Então, um ensino diferenciado que, estabelecendo embora o mesmo objectivo fundamental para todos, permite às diversas categorias de alunos alcançá-lo por vias diferentes e segundo o seu próprio ritmo? Resta saber se a “pedagogia diferenciada” suprime as desigualdades com que inicialmente depararou, ou se pelo contrário as consagra. Trata-se aqui de um grave problema, ao mesmo tempo político e pedagógico, que uma democracia não se pode resignar a deixar sem solução. Apresentemos, para acabar, um terceiro princípio. Destinado a todos, o ensino democrático deve ser objectivo. Evitamos aqui o termo “laico”, demasiado conotado, demasiado lastrado com a história da França. E igualmente o termo “neutro”; um ensino não pode ser neutro; o próprio facto de ensinar francês, mais do que determinado dialecto, as ciências e não as ciências ocultas, assenta numa escolha. Aliás, exigir que o ensino seja democrático, quando poderia não o ser, é já uma posição de valor. Que teremos dizer então por objectivo? S. Agostinho escrevia: “Que pai seria tão louco para enviar o filho para a escola com o único fim de aprender o que o mestre pensa?” (De magistm. n° 45). Por outras palavras, o professor está lá para ensinar os saberes e valores que não dependem da sua subjectividade, que o transcendem. Claro está, tem o direito de ter os seus gostos, as suas opiniões; é até desejável que as dê a conhecer aos seus alunos, mas não que as faça aprender, que as ensine. Então, que é que é objectivo? Por um lado, os saberes que dependem da razão humana, isto é, todas as ciências e também os princípios morais sem os quais uma vida em sociedade não seria já possível. E, por outro, as opiniões que são objecto de um consentimento cultural; ora uma das opiniões mais fundamentais da nossa cultura é justamente a democracia. Dirão alguns que a democracia exige demasiado pouco do seu ensino, que se revela incapaz de inculcar os valores que entusiasmam os jovens, cimentam uma sociedade e dão um sentido à vida. Quanto a nós, não se trata de uma carência da democracia, mas da sua própria essência. Uma sociedade verdadeiramente democrática reconhece-se, em primeiro lugar, por não estar dedicada a um valor, mas a vários, que podem ser ou parecer incompatíveis, mas que de qualquer modo não dependem do poder, o qual não deve “dizer o senlido", O papel de um Estado democrático é, pelo contrário, permitir a cada um encontrar por si mesmo o sentido da sua vida, como adulto. Um Estado só é democrático se renunciar a ser uma Igreja. 60

A AUTORIDADE

Ora, numa sociedade moderna, o ensino é, no essencial, público. Mesmo quando é juridicamente privado, depende do Estado (ou da Região), que lhe impõe os seus programas e os seus exames, controla os seus mestres e, em parte, o financia. Em democracia, o poder do Estado detém-se no limiar das convicções, porque a sua função é protegê-las, não proibi-las ou suscitá-las. Ora, se um poder privado, o ensino de uma Igreja por exemplo, pretende, por seu turno, criar ou proibir as convicções, é justo que o Estado intervenha e imponha o seu controlo para proteger a liberdade de crer. Que este controlo se exerça melhor por um ensino público único ou por um ensino interconfessional semipúblico não é o nosso problema. Digamos apenas que em democracia o Estado (o que não quer dizer o governo) deve controlar o ensino para evitar o endoutrinamento. D aí um últim o problem a: em que é que se reconhece o endoutrinamento? Como não podemos retomar aqui as longas análises que realizámos noutro lado, limitar-nos-emos a responder isto. Um ensino endoutrina, primeiro quando reprime o pensamento, quando, sejam quais forem os seus objectivos, os seus conteúdos ou os seus métodos, obriga as pessoas a crer, levando-as a julgar que pensam. Em seguida, um ensino endoutrina quando inculca o ódio; o ódio, isto é, o desejo de prejudicar uma categoria inteira de pessoas, um povo, uma raça, uma confissão, um desejo na base de desprezo e de temor; porque, ao ensinar o ódio, legitima-se a violência, “aprende-se” a violência como o único recurso e destrói-se assim, no seu próprio princípio, a democracia. É evidente: o endoutrinamento é a perversão da educação. Atribui a si como finalidades: preservar os jovens e formá-los. Escolhe os métodos, todos os métodos, porque se pode endoutrinar pela informática ou também mediante entrevistas não directivas, se é que não melhor do que por meio de cursos e exames. Arroga-se, sobretudo, a autoridade, porque apresenta como um saber o que não passa de um crer, porque legitima o ódio e, portanto, a violência, ao passo que a educação só tem sentido por valores que se opõem ao fanatismo, à violência e ao ódio. Valores que facultam ao homem a maioridade.

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6 O RIGOR

Após termos estudado os fundamentos da autoridade, voltemo-nos agora para o seu exercício. Para tal, decidimos analisar o conceito de rigor, conceito estreitamente ligado à educação. Mostraremos que se trata de um conceito obscuro e que, por isso mesmo, toma problemática a educação. O único meio, pensamos nós, de conferir um sentido ao rigor é confrontá-lo com o seu contrário. Mas que contrário?

I. - Ambivalência e ambigüidade Será possível oferecer uma definição simples e clara do rigor? Parece que não, e que pretender tal seria justamente falta de rigor! “Rigor”: antes de mais, o termo é, em sentido estrito, ambivalente. Pode designar tanto um mal como um bem. Censuram-nos o nosso rigor, como um sinal de dureza, de rigidez. Mas também nos censuram a nossa falta de rigor, como uma prova do deixa-andar, de confusão, de arbitrário e, talvez, até de batota. Quer isto dizer que o rigor é um valor, porque se exige, mas que pode também ser um anti-valor. Calma, porém: esta ambivalência nada tem de excepcional. Deparase com ela em muitos outros valores. A coragem pode degenerar em cegueira, a bondade em estupidez, a moral em moralismo, a justiça em iniqüidade. Aliás, o velho adágio, jus summum, summa injuria, poderia aplicar-se ao próprio rigor; a partir do momento em que ele é “supremo”, é um mal; cai na obstinação, na rigidez, na crueldade, no inumano. Como todo o valor, é necessário repô-lo 110 seu lugar. Não há verdadeira coragem sem clarividência, nem verdadeira clarividência sem coragem. O mesmo se passa com o rigor. É-lhe necessário um outro, um valor contrário e complementar que o equilibre. Mas que valor? 63

A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

“Rigor”: o termo não é só ambivalente, é ambíguo. Ou, como dizem os linguistas, polissémico. Por outras palavras, tem vários sentidos que, embora não independentes, não se podem reduzir a um só. É o que se compreenderá com alguns exemplos. “O rigor do inverno”, “o rigor das matemáticas”: que podem eles ter em comum? Pois bem, nos dois casos, nota-se igualmente a presença de uma necessidade inflexível, que impõe silêncio aos nossos desejos. Necessidade de facto, no caso do inverno. Necessidade lógica, no das matemáticas. Mas estes dois rigores têm pelo menos isto de comum: não humilham. Rigor do Es ist so, do “é assim”. Ora se dissermos: “O professor de matemática dá prova de um grande rigor”, a frase pode significar duas coisas: ou que ele raciocina de modo muito estrito, ou que castiga severamente... Descobrimos aqui um outro rigor, sinônim o de severidade; “ rigor de um castigo”, “de um regulamento”, "de um exame”, "rigores dc uma mulher" (sempre no plu­ ral, e considerado envelhecido...). De qualquer modo, o rigor-severidade não é a necessidade que se encontrava nas matemáticas ou no inverno. Pois pode ser-se “demasiado” severo, ou “não bastante”. Onde o procurador exige que se aplique a lei “com todo o seu rigor”, o advogado solicita a “compreensão” do tribunal. A severidade comporta, pois, uma parte de arbitrário. E, todavia, refere-se também ela a uma lei, ou a uma regra, que a legítima e sem a qual não passaria de crueldade. Porquê esta polissemia, fonte de tantas ambigüidades? Poderia pensar-se que “rigor” é uma palavra que dá para tudo, uma construção defeituosa da língua francesa. E, todavia, encontra-se um termo equivalente, com a mesma polissemia, noutras línguas: the rigour em inglês, die Strenge em alemão, è austerotéia em grego moderno; os dicionários apresentam sempre o mesmo leque de sentidos: rigor, severidade, dureza, austeridade, inclemência, exigência de exactidão e de precisão. Prova de que esta polissemia não é fortuita, que todos estes sentidos têm entre si um laço orgânico. Qual? Em primeiro lugar, nesta superabundância de sentidos, podem distinguir-se dois pólos opostos: o rigor como severidade, o rigor como coerência. Severidade. Que o rigor seja o do clima, de uma doença, de um regulamento, de um juiz, faz sempre sofrer quem lhe está sujeito. Simplesmente, este sofrimento considera-se necessário, ou no sentido de inevitável, ou no sentido de indispensável, sempre no sentido de legítimo. O rigor é incômodo, e nem quer concede o direito de gritar! Coerência. O rigor é o facto de fornecer definições precisas e de a elas se ater, de encadear os seus argumentos com uma lógica estrita, de 64

