A Filosofia da Matemática

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a Filosofia da Matemática

Titulo original: Filosofia de/la M atematica © Ambrogio Giacomo Manno

Tradução de Armindo José Rodrigues Capa de Fernando Camilo Direitos reservados para a Lfngua Portuguesa EDIÇÕES 70-Av. Duque de Ávila, 69-r/c. Esq. 1000 Lisboa -Tels.: 55 68 98/57 20 01 Distribuidor no Brasil: LIVRARIA MARTINS FONTES Rua Conselheiro Ramalho, 330/340 - São Paulo

Ambrogio Giacomo Manno

a Filosofia da Matemática

«As perspectivas do meu livro nao sao decerto muito belas. Com efeito, é claro que ele não agradará àqueles matemáticos que, logo que encontram qualquer expressao lógica como 'conceito', 'relafão', '_juiz.o', pensam de imediato: p v q), 4) Se p ou q é verdade.ira, segue-se que q ou p é verdadeira. (j - : p V (J • ::, lj V p), s) Se ou p, ou «q ou r» é verdadeira, segue-se que, ou q, ou «p ou r» é verdadeira. (1-: p v (q v r). ::> • q v (q v r). 6) Se q .itnplica r, segue-se que «p ou q» implicam ,. Se considerarmos um número 1, afirma-se lá, segue-se que I tem existência; mas 1 não é idêntico à existência, e assim um e a existência são 2, e 2 juntamente com r e a existência constituem uma classe de 3 membros, e assim por diante. ( 122) Paradoxien des Unend/frhen, p. 13 seg., trad. italiana, Feltdnclli, Roma, 1965. ( 123) Was ,ind und was so//en die Zahlen, n 64 scg.; trad. it., Roma, 1926. ( 124) No entanto, Bolzano não se limita unicamente a este argumento.

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dada pela expenencia senslvel imediata, já que a permanência das imagens na retina não nos faz distinguir tão-pouco o suceder-se dos fenómenos. Mas, se não há razões empíricas para provar a infinidade dos entes do mundo, afirma Russell, por outro lado não há, por agora, qualquer razão empírica para nos fazer supor que o seu número é finito. «Dado que o infinito não é uma contradição em si, mas também não é demonstrável por via lógica, concluímos que não se pode saber a priori se o número de coisas existentes no mundo é finito ou infinito» (125). Tal como Leibniz, Russell admite que alguns dos mundos possíveis são finitos, outros infinitos. «O axioma dos infinitos será verdadeiro em alguns mundos possíveis e falso noutros; mas não podemos dizer se é verdadeiro ou falso neste mundo» ( 126). É oportuno, pois, perguntar-se o que se entende por «indivíduo» ou «entidade», que deveriam constituir o «suposto» do «número infinito». Russell embrenha-se numa discussão sem saída. «Indivíduos» são antes de mais os «sujeitos humanos», considerados tanto no caso directo corno indirecto (: «Bruto matou ('.,ésar» = «César foi morto por Bruto»; César é sujeito humano tanto num caso como noutro). Mas «indivíduos» são igualmente todos aqueles a que se pode dar um nome próprio, e por «nomes próprios» entende «aqueles termos que podem aparecer nas proposições somente como sujeitos e não de outro modo»(I27). Estamos perante um evidente circulo vicioso, pois nada impede que possam exercer a função de sujeito não só homens, mas também pedras, animais, enquanto cada um destes é autor de uma acção. Podem igualmente exercer as funções de sujeito lógico entes ideais e abstractos: conceitos, proposições, letras alfabéticas e símbolos. Russell tende também para uma divisão infinitesimal dos entes reais: «Naturalmente, não se deve excluir um processo de retrocesso sem fim: tudo o que aparece como um indivíduo talvez seja, - numa indagação mais aprofundada •-, uma classe ou um tipo qualquer de conjunto. Se assim for, o axioma do infinito é certamente verdadeiro; mas, se assim não for, será sempre teoricamente possível atingir, através de análises, os sujeitos definitivos, aqueles a quem atribuir o significado de •indivíduos' ou 'entidades'. É a

(125) Ob. cit., p. 160. Estamos perante as antinomias kantianas da «ideia cosmológica». (126) Ob. cit., p. 161. (127) Oh. cit,, pp. 161-162. Por «nomes próprios», na fase «atomfstica», Russell =tendia os «átomos lógicos» ou percepções elementares imediatas, mas esta sua concepção foi submetida a muitas críticas; (permitimo-nos citar o nosso ensaio Filosofia da Linguagem, capítulos I e II).

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este número que se supõe aplicável o axioma do infinito. Se é verdadeiro para esses, é verdadeiro para as suas classes, e classes de classes, e assim por diante; analogamente, se é falso para esses, é falso para toda a hierarquia» ( 12 B). Estamos sempre perante a indecisão das antinomias kantianas e, de qualquer maneira, encontrar-nos-emos perante a possibilidade do «número indefinido», não do «número infinito». Quanto a este assunto, é necessário convir que a matemática, pelo menos como a concebe Russell, tem necessidade de se refazer, para muitos conceitos, num saber mais radical, que torne claros o sigrúficado e o valor dos conceitos utilizados e faça igualmente o ponto da situação cientifica. Par.

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As classes na autocrítica de Russell

Chegamos finalmente ao importante capitulo das «classes», um dos argumentos fundamentais do pensamento de Russell, mas também àquele em que a contradição intima entre empirismo e logicismo vem ao de cima. No seu sistema, reaparecem os equívocos do positivismo lógico: sobre a base de uma concepção agnóstica e anómica ou, pelo menos, empírica do real, tenta revesti-lo de formas lógicas, que pressupõem uma concepção estruturalista e racional. Antes de mais, é preciso recordar que, para Russell, as classes não são urúcamente as biológicas e científicas, nem têm o sentido restrito de uma multiplicidade de individuas semelhantes pertencentes à mesma espécie, mas o sentido lato de uma multiplicidade de indivíduos unidos por uma ou mais «características», ainda que muito fracas e acidentais: por exemplo, «os habitantes de Londres», pela variável «z» e obteremos a fórmula desejada: «x = z» (17). Ê também denominada lei da transitividade. V. «Se x = z e y = z então x = y». Pode demonstrar-se de modo inteiramente análogo à precedente.

z.

Par. 3 - As leis de dedução A logicização da matemática significa que o sistema de axiomas lógicos, dos quais temos alguns modelos nas leis acerca da identidade, está apto a interpretar e a englobar em si os principais axiomas da matemática e da geometria (pura). Não apenas as matemáticas entram no quadro dos axiomas lógicos, mas ai entram também outras disciplinas. Pode-se asseverar que eles constituem o fundamento de todas as disciplinas dedutivas. A lógica pretende ser exactamente o estudo e a formulação dos processos dedutivos. Ao fazer isso, porém, a lógica prescinde de qualquer conteúdo para os seus axiomas e apresenta-se como «disciplina formal». As suas afirmações podem aplicar-se a outras disciplinas, substituindo os termos primitivos e as variáveis; por isso, a lógica é denominada «a base de todas as outras ciências», sobretudo das dedutivas (18).

