Na Procura do Lugar o Encontro da Identidade: um estudo do processo de ocupação de terras: Osasco


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Na Procura do Lugar o Encontro da Identidade: um estudo do processo de ocupação de terras: Osasco

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Arlete Moysés Rodrigues

NA PROCURA DO LUGAR O ENCONTRO DA IDENTIDADE Um estudo do Processo de Ocupação de Terras: Osasco

1ª Edição

Arlete Moysés Rodrigues

São Paulo 1988

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ISBN: Copyright © Arlete Moysés Rodrigues Direitos desta edição reservados à FFLCH Av. Prof. Lineu Prestes, 338 (Laboratório de Geografia Urbana) Cidade Universitária – Butantã 05508-900 – São Paulo – Brasil Tele fone: (11) 3091-3714 E-mail: [email protected] http://www.fflch.usp.br/dg/gesp Editado no Brasil Todos os direitos reservados. A reprodução não autorizada desta publicação, no todo ou em parte, constitui violação do copyright (Lei nº5988) 1ª edição – 2009 Projeto Editorial: Comissão Editorial FFLCH Diagramação: Gabriela Vieira Alexandre Logo Labur: Caio Spósito Logo GESP: Mayra Pereira Barbosa Ficha Catalográfica RODRIGUES, Arlete Moyses. Na Procura do Lugar o Encontro da Identidade: um estudo do processo de ocupação de terras: Osasco: FFCLH, 2009, 314. Inclui bibliografia 1. Terras 2. Ocupação 3. Osasco Proibida a publicação no todo ou em parte; permitida a citação. A citação deve ser textual, com indicação de fonte conforme a ficha catalográfica. Disponibilizado em: http://www.fflch.usp.br/dg/gesp

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Na procura do lugar o encontro da identidade

Imagem Capa: Arlete Moysés Rodrigues

Agradecimentos

Ao Eder Sader,

Grande companheiro e amigo, contaminado pelo sangue impuro desta sociedade que tanto lucrou para ver transformada, Arlete Moysés Rodrigues

assassinado pela incúria do governo brasileiro. À Maria Regina de Toledo Sader, Pela sua força e coragem em enfrentar a vida.

Aos integrantes do Movimento Terra e Moradia de Osasco.

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Este é um texto que exprime parcialmente, a história de muitos. Escrito no espaço por esses muitos, acabou ficando apenas com a minha assinatura. Na verdade, esta pesquisa só foi possível porque, infelizmente, uma grande parte dos trabalhadores brasileiros vive em situação de extrema penúria. Seria preferível não ter esse laboratório para trabalhar dissertações e teses acadêmicas. Mas a realidade aí está e, assim, é preciso tentar desvendá-la e mostrar que os trabalhadores produzem um espaço ao produzirem sua condição de existência. É preciso, também, desmistificar o mito da apatia do povo brasileiro. Dedico este texto ao mesmo tempo em que agradeço: Ao Vanderlei – companheiro de muitas jornadas. Está presente em todas as linhas deste trabalho, porque está no meu caminhar de vida e de luta. Sem paixão não dá para viver. À Tarsila – pela sua meiguice e carinho e por dizer: “Não se preocupe, o que não der tempo, a gente continua.” (27/6/87, logo após a ocupação do Jardim Conceição).

o que eu fazia e poder também participar. Aos integrantes do “Movimento Terra e Moradia de Osasco” – Esta Terra é Nossa; Vila da Conquista e Jardim Conceição 2. Não dá pra dizer o nome, pois são mil famílias. Estão todos aqui, são companheiros de luta (como dizia o Oficial de Justiça: “Aqui todos se chamam só companheiros?”). Aqui todos têm nome, só não vou citá-los. Obrigado pela sua luta, pois foi ela que possibilitou esse trabalho. Aos companheiros do Grupo de Apoio e do Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Osasco – para a lista não ficar enorme, sintam-se, por favor, citados. Aos companheiros do Grupo de Habitação do Partido dos Trabalhadores e da Articulação Nacional do Solo Urbano, com os quais aprendi a tentar unir a teoria e a prática da pesquisa. 5

Na procura do lugar o encontro da identidade

Ao Diogo – pelo seu jeito maroto e levado e por sua vontade de ir à “terra” para compreender

Aos companheiros da Associação dos Geógrafos Brasileiros que confiaram em mim para representá-los no Movimento Nacional pela Reforma Urbana. Aos companheiros de trabalho da Unicamp – IFCH –, em especial àqueles que batalharam junto comigo pela ampliação do quadro de professores de geografia para que eu pudesse dar conta de todas as minhas tarefas e aos que partilharam das inúmeras idas e vindas no trajeto São Paulo-Campinas, onde nem sempre fui companhia agradável. Ao Nelsinho e Kozo pela sua presença nas áreas de pesquisa, filmando, conversando e discutindo a proposta de trabalho. Agradeço a possibilidade de elaborar o vídeo que conta não só história do movimento, mas a constituição de um grupo de trabalho, no qual, desde o início, participou o Bernardo. Nelsinho elaborou também os cartogramas deste trabalho. À Lea Goldenstein e Rosa Ester Rossini – pelas contribuições valiosas no exame de qualificação. À Comissão de Pós-Graduação do Departamento de Geografia que julgou procedente meu plano de pesquisa e concedeu-me uma bolsa da CAPES. A lista ainda é muito grande:

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Aos companheiros e amigos da AGB – São Paulo e da AGB Nacional. Aos da Pós-Graduação; ao Lúcio Kowarick, que na sua proposta de curso permitiu um raro momento de encontro, de uma reflexão, entre os que estavam preocupados com os movimentos sociais urbanos: Eder Sader, Maria Salete Machado, Célia Sakurai, que também participou da pesquisa nas favelas, pois mesmo após o término do curso, continuamos a nos encontrar e a tentar achar um caminho de trabalho que possibilitasse a melhor compreensão da realidade. Ao Rubens P. dos Santos, pela revisão da redação, à Gisele (em especial pelo desenho da capa), ao Zé Maurício (pela elaboração dos croquis), à Mônica (que tentou discutir a minha visão romântica), à Regina Bega, Ariovaldo, Ana Maria Marangoni (em especial pela leitura

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atenta dos manuscritos datilografados), Palheta, Vera Silva Teles, Ana Maria Neimeyer, Edmundo Fernandes Dias, Suely Koffes, ... e ... Sou grata a todos vocês. Ao Manoel Seabra, presença importante em todos os momentos de elaboração deste trabalho. Um exemplo de vida a ser seguido. Sua presença traz sempre a tranqüilidade, instigante de, a cada passo, refletir sobre a realidade e do caminho não estar sendo trilhado no escuro. Agradecer ao orientador desta tese é pouco, é preciso agradecer à sua presença. Obrigada por ter aceito orientar-me e por ser meu amigo. Os erros deste trabalho devem ser tributados à minha incapacidade de analisar corretamente a realidade.

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Sumário

I – INTRODUÇÃO 1. Apresentação do Trabalho................................................................................................10 1.1. O ponto de partida............................................................................................................10 1.2. O encaminhamento da pesquisa.......................................................................................13 1.3. A mudança de percurso no percurso...............................................................................15 2. Os eixos principais do trabalho........................................................................................19 3. O encaminhamento da pesquisa........................................................................................21 3.1. A pesquisa nos jornais......................................................................................................21 3.2. O processo cotidiano de apropriação do espaço............................................................23 3.3. A pesquisa militante.........................................................................................................25 II – UMA REFLEXAO SOBRE A METRÓPOLE PAULISTA E PROPRIEDADE DA TERRA URBANA NO BRASIL 1. São Paulo: Cidade Capitalista – Alguns aspectos da concentração espacial da riqueza e pobreza................................................................................................................................31 2. A apropriação do espaço urbano para moradia................................................................48 2.1. Valor de uso/valor de troca: a mercadoria terra urbana e suas especificações..............53

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2.2. A constituição da propriedade da terra no Brasil.............................................................62 2.3. A terra urbana – mercadoria “sui generis” e/ou assemelhada ao capital........................67 2.4. A renda da terra – absolutamente diferencial...................................................................78 2.5. A produção da Cidade – individual e social......................................................................85 2.6. Os meios de consumo coletivos............................................................................................93 III – OS DISCURSOS SOBRE O ACESSO À TERRA E MORADIA NA CIDADE 1. Alguns aspectos das falas sobre as cidades.........................................................................104

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2. As falas e as práticas sobre os favelados e os ocupantes: os personagens e as imagens (dos favelados e dos ocupantes).......................................................................................112 3. As alterações nas falas e nas práticas sobre os favelados e os ocupantes: os mesmos personagens e as novas imagens.......................................................................................130 3.1. Os partidos políticos nos movimentos...........................................................................146 3.2. As alterações na fala: igreja...............................................................................................159 3.3. As várias ênfases dos moradores citadinos......................................................................170 3.4. O processo de resistência – as falas e as práticas dos ocupantes – a constituição dos novos sujeitos....................................................................................................................179 3.5. O Congresso Constituinte e a Reforma Urbana.............................................................189 3.6. As permanências nas falas e nas práticas.........................................................................199 IV – O COTIDIANO DOS PROCESSOS DE OCUPAÇÃO DE TERRAS: MOVIMENTO TERRA E MORADIA – OSASCO 1. Justificativa......................................................................................................................202 2. “Esta Terra é Nossa” – Histórico do Movimento.......................................................204

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2.1. Início..............................................................................................................................204 2.2. Ampliação do movimento............................................................................................209 2.3. A descoberta do “movimento” – organização............................................................213 2.4. A ocupação....................................................................................................................216 2.5. A reintegração da posse................................................................................................219 2.6. A conquista da terra......................................................................................................222 2.7. Vizinhança.....................................................................................................................224 2.8. Os partidos políticos.....................................................................................................227 2.9. A relação com o poder municipal................................................................................229 2.10 A continuidade do Movimento “Esta Terra é Nossa”..............................................232 3. Incorporação de Novos Interessados – Grupo 2........................................................236 3.1. Jardim Conceição..........................................................................................................236 3.2. A procura do lugar........................................................................................................238 3.3. A ocupação da Gleba Jardim Conceição.....................................................................240 3.4. A vizinhança..................................................................................................................242 9

3.5. Os ocupantes: um pouco de cotidiano....................................................................244 3.6. Jardim Conceição: Vila da Conquista – a relação do movimento com o poder público.......................................................................................................................247 3.7. Vila da Conquista continua sua luta.........................................................................253 4. A contínua procura do lugar para morar..................................................................258 4.1. A procura do novo lugar..........................................................................................260 4.2. A nova ocupação.......................................................................................................261 4.3. A luta pela permanência do grupo 3 no Jardim Veloso – área particular.............264 4.4. A presença partidária no despejo.............................................................................267 4.5. A continuidade da luta..............................................................................................268 4.6. A liminar de reintegração da posse..........................................................................271 4.7. A resistência no despejo...........................................................................................274 4.8. A continuidade do movimento................................................................................277 4.9. É preciso que tudo mude (na aparência) para que tudo fique como está (na essência).....................................................................................................................280 5. O encontro da identidade.........................................................................................282 5.1. O vídeo do movimento no movimento..................................................................284 V. CONSIDERAÇÕES FINAIS.........................................................................................287 APÊNDICE – Fotos.............................................................................................................284

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................303 ANEXOS

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INTRODUÇÃO

1. APRESENTAÇÃO DO TRABALHO 1.1. O ponto de partida Este trabalho começou a ser elaborado com a preocupação de tentar compreender a luta no e pelo espaço urbano realizada pelos favelados. O ponto de partida foi a conclusão da dissertação de mestrado, onde analisei as causas do crescimento explosivo das favelas, sua distribuição pelo espaço urbano na cidade de São Paulo, a situação de trabalho dos favelados e o percurso migratório dos chefes de família migrantes moradores em favelas. Esta análise me permitiu compreender a realidade da inserção no mercado de trabalho e de consumo da população favelada; ao mesmo tempo fez surgir novas indagações sobre a produção, reprodução e lutas no espaço urbano. Embora não seja, hoje, nenhuma novidade, nas considerações finais da dissertação de mestrado ressaltei alguns aspectos sobre o processo de favelização:

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“No desenvolvimento do capitalismo no Brasil a favela é produto da conjugação de vários processos: da expropriação de pequenos proprietários rurais e da super-exploração da força de trabalho no campo, que conduz à migração rural-urbana; do empobrecimento da classe trabalhadora em seu conjunto e do preço da terra urbana que conduz à necessidade de sucessivos deslocamentos no espaço urbano até a invasão de áreas. A favela exprime a luta pela sobrevivência e pelo direito ao uso do solo urbano de uma parcela da classe trabalhadora. Exprime, enfim, a luta pelo direito à cidade... O mesmo processo – o desenvolvimento do capitalismo – que provoca a expropriação no campo, provoca também a super-exploração na cidade e cria uma população excedente para as necessidades médias de acumulação. A favela é uma „instituição necessária‟ ao desenvolvimento do capitalismo, porque é onde se aloja uma parcela da classe trabalhadora. Na aparência há uma contradição entre a massa de riqueza gerada e a extrema penúria de uma grande parte dos trabalhadores. Na essência, o mesmo processo que propicia a produção de riqueza, espolia o trabalhador até o limite máximo da sua força de trabalho, única riqueza que lhe restou e que vê esgotada dia a dia. A favela é então um dos aspectos da organização do espaço para e pelo capital... À medida que aumenta a pauperização da classe trabalhadora e que se acelera o crescimento das favelas, os moradores passam a reivindicar, pela força de seu conjunto, condições mais dignas de sobrevivência... a população favelada passa, cada vez mais, a contestar as formas institucionais que regem o direito do uso da terra urbana. Não há contestação da propriedade privada, na medida que reivindicam o título de posse da propriedade da área que ocupam, mas há contestação da legislação vigente. É um processo de luta pelo direito à moradia e à terra urbana. É necessário um estudo específico dos movimentos que hoje se expandem pelas

favelas; das construções das „favelas de alvenarias‟ e das recentes invasões organizadas, para entendê-los em sua complexidade”. (Rodrigues, A. M. 1981, p. 161 e sgs.)

Assim, o ponto de chegada da dissertação de mestrado foi o ponto de partida deste trabalho: analisar os movimentos sociais urbanos que ganhavam visibilidade política no início da década de 80, bem como as ocupações organizadas, contrastantes com as ocupações cotidianas das favelas. Ainda na dissertação de mestrado, analisei comparativamente a situação de trabalho dos favelados com os moradores de casas de alvenaria e concluí que a população favelada faz parte da classe trabalhadora em seu conjunto e não é marginal ao sistema econômico. Obtém seu sustento pela venda de sua força de trabalho em condições semelhantes a dos moradores das casas de alvenaria. Mas considerei que as lutas entre vizinhos – casas de alvenaria e barracos – pudesse ser atribuída ao fato da favela provocar uma “desvalorização”, ou pelo menos um não aumento de preço, nos terrenos das vizinhanças. Para sair de uma análise puramente econômica, tornou-se importante analisar a produção do espaço, tentando compreender a complexidade de produção/reprodução do espaço e as formas de legitimação da propriedade da terra, compreendidas neste trabalho através da análise dos discursos sobre a cidade e sobre a moradia. Assim, procuro obter um compreensão sobre a luta no e pelo espaço urbano de segmentos da classe trabalhadora. Fica evidente que, ao afirmar que a população favelada faz parte da classe trabalhadora em seu conjunto, utilizo o conceito marxista de classe social, relacionada ao lugar objetivo que cada um ocupa na divisão social do trabalho. Tal conceito é efetivamente discutido e esclarecido por Eder Sader quando coloca a necessidade de compreender o significado dessa objetividade:

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“Se pensarmos a realidade objetiva como resultado das ações sociais que se objetivaram (...) poderemos pensar a existência objetiva da divisão de classes na sociedade capitalista como uma „realidade virtual‟, uma condição vivida e continuamente reelaborada. „Classe social‟ desse modo designa uma condição que é comum a um conjunto de indivíduos, mas ela é alterada pelo modo como é vivida.” (Sader, E. 1987, p.19-20)

Trata-se, diz Eder, de articular a noção-objetiva (pelas condições de existência) e subjetiva (elaboração da organização dos sujeitos implicados). Como neste trabalho a ênfase será dada nas condições de reprodução da força de trabalho, devo esclarecer também que considero, como Francisco de Oliveira, que a reprodução não é simplesmente o eterno retorno

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da produção (Oliveira, F. 1987). Assim, os movimentos de luta pela obtenção da moradia, não são meros reprodutores das necessidades de acumulação de capitais e, portanto, têm uma dinâmica e uma constituição de sujeitos que não eliminam a „luta‟ no interior de uma mesma classe (pelas condições de existência), pois estas condições são alteradas pelo modo como é vivida.1 1.2. O encaminhamento da pesquisa Para compreender os conflitos no interior da mesma classe, tornava-se necessário analisar quer a condição dos moradores das áreas vizinhas às favelas e ocupações, quer a dos próprios ocupantes e favelados – tanto no que diz respeito a sua condição como na condição do outro, buscando assim compreender a condição de vida que, como diz Dario Lanzardo: “...apresenta-se de forma mistificada, mascarando o processo de exploração real da classe operária e provindo de uma mistificação mais geral, própria da classe capitalista.” (Lanzardo, D. – in Thiollent, 1981, p.233)

Estão implícitas nas análises das condições de vida – de moradia – as representações e a atuação do Estado; nesse sentido, busquei analisar as falas institucionais sobre a cidade e a atuação do Estado com ênfase no poder local, no contexto de uma procura de maior visibilidade das mobilizações e associações de moradores em movimentos reivindicatórios, seja por melhorias de infra-estrutura de serviços, seja – no caso das favelas e ocupações – pela permanência nas áreas já ocupadas. Este contexto de reivindicações não diz respeito apenas aos moradores das favelas, mas também a uma maior visibilidade das organizações dos moradores das casas de alvenaria, dos bairros da periferia da cidade, que reivindicavam infraestrutura e retirada das favelas que ocupavam as áreas livres desses loteamentos. Neste processo do início dos anos 80, paralelamente, verificava-se também uma predisposição de “mudança” da política habitacional dirigida à população dos “sem terra”, pelo menos situada ao nível dos discursos do poder público. Na proposta inicial deste trabalho, a ênfase era analisar o processo de apropriação, produção e reprodução do espaço urbano pelos favelados, e o seu processo de organização na luta pela permanência nas áreas ocupadas e por melhores condições de vida. A análise do 1

Veja a esse respeito Sader, Eder op. cit.

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moradia. Para buscar esclarecer os conflitos no interior da mesma classe, foi necessário situar a

processo de apropriação do espaço seria realizada através da dimensão do cotidiano, ou seja: como se chega a uma favela, como se descobre o lugar, como se muda (porque em algum lugar antes de se chegar à favela também é preciso morar), bem como através do processo de organização dos moradores para os movimentos reivindicativos. Para analisar essas questões tornar-se-ia necessário verificar as diferenças ou semelhanças deste processo com outras formas de organização cotidiana do espaço: as autoconstruções na periferia e as ocupações coletivas de terra, que se tornam mais freqüentes na década de 80. Delimitei, como universo de pesquisa, algumas favelas do município de São Paulo e os bairros vizinhos a estas favelas (veja-se anexo de pesquisa). Para verificar as semelhanças e diferenças entre favelas e ocupações foi selecionado o Movimento dos Sem Terra de Osasco, município da Grande São Paulo. 1.3. A mudança de percurso no percurso O que esperava que fosse apenas um complemento de toda a pesquisa, passou a ser a ênfase da pesquisa de campo, porque as ocupações de terra que ganharam maior expressão nesta década permitem ver com clareza, num curto espaço de tempo, a apropriação dos moradores já citadinos da dimensão de cidadão, o processo de organização e a produção da cidade e da cidadania, na medida em que é um processo que se expressa conflitantemente. Visto que, como diz Panzieri:

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“...é preciso que a investigação se faça numa situação „quente‟, isto é, particularmente conflitante...: é preciso estudar como o sistema de valores que o operário exprime em tempos normais se transforma, que valores o substituem com uma consciência clara das alternativas ou desaparecem naquele momento.” (Panzieri, R. in Thiollent, 1981, p. 229)

Busquei, assim, analisar as transformações que ocorreram em situação de conflito, como são os casos de ocupação de terra, que se manifestam de forma diferente caso a propriedade da área ocupada seja pública ou particular. Sem perder de vista tentar compreender a apropriação cotidiana do espaço pelos favelados, a pesquisa tornou-se uma pesquisa participante, ou, quem sabe, militante com os favelados, mas principalmente com o Movimento Sem Terra de Osasco; seja na sua cotidianidade, seja na sua expressão enquanto movimentos sociais urbanos na luta pela moradia. E na sua ampliação, enquanto participantes do Movimento Nacional pela Reforma Urbana.

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Para analisar o movimento de ocupação estive presente no processo de luta pela conquista da terra e da moradia, desde reuniões preliminares até o assentamento, mesmo que provisório, das famílias. Quase sempre com gravador, máquina fotográfica, papel e lápis e muitas vezes com equipamento de filmagem (contanto nesses casos com o Nelsinho e Kozo), pois considero que a situação de conflito não é expressa apenas num movimento, mas sim num período de tempo. Embora tenha sido muito difícil mudar alguns aspectos da pesquisa, foi necessária esta alteração para melhor dar conta da realidade. Posso não ter dado conta da complexidade que envolve esta dimensão do espaço e da cidadania neste espaço, mas sem dúvida, este trabalho permitiu caminhar junto com o movimento, sem ter estipulado a priori qual seria o „melhor‟ caminho, buscando-o no decorrer da caminhada. Na verdade, procurei não apenas a emissão de opinião reativa (perguntas e respostas), mas verificar como os participantes do movimento se situam diante da problemática da busca do lugar para morar. É evidente que o risco de deixar obscuros alguns aspectos da realidade não é atributo exclusivo da pesquisa participante, mas da própria incapacidade de observar a realidade de modo concreto, pois afirma Thiollent:

Um outro aspecto colocado como importante no inicio da pesquisa dizia respeito aos conflitos existentes entre as reivindicações dos moradores das casas de alvenaria e as dos moradores dos barracos de favelas. Também este sofreu modificações. A análise dos conflitos das reivindicações se mantém e se amplia. Foi necessário então verificar como os moradores de alvenaria da periferia pobre se relacionam com os moradores das terras ocupadas e se há conflitos para a produção de uma “cidade que nasce da noite para o dia”, como disse uma moradora vizinha a uma área de ocupação de terras. Além disso, procurei verificar se as reivindicações dos ocupantes conflitavam ou não com as dos favelados. De modo geral, busquei analisar os modelos de representação relativo ao problema de moradia. É também bom destacar que, mediando esses conflitos e propiciando a expansão do urbano, no que se refere a interesses do capital ou limitando esta expansão quando se refere à gestão da cidade, está o Estado.

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“No conhecimento social, mais do que em qualquer outro tipo de conhecimento, a acessibilidade de determinados tipos de informação relevante para a explicação de uma situação depende dos modos práticos de atuação dos cientistas no seu relacionamento dentro da situação.” (Thiollent, M. 1981, p.130)

No atual momento histórico, reveste-se de fundamental importância a análise da atuação do Estado na mediação dos conflitos, considerando-se a discussão sobre a questão da função social da propriedade e da produção e consumo da cidade no Congresso Constituinte. Ao acompanhar os integrantes dos movimentos em seus “eventos” de reivindicação, verifiquei que os representantes do poder local do município de Osasco faziam constantes referencias ao fato das verbas para habitação estarem concentradas na esfera federal e estadual e que, dadas às „divergências‟ políticas, essas verbas estavam „congeladas‟ estando, portanto, o poder local sem condições de atender às justas reivindicações. Ressalte-se que, no caso, os governos Municipal, Estadual e Federal fazem parte do mesmo partido. Durante o processo de elaboração deste trabalho, acompanhei os movimentos dos “sem terra/sem casa” na discussão e na elaboração das propostas, coletas de assinaturas e entrega das Iniciativas Populares sobre Reforma Urbana e Reforma Agrária, no Congresso Constituinte, bem como o processo de discussão no próprio Congresso. Para entender e poder analisar profundamente todo um processo de produção de experiência, a elaboração do documento permitiu verificar o caminhar da luta e dos encontros conjunturais e analisar como as questões que sempre aparecem como fracionadas ao longo do espaço e do tempo confluem para uma proposta que abrange reivindicações de vários movimentos em suas especificidades. Como diz Lúcio Kowarick:

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“Não considero possível deduzir as lutas sociais das determinações macro-estruturais, posto que não há ligação linear entre precariedade das condições de existência e os embates levados adiante pelos contingentes por ela afetados. Isto porque malgrado uma situação variável, mas comum de exclusão econômica, os conflitos manifestam-se de maneira diversa e, sobretudo, as experiências de lutas têm trajetórias extremamente díspares, apontando para impasses e saídas para as quais as condições estruturais objetivas constituem, na melhor das hipóteses, apenas um grande pano de fundo. Não se trata de desconsiderá-las, mas de reconhecer que, em si, a pauperização e a espoliação são apenas matérias primas que potencialmente alimentam os conflitos sociais: entre as contradições imperantes e as lutas propriamente ditas há todo um processo de „produção de experiências‟ que não está, de antemão, tecido na teia das determinações estruturais... Se as lutas caminham paralelamente, existem estuários conjunturais onde elas desembocam, e o entendimento desse encontro requer um mergulho sobre a diversidade de movimentos que ocorrem tanto nas fabricas como nos bairros, a fim de captar aquilo que estou denominando de momentos de fusão dos conflitos e reivindicações.” (Kowarick, L. 1984, p. 71 e 78)

A discussão para a elaboração da Iniciativa Popular sobre a Reforma Urbana foi um desses momentos “privilegiados” de encontros conjunturais, pois cada movimento de sem

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terra e “sem teto” tinha reivindicações que convergiam para uma proposta comum: a produção mais justa do espaço urbano e a gestão coletiva deste espaço. Por que explicar estas alterações da pesquisa? O usual é publicar apenas os resultados. Explicar procedimentos iniciais e as mudanças é praticamente começar pelo fim, mas como disse Marx: “O método de exposição não coincide necessariamente com o método da pesquisa.”

Considero necessária esta explicação, porque a pesquisa participante não foi, neste caso, definida a priori, mas sim constituída no próprio percurso, e, além disso, quero deixar marcada a posição, da qual tenho sido – como tantos outros pesquisadores – arauto, de que a pesquisa também em Ciências Humanas é extremamente difícil, na medida em que se propõe a dar conta da realidade em sua complexidade. O objetivo desta pesquisa não é definir uma única forma de metodologia, mas de abrir “brechas” na geografia e propor também indicações para a compreensão da produção no espaço em sua cotidianidade e na sua possibilidade de ação imediata. Explicar o percurso da pesquisa permite ver, como diz Sérgio P. Rouanet, que:

normativo explícito, por um sonho de harmonia, de equilíbrio e perfeição; mas como esta ordem está permanentemente em contradição com todas as ordens existentes, elas são permanentemente transgressoras.” (Rouanet, S. P. 1987a, p. 350)

Mostrando as dificuldades em Ciências Humanas, a tentativa de entender-se a realidade através da pesquisa militante, é possível, que sabe, ajudar a romper os grilhões, no sentido dito por Marx: “A crítica não arrancou as flores imaginárias que enfeitavam nossos grilhões para que suportássemos esses grilhões sem qualquer consolo e qualquer fantasia, mas para que rompêssemos os grilhões.” (In: Rouanet, op. cit., p. 327)

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“As humanidades são ao mesmo tempo ordem e transgressão. São habitadas por um ideal

2. OS EIXOS PRINCIPAIS DO TRABALHO A pesquisa busca atentar para as manifestações de resistência – no seu significado de apropriar-se do espaço – para viver na cidade, que os movimentos de favelados e de ocupantes organizados deixam entrever. Procura analisar a capacidade de criar, de articular, em seus fluxos e refluxos, a construção da cidadania implícita cotidianamente nas lutas pela moradia, construindo e reconstruindo o espaço urbano. Procura também analisar os modelos de representação relativos aos problemas de moradia e as transformações que ocorrem em situações de conflito. A produção do espaço urbano poderia ser comparada, grosso modo, com um caleidoscópio, que a cada virada, por menor que seja, mostra uma nova combinação de elementos, de cores, dando uma nova forma do visível, onde todas as outras formas e cores estão contidas, embora nem sempre visíveis. É claro que a imagem do caleidoscópio pode significar a rearticulação do mesmo material, num conjunto fechado. Portanto, é necessário considerar que aos caleidoscópios se incorporam sempre novos elementos para ser ao mesmo tempo ordem e transgressão. Este trabalho procura mostra pelo menos alguns aspectos da produção do espaço urbano. Cada um deles tem contido vários outros: 2.1. A luta pela moradia realizada pelos “sem terra/sem teto” urbanos, sejam os inquilinos, os favelados, os encortiçados, os ocupantes (que em momento anterior eram inquilinos). A pesquisa analisa uma pequena amostra, já que está restrita a alguns favelados do Município de

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São Paulo, a entrevistas com lideranças das favelas de Diadema e Guarulhos, na Grande São Paulo e em Campinas e pesquisa com os ocupantes do Movimento “Terra e Moradia” de Osasco, também Município da Grande São Paulo. 2.2. A luta pelos equipamentos de consumo coletivo e pelo efetivo reconhecimento da propriedade da terra, realizada pelos „compradores‟ dos lotes dos chamados loteamentos clandestinos e dos auto-construtores da periferia pobre. Neste estrato da pesquisa, a entrevista foi realizada com lideranças dos movimentos pela regularização dos loteamentos clandestinos. Enfim, todos os que chegam antes dos serviços e equipamentos de consumo coletivo: os desbravadores da cidade. Desta luta, em geral, participam apenas os proprietários de casa 18

própria, pois quando obtidos os equipamentos de consumo coletivos os alugueis aumentam e os inquilinos são em geral “expulsos”. 2.3. As lutas cotidianas realizadas pontualmente no espaço, que se ampliam pela transformação do espaço urbano com a aglutinação dos movimentos urbanos sociais na elaboração da proposta de iniciativa popular no Congresso Constituinte – A Reforma Urbana. 2.4. A atuação do Estado face ao movimento geral da produção do espaço urbano na mediação dos conflitos, atuação que se dá tanto na esfera da regulamentação do trabalho (salário, condições de trabalho em geral), quanto – direta ou indiretamente – na produção e na administração dos bens de consumo coletivo e no ordenamento espacial da cidade.

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3. O ENCAMINHAMENTO DA PESQUISA 3.1. A pesquisa nos jornais Para dar conta desta proposta de trabalho, procurando o avesso do discurso, pesquisei as notícias veiculadas pela imprensa sobre a questão das favelas e das ocupações em São Paulo, durante um período de 20 anos. Sobre as favelas desde o inicio da década de 60 e sobre as ocupações desde o final da década de 70. As notícias foram apenas as da grande imprensa, selecionadas e arquivadas pelo Centro Pastoral Vergueiro. Como uma primeira aproximação, é possível afirmar que em cada período as noticias apresentam semelhanças ao nível do discurso e na forma como eram redigidos os temas. Pesquisar as noticias publicadas na grande imprensa, significava procurar analisar discursos ou representações sobre a cidade e mais especificamente sobre as favelas e as ocupações na cidade. Não foi feita paralelamente a pesquisa e analise de imprensa denominada “alternativa ou engajada”, método utilizado por vários pesquisadores e que teriam permitido uma comparação entre os diferentes discursos sobre a questão analisada, enriquecendo a análise. Durante a década de 60 e inicio da de 70 quem “fala” pelos favelados são principalmente as associações “comunitárias” como o MUD – Movimento Universitário de Desfavelamento –, a ACB – Associação Comunitária do Brasil, órgãos da Prefeitura como Secretaria do Bem Estar Social (criada em 1967). A partir dos primeiros anos da década de 70 as notícias de jornais sobre as favelas são mais abundantes, tanto no que se refere a estudos sobre favelas quanto no que diz respeito ao

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que parece ser já um inicio de resistência dos favelados à remoção. No entanto, os favelados ainda não têm “voz”: as associações comunitárias, o poder público e intelectuais falam “por eles”. É evidente nos discursos a presença do “nós” (a sociedade representada pelas associações, o poder público e intelectuais) e do “eles” (os favelados). É visível também a dicotomia entre o “eles”: os pobres coitados que não sabem morar, pois vieram da roça e precisam ser educados e os marginais que se escondem nas favelas. Para uns se clama educação para que morem decentemente; para outros se clama que se proíbam as favelas e se construam prisões.

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Na segunda metade da década de 70, as noticias sobre favelas, além de serem mais abundantes, mostram novos “interlocutores”. Inicialmente, a Igreja e os estudiosos do assunto ganham expressão e, posteriormente, o próprio favelado. Os primeiros, ao analisarem sob um “novo” prisma as favelas, mostrando as verdadeiras causas da existência das mesmas e os segundos, quando são entrevistados pela imprensa, principalmente ao se mobilizarem e se organizarem em associações ou ao serem atingidos por enchentes, inundações, ou incêndios, isto é, quando se descobre que não são “marginais”, mas marginalizados. Começam a falar “por si”, seja contestando remoções, reivindicando luz, água e posse da terra, seja promovendo reuniões ou encontros de favelados. Continuam também a ter „voz‟ os demais segmentos: poder político, as associações comunitárias e os intelectuais que continuam a considerar a favela como uma excrescência. Começam também a aparecer com maior incidência representantes das indústrias de construção civil, reivindicando mudanças na legislação que pudessem beneficiar a produção de moradias para as faixas de “renda mais baixa”. Começa a ficar mais visível que a existência da favela é entendida como falta de moradia, que é preciso construir para acabar com as habitações subnormais. Ficou evidente que, apesar da grande variedade de notícias, há uma regularidade de temas: preocupação em “limpar” a cidade, em educar os favelados, em verificar a incidência de construir novas habitações; com a discussão da condição marginal ou não do favelado, etc., e com a questão do direito e da justiça social. Mas há também um novo interlocutor que são os próprios representantes dos favelados, na medida em que criam um novo espaço de reivindicações, tornando explícita a constituição de um novo sujeito coletivo. Busquei, ao analisar vários anos de notícias em jornais, o que não está expressamente dito, ou seja, quais as representações contidas nas notícias sobre os sem terra/sem casa, durante este período do tempo, como se constitui este novo sujeito coletivo dos movimentos de favelas, das ocupações de terra e das reivindicações por equipamentos e meios de consumo coletivo. A exclusão ideológica e a inclusão pela cidadania.

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incêndios e enchentes nas favelas; preocupação pela forma como o poder público deveria

3.2. O processo cotidiano de apropriação do espaço A questão colocada era também: como captar o processo de apropriação e produção cotidiana do espaço? As notícias de jornais davam conta de uma parte apenas das questões. Sem dúvida, a aplicação de questionários – abertos –, como amostras significativas é uma forma também de se buscar explicar a realidade. Utilizei esta técnica de pesquisa do mestrado e penso que, na verdade, só consegui analisar um pouco mais da realidade, porque para aplicá-los foram muitos os “fins de semana” passados nas favelas, estabelecendo-se com cada pesquisado uma relação pessoal. No entanto, se pesquisas exaustivas permitem obter a descrição do universo pesquisado, não permitem verificar como os participantes dos movimentos se situam diante da problemática da busca da moradia. É um retrato de um momento do tempo. Na maioria das vezes, em que se pese a importância deste tipo de pesquisa para a compreensão da situação de vida e de trabalho, tem-se apenas a emissão reativa que, neste caso, não atendia aos objetivos propostos neste trabalho. A pesquisa exaustiva de questionário é muitas vezes complementada, ou mesmo substituída, por entrevistas gravadas. Diz Brandão: “... que na pesquisa participante a entrevista livre, a história de vida se impõe. O pesquisador descobre com espanto que maneira espontânea de uma pessoa explicar alguma coisa diante do gravador é através de sua história de vida, ou através de um fragmento de relações entre a vida e aquilo a que responde.” (Brandão, op. cit., p. 13)

Um instrumento eficaz que, talvez por falta de conhecimento, ainda não me permitia

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captar o processo de transformação. Parte inicial da pesquisa nas favelas em São Paulo e do Movimento “Terra e Moradia” de Osasco foi feita com entrevistas gravadas, assim como com os movimentos de Guarulhos, Diadema e Campinas. Mas, na medida em que eu, por um projeto político pessoal, era participante ativa da coleta de assinaturas da Iniciativa Popular pela Reforma Urbana para o Congresso Constituinte, os pesquisados tornaram-se companheiros de um projeto, de um compromisso, que me obrigou a repensar não só a posição de pesquisa, mas também a minha participação no processo. Como podia pedir que me contassem sua história de vida e sua história no movimento, se ia às assembléias, às reuniões, à entrega do “ticket” de leite para ajudá-los a explicar o significado e o conteúdo da proposta de Reforma Urbana? Como pedir que eles me

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contassem sua história de luta, sem consideram que eles poderiam contar apenas aquilo que eu queria ouvir? Na verdade, fui me construindo no decorrer da pesquisa como uma companheira e pesquisadora na luta do dia-a-dia e como parte integrante do percurso da vida, do caminhar de luta, refletindo sobre ela. Cito aqui um aspecto que considero importante. Ao relacionar-me com um morador de uma favela organizada em associação de moradores, com a maioria das casas já em bloco, com arruamento realizado pela Prefeitura no início da década de 80, após vários contatos, entrevistas gravadas e participação conjunta com as lideranças na coleta de assinaturas sobre a Iniciativa Popular na Constituinte, solicitaram-me donativos para o projeto de atendimento às crianças (de 7 a 14 anos) como se eu fosse uma empresa (anexo). A surpresa me fez refletir sobre o significado de invadir permanentemente suas casas e nada dar em troca. Mas uma troca que, aparentemente, nada tinha a ver comigo. Por outro lado, já em contato com o movimento das ocupações de terra (participando da mesma forma que na favela), também me foi solicitada uma troca: que me contariam a sua história se eu a escrevesse, para que eles pudessem contá-la para outros (a história foi escrita e se transformou num filme em vídeo). Este relato pode servir como um parâmetro para indicar as diferenças de organização e de como a constituição dos sujeitos políticos é extremamente diversificada. E que, mesmo uma questão: analisar um único movimento, tentar ver o movimento por dentro, sem compará-lo com outros pode impedir o aprofundamento da análise? 3.3. A pesquisa militante Cabe ressaltar que esta não é uma pesquisa participante no sentido de que os representantes dos movimentos atuariam subalternamente coletando dados ou até em alguns casos fazendo análises. Pretendi mesmo analisar a constituição dos sujeitos políticos do movimento, tentando dar conta desse processo num momento de conflito. Utilizei dados coletados pelo movimento, mas o objetivo era o deles mesmos fazerem seu cadastro, sua pesquisa sócio-econômica para verificar o que proporiam como foram de pagamento da terra ou como iriam dimensionar as escolas face ao número de crianças. Não participei da elaboração, mas ajudei na coleta de dados, que posteriormente me emprestaram para eu fazer a análise dos mesmos. 23

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considerando a pesquisa participante, era preciso estar atento para as diferenças. E fica mais

Mas, para dar conta do processo de apropriação cotidiana do espaço, e ver a transformação de quem chega e pergunta: “Como faço para „ganhar‟ um pedaço de terra?”

e menos de 6 meses depois, após ter ocupado um lote de terra, construído um barraco, ficando um mês e ter sido expulsa com a polícia nas „costas‟, reconstruir seu barraco em terreno da prefeitura e dizer: “Agora é fazer trincheira para manter esse pedaço de chão com este barraco em cima. Estou cansada de trabalhar e de não ter dinheiro para pagar aluguel, ser despejada a cada 6 meses, até o próprio Prefeito não quer que a gente fique aqui. Pois faço trincheira, se for preciso, e luto. Só saio se eles passarem o trator em cima de mim.”

E completa, brincando: “Aí não precisa mais sair, né, já fica enterrada com os trens tudo por cima.” (pesquisa de campo)

Foi preciso conviver e aprender a conhecer todo um processo cotidiano para analisar a vivência de: “... reelaboração do imaginário constituído através de novas experiências de práticas coletivas, onde se produzem alterações na fala e deslocamentos de significado.” (Sader, E., op. Cit., p. 19)

A pesquisa participante tem, no mínimo, entre seus pressupostos a negação da

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neutralidade da ciência. Ciência para o pesquisador participante não é neutra, mas pelo contrário, pois entendo como Thiollent: “... é necessário que o cientista e sua ciência, mais do que conhecer para explicar, pretenda compreender para servir.”

E, ainda mais: “Contra a ilusão da neutralidade é preciso salientar que os métodos e técnicas de pesquisa são, ao lado dos conceitos e teorias, os instrumentos de produção do conhecimento concreto.” (Thiollent, M. Op. Cit., p. 130)

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Mas, para fazer pesquisa participante, como diz Marx: “Não é necessário que o pesquisador se faça operário para conhecê-lo, é necessário um compromisso e uma participação com os projetos de luta do outro.” (In: Brandão, C. R. , op. Cit. P. 12)

Não tive a pretensão de aparecer como se fosse um “sem terra”. Desde o princípio ficou evidente que era uma professora, que estava ao mesmo tempo apoiando o movimento e fazendo uma pesquisa, que era solidária com a luta para a obtenção da moradia e que assim fazia parte do que é conhecido como grupo de apoio, pois considero injusta a distribuição de riqueza na sociedade, e que sempre que necessário e possível expressaria a minha opinião. Não era mera expectadora, não era um “sem terra”, mas tinha um compromisso e uma participação com os projetos do movimento “sem terra/sem teto”. Diz ainda Brandão:

Nesta pesquisa tive a preocupação de tentar contribuir com os meus conhecimentos de modo a não prejudicar a iniciativa do movimento. Como um apoio ao movimento que poderia auxiliá-lo no que fosse possível, dado o conhecimento sobre a legislação em habitação, estive presente e estabeleci uma relação com objetivos políticos comuns. Inicialmente, fui observar como se dava a organização, sendo apresentada aos líderes do movimento como representante do Movimento Nacional pela Reforma Urbana. Estávamos num momento de coleta de assinaturas para a Iniciativa Popular sobre a Reforma Urbana. Ao final de muitas conversas, de uma gravação de duas horas com ampla „comissão‟ me foi dada a grande oportunidade:

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“...não é propriamente um método objetivo de trabalho científico que determina a priori a qualidade da relação entre os pólos da pesquisa, mas, ao contrario com freqüência é a intenção premeditada, ou a evidência realizada de uma relação pessoal e ou politicamente estabelecida, ou a estabelecer, que sugere a escolha concreta dos modos concretos de realização do trabalho a pensar a pesquisa. E, em boa medida, a lógica, a técnica e a estratégia de uma pesquisa de campo dependem tantos dos pressupostos teóricos quando da maneira como o pesquisador se coloca na pesquisa e através dela e, a partir daí, constitui simbolicamente o outro que investiga.” (Brandão, op. cit., p.8)

“A memória da gente é fraca, se você quiser saber mesmo, venha ao novo movimento ver como se organiza.” (depoimento)

E aí mudou o eixo da pesquisa com os “sem terra” de Osasco. Participei de inúmeras reuniões (pelo menos 2 por semana), durante um período de mais de 1 ano. Fui junto com o Movimento a passeatas reivindicatórias, acompanhei comissões de negociações, seja com os proprietários de terra, seja com o Prefeito de Osasco. Passei a noite ajudando a carregar madeira e construindo barracos, no Jardim Conceição e no Jardim Veloso, fiquei na frente do trator junto com o Movimento, cantei, falei em assembléias e reuniões, preparei reuniões, tirei muitas fotos e levei pessoal para filmar, conversei com parlamentares e outras entidades de apoio. Enfim, participei do processo e ao chegar em casa muitas vezes foi difícil anotar o que tinha ocorrido. Entendi, então, a frase: “A memória da gente é fraca”, a vivência é tão forte, tão intensa e tão cansativa que não dá para pensar nas condições de existência. Lembrava com freqüência das dificuldades que Simone Weil, quando trabalhava como operária, sentia para refletir sobre o trabalho quando se está esgotado de cansaço. Como é possível ao trabalhador extenuado pelas jornadas de trabalho, pelas horas de transporte, mal alimentado, mal dormido – sem uma moradia digna – lutar para conseguir uma moradia e ainda refletir sobre sua condição de vida? Na maior parte das vezes, para os participantes dos movimentos, é difícil pensar sobre sua prática cotidiana. E assim se coloca e se evidencia a necessidade da ciência realizada para ajudá-los a refletir sobre sua condição de vida na produção e no consumo. Um outro aspecto desta pesquisa participante diz respeito à participação com as lideranças dos movimentos de São Paulo e do Brasil na discussão, redação, coleta de

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assinaturas e entrega da Proposta da Iniciativa Popular sobre a Reforma Urbana. Seria possível, se esta participação não estivesse ocorrendo, verificar como se apresentou para cada representante dos movimentos a questão da terra, da construção da moradia, do aluguel? Mesmo que fosse possível obter relatos a respeito, isto não me permitiria ter um conhecimento profundo da representação para os movimentos da produção e consumo do urbano analisar a reflexão que fazem de sua situação de vida. Mas o que realmente não permitiria seria a minha constituição enquanto sujeito político do Movimento pela Reforma Urbana. Representei, para os movimentos de favelados e de ocupantes, aquela que tinha, pelo menos no contato inicial, material da proposta para distribuir e discutir, para que se pudesse

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coletar assinaturas e que trazia as noticias de como ia, ao nível de Brasil, a coleta das mesmas, a entrega e, depois quais seriam os aspectos vitoriosos das propostas. Mostrava do lado de quem estava. Penso que para alguns participantes, eu era a “companheira” que vivia anotando, tirando retrato e que falava muito. Muitas vezes fui chamada para dar umas “palavras” para explicar o que estava ocorrendo, com a condição de que falasse pouco. Escrever ou ajudar a escrever documentos era uma das minhas tarefas. Fazer painel de fotografias, editar vídeo contando a história do movimento, ajudar a medir os terrenos, levar amostra de água para verificar se não estava contaminada, levar crianças machucadas para serem medicadas, eram outras. Ou seja, como um componente da equipe de apoio, fazia as tarefas como todo mundo. Muitos companheiros de caminhada e de luta viveram comigo esta experiência que, para mim, só terá atingindo seu pleno significado quando contar, quando transmitir, a reflexão que fiz. Além de voltar para cada uma das favelas, para dizer, afinal, no que resultou em termos de lei todo o trabalho para a coleta de assinaturas. O produto deste trabalho não é apenas, espero, este texto escrito. É a minha transformação, é a transformação do movimento, é o caminhar da “Reforma Urbana”. É também deixar escrita a memória do Movimento. E um vídeo sobre o Movimento. Um modo de retratar e relatar o processo e de auxiliá-lo na sua neste espaço/tempo, esta caminhada.

No primeiro capítulo procuro analisar as formas pelas quais uma parte significativa da classe trabalhadora se vê impedida de apropriar-se de um espaço para moradia, considerando as características da terra urbana. Aparentemente “deslocado” do resto do trabalho, este capítulo serve de reflexão sobre a questão da renda da terra e de que modo se “naturaliza” a valorização, como se a terra fosse objeto de valorização em si. Como se dá uma produção da cidade coletivamente e como transparece a produção apenas da terra em si. Tento, inclusive, analisar como se cria, se recria e se amplia um discurso sobre a valorização da terra. No segundo capítulo procuro analisar as falas sobre a cidade, falas essas consideradas como “competentes”, tentando demonstrar como nelas está presente a exclusão. Procuro analisar como se amplia o esquadrinhamento do espaço, e de que modo se constitui num

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caminhada ao contar e mostrar para outros futuros participantes como concretamente ocorreu,

espaço proibitivo, tanto pela questão econômica, como pela ideológica, cotidianamente colocada. No terceiro capítulo trato de experiências concretas de apropriação do espaço urbano: favelas, ocupações. Pesquisando aspectos do cotidiano das ocupações desde a formação de um grupo de discussão até a ocupação de terras (ocupação/desocupação/ocupação). Procurei entender, no processo de apropriação do espaço, as transformações dos participantes, analisando os padrões de entendimento e comportamento individual e coletivo na busca da moradia e no encontro da identidade em ocupações coletivas.

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UMA REFLEXÃO SOBRE A METRÓPOLE PAULISTA E A PROPRIEDADE DA TERRA URBANA NO BRASIL

1.

SÃO

PAULO:

CIDADE

CAPITALISTA



ALGUNS

ASPECTOS

DA

CONCENTRAÇÃO ESPACIAL DA RIQUEZA E POBREZA

As metrópoles capitalistas são ao mesmo tempo concentração e dispersão; socialização da produção e apropriação individual dos lucros; aglomeração e isolamento. Concentração de capitais, de produção, de homens, de edifícios, de riqueza e de pobreza. Concentração de múltiplos usos, distribuídos em diferentes „áreas‟, concentrando-se em umas riquezas e em outras – a maioria – a pobreza. Dispersão dos indivíduos no interior das concentrações. Isolamento dos indivíduos nas aglomerações. Trato aqui, apenas, de uma dimensão da questão urbana, de alguns aspectos da produção da existência, que caracterizam o cotidiano de moradores da Região Metropolitana Quando se trata da riqueza do local de moradia esta é visível no tipo e tamanho dos edifícios construídos, nas ruas asfaltadas, com iluminação pública, onde circulam, predominantemente automóveis particulares, em geral luxuosos. Há pequena circulação de pessoas, mas, quando isto ocorre, estas estão “bem” vestidas. No interior destes edifícios – casas e apartamentos – há também alguns lugares, em geral não visíveis, pobres, restritos, ocupados pelos empregados domésticos, dispersos e isolados nas unidades. Quando se trata da concentração no local de trabalho, a visibilidade da riqueza e da pobreza é muitas vezes contrastante: edifícios luxuosos, intensamente ocupados, tanto por aqueles que representam os que detém o poder e a riqueza, como pelos que garantem esta riqueza, ou seja, pelos que representam aqueles que concentram a pobreza – a grande parcela dos trabalhadores. Nas ruas o tráfego intenso de pessoas, o comércio ambulante mostra com toda a força contraste da riqueza e da pobreza. Quando se trata da concentração da pobreza, sua visibilidade também é maior nos locais de moradia: unidades pequenas e inacabadas, e em muitos lugares as unidades 29

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paulista.

construídas de “sobras”, nas ruas esburacadas trafegam alguns ônibus para transporte coletivo, em precário estado de conservação; paisagem árida, sem árvores, sem iluminação pública. Na maioria das ruas, sem asfalto, há uma intensa circulação de pessoas, mal vestidas, descalças, muitas crianças e animais domésticos. Nos locais de trabalho, como nas fábricas, lugar de produção de riqueza, concentram-se muitos destes moradores/trabalhadores. Nas ruas, o comércio ambulante completa o quadro da concentração de pobreza. Torna-se visível a afirmação de Topalov: “A cidade constituí uma forma de socialização capitalista das forças produtivas. É o resultado da divisão social do trabalho, é uma forma desenvolvida de cooperação entre as unidades de produção... Concentra as condições gerais da produção capitalista. Estas condições gerais, por sua vez, são condições da produção e da circulação, de consumo; processos que contam com suportes físicos, que dizer, objetos materiais incorporados ao solo.” (Topalov, C. p. 20, grifos meus)

Apesar das especificidades do processo de urbanização mundial, as metrópoles guardam características globalizantes, em especial as do Terceiro Mundo, pois são parte inerente do mesmo processo – desenvolvimento capitalista. Como diz Castels, a produção espacial nas grandes cidades capitalistas manifesta-se pelo menos em três aspectos: na concentração de grandes unidades de produção e consumo (desde a grande unidade industrial integrada a rede de hipermercados), na concentração da massa de assalariados com uma diversidade e níveis de hierarquização; na concentração do poder político, que se expressa tantos nas formas de políticas territoriais, como nas formas de regulação nas relações de trabalho e de uso do espaço urbano.2 A concentração de riqueza e da pobreza na Metrópole paulista, objeto do presente

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estudo, também já foi demonstrada em vários trabalhos.3 Trato aqui de uma dimensão pouco visível desta concentração/isolamento, pois a cidade capitalista confere a cada um o “seu lugar”, visto que a configuração do urbano tende a reproduzir as classes do capitalismo. A cidade capitalista corresponde a grandes aglomerações de população. Na metade desta década, a população que mora em cidades corresponde já a cerca de 40% da população mundial. Ao findar do século XX, a população urbana deverá corresponder a 50% da população mundial. No Brasil, pelo Censo de 1980, moravam nas cidades 80.436.409 pessoas, 2

Veja-se Castels, M., La Cuestion Urbana, 1974. Veja-se Kowarick, L., A Espoliação Urbana , 1979; Vários, S. Paulo 1975 – Crescimento e Pobreza, 1976; Kowarick, L. e Campanário, M., São Paulo, Metrópole do subdesenvolvimento industrializado, 1985. 3

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ou seja mais de 60% do total da população do país. Há que se ressaltar que esta urbanização mundial é ainda mais marcante porque fortemente concentrada em algumas aglomerações: as metrópoles e megalópoles. As 12 maiores aglomerações do anos 2000 serão, segundo a ONU: Cidade do México, São Paulo, Tóquio, Calcutá, Bombaim, Nova York, Seul, Xangai, Nova Deli, Rio de Janeiro, Cairo e Buenos Aires. Como se observa, todas as cidades aqui mencionadas situam-se em países capitalistas, em especial nos chamados do Terceiro Mundo. Este fato causa apreensão aos técnicos do Fundo das Nações Unidas para Atividades em Matéria de População – FNUAP – que relacionam o aumento da pobreza ao crescimento da população citadina. Preconizam que é necessário limitar o crescimento populacional para evitar possíveis sublevações e também o aumento da miséria, numa reedição do malthusianismo. Consideram que a miséria das cidades é originada pelo crescimento populacional. Analisam apenas a superfície do processo de concentração, porque as causas da concentração da pobreza são as mesmas da concentração da riqueza. Porque, como já dito, na aparência há contradições entre a massa de riqueza gerada e a extrema penúria de uma grande parte dos trabalhadores. Na essência é o mesmo processo. Portanto, as colocações e as preocupações do FNUAP, mostram apenas que há uma concentração de riqueza e de pobreza, que está em toda a parte No Brasil, as metrópoles concentram cerca de 30% da população total, ou seja, mais de 40.000.000 de pessoas. A pesquisa deste trabalho foi realizada na maior destas aglomerações – a Região Metropolitana de São Paulo, cuja população em 1985 estava estimada em 15.221.267 pessoas. Foi feita na Cidade de São Paulo que conta com 10.063.110 pessoas, e em Osasco cm 591.588 habitantes nesse mesmo ano. Cidades onde se concentra a produção da riqueza e pobreza da maioria dos seus habitantes. Como dizem Lúcio Kowarick e Milton Campanário: “Fruto de uma longa conjuntura de progresso que se expressa nos 7,1% de crescimento do PIB entre 1950 e 1980, a Grande São Paulo, epicentro deste dinamismo, reunia, no final do período considerado, 36% do pessoal ocupado no parque manufatureiro do país, 46% do total de salários e 40% do valor da transformação industrial e dos investimentos de capitais na indústria e forte presença em quase todos os ramos fabris... São Paulo adquiriu características metropolitanas. Isto não só porque sua feição demográfica tornou-se agigantada ou porque houve rápida extensão de sua mancha urbana, mas sobretudo, pelo papel econômico que passou a desempenhar sobre o território econômico nacional, aprofundando a tradicional divisão de trabalho interna à sociedade brasileira... Mas é bom também lembrar que a maioria da população é composta por assalariados mal remunerados, que moram em precárias

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nas cidades dos chamados países subdesenvolvidos e em grande parte dos ditos desenvolvidos.

condições, gastam muitas horas diárias no dispendioso e fatigante transporte coletivo e alimentam-se mal...” (Kowarick, L. e Campanário, M. in: Novos Estudos Cebrap, n.13, p.68-9, 1985).

Falar das grandes aglomerações significa também falar das dispersões. Números ficam sem sentido se não se levam em conta as classes sociais que compõem esta população, como analisa Marx na “Introdução à Crítica e Economia Política”. Porque estas concentrações estão distribuídas em classes sociais diferentes, e em diferentes estratos de uma mesma classe. Estão espacialmente concentradas em diferentes lugares na cidade e vinculadas, de diferentes formas, ao processo de produção e consumo. Estão dispersas no sentido de, que no capitalismo, incentiva-se o individualismo e o “fazer-se” individualisticamente. Ou seja, cada indivíduo é considerado o responsável pela obtenção de valores de uso que depende da venda da sua força de trabalho. A produção é social, mas diz-se que a obtenção de um bem de consumo dependerá da capacidade de cada indivíduo de obtê-lo. Divulga-se a idéia de que só quem contribui para a sociedade obtém benefícios correspondentes a sua contribuição. Instala-se também a competição, pois só os melhores, diz-se, terão acesso a determinados bens. Para as classes sociais que vendem sua força de trabalho, esta dispersão está relacionada também ao processo de trabalho que „isola‟ os indivíduos, individualiza a produção e o consumo. Mesmo quando se trata dos denominados bens de consumo coletivo, seu consumo efetivo é individualizado; por exemplo, o pagamento pelo uso dos transportes coletivos é responsabilidade individual. A produção une grupos de indivíduos num mesmo local, mas o processo de produção tende a tornar os indivíduos isolados, compartimentados. É Foucault quem discute o “isolamento”, o enquadramento dos indivíduos, quando analisa a construção de espaços

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privilegiados para este fim. O Panóptico de Bentham é exemplo de organização espacial que não é a simples produção do lugar onde se exercerá um poder, mas o que se denomina de sociedade disciplinar. Como esclarece Foucault: “A disciplina tem que fazer funcionar as relações de poder não acima, mas na própria trama de multiplicidades, e também o menos dispendioso possível...”. O Panóptico é a ordenação que vai afetar a natureza mesma do poder, “é um modelo generalizável de funcionamento; uma maneira de definir as relações de poder com a vida cotidiana dos homens... é o diagrama de um mecanismo de poder levado a sua forma ideal; ... é uma figura de tecnologia política...” (Foucault, 1983, p. 181).

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O Panóptico „serve‟ para isolar os trabalhadores agrupados num mesmo espaço, já que cada um tem o seu lugar definido na produção, na sociedade e no espaço. A vigilância é exercida por todos e ao mesmo tempo por ninguém em especial. No espaço urbano todos cuidam para que todos permaneçam no seu lugar. Alguém mal vestido num aeroporto será observado como um possível marginal, um bandido. Se „todos‟ têm um carro de último tipo, aquele que chega com um carro velho em más condições de conservação, é alguém de „fora‟ do grupo. Já em outros lugares, onde ninguém tem carro, ou se tem, são carros velhos, se alguém chega com um carro último tipo, significa que não é daquele lugar, que é um “doutor”, um “figurão”. Que algum interesse deve ter. Se aquele outro é visto como um bandido, este outro é visto como alguém que alguma coisa quer. Mas não se pode crer que a microfísica tenha abolido a macrofísica do poder, e sim pelo contrário, que sirva para manter cada um no seu lugar, aperfeiçoando a divisão territorial do trabalho. Pois o taylorismo, por sua vez:

Também determina a cada um o seu lugar, como dizem os autores acima citados, pois o método de intensificação da produção em menor espaço de tempo acabou por penetrar em todas as atividades que se realizam fora da fábrica. Ao individualizar o operário no interior da fábrica, o sistema Taylor quebrou toda forma de articulação e todo laço de solidariedade entre os explorados. Permanecendo cada qual no seu lugar, a produção será maior, se os gestos forem economizados deverá ser maior ainda. E se aumentar a produção poder-se-á ascender a um outro lugar. Mas é preciso estar atento para produzir mais, obedecer a hierarquia e continuar a manter-se no lugar. No interior da fábrica mantêm-se cada um no seu lugar e aumenta-se a produção, pois: “O Taylorismo, enquanto método de organização científica da produção, mais do que uma técnica de produção é essencialmente uma técnica social de dominação.” (idem, p. 25)

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“...ao possibilitar o aumento da produtividade do trabalho “economizando tempo‟ suprimindo gastos desnecessários e comportamentos supérfulos no interior do processo produtivo, aperfeiçoou a divisão social do trabalho, assegurando definitivamente o controle do tempo de trabalho pela classe dominante.” (Rago, M. e Moreira, E., 1984, p. 24)

Aliás, na nossa realidade, como lembra Eder Sader: “... „as fábricas modernas‟ que se criaram em nosso solo privilegiam muito mais os objetivos de contenção e disciplinamento social dos trabalhadores, beneficiando-se de maiores taxas de exploração e recorrendo à contínua rotatividade da mão-de-obra, do que os de racionalização do processo produtivo.” (Sader, E., op. cit., p.57)

Tal processo é real e visível também nas cidades, pois os moradores espoliados são trabalhadores explorados.4 Nas cidades mantém-se cada um no seu lugar, tenta-se garantir a produtividade geral da cidade com mecanismos de poder dissimulados e disseminados. Mas, é possível verificar que alguns trabalhadores são pinçados para servir de exemplo, para mostrar como é possível mudar de lugar. Mudam de lugar nas camadas de classe ou até mesmo mudam de classe por mérito “exclusivamente pessoal”. Se alguns conseguem, por que outros não? Este discurso, que pode ser ouvido em qualquer lugar nas cidades, deixa claro que se considera apenas o mérito „pessoal‟ o responsável por possibilitar mudanças de um para outro lugar na sociedade e no espaço. Serão comentários, na sua maioria, sobre pessoas que sempre se comportaram de acordo com as normas vigentes e que só por isso diz-se, puderam mudar. O que não se diz é porque os milhares de outros, que também sempre seguiram as normas vigentes, não conseguiram ascender e mudar de classe social ou de camada na mesma classe. Também se incentiva a mudança de lugar de classe e no espaço, através de loterias, os que tiram a sorte “grande”, podem mudar a sua condição de vida. Mas, quando muitos acertam, como começou a ocorrer com a “loteria esportiva” ou depois com a “quina” da loto,

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que passa para “sena”, é preciso mudar as regras do jogo, para continuar a ilusão da sorte grande, da possibilidade individual de mudança. Assim, a concentração da população nas cidades significa também, contraditoriamente, sua dispersão, seu isolamento. Dispersão em classes sociais diferentes e nelas em camadas de classe. Cada uma ocupa um lugar na produção, na cidade e na fábrica. E individualiza-se e se dispersa em espaços “panópticos”, métodos de produção-rotinização e racionalização, que caracterizam o controle da população concentrada.

4

Veja-se Kowarick, L. op. cit.

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A cidade é também concentração da produção industrial, da distribuição dessa produção e também da produção agrícola, do comércio e dos serviços, desde os considerados de alta tecnologia até a entrega/coleta de jornais de porta em porta. A cidade preexiste à industrialização, que tão fortemente caracteriza a sociedade moderna. A cidade medieval foi principalmente comercial, artesanal e bancária. É preciso levam em conta que no feudalismo a terra foi a base da organização espacial. Desse modo a apropriação do espaço estava ligada à produção agrícola e à produção doméstica de manufaturas. A produção estava dispersa no espaço e as cidades eram “rurais”: lugar de troca, de intercâmbio. O advento do capitalismo redimensiona este modo de ocupação do espaço. A cidade é o lugar privilegiado da produção industrial e da acumulação de capitais. Muito embora no início do processo de industrialização e mesmo no início do século XX a indústria tenda a se localizar, principalmente próxima às fontes de matérias primas e de energia e não necessariamente onde já houvesse cidades, é a cidade o lugar por excelência da produção industrial, principalmente onde se encontra uma população “livre” para vender a sua força de trabalho.5 Ora, para que a produção industrial e a acumulação de capital sejam possíveis é preciso que haja mão-de-obra disponível, ou seja, que se considere que a população está dividida em Penso que um indicador dos homens “livres”, para ficar mais perto da compreensão de quem é a população brasileira que mora nas cidades, é o levantamento da população potencialmente ativa (vide tabela 1). A concentração populacional, necessária ao processo de produção, implica em alterações nas formas de sujeição. Como explica Foucault: “Se a decolagem econômica do Ocidente começou com os processos que permitiram a acumulação do capital, pode-se dizer, talvez, que os métodos para gerir a acumulação dos homens permitiram uma decolagem política em relação às formas de poder tradicionais, rituais, dispendiosas, violentas e que, logo caídas em desuso, foram substituídas por uma tecnologia minuciosa e calculada de sujeição. Na verdade, os dois processos, acumulação de homens e acumulação de capital, não podem ser separados; não teria sido possível resolver o problema de acumulação de homens sem o crescimento de um aparelho de produção capaz de mantê-los e de utilizá-los; inversamente as técnicas que tornam útil a multiplicidade cumulativa dos homens aceleram o movimento de acumulação de capital.” (Foucault, op. cit. p. 194)

5

Ver Marx, K. A Acumulação Primitiva do Capital; Lefebvre, H. O Direito à Cidade e Ribeiro, D. O Processo Civilizatório.

35

Na procura do lugar o encontro da identidade

classes sociais, sendo uma delas aquela que essencialmente vende a sua força de trabalho.

O elevado crescimento da população nas áreas metropolitanas, significa, uma possibilidade da população escapar aos mecanismos de controle e disciplina, pois, como já dito, pobreza e riqueza são as duas faces da mesma moeda. É o medo das sublevações que motiva instituições como a FNUAP6 a propor estratégias de controle populacional, pois ações coletivas são consideradas como desordem e perigo. TABELA 1 – Brasil – População Potencialmente Ativa - 1985 POPULAÇÃO GRUPOS DE IDADE

ECONOMICAMENTE ATIVA

NÃO ECONOMICAMENTE

TOTAL

ATIVA

10 a 14 anos

2.860.730 (5,2)

11.851.516 (27,5)

14.712.245

15 a 18

7.969.171 (14,5)

5.900.460 (13,6)

13.869.631

20 a 24

8.797.309 (16,0)

3.621.115 (8,3)

12.418.424

25 a 29

7.766.462 (14,0)

3.016.160 (7,0)

10.782.622

30 a 39

12.462.488 (22,6)

4.572.170 (11,0)

17.034.658

40 a 49

8.156.811 (14,8)

3.791.566 (8,7)

11.948.377

50 a 59

4.705.799 (8,5)

3.886.935 (9,0)

8.592.734

60 e mais

2.377.387 (4,3)

6.515.184 (15,0)

8.892.571

2.337

370

2.707

55.098.494 (56,1)

43.155.475 (43,9)

98.253.969

idade ignorada Total

Arlete Moysés Rodrigues

Fonte: Anuário Estatístico do IBGE – 1986 A tabela 1 mostra os dados da população residente no Brasil com mais de 10 anos, ou seja, da população considerada potencialmente ativa. Embora possam significar uma aproximação, não demonstram exatamente quem vende e quem compra a força de trabalho. Indicam apenas que mais da metade da população potencialmente ativa estava trabalhando na data da pesquisa realizada pelo IBGE. Se excluirmos o grupo de 10 a 14 anos de idade, a

6

Vide início deste capítulo.

