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Portuguese Pages 141 [143] Year 1969
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A cultura a servÍfO do progresso social
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REUNIDAS
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IUo de ,Janeiro: Rua México, 31-A
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CURSO MODERNO DE FILOSOFIA O estudo da Filosofia apresentou sempre uma especificidade soberana, que a distingue radicalmente de tôdas as demais disciplinas culturais ou do espírito: o pensamento filosófico é, por assim dizer, um pensamento que capta verticalmente a essência da realidade que sustenta a existência. humana, coordena os fenômenos que impregnam essa realidade e aponta as soluções universais aos problemas levantados por êsse avanço analítico. Todo movimento filosófico só adquire autenticidade criadora e construtiva, no entanto, se estiver impulsionado pelo "amor à sabedoria" - qualificação que se alimenta da própria vinculação primordial à sua designação helênica, sinal originário e derradeiro de todo filosofar legítimo. Escrito por um grupo de eminentes Professôres de Filosofia, êste CURSO MODERNO DE FILOSOFIA tem por finalidade expo,r alguns dos principais problemas nos diversos campos da Filosofia, tal como se apresentam na atual fase da história filosófica. Os organizadores dêste curso, assim como ~eus autores, estão convencidos da necessidade de reconsiderar o estudo da Filosofia em cada época, à luz de conhecimentos científicos mais vastos e mais profunda experiência ética e religiosa. Conquanto seja provável que certos setores estejam representados na .maioria dos cursos introdutórios à Filosofia, as classes universitárias diferem muito em ênfase, nos métodos de instrução e no ritmo de progresso. Todos os professôres necessitam de liberdade para alterarem seus cursos à medida que os seus próprios interêsses filosóficos, o tamanho e características da composição de suas classes e as necessidades dos alunos variem de ano para ano. Os diversos volumes do CURSO MODERNO DE FILOSOFIA cada um completo em si mesmo, mas servindo também de complemento para os outros - oferecem uma nova flexibilidade ao professor, que pode criar seu próprio curso mediant~ a combinação de vários volumes, conforme desejar, e pode escolher diversas combinações em diferentes ocasiões, tendo sempre assegurada a eficácia de um fluxo contínuo de pensamento unitário.
FILOSOFIA DA MATEMÁTICA
CURSO MODERNO DE FILOSOFIA
STEPHEN
F.
BARKER
da Universidade do Estado de Ohio
FILOSOFIA ' DA MATEMATICA Tradução de LEONIDAS HEGENBERG
e ÜCTANNY SILVEIRA DA MOTA
ZAHAR
EDITORES
RIO DE JANEIRO
Título original:
Philosophy of Mathematics Traduzido da primeira edição, publicada em 1964 pela PRENTICE-HALL, INc., de Englewood Cliffs, New Jersey, Estados Unidos da América, na série FOUNDATIONS OF PHILOSOPHY, organizada por ELIZABETH e MONROE BEARDSLEY.
Copyright © 1964 by Prentice-Hal/ Inc.
capa de É RICO
1969 Direitos para a língua portuguêsa· adquiridos por
ZAHAR
EDITORES
Rua México, 31 _:_ Rio de Janeiro que se reservam a propriedade desta tradução
Impresso no Brasil
·tNDICE PREFÁCIO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 1 -
INTRODUÇÃO
9 11
Problemas filosóficos sugeridos pela Matemática, 11; Conhecimento "a priori" e empírico, 13; Conhecimento analítico e sintético, 18; A tcssitura aberta da linguagem, 22. 2 -
GEOMETRIA EUCLIDIANA
27
Egípcios e gregos, 27; O procedimento de Euclides, 28; Os postulados de Euclides, 30; Os axiomas e as definições de Euclides, 32; Os teoremas de Euclides, 34; Maneira moderna de encarar os sistemas dedutivos, 36; Razões para efetuar a axiomatização, 38; Geometria como conhecimento "a priori", 40; Geometria como conhecimento sintético, 43. 3 -
GEOMETRIA NÃO-EUCLIDIANA . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .
47
O quinto postulado de Euclides, 47; Sacchieri, 49; Geometria de Lobaclievski, 51; Geometria de Riemann, 52; A questão da consistência, 54; Falhas lógicas nos "Elementos" de Euclides, 55; Visão abstrata dos sistemas dedutivos, 57; Geometria niio-intcrpretada e suas interpretações, 59; lnconssistê11cia, 63; Geometria interpretada e seu caráter empírico, 67; Geometria interpretada e seu caráter "a priori", 70; Importância da interpretação "a priori", 73. 4 -
NÚMEROS E FILOSOflAS ESTRITAS ACf.RCA DOS NÚMEROS . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . Os números naturais, 79; Definindo espécies mais elevadas de números, 83; Números transfinitos, 86; Deve-se tentar interpretar a teoria dos números?, 91; Nominalismo, 94; O conceptualismo e os intuicionistas, 97; O realismo e a tese logicista, 104.
77
5 -
TRANSIÇÃO PARA UMA CONCEPÇÃO NÃO-ESTRITA DO NOMERO . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 110 Os paradoxos, 110; A teoria dos tipos, 114; Outras maneiras de contornar os paradoxos, 119; Sistemas dedutivos formalizados, 122; Incompletabilidade, 125; Formalismo, 129; As leis dos números como leis analíticas, 133.