( 17) A lei pode também ser expressa na torma mais habitual: «duas realidades iguais a uma terceira são iguais entre si». A quarta lei é de grande importância para a construção silogística e para a argumentação em geral. ( 18) Para o valor que Tarski confere à lógica nesta obra, ver as pp. 41-42 e 151-176. Defende que a lógica é uma disciplina puramente formal. Lamentamos, no entanto, que na obra falte uma investigação crítica sobre o valor da lógici, sobre a gnoseologia e epistemologia da mesma, sobre o valor dos seus axiomas, da sua relação com a ontologia e com a experiência. Esses (axiomas) são assumidos como «valores de verdade>> na sua evidência intuitiva e postos na base do procedimento lógico e de todas as disciplinas dedutivas; deste modo se faz da lógica o modelo das mesmas. Esta malograda análise é causa de graves equívocos, ou antes, de uma ambiguidade fundamental: como se pode fazer da lógica o fundamento das disciplinas dedutivas, se algumas destas, a começar pela matemática aplicada, a geometria (ao direito, à ética, que também, em alguns sectores, adoptam o procedimento dedutivo), quando à lógica se confere apenas um valor «formal», analítico ou tautológico? Se a matemática pura pode ser mantida no campo analítico (mas com todas as reservas que estamos indicando), isso não é válido para nenhuma outra disciplina, pois que estas têm conteúdos sintéticos, que são investigados com os métodos próprios das disciplinas específicas. Se a lógica não quer reduzir-se a um esquema vazio (com o constante perigo de causar desvios, na medida em que, como demonstra a história, facilmente se torna equívoca), toma-se mister uma pesquisa gnoseológica desta disciplina, para uma delimitação, ao menos basilar, da sua validade e da sua apli-

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Nestes pressupostos se baseia a «lei geral da metodologia das ciências dedutivas», também denominada lei da deduçao ou teorema da dedução ( 1 9). Tarski enuncia-a nestes termos: «Todo o teorema de uma dada teoria dedutiva é satisfeito por todo o modelo do sistema de axiomas da teoria; além disso, a cada teorema corresponde um enunciado geral que pode ser formulado e demonstrado dentro do donúnio da lógica e que estabelece o facto de que o teorema é satisfeito por cada modelo» (20). A «lei de dedução» é, por conseguinte, de carácter geral, isto é, de dominio lógico. Para a aplicar à matemática, é necessário formulá-la em termos matemáticos, ou seja, com um «sistema de axiomas» próprios da matemática. Uma vez formulado o sistema de axiomas, a sua aplicação é geral no domínio desta disciplina particular. Enunciados particulares, enunciados de grupo e de classe satisfazem o sistema; podem ser denominados «modelos ou realizações do sistema de axiomas». A legitimidade desta aplicação funda-se no principio lógico de que o universal implica em si os indivíduos, os grupos e as classes. A enorme importância prática da lei de dedução, afirma Tarski, provém do facto de que normalmente estamos cm condições de apresentar numerosos modelos de um sistema de axiomas de uma teoria particular. Para alcançar tal modelo, é suficiente escolher algumas constantes de qualquer outra teoria dedutiva, que pode ser a lógica ou uma disciplina que pressupõe a lógica, colocá-las no lugar dos termos primitivos nos axiomas e mostrar que os enunciados obtidos por esta via são teoremas de outra teoria. Neste caso, dizemos ter encontrado uma interpretação do sistema de axiomas da teoria originária dentro da nova teoria. Por exemplo, o sistema de axiomas da aritmética pode ser interpretado dentro da geometria: dada uma recta arbitrária é possivel definir, sobre os seus pontos, relações e operações que satisfazem todos os axiomas (e os teoremas) da aritmética, respeitantes a relações e operações definidas sobre números. Também os axiomas da geometria, ao contrário, possuem uma interpretação dentro da matemática. Diagramas geométricos podem mostrar representações visicação. Pesquisa semelhante, analogamente, é realizada sobre a matemática. Do logicismo e do maternaticismo de outros tempos, parece, de facto, que se está a cair no puro nominalismo, em contradição com o efectivo valor da lógica e da matemática, que se revelam instrumentos válidos não apenas das deduções formais, mas também de conteúdos. Por outras palavras, se lógica e matemática demonstram um certo encontro com a realidade, não podem ser destituídas de qualquer valor ontológico. (19) Esta lei foi formulada independentemente pelo lógico francês J. Herbrand (1908-1931) e por Tarski. (20) Ob. til., p. 163.

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veis de teoremas matemáticos, e propriedades geométricas podem ser analisadas com métodos aritméticos ou algébricos. Estas e outras transformações no âmbito dos termos primitivos podem ser enunciadas com o principio seguinte: «Todos os teoremas demonstrados na base de um dado sistema de axiomas permanecem válidos para qualquer interpretação do sistema» ( 21 ). :É inútil dizer que qualquer demonstração dentro de uma dada teoria dedutiva contém em potência um número ilimitado de outras demonstrações análogas. Os resultados acima obtidos provam o grande valor, do ponto de vista da economia do pensamento, do método dedutivo. Em particular, a lei de dedução é a base, do ponto de vista teorético, de todas as demonstrafÕe.f por interpretação. Tarski faz uma oportuna precisão acerca do carácter formal das ciências dedutivas e dos métodos destas ciências. O carácter formal das matemáticas, observa, não deve confundir-se com a ausência de um objecto especifico, e pior ainda com a opinião de que, de facto, não interessa a verdade das asserções (22). Convém distinguir entre a semântica interna das proposições e um eventual termo de referência externa. A aplicação à realidade experimental não é sempre possível e está sujeita a incógnitas, mas a compreensão do significado intrínseco aos axiomas, teoremas e proposições é indispensável. O carácter abstracto e geral da matemática proíbe que se introduzam nas suas variáveis objectos concretos, excepto para casos de exemplificação, mas as relações entre os números ou entre outros símbolos devem ser significativas e logicamente fundadas. A exclusão de qualquer significado, de um critério de verdade e de uma coerência lógica nas disciplinas matemáticas faria destas a colecção de contra-sensos e de absurdos. Além disso, «um sistema formal, por outro lado, para o qual não se pudesse fornecer interpretação alguma, seria presumivelmente destituído de interesse para quem quer que fosse» (23). A aritmética pode, por conseguinte, ser construída como parte da lógica ou, mais precisamente, possui uma interpretação dentro da

(21) Ob. ciJ., p. 163. O sistema de axiomas desempenha, no caso, um papel formal; os termos primitivos das várias disciplinas ou sectores são o seu conteúdo. (22) Pode-se divisar nesta tese uma crítica ao formalismo e à sentença de Russell, segundo a qual >, tão fundamental para a matemática, e para o logicismo em particular, parece cair numa insanável contradição. Russell, com a teoria dos «tipos de conjuntos)), introduz uma fina distinção, capaz de evitar os paradoxos tradicionais. Os paradoxos, diz ele, têm raíz comum num «círculo vicioso», ou seja, na violação de uma regra absolutamente válida, que pode exprimir-se nestes termos: «Nenhuma totalidade pode conter membros definíveis apenas em termos de si mesma, ou tais que a pressuponham». Isto é, é preciso colocar o «definidor» de fora ou acima dos termos «definidos», para que ele próprio não venha a fazer parte do conjunto definido e gere a contradição. Tal princípio não é observado nem no paradoxo de Epiménides, nem no de Cantor (: ao definir o número dos números cardinais faz-se referência à totalidade ou «conjunto» de todos os cardinais, à qual pertenceria o número que é definido), nem no paradoxo do próprio Russell. Com efeito, ao definir o conjunto de todos os con154

juntos pertencentes a si próprios faz-se referência à totalidade de tais conjuntos, à qual vem a pertencer o próprio conjunto que se define. Com a teoria dos «tipos», Russell tenta pôr ordem nos conjuntos, distinguindo neles vários níveis ou tipos. Ao nivel mais baixo (primeiro L - «levei») estão adscritos os indivíduos, isto é, as entidades que não são conjuntos. Ao nível imediatamente superior (segundo L) pertencem os conjuntos cujos elementos são entidades do segundo tipo(: individuas); ao terceiro nível pertencem os conjuntos cujos elementos são entidades do segundo tipo (: conjuntos de individuas); e assim sucessivamente. Em geral: ao tipo n + I pertencem os conjuntos do n-ésimo tipo. Distribuídos deste modo os conjuntos, estabelece-se como regra semântica que não é permitido falar de conjuntos que tenham elementos de tipo diverso do imediatamente inferior; por consequência, não é lícito falar de um «conjunto» que se tenha a si próprio como membro. Por esta via, quer no paradoxo de Epimédides, quer no de Cantor, quer no de Russell (e noutros eventualmente), o conjunto superior não se pode ter a si próprio como elemento, e o motivo do equivoco é eliminado. Através da distinção russelliana, a dificuldade dos «paradoxos», em volta dos quais se fez grande agitação, era razoavelmente resolvida e a linguagem adquiria uma importante clarificação (60). Mas, apesar da clarificação realizada, as dificuldades inerentes à concepção russelliana dos «tipos» não desapareciam. Persistiam os limites de fundo que assinalámos na análise, e outros estavam surgindo. O «número = classe» ameaça deteriorar a matemática, cujo carácter, essencialmente abstracto e generalizante, é deturpado, se mergulhado nas classes concretas de objectos empíricos. As «classes», além de consdtuirem conceitos provisórios, pela descoberta de novas características ou pela «redutibilidade» de outras (não se esqueça a definição crociana de «pseudo-conceitos» para a classificação das ciências), não estão sujeitas a leis matemáticas, mas antes a generalizações estatísticas (como hoje são consideradas as leis cientificas), sempre susceptíveis de revisão e de aprofundamento. (60) É igualmente importante a tentativa análoga de Tarski para a solução dos paradoxos, distinguindo ele o «verdadeiro» em dois tipos de linguagem, L e LI. Para mais elementos acerca dos paradoxos, ver Baker, Filotofta da Matemática, dt., p. UI e segs.