O RIGOR

verificar (ou de “falsificar”) as suas teorias e buscando os factos susceptíveis de as enfraquecer. Não será este rigor indolor? E, todavia, opõe-se também aos nossos sonhos, aos nossos desejos, ao nosso narcisismo. Mesmo no sentido de coerência, o rigor jamais sorri. É frustrante, e o pior é que ele nos frustra, impondo-nos o consenso. Vemos agora o que liga todos estes sentidos. O rigor é uma severidade ou uma coerência dolorosa ou frustrante para aqueles que o suportam, mas que se pretende justificada. Precisemos que é ele que tal pretende, e que a sua justificação é por vezes falaciosa. Que é, de facto, o rigorismo, senão a perversão que consiste em crer que o rigor é sempre de rigor, que importa aplicar a regra em toda a sua severidade? Como se a severidade não fosse uma escolha, um “eu quero” tanto como um “é preciso”. Então, como distinguir o “bom rigor” do rigorismo? Onde o problema se impõe por si mesmo, e com maior acuidade, é no domínio da educação. II. - O rigor na educação Em muitas culturas, sobretudo nas ditas “tradicionais”, educação e rigor são inseparáveis. Por exemplo, este versículo da Bíblia: “Aquele que poupa o chicote, odeia o seu filho; aquele que o ama, corrige-o sem demora.” (Provérbios, XIII, 24). Não recordemos aqui o chavão do pessimismo judeo-cristão; encontra-se o mesmo gênero de conselho noutras culturas. Por exemplo, esta sentença dos escribas egípcios: “O ouvido do aluno são as suas costas. Ouve quando lhe batem.” Segundo H.-I. Marrou, os dois maiores instrumentos pedagógicos da escola romana eram a palmatória e o bastão; e a expressão “dar a mão à palmatória” era uma paráfrase elegante para estudar. Por vezes, os dois termos identificam-se. Assim, em grego, o verbo paideuein, derivado de paideia (educação), acabou por significar apenas castigar, corrigir. Como se todo o acto pedagógico se reduzisse a uma correcção! Quer isto dizer que se via na criança um ser mau? Na verdade, a teoria da criança manchada pelo pecado original é bastante rara, mesmo nos teólogos cristãos; dele não há nenhum vestígio no Novo Testamento. Digamos antes que se via na criança um pequeno selvagem, que era necessário sem tréguas educar, emendar, domar, domesticar, cultivar começando por sachar e cavar o solo, ou, para tudo dizer numa palavra, corrigir. Não o fazer era abandoná-la a um crescimento aberrante ou vicioso. Malus, puer robustus, diz Hobbes; o homem mau é apenas uma criança robusta, que cresceu em força, não em consciência e em sabedoria. Assim, o rigor está no próprio coração da educação. 65

A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

Ora, no vasto campo da educação, a escola introduzirá um acréscimo de rigor, ou melhor, um segundo rigor. Ao rigor-severidade, acrescenta o rigor-coerência, agrupando os alunos de uma mesma idade e de um mesmo nível, repartindo o ensino em “disciplinas” distintas, cada uma estruturada por um programa que importa percorrer até ao fim. Disciplina. Insistamos aqui ainda na polissemia. A palavra significa, primeiro, uma regra de conduta, comum a uma instituição inteira (Igreja, exército) e cuja infracção é sancionada. Significa também uma matéria de ensino (latim, música) enquanto é organizada e programada para poder ser ensinada. A educação clássica une estas duas “disciplinas”, a que se ensina e a que se impõe. A escola defenderá, pois, valores como a obediência, a exactidão, a ordem, o esforço, o método dos valores de rigor. Hoje, sem dúvida, as coisas mudaram muito. E se quiséssemos descrever as pedagogias do anti-rigor, teríamos apenas o embaraço da escolha. Limitemo-nos à mais importante. Jean-Jacques Rousseau, num grito que não deixámos ainda de ouvir, insurge-se contra esta teoria da educação como correcção: “A natureza da criança é boa”; em termos hodiemos: a criança tem um crescimento que é em si mesmo são e criativo, que não se trata, pois, de corrigir, mas de proteger. E contra quê? Antes de mais, contra as instituições ditas educativas, a família, a Igreja, a escola! Segundo Rousseau, elas são apenas correctivas e, por sua causa, a nossa sociedade não é feita de adultos, mas de “crianças estragadas pelo educação” (Emile, p, 72). Esta falsa educação perverte o conhecimento da criança pelos seus constrangimentos e pelo seu resultado escolar, quando o que importaria era antes deixar trabalhar a natureza, deixar amadurecer a infância da criança, perder tempo para ganhar! Mas, acima tudo, a nossa educação perverte a criança pelos seus dois excessos, contrários e complementares: o rigor, que ordena, reprime, castiga, e a indulgência, que deixa criança mandar e impor-se. Pelo rigor, ensina-se-lhe a ser escravo, pela indulgência a ser um tirano; nunca a ser livre. Ora, rejeitará Rousseau todo o rigor? Não, há um que lhe parece realmente educador. O paradoxo é que se trata do mais inumano de todos os rigores, a necessidade das coisas. E conhecem-se os seus métodos: nunca ordenar, mas fazer que a criança se submeta ao mundo exterior; nunca proibir, mas tomar o acto impossível; nunca punir, mas deixar acontecer a sanção natural; se a criança parte um vidro, não a censuremos, deixemos que ela tenha frio; vale mais que ela se constipe do que enlouqueça... e este rigor das coisas pode ser muito duro; a criança aprenderá a suportar o frio, a dor, as feridas, a doença, etc. Mas este 66

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rigor é educativo, porque é natural, necessário. E a criança aceita-o espontaneamente, contanto que a deixem viver: “V ejo g a ia to s a b rin c a r n a n ev e, ro x o s, a rre g a n h a d o s, m a l c o n s e g u in d o m e x e r o s d e d o s . S ó e le s é q u e d e v e m ir a q u e c e r- s e , e n a d a fa z e m ; s e a ta l o s o b rig á s s e m o s , se n tiria m c e m v e z m a is o s r ig o re s d o c o n s tra n g im e n to d o q u e o s d o f rio ” {Emile, p. 7 5 ).

Sim, Rousseau aceita o rigor do inverno, como aliás o das matemáticas, que Emile aprenderá, como todas as outras disciplinas, na idade em que realmente delas terá necessidade, sem horários nem programas impostos. O que Rousseau rejeita é o rigor humilhante porque arbitrário, o rigor que o homem exerce sobre o homem. E, antes de mais, sobre a criança. Ora Rousseau, que afirma a necessidade de conhecer criança antes de a instruir, conheceria ele próprio a criança? Alguns, como Alain e Piaget, disseram que não. Ao pretender isolar Em ile da sociedade e educá-lo na natureza - uma natureza, aliás, “falsificada” pelo educador - , Rousseau ignora que a criança é por essência um ser social, que o seu ambiente “natural” não é o mundo físico, mas o meio humano. E é justamente neste ponto que o neo-rousseauísmo corrige Rousseau, completando-o. Ao meio natural, acrescenta o meio humano, mas também ele considerado como natural, a sociedade infantil. É a pedagogia da cooperação, baseada no contrato. Ora esta pedagogia tem o seu próprio rigor, que é duplo. O rigor das coisas, a saber, as exigências e as resistências da obra comum: rigor da madeira, da argila, dos números... E, em seguida, o rigor dos outros; uma assembleia de turma pode tomar decisões severas, pronunciar veredictos sem piedade. Mas o rigor do contrato não é nem arbitrário nem humilhante. Porque é aceite e compreendido, é um justo rigor. Contrato, cooperação, projecto comum: não haverá, contudo, por trás destas inovações, uma espécie de rigor oculto, justamente aquele que se pretendia abolir, o constrangimento vertical do adulto sobre a criança? Pois, ao fim e ao cabo, não é o aluno que decide que haverá contrato, é o professor, ou a instituição. Além disso, mesmo que se chegue a suprim ir realm ente os constrangimentos, os castigos e as normas arbitrárias, há um rigor que permanece intacto, o do fiasco. Nos nossos dias, fala-se muito de pedagogia do êxito. Por outro lado, já há muito que se deixou de bater nos dedos do aprendiz pianista para corrigir os seus erros. E, todavia, a aprendizagem de um músico profissional comporta um rigor muito mais 67

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terrível do que o das pancadas e das censuras; a ameaça permanente do fiasco é que o obriga a trabalhar “como um louco”. E a ameaça do fracasso é a espada de Dâmocles suspensa sobre todas as aprendizagens sérias, a do campeão, do engenheiro, do médico, etc. Pedagogia do êxito: parece-nos que este slogan carece terrivelmente de rigor. É bom, sem dúvida, encorajar cada aluno, inspirar confiança, mostrar-lhe sobretudo que pode mais do que pensa. Mas, por fim, que é o êxito onde o fiasco já não é possível? Que se pode ganhar onde nada há a perder? Também aqui, a criança, o “gaiato” de Rousseau nos dá uma lição de rigor; ela não gosta dos empreendimentos sem risco, raramente aceita jogar onde está certa de ganhar. Aprender não consiste em negar o fiasco, mas pelo contrário em vê-lo lucidamente para dele tirar partido. Aprender não será sempre ultrapassar? Não, não eliminámos o rigor da educação. No melhor dos casos, deslocám o-lo, como pretendia Rousseau. Na pior das hipóteses, mascarámo-lo. O rigor é, segundo a expressão de Michel Tardy (1985), um “invariante da pedagogia”.