LEITURAS ADICIONAIS ................................... 139
FUNDAMENTOS DA FILOSOFIA Muitos dos problemas da Filosofia são de tão ampla relevância para as preocupações humanas, e tão complexos em suas ramificações, que se encontram, de uma forma ou de outra, constantemente presentes. Emborn, no decorrer do tempo, êles se submetam à investigação filosófica, talvez necessitem ser reconsiderados em cada época à luz de conhecimentos científicos mais vastos e mais profunda experiência ética e religiosa. Melhores soluções são descobertas por métodos mais refinados e rigorosos. Assim, quem abordar o estudo da Filosofia na esperança de compreender o melhor do que ela proporciona, procurará tanto as questões fundamentais como as realizações contemporâneas. Escrito por um grupo de eminentes filósofos, o "Curso Moderno de Filosofia" tem por finalidade expor alguns dos principais problemas nos diversos campos da Filosofia, tal como se apresentam na atual fase da história filosófica. Conquanto seja provável que certos setores est_ejam representados na maioria dos cursos de introdução à Filosofia, as classes universitárias diferem muito em ênfase, nos métodos de instrução e no ritmo de progresso. Todos os professôres necessitam de liberdade para alterar seus cursos à medida que os seus próprios interêsses filosóficos, o tamanho e características da composição de suas classes e as necessidades de seus alunos variem de ano para ano. Os diversos volumes do "Curso Moderno de Filosofia" ( cada um completo em si mesmo, mas servindo também de eomplcrqento para os outros) oferecem uma nova flexibilidade ao professor, que pode criar seu próprio curso mediante a combinação de vários volumes, conforme desejar, e pode escolher diversas combinações em diferentes ocasiões. Aquêles volumes que não são usados num curso de iniciação podem ser comprovadamente \>aliosos, a par de outros textos ou compilações de lições, para os cursos mais especializados de nível superior. ELIZABETH BEARDSLEY
MONROE BEARDSLEY
P-REFÁCIO A Matemática, entre os antigos, alimentou inúmeras reflexões de caráter filosófico. Voltou a fazê-lo nos últimos anos, com aspectos vingativos. A Filosofia da Matemática é, na atualidade, um ramo difícil e muito controvertido da Filosofia. Com marteladas contínuas os novos e profundos resultados técnicos esmagaram velhos preconceitos, iniciando o que, no futuro, quando se voltar os olhos para o que está acontecendo, se poderá caracterizar como um dos notáveis levantes intelectuais da história do pensamento. É cedo, ainda, para crer que se haja entendido, de modo cabal, o significado filosófico dos recentes resultados técnicos. Um ponto, no entanto, está claro: as discussões filosóficas a propósito da Matemática não podem ser feitas com real proveito ignorando-se os modernos desenvolvimentos técnicos. :Êste livro tenta, portanto, estabelecer uma espécie de compromisso: visa apresentar algumas discussões de caráter não-formal acêrca de resultados da Matemática e da Lógica Matemática e procura, também, apresentar algumas considerações filosóficas a respeito dêsses resultados. Os problemas relativos à Geometria e os problemas relativos a.o número são apresentados em separado; não porque essa pareça maneira apropriada de dividir a Matemática moderna - não é - mas porque os problemas matemáticos analisados pelos filósofos tendem a distribuir-se nessas duas categorias. Filósofos das últimas déca.das têm escrito com freqüência a respeito da Matemática, e em algumas de suas exposições populares certas simplificações desconcertantes se fixaram. Afirma-se, por exemplo, muitas vêzes, que os teoremas da Matemática devem ser analíticos, pelo simpl~s fato de serem conseqüências dedutivas dos seus axiomas; diz-se, muitas vêzes, que os axiomas de um sistema abstrato definem os têrmos primitivos do sistema; diz-se, muitas ·vêzes, que o desenvolvimento da Geometria não-euclidiana contribuiu, de maneira decisiva, para revelar o êrro da Filosofia do Espaço elaborada por Kant; diz-se, muitas vêzes, que a existência matemática e a verdade
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FILOSOFIA DA MATEMÁTICA
matemática resumem-se em deduzibilidade a partir de axiomas. Tôdas essas asserções não passam de desnorteadoras simplificações que tentei evitar. Se o leitor julgar que sou culpado do crime de substituí-las por outras tantas simplificações desconcertantes, restar-me-á dizer que existe, às ~êzes, algum progresso filosófico ao passar-se de umas velhas coisas rudimentares para outras. Pelo fato de encorajar-me e pela ajuda que me prestou; na preparação do manuscrito, devo minha gratidão à minha espôsa, Dr.ª Evelyn Masi Barker. STEPHEN
F.
BARKER
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INTRODUÇÃO
PROBLEMAS FILOSÓFICOS SUGERIDOS PELA MATEMÁTICA
Desde que a Filosofia começou entre os gregos antigos, a Matemática tem sido uma das grandes fontes de questões filosóficas. Para os gregos a Matemática era predominantemente Geometria; ao estudar Geometria segundo as linhas tradicionais, uma grande quantidade de problemas filosóficos se apresenta. E os problemas surgem, de imediato, nos primeiros passos da disciplina. Euclides define um ponto como "aquilo que não tem partes". Como entender a definição? Não seria impossível existir alguma coisa destituída de partes ? E, àdmitindo a existência, poderíamos ver essas coisas ou conhecê-las? A Geometria de Euclides foi encarada, por muitos estudiosos, como a descrição do mundo físico; é difícil, porém, acreditar que o mundo seja formado de pontos. Com efeito, se o ponto não tem extensão, mesmo um número infinito de pontos não bastaria para constituir um volume no espaço. Seriam pontos apenas idéias de nossa mente? Seriam ficções ilusórias? Ou seriam coisas reais, mas inobserváveis? Em qualquer caso, por que podem os arquitetos e engenheiros aplicar os princípios da Geometria ao mundo real? Eis uma lista de questões interligadas: Que espécie de significado têm os têrmos de Geometria? Os princípios da Geometria são verdadeiros? Como adquirimos se é que chegamos a adquiri-los - conhecimentos geométricos? Por que se aplica a Geometria ao mundo observável? O aparecimento das Geometrias não-euclidianas avivou ainda mais as controvérsias. Se as Geometrias que incluem leis• incompatíveis com as leis da Geometria euclidiana são legítimas, do ponto de vista matemático, de que modo conceber a verdade matemática? Se uma lei é incompatível com outra, as duas não
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FILOSOFIA DA MATEMÁTICA
podem ser verdadeiras. Teriam os matemáticos abandonado a noção de verdade? Nesse caso, por que estudar Geometria? Não sendo uma busca da verdade acêrca do espaço, que significado tem a Geometria? Na Matemática dos números, uma grande porção de questões semelhantes se coloca. Pergunta-se sôbre o significado dos têrmos empregados, sôbre a possibilidade de alcançar a verdade e até mesmo se a noção de verdade poderia ser buscada nessa parte da Matemática. Pergunta-se sôbre o tipo de conhecimento adquirido - se realmente chega a ser adquirido - e sôbre a possibilidade de aplicar as leis dos números ao mundo real. Em conexão com a Matemática dos números, um nôvo problema um tanto diferente se apresenta: o problema da existência matemática. Em Geometria é possível entender os princípios de modo hipotético, sem pensar que êles asseverem a existência de alguma coisa: "Se existe uma figura que é um triângulo, então a soma de seus ângulos é igual a dois ângulos retos". Nada nos obriga a acrescentar à Geometria leis como "Existe um triângulo". Na Matemática dos números, por outro lado, há muitas leis que parecem, de fato, asseverar a existência de certas coisas; assim, "Existe exatamente um número y tal que o produto de ·x por y, seja qual fôr x, é igual a x". Essa espécie de lei parece garantir, de modo bem definido, a existência de algo ( o número 1), de modo que não se torna fácil, como no caso das leis geométricas, dar-lhe um sentido hipotético. Não obstante, que tipo de existência estaria em foco? Com que espécie de realidade trabalha essa parte da Matemática? Deve-se entender o enunciado de existência em sentido literal, ou cm sentido figurado? Aí estão problemas filosóficos, pois que as perguntas levantam questões gerais acêrca de significado, verdade, realidade e conhecimento. Os matemáticos, preocupados com o desenvolvimento de sua especialidade, não costumam dar a essas qucstôes fundamentais senão uma atenção passageira e superficial. Podem ôizer, por exemplo: "Sim, está bem. Mas essa é a vantagem do matemático, pois êsses suposto~ 'problemas' não passam de confusos pseudoproblemas. :esse tipo de especulação· filosófica a propósito da Matemática não tem qualquer intcrêsse". A observação é exagerada. Muitas perplexidades filosóficas originadas pela Matemática podem ser, de fato, simples erros de
INTRODUÇÃO
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interpretação; sem embargo, os problemas são senos do ponto de vista intelectual, porquanto os erros que os originam estão longe de ser enganos de fácil eliminação - ao contrário, são enganos freqüentes ·e importantes. Os problemas merecem atenção; não podemos ignorá-los, sumàriamente, sem tentar resolvê-los. Quem, em vez de desfazê-lo, corta o nó górdio, está fadado, muito cedo, a perder-se. Cabe, nesta altura, comparar a Filosofia da Matemática e a Filosofia da Religião. Depois de refletir cuidadosamente acêrca do que filósofos e crentes têm dito a propósito da Divindade, desde a antiguidade até o presente, é possível que cheguemos à conclusão de que o discurso religioso é confuso, incoerente e de pouco sentido. Mesmo que essa fôsse a conclusão obtida, não indicaria dever-se abandonar a discussão filosófica da religião. Muito ao contrário. Se o pensamento religioso é confuso, a confusão reflete poderosas e profundas tendências intelectuais do homem. A confusão dificilmente poderá ser afastada se não chegarmos às suas raízes. 1 O mesmo se pode asseverar a respeito da Filosofia da Matemática. CONHECIMENTO "A PRIORI" E EMPÍRICO
Antes de abordar os problemas especiais da Filosofia da Matemática, tentemos deixar claras algumas distinções que os filósofos consideram importantes e que, em verdade,. têm sido lembradas quando se discute o nosso tema central. A primeira distinção - a que os filósofos, há muito, vêm dando atenção - é a que se estabelece entre conhecimento a priori e conhecimento empírico ( ou também, a posteriori). Tradicionalmente, pensadores racionalistas são aquêles que sustentam a primazia do conhecimento a priori; empiristas são aquêles que atribuem maior importância ao conhecimento empírico. Uma das questões que se considera fundamental em Filosofia· da Matemática é saber se o conhecimento matemático (admitindo que exista) é empírico ou a priori. Não obstante, a distinção entre as duas espécies de conhecimento nem sempre foi claramente co1 Para examinar a coerência do pensamento religioso ver os caps. 6 e 7 de Philosophy of Religion, de John Hick, Prentice-Hall Foundations of Philosophy Series. (N. do E.: Traduzido para o português e publicado, sob o título Filosofia da Religião, por Zahar Editores, Rio, 1969.)