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O logicismo russelliano, ao contrário, submetendo as classes às leis do cálculo e da dedução lógica, tende a dar uma interpretação lógico-matemática da realidade sensivel e vai de encontro ao perigo do a p,-io,-ismo. Além disso, cai no equivoco de admitir um único tipo de linguagem, o lógico-matemático, o qual é considerado como «linguagem perfeita», excluindo outras dimensões da realidade e outros tipos de linguagem que a interpretam. A teoria «classista» russelliana encontra também dificuldades lógicas. Segundo a teoria dos «conjuntos», existe um conjunto universal, ao qual tudo pertence («o conjunto de todos os conjuntos»), e existe um «conjunto vazio», ao qual nada pertence («a classe nula»). A cada «conjunto» corresponde, então, um «conjunto complementar», contendo tudo o que não faz parte do conjunto dado. A alteração introduzida por Russell na «teoria dos conjuntos», através da «teoria dos tipos», pela qual nenhum conjunto se pode conter a si próprio como membro, mas apenas os conjuntos de tipo inferior, torna insustentável a teoria do «conjunto complementan>. Teremos, em seu lugar, uma série de «conjuntos vazios», correspondente à série dos «conjuntos» plenos. E dado que estes são (potencialmente) infinitos, teremos uma série infinita de «conjuntos vazios», correspondentes a todos os tipos de «conjuntos plenos». A «classe nula» (: a classe com «zero» elementos) pluraliza-se em tantas classes específicas quantos os «conjuntos plenos», dos quais está privada. O número de «classes vazias» aumenta assim até ao infinito e acaba por ser o duplo do positivo, como na «metafísica» espinosiana («onmis dete,-minatio est negatio»J e hegeliana (dialéctica de ser e não-ser, de tese e antitese). Se se tomar em consideração, portanto, que a «classe nula», como o próprio termo diz, pretende ser a denominação do «não-sen>, da «classe sem elementos», do «zero», veremos elevar-se o «não-ser» ao nivel do «ser». A matemática é envolta nas espiras dessa mesma metafisica que pretende evitar. Análoga dificuldade apresenta a classe com um só elemento, a classe da unidade. Se os tipos são ascendentes, um mais complexo que o outro, em proporção ao número de elementos que abarcam, temos de admitir que também a «classe um» se estende até ao infinito, para a diferenciação especifica das unidades; por consequência, não é permitido agrupar as unidades numa só classe, antes se exigem tantas «classes um» quantas são as «unidades» especificas, isto é, indefinidas. Ou se admitem indefinidas classes de unidades especificas, ou, negando as diferenças, se constitui uma «classe unívoca» de todas as unidades, cujo «predicado», no entanto, seria atribuído impropriamente a realidades diferentes com o perigo de equivoco na linguagem e de proposições ficticias. 256

O discurso poderia continuar para todos os «números naturais» superiores à unidade. Consequência: cada um dos membros da série natural se multiplica «especificamente» até ao infinito, com a perda do conceito de «univocidade» que deveria valer para cada um deles, segundo o pressuposto fundamental do logicismo. A teoria cai na mais embaraçante confusão acerca do conceito de número (61). Estas e outras dificuldades puseram em crise a concepção logicista de Russell. Viu-se a necessidade de separar a lógica da matemática; de desenvolver a matemática por sua conta, prescindindo dos andaimes da lógica. A lógica, é certo, condiciona a matemática, mas condiciona-a de dentro, na forma especifica desta. Não se pode acoplar o método lógico e o método matemético; um acaba por sobrepor-se ao outro. A matemática deve proceder por sua conta e risco, respeitando a lógica, sob pena de nem sequer ser matemática; mas deve constituir-se em disciplina autónoma, com definições próprias e axiomas próprios, que lhe garantam um caminho independente. A esta exigência tenta responder o «formalismo».

Par.

j -

O formalismo

O formalismo é uma concepção «radical» em matemática. Dadas as contradições em que cai o logicismo, não superadas sequer pelas correcções de Zermelo e Neumann, e dadas as dificuldades que encontra qualquer teoria que pretenda ligar a matemática a formas de consciência extramatemáticas, propõe-se tornar esta disciplina completamente autónoma, fundando-a em si mesma e no desenvolvimento das próprias regras. O expoente deste movimento é David Hilbert (62). Hilbert pretende cortar cerce com o problema dos fundamentos. Porque uma fundação extramatemática da matemática emaranhar-nos-ia num mar de questões concernentes ao valor e à validade dos princípios extramatemáticos (dos lógicos, por exemplo, que estão

(61) Parece que a confusão pode ser evitada se se renunciar às classes (ou se reservarem como ramos seus), substituindo uma definição conceptual para cada número natural sucessivo: «entidade constituída de um só elemento», «de dois elementos», etc. (62) & suas principais obras sobre o argumento: Grundlagen der Matbematik, (em colaboração com P. Bemays), vol. II, Berlim, 1934-1939; Grundz.üge der tbeoris,hen Logi, (em colaboração com Ackermann), Berlim, 1928; Grund/agen der Geometrie, 10.ª ed., Estugarda, 1968 (trad. ital., Feltrinelli, Milão, 1970).

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no fundamento dos Principia Mathematica de Russell), e deixaria cair a sua sombra sobre todo o ediflcio, considera que se pode obviar a todas estas dificuldades construindo uma fundamentação matemática da matemática. Segundo este ponto de vista, os termos, símbolos e regras vigentes no seio da matemática não têm, per .re, nenhum outro valor ou significado além do estritamente «formal». Não se deve pedir qualquer significado aos símbolos e às regras matemáticas para além do estritamente «sintáctico», vigente entre os signos. Deste modo, o problema do «significado» e da «verdade» é subtraído a qualquer relação extrínseca e limitado ao domínio estritamente matemático. A matemática torna-se assim, nem mais nem menos, do que um «jogo linguístico», fundado exclusivamente nas regras do «jogo», como, por exemplo, no jogo do xadrez. Também neste jogo podemos conferir um significado às cliferentes «peças» (torre, bispo, peões ... ) e considerar o jogo como dois exércitos alinhados no campo; mas podemos também prescindir do significado e limitarmo-nos às regras internas do jogo, ao significado estritamente operativo das «peças». Igualmente em matemática, quando o «significado» e a > ou à linguagem matemática 258