III. - O rigor e o seu “outro” Ora, pode ficar-se por aí? Não se tem o direito, ou melhor o dever, de discernir um bom uso do rigor? Tentaremos responder com três proposições, discutíveis, é certo, mas que se pretendem positivas. l.° O rigor é um valor. - Um valor inerente à própria educação, e mais ainda à educação escolar. O rigor é, antes de mais, o que faz compreender à criança que não está destinada a permanecer criança. Aprender o rigor é aprender a crescer, a tomar-se adulto. Que é ser adulto, no sentido ideal e talvez utópico do termo? É fazer passar os seus desejos depois da realidade, é assumir-se, ser coerente, respeitar os seus compromissos, encontrar o seu justo equilíbrio. Ser adulto é ser capaz, em todos os sentidos do termo, de rigor. Responder-se-á que, de qualquer modo, a vida se encarrega de no-lo ensinar. Sem dúvida, mas como? Se se deixa agir a vida, a criança corre o risco de aprender o rigor demasiado cedo, ou demasiado tarde, sempre de modo violento. Tal e qual como se fosse necessário esperar o acidente para aprender a prudência ao volante! Digamos que é preciso aprender o rigor para não o sofrer, aprendê-lo com método para evitar aprendê-lo pela violência. “O rigor é fascista”, dizem alguns. Pensamos que o que caracteriza o fascismo é antes a sua falta de rigor. Na sua teoria, com os seus conceitos 68

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incontroláveis e passionais, como a nação, a raça, o culto do chefe. Na sua prática, que faz do arbitrário um terror quotidiano. Até a “severidade”, de que se gaba o fascismo, carece de rigor, não passa de uma violência brutal e total. Os que dizem que o rigor é fascista não compreendem nem o fascismo nem o rigor. Tomemos outro exemplo, menos trágico, mas muito actual: a falta de rigor na linguagem da educação. Onde as palavras não passam de slogans, por mais generosos que sejam, violenta-nos a linguagem. A pedagogia do êxito: sim, é exaltante, causa euforia. Mas se já não existe o direito de criticar a fórmula sem cometer uma blasfêmia, sofre-se uma violência, decerto uma violência simbólica, mas todavia muito real, porque ela reprime o pensamento. Rigor ou violência, é preciso escolher. E o rigor educativo é uma violência poupada; a violência que a criança poderia sofrer, ou cometer. Retenhamos de Rousseau que o rigor se toma violência, a partir do momento em que é arbitrário. Tanto mais que se trata de um arbitrário específico, que se dissimula, se justifica pela regra, que se apresenta como “sendo de rigor” e, por isso, ainda é pior. Como evitá-lo? 2.° Como nenhum rigor é inócuo, importa sempre dar prova de rigor para com o seu próprio rigor. Trata-se de uma exigência genuinamente intelectual e crítica. Recordemos esta fórmula vertebral de Aristóteles: “B u s c a r p a r a c a d a g ê n e r o d e c o is a s u n ic a m e n te o g r a u d e r ig o r q u e lh e c o n v é m . S e r i a tã o in s e n s a t o a c e i t a r d e u m m a t e m á t i c o a r g u m e n t o s s im p le s m e n te v e ro sím e is c o m o e x ig ir d e u m o r a d o r p o lític o d e m o n s tra ç õ e s r ig o ro s a s ” (Etica a Nicómaco , 1 0 9 4 b).

Por outras palavras, nada é menos científico do que exigir em toda a parte um rigor científico. Nada é mais mistificador do que o rigor aplicado a um domínio que o não comporta. E o que se verifica com a severidade acontece também com a coerência. Desde que se é rigoroso sem ser autocrítico, cai-se no rigorismo, que é uma forma de violência. Assim, um linguista que, para um texto literário, pretende que só existe uma tradução exacta corre o risco de abafar tudo o que o texto encerra de conotação, de emoção, de poesia; o seu pseudo-rigor é apenas uma falta de rigor. Outro exemplo, mais maciço e mais grave: as tentativas de introduzir no ensino um “novo rigor”, graças às técnicas pedagógicas. Assim, para fugir ao arbitrário da avaliação subjectiva, tender-se-á a substituir as provas qualitativas, como uma dissertação ou um desenho, por provas susceptíveis de uma avaliação puramente quantitativa, “portanto” objectiva. Por exemplo, um teste de escolha múltipla: após ter lido um 69

A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

texto, o aluno deverá, perante cinco frases, assinalar aquela que dá a ideia geral do texto. Ou então uma tabela: numa composição de alemão, a nota será proporcional ao número de palavras e inversamente proporcional ao número de erros: avaliar eqüivale a calcular. De qualquer modo, importa ver o que se sacrifica. Com os testes de escolha múltipla, ignoram-se totalmente as capacidades de redacção; mais ainda, impõe-se “a boa resposta”; existe algures uma autoridade que decidiu que a ideia geral do texto era isso, e não é possível discutir. Com a tabela, decidiu-se, de modo igualmente arbitrário, eliminar tudo o que não é calculável, a riqueza semântica e sintáxica, as ideias, o estilo... O poder de avaliar, decerto, é temível; mas o falso rigor dos métodos quantitativos não é mais pertinente nem menos arbitrário do que a avaliação qualitativa. Importaria admitir que o qualitativo não é necessariamente arbitrário, ou antes, que é mais ou menos arbitrário, e que depende do examinador que o seja cada vez menos, por exemplo discutindo as suas notas com os seus colegas, e até com os seus alunos. Em suma, saber ser rigoroso para com o seu próprio rigor. Assim deve ser, sem dúvida, mas em que domínio, para com quem, quando, como, até onde e, finalmente, porquê? Em certos casos, basta uma a régua direita e inflexível. Noutros, seria preciso um fio... como quando se mede uma superfície desigual; um fio ou uma fita assaz dúctil para se ajustar a todas as sinuosidades. Ora, quando é que é necessária a régua ou o fio? Tal não está escrito em nenhum lado. Cabe ao génio do educador achar o seu nível de rigor, já que não se é educador sem um pouco de génio. 3.° Dizíamos no início: o rigor é um valor só se um valor contrário o vier equilibrar. Mas que valor? Qual é o outro do rigor? Entre os contrários, os antônimos da palavra rigor, há alguns que são negativos, como laxismo, confusão, arbitrário. Em contrapartida, também os há positivos: agilidade, doçura, indulgência, compreensão, ternura, criatividade.... Mas nenhum destes candidatos tem a polissemia, tão rica e tão profunda, do termo “rigor”. Lembremos que, para o filósofo, a polissemia é uma pluralidade de sentidos que “faz sentido”. Segundo nós, o anti- rigor autêntico é a graça. Sim, a graça que brinca, que sorri e que dança, a graça que dá sem cálculo e perdoa sem esperar coisa alguma, a graça que, para lá de todo o trabalho e de toda a seriedade, inventa brincando. Sem dúvida, a graça é radicalmente arbitrária; o gracioso tem sempre um lado gratuito; enquanto com o rigor nunca se tem o que se merece, o dom gracioso é sempre imerecido. Mas, se a graça é arbitrária, ela di-lo e 70

O RIGOR

é sem violência, porque sem hipocrisia. Aliás, não estamos a fàlar em especial da graça religiosa, mas de tudo o que na vida se dá gratuitamente. E na educação? A graça é, para todo o educador, uma realidade constatável, com a condição de que ele a queira de facto constatar. A primeira e a mais certa de todas as graças é, efectivãmente, a criança. Pois esta é “dada”, ao mesmo tempo como um facto e como um dom. A criança, não a fazemos, não obstante a nossa pretensão bastante tola de “fazer filhos”. O filho é uma vida que nos é oferecida, com uma infinidade de riquezas potenciais, uma vida que a educação não “faz”, mas que só pode ajudar a florescer. A criança é uma graça que precede todo o esforço, toda a vontade, todo o rigor. E cabe ao “génio” do educador saber encontrá-la. Mas a graça que é a infância não sobreviverá também no adulto? Importa esperar que assim seja. Falávamos da maturidade, obra de rigor se é que existe. Mas a maturidade, com a sua seriedade, o seu trabalho, as suas responsabilidades, a sua razão, o seu equilíbrio, esta maturidade, que vale ela se não soubermos preservar em nós uma certa infância, uma infância que nos sustenta e que nos faz viver até à velhice e até à morte? Educar é, por fim, saber “fazer graça”. De S. Francisco de Assis relata-se este gesto. No seu mosteiro, publicara um regulamento que proibia comer e beber entre as refeições. Ora uma noite, no decurso de uma ronda, descobriu um noviço muito jovem a comer uvas. O rapaz levantou-se, aterrorizado. Será que lhe ia ser aplicada a regra “com todo o seu rigor”? Francisco tomou então um bago de uva e pôs-se a comê-lo. Depois perguntou ao noviço quem era, e falaram durante toda a noite. Eis um exemplo de graça para lá do rigor, e que indica ao rigor os seus limites e o seu sentido. O rigor é inerente a toda a pedagogia. Mas que será de uma pedagogia que não sabe sorrir?