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locada. O têrmo "empírico" significa "baseado na experiência", e a expressão "a priori" significa "passível de obter antes da experiência". Como, porém, entender essas duas expressões? Filósofos do passado admitiram que a distinção entre conhecimento empírico e a priori estava associada a uma presumida diferença entre conceitos empíricos e a priori, sustentando que o conhecimento que envolvesse conceitos empíricos devia ser empírico e que o conhecimento que envolvesse conceitos a priori devia ser a priori. Admitiam que os conceitos empíricos correspondiam a idéias "abstraídas" pela mente a partir do que é "dado" na experiência sensorial e que os conceitos a priori correspondiam a idéias fixadas na mente por outra via. :Êsse modo de ver, no entanto, padece de dois defeitos. Em primeiro lugar - ainda que se aceite a divisão dos conceitos em empíricos e a priori, admitindo-se como legítima e bem fundada essa divisão - não fica afastada a possibilidade de existirem conhecimentos empíricos que não sejam exclusivamente traduzíveis em têrmos de conceitos empíricos e não fica afastada a possibilidade de existirem conhecimentos a priori que não sejam exclusivamente traduzíveis em têrmos de conceitos a priori. Em segundo lugar - e êsse ponto é o mais importante a considerar - a distinção entre conceitos empíricos e a priori não faz inteiro sentido. Assenta-se em uma teoria psicológica da "abstração", entendida como processo quase-mecânico pelo qual o espírito elabora aquilo que é "dado" na experiência. Essa teoria, rudimentar e superada, não é capaz de esclarecer de que maneira seriam distinguidos os conceitos que podem e que não podem ser "abstraídos" a partir daquilo que é "dado" na experiência sensorial. · Os filósofos admitiam que uma pessoa, ao contemplar um objeto vermelho, era capaz de "abstrair" a "dada" idéia de vermelhidão, sem poder, no entanto, abstrair a idéia de virtude quando contemplava uma coisa vituosa. Não diziam, porém, em que sentido as duas situações diferiam. Em conseqüência, por fôrça da influência de teorias psicológicas ultrapassadas, a distinção entre conhecimentos empíricos e a priori ficou bastante obscura. Tentemos ·apresentar a diferença de maneira mais adequada. Suponhamos que alguém saiba que os corvos são prêtos, que César nasceu antes de Calígula, que as moléculas de. hidrogênio são formadas de dois átomos ou que não haverá um tufão amanhã. Aí estão alguns exemplos nítidos daquilo que os filósofos consideravam conhecimento empírico. Cada um de tais
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conhecimentos está assentado na expenencia, no seguinte sentido: para saber qualquer daquelas coisas, a pessoa precisa não apenas entender o qu~ significam como possuir evidência para elas, retirada de experiências sensoriais, isto é, evidência relativa ao que se viu, ouviu, sentiu, cheirou ou degustou. Para saber que os corvos são prêtos devo não apenas entender o que isso quer dizer, mas devo ter visto corvos, ou visto penas dessas aves ou devo ter ouvido relatos de pessoas que viram essas coisas - ou algo do gênero. Está claro que, mesmo sem evidência, alguém pode acreditar que os corvos são prêtos, que César nasceu antes de Calígula, que as moléculas de hidrogênio têm dois átomos ou que haverá um tufão amanhã. Crenças, no entanto, mesmo quando verdadeiras, não são conhecimentos, se lhes faltam justificações. A questão é esta: apenas as observações sensoriais podem oferecer o tipo de justificação de que uma pessoa necessita a fim de estar em condições de dizer que conhece fatos dessa espécie. Se não disponho de nenhuma evidência observacional relativa aos corvos é falso, por certo, dizer que sei serem êles prêtos. É autocontraditório afirmar que se sabe algo dessa natureza sem sabê-lo à custa de evidência ganha pela experiência sensorial. Em resumo, podemos dizer que o conhecimento empírico é o conhecimento que requer justificação da experiência. Há outros tipos de conhecimentos, porém, em que a influência da experiência é diversa. Imagine-se que alguém saiba que os corvos são aves, que César nasceu ou não antes de Calígula, que as moléculas de hidrogênio são moléculas, ou que haverá tempestade amanhã, se vier um tufão. Aí estão alguns exemplos nítidos daquilo que os filósofos entendiam por conhecimento a priori. Uma pessoa não precisaria ter examinado corvos, direta ou indiretament~, para dizer que sabe serem os corvos aves; não precisaria ter estudado a história de Roma a fim de saber que César nasceu antes de Calígula; não precisaria ter contemplado experimentos físicos, realizados com hidrogênio, para saber que as moléculas de hidrogênio são moléculas; nem precisaria examinar os mapas ·de tempo preparados para amanhã para saber que haverá tempestade se houver tufão. Em qualquer dêsses casos, a única experiência necessária é aquela experiência, seja ela qual fôr, que habilita uma pessoa a cnkndcr as palavras em que o conhecimento se exprime: nenhuma experiência adicional é necessária para justificar a afir-
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FILOSOFIA DA MATEMÁTICA
mação de que se conhece alguma coisa. Em resumo, podemos definir conhecimento a priori como conhecimento que não necessita da justificação pela experiência. Essa distinção entre conhecimento a priori e conhecimento empírico é de importância filosófica, tanto pelos esclarecimentos que presta quanto pelos problemas que levanta. Ajudanos a compreender que matérias como Física, Biologia e História - primacialmente preocupadas com questões relativas ao conhecimento empírico - devem estar assentadas nas observações se desejam ver estabelecidas as suas conclusões. Em oposição, matéria como a Lógica, digamos, preocupa-se com o conhecimento a priori ( a Lógica busca obter conhecimento a priori das regras que governam a validade dos argumentos), não necessitando, portanto, das observações para atingir suas conclusões. Isso pôsto, eis a questão que se coloca: e a Matemática? Será, nesse particular, semelhante à Física ou semelhante à Lógica? Ou será semelhante, em parte, a ambas? Uma questão filosófica geral que a distinção também coloca é saber de que maneira se obtém o conhecimento a priori: por meio de uma especial