36

porcentagem dos que trabalham aumentará significativamente, passando de 56,1% para 62,5%. É bom ressaltar que considerar população potencialmente ativa aquela abaixo da faixa dos 14 anos é típico de países dependentes, onde realmente se entra no mercado de trabalho muito jovens, antes mesmo de ter se iniciado a formação escolar, quanto mais terminado. Tem-se assim um demonstrativo de quem está envolvido na produção. Mas como, neste trabalho estou centrando a análise na cidade, é preciso fazer a distinção de que 28,5% da população economicamente ativa estava empregada em atividades agrícolas e, portanto, 71,5% em atividades não agrícolas. Como hoje mais de 70% da população brasileira vive nas cidades, tem-se uma parte correspondente de trabalhadores nas atividades concentradas nas cidades, no secundário e no terciário (tabela 2). TABELA 2 – Brasil – População Economicamente ativa por ramos de atividade 1985 RAMO DE ATIVIDADE NÚMEROS ABSOLUTOS PERCENTAGEM 15.190.393

28,5

Ind. Transformação

7.847.317

14,7

Ind. Construção

3.097.386

5,8

Outras Indústrias

839.275

1,5

Comercio de Merc.

5.814.660

10,9

Prestação de Serv.

8.854.159

16,6

Serv. Auxiliares

1.433.471

2,7

Transp./Comun.

1.916.009

3,6

Social

4.150.928

7,7

Adm. Pública

2.346.736

4,4

Outras Atividades

1.746.602

3,2

Total

53.236.936

100,0

Fonte: Anuário Estatístico do IBGE – 1986 É evidente que esta maior concentração de atividades secundárias e terciárias é ainda mais significativa na Região Metropolitana de São Paulo, onde as atividades agrícolas expressam 0,6% da PEA; as indústrias 38,6%; o comércio, prestação de serviços, transporte 37

Na procura do lugar o encontro da identidade

Agrícola

representam, 42%; e as atividades de administração publica, social e outras, representam 18,8% do PEA. 7 Muito embora no atual momento histórico, as grandes metrópoles concentrem mais atividades terciárias do que secundárias e se tenham redimensionado as organizações territoriais, a questão da concentração de pessoas, de capitais, de gestão, de produção e de consumo não se modificaram ainda substancialmente, nos aspectos que interessam especificamente a este trabalho, pois o desenvolvimento tecnológico não é linear, não atinge todos os setores da produção e nem todos os países componentes do sistema capitalista mundial. Além disso, não há uma relação unívoca entre desenvolvimento tecnológico, concentração de atividades terciárias, e resolução de problemas sociais.8 Como os detentores dos meios de produção são poucos, quando se fala da população brasileira morando e trabalhando nas cidades, fala-se da maioria dos brasileiros, ou seja, da classe trabalhadora. É possível chegar-se a uma primeira aproximação com os dados da tabela 3 onde verifica-se que, do total da população economicamente ativa, apenas 3,2% são considerados empregadores. Os dados são semelhantes para a cidade (3,1%) e para as atividades agrícolas (3,4%). Deve-se destacar na cidade e no campo o trabalho por conta própria e, nas atividades agrícolas, o trabalho familiar não remunerado. TABELA 3 – Brasil – População economicamente ativa – 1995 Vínculo empregatício

VÍNCULO

ATIVIDADES Agrícola

TOTAL

Não agrícola

Arlete Moysés Rodrigues

Empregados

5.796.585 (38,1) 28.591.154 (75,1) 34.387.154 (64,6)

Conta própria

4.555.540 (30,0)

7.556.611 (19,9)

12.112.151 (22,8)

Empregadores

513.508 (3,4)

1.187.910 (3,1)

1.701.418 (3,2)

710.868 (1,9)

5.035.628 (9,4)

38.046.543

53.236.936

Não remunerado 4.324.760 (28,5) TOTAL

15.190.393

FONTE: Anuário Estatístico do IBGE – 1986

7

Fonte: PNAD – 1985 – Regiões Metropolitanas Como se trata, neste estudo, de analisar alguns aspectos dos vários problemas dos moradores da Metrópole Paulista, esta dimensão não será abordada. Veja-se a respeito, Ratner, Henrique – 1988. 8

38

TABELA 4 – Região Metropolitana de São Paulo – Pessoas ocupadas por posição na ocupação e classes de rendimento mensal CLASSES DE RENDIMENTO

TOTAL EMPREGADOS

CONTRA PROPRIA

EMPREGADORES

Até ½ SM

3,6

2,8

8,9

0,2

De ½ a 1 SM

9,6

9,8

11,0

0,4

De 1 a 2 SM

24,5

26,1

21,7

1,9

De 2 a 3 SM

16,5

18,2

10,6

1,7

De 3 a 5 SM

19,5

19,5

20,5

16,3

De 5 a 10 SM

16,2

15,2

18,2

30,3

Mais de 10 SM

9,3

7,9

8,0

46,9

Sem decl.

0,7

0,5

1,0

2,3

FONTE: PNAD – 1985 – Regiões Metropolitanas

dos meios de produção, porque estão aí incluídos desde os empregadores domésticos até os grandes empresários. Mas na Grande São Paulo (Tabela 4), constata-se que são sobretudo os empregadores que apresentam um ganho superior a 10 salários mínimos, contrastando com os rendimentos dos assalariados (57% ganham até 3 salários mínimos) e dos trabalhadores por conta própria (52% recebem até 3 salários mínimos). Estes d ados, se não esgotam o assunto, dão-nos uma idéia do significado da concentração demográfica e seu conteúdo que de alguma forma expressa a concentração da produção industrial, de comércio e de serviços que ocorre nas cidades, particularmente nas aglomerações metropolitanas. Acrescente-se que à produção tipicamente citadina, há aquela que de fato ocorre nas áreas rurais, mas que é consumida na cidade e cujos “insumos” são produzidos na cidade. Produção esta que se refere tanto aos produtos alimentícios e aos insumos industriais quanto à produção de energia. Grandes extensões de terras, em áreas de rios planálticos ou mesmo de planícies, com grandes volumes de água, são utilizadas para a construção de represas e de 39

Na procura do lugar o encontro da identidade

Não é possível afirmar que na categoria “empregadores” estejam apenas os detentores

usinas hidroelétricas. Ora, a maior parte dos insumos utilizados são produzidos nas cidades – desde os projetos até as turbinas. Prontas as barragens, grandes extensões de terra são inundadas e a produção de energia será consumida principalmente nas cidades. A mesma coisa pode-se dizer das grandes represas para o fornecimento de água potável para os moradores das cidades. Aqui pode-se mencionar pelo menos um aspecto importante, interligado com vários outros: a concorrência do uso urbano-industrial com o uso agrícola, que interfere no preço da terra. A concentração-dispersão espacial da cidade com seus tentáculos em direção ao campo, como se fosse um grande polvo, envolvendo o espaço rural. Desse modo verifica-se que o preço da terra rural não é apenas redimensionado quanto se aumentam os limites administrativos das cidades, mas também quando se expandem os “serviços” para a própria cidade e o campo. Este é sem dúvida um aspecto visível da urbanização do campo que, se não o único, é importante para analisar-se a concentração urbana e a redefinição dos usos e preços da terra. Acrescente-se também um outro aspecto de aglomeração-concentração: a expansãodiversificação do comércio e dos serviços. Vinculada à produção, toda uma rede de serviços, individuais e coletivos, se faz necessária; nesses pode incluir-se toda uma rede de infraestrutura física – visível ou não – ocupando espaço à superfície ou não (como é o caso da rede subterrânea de água, a rede aérea de luz, etc.). Está presente na grande cidade, enfim, toda uma rede, toda uma gama de grandes concentrações: de capital, com seus aspectos visíveis e invisíveis; de edifícios de produção de mercadorias, de gestão, de moradias, de comércio, prestação de serviços; de fluxo destas

Arlete Moysés Rodrigues

mercadorias e de pessoas. Esta concentração mostra que, como diz Lefebvre: “...tornando-se centro de decisão ou antes agrupando-os, a cidade moderna intensifica, organizando, a exploração de toda a sociedade.” (Lefebvre, op. cit., p. 57)

Mas como lembra o mesmo autor: “A cidade é a projeção da sociedade sobre um lugar... não é apenas uma ordem distante, um modo de produção, um código geral, é também um tempo, ou vários tempos, ritmos...” (idem, op. cit., p. 56)

40

Ela contém também, sem se reduzir a ela, uma ordem próxima que entre outras coisas se expressa como o lugar das reivindicações para minorar esta exploração da socidade. Cada vez mais as grandes passeatas reivindicatórias deslocam-se do lugar onde o bem ou serviço é necessário para o lugar na cidade onde podem chamar mais a atenção. Em São Paulo, têm sido cada vez mais constantes as caravanas de moradores da periferia em direção aos lugares considerados centros de decisão como, por exemplo, os gabinetes de prefeitos, a área central das cidades, etc. Além disso, tem-se tornado uma tônica no Brasil, as longas caminhadas de trabalhadores rurais “sem terra” em direção às cidadessedes de governo estadual – demonstrando sua mobilização e reivindicação. O “Movimento dos Sem Terra” do Estado de São Paulo fez em abril de 1988, uma caminhada de 200 km (de Limeira ao centro da cidade de São Paulo, passando por vários centros urbanos) para trazer suas reivindicações ao Governo do Estado. Se a cidade é a sede do poder, é também a este lugar que devem dirigir-se as reivindicações. A cidade lança seus tentáculos por toda parte e, visível ou invisivelmente, tende a reproduzir a sociedade de classes do mundo capitalista com seus fluxos visíveis, seus fluxos escondidos, seus espaços recortados, compartimentados. A grande cidade com seus fluir, seu barulho constante, como se a cada dia ficasse mais compacta, mais rígida e ao mesmo tempo É a cidade grande; onde se conta com a alta tecnologia do computador a serviços de “todos”, mas onde se espera horas nas filas de lugares já computadorizados e onde há uma grande parcela de moradores analfabetos. Onde se tem alta tecnologia para se explorar a natureza, dutos e condutos para transportar petróleo, água, esgoto, energia elétrica, mas onde há falta de água nas torneiras ou onde se usa água de poço contaminado, onde há falta de luz pública e mesmo domiciliar, e se usa a vela, onde há ruas esburacadas – sem cobertura de asfalto advindo da exploração do petróleo – , onde se anda com os pés descalços. Carros e ônibus modernos para que circulem em alta velocidade, mas onde se gasta, para uns, horas no trânsito, para outros – a maioria – horas nas filas e no trânsito; uns esperam “confortavelmente” instalados nos seus automóveis, ainda que andem alguns metros em horas, enquanto outros – a maioria – esperam horas nas filas e horas dentro de ônibus lotados, sujos e escuros. Mas está cada um no seu “lugar”, esperando “pacientemente” a hora de chegar em casa. Casa? Para uns chegar em casa significa casa de alvenaria, água, luz, chuveiro, banheiro, 41

Na procura do lugar o encontro da identidade

mais elástica, maior, se expande e toma (com seus tentáculos) a sociedade inteira.

cama e comida. Variáveis os tipos de casa, desde as luxuosas até as confortáveis ou razoavelmente confortáveis. Para outros – a maioria – significa barracos ou cômodos de alvenaria, sem luz, sem água e muitas vezes sem comida. A espera “paciente” também se expressa na violência do trânsito, da vida e das pessoas em geral. Mas cada um está no seu lugar. As fábricas, os bancos, a polícia, o circo montado e desmontado, o teatro, o cinema, os bares e botequins, os restaurantes de luxo, as favelas, os cortiços, as mansões, a energia nuclear e a iluminação a vela, mostram a diversidade da produção da riqueza e o aparente paradoxo desta riqueza produzir também a pobreza: “Ai de ti riqueza se a pobreza não produzisse os frutos que produzem a tua riqueza”. (Ariovaldo Umbelino de Oliveira, citando a fala de uma trabalhadora rural espoliada). E continua cada um no seu lugar. As grandes cidades, como São Paulo, mostram essas desigualdades como toda a força, tanto ao nível da concentração da riqueza como da pobreza. A segregação espacial urbana mostra o lugar de cada um e cada um no seu lugar, pois: “O espaço urbano, o bairro, as relações de vizinhança, a moradia, os equipamentos coletivos de caráter mais local, são construídos, geridos e utilizados pelo Estado de maneira a reproduzir, na sua micro-política, as estruturas de poder e de dominação em vigor na sociedade definindo normas de comportamento normalizados e padronizados (ou patronizados?) para que nada escape ao controle... No universo doméstico da moradia, no reino doméstico-domesticado, as instituições totais, comandadas pela TV, pela propaganda oficial, constroem um universo onde cada um é um agente passivo. As escolas, as áreas de lazer, os centros de saúde, as creches administradas pelo Estado, completam este quadro de submissão do indivíduo às instituições totais, que impõem um modo de vida previsto e regulamentado.” (Bonduki, 1986, p. 269)

Na diversidade das concentrações e gigantescas aglomerações, há lugares de produção,

Arlete Moysés Rodrigues

de consumo, há o “consumo de lugar” (como diz Lefebvre para a produção, para o comércio, para os serviços, enfim, para o próprio consumo). As representações e imagens de cada um ao produzir e consumir são diversificadas. Para quem já nasceu numa Metrópole como São Paulo, a cidade mostra-se como se fosse um turbilhão de permanências e mudanças. “Cresceu tanto que tudo mudou, mas mesmo assim tudo está no mesmo lugar. Já não conheço os vizinhos, mas as casas são as mesmas, o comércio é do mesmo tipo, mas o comerciante mudou.” (S.M.S., 48 anos, nasceu e cresceu na cidade de São Paulo). “O nome da rua é o mesmo, mas é tudo diferente de 30 anos atrás, quando apenas algumas ruas tinham luz, nem havia água encanada e as casas eram modestas.” (Z.M.E. – 50 anos). (depoimentos)

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É difícil perceber as ruas em que os carros transitam lentamente se transformando em grande avenidas de aparente trânsito rápido, mas que é mais lento – carros parados pela intensidade de fluxo de automóveis. Numa recente enchente ocorrida em São Paulo, um morador do bairro do Butantã em SP, desabafou: “Antigamente (antes da canalização), quando era um riozinho, não era tão ruim. Enchia, mas não tínhamos o barulho horrível dos caminhões até as três horas da manha.”. Mas o bairro foi se urbanizando, as matas dando lugar às edificações, à canalização do córrego: “Pensávamos que a perda da tranqüilidade e da segurança da tua por causa dos caminhões era o preço que tínhamos que pagar para não ter mais enchente. Agora, além do perigo do trânsito, voltamos a ter as casas inundadas.” (in Gazeta de Pinheiros, 01/4/88). Este depoimento é, sem dúvida, demonstrativo do processo de “ver a cidade mudar”. A urbanização tira a mata, canaliza o rio, em troca da promessa de não haver enchente: há poluição, trânsito intenso, etc. Porém verifica-se que esta troca não é verdadeira, faz parte do processo de urbanização. Para quem nasce numa cidade como São Paulo tudo muda, mas os problemas continuam e são continuamente redimensionados. Para quem chega, principalmente quando vem de lugares onde o ritmo é marcado pelo dia e noite, horas de sol, de chuva, ritmo da hora e do tempo de colheita e do plantio, e se impacto das grandes cidades é muito maior. Em São Paulo, o ritmo intenso não é apenas quanto à velocidade do trabalho, mas do tempo como um todo. Nas áreas centrais da cidade, há um relógio em cada esquina, marcando um tempo e um ritmo de controle das horas e minutos, passando este controle do tempo do lugar de trabalho para a cidade, ou melhor, para os habitantes da cidade como um todo. É preciso ir e vir, trabalhar e voltar, com sol intenso, com chuvas que provocam cheias e com os velocímetros de ônibus e carros contendo a marca dos 180 km/h, quando os ponteiros atingem no máximo 20 km/h. Como consumir tantos lugares e tão diferentes entre si? Desde os “Shoppings Centers” até os marreteiros ambulantes. Desde o do “homem sanduíche” até o dos imponentes “outdoors”. Desde o do forno de micro-ondas até o do fogão à lenha, que pode ser apenas um buraco no chão, onde se usa para ser mais “rápido” a panela de pressão (foto a). Desde o consumo dos lugares ao de consumo das idéias, pois diz a propaganda, quem fuma a ou b, tem a marca do sucesso, mas também, isto não é dito, há o fato de fumando, só gastar seu dinheiro

43

Na procura do lugar o encontro da identidade

depara com o ritmo das horas contadas em minutos e segundos – a hora do relógio –, o

e seu pulmão e não ter dinheiro para comer, e assim o sucesso não vem. Como diz Álvaro V. Pinto: “Os homens consomem socialmente as idéias, da mesma maneira que qualquer outro bem indispensável, e o fazem porque delas necessitam para a atividade permanente a que estão obrigados a se dedicar: a de produzirem a sua existência. Mas entre os produtos que têm que elaborar para viver, contam-se igualmente as idéias, não aquelas já conhecidas, ou com o mesmo conteúdo com que foram adquiridas, mas outras inéditas...”. (Pinto, A.V., 1969, p. 49)

Assim, os que nascem na Grande São Paulo e os que chegam, vindos do campo ou de outras cidades, consomem a cidade, as idéias – o consumo dos lugares. Desse modo, produzem a cidade, porque produzem sua existência. Penso que uma forma de compreender este processo de produzir e consumir a cidade é analisar a apropriação do espaço urbano para moradia, buscando verificar o consumo das idéias já conhecidas e as que vão sendo construídas nesse processo de luta pela moradia, numa grande metrópole como é São Paulo.

2.

APROPRIAÇÃO DO ESPAÇO URBANO PARA MORADIA “A fragmentação do espaço para venda e compra está em franca contradição com a capacidade técnica e científica da produção do espaço em escala planetária.” (Henri Lefebvre)

Há nas cidades capitalistas várias maneiras de apropriação do espaço urbano para

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moradia. Em todas elas a terra é apropriada – vendida e comprada – em “pedaços”, compartimentada. O marco divisório dessa apropriação é a classe ou parcela de classe a qual pertencem os indivíduos e/ou grupos de indivíduos, que define a capacidade diferenciada de pagar pela terra e pela casa. Principalmente para os trabalhadores, esta apropriação, enquanto propriedade, não se expressa necessariamente num momento de tempo, mas num período de tempo, que pode ser a vida útil de um indivíduo. Na ótica deste trabalho, a apropriação do espaço urbano é lugar de moradia, necessidade biológica e necessidade social. É a terra e a habitação onde alguns ainda obtêm renda, juros, lucro e outros – a maioria – despedem esforços e dinheiro para obter um abrigo.

44

A ênfase na análise da terra e/ou habitação nela edificada, é uma forma de tornar explícito o processo de produzir e consumir a cidade, de tentar tornar explícito, na luta cotidiana pela moradia, aquilo que, no dizer de David Harvey, é mistificado e turvo na vida diária. Cerca de ¾ da terra urbana é utilizada para habitação, o que implica numa concorrência entre as diferentes “necessidades” de moradia, e entre as necessidades de reprodução do capital e de reprodução da força de trabalho, ou seja, o espaço necessário para moradia também conflita com diferentes usos urbanos. Neste sentido, penso que a luta pela moradia caracteriza um processo extremamente rico que permite analisar a produção e o consumo do espaço urbano, notadamente porque a produção é social, mas é imputado ao individuo a resolução da questão do onde e como morar. Considere-se também que há uma diversidade muito grande, seja em tamanhos de lotes, seja em qualidade e tamanho de construção, seja em localização; há áreas bem servidas ou não por equipamentos de consumo coletivos urbanos e com características de segregação, verdadeiros guetos de moradia e com preços muito variados. Há que se considerar, portanto, o consumo dos lugares com seus preços variados e suas características diferentes, ou seja, a concentração da pobreza e da riqueza e sua visibilidade na segregação espacial. Não se pode viver sem ocupar espaço. Morar é uma das necessidades básicas, assim necessários em cada período são determinados historicamente. A moradia, em qualquer período histórico, é considerada uma necessidade vital. Mudam as características da moradia, desde o abrigo em cavernas, do chamado processo de hominização, até as diversidades das construções atuais ou as casas do futuro, do século XXI, como nos filmes de ficção científica, ou quem sabe nos espaços inteiramente lisos, de Felix Guatarri. Diz Agnes Heller: “As „necessidades naturais‟ são simplesmente relativas à consumação da vida humana (autoconservação). São necessárias por natureza porque, se não satisfeitas, o Homem não pode manter o estado de ser vivo. Não são análogas às necessidades animais, pois estas condições (aquecimento, vestimenta) que não se colocam como „necessidade‟ para o animal, se revelam indispensáveis à simples sobrevivência do ser humano. São consequentemente necessidades sociais...: a própria necessidade, encontra-se socializada pelo modo de satisfazê-la.” (La Theorie des Besoin chez Marx, p. 48)

Assim, a necessidade de morar, como uma necessidade vital, tem que ser compreendida socialmente. O problema de onde e como morar diz respeito à maioria dos trabalhadores,

45

Na procura do lugar o encontro da identidade

como comer, vestir,etc. As quantidades de artigos ou de meios de subsistência que são julgados

aqueles que não podem pagar pelo direito de uso-aluguel – ou pelo direito de propriedadecompra – pois: “...na ótica puramente capitalista, as necessidades dos operários aparecem como limites à riqueza e enquanto tal são analisadas. Mas, simultaneamente, a necessidade aparecendo sob a forma de uma demanda solvável constitui uma força motriz e um instrumento do desenvolvimento econômico.” (idem, p. 49)

Em geral, o limite de produção da moradia, que atenda a necessidade dos trabalhadores, tem sido analisado pelo viés do mercado. Como os trabalhadores não podem pagar pelo direito de uso, não há incentivo para a produção de casas para aluguel; como não podem pagar pelo direito de propriedade, não há incentivos de produção de casas para compra e venda no mercado, ou seja, não há incentivos à produção. No entanto, a indústria de construção civil, pelo menos no Brasil, tem sido considerada um dos baluartes da produção capitalista, tanto pelo consumo de outros insumos industriais na construção em si, como pela numerosa mão-de-obra empregada nas edificações. Mas, como a ótica tem sido sempre a demanda solvável, o Estado é chamado a intervir, passando a ser responsável pelo atendimento desta necessidade, regulando a produção e subsidiando o consumidor. Na verdade, diz-se que a falta de um mercado inviabiliza a produção desta riqueza e que caberá ao Estado agir para propiciar a sua produção, porque se constitui numa força motriz do desenvolvimento econômico. De qualquer modo, mesmo com a intervenção do Estado, sempre depende de uma possibilidade de pagamento. Por outro lado, a intervenção do Estado, no caso do Brasil, tem redundado na

Arlete Moysés Rodrigues

privatização dos recursos públicos, canalizados através do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) e das Cadernetas de Poupança, que financiam empresas construtoras para um mercado de “baixa renda” (Maricato, E., 1987). Mas e aqueles que mesmo assim não podem pagar? É possível, casos extremos pedir de porta em porta restos de comida, roupas velhas que não são mais usadas. Será possível pedir um “pedaço” da casa para morar, mesmo que seja por algumas horas, mesmo que o “pedaço da casa” não tenha uso? É até possível ser precariamente atendido em lugares públicos, como albergues; porém apenas uma moradia provisória de um ou dois dias. Ou então, quando alguma calamidade atinge determinados lugares, as famílias aí moradoras podem obter algum lugar para ficar provisoriamente, como é

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no caso de áreas atingidas por enchentes, incêndios, até que o lugar anterior seja reconstruído, ou se arrume um outro lugar definitivo ou ainda provisório para ficar. O porquê não é possível pagar pelo direito de uso ou troca, implica também em considerar a relevância da questão da moradia, pois é preciso compreender as determinantes do preço desta mercadoria e seus componentes: a terra e a obtenção de renda, a edificação e a obtenção de lucros, os empréstimos e a obtenção dos juros, os salários pagos aos trabalhadores; a produção social da cidade e da moradia e a apropriação individual, pois como diz Harvey: “O modo de produção capitalista força uma separação entre o trabalhar e o viver ao mesmo tempo que os reintegra de maneira complexa... As lutas em torno do fundo de consumo para o trabalhador, emergem das tensões inevitáveis entre os apropriadores (procurando renda), os construtores (procurando lucro), os financistas (procurando juros) e o trabalho (procurando se opor às formas secundárias de exploração que ocorrem no local de vida). Entretanto, os meios e as formas de tais conflitos diários são o reflexo de uma tensão muito mais profunda, com manifestações não tão facilmente identificáveis – uma luta sobre o significado e a definição de valores de uso, do padrão de vida da força de trabalho, da qualidade de vida, da consciência e até mesmo da própria natureza humana.” (Harvey, 1982. Esp. Debates, n.6)

Portanto, morar é uma necessidade básica, sendo, sua característica definida quantidade de espaço para uso exclusivo de seus ocupantes, um espaço privativo que pode ser utilizado de várias maneiras. Como lugar de trabalho, mesmo considerado apenas como moradia, implica na realização de determinadas tarefas, que têm como lugar privilegiado de execução a própria moradia: cozinhar, passar, lavar e banhar-se, limpar a própria casa, etc. É também o lugar onde se tem privacidade, onde se descansa-dorme e com o advento da TV, tem-se na maioria dos casos, o único lazer, etc. Atividades internas à casa que também são definidas socialmente. Onde e como morar, onde e como na moradia dormir, cozinhar, ter lazer, etc. Todos os utensílios da moradia também, como na própria moradia, representam uma força motriz para o desenvolvimento econômico. Caracterizam-se, todos e cada um dos utensílios, também como mercadorias que têm um valor de uso e um valor de troca. Há, em cada unidade de moradia, também um consumo interno, além do consumo da casa – o lugar onde se fica e que corresponde ao micro-cosmos individual e familiar (Rodrigues, A. M., 1988). Morar implica que a casa esteja situada num contexto, no nosso caso urbano, e que tenha uma localização relativa em relação ao trabalho, aos serviços, um tipo de vizinhança, etc., 47

Na procura do lugar o encontro da identidade

socialmente. Apresenta-se com especificidades porque o lugar de abrigo é também uma

o que implica na produção e no consumo do lugar. A casa, assim localizada no espaço urbano, compreende um lugar, produzido e reproduzido pela sociedade em seu conjunto, pela “concentração” de homens e de produção. E assim, ao analisar a moradia com suas características de produção e consumo, estar-se-á analisando a cidade capitalista, em pelo menos um dos seus aspectos significativos; principalmente porque esta análise não pode estar dissociada da produção e do uso dos equipamentos de consumo coletivo. A rigor, os equipamentos coletivos deveriam beneficiar todos os moradores das cidades. Porém verifica-se que para serem utilizados é necessária uma capacidade de pagar que depende do lugar que os moradores ocupam no interior da divisão do trabalho, o que define seu lugar na cidade. 2.1. Valor de uso/valor de troca: a mercadoria terra urbana e suas especificações Um primeiro aspecto a ser abordado está relacionado à apropriação da terra urbana/habitação como valor de troca, visando a obtenção de renda, lucros ou juros, o que não implica em dizer que nestes casos o valor de uso não exista, mas sim que o objetivo desta apropriação é o valor de troca. São segmentos sociais que lucram diretamente com a cidade. Diz Topalov:

Arlete Moysés Rodrigues

“Definirei como proprietário capitalista (do solo urbano) a um agente para o qual possuir a propriedade é o suporte da valorização de um capital. A propriedade de um terreno ou de um imóvel é a forma concreta de um valor abstrato: o capital, o valor que se valoriza. Este proprietário venderá ou não, segundo a rentabilidade alternativa de seu capital, obtida em outra forma de investimento. Evidentemente a rentabilidade de um capital imobiliário é algo complexo: não é somente a renda anual, que pode até ser nula. Sabe-se que com relação ao aluguel, por exemplo, a renda obtida não é senão um dos componentes da rentabilidade global, sendo outra a evolução do valor venal do ativo. Em resumo pode –se dizer que o proprietário capitalista é aquele que administra seu bem como capital.” (Topalov, p. 174)

Utilizarei esta definição de Topalov que se refere explicitamente, neste caso, aos proprietários capitalistas do solo, àqueles que investem em imóveis, com o objetivo de obter renda. Há ainda aqueles que, embora não sejam diretamente proprietários do solo, obtêm com a terra uma valorização do capital. Neste caso poderíamos citar os detentores do capital financeiro, que fazem empréstimos para aquisição da terra, ou loteamento, ou mesmo empréstimos para a aquisição da casa própria e assim obtêm seus juros do capital. Não é apenas a propriedade direta que pode permitir, no solo urbano, o objetivo de valorização do

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capital dinheiro. Há ainda aqueles que lucram com a cidade, no sentido mesmo da obtenção direta de lucro, através do processo de urbanização, abertura de vias e mesmo da edificação. Ao empregar trabalhadores neste processo, tem-se um processo de valorização do capital empregado. Por outro lado, há uma grande parcela de moradores da cidade, que pertencentes aos mais diversos segmentos da sociedade, apropriam-se do espaço urbano como valor-de-uso, onde, é claro, está embutido o valor de troca, o que lhes permite também apropriar-se de uma renda. É freqüente afirmar-se que, para os possuidores de pequenos lotes ou mesmo casas para moradia própria, a terra e a casa tem apenas valor-de-uso. Não concordo com tal assertiva, porque seria negar as características da mercadoria no modo de produção capitalista. Como bem diz Harvey: “...o método marxista de colocar o valor-de-uso e o valor-de-troca em relação dialética entre si merece consideração porque favorece o duplo propósito de soprar vida nova nos estudos geográficos e sociológicos do uso do solo, e de construir uma ponte entre as abordagens espaciais e econômicas dos problemas de uso do solo.” (Harvey, D., op.cit., p. 137)

Em que pese a especificidade do solo urbano, toda mercadoria tem em si valor de uso e propriedade como um bem de consumo, esta propriedade também tem em si um valor de troca, que poderá concretizar-se no momento de venda no mercado. Há, sem dúvida, diferenças visíveis para qualquer observador no tamanho dos lotes e das casas construídas, na qualidade da moradia, nos bairros onde se situam, nos equipamentos existentes em diferentes bairros, nas ruas asfaltadas ou não, nos lugares de circulação de veículos e no tipo de veículo que circula. Tal diferença, como já dito, depende da capacidade de pagar pela terra e pela habitação, que depende do lugar ocupado na produção e reprodução do modo de produção capitalista. Mas o proprietário de uma casa que a utiliza como moradia não é proprietário capitalista. Possuir uma mercadoria (mesmo que seja uma mercadoria „sui generis‟) não é ser proprietário capitalista. Diz Topalov: “A propriedade do solo é uma pluralidade de relações sociais e não só uma. Em outros termos, ser proprietário de um terreno ou de um imóvel não significa o mesmo segundo a posição de classe que se tenha. Esta posição confere um conteúdo social específico à relação jurídica da

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Na procura do lugar o encontro da identidade

de troca. Embora os proprietários que tenham uma única casa para moradia, tenham a

propriedade. A propriedade do solo é uma relação jurídica que abarca uma pluralidade de relações sócio-econômicas concretas. E estas de maneira nenhuma se esgotam na relação jurídica. Podemos ilustrar esta proposição: não é a mesma coisa ser proprietário de imóvel em que se mora ou ser proprietário de um terreno agrícola que se arrenda a um colono, ou ser proprietário de um estabelecimento comercial no centro da cidade. A relação jurídica é a mesma, é o „direito de usar e abusar‟ de seu próprio bem, segundo a fórmula típica do primeiro código civil burguês, o código de Napoleão. Sem dúvida, como é sempre o caso em matéria de direito, isto indica e esconde por sua vez relações sociais: define como formalmente idênticas relações sociais fundamentalmente diferentes.” (Topalov, op. cit., p.173)

No caso da Metrópole paulistana, são as unidades familiares com rendimentos superiores a 5 salários mínimos, onde está a maior concentração de proprietários de casa própria (ver tabela 5). Embora seja um dado importante é bom que se avalie que não se adquire uma casa apenas num momento de tempo, mas sim em períodos de tempo, que podem ser de até 25 anos (prazo de financiamento do SFH). TABELA 5 – Região Metropolitana de São Paulo – Domicílios Particulares Permanentes, por condição de ocupação – por Classes de Rendimento Mensal DOMICÍLIOS PERMANENTES RENDIMENTO Próprios Alugados Cedidos Total

Arlete Moysés Rodrigues

Até 1 salário

47,1

29,3

23,6

3,4

De 1 a 2 salários

45,4

35,5

19,1

9,3

De 2 a 5 salários

46,2

40,7

13,1

32,6

Mais de 5 salários

63,3

31,6

5,1

52,7

Sem renda

38,1

40,5

21,4

1,0

Sem declaração

75,0

33,7

2,3

1,0

TOTAL

55,4

34,8

9,8

FONTE: PNAD – vol. 9, 1985 É interessante verificar que nos domicílios onde a renda familiar é de até um salário mínimo, uma parte significativa mora em casa própria. Por este rendimento familiar pode-se ter uma idéia das características da casa. Nos Censos oficiais considera-se casa própria desde o barraco de favela, porque não se pesquisa a legalidade jurídica da propriedade da terra e dos 50

imóvel nela identificados, até as mansões. Inclui-se também as casas que, embora sejam denominadas próprias ainda estão sendo pagas (como já dito, muitas vezes por longos períodos de tempo). Há uma grande porcentagem de casas cedidas por empréstimo, o que significa também que muita gente mora em casa de parentes ou amigos. E assim entendemos, como Topalov, que propriedade do solo/casa é uma pluralidade de relações sociais e não uma só. Por outro lado, também é muito importante destacar que os possuidores de casa própria são percentualmente menos significativos em 1980 que em 1970, tanto na cidade de São Paulo, como na cidade de Osasco. Embora seja um dado relativamente precário, pode indicar ainda maiores dificuldades na aquisição de casa própria. Em São Paulo, passaram de 54% em 1970 para 51% em 1980, em Osasco de 58,2% em 1970 para 51,9% em 1980. Neste período a população da Cidade de São Paulo aumentou em 44,5% e a população favelada em 446%, em Osasco a população favelada mais do que dobrou; como os proprietários de barracos de favelas estão incluídos entre os moradores de casa própria, tem-se uma diminuição, ainda mais evidente, de proprietários de casas próprias consideradas de qualidade no mínimo razoável.9 A apropriação do espaço urbano para moradia tendo como referência a casa própria e contratam-se empresas para a construção ou o próprio comprador, auto-constroe-se (depende do extrato de renda e da classe a que pertence), compra-se casa pronta e se reforma, etc. Quando a compra não é possível, também ocupam-se edifícios ou ocupam-se terras, onde constroem-se barracos – as favelas e as ocupações coletivas. Para os que não moram em “casa própria” a forma de conseguir moradia é predominantemente o aluguel. Aí se trata de buscar um lugar onde haja casas para alugar compatíveis com o salário. A cessão de imóveis, compreende uma forma de resolução da questão da moradia, baseada principalmente em relações pessoais ou familiares. Nos casos de imóveis cedidos, tanto pode haver uma concentração de famílias/pessoas numa mesma unidade, como, quando o cedente tem mais de um imóvel, caracteriza-se um empréstimo da casa. Nas classes com maior rendimento é comum a cessão da casa, mantendo-se a propriedade que continua a “valorizar”.10

9

Vide Censos do IBGE de 1970 e 1980 e CEDEC – 1987 e Rodrigues, A. M., 1981. Além das formas usuais de comprar terreno e construir, comprar casa pronta, alugar um imóvel, ou ter um imóvel cedido, constata-se que há alguns que não têm onde morar e passam a fazê-lo debaixo de pontes. 10

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Na procura do lugar o encontro da identidade

reveste-se também de uma pluralidade de formas: compra-se casa pronta, compra-se o terreno

Como foi visto na tabela 3, apenas 3,1% da PEA era empregadora, o que pode significar que esta parcela é também proprietária da casa onde mora, da casa própria. Não é possível, no entanto, saber se estes empregadores são também proprietários de imóveis alugados ou mesmo de terrenos ociosos. Existem pesquisas realizadas com trabalhadores que demonstram que os moradores de casa própria não podem de maneira alguma ser denominados de proprietários capitalistas. Há, contudo, falta de pesquisas sobre a situação de propriedade da grande maioria dos imóveis alugados e dos terrenos vazios. Correspondem, seus proprietários, pelo menos em princípio, aos que lucram com a cidade. Ou seja, quem aluga, aluga de quem? O proprietário do imóvel alugado tem apenas um imóvel que funciona como uma espécie de poupança, ou é proprietário de muitos imóveis? Ou seja, são os proprietários rentistas, quem são os proprietários de terras deixadas vazias aguardando um aumento do preço da terra? É muito comum encontrar proprietários de um único lote que moram na parte da frente do imóvel e alugam a parte dos fundos. Na situação de penúria em que vivem pode-se considera-los como proprietários capitalistas? No sentido utilizado por Topalov (Topalov, op., cit.), de que são proprietários capitalistas os que têm a propriedade como suporte de valorização de capital, não seriam proprietários capitalistas. Neste caso, embora suas casas sejam „usadas‟ como valor de troca, não as considero simplesmente como um suporte para a valorização do capital, pois, na maior parte desses casos, é uma forma de garantir a sobrevivência do proprietário. Ou seja, há uma pluralidade de relações na propriedade urbana para a moradia, mas é importante salientar que aqueles que de fato lucram com a cidade são uma minoria.

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A fragmentação do espaço, para compra e venda, poderia pressupor que cada proprietário queira retirar o máximo de rendimento possível, de cada espaço de terra. Mas, importa também salientar que há na pluralidade relações dos proprietários de terra/casa para moradia e os que de fato investem na terra/casa, visando diretamente o lucro, constituem-se em minoria. Para uns a cidade é principalmente fonte de lucro, para outros – a maioria – é principalmente fonte de uso. Para os que podem e os que não podem pagar, os aspectos de procura e de apropriação do espaço são diferentes. Para os que buscam lucrar com o espaço urbano esta procura faz “criar” novos espaços. Os que buscam apenas um canto para morar Deve-se ter em conta que os dados da tabela 5, baseados em dados do PNAD referem-se a uma amostragem, estando aí inclusos, favelas, cortiços, ocupações, casas e apartamentos e mansões.

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também “criam” novos espaços. Embutida e inerente a esta nova produção, tem-se a reprodução do espaço urbano e a reprodução das condições de existência, relativas à questão da moradia. Em todas as formas de apropriar-se do espaço urbano está implícita, na cidade capitalista, o pagamento pelo uso e pela propriedade de terra e da moradia. Na apropriação da cidade capitalista está embutido o pagamento. A cidade é dividida em parcelas e cada parcela tem um preço, que corresponde ao consumo do lugar. A troca no mercado de terras e de casas ocorre num „momento do tempo‟ mas seu uso se estende por um longo período de tempo. Este aspecto da mercadoria terra/casa não é peculiar apenas ao solo e às benfeitorias, mas a proporção de freqüência de troca em relação à duração do uso é baixa. Além disso, direitos de consumo para um período longo do tempo são obtidos com grande desembolso de recursos num momento do tempo. Consequentemente, as instituições financeiras tendem a desempenhar um papel muito importante no funcionamento do mercado do uso do solo urbano e da propriedade na economia capitalista (Harvey, op. cit.). O grande desembolso que ocorrerá num momento do tempo é referido à compra e venda da mercadoria e não ao aluguel, já que, no aluguel, o desembolso é realizado durante todo o tempo de uso da mercadoria. Por outro lado, é importante salientar que, muitas vezes, este „poupança‟ por um longo período. Além disso, um fechamento de contrato de compra e venda não tem necessariamente quitação no momento de compra e venda, mas sim após um longo número de anos. De qualquer modo, o trabalhador não poderá contar com recursos advindos do salário apenas no momento do tempo em que se efetua a compra e venda. O salário assegura, na maior parte dos casos, precariamente a reprodução imediata da força-de-trabalho. É pago ao assalariado o que garante os meios para viver hoje e não amanhã. “Para que a reprodução seja contínua, a venda de força de trabalho, deve renovar-se permanentemente, o que assegura a renovação contínua da subordinação do trabalho ao capital.” (Topalov, op. cit., com modificações). Efetivamente, o salário é computado o “suficiente” para satisfazer as necessidades imediatas e fracionáveis da mercadoria força-de-trabalho. Não se reconhecem as necessidades não-imediatas, não-fracionáveis e não-uniformes dos produtores. O capital só pagará o salário para a habitação do dia trabalhado (ou quando o pagamento for mensal, do mês já trabalhado). 53

Na procura do lugar o encontro da identidade

desembolso só aparentemente ocorre num „momento‟ de tempo, pois de fato significa

Ora, se a compra desta mercadoria ocorre num momento de tempo, mas seu uso se dá por um longo período de tempo, com grande desembolso, e como no salário só está incluída a moradia de um momento do tempo – o já trabalhado –, é de pensar-se nas forma de pagamento desta mercadoria. Quando se pesquisa a situação salarial de um dado momento e a propriedade desta mercadoria – casa própria –, tem-se apenas um instantâneo da situação. É necessário ater-se ao processo pelo qual foi possível obter a casa própria para compreender a questão em toda a sua complexidade. O texto do decreto-lei n.399 que regulamentou o salário mínimo brasileiro em 1938 diz: “O salário mínimo brasileiro será determinado pela soma das despesas diárias com alimentação, habitação, vestuário, higiene e transporte necessários à vida do trabalhador adulto. A parcela correspondente à alimentação terá um valor mínimo igual aos valores da lista de provisões necessárias à alimentação do trabalhador adulto.”

Depreende-se do texto do decreto-lei, que um trabalhador deve receber por uma jornada diária, um salário para suprir as despesas imediatas, apenas do dia em que trabalhou. Mas, é evidente que não se pode considerar estes termos no sentido restrito, pois nesta legislação também estão implícitos o “descanso remunerado” – quando cumprida a jornada semanal –, e as férias – quando cumprida a jornada anual. O que se quer salientar é: no salário está implícito o pagamento pelo uso de uma casa, o aluguel, pois este sim é calculado por curtos períodos de tempo, e não a compra da casa. No entanto, incentiva-se a compra da casa própria, o que contrasta com a forma explicitada, no texto da lei citada. A Constituição Federal – desde a primeira até a de 1988 – determina que o salário

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mínimo, que é a base da remuneração do trabalho assalariado desenvolvido na sociedade, deve atender às necessidades do trabalhador e de sua família. A média dos salários acompanha sua evolução porque é através de seu montante que se estabelece o preço da contratação da mãode-obra e assim será calculado sempre com base na reposição diária da força de trabalho. Como exposto na tabela 4: 76,4% dos empregados e 72,7% dos trabalhadores por conta própria ganham no máximo 5 salários mínimos. Ora, o valor atual do salário mínimo sequer cobre as despesas com alimentação; é muito difícil a quem o recebe pagar pela moradia, seja alugando, seja comprando uma casa e pagando por longos anos uma prestação. Nesse sentido é importante destacar alguns dados sobre o valor do salário mínimo e sua possibilidade de suprir as necessidades de reprodução do trabalhador e sua família. 54

Em 1959, o tempo necessário de trabalho para adquirir a ração alimentar básica era de 65h e 05m; em 1969 de 110h e 23m; em 1979 de 153h e 04; em 1984 de 194h e 38m.

11

Ou

seja, em 25 anos, TRIPLICOU o número de horas de trabalho necessárias para suprir as despesas com alimentação básica. Como pagar o aluguel, alimentar-se, deslocar-se, cuidar da saúde, se o trabalho está sendo quase que inteiramente consumido com uma alimentação muito precária? Em julho de 1988 quem recebia o piso nacional de salários (nova denominação para o salário mínimo) gastou 80,44% do seu orçamento na compra da cesta básica de alimentos, ou seja Cz$9.159,04. Isto significa que “sobrou” menos de 20% do salário, ou seja, Cz$3.284,96, para as despesas de moradia, vestimenta, higiene, transporte, saúde. Quando se considera que o piso salarial deveria suprir as necessidades do trabalhador e de sua família, calcula-se que deveria ter sido em julho de 1988 de Cz$79.686,19, apenas para manter-se com um padrão mínimo de sobrevivência e não de Cz$12.444,00 (DIEESE – pesquisa de julho de 1988). Mesmo os trabalhadores que ganhavam, nesta data, até 5 salários, estariam abaixo do limite de sobrevivência previsto no Decreto Lei 399 e na Constituição em vigor, pois representam um valor até Cz$62.220,00, portanto abaixo do mínimo considerado necessário, nos cálculos realizados pelo DIEESE. pois os aluguéis de casas precárias, localizadas em áreas sem infra-estrutura e equipamentos de consumo coletivo, situam-se em torno de Cz$5.000,00. Segundo a Embraep, os aluguéis subiram, em 1986, 500% em relação a 1981 (Maricato, E., 1988) e só no ano de 1987, subiram mais de 400%. É possível para a maioria dos trabalhadores pagar aluguel ou comprar uma casa? Além disso, é bom relembrar que os componentes da cesta básica de alimentos foram estabelecidos em 1938, portanto nas características de produção e de consumo deste período. “Modernizaram-se” a produção e o consumo, mas a maioria dos trabalhadores só pode consumir aquilo que é determinado e na especificação do que é determinado, por exemplo, o quando deve consumir de carne para se manter no limite da reprodução, qual é a casa onde é possível morar. Aumentam-se as variedades de mercadorias. “Moderniza-se” a metrópole e limita-se a capacidade de consumo. Concentração da riqueza e da pobreza. 2.2. A Constituição da Propriedade da Terra no Brasil 11

DIEESE – 1985. Veja-se também tabelas anuais in Kowarick, L. e Campanário, M., op.cit.

55

Na procura do lugar o encontro da identidade

Fica, assim, demonstrado que o salário é insuficiente para pagar pelo uso de uma casa,

Desta ligeira abordagem sobre a contradição entre o fato de o salário expressar, teoricamente, uma remuneração que permita suprir as necessidades de reprodução da força de trabalho e o seu valor real, insuficiente para garantir as mínimas necessidades básicas, entre as quais a moradia, fica evidente que há uma falácia nas tentativas de resolver o problema de moradia. Todavia, incentiva-se o “ideal da casa própria”, ainda que seja necessário pagar pelo direito de morar que não está contido no valor do salário, nem para o aluguel, quanto mais pela compra. Para compreender melhor a questão, considero necessário analisar alguns aspectos da propriedade da terra urbana, pois a necessidade de morar pressupõe terra pra edificar moradia sobre ela. Esta terra é uma mercadoria “sui generis” do modo de produção capitalista. Sucintamente, é importante retomar alguns aspectos da constituição da propriedade da terra no Brasil, pois, no século XIX, ao mesmo tempo em que o espaço-territorio-brasileiro se tornava mais conhecido, em que se ampliava a produção do café e se tinham amplas possibilidades de plantio – solo, clima – faltavam braços para a lavoura. Significa que, se terras havia em abundância, eram necessários braços para torná-la produtiva. E como a abolição da escravatura estava em pauta, incentivou-se a imigração de colonos europeus. Havia amplas extensões de terras desocupadas, mas era necessário, torná-las acessíveis, pelo menos de imediato, aos imigrantes que foram atraídos para o cultivo do café, bem como para os escravos libertos. Até 1850 a terra no Brasil não contava como valor monetário, pois:

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“A primeira lei que regulou a apropriação das terras brasileiras foi o regime de doações de terras pelas sesmarias. Inspirada na legislação do Império Romano, a Lei das Sesmarias foi aprovada em Portugal no ano de 1375 e estabelecia a praxe da concessão de terras a particulares, objetivando a efetiva ocupação. A lei das sesmarias portuguesas visava o aproveitamento total das terras em grande parte inculta e abandonada. (...) O regime de doações de terras no Brasil é introduzido oficialmente com as Capitanias Hereditárias, visando o povoamento, a ocupação e principalmente a defesa das terras brasileiras, devido às tentativas de invasão.” (Jahnel, T. 1988, p.105)

Os portugueses entraram na posse do solo brasileiro em nome e sob o domínio da Coroa, não respeitando a forma de ocupação anterior, a relação comunitária e natural dos índios com a terra. Transpuseram para o Brasil as leis de organização do território português, “adaptando-os” para as características da extensão do território, para consolidar-se como

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colonizador nas terras conquistadas. Porem, ao transportar-se para o Brasil, engendrado pelo modo de produção feudal, o Instituto Jurídico da Enfiteuse, que era temporário em Portugal tornou-se perpétuo no Brasil, para adaptar-se ao projeto colonialista desta etapa mais primitiva da acumulação de capitais (Baldez, M.L. – 1986 – com modificações). A terra não contava como valor. Não era sobre a terra que se formava o monopólio indispensável à produção. Assim, não se sentiu necessidade de constituir-se, através de normas e medidas legais, um monopólio de classe sobre a terra, o que também não ocorreu quando da suspensão das concessões de sesmarias (em 11/6/1822). De todo modo, era um monopólio de classe, pois as sesmarias não eram doadas a indivíduos de poucos recursos, mas somente aos que cultivariam as terras. Como a mão de obra era escrava e o principal produto era o açúcar, destinado à exportação, considerava-se que somente os possuidores de recursos poderiam arcar com o escambo de escravos e com a produção e exportação do produto, se não havia um preço de compra e venda, havia um monopólio de classe. Como explica T. Jahnel:

A partir da independência, de 1822 a 1850 a terra brasileira, com plena compreensão do governo, ficou à disposição de quem pudesse ocupá-la. A terra pertencia a quem a ocupasse, sem maiores riscos, pois sendo escravista o regime de trabalho, a ocupação não poderia ser feita pelo próprio trabalhador – o escravo. O termo ocupação é hoje considerado problemático, mas nesse período a ocupação era norma geral e caracterizava o modo de se obter terra, só acessível às classes dominantes, sem nenhuma contestação da legitimidade. Não se pode neste período falar em propriedade privada da terra. Não podia ser compra e vendida. Não era mercadoria. No entanto12, dada à proibição do tráfico negreiro e à presença cada vez mais marcante do trabalho assalariado, era fundamental submeter formalmente a terra ao capital. Em 1842 é cristalina a consideração do Conselho de Estado:

12

Veja-se a este respeito, Martins – O cativeiro da terra, 1978.

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“Não se tratava apenas do domínio do solo e sim também de poderes políticos, de jurisdição, de governo mesmo... Além do que se deveria pagar um dízimo à ordem de Cristo e explorar a terra num período de 5 anos. Posteriormente se introduz o pagamento de um foro, definido pela „grandeza, qualidade e bondade da terra‟, sem, no entanto, especificar o quantum a ser cobrado.” (Jahnel, T., op. cit., p.106-7)

“Como a profusão de datas de terra tem, mais do que outras causas, contribuído para a dificuldade que hoje se sente em obter trabalhadores livres, é seu parecer que d‟ora em diante sejam as terras vendidas sem exceção alguma. Aumentando-se, assim o valor das terras e dificultando-se, consequentemente, a sua aquisição, é de se esperar que o imigrante pobre alugue o seu trabalho efetivamente por algum tempo, antes de obter os meios de se fazer proprietário.” (In: Baldez, op. cit., p.4)

Buscava-se assim coibir o acesso do trabalhador pobre à terra. Deveria este vender sua força de trabalho na produção. O que conta não é a extensão de terras, pois estas havia em abundância, o que conta é impedir o acesso à terra. Acrescenta Baldez: “A lei n.601 de 18.09.1850, conhecida como a Lei das Terras, veio compor no plano jurídico a nova relação especifica imposta pelo modo de produção para impedir, num momento historicamente importante da ascensão do capitalismo, o acesso do trabalhador sem recursos à terra.” (Baldez, M.L., ibid., p.4)

O artigo I da lei diz que ficam proibidas as aquisições de terra devolutas que não sejam por compra e venda. No artigo II, a lei estabelece a ilegalidade das futuras ocupações, como diz José de Souza Martins: “A lei das terras, com a definição e universalização da propriedade capitalista da terra, o cativeiro da terra, foi a forma de assegurar a sujeição do trabalho ao capital na transição do trabalho escravo para o livre... A renda capitalizada no escravo, transformava-se em renda territorial capitalizada.” (Martins, op. cit.)

Arlete Moysés Rodrigues

Estava assim sancionado, como lei maior, o principio que baniu o trabalhador da terra. Tanto o trabalhador rural como, com o avanço do processo de industrialização/urbanização, o trabalhador urbano. Ou seja: “O capital desenvolveu-se a ponto de politicamente impor a lei que reconhecia a apropriação da terra.” (Baldez, M., op.cit., p.5). Fica estabelecida a terra como mercadoria, não só como valor moral, mas também como valor econômico e social. Tem que se pagar pela terra. Ela se torna uma mercadoria, sancionada e reconhecida pela Lei das Terras, do modo de produção capitalista. Aos que “receberam” grandes parcelas de terra, pelas sesmarias até 1822 e pela posse de 1822 a 1850 garante-se esta propriedade, que agora pode também entrar no mercado de compra e venda. Determina-se pela lei um preço que terá como requisito básico impedir o acesso do trabalhador à terra. Era preciso, fazendo 58

uma comparação extremamente rústica, fechar os campos – os “enclousure”, como na Inglaterra do século XVIII, para tornar a mão-de-obra livre. “O termo „enclousure‟ designa o movimento de variadas causas pelas quais os campos livres ou baldios, pertencentes às comunidades rurais ou simplesmente abertos, são vedados, isto é, adquirem proprietário ou explorador agrícola individual. A primeira grande vaga de vedação nos tempos modernos deu-se no século XVI... Mas o seu principal aspecto deve-se à transformação dos terrenos livres ou arrendados em pastagens vedadas para alimentação de rebanhos para a produção de lã. Os terrenos dedicados às pastagens exigiam escassa mão-deobra, e assim a vedação provocou a expulsão dos rendeiros e uma vaga de desemprego agrícola.” (Ashton, T., 1971, p. 45)

Se no caso brasileiro as leis de terra não expulsaram mão-de-obra, impediram-na de ter acesso à terra. Se na Europa os rebanhos utilizavam pouca mão-de-obra e a liberavam para a produção industrial nas cidades, no caso do Brasil necessitava-se de mão-de-obra livre para a produção do café e também para a produção industrial que, embora incipiente, começava a desenvolver-se. Dizia Thomas Morus, referindo-se aos “enclousures”: “Carneiros se fizeram devoradores de homens e despovoaram aldeias”. Diz José de Souza Martins: “A mão-de-obra tornou-se „livre‟ e a terra cativa do capital.” especial que é a terra. Como a Lei das Terras é uma lei que compreende todo o território, também vai se expressar nas cidades. Define-se um mercado de compra e venda de terra, tanto no meio urbano como no meio rural. A legislação sobre o parcelamento do solo, na área urbana, até 1937, era realizada inicialmente através de ordenações e, posteriormente, pelas posturas municipais, portanto interessando ao governo de âmbito local. Em 1937, o decreto lei n.58/37 regulava no território nacional, as relações entre o loteador e os adquirentes de lotes (ver Mukai, T., 1988). Com relação as características desse decreto, se expressa Baldez: “Em 1937, a recém-inaugurada ditadura populista de Getúlio Vargas, preocupada com o processo de exploração urbana que absorvia, para expandir-se, áreas rurais, e atenta para a necessidade de modernizar, também no campo de reprodução do capital, as relações de classe, baixou o Decreto-Lei 58, que simplificou o loteamento em áreas urbanas, submetendo-a a tratamento específico, aparentemente mais benéfico aos trabalhadores, principais usuários, como adquirentes de lotes, do sistema de parcelamento do solo. O Decreto-Lei 58 é mais um instrumento tendente a controlar, submetendo-o a regras específicas, a venda em retalho de terra, do que uma forma de dar proteção ao interesse do trabalhador na moradia. Uma forma, em suma, de assegurar que uso das áreas urbanas ficaria sujeito às regras de um modo de

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Mão-de-obra livre e terra cativa. Isto pode explicar o preço inicial desta mercadoria

produção na cidade, compatível com a modernização do modo de produção capitalista. Esse Decreto-Lei, ao estender aos negócios de compra e venda a prazo de terrenos rurais e urbanos as garantias da compra e venda (direito de haver o imóvel independente da vontade do compromitente-vendedor), criou condições para a formação de mercado de terras que a produção capitalista da cidade, mesmo em seu estágio primitivo, não poderia descartar. Era indispensável tornar os recursos destinados pelo Capital à habitação do trabalhador compatíveis com seu efetivo acesso à habitação.” (Baldez, M.L., op.cit., p. 6-7)

De qualquer modo a compatibilização de recursos expressa que a terra foi tornada cativa para impedir o acesso do trabalhador, mas este enfim precisa morar, então é preciso pagar por um pedaço de chão, já que todos são livres e iguais de acordo com a sua capacidade de pagar, o que significa que cada um mora como pode pagar. E, para que isso seja possível, a terra é desmembrada e vendida em parcelas. A Lei de Terras de 1850 nos dá o início do processo de definição do preço da terra. O Decreto-Lei 58/37 as características de um desmembramento do solo urbano. 2.3. A terra urbana – mercadoria “sui generis” e/ou assemelhada ao capital Merece especial atenção, no contexto deste trabalho, a discussão sobre a especificidade da mercadoria terra urbana e da habitação nela edificada. Destaque-se que, embora não se consiga detectar uma classe de proprietários capitalistas da terra urbana, quando se compara com a terra rural, há toda uma polêmica sobre a questão da propriedade da terra. Um aspecto da questão diz respeito à ideologia da casa própria. Os setores conservadores argumentam que o possuidor de casa própria é também um defensor da ordem “capitalista”, caso das declarações do então Ministro Roberto Campos, quando da criação do

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BNH. Na verdade, os setores conservadores têm incentivado, se não a conquista, pelo menos o sonho da casa própria. Acredito, pelo menos em princípio, que esta bandeira dos setores conservadores caracteriza-se pelo medo de uma revolução socialista e que busca aliados nesta luta fazendo o trabalhador acreditar que, após uma revolução, perder-se-ão todas as propriedades, inclusive a casa própria. É interessante contrapor a este aspecto, o fato da propriedade de outras mercadorias não ser utilizada da mesma maneira que a propriedade da casa onde se mora. Ao se analisar a questão da propriedade da moradia em Cuba, veremos que este temor é infundado. Aliás, os conservadores sabem muito bem disso, porém utilizavam as

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informações apenas da maneira que consideram convenientes (veja-se Santos, M., 1987, sobre a distribuição desigual da comunicação). A Lei da Reforma Urbana em Cuba (outubro de 1960), definiu o fim dos lucros na exploração da habitação, no entanto não definiu o fim da propriedade da casa onde se morava, e inclusive estabeleceu que o Estado viabilizaria a amortização da casa em que cada família morava, fixando pagamentos de acordo com o que se pagava de renda em períodos entre 5 e 20 anos, definidos de acordo com o ano de construção da unidade. Além disso, a Lei estabelecia uma escala de pagamento de indenizações aos antigos proprietários com valores ajustados e vitalícios, dependendo de terem ou não outras fontes de renda. Para as moradias construídas após este período foram fixadas cotas de pagamento de aluguel. Pela Lei General de la Vivienda (julho de 1985), transformaram-se os aluguéis já pagos em quitação de imóveis e os novos passaram a pagar a quitação da casa. Portanto, verifica-se que é irreal o temor da perda da casa própria se houver uma revolução socialista no Brasil, tipo cubana, o que mostra o uso ideológico da questão pelos setores conservadores. O temor é da perda da grande propriedade, mas se fitichiza a casa para moradia. O que realmente mudou em Cuba foi a não possibilidade de exploração da moradia como fonte de renda e da cidade como fonte de lucro (Rodrigues, A. M., 1986). Mas utiliza-se e camufla-se a situação para tentar transformar o proprietário da casa onde mora num “aliado Setores progressistas também consideram que a obtenção da moradia, através da casa própria, é um fator de conformismo da população trabalhadora, que fica menos propensa a envolver-se em atos públicos, com medo de que haja uma transformação que a faça perder sua casa. Há, assim, discursos que não buscam compreender a origem da difusão da ideologia da casa própria e apenas se contrapõem a ela (mas nada coloca-se em troca). Diz-se que o proprietário da casa onde mora passa a ser um defensor da propriedade. Se a moradia não for própria, o que propõe é apenas a continuidade do aluguel? Para não citar uma lista enorme de argumentos, penso que Milton Santos e David Harvey sintetizam alguns aspectos desta questão13. Milton Santos, ao analisar a questão de que em lugar do cidadão formou-se no Brasil o consumidor, diz que:

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Veja-se também, entre outros, Bolaffi, G. 1979; Azevedo, S. e Andrade, L.A.G., 1982; Valadares, L., 1983; Pradilha, E., 1985.

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da ordem capitalista”.

“O consumismo frequentemente se dá em uma das suas múltiplas metamorfoses, muitas inaparentes. A casa própria não é a necessidade, esta é a de morar decentemente. A casa própria insere o indivíduo no circuito do consumo da mercadoria, fetichizando no ato de compra e venda o que é necessidade social essencial. A ideologia do consumo, mediante suas múltiplas aparências, está fortemente impregnada na população. Uma boa parcela do conteúdo dos movimentos sociais urbanos defende mais o consumidor que mesmo o cidadão. O direito à moradia se confunde com o direito de ser proprietário. Este termina sendo imposto ideologicamente como o certo, como se fosse um objetivo do cidadão... Ser proprietário é um elemento essencial na ideologia do consumidor...” (Santos, 1987, p.126)

Santos considera que a casa própria insere o individuo no consumo. Será que não se está devidamente inserido no consumo da mercadoria quando paga-se pelo “uso” da casa no aluguel? Qual será a diferença fundamental entre o ter dinheiro para pagar o consumo da casa como aluguel ou ter para comprar uma casa? A diferença estaria em ser proprietário? Mas não é proprietário da roupa que se veste, do prato onde se come, da panela ou do fogão onde se cozinha? Será a diferença do preço desta mercadoria, ou na verdade, absorve-se a questão da forma como é proposta pelos setores conservadores e se retruca apenas considerando que não se deve ser proprietário? Ou a consideração do consumismo está mais relacionada com os valores das características das casas, das chamadas classes médias e com a questão dos valoresde-uso no interior das casas? Há, sem dúvida, um padrão estético, de “status”, de valores relacionados, por exemplo, com os tipos de vasos sanitários e dos azulejos, em cores, em modelos diferentes, etc., que são mais caros que os tradicionais em branco, sem nenhuma mudança qualitativa no uso. O “status” das grades par proteção das casas, tornando-as verdadeiras prisões, dos “conjuntos de condomínios fechados” com total segurança e “muito verde”, que correspondem em geral a uma ou duas árvores, um tanque, chamado de piscina,

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etc. Penso que estes aspectos transformam mais o indivíduo em consumidor cidadão, do que a casa própria em si. Harvey analisa esta questão do ponto de vista da classe capitalista afirmando que o incentivo à casa própria é uma maneira de manter o sacrossanto princípio da propriedade privada: “Uma luta bem desenvolvida entre inquilinos e senhorios, com os primeiros reclamando por propriedade pública, municipalização ou coisa semelhante, coloca todo o princípio da questão (da luta contra o poder monopolístico da propriedade privada). Consequentemente, a vulgarização da casa própria, individualizada, é vista como vantajosa para a classe capitalista porque ela estimula a fidelidade de pelo menos uma parcela da classe operária ao princípio da propriedade privada, além de promover a ética de um „individualismo possessivo‟ bem como a

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fragmentação desta classe em „classes de habitação‟, constituída de inquilinos e proprietários. Isto dá à classe capitalista uma bem vinda alavanca ideológica a ser usada contra a propriedade pública e exigências de nacionalização, porque é fácil dar a estas a aparência de que elas pretendem tirar dos trabalhadores as suas casas próprias.” (Harvey, 1982, p.15)

Harvey especifica porque, em princípio, se incentiva o apego ou a luta pela casa própria. Também coloca a luta não por aluguéis baixos, mas pela propriedade pública e aí sim seria uma luta contra o poder monopolístico da propriedade privada, na medida que fosse um bem público e assim a renda seria apropriada coletivamente. Importa ressaltar que neste artigo Harvey analisa as sociedades capitalistas desenvolvidas. Já Nabil Bonduki, ao analisar as condições concretas do Brasil, considera que a aspiração da casa própria é legítima, não só fruto da propaganda, mas condição prévia para a melhoria da vida urbana:

Nabil Bonduki faz também uma análise da dimensão econômica da propriedade da casa própria, mas penso que é necessário analisar, além da situação concreta dos trabalhadores, também a questão das características da mercadoria terra urbana. O que torna esta mercadoria tão inaparente? Há muitas outras mercadorias neste modo de produção, que quando o indivíduo a compra torna-se proprietário. Por que para as outras mercadorias não há, pelo menos reconhecidamente, uma função ideológica semelhante? É necessário analisar e entender a especificidade da terra urbana para compreender os termos da questão. Diz Harvey: “O solo e as benfeitorias são, na economia capitalista contemporânea, mercadorias. Mas o solo e as benfeitorias não são mercadorias quaisquer: assim, os conceitos de valor de uso e de troca assumem significado mais que especial.” (Harvey, 1980, p.135)

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“Nas cidades a propriedade da terra não garante o direito à cidade (enquanto acesso e equipamentos coletivos), mas ao menos confere o direito de lutar por ele e a certeza de tê-lo quando é obtido (certeza de não ser expulso pelo aumento do aluguel, quando chegam as melhorias)... A aspiração pela propriedade da moradia nas condições concretas de sobrevivência, decorre da situação da exploração do trabalho presente no Brasil, onde inexistem garantias contra o desemprego, velhice, doenças e uma política salarial compatível com as necessidades básicas.” (Bonduki, 1986, p.227-8)

Na parte anterior vimos que é a partir de 1850 que se constitui um mercado de compra e venda de terras no Brasil, cujo preço é definido para impedir o acesso dos imigrantes e dos escravos libertos à terra, enfim, ao trabalhador. É definido o preço inicial como uma forma de garantir o monopólio da terra à classe detentora dos meios de produção. Como não havia separação entre o proprietário de terras urbano e o rural, a terra para as edificações urbanas, inclui-se nesse processo. Para o trabalhador urbano, numericamente pouco expressivo no período, a questão colocada era a necessidade de morar. Para os proprietários industriais, desde o século XX, importava ter moradias para os trabalhadores, com a finalidade de atrair ou fixar mão-de-obra necessária às atividades industriais. A questão colocada não era ainda a casa própria, pois a maior parte dos imóveis de moradia são alugados, mas condições de produção de casas para alugar aos trabalhadores urbanos14. Um primeiro ponto a ser abordado, com relação a esta mercadoria, refere-se ao fato de não ser criada pelo trabalho. Em que pese a ausência de solo urbano intocado pelos homens, o preço da terra se define sem que haja nenhum trabalho produtivo diretamente na própria terra, no próprio terreno. A terra aumenta de preço pelo trabalho social realizado nas suas imediações, na cidade, seja através, e principalmente hoje, da atuação do Estado, com as obras de infra-estrutura, dos equipamentos coletivos, ou mesmo da produção de habitação estatal, individual – autoconstrução ou empreendimento capitalista. A especificidade desta mercadoria terra/habitação leva Paul Singer (1978) a colocar que a terra urbana é disputada para diferentes usos que se pautam pelas regras do jogo capitalista, que se fundamenta na propriedade do solo e por isso, e só por isso, proporciona renda e em conseqüência é assemelhada ao capital. Mas o capital gera lucro na medida em que preside,

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orienta e domina o processo social de produção, o que não acontece com o „capital imobiliário‟, porque o espaço é condição necessária à realização de qualquer atividade mas não se constitui como meio-de-produção, o que o torna um falso capital. Ele é valor que se valoriza, mas a origem de sua valorização não é a atividade produtiva, mas a monopolização do acesso a uma condição indispensável da produção – a edificação. Singer também considera a terra urbana como uma mercadoria “sui generis”, cujo acesso pode ser obtido pela compra de um direito de propriedade. A “valorização” desta 14

Sobre as necessidades de produção e uso de moradias neste período, veja – Bonduki, Nabil -1982; Kowarick, Lúcio e Ant, Clara, 1982; Blay, Eva Altmam, 1985; Rodrigues, A. M. e Seabra, Manoel, 1986. Veja-se também no capítulo 2 deste trabalho, as questões sobre a Reforma Urbana na Constituinte e a “aliança” entre proprietários de terras urbanos e rurais.