propriamente dita, mas à «metalinguagem» da matemática, denominada «metamatemática» (63), É mister distinguir a «matemática» propriamente dita, consistindo toda nos seus símbolos e fórmulas, e a «metamatemática» ou ciência descritiva da matemática. Mas, diferentemente de outros sistemas, para o formalismo a «metamatemática>> não deve fazer apelo a termos, princípios ou demonstrações de natureza extramatemática. Deve ser o estrito reverso conceptual do aparato técnico da disciplina; é apenas um instrumento semântico e comunicativo dos processos intrínsecos à matemática: das regras do «seu jogo». Considerando a matemática um mero «jogo formalizado», os formalistas, em seu entender, são de opinião dever subtrair a sua disciplina a uma série de questões que não lhe dizem respeito, inúteis ou confusas, como: a natureza do número, a sua existência, e em que sentido; a verdade ou não das leis numéricas, a sua objectividade; a relação da matemática com a lógica, com a epistemologia, com a realidade f!sica (64), As fórmulas de um sistema formalizado não têm qualquer significado fora do «jogo», não são de si nem verdadeiras, nem falsas, não implicam qualquer pressuposto e não requerem que exista algum. A matemática, para ser válida, exige apenas a coerência interna, a logicidade das deduções na base dos axiomas previamente estabelecidos, o rigor dos processos construtivos. O valor de um sistema «formalizado» é condicionado por dois problemas: o da coerência (mais precisamente denominada autocompatibilidade); o da completabilidade. A coerência de um sistema quer dizer a não-contraditoriedade das suas fórmulas, porque um sistema contraditório, tornando possível uma afirmação qualquer, não tem qualquer significado. O formalismo, como de resto todo e qualquer outro sistema que pretenda ter um significado, pelo menos interno, necessita, obviamente, de metateoremas, expressos na metalinguagem, que descrevam o significado dos símbolos e estabeleçam os passos que se podem ou não podem efectuar. Também o sistema formalista, deste modo, acaba por ser condicionado por uma lógica que torne possível o seu desenvolvimento coerente. A ilogicidade dedutiva, com efeito, não pode deixar de conduzir a contradições (: afirmação e negação da mesma

(63) Ex.: > e «consequente» dariam: «(3y) (x) Dim Dim [x, sosl (n, 13, n)]». (x,y)::> (x)

~

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trada por um raciocínio metamatemático traduzível no âmbito do formalismo da aritmética. Mas isso não exclui uma demonstração metamatemática da autocompatibilidade da aritmética. Efectivamente, demonstrações metamatemáticas da autocompatibilidade da aritmética foram construídas por Gentzen (da escola de Hilbert) em 19;6 e, em seguida, por outros. Estas demonstrações, no entanto, não podem ser representadas no âmbito do cálculo aritmético, e dado que não são finitistas, não atingem os objectivos enunciados no programa original de Hilbert. As conclusões da pesquisa de Gõdel «mostram que a perspectiva de encontrar para todo o sistema dedutivo (e, em particular, para um sistema no qual toda a aritmética possa ser expressa), uma demonstração absoluta de autocompatibilidade, que satisfaça as exigências fi.nitistas das propostas de Hilbert, embora não (logicamente) impossível, é muito improvável» (78). Elas mostram ainda que existe um número infinito de proposições aritméticas verdadeiras que não podem ser formalmente deduzidas de qualquer conjunto de axiomas mediante um conjunto fechado de regras de inferência. Dai se segue que um sistema axiomático não pode esgotar o domínio das verdades aritméticas. Não é possível pôr qualquer limite apriorístico à inventiva dos matemáticos no cogitar novas regras de demonstração, nem é possível fazer qualquer previsão sobre a precisa forma lógica das demonstrações matemáticas válidas. As conclusões de Gõdel, observam Nagel e Newman, «fazem surgir a questão de ser possível construir uma máquina calculadora que fizesse concorrência ao cérebro humano no campo da inteligência matemática» (79). As máquinas calculadoras hodiernas possuem um conjunto de directrizes armazenadas, que correspondem às regras de inferência estabelecidas no processo axiomático formalizado. As máquinas fornecem respostas a problemas, operando de maneira descontinua, pois cada passo é controlado por directivas armazenadas. O «teorema da incompletabilidade» de Gõdel demonstra que na teoria elementar dos números existem inumeráveis problemas que se afastam da possibilidade de um método axiomático fixado, e que tais máquinas, por mais intrincado e engenhoso que possa ser o seu mecanismo, não podem resolver. A máquina resolve problemas segundo directivas pré-estabelecidas, «mas não é possível construir uma máquina que resolva todos os problemas.»

(78) (79)

Nagel e Newman, A prova de Godel, cit., p. 101. Ob. ril., p. 103.

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O pensamento humano parece possuir potencialidades e uma estrutura de regras em muito superiores à estrutura das máquinas que nos dias de hoje são correntemente concebidas. Não parece que a originalidade inventiva da mente humana possa ser substituída por uma máquina executiva.

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Capitulo XV

DISCUSSÃO E CONCLUSÃO Estas páginas não pretendem ser um apanhado de quanto ficou dito na análise, nem podem ser substitutivas da mesma; pretendem apenas relembrar alguns problemas de particular importância e apontar alguma perspectiva metodológica e de orientação. A investigação que conduzimos no presente ensaio sobre autores e direcções, demonstra, para além de posições preconcebidas e de lugares comuns, como é complexo e árduo o problema da natureza e do fundamento da matemática. Além disso, estando o assunto em pleno desenvolvimento, torna-se sobremaneira difícil, se não impossível, encarar alguma conclusão, sempre provisória e precária, para as novas perspectivas que se vão abrindo e para os imprevistos que podem surgir adiante. Dada a complexidade e carácter plurifacetado do problema, uma certa luz poderá surgir distinguindo os seus diferentes aspectos e múltiplas dimensões. Permanecendo firme, como muitas vezes temos dito, que o objecto da nossa pesquisa respeita à matemática pura, não à aplicada, nem à geometria, mesmo em relação à primeira é necessário especificar posteriormente. Isto é, trata-se de caracterizar a natureza e o fundamento desta disciplina, pondo de lado outros aspectos: genético, psicológico, pragmático (relação da matemática ao sujeito humano para os diversos fins que com ela se propõe, cognoscitivo, cientifico, operativo, económico, técnico, pedagógico ... ). Uma das razões mais comuns e mais tenazes de polémicas na interpretação desta disciplina, é determinada pela confusã:o do pro269

blema psicológico-genético com o do valor das proposições matemáticas. É bem verdade que os dois aspectos são, de um certo ponto de vista, interconexos (uma concepção filosófica empirista não poderia conferir valor universal a uma proposição matemática, embora, historicamente, algumas correntes empiristas tenham absolutizado não só as leis matemáticas, mas também as chamadas «leis da natureza»). Mas, uma moderna metodologia pode distinguir a matemática nas suas estruturas internas de todos os «problemas externos)) e considerá-la em si e por si. Deixando de parte o problema psicológico-genético e a dimensão pragmática (no sentido conferido por W. C. Morris em Signs, Lang11age and Behavio11r a esta dimensão) aproximamo-nos de uma consideração mais limitada e pertinente. Um outro ponto de vista metodológico, apto à clarificação do problema, é o dos vários «níveis» do discurso matemático. Esta disciplina, como de resto qualquer outra, tem plena autonomia no seu domínio: uma verdade matemática é demonstrada com base nos princípios matemáticos, e o desenvolvimento desta disciplina só é possível do interior, com as regras do seu «jogo». Mas nada impede que o objecto da matemática, o seu método, os seus processos, o seu fundamento possam constituir objecto de pesquisas da parte de outras disciplinas e de outros tipos de análise. A distinção dos diversos «níveis» do discurso matemático apresenta-se fecunda de duas autênticas perspectivas. A primeira, é a completa autonomia da matemática no seu domínio e nos seus métodos, sem se sobrecarregar com os «problemas externos», como, por exemplo, o da «objectividade» ou «subjectividade» das suas leis, e em que sentido. A segunda, é constituída pela legitimidade da consideração do objecto matemático, mesmo do ponto de vista de outras disciplinas: da lógica, por exemplo, da psicologia, da filosofia. Esta perspectiva parece de grande utilidade já no âmbito interno da matemática. Os opostos sistemas do logicismo e do formalismo respondem ambos a sãs exigências, mas são condicionados ambos por um limite e vítimas de uma confusão. O formalismo tem razão ao exigir a autonomia da matemática em relação à lógica e o valor imanente dos critérios internos, a autofundamentação axiomática e o autodesenvolvimento do formulário matemático. Mas não tem razão quando pensa que a matemática é constituída somente por «problemas internos)), e não pode ter outros tipos de considerações, ou não deve estar em comunicação com outras disciplinas (das quais, sobretudo, pode receber, como recebeu, incentivos, campos particulares de pesquisa e alterações de perspectiva; pense-se em todo o domínio da matemática aplicada, da qual não se pode alhear a matemática pura). 270