visão da realidade, ou de nosso próprio espírito, por meio da compreensão. da linguagem, ou como? Se o conhecimento matemático fôr a priori, não assentado na experiência, então em que. se fundamenta? Associada à distinção entre conhecimento empmco e conhecimento a priori está outra distinção muito importante: a que se estabelece entre dois tipos de raciocínio, a dedução e a indução. Não tentaremos caracterizar as noções de maneira precisa, limitando-nos a acentuar de que modo elas diferem uma da outra. Dedução é raciocínio em que se pode saber, a priori, que, não havendo êrro lógico e sendo verdadeiras as premissas, a conclusão também terá de ser verdadeira. Sirva de exemplo: "Todo número par é divisível por dois; nenhum número primo é divisível por dois; logo, nenhum número primo é par". Não há, aqui, nenhum êrro lógico; podemos saber, a priori, que a conclusão terá de ser verdadeira se as premissas forem verdadeiras. Aí está um exemplo do tipo de conhc-cimento de que trata a Lógica, já que o argumento dedutivo é válido em virtude da sua f arma lógica. Em outras palavras, relativamente a qualquer argumento da forma ."Todo §§§ é 11 I; nenhum *** é 11 I; logo, nenhum *** é §§§", pode-se saber, a priori, que, sendo verdadeiras as premissas, a conclusão terá de ~er verdadeira. Na Lógica, a noção de forma lógica
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está somente relacionada ao arranjo dos vocábulos "todo", "nenhum", "é" e de outros vocábulos "lógicos", inclusive vocábulos como "alguns", "não", "e", "ou" e "se". O argumento que· examinamos é válido em virtude de sua forma lógica - em virtude do arranjo de suas palavras "lógicas". Dizer isso, no entanto, não equivale a dar uma explanação filosófica acêrca da validade do raciocínio. Não se esclareceu de que maneira se obteve o conhecimento a priori de que a conclusão deve ser verdadeira se as premissas forem verdadeiras. As pessoas concordes acêrca da forma do argumento podem, sem dúvida, divergir quanto à maneira de encarar o conhecimento da validade de argumentos dessa forma; êsse conhecimento resulta de uma contemplação da realidade dos espíritos ou da linguagem? Não há, além disso, motivos sólidos para supor que todos os raciocínios dedutivos válidos sejam válidos apenas em virtude de sua forma lógica. Eis um argumento que retrata um raciocínio dedutivo perfeitamente legítimo: "O monte McKinley é mais alto do que o pico Pikes; o pico Pikes é mais alto do que o monte Washington; logo, o monte McKinley é mais alto do que o monte Washington". Entretanto, a Lógica não considera uma "forma" do tipo "x é mais. . . do que y; y é mais . . . do que z; logo, x é mais . . . do que z". O limitado número de palavras a que os lógicos dão atenção forma uma lista em que não comparece "mais - do que"~ expressão que é considerada "não-lógica". O raciocínio, não obstante, é perfeitamente válido, pois sabemos, a priori, que se as premissas forem verdadeiras a conclusão terá de ser verdadeira. É certo que alguém poderia objetar, dizendo que o argumento só se torna válido quando se lhe acrescenta esta premissa: sempre que uma primeira coisa é maior do que uma segunda e esta maior do que uma terceira, a primeira é maior do que a terceira. Sem embargo, esta premissa é aqui tão dispensável como seria dispensável, no argumento antt!rior, a premissa: sempre que algo de uma dada espécie é também de uma segunda espécie e nada que seja de uma terceira espécie é da segunda, nada da terceira é da primeira espécie. Não é preciso acrescentar essas premissas, porquanto as premissas utilizadas são, em cada caso, perfeitamente suficientes - no sentido de que se pode afiançar que sendo elas verdadeiras a conclusão também será verdadeira. A premissa adicional não é mais do que uma formulação da regra de inferência que governa a maneira de raciocinar, isto é, que governa a maneira de colhêr a conclusão
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FILOSOFIA DA MATEMÁTICA
a partir das premissas dadas. A conseqüência a retirar daí é esta: embora a forma lógica seja importante para as deduções, ela não é tudo. Contrastando com a dedução, a indução é um raciocínio em que a conclusão obtida expressa uma conjetura empírica muito mais ampla do que a expressa pelos dados. Não se pode, portanto, saber, a priori, que a conclusão terá de ser verdadeira se os dados forem verdadeiros. Exemplificando, imagine-se que eu tenha observado muitos corvos, constatando que todos eram prêtos. Posso, então, raciocinando indutivamente, dizer que muito provàvelmente todos os corvos são prêtos. A verdade dos meus dados não constitui garantia a priori para a conclusão de que todos os corvos devam ser prêtos. Na melhor das hipóteses, o que se pode é dizer que os dados apóiam e confirmam a conclusão, sem garantir a sua verdade. A distinção entre dedução e indução está associada à distinção entre conhecimento a priori e empírico dês te modo: ao oferecer uma demonstração de um enunciado a priori, mostrando que é, de fato, algo que se sabe ser verdadeiro, não há motivo para que a demonstração deixe de ser dedutiva, em cada um de seus passos. Nunca deve ser necessário empregar raciocínios indutivos para estabelécer uma conclusão que só encerra conhecimento a priori. Ao estabelecer, porém uma conclusão de caráter empírico, pelo menos um dos passos do raciocínio deve ser indutivo; uma conclusão empírica não poderia ser estabelecida jamais por meio de um raciocínio integralmente dedutivo.2 CONHECIMENTO ANALÍTICO E SINTÉTICO
Além de debaterem a distinção entre conhecimento a priori e empírico, os filósofos também se preocupam com a distinção entre conhecimento analítico e sintético. Esta última distinção foi introduzida na Filosofia pelo· p~nsador alemão Emanuel Kant e tem sido, desde o século XVIII, fonte de intermináveis discussões. Tentando explicar a distinção que estabeleceu entre conhecimento sintético e analítico, o pensador alemão valeu-se da noção de juízo. Segundo 'Kant, saber alguma coisa ou ter 2 Para discutir mais amplamente a questão, ver Carl I lcmpcl, Philosophy of Natural Science, Prentice-Hall Foundations of Philosophy Series. (N. do E.: Traduzido para o português e publicado, sob o título Filosofia da Ciência Natural, por Zahar _Editores, Rio, 1969.)