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mercadoria não ocorre de imediato. Na maior parte das vezes, a propriedade urbana é dotada de certas “benfeitorias”, ou seja, é desmatada, arruada e, às vezes, construída, o que dá a impressão que seu “valor” resulta das inversões feitas nessas benfeitorias. Porém, basta lembrar que imóveis com as mesmas benfeitorias podem ter preços muito diferentes dependendo da sua localização, para considerar que esta “valorização” não decorre desta produção. Considerando estas questões, a Lei sobre a Venta Forzosa de los Solares Yermos (Cuba – abril de 1959) explicita que o alto preço da terra urbana e suburbana constitui o mais alto obstáculo para o desenvolvimento dos planos de construção de habitação. O objetivo desta lei foi eliminar a especulação proveniente da venda de terrenos vazios, regulando o valor do terreno sobre a base do custo do trabalho investido em sua urbanização (Peña, Alquimira, 1982). Desse modo define-se um preço que tem como base o valor trabalho. Mas os setores conservadores temem exatamente que a terra deixe de ser uma forma de apropriação de renda/lucros gerada pela sociedade e investem na defesa da casa própria (como valor-de-uso) como se fosse este o aspecto fundamental da propriedade capitalista. O que define o preço da terra? O preço da terra não é definido pelo trabalho produtivo realizado na terra nua. Discutir o preço original da terra é analisar como diz Topalov:

É necessário considerar que o solo é permanente e que o tempo de vida das mercadorias edificadas sobre ele é muitas vezes considerável. Com o passar do tempo a terra não diminui o seu preço, pelo contrario, sue preço é sempre maior. É, sem dúvida, uma especificidade ser uma mercadoria que não envelhece, que não acaba. Claro que em limites extremos esta afirmação pode ser contestada, pois um terreno alagado perde seu uso como moradia (portanto “acaba”, ou melhor, perde seu valor-de-uso para moradia e consequentemente altera o de troca). Mas a terra é entendida como uma fonte segura de renda; sempre se terá garantido ao investir dinheiro numa terra, que este retornará, no mínimo, no mesmo valor investido. Não é o que acontece com todas as outras mercadorias, por exemplo, 65

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“... o preço de um bem sem valor.” O que é um preço?: “...é ponto de equilíbrio instantâneo entre uma lei de oferta e uma lei de procura, se estabelece graças à mediação do dinheiro, uma relação de troca entre um produto qualquer e o resto dos produtos. O terreno, como os outros bens, tem um preço e se troca por dinheiro. Entretanto, o preço do terreno é um fenômeno especifico, diferente de outras mercadorias, especialmente das mercadorias reproduzíveis graças à máquina econômica, pela própria produção.” (Topalov, 1978, pg. 163)

um automóvel mesmo que seu preço seja redefinido pela produção de novas unidades: o uso provocará uma queda no preço. E, em casos extremos, acidentes podem destruir de uma única vez todo o dinheiro investido. Esta permanência do solo, mesmo quando as edificações se deterioram, é uma característica importante, a tal ponto que é possível comprar-se um terreno com edificação e destruí-la, pois é, muitas vezes, um terreno caro sobre uma edificação barata, - pagou-se pelo terreno que nunca se estraga. Considera-se também que: a “especificidade” desta mercadoria está em que o preço do terreno é estabelecido num mercado de concorrência imperfeita. O mercado não é transparente, ou seja, os agentes que atuam na compra e na venda não têm conhecimento do conjunto de ofertas e demanda, porque há indivíduos que fazem particularmente a transação. Desse modo, argumentam, não seria possível estabelecer um preço resultado de uma concorrência. Este argumento estabelece que o preço é definido pelo mercado. Mas, para contestar, bastaria citar que em todas as outras mercadorias, pelo menos após a primeira venda (mercadorias usadas), ou produtos com grande variedade de produtores, o mercado também desconhece toda a produção, no entanto, têm um preço definido pela sua produção e por uma oferta de produtos produzidos e reproduzíveis. Os terrenos não se transportam. A terra é uma mercadoria fixa, que lhe dá uma outra especificidade, não é uma mercadoria que circula. O que circula é um título de propriedade, é um papel, que garante o direito de propriedade em uso ou não. Há outras mercadorias em que também circula o título de propriedade, mas para o terreno/casa, só circula o título. E aí entram aspectos importantes na discussão dos processos de reintegração de posse, contra favelados e ocupantes. Utiliza-se mecanismos jurídicos de garantia da propriedade que se

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denominam Reintegração de Posse. Este instrumento jurídico garante a propriedade e não a posse. É utilizado para desocupar áreas por aqueles que detêm a posse. Quem detém a propriedade, o título e não a posse, é que será reintegrado na posse. Voltaremos a esta questão. Os terrenos têm localização fixa, o que confere privilégios de monopólio a quem tem o direito de determinar o uso nessa localização (Harvey, op. cit.). Mas, quem tem o privilégio de um ganho elevado, tem também o privilégio de uso. Ou seja, há privilégios na definição de uso, mas também os há no próprio uso, já definido. É o consumo do lugar no dizer de Lefebvre. De modo geral, não há dois terrenos que tenham exatamente a mesma localização. Embora possam ser muito parecidos e vizinhos, a própria definição de vizinhança será diferente. Não há possibilidade de substituí-lo por outros, ou seja, “cliente não satisfeito” não

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troca por outra mercadoria igual, dizem os corretores de imóveis, tentando mostrar a localização privilegiada aos seus possíveis compradores e os inconvenientes da localização aos possíveis vendedores. Mas este aspecto é importante. A análise dos privilégios do monopólio na apropriação da renda será discutida no próximo item. Com diz Harvey: “O solo e as benfeitorias são mercadorias indispensáveis. Não posso existir sem ocupar espaço, não posso existir sem um tipo qualquer que seja de moradia.” (Harvey, op. cit., 135)

Esta necessidade tem que ser analisada do ponto de vista fisiológico e do ponto de vista social. E aí verificamos que a especificidade também está relacionada com o fato da nãofracionalidade da moradia. Não é possível viver sem ocupar espaço, não é possível morar um dia e outro não (Rodrigues, A. M., 1988). Diz ainda Harvey: “O solo e as benfeitorias mudam de mãos relativamente com pouca freqüência, mesmo que estejam constantemente em uso, como em certos tipos de realização de negócios, no planejamento de muitas facilidades públicas e setores estáveis do mercado de moradias com ocupantes proprietários. Já no setor do aluguel do mercado de moradias, assumem a forma de mercadoria com muito mais freqüência.” (Harvey, op.cit., p.135)

esta mercadoria não perde valor, sendo usada ou não. Não fica depreciada, é permanente. Tem sido uma das formas mais freqüentes de acumular riqueza: “É claro que não é atributo exclusivo, porém o solo e as construções, têm sido historicamente, o repositório mais simples e importante de receber bens de herança.” (Harvey, ibid., p. 136). Para a classe trabalhadora tem sido uma forma de tentar garantir uma vida mais tranqüila na velhice e que se constitui um longo período de poupança e sacrifícios. Como seu preço é elevado se entende porque mudam de mãos com pouca freqüência15. Como observa Topalov, em geral abordam-se aspectos importantes da terra urbana, mas que não tocam o essencial, ou seja, que esta mercadoria tem um preço, mas é uma mercadoria sem valor. Embora o capital monopolista possa comercializar mercadorias abaixo do valor de produção para eliminar concorrências, ou mesmo para lançar novos produtos de mercado, fazendo um fluxo de um para outro ramos ou circuito de capital, as mercadorias têm 15

No essencial, nessa análise, foram utilizados argumentos de Harvey, ampliados por questões que achamos relevantes.

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Este aspecto assume maior importância quando agregado ao fato, já indicado, de que

um preço cujo valor é determinado pela produção. O preço da produção corresponde ao tempo de trabalho socialmente necessário para sua reprodução. No caso da terra urbana, essa regulação não é determinada pelo valor da produção, e o preço não é determinado pelo tempo de trabalho necessário, pois a mercadoria terra não se reproduz, pois a terra: “...tem um preço, mas não tem valor, porque não é um produto de trabalho privado, controlado pelo capital, não tem custo de produção privado.” (Topalov, op. cit., p.164)

A terra urbana não é reproduzível. Cada lugar é único e pode ter vários usos, mas não se pode criar um novo pedaço de terra. Singer argumenta que os preços no mercado imobiliário tendem a ser determinados pelo que a demanda estiver disposta a pagar, já que os preços não estão relacionados à produção. Tanto Singer como Topalov consideram como importantes, para contestar a questão da definição por um mercado de compra e venda, o fato de que novos terrenos colocados à venda para a produção de casas ou mesmo novas casas não fazem baixar os preços. Isto significa que aumentar a oferta não tem sido suficiente para diminuir os preços, pois estes não estão regulados pelo preço de produção. Assim, o que determina o preço da terra é a propriedade monopolística desta terra e a capacidade de pagar dos compradores. De modo geral, esta mercadoria “sui generis” tem seu preço determinado não pela produção, mas pela taxa média de lucro de aplicação dos capitais. O trabalhador, ao adquirir um terreno para construir uma casa, ou uma casa pronta, estará assim remunerando ao capital, no preço da terra, a taxa média de lucro do capital em geral. A remuneração do capital empregado na aquisição estará garantida e embutida na mercadoria terra urbana. A terra

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urbana, espécie de mercadoria, tem um preço que aparece como ditado pelo mercado, quando originalmente foi definido como monopólio de propriedade e posteriormente é constantemente redefinido pela produção social da cidade. Não é o que acontece com todas as mercadorias do modo de produção capitalista? O preço das mercadorias aparece ditado pelo mercado, quando o é essencialmente na produção. O que é determinado pela competição é o lucro. No caso da mercadoria terra não há preço de produção da terra nua, o preço é redefinido pela produção social da cidade, porém aparece como se fosse definido pelo mercado. Mas o que é definido pelo mercado é a renda. Nas afirmações dos moradores que

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buscam compra casa/terreno ou alugar um imóvel fica evidente que o mercado aparece como o determinante do preço: “Não posso pagar o que eles querem; tão pedindo um absurdo nos aluguéis.” (depoimentos)

Ao considerar como o cativeiro da razão é no século XIX entendido no mundo social, S. P. Rouanet detém-se na análise crítica de Marx sobre as ilusões da consciência. Para tanto, enfatiza em alguns aspectos o fetiche da mercadoria, colocando que: “Não é apenas o tempo de trabalho não-remunerado que é removido da consciência, mas a categoria geral do tempo de trabalho como fator determinante do excedente. A competição pela qual as mercadorias são vendidas a níveis que não correspondem necessariamente ao valor gerado na esfera da produção, reforça a tendência a ignorar o papel do trabalho e a sobreestimar o papel do mercado na determinação do excedente.” (Rouanet, 1987b, p.98)

No caso da mercadoria terra urbana é ainda mais fácil esta tendência a ignorar o papel do trabalho, por ser trabalho social e porque é “um bem que se valoriza” pelos mecanismos do

“O capital em seu funcionamento real, apresenta-se de fato sob este aspecto, e parece produzir juros, não como capital em funcionamento, mas como capital em si, como capital dinheiro.” (Marx, in Rouanet, ibidem, p. 98)

É o que ocorre com os que colocam dinheiro na “poupança” e obtêm dele uma remuneração que é o juro do dinheiro em funcionamento, mas que parece ser proveniente do dinheiro em si. E assim: “A renda da terra é a forma aparente na qual se manifesta o fato de que parte da mais valia total produzida é transferida para os proprietários. Simples fração da massa total da mais valia, extorquida dos capitalistas pelos proprietários. A propriedade fundiária não tem absolutamente nada que ver com o processo efetivo da produção... A mistificação, aqui, é maior porque o industrial pode justificar seu lucro alegando o esforço feito na mobilização dos fatores de produção, e o capitalista financeiro alegando o risco assumido ao emprestar seu capital, ao passo que o proprietário, sendo manifestadamente inútil, não pode usar racionalizações plausíveis possíveis. Em conseqüência, é a própria terra que parece gerar valor...Com a renda da terra o processo de fetichização chega ao seu clímax.” (Rouanet, idem, p.98)

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mercado. O fetiche transparece claramente, da mesma forma que os juros, pois:

A terra aparece como uma fonte misteriosa e autogeradora de renda. É muito comum a frase: “Tenho um terreno que estou deixando „valorizar‟” ou um grande proprietário de terra dizer: “Estou deixando esta terra de herança para o meu filho. Estava aqui guardada, valorizando, vocês querem me tirar” (pesquisa de campo). Parece que a terra germina, come se fosse uma semente. Continuando sua análise, diz Rouanet: “Com a renda fundiária, conclui-se o exame das formas aparentes em que se projetam e anulam as formas essenciais do modo de produção capitalista. Salário, lucro, juros e renda constituem rendimentos distribuídos ao trabalhador, ao capitalista e ao proprietário, não na imaginação dos agentes, mas na realidade. Ilusória, apenas, é a suposição de que esses rendimentos constituem a remuneração pela participação de cada um deles, em partes iguais, na criação do produto e do valor... Na consciência espontânea dos agentes, entretanto, e na análise dos economistas vulgares, essa realidade é transposta de forma aparente – a forma trinitária – pela qual o trabalho, o capital e a terra participam do processo de criação do valor, recebendo em troca, sob forma de salário, lucros (juros) e renda a remuneração correspondente...” (Rouanet, p.99 a101, ao analisar Marx)

De modo geral, este fetiche da mercadoria terra foi incorporado também como se ao ser proprietário de uma casa onde se mora mudasse a qualidade de trabalhador para capitalista. Uma mercadoria fetichizada, ainda mais, pelo fato de não ser produzida pelo trabalho na própria mercadoria, mas pelo trabalho social. O alicerce do capitalismo, a propriedade dos meios de produção, passou para a mercadoria terra e casa para morar, como se fosse também o mesmo alicerce.

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2.4. Renda da Terra – Absoluta de Diferencial Em síntese, a terra e as edificações sobre ela tem na aparência um preço determinado pelo mercado. Na essência o preço é determinado pela produção social da existência. Ser proprietário de um pedaço de terra permite, pelo menos em princípio, apropriar-se de uma renda. Devo ressaltar, como já dito anteriormente, que o fato de ser proprietário de uma casa para morar – uma mercadoria – não implica em ser capitalista e nem necessariamente em ser defensor da ordem capitalista. No entanto, permite apropriar-se de uma renda.

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O problema teórico da renda da terra urbana é extremamente difícil. Henri Lefebvre diz que: “A teoria marxista da propriedade do solo capitalista não está completa. Como e por que uma classe de proprietários de bens imobiliários se perpetua no capitalismo onde predomina acentuadamente a propriedade capitalista mobiliária (do dinheiro e do capital)? Qual é a origem da renda da terra? Que implica esta? Neste problema estão englobados os problemas da agricultura, da pecuária, das minas, das águas e, bem entendido, das áreas edificadas da cidade.” (Lefebvre, 1972, p. 129)

É necessário muito caminhar para entender a questão da propriedade do solo no capitalismo. Sem entrar profundamente na questão, utilizo a definição de renda absoluta como o tributo que é pago ao proprietário fundiário para que se use a terra – aluguel – ou então se compre o direito de monopólio – venda e compra; e de renda diferencial, como a renda de sobrelucro que provém das vantagens de terrenos melhor localizados.16 Nos limites deste trabalho, a questão que se torna mais evidente é que a terra que tem seu preço definido não pelo valor da produção em si, mas pela produção social, é apropriada individualmente. Em que pese o preço original da terra ter sido a maneira de se impedir o acesso do trabalhador a esta terra, este mesmo trabalhador é incentivado a ser proprietário do pedaço de terra onde se terrenos ficam imobilizadas por longo período de tempo? Esta é também uma contradição do capitalismo: cativa-se a terra, permite-se que poucos tenham acesso, mas incentiva-se teoricamente que todos tentem obter a casa própria. Mas a obtenção da casa própria, ou melhor, as edificações sobre o solo e o próprio solo ficam “imobilizados” por longos períodos de tempo, ficando fora do circuito do capital. A forma de circulação passa a ser principalmente a da produção da cidade, dos insumos para construção, melhoria e utensílios para a casa própria e equipamentos de consumo coletivo que permitem que esta mercadoria “imobilizada” aumente de preço (continue a se “valorizar”). Como diz Marx: “A propriedade fundiária não produção. Seu papel se limita a para o do proprietário... É por pervertido, invertido, em que

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tem absolutamente nada que ver com o preço afetivo da transferir parte da mais valia produzida, dos bolsos do capital isso que a ordem social capitalista é um mundo encantado e Monsieur le Capital e Madame la Terre dançam sua roda

Veja-se: Maricato, E. e Lipietz, A., entre outros.

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Na procura do lugar o encontro da identidade

edifica a moradia. Como compreender este incentivo quando as edificações sobre estes

fantasmagórica como personagens sociais e ao mesmo tempo como meras coisas.” (in Rouanet, ib., p.99)

A renda da terra é a parte do valor que se destina ao proprietário. No caso da terra urbana, como suporte de atividade e não como meio de produção, a renda constitui-se num tributo que se paga ao proprietário da terra e que resulta do monopólio da terra por uma classe ou fração de classe. Este tributo pago ao proprietário da terra constitui-se na renda absoluta. Ser proprietário permite usufruir de uma renda, não importando, em primeiro momento, a localização desta propriedade. Cabe uma indagação: a renda da terra em sua forma absoluta, também está contida no preço do feijão, e, no entanto, é possível – teoricamente – ao trabalhador comprar o feijão e não a terra/habitação. Um aspecto importante refere-se à característica da terra/habitação, cujo preço é elevado e que deve ser pago num momento de tempo, mas cujo uso dar-se-á por longos períodos de tempo, na maioria das vezes superior ao tempo de vida de um indivíduo. O feijão pode ser comprado em parcelas diárias, tem seu preço definido pelo valor da produção; é uma típica mercadoria do modo de produção capitalista. Explica Regina B. Santos: “A renda fundiária urbana não é um tributo anual como a renda agrícola, a qual é extraída toda vez que se vende o produto. A venda do imóvel urbano pode ser considerada uma transação definitiva ou válida por um espaço de tempo muito longo.” (Santos, R. Bega, 1982, p.118)

Além disso, há que se acrescentar à análise proposta por Lefebvre, da “imobilização” do capital no solo e na terra, pagando-se de uma só vez toda a renda produzida socialmente.

Arlete Moysés Rodrigues

No caso dos aluguéis, em que a renda é paga fracionadamente, poderiam ser acessíveis ao trabalhador, dependendo principalmente dos salários e da localização no espaço urbano. Mas, é bom relembrar que apenas teoricamente é calculada no salário as necessidades de sobrevivência, entre as quais a moradia, como já analisado no item 2.1 deste capítulo. Relativamente à questão da localização no espaço urbano, é bom destacar alguns aspectos, embora sucintamente, da renda diferencial. Já vimos que a renda é parte do valor de troca que se destina ao proprietário, cujo montante não é igual em todos os terrenos e em todas as edificações. As diferenças de preço decorrem de uma produção social de existência. Esta renda-diferencial surge num espaço

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relativo, no contexto da instituição da propriedade privada, e na operação do modo capitalista, na produção da cidade. As diferenças de preço que darão, portanto, rendas diferentes são tanto de ordem natural como sócio-econômicas: facilidades ou dificuldades para um determinado acesso com um determinado uso, existência de equipamentos, de edificações para usos definidos, as condições técnicas para domínio desta natureza e, enfim, as características da distribuição da população (em classes sociais e no espaço) da produção e do consumo. Estas diferenças de preço definem-se, na atividade individual e na produção social. Por que fazer esta distinção entre atividade individual e social? Quando um indivíduo constrói sua casa está contribuindo para a produção da cidade, no entanto, isto é considerado apenas uma atividade pessoal. É comum ouvir-se que o indivíduo está trabalhando para aumentar seu pecúlio, valorizar sua propriedade, mas não há um entendimento sobre esta participação na produção social. No máximo compreende-se a interferência na vizinhança imediata. Isto porque, como já observado, parece que a renda surge da terra ou da natureza, assim como salários, lucros/juros e renda parecem ser a remuneração pela participação de cada um deles em partes iguais na criação do produto e do valor. Assim, quando de várias maneiras se constrói, promovendo-se a manutenção de uma casa, não se tem idéia de que este trabalho está contribuindo para aumentar a riqueza social e que é o Estado – ser acima de tudo – que, com sua atividade de produção e gestão dos equipamentos valoriza a cidade, ou então os loteamentos de alto padrão, como saídos do nada. É a terra “valorizando-se” como coisa em si. Ou, então, mudou o preço, acredita-se, porque há ao lado uma escola, uma favela ou uma mansão ou um conjunto habitacional de alto padrão, etc. As diferenças de preço têm contido um trabalho individual e social. Individual, pois ao produzir sua casa, reformá-la, contribui-se para a produção social, sendo esta produção incorporada à produção da cidade. É social, pois é com os recursos advindos da arrecadação de impostos e tributos que o Estado produz a infra-estrutura e os equipamentos de consumo coletivos, que serão também apropriados individual e socialmente. A renda diferencial, como a absoluta, é difícil de ser mensurada, visto que, o solo e suas benfeitorias não se deslocam, têm uma localização fixa no espaço, que confere privilégios de monopólio a quem tem o direito de determinar o uso nessa localização. A explicitação destas

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Na procura do lugar o encontro da identidade

consequentemente aumentar o preço da terra e das edificações. Tem-se apenas a impressão de

questões poderia indicar se há uma classe de proprietários, entendidos como tal, que deixem mais evidente a dificuldade de avanço de uma reforma urbana.17 Um primeiro ponto a analisar refere-se a incorporação às áreas urbanas de glebas que antes tinham uso agrícola. Diz Singer que o custo desta incorporação é equivalente à renda (agrícola) da terra que se deixa de auferir. Mas que não há uma relação necessária entre este: “...custo e o preço corrente no mercado imobiliário. Claro que este custo quer dizer o preço pago pelo novo proprietário, mesmo porque a „valorização‟ da gleba é antecipada em função de mudanças na estrutura urbana que ainda estão por acontecer.” (Singer, 1979, p.23)

O processo de expansão das cidades não ocorre necessariamente num “continuum” urbano; em gera há grandes extensões de glebas vazias, mesmo assim o perímetro urbano amplia-se. A expansão do perímetro urbano, no caso brasileiro, deve ser aprovada nas câmaras municipais de cada Município. Este princípio deveria garantir que a incorporação de novas glebas ocorresse num continuum, o que possibilitaria, pelo menos em teoria, a expansão das redes de serviços a cargo do poder público a preços mais baixos. No entanto, como o poder municipal não legisla e não arrecada impostos sobre áreas rurais, é comum utilizar-se o artifício para aumentar a arrecadação – de ampliar-se o perímetro urbano, embora grandes extensões de terras permaneçam vazias (Rodrigues, A. M., 1986). Além do fato de que os grandes proprietários de terras também têm nas câmaras municipais, representantes que se esforçam por aprovar esta expansão do perímetro urbano. No „custo‟ está, muitas vezes, incluído todo o processo de tramitação desta mudança. Procurando limitar esta forma de expansão da cidade, as propostas de reforma urbana prevêem mecanismos que tentam coibir abusos. 18 Porém, até

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agora, quem determina este preço é o proprietário ou o incorporador imobiliário. Na França, buscando limitar-se uma expansão desenfreada e facilitar a expansão dos serviços públicos, em 1985, a Lei de Amennagement Differé estabeleceu que o preço de venda das áreas que ficam no limite entre a zona rural e urbana deve ser o preço da terra agrícola. Mas já é possível observar que, desde a definição do uso rural-urbano, a localização será um componente da renda diferencial. Há ainda que se considerar que o solo urbano comporta diferentes usos: o industrial, o residencial, o comercial, o institucional, equipados ou não com os meios de consumo coletivo, 17 18

Veja-se alguns aspectos sobre esta questão no item 3.5 deste trabalho. Projeto de lei 775/83 e Proposta de Reforma Urbana da Iniciativa Popular na Constituinte.

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que fazem com que a procura por espaço na cidade seja realizada por empresas, por indivíduos, por organismos estatais. Em cada um dos usos está contida a procura de determinadas localizações, que se referem à acessibilidade, ao uso de equipamentos, à proximidade ou troca de mercadorias, etc. Busca-se a utilização dos efeitos úteis da aglomeração. As diferenças de preço dependentes da localização levaram Paul Singer a analisar a renda diferencial da terra urbana na sua relação com a localização das empresas, considerando a possibilidade de rotação de estoques e a margem de lucro daí decorrente. Esta análise deixa explícita a renda diferencial obtida em relação as empresas – industriais ou comerciais – e não a comercialização do próprio solo urbano. Mas, é preciso considerar também que a maior parte do espaço urbano é utilizada para fins habitacionais e que, nestes casos, o que se leva em conta na determinação do valor dos aluguéis, da compra e venda de imóveis, é o conjunto da cidade e da vizinhança e não, evidentemente, a circulação de estoques das empresas. É preciso também considerar a questão da renda de monopólio. Harvey distingue adequadamente a renda de monopólio propriamente dita, operando ao nível individual – um proprietário em particular tem algo que alguém particularmente deseja –, da renda absoluta que decorre das condições gerais de produção em algum setor, mas ligada ao monopólio de classe renda de monopólio, o monopólio esta presente, mas com significado diferente. A renda diferencial surge em um espaço relativo no contexto da instituição da propriedade privada – do monopólio de classe da propriedade e na operação do modo de produção capitalista. Na procura de solo urbano para moradia, também há lugares considerados privilegiados, determinados principalmente pelo maior ou menor acesso aos serviços urbanos, como transporte, escolas, rede de água e esgoto, comércio, telefone, etc., além da hoje já conhecida busca de “ar puro”, do “ambiente saudável”, da “segurança” e das características das casas do conjunto do bairro ou mesmo da rua ou até do conjunto habitacional. Singer e Fernandez consideram que há uma diferença entre a renda diferencial para habitação e para as empresas – produção/comércio/serviços – dizendo que, no segundo caso, a renda diferencial é paga pelas empresas tendo em vista o superlucro que cada localização específica lhes proporciona e, no primeiro, pelos indivíduos, que dependem de sua quantidade, da repartição da renda pessoal e das necessidades míticas que promoção imobiliária cria (Singer, op. cit, 18? e Fernandez, N.). 75

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que afeta a condição de todos os possuidores de propriedade de terra. Na renda absoluta ou na

Surge uma questão: a renda das empresas e dos indivíduos é paga a quem e por quem? E se a propriedade da empresa coincidir com a da terra? É preciso esclarecer quem recebe a renda, para detectar se há ou não uma classe de proprietários de terras urbanas, que expliquem alianças dos proprietários rurais com urbanos, pois, em última análise, a renda produzida socialmente fica com o proprietário da terra. O solo e as benfeitorias, como diz Harvey, no caso da habitação, têm usos diferentes que não são mutuamente exclusivos: abrigo, quantidade de espaço para seus ocupantes, privacidade, localização relativa em relação a lugares de trabalho, de compras, de poluição, congestionamentos, status, etc.; meio pra aumentar a riqueza e também como meio de obter uma “poupança” para a velhice. Todos esses usos, conjuntamente constituem o valor de uso para seus ocupantes ou possuidores, que não é o mesmo para todas as pessoas em residências comparáveis, nem é, no tempo, constante para a mesma pessoa na mesma moradia (Harvey, op.cit.). Assim, os valores de uso têm uma grande variedade de um indivíduo para outro, no que se refere à habitação em sentido amplo ou à cidade. A possibilidade de apropriar-se destes valores de uso confere privilégios de localização a quem pode pagar por um uso escolhido. Mas, na cidade capitalista, a maior parte dos moradores não tem “direito” de apropriarse dos seus valores de usos, e vive em arremedos de cidade, sujas, com ruas esburacadas, pagando um preço mais elevado pelos produtos que consome, sem direito a um mínimo de “modernidade” tão apregoada nos meios de comunicação. Basta ir até a “periferia” para verificar que os produtos têm qualidade inferior e custam muito mais caro.19 Não podem ter “direitos”, já que foi definido que não “deveriam” ter acesso à propriedade e que seu salário

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deveria apenas ser “suficiente” para a sua sobrevivência imediata. Não podem, porque a cidade é produzida socialmente, mas a renda é apropriada individualmente. Mais do que justo e legítimo, a luta pelo acesso à casa própria é uma forma de resistência e de vencer um obstáculo imposto pelo capital. A luta por alugueis “justos” também perpetua a propriedade e a apropriação privada da produção social sem sequer poder usufruir, por um mínimo que seja desta produção. A não ser que a luta fosse pela apropriação coletiva ou pública do solo, como proposto por Harvey e citado logo acima. Como não há uma classe de capitalistas – pelo menos conhecida – proprietária do solo urbano, tenta-se transformar o 19

O termo periferia é usado para designar os limites, as franjas da cidade. Indica não apenas a distancia, mas a carência de serviços públicos. Substitui o antigo termo “subúrbio” e tem a sua origem na expansão das cidades e no binômio loteamentos irregulares-autoconstrução. Vide Caldeira, T., 1984.

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proprietário de uma casa em um defensor da ordem, utilizando-se de argumentos que colocam a casa própria como resultado da ordem capitalista e que a mudança desta ordem retirará a garantia de morar. Como se incentiva a casa própria, como o processo para obtê-la é longo e penoso, compreende-se porque os conservadores querem que o proprietário da casa seja aliado da ordem. Os setores progressistas devem reavaliar esta questão.

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2.5. A Produção da Cidade – Individual e Social As diferenças de preço da terra para moradia pressupõem uma produção da cidade, que é necessário analisar. Diz Topalov: “A urbanização capitalista é antes de tudo uma multitude de processos privados de apropriação do espaço urbano. E cada um deles está determinado pelas próprias regras de valorização de cada capital em particular, de cada fração do capital. Em conseqüência a reprodução mesma dessas condições gerais, urbanas (socialização das forças produtivas), da produção capitalista se transforma em problema. Daí a contradição é fundamentalmente expressa no espaço deste modo de produção.” (Topalov, op.cit., p.20)

Esta multiplicidade de processos privados de apropriação do espaço urbano capitalista, determinados pela propriedade privada da terra, são analisados por vários autores, demonstrando as formas como se dá no circuito imobiliário urbano esta produção, tentando compreender a lógica do capital na produção do espaço urbano e da miséria humana.20 Neste trabalho, serão feitas apenas observações sobre esta produção que levem a compreender algumas formas de segregação espacial urbana, em relação à moradia, buscando verificar como os diversos agentes interagem entre si num processo conflitante e muitas vezes contraditório e como este processo é cada vez mais mediatizado pelo Estado. Nesta produção está inicialmente a questão da propriedade da terra. Como já dito, para uns é priorizado o valor-de-uso da propriedade, para outros o valor-de-troca. Os que têm na propriedade o objetivo do valor-de-troca, podem agir de varias maneiras. Deixam a terra vazia,

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sem uso, aguardando que a produção da cidade faça com que sua terra tenha um preço maior. Estes produzem também um espaço, na medida em que a produção da cidade implica na existência de glebas vazias. É o caso de São Paulo, onde dos 70.000 ha. de área urbanizada, cerca de 24.000 estão desocupados, representando cerca de 40% da área da cidade (Seabra, M. e Rodrigues, A. M., 1986). Poder-se ia argumentar que quem deixa a terra vazia, sem uso, não está produzindo a cidade, mas a simples estatística acima mostra contrario, pois a cidade comporta os espaços

20

Veja-se, entre outros, Harvey, D.; Castels, M.; Topalov, C.; Maricato, E.; Odette, C.L.; Seabra (já citados).

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vazios, cuja incorporação como espaço construído permitirá a obtenção de maiores rendas aos que detém a propriedade. É também freqüente o argumento de que a chamada especulação imobiliária deixa propositadamente glebas inteiras vazias para “valorizar”, neste caso, sem dúvida, já fica evidente que produzem a cidade. Como não existem pesquisas para saber se as glebas vazias são dos mesmos proprietários das glebas vizinhas já loteadas, é de supor-se que, não sendo os mesmos, alguns proprietários apropriam-se de rendas geradas por outros. Não há, assim, uma “orquestração perfeita” dos proprietários de terra urbana (Rodrigues, A. M., 1988). Mesmo porque, não há nas cidades uma classe de capitalistas proprietários de terras. Não há, também, instrumentos legais que obriguem o proprietário a ocupar as glebas de terras contíguas ou os lotes vagos, embora, desde a primeira Constituição se fale no Brasil de função social da propriedade. Buscando impor limites ao direito abusivo do uso, ou melhor, do não uso das terras, o Projeto de Lei 775/83 propõe que o município tenha o direito de obrigar o proprietário da terra a loteá-la ou utilizá-la, caso contrário poderá proceder à desapropriação. Este projeto tramita desde 1983, o que demonstra as forças que tentam impedi-lo de ser aprovado. Ao deixar a terra vazia, no momento de utilizá-la (seja vendendo, seja construindo) seu preço terHá ainda, entre os têm a terra como um objeto de troca, os que vão construir sobre ela. Constituem-se no circuito imobiliário urbano, onde estão na maioria das vezes representados os proprietários de terras, a promoção imobiliária, a indústria de construção e o financiamento imobiliário. Neste circuito, a terra, como objeto de troca, será parcelada e vendida aos pedaços (os lotes ou terreno) com ou sem edificações (as casas e os apartamentos). Se é o proprietário das terras que faz o loteamento, obtém renda e lucro, pois há trabalho incorporado ao próprio terreno/lote, seja através do loteamento, desmatamentos, abertura de ruas, terraplanagens, etc., seja através da edificação. A venda destes lotes/terrenos ocorre num momento do tempo, embora para o comprador possa significar uma “poupança” por longos períodos. Mas, dado o preço elevado, o mais comum é o pagamento a ser realizado em parcelas. Sendo assim, as instituições financeiras desempenham papel importante no mercado de moradia. Adiciona-se então aos custos, os lucros, a renda e os juros e ter-se-á uma mercadoria de preço elevado. No caso dos aluguéis, computam-se também a renda, os lucros e os juros, porém o pagamento dar-se-á em 79

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se-á elevado e muito – graças à produção da cidade como um todo.

parcelas mensais. Mantém-se a propriedade e a “valorização” e o investimento é recebido em parcelas. No caso dos aluguéis, paga-se de modo fracionado, em parcelas mensais, pelo uso da propriedade. O cálculo do aluguel mensal é baseado não no custo da produção, mas no preço de mercado – de um bem eu ser valoriza também sem trabalho. A edificação corresponde ao processo de trabalho, portanto é uma mercadoria do modo-de-produção. Como todas as mercadorias, com o passar do tempo, sobre um „desgaste natural‟ e deveria diminuir de preço, pois se considera que o capital utilizado já foi “amortizado”. No entanto, como a casa está localizada na cidade, cujos terrenos aumentam de preço pela produção social desta cidade, seu preço é também crescente. Assim, ganha a especificidade de sofrer um aumento de preço constante, muito embora os materiais de construção possam ser até considerados inutilizados. Desse modo, os aluguéis que representam o uso do imóvel são calculados não pelo valor-deprodução em si, mas pela localização na cidade, pelo preço da terra e pela “valorização” futura. Portanto, o preço dos aluguéis chega a ser totalmente independente das condições de produção da casa (Rodrigues, A. M., 1988). As formas de proceder o parcelamento do solo e as edificações são muito variadas. Compreendem empreendimentos individuais ou associados, contratação de empresas que projetam e acompanham toda a execução, empreiteiras, sub-empreiteiras, financiamentos bancários, etc. já que há uma multitude de processos privados de apropriação e produção do espaço urbano. Topalov sugere que uma forma simples de estudar a formação dos preços dos terrenos urbanos já loteados, seria de fazer um calculo, levando-se em conta o programa de aproveitamento do terreno, dos gastos com a construção e com a urbanização, e dessa forma

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ter-se-ia também o cálculo do lucro. Diz Azevedo: “Simplificamente, para o incorporador o lucro mínimo aceitável seria o mesmo obtido pelo capital de promoção do próprio aplicado a taxas médias de juros no mercado financeiro, pelo mesmo período de imobilização (lucro médio do capital de promoção). Assim, deduzido esse lucro médio do capital de promoção do lucro interno de operação, o restante será motivo de disputa entre o incorporador e o proprietário do solo.” (Azevedo Sérgio, 1982, p.77)21

21

Veja-se Topalov, op.cit, que analisa o ciclo do capital no setor imobiliário, Ermínia Maricato, op.cit., que analisa as indústrias de Construção-edificação, Odette, C.L. Seabra, op.cit. que mostra como se dá a definição do preço das edificações na orla marítima.

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Neste processo de produção da cidade é preciso levar em conta os incorporadores imobiliários e a indústria de construção que estão envolvidos no processo de produção de criação de valores-de-uso para outros (visando o valor-de-troca). O processo de parcelamento compreende também diversidade em relação ao “tipo” e ao lugar onde se inserem: (a) os loteamentos de “alto padrão” com lotes individuais para a construção de “grandes casarões”, em áreas distantes ou em áreas vazias da cidade. Nas áreas distantes, projeta-se um espaço que definirá o uso futuro; já nos espaços vazios, no interior do espaço construído, que é resultado de uma ocupação já realizada, tem-se a apropriação de um quadro já construído. De um modo geral, tanto em um, como no outro caso, as edificações são realizadas pelos futuros moradores, garantindo a individualidade de escolha e projeção de como morar. Processo semelhante ocorre com os apartamentos de “luxo” e casas já construídas com “segurança, conforto, equipamentos comerciais, vizinhos da mesma classe de renda, jardins, ar puro”, etc. O lugar da edificação também pode ser em áreas vazias ocupadas ou em áreas no limite da cidade, que também marcará diferenças na apropriação do espaço, já edificado ou a edificar. No caso dos apartamentos, a venda/compra dá-se quando o edifício está pronto, ou quase pronto (mas sempre se pode dar um retoque no acabamento) ou então se compra parte do edifício ainda no chão e se paga em parcelas a preço de “custo”. No preço de custo já está momento em que uma casa ou um apartamento termina de ser construído, a venda não se dará pelo preço, incluído juros, renda, lucro de todos os participantes, mas sim por um preço mais elevado que corresponde à “valorização” futura e que caracteriza uma apropriação da produção individual já incluída na da cidade. No caso dos loteamentos, em geral, dá-se a venda de alguns lotes a um preço x. Quando começam as primeiras construções o preço dos demais aumenta. As edificações realizadas individualmente produzem a cidade. É interessante observar que a chamada especulação imobiliária tem sido remetida apenas aos loteamentos ditos populares, mas é também um processo que ocorre cotidianamente com os loteamentos de “alto padrão”. A forma mais usual é vender alguns lotes, aguardar o início das construções e posteriormente vender os demais lotes a um preço mais elevado. E aí se vende também o “status” de pertencer a uma fração privilegiada que morará num lugar que já mostra, pelos tipos de edificações, quem serão os vizinhos.

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incluída a renda, os lucros e os juros. Fica de certo modo excluída a “valorização” futura. No

Em geral, nestes trechos (ou pedaços) de cidades, o parcelamento do solo atende às exigências da legislação, com tamanhos de lotes até superiores ao mínimo de lei. Vida de regra, nestas áreas, os loteamentos estabelecem restrições de uso do solo (recuos laterais ou frontais), e do imóvel (uso estritamente residencial). A indústria da construção provê as edificações com material de qualidade, de durabilidade comprovada, pois os compradores podem pagar. No caso dos apartamentos, compra-se uma fração ideal do solo urbano onde está edificado o prédio. Como se compra apenas uma fração ideal do terreno, o preço deveria ser mais baixo do que quem compra o lote. No entanto, isto não acontece, seja porque se venda “segurança”, “localização”; seja também porque, se afirma, o custo das construções é mais elevado22. Tais situações caracterizam a produção de lugares para os, como diz Milton Santos, “cidadãos” transformados em consumidores mais que perfeitos. Mas há os espaços produzidos para os indivíduos que são “apenas” parcialmente cidadãos, porque não são perfeitos consumidores, ou pelo menos consomem mercadorias que não dão “status” de consumidor perfeito. São os que apenas conseguem comprar lotes/terrenos nos chamados loteamentos populares. Em geral, estes loteamentos estão localizados em áreas que não têm acesso por vias asfaltadas, onde não há equipamentos de consumo coletivo nas proximidades, onde não há luz ou sobretudo água de rede, nem esgotamento sanitário e na sua maioria não obedecem às normas de parcelamento do solo (Lei 6766/79). São os arremedos de cidades. O processo de loteamento e venda é semelhante ao anterior. Vendem-se alguns lotes e quando começa a construção os demais são vendidos a um preço mais elevado. Argumentam os loteadores que se fossem seguidas as normas das leis o preço seria inacessível aos

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trabalhadores que ganham baixos salários. No entanto, logo que se começa a construir os preços sobem, tornando-se também inacessível a outros trabalhadores. É de ressaltar-se onde ficam esses loteamentos ditos populares, ou seja, as características de infra-estrutura e de equipamentos de consumo coletivo.23

22

A afirmação de que o custo nesse caso é mais elevado carece, neste trabalho, de maior fundamentação, pois pesquisando revistas especializadas em construções, só se encontram referências ao preço do metro quadrado de construção, sem especificar se edifícios, sobrados ou casas térreas. Em pesquisa complementar no setor construtivo, as informações são de que o processo construtivo é mais caro. 23 A lei 6766/79 considera comunitários os equipamentos públicos de educação, cultura, saúde, lazer e similares, e urbanos os equipamentos públicos de abastecimento de água, serviços de esgoto, energia elétrica, coletas de águas pluviais, rede telefônica e gás encanado. Para designar este conjunto, neste trabalho os termos utilizados são: equipamentos de consumo coletivo ou meios de consumo coletivo.

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Quem se “interessa” por morar nestes lugares são os que não podem morar em outros. Por pior que seja o lugar, sempre há quem, precisando morar, pague por este uso. Quem pode pagar escolherá lugares que oferecem mais “status”, mais conforto, etc. Como a maioria dos trabalhadores ganha baixos salários (vide tabela 4), constituindo-se em um amplo mercado mas que é qualitativamente restrito. Não pode pagar por diversas mercadorias do modo de produção capitalista. Não pode pagar pela casa inserida espacialmente em determinados lugares. Como o parcelamento do solo visa obter renda e lucro, ele tem que ser feito de uma tal forma que haja mercado, que possa pagar. Define-se, pela capacidade de pagar, a “qualidade” do lugar onde se mora. São poucos os que podem pagar por uma mercadoria de qualidade superior – a casa e o lugar. Se estes fossem colocados no mercado em grande quantidade poderia significar uma diminuição do preço tornando-o acessível a um maior número de pessoas; perder-se-ia, assim, a monopolização deste bem tornado escasso e caro. A produção da casa nestes loteamentos pode ser realizada por empreendimentos capitalistas, mas, via de regra, será feita pelo trabalhador e sua família – auto construção – em um processo demorado e penoso. Mas, assim que parte da casa fica pronta e começa a ser ocupada, iniciam-se processos organizativos para obter serviços necessários à moradia na forma, no chamado binômio: loteamento e autoconstrução. Mas, com o passar do tempo, este aspecto – o visível – do processo de auto-construtivo desaparece. Tem-se a aparência de casas construídas num curto período de tempo. Só quando se acompanha o processo de produção da cidade tem-se a dimensão de que, na sua grande maioria, as casas são produzidas em um longo período de tempo.24 Este processo de produção da moradia individual coletiviza-se na luta pela obtenção de água, luz, transporte, escolas, etc. Ao se unirem e buscarem as formas de obter tais equipamentos, estão também produzindo a moradia, na sua inserção na cidade, equipando-a com valores-de-uso e de troca. Estão presentes neste processo de produção da cidade todos os habitantes desta. Também produzem a cidade os favelados que cotidianamente ocupam um pedaço de terra, constroem seus barracos e no seu conjunto a favela. Os ocupantes chamados de invasores, que se organizam, encontram espaços vazios, ocupam-no com rapidez, construindo seus barracos. 24

Sobre a autoconstrução, veja-se Maricato, E., 1979.

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cidade. Cerca de 70% das unidade da área Metropolitana de São Paulo são produzidas desta

Também, individualmente construindo um barraco ou coletivamente quando se unem para reivindicar os equipamentos públicos para a favela e ocupações, estão produzindo a cidade. Mesmo quando não é possível permanecer, pois são despejados, considero que produzem a cidade (vide cap.III). Todos os agentes citados aparentemente produzem individualmente a apenas para si. Na verdade, é produção social, pois dada à própria distribuição da população em classes sociais, a divisão social e territorial do trabalho traduz-se em formas diferentes de apropriar-se deste espaço. São formas individuais, mas não independentes. Mantendo-se a terra vazia, aguardando a edificação nas vizinhanças, ou realizando-se um parcelamento do solo – obedecendo-se ou não à legislação –, edificando-se moradias – no circuito imobiliário ou fora dele – para uso próprio ou para venda, tem-se como resultado uma produção social de existência. A localização na cidade define quem mora, o lugar de cada um, dependendo do poder pagar: “Enquanto o custo da moradia de igual tamanho e tipo de acabamento é quase o mesmo em qualquer lugar de uma determinada cidade, o preço dos terrenos, a mesma metragem varia consideravelmente em função de sua localização na malha urbana.” (Azevedo, A. op.cit., p.82)

Pois a cidade tem “um valor-de-uso específico, diferente do valor-de-uso de cada uma de suas partes, é um valor-de-uso complexo que nasce do sistema espacial, da articulação no espaço de cada um dos valores de uso elementares” (Topalov, op. cit., p.21). Topalov está, nesse caso, referindo-se às condições gerais da produção e do valor-de-uso global da cidade, onde a produção da moradia está inserida. Considerando que no circuito imobiliário urbano são edificados 25% das unidades

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habitacionais das grandes cidades, podemos afirmar que o que melhor caracteriza a apropriação do espaço urbano para moradia são as unidades construídas fora deste circuito que compreendem: o binômio loteamento/autoconstrução as favelas e mais recentemente as ocupações de terras. 2.6. Os meios de consumo coletivos Como o capital não produz elementos necessários aos valores de uso do complexo urbano que não estejam diretamente vinculados às condições de sua rentabilidade, tais como a infra-estrutura e os equipamentos de consumo coletivo; como os salários pagos à maioria dos 84

trabalhadores não permitem adquirir todas as mercadorias necessárias (por mínimas que sejam) à reprodução da força-de-trabalho, será o Estado, através de todas as suas instancias, que se encarregará do financiamento, da produção e do gerenciamento, enfim, da provisão de determinados valores de uso – os meios de consumo coletivos – necessários à produção, que viabilizem a cooperação capitalista e a reprodução da força de trabalho25. A expressão “meios de consumo coletivo” será utilizada neste trabalho, do mesmo modo que Samuel Jamarillo: “...como uma séria de valores de uso, que por algumas de suas características são difíceis de serem providas pelo capital individual sendo porém indispensáveis para a acumulação do capital em geral.” (Jamarillo,Samuel – 1986, p.19)

E também produção da força-de-trabalho. Entre os consumos coletivos mais importantes, estão os serviços públicos, o sistema viário e os espaços coletivos, os serviços de saúde, de educação, de transporte, de habitação, etc. para os setores de baixos salários, pois não há para estes produção capitalista de mercadorias, já que não e constituem em demanda solvente para o capital. administrar, o Estado (re)produz e (re)define os valores de uso da cidade e portanto também a renda diferencial dos terrenos nas cidades. Como diz Topalov: “O consumo mercantilizado é consumo de um objeto isolado, independente de outros: é um consumo de mercadorias. Mas há valores-de-uso complexos que resultam de valores-de-uso elementares...A conexão espacial de valores-de-uso elementares é necessária à produção e circulação do capital e também à reprodução dos trabalhadores. Suas necessidades estão ligadas entre si e não podem ser satisfeitas de forma totalmente independente: os processos de consumo de produtos estão estreitamente ligados entre si. A salubridade da moradia condiciona diretamente o estado de saúde de seus ocupantes. Condiciona também indiretamente o conjunto da sociedade: as epidemias surgem primeiro nos „tugúrios‟ dos bairros populares, porém chegam a afetar os burgueses.” (Topalov, op.cit, p.66)

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Em que pese a importância de discutir e aprofundar a análise do Estado Capitalista, em todos os níveis, este trabalho ficará restrito a autuação do Estado em relação à questão da habitação. Veja-se a respeito entre outros: Carnoy, M., 1984; Lechner, N., 1993; Martins, L., 1985; Afonso, C.A. e Souza, H., 1977; Leclerq, Y., 1977; Salama, M. e Mathias, G., 1983; Lojkine, J., 1981.

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Trato aqui, em especial, do modo como, ao definir onde e o que produzir e ao

A produção de alguns valores-de-uso, como a moradia, embora mercantilizáveis, produzidos e consumidos unifamiliarmente não são independentes, constituem um valor-deuso complexo. Vimos que ao produzir a moradia – qualquer que seja a forma – se está produzindo valores-de-uso complexo, se está produzindo a cidade. Ora, se isto é verdadeiro para a produção/consumo individual é mais ainda para a atuação do Estado. Como a urbanização capitalista compreende uma multitude de processos privados de apropriação do espaço, como cada capitalista só investirá no que é diretamente rentável para a sua apropriação, como há uma série de valores de uso que pela suas características interessam a todos os capitalistas, mas a nenhum em particular, como ainda estes valores-de-uso são necessários para a reprodução da força de trabalho, será o Estado que proverá estes valores-de-uso complexos, através das chamadas políticas públicas. Um primeiro aspecto diz respeito ao fato de que, na aparência, o Estado situa-se acima das classes, sendo o provedor das necessidades – do capital e do trabalho. Ou seja, o Estado aparece como aquilo que ele não é, que busca atender ao interesse geral, acima das classes. Para atender aos interesses de todos, deveria suprir as necessidades da acumulação do capital e da reprodução da força de trabalho. Sendo assim, investiria para equilibrar as diferenças sociais e propiciar a socialização da reprodução capitalista. Mesmo considerando-se que o Estado investiria em áreas necessárias para dar um maior equilíbrio, o que facilitaria a produção e o consumo, não há disponibilidade dos capitalistas para arregimentar fundos para essa realização. Estes recursos são provenientes de diferentes formas de tributação. Direta, sobre a propriedade – os impostos territoriais, prediais, de transmissão – e indireta – impostos sobre

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produtos industrializados, sobre a circulação e consumo, de renda, depósitos compulsórios, etc. Cria-se, assim, um “fundo” de recursos que deveria propiciar uma intervenção do Estado nas áreas mais necessárias. No entanto, o Estado não define as inversões em função das necessidades, mas da sua importância no plano político. Permanece, na aparência, como se fosse um mecanismo regulador aplicado a um sistema em desequilíbrio, porém investirá principalmente nas áreas de interesses das classes dominantes (veja-se Preteceille, E., 1986). Se o Estado fosse regulador para propiciar um maior equilíbrio, as inversões seriam feitas, por exemplo, na produção de habitação. Mas não é o que ocorre, pois no caso do Brasil, alegando-se falta de recursos, foi em 1967, criado um mecanismo de captação destes para o BNH – Banco Nacional de Habitação, criado em 1964 – visando à produção de moradias

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populares, através do Fundo de Garantia por Tempo de Serviço – FGTS26. Após 20 anos de recursos considerados elevados – o BNH foi durante muito tempo o segundo banco em volume de recursos no Brasil –, os resultados foram muito modestos. Só 18% do FGTS foram destinados à habitação de “interesse social” (Bolaffi e Cherkezian, 10/85). Ao final deste período de 20 anos, o déficit habitacional é calculado oficialmente me 4,9 milhões e extra oficialmente em 11 milhões de unidades. Os recursos do Estado têm sido aplicados principalmente nos setores e nas áreas que interessam ao capital. Há que se ressaltar, também, que os investimentos estiveram relacionados com a tentativa de legitimar o governo militar e propiciar um crescimento econômico, pois se elegeu a indústria de construção como prioridade, dado que é um dos setores que mais utilizam a mão-de-obra não qualificada. Ao mesmo tempo, procuravam oferecer benefícios para os moradores das cidades, dizia-se com a erradicação da “sub-habitação”. Como se os habitantes das “sub-habitações” não fossem também citadinos. Porém, os resultados mostram que não foi privilegiada a habitação para os chamados setores populares. Além disso, como mostra Ermínia Maricato, também é enganosa a questão da assimilação dos trabalhadores na industria da construção, dadas as próprias condições de trabalho (Maricato, E., 1987). Neste trabalho importa ressaltar que ao ser criado, o BNH tinha para as classes populares (veja-se Benício, Schimidt, op.cit.). Voltemos à questão: se o Estado fosse realmente regulador dos desequilíbrios, a aplicação dos recursos na cidade deveria procurar, como diz o discurso oficial, a eficiencia urbana, a justiça social e a modernização dos equipamentos. Mas o que se tem visto são investimentos principalmente em obras pontuais e que atendem apenas a interesses de frações da classe dominante, como a construção da ponte Rio-Niterói, prédios luxuosos para abrigar a sede do BNH, etc., além de obras para a renovação urbana-CURA e infra-estrutura. Construções que provocaram, de um lado, uma expansão na indústria de construção e, de outro, um aumento exagerado dos preços de insumos para este tipo de indústria, provocando um encarecimento das construções, limitando assim as condições de aquisição de imóveis para habitação principalmente das classes populares, objetivo para qual teria sido criado.

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Sobre BNH, SFH e FGTS, veja-se Azevedo, A.; Maricato, E.; Veras, M.; Bolafi, G., já citados, entre outros.

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como pressuposto melhorar as condições de vida urbana, através da produção da habitação

Em que lugares se investirá? Os maiores investimentos serão realizados onde já existe, para terrenos e edificações, um preço elevado. Nos bairros onde moram os que ganham baixos salários, há carência de escolas, de postos de saúde, de postos policiais, de ruas asfaltadas, de ônibus – em quantidade e qualidade – , de consultórios médicos, etc. e aí se investe muito pouco. Isto significa que o Estado privilegia áreas onde as necessidades já estão supridas, pois, nas áreas onde moram estratos de classe média ou mesmo alta, há escolas de boa aparência, posto de saúde, vias asfaltadas, etc. e se busca complementar ou melhorar estes equipamentos. Estes aspectos são visíveis na cidade de São Paulo, onde a conservação das vias, para só ficar num aspecto, contrasta com os parcos recursos investidos nas ruas da periferia pobre, completamente esburacadas. Há também a ocorrência de investimentos em áreas ditas deterioradas, buscando-se a renovação urbana (Projeto CURA). Nestes lugares tem-se em conseqüência dos investimentos a expulsão dos moradores pobres que não podem pagar por estas transformações no espaço.27 De modo geral, o investimento ocorre em áreas já equipadas, mas, quando também se investe em áreas carentes, a tendência é a expulsão dos mais pobres, pois aumenta o preço da terra, das habitações. Este aumento está relacionado muitas vezes aos impostos sobre a terra – caso os proprietários que moram em casa própria e vendem para comprar em outro bairro, onde os impostos são mais baixos – aos aluguéis, que se tornam incompatíveis com os que aí moravam e que mudam para outros lugares mais „pobres‟. Mas, também ao fato que, com a mudança da aparência, com a „chegada dos melhoramentos‟, perde-se a identidade no bairro: “Agora é todo mundo diferente, tá muito rico, eu não posso mais morar aqui” (depoimento). Um outro aspecto diz respeito ao investimento em novas áreas, por exemplo, com a

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construção de conjuntos habitacionais e seus necessários equipamentos, aumentando o preço das terras e das moradias nas vizinhanças. Também altera-se significativamente o preço dos terrenos nas áreas onde, após muitas reivindicações, o Estado atua ampliando ou equipando com meios de consumo coletivo determinados bairros. Ou seja, são duas faces do mesmo processo: de um lado procura-se equipar-se melhor onde já existe equipamento, o que dá um aumento de preço da terra e das construções existentes, expulsando para ainda mais longe os que não podem pagar; de outro, onde não existem equipamentos e se planejam e executam determinados projetos, também se altera o preço da terra e das edificações tornando, em um

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Veja-se Vilarinho Neto, C. S., 1987.

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caso como no outro, difícil o acesso aos trabalhadores que ganham salários baixos, exceto muitas vezes no próprio lugar, como é o caso dos conjuntos habitacionais. Quando os moradores de determinadas áreas carentes de equipamentos de consumo coletivo se reúnem para reivindicar junto aos poderes públicos estes equipamentos e têm atendidas suas reivindicações, o processo é semelhante. Para alguns é possível ficar, para outros há também uma expulsão e outros que ainda não conseguiram chegar, terão de ir para lugares ainda menos equipados28. É bom frisar também que os investimentos estatais para provisão de meios de consumo coletivos não se localizam apenas nas cidades. As usinas hidroelétricas, as reservas de abastecimento de água, se localizam em áreas distantes, mas redefinem nas cidades o preço da terra, pois a existência ou não de abastecimento de água, de fornecimento de luz elétricadomiciliar e pública alteram o preço da terra e das moradias. Tem-se no Brasil questionado, com muita propriedade, a canalização de vultosos recursos para a construção de enormes represas que não atendem necessariamente aos interesses da maioria dos trabalhadores, principalmente os que moram na região atingida pelas obras. Ao analisar os impactos provocados pelas construções das grandes represas no vale do Rio São Francisco, Manoel C. de Andrade demonstra que para as 70.000 pessoas que viviam na área inundada pelo lago do embora nas grandes cidades a população tenha sido beneficiada pela ampliação da rede de luz elétrica, os maiores beneficiários das construções das barragens foram grupos econômicos que participaram da produção das mesmas (empreiteiras, vendedores de máquinas, de combustíveis, de peças, etc.) e aqueles que se beneficiaram do consumo de energia elétrica, constante e barata para as suas atividades industriais, comerciais e agrárias (Andrade, M. C. , 1984, p.198). Do mesmo modo, José Matias Pereira analisa o impacto das hidroelétricas na ecologia da Amazônia. Com relação à hidroelétrica de Tucuruí, ao que tudo indica o principal objetivo foi o de viabilizar os empreendimentos econômicos instalados no Projeto Grande Carajás (Pereira, M. – FSP, 04.11.1987). No âmbito deste trabalho, estas informações têm apenas o objetivo de indicar que a produção da cidade, também ocorre em áreas não-urbanas como parte do processo de urbanização capitalista, de um processo que interfere no preço da terra urbana, que pela idéia 28

Para análise dos meios de consumo coletivos, veja-se Jamarillo, S., 1986; Preteceille, E, 1986; Topalov, op.cit.; Castels, M., 1977; Habermans, J., 1984.

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Sobradinho, não houve melhoras nas condições de vida. Demonstra, também, que, muito

de progresso tem utilizado recursos advindos do FGTS. Odette C. L. Seabra, ao analisar as formas de incorporação das várzeas dos rios Tietê e Pinheiros, mostra com clareza o processo de transformação dessas áreas com a produção de energia elétrica pela LIGHT (Seabra, C. L. Odette – 1987). A atuação do Estado reforça tendências presentes na economia de mercado. Se a atuação fosse realmente para suprir carências obter-se-ia um “reordenamento urbano”. No entanto, é preciso atentar que além de reforçar estas tendências, o Estado, ao legislar, já define que os “pobres” precisam de menos espaço que os ricos. A Lei 6766/79 define que lotes menores de 125 m2 podem ser implantados nos loteamentos de “interesse social”. O próprio BNH, estabeleceu que os moradores dos conjuntos do PROMORAR (Programa de Erradicação de Favelas) teriam lotes de 70m2 e as casas com áreas de 30m2. Em Osasco, o Programa “Casa para Todos” prevê lotes de até 90m2, enquanto uma casa no Morumbi, em São Paulo, tem cerca de 2.000m2. A produção e a implantação de determinados equipamentos provoca diferenças no preço da terra e habitações. Se o preço dos terrenos varia fundamentalmente pela sua localização na malha urbana, se o Estado é o grande provedor dos valores de uso – meios de consumo coletivo, é mais do que obvio que se reforçam tendências presentes nas formas de apropriação do espaço urbano. Fica mais evidente a produção social de existência e a apropriação da renda diferencial por aqueles que detêm a propriedade da terra. Quais os mecanismos que fazem ainda com que a maioria da população considere o Estado acima das classes e com características de investir para contrabalançar os desequilíbrios urbanos? Penso ser esta uma questão relevante, que não consegui ainda aprofundar. Penso,

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ainda, que esta analise deve levar em conta a trajetória da produção de cada um dos consumos coletivos em sua multiplicidade de determinantes. Restou a constatação de que o Estado, ao atuar no urbano, mantém e (re)produz o “equilíbrio” das segregações espaciais. A cada um o que é possível pagar. Para o trabalhador com baixos salários o lugar é um pequeno lote com casas construídas com material de fácil deterioração, ao longo de muitos anos, de muitas horas de “descanso”, em lugares onde não há equipamentos e meios de consumo coletivos que garantam um mínimo de qualidade de vida. Os movimentos reivindicatórios por luz, água, transporte e moradia – casa própria – traduzem os antagonismos econômicos em conflitos políticos, pois tentam obter do Estado,

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condições um pouco mais dignas de existência, através da canalização de recursos para o atendimento das suas reivindicações. Começa a evidenciar-se para os participantes dos movimentos que Estado não está acima das classes, nem atua para corrigir desequilíbrios. Em Osasco, por exemplo, ao mesmo tempo em que o Prefeito, alegando falta de verbas recusava-se a desapropriar uma área ocupada, que daria para cerca de 600 lotes, pelo valor venal de oito milhões de cruzados, trazia por algumas horas um apresentador de TV, para a comemoração do aniversario da cidade, pela “bagatela” de um milhão de cruzados. Para os participantes do movimento, este fato evidenciou que o Prefeito: “...só atende os interesses dos poderosos”, “ele, o prefeito, prometeu que ia entrar com o último recurso, que nóis não ia ficá na rua, e num cumpriu nenhuma palavra do prometido, mas trouxe esse tal de Gugu para divertir a gente, só que nós precisamos é de casa e não do tal do Gugu” (depoimentos). Como ilusoriamente o salário, o lucro, os juros e a renda constituem a remuneração pela participação de cada um deles em partes iguais, na criação do produto e do valor, também ilusoriamente o Estado, ao atuar na cidade, distribui a cada um de acordo com a sua capacidade de trabalho, que é de igual à sua remuneração. E aí fica evidente o fetiche da cidade. Como pelo trabalho recebe-se pouco (ilusoriamente recebe pelo que se vale), só pode remuneração maior, porque “contribui mais”, pode-se usufruir de uma qualidade de vida melhor. É a mistificação da realidade: a cada um o lugar que merece na cidade. Considerando a analise acima que evidencia a divisão em classes sociais e, na classe trabalhadora, a divisão em faixas salariais, ou seja, em camadas de classes que têm formas diferentes de se apropriar do espaço urbano, face as condições salariais, objetivas, mas também as condições objetivas do modo e condição de vida; considerando a características da mercadoria terra urbana, da habitação e dos equipamentos de consumo coletivos, ou seja, da produção e consumo da cidade, constatamos que há várias formas de se apropriar do espaço urbano. Há os desbravadores da cidade, que chegam antes dos equipamentos e meios de consumo coletivos, onde se incluem aqueles que compram um lote, em áreas não dotadas de infra-estrutura e auto-constróem sua casa; os favelados e os ocupantes. Após a ocupação, ou construção de suas casas, lutam para obter os serviços públicos. Utilizam-se de um espaço para

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usufruir de determinada qualidade de vida. Como quem detém a propriedade tem uma

nele cristalizar seu tempo de trabalho e encontrar um lugar onde morar, viver sua condição de trabalhador de uma cidade. São os produtores e os consumidores da cidade que desbravam. Há aqueles que chegam depois que estes equipamentos estão instalados: podem pagar por essa mercadoria nesse lugar. Usufruem desta cidade produzida, pagando por ela. É difícil separar os que produzem dos que consomem a cidade. É melhor separar os que lucram, os que usufruem e os que vivem em arremedos de cidades. Em todos está presente o cidadãoconsumidor, ou o consumidor cidadão. É necessário tentar analisar de que maneira se compreende a cidade e os excluídos do acesso à terra e moradia nas cidades. Como se situam, também, os participantes dos

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movimentos de ocupações de terra, face

aos

discursos sobre a cidade e a moradia, no processo de apropriação cotidiana do espaço. FOTO a – Concomitância de tempos e ritmos diferentes

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Foto b – Para as necessidades “biológicas” também é preciso ter um pedaço de chão

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CAPÍTULO III OS DISCURSOS SOBRE O ACESSO À TERRA E MORADIA NA CIDADE

1. ALGUNS ASPECTOS DAS FALAS SOBRE AS CIDADES Neste breve apanhado das falas sobre a cidade, entendo, como Eder Sader, que as falas (ou discursos) dizem respeito ao uso ordenado da linguagem em que um sujeito, através de

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textos ou falas, dirige-se a um público. Todo discurso é obrigado a lançar mão de um sistema de referências compartido pelo que fala e por seus ouvintes (Veja-se Sader, Eder, op.cit., p. 2832). Nas falas aqui referidas, fica nítida a articulação entre o poder e o saber, que não se referem a um discurso uniforme e estável, mas que tem sido a fala dos representantes do poder instituído sobre a cidade e sobre o pobre na cidade. É possível perceber que nos estudos das falas sobre as cidades há vários caminhos. Maria Stella Bresciane coloca que para os estudiosos da historia das cidades nas primeiras décadas do século XX, existem pelo menos dois caminhos. Um é o do percurso cronológico do crescimento das cidades, das definições dos sítios e das funções urbanas, onde as teorias

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estão em geral encobertas pela descrição. O outro caminho é analisar as teorias, que colocam na cidade o seu objeto de estudo e ou de trabalho, no momento em que as concentrações, necessárias à produção e ao consumo, são consideradas problemas. Aí se explicita a cidade como um laboratório para o exercício de políticas, relacionadas à questão técnica. Neste segundo grupo, diz Maria Stella, há toda uma variedade de trabalhos desenvolvidos na esteira de teorias diferentes. No contexto da visualização da cidade como um problema e ao mesmo tempo como um lugar de progresso representativo da sociedade como um todo, as “propostas de intervenção nas cidades deslizam rapidamente para se tornarem propostas de intervenção na sociedade.”29

É necessário aprofundar os estudos para tornar mais explícitas as propostas de intervenção na cidade. E também, como diz Francisco de Oliveira, é necessário investigar a relação entre o Estado e o urbano, o que significa também analisar as teorias de intervenção na cidade e na sociedade (Veja-se Oliveira, F., 1982). Marcela Delle Donne elaborou uma síntese das principais teorias sobre as cidades, onde fica evidente que a especialização disciplinar não tem dado conta da complexidade do urbano, mas, pelo contrario, tem resultado em imagens fragmentadas e parciais, pois o fenômenos urbanos são geralmente vistos através de esquemas racionalmente pré-constituídos, teorias não se refiram “strito senso” ao objeto deste estudo, importa ressaltar que, na maior parte das vezes, a cidade é entendida como um organismo, ou como um objeto em si: tem seu sítio, sua situação, tem uma função, está inserida numa rede de cidades e se hierarquiza de acordo com esta inserção (levando-se em conta sua produção e consumo). Diz-se também: “A Cidade tem um crescimento elevado; A Cidade é pobre; A Cidade tem problemas de saneamento, etc.”. A população é, em geral, uma abstração. De um lado, analisa-se o crescimento da população, sua divisão em atividades profissionais, seus lugares de moradia e, de outro, as funções da cidade, a forma como se estruturam os espaços, através das teorias concêntricas e de setores. Mas, em geral, um aspecto não é relacionado a outro.30 Neste trabalho importa salientar a presença dos “excluídos” dos equipamentos e serviços coletivos, da habitação, daqueles que são considerados propagadores das doenças 29

Veja-se Bresciane, M. S., 1988, mímeo, que analisa sucintamente estas teorias do século XVIII ao início do século XX. 30 Veja-se Delle Donne, M., 1979, que estuda, num quadro referencial histórico, as teorias sociológicas – com ênfase na escola de Chicago –, a abordagem geográfica, a econômica, a política e a cultural da cidade.