O logicismo, por sua vez, se por um lado tem razão em verificar a estreita relação entre a lógica e a matemática, ou esta como prosseguimento daquela sem mais, não tem razão no forçar da identificação das duas ciências, do seu objecto, método e processo. Efecúvamente, se é verdade que todo o processo matemático exacto é controlável e interpretável em termos lógicos, não se pode negar que as regras do «jogo» matemático não têm necessidade de cobertura lógica, pois são susceptíveis de autocontrolo e de autocrítica. Considerações análogas podem ser apresentadas sobre o intuicionismo e o nominalismo, os quais, tanto quanto parece, na equacionação do problema matemático deixam-se influenciar por premissas de ordem filosófica (relativas aos sistemas de fundo de que se reclamam), não considerando o número na sua natureza autónoma e não distinguindo entre matemática pura e aplicada. A distinção metodológica mencionada fornece ainda uma terceira perspectiva, a qual, respeitando mais a uma «disposição» do matemático do que a uma «característica» da ciência em si, se considera «acidental» e não teorética. Queremos dizer da «especificidade» da matemática e, por isso, do limite do seu âmbito. Com efeito, acontece, por vezes, que o matemático deixa de ser puro matemático e se faz físico, naturalista ou filósofo. É evidente que, quando sai do seu domínio, as suas afirmações são valorizadas à luz das outras disciplinas e o seu valor só pode ser o imanente às mesmas, excluída qualquer credencial extrínseca (1). Não há necessidade de trazer exemplos da história da ciência para demonstrar que estas «extrapolações» noutros campos retardaram, impediram ou combateram o progresso científico. O sistema ptolomaico e a geometria euclidiana gozaram de urna respeitável autoridade durante séculos, por causa do falhado afinamento da

(1) Assim, por exemplo, parece que exorbitam completamente do campo da matemática as afirmações de Herbert Meschkowski, o qual, depois de todo o desenvolvimento da filosofia analítica, e apesar da evolução do neopositivismo, se atém a posições arcaicas e estreitas de vetero-neopositivista, introduzindo, num discurso sobre a matemática, considerações de facto nada pertinentes sobre a «causa primeira» e sobre a «criação a partir do nada», problemas por ele classificados de «disparate». E sentencia, no final, citando um excerto de K. Reidemeister, nestes termos: «O único objecto que resistiu à dissolução é a realidade positiva, e a negatividade do positivismo parece ser a única afirmação que goza ainda de um geral reconhecimento. Pode-se assim afirmar com algum direito que a comunicação na filosofia da existência é salva apenas pelo positivismo». Wandirmgen der maJhematischen Denkenr, (I ed., Berlim, 19~6, II ed. 1960), trad, it., Boringhieri, Turim, 1964, p. 175. O excerto não necessita de comentário. Há apenas que remeter o citador e aquiescente Meschkowski para a filosofia analítica mais aberta ou, pelo menos, mais «neutral» e para a que legitima vários tipos de linguagem, proposta por Moreis, Stevenson, Ramsey, Hare, etc,, entre os quais a matemática, porque com os critérios por ele afirmados, de matemática seria muito difícil falar.

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distinção metodológica e sectorial, bem como por causa dos limites da ciência experimental. Limitando-nos ao problema por que nos vimos interessando, parece que para chegar a alguma clareza na análise, será necessário distinguir entre «problemas internos» e «problemas externos» à matemática. (A distinção, já o dissemos, é de Carnap, mas é retomada por nós com perspectivas diferentes). Pontualizamos o primeiro grupo de problemas. Parece que não se pode deixar de dar razão às teses do formalismo, redimensionadas do modo seguinte (que não comporta a aceitação dos outros pontos de vista, em especial do seu «exclusivismo» e da sua «clausura» aos «problemas externos»): a matemática deve ser autofundada e autodesenvolvida, num organismo rigoroso e coerente de fórmulas. Isto quer dizer que a matemática deve assentar sobre os termos primitivos, sobre os axiomas iniciais, sobre as leis de inferência estabelecidas com precisão e desenvolver nesta base o seu formulário. Ela deve (e disso não pode prescindir) ser acompanhada por uma «metamatemática», que «descreva», com conceitos e definições, os seus símbolos e métodos, mas sempre no âmbito estritamente matemático e para os seus fins internos. (Distinta, por isso, de uma «metamatemática» do «significado» e dos «problemas externos»). Chamamos a isto a autonomia da matemática. A matemática, enquanto tal, não é obrigada a pôr-se o problema da natureza das suas leis (se objectivas, subjectivas, psicológicas, transcendentais, empíricas, etc.), nem tão pouco a indagar a sua relação com a realidade física. Pode valer, para ela, como linha metodológica, a sentença de Russell: «a matemática pura é aquela ciência na qual não sabemos de que coisa estamos falando, ou se o que estamos dizendo é verdadeiro». Pode fechar-se no desenvolvimento do seu sistema de axiomas e das regras de inferência e não sair do âmbito puramente técnico e formal. É, porém, inegável que deve manter-se fiel às (para nos servirmos de um exemplo elementar), com base nos termos primitivos, nos axiomas e nas regras de construção. Mas também para o matemático, uma vez admitido que se trata de «unidades» distintas e idênticas, não é admissível dizer que «2 + 2 ~ = 4». O matemático dirá que a igualdade dos «dois pares à soma» depende unicamente das regras do «jogo», do formulário do sistema. O lógico, porém, (ou outro tipo de analista), poderá dizer, com igual legitimidade, que a igualdade referida é também de natureza lógica e seria absurdo, contraditório e inadmissível afirmar a não igualdade. O filósofo poderia introduzir um outro género de considerações e sustentar que a referida igualdade deriva de princlpios de ordem ontológica, como o de identidade, de não-contradição, de razão suficiente. O físico, e o experimentalista em geral, poderia aduzir a prova da experiência ( 4). Conclusão: autonomia da matemática sim, mas não exclusivismo, nem unilateralidade do problema. Existem «domínios» que, embora prestando-se à análise especifica de uma disciplina, não excluem outros tipos de consideração. Esta distinção metodológica e de perspectiva, ao mesmo tempo que caracteriza as várias disciplinas, demonstra os múltiplos aspectos do problema. Além disso, revela-se útil no interior mesmo das orientações da matemática e serve para clarificar a distinção entre

tação dos números relativos, a positividade do produto de dois números negativos; convencional ou «axiomática» é, na trigonometria, a divisão da abcissa e da ordenada em positiva e negativa. (3) Chamamos «trivial» o convencionalismo que decidisse proceder por dezenas em vez de por unidades na série dos números naturais e pensasse com isso fundar uma matemática convencional. Pode-se muito bem contar por dezenas, desde que se adopte sempre o mesmo critério e não se substitua, num dado ponto, a dezena pela unidade ou pelo par. ( 4) Esta «convergência» de vários sectores do saber nas mesmas verdades é um fenómeno que não pode passar despercebido e tematizá-lo-emos em breve.