INTRODUÇÃO
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uma crença de qualquer espécie é haver elaborado um juízo; o juízo pode ter sido elaborado consciente ou inconscientemente, e pode ou não ter sido expresso em palavras para ser pronunciado na forma de um ·enunciado. Kant descrevia o ato mental de formular um juízo como um ato de ligação de conceitos, reunidos na consciência. Segundo essa maneira de ver, alguém que sabe serem todos os solteiros pessoas não-casadas reuniu, em sua consciência, o conceito de solteiro e o conceito de nãocasado (ligando-os da maneira que a Lógica denomina universal e afirmativa). De modo análogo, alguém que saiba que nenhum gato voa, reuniu, em sua consciência, o conceito de gato e o conceito de voar (tornando a conexão universal e negativa). Kant imaginou que uma distinção devia ser estabelecida entre dois tipos bàsicamente diversos de juízos. A distinção assemelha-se àquela que a Química estabelece entre a síntese o ato de colocar juntas coisas que não estavam combinadas e que eram diferentes - e a análise, o ato de isolar de alguma çoisa um de seus componentes. Em relação aos juízos, de um lado acham-se aquêles em que a mente sintetiza ou reúne conceitos de um modo que não espelha qualquer conexão intrínseca que ambos possam ter; o juízo segundo o qual nenhum gato voa é exemplo de juízo sintético, pois nada há, no conceito gato, que exclua intrinsecamente o voar. De outro lado, achamse os juízos em que a mente analisa um conceito, · separando dêle outro conceito que o integrava. O juízo segundo o qual todos os solteiros são não-casados é exemplo de um tal juízo analítico porquanto o conceito de não-casado é parte intrínseca do conceito de ser solteiro. Seguindo, pois, as idéias fundamentais de Kant, podemos, em primeira aproximação, dizer que a distinção é esta: um juízo é analítico se, e somente se, nada mais que a reflexão em tôrno dos conceitos do juízo e em tôrno da forma de combiná-los se fizer necessária para capacitar-nos a saber se o juízo é verdadeiro. Um juízo é sintético se, e somente se, a simples reflexão em tôrno dos conceitos e de sua forma de combinação fôr insuficiente para determinar a verdade do juízo; para saber da verdade do juízo é •necessário apelar para algo mais. São muitos os filósofos contemporâneos que não se interessam pelos estudos de Kant a propósito de "juízos" e de "conceitos", considerados como fenômenos mentais. É possível, todavia, reformular esta primeira distinção entre o analítico e o
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sintético para deixá-la aceitável a êsses filósofos. Diremos que um enunciado é analítico se, e somente se, nada mais do que a sua compreensão fôr requerido para habilitar-nos a dá-lo como verdadeiro. Um enunciado será sintético se compreendê-lo nunca fôr suficiente para capacitar-nos a determinar sua verdade. Falar acêrca de enunciados, e não de juízos e conceitos, evita controvérsias desnecessárias a respeito da psicologia kantiana. Kant ofereceu uma segunda versão da distinção entre analítico e sintético. Embora colocada em têrmos diversos, Kant considerava esta segunda versão como equivalente à primeira. De acôrdo com a nova maneira de considerar a distinção, os exemplos paradigmáticos de verdades analíticas seriam as verdades lógicas. Considerem-se o enunciado que assevera que todos os cães são cães e o enunciado que assevera que, se alguns cães forem criaturas inteligentes, então algumas criaturas inteligentes serão cães. Os dois enunciados são verdadeiros e, em realidade, verdadeiros serão todos os enunciados da forma "Todos os isto e aquilo são isto e aquilo" e da forma, "Se alguns assim são tais e tais, então alguns tais e tais serão assim assim". Enunciados çomo êsses são verdadeiros simplesmente em virtude do arranjo das palavras lógicas "todos", "alguns" e "se"; diz-se .que são verdadeiros em vista de sua forma lógica e · se chamam verdades lógicas. Kant sustentava que todos os enunciados (êle diria juízos) cuja verdade depende da forma lógica são analíticos, .e que são justamente êsses enunciados os tipos básicos de enunciados analiticamente verdadeiros. Um enunciad_o ( ou juízo) não obviamente analítico pode ser analítico, apesar disso, de modo oculto. Assim, imagine-se que seja possível demonstrar que um dado enunciado é equivalente a um enunciado obviamente analítico e que a demonstração se assente exclusivamente em princípios claramente analíticos; nesse caso, o enunciado dado também deve ser analítico. Aí está um modo de exibir a analiticidade de um enunciado quando essa analíticidade não era óbvia. Para. exemplificar, suponhamos que alguém afirme serem todos os oculistas médicos da vista. O enunciado pode ser considerado como sendo da forma "Todos os assim assim são tais e ta,is", forma cujos casos concretos não são todos verdadeiros. O enunciado, portanto, não parece verdadeiro em virtude da forma lógica. Imagine-se, contudo, que o enunciado exprima a intenção de empregar "oculista" como si~nificando "médico da vista". Quem fala, de maneira
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consciente ou não, emprega a definição: "Por 'oculista' entendo 'médico da vista"'. À luz dessa definição, estamos autorizados a dizer que o enunciad@ original de que os oculistas são médicos da vista é equivalente ao de que todos os médicos da vista são médicos da vista. Êste último enunciado é verdadeiro simplesmente em virtude de sua forma lógica. Podemos, portanto, asseverar que o enunciado original é analítico não porque tenha explicitamente a forma de uma verdade lógica, mas porque pode assumir essa forma mediante simples apêlo a uma definição. De acôrdo com a segunda versão, portanto, um enunciado verdadeiro é analítico se, e sàmente se, fôr verdadeiro apenas em virtude da sua forma ou se, mediante uso de definições, puder ser tornado equivalente a um enunciado que seja verdadeiro em virtude apenas de sua forma lógica. Um enunciado falso seria analítico se, e sàmente se, fôsse falso apenas em virtude de sua forma lógica ou se pudesse, mediante exclusivo emprêgo de definições, ser transformado em um enunciado que fôsse falso apenas em virtude de sua forma lógica. Um enunciado será sintético se, e sàmente se, não fôr analítico. Para Kant, essa versão da distinção era equivalente à primeira, e muitos filósofos posteriores concordaram com êle. O conhecimento analítico não parecia colocar, na opinião de Kant, nenhum problema filosófico - entendendo-se por conhecimento analítico aquêle que pode ser expresso em têrmos de enunciados ou juízos analíticos. Era óbvio, para Kant, o modo de a mente atingir o conhecimento analítico - simplesmente encarado como conhecimento a priori. Ao saber, por exemplo, que todos os solteiros são não-casados, uma pessoa possui conhecimento que apenas reflete a natureza de seus conceitos, ou, como talvez fôsse preferível dizer, reflete a maneira pela qual a pessoa entende a sua linguagem. Para ter êsse conhecimento, a pessoa precisa apenas percel:ier que o segundo conceito é componente do primeiro; não precisa de informações relativas ao mundo exterior à sua própria mente nem precisa de informações concernentes aos escaninhos de seu próprio espírito. Tudo é óbvio, pensava Kant; empregando o oonceito solteiro, tal como o empregamos, é simplesmente uma questão de coerência sustentar que aquêles que caem sob o conceito solteiro também caem sob o conceito não-casados. Isso estamos em condições de saber com certeza e de modo perfeitamente claro; o defeito da situação é ser tão trivial que mal merece o nome de oonhecimento.
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O conhecimento sintético, por sua vez, parecia levantar, segundo Kant, alguns problemas para a Filosofia. Os juízos sintéticos têm a vantagem de não serem nem vazios nem triviais; ligando conceitos que não se acham intrinsecamente relacionados, exprimem importantes conjeturas a propósito do mundo. Não obstante, como saber que são verdadeiros? A mera coerência não é suficiente para permitir que eu reúna conceitos em um juízo sintético; deve haver algo mais, um tertium quid (uma terceira coisa que se juntaria ao mínimo de dois conceitos) que me permita sintetizar os conceitos separados para reuni-los num juízo sintético. Em relação aos juízos sintéticos de caráter empírico, admitia Kant, são as experiências sensórias que constituem o "terceiro elemento" capaz de justificar meu juízo de que, digamos, nenhum gato voa. Já vi gatos e observei como diferem, em estrutura e comportamento, dos pássaros e dos insetos, e esta experiência sensorial é o "terceiro elemento" à custa do qual estou autorizado a emitir o juízo. Que dizer, no entanto, dos juízos sintéticos a priori? · Aqui estava, no parecer de Kant, a origem dos profundos problemas filosóficos. Suponharqos haver um conhecimento a priori (isto é, não justificável pela experiência sensorial) e sintético (isto é, não justificável pela conexão intrínseca dos conceitos empregados - ou seja, não justificável pela maneira de entender os têrmos empregados) . :Êsse conhecimento teria de ser justificado por algum peculiar •~terceiro elemento". Seria, além disso, de grande importância compreender de que maneira êsse conhecimento poderia ser- obtido. Para Kant, era na Matemática que se encontravam os mais claros exemplos de tal conhecimento sintético a priori.