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isto é, utilizando-se de modelos, de moldes onde se procura encaixar a realidade. Embora tais

físicas e da degradação moral, morando em partes de cidades que fogem aos padrões dos modelos ideais pré-estabelecidos. A presença dos excluídos nas análises é visível, seja quando se descrevem as cidades, os sítios – onde estão localizados –, seja quando se procura, através da técnica, “resolver” os problemas urbanos que aparecem como sendo resultado da concentração dos pobres nas cidades. Quando a cidade deixa de ser considerada nociva à saúde do corpo e da alma do homem, passa-se a atribuir aos pobres das cidades este papel de contaminadores da moral e da saúde. Não é mais a cidade, com seu ambiente, tido como artificial, que provoca tal degradação, mas aqueles que moram em lugares fétidos, onde as casas são insalubres, que são responsabilizados pela propagação de doenças. Nestes lugares procura-se uma solução técnica tentando desaglomerar as pessoas, ou pelo menos, confiná-las em lugares não visíveis, em verdadeiros guetos. Produzidos na segunda metade do século XIX, há uma série de estudos que procuram demonstrar a relação entre os problemas sociais e o meio ambiente. Expressavam-se na Inglaterra de então com o Public Health Act, base de uma legislação sanitária e urbana; tendo sido criado, em seguida, o primeiro comitê de saúde que propõe como medidas para solucionar os problemas de higiene pública a construção de casas para trabalhadores nas cidades com mais de 10.000 habitantes; e, em 1890, o Housing of Worker Class Act que unificou todas as leis sanitárias sobre a construção de casas populares (Ver Bresciane, M.S., op.cit.). Tem-se, assim, uma dimensão dos estudos que, desde o século XIX, consideram a área habitada pelos pobres como carecendo de um saneamento, sendo pois considerada lugar de propagação de doenças.

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No caso de São Paulo, objeto de estudo do presente trabalho, já em a893, portanto no início do processo de crescimento mais expressivo da cidade, e em função de surtos epidêmicos, foi formada uma comissão que elaborou o “Relatório da Comissão de Exame e Inspeção das Habitações Operárias e Cortiços no Districto de Santa Ephigênia”, pois, sem dúvida, tais áreas eram focos privilegiados de epidemias que poderiam alastrar-se para a cidade como um todo, principalmente pelo padrão de adensamento do casario urbano. Assim, é decretado pelo Estado, em 1894, o Código Sanitário que estabelece quais as condições básicas de edificação das moradias populares (o lugar: fora das aglomerações urbanas; a contigüidade: de quatro a seis casas geminadas no máximo) e, em 1898, determina-se a demolição dos cortiços infectos e insalubres (Veja-se Nabil, B., 1982).

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Ao nível dos discursos, é sempre destacada a necessidade de extirpar-se os lugares considerados contaminadores de maus costumes e doenças. Sabe-se que não se atua efetivamente para acabar com os cortiços, com as favelas, mas se tem como proposta esta erradicação da pobreza, pois é a pobreza considerada causa de “contaminação” física e moral (foco de promiscuidade, de imoralidade e de violência). Nestes discursos não fica evidente onde se situa o limite entre o grupo social dos trabalhadores pobres e o das “classes perigosas”, pois é o lugar onde se mora que é definido como foco de contaminação. Assim, o lugar proposto para a edificação de novas moradias é fora das aglomerações urbanas, o que demonstra a tendência da segregação espacial e da visibilidade da segregação. Quanto à visibilidade da segregação em São Paulo, basta cada um de nós fazer um passeio pela cidade, através das ruas e avenidas principais e procurar ver a concentração do casario urbano da pobreza. Teremos a surpresa de não achá-la em grandes concentrações num largo círculo próximo ao centro.31 A pobreza é visível, o que não é muito visível é a concentração de unidades habitacionais dos pobres, ao longo das grandes avenidas. Engels, na análise da situação da classe trabalhadora da Inglaterra na metade do século XIX aponta para esta não-visibilidade da pobreza, ou seja, para a segregação da pobreza e seu isolamento, pois seus sinais não são visíveis nos bairros burgueses (Engels, F., 1975). A análise movimento operário, demonstrando a precariedade da vida e da moradia. Sem dúvida, esta tentativa de afastar a pobreza e os pobres da „área principal‟ da cidade é um dos objetivos da urbanização levada a efeito pelo Barão Haussmann, na metade do século XIX, em Paris: “O Barão de Haussmann substituiu as ruas tortuosas, mas vivas, por longas avenidas, os bairros sórdidos, mas animados, por bairros aburguesados. Se ele abre „boulevards‟, se arranja espaços vazios não é pela beleza das perspectivas, é para „pentear Paris com as metralhadoras.‟” (Lefebvre, H., 1969, p.20)

Há ainda que se considerar, pelo menos para São Paulo do fim do século XIX e início do XX, o tipo de habitação que é proposto com a preocupação de sanear a cidade. Como padrão de moradia, desenham-se miniaturas das casas burguesas, definindo-se o tamanho, 31

Um grupo de pesquisadores de outros Estados alertou-me sobre este aspecto por ocasião de uma “excursãopesquisa” pela cidade, onde buscava-se a diversidade de moradia, como parte do simpósio A Metrópole e a Crise, em 1985. Estavam procurando a habitação da pobreza que não era visível. A pergunta era: “São Paulo não tem pobreza ou não estão nos mostrando?”.

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de Engels faz parte de uma preocupação com a condiçao de vida dos trabalhadores e com o

sempre menor, mas com as separações em cômodos, para evitar a promiscuidade no interior da moradia. Busca-se também limitar a contigüidade das unidades. Como as casas da burguesia são isoladas entre si, elaboram-se desenhos de casas com pequenos jardins, com recuos que possibilitam um isolamento (Veja-se Rolnick, R., 1983). Fica evidente o princípio de cada um no seu lugar, no tamanho e na forma, proposto pelo poder instituído e considerado competente para ditar as normas. Tem-se aí um demonstrativo de que a intervenção na cidade representa a intervenção na sociedade e que esta se dá com a intervenção do Estado, através de seus diversos agentes. O processo de saneamento das fábricas, visando uma maior produção, expande-se para as cidades, com as disciplinas dos corpos nos espaços e as disciplinas dos espaços. Verifica-se toda uma configuração de um campo teórico que privilegia a técnica como recurso para “resolver” os problemas urbanos e tornar habitável a cidade, para quem, é claro, “merece”, pois, como já referido várias vezes, o salário, o lucro, a renda e os juros aparecem como a justa remuneração pela participação de cada um. Se o salário aparece como a justa remuneração do trabalho, só quem merece ganha um salário que lhe permite usufruir da cidade com certa qualidade de vida; isto, é claro, além dos proprietários dos meios de produção e dos proprietários de terras. E assim tem-se uma parte da cidade equipada para os que podem pagar, pois “merecem”. Como resultado, há várias cidades na mesma cidade, segregadas entre si pela riqueza e pobreza de seus moradores. Nesse sentido, todos os argumentos da escola keneysiana de bem-estar social, da distribuição da riqueza, da intervenção, para minorar os problemas de pobreza e, portanto, de contaminação, parecem ser um beneficio que é “dado”, pelos que produzem a riqueza aos que não a produzem.

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A concentração de pobreza, das massas despossuídas faz com que se modifique substancialmente a forma de percepção da pobreza em relação à idade clássica, na qual a pobreza era vista como virtuosa e próxima de Deus; uma vez concentrada no espaço urbano, passa a ser considerada ameaçadora e perigosa. Torna-se, então, necessário (re)conhecer o novo fenômeno. A medicina sanitária lidará com este novo meio-foco de doenças, apontando para a necessidade de regulamentar condições de moradia e dos diferentes usos urbanos, e para tanto vai associar-se à engenharia sanitária (Veja-se Cunha, M.C.P., 1986). É através dos discursos dos sanitaristas – médicos e engenheiros – que é possível analisar como o meio é considerado determinante para moldar o indivíduo na sociedade. Parece, pelo menos em relação às cidades, que o discurso geográfico do homem relacionado ao

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meio (físico) das correntes de pensamento alemã e francesa é adaptado para a visão de que o homem é produto do meio social. Enquanto a geografia se detém na relação homem-meio (físico), a intervenção na cidade e na sociedade se concretizam nesta mesma relação homemmeio (social). Lugares fétidos, escuros, promíscuos, com gente amontoada, degeneram o homem, ou pelo menos não formam homens capazes; enquanto lugares arejados, iluminados, separados formam homens sadios. Do mesmo modo, as regiões tropicais, nos mitos de uma certa geografia, produz homens indolentes e países subdesenvolvidos, enquanto nas regiões temperadas os homens são mais fortes, mais trabalhadores e os países são mais desenvolvidos. Este aspecto da relação do homem com o meio (social) carece ainda de ser avaliado pelos estudiosos de geografia humana. Só foram encontrados, nos autores do período, referências mais explícitas à produção e à divisão em classes sociais nas cidades em Kropotkin e Reclus (Kropotkin, P., 1986 e 1987; Reclus, E., 1985). Com relação a disciplinarização nas cidades brasileiras relacionadas à ideologia do progresso, diz Maria Clementina que os cortiços foram tratados como:

Assim, a promiscuidade é vista como doença social, uma ameaça à saúde pública. O meio aqui não é mais o meio físico, mas o social. O homem como produto do meio social, que é necessário sanear. Instituem-se falas sobre a cidade. E nas cidades, as falas que propõem a solução técnica dos problemas, que são consideradas eficazes para solucionar os problemas urbanos. As falas dos engenheiros e dos médicos sanitaristas do século XIX, deixam evidente que o meio urbano não saneado, que é predominantemente o lugar do pobre, é causa de desequilíbrio social. Como os discursos destas categorias profissionais são, grosso modo, as falas competentes, eles representam o “saber sobre a cidade”32. Os discursos competentes sobre a cidade, no caso do Brasil, serão ampliados a partir da década de 60 com novos personagens, os planejadores urbanos, que traduzirão nas propostas 32

Veja-se Chauí, M. Cultura e Democracia. São Paulo: 1982, p. 7 e seguintes sobre o discurso competente.

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“uma espécie de síntese do „mal‟, objeto de todos os temores-alvo de um combate sistemático e ininterrupto desde o final do século XIX. A imprensa paulista está repleta de queixas, reclamações, notícias dirigidas contra aquilo que as „famílias do bem‟ consideravam – assim como os médicos e representantes do poder público – um atentado à higiene e à moral... Oposto da família, o cortiço abriga tudo que é ameaçador ao meio urbano... lugar de desordem e da imoralidade da „ralé das ruas‟, antro da sífilis e doenças „do mundo‟” (Cunha, C. M. P. – op. Cit. p. 36)

para as cidades a ideologia desenvolvimentista. Será através do desenvolvimento, onde se destaca o urbano, que se darão, segundo essa concepção, as soluções aos problemas que se intensificam. Para o planejamento urbano, principalmente no pós-64, os homens na cidade são abstrações, a tecnocracia controlará a distribuição dos investimentos nas cidades, onde se elabora todo um aparato que tentará regular os “vetores” de crescimento da economia. Sinteticamente sobre essa questão, se expressa Luiz C. R. Ribeiro: “Em nossa história política o urbano foi desde muito cedo investido pelo discurso competente: a partir do final do século passado, com efeito, os higienistas impuseram uma visão sobre a cidade que fundamentou importantes intervenções do Estado na cidade, em seguida, os médicos sanitaristas dão lugar aos engenheiros que assumem a tarefa de pensar a cidade física e morfologicamente requerida pela acumulação industrial; recentemente sobretudo a partir dos anos 60, entra em cena um novo personagem – o planejador urbano – que passará a construir um complexo aparato governamental que objetivava traduzir na cidade a ideologia do desenvolvimentismo” (Ribeiro, L. C. Luiz, 1986, p. 6)

O Estado investirá para remover os obstáculos a um pleno desenvolvimento do capitalismo, tendo como lugar privilegiado a cidade33. Com a aceleração do crescimento explosivo das metrópoles do Terceiro Mundo, onde a par da concentração de riqueza se tem a concentração da pobreza, ampliam-se as “necessidades de planejar” a expansão das cidades34. E ainda para planejar e dotar a cidade de equipamentos e serviços é necessário, segundo algumas correntes, controlar o crescimento da população, pois para essas é o crescimento populacional que ocasiona a pobreza da cidade35. Ao mesmo tempo que o capital necessitava da concentração da população seu crescimento exacerbado é considerado foco de degradação física das cidades e moral de seus

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habitantes. Nestas falas está presente o fato de considerar-se o trabalhador pobre como aquele que dá apenas despesas ao país. Não é considerado produtor, apenas um frágil consumidor. Como diz Milton Santos não é considerado um cidadão, pois não consome. De modo geral, o trabalhador pobre está sempre presente nas falas não porque é indivíduo que produz, mas porque um „fraco‟ consumidor da cidade. E, no caso da tentativa de sanear a sociedade e a cidade são referidos pelo lugar que ocupam na cidade. Está, também, 33

Sobre a intervenção estatal no urbano, veja-se Schmidt, B. 1982, 1983 e 1984. Muito embora os estudos sobre a concentração de riqueza e da pobreza em São Paulo sejam extremamente expressivos como pode ser visto em: Kowarick, L. Op. Cit.. Vários – São Paulo – Crescimento e Pobreza – 1975, o discurso oficial continua a falar em crescer para acabar com a pobreza. 35 Veja-se, Relatório da FNUAP – 1986, já citado. 34

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cada vez mais presente nas falas a técnica como a possibilidade de sanear as cidades e o crescimento econômico como o que anulará o atraso das áreas „carentes‟ de serviços públicos nas mesmas. Novos termos são também utilizados: o moderno é a parte rica, equipada das cidades; o atrasado, a parte onde mora o pobre. Cidades modernas são ricas e as arcaicas são pobres, quando o que se deriva levar em conta seria a riqueza e a pobreza de seus habitantes. Embora considere extremamente analisar as diversas teorias sobre as cidades, neste trabalho elas servem apenas de referência para verificar como é tratada a população pobre. Sinteticamente, verifica-se que, na maioria destes estudos, há uma descrição visual, ou matemática, da produção no espaço (e não do espaço) e análises da segregação espacial. Penso que há necessidade de ampliar os estudos sobre a segregação espacial urbana, com a questão política de dominação do espaço. Mas é bom destacar que, cada vez mais, os estudos sobre o urbano têm abordado a cidade como uma forma produzida por seus moradores, forma que afeta o próprio desenvolvimento futuro das relações sociais e a organização da produção. Em que pese ter-se procurado compreender a cidade na sua complexidade, a maior parte dos trabalhos têm sido, como é o caso deste, parciais. Considero, no entanto, que tem contribuído para o entendimento da totalidade. consideram a diversidade do urbano como uma questão técnica a ser resolvida com o crescimento econômico. Que continuam a considerar que cada um deve ficar em seu lugar na cidade e que este lugar depende da sua capacidade de pagar, que continua a parecer como a justa remuneração do trabalho, do capital, da renda e do juro.

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E, ao mesmo tempo, permanece uma continuidade dos discursos planejadores que

2. AS FALAS E AS PRÁTICAS SOBRE OS FAVELADOS E OS OCUPANTES: OS PERSONAGENS E AS IMAGENS (DOS FAVELADOS E DOS OCUPANTES) O modo como a grande imprensa trata da questão das favelas e das ocupações parece ser indicativo das falas sobre os sem-terra / sem-casa. Pesquisei, assim, as noticias que diziam respeito direta ou indiretamente às favelas e às ocupações de terra urbana tentando compreender as concepções presentes nas noticias. Paralelamente, é também analisado o discurso oficial, através dos planos de intervenção habitacional, com destaque para a atuação nas áreas ocupadas por favelas, síntese das propostas de intervenção nas chamadas habitações sub-normais, pois as ocupações são mais freqüentes na década de 80. Considero, como Portes, que um dos caminhos para a compreensão da atuação do Estado é fazer uma análise detalhada da evolução de sua política em relação aos diferentes setores da sociedade, principalmente aos agrupados em unidades espacialmente distintas (Portes, A. 1977). Compreender a atuação do Estado em relação às favelas e ocupações permitirá também compreender as questões gerais colocadas pela sociedade em relação a estes segmentos compartimentados no espaço urbano. Durante a década de 60, as notícias sobre favelas são mais expressivas no Rio de Janeiro, pois é nessa cidade que se concentra o maior contingente de favelados. Um grande marco destas pesquisas das favelas cariocas é o estudo sócio-econômico – da SAGMACS – Sociedade de Análises Gráficas e Mecanográficas aplicadas aos Complexos Sociais - , publicado em encartes especiais pelo Jornal “O Estado de São Paulo”, que o encomendou (ESP, 13 e 15 de abril de 1960). Neste trabalho, enfatizou-se a condição de vida nas favelas e as

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características de urbanização do Rio de Janeiro. A favela é relacionada diretamente à migração rural-urbana; embora seja considerado um problema urbano suas causas não foram colocadas como restritas à cidade do Rio de Janeiro, pois o estudo destacava que eram três os principais fatores que originavam as favelas: migração rural-urbana, elevado preço dos terrenos e das casas construídas e os baixos salários pagos aos trabalhadores. Ao ser analisada a situação de vida e de trabalho dos moradores das favelas cariocas, começa a ser visível que o favelado não é simplesmente um marginal, um bandido, mas sim um trabalhador marginalizado, que não pode pagar o preço dos terrenos, pois recebe baixos salários. Em que pese que se busque compreender a condição de vida dos favelados, através de

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pesquisa que não é meramente quantitativa, a favela é vista – nas conclusões do trabalho – como algo a ser extirpado, porque não é “típica do meio urbano”. Propôs-se: “que seja efetuado um estudo das relações das favelas com o aglomerado urbano, afim de serem avaliadas as possibilidades de redistribuição de suas populações em relação aos locais de trabalho e outros centros de interesse; que seja organizada uma campanha de melhoramentos das habitações das condições das favelas através de um programa de „ajuda mútua‟, orientado pelos órgãos técnicos e realizado com o auxilio dos próprios favelados”. (Modesto, H., p. 43) (Proposições para a urbanização do Distrito Federal – In: SAGMACS, 1960)

Procura compreender-se as causas da favela, mas busca extirpar-se ou a própria favela, ou a sua aparência, quando se quer saneá-las. Está implícito neste discurso, de modo sutil, toda uma concepção sobre lugares que devem ser extirpados, porque comprometem a vida citadina, porque favorecem caminhos de crime – a formação do delinqüente e também o lugar de demagogia, porque lá circulam os candidatos e seus cabos eleitorais. É evidente que o trabalho da SAGMACS não é o primeiro estudo sobre favelas, mas é sem dúvida o mais conhecido pelos órgãos públicos e estudiosos do assunto36. Em São Paulo, as favelas começam a ser mais visíveis a partir da segunda metade da do município correspondia a 0,7% da população total do município, enquanto no Rio de Janeiro, em 1960, 16% da população era favelada. Mesmo não sendo na época considerada como um grande problema, impunha-se uma política de atuação nas favelas, pois as remoções para a execução de obras públicas eram uma necessidade. A atuação era realizada através da Divisão de Serviço Social da PMSP, muitas vezes em conjunto com associações comunitárias como o MUD (Movimento Universitário de Desfavelamento) e ACB (Ação Comunitária do Brasil). Esperava-se com essa atuação “criar entre os favelados um espírito de auto-ajuda e torná-los cidadãos úteis, portanto integrá-los na sociedade. Em 1966, a Divisão de Serviço Social da Prefeitura ganha “status” de Secretaria: Secretaria de Bem Estar Social, pois aumentam as favelas na cidade de São Paulo. A concepção dominante em relação à favelas é que “é lugar de transição do rural ao urbano”, que o favelado é migrante recente, que o primeiro lugar de moradia na cidade é a

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Veja-se a este respeito, Valla, V. Vincent, Org., 1986, que faz uma retrospectiva sobre a atuação nas favelas do Rio de Janeiro e Portes, A. Op. Cit, para o período de 1962 a 1972.

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década de 60. Em 1968, o PUB (Plano Urbanístico Básico), estimava que a população favelada

favela e que, à medida que se adapta no meio urbano, que encontra um trabalho, ascende na escala social, muda-se para a casa de alvenaria. Considera-se assim, que a favela embora localizada no meio urbano, tem as características de vizinhança, de vida e de proximidade do meio rural. Ou seja, já que a favela é lugar de transição do rural para o urbano, o favelado precisa ser educado para trabalhar e morar descentemente na cidade. Atuava-se nas favelas para educar os favelados, mas principalmente para remover as favelas que estavam localizadas em áreas que prejudicavam a expansão das cidades ou que expunham a risco de vida seus moradores37. No Suplemento Especial da Folha de São Paulo, sobre a grande São Paulo: o desafio do ano 2000, as referências a favelas e cortiços não são muito extensas, inclusive no caderno dedicado à situação de moradia (Pobre Cidade Grande – cad. 7), onde se afirma que o déficit de moradia é de 133.000 casas. No Suplemento Especial, sobre Habitação e Urbanismo, também da Folha de São Paulo, fez-se toda uma retrospectiva das habitações desde o tempo da moradia em cavernas e enfatizou-se a criação do BNH com o objetivo de solucionar o problema de moradia. Algumas frases, que em geral acompanham fotos, são cristalinas em relação à concepção da favela: “derramadas pelas encostas dos morros, as favelas são nódoas negras na paisagem urbana”; “onde aparecem, os barracos são sempre símbolo de degradação”; e a síntese final do documento mostra que se atribui ao desenvolvimento a forma eficaz de se acabar com as favelas: “os números frios e o bom senso indicam que a chama das favelas talvez seja minorada (com a atuação do BNH) mas, sem desenvolvimento econômico, ainda está longe de ser resolvido” (p. 24 FSP. Supl. Esp. março 1969).

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Em síntese, nesse documento as favelas são consideradas nódoas, símbolo de degradação. É preciso então extirpá-las, mas isto só será possível se houver progresso, crescimento econômico, o que deixa evidente que não se considera o trabalho dos favelados suficiente para garantir uma vida um pouco mais digna. (Considera-se que isto será garantido pela atuação do Estado – via BNH – e pelo progresso econômico). No final da década de 60, nas noticias, quase diárias, de jornais aparece com freqüência a preocupação com o crescimento das favelas, seja nos editoriais, seja em cartas ou reportagens sobre a cidade. Deve-se destacar que desde a criação do BNH em 1964, se pretendia erradicar as favelas com a construção de casas populares, já que se entendia que um dos fatores do 37

Sobre o crescimento das favelas e atuação desta Secretaria veja-se Rodrigues, A. M., 1981.

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crescimento das favelas era a carência de habitações. Se aumentassem as construções de moradias populares, diminuiria os números de favelas. Com isto, encontra-se uma outra maneira de mistificar o problema da existência das favelas e dos cortiços. É a falta de construções que provoca o aparecimento das favelas, pois se atribui as causas das favelas e cortiços à falta de produção de moradias. Assim, se o Estado produzir habitações em número suficiente para os que não podem pagar, ter-se-á resolvido o problema da moradia. Mas o Estado não resolverá essa questão, pois argumenta-se que não há recursos suficientes. Assim, em1967, o BNH passa a utilizar os recursos do então criado FGTS (Fundo de Garantia por Tempo de Serviço) e das Cadernetas de Poupança para investir nas áreas de habitação de interesse social. Mas as favelas continuam a crescer, pois não se atacam as causas, os trabalhadores continuam a ficar cada vez mais pobres. O processo de empobrecimento intensifica-se. Além disso, mesmo o BNH não produz unidades habitacionais destinadas a quem não pode pagar. Só serão produzidas unidades para aqueles que podem arcar com um pagamento mensal, o que significa não atuar também em todas as conseqüências pois produzse unidades para as “faixas de interesse social”, desde que possam arcar com um pagamento mensal. Se todo o salário é utilizado para alimentação, vestuário, transporte, etc. então não será possível comprar para morar, nem casas financiadas pelo SFH. crescimento das favelas e cortiços, busca-se novos programas de atuação em áreas especificas: o Projeto CURA – recuperação de áreas deterioradas. Em 1979 define-se um programa dirigido especialmente para os favelados, o PROMORAR. Mas, mesmo assim, as favelas continuam a crescer em ritmo cada vez mais acelerado e já no final da década de 70 surgem as ocupações de terras. A produção habitacional pela Constituição brasileira é privilégio da iniciativa privada. O Estado só pode intervir em caráter suplementar. Só pode atuar em setores econômicos que não interessam à empresa privada, seja pela necessidade de vultosos investimentos, seja pela inexistência de lucratividade. Cabe, assim, ao Estado a promoção de unidades habitacionais para as faixas de interesse social. Mesmo assim, é preciso levar em conta, afirmam, que haja retorno do investimento realizado nesta produção para pagar o FGTS ao trabalhador e remunerar os depósitos das Cadernetas de Poupança. Portanto, só é possível produzir para um mercado pagante.

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Já que com a intervenção indireta – produzindo habitações – não se ameniza o

As notícias mais comuns sobre as favelas, ainda na década de 60 e início da de 70, além do medo do crescimento explosivo, referem-se às remoções de favelas. Atuam, nas favelas a serem removidas, a Secretaria de Bem Estar Social, o MDV (Movimento das Organizações Voluntárias), cuja filosofia é desvelar, concedendo auxilio financeiro ao favelado e a A.C.B. (Associação Comunitária do Brasil), que também tem a filosofia do desfavelamento, mas que considera que é a própria comunidade que deve assumir alguns encargos que caberiam ao poder público. Acompanhando-se as noticias de uma remoção (favela da USP – que se localizava onde hoje é a Raia Olímpica do Conjunto Esportivo da USP), constata-se que, após um longo período, os moradores são convencidos de que devem sair e ir para a favela do Jaguaré, onde os moradores (Vila Nova Jaguaré), não se consideram favelados e onde se faz também um trabalho de persuasão para que aceitem os novos moradores. O tom é basicamente o mesmo, “é preciso remover a favela e, na maior parte das vezes, mandá-la para áreas distantes, ou mandar seus moradores de volta para a sua terra de origem”. Embutida na alternativa de mandá-los de volta ao lugar de origem, está a questão de limpar a cidade dos pobres e de considerar como causa da favela a migração rural. Embutida na remoção está a mudança da favela para onde não possa ser vista. Muito embora considerese que a principal causa das remoções seja a execução de obras públicas, deve-se ressaltar que estas são comumente realizadas em áreas já ocupadas ou em áreas para onde se planeja um novo uso, o que significa que as favelas serão expulsas para áreas menos visíveis aos olhos da riqueza. Remoções são diferentes de mudanças de casa. Basta refletir sobre um aspecto: quando as obras públicas atingem proprietários, mesmo que de casa própria, há uma “indenização”,

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um depósito prévio por menor que seja o valor. Será o morador o responsável por sua mudança, por seu deslocamento. O lugar de moradia permanece, mudam os moradores, mas a casa é fixa, pois, como já apontado, esta é uma das características da mercadoria habitação. No caso do barraco de favela, além do morador ser removido (remoção e não mudança), isto é feito de modo a ir junto a casa, os móveis e o próprio morador. É como se se efetuasse a erradicação de um mal, de uma cirurgia no urbano, onde não fica vestígio da ocupação anterior. Como a favela é considerada um câncer urbano, deve ser pela norma vigente, extirpada pela raiz. Embora o barraco, tal como a casa de alvenaria num lote, seja também uma habitação, as especificidades da mudança e da remoção são diferentes.

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Quando começam a lutar contra as remoções, os favelados contestam esta extirpação, essa destruição da sua casa, que mesmo sendo um barraco, foi destruída, na maior parte das vezes, pelo próprio morador. Aceitam, muitas vezes, o deslocamento, a mudança, mas não a remoção. No Jardim Piratininga, em Osasco, os moradores utilizam o termo “deslocamento” para enfatizar a mudança que fizeram de um lugar para outro, na mesma área, decorrente do processo de reintegração de posse da COHAB – SP. Um outro conjunto de notícias refere-se à participação da comunidade favelada na edificação conjunta, como em maio de 1971, quando os destaques foram dados pela construção de um Posto de Saúde na Favela Vila Nova Jaguaré, realizada pela população, juntamente com a A.C.B.. As notícias enfatizam que este processo “promove a integração do favelado na comunidade, seja através da construção de escolas, seja pelos projetos de mutirão de casas que começam a tomar forma em São Paulo”. São projetos que enfatizam dois aspectos: “o trabalho coletivo e o aprendizado de uma profissão”. Além disso, aparece embutida a questão já repisada. Como o trabalhador parece receber no seu salário o valor correspondente ao seu trabalho, o poder público não consegue arcar com todas as suas necessidade. Assim, o próprio favelado poderá contribuir para a solução do seu problema, ao mesmo tempo que estará “efetivamente” contribuindo para a sociedade. É este fetiche que está cidade. O financiamento para a autoconstrução com assistência técnica „gratuita‟, que começa a esboçar-se no final da década de 60, através da Secretaria de Bem Estar Social, é direcionada aos favelados que deverão ser removidos. Tal proposta é tida como uma atuação individual e numa forma que se considera eficaz para resolver o problema da moradia. De certo modo, busca-se uma solução mais digna do que a remoção pura e simples do barraco. Deve-se ressaltar, no entanto, que serão poucos os que têm condições de comprar o material ou muitas vezes parte do terreno. Ficam alguns aspectos a serem discutidos, que serão retomados quando for abordada a questão da autoconstrução em si. Fica aqui registrado que estes casos não atingem mais de cem famílias e que os terrenos foram comprados em áreas muito distante. As notícias evidenciavam o seguinte: os favelados já eram proprietários e moravam na favela por economia par conseguir auxílio do governo. Ou seja, usa-se o argumento de que moram na favela porque querem. Na verdade, todos os terrenos foram comprados pela Prefeitura, mas isso não importa, pois as notícias evidenciavam o fato de construírem em terreno próprio e 107

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embutido também na questão da participação da comunidade que produz equipamentos para a

não quando e quem comprou o terreno. Sem dúvida, é ainda hoje muito comum afirmar-se que muitos favelados têm até casas alugadas e que escolhem morar nas favelas. A questão do aprendizado de construir a casa de alvenaria, que era um dos objetivos da Secretaria, ficou neste caso em segundo plano. Na primeira metade da década de 70, os projetos da Secretaria de Bem Estar Social deixam mais evidente a concepção do favelado como migrante recente, que deve ser integrado ao meio urbano. Projetam-se

Vilas de Habitação Provisória, que seriam construídas em

alvenaria. Os favelados seriam removidos para esses conjuntos onde morariam um certo tempo e seriam educados para poderem morar em outras casas. Nenhuma VHP foi construída, mas muitos projetos foram elaborados. Paralelamente, ter-se-iam os “Alojamentos Provisórios” de madeira, com caráter emergencial, ou seja, no caso de remoção rápida de favelas, os favelados iriam para os tais alojamentos (AP) e posteriormente para as VHP. Contava-se também, com a ampliação de conjuntos de casas populares, após o estágio nas VHPs. Resolver-se-iam assim os problemas de favelas do Município. Pela educação, o favelado seria integrado e depois poderia morar dignamente, pois estaria resolvido o déficit habitacional38. Tenta-se extirpar as favelas: com a remoção para áreas distantes, com a construção de vilas de habitação provisória – onde os favelados serão educados -, com a construção de casas de alvenaria, através do processo de autoconstrução, com a construção de conjuntos habitacionais que devem cobrir o déficit de moradia. De todo modo, busca-se acabar com este câncer urbano. Mas, não obstante, as favelas continuam crescendo. A partir da segunda metade da década de 70, a favela começa a ser notícia quase diária

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nos jornais, seja para tratar dos planos de desfavelamento com a construção de conjuntos habitacionais, seja com estudos de outras alternativas, como os planos de melhoria e de urbanização de favelas. Em 1978 é criado o FUNAPS (Fundo de Atendimento à população moradora em habitação sub-normal): “com dotação orçamentária a fundo perdido para atender individualmente às famílias: na aquisição do terreno, compra de material de construção e reconstrução de barracos em situações emergenciais”. (PMSP – FUNAPS 1980). Subsidiária também do valor de aquisição de casas da COHAB – SP, para famílias que precisavam ser removidas para execução de obras (convênio COBES – COHAB). 38

Vejam-se planos de VHPs, Aps da Prefeitura de São Paulo e Programa Municipal de Habitação do IBAM – 1976.

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No primeiro momento, o FUNAPS é alternativa individual, e não prevê retorno, ou seja, aqueles que o receberem não devolverão o valor recebido. Um processo demorado evidencia-se no caso de compra de terreno e ou financiamento do material de construção. Demora-se tanto que poucos serão beneficiados. Aparentemente seria apenas mais um programa de atendimento. Mas, há notícias e sinais evidentes de um outro modo de utilizar o dinheiro do FUNAPS. Pelos termos de sua criação, só poderia ser utilizado para a construção de alvenaria em terreno próprio. Em terreno público, só poderia ser construído em madeira, nos casos previstos de emergência. Ora, os moradores da favela do Jardim Robru – Zona Leste, vão ao depósito de construção e solicitam uma troca: ao invés de “madeirit” querem receber em blocos (complementando o preço) e constroem em alvenaria no terreno público. Novas formas de resistência, de resolver problema de moradia, tornam-se explícitas. Busca-se obter uma moradia em melhores condições mesmo que ainda não se tenha resolvido o problema da legalidade jurídica da posse da terra. Posteriormente, o próprio poder público altera o FUNAPS e, além do retorno – pagamento por parte dos “beneficiados” -, também se financia material para construção de alvenaria, mesmo que em terreno público. Ana Fani, ao estudar os movimento que ocorrem em Cotia, considera que:

No entanto, as “alterações” do uso de verba do FUNAPS, mostram que estas colocações não são aplicáveis na sua totalidade, pois, nesta cotidianidade de luta, há uma contestação, pelo menos das normas impostas pelo sistema de valores. Foram construídos vários alojamentos provisórios, alguns deles contestados pelos vizinhos das áreas. Através de trabalhos das Assistentes Sociais da Prefeitura, acabam sendo “aceitos”. O trabalho de persuasão da Prefeitura implica em esclarecer porque a favela existe, que os moradores não tem para onde ir, etc., tentando fazer com que os moradores mudem sua opinião sobre a favela. Criou-se todo um discurso sobre favela “antro de marginais” e agora á preciso atuar para mudar a opinião já formada, para viabilizar a própria ação da

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“os movimentos sociais não questionam a lógica do sistema, suas contradições intrínsecas, a relação de dominação-subordinação que ele contém, nem a regularização do ritmo do cotidiano, imposta pelo sistema de valores burgueses” (Carlos, A. Fani, 1987)

Prefeitura. E. posteriormente, quando se incorpora, em parte, a nova fala, é preciso acabar com a Secretaria que tem uma interação com os moradores espoliados39. Esta é uma das contradições das falas da cidade. Mas em alguns bairros não funciona este novo discurso e a Prefeitura atende a reivindicação e muda o lugar do projeto original de alojamento (Jardim Ester – Dezembro de 1972). O argumento mais freqüente dos vizinhos é a sujeira, o mal cheiro, a contaminação de doenças e de vícios. Fica evidente que o discurso sobre favela: “lugar de contaminação física e moral”, é incorporado pelos moradores da cidade. Um outro argumento, baseado na própria legislação dos loteamentos, é de que a área onde se constroem os alojamentos são reservadas para parques, jardins e equipamentos públicos (leis 7085/72 e 6766/79). Estas áreas são pagas pelos compradores de lotes, ficam sob a guarda da Prefeitura, que deverá construir praças e equipamentos coletivos e, dizem os moradores, não para construir favelas. Algumas noticias são cristalinas a este respeito: 17/11/72 – Alojamento provisório combatido pelos vizinhos. As assistentes sociais explicam que será provisória a permanência – ESP. 19/12/72 – Prefeito sustou o projeto do alojamento do Jardim Ester – área reservada para parque infantil e, diz o prefeito, que está muito próxima das residências – FSP.

Fica evidente a luta pelo espaço na cidade. Ao remover uma favela, o poder público libera o espaço ocupado para outros usos, em geral, em áreas já equipadas com meios de consumo coletivos. Ou então, a remoção libera estes espaços antes ocupados para a construção dos equipamentos. A favela será removida para áreas mais distantes, sem equipamentos coletivos, em terrenos destinados aos equipamentos que ainda não chegaram. O que significa que os moradores vizinhos e os favelados ficarão numa área carente, sem espaços

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vazios para os equipamentos coletivos. A atuação do poder público define que áreas terão prioridade para serem equipadas e assim definem, também, preços da terra e condição de vida na cidade. A contestação também se dá pelas características do barraco: “se ainda fossem casas de tijolo, a gente não se incomodaria” (Depoimentos de moradores). Na questão da moradia está contida a aparência do barraco, a não obediência às regras de construção da cidade e a conseqüente “desvalorização” da vizinhança. É o medo de perder 39

Há muitas tentativas de desativar a Secretaria de Bem Estar Social, quando se constata uma alteração no discurso dos técnicos que lidam diretamente com a população. Uma fala imbuída da justiça social. Esta desativação ocorre logo após as eleições do Prefeito Jânio Quadros.

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toda uma vida de sacrifícios na compra da casa própria. O outro argumento, o de ser área de equipamento, também leva em conta a “valorização” que o mesmo propicia. Em ambos os argumentos está presente a luta por condição de vida digna na cidade, pois, se a favela é tida como antro de marginais, não há quem a queira perto; se a favela impede que se construa equipamentos, quem a quer do lado de casa? Algumas manchetes são expressivas em relação a este conflito: 25/04/75 – Em Carapicuíba o medo continua – Os moradores do conjunto da COHAB estão em vigília e prontos para o reinício do movimento de protesto. Não confiam que os favelados não sejam removidos para Carapicuíba. (Inicialmente a PMSP tinha selecionado o conjunto de Carapicuíba, onde seria construída uma VHP, como o lugar para onde seriam removidos os moradores da Favela Ordem e Progresso da Barra Funda) – FSP. 28/07/77 – Em vez de casas favelas? A ineficiência da COHAB e SEHAB, leva a Prefeitura a construir barracos em vez de casas. – ESP.

Na ocupação cotidiana realizada pelos próprios favelados a forma com que vizinhos os contestam é diferente. Escrevem cartas aos jornais reclamando da incompetência do poder público que não fiscaliza as áreas livres. Pedem atuação urgente para impedir a proliferação de mais favelas. Quando a favela já está instalada, pedem a remoção, através de abaixo-assinados pelo bairro. Este procedimento ocorre até os dias atuais, embora nos últimos anos de forma não muito acentuada, pois a tendência é ir resolvendo sozinho e tentando mudar de bairro, quando isto é possível. Quando se conversa com moradores de casas de alvenaria, tem-se como resposta uma pergunta esclarecedora: “Eu pessoalmente não tenho nada contra, tem até algumas pessoas que conheço que são trabalhadoras, mas todos dizem que tem muito marginal, né?”. E acrescentam: “E você, gostaria de ter uma favela vizinha da sua casa?” (Depoimentos). Nas ocupações coletivas não tem havido grandes mobilizações de vizinhos para obstar a entrada, o que está relacionado, de um lado, ao impacto da ocupação, sempre muito rápida – da noite para o dia – e com muita gente: a forma de contestação mais visível é o aviso imediato à policia, “porque foi tanto barulho que pensamos que eram uns maloqueiros” (Depoimento de morador). De outro lado, nas ocupações delimita-se mesmo que precariamente, um arruamento e dependendo do tamanho da área, prevêm-se as áreas livres para praças e equipamentos comunitários. Além disso, as ocupações em geral ocorrem em áreas 111

Na procura do lugar o encontro da identidade

dirigidos à Prefeitura e aos jornais, intermediados, até recentemente, pelos “vereadores” eleitos

relativamente extensas, mais distantes, com poucos vizinhos, mas, mesmo assim, no caso das ocupações de Osasco, divulga-se no dia seguinte, uma carta explicando os motivos da ocupação: a situação do aluguel e dos despejos e o descaso das autoridades com relação à moradia. Isto representa, pelo menos como principio para os vizinhos, que os ocupantes não são favelados, mas sim moradores de casas de alvenaria, que não estão mais podendo pagar aluguel. Como uma grande parte da vizinhança é também inquilina, é em geral, solidária com os ocupantes. Tanto para os ocupantes como para os vizinhos – que pertencem a mesma classe do favelado – “a favela é lugar de sujeira, doenças, de marginais, muito embora tenham bons amigos na favela”. Ou seja, como diz Marilena Chauí, a ideologia dominante é da classe dominante. A fala “competente” torna-se a fala da maioria dos moradores da cidade. Mas não é só através da ação da Prefeitura que ocorrem deslocamentos forçados dos ocupantes. È muito comum ocorrerem os despejos através das Ações de Reintegração de Posse. Até o início da década de 70, as remoções por reintegração de posse ocorrem sem – pelo menos aparentemente – resistência. Sobre estas ações, esclarece Baldez:

Arlete Moysés Rodrigues

“Os dois grandes guardiões da propriedade no arcabouço da normatividade jurídica são: a desapropriação (garantia de indenizabilidade) e as chamadas ações possessórias ou interditos possessórios. A desapropriação protege o bem em si mesmo como valor econômico, e as ações possessórias, fazendo o papel de sentinelas avançadas do sistema, dão pronta garantia à simples relação factual entre homem, possuidor, e a propriedade, pela simples razão de aquele homem parecer o proprietário... Quanto às ações possessórias, ou interditos possessórios, assemelham-se a um grande cobertor estendido pelo Estado em torno da posse, que o direito define como aparência da propriedade. Essas ações são de três espécies, cada uma delas envolvendo momentos distintos do confronto entre o destituído, os “sem-terra”, e aquele que, tendo a posse, é ou parece ser o proprietário. No primeiro momento, é considerada a mera ameaça, conferindo-se a quem se diga ameaçado (o aparente dono da terra ou o grileiro) a medida judicial de interdito proibitório, uma ordem dada pelo juiz para impedir que se toque na posse; no segundo momento, leva-se em conta o fato possível de que a posse (ou propriedade) já vinha sendo tocada, turbada, diz a lei, e aí o direito concede ao dono da terra, ou ao grileiro, a ação de manutenção na posse, meio judicial de impedir as ocupações não consumadas; no terceiro e último momento, dá-se a medida de reintegração de posse, que, como o próprio nome diz, tem a força de reverter os fatos já consumados, servindo na hipótese das ocupações, para o despejo da comunidade. Vê-se pois, que a vontade da lei, que juizes e tribunais aplicam no concreto dos conflitos de posse, é evitar a ocupação ou, se consumada, a de despejar prontamente os ocupantes. Por isso, para tornar essa vontade mais forte e eficaz, sempre que os atos de ocupação datem de menos de um ano e um dia a lei autoriza os juizes a concederem a manutenção ou reintegração de posse liminarmente, sem ouvir a outra parte, isto é, os ocupantes”. (Baldez, 1986 – Op. Cit. p. 10-16 – grifos meus)

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Assim, em ocupações recentes (menos de um ano e um dia) os proprietários solicitam a liminar de reintegração de posse e sumariamente os ocupantes são despejados. (sintomaticamente os ocupantes dizem eliminar). Como norma geral, é necessária a presença de forte aparato policial para a desocupação, pois a resistência acaba ocorrendo pela necessidade de não ter para onde ir. Destaca-se que a ação chama-se reintegração de posse, quando quem está na posse são os ocupantes. Como já dito na parte 1, o que circula, no caso da terra, é o título de propriedade e não a terra, pois não tem valor ou uso e sim o papel, que é título de propriedade. As ações possessórias ocorrem tanto nas ocupações cotidianas e individuais das favelas como nas coletivas. No caso das favelas, não tem sido líquido e certo que o pedido seja julgado procedente. Em 1979 um pedido de reintegração de posse foi indeferido porque o proprietário havia autorizado, em 1912, a ocupação da área por um dos moradores (Favela do Coroados da Vila Prudente). No caso das ocupações esses pedidos têm sido considerados procedentes, pois a visibilidade das ocupações ocorrem já num primeiro momento. O receio de que as ocupações tornem-se norma nas áreas vazias, leva a que se procure não dar-se tempo de concretizar as ocupações coletivas. Há alguns casos em que o Judiciário tenta conciliar as partes envolvidas. Em Osasco, acabou não se concretizando. O parecer do Juiz ao conceder a liminar exatamente após um mês do terreno ocupado, é sintomático: “O poder judiciário, por sua vez, também está sensível ao problema de moradia e não está alheio à triste realidade nacional, esperando também que urgentes soluções surgem em socorro a aflição do povo. Porém não pode o poder judiciário permitir que eventuais distorções e discordâncias políticas e de classe tumultuem a ordem social e legal na alegada pretensão de resolver o problema de moradia e de reforma agrária, invadindo-se áreas particulares. Lamentavelmente os ocupantes da área em questão terão que desocupá-la já que, pelo menos para esta fase, ficou suficientemente demonstrada a posse anterior dos autores e o esbulho que aqueles praticaram” (Osasco, 26/02/88 – Niwton Azevedo – Juiz de Direito)

E assim, mesmo reconhecendo a necessidade de moradia, a propriedade é garantida, na defesa da ordem. Como pode o poder judiciário ser “sensível ao problema de moradia” e decretar despejo? Além do mais, não se questiona o fato de que pelas posturas municipais deveriam as terras vazias estarem muradas e conservadas. Questiona-se apenas a ocupação por 113

Na procura do lugar o encontro da identidade

houve tentativa de mediar as negociações, pois o movimento propôs a compra da área, que

parte dos sem casa, ao mesmo tempo, em que o fato dos proprietários entrarem com pedido de liminar no primeiro dia útil após a ocupação, “ser um demonstrativo da vigilância sobre a área”. Nas favelas, ocupações já solidificadas, quando ocorre o despejo, são chamados a intervir: a polícia, para garantir a desocupação e o poder público municipal para evitar calamidades públicas, encontrando um novo lugar para instalar os favelados. (Pela Lei Orgânica dos Municípios é responsabilidade da prefeitura zelar pelo bem estar da população local). Tem sido comum conseguir-se a ampliação dos prazos de despejo até arrumar-se um outro lugar para alojar os despejados. Os processos de reintegração de posse tramitam na esfera do poder judiciário, onde se define a propriedade que confere o direito de uso do terreno e o despejo dos ocupantes que não têm o título. Resolve-se um conflito – garantia da propriedade – e cria-se um novo que deverá ser resolvido em uma outra esfera do poder: o executivo local. Um novo abrigo para os despejados deverá ser providenciado, com várias alternativas de atendimento, sendo que a mais comum é a remoção das famílias para um outro lugar. A “liberação da área” não ocorre sem conflito, sem tentativa de permanência dos ocupantes. Existe também um conflito entre os diversos segmentos do aparelho estatal, no caso aqui citado, entre o Judiciário e o Executivo. Mas, sem dúvida, garante-se o título de propriedade. Já nas ocupações coletivas é mais rara a intervenção do poder público municipal para encontrar um outro lugar para os moradores, pois a liminar de reintegração é executada em curto prazo e “presume-se” que os ocupantes podem voltar para o lugar de onde vieram.

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Nas falas dos proprietários é comum dar-se grande ênfase à questão jurídica, utilizando-se termos desconhecidos para garantir sua propriedade. No Jardim Veloso, o proprietário da área, (12 horas após a ocupação) enfatizava que tinham o direito de usar suas próprias forças para retirar os ocupantes, pois estava sendo esbulhado. No texto de Baldez, acima citado, fica evidente que é necessária uma medida judicial quando há ameaças (o interdito proibitório); quando esta já se efetivou, pode-se impedir a entrada de outros (ação de manutenção de posse), mas para os que já estavam na área só restava a liminar. Mas havia todo um aparato de intimidação, inclusive com trator para derrubar os barracos já construídos. A outra fala muito visível era de alguns policiais que a todo momento buscavam avisar as pessoas que deveriam sair, pois estavam em área particular. Ou seja, nas falas sobre a

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propriedade, o respeito a quem detém o titulo jurídico, o papel, é muito forte, mais do que a própria necessidade, pois parece um direito que nasce com o individuo. Embora em todas as Constituições se coloque como fundamental a função social da propriedade (Rodrigues, A. M., 1988), o valor do título jurídico é muito maior do que a necessidade. O discurso sobre a função social da propriedade tem esbarrado nas leis menores (do que a Constituição) que representam uma proteção à propriedade. Ou seja, há uma falácia sobre a função social, que é cristalizada na prática pela proteção pura e simples da propriedade. Ou talvez seja melhor explicitar que a propriedade vazia tem uma “função” social no capitalismo, que é a de conferir aos proprietários individuais uma renda que decorre da produção social da cidade. Com a aprovação do usucapião urbano, após cinco anos de ocupação sem contestação, vamos ver frutificar com rapidez as contestações de áreas ocupadas para impedir a permanência em muitas áreas já ocupadas. Na favela Jaqueline, instalada em área particular, no período de discussão sobre o usucapião urbano, o suposto proprietário da área, em aliança com o Presidente da Sociedade Amigos da Favela, começou a oferecer os lotes ocupados para compra, exigindo documentos de comprovação de salários, como uma forma de pressão sobre os desavisados, pois o direito de usucapir é diferente de compra40. reintegração de posse, embora deva zelar pelos seus munícipes e encontrar um outro lugar para alojar os que foram desalojados pelo próprio município. No caso de Osasco, o prefeito argumenta que, se não proceder desse modo, a cidade vira um caos, com todo mundo ocupando terra, tornando-a o paraíso das ocupações. Diz ainda que as terras da prefeitura são para construir casas, quando se tiver dinheiro, e até lá devem ficar desocupadas, se não vai dizer: “É o prefeito de Osasco que estimula as invasões”. E, acrescenta, a terra é de todos os que moram na cidade e não apenas de um bando de invasores (depoimento – pesquisa de campo). O discurso da defesa da propriedade é incorporado por todos os moradores da cidade pois não se tem a dimensão de que produz a cidade e de quem “valoriza” as terras vazias ou mesmo as ocupadas. É preciso deixar evidente este processo e desmistificar o fetiche da propriedade da terra.

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Veja-se parte subseqüente, em que relatamos a questão da iniciativa popular sobre a Reforma Urbana, nesta favela.

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Na procura do lugar o encontro da identidade

Deve ficar registrado que o poder público também entra no judiciário com pedidos de

Esta defesa da propriedade, apresenta alguns aspectos contraditórios. Embora a indústria da construção civil seja considerada um dos esteios da economia, para construir é preciso espaço. Ora, muitos proprietários deixam suas terras vazias, aguardando um aumento de preço. Para a indústria de construção civil, tal fato é prejudicial, pois as terras em estoque não estão disponíveis para a produção de unidades habitacionais. Alem do mais, quem lucra com este “deixar a terra vazia” é o proprietário das terras, muitas vezes às custas também do trabalho da indústria de construção. É preciso então, para uma produção mais “equilibrada do espaço”, que se tenha mecanismos de controle sobre a propriedade abusivamente vazia e concentrada. Nesse sentido, a indústria de construção, principalmente a de edificações de moradias, tem tentado mudar a legislação. Somam-se às vozes dos movimentos na questão da função social da propriedade. Mesmo porque o alto preço exigido pelos proprietários acaba tornando a produção final da habitação inacessível para os trabalhadores, reduzindo, portanto, o mercado real para a compra de unidades habitacionais. Em que pese que as atividades de produção sejam privilegiadamente da iniciativa privada, é sempre com recursos do Estado que se conta para a produção da unidades das chamadas classes desfavorecidas. O mais comum, na produção de unidades para as faixas de interesse social pelo SFH, é de que a compra das terras seja iniciativa dos agentes promotores – Cohabs, Inocoops, Prefeituras - , o que permite que a indústria de construção seja liberada deste ônus, já as edificações têm sido realizadas pela indústria de construção, contratadas pelo SFH, e a comercialização das unidades é iniciativa do agente promotor. Fica resguardada assim, para a indústria de construção o seu lucro e para o proprietário da terra a sua renda.

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Mas o SFH não tem atuado de forma contínua na produção de habitações, o que faz com que a indústria de construção se mobilize para demonstrar sua importância, sob o argumento de que gera um grande número de empregos e de que é vital para o crescimento econômico elevado: “Se pretende obter uma taxa de crescimento econômico per capita da ordem de 5% a 7%, é necessário que o setor da construção participe com 7% a 9% da economia nacional”. (Azevedo, A.L. – 24/3/88).

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Propõe que este investimento seja realizado de várias maneiras, entre as quais a simplificação do financiamento, o incentivo à indústria de construção e não ao mutirão, a canalização de recursos para a iniciativa privada, e a dotação orçamentária para o FUNAPs. É também cristalina a defesa realizada pelos empresários da indústria de construção para a existência de instrumentos mais “modernos” na Constituinte: “A questão urbana já está colocada como de Segurança Nacional. Para superar essa dramática realidade devem ser tomadas atitudes sérias, firmes e responsáveis. ... Uma Constituição cujo texto não adote uma postura moderna sobre as questões ideológicas, como as da propriedade, do Estado, etc. corre o risco de ser um retrocesso ... Diversas são as propostas, mas a sociedade e o governo só poderão avançar a partir do momento em que o setor da construção for reconhecido como a engrenagem principal para a expansão do PIB, e como uma das mais importantes fontes geradoras de empregos”. (Azevedo, J.A. FSP – 10/2/88)

Em artigo mais recente, o mesmo autor enfatiza que o problema habitacional é um problema político e: “todos os recursos do sistema devem ser aplicados no custeio de programas de conteúdo social” (FSP, 16/6/88). O que não explicitam, é que os recursos de que falam são recursos públicos e que ao longo dos últimos 20 anos, foram, com os mesmos argumentos, utilizados para aplicar na Muito embora os representantes da indústria de construção civil considerem que as favelas, cortiços, ocupações sejam apenas uma questão de carência de unidades habitacionais no mercado, verifica-se que seus interesses colidem com os interesses dos proprietários de terras, pois, para estes, interessa a terra vazia (que aumenta de preço devido à produção social), de onde extraem suas rendas. Para a indústria interessa a disponibilidade de terras a preço baixo no mercado, pois é da produção que extrai seus lucros. Buscam, assim incentivar, que o Congresso Constituinte aprove medidas como a taxação territorial progressiva que poderá traduzir-se em incentivo à ocupação dos espaços urbanos vazios e como outra forma de viabilizar o aumento do número das construções. Esperam que, aumentando-se o número das unidades construídas, se resolva o problema das moradias em cortiços, favelas e ocupações coletivas. Já vimos que o aumento do número das unidades produzidas não provocará uma diminuição dos preços das unidades, pois o preço das novas unidades redefinirá o preço das antigas. A produção de um novo espaço provocará com certeza o aumento do preço da terra. Não será o aumento do número de empregos na indústria da construção civil que possibilitará 117

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indústria de construção.

a compra da casa própria, pois neste setor os salários pagos aos trabalhadores são extremamente baixos41. Quanto ao crescimento econômico, tão alardeado quando da criação do BNH, e do período do “Milagre Econômico”, não permitiu melhor condição de vida aos trabalhadores que lhes possibilitasse adquirir ou alugar uma moradia decente.

3. AS ALTERAÇÕES NAS FALAS E NAS PRÁTICAS SOBRE OS FAVELADOS E OS OCUPANTES – OS MESMOS PERSONAGENS E AS NOVAS IMAGENS São visíveis a partir da segunda metade da década de 70, as mudanças nas referências sobre o favelado, que se expressam nas notícias de jornais e nos planos governamentais. São notícias sobre caravanas de favelados que se dirigem aos gabinetes de prefeitos, para expressar suas reivindicações e sobre os encontros: locais, regionais e nacionais de favelados, demonstrando uma nova visibilidade política, ocupando um „novo‟ espaço nos jornais, nos órgãos públicos e secretarias de estado. Ganham expressão também alguns „novos‟ interlocutores: a igreja, os estudiosos do assunto de moradia, os partidos políticos de oposição e os novos planos de habitação, nas esferas federal, estadual e municipal. Começam favelados e ocupantes a serem entrevistados nos jornais e revistas, passando a ser também interlocutores. É importante frisar que um maior conhecimento da realidade começa a tornar-se visível, com os estudos sobre marginalidade, pobreza urbana, uso do solo, enfim sobre as chamadas questões urbanas. As discussões teóricas, baseadas principalmente em pesquisas empíricas, sobre a realidade urbana e nacional são realizadas, em geral, no âmbito da academia 42

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. Mas, como se inserem na produção social de existência, não se restringem aos seus limites;

pelo contrário, fazem parte da produção social como um todo. No mínimo, porque uma parte considerável dos técnicos que trabalham nos setores públicos, é constituída por universitários, facilitando o intercâmbio entre a pesquisa acadêmica e a realidade de trabalho. As discussões sobre o conceito de marginalidade e sobre a população favelada atingem, desde o início da década, algumas agências governamentais e tenta-se, através de pesquisas empíricas, delimitar o universo de favelas, a situação de trabalho e de moradia dos favelados. Já citamos alguns trabalhos que desde o início da década de 60 são realizados no Rio de Janeiro. 41 42

Veja-se Maricato, E. op. cit. Veja-se principalmente os trabalhos de Kowarick, Lúcio, sobre a marginalidade urbana.

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Em São Paulo, os estudos eram mais restritivos, vinculados à relativamente pequena dimensão do fenômeno favela, mas, já no início da década de 70 realizou-se um cadastramento/pesquisa oficial de favelas (1972/73), um recadastramento em 1974/75 e, em 1976, foram feitas pesquisas em cortiços, tentando caracterizar o universo dos moradores de sub-habitação da cidade. A maioria dos grandes municípios também realiza cadastramento das favelas e, em 1980 pela primeira vez na Sinopse do Censo Estatístico do IBGE, consta o número de favelas, de barracos e de população favelada. Muito embora os números sejam considerados modestos em relação à dimensão do fenômeno favela, é importante constatar que passa a ser de domínio público a existência e o número de favelas. Mas nos mapeamentos oficiais ainda constam as áreas ocupadas como áreas “livres”, exceto nos mapeamentos especiais de favelas. Como um dos resultados das pesquisas, dos debates e da participação dos favelados na vida política, muda a concepção dominante que se tem dos favelados. Não se considera mais a favela como um lugar de transição do rural ao urbano. Afinal, prova-se que 59% das favelas tinham em 1975 mais de 5 anos de existência. Na sua maioria, quem chegou ficou, ou seja, não era um lugar de passagem, mesmo porque, indagados sobre a razão de morar na favela, a maioria respondeu: não podia pagar aluguel. As pesquisas também mostraram que não eram só empobrecimento da classe trabalhadora como um todo, a alternativa viável para garantir a sobrevivência era a favela, ficando evidente que uma grande maioria dos favelados já tinha morado numa casa melhor que o barraco de favela (Rodrigues, A.M., 1981). Mas, apesar de aprofundar-se o conhecimento sobre as características do morador da favela, mudando a concepção dos estudiosos e de algumas agências estatais43, ainda predomina, como senso comum, a concepção de favelado como marginal, como não trabalhador e como migrante recente. Arraigou-se esta concepção que, como já dito, é facilmente percebida até mesmo nos ocupantes de terra. E a favela é entendida como: lugar de promiscuidade, de degradação moral. O que não quer dizer que não houve mudanças nas concepções; no entanto constata-se que tais mudanças não atingiram a sociedade como um todo. O próprio Prefeito de São Paulo, em afirmações recentes, mostra-se disposto a: “liberar as áreas e acabar com os focos de moradias irregulares e verdadeiros focos de contaminação moral” conforme

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Em geral aquelas que trabalhavam diretamente com as favelas e cortiços.

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migrantes que moravam nas favelas, mas que, cada vez mais, devido ao processo de

publicado no Diário Oficial do Município. Alerta também que nenhuma favela deverá receber melhoria, mas sim que se deve erradicar este mal (FSP – 11/5/88). Notícias como estas mostram que, apesar do conhecimento sobre os moradores da favela e sobre a própria favela ter aumentado, ainda permanecem os conceitos que desconhecem a realidade. Poder-se-ia pensar ser esta uma voz isolada, mas na verdade, representa o poder municipal eleito e expressa o que pensa pelo menos uma parcela da população da cidade de São Paulo. Afirma o Prefeito Jânio Quadros que a favela é uma ignomínia, mas o que: “não é verdade é que há nelas „muitos viciados, meretrizes e vagabundos profissionais‟, que deformam o caráter de menores de setores amplos da população” (Suplicy, E.M. 1988). O Prefeito quer erradicar todas as favelas do município, cujo crescimento foi de 1039% em 14 anos e que em 1987 representam, segundo os dados oficiais, 150.497 barracos, correspondendo a 818.872 pessoas, ou seja, aproximadamente 8% da população morando em 1.594 favelas (FSP 11/5/88 – grifos meus). É possível então afirmar que o conhecimento sobre as causas da favela não atinge a todos os moradores da cidade, pois, para mudar esta concepção seria necessário procurar compreender a produção espacial da cidade. E aí está uma tarefa para nós pesquisadores: como tornar visível a realidade que é tão intransparente? Pois mesmo o Secretário Especial do Meio Ambiente do Ministério do Desenvolvimento Urbano afirma que embora os migrantes sejam os menos culpados, já que:

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“chegam e encontram para se assentar apenas os terrenos marginais: os altos de morro, as ares de mangue ou de baixadas mal saneadas ... constroem desordenadamente arremedos de casas, desmatando e agravando as situações de instabilidade de encostas ou, quando nas áreas baixas e mal drenadas, criando focos insuportáveis de poluição e doenças” (FSP, 15/6/88).

Ora, falta analisar os porquês da ocupação de tais encostas, etc. Mas fica evidente que continuam a ser considerados, os favelados, como causadores de doenças e problemas urbanos. Mas é importante também frisar o que mudou, pois como diz Peter Burger, “uma nova época se instaura antes que se chegue a formular a questão de quão decisivas são as alterações do momento” (citado por Rouanet, 1987). Muito embora não esteja tratando de mudanças de épocas, penso que é importante assinalar as alterações que ocorrem nas falas, sabendo que o

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novo e o velho estão juntos, ou seja, que não há uma ruptura nas falas ocorrendo para todos e ao mesmo tempo. Célia Sakurai, ao analisar as relações das SABs – Sociedades Amigos de Bairros com o poder local, conclui que o novo e o velho estão presentes ao mesmo tempo, na nova forma de articulação das SABs com o poder público. Ou seja, que há uma modificação do velho discurso, da concepção de fazer política como os movimentos sociais da segunda metade da década de 70. O velho discurso muda incorporando o novo (Sakurai, C. 1984). No período que estende de 1977/78 até os dias atuais (exceto para o município de São Paulo, cujas mudanças parecem ter estacionado ou mesmo “regredido” em 1985, com a eleição do novo prefeito), houve alterações nos planos de governo. Já foi dito da criação do FUNAPs e das novas formas utilizadas pela população na utilização desse recurso. Um outro modo de utilização dos recursos, pelo próprio poder público, foi através dos programas de melhorias nas favelas (Pró-luz, Pró-água e Melhorias simples). Evidenciam-se, especialmente no início da década de 80 os planos que visavam atender de maneira mais ampla as favelas do Município. Embora muito alardeadas no período préeleitoral de 1982 pelo PDS, o único implementado em larga escala foi o Programa de Energização das Favelas, o Pró-luz, que atendeu inicialmente às favelas localizadas em áreas públicas e posteriormente as localizadas em áreas particulares, desde que autorizadas pelo particulares explica-se: considerava-se que a colocação de luz era uma garantia e um reconhecimento de permanência. A ampliação da instalação de luz nas favelas localizadas em áreas particulares foi resultado de um longo processo reivindicatório dos moradores. Estes programas são divulgados e ocorrem em um período de ampla mobilização dos favelados que se dirigiam em caravanas ao gabinete do prefeito, reivindicando a posse da terra e melhorias de infra-estrutura. Na época, a “palavra de ordem” do prefeito, era de que não haveria mais desfavelamento e remoção. No entanto, estes continuaram em áreas consideradas necessárias para a realização de obras públicas ou de riscos de vida para a população. Tentouse, no processo de remoções, incluir os favelados nos programas da COHAB – SP, nos conjuntos habitacionais e no PROMORAR, ou então em favelas onde havia espaços vazios (as “favelas adensáveis”). Transferir os barracos para áreas onde já existiam favelas provocavam menor resistência da vizinhança e a prefeitura não era responsabilizada pelo aparecimento das mesmas. Incluir no PROMORAR, seria dar conta de atender reivindicação antiga dos favelados, isto é, ter casa de alvenaria e o papel de propriedade da terra. Ao mesmo tempo a 121

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proprietário ou em áreas de litígio. Esta restrição inicial às favelas instaladas em áreas

favela é erradicada, muito embora as novas unidades tivessem apenas 20 m2 de área construída em lotes de apenas 70 m2. Explicita-se em vários documentos e notícias que ter luz e água são direitos da população citadina, pois a água de poço está geralmente contaminada pela fossa, provocando o aparecimento de uma série de doenças. Portanto, promover o abastecimento de água potável através de rede pública é uma forma de garantia da saúde dos favelados, mas é também um aspecto positivo para a população como um todo, pois as áreas deixam de ser um foco de doenças contagiosas. Quanto ao abastecimento de luz, também considerado um direito, leva-se em conta que a vela, lamparina, lampião, podem provocar incêndios. Estes projetos estão respaldados em uma “nova” interpretação da Lei Orgânica dos Municípios que obriga a Prefeitura a zelar pela saúde, higiene e bem-estar da população. Mas há também vozes contrárias à instalação de luz e água nas favelas, pois consideram, que ao assim proceder, o poder público está “promovendo” a fixação da favela, além de atrair outros migrantes para estas áreas faveladas. A urbanização deve ser vista como uma solução provisória. O editorial do jornal “O Estado de São Paulo” de 26/9/79 afirma que a urbanização de favelas não é o caminho certo para acabar com elas. Argumenta que o favelado, pelo fato de não pagar aluguel, compra televisão e outros utensílios e se for para casa da COHAB vai ter que abrir mão do consumo, portanto o objetivo do plano habitacional do município deveria ser o de acabar com as favelas e não mantê-las, não devendo também melhorá-las. Para isso, argumentam, foi criado o FUNAPs. No mesmo sentido, o editoria da FSP de 26/9/79 adverte para o risco de , com as melhorias, institucionalizarem-se as favelas, afirmando também que a

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ação de urbanizar deveria ser acompanhada de educação. O argumento de que instalar água e luz na favela provoca a fixação e o aumento das favelas é irreal, pois mesmo sem água e sem luz as favelas não pararam de crescer. No mesmo período em que se discute esta implantação de serviços nas favelas, o presidente do Banco Mundial (Mac Namara) fica surpreso com o número de favelas em São Paulo (FSP, 9/11/79). Portanto, não se desconhecia que o crescimento das favelas não estava vinculado à instalação desses serviços. O temor era o de que mudasse a concepção da favela, pois isto poderia significar uma melhor compreensão da produção do urbano. O discurso sobre as favelas mantêm-se para continuar a mistificar as causas da pobreza urbana, pois interessa a

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permanência da concepção de que a favela existe por opção do morador, pois se quiser trabalhar poderá mudar de vida. Para os favelados, a obtenção desse direito é uma vitória, um reconhecimento: “se a prefeitura nos deu água e luz, se nos der o esgoto está nos dizendo com isso que tem gente morando na favela. Eu acho que esse é o primeiro passo para se conseguir a posse do terreno” (depoimento – FSP, 30/12/80 – grifos meus). Há nesta fala vários aspectos a serem ressaltados. Os programas de água, luz e melhorias são implantados em um período de ampla mobilização dos favelados que se dirigiam em caravanas ao Gabinete do Prefeito, reivindicando a posse da terra e as melhorias de infra-estrutura. Ora, obteve-se fundamentalmente água e luz que , para alguns movimento de favela representavam uma garantia do reconhecimento de sua existência e possibilitavam a continuidade das lutas. Para outros, significavam uma forma de desmobilizar, pois acreditavam que, garantida uma condição de vida um pouco melhor, os participantes dos movimentos se acomodariam. A verdade é que obtidos a água e a luz, continuou-se a luta para que a cobrança desses serviços fosse feita por uma taxa única para todos. E aí fica mais uma questão: porque se considera que viver um pouco melhor acomoda o indivíduo? O utilizar o discurso da acomodação não significa que se incorporou o mito da apatia do povo brasileiro? Viver um “memória fraca”, para poder melhor atuar? No bojo desta questão, parece que é melhor, para adquiri-se consciência, uma vida das mais precárias. Os setores dominantes já nascem com uma qualidade de vida invejável, tendo possibilidades de pensar sua condição de vida. Porque para o trabalhador significa acomodação? Um outro aspecto que chama a atenção é o de que os favelados compreendem que, à medida que o poder público promove a instalação de equipamentos de consumo coletivo, reconhece a sua existência como trabalhadores que podem pagar pelo consumo da água e da luz. Reconhece que existe gente morando, como diz o entrevistado acima citado. A instalação de água e luz nos barracos tem várias implicações: a) reorganiza o espaço interno da favela, tornando-o mais parecido com a urbanização em geral, pois para colocar os postes de luz é necessária a abertura de vias mais largas do que muitas das vielas existentes, o que permite um maior controle do espaço;

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Na procura do lugar o encontro da identidade

pouco melhor não pode propiciar ter condições de pensar sua condição de vida e deixar de ter

b) para a instalação de água, há também que se abrir vias que prevejam o escoamento das águas servidas (há uma diferença entre os dois tipos de redes, pois a elétrica é aérea e a de água e esgoto são subterrâneas, implicando em deslocar os barracos para abertura de vias e também instalar uma rede que muitas vezes está sob os barracos); c) tanto em um caso como no outro, desmontar os barracos para que se instalem as redes, pode significar não poder mais remontá-los, pois as madeiras se estragam. Isto de um lado tem facilitado – para alguns – a construção de casas de alvenaria aproveitando a necessidade de deslocamento; e para outros tem resultado em maiores dificuldades de reconstrução; d) possibilita a incorporação de novos compradores ao mercado de eletrodomésticos, mas também os inclui como consumidores de água e luz. Exige-se em muitos lugares, como comprovação de residência, a apresentação das contas de luz e/ou água. Ora, esta instalação torna assim os indivíduos moradores, verdadeiros cidadãos-consumidores; e) atende a uma parte de reivindicação dos moradores; f) há um reconhecimento tácito da ocupação, mesmo ilegal, das terras; g) há uma busca de legitimação no plano político pelo Estado, pois mostra sua capacidade de atendimento, esperando ser reconhecido na próxima eleição. Acrescente-se à expansão de luz e água os projetos de melhoria e urbanização nas favelas. Em São Paulo, em 1983, é divulgado o plano habitacional da PMSP, que propõe:

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“intervenção em favelas através da urbanização de núcleos em áreas cujas condições físicas e legais permitam sua consolidação e integração à cidade. Para aquelas não passíveis de urbanização, serão realizadas melhorias de modo a minorar os problemas da baixíssima qualidade de vida de seus moradores, permitindo-lhes suportar a espera pela solução definitiva de seu problema de moradia” (PMSP – 83 – grifos meus).