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7 OS VALORES E A EDUCAÇÃO

Até agora, falámos muito de valores; será preciso, perguntar-se-á, ver aí o sinal de algum “regresso”, ou de alguma “restauração”? Nada disso. Os valores nunca desapareceram do domínio educativo pela razão muito simples de que não há educação sem valores. Aprender, quer se trate da gentileza, da música, das ciências, de uma qualificação profissional ou pessoal, aprender é sempre visar algo melhor. Aprende-se a esquiar bem, a bem falar, a bem pensar, a bem fazer. Não tenhamos medo das palavras bem e melhor, são indispensáveis na educação. Só que falar dos valores não é simples. Comecemos por nos interrogar porquê, por inventariar as dificuldades que hoje encontra aquele que pretende estudar os valores na educação.

L - A tentação do positivismo Há ciências humanas, e mais precisamente ciências da educação. Ora, aparentemente, elas não podem afirmar a sua científicidade excepto recusando todo o juízo do valor. A ciência constata, explica e deixa a outros o cuidado, se conseguirem, de propor valores, de prescrever ou de proscrever, de aprovar ou de reprovar. Será, então, possível fazer ciências da educação, sem ter em conta os valores a esta inerentes? Porque, atentemos bem, a maior parte dos fenômenos que estas ciências estudam comportam ou induzem juizos de valor: “inadaptação, disfuncionamento, imaturidade, insucesso escolar, desabrochamento, equilíbrio, reprodução, selecção...”; cita-se ao calhar e poderia continuar-se durante muito tempo. Precisemos que o facto de quantificar os juízos nada aqui altera; “Pedro vale 8/20” é um juízo de 73

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A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

valor, tal como “Pedro é medíocre”, e um nada mais cruel, sem dúvida. Igualmente, enunciar um QI ou uma taxa de insucesso escolar é simplesmente propor juízos de valor quantificados. Daí o paradoxo das ciências da educação. Enquanto ciências, pronunciam-se apenas sobre o que é (is) e não sobre o que deve ser (ought)-, e, todavia, o “ser” de que elas se ocupam, a saber, o facto educativo, é, antes de mais, um dever-ser que comporta, implícita ou explícita, uma escala de valores. Em suma, a ciências da educação não podem evitar falar de valores; mas poderão fazê-lo sem deixar de ser cientificas? Esta questão fornecem, de facto, três respostas. Primeira resposta: a ciência contenta-se com descrever os valores de uma dada sociedade, sem qualquer apreciação a seu respeito. No início do século, Durkheim escrevia, em nome da sociologia: “O homem que queremos ser é o do nosso tempo e do nosso meio.” Hoje, as ciências suprimem o “queremos”; limitam-se a constatar os valores e as hierarquias de valores em tal ou tal sociedade, inclusive na nossa, sem sobre eles se pronunciar, sem julgar o valor destes valores. Segunda resposta: a ciência pode admitir valores, mas funcionais, do tipo: “Se quereis tal fim, então podemos propor-vos este meio como o melhor.” É neste sentido, inteiramente técnico e relativo, que a ciência pode falar de valor. Ser bom é ser bom em alguma coisa, um algo que se pode constatar e até a medir. Dir-se-á, por exemplo, que um “bom” ensino é aquele em que 90% dos objectivos são alcançados por 90% dos discentes. Terceira resposta: a ciência reconhece, todavia, um valor absoluto, pois sem ele nem a ciência nem o pensamento seriam possíveis. Semelhante valor é a coerência. Pode, por exemplo, exigir-se de um programa esco­ lar, seja qual for o seu conteúdo, que ele seja coerente, que os seus elementos sejam compatíveis entre si, e compatíveis com as necessidades da sociedade da qual dimana esse programa. De facto, se se compreendem bem certas análises sociológicas, que denunciam - dizemos bem “denunciam” - o ensino como uma “reprodução”, conclui-se que elas emitem um juízo de valor baseado no princípio de coerência; afirmam que a ideologia oficial da escola única é incompatível com a prática real, que ela legítima mascarando-a. Resta saber se as ciências da educação cumprem o que prometem, se a atitude de objectividade, de instrumentalidade e de coerência em relação aos valores lhes evita verdadeiramente todo o juízo de valor. A primeira solução consiste, pois, em dizer que os valores são factos sociais como os outros, e que a ciência pode constatá-los sem ter de os aprovar. Contudo, dizer que os valores são factos como os outros é fazer 74

OS VALORES E A EDUCAÇÃO

um juízo de valor, que a ciência não autoriza. Vejamos esta definição da educação de M. Lesne (Travail pédagogique etformation d ’adultes, PUF, 1977, p. 22: “Processo pelo qual um ser biológico é transformado em sujeito de uma formação social particular.” Se a seu respeito se reflectir, constata-se que, longe de ser objectiva, ela rebaixa a educação a uma espécie de treino social que exclui toda a abertura, toda a comunicação entre as “formações... particulares”; faz como se educação apenas pudesse ser isso, e não tivesse outro valor. Numa palavra, o realismo que admite apenas o real diz mais do que aquilo que o real lhe ensina; o realismo positivista assenta num juízo de valor. O mesmo se passa com a solução instrumental: será ela tão objectiva como pretende? Na realidade, consiste em fazer da eficácia um valor, digamos mesmo o valor por excelência, a que tudo o mais se subordina. Pouco importa o objectivo, pouco importa que se forme um médico ou um torcionário, o essencial é que os meios sejam eficazes. Mas poderá toda a educação colocar-se sob o signo da eficácia? Todavia, como já vimos, é esse o pendor das técnicas pedagógicas: fazer da eficácia, que é sempre apenas da ordem dos meios, o fim em si. Então, não se suprimem os valores, apenas se inverte a sua hierarquia. A terceira solução, a coerência, não é mais objectiva. Um filósofo americano censurava aos anti-racistas serem, muitas vezes, incoerentes, por exemplo, quando se recusam a sentar-se ao lado de um negro no autocarro. Sem dúvida. Mas valerá mais um racista coerente? De facto, quando se exalta a coerência, não se emite apenas um juízo objectivo, sobre a compatibilidade dos fins entre si, dos meios entre si, ou dos fins e dos meios, mas um juízo de valor que desqualifica todas as incoerências, mais precisamente, que recusa o direito à incoerência, como se esta não fosse um factor de mudança, de abertura, de génio! Esta análise não visa condenar as ciências da educação, às quais seria injusto exigir o que elas não pretendem dar, a saber, juízos de valor absolutos. Mas quem fizesse desta reserva científica uma interdição filosófica, quem dissesse que estas ciências são suficientes e que aquilo que elas não podem conhecer é sem interesse, cairia num positivismo que destruiria a educação no seu próprio princípio. A educação comporta ainda outra coisa de que as ciências não conseguem falar.

II. - A tentação do relativismo Conceder-se-nos-á, decerto, que não há educação sem valores, mas para logo a seguir nos opor uma segunda dificuldade, a saber, que todos 75

A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

os valores são relativos, que dependem dos lugares e das épocas, e que esta relatividade é tal que é quase impossível dar um só e mesmo sentido à palavra educação. Não basta responder, como Rousseau, que essas variações são superficiais, que toda a sociedade conhece o bem e o mal, honra a coragem, a justiça, a fidelidade, etc. Tal resposta é fraca por duas razões. A primeira é que os mesmos valores não se aplicam às mesmas coisas; por exemplo, os Gregos reverenciavam a justiça, mas teriam achado injusto pôr a mulher no mesmo plano que o homem, o escravo que o senhor, etc. A segunda razão é que não só varia o conteúdo dos valores, mas a sua hierarquia; Esparta, na sua educação, punha a coragem acima da justiça, ao contrário de Atenas. Ponhamos de lado outra resposta: que a relatividade dos valores suprimiria toda educação. “A cada qual os seus gostos” aboliria a educação estética; “a cada qual, a sua verdade” a educação científica, etc. De facto, a relatividade dos valores não significa que cada indivíduo possa escolher os seus valores, mas pelo contrário que os valores do indivíduo são determinados pelo meio, pela sociedade, pela cultura onde recebe a sua educação, e que noutra cultura esses valores seriam de todo diferentes. A relatividade dos valores não abole a educação, mas a universalidade da educação. Limitemo-nos a um exemplo. Hoje, na nossa sociedade ocidental, adm ite-se que o espírito crítico e o pensamento pessoal são valores superiores, e portanto os fins por excelência de todo o ensino. Ora não acontece a m esm a coisa noutras culturas; algum as advogam a conformidade, a obediência, a submissão, o respeito dos modelos, a fidelidade à tradição. As ciências sociais, aliás, apercebem-se mais ou menos desta variação, mostram que ela é necessária, sublinhando que a sociedade industrial tem necessidade de homens capazes de reflectir e de criar, a todos os níveis, e tanto mais quanto mais elevados são os níveis. Ora será preciso confundir a relatividade com o relativismo, isto é, a doutrina que considera a relatividade como inultrapassável, afirmando que nada há de universal a não ser os enunciados da ciência? A educação decompor-se-ia então no ensino científico objectivo e numa formação literária, moral, etc., entregue ao arbitrário cultural: monogâmica aqui, poligâmica noutro lado... A excisão das meninas, e até a antropofagia, teriam o mesmo valor que a igualdade, o respeito dos direitos do homem, etc.. Se as ciências humanas se devem resignar ao relativismo, também um educador o poderá fazer? Poderá aceitar que aquilo que ensina seja puramente contingente? Notemos, aliás, que não há nenhuma razão para 76