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TESSITURA "ABERTA" DA LINGUAGEM
Falamos da distinção entre conhecimento a priori e empírico e da distinção entre conhecimento analítico e sintético, 'trãtando as distinções como se fôssem nítidas e precisas. É preciso reconhecer, porém, que não se trata de distinções perfeitamente claras, não obstante a importância filosófica de que se revestem. Há casos-limite ou periféricos, que não se colocam nem na categoria a priori nem na categoria empírica; há, também, casos-limite que nem se situam na categoria analítica
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nem na sintética. Em verdade, os casos mais mteressantes são, freqüentemente, os que se acham na fronteira ou próximos dela. Um caso-limite bem simples é o de alguém que saiba terem tôdas as aranhas oito patas. Êsse conhecimento será empírico e assentado necessàriamente na experiência, ou a priori, não necessitando de justificação que provenha do exame das aranhas? (Em outras palavras: será analítico ou sintético?) Antes de estarmos autorizados a dizer que as aranhas têm oito patas, será ou não será preciso olhar para o maior número possível de tais aranhas? "Bem", dirão os mais impacientes, "depende da maneira como se emprega a palavra aranha. Se ter oito patas fôr parte de sua definição, será a priori analítico que as aranhas têm oito patas; se não fôr, será empírico e sintético". De certo modo, a resposta é boa. É preciso distinguir a sentença (a seqüência de palavras) "Aranhas têm oito patas" dos vários pronunciamentos que alguém poderia estar fazendo ao formular a sentença. Quem empregasse a sentença, e estivesse utilizando o vocábulo aranha de tal modo que ter oito patas fôsse parte da definição, estaria fazendo um pronunciamento analítico e a priori. Quem empregasse a mesma sentença, e estivesse utilizando o vocábulo aranha de tal modo que ter oito patas não fôsse parte da definição, estaria fazendo um pronunciamento empírico e sintético. A estória, porém, não se resume nisso. Que dizer dos que enunciam a sentença sem definir, antes, o vocábulo empregado, aquêles que, afinal, empregam a palavra de maneira corriqueira? Terão feito um pronunciamento · a priori e analítico ou um pronunciamento empírico e sintético? Suponhamos que uma expedição retorna das cabeceiras do Amazonas trazendo espécimes desconhecidos de animais, escuros e cheios de pêlos, parecidos com as tarântulas, com os hábitos dessas aranhas, mas com apenas seis patas. Valendo-nos da palavra aranha de maneira ordinária, como descrever o achado? Deveríamos dizer "Aqui está, surpreendentemente, uma aranha de seis patas"; ou deveríamos dizer "Eis uma criatura muito parecida com a aranha, mas que não é aranha porque tem apenas seis patas"? A questão não admite resposta definida, pois o uso comum da palavra aranha é insuficiente para ditar regras precisas. A linguagem comum não estabelece, de modo satisfatório, a questão de saber se é ou não autocontraditório falar de aranhas com seis patas. No máximo, o uso comum da palavra poderia sugerir certa preferência pela pri-
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meira forma de descrever o achado, sem, no entanto, eliminar a outra forma, igualmente justificada pela experiência anterior. Aqui está, pois, um caso-limite, um exemplo de caso em que o conhecimento fica na fronteira, entre o analítico e o sintético; não se enquadra, de forma definida, em nossas categorias. Nesse sentido, o emprêgo ordinário do têrmo aranha apresenta o que filósofos da atualidade chamam "tessitura aberta". Nossas tendências, no uso da palavra, determinam um padrão mais ou menos frouxo, indefinido, que não fixa, em definitivo, tôdas as possibilidades. Recorramos a mais um exemplo, de grande importância. Antes de Copérnico, o vocábulo movimento, bem como palavras e expressões relacionadas com êle, aplicavam-se, sem dúvida, aos casos de objetos que mudassem de posição, relativamente à Terra. Dizia-se que uma caravana se movimentava na terra, que um navio se movia no mar e que o céu, as estrêlas e o Sol pareciam mover-se. Examinando o linguajar comum anterior a Copérnico, poder-se-ia formular a seguinte hipótese ( chamemo-la hipótese A) : as pessoas empregavam a palavra movimento para significar alteração de posições, relativamente à superfície da Terra. É muito possível que, perguntadas a respeito, dissessell). ser isso, justamente, o que entendiam (embora o que alguém diga acêrca de como emprega uma palavra não mereça mais confiança do que aquilo que um jogador de tênis diz a propósito de como se movimenta ao jogar - é possível cometer enganos· ao descrever as próprias ações). Veio, então, Copérnico. Sugeriu que a própria Terra estava em movimento, girando em· volta do Sol, enquanto o Sol e as demais estrêlas estavam em repouso. A oposição que a idéia despertou pode ter sido fruto, pelo menos em parte, da sensação de que ela era contraditória. Se movimento significa mudança de posição em relação à Terra, é impossível que a Terra se mova. Revendo a pendência à luz da hipótese A, alguém poderia dizer ( chamemos a isto ponto de vista A ) : "Está bem, é só uma questão de palavras. Se por movimento você entende mudança de lugar relativamente à superfície da Terra, então a Terra não se move. Mas se por movimento você entender mudança de lugar relativamente a~ Sol e às estrêlas, então a Terra estará em movimento. Trata-se de uma convençãb verbal, arbitrária: o vocábulo pode ser empregado de qualquer das duas formas, e nenhuma delas é mais correta do que a outra". :Êsse ponto de vista parece tornar a pendência entre as doutrinas de
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Ptolomeu e Copérnico uma simples disputa em tôrno de palavras ( admitindo, é certo, que junto com uma escolha de palavras caminham reações emocionais que podem ser benéficas ou prejudiciais para a religião organizada, e admitindo, também, que a escolha das palavras pode mostrar-se conveniente ou imprópria, sob o prisma da investigação científica). f:sse ponto de vista dá a impressão de que Copérnico teria agido sàbiamente se criasse uma palavra nova para descrever as suas idéias; poderia, por exemplo, ter dito que a Terra se esmove em volta do Sol. Isso teria deixado inalterado o vocábulo antigo, permitindo que as pessoas continuassem a dizer que o Sol se move em tôrno da Terra. Criando uma nova palavra, em vez de alterar, de maneira arbitrária, o significado da palavra antiga, evitar-se-ia ambigüidade e mal-entendido ( e Galileu não teria o que desmentir). Não obstante, essa maneira de encarar as coisas não faz justiça aos feitos de Copérnico. A sua contribuição teria sido muito menos significativa se êle se tivesse limitado a propor uma teoria que afirmasse que a Terra se esmove; tratar-se-ia de uma idéia valiosa, mas não de um avanço intelectual revolucionário - como o foi a sua idéia de que a Terra se move. Consideremos, agora, um segundo ponto de vista (ponto de vista B) em que poderíamos colocar-nos para descrever ·a situação. Dêsse ângulo, dir-se-ia que Copérnico não alterou, arbitràriamente, o significado da palavra movimento; focalizou, ao contrário, uma tendência latente que se manifestava no emprêgo anterior. É certo que as pessoas, no passado, tinham a tendência de dizer que algo se movia quando ( e sàmente quando) havia mudança de posição relativamente à posição média da maioria dos objetos circundantes. Admitia-se (hipótese B) que era isso, realmente, que significava movimento. Na perspectiva B, é a hipótese B, e não a hipótese A, que descreve corretamente o significado de movimento. Por que dizer que a hipótese B reflete uma tendência mais profunda no emprêgo passado? Em parte, pelo menos, porque a hipótese B nos permite uma explicação da tendência que havia de dizer que algo estava em movimento se, e sàmente se, variasse a sua posição relativamente à Terra: as pessoas assim se exprimiam, outrora, porque supunham a Terra muito maior e mais compacta do que os outros corpos celestes, de modo que apenas os objetos que se movessem relativamente à Terra pareceriam estar-se movendo em relação à posição média da maior parte dos objetos conside-