Em Osasco o “Programa Casa para Todos” prevê a urbanização das 94 favelas do município, com permanência local, quando for possível, ou em outras áreas do município. Na verdade, hoje em Osasco já são 116 núcleos de favelas, mas o projeto prevê apenas o atendimento das favelas conhecidas na data de sua elaboração. Em todos os planos é visível uma mudança de concepção do favelado. É visto como um trabalhador que “mora mal”, não porque quer, mas sim porque seus baixos salários, ou o

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desemprego, impedem-no de adquirir uma habitação digna. Porém, de modo geral, permanece a idéia de que aumentando-se a produção de habitação para a população de baixos salários resolver-se-á o problema de moradia. Sem dúvida a produção de habitação é insuficiente, mas não é só com o aumento do número de unidades produzidas que se dará conta das favelas e das ocupações. Na verdade, o próprio poder público reconhece esta questão, pois considera que as melhorias de equipamentos públicos nas favelas é uma forma de atenuar as precárias condições de vida. Mas continua a considerar-se como necessária a integração da favela ao tecido urbano. A favela precisa ser integrada ao tecido urbano e à legalidade de ocupação da terra. A integração ao tecido urbano dar-se-á pela retirada das “características” insalubres de sua ocupação, fazendo-se um loteamento, definindo tamanho de lotes (embora, como já dissemos, sempre de tamanho menor do que as casas de outros segmentos sociais), construindo casas de alvenaria. Esta integração favorece também a circulação interna e assim, dizem, “os marginais não mais poderão esconder-se nestes lugares hoje saneados”. A disciplina na forma de ocupação do espaço se impõe. A integração à legalidade dar-se-á pela definição da propriedade. A definição da propriedade foi tentada pelo PROMORAR, mas as construções foram em número tão pequeno que sequer esbarram na questão. Programa ambicioso com resultados acima (SP e Osasco) a definição de propriedade também dar-se-ia pela Concessão do Direito de Uso. O Movimento dos Favelados de São Paulo lutava pela Concessão de Direito Real de Uso, sem pagamento de taxa por um período de 90 anos, na mesma forma de concessão feita aos clubes esportivos. Reivindicavam também a desafetação de todas as áreas de uso comum ocupadas. Foi encaminhada para aprovação na Câmara Municipal a proposta de estabelecimento do Direito de Uso, por um período de 40 anos, com pagamento de taxa mensal e apenas referente a 56 áreas de uso comum. Projeto que não é votado por falta de quorum e posteriormente é retirado (D.O. do Município de São Paulo 23/12/85). Com a mudança de prefeito em São Paulo em 11/1/86, houve mudanças substanciais nas propostas e, como já visto, o atual prefeito propõe acabar com as favelas, removendo-as e não as urbanizando. Há hoje, lideranças que reavaliam a forma como encaminharam a questão, pois significou uma perda muito grande a não aprovação do projeto mesmo que na forma proposta pelo executivo. 125

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modestos, significou mais uma tentativa de legitimação do governo militar. Nas duas propostas

Em Osasco, a proposta continua em andamento, mas ao final de quase 6 anos de governo, nenhuma favela conseguiu ainda a regularização fundiária ou a construção de casas. Em Diadema, também município vizinho de São Paulo, foi, em 14/10/85, aprovada pela Câmara Municipal a Concessão de Direito Real de Uso, que ainda não se efetivou pela demora no encaminhamento da questão jurídica. Nas notícias e nos planos há mudanças e permanências. Permanece a concepção fundamental de favela como lugar de sujeira que possibilita a degradação física e moral. Mas é também, nas novas falas, o lugar onde moram os trabalhadores. É preciso urbanizar, integrar no tecido urbano, tornar um lugar higiênico, disciplinar pelas normas vigentes, para tornar o lugar mais adequado à vida na cidade. É erradicar nos sentidos das características e não mais da população ser removida, arrancada para outro lugar. Estas mudanças estão relacionadas tanto com a questão da incapacidade de resolver-se a questão da moradia, como com a necessidade de tornar as cidades tão higiênicas como as fábricas. Mas as notícias também mostram a permanência das velhas falas, pois cartas de moradores colocam a necessidade de tirar as favelas, de limpar as áreas que são redutos de marginais. Nos documentos elaborados pelos favelados também é visível a fala de que urbanizar as favelas é vantagens para os proprietários dos bairros. Justificando o projeto de Concessão de Direito Real de Uso, diz o documento dos favelados de Diadema:

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“1 – A favela vai acabar. Ela será urbanizada e as casas construídas de alvenaria. Isto significa que os imóveis dos proprietários ao redor das favelas de hoje serão muito mais valorizados; 2 – a favela deixará de ser um eventual esconderijo de „desocupados‟ Nela morará as famílias que de fato necessitem estar ali; 3 – Os proprietários terão um novo aliados na luta pelas melhorias do bairro, como: esgoto, pavimentação, escolas, postos de saúde e outros. Estas melhorias também são do interesse dos favelados e moradores do bairro”. (Diadema, setembro de 1985)

O atual Prefeito de São Paulo propôs um projeto, combatido pela oposição e aprovado pelo artifício do decurso de prazo, que possibilita à iniciativa privada construir unidades habitacionais para favelados que serão removidos pela prefeitura. Em troca a iniciativa privada poderá construir no terreno liberado, ou em outro de sua propriedade, alterando-se a lei de zoneamento. As implicações são muito numerosas: a) atribuir-se a um pequeno grupo, sem respaldo, mudar o zoneamento da cidade, sem levar em conta a capacidade do abastecimento dos serviços públicos;

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b) atribui-se a apenas um grupo o apropriar-se de um índice de construção, um acréscimo no coeficiente de aproveitamento dos terrenos, que pode ser excessivo, sem considerar os moradores da cidade; c) retoma a questão da favela “antro” que precisa ser abolido da cidade; d) atribuir-se a existência da favela apenas ao “déficit” habitacional; e) impede-se mais uma vez que a população participe de seus destinos, sendo removida, provavelmente para áreas distantes e desprovidas de de equipamento públicos; f) a Prefeitura arcará com o deslocamento da população; g) impedir-se-á a consumação de um direito, que passa atualmente de 20 para 5 anos, adquiridos no Congresso Constituinte – o usucapião urbano; h) propiciar-se-á a apropriação de renda diferencial por um grupo privilegiado, que deixou a terra sem uso, vazia, e que por isso foi ocupada. Agora, quando a cidade já se expandiu, já se produziram muitos valores de uso, propicia-se um benefício: explicitamente a apropriação diferencial de renda. É o prêmio pelo nada fazer-se – por ter a propriedade - . Cálculos realizados mostram em um exemplo que:

E, seria preciso definir quem lucraria com estas mudanças. Possivelmente apenas os proprietários de terras e as empreiteiras. A primeira proposta aprovada, refere-se a um terreno de 2.000 m2 aonde serão construídos 17 casas para favelados. Cabe indagar se o objetivo é realmente desfavelar e quem lucraria com estas mudanças. É bom frisar, mais uma vez, que aqueles que produziram o espaço onde moram serão removidos para áreas distantes; será o castigo por não terem propriedade. Mesmo aqueles que têm a propriedade e construíram sobre ela serão penalizados por esta forma de apropriação de renda diferencial promovida pelo poder público, com o objetivo de „desfavelar“. Há que se levar em conta que o aumento do índice de ocupação provoca a

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“propõe-se dobrar a área permitida para a construção em um terreno de 3.732 m2, situado no Ibirapuera, Zona de alto padrão em São Paulo, em troca de 19 mil OTNs, quantia suficiente para a construção de apenas 19 casas populares. Isto significa que, se concretizada a operação, o metro quadrado do terreno estará custando para este empreendedor apenas 5OTNs, menos de 10% do seu valor de mercado”. (FSP – 23/5/88).

necessidade, a curto prazo, de ampliação das redes de água, luz, telefone, etc., que significa transtorno para a população ali moradora. Há, sem dúvida, mudanças nos discursos em relação aos sem terra/sem casa, expresso nos planos de habitação, tanto ao nível municipal como ao nível estadual e federal. No âmbito federal, em 1980, é instituído pelo BNH o PROMORAR – Proposta de Erradicação da SubHabitação, cuja proposta é agir nas favelas, mocambos e palafitas, recuperando-as e construindo habitações, provendo as áreas de infra-estrutura e de equipamentos. E, na maioria, a construção de um embrião de cerca de 20 m2. Neste programa esta implícito que o favelado é um trabalhador que recebe baixos salários, pois prevê financiamento em prazos de até 25 anos. Ora, para ser financiado é preciso ter um salário, mesmo que baixo, é preciso também comprovar uma relação de trabalho (mesmo como autônomo). Fica evidente que há mudanças de falas com relação ao morador de áreas ocupadas, pois a pretensão é retirar a ilegalidade da ocupação e não mais, como em outros períodos, retirar a própria população. É verdade que os resultados são muito modestos, pois, até o final de 1985, em todo o Brasil, haviam sido construídas apenas 151.811 unidades e 22 mil estavam em construção. Só em São Paulo, levando-se em conta apenas o número de barracos de favelas, seriam necessárias em 1985 mais de 150.000 unidades do Promorar e, no Brasil, mais de meio milhão de novas unidades. Há, por parte do poder público, uma busca de legitimação, no plano político, mas há também uma legitimação do morador da favela como um trabalhador que poderá ter acesso ã casa própria de limitadas dimensões. Incluída na maior parte dos planos governamentais está a ênfase no processo construtivo por mutirão ou autoconstrução. A autoconstrução – processo de trabalho calcado

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na cooperação entre as pessoas – intensifica-se na área urbana na década de 50, vinculada ao processo de industrialização e crescimento urbano e à transformação do sistema de transporte, com a ampliação da malha viária a ser percorrida por ônibus. Na grande São Paulo, estima-se que 63 % das habitações foram produzidas pelo processo auto-construtivo. Desde a década de 60 tem ocorrido algumas tentativas dos governos em atuar nos programas de autoconstrução, inclusive com financiamentos de aparências internacionais como a “Aliança para o Progresso” e o Banco Mundial. Em São Paulo, na década de 60, como já dito, uma parte das remoções foi realizada através do auxílio financeiro para compra de terreno e supervisão técnica para autoconstrução. Posteriormente, com financiamento da COHAB ampliam-se tais programas, que não se concretizaram em larga escala, pois, na

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avaliação da própria COHAB, os terrenos são dispersos, o que dificulta e encarece a assistência técnica “gratuita”aos moradores-construtores. Neste programas de atendimento, elaboram-se cursos de formação de mão-de-obra a cada interessado – financiado pela COHAB – constrói sua casa sozinho, ou com a ajuda da família. Na década de 70, amplia-se este processo para áreas onde há concentração de população, onde as construções possam ser realizadas no sistema de mutirão. No Rio de Janeiro, a primeira experiência em larga escala foi realizada na Favela Brás de Pina, com a urbanização da área e a construção das casas em alvenaria pelo processo de mutirão44. Em São Paulo, encontraram-se várias referências, principalmente a partir da regulamentação, pelo BNH, do FICAM – Financiamento de Construção. Aquisição, Melhoria da Habitação de Interesse Social. No período de 1983 a 1985, ao atuar especificamente nas áreas de favelas, a Prefeitura de São Paulo subsidiou a construção de 6.246 unidades, em 40 projetos, através do financiamento da FUNAPS. Já foi feita referência a este mecanismo que inicialmente funcionava a fundo perdido. A partir de 83, passou a: “ser operado como um modelo de financiamento, acessível para a aquisição de lotes, matérias de construção e moradias em embrião” (FABS, PMSP, 1986). A ênfase na maior parte dos financiamentos via FUNAPS é financiados de construção para 43.940 famílias. Números extremamente modestos, quando se constata a dimensão das auto-construções (Rodrigues, A.M., 1988, op. cit). Em outros programas do BNH, embora não explicitadas, há também propostas de autoconstrução. No caso do PROMORAR, a construção inicial de 20m2 poderá ser ampliada com recursos do próprio morador, ou mesmo com financiamento de material de construção. Ou seja, comercializa-se um lote e um cômodo que abriga a família de modo provisório. E considera-se que, com o tempo, dependendo de cada um, sejam construídos outros cômodos. É esta também a proposta contida no PROFILURB – Programa de financiamento de lotes Urbanizados – que prevê a comercialização de lotes dotados de infra-estrutura que devem ser ocupados em um prazo de seis meses. A forma de ocupação/construção prevista é através da autoconstrução e do financiamento do material de construção pelo FICAM. Portanto, embora não sejam especificamente programas de autoconstrução, eles têm embutido esta forma de produção de habitação. 44

Veja-se Santos, Carlos. N. , 1981 e Blank, Gilda, 1980.

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para a construção em mutirão. No caso do BNH, em um período de 25 anos foram

Há um discurso implícito nestas atuações. De um lado, reconhece-se o modo como os trabalhadores tentam resolver seu problema de moradia. Mas ao financiar o material de construção, inclui-se a assistência técnica “gratuita” para melhorar o padrão construtivo. Ou seja, reconhece-se o saber popular, mas procura enquadra-lo no saber constituído. E, além disso, o gratuito é irreal, pois o pagamento destes especialistas sairá das taxas desembolsadas pelo financiado, pois só na aparência são gratuitas. E, assim, disciplina-se o modo produzir. De outro, procura-se ensinar uma profissão àqueles que obtêm um financiamento, o que os levará a melhorar de vida, pois estarão mais aptos para o trabalho na área de construção. Portanto, permanece, ainda que de forma não muito nítida, a concepção de que precisam ser treinados para o trabalho na cidade e que só consegue financiamento de material de construção porque tem como pagar a construção mensal. Esta forma de produzir novas unidades favorece e legitimação do poder político, pois, como os “custos” são menores, pode-se “produzir” mais e, assim, aumentar nas estatísticas oficiais o número de unidades entregues para a população, ou seja, tenta-se demonstrar uma maior competência na produção da habitação. É preciso também considerar que a autoconstrução dilapida os trabalhadores. Ao findar um dia de trabalho exaustivo trabalha-se mais algumas horas para poder suprir a necessidade de morar. Como está, teoricamente, computado no salário o pagamento da moradia, significa que se trabalha duas vezes para que conste do salário a parte da moradia e a outra no descanso para que seja possível morar. Trabalho duplo para obter-se lugar para morar. Considerando que os recursos, quando vinculados ao SFH-BNH, são provenientes, em sua maior parte, do fundo de garantia – FGTS, é o próprio trabalhador que financia os

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recursos para produzir sua habitação. Como paga, o financiamento com juros e correção monetária (para que quando os trabalhadores desempregados retirem o Fundo de Garantia, tenha-se coberto a inflação), o trabalhador financia sua própria habitação. Há uma série de questões muito controvertidas, sobre a autoconstrução: a)

o tempo de trabalho investido não é calculado monetariamente, não faz parte do salário. No entanto faz parte do tempo de trabalho necessário para a sobrevivência. Dá-se então de forma encoberta em aumento de mais-valia absoluta, disciplinada pelo Estado em relação aos salários, pois é este que define o mínimo exigido para a sobrevivência do trabalhador e regulamenta as relações de trabalho.

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b)

Contribui para fazer com que o custo da habitação pese cada vez mais sobre as costas do trabalhador, embora deixe de fazer parte (real) do custo do salário. É muito comum o trabalhador que não paga aluguel e está desempregado, dizer: ainda bem que não pago aluguel, porque senão não poderia sobreviver”. Mesmo nas ocupações constata-se que ao cabo de um mês sem pagar aluguel, os integrantes do movimento consideram que os companheiros podem dispor de algum dinheiro para começar a construir em alvenaria ou mesmo fazer um cimentado no barraco. Se o Estado incentiva esta forma de produzir habitações, utiliza a força de trabalho dos próprios trabalhadores para poder legitimar-se junto aos mesmos.

c)

Ao incluir os projetos de autoconstrução nos seus programas de governo, o Estado acaba por impulsionar a autoconstrução. Ao mesmo tempo, isto faz com que os trabalhadores deixem de incluir a habitação nas suas reivindicações e passem a reivindicar os programas de autoconstrução. Este procedimento é visível em Osasco, pois em alguns momentos da discussão, os ocupantes colocam que como a Prefeitura mais barato autoconstrução porque não vão pagar mão-de-obra, o jeito é o poder público fazer o arruamento e eles mesmos construírem.

Há muitos outros aspectos a serem discutidos em relação à autoconstrução: é uma atitude reacionária em relação ao processo construtivo em si, pois impede uma forma mais racional de produzir habitação; tem elevados custos sociais e individuais que recaem sobre os setores mais pauperizados; provoca um alargamento da jornada de trabalho, o que desgasta rapidamente a força-de-trabalho; significa a manutenção da força-de-trabalho na reserva, que beneficia o capital, pois deixa de entrar, cada vez mais, no computo do salário. E ajuda a manter as relações de dependência em relação ao Estado. Diz Emílio Pradilha, que a

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não tem dinheiro para construir e vender casas prontas e, como fica

autoconstrução pelo Estado tem todos os vícios e nenhuma das virtudes, desta forma de produzir moradias45. Mas para os movimentos organizados não se pode falar de autoconstrução e sim de mutirão: um processo de trabalho conjunto, que é considerado uma forma de organização, de discussão de problemas e de avanço para solucionar os problemas de moradia. (Veja Bonduki, Nabil, 1987, Op. Cit.). E também uma forma de contestar as empresas de construção civil que fazem encarecer a produção da habitação. Neste último período do governo estadual, iniciado em março de 1987 e no municipal iniciado em janeiro de 1985, verifica-se uma ênfase na construção de unidades por empreiteras, pois se considera que as unidades são mais rapidamente construídas e de melhor qualidade46. A razão principal, no entanto, está relacionada com a ênfase dada às empreiteiras. Possivelmente também está aí embutida uma forma de desarticulação dos movimentos que se organizam para produzir habitação para os integrantes do grupo. É claro que tal organização pode efetivar-se para controlar a qualidade do processo construtivo; no entanto, como fica mais caro, o trabalhador terá que trabalhar mais horas para garantir o pagamento da prestação mensal, tendo assim menos tempo para controlar a produção da habitação. Há sem dúvidas mudanças nos discursos explicitados nos projetos do poder local, mudanças de referências sobre a concepção do favelado, que deixa de ser considerado marginal e passa a ser um trabalhador que recebe baixos salários. Busca-se minorar os seus males, através de projetos que tentam corrigir os “desvios” da concentração da riqueza, do “desequilíbrio” urbano. Muitas dessas alterações estão ligadas ao maior conhecimento da realidade do processo de urbanização, das condições de vida na cidade, da situação de trabalho,

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das relações de trabalho dos moradores das favelas e da produção e reprodução do espaço urbano. Há também alterações que estão mais diretamente vinculadas aos interesses da produção: aumento do mercado consumidor para determinados produtos, por exemplo, a instalação da rede de eletricidade permitindo o aumento do consumo de eletrodomésticos; a construção em alvenaria nas favelas, permitindo os consumos dos insumos industriais. Mas há também a permanência das falas e das praticas que continuam considerando os favelados

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Citei apenas alguns pontos da discussão sobre a autoconstrução que estão relacionados com a mudança em relação a favela, para um maior aprofundamento veja-se entre outros: Maricato, E. 1979 e 1987; Oliveira, F. 1972; Pradilha, E. 1985; Xavier, P.P.C.X. ,1985. 46 Vide depoimento do Secretário da Habitação do Estado – in: FSP, 02/06/1988.

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como marginais e as favelas como lugar foco de contaminação moral, sendo necessário extirpá-las. Há também a persistência do velho nessas mudanças de discurso. 3.1. Os partidos políticos nos movimentos

Considero de extrema importância a compreensão das características da atuação dos partidos políticos nas favelas e ocupações coletivas. Não é objetivo deste trabalho analisar a formação dos partidos políticos, as diferente concepções partidárias e, consequentemente, a forma de atuação em geral. Assim, vou apenas apontar algumas características da atuação partidária nas áreas de estudo. Para analisar todos os partidos políticos, seria necessário verificar os programas partidários vinculados a esta atuação. Em geral os programas partidários são muito amplos, genéricos e dizem respeito principalmente a propostas governamentais, se e quando eleitos os candidatos. Não há também diretrizes partidárias explicitas em todos os partidos para a questão da atuação em favelas e ocupações. Em um documento elaborado pelo CPV – Centro Pastoral Vergueiro - , são analisados os programas partidários do PDS, PDT, PMDB, PTB e movimentos populares (CPV, 1982). Utilizo este documento por considerá-lo uma síntese dos programas partidários. Ao analisar o programa do PDS, o documento do CPV, conclui que:

“sempre que coloca algum benefício à população, frisa que os empresários, o que quer dizer eles próprios, não seriam prejudicados e para isso receberiam benefícios fiscais ou as vantagens que forem necessárias para manterem seus lucros e garantias de poder (...) Os movimentos ligados a este partido, são em geral ligados a pessoas com vínculos aos políticos e governantes”. (p. 21)

A liderança entrevistada, Manoel Queiroz Filho (candidato à vereador), diz que discorda “da participação das SABs em campanhas ou atuação político-partidária” (p. 8), no entanto era até a sua candidatura presidente da SAB de Parelheiros. O PTB, tem seu programa mais voltado ao trabalhismo. Não há nenhuma referência especifica aos movimentos de bairros, mas: “apenas o compromisso em reconhecer todas as 133

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PT, além de entrevistas com lideres destes mesmos que tem uma atuação junto aos

„associações‟ e garantir a liberdade de organização popular” (p. 21). Fabio de Castro, militante de movimentos e candidato a deputado federal por este partido, diz que:

“todo movimento popular aparece geralmente em torno de uma pessoa ou um grupo que está usando aquilo lá para atingir uma certa meta que ele tem na cabeça. O movimento não tem nunca uma consciência dos objetivos finais que detonaram o processo”.

Diz ainda:

“eu não participei de movimentos populares, eu os criei”. (p. 16)

Estas duas entrevistas, mostram a postura destes partidos em relação aos movimentos. Em um caso, a participação embora seja visível, é negada. No outro considera apenas a possibilidade de manipulação pelas lideranças dos movimentos. Diz ainda a liderança do PTB, que, após as eleições, poderá ou não permanecer no PTB, o que pode indicar que não necessariamente as afirmações deste líder sejam condizentes com a postura do partido a que pertence. No seu programa, o PMDB afirma que seu objetivo é o de promover alternativas para que a população indique suas prioridades. Mas, diz a analise da CPV:

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“Só que indicar prioridades não significa decidir, e o seu programa traz soluções já prontas sobre todas as questões que afligem a população”. (p. 21 e 22)

Manoel Espíndola, presidente da SABs da favela da Vila Prudente, considera que na favela onde mora e atua, os partidos não têm muita influencia, e embora seja candidato pelo PMDB, diz que sua candidatura é de tipo raro, pois é candidatura de favelado. Afirma que: “não é que o favelado se envolva com os partidos, os partidos é que envolvem os favelados” (p. 13 e 14). Embora seja um candidato da favela e de um partido, considera os favelados facilmente manipuláveis, quando estão desorganizados, pois os partidos envolvem os favelados. Tem claro que é necessário que os favelados tenham representantes: 134

“nós temos um milhão de favelados que vivem no anonimato, e ninguém fala neles; nem oposição, nem situação falam desse mundo do favelado, que é marginalizado e muito mal julgado... Quem procura o favelado, procura não com aquela vontade de promover o favelado e eleger os seus próprios representantes”. (p. 15)

Considera que o partido que tem mais tradição para promover o favelado é o PMDB. O programa do PDT explicita que seu comportamento é:

“reconhecer todas as formas de auto-organização da sociedade”, prega uma reforma urbana “baseada na planificação de conjuntos de assentamentos humanos que se ajuste a um novo projeto nacional de desenvolvimento que atenda às necessidades do povo. Esta planificação (...), deverá articular-se com as organizações populares”. (p. 23)

O programa não explicita de que modo se dará esta articulação entre planificação e organizações populares. A liderança entrevistada, João Lima, candidato à vereador, um dos dos participantes das SABs não tem mesmo participação partidária, o que julga um equívoco:

“Eu acho que as SABs, seus militantes devem se filiar a um partido, seja de oposição ou do partido do governo, não interessa. O que interessa é ter conhecimento das coisas”. (p. 7)

Verifica-se uma mesma fala entre o programa do partido e esse líder, pois no programa se coloca o reconhecimento de todas as formas de auto-organização da sociedade e a fala de João Lima não explicita qual é o melhor partido, mas que importa conhecer. Diz ainda que esse conhecimento é muito importante, pois “os partidos políticos exploram os movimentos, que são até comprados através de oferta de empregos”... Considera que este processo vai demorar para acabar, mas que deve ser continuamente trabalhado. (p. 8) O programa do PT é o mais explícito em relação aos movimentos populares, pois: 135

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fundadores e primeiro presidente da Federação das SABs de Osasco, considera que a maioria

“o objetivo do movimento popular é que ele deixe saldos organizativos e políticos, portanto não se restringe ao caráter meramente reivindicatório” (p. 10). Considera: “que não há quem melhor saiba o que atende mais os interesses do povo que os trabalhadores organizados em suas entidades de classe e associações por local de moradia” (p. 12). Não se trata: “apenas de considerar a participação popular como boa, mas de lutar para que o povo possa dispor de canais concretos para participar das decisões” (p. 22).

Em 1987, o PT deixa mais explicita a importância do Movimento Popular e a pouca compreensão de seu significado em relação aos objetivos socialistas do partido, pois:

“O movimento sindical é bem mais compreendido, por ser mais permanente, por ter um caráter mais nítido de luta de classes e por existir uma vasta teoria a respeito. O grande drama dos trabalhadores é que suas vitórias sindicais no interior do processo são anuladas na hora de consumir os bens de serviço, que é o campo da luta popular. Por isso, o desenvolvimento e a relação dos dois movimentos tem não só importância política e ideológica. Tem ainda uma base material...” (PT – 1988, p. 25-6)

A liderança entrevistada pelo CPV, Delcisa Staufackar – Movimento de Transporte e Saúde –, coloca que:

“existe uma preocupação dentro do nosso movimento de que nenhum partido venha a aparelhar o trabalho que fazemos. Isto porque o movimento não é feito só por pessoas que tem militância ou opção partidária: o movimento tem que ter característica popular mais ampla. É aos poucos que os participantes dos movimentos estão escolhendo os seus partidos”.

Arlete Moysés Rodrigues

(p. 12)

A proposta é de conscientizar e de promover a organização dos movimentos. Muitas vezes isto colide com a proposta partidária, pois os participantes do movimento não reconhece os partidos que aí milita para votarem nele. O PC do B considera que:

“O programa é um instrumento pratico de trabalho para os comunistas, porque ajuda a levar as idéias do partido às massas. É a ferramenta de trabalho...” . Afirma que os comunistas devem:

136

“participar ativamente de todos os movimentos democráticos, patrióticos e sociais nas formas condizentes com os interesses das grandes massas da população (...) Propugna os seguintes objetivos(...) Reforma Urbana que assegure condições de moradia digna e acessível aos trabalhadores e as massas populares (...)” (PC do B – 1988 e Rabelo, R. 1988)

Não ficam explicitas no Programa as formas de participação nas lutas populares, mas é de conhecimento a participação dos militantes na ocupação de Terra na Zona Leste da cidade de São Paulo, pois:

“(...) a solidariedade à ação direta dos posseiros urbanos deve articular-se com a apresentação de propostas mais abrangentes para o problema da moradia (...)” (Jornal O Movimento – 12 a 18/10/1981)

As considerações acima foram limitadas aos partidos que têm maior representação nas áreas estudadas. Se o objetivo fosse analisar os partidos políticos através de seus programas esse seria um caminho a ser percorrido mais detalhadamente, pois, na verdade, as propostas são muito amplas.

votação do capitulo sobre a reforma urbana no Congresso Constituinte, onde, em que pesem as diferenças partidárias de PDS ao PT e PCs, em que pese também um resultado conservador, a proposta foi aprovada por 322 votos favoráveis contra um voto contrário (do senador Roberto Campos – PDS). Um outro modo de analisar as propostas partidárias nas peculiaridades de atuação nas áreas de favelas e de ocupações coletivas poderia ser através dos programas de governo pré-eleitoral e a efetiva atuação, após a eleição. Neste caso o espectro fica reduzido, pois se conseguiria apenas definir alguns partidos, os vencedores das eleições. Por outro lado, poder-se-ia também, realizar apenas uma análise quantitativa das metas propostas e das metas atingidas. Um outro entrave está ligado ao processo eleitoral. No caso da cidade de São Paulo, considerada “área de segurança nacional”, só após um período de 20 anos, em 1985 – com posse em janeiro de 1986 –, elegeu-se por voto direto um prefeito. E neste caso, o prefeito eleito, Jânio da Silva Quadros, do PTB, não tinha um programa explícito de atuação em relação 137

Na procura do lugar o encontro da identidade

Um aspecto que dá a dimensão da generalização dos programas partidários refere-se à

as ocupações e favelas. O que se pode observar foi a retomada das propostas de desfavelização, através das remoções de favelas para áreas distantes, bem como a criação de uma guarda municipal, que, sob as ordens de um Coronel (José Ávila da Rocha), tem auxiliado a desocupação de áreas de favelas e de ocupações coletivas, mostrando que são considerados “casos de polícia”. O comandante da guarda metropolitana já foi secretário da Secretaria da Família e Bem-Estar Social, durante a gestão do prefeito indicado pelo PDS47. Ora, o prefeito Reinaldo de Barros alardeava que na sua administração não ocorreriam remoções. O secretário de então é o mesmo que vai viabilizar a remoção de hoje, na administração de outro partido. Estes são alguns aspectos que nos indicam que a análise não pode estar vinculada apenas às propostas partidárias de um governo municipal eleito pelo voto direto. Quero ressaltar que, em Osasco, as eleições municipais realizaram-se regularmente com voto direto. Mas é digna de nota a ausência de planos específicos para as áreas de pesquisa, pois as ocupações coletivas em Osasco ocorrem a partir de fevereiro de 1987. Considerando ainda as alterações que ocorreram na política municipal em relação as ocupações e as favelas durante a mesma administração (PMDB – prefeito Parro, 1982 a 1988), a análise da atuação será realizada no decorrer do próximo capitulo. É verdade, que este caminho pode ser ampliado analisando-se as propostas de governos do Estado, que indicavam o prefeito do município de São Paulo. No entanto, também só em 1982 foi eleito por voto direto ao Governo Estadual, após 20 anos de indicação pelo Governo Federal. Assim, a análise da atuação pós eleição, embora por um período maior, também ficaria prejudicada. Por outro lado, já indicamos, embora sucintamente, as propostas

Arlete Moysés Rodrigues

da administração municipal, realizada logo após a eleição do governador e indicação do prefeito no período de 1983 a 1985. Já enfatizamos as diferenças em relação ao período anterior, principalmente em relação às favelas. Busca-se urbanizá-las, dotando-as de infraestrutura básica e tentando-se solucionar os aspectos legais da questão da terra, bem como a utilização de financiamento através do FUNAPs – compra de terras e financiamento para os moradores, com ênfase ao mutirão.

47

O prefeito na época era o Sr. Salim Curiatti, quando do afastamento do Sr. Reinaldo de Barros, também do PDS, que licenciou-se para candidatar-se ao governo do Estado.

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O maior embate em relação às favelas esteve vinculado à Concessão de Direito Real de Uso, extensivo a todas as favelas, com prazo de 90 anos e a título garantido, como reivindicado pelo MUF – Movimento Unificado de Favelas e MDF – Movimento de Defesa do Favelado48, e a proposta do Executivo de Concessão de Uso, para 56 áreas ocupadas, por 40 anos, definindo-se uma taxa para pagamento mensal. O Executivo, do PMDB, considerou como interlocutor o CORAFASP – Conselho Coordenador de Favelas49. De modo geral, as demais propostas eram similares aos dos movimentos, com a urbanização das favelas, construção em mutirão, não vinculação ao BNH, mas sim ao FUNAPS50. Em 1986 o Governo Municipal é assumido por Jânio Quadros, pela sigla do PTB. Não havia, como já dito, programas a serem analisados. Assim resta fazer menção à efetiva atuação. As propostas são de acabar com as favelas e impedir a consolidação das ocupações coletivas. Desativou-se a Secretaria do Bem-Estar Social, que tinha como objetivo trabalhar com a população carente do município. Ao atuar com a população mais carente, fazendo pesquisas nas favelas e cortiços, atendendo situações emergenciais, os técnicos, na sua maioria, defendiam as propostas advindas dos moradores de cortiços e favelas. Como muda a proposta de atuação em relação às favelas, é preciso desarticulá-los e isto ocorre com a extinção da Secretaria.

favelas e busca, com o auxilio da iniciativa privada, acabar com as favelas, através do “projeto de desfavelamento”. Neste projeto, em troca da mudança da lei de zoneamento, os proprietários de áreas ocupadas devem construir casas para remover os favelados, o que implicará, como já citado, em retalhar a cidade, não trazendo nenhum beneficio aos favelados e premiando os que deixaram a terra vazia, sem nada produzir51. Mas não só na esfera municipal houve mudanças, pois o Governo do Estado, eleito em 1986, do mesmo partido anterior – PMDB –, também mudou sua atuação. A ênfase agora é a produção de habitações, pois acreditam que a causa das favelas é a falta de moradias. O atual 48

Ligados à Igreja e de certo modo ao PT. Ligado inicialmente o PTB e posteriormente ao PMDB e PC do B. 50 Vide Plano de atuação do Município – 1983-1985. 51 Este projeto foi debatido pela Câmara Municipal. O PT e parcela do PMDB eram contrários, mas ele pode ser aprovado, pelo artifício do decurso de prazo, pois os projetos encaminhados pelo Executivo, considerados prioritários, mesmo não sendo votados, são aprovados por “omissão”, ou seja, os vereadores que estão com o prefeito não discutem o projeto e não dão quorum para a discussão, tentando se eximir da responsabilidade de serem coniventes com o prefeito. 49

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Na procura do lugar o encontro da identidade

Considera, a administração de Jânio Quadros, que é a falta de moradias que ocasiona as

governo dá ênfase também a forma de produção capitalista e não mais à autoconstruçãomutirão, beneficiando as grandes empresas de construção civil. O governo projeta a construção de 400.000 novas casas no Estado de São Paulo. O Secretário da Habitação, ao ser questionado sobre a carência e a forma de produzir as habitações, critica o governo anterior, do mesmo partido, afirmando:

“(...) a tese de resolver todo o problema habitacional por mutirões foi o grande apanágio do quadriênio anterior; mas concluiu tão somente 1.450 casas no interior, das 5.000 lançadas no Programa Municipal de Habitação e 1.707 da Capital, estas feitas pela Prefeitura. A nossa Companhia de Desenvolvimento Habitacional (CDH) ficou na média de duas mil unidades por ano (em todas as modalidades), tendo um custo administrativo superior ao valor das duas mil casas produzidas; e, quando assumimos, tivemos que suplementar recursos para todos os mutirões do interior (...) Portanto, o projeto não foi eficaz, nem eficiente e muito menos econômico. (...)”

Critica também a forma do governo anterior relacionar-se com os movimentos de ocupação de terra:

“Os „movimentos‟ da capital e adjacências fizeram mil acordos com o CDH, durante 3 anos; não receberam uma só casa. No nosso primeiro ano de gestão, fizeram conosco um acordo para a construção de 12 mil habitações na zona leste, prometendo não prosseguir nas invasões. Nós estamos construindo lá 6.097 casas e temos mais 9.657 licitadas; eles invadiram mais 187 terrenos, cujos proprietários obtiveram a reintegração de posse de seus imóveis na Justiça, desalojando-os. Portanto, nós não os iludimos e nem os reprimimos; a polícia apenas cumpriu ordens judiciais conseqüentes da irresponsabilidade de certas lideranças dos movimentos” (Branco, Adriano – FSP 02/06/88)

Arlete Moysés Rodrigues

Esta longa citação, esclarece alguns aspectos já mencionados, como o fato do mesmo partido ter propostas diferentes em relação às ocupações e favelas. Em um caso privilegiam-se as organizações por mutirão, noutro, as empreiteiras, considerando-se, inclusive, a ineficácia e ineficiência dos governos de um mesmo partido. Além disso,

responsabilizou-se os

movimentos pelas ocupações. Mas há também aí embutida uma critica à administração anterior, que não deu conta de produzir habitações em número suficiente para acabar com as ocupações. Mais ainda, fica evidente que considera-se que o governo anterior ludibriou os movimentos, pois “fizeram mil acordos com o CDH durante 3 anos e estes não receberam uma só casa”. Cumpre esclarecer que este Secretário da Habitação, que no artigo citado, critica 140

o governo anterior, foi Secretário dos Transportes do governo que está criticando. Esta breve síntese dá uma amostra das dificuldades para se analisar a atuação dos partidos, via poder executivo, pois além de parcial obedece aos jogos de interesses não explícitos nos programas partidários. Um outro modo de se analisar mais especificamente a atuação dos partidos seria através da pesquisa das eleições de vereadores e deputados estaduais e federais com suas características de atuação. Esta seria uma outra pesquisa, sem dúvida muito importante, mas que foge ao proposto neste trabalho, inclusive porque seria difícil conseguir verificar se, concretamente, foram os participantes de um determinado movimento que elegeram, ou votaram, num determinado vereador. Um outro, que poderia complementar este encaminhamento de pesquisa, diz respeito à atuação diferenciada dos vereadores em relação aos casos concretos. Logo após a eleição do governador, deputados estaduais e vereadores e indicação do prefeito, foi constituída, em abril de 1983, na Câmara Municipal de São Paulo, uma “Comissão Especial de Melhoria de Vida nas Favelas” – CEI de favelas, com o objetivo de analisar os problemas da favela e do favelado, tendo como presidente o vereador Antonio Carlos Fernandes do PTB.

projeto Novos Rumos, que: “visa a ação comunitária nas favelas na busca de solução de seus problemas prioritários” (CEI de favelas, 1984). Fez-se uma série de levantamentos de prioridades e se tirou como forma de atuação a criação do Conselho Coordenador de Favelas – CORAFASP – que visava um trabalho com as lideranças das mesmas52. Posteriormente, o CORAFASP realiza encontros locais e congressos, paralelos aos do MDF. Incorporam-se ao CORAFASP os movimentos de favelas ligados ao PMDB e ao PC do B, dele afastando-se o vereador que o iniciou, pois tinha como projeto ser candidato à Prefeitura de São Paulo, pelo PTB. Como sua candidatura não se viabilizou por este partido, criou um novo partido: PMC – Partido Municipalista Comunitário – para implantar sua proposta que, iniciada na favela, pretendia passar para a cidade como um todo: a Prefeitura da Super Quadra, através do Movimento Comunitário Brasileiro53.

52 53

Entrevista com o vereador Antonio Carlos Fernandes. Vide MCB – Prefeitura de Super Quadra e Projeto Novos Rumos - C.M.S.P.

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Na procura do lugar o encontro da identidade

A CEI de favelas relata os problemas dos favelados e, ao seu final, transformou-se no

Criou-se, também, no âmbito da mesma Câmara, para analisar de modo mais abrangente o problema da habitação, a CEI de habitação – Comissão Especial de Inquérito sobre os problemas de Moradia na Cidade de São Paulo, sob a presidência da vereadora do PT – Luiza Erundina de Souza, e que se estende de novembro de 83 a dezembro de 1984. Na apresentação da conclusão dos trabalhos evidenciam-se as seguintes propostas:

1) baixar o preço da terra urbana em São Paulo, através da: atualização do valor venal, criação de um sistema de alíquotas diferenciadas, criar um IPTU progressivo sobre terrenos vazios, criar leis que dêem ao município poderes para impor aos proprietários dos terrenos uma destinação social, promover um plano diretor, promover um programa de destinação de recursos públicos para a construção de habitações populares em áreas urbanizadas; 2) ocupar as terras vazias já com infra-estrutura: com promoção de loteamentos públicos e privados, reconhecimento de posse aos ocupantes sem terra na capital, promover uma política de assentamento nas áreas vazias centrais da cidade; 3) controlar as decisões da prefeitura quanto aos investimentos públicos; 4) orientar os investimentos públicos para atender às necessidades sociais postas pelos trabalhadores. (D.O.M. 24/12/1984)

A CEI de habitação levanta questões retomadas frequentemente pelos movimentos e incluídas na proposta da Iniciativa Popular sobre a Reforma Urbana. Não propõe e nem implanta nenhum mecanismo articulador dos movimentos como o fez a CEI de favelas com o projeto “Novos Rumos” e o CORAFASP, deixando evidente diferenças de atuação parlamentar, de acordo com a vinculação partidária. Mas, só um estudo detalhado e mais aprofundado pode dar conta de todas as especificidades destas questões. Cumpre ainda relembrar que esta atuação pode também ser analisada através da

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aprovação dos projetos do Executivo por omissão. Um processo de aprovação que só depende da omissão, da ausência dos vereadores, como foi o caso da aprovação do Projeto de Desfavelamento do prefeito Jânio Quadros, que conta com a maioria da Câmara a seu favor, pois embora esteja partidariamente pouco numerosa a representação do PTB, o prefeito aliciou aliados do PDS, PFL, além dos vereadores sem partido54 e encontra opositores em parcelas do PMDB e do PT como um todo.

54

Os vereadores “sem partido” foram eleitos pela sigla do PMDB mas, dada sua vinculação explicita com o prefeito, dele foram expulsos.

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É importante ainda situar um outro aspecto na relação entre os movimentos e os partidos políticos. Em geral, nos movimentos não há aceitação de vinculação partidária, pelo menos explícita, nem pelas lideranças, nem pela maioria dos participantes, pois consideram que esta vinculação retira-lhes a autonomia. As interpretações feitas nos últimos anos vêem na ação autônoma dos movimentos um alargamento da esfera do político, sem o monopólio político dos partidos. E, nesse sentido, paralelamente a emergência de novos campos de ação política, surgem novas formas de fazer política e também novos agentes políticos. É uma nova forma de produzir espaços citadinos55. Mesmo considerando que os movimentos tentam “resguardar-se” dos partidos políticos e dos poderes constituídos, para manter sua autonomia, sua nova forma de fazer política e de produzir espaços, foi possível observar ao longo da pesquisa de campo uma vinculação dos partidos com os movimentos e não o inverso, a vinculação dos movimentos aos partidos. Como afirma Manoel Seabra:

Tento agora fazer uma exposição sucinta da participação partidária nas áreas pesquisadas. De início esclareço que, embora o CORAFASP tenha representação em várias favelas de São Paulo, a pesquisa em algumas delas, como na favela Jaqueline no Butantã, não pode ser realizada com as lideranças, pois fui identificada com o Partido dos Trabalhadores 56. Como a liderança está ligada ao PMDB, fica a questão: se os movimentos consideram mesmo sua autonomia, qual seria o sentido de barrar uma pesquisadora por ter sido identificada com um partido diferente do das lideranças? Ou seja, trata-se de autonomia ou de isolamento? A tentativa de pesquisa na favela Jaqueline foi realizada no período de coleta de assinaturas para a proposta da Emenda Popular na Constituinte – Reforma Urbana. As 55

Sobre a autonomia dos movimentos veja-se, entre outros, Leschner, 1984; Tilman Evers, 1984; Cardoso, Ruth, s/ data. Durham, Eunice, 1984. 56 Inadvertidamente tinha em meu carro uma propaganda do PT. Além do que, a Iniciativa Popular pela Reforma Urbana foi elaborada principalmente com representantes de movimentos ligados ao PT e à Igreja.

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Na procura do lugar o encontro da identidade

“(...) na forma predominante de fazer política a presença de lideranças partidárias tem significado ausência de autonomia. Por outro lado autonomia não pode ser confundida com isolamento, pois a questão da autonomia tem que ser resolvida sem negar o direito de cada um dos membros do grupo de vincular-se politicamente a formas de organização social mais amplas a que constitui o referido grupo”.

lideranças foram procuradas para organizar debates com os moradores, explicando quais as propostas contidas no documento. Como isto não foi possível, alguns moradores levaram a proposta para ser assinada por seus vizinhos e amigos. Quando o presidente da Sociedade de Amigos da Favela Jaqueline viu foi logo dizendo:

“esse negócio da Constituinte não serve para nada, não adianta nada assinar. E os vizinhos que achavam boa a proposta, ficaram desanimados. Não assinaram, porque também ficaram com medo, né? (...) é que é o presidente que distribui o „ticket‟ do leite”. (Cida, moradora da favela)

Na favela, Vila Operária, embora também tivesse sido identificada com o Partido dos Trabalhadores, fui apresentada por um militante do PMDB, o que nos colocava numa situação privilegiada, pois duas pessoas de dois partidos diferentes estavam com a mesma preocupação: a pesquisa acadêmica, e a proposta da Iniciativa Popular para a Reforma Urbana57. Nesta favela também predomina uma organização vinculada ao CORAFASP. A liderança é “reinaldista” (PDS) atribuindo ao ex-prefeito Reinaldo de Barros o fato da favela ter sido urbanizada. Esta foi a primeira favela em que os barracos foram construídos em alvenaria na cidade de São Paulo, com recursos do FUNAPS. Conta com água, luz, e uma forma precária de esgotamento sanitário. Não se consideram favelados, e sim moradores de uma vila. As lideranças femininas ligadas ao PMDB afirmaram que já estavam cansadas de o pessoal só ir lá em época de eleição. Consideram a urbanização da favela como um direito e

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como resultado de uma luta e não como um privilegio dado pelo Prefeito. Acham que o movimento não pode ser partidário e que devem utilizar-se de todas as formas possíveis de auxilio para melhorar a vida na favela. As favelas da região estão organizadas com o CORAFASP, e ao que tudo indica a relação com os partidos é a mesma em toda a região, ou seja, os partidos buscam o movimento para conseguir sua legitimação (seja o poder público, seja a busca do voto) e o movimento os utiliza para conseguir benefícios que melhorem sua condição de vida.

57

A apresentação foi feita por Célia Sakurai, pesquisadora das transformações na SABs no Butantã e que tinha um trabalho anterior na área.

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Em Osasco, são os militantes do Partido dos Trabalhadores que atuam como grupo de apoio nas ocupações coletivas de terras do “Movimento Terra e Moradia”. Há um outro grupo, conhecido como Grupo de Floriza, ligado ao PTB, em especial ao ex-prefeito e atual candidato à Prefeitura – Francisco Rossi. A análise da atuação partidária do “Movimento Terra e Moradia” será realizada no terceiro capítulo deste trabalho.

3.2. As Alterações na Fala: A Igreja

DO: Vendeu fiado para Deus, vai receber depois da morte (Tom Zé – música: pecado rifa e revista)

PARA: A constituição de sujeitos imbuídos de fé numa luta terrena pela justiça social (Eder Sader).

(as favelas) e coletivas (as organizadas) a Igreja é um dos protagonistas principais. É possível analisar a atuação da Igreja nas favelas desde praticamente a criação da Fundação Leão XIII em 22/01/1947, pelo Decreto Presidencial 22.498/47. Em estudo que visa principalmente a compreensão das políticas de Estado e da Igreja Católica para as favelas do Rio de Janeiro, Vicente Valla e outros deixam evidente as mudanças que se produzem na atuação da Igreja58. Mostram esses autores, como a atuação da Fundação Leão XIII caracteriza uma mudança na relação classe dominante/população favelada na época em que esta instituição é criada. Os favelados deixam de ser vistos como elementos que vivem uma vida perniciosa e passaram a ser considerados como indivíduos que têm valor humano e que devem ser amados de modo todo especial. O princípio metodológico de atuação junto aos favelados é dirigido para a formação de uma consciência segundo a qual a população trabalhadora seria a responsável pelas suas condições de vida, consequentemente pela sua superação (Valla, op. cit., p. 48 a 53 – grifos meus). De modo geral, 58

Em “Educação e Favela” – V. Valla e outros analisam como as políticas modificam-se de uma conjuntura para outra. Buscam compreender a proposta educacional contida nos programas e na atuação da Igreja no período 1940-1985, desde a Fundação Leão XIII até a Pastoral de Favelas - veja-se Valla, V. (Org.), 1986.

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Na procura do lugar o encontro da identidade

No processo de constituição desses novos sujeitos coletivos nas ocupações cotidianas

durante um longo período, busca-se a reeducação social do favelado, de modo a promover sua integração ao urbano. Dizem ainda os mesmos autores que, com a criação da Cruzada São Sebastião (no Congresso Eucarístico de 1955), há uma relativa desativação e descaracterização da Fundação Leão XIII. As diferenças entre as duas também são apontadas pois:

“Para a Fundação, a finalidade era dar assistência material e moral à população favelada através da manutenção de escolas, ambulatórios, creches, maternidades, cozinhas e vilas populares. Já para a Cruzada, a finalidade perseguida era „dar solução racional, humana e cristã ao problema das favelas‟. Para tanto traçou como objetivo desenvolver „uma ação educativa de humanização e cristianização no sentido comunitário, partindo da urbanização como condição mínima de vivência humana e elevação moral, intelectual, social e econômica (...) De modo simplificado, tem-se a Fundação como mais assistencialista e a Cruzada, embora também o fosse, incorpora novos elementos que visam a perspectiva de integração social das populações mais carentes, tais como a urbanização” (Valla, op. cit, pp. 64-65)

Embora a análise destes autores esteja vinculada às propostas da Igreja para o Rio de Janeiro (dada a própria dimensão das favelas nesta cidade), então imbricadas com a atuação em São Paulo. Pois, como já dito, a proposta de educação como uma forma de integrar o favelado ao urbano, está contida nos projetos de Vilas de Habitação Provisória da Prefeitura de São Paulo. Ora, as VHPs são propostas da Prefeitura de São Paulo e estamos falando da Igreja. Mas, tanto a Fundação como a Cruzada são criadas pelos poderes públicos para atuar nas favelas e podem também ser consideradas tanto atuação da Igreja como do Estado. Além disso, a atuação em favelas, pelo menos em São Paulo, tem sido realizada por instituições

Arlete Moysés Rodrigues

municipais onde predominam como técnicos os profissionais que fizeram o curso de Serviço Social. Foi nas escolas de Serviço Social onde se deu a penetração e a ampliação das atividades de desenvolvimento comunitário. O desenvolvimento comunitário é definido pela ONU em 1965 como sendo:

“um processo através do qual os esforços do próprio povo se unem aos das autoridades governamentais, com o fim de melhorar as condições econômicas, sociais e culturais das comunidades, integrar essas comunidades na vida nacional e capacitá-las a contribuir plenamente para o progresso do país”. (In: Valla, op. cit. pp. 67-68)

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Fica mais uma vez evidenciado que trabalhadores são considerados culpados por não terem um lugar decente para morar, pois não estão contribuindo “plenamente para o progresso do país”. E a ação comunitária-educacional colocá-los-ia em condições de contribuir para a sociedade, como se ainda não contribuíssem. Assim, embora nem a Fundação, nem a Cruzada atuassem em São Paulo, está presente a mesma concepção na atuação tanto do Serviço Social, como posteriormente, na ação da Secretaria de Bem-Estar. Ao mesmo tempo, a Ação Comunitária do Brasil também estará atuando nas favelas. De certo modo, diz Vicente Valla, a Ação Comunitária do Brasil é parte da concretização da proposta de desenvolvimento comunitário da USAID – Aliança para o Progresso. A ACB, procura mostrar que, se educado, o favelado tem condições de resolver seus próprios problemas. A ação comunitária fundada em 30/12/1966 tinha como uma das finalidades demonstrar a eficácia do desenvolvimento comunitário e de como o setor privado se organiza, junto com o governo, para atacar as deficiências sociais urbanas. Ficam também implícito que uma forma de educar o favelado é: ensiná-lo a construir sua casa, pois ao mesmo tempo passa a ter um abrigo e uma profissão.

1968, uma posição da Igreja francamente posicionada em prol dos pobres e oprimidos, como atesta Francisco de Oliveira, ao analisar as condições de crescimento das forças populares e de criação da SUDENE:

“os sucessivos encontros dos Bispos do Nordeste, o primeiro em Campina Grande em 1956 e o segundo em Natal em 1959, no acender da luzes da própria SUDENE, questionam o direito a uma propriedade socialmente inútil. Pode-se dizer que isso não era mais que um distante eco da Rerum Novarum, mas mesmo assim foi a maior parte da hierarquia católica da região que assumiu as novas posições” (de defesa dos interesses populares). (Oliveira, F., 1981, p. 12)

Mas será sem dúvida a partir de Medellín que ficará mais evidente a nova proposta de atuação da Igreja. Para situar a atuação da Igreja, pós Medellín, recorri e me apoiei em Eder Sader que, ao analisar a matriz discursiva da Igreja na América Latina –, diz que:

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Na procura do lugar o encontro da identidade

Não é possível atribuir apenas ao período pós-Encontro dos Bispos em Medellín, em

“a „salvação‟ é anunciada na instauração de condições de vida mais humana. O „humano‟ não está aqui contraposto ao „divino‟, mas pelo contrario, parece como manifestação de Deus. E as ações dos grupos comunitários da periferia, expressavam novos valores vinculados às reivindicações feitas. No lugar do pedido de um favor aparecem reclamações de um direito. Os discursos pastorais aplicaram as categorias de discursos religiosos (a verdade, a justiça, a palavra de Deus e o Povo de Deus, o Pecado e a Libertação) aos temas da vida cotidiana: Constituíram assim sujeitos imbuídos de fé numa luta terrena pela justiça social” (Sader, Eder. Op. cit, pp. 139-160)

Na sua nova forma de atuação, a Igreja tem sido uma presença importante nos movimentos populares, pois, em fevereiro de 82, no 2º Encontro dos Favelados de Campinas, foi elaborado o “documento dos favelados sobre a terra”, encaminhado como subsídio dos favelados à 20º Assembléia Geral da CNBB. A posição da Igreja é explicitada no documento “Solo Urbano e Ação Pastoral”, elaborado na 20º Conferência dos Bispos Brasileiros – CNBB, em Itaici – 1982, que aborda o problema da terra nas cidades. Neste documento, a moradia é colocada como um direito e a luta pelo acesso a ela é uma luta, que se expressa cotidianamente, pela justiça social. Analisam-se as características de crescimento das cidades, alerta-se sobre o processo concentrador de terras (e de rendas) e sobre a necessidade de alterar-se tal situação para evitar-se a continuidade de um sofrimento aos despossuídos. Explicita-se o direito à propriedade para todos:

“A terra foi dada a todos e não apenas aos ricos. Quer dizer que a propriedade não constitui para ninguém um direito incondicional e absoluto. Ninguém tem o direito de reservar para si aquilo que é supérfluo, quando a outros falta o necessário”. (CNBB – 1982, p.25)

Arlete Moysés Rodrigues

Explicita-se assim a questão da chamada função social da propriedade. Não há uma contestação da propriedade em si, mas sim a contestação da concentração abusiva de terras, que deixa sem terra muita gente e muita terra sem gente. Coloca também o documento o modo como a Igreja deve entender as ocupações de terra, pois:

“o direito ao uso de parcela do solo urbano que garanta a moradia adequada é uma das primeiras condições para a realização de uma vida autenticamente humana. Portanto, no caso

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de muitas ocupações lentas e até nas „invasões‟, o titulo legitimo da propriedade, derivado e secundário, deve ser julgado diante do direito fundamental e primário de morar, decorrente das necessidades vitais das pessoas” (idem, p. 27)

E cita o Concílio Vaticano II, pois: “aquele que deve se encontrar em extrema necessidade, tem o direito de tomar, dos bens dos outros, o que necessita” (ibidem, p. 28). Fica evidenciado, neste documento, que o humano, na sua vida terrena, como manifestação divina, deve ter condições de vida digna, e não apenas esperar “o depois da morte”. Colocando-se coerentemente com a opção preferencial pelos pobres, assumida em Puebla, a Igreja, de acordo com o documento sobre o solo urbano, se propõe a uma ação evangelizadora, caminhando e lutando ao lado dos pobres, apoiando as diversas formas de organização e mobilização populares e ao mesmo tempo, denunciando a mistificação que confunde a luta do pobre pela justa posse do solo com subversão. Pelo contrário, é considerada subversão a situação de extrema miséria em que vive a maioria dos trabalhadores brasileiros.

das Comunidades Eclesiais de Bases, e nas instituições da Igreja que se empenham em colaborar na solução do problema de moradia, tais como as comissões de Justiça e Paz, Comissão de Pastoral da Terra, Pastoral de Favelas, Pastoral da Periferia, Centros de Defesa de Direitos Humanos, e construção de casas em processo de mutirão, que se tornou possível, segundo o documento, pela atuação da Cáritas do Brasil. Esta mudança é visível na periferia da cidade de São Paulo e em Osasco, áreas objeto de nossa pesquisa. Em qualquer concentração pela defesa da moradia, há sempre um representante da Igreja local, um padre ou um Centro de Defesa dos Direitos Humanos, comprometido com as lutas populares, fornecendo assessoria, um lugar para reuniões e discussões de seus problemas comuns. É importante também lembrar que não há um bloco monolítico na Igreja; pelo contrário, há uma diversidade de atuação. Mas esta análise refere-se à atuação dos setores da Igreja comprometidos com os pressupostos de Puebla, com os despossuídos; assim a atuação 149

Na procura do lugar o encontro da identidade

É evidente a mudança de matriz discursiva da Igreja, que se consubstancia na atuação

nas áreas de favelas e das ocupações apresenta características semelhantes, através das pastorais da terra, da periferia e das favelas. Para os setores mais conservadores da Igreja, a atuação permanece assistencialista, com características semelhantes às da cruzada São Sebastião. Em São Paulo, para subsidiar o trabalho de grupos de base, dos agentes pastorais, foi elaborado um documento-cartilha sobre o “Solo Urbano e Ação Pastoral”, cujo item o “que a Igreja tem feito e pode fazer” procura esclarecer a atuação da Igreja, e por isso o transcrevo:

“Na busca de soluções para questão do solo urbano, a Igreja já tem feito: a) casas populares na base do mutirão, com apoio da Cáritas Brasileira; b) doação de terrenos da Igreja para o povo construir suas casas; c) formação de Comissões de Justiça e Paz, de Pastoral da Terra, Centros de Defesa dos Direitos Humanos, serviços de assistência jurídica - tudo em defesa dos direitos dos moradores; d) trabalho de conscientização das comunidades populares.

Vejam quanta coisa ainda podemos fazer:

a) Levar todos os cristãos a conhecerem melhor a situação das favelas e suas causas; b) difundir o principio cristão de que a propriedade tem função social. O direito de uma família morar está acima da lei que regula a propriedade do terreno; c) lutar para acabar com a idéia de que morador de favela é marginal; d) nunca aceitar que a luta do pobre pela posse do solo não seja um direito seu e, portanto, não é subversão; e) formar comunidades de base na periferia e nas favelas; f) mostrar que a dificuldade de se ter um terreno está ligada aos baixos salários e ligar sempre mais a luta pelo terreno com a luta dos trabalhadores por melhores salários; g) levar a Igreja a ser a primeira a dar um bom testemunho nesta questão do solo, não fazendo especulação imobiliária” (Província Eclesiástica de São Paulo, 1982, p. 50-51)

Arlete Moysés Rodrigues

No contexto da mudança de falas da Igreja, surge, em 1978 o “Movimento de Defesa do Favelado” – MDF –, em Santo André – município vizinho de São Paulo e integrante da Região Metropolitana – e logo se estende por toda a região do ABC e São Paulo. Nas notícias de jornais, a partir de 1979 a Igreja se faz presente, principalmente junto com o MDF59. Em maio de 1980 estes realizaram seu primeiro Encontro Nacional, onde concluem que seus objetivos devem ser:

59

O MDF foi incluído nesta parte do trabalho, pois são padres da Igreja Católica que assinam as convocatórias para os primeiros Encontros Nacionais. Veja-se Dossiê 1983-CPV.

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“denunciar as condições de opressão, miséria e exploração do povo; organizar os moradores em favelas, conscientizando-os de sua situação; lutar para o direito de moradia, não aceitando o despejo, a remoção ou a reintegração de posse, bem como lutando pela urbanização de favelas”.

Em 1983, o MDF realizou o 3º Encontro Nacional onde fica mais claramente sistematizado que moradia é um direito, que deve impor limites à propriedade e que as leis devem ser feitas com a opinião da maioria para beneficiar a todos e não somente uma minoria. O 3º Encontro Nacional, foi realizado após divulgação do documento da CNBB, “O Solo Urbano e a Ação Pastoral”, e contém explicitamente os mesmos princípios de direitos, de justiça social e de limites à propriedade individual. Em 1987, o MDF realizou o seu 7º Encontro Nacional, ao qual estiveram presentes representantes de 12 Estados. Durante o ano de 1987 sua grande bandeira de luta foi a Reforma Urbana, participando com seus representantes leigos na elaboração, na coleta de assinaturas e na entrega das propostas ao Congresso Constituinte, em Brasília. Durante este processo, as lideranças de favelas fizeram-se representar por moradores e não por continuidade das lutas, em junho de 1988 foi realizado o 8º Encontro Nacional. Com uma vinculação menos estreita com a Igreja, tem-se também o MUF – Movimento Unificado de Favela e Promorar, que, em São Paulo, começou a organizar-se em 1983, para reivindicar a Concessão de Direito Real de Uso e a cobrança de taxa mínima pelos serviços de luz e água (1% do salário mínimo) nas favelas, áreas urbanizadas e conjuntos do PROMORAR. As premissas do MUF e MDF são semelhantes: não aceitar a remoção; propor a urbanização de favelas; a concessão de direito real de uso aos favelados que ocupam áreas públicas – por um prazo de 90 anos e sem pagamento; usucapião urbano para as favelas que ocupam áreas de propriedade particular. Consideram a moradia digna um direito e propõem que seja definida a função social da propriedade. Não são oponentes nas suas reivindicações e propostas, mas enquanto o MDF está mais vinculado à Igreja, o MUF está mais vinculado aos leigos cristãos que atuam principalmente no PT – Partido dos Trabalhadores.