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F M- IS

formalismo e logicismo, abrindo a possibilidade de uma integração dos dois pontos de vista. Esclarecido este ponto, apresenta-se o problema da «axiomatização» da matemática: formular um sistema de axiomas que estabeleça uma vez por todas as regras de indução, de dedução e de construção, para garantir a coerência, a completabilidade, a auto-suficiência do sistema formal. Dissemos que a matemática, na sua especificidade, deve fazer apelo aos seus critérios internos, para desenvolver e justificar as suas asserções. Nos ramos mais difíceis e nas operações de cálculo mais elevado, o controlo da lógica sobre a matemática só pode ser imanente à própria matemática: isto é, consignado na exactidão das operações. Mas para o carácter «histórico» (não relativista, nem historicista) da matemática, para a sua progressividade, é até demasiado óbvio, mesmo se Gõdel o não tivesse demonstrado, que o futuro desta ciência não pode ser coníiado a um sistema de axiomas iniciais. A matemática é uma ciência progressiva, em vias de desenvolvimento, problematizante; não se pode, uma vez por todas, circunscrever o seu âmbito, assinalar os seus métodos, estabelecer as suas leis. Pretender tal, significa fechar-se no dogmatismo e impedir o desenvolvimento do saber. Para esgotar este assunto, é eloquente toda a história da matemática e é como nunca instrutiva a génese das geometrias não euclidianas. Mas a indefensabilidade da tese «apriorista» pode ser demonstrada com base numa outra ordem de considerações. É um lugar comum e um preconceito trivial considerar que a matemática seja uma ciência puramente dedutiva. Pelo contrário, a dedução é apenas um aspecto; a matemática é também uma ciência indutiva, não apenas no sentido da passagem de uma série completa ou incompleta a afirmações de carácter geral (tome-se como exemplo o quinto enunciado de Peano), mas ainda no sentido do «salto qualitativo» de uma verdade (proposição válida) a outra verdade. Melhor, a matemática é «inventiva»: descobridora sempre de novas verdades, não contidas nas premissas. Os números fraccionários, por exemplo, não são obtidos pot dedução, mas por invenção: a «unidade» significa exactamente «entidade idealmente indivisivel em partes». Idem para os negativos, os irracionais, os transcendentes, que são todos conceitos reciprocamente novos e originais. Podemos concluir que a matemática não é urna ciência puramente dedutiva, mas igualmente construtiva e inventiva. Considerar que ela pode ser circunscrita por um sistema de axiomas iniciais significa pretender haver exaurido nos conhecimentos actuais o futuro desta ciência. 274

É mister, ao abrigo de quanto ficou dito nas análises, e na base das teses mesmas das diversas correntes, penetrar no interior da matemática, na natureza das suas leis imanentes. O formalismo tenta fechar-se na sua «torre de marfim» do formulário matemático, excluindo como não pertinentes os problemas do «significado», do «valor», da natureza das leis matemáticas, e excluindo também, como problema especifico, a relação da matemática com o mundo físico. Ao dizer isto, porém, afirma-se implicitamente a natureza ideal, inteligfvel da matemática. O logicismo, por sua conta, assaltando a matemática com a lógica, confessa isso mesmo: as leis matemáticas são leis do pensamento, leis da razão. Demonstrámo-lo com os textos de Frege e com as teses de Russell. O conceptualismo, na forma matemática do intuicionismo, confessa igualmente: as leis matemáticas baseiam-se em «intuições» (conhecimentos) elementares, basilares, mesmo se adquiridas por via da experiência sensível. O nominalismo ou «realismo empfrico» (Gooclman, Quine), embora proteste contra os abusos dos «infinitistas» e se reclame da base da experiência, não pode deixar de reconhecer a natureza ideal, lógica da matemática. Sejam embora «jlatus voeis» os conceitos matemáticos e os «conjuntos de conjuntos» quando exorbitam das possfveis combinações efectivas dos «indivfduos» concretos (tomados em sentido lato, também de «classes» reais), os nominalistas, queiram ou não, têm de reconhecer que a matemática, de sua própria natureza abstraente, conceptualizante, nada tem a ver com realidades empíricas, mas ideias, ainda que «semantizantes». O «o», a «unidade» (conceptual, ideal), os «infinitesimais» e as potências elevadfssimas não são experimentáveis na realidade, pelo menos numa experiência de facto e na forma da precisão matemática. O formalismo corta o «nó górdio» e pretende desembaraçar-se de todos estes problemas «metafísicos», «extramatemáticos», fechando-se no seu formulário autofundamentado e auto-suficiente. Gõdel, porém, descobriu o «calcanhar de Aquiles» do formalismo e constrangeu-o a sair do seu refúgio, empenhando-o na comum «batalha dos fundamentos». E o formalismo, que se deixou ficar fechado na auto-suficiência matemática, está mais do que nunca impreparado para a «batalha», não tendo «afiado» as suas armas: está completamente inerme para uma batalha que considerava não lhe dissesse respeito. (O «isolacionismo» já não está em moda nem sequer em politica; a «neutralidade», declarada para furtar-se à competição de «colossos», está votada ao fim da República Veneziana diante de Napoleão). Fora de metáfora: o formalismo teria razão se a matemática fosse uma ciência completamente autónoma, sem qualquer relação

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com o pensamento humano, do qual é actividade, e sem relação com a realidade do mundo, com a qual no entanto deve acertar contas, se foi pensada para a conquista desta. O formalismo, aceitável quando defende a autonomia e a especificidade da sua disciplina, torna-se uma «abstracção» indefensável, quando pretende cortar completamente as pontes com as outras disciplinas, com a restante realidade (5). A matemática é, também ela, um problema «humano» e do real e é vista na sua integridade I Mas há mais! O formalismo é obrigado a inserir-se no diálogo com as outras disciplinas, a partir de dentro, da imanência da sua disciplina, por pouco que queira reflectir sobre a natureza desta, quanto mais não seja para decidir da legitimidade e exactidão das suas operações. Quem decide, de facto, destas, se não o juízo critico da razão? O formalismo, é verdade, tenta traduzir em fórmulas, quer os termos elementares, quer o sistema dos axiomas, quer as leis de inferência, pelo que a matemática está toda reunida num formulário. A «metamatemática», erigida sobre ele, tem uma função de clarificação e de comunicação. Vimos, no entanto, que, embora a base de um sistema possa ser convencional, o seu desenvolvimento deve ser «coerente» com os princípios estabelecidos. Quem decide da «coerência» do desen-

(5) Referimos as conclusões de um artigo de G. Kreisel após uma minuciosa investigação sobre o formalismo de D. Hilbert, in Phi/o$opf?y of Mathematiu, cit., pp. 162-163. «Do ponto de vista de uma compreensão filosófica total, o programa originário de Hilbert faliu e, como acontece sempre para os grandes esquemas, não nos sugere por que coisa substituí-lo. Se lhe tivesse sido perguntado: 'De que coisa se ocupa a matemática?', Hilbert poderia ter respondido: 'Dos factos aritmético-combinatórios da matemática finitista'; embora isso possa dar lugar, por sua vez, a problemas, tal «redução» teria sido satisfatória, Aresposta de Hilbert, claramente, não é verdadeira mesmo se interpretada em sentido muito fraco, como uma 'equivalência de conteúdo', expressa em asserções de deduzibilidade ou não dcduzibilidade formal. Não se vê, além disso, mediante que tipo de pcsquis.'l se possa esperar encontrar uma resposta satisfatória à pergunta cm questão, Hilbert considerava que iria ser fornecida pela totalidade da matemática pura (Reimpressão das obras in 6, p. 316) mas é claro, como observou Bernays, que a totalidade da matemática pura ( isto é, das estruturas matemáticas) não é, por sua vez, uma estrutura matemática. Isso constitui um obstáculo não apenas ao tratamento matemático da concepção da matemática, mas também a um tratamento convincente do conceito de número natural ou de número real, porque uma caracterização como 'a mais pequena' (ou 'a maior') 'classe', pressupõe explicitamente a totalidade a que estas classes pertencem. Apostando como orientação a formulação apresentada depois da noção de «demonstração finitista», pode-se dizer: como para estudar a totalidade das demonstrações finitistas é mister recorrer a conceitos não-finitistas, assim para uma abordagem significativa dos fundamentos é necessário usar conceitos não matemáticos, ou seja, conceitos não suficientemente precisos para permitirem manipulações matemáticas». 276