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rados. No século XVI, já se possuíam melhores dados acêrca das dimensões dos corpos celestes, em comparação com as do nosso planêta. Não se notou, porém, que tais dados enfraqueciam as razões oferecidas para a imobilidade da Terra. Chegou Copérnico. Reconhecendo que a Terra mudava de posição, relativamente à média das posições da maior parte da matéria circundante, êle propôs a teoria heliocêntrica - uma teoria que (nas linhas do ponto de vista B) não alterava o significado da palavra movimento e que, em vez disso, revelava serem errôneas as opiniões a propósito daquilo que se move. Adotamos o ponto de vista A, assentado na hipótese A, que descreve a controvérsia geocentrismo-heliocentrismo como se fôra, em essência, questão verbal, para situá-lo ao nível dos assuntos analíticos e a priori; adotamos o ponto de vista B, assentado na hipótese B, que descreve a controvérsia como questão de fato, para situá-lo ao nível dos assuntos empíricos e sintéticos (a saber, a Terra muda ou não muda de posição relativamente às posições médias da maior parte da matéria circundante?). O importante a notar é que nenhum dos dois pontos de vista é integralmente correto. A verdade está em algum ponto intermediário, embora; possivelmente, mais próximo de B do que de A. Ne~ A nem B podem ser dadas como hipóteses definitivamente verdadeiras: o emprêgo do têrmo em tela, movimento, não era governado por algumas regras bem definidas, de modo que não há fundamento decisivo para acolher uma das hipóteses em detrimento da outra. O que se pode dizer, de modo acertado, é que havia as duas tendências no emprêgo da palavra movimento (a tendência de dizer que um objeto se move se, e somente se, muda de posição em relação à Terra; e a tendência de dizer que um objeto se move se, e somente se, muda de posição relativamente às posições médias da maior parte de matéria circundante), cabendo afirmar que a s_egunda era, talvez, a mais profunda, menos aparente. Veremos, a seguir, alguns casos da Filosofia da Matemática em que a situação é análoga à dêste exemplo.
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EGÍPCIOS E GREGOS
Medir as terras para fixar os limites das propriedades era uma tarefa importante nas civilizações antigas, especialmente no Egito. Ali, as enchentes anuais do Nilo, inundando as áreas férteis, derrubavam os marcos fixados no ano anterior, obrigando os proprietários de terras a refazer os limites de suas áreas de cultivo. Em algumas ocasiões, a questão era refazer os limites com base em informações parciais; conhecida a forma do terreno, tratava-se, por exemplo, de reconstruir os lados restantes, se um dêles se havia preservado. Em outras ocasiões, destruídas por completo as fronteiras, tratava-se de refazê-las- de modo a demarcar o desejado número de propriedades, conservando as áreas relativas que possuíam no passado. Os egípcios tornaram-se hábeis delimitadores de terras e devem ter descoberto e utilizado inúmeros princípios úteis relativos às características ·de linhas, ângulos e figuras - como, por exemplo, o de que a soma dos três ângulos de um triângulo é igual a dois ângulos retos, e o de que a área de um paralelogramo é igual à do retângulo que tenha a mesma base e a mesma altura. Os antigos egípcios devem ter obtido êsses princípios por intermédio da observação e da experimentação - isto é, por intermédio de um raciocínio indutivo. Mediram muitos triângulos e muito ângulos retos e notaram que quase sempre a soma dos três ângulos de um triângulo era· aproximadamente igual a dois fingulos retos; notaram, ainda, que nos casos de diferença apreciável entre a soma dos três ângulos de um triângulo e dois retos havia, em geral, alguma explicação para a discrepância: os ângulos não haviam sido corretamente medidos ou os lados do triângulo não eram retilíneos. De maneira análoga, os egípcios devem ter medido as áreas de muitos paralelogramos
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e retângulos (possivelmente procurando ver a quantidade de pequenos quadrados que continham) e devem ter notado que as áreas dos paralelogramos eram, quase sempre, iguais ou quase iguais às áreas dos correspondentes retângulos de mesma altura e mesmo comprimento. Devem ter notado também que as eventuais discrepâncias podiam ser atribuídas às imprecisões de medidas ou ao mau traçado das linhas. Parece que os egípcios se limitaram à acumulação de conhecimentos que os habilitavam a resolver problemas de traçado de limites, de comparação de áreas, de projetos arquitetônicos e de engenharia de construções. Os gregos perceberam o que os egípcios eram capazes de fazer, e assimilaram seus princípios empíricos. Ao conhecimento assim delimitado, os gregos deram o nome de Geometria - isto é, medida da terra. Os gregos, porém, ao contrário dos egípcios, apreciavam a Geometria não apenas em virtude de suas aplicações práticas, mas em virtude de seu interêsse teórico, desejando compreender a matéria por ela mesma, e não em têrmos de sua utilidade. Aos gregos não bastou o critério empíl'ico; procuraram encontrar demonstrações dedutivas rigorosas das leis acêrca do espaço, que governavam as aplicações práticas da Geometria. Durante·muitos séculos, os gregos deram atenção à Geometria, descobrindo e demonstrando um número crescente de princípios geométricos. Alguns filósofos gregos, em partícular Pitágoras e Platão, davam enorme importância intelectual à Geometria, considerando que em sua forma pura e abstrata ela se aproximava·bastante da metafísica e da religião. Foi aproximadamente 300 anos antes de Cristo que Euclides escreveu seu livro clássico, Os Elementos, em que reuniu e apresentou de modo sistemático as principais descobertas geométricas de seus precursores. Esta obra é um dos clássicos que maior influência exerceu no pensamento ocidental. Nos tempos antigos, na Idade Média, no período moderno, até o século XIX, os Elementos de Euclides foram não apenas o livro texto da Geometria, mas o modêlo daquilo que o pensamento científico devia ser. Ü PROCEDIMENTO DE EUCLIDES
Quais são os traços característicos das técnicas adotadas por Euclides? Em primeiro lugar, êle sempre enuncia as suas leis em forma universal. Não examina as propriedades de uma determinada linha ou figura realmente existente; examina, ao