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exceptuar as ciências do relativismo. A física que ensinamos não é a de ontem nem, sem dúvida, a de amanhã. Então, para que serve? Em vez de argumentar no abstracto, examinemos duas formas particularmente virulentas do relativismo actual. A primeira é o culturalismo, que desemboca numa crítica radical da nossa cultura ou, pelo menos, da sua pretensão a ser universal. Não será a nossa mentalidade racional superior a uma mentalidade tradicional? Não é a nossa música ocidental superior à chinesa ou ao rock? Será a nossa monogamia, aliás bastante relativa, melhor do que a poligamia? A nossa cultura não passa de uma cultura, entre muitas outras. Então, com que direito impô-la, mesmo às nossas crianças? Gostaríamos de ressponder duas coisas. Primeiro, esta cultura é a nossa, e é necessário ter a coragem de ser o que somos, porque, de qualquer modo, nada adianta! Escrevo este livro como homem do Ocidente: não o escolhi, é assim; como judeo-cristão, e assim continuo; por fim, como democrata, e o que digo da educação seria de todo diferente, se o não fosse; mas porque seria ele inteiramente distinto? Em seguida, a nossa cultura é decerto relativa e muito imperfeita, mas ela sabe isso. Em contraste com outras culturas, subestimamos a fidelidade; a convivialidade, com o nosso individualismo; a coragem, com a nossa educação que apenas sabe dizer “atenção!”; o lazer, com a nossa religião do lucro. Mas, por fim, estas carências, podemos conhecê-las e lucrar com esta tomada de consciência. Há muitas culturas que não se podem abrir a outras sem se destruir, para as quais toda a influência, toda a inovação surge como um perigo de morte. Há outras, como a greco-romana ou a islâmica da Idade Média, que souberam abrir-se e mudar, sem se destruir. É o caso da nossa, quando é verdadeiramente ela própria, quando não se fecha no temor e no ódio. Uma cultura viva é a que inova a partir de uma tradição; é uma tradição que evolui, sem se renegar. A segunda forma do relativismo foi típica de um certo marxismo esquerdista, que pretendia que a cultura, sobretudo a cultura escolar, era burguesa, ao serviço da classe dominante. Assim, não é inocente ensinar a abstracção matemática, ou a música de Mozart. Levantámos aqui uma questão: será que o conceito de burguês esclarece verdadeiramente as coisas? Era Euclides burguês? Seria a burguesia verdadeiramente a classe dominante na Viena de Mozart? Este gênero de chavão nada esclarece. Mozart não é burguês, mas é confiscado por uma minoria; a cultura não é burguesa, mas permanece o apanágio de uma classe, que dela se serve para dominar as outras. O problema é que todos tenham a ela acesso. “Não precisamos de uma elite 77

A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

esclarecida, mas de um povo iluminado”, dizia Alain. Tal é o problema, ao mesmo tempo pedagógico e político. A competência do filósofo incide no valor.

III. - A tentação da indiferença Resta uma terceira corrente que toma difícil falar de valores em educação. Não rejeita, sem dúvida, os valores, mas a sua autoridade. Recusa todo o valor constrangente, susceptível de reprimir o desejo, o desabrochamento, a criatividade do indivíduo. Rejeita todo o valor exclusivo, que rebaixa os outros valores ou os valores dos outros. Esta corrente reclama-se, de facto, de valores reais, como a empatia, o desenvolvimento espontâneo, a aceitação incondicional de si e dos outros, o respeito das diferenças, valores que se podem agrupar sob o nome de tolerância. Esta afigura-se, aliás, primordial nos jovens actuais; num exame, perguntávamos a uma estudante: “Qual é para vós o mais imperioso dos deveres? - A tolerância”, respondeu ela sem hesitar. Em educação, tal traduz-se pela filosofia que, nos Estados Unidos, se chama humanismo e, na Europa, não directividade. Para ela, não se trata já de ensinar, mas de propor e de animar. Não de avaliar, mas de sugerir. Rejeita-se todo o juízo que pretenda a objectividade; assim, em vez de dizer “é falso”, ou “está mal”, dir-se-á: “Não estou de acordo”, ou: “Não teria feito como tu.” O valor é sempre apenas aquilo que cada qual pensa e sente de modo autêntico; e ninguém o pode impor. Esta tolerância fez, sem dúvida, progredir a pedagogia, e mais precisamente o sentido dos valores em pedagogia. Desemboca, todavia, em paradoxos insustentáveis, a começar pelo mais cego: ensina-se que não é preciso ensinar! Ao impor esta abstenção, não se faz justamente o que se proíbe fazer, porque se impõe? Mais ainda, se a tolerância se aceitar como valor supremo, não se chegará muito depressa a este problema: é preciso tolerar a intolerância? Não se trata de modo algum de uma questão teórica, de um paradoxo sofistico. Pode um professor, que tem de lidar com um determinado aluno dominador, violento ou fanático, deixá-lo livre para oprimir os outros? Mais ainda: não deve ele proteger esta aluno contra si mesmo? Se o não fizer, renuncia à sua tarefa de educador. Se o fizer, não é intolerante. Que nos seja aqui permitido um exemplo pessoal. Um estudante vem ter connosco, propondo-nos uma tese que, uma vez obtida, lhe permitiria obter um lugar numa universidade estrangeira. À leitura, o texto, sendo aliás de um bom nível, revela-se como mais ou 78

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menos ocultista e, de qualquer modo, dogmático. Recusar a tese é dar prova de intolerância doutrinai. Aceitá-la, porém, não será permitir que a intolerância doutrinai penetre numa universidade, deixar que os estudantes sofram por causa dela, que se degrade a cooperação? A tolerância sem contrapeso, a tolerância sem mais, não passa de indiferença, de uma demissão do educador. Assim para a avaliação: recusá-la é, por um lado, esquivar-se à sua função social, pois a sociedade está no direito de confiar nos diplomas que concede e, por outro, à sua função pedagógica. Sem dúvida, é necessário distinguir. Há casos em que a avaliação só pode ser subjectiva; um professor de música pode dizer que teria interpretado esta obra de maneira diferente, não que a sua interpretação é a única válida. Mas há casos em que o professor pode dizer: “Estais a tocar mal”; acrescentemos que tem mesmo o dever de o dizer; tolerar, aqui, seria mentir. De igual modo, perante um texto a traduzir; entre “Eu teria traduzido de outra maneira” e “Não compreendeste nada no texto”, há uma gama inteira de possíveis respostas, segundo o caso. E a arte do pedagogo é encontrar em que nível de rigor se deve situar a sua avaliação. Infelizmente, a maioria apega-se a uma atitude maniqueia: ou o professor tem sempre razão, ou não tem o direito de ter razão. Resta uma questão, na verdade, central: como educar segundo valores, sem endoutrinar? Parece que se pode responder distinguindo um mau e um bom uso da autoridade. No primeiro, pretende-se impor valores, obriga-se a aderir sem compreender, a admirar fazendo de conta que, e tentando ao mesmo tempo destruir toda a possibilidade de reflexão. Trata-se então de um endoutrinamento. Mas endoutrina-se igualmente quando aqueles que se educam são abandonados ao deixa-andar, à ilusão da escolha, à ignorância do que poderiam saber. Pois há sempre uma educação; se nós, educadores, renunciarmos a comunicar os valores, outros se encarregam, os camaradas, os meios de comunicação, a língua corrente. Ao renunciarmos a iniciar na cultura e nos valores que ela comporta os que se educam, não os deixamos com a liberdade de escolha, entregamo-los a uma subcultura, aos preconceitos, aos entusiasmos passageiros, à moral do clã. Nos nossos dias, o grande perigo de endoutrinamento, aparentemente, não vem da religião nem da política, mas da indiferença, ou de uma certa demissão dos próprios educadores. Um exemplo: um professor de universidade, num curso de história, explica que o calendário muçulmano começa em 622, ano da Hégira. Em seguida, pergunta aos estudantes: “Antes ou depois de Jesus Cristo?” A maioria responde: “Antes”; e um deles chega mesmo a precisar que é 79