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Na procura do lugar o encontro da identidade

representantes da Igreja, o que não significa que sua vinculação tenha desaparecido. Na

Em síntese, a Igreja tem estado presentes nos movimentos de favelas e ocupações, seja oferecendo o lugar das reuniões, seja fornecendo uma assessoria jurídica aos movimentos dos favelados, seja ainda, levando a palavra de fé e esperança aos espoliados. Mas é também criticada, tanto pelos não-cristãos, como pelos cristãos-proprietários, com afirmações ou indagações do tipo:

“A Igreja incentiva os movimentos e os favelados continuam sem pagar aluguel, enquanto nós trabalhamos duro para ter uma casa e dela retirar um pequeno aluguel” ou: “porque a Igreja não distribui suas terras, em vez de ficar incentivando ocupar terras dos outros”, ou ainda: “esta Igreja aí está errada, porque olha o que faz com vocês, agora vão perder o que já gastaram em madeira e telhas, porque vão ter que sair” (Depoimentos)

Muitas vezes é o próprio movimento que solicita a participação da Igreja, como em Diadema:

“Em 1978 nasceu o movimento de favela de Diadema, por ocasião de um despejo que a gente sofreu na favela União II... Nós procuramos a Igreja e os padres iam rezar missa lá. Depois a gente começava a discutir e tal, e assim começou...” (depoimento). A Igreja foi também procurada como uma forma de obter apoio jurídico, pois os “oficiais de justiça, chegavam assim na porta, nos barracos, intimando o pessoal, queria saber o nome de um por um. A princípio os companheiros começaram a dar o nome e depois aí veio a intimação no nome. Aí, depois a gente arranjou um advogado lá (da Igreja), que orientou que não podia dar o nome... Então o movimento começou assim, nessa favela...” (Depoimento)

Arlete Moysés Rodrigues

É evidente que a mudança de atuação da Igreja comprometida em lutas contra as causas sociais da miséria é visível em múltiplos discursos, e como diz Eder Sader:

“As transformações ocorridas na Igreja, não podem ser subestimadas. De um lado a formação das comissões pastorais e das comunidades de base não devem ser vistas como simples sucedâneos de organizações anteriores...” (Sader, E. Op. Cit. p. 154)

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Também não pode ser considerada como uma atuação homogênea e permanente através dos tempos, pois da proposta de educar o favelado: “buscando torná-lo capaz de integrar-se na vida urbana e de se tornar útil para a sociedade”, ao momento atual de se: “lutar para esclarecer as causas da miséria, de forma mais abrangente, e da favela em especial”, há uma transformação que não é a continuidade da Fundação Leão XIII ou da Cruzada São Sebastião para as comunidades Eclesiais de Base e pastorais de favelas. Há uma transformação visível que ser expressa nas falas oficiais da Igreja, mas há também um atuar difuso, dos cristãos leigos, como no MUF, MDF, e nos casos dos Centros de Defesa dos Direitos Humanos há uma ligação com a Igreja, mas não há necessariamente um vínculo, entre os que atuam nos Centros de Defesa e a Igreja. Verifica-se também que os mesmos participantes se vinculam a diversas entidades ou organizações partidárias ou sindicais. No caso de Osasco, ligam-se, embora não explicitamente, ao PT e à CUT. Cumpre ainda esclarecer que nossa análise esteve ligada à Igreja Católica, muito embora nos movimentos haja uma presença marcante de cristãos de outra igrejas. Não há, contudo, nas área pesquisadas, uma atuação direta destas, muito embora façam parte dos movimentos e auxiliem os moradores das áreas.

pesquisa de Osasco, com a liderança de um membro de uma igreja “dos crentes”, como eram conhecidos. Este sub-grupo contestava as lideranças da área ocupada, marcando inclusive entrevista com o Secretário da Habitação do Município, sem avisar as lideranças. Mas estas foram avisadas e participaram da reunião, pois se “ninguém era dono do movimento” havia uma coordenação eleita que os representava. Qual o objetivo deste grupo? Quando da reunião verificou-se que predominava, em sua maioria, membros da igreja a que pertencia o líder do grupo; desse modo, o questionamento não se dava apenas em relação à forma de encaminhamento da luta, mas também em termos da liderança religiosa. Por não aceitar e não querer discutir o modo como deveriam comportar-se junto ao poder público, esta liderança foi „convidada‟ a retirar-se da área, pois ao ser acompanhada pelo grupo de coordenação, perdeu legitimidade junto aos seus seguidores, já que a própria Secretaria de Habitação reconheceu como interlocutores os membros da Coordenação do Movimento, entre os quais um padre da Igreja Católica.

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Na procura do lugar o encontro da identidade

Em alguns momentos tornou-se visível a presença de sub-grupos numa das áreas de

Em que pesem todas as alterações nas falas e atitudes da Igreja em relação aos sem terra/sem casa urbanos, a maior parte da Igreja Católica não optou para discutir com prioridade a Iniciativa Popular sobre a Reforma Urbana, embora tanto o MUF como o MDF fossem parte integrante do movimento nacional que elaborou, discutiu e coletou assinaturas para a proposta da reforma urbana. O Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Osasco, que tem um grupo que atua na questão da terra e moradia na cidade, tinha como prioridade a discussão da reforma agrária. É também importante destacar que a Igreja atua considerando os favelados capazes de construir suas casas em processo de mutirão, com o auxilio de técnicos, conforme documento da Zona Leste. Pode significar, como já dissemos, uma forma de sobretrabalho e de continuar a jogar sobre os ombros dos trabalhadores a responsabilidade de sua pobreza. Gostaria também de argumentar, que apesar da mudança, é patente ainda a presença de discursos como o bem e o mal: “O estoque de terra em São Paulo com fins especulativos é imoral, indecente e insensato” (Carta dos católicos de Guaianases). Como dissemos acima, a atuação da Igreja não coloca em xeque a propriedade, apenas enfatiza que a concentração abusiva é um mal, pois a propriedade deve cumprir sua função social. No modo como estão distribuídas as terras há uma função social implícita, própria do capitalismo, de propiciar a acumulação de riquezas, para os detentores dos meios de produção e da terra. O que se tem discutido na função social da propriedade é a concentração abusiva de terras nas mãos de uns poucos proprietários. Para evitar a continuidade das mistificações, o documento sobre o solo urbano faz colocações mais abrangentes, deixando explícito que é necessário mudar esta concentração de riqueza, de realizar-se uma justiça social. Assim, apesar

Arlete Moysés Rodrigues

das grandes mudanças, as lutas pela justiça social, não significam propostas de luta pela derrubada da propriedade da terra.

3.3. As Várias Ênfases dos Moradores Citadinos

É claro que, quando se está analisando as notícias contidas nos jornais, nos programas do poder público, da igreja, dos partidos, está se analisando também o processo de mudanças, de permanência, de transformação da sociedade, em todas as suas parcelas. Nesta parte do

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trabalho, são destacadas as falas dos moradores, organizados ou não, como uma forma de expressão. Procuro compreender a forma de apropriação do espaço cotidiano, no que diz respeito à moradia. Há uma diversidade muito grande nas formas de apropriar-se do espaço da moradia. Em qualquer delas, é patente a importância atribuída à casa própria. Estas formas compreendem a compra de terreno e construção da casa, construção que pode ser realizada com a contratação de empresas, em vários níveis, até autoconstrução. Compra de casa pronta, de particulares, em unidades isoladas, - com ou sem financiamento -, em conjuntos habitacionais financiados pelo SFH, tanto os construídos pelas COHABS, INOCOOPS, como os conjuntos de prédios de alto padrão60. Um outro conjunto de formas de apropriar-se do espaço urbano compreende as favelas, as ocupações coletivas de terras e a moradia com pagamento de valor mensal dos aluguéis. No caso das favelas e ocupações coletivas não há legalidade jurídica da ocupação. Vou aqui apenas situar algumas formas de apropriação do espaço urbano, não no seu processo como um todo, mas enfatizando as diferentes formas de referir-se às favelas e ocupações coletivas.

realidade brasileira. Diferencio favela de ocupação coletiva, porque em geral na favela a ocupação é individual e cotidiana, e as ocupações coletivas ocorrem num curto período de tempo e são previamente definidas em grupo. Este trabalho tem a preocupação de mostrar o significado crescente das lutas pela moradia nas áreas de favelas e nas ocupações coletivas, e se detém nos aspectos que evidenciam o conflito entre favelados e os moradores de casas de alvenaria, entre favelados e ocupantes coletivos, entre moradores de casas de alvenaria e ocupantes coletivos, tentando verificar a heterogeneidade ou homogeneidade na produção cotidiana do espaço da moradia. Procuro assim compreender tanto a produção destes espaços como a sua representação. Para o proprietário da casa de alvenaria, vizinha de uma favela, esta representa uma forma de “desvalorizar” sua casa, principalmente se a favela apareceu depois da casa. Neste

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Sobre as características de cada uma dessas formas de apropriar-se do espaço urbano, veja-se Rodrigues, A. M., 1988.

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Na procura do lugar o encontro da identidade

Entendo a favela como espaço produzido e parte integrante da vida urbana e da

caso, em geral, os vizinhos tentam impedir o surgimento e a expansão da favela. Remetem ao pode público cartas, com abaixo-assinado, solicitando que se impeça o aparecimento ou o crescimento da favela. Só mais recentemente, na segunda metade da década de 70, surgiram, em alguns bairros, as caravanas de moradores que se dirigiam ao gabinete do prefeito, representando novas formas de reivindicar o fim da favela ou sua não-instalação:

“Moradores do Sacomã, pedem fim da Favela – moradores forma à Prefeitura protestar contra os barracos que estão surgindo num terreno perto do Hospital de Heliópolis” – FSP – 7/1/78.

Se a favela pré-existia à construção ou aquisição da casa, impede a “valorização”. Neste caso, “aturam a favela”, pois ela já estava no bairro, mas querem impedir o crescimento da mesma. Não há unanimidade dos vizinhos em relação às favelas e favelados, pois em um mesmo bairro as condições de vida são variadas, tanto em termos de faixas salariais como em termos de situação de trabalho, de composição familiar, do momento em que a casa foi comprada ou construída, ou se a condição é de inquilino ou de proprietário. Mas em todas as entrevistas ficou evidente que a favela “desvaloriza” o lugar onde moram. Há uma compreensão de que a moradia não é só a casa, mas também o lugar onde esta se situa. Encontrei inúmeras referências sobre o preço da casa ser diferente dependendo do lugar, inclusive explicitando as condições de equipamentos e meios de consumo coletivo. O aspecto mais visível de diferenças entre os moradores de casas de alvenaria nas

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vizinhanças de favelas está relacionado com a questão de ser ou não proprietário da casa em que se mora. Os inquilinos têm menor restrição à favela do que os proprietários, mobilizam-se menos quando a questão é a “valorização” da casa, do bairro, pois também sabem que se o bairro “melhora” os aluguéis aumentam e terão que mudar para outra região mais pobre. Na maioria das vezes as casas dos inquilinos e proprietários são muito semelhantes em relação ao padrão construtivo e, também no mais das vezes, no mesmo lote moram na frente o proprietário e, nos fundos, mais dois ou três inquilinos. O fato de ser inquilino ou proprietário diferencia a atuação, quando os moradores tentam organizar movimentos para retirar a favela. A mobilização em caravanas, os abaixo-

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assinados serão realizados principalmente pelos proprietários. Alguns inquilinos assinam: “para não ficar mal com o dono, senão ele vai pensar que tenho interesse” (depoimento). Nas representações sobre favelas não conta apenas a questão da “valorização”. Conta também que favela é foco de irradiação de doenças, pois: é um lugar onde há muita sujeira, já que o caminhão do lixo não entra nas vielas, não há esgoto e as águas servidas correm a céu aberto; não há água em todas as casas e os moradores bebem água do poço, em geral contaminada. Estes aspectos sintetizam o que os vizinhos acham da sujeira que propicia o aparecimento de doenças. Mas é interessante também destacar que nestas falas o favelado é o grande culpado por esta situação: “não tem caminhão de lixo, mas eles podiam muito bem, comprar saco de lixo e colocar na „caçamba‟”; “vai me dizer que eles não podem comprar uns sacos de lixo”; ou “é só eles pedirem, que qualquer vizinho „empresta‟ água. Era só eles comprarem um tamborzão e irem carregar água, afinal também não pagam nada para morar porque não carregam um pouco de água?” (depoimentos). Há uma evidente separação entre “nós” e “eles”. E, “eles”, os favelados, já que não pagam aluguel, podem comprar saco de lixo, trabalhar para levar o lixo até a caçamba, comprar tambor de água, carregar água, etc. O que para o trabalho e para o fato do trabalhador ser o responsável pela condição de vida que tem. Um outro aspecto diz respeito ao fato da favela ser lugar propício para os marginais esconderem-se. As vielas são estreitas e sinuosas, o que impede a entrada da polícia, de estranhos à favela. A abertura de vias para a instalação de luz nas favelas tem, segundo os moradores, diminuído o perigo de se esconderem marginais. Isso significa dar ênfase ao fato de que a luz nas favelas implica numa disciplinarização do espaço, em conformidade com as normas de ocupação do solo urbano. Mas há também a menção, de modo muito sutil, de que os próprios favelados são bandidos, ou se não são, então escondem bandidos. Esta fala é visível não só nas vizinhanças mas é “senso comum”, ou seja, costuma-se dizer que todo mundo sabe disso, até a polícia. É evidente a fala, “se tem bandido que mora lá eu não sei, mas tem bandido escondido lá, tem sim. Agora me diz, quem esconde bandido não é bandido também?” (Depoimento)61.

61

Vejam-se também as notícias sobre a favela da Rocinha no Rio de Janeiro – maio/junho de 1988.

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Na procura do lugar o encontro da identidade

evidencia, que atrás das falas sobre “valorização”, há aspectos de uma sociedade disciplinada

Ora, como compatibilizar a fala geral de que favelado não é bandido, com o fato de ser a favela lugar preferencial de bandido? Marilena Chauí, ao analisar a ambigüidade do conformismo e resistência analisa as falas dos operários, onde estes:

“atribuem a pobreza à injustiça social, à ganância dos ricos, à migração. Mas muitos também incorporando a ideologia dominante, atribuem a pobreza à falta de vontade para enfrentar a dureza do trabalho, seja este qual for.” (Chauí, M. 1986, p. 137)

Há um misto de mudança e de permanência nas falas dos vizinhos sobre a favela e os favelados, pois a culpa ora é do favelado, ora é do poder público, ora é dos dois, ora é dos „grandes‟ que deixam as terras “valorizando”. Alguns argumentos sobre mudanças das características das favelas, quando ocorre a urbanização, são destacados não só pelos vizinhos, como pelos próprios favelados. As vielas são menos sinuosas e, quando alargadas para a instalação de luz e água, permitem a entrada de veículos, que tanto podem ser de particulares, como veículos da polícia ou de ambulâncias. Para os vizinhos é considerado fundamental o acesso de veículos, pois isto impede que continue como o lugar de “esconderijo” de bandido. Para o poder público significa um enquadramento nas posturas municipais de urbanização. Os moradores das favelas, ao serem consumidores-pagantes de água e de luz -, passam também a serem considerados trabalhadores. Mas há ainda o valor simbólico da abertura de vias e das contas de luz e água. É usual comprovar-se o endereço através da apresentação de contas de água ou luz, o que

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adquire um significado importante para o morador da favela. A luta por instalação destes serviços compreende, pois, não apenas a necessidade material, mas também o fato de ao ser um consumidor destes serviços, ser incluído na categoria de cidadão. Ao que tudo indica, só mora quem consome. Só é cidadão quem é consumidor (Santos, Milton, op.cit). Há também outros aspectos da urbanização das favelas que importa salientar. Quando se urbaniza uma favela, retiram-se as características de insalubridade, de lugar de esconderijo. Alteram-se, assim, as características do visível no espaço urbano. Hoje, em algumas favelas – como a São Jorge Posto ou Vila Operária – principalmente nas ruas lindeiras as características fisionômicas parecem semelhantes ao restante do bairro. Mas há limite de integração, pois o

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processo de crescimento e mudanças, no torvelino da cidade, fará com que mude bastante a fisionomia dos edifícios destes bairros, mesmo considerando os lotes padrões de 125 m2. Com o passar dos anos, só através de pesquisas que procurem verificar a forma de aprovação das plantas, ou de inquéritos junto aos antigos moradores é que poder-se-á verificar que se trata de bairros onde as casas foram edificadas pelo sistema de autoconstrução. Já nas favelas urbanizadas, edificadas em alvenaria, as dimensões muito diminutas dos lotes imporão uma permanência das construções e consequentemente da fisionomia. Essa mudança do bairro, tanto pode ocorrer pela permanência dos moradores da casa própria, que ao longo de muitos anos, constroem, aumentam e reformam a casa, como também pela mudança de morador, que “expulso” para uma área mais pobre, é substituído por moradores de renda mais elevada. De qualquer modo não há uma visibilidade infinita do processo construtivo. Este aspecto está intimamente ligado com a questão da terra urbana e com o tamanho do lote. Considera-se que aqueles que não podem pagar só “merecem” morar em lotes muito exíguos; assim, define-se uma “urbanização” para os moradores favelados, em lotes de até 70 ou 90 m2, que imporá limites mais rígidos à própria mudança. Por outro lado, até hoje, apenas em alguns poucos municípios a questão da legalidade movimentos de favelas há concepções e questões diferentes em relação à terra. O tamanho do lote não tem sido muito discutido. Em geral, quer-se o reconhecimento de posse, da ocupação. Mas, quando se trata da forma deste reconhecimento da ocupação, as diferenças são patentes. O MDF – Movimento de Defesa do Favelado – e o MUF – Movimento Unificado de Favela e Promorar – consideram que o mais correto é, nas terras públicas de uso comum, lutar pela concessão de Direito Real de Uso, sem pagamento de taxa. Consideram que morar é um direito e que é dever do poder público garanti-lo. Consideram que moram em favelas porque não podem pagar. Argumentam que não querem a propriedade e assim não tem sentido pagar taxa para o Estado. Lutam também pela posse coletiva, ou seja, que suas associações sejam reconhecidas como intermediadoras entre o poder público e o favelado, sendo administradoras das áreas. Mas é bom destacar, estas concepções são das lideranças que expressam a vontade de parte apenas dos seus representados, pois, para a maioria, ainda interessa pagar pela propriedade individual. Em geral, afirmam: 159

Na procura do lugar o encontro da identidade

da terra ocupada pelas favelas tem sido colocada pelo poder público. Para os participantes dos

“não quero nada de graça, quero pagar, como puder”; “a posse a gente já tem, o que eu quero é ter o papel dizendo que a terra e o barraco é meu, senão daqui a pouco, eles querem expulsar a gente de novo”; “o que me interessa é a garantia que não vou sair, sem o papel qual é a garantia?” (Depoimentos)

Para as associações como o CORAFASP – Conselho Coordenador de Favelas -, esta discussão sequer se coloca, pois aceitam inclusive pagar taxas pelo direito de uso. Para as favelas que ocupam terrenos de propriedades particular, ou terrenos de bens dominiais, a proposta dos movimentos é de obtenção do direito de usucapião. Os movimentos pretendiam que este direito fosse atribuído após 3 anos de posse. No Congresso Constituinte foi aprovado 5 anos de posse sem contestação por parte do proprietário. Considera-se uma vitória poder ter no papel a garantia de usufruir de um direito, que de fato já existe. Após esta aprovação, que especifica o direito de usucapir apenas nas propriedades particulares, fica a seguinte questão: Se os moradores pagarem pelo direito de uso nas áreas públicas de uso comum, como será o usucapião de áreas particulares?62 Sem dúvida, a proposta de Concessão de Direito Real de Uso, sem pagamento de taxa e por um período de 90 anos é mais democrática, pois considera morar um direito e que, dadas as características do lugar que ocupam e do tamanho do lote, é justo que não paguem por um direito. Considerar ainda que não seria posse individual, mas da associação que os representa seria ainda mais um avanço, no sentido da cooperativação, da administração democrática. Mas

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como exigir de uma camada de trabalhadores, a mais espoliada do meio urbano, que assuma este tipo de proposta, quando a todo o momento se joga nos seus ombros a responsabilidade de não ter conseguido ser proprietário da casa onde mora ou não ter subido na vida, por responsabilidade pessoal? Eis um desafio para as lideranças dos movimentos. Penso que é também um desafio para melhor compreender a questão da casa própria. É preciso tentar não incorporar uma visão romântica, ou até idealista, das lutas pela moradia. É necessário entendê-la como uma forma de expressão, pelo direito à cidadania, não como a busca da propriedade que apenas aliena. Considerar que se vive no mesmo modo de 62

É bom frisar que para utilizar como moradia áreas de uso comum é necessário que o Executivo encaminhe e que as Câmaras Municipais aprovem: Processo de desafetação das áreas.

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produção, na mesma sociedade, e imaginar que o sofrimento de morar e viver mal, torna os indivíduos superiores, é ter uma visão idealista e romântica: sofrer purifica a consciência. É considerar que a casa própria que dá conforto, também aliena. Significa que são privilegiados aqueles que moram bem e mesmo assim não se alienam? É possível ao morador espoliado compreender o fetiche da mercadoria terra e habitação, mesmo considerando que não tem tempo de pensar sua condição de vida? Se vive-se em um modo de produção que procura individualizar, como esperar que estes segmentos sociais prefiram a cooperativação e a posse coletiva de uma casa/terreno? É preciso compreender o significado das lutas pela moradia em sua complexidade. Entendê-la como uma luta democrática pelo direito à cidade. Nas ocupações de terra, mantém-se a ambigüidade. Os proprietários utilizam instrumentos jurídicos que permitem desocupar rapidamente a terra, com força policial, através da Liminar de Reintegração de Posse; o poder público serve muitas vezes de intermediário, e quando a desocupação demora, tem, como nas favelas, que arrumar um lugar para os ocupantes despejados. Quando a ocupação ocorre em áreas de propriedade do poder público, fica o receio, de que ao atender a população – que neste caso não é considerada marginal – e permitir a permanência nas áreas ocupadas, se constitua uma forma de fazer proliferar as invasões. O termo invasão é utilizado pela grande imprensa e pelo poder público. Os

Apesar das tentativas de impedir a concretização das ocupações, estas não param de crescer. Em Osasco, no movimento “Terra e Moradia”, há mais de mil famílias que ocuparam três áreas. Há também as ocupações de um outro grupo, com número de ocupantes desconhecido. Em São Paulo, de 1981 a 1984, ocorreram 65 ocupações, sendo 18 em áreas particulares e 27 em áreas do poder público, com 9.358 famílias (PMSP – 1984). Mas, em 1987, já se calculavam 222 ocupações com 32.181 famílias (Revista Afinal, 1987). Assim, apesar das tentativas de impedir as ocupações, estas não param de crescer, pois não é o “fechamento de fronteiras”, ou seja, as desocupações, os muros e as cercas físicas e ideológicas, que podem impedir a procura e o encontro de um lugar para morar. Os ocupantes são, em geral, considerados trabalhadores que procuram um lugar para morar. A repercussão dos vizinhos das áreas ocupadas depende do segmento social no qual se inserem. Quando pertencem ao mesmo segmento, quando são inquilinos, manifestam-se 161

Na procura do lugar o encontro da identidade

participantes dos movimentos se denominam ocupantes, não invasores.

favoravelmente: “o terreno aí tava vazio, cheio de ratos, eles até tão limpando”; “este lugar aí tinha até bandido escondido, o dono é poderoso, mas acho que eles fizeram bem”. É claro que também há contestações do tipo: “tem um ali que tem carro, porque ele não compra uma casa?”. Indagado sobre se sabia o preço da casa e do carro (aliás uma perua Kombi, adaptada para transportes), respondeu: “não sei, mas sei que dá pelo menos para a entrada”. E como vai viver se utiliza o carro para transportar mercadorias e sobreviver? “É, mas que ele tem carro tem, e que podia comprar uma casa podia” (depoimentos). Quando pertencem a segmentos sociais diferentes, consideram a ocupação coletiva como favela e os moradores como marginais: “Se fosse só trabalhador eu acharia correto, mas tem muita gente aí no meio que não gosta de trabalhar” (depoimentos). Embora a situação de moradia, do preço dos aluguéis, seja de domínio público, logo após uma ocupação os integrantes dos movimentos e as comunidades – CEBs – procuram mostrar, através de carta distribuída aos vizinhos, que a ocupação foi feita com arruamentos, que os barracos logo serão substituídos por casa de alvenaria. Além disso, explicam que não são favelados. Há, assim,entre os ocupantes uma visão, ao mesmo tempo, da favela como lugar de trabalhador e de marginal. Se indagados sobre quais as diferenças entre eles (ocupantes e favelados) não sabem dizer, apenas afirmam que é diferente. Mas, ao mesmo tempo, no processo de organização, alguns participantes desistem porque não podiam mais esperar e encontraram lugar na favela. Para os que puderam esperar mais um pouco, esta atitude é criticada. “Deus me livre, ir lá pra favela. Olha, ta perigando eu ficar com os móveis na rua, mas pra favela eu não vou” (depoimento). Já o favelado quer ir

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para a ocupação. Considera que o povo é melhor, pois ta organizado: “Não é como aqui (na favela), que é cada um por si, sem união” (depoimento). E, mais do que isso, vê mais próxima a possibilidade de ter sua casa própria. Em uma série de depoimentos, na favela vizinha ao Jardim Veloso, área ocupada em Osasco, constatei que muitos favelados esperavam poder mudar da favela para a ocupação, pois também verificavam a possibilidade de comprar um lote. Os ocupantes têm clareza que estão provisoriamente sem pagar, mas que deverão comprar a terra ocupada. E, via de regra, querem pagar pela terra a quantia que seu salário permitir. As lutas são pelo direito à moradia,

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que compreende num primeiro momento a ocupação da terra. Esses movimentos consideram que a luta pela justiça social passa pelo direito de ter uma casa digna para morar.

3.4. O Processo de Resistência – as Falas e as Práticas dos Ocupantes e dos Favelados – A Constituição dos Novos Sujeitos

Embora esteja presente nas partes anteriores deste trabalho o processo de resistência dos favelados e dos ocupantes, pois na realidade todos fazem parte do mesmo processo, faço aqui um breve apanhado das mudanças visíveis nas falas e nas práticas destes grupos. A impossibilidade de pagar aluguel, de comprar casa ou terreno, mesmo que em áreas distantes, torna necessário buscar uma alternativa para morar. Individualmente a favela acaba sendo a solução. Mesmo para os que acham que favela é lugar de marginal, esta acaba sendo uma solução “natural”. Muda-se para a favela e tenta-se conviver com quem não é marginal. Doracy Resuenho relata como foi o seu processo de ir morar na favela: chegando em São Paulo em dezembro de 1975, mora com o marido e crianças em pensões, até conseguir um o que acontece nesta favela. Procura contatos com os moradores, vê que não são marginais e, à revelia do marido, começa a procurar um barraco para comprar. Seu marido, completamente contrário à idéia, pois considera que favela é lugar de marginal, acaba sendo convencido pela necessidade a ir morar na favela (Resuenho, Doracy,, 1983). O processo de chegar à favela é semelhante ao de muitos outros, como pude ver na pesquisa de campo. A diferença fundamental é que Doracy pensa a sua condição de moradora da cidade que não pode pagar aluguel e escreve um verdadeiro livro sobre sua condição de vida, onde relata como se dá a mudança para a favela, as lutas por água e luz, os conflitos com os vizinhos, a atuação da Igreja, da Prefeitura e a urbanização das favelas. Pensa a sua condição de favelada, expressa no documento supra citado, o que permite, junto com os resultados da pesquisa de campo, com outros moradores, tecer uma série de considerações. A produção da favela pressupõe um conhecimento da cidade e de certa forma da legislação do uso do solo urbano, que possibilita saber quais áreas ou terrenos podem ser “ocupados”, com a construção de um barraco, “burlando” a legislação vigente, apropriando-se 163

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quarto de aluguel. O quarto onde morava tinha uma favela nas vizinhanças. Começa a verificar

de um espaço de propriedade definida, porém sem uso. Um indicador desse conhecimento da cidade refere-se ao fato de que, em São Paulo, 45,5% dos barracos ocupam áreas de propriedade do poder público municipal (em geral, áreas de uso comum – sob a guarda da Prefeitura); 30,8% estão instalados em áreas, em que parte é particular e parte do poder público63. Outro aspecto, refere-se às características dos terrenos ocupados: margens de córregos com inundações freqüentes; áreas de alta declividade com deslizamentos constantes, etc. (Rodrigues, A. M., 1981). Os favelados ocupam os “piores” terrenos, pois a própria existência de vida já lhes ensinou que só nestes lugares é possível permanecer por mais tempo, pois a longa peregrinação de bairro a bairro, da alvenaria para a favela, ensinou que só nestes lugares é possível permanecer. “Não adianta a gente querer um lugar sem enchentes, lá não deixam a gente ficar por muito tempo” (Depoimentos). A “descoberta” destes espaços é dada por indicação de parentes e conhecidos, por olhar e procurar um jeito de construir um barraco. Amigos, conhecidos ou parentes, podem indicar uma favela, porque já moram no local: pode-se conversar com os moradores da favela, expondo sua situação e conseguindo permissão para construir um barraco ou comprando, quando há barracos para a venda; pode-se pesquisar uma área desocupada – conversando com os moradores da vizinhança -, caso dos moradores que iniciaram favelas. O processo de começar individualmente uma ocupação, não tem sido usual nos últimos anos, pois tanto as áreas “possíveis” já estão ocupadas, como o processo atual mais freqüente tem sido o de organizar-se coletivamente para ocupar uma área vazia. A ocupação cotidiana e individual não é a norma geral, mesmo nas favelas antigas. Na

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favela São Jorge Posto, hoje Vila Operária, os primeiros moradores “descobriram” a área e individualmente foram ocupando-a. No entanto, na metade da década de 70, os demais moradores entraram todos ao mesmo tempo, organizando as ruas, e alocando-se de acordo com a determinação do então “líder”, que posteriormente foi eleito Presidente da Favela, sendo considerado por todos os moradores um verdadeiro lutador e benfeitor. As declarações das lideranças femininas mostram como foi esta chegada conjunta: “Eu morava lá na favela São Jorge, e era um lugar ruim, quando soube dessa organização, vim aqui conversar e peguei meu barraco e mudei para cá”; “Eu morava com minha filha casada, era 63

Via de regra, a ocupação inicia-se nas áreas municipais e expande-se para as vizinhanças.

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duas famílias num barraco pequeno, num fundo de um terreno, então vim aqui para ver. Lá em casa todo mundo dizia, você ta maluca, ir morar lá na favela. E, se os homens da Prefeitura vão lá tirar todo mundo? Mas eu tive coragem e aí mudamos todos, estamos aqui faz mais de 10 anos. Minha casa é metade de madeira e metade de bloco, mas devagar a gente vai construindo”. (Depoimentos). Os primeiros moradores descobriram a área, olhando e procurando um lugar para morar: “Quando nós viemos para cá, era tudo um barro só. Nem o bairro tinha qualquer melhoramento. A gente pegava um caminhão, da empresa – tal – e ia até o ponto de ônibus. Depois foi chegando mais gente e se organizando, aí entrou o resto, tudo de uma vez só. Era bonito todo mundo construindo e o presidente dizendo onde se podia construir” (Depoimento). Verifica-se, então, que tanto a ocupação pode ser a construção de um barraco de cada vez, como de um conjunto de barracos de uma só vez. Difere do movimento coletivo no qual há uma organização prévia. É saber que isto está sendo permitido e entrar com autorização do Presidente. Este processo de entrada coletiva ocorreu na administração do Prefeito Reinaldo de Barros, e há depoimentos que afirmam que este procedimento era usual e que fazia parte da reinaldista (mais do que do PDS), o que pode indicar, mas não comprovar, ter sido esta ocupação incentivada, ainda mais que esta foi a primeira favela a ser “urbanizada” em São Paulo. Este processo cotidiano e individual não é independente, pois pressupõe saber onde encontrar uma área, como construir um barraco e como permanecer na própria área. Entendo, como Agnes Heller, que:

“A vida cotidiana não está „fora‟ da história, mas no centro do acontecer histórico: é a verdadeira „essência‟ da substância social... A vida cotidiana é a vida do indivíduo. O indivíduo é sempre ser material e ser genérico... enquanto indivíduo o homem é ser genérico, já que é produto e expressão de suas relações sociais, herdeiro e preservador do desenvolvimento humano...” (Heller, A., 1985, p. 20 e 21)

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sua campanha para governador. Já dissemos, também, que nesta área, a atual liderança é

Portanto, ao produzir, cotidianamente, o lugar de moradia, está-se produzindo e reproduzindo as condições sociais de existência, expressão de relações sociais. Em momentos de conflito, torna-se mais visível o processo de organização dos moradores de áreas ocupadas. As lutas dos favelados começam a expressar-se quando negam a remoção, pois sabem o seu significado: ir para longe, não ter nas proximidades nenhuma forma de obter luz e água, escolas; a possibilidade de, muitas vezes, perder o emprego, etc. “Descobrem” que a resolução individual de obter água e luz – empréstimo dos vizinhos – faz com que paguem altas taxas por este serviço. Então, é hora de organizar-se, fazer “peregrinações” para a expansão das redes nas favelas, pois sabem que só serão atendidos pela força de pressão. “Se a gente juntar muitos interessados e ir todo mundo, pode ser que os homens atendem a gente, porque se for meia dúzia, eles não atendem mesmo” (depoimentos). Lutam pela permanência no lugar já ocupado, ficando implícitas as garantias de “direitos” e de cidadania. É claro que estão presentes nesta organização, a igreja, os partidos, a esquerda, as diferentes experiências de vida e de moradia nas cidades. A luz e a água são direitos, a “conta” de luz e de água transformam-no cidadão – poder comprovar o endereço, comprar a prazo, receber cartas, etc. Esta “cidadania” expressa-se de várias formas. Quando da pesquisa de campo, perguntei por uma moradora de uma favela do Butantã. Como resposta obtive a pergunta: “Qual é o endereço?”. Eu não sabia o endereço, aliás estava procurando no bairro errado: “Todo mundo, aqui tem endereço. Com o endereço é fácil, mas assim, ninguém sabe onde é, pois a gente não fica sabendo da vida uns dos outros, só os vizinhos próximos se conhecem, o resto do pessoal só com endereço, certo. Olha lá (apontando para um barraco com uma placa) rua tal. E as casas todas numeradas”,

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Deduz-se, assim, que não só a luz e a água, mas também, o endereço conferem cidadania aos favelados. Além disso, ao frisar que nem todo mundo se conhece, foi colocado claramente que os favelados não ficam na rua, sabendo da vida de todo mundo, mas que só conhecem alguns. Mas: “vai até a casa do sr. Fulano, que é da Sociedade (diretoria da favela), que ele é que distribui as contas de luz e o „ticket‟ de leite. Ele talvez conheça pelo nome”. Fica evidente que ter “endereço” confere uma cidadania, pois o favelado é, como todos os moradores da cidade, encontrável por seu endereço. Mas é preciso também compreender que esta cidadania é parcial, pois se nos bairros a distribuição da conta de luz é serviço público, na favela fica por conta dos moradores, que não ganham pelo trabalho realizado. Passam a 166

serem responsáveis pela administração e pelo trabalho, enquanto nas demais áreas esta administração é serviço público. Entra na conversa um outro vizinho, que diz: “qual é profissão da pessoa? Sabe dona, aqui, todo mundo é conhecido pela profissão”. Esta fala demonstra que é preciso frisar que os favelados são trabalhadores, que são conhecidos pela sua profissão. Paul Singer, em uma análise sobre as estratégias de combate ao desemprego, diz que um diagnóstico antigo é dizer que o desemprego é causado pela deficiência de oferta da força de trabalho, ou seja, estão desempregados porque não desejam trabalhar. Consequentemente o combate ao desemprego consiste no combate à vadiagem. (Singer, 1985). Este “combate à vadiagem” é expresso nas batidas policiais, nas quais são “detidos para averiguações” aqueles que não têm carteira assinada. Ora, tradicionalmente favela é “lugar de vadio”. Na favela deste morador, as pessoas são conhecidas pela sua profissão. Quem não tem profissão, ou não mora na favela, ou não é conhecido, pois vadio não se conhece. A luta pela cidadania tem sua representatividade tanto nas falas sobre o trabalho como sobre a sua inserção no urbano. Na constituição desses novos sujeitos coletivos, na busca de obter direitos, de moradores que não são marginais. Mas, é preciso considerar que as mistificações continuam presentes. A distribuição das contas de luz é um encargo dos moradores. Para os demais cidadãos é um serviço público. O que fica evidente é que são cidadãos de uma “categoria” inferior. Voltamos às questões iniciais deste trabalho. Parece que recebem pouco, não merecem ser cidadãos completos, e devem, portanto, arcar com um sobre-trabalho, para obter um serviço, o serviço público se torna privado (ou o público de um grupo responsável). Embora na maioria das favelas tenham-se realizado arruamentos, inclusive com endereços, eles não são oficiais, não constam dos guias oficiais e nem de mapeamentos da cidade. É uma cidadania ainda restrita, o espaço é sempre muito reduzido. As ruas são estreitas, as casas/barracos pequenas, mal construídas, sujas, os serviços ficam restritos às ruas “principais”. Nas outras vielas, embora seja possível o trânsito de veículos, o caminhão de coleta de lixo não entra, o carteiro, mesmo a pé, também não. 167

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um lugar para morar, está presente o encontro de uma identidade, de moradores que buscam

Fica evidente que são obtidos apenas parcialmente os direitos pelos quais lutam. Mas, nesse processo, constituem-se com uma identidade de cidadãos. Nas ocupações o arruamento tem sido pensado pelos próprios ocupantes, estes já se incluindo como categoria que sabe pensar a cidade, que compreende a cidade, que sabe organizar-se do mesmo modo que o setor público e a classe dominante. Definem-se ruas com largura oficial, lotes com a metragem de lei, deixam reservados os lugares para praça, escolas, etc. Inclusive não aceitam metragens de lotes inferiores quando negociam com a Prefeitura, pois argumentam que se o lote for menor que 125 m2, serão considerados favelados, não terão o título de propriedade, o que: “não é de lei e de direito” (depoimentos). As discussões teóricas sobre a constituição dos sujeitos coletivos nos movimentos sociais urbanos; a representação e a representatividade destes novos sujeitos coletivos; a identidade pública e a identificação dos novos sujeitos coletivos com a política e com os políticos partidários; os aspectos que fazem eclodir com intensidade na década de 70 estes movimentos reivindicatórios; a revelação do novo e o velho contidos nos movimentos, das novas falas e das novas matrizes discursivas, foram feitas por vários autores, que tem desvendado algumas questões importantes64. Considero que os movimentos por moradia permitem uma nova representação do urbano para os moradores espoliados. A amplitude da organização destes movimentos na década de 70, aumenta sua representatividade política. Constituem-se nesse processo como sujeitos políticos, ampliando e até criando novos espaços de visibilidade pública, sendo entrevistados pela imprensa (jornais, rádio e TV), trazendo para o espaço da riqueza as lutas lá das periferias distantes, concentrando-se em gabinetes de prefeitos, de empresas públicas de

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serviços de água e de luz, de secretarias de habitação. Trazem, em São Paulo, por exemplo, para o Parque do Ibirapuera ou para a Avenida Paulista, lugares onde imperam os serviços ou as moradias de alto padrão, um pouco da pobreza da periferia. Ao mesmo tempo deparam-se com uma situação de riqueza, não visível na periferia (exceto é claro, pela televisão). Passam a ter nova representação e representatividade. Constituem-se como sujeitos coletivos com uma identidade elaborada e reelaborada, onde está presente o novo dessa

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Veja-se a respeito, entre outros: Sader, Eder – 1987, 1984; Evers, Tilman – 1984 a, 1984 b; Valla, Vicent – 1986; Kowarick, Lúcio – 1979, 1983; Silva, L.A.M e Ribeiro, A.C.T. – 1986, Teles, Vera S. – 1986; Durhan, Eunice – 1984.

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constituição e o velho das elaborações sobre a terra e a moradia na cidade. Constituem-se novos sujeitos e novas matrizes discursivas. Nesse processo, o interlocutor privilegiado é o Estado, principalmente representado pelo poder público local. O poder público é considerado o provedor e o inimigo. O provedor, pois é o Estado, que se encarregará da produção dos valores-de-uso, necessários à reprodução do capital e da força-de-trabalho: dos meios e equipamentos de consumo coletivo. Quando as reivindicações são atendidas, há várias formas de se colocar a questão. Para uns, é resultado da luta: “Não fez mais do que seu dever com a gente”; “Foi a gente que conquistou”; “Foi o fruto dessa caminhada”. Outros, embora também participantes da luta, dizem: “Nunca mais o fulano perde uma eleição aqui”; “Se não fosse o prefeito..., que deu para a gente a urbanização, não sei não”; “Se o prefeito quiser ele nos tira daqui, então é ele que ta deixando a gente ficar”. Para outros, mesmo considerando a diferença de governos municipais, é evidente que o poder público só age sob pressão: “Se a gente não pressiona, o prefeito não faz nada”; “Se fosse outro governo, como é lá em São Paulo com o Jânio, a gente não conseguia nada” (depoimentos).

seu conseqüente aprisionamento pelo Estado. Quando o Estado define que só se lida com lideranças, ou com representantes das associações, está induzindo a institucionalização. Mas este ponto é também importante para os movimentos. Construir associações independentes, promover eleições, é um processo democrático, considerado muito importante pelos movimentos. A cooptação é considerada um problema, mas isto depende de um processo de conscientização. Sem dúvida, é visível nos depoimentos acima a ligação contraditória com o Estado provedor/inimigo. Em algumas áreas pesquisadas, detectei a indignação dos moradores pela ligação de presidentes de associações com o governo: “O presidente daqui é safado, tem ligação lá com o pessoal do prefeito”. Mas quando esta ligação significa obter o atendimento, a indignação, embora exista, é mais contida: “Ele é ligado lá no governo, quando precisa chama a gente e nós vamos todos, porque é para conseguir melhoria né?”(depoimentos).

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Faz-se toda uma série de considerações sobre a institucionalização dos movimentos e

Seria reduzir o processo de organização da população considerá-la como mero instrumento de manipulação, não compreendendo que neste processo de mudança o próprio Estado também se modifica (Castels, 1974). Se não na sua totalidade, pelo menos em relação a alguns setores ou agências estatais, pois como diz Benício Schmidt:

“Há processos contraditórios da ação do Estado entre os segmentos do aparelho estatal que representam interesses das classes dominantes e os que representam os das “dominadas”. (Schmidt, B., 1983)

Mesmo porque, como já vimos, trabalha-se nas agências estatais, nas diferentes esferas do poder, com diferentes setores da população, que também fazem parte de um processo de contínua mutação. Quando se institucionalizam programas como os de mutirão, corre-se o risco de retirar as características organizativas da população, deixando para os trabalhadores apenas o difícil encargo de trabalhar duplamente: para garantir a sua subsistência, recebendo um salário baixo; e trabalhar no seu “descanso” para conseguir uma moradia. Ora, pela lei do salário mínimo, este deveria garantir o direito à moradia (Rodrigues, A. M., 1988) Quando o Estado atua atendendo as reivindicações, colocando água e luz nas favelas, priorizando a autoconstrução (fornecendo os técnicos para definir padrões construtivos), está sem dúvida fazendo com que apareça como um “benfeitor” que fornece ao trabalhador uma forma de melhorar de vida. Mantêm assim o fetiche da mercadoria em sua complexidade. Pois parece que não é o trabalhador que, pelo seu trabalho, contribui para receber uma parte do seu

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direito, mas sim o Estado que lhe dá, por vontade dos governantes, um forma de melhorar de condição de vida, desde que trabalhe mais um pouco. Mas é importante salientar que os movimentos de moradia consideram o processo construtivo em mutirão como uma forma organizativa importante. Preferem o mutirão, pois além da habitação ficar mais acessível ao seu bolso (pois não são computados os custos do seu trabalho), retiram-se os ganhos elevados das empreiteras e podem em cada etapa da construção discutir com seus pares o processo construtivo e a sua organização (vide Bonduck, Nabil, op. cit. e Maricato, E. op. cit.).

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Os movimentos ganham uma expressão e visibilidade política através de suas organizações, de suas lutas, de seus encontros locais, regionais e nacionais, que passam a ser noticiados em jornais e revistas. Ainda, dada a própria dificuldade de se compreender a cidade, ocorrem fragmentadamente. Não há, em um primeiro momento, encontros de vários tipos de moradores: reúnem-se os favelados de um lado, os inquilinos de outro, os mutuários da COHAB em outro lugar, os moradores de bairro nas SABs, etc. Cada agrupamento discute questões e reivindicações específicas, para o lugar onde moram, ou, quando se reúnem por regiões e Estados, ou para o tipo de moradia agrupado. Durante o ano de 1987, a cidade é discutida em toda a sua complexidade, no processo de elaboração da Proposta de Iniciativa Popular na Constituinte sobre a Reforma Urbana. É um momento privilegiado em que representantes dos diversos movimentos a nível nacional se encontram para debater suas necessidades e sua condição de vida urbana. Discutem-se estas necessidades, as carências urbanas, no processo de produção da cidade e da moradia em seu conjunto. Extrapola-se nas discussões a visão fragmentada do espaço urbano. Passa-se para um conhecimento da produção, da ocupação do espaço em sua complexidade. Discute-se a competência e a atuação do poder público, a participação dos partidos políticos e da Igreja nessa luta. Os temas abordados na proposta levam em conta os direitos urbanos, a necessidade serviços públicos e a gestão democrática das cidades (Rodrigues, A. M., 1988). Embora aparentemente restrita fundamentalmente à questão da moradia e dos transportes coletivos, trata-se de proposta de uma política urbana anti-segregativa, o oposto dos espaços segmentados da cidade capitalista. Trata-se de um momento de encontro das reivindicações sobre o urbano em uma proposta comum em que inquilinos, mutuários do SFH, favelados, encortiçados, ocupantes, se uniram para debater a cidade em que pretendem morar. As práticas cotidianas de apropriação e produção do espaço urbano deixam, através de um processo organizativo, de ser entendidas apenas como resultado de um esforço individual, segmentado, para assumir sua verdadeira feição de uma luta pela produção do espaço não segmentado, cuja produção é social. Mas seria ilusório pensar que todos os moradores de favelas, cortiços, ocupantes de terra tenham esta dimensão da cidade. Mesmo os que participam de movimentos organizados não tem a mesma compreensão da produção do 171

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de imposição de limites à propriedade imobiliária, a política habitacional, os transportes e os

espaço urbano, mas é necessário continuar o processo para redefinir a compreensão da produção e do consumo da cidade.

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3.5. O Congresso Constituinte e a Reforma Urbana

Uma das questões muito debatidas desde a década de 60, tem sido o crescimento populacional urbano, a carência dos meios de consumo coletivos, denominados por crise urbana e as formas para resolver estas carências, através do planejamento urbano. Embora seja um tema bastante debatido, há muitas abordagens diferentes. Para determinadas vertentes, como o FNUAP – Fundo das Nações Unidas para Atividades em Matéria de População, a pobreza urbana está diretamente relacionada com o crescimento considerado explosivo da população urbana. Para resolver o problema das carências de serviços públicos e da pobreza, consideram necessário, planejar o crescimento das cidades. Mas, para que o planejamento seja eficaz, definem, também, a necessidade de limitar o crescimento das cidades, através da fixação da população no campo e de um controle do crescimento demográfico (FNUAP – Op. cit.). Limitar o crescimento da população através do controle do crescimento vegetativo, não está explícito em todos os que consideram que a crise urbana será resolvida pelo planejamento e desenvolvimento urbano. Mas, de qualquer modo, avaliam que a crise urbana é causada tanto pelo crescimento populacional elevado como pela

Para uma outra vertente, a crise urbana não seria resolvida pelo planejamento das cidades, pois, como diz Castels:

“a crise urbana é conhecida por todos os habitantes da cidade e provém da crescente incapacidade da organização capitalista em assegurar a produção, distribuição e gestão dos meios de consumo coletivos, necessários à vida cotidiana, das moradias às escolas, passando pelos transportes, saúde, áreas verdes, etc. Mas essa crise não é a simples deficiência do sistema econômico: é uma conseqüência necessária à lógica do desenvolvimento capitalista, a menos que essa lógica seja contraditada historicamente pelos efeitos produzidos na luta de classes”. (Castels, M., 1980, p. 20)

A crise urbana é inerente ao desenvolvimento do sistema capitalista, pois, como já foi visto, o processo de urbanização capitalista caracteriza-se por ter uma multitude de processos

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ausência de investimentos estatais, ou seja, um planejamento para as cidades.

privados de apropriação do espaço, cada um deles com seu modo especifico de valorização do capital, que será expresso nas cidades capitalistas. A crise urbana é a crise do capitalismo expressa nas cidades. Tem sido, para os países da América Latina, considerada mais profunda do que a própria crise do capitalismo dos anos 80, pois como implicação da própria crise internacional, e por ingerência dos credores internacionais, tem havido uma sistemática redução dos investimentos do setor público na área urbana, consequentemente a deficiência dos serviços públicos se agudiza. Evidentemente, pelo menos ao nível dos discursos, procura-se sanear as crises, através de um instrumental técnico adequado, investindo-se no processo de expansão das cidades. Desenvolve-se toda uma tecnologia para procurar resolver os problemas urbanos. O termo desenvolvimento urbano, tão usual desde a década de 60: “integra e veicula uma visão ideológica que tecnifica a discussão sobre a realidade urbana” (Ribeiro, L. C. Q., Op. cit., p. 6). Busca-se corrigir os “desvios” através de um aparato institucional que elabora normas para o planejamento urbano. No caso do Brasil, relacionado às questões de moradia, elaboram-se uma série de instrumentos de análises, de planos, de projetos, para “organizar” a produção das cidades e nas cidades, buscando-se uma nova ordenação espacial. No pós-64, as medidas de intervenção no espaço urbano consubstanciam-se na criação do Banco Nacional de Habitação, que determinará as normas gerais para intervenção nas cidades, privilegiando a política habitacional65. Busca-se, através do planejamento urbano, resolver as “carências”. Têm-se tratado a

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questão como eminentemente técnica. Há uma dissimulação da questão política, pois sempre se tem colocado que: “a proposta é a mais viável tecnicamente; é a mais eficiente...”. O Estado, ao atuar no urbano, politiza a questão da produção, da distribuição e do uso deste espaço, mas disfarça, tentando fazer com que suas intervenções sejam tomadas como ideologicamente neutras. A suposta neutralidade do Estado não resiste a uma análise mais profunda, pois como diz Benício Schmidt:

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Veja-se a respeito das políticas de urbanização: Davidovich. P., 1984; Schmidt, B., Op. Cit.; Levy, E., 1984.

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“O Estado, ao intervir pelo planejamento e pelos investimentos, especialmente quando redefine os padrões de uso do solo das cidades ou quando estabelece normas, pelas quais as áreas urbanizáveis deverão ser ocupadas, está politizando a questão urbana”. (Schmidt, B., 1982, p. 29)

O Estado politiza as questões urbanas quando, ao definir os padrões de uso do solo, delimita também quais os tamanhos de lotes que “cabem” a cada um nas cidades; quando define em que áreas deverão ser priorizadas a instalação de redes de abastecimento dos equipamentos e serviços coletivos; quando define que a terra deve ter um preço (como ocorreu em 1850, por exemplo, com a Lei de Terras), e quem não puder pagar por ela, mesmo que esteja em sua posse, deve ser desalojado; quando define que a terra é de quem tem o título e não de quem a ocupa. Mas se o Estado aparece como um suposto mecanismo neutralizador das disputas, das disparidades sociais expressas nas cidades, o mesmo não se pode falar dos movimentos reivindicatórios urbanos. Sem dúvida, como diz ainda Benício Schmidt:

(idem, p. 29)

E esta politização, tornou-se evidente na discussão do Congresso Constituinte. Utilizando-se de um dispositivo regimental que permitia que 30.000 eleitores encaminhasses propostas de Emendas à Constituição, com a garantia que seriam debatidas, os movimentos por moradia, transportes, elaboraram uma proposta de Reforma Urbana que contou com o apoio de mais de 160.000 eleitores, que a assinaram. A elaboração de várias propostas de Iniciativa Popular na Constituinte, centralizadas no Plenário Pró-Participação na Constituinte, mostrou a disposição de setores populares de intervir nos destinos do país. No caso da Proposta da Reforma Urbana é uma plataforma que expressa as forças sociais que participaram da sua elaboração. Diz Ermínia Maricato, que:

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“a mobilização por interesses concretos face ao uso e acesso a equipamentos coletivos, por exemplo, são maneiras de politizar o espaço. É o uso e as disponibilidades de bens no espaço que estão em jogo”.

“sua formulação seria inviável se não fosse precedida de um certo acumulo de proposições e reflexões, realizadas por entidades ligadas às lutas urbanas: mutuários, inquilinos, posseiros, favelados, arquitetos, geógrafos, engenheiros, advogados, etc. ... Cumpre assinalar que esta proposta reflete um momento do processo de discussão da reforma urbana e expressa muito mais as questões relacionadas às moradias... Constituem um primeiro passo para pensar a cidade”. (Maricato, E., 1988, p. 10)

As propostas contidas nas Iniciativas Populares foram debatidas em plenário praticamente vazio. Estabeleceu-se que cada proposta de Emenda Popular deveria indicar um relator para defender a proposta no horário noturno. Os deputados e senadores eleitos para elaborar a Constituição deram pouca importância

a estas apresentações e defesas das

propostas. Os meios de comunicação também deram destaques apenas a alguns aspectos ou algumas propostas. Viu-se mais na imprensa a iniciativa popular que defendia a volta da monarquia do que a discussão da reforma urbana, da agrária ou de ensino. A Universidade Estadual de São Paulo, promoveu em outubro de 1987, um simpósio sobre: O Brasil Urbano na Constituição. Foram distribuídos aos participantes documentos muito valiosos e volumosos, no entanto, a proposta da Iniciativa Popular sobre a Reforma Urbana – que com as 160.000 assinaturas -, já havia sido entregue em Brasília, não constou dos documentos, o que mostra também uma desvinculação entre setores da sociedade que se propuseram a discutir a Reforma Urbana no Congresso Constituinte. Da proposta da Iniciativa Popular, alguns aspectos foram incorporados, embora com redação diferente, na proposta da Comissão de Sistematização, poucos foram os avanços conseguidos em relação à proposta elaborada pelos movimentos populares.

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A discussão entre os movimentos levou a uma superação da visão compartimentada do espaço urbano e da visão urbano-rural. A função social da propriedade foi discutida entre os movimentos rurais e urbanos e redigidos de modo a não ser antagônica nas duas propostas. É evidente que, se os movimentos populares se organizaram para esta superação da compartimentação, os setores dominantes também o fizeram. Aprovar alguns aspectos de proposta da Reforma Urbana, mesmo atendendo interesses dos setores da indústria da construção, iria “ferir” os interesses dos proprietários de terras rurais, organizados na autodenominada UDR – União Democrática Ruralista. Mesmo considerando que não há uma “classe” de proprietários urbanos de terra, organiza-se nas cidades um segmento da UDR o

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chamado MDU – Movimento Democrático Urbano -, pois admitem, que abrir “brechas” para a questão da desapropriação urbana, para a intervenção pública, seria também uma possibilidade de intervir-se na área rural. E aí se tem como resultado frágeis e pequenas conquistas relacionadas à questão urbana em que pese que mais de 70% da população brasileira more nas cidades, em que pese a situação precária de vida da maioria desta população, a questão urbana teve, no Congresso Constituinte, poucos avanços, muito embora a Emenda Popular da Reforma Urbana nada tivesse de socializante. Além disso, é bom frisar, que mesmo os partidos comprometidos com as “classes populares” têm dado pouca atenção a questão urbana. É possível que esta pouca atenção dos partidos políticos mais progressistas esteja vinculada ao fato de considerar-se a luta pela moradia, como uma luta pelo consumo, sendo assim uma questão secundária. Mas a luta pela reforma urbana não está limitada à luta pela casa própria. Extrapola em muito esse limite, como se pode observar pelos principais pontos propostos pela Emenda Popular:

1) regime de propriedade:

critérios e as bases para definir se a propriedade está cumprindo esta função. Uma discussão importante que os movimentos tiveram é que não basta dizer função social da propriedade: “se há uma terra vazia, se a lei diz que esta terra não pode ficar vazia, então o cara coloca lá um barraco e usa como estacionamento, então ta cumprindo a função social?” (depoimento). Fica evidente que é necessário definir o que é entendido por função social da propriedade. Esta questão, na Emenda Popular, está relacionada com a desapropriação. Mas é bom relembrar, que a propriedade, abusivamente concentrada ou não, improdutiva ou não, está na verdade cumprindo a função social que lhe é inerente, ou seja, permitir que alguns indivíduos se apropriem da produção social. Foi aprovado que a propriedade urbana cumpre sua função quando atende ao estabelecido pelo Plano Diretor, a ser elaborado nas cidades com mais de 20.000 habitantes. Portanto é preciso esperar para saber se as glebas vazias, sem uso, cumprem ou não sua função social. Ou então, no caso de São Paulo, em que como diz Cândido Malta: 177

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A proposta da Emenda Popular, submete a propriedade à função social estabelecendo os

“veremos que na cidade de São Paulo, se aprovada esta proposta do Plano Diretor da Administração Jânio Quadros, estaremos... definindo como função social o uso da propriedade em excesso, que joga os custos da infra-estrutura adicional requerido por este excesso sobre a maioria da população: os assalariados” (Malta, Cândido., FSP – 7/7/88)

Com a necessidade de elaboração de Plano Diretor, possivelmente aumentarão os escritórios de representação e de elaboração dos planos diretores, criando muitos empregos de nível técnico. Existem grandes defensores desta questão, retomando-se o planejamento urbano como solução para os problemas urbanos, tais como o secretário da Sociedade Brasileira de Direito Ambiental, que afirma:

“O principal mérito dos nossos constituintes, na aprovação do capítulo da Política Urbana, foi o de obrigar que os Municípios com mais de 20.000 habitantes possuam um Plano Diretor, aprovado por Lei, como instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana. O planejamento urbano tão decantado nos idos de 1960 e anos posteriores, embora uma necessidade racional agudamente sentida pelos técnicos e pelos juristas, havia caído em total esquecimento”. (Mukai, Toshio. FSP, 30/6/1988)

2) Desapropriação:

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Na proposta da Iniciativa Popular, quando fosse necessário, a desapropriação da casa própria, o pagamento deveria ser prévio, em dinheiro e pelo valor justo. Como consideram morar um direito, como entendem que muitas vezes é necessário desapropriar para abrir avenidas ou construir equipamentos, é preciso prever que muita gente, quando é desapropriado, não consegue comprar outra casa para morar. Indagados se não importava o tamanho da casa, a discussão foi no sentido de alertar “que quem mora em mansão, antes de construir, até já tinha tudo perto, o mais difícil é para quem mora num lugar sem nada e quando chegam os serviços ele tem que sair” (depoimentos).

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Nos demais casos, o pagamento da indenização poderia ser em títulos de dívida pública, pagável em 20 anos. É patente a importância atribuída à casa própria e à função social, pois as outras áreas, por não estarem cumprindo sua função social, poderiam ser pagas ao longo do tempo. Foi aprovado que o pagamento será sempre em prévia e justa indenização em dinheiro, exceto para as áreas ociosas ou subutilizadas – que serão definidas pelo Plano Diretor.

3) Solo Urbano Ocioso ou Subutilizado:

A Emenda Popular, propunha tributação progressiva, desapropriação por interesse social ou parcelamento e edificação compulsórios – como uma forma de induzir a ocupação, aumentar o valor dos recursos municipais, diminuir o déficit de equipamentos urbanos, com a construção da cidade em um “continuum” urbano, diminuindo os custos de infra-estrutura66. Aprovou-se a aplicação sucessiva de parcelamento ou edificação compulsória, imposto progressivo no tempo e desapropriação em títulos de dívida pública em 10 anos, pelo valor real da fraca produção de habitação para a “faixa de interesse social”. Com estes dispositivos aprovados, pode manter-se a mesma falácia da falta de recursos. Manteve-se intacta a propriedade, apenas limitou-se um pouco o seu não uso.

4) Usucapião Urbano:

Propunha, a Emenda Popular, o direito de usucapir após 3 anos de posse, ficando, a partir do momento da proposta, suspensas e proibidas ações reivindicatórias sobre o imóvel. O usucapião urbano é um forma de resolver a questão de regularização fundiária das áreas ocupadas.

66

Uma parte destas propostas está implícita no Projeto de Lei 775/83 que já tramita há cinco anos, com dois substituivos.

179

Na procura do lugar o encontro da identidade

e juros legais. Costuma-se debitar à falta de recursos para desapropriações o principal motivo

Aprovou-se o usucapião após 5 anos, desde que não tenham sido contestados. Não fica explícita até que momento será considerada a contestação, nem se juridicamente ou se apenas verbalmente. O que vai fazer proliferar os processos de reintegração de posse.

5) Política Habitacional:

A Emenda Popular propunha fixar responsabilidades do Estado na promoção de habitações; eliminação de agentes privados nos programas habitacionais populares; implementação de políticas e projetos habitacionais pelos municípios, cabendo o controle direto da aplicação dos recursos à população, através de suas entidades representativas; equivalência salarial nos reajustes dos aluguéis e prestação da casa própria; proibição de aplicação de recursos públicos ou sob administração pública para financiar investimentos privados. Nada consta do Projeto. Exceto que a produção, - inclusive de habitações – é da iniciativa privada. Ao Estado só cabe agir complementarmente, para relevante interesse coletivo ou quando atende aos imperativos da segurança nacional. O que significa que a produção de habitação continuará a ser atribuição da iniciativa privada. Este é um aspecto muito importante, pois empresários, inclusive da Indústria da Construção Civil, têm sistematicamente sido contrários

à atuação do Estado no que

consideram competência da iniciativa privada. No entanto, têm sido, cada vez mais freqüentes, as solicitações de recursos do SFH para que a iniciativa privada possa produzir novas

Arlete Moysés Rodrigues

habitações67. Há assim interesse em que o Estado capte e libere recursos, mas não que invista na produção. Este ponto leva a discutir a questão da privatização da economia. Na verdade, deveria tratar-se de tornar público os recursos que captados, pelo Estado são privatizados. Penso que esta é uma questão relevante, mas que não será desenvolvida no corpo deste trabalho. Importa aqui ressaltar que, em sua maior parte, são recursos dos trabalhadores – FGTS -, que financiam as empresas de construção.

67

Como foi visto na parte 2 deste capítulo.

180

6) Serviços Públicos:

A Emenda Popular centrou-se nos serviços públicos de transporte, pois era o que constava da sub-comissão de assuntos urbanos. A questão da localização dos equipamentos de saúde, de educação, saneamento, em que pese sua importância para a Reforma Urbana, não foram incorporadas ás discussões. Com relação aos transportes coletivos, considerou a Emenda Popular que a prestação de serviços públicos é monopólio do Estado. A operação por concessão pela iniciativa privada não receberia nenhum subsídio. Definia-se também que o gasto com transporte não poderia exceder 6% do salário mínimo – aplicação da Lei do Salário Mínimo. Além do que, para evitar a continuidade dos desmandos, propõe-se que os aumentos de tarifas só fossem realizados com a aprovação do Legislativo. Aprovou-se o que já existe. O transporte coletivo urbano é serviço público essencial de responsabilidade do Município, podendo ser operado através de concessão ou permissão. No último ano, o governo para suprir uma deficiência salarial institui o “vale privada, pois, ao regulamentar as relações de trabalho, define um valor de salário insuficiente para manter o trabalhador e sua família. O vale transporte parece ser um “auxilio” do governo para os trabalhadores mais carentes, quando na verdade, caracteriza um subsidio do poder público à iniciativa privada. Quando os movimentos propõem que recursos públicos não sejam canalizados para a iniciativa privada, seja nos transportes seja na educação, há uma grita geral, pois significaria tornar público o que é canalizado, via Estado, para o setor privado, ou seja, tornar público o que é hoje privatizado.

7) Gestão Democrática da Cidade:

A Emenda Popular previa a iniciativa popular com 0,5% do eleitorado e também que 5% poderiam vetar projetos do Executivo. 181

Na procura do lugar o encontro da identidade

transporte”, que tal como o “ticket do leite” representa uma forma de subsidiar a iniciativa

Aprovou-se as Iniciativas Populares com 5% do eleitorado, não exclusiva às questões urbanas. A não aprovação do poder de veto aos projetos do Executivo limitou as propostas de gestão das cidades, pois, se for mantido a aprovação de projetos do Executivo por decurso de prazo, muitos projetos contrários aos interesses da maioria da população serão aprovados por “omissão”. Foram elaborados neste item, apenas os aspectos que estão diretamente relacionados à questões polêmicas contidas na Emenda Popular sobre a Reforma Urbana. Destaco ainda a questão dos transportes coletivos68. Mas em que pese que as propostas aprovadas são ainda instrumentos muito precários para se ter uma produção mais justa do espaço urbano, há uma serie de aspectos que permitiram um avanço em relação ao período anterior, entre os quais a explicitação da politização das questões urbanas, cujas propostas ainda deverão ser debatidas a nível estadual e municipal, para a elaboração das Constituições Estaduais e das Leis Orgânicas Municipais.

3.6. As permanências nas falas e nas práticas

É importante ressaltar a permanência dos discursos e das práticas, embora como já dito façam parte do mesmo processo. O relato de um acontecimento recente permitirá verificar algumas das permanências. No final do mês de agosto de 1988, os moradores da Favela da Vila Prudente

Arlete Moysés Rodrigues

manifestaram-se contra os freqüentes atropelamentos que ocorrem nas ruas lindeiras. No dia seguinte, o prefeito de São Paulo “determinou” a retirada da favela, noticia que surpreendeu os moradores mas que, sem dúvida, mostra que os favelados não tem o direito de expressar-se. A Favela da Vila Prudente é uma das mais antigas do Município de São Paulo, seu primeiro registro é de 1945. Nesta favela há cerca de 1.500 barracos, que ocupam uma área de 30.000 m2 onde moram aproximadamente 7.500 pessoas.

68

Para verificar e analisar todas as questões propostas na Iniciativa Popular sobre a Reforma Urbana, veja-se Rodrigues, A.M., op, cit, Edição Especial do Jornal Arquiteto; Maricato, Ermínia, 1988, op.cit.

182

A determinação do prefeito não tem nenhum valor jurídico. Tem apenas a “força” de intimidar os moradores que passaram a solicitar sua permanência como se fosse um favor. Para que os moradores fossem retirados seria necessário um Processo de Reintegração de Posse que, no mínimo, levaria alguns anos para efetivar-se, pois basta lembrar que esta favela tem mais de 40 anos. Poder-se-ia contestar a ação, considerando-se o direito de usucapir expresso na Constituição de 1969 (20 anos) e proposta na atual (5 anos). Mas, o prefeito determinou que em 15 dias fosse iniciado o processo de remoção, só possível, na verdade, em acordo com os moradores. Explicita-se, desse modo, a ênfase para amedrontar. Além disso consta que a área é, no maior trecho, propriedade do Instituto Brasileiro do Café e não da prefeitura o que significa que esta não é parte interessada em uma possível ação. O secretário municipal de Negócios Jurídicos de São Paulo afirma que, se o juiz conceder a Liminar, a saída é rápida. Ora, será que este secretário (Cláudio Lembo) desconhece que Liminar de Reintegração de Posse não se aplica a este caso ou é apenas mais uma forma de fazer pressão? Por outro lado, o desconhecimento dos moradores sobre os seus direitos, torna-os presa fácil destas práticas intimidativas. Ficam em dúvida se tem mesmo o direito de prefeito encontrar uma solução, acreditando que as remoções dependem apenas da determinação do mesmo. Algumas lideranças, como Manuel Spinola69 tem conhecimento e segurança para afirmar que: “deverão esperar a notificação oficial para determinar as medidas a serem tomadas”. Mas a maioria dos moradores fica temerosa. Os partidos e parlamentares que acompanham os moradores nas suas tentativas de diálogo, embora tentem também esclarecer estes aspectos, não são bem sucedidos, pois a força de pressão ainda é maior. Ao fim de uma semana, o prefeito parece conceder a permanência afirmando que irá promover a urbanização da área e que só serão removidas cerca de 200 famílias e que a área não será mais desapropriada. O que é um direito para a ser visto como se fosse um favor. O que poderia ser obtido, com a nova Constituição, através do direito de usucapir será anulado com a proposta de urbanização, pois vários moradores serão removidos. Mas, os favelados fazem até uma festa porque a favela será urbanizada e somente parte dos moradores serão removidos. Afirma o atual Presidente da Sociedade Amigos da Favela da 69

Veja-se entrevista com este líder, de 77 anos, no item 3.1. neste capítulo.