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contrário, as propriedades que tôdas as linhas ou figuras de tal ou qual espécie devem ter. Não apenas isso. Formula as leis de modo a torná-las rigorosas e absolutas - nunca são dadas como simples aproxitnações. Diz, por exemplo, que a soma dos ângulos de qualquer triângulo é sempre igual a dois ângulos retos; não diz tratar-se de um resultado aproximado ou usualmente verdadeiro - põe a asserção como algo rigorosa e absolutamente verdadeiro. O que é mais importante, Euclides não se limita a enunciar um grande número de leis geométricas; demonstra-as. Em verdade, o seu livro consiste em demonstrações colocadas de maneira sistemática. As demonstrações não são de caráter indutivo. Euclides não nos pede, jamais, que efetuemos medidas de ângulos de triângulos reais a fim de verificar que a soma é igual a dois ângulos retos. Não se preocupa, em momento algum, com experimentos ou observações dêsse gênero. Em vez disso, apresenta-nos demonstrações, de caráter dedutivo, por meio das quais procura estabelecer as suas conclusões com o rigor da absoluta necessidade lógica. O que, porém, pode ser demonstrado? A um primeiro olhar, poder-se-ia crer que o tratado ideal de Geometria seria aquêle em que o autor demonstrasse tôdas as leis geométricas formuladas. Um pouco de reflexão, no entanto, revela que isso seria adotar uma posição excessivamente otimist~. Ui:na demonstrnção (pelo menos no sentido comum da palavra) é uma cadeia de raciocínios que nos permite asseverar uma conclusão mostrando que ela decorre logicamente de certas premissas sabidamente verdadeiras .. Não existe demonstração a menos que se possa partir de uma ou mais premissas conhecidas - a base sôbre que se assenta a demonstração. Seria difícil, por outro lado, imaginar que sérias conclusões geométricas pudessem provir de premissas que não incluíssem pelo menos algumas leis relativas a pontos, linhas, figu~as, ou algo parecido. Euclides admitia que as premissas geométricas eram indispensáveis para a obtenção de conclusões geométricas. Suponhamos aceito êsse ponto de vista de que as conclusões geométricas só podem ser demonstradas a partir de premissas onde haja uma, pelo menos, de caráter geométrico. Significa isso à impossibilidade de demonstrar tôdas as leis geométricas, deduzindo outras e, a seguir, deduzindo mais algumas a partir destas para, repetindo o processo, chegar, enfim às leis originais? Isso é viável, sem dúvida. Qualquer lei geométrica pode ser derivada de outras leis geométricas. Não teríamos, dêsse modo, demonstrado tôdas
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as leis? A resposta é não, pois a suposta demonstração estaria baseada num raciocínio circular (petitio principii). Um raciocínio circular não é uma demonstração porque não consegue estabelecer a verdade de suas conclusões. Deve-se lembrar que uma dedução não equivale a uma demonstração. Deduzir uma conclusão a partir de certas premissas equivale a oferecer uma demonstração da conclusão quando já estiver assegurada a verdade das premissas. (Posso deduzir, sem dificuldade, "Todos os gatos voam" empregando a premissa "Todos os mamíferos voam e os gatos são mamíferos"; não consigo, porém, com isso demonstrar que os gatos voam.) Parece, portanto, que algumas leis geométricas podem ser demonstradas e que outras não podem. Em outras palavras: as leis da Geometria serão distribuídas em dois grupos; de um lado, ficarão algumas leis que não receberão demonstrações, mas que figurarão como premissas básicas e, de outro lado, ficará um grande número de novas leis, cada uma das quais se espera poder demonstrar com auxílio das premissas básicas. Nos Elementos, Euclides chama "postulados" as leis do primeiro grupo; trata-se de leis a propósito de retas, ângulos e figuras, consideradas verdadeiras, mas que o geômetra não procura demonstrar, utilizando-as para demonstração de outras leis geométricas .. As leis demonstráv.eis são chamadas "teoremas" ( ou, segundo a terminologia antiga, "proposições"). ÜS POSTULADOS DE. EUCLIDES
Examinemos os cinco postulados que Euclides realmente fixa em seu sistema. Postulemos, diz êle, o seguinte: 1. Uma linha reta pode ser traçada de um para outro ponto
qualquer. 2. Qualquer segmento finito de reta pode ser prolongado indefinidamente para constituir um\! reta. 3. Dados um ponto qualquer e uma distância qualquer, pode-se traçar um círculo de centro naquele ponto e raio igual' à dada distância. 4. Todos os ângulos retos são iguais entre si. 5. Se uma reta cortar duas outras retas de mqdo que a soma dos dois ângulos interiores, de um mesmo lado, seja menor que dois ângulos retos, então as duas outras retas se cruzam, quando suficientemente prolongadas, do lado da primeira reta em que se acham os dois ângulos.
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Meditando acêrca do significado dêsses postulados, vemos de' imediato, que as idéias de Euclides diferem muito das concepções indutivas e empíricas adotadas pelos egípcios. Os três primeiros postulados de Euclides revelam que êle não está, de maneira direta, discutindo nenhum problema concreto de mensuração de terras; com efeito, em condições reais não é sempre possível traçar uma reta que passe por dois pontos dados. Obstáculos vários (montanhas, lagos, partes de um país estrangeiro) impedem, muita vez, o traçado. Também não é verdade, nas condições reais, que um segmerito seja indefinidamente prolongável. É óbvio, por exemplo, que um segmento vertical só pode ser prolongado um pouco, para cima e para baixo; mesmo um segmento horizontal só pode ser prolongado até a primeira barreira impenetrável. Não se pode, igualmente, desenhar um círculo cujo centro tenha sido arbitràriamente selecionado e cujo raio seja apreciàvelmente grande: os obstáculos impedirão, por certo, o traçado. Euclides sabia de tudo isso, é claro; mas as condições práticas simplesmente não o interessavam. Concebia que, em princípio, uma reta poderia ser traçada de modo a ligar dois pontos quaisquer, fôsse ou não possível traçá-la cm realidade; imaginava que um segmento de reta sempre poderia, cm princípio, ser prolongado para constituir uma reta, ÍÔSSL' 011 11i10 possível rcaliz,í-lo concretamente; e admitia que um círculo srn1prl' snia ninfi~urado por um centro· e uma distânda dados, f11ssl' 011 11ú11 pDssívl'I l'Olll'l"l'lizú-lo. Segundo Euclides, porla11lo, havia 11111 l'Spa,o c111 qm: inexistiam obstáculos absol11l11!i l' t'III volta do qual inexistiam fronteiras cxtcrior_es absohthlM,
O quarto postulado de Euclides é, à primeira vista, um
pou~o 1111r1>rccndcntc, e parece que se poderia dispensá-lo tão trlvlnlmcntc verdadeiro é aquilo que assevera. Se dois ângulos Nilo retos, parece óbvio que sej3;m iguais. Por que postulá-lo? Se Euclides tivesse dito que todos os ângulos retos são ângulos retos, teria, de fato, afirmado algo tão trivial que o postulado seria dispensável; com efeito, a observação seria verdadeira apenas em virtude de sua forma lógica; tratar-se-ia de uma verdade lógica, não de uma verdade geométrit:a. Segundo as concepções de. Euclides, entretanto, um ângulo reto pode ser obtido sobrepondo-se duas retas de tal maneira que os ângulos adjacentes sejam iguais. Dessa definição não se deduz, com auxílio da Lógica apenas, que os ângulos obtidos dessa maneira sejam sempre iguais. O quarto postulado, por conseguinte, tal
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como Euclides o coloca, não descreve uma verdade dependente apenas da forma lógica; uma vez que êle será necessário para demonstrações futuras, o geômetra precisou, de fato, enunciá-lo explicitamente, na qualidade de postulado. O quinto postulado encerra uma lei mais complicada do que as fixadas nos postulados precedentes. Seu significado pode ser compreendido através de uma figura (ver Figura 1). A
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