volvimento? Não o formulário, que pode ter uma aplicação exacta ou errada, mas o pensamento que o aplica, o juízo da mente, que deve controlar a legitimidade das conclusões desde os principios, evitar passos ilícitos, afastar os erros. E segundo que leis julga o pensamento? Emergem aqui a grande função da «lógica matemática» e o papel do logicismo. Estes demonstraram que, nas operações matemáticas exactas, há a aplicação de leis lógicas, como o principio de identidade, de não-contradição, de razão suficiente, «do todo e da parte». (Ver, por exemplo, o papel desempenhado por este último principio na clarificação dos «paradoxos» e na teoria dos «tipos» para a obra de Russell). A lógica reveste intrinsecamente a matemática, condiciona-a e rege-a, não é um simples revestimento; e embora convenha manter separados os dois «domínios», é também oportuno operar um confronto e mostrar a «coincidência». Por isso se pode concluir que as leis lógicas são «aplicadas» continuamente pela matemática e a lógica é a matriz da matemática, ou, o que é o mesmo, que a matemática é uma lógica mais especializada. O critério último para decidir se uma proposição matemática é exacta ou não é o apelo à razão suficiente e à não-contradição. Por consequência, o formalismo não pode isolar-se completamente das outras disciplinas e fechar-se no seu edifício formal autofundamentado e auto-suficiente. Deve continuamente submeter o seu desenvolvimento ao controlo da lógica, imanente nas leis da dedução e da construção em todas as fórmulas exactas. Ele tem na lógica o supremo principio regulador. Mas a pesquisa a parte ante sobre a matemática é conduzida mais a fundo. > ao «existe!}cial», ao , melhor, prescindindo dele explicitamente. «E claro, escreve, que a definição de 'lógica' e de 'matemática' é tentada, procurando dar uma nova definição da velha noção de enunciados 'analíticos'. Embora não nos possamos mais contentar em definir os enunciados lógicos como enunciados derivados da lei da contradição, podemos e devemos ainda admitir que são urna classe de enunciados completamente diferentes daqueles que aprendemos empiricamente. Têm toda a característica que, há pouco, conviéramos em chamar «tautologia>> . . . Por agora não sei como definir 'tautologia'. Seria fácil dar urna definição que, por algum tempo, pareceria satisfatória; mas não conheço nenhuma que me pareça realmente satisfatória, embora sentindo-me agora completamente familiarizado com esse característica, cuja definição se procura. Por isso, neste ponto - pelo menos de momento - atingimos a fronteira do conhecimento na viagem para o interior em direcção às bases lógicas da matemática>>, (Ob. cit., pp. 226-22.7). Russell detém-se no princípio de não-contradição como fundamento da lógica-matemática. Mas vimos já como esta base é problemática e Russell não toma posição a esse respeito. Além disso, acabou por conferir um valor relativo à lógica e, por consequência, à matemática.

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tiplas, e as atitudes do espírito humano diversas. Para captar a realidade da Natureza não basta o conhecimento de ordem fisico-matemática; nem essa grande realidade que é a história do ser humano pode ser captada apenas com fórmulas matemáticas ou científico-experimentais. O mundo da arte e da poesia, do direito e da polltica, do costume e da moral, da religião e da filosofia têm conteúdos e dimensões não alcançáveis com as categorias e o método matemático, nem lógico-formal em geral. E o «ser», o ser na sua extensão e «intensão» integral (que indica a Natureza e o homem, o Principio e os principiados), não pode ser compreendido, abarcado, definido com as fórmulas matemáticas, nem de nenhuma ciência experimental, nem por todas as ciências humanas em geral, pois estas são sempre «fracção», «elemento», «aspecto» da «realidade» que deveriam abarcar e dominar. Esta visão, apenas «aflorada», do «fundamento», pode ser instrutiva para o «redimensionamento» de certos «dogmatismos», «apriorismos» e «exclusivismos», que às vezes se insinuam na mentalidade cientifica. E pode ser orientador para a individualização da natureza, do âmbito e do valor da matemática. O «fundamento» da matemática, se fosse subordinado às muitas interpretações que se fazem dos princípios basilares de que ela, implícita ou explicitamente, se reclama como seus enunciados e axiomas iniciais, nadaria na maior incerteza. A matemática está apertada entre duas antíteses: se se fecha no seu edificio formal como puro «jogo linguístico», permanece uma «abstracção», tanto para o pensamento como para a realidade; se se expõe «neutralmente» à mercê de todos os sistemas, estes relativizam-na e instrumentalizam-na às suas perspectivas, mergulhando-a no mar de contradições em que se envolvem mutuamente. Sai-se das antiteses «optando» por uma «fundamentação» que, parece, possa garantir o carácter de objectividade e de universalidade, que a «consciência geral» e «o senso comum» da humanidade conferem a esta disciplina, confirmada pela multimilenária «experiência» e pelo efectivo desenvolvimento dos fenómenos da natureza (8).

(8) A caracter1st1ca de «opção» para o «fundamento» da matemática é talvez o termo mais adaptado, como põe em evidência a actual filosofia analítica; a «opção» adoptada, como se verá, não é cega e irracional, mas fundada em válidas razões. Além disso, tal opção está conforme com a concepção comum, com o fim operativo e com a prática aplicação da matemática, com os resultados da ciência e da técnica, que, através dela, se conquistam. No entanto, estes aspectos têm de ser explicados e põem em causa a matemática enquanto tal. A «opção» como tal é fundada nas leis do pensamento e da realidade.

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Isso é possível com um claro delineamento das características lógico-ideais e metodológicas desta disciplina, 9ue «redimensione» as suas pretensas avançadas de séculos, as 9uais tiveram perniciosas consequências nas ciências experimentais, nas «ciências humanas» e na concepção geral da realidade. Falamos do erro do «logicismo» (histórico, não como sistema matemático) e do «matematicismo», confluídos no «racionalismo» e no seu «alter-ego», no campo científico, o determinismo mecanicista. Esta mentalidade, desenvolvida em 1600-1700, transvasou para o positivismo e o neopositivismo e está hoje viva como nunca, instrumentalizando os triunfos da ciência e da técnica (9). Salvaguardados os direitos e os valores da ciência, e permitindo-lhe toda a liberdade ( 1O), é mister «redimensionar» o «matematicismo» e reconduzir a matemática aos seus justos termos. A matemática é um tipo de conhecimento abstraente, univocizante, «quantitativista». Tudo interpreta e tudo reduz à categoria do «número» e da «9uantidade». A «unidade» matemática «homologa» e aplana todas as diferenças, por mais «abissais» que sejam. Para a matemática, na «classe I» entram Deus, o universo, o homem, o átomo, o símbolo numérico homónimo ( 11). Estas entidades tão diversas são todas associadas num único conceito pelo método «abstraente», que justamente prescinde das diferenças e considera um único aspecto: a sua indivisibilidade, idealmente considerada. A matemática, para alcançar os seus objectivos de racionalização e de cálculo, é obrigada a prescindir das diferenças e a limitar-se ao aspecto «numerável» do real (12). Na própria consideração da «Natureza» não pode deixar de ater-se apenas ao aspecto «quantitativo», «numerável», prescin-

(9) Falamos da mentalidade e das teorias que consideram como única linguagem válida a das ciências experimentais, e como única realidade autêntica a físico-matemática, caracterizando como «sem sentido» ou «emotivas» todas as outras formas de conhecimento e o respectivo objecto. ( I O) A ciência experimental, como ensina Galileu, está na sua plena legitimidade quando tenta interpretar a realidade natural em termos matemáticos. Mas, segundo o mesmo Galileu, exactamente porque é um tipo particular de saber, ela deve permitir outros tipos de considerações e dar lugar a outros «domínios» de pesquisa, não. tratáveis com os métodos e os instrumentos da ciência experimental. (11) Salvo a divisibilidade posterior de algumas destas entidades, mas isso exorbita da univocação sob a unidade. (12) Na classe «homem», vista sob a consideração matemática da unidade individual, entram tanto Napoleão como Talleyrand, o herói e o cobarde, todos unidos. Isso revela a sua incompetência no campo antropológico («humano»).