183

Na procura do lugar o encontro da identidade

permanecer se não quiserem/puderem sair. Buscam através de tentativas de diálogo com o

Vila Prudente que: “foi uma vitória difícil”. Mas que agora se reunirão com técnicos da prefeitura para elaborar o projeto de urbanização. Estas permanências nas mudanças indicam que para atingir-se na plenitude a constituição de sujeitos coletivos, há ainda um longo caminho a percorrer, para que estes moradores espoliados consigam pensar sua condição de existência.

Arlete Moysés Rodrigues 184

CAPÍTULO IV O COTIDIANO DO PROCESSO DE OCUPAÇÃO DE TERRAS – OSASCO

Na procura do lugar o encontro da identidade

1. JUSTIFICATIVA 185

Que o saber fazer possa ser também o saber pensar sobre o saber fazer.

Neste capítulo, busco fazer uma reflexão sobre a história das ocupações coletivas de terra em Osasco, do “Movimento Terra e Moradia”. Para resgatar a memória do processo de ocupação, optei por um resumo cronológico. Ao descrever a produção espacial contida nesse processo, tento compreender esta produção na sua complexidade, levando em conta as características já apontadas da questão da terra e da moradia. As ocupações coletivas de terra diferem das ocupações individuais em favelas, pela forma prévia como se organizam. São, como as favelas, produto da conjugação de vários processos e representam também uma tentativa de encontrar um lugar para morar. Ocupar a terra para moradia, sem o título de propriedade, não é um processo novo. O novo é a proliferação das ocupações coletivas a partir do final da década de 70. Importa, aqui, reter seu significado e avaliar a constituição dos novos sujeitos coletivos70. O início operacional desta pesquisa foi caracterizado pelas entrevistas gravadas com as lideranças do movimento: “Esta Terra é Nossa”, do Jardim Piratininga em Osasco. Posteriormente, passei a compor o grupo de apoio ao “Movimento Terra e Moradia”, acompanhando o segundo grupo (Jardim Conceição) nas preparações finais e o terceiro em todas as etapas, buscando compreender os recantos da realidade que não estavam recobertos

Arlete Moysés Rodrigues

pelos discursos instituídos e nem estabelecidos nos cenários da vida pública (vide Sader, Eder, op.cit). Como afirmei na introdução, comprometi-me com o movimento a escrever sua história, imprimi-la, para que eles pudessem contá-la para outros. Esta história foi escrita. Novos dados foram-se agregando, pois o movimento se ampliou, e a história foi ficando longa para ser escrita de modo legível para, como dizem, “pessoas de pouca leitura”.

70

Sobre as ocupações de terra no período de 1981 a 1985, no município de São Paulo, veja-se Bava, S. Caccia, 1987.

186

Contar a história do Jardim Piratininga é também ter que contar a história da ocupação do Jardim Conceição e do Jardim Veloso, pois um grupo, após ocupar uma terra, passa a ser apoio de um novo grupo. Consideram que a melhor forma de passar a experiência é contandoa aos que vivem em situação semelhante. Fica, assim, evidente que há formas de comunicação que não são estabelecidas no grande cenário público e que se constituem em diferentes experiências de vida, que moldam novas formas de atuação, novos sujeitos políticos. O objetivo desta parte do trabalho é analisar estas diferentes experiências. Considerando: que foram filmados alguns eventos das ocupações; o número de analfabetos do próprio movimento e de outros, para quem se queria contar a história e a experiência acumulada; a possibilidade de se verem e serem vistos; a possibilidade de utilizar uma nova forma educativa transformou a história escrita em visual, em um vídeo. A utilização do vídeo no processo educativo, em que pese o custo dos equipamentos, é evidente, pois a “leitura” é em geral realizada em grupos, o que permite ampliar a discussão. Este processo educativo, foi ressaltado também pelo comandante da Ação de Despejo dos ocupantes da área do Jardim Veloso, que, após saber que a filmagem tinha “um objetivo de estudo” e que éramos do grupo de apoio ao movimento, indagou da possibilidade de obter desocupação estar ocorrendo sem violência. Imputava este fato ao treinamento dado aos seus soldados e também à organização do movimento. Mas atribuiu o despejo sem violência, ao fato de ter ido várias vezes à área, avisar a população que teriam que sair. Considerava que o vídeo daria uma dimensão melhor aos seus comandados de como ocorre uma desocupação sem violências. Nosso objetivo é servir aos movimentos e não ao despejo, mas ficou evidente a importância dessa forma de comunicação, que pode ser utilizada evidentemente tanto pelo poder instituído como pelos que a ele se opõem. Esta constatação nos levou a tomar precauções para não expor detalhes organizativos do movimento, tanto no vídeo como na história escrita. Mas o poder instituído, tem como diz Yves Lacoste, o domínio sobre o espaço como um todo (Lacoste, Yves, 1988). E auxiliar os dominados na compreensão e no domínio do espaço pode ser uma forma de fazer a Geografia, pois, como diz o mesmo Lacoste, ele conseguiu entender o processo de bombardeamento do diques do Vietnã, quando utilizou o mesmo instrumental de análise, ou seja, a análise geográfica. Mas a história escrita não é 187

Na procura do lugar o encontro da identidade

uma cópia do vídeo para treinar seus comandos. O interesse do Major Vlandir era o fato da

dispensável, pois permite uma reflexão sobre a realidade e sobre a própria elaboração do vídeo como instrumento educativo. No percurso do trabalho, colocaram-se muitas dúvidas. O receio de estar “invadindo os invasores” “usando” o movimento apenas para desvendá-lo e concluir uma etapa de trabalho acadêmico; o receio de colocar a nu, para o poder instituído, as formas organizativas da população. Venceu a perspectiva, espero que correta, de estar com este trabalho auxiliando os participantes dos movimentos a pensar sua condição de vida. Penso que é também uma ilusão imaginar-se que os processos organizativos, de modo geral, não sejam conhecidos. Destaco um fato: quando se aproximava a data de uma ocupação, a imprensa local noticiou até a data em que esta deveria ocorrer, o que indica um certo conhecimento do processo. No grupo de apoio, debate-se a questão e ressalta-se o seguinte aspecto: como são feitas reuniões da população, sabe-se que se trata de processos organizativos. Como a questão habitacional é candente, pode refletir-se sobre este significado. E imaginar-se uma data provável para que ocorra uma ocupação, pelo tempo em que o processo de reuniões se desenrola, é tarefa não muito difícil. E quanto à data e lugar, basta lançarem-se balões de ensaio. Portanto, há indicações de que o processo é conhecido pelos poderes instituídos. Porém, é ainda pouco conhecido pelos movimentos, ou pelos que, esgotados pelas suas condições de vida, não têm condições de refletir sobre elas. Embora domine todos os detalhes organizativos, só farei considerações sobre aqueles que já tem uma visibilidade externa, ou seja, o que não é considerado sigiloso pelos integrantes do “Movimento Terra e Moradia”.

Arlete Moysés Rodrigues 188

2. ESTA TERRA É NOSSA – HISTÓRICO DO MOVIMENTO

O Movimento “Esta Terra é Nossa”, refere-se ao primeiro grupo do “Movimento Terra e Moradia” de Osasco, formado por 421 famílias que, em fevereiro de 1987, ocuparam uma área vazia, no Jardim Piratininga.

2.1. Início

O Movimento “Esta Terra é Nossa” surgiu, quando em maio de 1986, os moradores da Favela do Braço Morto do Rio Tietê, após serem atingidos por muitas enchentes, começaram a discutir seus problemas de moradia. Construíram um barracão para chamar a atenção das autoridades. Cerca de 350 famílias moradoras na favela participaram do movimento. O barracão chamou a atenção de centenas de pessoas com problemas de habitação (Jornal da Terra e depoimentos).

planície sedimentar, que se prolonga desde a montante do bairro da Penha em São Paulo, ao Município de Osasco:

“através de uma faixa orientada de Leste para Oeste, apresentando largura média de 1,5 a 2,5 km. As planícies sedimentares com seu relevo praticamente nulo, são sujeitas a inundações anuais nas cotas entre 719 metros e periódicas entre 722 e 724 metros”71. (Ab‟Saber, A., 1957)

Pelo Código de Águas de 1934, o antigo leito do rio Tietê é propriedade do Poder Público Municipal (Seabra, Odette, C.L., op. cit.). As piores áreas para moradias, como o antigo leito do Rio Tietê, com enchentes periódicas, são as que podem ser ocupadas. São terras 71

Sobre a retificação do Rio Tietê, o sistema hidráulico criado pela LIGHT, no processo de incorporação das várzeas ao urbano, veja-se Seabra, Odette, 1986; sobre o processo de sedimentação das planícies aluvionais, Ab’Saber, op. cit.

189

Na procura do lugar o encontro da identidade

A favela do Braço Morto situa-se em um meandro abandonado do Rio Tietê, na sua

públicas, o que indica um conhecimento da legislação e também da dinâmica do rio: “as terras foram abandonadas pelo rio, tavam aí vazias, aí nós viemos para cá...” Explicam também como descobriram quem era proprietário: “margem de rio é do governo; é da prefeitura, porque é rio” (depoimentos). Há que considerar-se, também, que a cidade é entendida apenas como um conjunto de lugares, sem ligação entre si. Mesmo na conjuntura do “planejamento urbano”, que é o tom dos discursos oficiais pós década de 50, atua-se apenas pontualmente na cidade. Promove-se, por exemplo, a retificação ou o desassoreamento do Rio Tietê, em áreas densamente ocupadas e com problemas de enchentes. E, a jusante e a montante do trecho retificado e mesmo desassoreado, as enchentes no período das chuvas aumentam, o que leva a população, cansada de ter várias enchentes por ano, a começar sua luta por melhores condições de moradia. A continuidade de enchentes incorpora-se ao cotidiano e pode servir para compreender que aqueles que moram nas áreas atingidas pelas enchentes estão entre os mais pobres. O que ocorre em um período do ano, acompanha o cotidiano dos moradores despossuídos. Estes perdem: móveis, madeiras do barraco, roupas, etc., o que significa que devem trabalhar ainda mais o resto do ano para tentar repor as perdas. Além disso, na favela do Braço Morto, alguns moradores utilizavam trechos para cultivar uma horta. Com as enchentes perdiam também seu meio de sobrevivência.

Arlete Moysés Rodrigues 190

Na procura do lugar o encontro da identidade

191

Podem, estes aspectos, propiciar a discussão da moradia e do seu lugar na cidade. Mostram que o cotidiano – individual – se amplia, pois há muitos outros em situação igual. Inicia-se a passagem do individual para o coletivo, do lugar isolado para a cidade. As eleições para a prefeitura realizaram-se em 1982 (posse em março de 1983), e já se estava em maio de 1986, ou seja, três anos tinham-se passado. Na época das eleições houve promessas de mudar a condição de vida nas favelas, urbanizando-as. Mas nada havia melhorado, as enchentes continuavam a ocorrer duas ou três vezes por ano. Este fato leva também a tentativa de chamar a atenção coletivamente para a sua situação de vida.

2.2. Ampliação do movimento

As reuniões realizadas aos domingos na área, no barracão construído para tal fim, chamaram a atenção de mais de 2000 famílias, moradores em cortiços e pequenas habitações. Estas famílias buscavam orientação para suas dificuldades de moradia (Jornal da Terra – op. cit.). Viram que a situação era semelhante: os favelados morando em barracos, atingidos por enchentes; os moradores de aluguel não estavam mais conseguindo pagar. Estava-se em 1986, época do Plano Cruzado, os salários estavam congelados, mas os aluguéis subiam dia a dia. A forma de fazer aumentar o valor do aluguel era considerar o contrato de locação como um produto novo, pois na maioria dos casos, o imóvel não era novo. Como o que circula, no caso dos imóveis alugados, é o contrato de locação, é a este que se atribui o título de novo. O preço dos imóveis antigos é redefinido pelo preço dos imóveis

Arlete Moysés Rodrigues

novos, colocados no mercado, muito embora não tenham a ver com o seu próprio custo de produção e muito menos, dadas as características já apontadas, com o valor da produção72. Várias foram as artimanhas para se “pedir a casa”, e conseguir um novo contrato de aluguel, embora as ações de despejos estivessem congeladas. Na maioria dos casos dos moradores de aluguel na periferia, o contrato de aluguel por escrito não é uma norma73.

72

Vide Rodrigues, A. M., 1988, p. 51-52. Pesquisa de campo – 30% dos cadastros tinham apenas certos verbais; 30% tinham um contrato escrito, mas não registrado, ou apenas um documento assinado. 73

192

Mesmo quando os contratos existem, os reajustes são também definidos através de acordo entre as partes. Além disso, há uma desinformação sobre os procedimentos em relação aos processos de despejo. Acredita-se que o fato do proprietário pedir, nos contratos verbais, é suficiente para que desocupem os imóveis. Quando há um contrato, basta uma carta de um advogado em papel timbrado, especificando um prazo para desocupação do imóvel, para parecer aos inquilinos como a última palavra, o despejo eminente. Esta falta de conhecimento dos seus direitos, leva a que muitas famílias fiquem numa situação difícil antes até do prazo que lhes é concedido pela lei. É também comum os proprietários recusarem-se a receber os aluguéis, quando os inquilinos não aceitam acordos para aumentá-los ou quando dão um prazo para desocuparem os imóveis, o que caracteriza, e pouco tempo, o despejo por falta de pagamento. A conjuntura como um todo, acirrada pelos salários arrochados e aumento abusivo dos aluguéis, faz com que rapidamente, o movimento inicial dos favelados do Braço Morto, seja engrossado com a participação dos inquilinos. O barracão foi construído com as madeiras de três antigas sedes da favela do Braço Morto, porque todos se uniram nessa luta. Colocaram uma faixa “Esta Terra é Nossa”, o que

“se escrevia o nome de cada um no caderno e aí se viu que o caderno não dava, então começaram as fichas. Foi um susto, ver quanta gente vinha se inscrever. Foram mais de 3000 fichas”; “era tanta gente que tinha que fazer duas reuniões, uma com a favela e outra com os aluguéis” (depoimentos)

O pessoal da favela foi deixando de ir às reuniões. Para alguns participantes, este afastamento foi:

“porque preferiram ficar nos barracos, aguardando uma solução”; “a ocupação ia ter lotes menores do que alguns na favela, que tinham até plantação”.

Ou então: 193

Na procura do lugar o encontro da identidade

começou a atrair muita gente:

“lá eles estavam instalados era só continuar”.

Para outros participantes, o que ocorreu é que os:

“favelados foram ficando em minoria, se sentiram sem condições de continuar”.

É bom relembrar que a concepção de favela como lugar de bandido e o favelado como um bandido em potencial, é um discurso que permeia todas as classes sociais, pois é o discurso da classe dominante. Por outro lado, nesse período, o poder público municipal começa a apresentar para os movimentos de favelas o projeto “Casa para Todos”, que prevê a urbanização das favelas, no próprio lugar ocupado. Até hoje, em todas as falas do poder público e dos ocupantes, fica explícito que a favela do Braço Morto será incluída no projeto de urbanização da área. O movimento começou com a favela que solicitava, devido às enchentes, medidas para mudar de área; ampliou-se com os moradores das casas de aluguel; os favelados afastam-se do movimento mas para as lideranças da ocupação, eles continuam a fazer parte do movimento, pois quando negociam com o poder público, incluem as 350 famílias moradoras na favela do Braço Morto. No entanto, esta inclusão é parcial: significa apenas, que quando o projeto final for concluído, eles poderão comprar suas casas de alvenaria. Os integrantes do Movimento “Esta Terra é Nossa”, acreditam que devem discutir e participar do projeto como um todo. Há

Arlete Moysés Rodrigues

aqui, portanto, uma contradição. A discussão é realizada apenas entre os ocupantes – que vieram do aluguel, pois os favelados só irão no final para a área já pronta. Vários aspectos estão contidos no afastamento dos favelados e a ampliação do movimento com os inquilinos: a concepção de favela e favelado; a atuação do poder público propondo atender às reivindicações das favelas, dividindo o movimento, pois a procura do lugar para morar é diferente para quem já ocupou um lote – como os favelados – e para quem ainda tem que ocupar; há o risco de perder um lugar já conquistado – o da favela – para um lugar ainda a conquistar – a ocupação.

194

Ou seja, é possível que os favelados tenham optado por não mudar o barraco de lugar, mas por conseguir melhorar sua condição de moradia no lugar já ocupado. Enfatizar, como fazem, que o projeto inclui as 350 famílias da favela do Braço Morto pode ser uma forma de reconhecer e legitimar os iniciadores desta luta, ficando implícita uma mudança na concepção sobre os favelados, por parte dos integrantes do movimento “Esta Terra é Nossa”. A inclusão da favela do Braço Morto no projeto de urbanização pelo poder público pode ser também uma forma de conseguir a legitimação do projeto “Casa para Todos” e da atuação da prefeitura nas favelas. Todos estes componentes estão contidos ao mesmo tempo nesse processo. O movimento, na verdade, passou a ser de moradores de casas de aluguel à procura de um lugar para morar, pois não estavam mais conseguindo pagá-lo.

2.3. A descoberta do “movimento” – Organização Inicial

Os atuais moradores da área ocupada no Jardim Piratininga conheceram o movimento principalmente pela faixa colocada na área e também por informações de amigos e parentes

“Eu passava do meu serviço e vi escrito lá também: „A Terra é Nossa‟. Aí, eu entrei um dia, interessado, porque eu também pagava aluguel, hoje não pago mais.. Aí cheguei lá, falaram que era para deixar os documentos, dar o nome e tal... Continuei indo nas reuniões. Depois entrei na comissão”; “Eu conheci o movimento através de um conhecido meu de serviço, que me deu o endereço de onde era a próxima reunião que ia ter... A gente tinha medo de ser descoberto...”; “Eu já conhecia o movimento. Aí, um dia, eu vi a placa: „A Terra é Nossa‟, pensei: Nossa Senhora, essa terra é nossa, vou chegar nela! Cheguei em casa e disse: eu tenho certeza que esta terra vai também me pertencer. Fui lá e fiquei sabendo que a pessoa para participar dessa terra tem que participar de todas as reuniões e não pode faltar nenhuma, tem que estar em todas elas”. (depoimentos)

Em todas as entrevistas, com os moradores da “Terra”74 que são da comissão, a forma de conhecer o movimento foi ou um amigo, ou vizinho, mas principalmente a própria faixa na 74

Os moradores utilizam a palavra “Terra” para designar o lugar que ocupam.

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Na procura do lugar o encontro da identidade

que estavam indo às reuniões:

“Terra”. Isto mostra que há formas de comunicação, recantos da realidade, que não estão cobertos pelos canais considerados instituídos. A comunicação pelo “correio cipó”, em que a informação passa para amigos e conhecidos é muito comum e já foi cantada por Tom Zé – “O Correio da Estação do Brás”. Procurar saber o que a faixa “ESTA TERRA É NOSSA” quer dizer; acreditar nesse grupo organizado e incluir-se nessa organização, indica a procura de espaços para manifestar-se e tentar resolver a sua situação de moradia. Mas este proceder é muitas vezes demorado:

“No início quem participava era a minha mulher. Eu não acreditava não. Esse negócio de invadir terra de outro não tava certo, eu pensava... Aí resolvi ver... E pensei: aqueles caras são de luta e eu não tenho nada a perder mesmo”; “Pra dizer a verdade eu achava que era coisa de político, aí pensei vou esperar passar a eleição. Se continuar então é pra valer”. (depoimento)

Portanto, não é em um acender de luzes, mas sim em um processo de constituição de sujeitos políticos que se dá a participação. Divulgar o movimento na própria área que será ocupada, com uma faixa, é peculiar a esta ocupação, pois, em geral, após uma primeira organização, procura-se uma área que possa ser ocupada. Nesse caso o lugar já era conhecido. Sabia-se ser propriedade da COHAB, que nunca pagou os impostos; sabia-se ter a área 300.000m2. Na mesma área já tinham sido construídas, através de financiamento da SFH, 3.430 unidades através do INOCOOP – SP. Na verdade, quando as unidades ficaram prontas a maior parte dos “cooperados” não podia pagar as prestações e apenas 579 apartamentos

Arlete Moysés Rodrigues

foram comercializados pelo INOCOOP. Os demais foram financiados pelo Bradesco, em outra linha de financiamento, pelo SBPE75. Nesta vasta área que, segundo a COHAB – SP, aguardava recursos para a construção de mais unidades, é que os integrantes do movimento fazem suas reuniões, constroem o barracão e posteriormente ocupam-na com seus barracos. O barracão é considerado pelo movimento como um marco, pois foi incendiado duas vezes, começou-se então a construí-lo de bloco e foi derrubado por um trator. Estes incêndios,

75

São 2.502 unidades no conjunto Morro do Farol r 928 no Jardim Piratininga totalizando 3.430 unidades. Sobre as carteiras de financiamento do SFH veja-se Azevedo, S., Andrade, L.A.G, 1982.

196

considerados propositais, representavam uma tentativa de destruir o movimento. Perderam-se nos incêndios as fichas cadastrais que tiveram que ser refeitas:

“aí tinha aquele barracão até bonito, grande; tocaram fogo. Aí a turma desesperançada, a maioria sumiu, foram embora. Aí voltamos novamente, mas num barraquinho pequenininho e continuamos... Aí tocaram fogo... Resolvemos fazer de bloco, então o pessoal, se reuniu todo mundo, e compramos um bocado de bloco e nós já estava construindo, tinha já meia parede levantada, eles vieram e derrubaram o barracão com o trator”; “Quando derrubaram o barracão, aí a gente criou a idéia e tomou coragem e resolveu tomar uma atitude... O povo estava achando que a gente tinha enganado eles, então nós tomamos uma atitude e começamos a se reunir em várias partes: lá na Matriz, no Centro de Vivência e em outros lugares por aí, que a gente reunia com o pessoal”. (depoimentos)

A reconstrução do barracão significou para os integrantes do movimento uma forma de resistência, para demonstrar que não se esmorece por pouco. Ficou visível que muitos participantes ficaram com medo e se retiraram. Mas, como os indivíduos entrevistados representam, a comissão eleita pelos companheiros, trata-se da fala das lideranças, da fala de quem ficou. Não foi possível saber dos que não ficaram os principais motivos da sua saída do manter a confiança dos que permaneceram e chamar de volta os que estavam desistindo. De um modo geral, cria-se com o tempo uma confiança na comissão eleita. O incêndio no barracão, se afasta da luta uma parte dos inscritos solidifica, para outros, a continuidade do processo. Mostra também as formas “alternativas” que os proprietários utilizam para defender sua propriedade, impedindo-se até que seja um lugar de reuniões da população. Nos argumentos da COHAB – SP a derrubada do barracão consistia no impedimento das ocupações. Mas, estes fatos fazem aumentar a solidariedade para com o movimento, pois novos lugares passam a ser utilizados como ponto de encontro. Os representantes indicados pelo coletivo são eleitos em Assembléia. Reuniam-se todos os domingos, em assembléias, para discutir o que fazer. Além disso, a Comissão passa a ter reuniões extras para definir os rumos do movimento e levar as propostas para todos os inscritos. 197

Na procura do lugar o encontro da identidade

movimento. A coordenação do movimento, denominada Comissão, sente o desafio e procura

Foram feitas várias reuniões com as autoridades públicas. O movimento chamou também os vereadores para uma reunião na área; só apareceram os dois do PT e um do PMDB. O prefeito pede que o movimento aguarde, pois está criando uma Secretaria da Habitação para cuidar do assunto. Mas como muitos estão sendo despejados, os integrantes do movimento consideram que não dá mais para esperar e resolvem ocupar a área onde já se reuniam desde maio de 1986.

2.4. A ocupação “Lá fora tava todo mundo batucando, nós aqui tava batendo o martelo, para construir nosso barraco”. (depoimento)

O fim do Plano Cruzado foi um momento considerado especial pelo movimento para ocupar a terra. Tudo já tinha começado a subir, menos os salários. Planejou-se a ocupação para a noite de 28/2/87, sexta feira de “carnaval”. O lugar já é conhecido, desde maio de 1986, afinal é o lugar onde construíram o barracão e onde se reuniam aos domingos. Área sem enchentes, cheia de mato e ratos. Somente a comissão tinha conhecimento prévio da hora e dia da ocupação. A escolha do dia e hora demonstra um processo organizativo, pois dá tempo ao movimento de construir seus barracos. Na noite de carnaval as autoridades estão preocupadas em manter a ordem contra as arruaças. O policiamento será ostensivo em clubes ou ruas onde

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há desfiles e maior movimento carnavalesco. Mesmo assim, os policiais apareceram, deram uma olhada, mas não impediram a ocupação. A COHAB – SP, proprietária da área, só poderia pedir a Liminar de Reintegração de Posse na quarta-feira de cinzas, após as 14:00 horas, pois aos sábados e domingos o Fórum não funciona e segunda e terça-feira de carnaval também não, por ser Ponto Facultativo. Com um trabalho intenso, os ocupantes teriam tempo de construírem os barracos, tornando efetiva a ocupação e necessário um processo de Liminar de Reintegração de Posse para retirá-los (vide Baldez, M. op.cit) Esta organização mostra que, apesar das dificuldades, é possível encontrar-se válvulas de escape, mesmo que temporárias, quando se dispõe de informações corretas. Nesse caso, as

198

informações provêm da assessoria dos advogados do Centro de Defesa dos Direitos Humanos de Osasco, ligados à Igreja Católica. Ocupam a área 412 famílias, apesar de terem sido cadastrados cerca de 2000. O que foram ocupar também tinham medo de repressão. Situação difícil esta de procurar seu lote, já marcado, à noite e começar a construir. O fato de ser à noite também é peculiar:

“à noite o pessoal não sabe direito o que está acontecendo,dá tempo da gente se organizar”; “a gente já conhecia cada palmo aqui da terra, então podia ser de noite, de dia, nós resolvemos que de noite era melhor”. (depoimentos)

Nesta ocupação predominou, nos primeiros dias, o uso de alguns pontaletes recobertos por lonas, embora não fosse considerada a melhor alternativa, pois barraco construído é casa, é moradia. Mas, chuvas intensas caíram nos dias subseqüentes, dificultando a construção dos barracos. Alguns depoimentos explicam o processo:

“aí, quando foi no dia 28 de fevereiro, que foi pra nós vir para cá, nós viemos à noite, o maior escuro, levando tombo pelos barrancos aí. Passei a noite inteira com a esposa derrubando barranco para construir o barraco... passei uns 15 dias embaixo da lona esperando o tempo melhorar para fazer o barraco tomando chuva direto”; “Tinha um colega meu que disse que eu era maluco, pois „só maluco pega a mulher e duas crianças e fica lá no barrão direto, terreno sem nada‟. E eu falei, maluco nada, é precisão mesmo. É a precisão que força a gente fazer tudo que não é possível. A gente tem que fazer”. (depoimentos)

Em todos os depoimentos é visível uma alegria muito grande de ter tentado, de ter lutado, de ter ido no dia da ocupação, de ter conquistado a terra. Sentem-se donos do seu destino. Alguns inclusive entraram sozinhos, pois o/a companheiro/a não quis acompanhar. Mas afinal, concluem, acabaram vendo que a luta era correta e mudaram depois: 199

Na procura do lugar o encontro da identidade

“Aí chegou o dia 28, a gente teve coragem de entrar na terra mesmo, enfrentar essa luta, enfrentamos, sofremos muito embaixo de chuva e de sol quente também”; “... aí na noite que a gente invadiu, a gente loteou tudo, cada qual pegou o seu, apareceu até parte do povo que também tinha sumido do movimento”;

“No dia da ocupação, dispus até a separar do marido, que não queria vir. Vim sozinha, um vizinho e a comissão me ajudou, depois o marido veio”. (depoimento)

Há também casos em que a mulher é que não queria ir, mas acabou sendo convencida. Há também alguns casos em que descobriram na hora o que estava acontecendo, pois tinham deixado de ir às reuniões e quiseram voltar. A estes, dependendo do número de faltas, foi permitida a entrada: ”Eu estava todo enfeitado para o carnaval, aí vi todo mundo com um pauzinho nas costas e... Eu já conhecia o movimento, aí mudou a minha idéia e pensei „eu prefiro ficar por aqui... foi o melhor carnaval da minha vida”.

Há também um sentido de aprendizado: “eu sinceramente, eu gostei de ter vindo. Aprendi, aprendi muito, aprendi até a ser um pouco mais solidário... Por isso eu acho que todos os companheiros que estão aqui dentro aprenderam bastante”. (depoimentos). Há um sentir-se em família, pois se conhecem há um longo tempo, desde as reuniões para decidir o que fazer, para resolver o onde e o como morar. É um sentimento de que o lugar de moradia foi construído passo a passo com os vizinhos, desde a definição do que fazer até o onde fazer e, no lugar, definir a largura das ruas, o tamanho dos lotes, a construção dos barracos, muitas vezes em mutirão:

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“... os barracos que já tão prontos, não é pra ficar enfeitando, agora é ajudar as mulheres sozinhas para construir o seu barraco”; “junta três ou quatro e levanta um barraco, depois vai pra outro, porque tem que ser rápido”; “... barraco coberto com gente morando é mais difícil de derrubar, por isso todo mundo tem que ajudar”. (gravação em vídeo)

Este processo cria uma identidade muito forte entre os moradores. Sentem-se integrantes da mesma luta.

200

2.5. A reintegração de posse

No dia 6 de março, o Poder Judiciário concede à COHAB – SP a Liminar de Reintegração de Posse, ordenando despejo sumário. O Oficial de Justiça chega na área logo após as 18:00 horas. Não pode fazer a citação, pois os ocupantes sabiam que passado este horário, só poderiam ser citados após as 8:00 do dia seguinte. O como proceder faz parte também do processo de organização. Quando começa uma ocupação todos os participantes são chamados e atendem pelo nome de „companheiro/a‟, isto porque as citações/intimidações só podem ser nominais. Quando coletivizadas é preciso citar pelo menos um: “fulano de tal e outros”. Evitar que o nome dos participantes seja conhecido é uma forma de ganhar tempo para negociações. Significa, também, uma socialização das informações que, via de regra, são restritas ao discurso competente. Referem-se, os integrantes do movimento a este conhecimento de modo límpido:

“eles tentam enganar a gente, mas nós sabemos o que fazer”. (depoimentos)

Aumenta a confiança do que fazer, quando se tem conhecimento, um certo domínio das etapas que estão por vir. Como enfatiza Élisée Reclus, referindo-se ao conhecimento dos territórios:

“os monstros ficam restritos aos espaços misteriosos que se estendem além dos limites do mundo explorado”. (Reclus, E., 1985, p.42)

O saber favorece a atuação, joga mais longe a possibilidade de ser enganado. No Jardim Piratininga, do dia 6 ao dia 10 o movimento ficou sob forte tensão: 201

Na procura do lugar o encontro da identidade

“aí o Oficial de Justiça chegou. Nós távamos esperando e torcendo para ele chegar só depois das 6:00 da tarde. E, foi isso que aconteceu. Então ele não pode aplicar a eliminar”; “todo mundo sabia né, que a gente não devia dar o nome, para se proteger, e além disso também todo mundo sabia da hora que o Oficial de Justiça podia vir aqui e que hora ele não podia”;

“A COHAB – SP, e o Juiz José Antonio Pereira se mantinham inflexíveis: queriam o despejo” (Jornal da Terra). A advogada da COHAB –SP, Dra. Benedita argumentava que todos iriam sair. “Não há nenhum caso em que a COHAB – SP, perdeu uma ação de reintegração de posse”. (entrevista – vídeo)

É interessante destacar que esta área estava destinada à construção de casas populares. Para isso foi adquirida pela COHAB – SP, utilizando recursos do BNH. Como nunca pagou os impostos, o prefeito declarou, em 26/12/85, a área como de utilidade pública para desapropriação. Segundo o decreto, no local seriam construídos conjuntos habitacionais de interesse social e equipamentos públicos. Ou seja, a COHAB – SP utilizou recursos públicos na compra da área e seriam necessários novos recursos públicos para “indenizá-la”, recebendo assim um prêmio por deixar a área vazia, especular com o dinheiro público e com a produção social da cidade, pois alegava não ter recursos para iniciar qualquer construção de habitações na área. Nos projetos e mapeamentos da COHAB – SP, constava que na, Gleba Osasco, seriam construídos 8.330 apartamentos e 2.780 embriões totalizando 11.110 novas unidades (COHAB – SP) Da falta de recursos a COHAB – SP reclamava do BNH, demonstrando em documento interno que, no período de janeiro de 1979 a dezembro de 1982, obteve apenas 0,62% dos recursos em contratos do BNH, enquanto a COHAB – MG, obteve 10,6%; a COHAB – RS, 8,18%; a COHAB – CE, 7,78% e a URBIS – BA, 6,87%. Esta distribuição de recursos privilegia áreas onde seria mais provável que o partido do governo ganhasse as

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eleições para governador. Se, de um lado, a COHAB – SP poderia ter recursos escassos para construir novas unidades, de outro, utilizava-se deste argumento para não saldar impostos e deixar amplas áreas vazias, sem uso, não possibilitando nenhuma forma de ocupação: pelo contrário, impedindo seu uso pelos sem-casa e, ainda mais, querendo obter a maior renda possível destas glebas. E, não deixa transparecer que a falta de recursos é decisão política e não econômica. A prefeitura não estava de posse da área, pois não depositou em juízo os 20% do valor venal como exige a lei, alegando também falta de recursos. Este é um exemplo da utilização

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dos recursos destinados à produção da habitação para as faixas chamadas de interesse social. Se a prefeitura não depositou o valor exigido por lei, como afirma que fará as habitações? Se os participantes do movimento estavam relativamente informados sobre alguns aspectos da questão jurídica e financeira, não houve manifestações explícitas, em documentos ou entrevistas, sobre a questão política da utilização de recursos do BNH e da apropriação pela COHAB da produção social da cidade. Denunciam o não pagamento dos impostos, a utilização dos recursos do FGTS, mas de forma apenas local, como se a dimensão desta questão não extrapolasse a área que pretendiam obter para moradia. A luta pela permanência na área ocupada representa para a maioria a resistência, tentando obter um lugar para morar. Não há ainda a dimensão da inserção do lugar na produção espacial como um todo.

Na procura do lugar o encontro da identidade

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2.6. A conquista da terra

Após alguns dias de muita tensão, a luta pela permanência na área ocupada é vitoriosa. Firma-se um acordo entre a COHAB – SP e a prefeitura:

“a COHAB – SP, transferiu para o Município uma área de 71 mil m2 em troca do „perdão‟ da dívida fiscal e anistia do IPTU futuro. Em contrapartida a prefeitura concordou com a construção pela COHAB – SP, de um conjunto de apartamentos para funcionários públicos na área do acampamento”. (Jornal da Terra)

Até hoje, o único documento existente é uma “carta de princípios” entre o PMO e a COHAB – SP. A ocupação desta área pelo movimento, se não define um novo uso, que já estava previsto nos projetos, acelera a ocupação, produz um novo espaço na cidade. O receio de novas ocupações faz com que a área passe a ser vigiada e hoje está cercada, demonstrando a “posse” pela COHAB – SP. A prefeitura e a COHAB definiram uma forma não usual de quitação de impostos atrasados, legitimando e “premiando” o não uso da terra, e o não pagamento de imposto devido. A prefeitura não recebeu em valor dinheiro os impostos, recebeu em terra, mas não construirá porque não tem dinheiro. Permitiu-lhe, este fato, uma legitimação no plano político,

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pois atendeu à reivindicação das famílias organizadas. Possibilitou-lhe demonstrar aos munícipes que tenta resolver o problema de moradia, mas: “o governo federal não favorece, não está enviando os recursos necessários” (depoimento). Parece uma “legião de boa vontade”, onde a falta de recursos é o único “mal”. Mantém-se, no plano mais geral, intacta a questão da propriedade de terra, pois apenas se estabeleceu uma forma de pagamento de impostos em terra. A área, de 71 mil m2 destinada a alojar provisoriamente as famílias, até que o projeto de urbanização seja concretizado, é parte da gleba total, distante cerca de 100 metros da área originalmente ocupada, e que significou um deslocamento dos ocupantes. A COHAB – SP, estabeleceu um prazo de 10 dias para esta mudança, prazo que começou a ser contado após a 204

execução de algumas obras: desmatamento do terreno, instalação de água, arruamento e demarcação de lotes, bem como fornecimento de caminhão para o transporte. Logo após este deslocamento, começam novas etapas de luta: “uma conquista é o início da luta seguinte” (depoimento). Conseguir luz é uma delas. Só após cinco meses completa-se a ligação de luz nos barracos. Hoje, após mais de um ano, continuam aguardando a urbanização para mudarem para os lotes definitivos. A conquista significou o direito de ficar aguardando a urbanização da área, o que representa para os integrantes do movimento uma espera sem pagar aluguel. Considerando as condições de promoção das habitações chamadas de interesse social, esta é uma grande vitória, pois enquanto se mora mal, se tem pelo menos, o direito de não pagar pelo uso da terra, pois os barracos foram construídos pelos próprios moradores. Mas o movimento não para aí, pois seus participantes querem mudar rapidamente para a casa de alvenaria, já que consideram que o barraco de madeira é igual à favela. Quando a urbanização chegar, vão estar juntos com os moradores da Favela do Braço Morto. Mas, então, nenhum deles será mais favelado. E, enquanto se espera a urbanização da gleba total, a área fica em “pousio”, aguardando um aumento de preço.

A vizinhança imediata é constituída por moradores do conjunto INOCOOP – Bradesco, cujas unidades foram financiadas pelo SFH76. A movimentação contrária à ocupação partiu desta vizinhança, que avisou a polícia na noite da ocupação. O medo de que seus imóveis fossem depreciados é um fator importante para se colocarem contra a ocupação. Muito embora, para a maioria faltem muitos anos para terminar de pagar o imóvel, cujas prestações não se alterarão em função da ocupação do espaço circunvizinho, já que os reajustes são definidos pelo valor do financiamento inicial e para os mutuários do SFH como um todo, pensa-se numa “valorização futura”, em um prazo não inferior à 15 anos, exceto, é

76

Vide nota 75 sobre a comercialização destas unidades.

205

Na procura do lugar o encontro da identidade

2.7. Vizinhança

claro, se o imóvel for comercializado, vendido, antes do término das prestações. Fica assim evidente o fetiche da “valorização”. Estas questões não são discutidas com a comunidade como um todo, ressalta-se apenas a questão da necessidade, a falta de condições dos ocupantes em poder comprar ou alugar uma moradia, através de uma carta à comunidade, publicada no Jornal da Terra:

“Quem somos nós, os “Sem-Terra” -

somos trabalhadores como você e moradores de várias regiões de Osasco.

-

Somos assalariados de baixa renda, vítimas dos altos aluguéis, como milhões de outros brasileiros;

-

Muitos de nós estão, no momento, recebendo salários iguais ou inferiores aos pedidos pelos proprietários. Não temos condições de viver dessa maneira;

-

Muitos de nós já foram despejados das suas moradias; muitos dentre nós estão desempregados. Temos família a quem alimentar, vestir, dar assistência médica;

-

Somos marginalizados, mas não marginais, aproveitadores ou vagabundos. Não estamos querendo terra de graça;

-

Há um ano fundamos o movimento “Esta Terra é Nossa” e desde então tentamos comprar os lotes, de acordo com nossa renda. As autoridades (Prefeitura e COHAB) recusaram-se a negociar conosco até o último 10, mas nós resistimos.

-

Não temos a ilusão de vir a resolver o problema da falta de moradia popular. Mas iniciamos uma luta que é de muitos. Você pode conhecer outras pessoas na mesma situação”.

(Jornal da Terra – Osasco)

Neste documento, distribuído pelos ocupantes, eles colocam-se como trabalhadores

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que, recebendo baixos salários, não tem condições de pagar a moradia. É preciso evidenciar que a fala dominante é de que não conseguem porque não trabalham. Além disso, a maioria dos moradores vizinhos está pagando altas prestações mensais para, ao final de muitos e muitos anos, ser proprietária da casa própria. A maioria dos moradores dos conjuntos habitacionais vizinhos acredita que foi apenas a luta individual, seu trabalho e o da família, que lhes possibilitou obter a casa própria. É preciso, assim, repensar de que modo podem ser esclarecidas mais efetivamente as causas que impedem o acesso à terra/casa.

206

Como deixar mais evidente que a própria construção dos imóveis que estão pagando foi realizada com o dinheiro do trabalho em geral, considerando que foram financiadas pelo SFH? A carta elaborada pelos ocupantes atinge, na verdade, aos que estão na mesma situação deles. No caso dos moradores vizinhos desta área, seria necessário tornar claro o que é turvo na vida diária. E esta carta não o faz. Este é um outro desafio para os movimentos. Embutida nesta questão, permanece o medo de assaltos, de sair de casa à noite, pois se acredita que só os não-trabalhadores é que estão nessa situação, ou então aqueles que acabaram de vir do campo: “Com uma „favela‟ tão perto, eu tinha até medo de sair de casa” (depoimento). A pressão, a denúncia é feita pelos moradores dos prédios de apartamentos. Mas após o deslocamento as vozes se calam, pois a ocupação ficou mais distante de suas casas. Mas é também da vizinhança que virá o apoio. De moradores do conjunto de prédios, chegam doações de roupas, remédios, moveis. Dos moradores do conjunto do IAPI, próximo à área ocupada, chegam, além das doações, apoio em documentos escritos. Desse modo evidencia-se que à condição objetiva de classe (ou pelo menos de faixa de renda) deve-se adicionar as condições subjetivas, uma condição vivida e continuamente reelaborada:

(depoimento)

A vizinhança também manifesta-se através das Comunidades Eclesiais de Base e dos padres da Igreja Católica, que além do apoio organizativo, explicam em documentos o porque dessa situação e do apoio da Igreja a movimentos dessa natureza, demonstrando uma vinculação com as características expressas no documento da CNBB sobre o Uso do Solo Urbano. A ocupação de terra pode ser um caminho para, como diz o movimento, iniciar uma luta que pode ser de muitos. Iniciar pelo menos uma contestação das formas que regem o direito de acesso ao uso do solo.

2.8. Os partidos políticos 207

Na procura do lugar o encontro da identidade

“Tinham-me dito que quem apoiasse a ocupação seria preso... Fui no açougue e vi que o preço da carne tinha subido. As pessoas estavam conversando enraivecidas e, a polícia apareceu para dispersar. Parei para pensar. „Ué, abusar dos preços pode e ninguém vai preso. Vai preso só que reclama. Ocupar uma área por necessidade não pode‟? Aí resolvi ajudar o movimento e entrar como apoio ao pessoal”

A maioria do grupo de apoio ao movimento é constituída por militantes do Partido dos Trabalhadores. No entanto, estes não divulgam para o movimento que pertencem a partidos políticos. Consideram que, se houver um conhecimento prévio de que há militantes de partidos, muitos deixariam de participar. Alguns depoimentos deixam explícito este aspecto:

“Achava que era coisa de político... de político para a classe besta (classe besta é o pobre, né, que acredita em tudo). Fiquei observando, se aquelas coisas continuassem depois das eleições, aí sim teria a certeza. Depois que passou as eleições e continuou, aí eu vim” (depoimento). “Eu vi a faixa e pensei, é coisa lá do pessoal da política, da Floriza, do Rossi, então eu não vou. Depois eu vi um pessoal que não era lá da Floriza, então eu resolvi vir”77.

Há, assim, motivos para não explicitar a presença partidária. Mas com o tempo, fica claro para os participantes que há militantes partidários. Talvez não ganhe expressão pública ou garantia de votação, mas passa a ser conhecido: “Nunca votei em ninguém. Como você vai saber onde está a verdade? Mas agora, depois dessa luta a gente já tem uma base, já sabe pensar e ver quem é de luta” (depoimento). Alguns militantes, moradores do Jardim Piratininga, acreditam que dever-se-ia explicitar que é o Partido dos Trabalhadores que está com eles nessa luta, pois tem uma proposta política em relação à moradia. Para outros, a proposta partidária não precisa ficar explícita, pois o movimento conduz-se sozinho. Se deixar evidente que há um partido muita gente se afasta. E, nessa luta é preciso muita gente. A moradia é considerada a questão central,

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e nesse processo de luta pela casa acreditam que se desenvolva a consciência política. Para o primeiro grupo a consciência política é a mais importante de ser explicitada logo de início, pois aí sabe-se porque se luta. Mas há também a questão da autonomia do movimento, de não vinculá-lo a nenhum partido. Após a ocupação, ficou evidenciada a participação do PT, pelo apoio explícito, através da executiva municipal e dos vereadores eleitos que estiveram presentes ao movimento. 77

Há, como já dito, um outro grupo em Osasco que também discute a questão da moradia e organiza-se ocupando. É conhecido como o grupo da “Floriza” e considerado, pelos participantes do movimento Terra e Moradia, como um grupo que usa as pessoas para poder eleger candidatos do PTB. O processo de ocupação é diferente, pois apenas um pequeno grupo organiza e chama os demais para entrarem. A Igreja Católica local também não apóia este grupo.

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Atualmente um dos moradores desta área é candidato a vereador pelo Partido dos Trabalhadores. Após mais de um ano de ocupação, dois anos de trabalho conjunto, explicita-se a questão partidária. Mas, para a maioria, o fato é que são estas pessoas que estão no partido, não é o partido que participa do movimento.

2.9. A relação com o Poder Municipal

Há uma descontinuidade de comunicação entre o Movimento e o Poder Público Municipal, mas é possível observar que ora o Movimento enfatiza seu lado contestador, ora o negociador. A proposta inicial do Movimento era chamar a atenção das autoridades para a precária situação de moradia em que se encontravam os moradores da Favela do Braço Morto: “que pressionou tanto o prefeito, com passeata e tudo, até que eles desapropriassem essa terra aí” (depoimento). Consideram que o processo de declarar de utilidade pública a área da COHAB foi um resultado da pressão do movimento. Reconhecem como o principal interlocutor a Prefeitura, o poder local.

município, mas da esfera do poder central, o que dificulta qualquer atuação, pois “as verbas dependem do BNH”. De fato, após 1964, a centralização das decisões políticas e econômicas, consubstancia-se, no caso das políticas urbanas, no BNH. O governo municipal e o governo estadual, são do mesmo partido e alinhados em uma mesma proposta, mas não têm esta mesma relação com o poder central, o que implica numa menor parcela de recebimento de recursos do BNH. Isto porque, a política governamental não é a de atender às “necessidades ou corrigir desvios”, mas, através dos financiamentos para a produção de habitações, buscar formas de manutenção no poder, premiando as áreas onde há apoio ao bloco no poder, garantindo assim a sua continuidade78. Se as manifestações dos movimentos pressionam o poder local, servem também de pressão utilizada por estes, como demonstrativo da necessidade de recursos para atender às “necessidades” dos moradores e assim manter a ordem. Ao mesmo tempo, permitem que o atendimento das reivindicações legitime o poder local. Para os movimentos organizados o 78

Veja-se a distribuição de recursos já citada.

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Na procura do lugar o encontro da identidade

No discurso do poder local, é salientado que a questão habitacional não é da esfera do

atendimento das reivindicações representa também uma vitória. Para o poder local, ter declarado a área da COHAB – SP, de utilidade pública, mesmo que não tenham concretizado a desapropriação, foi também uma tentativa de legitimação no plano político. O que se esperava com a faixa e o barracão era legitimar a atuação do movimento e chamar a atenção das autoridades:

“a gente achava que o Prefeito ia expulsar a gente ou vinha negociar, mas só ocorreu interesse de quem pagava aluguel e também aconteceu o incêndio do barracão”. (depoimentos)

O movimento continuou pressionando as autoridades, chamando-as para reuniões, organizando passeatas:

“No dia 5 de agosto fizemos a primeira passeata... 15 de outubro outra; conseguimos algumas promessas da administração, ficou meio assim. Voltamos lá na véspera das eleições, dia 14 de novembro; na semana da eleição tocaram fogo no barracão” (depoimentos)

Utilizam, também, como forma de pressionar o poder público, os espaços institucionais para reivindicar; assim dirigem-se em passeata até a prefeitura, pois é lá que está instalado o poder. Procuram uma maior visibilidade ao concentrar-se nestes espaços. Alguns aspectos da atuação do poder público ficam nebulosos neste período pré-

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eleitoral, que se estende até a posse do novo governador, pois o prefeito “apoiou” ainda que não explicitamente e até o mês de outubro, o candidato do PTB – Antonio Ermírio de Moraes -, ao governo do Estado, embora seu partido, o PMDB, estivesse apoiando, o candidato Orestes Quércia (pressionado pelo partido, o prefeito passou a apoiar Orestes Quércia). Não é possível afirmar que estes acontecimentos sejam causas de alteração da política da prefeitura em relação aos sem-terra: no entanto fazem parte de todo um jogo político não explicitado. Mas, sem dúvida, alteraram a possibilidade de receber verbas para habitação do governador eleito.

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No começo do ano de 1987, após tantas idas e vindas, os participantes do movimento, concluem que:

“ou fazemos alguma coisa ou paramos de se reunir, pois já estava dando desânimo”; “a gente ficou o ano passado correndo atrás deles, se a gente invadir, eles é que vão vir correndo atrás da gente, aí a gente também vai saber quem é mesmo o dono da terra”. (depoimento)

O poder público cria a Secretaria de Habitação, para tentar dar conta da produção da habitação no município e também negociar com os movimentos organizados. Cria-se assim, um novo espaço para intermediar as questões de moradia na cidade de Osasco. No entanto, até hoje, a área da COHAB continua vazia. Resta ainda a seguinte questão: se a área é propriedade da COHAB, se esta é uma Companhia Mista cuja atribuição é produzir e comercializar casas para a faixa de interesse social, não seria já uma área de interesse público? Declarar a área em questão como de utilidade pública não é uma forma de, demagogicamente, o prefeito dizer que está fazendo o que lhe compete, ao mesmo tempo culpando o mesmo governo de não fazer o que lhe é devido? Deslegitima-se um órgão público para tentar

Aos movimentos cabe desvendar estes aspectos que estão difusos no cotidiano e tentar compreender que uma ação do Poder Público pode representar mais do que a tentativa de “solução” ou mesmo de “resposta”, mas também a busca de sua própria legitimação na disputa entre os blocos que estão no poder. A descontinuidade de comunicação entre o Movimento e o Poder Público será visível neste trabalho, pois, como optei por manter a cronologia dos fatos, por vária vezes, serão retomadas as formas de negociação entre o “Movimento Terra e Moradia” e a Prefeitura de Osasco.

2.10.

A continuidade do movimento “ESTA TERRA É NOSSA”

211

Na procura do lugar o encontro da identidade

legitimar um outro, sem alteração real de política.

Na forma cronológica proposta, é possível analisar a continuidade do movimento por duas vertentes. Uma delas diz respeito à incorporação de novos interessados e a outra à organização interna do Jardim Piratininga, que na verdade, são duas faces da mesma moeda. A incorporação dos novos não é realizada na própria área. De um lado, porque desde o início negociou-se com o poder público de que haviam 412 famílias de ocupantes na área; de outro, porque se trata de um movimento que ao longo do tempo foi discutindo as formas de sua organização. A incorporação dos novos dará origem a outro grupo de ocupantes, que tratarei a seguir. Na área do Jardim Piratininga, enquanto aguardam a execução do projeto da área como um todo, continua o processo organizativo. Os moradores elegem representantes por quadra: ao todo são 22 representantes que formam a “Comissão”. Discutem e encaminham questões para resolver o abastecimento de luz e água, do futuro projeto das casas, etc. Reúnem-se semanalmente. A sede do movimente é construída logo após a mudança. É nela que se instala a cozinha coletiva, enquanto os moradores estão construindo seus barracos, é nela que se realizam as reuniões. É o ponto de encontro do movimento. Transforma-se também em escola, em lugar para as crianças. Os recursos para construir, ampliar a sede, cimentá-la vem da contribuição de todos os moradores: em dinheiro para a compra de material e em trabalho nos fins de semana. A escola que funciona na sede, e cujo projeto foi elaborado pelos moradores, já tem 90 crianças inscritas. Há um projeto de alfabetização para adultos, que ainda não se viabilizou por falta de local, e que também será gerido pelo próprio movimento, pois um dos moradores é professor primário e está empenhado em alfabetizar os companheiros.

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Após a conquista da terra, o projeto considerado mais importante pelo movimento foi a compra de uma máquina de fazer blocos. Consideram que morar em barraco não é “muito bom”, principalmente em lotes tão pequenos como estão instalados:

“chega sábado e domingo, você quer dormir até mais tarde, mas seu vizinho descansa ouvindo musica e aí o barulho vai de um lugar para outro, isto é ruim, porque até agora nós somos uma família, mas depois cansa, né!” (depoimentos)

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A compra da máquina de fazer blocos foi discutida em várias reuniões, assembléias. Na votação sobre a compra não houve unanimidade, mas a maioria optou por ela, através da contribuição das famílias moradoras, mediante uma taxa que não é a mesma para todos:

“Tem famílias grandes, onde só trabalha um, outras que trabalham vários, outras famílias são pequenas e a gente tem que respeitar as diferenças”. (depoimento)

A máquina já está na área, faltam ainda algumas peças e o local adequado para o funcionamento. O movimento vai tentando caminhar por suas próprias forças, preparando-se para mudança e para a construção em alvenaria no lote definitivo. Este projeto prevê a socialização da produção, ou seja, a produção será para todo o movimento, e o produto comercializado a preço de custo, independentemente do valor da contribuição de cada um na compra da máquina. Procuram organizar-se de modo a construir em alvenaria em processo de mutirão. Ao que tudo indica, a máquina ficará em condições de funcionar antes que se dê início ao loteamento da área. Se assim for, a produção será socializada para todo o movimento. Possivelmente a primeira área a utilizar será a Vila da Conquista, que será tratada a seguir.

Indagam se não seria o caso, deles se organizarem para: contratarem um topógrafo; fazerem o levantamento da área; providenciarem a terraplanagem, o projeto de ocupação, o arruamento e a distribuição dos lotes, pois dizem que estão cansados de esperar. Esta tem sido uma longa discussão. Para alguns a questão é que o poder público não tem dinheiro e eles estão cansados de esperar, significando que incorporam o discurso dominante. Para outros, a questão não é financeira, mas política. É correto o movimento tomar em suas mãos o que é atribuição do poder público? Já não contribuem para a produção social com o seu trabalho? Os movimentos, ao tomarem para si a deliberação de construir com seus “próprios meios”, estão sedimentando ainda mais o fetiche da produção da cidade. Não é com recursos do trabalho (FGTS), que se promove, ou pelo menos se deveria promover, a habitação de interesse social? À medida que o trabalhador toma em suas mãos também esta parte da produção do urbano, considerando que o poder público não tem recursos para a realização de obras 213

Na procura do lugar o encontro da identidade

Discutem, se devem ou não, esperar que o poder público realize o projeto da área.

necessárias à reprodução da força de trabalho, está considerando que com o seu trabalho não contribui para a sociedade? Por acaso consideram que já recebem o justo salário e que, portanto, devem trabalhar mais para ter garantida uma moradia digna? A discussão continua. Porém, ao que tudo indica, venceu a proposta de continuar pressionando o poder público, para que realize a urbanização da área. Permanece a organização para discutir o projeto que querem, tanto do arruamento, como da casa e do modo como podem e devem atuar para fiscalizar a ação do poder público. Nesse sentido contam com o apoio do Sindicato dos Arquitetos de São Paulo, através da Assessoria que este presta aos movimentos populares. Busca-se, assim, uma outra forma de estar interagindo com o poder público, sem tomar em suas próprias mãos, mais uma vez o sobre-trabalho. A questão do mutirão para construir sua casa, é ainda, apesar da discussão sobre o trabalho adicional, considerada, como já lembrado, a forma mais barata para construir-se a moradia. É evidente que este processo aparece como “mais barato”, pois não é computado nos custos a mão-de-obra do próprio futuro morador, que é utilizada no processo construtivo, o que serve para camuflar o seu preço real. Serve também para se considerar que o trabalho que realizam não é “bom” o suficiente para que tenham acesso a uma moradia digna. O movimento mantém-se praticamente com os mesmos participantes, pois pelos estatutos, aprovados por todos, não há venda de barracos. Casos limites são discutidos pela comissão. Em alguns casos é possível vender a madeira, mas não o lugar e nem a terra. Mesmo assim uma nova família para entrar na área passa por todo um processo de discussão. Há casos

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também de barracos que foram demolidos, pois não foram ocupados. Ou seja, no processo de ocupação, construíram o barraco, mas efetivamente não mudaram: “Quem não mudou logo de cara, não precisa vir morar aqui, então é deixar o lugar para quem precisa” (depoimento). Não tem sido permitido nenhum tipo de comércio dentro da área. Acreditam que o lugar foi conquistado para a moradia e não para o comércio. Muito embora, para muitos moradores, pudesse significar a forma de sobrevivência, é preciso garantir-se a unidade do movimento sem privilegiar ninguém dentro da área. Além disso, em qualquer tipo de comercio se teria a venda de bebida alcoólicas o que poderia causar problemas de embriagues, provocar

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brigas e depor, fora da área, contra o movimento. Luta-se para preservar a imagem dos mais corretos entre os corretos, para poderem ser respeitados e não serem considerados marginais.

3. INCORPORAÇÃO DOS NOVOS INTERESSADOS 3.1. GRUPO 2 – Jardim Conceição Refere-se ao 2º Grupo do Movimento Terra e Moradia que em Junho de 1987, ocuparam uma área desapropriada pela Prefeitura para a construção de Moradias Populares. Logo após a ocupação do Jardim Piratininga, o Movimento “Terra e Moradia” é procurado por um grande número de pessoas, que estavam também uma situação de despejo eminente. São tanto famílias que tinham desistido e agora retornam como “novos” que descobrem uma possibilidade de organizarem-se para resolver seu problema de moradia. Assim que a ocupação se solidifica, que os barracos já estão prontos, começa a organização desse novo grupo. As famílias que ocuparam a área, representadas principalmente movimento ocorre tanto por indicação de amigos e conhecidos como também pelo fato da ocupação do Jardim Piratininga já ser conhecida. Tento, respeitando a cronologia dos fatos, apenas situar as especificidades do novo grupo, sem me alongar em aspectos já apontados. Esse novo grupo reúne-se em igrejas próximas da área ocupada do Jardim Piratininga, o que indica que decorre de um conhecimento mais localizado. As informações contidas na grande imprensa, além de, via de regra, enfatizar mais os despejos do que a permanência, não esclarecem como chega-se a organização do movimento. O próprio movimento não esclarece para a imprensa suas características de liderança, mesmo porque não se consideram “banquinha de imobiliária”. Somente quem mora perto sabe qual é o lugar onde ocorreu a ocupação. A forma de vivenciar a cidade é pontual, está relacionada ao cotidiano do morador, que se desloca da casa para o trabalho, escolas, hospitais, creches, etc. não tendo um conhecimento espacial da cidade como um todo. Além disso, deslocar-se para discutir a situação de moradia e o que fazer implica gastos adicionais de transporte que já pesam no 215

Na procura do lugar o encontro da identidade

pela Comissão, dão apoio ao novo grupo. O processo é semelhante. A descoberta do

orçamento familiar. Desse modo, as discussões interessam prioritariamente a quem mora perto da área. O terreno a ser ocupado só será “descoberto” e conhecido no processo de organização do movimento. Este é o aspecto mais comum nas ocupações coletivas, pois é apenas no processo que se decide se vai ou não haver uma ocupação e em qual área de dará79. O grupo de apoio ao movimento amplia-se com a participação dos ocupantes do Jardim Piratininga, que têm uma história para contar e podem ajudar na organização, para que os erros não sejam repetidos. O processo é semelhante: reúnem-se semanalmente por alguns meses, elegem representantes (comissões); discutem o porquê de estarem nessa situação. Pensam o que fazer: a proposta é encontrar uma forma de resolver seu problema de moradia. Os aluguéis disparam, os salários não aumentam na mesma proporção. Os despejos intensificam-se. Tentam formas de resolver a situação pressionando o poder público; fazem passeatas pela cidade em direção à Prefeitura; a Comissão marca reuniões com o Prefeito e com o Secretário da Habitação. O poder público é o opositor; deveria ser também provedor: dar atendimento às necessidades dos moradores da cidade. Como o movimento não obtém resposta, procura resolver sua precária situação de moradia ocupando uma nova área. 3.2. A procura do lugar Procurar uma área para ocupar, significa conhecer áreas vazias no município. Os participantes da comissão contam como foi difícil encontrar esta área. Às vezes saiam olhando, às vezes iam com endereço certo. A uma gleba foram em grupo e a vizinhança queria saber o

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que tinham ido fazer lá. Logo em seguida começou um processo de terraplanagem no local; acham que o dono foi avisado. Numa outra, que foi indicada: “por alguém lá da Prefeitura, vimos que era uma „fria‟. Era área particular e o proprietário era muito influente. Acho que era a gente: ocupar e desocupar, no mesmo dia” (depoimentos). Havia a preocupação de procurar área pública, pois assim, julgavam, seria mais fácil conseguir a permanência. Após um longo processo, selecionam uma área de 350.000 m2, desapropriada pela Prefeitura de Osasco com o objetivo de construir casas populares.

79

Difere, pois, do Jardim Piratininga, na qual os participantes, ao decidirem pela ocupação, já conheciam a área, que era o próprio lugar onde se reuniam.

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Para desapropriar esta área, a Prefeitura celebrou um convênio, autorizado pela Câmara Municipal, com o governo do Estado, visando a obtenção de recursos (Lei nº 1943 – O Diário – 03/12/86). Publicada a Lei no Diário Oficial do Município, alardeada como prova de “boa vontade” de poder municipal em resolver o problema de moradia, a desapropriação da área passa para domínio público. Definem o dia e hora, que é veiculada pela imprensa, principalmente pela Rádio Difusora.80 Altera-se a data. Como a imprensa foi informada? Participam do movimento diferentes categorias de trabalhadores, entre os quais funcionários da Prefeitura, que podem inadvertidamente contar para os amigos. Mas, talvez o mais importante, é que chama a atenção de tanta gente (mais de 400 famílias), reunindo-se por tanto tempo. Além disso, este grupo já foi várias vezes à Prefeitura e à Secretaria da Habitação. Por outro lado, os participantes conhecem o movimento por amigos e conhecidos. Se é desse modo que se conhece, um conta para o outro, sucessivamente, até que algum amigo pode estar “interessado”, por vários motivos, que a ocupação não ocorra. O que se detectou, na verdade, é que também alguns participantes das reuniões acharam que já iam “ganhar” a terra e como não tinham dinheiro para comprar o barraco, foram até a Prefeitura pedir o barraco81. Este fato também mostra que não há uma homogeneidade na participação dos passeatas, alguns se mantêm apenas buscando uma forma de conseguir uma moradia, enquanto outros passam a compreender o porquê moram tão mal. Há no caminhar, embora a trilha seja mesma, muitas maneiras de compreender o processo de preparação de uma ocupação coletiva. Para evitar grandes problemas, a comissão e o apoio elaboraram uma carta para os próprios ocupantes, explicando como deveriam se comportar no dia da ocupação: resistir pacificamente, sem brigas, evitar atritos. 3.3. Ocupação da gleba – Jardim Conceição Na noite de 26 de junho de 1987, inicia-se a ocupação da área do Jardim Conceição. Há uma única entrada na área que possibilita o acesso de veículos. É preciso muita gente para empurrar os caminhões. Estão lá para ajudar todos os integrantes do grupo de apoio. 80 81

Propriedade do Rossi, que articula um outro grupo de ocupações. Veja-se também “explicações” na justificativa desse trabalho.

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Na procura do lugar o encontro da identidade

integrantes do movimento. Embora tenham tido várias reuniões, assembléias, discussões,

Afinal é preciso chegar, descarregar rápido para que entrem outros caminhões carregados. Cada um deles traz três ou quatro mudanças. Cada um que chega já vai indo para o seu lote. É um grande alvoroço. Quem já sabe onde é seu lote deveria começar a construir, mas o terreno é acidentado, recoberto por uma vegetação secundária e alguns eucaliptos e, antes de começar a construir é preciso limpar o lote. É um intenso trabalho, com pouca luz, pois são poucos os que têm lampiões. O apoio ajuda a descarregar e a limpar o terreno. Muitos trouxeram ajuda de familiares, outros não trouxeram nada. Há também que construir-se rapidamente o galpão da sede, cujas madeiras são compradas com a arrecadação de dinheiro de todos os participantes. É um símbolo do movimento. O simbolismo do barracão do início do movimento mantém-se. É na sede que se atenderá “os de fora”, onde se alojarão, provisoriamente, os mais carentes; que se fará a cozinha coletiva e que será depois a escola, creche e local das reuniões. É noite de muito frio, muito trabalho, muita solidariedade e também muito receio de que não dê certo. Ocupam a parte da gleba voltada para a área já construída da vizinhança, pois a área é muito extensa e estar no fundo da gleba dificultaria a entrada e a saída do pessoal e os isolaria da vizinhança. Cada lote mede 102,00 m2 (6,00 por 27,00) e as ruas têm largura de 8,00 metros. Planejam a ocupação da área, antes de iniciar a construção dos barracos. Embora para o movimento como um todo os lotes devam ser oficiais, ou seja, ter 152 m2, as características topográficas do terreno impedem, sem terraplanagem, uma ocupação com lotes desse tamanho. Respeitam-se assim as características da área. A experiência do Jardim Piratininga é utilizada, pois se ocupa a gleba numa sexta feira à noite, o que significa ter o sábado e o domingo para construir os barracos ou, no caso do

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Jardim Conceição, limpar os lotes, antes que os proprietários tenham tempo de impedir a entrada dos moradores. Antes que se completem as mudanças chega a policia, avisada não se sabe por quem, que tenta impedir novas entradas na área. Pela legislação, só o proprietário da área, com autorização judicial pode impedir a consumação da posse. No entanto, a polícia fica de prontidão para impedir a posse da área. Quando se indaga de quem é a ordem, a resposta é sempre a mesma: “são ordens superiores”. Não se sabe quem deu. Usam argumentos não reais para impedir a entrada de mais famílias; o que efetivamente conseguem é impedir a entrada de novos caminhões. O movimento encontra duas outras entradas e à custa de mais cansaço continuam a entrar as madeiras, telhas e móveis, nas costas dos futuros moradores.