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normal, pois Maomé era um profeta! Não, esta ignorância não é inocente; não saber que Maomé quis ultrapassar o cristianismo é desconhecer o Islão e, portanto, desprezá-lo. O segundo uso da autoridade é aquele que a situa nos próprios valores, de que o educador é somente o representante. Ele está ali para tomar o aluno capaz de compreender e de julgar, capaz de admirar e de criar, capaz de bem fazer e de saber porquê. Mas o modo como o aluno virá a usar esta competência não é nem previsível, nem programável; depende unicamente dele. Se aprendeu a pensar por si mesmo, não pensará talvez como se teria pretendido. Se aprendeu a tocar violino, tocará o que quiser... O endoutrinamento consiste em abafar este pensamento, esta vontade. Se se admitir esta argumentação, a nossa tese inicial, que não há educação sem valores, resiste às objecções, à do positivismo, à do relativismo e à do indiferentismo. Mas que se deve entender por valor? Pode responder-se, permanecendo ao nível da linguagem comum. É valor aquilo que vale a pena, isto é, o que merece que se lhe sacrifique alguma coisa. Para que haja sacrifício, é necessário que a coisa sacrificada tenha também valor. Assim se sacrifica o agradável ao útil, o útil ao nobre, etc. Todo o valor se situa, pois, numa hierarquia de valores. Se não há educação sem valor, é lógico que também não há educação sem sacrifícios; aprender é renunciar ao jogo pelo trabalho, ao prazer imediato por uma alegria duradoira (cf. Snyders, 1986), à ilusão inebriante de saber pelo saber critico, às satisfações de amor próprio pelo respeito de outrem. Nada se aprende a não ser renunciando a alguma coisa. Sendo assim, manteremos a questão: que é que vale a pena ensinar? IV. - Que é que vale a pena ensinar? Precisemos que a questão é muito mais restrita do que esta: que é que vale a pena aprender? Pois o dom ínio do aprender excede infinitamente o do ensinar. Limitar-nos-emos aqui aos saberes escolares, por falta de espaço. Uma razão é que a escola, embora não seja a única educadora, comunica competências, saberes e valores específicos, que sem ela desapareceriam. Mesmo se se restringir a questão ao que vale a pena ensinar, importa ver que ela pressupõe um juízo de valor, mais precisamente de preferência; implica que há coisas que não vale a pena serem ensinadas. Porque é que se ensinam as ciências em vez do ocultismo, a língua literária em vez de um dialecto, um romance clássico em vez de um livro que está na moda? Quais são os critérios? 80

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Hoje, muitos seriam tentados a responder: merece ser ensinado o que é exigido pela produção econômica e pela competição internacional. Tal critério é, sem dúvida, importante, mas secundário, ou antes segundo. Segundo, porque se fosse primeiro, sujeitar-se-ia o homem à máquina econômica, far-se-ia dele um instrumento do instrumento, não um adulto livre e responsável. Pode, aliás, observar-se um paradoxo; os países socialistas punham este critério - o trabalho produtivo - em primeiro lugar; ora o êxito econômico não foi o seu ponto forte; ao passo que na cultura humanista, desde a leitura dos romances até à música, eles nos venciam. Podemos então propor esta dupla resposta: vale a pena ser ensinar o que une, e o que liberta. O que une: sim, o que vale a pena ensinar é o que integra cada indivíduo, de um modo duradoiro, numa comunidade tão vasta quanto possível. E é por isso que se ensina uma língua em vez de um dialecto, as ‘ciências em vez do ocultismo, o autor seleccionado pela história em lugar de um romance que está na moda. Advirtamos que a comunidade “tão vasta quanto possível” não é necessariamente um dado empírico, que se poderia estabelecer por uma estatística. O inglês de Oxford não é, decerto, falado pela maioria dos anglófonos, e há de facto mais gente que se interessa pela astrologia do que pela astronomia. O erro de John Dewey foi ter pensado que as matérias de ensino se podiam escolher como se elege um presidente ! Se a ciência, por exemplo, prevalece sobre o ocultismo não é porque uma maioria plebiscitou a ciência, é por razões objectivas que todo o ser racional pode compreender. Freud dizia que as superstições são muito mais correntes e muito mais fortes do que as ciências, por causa dos nossos desejos e das nossas angústias; mas acrescentava: “H á , c o n tu d o , a lg u m a c o is a d e p a r tic u la r n e s ta fra q u e z a (d a c iê n c ia ): a v o z d o in te le c to é b a ix a , m a s n ã o se d e té m p o r n ã o s e r o u v id a ” {L’avenir d'une

illusion, p. 7 7 ).

O valor do intelecto não exclui de modo algum o da afectividade, nem o da memória. Sim, a memória, esta mal amada da nossa cultura contemporânea! Nada há de indigno (pelo contrário!) em saber de cor as grandes datas que servem de marcos miliários à história, ou saber de cor belos poemas, máximas e, porque não, grandes textos filosóficos. Uma sociedade sem memória perdeu a sua identidade; uma sociedade que confia a sua memória aos livros e aos computadores não se encontra em melhor situação, porque as pessoas já nela não se encontram e comunicam. Lesar a memória, como fazem certos “pedagogos”, é um sacrilégio. 81

A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

Notemos que a integração só vale, se for duradoira. O fito real da educação é sempre a longo prazo; concerne não à criança, nem sequer ao adolescente, mas ao homem. Os cristãos, que querem educar para a vida eterna, são talvez inteiramente utópicos, mas esta utopia permanece um grande símbolo da educação. Ora a especificidade do ensino escolar é que ele é, sem dúvida, o único a poder encarregar-se do longo prazo. “Sem dúvida”: sim, a vida oferece-nos as ocasiões, por vezes infelizes, por vezes dolorosas, de aprender tal ou tal coisa que jamais se esquecerá; cada qual pensa em determinado encontro que o “marcou para a vida”. Mas estes encontros não são programáveis, ao passo que o saber escolar é inteiramente programado. Programado para a vida. Eis, pois, o nosso primeiro critério. Se a ele nos ativéssemos, ficar-se-ia aquem do ensino; ter-se-ia descrito a socialização, não a educação. Importa um segundo critério. O que liberta, tal é o segundo critério. Ao fim e ao cabo, que há de comum entre as diversas disciplinas, entre a educação física, técnica, artística, intelectual, e até entre os diversos ramos desta, o científico e literário? Justamente isso. A ginástica, a dança, o desporto libertam-nos das nossas durezas, faltas de jeito, crispações, desperdícios de energia. Õ ensino artístico: tem por objectivo formar imitadores ou criadores? Na nossa opinião, a oposição é fictícia, e o verdadeiro objectivo do ensino artístico é permitir a cada um fazer o que quer, pintar o que quer pintar e como quer pintar. O ensino intelectual, ao libertar dos chavões e dos preconceitos, permite expressar-se e pensar por si mesmo. Quanto à educação moral, ela não consiste em tomar as pessoas “conformes”, mas em libertá-las daquilo que as domina e as cega. Pode ver-se ainda um grande símbolo nesta frase do Evangelho: “Conhecereis a verdade, e a verdade vos libertará” (Jo, VIII). O que liberta: o nosso segundo critério comporta corolários. Em primeiro lugar, um ensino liberta na medida em que é transferível; aprender a dançar, a pintar, a argumentar, outros tantos modos de saber-fazer que podem servir noutras situações diferentes daquela em que se adquiriram. Saber traduzir, por exemplo, esta arte tão difícil, e tão rica de implicações culturais: uma vez que se adquiriu com uma língua, adquiriu-se com todas. Há, sem dúvida, casos em que a transferência é negativa, por exemplo, para passar de um teclado de máquina a outro; mas são casos de automatismos. Quando se trata de competências reais, como tocar um instrumento ou conhecer uma língua, então há o desejo premente de se libertar dos automatismos parasitas; é mais fácil aprender outros instrumentos ou outras línguas; sabe-se mais do que se aprendeu. 82

OS VALORES E A EDUCAÇÃO

Em seguida, um ensino liberta na medida em que é activo, melhor, em que faz agir. Ensinar não é fazer saber, é fazer aprender. Ilustremos com um exemplo. Que tipo de música é necessário ensinar: a clássica, as canções modernas, o rock, a flauta índia...? Se nos fixarmos no segundo critério, a questão não é essa. A boa música é aquela que se faz, a má aquela que se consome. Sim, vale mais exercitar-se pessoalmente a tocar bateria, ainda que fosse em caçarolas, do que suportar um concerto de Vivaldi numa sala de espera. Precisemos: a música que se faz não é só a que se toca, é também a que se escuta activamente, por exemplo investigando o autor, o compasso, a tonalidade, os temas, etc.. A audição é então, como queria Aristóteles, “o acto comum do sensível e do senciente”. Em suma, a libertação tem lugar pela acção. E abordamos assim um problema capital para a educação, o do esforço. Sem entrar na análise psicológica, pode definir-se o esforço como a dificuldade que o indivíduo suporta para adquirir “o que vale a pena”, o cuidado de assumir voluntariamente a sua própria educação. O esforço, claro está, não é tudo; por outro lado, ele é por definição intermitente. O esforço, decerto, não é tudo; “deves apenas fazer um esforço” é muitas vezes uma ordem vã, porque os obstáculos são demasiado pesados. No nosso dias, dir-se-ia antes “descontrai-te” - o que tam bém é inútil! Pois a descontracção aprende-se, e também o esforço. Mas o esforço é ao mesmo tempo um meio de aprender, o único, no fim de contas, com que se pode contar, e um fim, o que vale a pena aprender: aprender a fundar-se em si, em vez de baixar os braços. Se o esforço não pode tudo, nada se pode sem ele; não há libertação sem a vontade. Respondamos a algumas objecções. Primeiro, deparámos com dois critérios: unir e libertar. Dois, não haverá uma a mais, porque, ao fim ao cabo, poderiam muito bem ser antagônicos? O primeiro incita a uma pedagogia da integração: o saber de cor, a imitação, o que no limite conduz à endoutrinação. O segundo, pelo contrário, privilegia a originalidade individual e o espírito crítico, com o risco de criar individualistas e inadaptados. Em suma, poderão estar unidos, sendo livres? Aqui, uma precisão. Há um critério que não mencionámos, justamente porque se subtrai à nossa classificação, porque é ao mesmo tempo o que une e o que liberta. Este critério é a alegria. A alegria não é o prazer, passivo e parcial. Também não é a felicidade, que se apossa totalmente de nós, mas a partir de fora, e sem garantia de duração. A alegria está ao mesmo tempo fora de nós e em nós. É a descoberta, 83