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dindo das formas, estruturas, qualidades, relações não evidenciáveis com a referida dimensão ( 13). Estas noções indicam o tipo específico e característico de análise, próprio da matemática e, por outro lado, sugerem que não se podem reduzir a este único todos os outros, nem se podem dissolver no aspecto quantitativo outras ordens de realidade. Importa agora precisar o tipo específico de consideração da «matemática pura», isto é, da que não se relaciona com o mundo e com a experiência, mas se limita ao desenvolvimento sistemático dos próximos axiomas. Denomina-se habitualmente «analítica», «tautológica» ou ainda «formal», «lógica», «a priori». Sem entrar nas particularidades dos sistemas logísticos, formalistico, intuicionista e nominalista, atenhamo-nos à estrutura «analítica» das proposições matemáticas. «Analítica» ou «tautológica» diz-se a proposição na qual o predicado está «implicito» no sujeito, é seu sinónimo e estabelece uma identidade, por exemplo, «os solteiros são não-casados». Esta proposição, exactamente porque revela a identidade entre o sujeito e o predicado, é evidente, necessária, universal, atemporal. Desta natureza, defendem muitos matemáticos, e Russell com eles, é a verdade lógica e matemática. Não compartilhamos, como outros, a redução das proposições matemáticas às analíticas, no sentido referido, pois, como foi demonstrado, e como resulta da história da matemática, esta não se reduz a um conhecer dedutivo, mas também construtivo, inventivo («não dedutivo»: ex.: «conjectura de Goldbach», «axioma de Fermat», «axioma do infinito», etc.). Estamos de acordo, por vezes, com o carácter de «necessidade», «universalidade», «atemporalidade» dos teoremas matemáticos. Mas existem, no entanto, «campos» da matemática onde estas caracterfsticas não subsistem e nos devemos confiar à intuição, ao racioclnio ( 14), à «possibilidade», ao «indecidível». Permanecendo no campo das «proposições tautológicas», a matemática não sairia do «limite formal» e não poderia asseverar nada acerca do mundo real, renunciando ao fim e ao uso a que foi destinada ( 1 5).

(13) Repetimos: a ciência experimental pode e deve tentar reduzir o aspecto «qualitativo» ao «quantitativo», mas não pode negar outras ordens é aspectos da realidade e respectivos tipos de discurso que os temati2am. (14) Da mesma natureza nos parece, por exemplo, o problema do «infinito numérico» e «geométrico». Existem, pois, proposições «indecidíveis» que tornam defensável a tese do «intuicionismo», isto é, que para algumas a.firmações não é válida a alternativa do «terceiro excluído». Ver a propósito o ensaio Und8cidible Tbeory, de Tarski-Mostowsky, Amsterdão, 1968. (15) «Limite formab> significa que a proposição «2 2 = 4>> não se pode a.firmar da realidade, mas apenas como enunciado lógico-abstracto. A validade

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A nova perspectiva é possível, se passarmos do campo formal ao campo «ontológico» ou «racional». Limitamo-nos a exemplos elementaríssimos, mas extensíveis a cálculos elevadíssimos e a vários campos da matemática. Vimos que a proposição elementar «z. + z. = 4» implica em si um complexo de princlpios lógicos: identidade, não-contradição, razão suficiente. Idênticas implicações se podem encontrar nas fórmulas elemenp», «p V p» (printares da logística: «p ::::, p», «p = p», «p =!= cipio de contradição). Qual é a natureza destes princípios? Parece pacifico que sejam uma lei do pensamento, uma «fronteira» intransponível deste. Mas não constituem também a lei do ser, não são indicativos da «natureza» do ser, não são a tradução ideal do processo do real? Afirmar que «um ser é ele próprio» (a = a) não significa fixá-lo numa imobilidade estática, mas significa reconhecer-lhe todo o seu dinamismo, a sua potencialidade, a sua «realidade» integral; significa não lhe negar nada do que ele é, em acto e em potência, em si e nas suas relações. O principio de não-contradição, «a mesma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo e sob o mesmo aspecto», («p = ~ p»), por sua vez, não nega totalmente o devir e a dialéctica; no entanto, diz que o «ser» não é idêntico ao «nada», e que do «nada» não pode vir o «sem ( 16). Afirmar que o «nada» pode dar o «ser» é contraditório, é negar o que se diz, e um «sem sentido» (o mais radical sem sentido). Afirmar que apenas o ser pode dar o ser, significa pôr o principio do devir, da dialéctica; significa pôr a condição de inteligibilidade de todos os fenómenos. Os referidos princípios são lógicos e ontológicos simultaneamente; os axiomas e os teoremas da matemática são reportáveis a esses princípios. Também eles são lógicos e ontológicos simultaneamente: dão-nos as leis basilares do ser e do pensamento ( l 7).

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da proposição referida para o campo ontológico e, por isso, para o real físico, implica que esse enunciado tenha valor para o ser, além de para o conhecer; os princípios em que se funda a matemática são considerados como leis lógicas. Naturalmente, esta «extensão» dos enunciados não é a «pura matemática» a operá-la, mas a sua «fundação», ou seja, a «metamatemática» ou filosofia da matemática. Por isso, estamos a falar também do «fundamento». (16) Com isto não se pretende negar a dialéctica e o devir; pretende-se dizer, porém, que é necessário investigar a razão suficiente da dialéctica e do devir, nas potencialidades da Natureza para o devir natural, nas potencialidades do espírito humano para o devir autoconsciente. ( 17) O presente é apenas uma indicação. Mes pretende referir-se a toda uma corrente filosófica e, portanto, remete para ela. Seja-nos permitido apre284

A matemática não é apenas uma parte da lógica, mas é também uma parte da ontologia ( 18). Se não se aceitar esta perspectiva, se não se «opta» pela concepção lógico-ontológica das leis fundamentais da matemática, do seu «fundamento», à matemática não resta outra perspectiva senão fechar-se no seu edifício formal, desprovida de qualquer indicação sobre a experiência, ou cair numa posição relativisita e empirista. Reconduzida à sua génese ontológica, ao «pensamento racional», que intui numa as leis fundamentais do ser e do pensamento, a matemática insere-se novamente no «círculo do real», no «nó ontológico» do ser na sua universalidade, mas por que aspectos? A «matemática pura», aplicada à ordem real pode dar-nos a conhecer o aspecto «a priori», «necessário», não contraditório do mundo físico, mas nada de particular, de específico, de «estrutural». Para adaptar a sentença de Wittgenstein, a matemática, como a lógica, faz-nos conhecer como o mundo não pode ser, as suas condições a priori («o andaime»), não «que coisa» é; o que não se pode verificar, não o que se verifica de facto (19). Precisamente, pela sua natureza a priori, fundada no «não contraditório», aplicada à realidade experimental, ela não nos pode dizer como é estruturada a realidade e quais as suas características. Não pode indicar-nos, nem as qualidades químicas, nem as ffsicas; não pode dizer-nos como são constituídos os átomos dos corpos, nem como são constituídas as células dos seres vivos. Todos

sentar, ao menos como perspectiva, este fundamento ontológico da matemlitica. O que dissermos doravante pretende ser uma consideração da matemática a um «nível diferente» do estritamente lógico-formal; por isso, distinguimos os diferentes «IÚveis». (18) Referimo-nos ao jli citado Frege, o qual funda as leis matemliticas na «razão» e neste sentido as denomina «objectivas». No entanto, apesar deste seu carácter racional, talvez até por isso mesmo, os objectos da matemãtica não são quimeras subjectivas, Die Grundlagem der Arithmetik, cit., par. 105. E o mesmo Frege afirma: '2. :z é igual a 4' permanece verdadeiro mesmo se, na sequência da evolução darwiniana, todos os homens estivessem de acordo em afirmar que :z 2. = 5. Toda a verdade eterna é independente do facto de ser pensada, como da natureza de quem a pensa». ln Lógica e Matemática, sob a direcção de C. Mangione, cit,, p. 605. A ontologicidade das leis matemáticas, no sentido que estamos esclarecendo, é indicada pelo conceito de racionalidade em Frege e pela definição da mesma como «lei das leis da natureza». Ver quanto foi dito anteriormente neste capítulo. ( 19)