A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

por vezes avassaladora, de um valor de que não suspeitávamos - alegria, após uma longa aprendizagem, de dispor do seu corpo, alegria de compreender uma teoria, de ouvir uma música - mas que exige que demos primeiro, que nos entreguemos para a encontrar, ou para a conservar. A alegria é a união do rigor e da graça e, em todos os domínios, o sinal de que verdadeiramente se aprendeu, o sentimento, como diz Espinosa, de que se passa de um valor menor a um valor superior. Alegria de aprender, alegria de se ultrapassar. Respondamos agora a uma segunda objecção: a nossa teoria insistiria em saberes gratuitos, sem utilidade econômica e profissional. Não eqüivale ela a fazer da escola um luxo inútil? Um luxo, sim. Inútil, não. A escola serve justamente porque é um luxo. Um economista indicava-lhe recentemente como objectivo fazer da França um povo de vendedores. Se assim fosse, não form aria investigadores, artistas, pensadores e, mais grave ainda, deixaria de formar pessoas capazes de os compreender, os amar, e até de os criticar. Não subestimamos a formação profissional, mas apreciamos, antes de mais, o que a prepara, impedindo que nela nos alienemos. De facto, o que se ensina na escola, primária ou secundária, não é profissional. Precisemos bem: tudo o que aí se ensina. A tecnologia escolar, o desporto escolar não são mais profissionais do que a história ou a filosofia. Porquê? Porque na escola, o aluno está lá para si; não se forma para tal ou tal ofício, ensina-se-lhe a tornar-se homem. E a formação profissional deve vir só depois. Sim, a escola é um luxo; e tal definição é política. Que todos os jovens possam ter direito a este luxo, e durante o mais longo tempo possível, e sem que nenhum deles seja excluído, não é por excelência a marca da democracia?

V. - A educação e o sagrado Uma última questão: quando falamos de “valores”, não falamos, de facto, de outra coisa, que ocultamos sob esta palavra, “outra coisa” que já não ousamos chamar pelo seu verdadeiro nome, e que é o sagrado? Se se admitir o nosso axioma, de que não há educação sem valores, pode completar-se assim: não há educação sem um certo sagrado. Serão sagrados todos os valores? Decerto que não. Poderiam consi­ derar-se puramente profanos os valores técnicos, utilitários, econômicos, que se resumem pela ideia de eficácia. Esta não passa de um meio, e a questão: “Em que é que isto é eficaz?” deixa intacta uma outra questão: “Para quem?” Sem dúvida, mas desde que se deixa de levantar esta 84

OS VALORES E A EDUCAÇÃO

segunda questão, a partir do momento em que se toma a eficácia pôr fim último, ela própria se toma sagrada. O pendor da nossa civilização técnica é fazer da eficácia um valor absoluto; sim, um destino nos impele a ser cada vez mais “realizadores”, mais “competitivos”, mais “produtivos”, sem saber para quê e para quem. Vimos que a própria educação é arrastada para este destino. Reconheçamos, contudo, que a palavra “sagrado” tem um som estranho para o homem contemporâneo. Em primeiro lugar, o sagrado é o irracional, o misticismo cego, o mistério que não se pode compreender, mais ainda, que seria um sacrilégio pretender compreender. Em seguida e sobretudo, o sagrado é o arbitrário que destrói a nossa autonomia e acincalha os valores éticos mais certos; falar do sagrado não será evocar os sacrifícios sangrentos, a expiação colectiva, o inferno eterno? Perante este mistério insondável e terrífico, o homem tem apenas de se curvar, de renunciar à sua inteligência, de depor a sua autonomia. E compreende-se então que a nossa educação não se ocupe de semelhante sagrado, que a sua tarefa essencial seja antes libertar dele o homem, apagar em cada um o que lhe resta de temores inexplicáveis, de culpabilidade irracional, de credulidade cega e fanática. E tão verdade é que esta libertação, que a educação nem sempre lhe dá, o homem actual a pede à psicanálise. O homem moderno atribuiu a si o direito de ser juiz do sagrado, e é precisamente nisso que ele é “moderno”. Advirtamos, porém, que este direito já há muito o alcançou. Desde Sócrates, que pergunta se uma coisa é santa porque os deuses a aprovam ou se, pelo contrário a aprovam porque é santa. Desde os profetas da Bíblia, que se insurgem contra os sacrifícios interesseiros e o castigo dos inocentes. Ora eqüivalerá o direito de julgar o sagrado necessariamente à sua supressão? Não poderá ele, pelo contrário, visar autentificá-lo, mudar o temor em respeito, a cegueira em luz, o fanatismo em amor do próximo? Com uma tradição filosófica inteira (Comte, Durkheim, Alain), pensamos que se os homens se libertam do sagrado ancestral, nem por isso se desembaraçam do sagrado; que, a partir do momento em que falam de valores e fazem juízos de valor, o sagrado está sempre presente. O fito da educação, seja ela religiosa ou laica, pouco importa aqui, já não é então destruir na criança o sentimento do sagrado, mas de o purificar, de o elevar. A educação da criança, como a do gênero humano, é no fundo uma educação do sagrado. Onde se reconhece, pois, o sagrado? Se o seu conteúdo (os tabus, os totems, os deuses) varia muito de uma cultura para outra, há dois traços que são próprios do sagrado e só dele, que bastam para testemunhar 85

A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

a sua presença na consciência dos homens. Esse dois traços são o sacrifício e o sacrilégio. A partir do momento em que um valor nos exige um sacrifício - e tal é a própria definição de valor - a partir do momento em que nos convida a renunciar a alguma coisa, desde o prazer imediato até à própria vida, ele é sagrado. Mais ainda, a partir do momento em que a transgressão de um valor surge não só como um erro ou um fiasco, mas como uma violência, uma violação, um escândalo, uma blasfêmia, numa palavra, como um sacrilégio, é porque o valor é em si mesmo sagrado. E estam os aqui no coração da educação. Pois esta convida necessariamente ao sacrifício, opõe-se necessariamente ao sacrilégio. Educar é aprender a sacrificar o gozo imediato e face àquilo que “vale a pena” consagrar-se; é aprender a respeitar os direitos de outrem, da colectividade e, por fim, os direitos do homem, que transcendem toda a colectividade; é iniciar-se naquilo permanece, para lá de todas as variações culturais e religiosas, sagrado. Educar é também aprender a respeitar sem condições “a viúva e o órfão”, tudo o que está desarmado, sem defesa, a revoltar-se contra tudo o que lesa esta fraqueza, tal como nos insurgimos contra um sacrilégio. Objectar-se-nos-á que a nossa educação se pretende, justamente, racional, e que a razão é por vocação profanadora. Sem dúvida, mas o que a razão quer destruir é apenas um certo sagrado, arcaico, irracional, amoral. E que é que nos impede de pensar que a razão, enquanto exigência de compreender e de ser autônomo, que a razão é em si mesma um valor e, por conseguinte, sagrada? Que é ser razoável senão respeitar a verdade, pronto a sacrificar os seus desejos mais caros (a começar pelo desejo de saber), poder dar razão ao outro, pronto a sacrificar o seu amor-próprio? Se o sagrado ancestral podia ser amoral, não se pode dizer que os nossos valores morais de autonomia, de respeito do outro, de comunhão humana são sagrados? De facto, rejeitar estes valores é votar-se ao desprezo do direito, à violação, ao sacrilégio. A razão é sagrada, porque o homem é sagrado. Ao sagrado está ligado o símbolo, que aliás exigiria longos desenvolvimentos. Que é um símbolo? Que é que o distingue de um signo lingüístico, de um sinal, de um indício, de um “símbolo” no sentido matemático? O símbolo é uma coisa - não importa que coisa, um objecto, um gesto, uma palavra, uma imagem, uma personagem... - , uma coisa que remete para outra; e esta outra coisa é sempre um valor. Valor de uma colectividade, quase sempre, como se vê na bandeira, na cruz, nós gestos de delicadeza; mas que pode também ser apenas humana, no sentido 86

OS VALORES DA EDUCAÇÃO

de que todo o homem a pode compreender e respeitar. Em 1945, no seu país devastado, os Russos consideraram como prioritária a reconstrução das velhas igrejas e do^(|)alácios imperiais, porque viam neles o símbolo da sua identidade; não é necessário ser cidadão soviético para compreender e respeitar este simbolismo. Além disso, o que caracteriza o laço simbólico é que o símbolo participa naquilo que ele simboliza, transporta o seu valor, o que não acontece com o signo lingüístico, com o sinal ou o indício; de tal modo que atentar contra um símbolo surge sempre como um sacrilégio, até para o delinqüente. Assim, quando se transgridem as regras da boa educação, quando se diz um provérbio ou um poema sem respeitar o texto, escandaliza-se. Sinal de um certo sagrado, o símbolo é ele próprio sagrado. Se a educação se sujeita aos símbolos, cai no conformismo; pense-se no culto que alguns votam à ortografia. Mas se ela os ignorar, mutila-se, porque o homem não pode dispensar os símbolos. Importa, pois, aprendê-los, em todos os sentidos do termo “aprender”: fazê-los conhecer, fazê-los reter, mas também fazê-los compreender em toda a sua riqueza polissémica. Que valores simbolizam o lobo e o cordeiro da fábula? Quando a educação descura os símbolos, os meios, de comunicação encarregam-se deles - tal desportista, tal canção, tal cantor —mas sem incitar à mínima reflexão. Uma educação sem símbolos perante símbolos sem educação... Ao interrogar-nos sobre o que vale a pena ensinar, salientámos dois grandes tipos de valores: os valores de integração social e os valores de libertação individual. Pode agora ultrapassar-se a sua antinomia, mostrando que uns e outros são humanos, portanto, igualmente sagrados. Integrar o indivíduo numa comunidade tão vasta quanto possível: a comunidade mais vasta é apenas a humanidade, para lá de todas as fronteiras, territoriais, ideológicas ou culturais. Libertar o indivíduo de tudo o que o sujeita é fazer dele um adulto autônomo e responsável, um homem. Dizer que a humanidade é sagrada para homem é ultrapassar a oposição entre a integração e a libertação, a tradição e a razão, a fidelidade e o progresso, o símbolo e a objectividade. Se a educação é o permite à criança humana aceder à cultura, é também ao mesmo tempo o respeito de uma herança e o despertar de uma consciência. Uma não existe sem a outra.

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À GUISA DE CONCLUSÃO

Tentem os, para concluir, um breve balanço deste livro. E, evidentemente, muito incompleto. No campo da educação, talvez privilegie indevidamente o ensino escolar e, além disso, quase não entra nos problemas particulares. Assim, pode fazer-se a filosofia da educação moral, estética, física, bem como dos diversos movimentos de juventude, sem falar das formações contínuas. Porventura, com os nossos métodos, ser-se-á tentado a realizar o que, por falta de lugar, e até de incompetência, não pudemos fazer. Uma censura mais grave poderia incidir na relação do livro com o seu título, que anuncia a filosofia da educação. Quando, na realidade, o que o livro desenvolve é uma filosofia da educação, a saber, a nossa. Mas não há outra! Queremos dizer que não se pode apresentar a filosofia, sem se filosofar. Se nos tivéssemos contentado com descrever a filosofia da educação através dos autores, desde Platão até nós, a nossa exposição não teria sido mais filosófica do que, digamos, a lista telefônica. Optámos por proceder através de questões, servindo-nos dos autores que se nos afiguravam mais pertinentes, e aplicando também os nossos outros quatro métodos. O nosso empenhamento clássico, humanista, é inegável; mas não há filosofia sem empenhamento. Cabe ao leitor responder. Ultima crítica: este livro não fomece nenhuma solução, ou pouca, ao problema crucial da eficácia da educação. E o que agrava o nosso caso é a nossa reserva relativamente às técnicas, ou pelo menos ao tecnicismo, reserva que parece impossibilitar uma tal solução. Não será legítimo pretender uma educação que tenha êxito e, para isso, uma formação eficaz dos educadores? Sem dúvida, uma formação dos educadores é indispensável, mas poderá garantir-se que ela será eficaz como a formação de técnicos ou de 89

publicitários? Quando dizíamos que um professor deve ter “um pouco de génio”, queríamos sugerir que a sua formação não se programa, e que inversamente, ao pretender programá-la, se formam menos mestres do que contramestres. Um educador forma-se, antes de mais, pela sua vontade de se formar, de se corrigir, de se abrir, e tal formação, que depende primeiramente dele, nunca se alcança de uma vez por todas. O mesmo se passa com a educação inteira. Ela visa a maturidade intelectual e a autonomia pessoal, mas não as pode programar sem as destruir! Faz do indivíduo um adulto, capaz de e com conhecimento de causa, mas não pode escolher por ele a fim de que a sua escolha seja o bem. Tal é o limite radical da educação, e o maior perigo para o educador é ignorá-lo, tentar, quer nas proibições, quer nas técnicas, o meio de ditar de uma vez por todas o que se escolherá, em vez de ensinar a escolher. Importa, todavia, aceitá-lo: se se educam seres livres, não existe educação sem risco. Mas qual é então o critério que permite dizer que uma educação é bem sucedida? Há muitos; mas o principal é que ela é bem sucedida se for inacabada, se fornecer ao sujeito os meios e o desejo de a continuar, de dela fazer uma auto-educação. Pois talvez um dia se chegue a ser engenheiro, ou médico ou bom cidadão. Mas nunca se acaba por se tomar um homem.

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BIBLIOGRAFIA

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91

A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

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ÍNDICE

1 - INTRODUÇÃO À FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO.....

9

I. II. III. IV. V.

A história da filosofia................................................ A reflexão sobre as ciências.................................... A análise lógica.......................................................... O argumento a contrário.......................................... A dialéctica...................................................................

11 12 13 14 15

2 -QUE I. II. III.

É A EDUCAÇÃO?..................................................... Criar, Ensinar, formar............................................... A educação entre a natureza e acultura............. Os fins da educação: para asociedadeou para a criança?.........................................................................

17 17 20

3 - AS INSTITUIÇÕES EDUCATIVAS................................. I. Que é uma instituição?............................................ II. Pode evitar-se a finalidade?.................................... III. A família....................................................................... IV. A escola........................................................................ V. A universidade.............................................................

25 25 26 29 33 36

4 - A PEDAGOGIA E AS SUAS ANTINOMIAS............. I. O sofista e os saberes................................................ II. O constrangimento e o desejo................................. III. A transmissão e a espontaneidade.......................... IV. A incerteza e a tecnicicidade................................... V. A ruptura e a continuidade.......................................

41 41 43 44 46 49

93

22

A FILOSOFIA DA EDUCAÇÃO

5 - A AUTORIDADE................................................................... I. As figuras da autoridade............................................. II. O debate sobre a autoridade na educação.............. III. Educação e democracia..................................................

53 513 55 58

6 -0

RIGOR.................................................................................. I. Ambivalência e ambigüidade....................................... II. O rigor na educação................................... ............... I I I . O rigor e o seu “outro”.............................................

63 63 65 68

7 - O S VALORES E A EDUCAÇÃO...................................... I. A tentação do positivismo............................................ II. A tentação do relativismo............................................ III. A tentação da indiferença............................................. IV. Que é que vale a pena ensinar?................................ V. A educação e o sagrado.............................................

73 73 75 78 80 84

À GUISA DE CONCLUSÃO.................................................... BIBLIOGRAFIA.............................................................................

89 91

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OUTROS LIVROS SOBRE EDUCAÇÃO NAS EDIÇÕES 70

O PROCESSO DA EDUCAÇÃO, de Jerome Bruner Código 070-009 — ISBN 972-44-0976-7 Com este clássico sobre a educação, a favor da reforma dos currículos, o autor mostra que os conceitos básicos da ciência e das humanidades podem ser apreendidos pelas crianças muito pequenas. A CULTURA DA EDUCAÇÃO, de Jerome Bruner Código 071-002 — ISBN 972-44-1026-9 Da cultura popular à psicologia educacional, passando pela teoria literária e por uma análise do sistema educacional. Jerome Bruner guia-nos num fascinante percurso sobre as concepções de educação, agora entendida numa acepção mais lata, que pretende, com esta obra, demonstrar que só através de uma plena participação na cultura é que a mente se realiza. A EVOLUÇÃO PSICOLÓGICA DA CRIANÇA, de Henri Wallon Código 070-013 — ISBN 972-44-0987-2 * Um clássico da psicologia da criança, e a obra mais conhecida do célebre pedagogo em que são abordados os grandes problemas da psicologia da criança: o jogo, a motricidade, o desenvolvimento da afectividade, a linguagem, etc. COMO AMAR UMA CRIANÇA, de Janusz Korczack Código 020-046 — ISBN 972-44-0847-7 Um pensamento pedagógico original essencialmente inspirado na prática. O autor foi morto no campo nazi de Treblinka com as 200 crianças do orfanato que dirigia em Varsóvia. TEMPOS CATIVOS / AS CRIANÇAS TV, de Liliane Lurçat Código 070-006 — ISBN 972-44-0964-3 A autora, nesta obra, analisa os efeitos que resultam do facto de o tempo livre das crianças ser, cada vez mais, passado sob controlo da televisão, tomando-se num tempo prisioneiro, num tempo cativo.