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Como muitas famílias tem filhos pequenos e a noite é muito fria, é preciso alojar as crianças, que são levadas para o salão da igreja católica. Lugar também pobre, que sequer conta com um fogão para aquecer leite para as crianças. Conseguem-se alguns colchões e as crianças, dormem amontoadas, mas a salvo do frio. A atividade de construção é intensa nos dois primeiros dias; durante a semana é preciso ir trabalhar e deixar alguém tomando conta do lugar. Não se pode deixá-lo sozinho, pois se a polícia chegar, para tentar tirar, é necessário juntar todo mundo: “Muitas vezes a gente consegue a terra e perde o emprego, pois é preciso faltar no serviço para terminar de construir e garantir o terreno” (depoimentos). No processo de consolidação das construções é preciso estar atento. E a cada novo fato as questões são analisadas e discutidas. 3.4. A vizinhança Os participantes do movimento tiveram a preocupação de comunicar-se com os novos vizinhos através de carta aos moradores, explicando porque estavam ocupando, que não eram favelados e que gostariam de contar com a solidariedade dos vizinhos. O grupo de apoio também elaborou uma carta para ser lida nas missas da região, solicitando o apoio da É bem verdade que as Igrejas da região já estavam apoiando o movimento: já haviam sido local de reuniões, as crianças ficaram provisoriamente alojadas no salão da Igreja, mas era preciso reforçar e conseguir doações, pois a maioria dos ocupantes tinha gasto o salário do mês para comprar o barraco. Além disso, estavam perdendo dias de serviço, que seriam descontados do salário. A ocupação da vizinhança é muito rarefeita. As casas, em processo de autoconstrução, na sua maioria, são extremamente precárias. Algumas, embora de alvenaria, são tão ou mais precárias que os barracos de madeira (veja-se fotos). As diferenças estão relacionadas a que os vizinhos são proprietários das casas onde moram, enquanto os ocupantes vieram do aluguel. Não só pelas características das casas é visível esta semelhança. Logo após a ocupação começam a chegar alguns vizinhos com suas doações. Faz muito frio, vestem roupas leves, rotas: vão levar solidariedade e sua contribuição, que possivelmente fará falta para a família doadora. Parecem acreditar como diz Adoniran Barbosa, na musica Saudosa Maloca: “Deus dá o frio conforme o cobertor”. Alguns vizinhos explicitam seu pensamento: “Eu tenho certeza 219

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comunidade, inclusive em gêneros alimentícios, vestimentas e dinheiro.

que o pessoal é trabalhador, que não é vagabundo. Eu vi como eles trabalham a noite toda, o dia todo de sábado, de domingo. Não é vagabundo quem trabalha tanto” (depoimento). Alguns vizinhos solidarizaram-se com o movimento, emprestam água, primeiro pega-se da torneira, depois arruma-se uma mangueira. Posteriormente uma outra família empresta “um bico” de luz para a sede. A água é um problema muito sério em toda a região: “Tem torneira, mas a água que é bom... só vem de noite, e as vezes nem vem, nem dá para encher a caixa. A noite que vier podem vir pegar” (depoimento). Alguns esperam que tendo mais gente possam ir juntos reivindicar água na Prefeitura – CAEMO – Cia, Água e Esgoto do Município de Osasco, pois é muito difícil viver sem água. Havia também o receio de alguns vizinhos de que: “aquilo virasse um favelão”. Mas não há manifestações contrarias como no Jardim Piratininga. Um aspecto merece destaque. Na parte mais plana da área havia um campo de futebol. O movimento decidiu que não iria ocupá-lo, pois: “nós já temos tão pouca coisa pra se distrair e temos que respeitar o lugar do futebol de nossos novos vizinhos, que são trabalhadores como nós” (depoimento). Ocorre que este campo estava sendo utilizado como deposito de lixo e lugar de encontro de marginais. Os vizinho dizem que é para ocupar, assim vão ficar livre dos ratos e de marginais. Deslocam-se os moradores, cujos lotes estavam localizados em áreas mais íngremes para a parte plana do campo de futebol. A atitude de respeito foi mútua. Quem também se solidariza com os ocupantes são os proprietários dos dois bares existentes na área. Sendo uma região ainda de ocupação rarefeita, em uma área onde não há concorrentes para o abastecimento de gêneros de consumo cotidiano – como leite, pão, etc –, as novas famílias, representam uma ampliação do número de consumidores no comercio local.

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Efetivamente, um ano depois aumentou o comércio da região. O bar e a mercearia original permanecem sem ampliação visível. Mas, muitos outros surgiram, algumas casas mudaram sua frente para poder instalar um ponto de comércio. É um comércio, com produtos de qualidade duvidosa e preços elevados.82 Em um ano não foi só o comércio que cresceu, o número de unidades construídas nas vizinhanças também cresceu muito. Aumentou também a própria área de ocupação, com a vinda de mais 300 famílias, fato que trataremos no item seguinte.

82

Engels alerta para as características do comércio de produtos de qualidade duvidosa e de preço muito elevado, quando analisa a situação da classe trabalhadora em Inglaterra – Engels, op. cit.

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3.5. Os ocupantes: Um pouco do cotidiano A situação de vida nos primeiros dias de ocupação é de extrema penúria. É preciso construir rapidamente, ao mesmo tempo dar conta das atividades cotidianas. Instala-se a cozinha coletiva, que tem várias finalidades: permitir a liberação dos barracos; utilizar as doações de alimentos da comunidade, pois a maioria gastou seu dinheiro na compra do barraco e está perdendo dias de serviço não tendo como sustentar-se; não há ainda barracos montados para cozinhar-se. Constrói-se um grande fogão de lenha, arruma-se emprestado um fogão industrial a gás. Algumas mulheres ajudam na cozinha, enquanto outros constroem os barracos. Quando a comida fica pronta, os moradores trazem seus pratos ou panelas e almoçam na própria sede ou levam para os barracos. Quando os barracos começam a ficar prontos, desativa-se a cozinha comunitária, distribuem-se os alimentos recebidos em doação para os mais necessitados. Consideram, os participantes, que o que os une é a questão da moradia que também é lugar de cozinhar. Se está pronta a casa não é mais necessário produzir a comida em outro se come. É preciso ter uma casa, e quando esta já existe, deve-se começar a utilizá-la. A desativação da cozinha comunitária foi mais rápida no Jardim Conceição (15 dias) do que no Piratininga 1 (mês). Para os integrantes do grupo de apoio, a cozinha comunitária ao mesmo tempo que une, que permite que cada um cuide da construção de seu barraco, não pode ser eternizada, senão vira uma atitude paternalista. Por outro lado, no Jardim Piratininga, as doações foram em maior quantidade, o que mostra mesmo a continuidade do processo de empobrecimento dos trabalhadores. O que mais aflige os moradores do Jardim Conceição é a falta de água. Após uma semana conseguiu-se que a Prefeitura fosse abastecer a área com caminhão pipa. Mas há outro problema: ninguém tem panelas grandes ou vasilhas para armazenar água. Cada morador faz várias viagens até o caminhão, com canecas, pequenas panelas, latas. Demora-se um certo tempo para poder organizar-se na nova vida, no novo lugar. Uma outra forma é procurar água no lençol freático, furando um poço. No entanto dadas as características topográficas da área, após cavar vários dias é preciso desistir: “Não achamos o veio de água”. É todo um trabalho 221

Na procura do lugar o encontro da identidade

lugar. Esta é uma questão importante, pois a casa é o lugar onde se vive, onde se cozinha, onde

coletivo inútil, pois falta um conhecimento sobre a área, sobre as características do lençol freático em áreas de topografia elevada. É preciso continuar lutando pelo abastecimento através do caminhão pipa e, mais ainda, pedir que a prefeitura instale a rede de água. Foram, durante a primeira semana, construídos dois banheiros coletivos, pois enquanto se constroem os barracos não dá tempo de pensar: cada família com seu banheiro. Só depois que se construíram banheiros individuais é que os coletivos foram desativados. Após o dia 10 – duas semanas após a ocupação intensificam-se as construções, porque: “é quando o pessoal recebe e pode comprar suas madeiras”. Aumentará ainda mais depois “do dia 14, pois o pessoal encomendou madeiras” (depoimento). As construções são rápidas, principalmente nos fins de semana. É possível observar que há diferenças significativas entre os barracos. Alguns são pobres, outros miseráveis. Um dos ocupantes “montou” seu barraco duas vezes. Os remendos eram tantos que, após “ficar em pé”, demonstrava-se uma incrível fragilidade e precisou ser “remontado”. Há barracos bem construídos e com Madeirit. Estas características dependem do ganho mensal de cada um. A igualdade é dada pela procura do lugar onde morar, mas as características do barraco variam de acordo com as possibilidades de cada um. Desde o dia da ocupação há uma fila de interessados em ir morar na área. A maioria é de moradores da vizinhança, já que a ocupação não foi noticiada pela grande imprensa. Como norma, só entra na área quem tiver participado das reuniões preparatórias, quem foi cadastrado. No Jardim Conceição, talvez pela distância, alguns cadastrados não foram ocupar (veja-se o mapa de localização da áreas). Outros não conseguiram chegar no dia; os que não

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conseguiram chegar foram incorporados. O número de lotes demarcadas é de cerca de 140, falava-se em 250 famílias. E, os interessados continuam a aumentar. Há aqui alguns pontos discordantes entre os participantes do apoio e da comissão. Para alguns deve-se deixar entrar os novos interessados, pois quanto mais gente maior é a força de pressão. A comunidade e Sociedade de Amigos de Bairro também pressionam, dizendo que, se o pessoal do bairro não puder ocupar, o povo vai retirar o apoio ao movimento. A diretoria da Sociedade de Amigos do Bairro é em sua maioria do PMDB e seu apoio é considerado muito importante para o movimento. Mas, por outro lado, também receiam, os integrantes da Comissão, que esta inclusão possa significar que a área passe a ser considerada de “influencia” da Diretoria da Sociedade de Amigos do Bairro ou do

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próprio Prefeito ou dos deputados e vereadores que tiveram votação significativa na região para se eleger. Propõe-se que esta questão seja discutida com todos os que já ocuparam e com os que estão se inscrevendo. Faz-se uma plenária com todos os novos interessados, cerca de 200 famílias. Verifica-se que poucos teriam condições de entrar de imediato na área, pois não tem barraco e nem dinheiro para comprar. Há assim tempo para que o movimento delibere sobre a entrada dessas novas famílias. A discussão passa pela necessidade de conscientizá-las do significado do processo, como deve ocorrer, etc. Define-se, em assembléia, que devem entrar, mas antes devem fazer uma série de reuniões preparatórias. Este grupo entra na área em conjunto e é, aparentemente, incorporado no processo como um todo. Explica-se, para todos, que não há garantias que fiquem, mas também ninguém garante que vão sair. E enquanto o processo de reintegração de posse não vem, os moradores da região apressam-se para comprar suas madeiras e mudar para a área. Para estes a ocupação tem características diferentes, pois a área já estava ocupada, já era conhecida, já moravam no bairro. Aceitam, desde o primeiro momento, as lideranças-comissão do grupo de ocupantes. Hoje na área do Jardim Conceição moram 297 famílias. É possível verificar que os que participaram das reuniões antes da entrada são mais combativos, estão com a comissão expressam-se mais claramente, respeitam as deliberações do coletivo. A maioria dos que entraram depois do dia 26 de junho são menos participantes. Se a questão, colocada por alguns é: “quanto maior o número, maior a pressão”, este não parece ser o caso dos moradores do Jardim Conceição83. O movimento “Terra e Moradia”, ao analisar este aspecto passou a ter maior clareza de que para ocupar uma terra tem-se que passar por todas as tentativas e por todas as etapas de lutas para poderem constituir-se como sujeitos coletivos.

3.6. Jardim Conceição: Vila da Conquista A relação do Movimento com o Poder Público

83

Veja-se a parte 3.7. sobre as diferenças.

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sempre presentes, discutem seus pontos de vista com mais firmeza, quando não concordam

Desde a madrugada da ocupação há um policiamento ostensivo na entrada da gleba. Tentam impedir que a ocupação continue. Uma viatura permanece, dia e noite, estacionada em frente à única entrada da área, que aliás, foi feita pelos próprios ocupantes. Justificam o policiamento, argumentando que a área tem dono e que eles não podem deixar ninguém entrar. Indagados sobre quem mandou vigiar, não sabem responder. Há um fato a ser destacado: no sábado, primeiro dia de ocupação, quando as famílias estão construindo seus barracos, dois policiais entram na área; começam a anotar o número da chapa de um carro, perguntam quem é o proprietário; se a ocupação está sendo promovida pela CUT, CGT ou PT. Estavam presentes no local padres que apóiam o movimento, iniciando-se uma discussão entre os policiais e os padres. Os ocupantes argumentam: se os policiais estavam ali para não deixar entrar mais ninguém – com mudança -, então o lugar deles é ficar na rua, não dentro da área aborrecendo os moradores. Os policiais são “expulsos” da área.84 Um dos objetivos, não mencionado pelos policiais, é tentar conseguir nomes, que são fundamentais para os processos de reintegração de posse. É difícil esquivar-se de dar o nome aos policiais, embora o processo de esclarecimento, sobre dar ou não o nome seja o mesmo da ocupação do Piratininga. Buscavam, os policiais, também descobrir qual a organização “subversiva” ou partido que estava promovendo a ocupação. Castels, afirma que os movimentos sociais urbanos ganham legitimidade face à opinião pública pela dificuldade de considerar-se subversiva a reivindicação de melhoria das condições de vida (Castels, 1980). Castels refere-se explicitamente aos movimentos reivindicativos por água, luz, saneamento, legitimação dos títulos, em casos de loteamento clandestinos, pois, no

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caso das ocupações coletivas de terra, embora se coloque a questão da necessidade, como a situação conflita com a propriedade da terra, ela é considerada fora da legalidade, portanto até mesmo subversiva, procurando descobrir-se qual é o agente da subversão. Em todas as ocupações estão presentes os policiais, como os guardiões da propriedade, seja ela pública, seja privada. No Brasil, a defesa da propriedade é garantida por todos os meios, e como a sobrevivência é “questão de polícia”, esta é chamada na defesa da propriedade contra a luta pela sobrevivência, que tenta invadir a propriedade. É função pública defender o cidadão e torna-se também função pública proteger a propriedade de alguns cidadãos. É o 84

Como este fato foi filmado em vídeo, os moradores da área contam com orgulho, como expulsaram os guardas da área e sempre dizem: “foi até filmado, não é mesmo?” As filmagens mostram essas cenas com nitidez.

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serviço público garantindo a propriedade da terra, a apropriação da renda diferencial, a terra vazia, sem uso. Os ocupantes sabem que para conseguir permanecer na área, devem continuar sua luta junto ao executivo local. Após a ocupação, continuam a procurar contatos com a Prefeitura e com o Secretário da Habitação. Em boletim para a comunidade informam: “Já fizemos três reuniões com o Secretário da Habitação (Ivan Carmona), porém nenhuma solução foi tomada. Decidimos então fazer uma passeata para falar com o Prefeito. No dia 20 de julho estivemos em passeata em 400 pessoas na prefeitura. O Prefeito, após o dia todo, só nos recebeu às 17,00 horas, e não nos deu uma solução imediata. Comprometeu-se em estar reunido com todos os moradores da área no próximo dia 16 de agosto para estar tentando solucionar o nosso caso”. (carta a comunidade)

O que o prefeito irá dizer ao movimento é nesse momento uma incógnita, pois ao mesmo tempo informou que o juiz já concedeu a Liminar de Reintegração de Posse, mas que não iria acionar a policia para retirá-los antes de sua ida à área. O poder público, na defesa da propriedade, utiliza os mesmos instrumentos jurídicos da iniciativa privada. Enquanto o Secretário da Habitação “conversa” com o movimento, a Secretaria de Negócios Jurídicos manda executar a ordem judicial. Eis outra contradição. Já foi analisada a contradição entre o Judiciário e o Executivo, pois aquele manda desocupar e este é que manda desocupar e que deve achar um outro lugar para aqueles que forem despejados. Deve ainda garantir a vida no momento do despejo e chamar a policia para garantir o despejo. É neste caso muito evidente a contradição: o poder público é ao mesmo tempo e no mesmo momento inimigo e o provedor. O movimento prepara a reunião com o prefeito. Estão ansiosos, não sabem direito o que vai acontecer: “noticia ruim não pode ser, senão ele atenderia a gente lá na Prefeitura. Vir aqui para dizer que a gente tem que sair, não vem não”; “ele não é louco de vir aqui na terra pra dizer que vai tira nóis”; “você acha que ele tem coragem de dizer que vai tirá nois daqui e vai mandá pra onde?” (depoimentos). Mas, é preciso, estar preparado para discutir todas as propostas que virão. A mais provável, pensam, é que o prefeito proponha que eles se mudem, em parte para o Jardim Piratininga e em parte para as áreas livres já ocupadas.85 Estão

85

Em Osasco o termo “área livre”, significa favelas, já que a maioria das favelas ocupa as áreas-livres de loteamentos: as áreas de uso comum do povo.

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premido a achar um lugar para os desocupados. Neste caso é o mesmo setor do poder público

preparadas para não dar nenhuma resposta. Querem ficar na área e reivindicam para a mesma luz e água. DOMINGO: 16/08 – o prefeito, acompanhado de seus assessores, Secretários da Habitação e Obras, e do Deputado Estadual pelo PMDB – Tonca Falseti comparece à área do Jardim Conceição. O prefeito explica, detalhadamente, que a área foi desapropriada com verbas financiadas pelo governo anterior. Enfatiza essa questão para deixar nas entrelinhas que teve apoio do governo Montoro e que não tem do governo Quércia, pois isto justifica o fato de não ter recursos, de imediato, para fazer a urbanização da área, e que o governo do Estado não vai auxiliar. Compromete-se a deixá-los na área, a retirar o pedido de reintegração de posse, se eles se comprometerem a não deixar entrar mais ninguém na mesma. Explica que o projeto da área ainda não está pronto, mas que talvez eles tenham que ser deslocados, dentro dela. Falam ainda o Secretário da Habitação e o Deputado Estadual, cujo eleitorado é basicamente de Osasco e que na época era considerado o candidato do prefeito para substituí-lo em 1988 (hoje é candidato pelo PSDB – desmembrado do PMDB). O prefeito elogia a urbanização, o fato de não ser uma favela e disse esperar que eles todos construam em alvenaria, o que é muito importante para os integrantes do movimento. Consideram que são reconhecidos como ocupantes e não como favelados. Sobre o processo de reintegração de posse, afirma que a prefeitura tem o dever de abrir esse processo porque senão: “vão dizer que é o prefeito que promove as invasões”. Argumenta que na área serão construídas mais de 2.000 casas, que são muito importantes para todos os moradores de Osasco.86

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Pelo movimento, falam os integrantes da Comissão, e do grupo de apoio, que embora emocionados pela garantia de permanência, aproveitam a oportunidade para reivindicar água e luz. Destacam que esta “vitória é fruto de toda uma caminhada”. Conseguem obter do prefeito a promessa de enviar mais caminhões de água por dia para abastecer os moradores enquanto se providencia ligação da rede de água.

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Há indícios de que não colocou força policial para retirá-los, pois havia ainda repercussões negativas pela morte de um ocupante na Zona Leste, em São Paulo, assassinado pela Guarda Metropolitana do prefeito Jânio Quadros. O PMDB tem propostas de mudanças, de dialogar com os movimentos, e agir com força policial para desocupar a área não seria uma boa estratégia política. Há também pressões dos movimentos populares para mostrar ao governo do Estado, as necessidades de verbas, tanto para o projeto “Casa Para Todos” como para a urbanização da área em que estão.

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O movimento é vitorioso. Vão ficar na área, poderão construir em alvenaria. Fica explicito, também, que deverão deslocar-se na gleba para possibilitar a execução do projeto de urbanização da mesma. Deixam evidente que querem pagar pela terra, de acordo com o que puderem, mas querem pagar, quando receberem o título de propriedade. Não querem “nada de graça”. Como se já não tivessem com todo o seu trabalho mal remunerado e tanta luta pelo direito à moradia o direito de morar. Todos estão felizes e emocionados. O que mais destaca é a palavra: “Deus ajudou”; “foi tanta a luta”; “agora é a gente conseguir a água e luz”; “Deus do céu, como estou contente” (depoimentos). Tem-se a impressão também que a vitória veio de fora, de Deus, ajudada pelo prefeito. Mas ficou evidente, pelo menos para os mais atuantes, que essa vitória só foi possível porque lutaram e contaram com o apoio: da Igreja, do PT – principalmente na figura do vereador João Paulo Cunha -, CDDHO e outros partidos e entidades que estiveram presentes na luta. É tanto verdade que há nomes de ruas com figuras representativas do apoio. Não há assim uma simples captação da luta pelo prefeito, embora os integrantes do movimento considerem sua atitude democrática, principalmente quando é comparado com a do prefeito de São Paulo. A área ocupada passa a chamar-se: VILA DA CONQUISTA. pelo movimento: ele só foi a área porque já tinha como resposta a permanência dos ocupantes. Buscava aliados na própria área, pois seria muito difícil dar uma resposta negativa para o povo todo reunido. O poder público considera o movimento como seu interlocutor. Pede que o movimento, em troca da permanência na área não deixe mais ninguém entrar. Este é outro aspecto importante. Se o movimento deixar entrar novas famílias o prefeito não se sente na obrigação de manter o prometido e tirá-los da área. Encontra assim uma saída, pois há uma “fiscalização” diuturna para a área. Ao mesmo tempo, não há nenhum custo a pagar por este trabalho. Ainda mais, mantém o movimento pressionado a não fazer novas ocupações, pois, o prefeito sabe que este grupo originou-se da ocupação do Jardim Piratininga. Para os integrantes do movimento, que lutam para encontrar um lugar onde morar, que acham que as terras vazias não cumprem sua função social, tornarem-se “fiscais” da área é uma questão difícil. No entanto, aceitam a incumbência, pois será a única forma de permanecer no lugar ocupado. Como são continuamente procurados para que permitam a entrada na área de 227

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Há que destacar-se também o jogo populista do prefeito, o que já tinha sido percebido

novos ocupantes, esta “troca” com o prefeito, passa a ser também um argumento para dizerem que o modo mais correto é organizarem-se e discutirem em conjunto a melhor forma para conseguirem, eles também, um lugar para morar. É uma forma de mostrar também a luta organizada: “olha, é melhor vocês todos que estão aqui se organizem. Se a gente conseguiu, vocês também conseguem”; “é preciso se unir. Nós se unimos, conversamos e vimos que só tinha este jeito. Vocês aí conversam, e resolvem o que vocês fazem”. (depoimentos). Sobre esta questão é preciso também levar em conta outros argumentos, pois há participantes do grupo que se recusam a fazer papel de “fiscais da área”: “eu acho que todo mundo devia entrar, porque esta história da gente tomar conta não dá certo”; “a gente sabe que o povo todo ta precisando e nós é que vamos impedir?”; “devia era abrir as porteiras”. (depoimentos) Há também quem argumente que, ao conseguir uma vitória, o povo se acomoda. Nestes casos considera-se que os movimentos sociais refluem quando são atendidas as reivindicações. Para que analisa este movimento de ocupação de terras, verifica-se uma preocupação tanto com a continuidade da luta do movimento em si como da expansão dos movimentos para os que vivem em situação semelhante. Foram convidados, por integrantes do movimento, a comparecer à área no domingo da ida do prefeito alguns deputados federais e estaduais do PT. No entanto, estes não quiseram ir. Consideraram que estiveram ausentes durante todo o processo de organização e ocupação e não seria em um momento de possível vitória que iriam lá para capturar o resultado da luta. Este fato mostra a contradição da atuação partidária nas áreas dos movimentos sociais. A maior parte do grupo de apoio é militante petista, mas os representantes partidários no

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parlamento não se fazem presentes na hora da vitória. Indagados se iriam no caso de ocorrer o despejo a resposta foi positiva: “Nesse caso sim, pois o trabalhador estaria necessitando de apoio parlamentar para sua organização e quem sabe até ser protegido de violências policiais”. (Deputado Federal pelo PT José Genuíno Neto)

É assim possível ver que há dois comportamentos diferentes de atuação partidária. De um lado, o Deputado Estadual, Tonca Falsetti do PMDB, partido do governo, que acompanha o prefeito na área, (quem sabe para canalizar o resultado da luta), pois pertence ao partido que está no poder, e aí se confundem governo e partido. De outro o representante de um partido

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que está na luta e que avalia que não deve enquanto parlamentar, comparecer apenas no dia de uma possível vitória, revelando o receio de aparecer como tentando canalizar os efeitos das lutas. Parece-me equivocada, esta última decisão, pois impede que os movimentos vejam e façam comparações pelo menos entre partidos que teriam de alguma forma uma representação na área e retira-se também, a retaguarda dos militantes do partido que atuam nos movimentos87. O resultado da assembléia deste domingo, deixa também muito contente todo o grupo de apoio, que, no entanto, fica atento para a continuidade do trabalho na área ocupada e conquistada. E mesmo não se considerando uma “banquinha de imobiliária”, a procura é tanta que se tornou necessário formar um novo grupo, um novo trabalho que contará agora com mais participantes, pois os moradores da Vila da Conquista vão auxiliar com a sua experiência este novo grupo. 3.7. Vila da Conquista continua sua luta O rompimento, em junho de 1988, das três adutoras, que abastecem de água uma grande parte da população da Grande São Paulo, colocou na pauta do dia as dificuldades para “Folha de São Paulo”, criou até uma coluna, para tratar “dos sem água”. Embora sejam noticiadas frases satirizando a falta de água: “bebo vinho e uso perfume francês”, a verdade, é que a falta de água nas torneiras causa transtornos para a maioria da população em São Paulo, pois é preciso, além de economizar água, gastar tempo para coletá-la em alguns baldes. Os moradores da Vila da Conquista sofrem deste “flagelo” desde junho de 1987. Só após 3 meses, depois de muitas idas à Prefeitura, instalam-se nove torneiras: “é três não é nove. Olha só, você tem um cano e deste cano pequeno sai três torneiras. É uma torneira que distribui para três” (depoimento). Mesmo considerando que são nove torneiras, estas deveriam abastecer 300 famílias; deveriam porque a água vem, dia sim, dia não, mas só chega na terra à noite, de madrugada mesmo:

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Sobre o comparecimento dos parlamentares em momentos de crise, veja a parte 4.4.

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se sobreviver numa cidade sem regularidade de abastecimento de água. Um jornal diário, a

“Sabe o que é levantar com este frio, duas horas da manha para pegar os baldes e ir lá fora no vento pegar água? De noite, no verão é mais fácil, mas água tem menos, e todo mundo gasta mais”; “conquistamos a terra mas falta de água deixa a cabeça da gente quente, né?” (depoimentos)

Os setores próprios da Prefeitura explicam a falta de água: a região é muito alta e a pressão não é suficiente para abastecê-la. Colocar canos na área ocupada seria um gasto inútil, pois seriam canos vazios. Mas como dizem os moradores: “pelo menos a gente não tinha que sair de casa prá ter alguns baldes de água”. O outro argumento forte é: o movimento vai mesmo ter que mudar de lugar, pois ocuparam exatamente a área onde estava prevista a construção da caixa de água que servirá (quando ficar pronta) para abastecer toda a região e o conjunto que será distribuído na gleba. Se vão sair, instalar uma rede de água é um gasto inútil. É bom destacar que: a) a caixa de água referida só será construída quando a Prefeitura tiver recursos. Como não tem, pode demorar alguns anos; b) um projeto de implantação de casas na área só será viável quando a questão jurídica da propriedade da terra for resolvida; c) a inutilidade de gastos referes-se aos equipamentos utilizados; o desgaste do trabalhador para conseguir um abastecimento precário de água não é levado em conta. O que importa é a provável eficiência da prestação de serviços das secretarias. Parece que importa dar conta dos gastos da prefeitura aos “pagantes”, como se estes moradores também não fossem cidadãos, como se também não fossem pagantes. Receberiam um “benefício dado pelo Estado”. Penso ser esta a “lógica” embutida e não explicitada. Na Vila da Conquista também não há luz domiciliar. Usa-se o mesmo argumento do desperdício: “terão que sair”. Como já faz um ano que o movimento aguarda o projeto

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definitivo, acabou conseguindo alguns “bicos” de luz na vizinhança. A iluminação é muito fraca e não da para ter TV ou geladeira ligados, pois estragam-se os aparelhos que não funcionam adequadamente. Por este empréstimo do “bico” de luz as contas são muito altas e nem todos podem pagar. Mas é preciso lembrar que a grande maioria das favelas já tem luz por rede pública oficial e que estas ligações não podem ser feitas por iniciativa dos movimentos, sem antes passar pelo aval das prefeituras. Quando o poder público argumenta que a área ocupada é aquela onde deverá ser construída a caixa de água para abastecer a região, está embutida na sua fala a tentativa de responsabilizar o movimento pela continuidade da falta de água na região. Força-o aceitar os projetos de mudança de lugar. Pois é importante para os integrantes da Vila da Conquista o 230

abastecimento da região como um todo; interessa-lhes também não serem responsabilizados pela continuidade da falta de água. Não colocar uma rede, mesmo precária, para o abastecimento de água e de iluminação, mostra que o poder público considera-os cidadãos de categoria inferior. Além disso, força-os a aceitar os seus projetos. Ao mesmo tempo, ao não atender as reivindicações de luz e água, provocou no movimento, cisões, pois o grupo que entrou depois da ocupação88, considera que é a falta de mobilização e de luta da Comissão que impede o atendimento das reivindicações. Após 6 meses de ocupação, a Prefeitura explica qual é afinal o seu projeto para os ocupantes. Propõe ao movimento ser incluído no projeto “Casa para Todos”, que é: “Um programa habitacional para moradores de favelas com o objetivo de cunho eminentemente social de propiciar à população favelada do município a conquista de habitação permanente e digna” (Programa Casa para Todos – P. M. O.). Prevê ainda que este acesso será realizado no próprio local ocupado, mediante urbanização ou em novos locais, mediante a produção de unidades para relocação dos favelados. Diz ainda o projeto que cada núcleo deverá ter um Plano de Urbanização Específico, considerando-se que os loteamentos de interesse social não precisam seguir os parâmetros dos loteamentos comuns. E que o preço de cada unidade será apurado com base 48 parcelas mensais e o valor da prestação não poderá exceder a 5% do salário mínimo vigente. (PMO – 1986). O projeto denomina-se “Casa para Todos”. Estão sendo implantados LOTES de 90 metros quadrados com água e luz. Os favelados removidos reconstroem os seus barracos. Como diz um integrante do movimento, o projeto deveria chamar-se LOTE para POBRE. Os integrantes do movimento reúnem-se para analisar quais as implicações em aceitar ou não o projeto. Discutem os seguintes pontos: a) Alterar o tamanho do lote, implica que a casa tão sonhada tenha que ser menor e que no futuro não possa crescer. E se a família aumentar? b) Mudar da área em que já estão assentados, significa perder a metade das madeiras já utilizadas; perder móveis, pois os que existem, são podres e frágeis.

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Referido no item logo acima.

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na avaliação efetuada pelo setor competente. O número de prestações não poderá ser inferior a

c) Nos lotes de 102 metros, uma parte fez uma pequena horta. Se mudar para um de 90 a sobrevivência fica prejudicada, pois é a horta, uma forma de complementar a alimentação; d) Significa aceitar o mesmo projeto dos favelados. Os ocupantes confessam: “não tenho nada contra, mas 90 m é metragem que só vale para a favela”. Também consideram que os pobres tem “direito” a menor terreno/casa? e) Todos consideram 90 metros de terreno muito pouco, porque vai dificultar ainda mais, quando forem construir de alvenaria: “a gente muda lá pra baixo, aí monta o barraco. Depois quer construir alvenaria. Como fazer se o barraco já toma o lote inteiro?” Mas também consideram que: f) Estão cansados de carregar água, isto quando tem; g) A prefeitura está dizendo que a continuidade da falta de água está sendo causada pelo movimento que não quer mudar; h) Também estão preocupados com as eleições que deverão ocorrer em 1988. O prefeito deu uma garantia “só de boca, de palavra” e a ação de reintegração de posse só está suspensa. E se após as eleições a ação for consumada e eles despejados? Estes aspectos, pensados e repensados, leva a que o movimento “troque os 12 metros” (de 102 onde estão para 90), desde que o projeto do prefeito seja executado em 90 dias (três meses), tenha água, luz, esgoto, área para construírem sua sede, área prevista para creche, posto de saúde. Formarão uma sub-comissão para acompanhar o projeto. Quando estiver pronto o arruamento vão construir em alvenaria (veja-se croquis das áreas). E começa uma nova fase para os moradores de Vila da Conquista. Acompanhar o

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projeto, organizarem-se para ir para os novos lotes. Discutir o projeto da casa de alvenaria. Organizarem-se, em conjunto com o Jardim Piratininga, para a produção dos blocos da máquina já comprada. Mas, o tempo passa e o arruamento não fica pronto. Em agosto de 1988, ficam parcialmente prontos 120 lotes (ainda sem água e sem luz), mas, são 297 famílias. O movimento decide que começará o processo de mudança com a construção das casas em alvenaria. Pensam que seria uma forma de consolidar um processo de formação de grupos de vizinhança. À medida que os lotes fossem sendo entregues, ver-se-ia quem poderia começar a construir de imediato e formar-se-iam grupos de vizinhança.

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No entanto, alguns integrantes do grupo que entrou depois de 26/0689, pressionam para que a mudança seja feita rapidamente. Utilizam de subterfúgios, percorrendo todos os barracos, dizendo que se não mudarem de imediato vão perder os “direitos”. Organizam uma lista que levam à Secretaria da Habitação, afirmando que serão estes os primeiros a mudarem, marcam a data e pedem caminhões para fazer a remoção. Atribuem a demora na conclusão à inércia da Comissão. Muito embora a Comissão e o apoio tenham conseguido reverter parte dessa situação, fazendo um sorteio por ruas e não obedecendo a “lista” realizada pelo sub-grupo, a verdade é que, 120 famílias da Vila da Conquista estão mudando para o que consideram terreno definitivo. A maioria muda com o seu barraco, ou seja, é removida. Alguns estão construindo em alvenaria, mas o processo é alto-construção e não mutirão. As demais 180 famílias aguardam que a prefeitura termine os lotes para iniciar o processo de mudança. Estes, mais organizados provavelmente construirão em alvenaria no processo de mutirão. De qualquer modo é visível a cisão do movimento, pois os que entraram depois não se constituíram como sujeitos coletivos integrados no processo de mudança da sociedade. Considero que imputar-se a demora na execução do projeto à causa de dinamismo da Comissão, é uma demonstração que o discurso competente, que atribui ao trabalhador a causa modo tão precário, após tanta luta, significa aceitar os parâmetros de moradia impostos ao pobre. Propor que os primeiros 120 lotes sejam destinados àqueles que assinarem primeiro a lista é aceitar o discurso de que o problema é a falta de recursos para atender a todos, de modo que é preciso ser esperto para ser contemplado. É aceitar que alguns sejam pinçados para servir de exemplo, em que pese que só entraram na luta depois da terra conquistada. Este tem sido também um outro desafio para o movimento: como tornar claro o que é tão turvo na vida diária. Mas a continuidade da luta, para parcelas dos ocupantes da Vila da Conquista, está também relacionada com a formação e ocupação do terceiro grupo do “Movimento Terra e Moradia” de Osasco. 4. A CONTÍNUA PROCURA DO LUGAR PARA MORAR

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Veja-se 3.5.

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da sua pobreza está incorporado nas próprias atitudes do trabalhador. Aceitar ser removido de

Logo após a ocupação da área no Jardim Conceição, começa a formar-se um novo grupo. O compromisso, com a prefeitura, de não ampliar o número de ocupantes na área, para que não se inviabilizem os projetos; o compromisso de “divulgar” o resultado de sua luta para mostrar que a possibilidade de grupos organizados conquistarem um lugar para morar, leva a que, aos novos interessados, explicite-se o que o movimento considera correto: a organização de novos movimentos, que devem conduzir o seu caminho. O processo de discussão é semelhante aos anteriores. Mas busca-se, também, uma forma de dar maior consistência e aprofundamento às discussões. Formam-se pequenos grupos e os assuntos a serem debatidos são previamente elaborados pelo grupo de apoio. Foram reuniões onde se tentou aprofundar questões sobre a terra e a moradia na cidade. Propõe-se que os integrantes visitem as duas áreas do movimento, pois, assim, podem conversar com os moradores, ver como estão alojados e saber como foi o processo do início até a ocupação. Esta “novidade” propiciou informações adicionais aos integrantes do grupo 3: “eu vi que a luta é demorada, mas tô disposto”; “o pessoal que mora lá na Vila da Conquista sofre demais, ainda não tem água, mas mesmo que for para ir para lá eu vou” (depoimentos). Permitiu assim, aos novos participantes, conhecer uma ocupação no lugar onde ocorreu, pois até aquele momento, eram os integrantes do grupo 1 e 2 que iam até onde estava o novo grupo. Este novo grupo também elege seus representantes, busca as autoridades constituídas para explicar a situação que está vivendo. Fazem manifestações, passeatas, para sensibilizar o poder público. Conseguem marcar entrevistas com o Secretário da Habitação. Na última delas, em dezembro de 1987, este pede que esperem seis meses até que fique pronto o projeto do

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Jardim Conceição. Mas os participantes já estão se reunindo desde agosto, alguns já foram despejados e estão morando com parentes. Outros na eminência dos despejos. Não se pode esquecer que os aumentos de aluguéis no ano de 1987 foram de mais de 400%, e os salários não acompanharam tal aumento. Se já era difícil pagar aluguel, agora começou a ser quase impossível. Em dezembro de 1987 o salário mínimo era de Cz$ 2.200,00. Cálculos realizados pelo DIEESE consideravam necessário, nessa época, para suprir as necessidades básicas do trabalhador e sua família, um salário de Cz$ 18.383,00. Ora, os componentes desse grupo ganhavam, como a maioria dos trabalhadores brasileiros, menos de dois salários mínimos, portanto quantia insuficiente para suprir gastos mínimos com alimentação e pagar aluguel.

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Os integrantes do grupo 3 moravam predominantemente de aluguel em sua maioria, em casas de dois cômodos e cozinha (57%) com mais de uma casa construída no mesmo lote, demonstrando que o tipo de moradia predominante era o cortiço ou casa coletiva90. Quanto se paga por estas unidades? Em outubro de 1987, no tipo de moradia acima referido predominava aluguéis entre Cz$ 2.000,00 a 3.000,00 cruzados para contratos antigos. Os aluguéis novos estavam acima de Cz$ 5.000,00. Como pagar estes aluguéis e continuar sobrevivendo? Não dava mais para esperar, e assim, procura-se uma área para ocupar.

4.1. A procura do novo lugar Face à impossibilidade de ocupar a área ainda livre do Jardim Conceição, pois, apesar de ser um novo grupo, o Secretário da Habitação informou-os que, se ampliassem a área ocupada inviabilizariam o projeto como um todo. É evidente que se fosse atribuído ao movimento a inviabilidade do projeto haveria repercussão negativa para a ocupação. Mesmo possam atender às necessidades dos trabalhadores. Além disso, como parte do mesmo movimento, seus membros sabem que podem prejudicar os moradores da Vila da Conquista, pois o prefeito, por represália, poderia executar a liminar de reintegração de posse retirando todos os ocupantes da área. Já foi citado que os fatores que estão inviabilizando o projeto da área do Jardim Conceição não é a ocupação de Vila da Conquista mas é preciso cuidar das repercussões negativas aos movimentos de ocupação. Procuram uma nova área e encontram uma gleba de cerca de 70.000 m2 no Jardim Veloso em Osasco. A área é de propriedade particular, porém, como a situação está cada vez mais difícil, resolve-se ocupar assim mesmo. De um lado, como forma de pressionar a prefeitura a construir novas unidades habitacionais; de outro, pela necessidade que se torna mais aguda. O processo de organização para a ocupação é semelhante ao da área do Jardim Conceição. 90

Sobre as diferenças entre cortiços e casas coletivas, veja-se Rodrigues, A. M. e Seabra, M. 1987. Veja-se também tabelas anexas sobre pesquisa de situação de moradia com este grupo.

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porque, o movimento está também interessado que se construam muitas e muitas casas, que

4.2. A nova ocupação: “Vim ver uma cidade nascer da noite para o dia” (depoimento)

Em 29 de janeiro de 1988 inicia-se, no período da noite, a ocupação da área. Demarcar lotes, descarregar caminhões, levar os materiais para os lotes, construir os barracos. Trabalho intenso e febril, que se estende até de manha e que continua nos dias seguintes. Ao perceber toda a movimentação surge uma vizinha que contempla espantada esse processo e diz a frase acima. Realmente é um nascimento. Só aparece em um dado momento, mas tem em seu bojo todo um processo de gestação. Para chegar a produzir este novo espaço, esta nova cidade da noite para o dia, muitas coisas são produzidas anteriormente. Parece que é só um momento que produz este espaço, em que se inclui a própria dinâmica da produção capitalista do espaço, a fragmentação do espaço vendido em parcelas, os interesses diferentes na produção e no consumo do espaço. Todo o processo de organizar-se, escolher formas para chamar a atenção do poder público, providenciar mudança, comprar madeira, escolher uma área, limpá-la, marcar os lotes, construir um barraco, mostram em um momento de tempo toda uma produção espacial anterior. O projeto do loteamento é feito no papel pelos próprios ocupantes ou por integrantes do grupo de apoio. Constata-se um conhecimento prévio do lugar a ser ocupado, da legislação que define o tamanho dos lotes, das ruas, das áreas de lazer e institucionais. Mas, como a

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ocupação é feita à noite, como não é possível chamar a atenção marcando os lotes antes, a ocupação revela uma forma mais espontânea de seguir os arruamentos propostos (vide croquis). Nesta ocupação está mais visível, do que nas duas anteriores, a miserabilidade. Há muitos ocupantes que não tem a mínima condição de comprar um barraco, ou mesmo quatro pontaletes e um pedaço de lona. Muitos são os casos em que buscam o grupo de apoio para tentar uma solução. Isto significa que há ainda os mais pobres que sequer conseguem comprar madeira para construir um barraco. Uma parte não desprezível dos ocupantes comprou os barracos de um vendedor de barracos semi-montados, tanto de madeira nova, como de usada. Alguém o conhecia e logo 236

em seguida passou o contato para os demais. Aparentemente este vendedor faz até um preço mais em conta para o movimento, fez doações de parte da madeira para construir a sede. Isto implica em desvendar também diferenças de interesse no processo de ocupação. O fornecedor de madeira, do barraco, é solidário com o movimento, apenas porque este representa um meio de colocar os seus produtos no mercado? Se o vendedor de barracos tivesse uma terra vazia que estivesse com possibilidade de ser ocupada, qual seria a sua atitude?

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Penso que ficaria mais interessado na defesa da propriedade do que na venda do barraco. Pois para comprar o seu barraco, há muitas outras terras, muitos outros indivíduos que vão para as favelas e que podem comprar. Neste caso, como a terra é de outrem, é até possível dizer ao movimento que se é solidário, e que se esta vendendo o barraco mais barato, etc. Mas, argumenta este vendedor: “Se eu tivesse altos rendimentos com este comércio, viria pessoalmente trazer os barracos, conversar com o pessoal? É claro que não, assim como é claro que jamais serei um grande proprietário de terras vazias. Faço os barracos para que o pessoal ocupe mesmo”. (Depoimento)

Isto demonstra as contradições de classe, presentes entre os detentores dos meios de produção, mas também mostra o processo de gestação de uma ocupação. Com as experiências anteriores organiza-se melhor um lugar para abrigar as crianças; a chegada na área; a comunidade de apoio. Este processo aparece apenas no momento em que a ocupação ocorre. Mas neste caso, este desabrochar, este nascer, teve, logo no dia seguinte, repercussões muito intensas, por parte dos proprietários da terra ocupada.

Logo após a ocupação da área, os proprietários são avisados por moradores vizinhos, alguns deles trabalhadores de suas empresas. Sábado de manhã, já há tentativas de desocupação e de impedir a continuidade das mudanças. Um dos proprietários alegava saber, sendo advogado, que poderia derrubar os barracos, usando forças próprias em um prazo de 12 horas, que depois passou para 24 horas. Na parte anterior foi citado o texto de Miguel Baldez, jurista, que explica que quando a propriedade está ameaçada cabe um interdito possessório, uma ordem dada pelo Juiz para impedir que se toque na posse; ou, então, como a propriedade estava sendo tocada, o direito concede ao dono da terra a ação de manutenção de posse, meio judicial de impedir as ocupações não-consumadas. Estas seriam as medidas a serem efetivadas. Necessitariam de ordem judicial. Mas era sábado e esta medida só poderia ocorrer na segunda-feira. Fato que mostra a importância de um processo de organização prévia para efetivar-se uma ocupação, pois saber que barraco construído e habitado demonstra uma posse 239

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4.3. A luta pela permanência do grupo 3 no Jardim Veloso – área particular.

já efetivada é fruto de uma organização. As duas experiências anteriores demonstraram ser necessário ir com todos os móveis e com o barraco pronto para ser montado, e também chegar todo mundo na mesma hora. O que é confirmado na área do Jardim Veloso: quem não chegou na hora, não pode mais entrar. Mas os proprietários não desistem. Continuam a pressionar, durante o dia todo. Tentam “negociar”: “Parem de construir que eu não derrubo nada. Espero vocês tirarem.” Ameaçam: “se não quiserem sair por bem, vou mandar um trator. A lei me permite retirar por forças próprias”. Faz-se uma comissão de “negociação”. Buscar-se-á o prefeito para que ele intermedeie a negociação. Como este não se encontra na cidade, um grupo do apoio vai conversar com ele, enquanto outro fica dando cobertura aos ocupantes. Atuando de forma a pressionar ostensivamente, um dos proprietários manda vir um trator de sua propriedade, com ordens de entrar na área para derrubar os barracos e destruir tudo. Sabe que é contra a lei, mas tem a força ao seu lado. Como a aplicação destas leis de despejo está sempre relacionada com a prática policial, estes proprietários sentem-se no direito de usar força “própria”. Para ter-se dimensão desta “força” de pressão, é importante salientar que o bairro denomina-se Jardim Veloso e a área é propriedade da família Veloso. A força policial pública se faz presente. Há várias viaturas o tempo todo na área. As ordens são para só observar. Só se houver conflito devem intervir. Na verdade, os delegados de polícia são advogados, e sabem que é contra a lei agir sem ordem judicial, para desalojar as famílias. No entanto os policiais principalmente um deles (Tenente Matos), fica o tempo inteiro conversando com os ocupantes, tentando mostrar que estão errados em ocupar uma área de propriedade particular. Justifica a terra vazia, aconselha todos saiam da área, pois o

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direito é do proprietário: “Afinal é terra de herança. Além disso, os homens aí são poderosos. Melhor vocês pararem de construir... Por que vocês não procuram uma área pública?” (Tenente Matos)

Sem dúvida, evidencia-se o discurso dominante. A intocabilidade da propriedade. O direito da terra ficar sem uso, mesmo não sendo para agir, alguns policiais consideram que não custa tentar convencer as pessoas. É claro que esta atitude não é geral. Quando os proprietários mandam o trator entrar, a policia se afasta: vai ficar vendo de longe. Só intervirá se for necessário. Como afirma Stoyanovitch, citado por Baldez:

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“é na prática da submissão à ideologia dominante, ou na prática de opressão jurisdicional , que o direito cumpre, no concreto, sua função de controle da classe trabalhadora em todos os seus aspectos de atuação”. (Baldez, M. L., Op. Cit. p. 11)

O movimento resiste. Enquanto o grupo de apoio trata com os proprietários, os ocupantes, continuam a construir seus barracos. O teto precisa ficar pronto para poderem dormir. Resistem também à entrada do trator. Formam uma corrente e afirmam que não sairão da frente. Só se passarem por cima. O impasse permanece durante algum tempo. Finalmente, os proprietários mandam o trator recuar. Os integrantes do movimento acreditam em uma vitória. Foi, pelo menos, uma demonstração de organização e de empenho na luta, pois estavam presentes não apenas os ocupantes da área, mas também boa parte dos moradores do Jardim Piratininga e Vila da Conquista. A intermediação do poder público municipal far-se-á presente ao final da tarde. Marca-se uma reunião para segunda-feira, com representantes do movimento e dos proprietários. Intermediação também realizada com o delegado de polícia que comparece à área. O movimento comprometeu-se a não deixar entrar mais ninguém. Mesmo assim ficou acertado que haveria um policiamento ostensivo, para evitar novas barracos, para ter onde dormir, desde que não entrasse nenhum material novo. 4.4. A presença partidária no processo de despejo Durante este primeiro dia o grupo de apoio considerou que deveriam ser chamados representantes dos partidos políticos, de preferência parlamentares, e demais entidades para estarem presentes na área. Compareceram dois deputados estaduais pelo PT: Luiza Erundina de Souza e José Dirceu. Um vereador do PT, de Osasco, esteve presente desde o início da ocupação e foi o intermediador com o prefeito. Os demais partidos políticos não se fizeram representar. A presença de parlamentares em momentos de muita pressão deixa o movimento mais tranqüilo para continuar sua luta. Sentem-se apoiados e reconhecidos como sujeitos políticos. Mas a visibilidade desta presença, apenas em momentos de conflito, não permite pensar a prática cotidiana como política. Nesse sentido, é bom destacar as diferenças de postura diante dos movimentos. O PMDB, como já dito, esteve presente na hora da vitória no Jardim 241

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entradas. Mas também conseguiu-se que os que estavam na área pudessem completar os seus

Conceição, mas nos momentos difíceis para o movimento esteve ausente. Isto pode explicar os motivos para que os movimentos não aceitem a interferência partidária e lutem por sua autonomia. Tradicionalmente o “político” só aparece na hora do voto. Em uma hora de conflito, aparecer pode significar antepor-se ao poder constituído e, possivelmente, dada à própria tensão, não arregimentar votos. Estes fatos talvez expliquem porque os movimentos consideram seus atos como não políticos, pois como diz Eder Sader: “Um ato político é compreendido por interesses escusos e implica em manipulação” (Sader, Eder. Op. Cit.). Como o mais visível é a tentativa de manipulação, de cooptação ou mesmo de captação para seus objetivos, os movimentos, em geral, negam a participação dos partidos e negam sua característica política. Penso ser necessário que os partidos políticos comprometidos com as lutas dos movimentos populares deixem mais evidente a sua participação, nos diversos momentos em que estão atuantes, sem “tentar capturar” os participantes para os quadros partidários, ou para uma legitimação no poder. Isto é importante para diminuir a compreensão da política como a prática de interesses escusos e aumentar, ao mesmo tempo, a compreensão de que os atos praticados pelos movimentos são atos políticos. 4.5. A continuidade da luta – apesar da tensão, novos interessados Os participantes da ocupação entendem que o compromisso de intermediação da Prefeitura garantirá uma vitória ao movimento. Logo após a retirada dos proprietários das vizinhanças, realiza-se a primeira assembléia do movimento na terra ocupada, no Jardim

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Veloso. Sentem-se cansados e vitoriosos. Acreditam, por informações incorretas, que após 24 horas na terra ocupada, com os barracos construídos, ninguém mais os tira de lá. Sabem, no entanto, que devem continuar a organização, a luta, a construção dos barracos ainda inacabados e organizar-se para ir conversar com os proprietários e com o Prefeito. Mas, também é preciso vigiar a área, pois embora a policia esteja ali para não deixar nenhum barraco ou mudança entrar, todos estão apreensivos com a atitude dos proprietários. Monta-se guarda para evitar a entrada de estranhos. Apesar do sábado ter sido tenso, os vizinhos descobrem o movimento, querem inscrever-se, querem entrar na área com os seus barracos também. Mas o movimento já tinha

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deliberado, por entender ser esta a melhor forma, que só entra na terra quem já tiver participação. Mas quem já não está participando do processo não consegue entender tal mecanismo. Tentam ocupar as áreas remanescentes da gleba, limpando o terreno e trazendo o seu barraco. Por não compreenderem o processo, não entendem que há já firmado um compromisso de não entrar mais ninguém. Não entendem que podem prejudicar as negociações do movimento. Não entendem também que não há garantia de permanência. Acreditam que a “expulsão do trator” já resolveu o problema. Alguns até afirmam que, como ajudaram a ficar na frente do trator, também já fazem parte do movimento. Há também que acrescentar que os “empregados” dos proprietários que estiveram na área, a serviço dos mesmos e contra os ocupantes, no dia seguinte de manhã tentam entrar com madeiras para construir um barraco, na esteira do próprio movimento. Ora, como os participantes do grupo 3 não conhecem todos os moradores que estão tentando limpar os lotes, torna-se necessário vigiar a área e não deixar ninguém entrar, para garantir a continuidade do próprio movimento. Mas também é uma proposta do movimento ampliar a participação nas lutas pela moradia. Começam a indicar o salão da Igreja próxima para que os novos interessados se no pequeno salão da Igreja local. Dividem-se em grupos, em dias diferentes, para iniciar um processo de discussão. Este aspecto é de extrema importância, pois, apesar das incertezas que uma ocupação traz, da forte tensão, o movimento de luta por terra e moradia passa a ser conhecido. Divulga-se uma possibilidade de luta. Alertam-se mais trabalhadores sobre a necessidade de discutirem coletivamente seus problemas, de organizarem-se para tentar resolve-los. Os participantes do movimento tomam consciência desse processo e sentem-se agentes da história. Passam a ter a história, da sua vida, para contar. Os proprietários continuam a fazer pressão. Para o Processo de Liminar de Reintegração de Posse é necessário nomes. Assim: “apareceu de manhã, dois moços, bem vestidos, para fazer uma pesquisa lá da Faculdade dos advogados. Aí, nos pensamos, como eles chegaram aqui neste fim de mundo? E falamos: „moços, vocês podem fazer a pesquisa, mas um de nós da comissão ou do apoio acompanha vocês‟. Aí, eles foram embora e não quiseram mais pesquisar e foram embora”. (Depoimento)

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Na procura do lugar o encontro da identidade

reúnam e discutam o que fazer. Já na primeira reunião são mais de 200 famílias, que não cabem

Os ditos pesquisadores retiram-se, pois seus objetivos foram frustrados. Fatos como esse fazem com que os movimentos só permitam a entrada nas terras ocupadas, em momentos de conflito, de pessoas conhecidas, o que mostra, também que, como já estão alertados para os mecanismos jurídicos defendem-se da melhor forma, pelo tempo que for possível. A manhã de domingo traz um novo problema: “O sufoco foi tão grande que todo mundo ficou sem comer, agora é preciso pensar em terminar a construção da sede e organizar a cozinha coletiva” (depoimento). As doações de alimentos são muito pequenas, pois, além da comunidade ser pobre, a ajuda foi orientada para garantir a permanência. A organização da cozinha coletiva faz-se nos mesmos moldes das duas ocupações já referidas. Mas aqui dura pouco, pois há poucas doações, já que os trabalhadores ficam cada vez mais pobres. Para fazer as primeiras refeições da cozinha coletiva: “nós fizemos uma coleta na Vila da Conquista; os companheiros que puderam doaram um ovo e um punhado de arroz” (depoimento – apoio). Este mesmo procedimento é realizado pela comunidade através de pedidos de doações em missas. Mas, para tentar permanecer na área, há, neste caso, muitas atividades a serem feitas, e a cozinha coletiva acaba tendo mais a função de suprir necessidades, do que caracterizar uma proposta coletiva de trabalho, muito embora este aspecto estivesse presente.

4.6. A Liminar de Reintegração de Posse No primeiro dia útil, os proprietários entraram com o pedido de Liminar de

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Reintegração de Posse. Mas, caso inédito, o Juiz de Direito, Newton de Azevedo, não a concede de imediato e tenta verificar as negociações que estão em andamento. Há interesse do proprietário em vender e o movimento dispõe-se a comprar. Tenta-se um acordo entre as partes, com a intermediação do Executivo e de Judiciário. Os integrantes do movimento fazem uma pesquisa sócio-econômica para verificar, qual é a parcela mensal que os ocupantes podem pagar. Verifica-se que, em média, poder-se-á pagar o valor mensal de Cz$ 2.200,00 por família, o que representaria, considerando o número total de moradores que poderiam ser alocados (450), a possibilidade de pagar uma primeira parcela no início do mês de abril. Os proprietários queriam, de imediato, o pagamento de Cz$ 25.000.000,00. que correspondia a 50% do preço atribuído no mercado. Mas, os integrantes do movimento

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poderiam, pagar 20%, pois a área só contava com as 300 famílias dos ocupantes iniciais, e, além disso, haviam gasto o dinheiro na compra dos barracos e na mudança. As demais famílias, que já estavam se reunindo, só entrariam caso as negociações dessem resultados positivos. O impasse continuava, até que finalmente o juiz concedeu a Limiar de Reintegração de Posse já citada à pág. 153, onde explica também porque demorou tanto tempo (1 mês) para dar a sentença. Um aspecto a destacar é que o movimento tentou, por todos os meios, adquirir a área. No levantamento dos dados ficou evidente que todos queriam pagar até o limite do possível (vide no anexo, levantamento sócio-econômico). O valor venal do imóvel era de Cz$ 8.000.000,00. Nas negociações, o prefeito havia-se comprometido com o movimento para em último caso, fazer a desapropriação, se fossem esgotados os recursos de negociação para a compra da área: “não cumpriu uma palavra do que prometeu. Esgotamos todas as alternativas” (depoimento). Decretada a Liminar, todos os integrantes do movimento se dirigem à Prefeitura para cobrar a promessa do prefeito. Propunham a desapropriação da área. Mesmo porque esta área constava de uma relação encaminhada pela prefeitura à Cia. de desenvolvimento Habitacional do Estado – CDH - , solicitando verbas para a desapropriação. Como a prefeitura alegava falta a área e o movimento devolveria o dinheiro, em parcelas, no exercício em curso. Num primeiro momento o prefeito parece concordar, mas vai consultar seu Conselho Político e o Departamento Jurídico da Prefeitura. Volta com a resposta, no final da tarde do dia seguinte, após o despejo já ter sido decretado, afirmando não ser possível: “O jurídico viu que a prefeitura não podia fazer nada”. Algumas considerações precisam ser feitas: a) o argumento principal era que, se a prefeitura desapropriasse a área, estaria incentivando outros movimentos a ocuparem área particulares e pressionarem a prefeitura para desapropriar, tornando a cidade de Osasco “o paraíso das ocupações”. Há toda uma pressão para que a prefeitura não dialogue com os movimentos. A imprensa havia notificado, dias antes que os: “proprietários de terra incentivavam as ocupações das ares” (ESP, 20/01/88). Esta forma de agir não é conhecida pelos movimentos como interessando aos proprietários, porque, em geral, o valor venal (que será o valor da desapropriação), é muito menor que o valor de compra/venda. 245

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de recursos, o movimento propõe pagar a desapropriação. Ou seja, a prefeitura desapropriaria

b) O movimento, “Terra e Moradia” é conhecido como tendo participado do Partido dos Trabalhadores. Ora, se o prefeito desapropriasse a área, mesmo sendo a Prefeitura ressarcida posteriormente, provocaria, possivelmente, um conflito interno no seu partido, pois estaria privilegiando movimentos organizados por outro partido que, possivelmente, captaria os votos em eleições futuras. c) Ao argumento de que a prefeitura não tem recursos para adiantar o valor da desapropriação, o movimento propõe a ida conjunta a ida ao governo do Estado para sensibilizá-lo, o que não é aceito, pelos mesmos motivos apontados no item acima. Além disso, ao responsabilizar as esferas federal e estadual, o prefeito passa a não ser responsável, como se não fizesse parte da sociedade da sociedade e principalmente do governo. São assim responsabilizados: o movimento de ocupação, que não esperou os seis meses combinados e os poderes distantes que não liberaram verbas: “eu não criei esta situação e não vou fazer nada” (Depoimento do prefeito). d) Na eminência do despejo, os ocupantes dirigem-se ao gabinete do prefeito. Ficam alojados nos corredores, esperando uma resposta do prefeito, que os manda para um salão: “onde ficarão melhor alojados, há de haver lugar para sentar, etc.” (Depoimento). Mas que também fica distante e de lá os ocupantes são visíveis para quem entra e sai da prefeitura. Ao final de um dia inteiro de espera, o prefeito pede para voltarem no dia seguinte. Mas só vem a comissão: “se não fica o mundo mal alojado” (Depoimento). Ao virem em grandes grupos para o espaço público, torna mais visíveis o conflito. Passam a ser mais conhecidos. No entanto, o poder público define quais espaços devem ser utilizados e quando devem vir.

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Os espaços também são apropriados, pelos sem-casa, apenas quando lhe é dado este direito? Ao ocuparem estes espaços públicos não obedecem à ordem estabelecida. Mas como afirmar que o prefeito da cidade não os quer no pátio da prefeitura? Explicando que: “ficam melhor alojados em casa”. Na angústia da espera do barraco prestes a ser demolido, se não for tomada nenhuma medida, o lugar definido é o próprio barraco. O espaço público é utilizável de modo diferente, dependendo a qual grupo se pertença. Apesar de todas as tentativas do movimento, o despejo é realizado. Como proceder, ir para onde? Tentou-se também, como ultimo recurso, negociar um novo lugar. De inicio, nas vésperas do despejo, o próprio prefeito citou a possível ida para o Jardim Conceição. O

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movimento queria garantir a permanência no lugar já ocupado, como não foi possível, espera que o prefeito autorize a remoção para o Jardim Conceição, o que não ocorreu. Há muita idas e vindas em dois dias de muita tensão. Por parte do movimento aguarda-se uma solução que poderia ser a desapropriação e depois a autorização para a ida ao Jardim Conceição. Nada disso aconteceu. A resposta negativa do prefeito é dada às 20:00 horas do dia 2/3/88. O despejo inicia-se dia 3/3/88 às 5:00 horas da manhã, um mês e três dias da noite da ocupação. Porque se esperou até o último momento uma resposta positiva? O poder público, em que pese a organização do movimento, é ainda considerado o poder. Mas, ao final, fica sendo o inimigo mais visível: “O prefeito foi pior que o dono da terra. Ele ainda ta no direito, mas o prefeito não cumpriu uma palavra, deixou a gente na rua”. (Depoimento).

4.7. A resistência do despejo Esgotadas todas as alternativas de permanecer na terra ocupada, é preciso achar um articulam-se, procurando analisar qual seria o melhor lugar; definem que é o Jardim Conceição, onde parte da área está ocupada pelo grupo 2: - Vila da Conquista. Correm-se riscos: a prefeitura pode acionar a Liminar de Reintegração de posse, pode não dar início ao processo de urbanização, culpabilizando o movimento. Aliás foi por estes mesmos motivos que grupo 3, que está sendo despejado, procurou uma nova área e não foi, de imediato, para o Jardim Conceição. Se alguns participantes do Jardim Conceição estão temerosos de perder as: “coisas que já conquistamos”, a maioria se expressa com a solidariedade de que sabe que a luta é mesma: “Nós estamos esperando os companheiros de braços abertos, se tiver que sair saímos todos juntos, mesmo porque mais gene é mais difícil tirar”.

(Depoimento)

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lugar para morar. É preciso resistir, mudando de lugar. Os integrantes do movimento

Para os participantes da assembléia na noite que antecede aos despejos estas palavras trazem uma certa tranqüilidade, pois embora estejam tensos, é possível ver muita solidariedade entre os companheiros do “Movimento Terra Moradia”. Todos sabem que a resistência deve ser pacífica. Discute-se o que fazer, quando e como arrumar os pertences, que barracos deverão sair primeiro, etc. Deve-se agir sem afobação, tomar cuidado ao desmanchar os barracos, que deverão ser marcados ao se carregar as madeiras. As crianças devem ir para o mesmo lugar onde ficaram no primeira noite da ocupação. Haverá gente para cuidar delas e alimentá-las, pois a comunidade quer ajudar, foi solidária na ocupação, fez abaixo assinado, que encaminhou ao Juiz, colocando-se a favor dos ocupantes, não vai abandoná-los agora. Estes aspectos mostram que, apesar da derrota, a organização permanece. Que a mudança é uma outra forma de resistência no cotidiano. Logo de manhã há todo um aparato policial para garantir o despejo: policiais, bombeiros, polícia feminina, duas ambulâncias, assistentes sociais. Os advogados do centro de Defesa dos Direitos Humanos de Osasco solicitam acompanhamento do Juizado, considerando o número de crianças na área. Como estão acompanhando o movimento desde o início, entram com um Mandado de Segurança contra a liminar. A sentença mostra com clareza a defesa que o poder judiciário faz da propriedade: “quem está do lado dos invasores não merece crédito” (despacho no mandato de segurança). Esgotados todos os recursos, os avisos para que desocupem a área, com grandes megafones, instalados em veículos oficiais, começam a cinco horas da manhã. Os caminhões são responsabilidade do proprietário, para ajudar a desmontar os barracos e carregar a mudança, significa uma despesa elevada para os proprietários que não quiseram concordar

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com a venda para o movimento. Enquanto os barracos da área mais próxima a rua são desmanchados e transportados, a resistência cotidiana continua: lava-se roupa, louça, até se cozinha. Os desmanches dos barracos são cuidadosos, para estragar o mínimo possível o material. Estão presentes muitos companheiros, para dar apoio neste momento difícil, mas há muita tensão, pois não se sabe se haverá repressão ao chegar-se com as mudanças no Jardim Conceição. Quando os caminhões estão prontos para transportar as primeiras mudanças, vem a pergunta: ir para onde? Embora em momentos posteriores o Prefeito negue, ele mesmo autorizar “Comandante da Operação” que os policiais levassem as mudanças para o jardim conceição, inclusive definindo qual o lugar que poderiam ficar.

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As primeiras mudanças chegam na área e encontram funcionários da secretária da habitação, que impedem a entrada apenas no trecho que estava sendo terraplanado, mas não na gleba. Isto é importante, pois tranqüiliza um pouco os despejados. Posteriormente, o poder público, afirmará que não autorizou a entrada na área, ameaçando-os com a liminar de Reintegração de Posse. Enquanto se marcam os lotes as madeiras do barraco, os móveis, e próprios integrantes do movimento ficam “depositados” em um campo de futebol (vide foto no anexo). O processo de reconstrução dos barracos é mais demorado do que a ocupação, pois estão todos cansados, mal alimentados e vindos de um longo processo: “chego a ta com as pernas tremendo de cansaço”; “tem hora, que dá vontade de desistir, mas também não tem outro lugar para ir”. Mas há também muita coragem: “agora eu só saio daqui morta” (depoimentos). Muita gente vai perder o emprego, pois faltou para ocupar, para ir a Prefeitura e agora para mudar e reconstruir o barraco. Embora de modo precário, é preciso montar a cozinha coletiva, o que é feito na sede e na casa de companheiros da Vila da Conquista. Mas não é possível esquecer que os moradores sofrem com a dificuldade de abastecimento. Agora são mais de quinhentas famílias que utilizam nove torneiras, que tem água apenas de madrugada e alguns dias da semana. Cozinhar O movimento continua a sua resistência organizada.Começa-se a montar com dificuldade os barracos, pois a topografia é acidentada, é coberta por uma vegetação secundária e algumas árvores, em geral, eucaliptos. É preciso limpar os lotes começar a construir. A cerca de trezentos metros do trecho ocupado há uma nascente, e é lá, sem antes saber a qualidade da água, que o grupo 3 começa a abastecer-se. Mas a luta por água não para aí. Continuam a lutar pela instalação de torneiras no local. Finalmente, em julho (4 meses após a instalação na área) conseguem a colocação de um cano de torneiras. Agora pensar num modo de construir um reservatório de água, para ter água durante o dia.

4.8. A continuidade do Movimento No cotidiano agora é preciso a saber lidar com as informações contraditórias. Afinal, o Prefeito vai ou não tentar tirá-los de lá? Está em andamento um processo de Reintegração de 249

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pra tanta gente, com tão pouca água, é uma grande dificuldade.

Posse. Mas há também que verificar como fica o gripo 2 – Vila da Conquista, já que a Secretaria de Habitação parece estar pressionando a remoção dos moradores para a nova área. Mas os moradores de Vila da Conquista, sabem que, para proteger os companheiros, é importante que permaneçam na área até o dia 27 de junho. Após um ano e um dia de ocupação, não é mais possível obter liminar para Reintegração de Posse. Este prazo já passou. Agora é lutar para ir para o terreno definitivo, pois estão cansados da vida sem água. Mas as máquinas da Prefeitura param de fazer terraplanagem, o que exige novas mobilizações e idas a Prefeitura. As formas de atuação do Poder Público não param aí. Logo após o despejo e a realocação dos moradores no Jardim conceição, o Prefeito distribui um “panfleto” explicando à todos moradores da cidade que a: “Integridade e o futuro da cidade estão ameaçados. Políticos e eleitoreiros... aproveiando-se da miséria alheia, estão incentivando, promovendo e coordenando a invasão em todas as áreas livres de Osasco e até de alguns terrenos particulares... transformando nossa cidade em uma imensa favela... inviabilizando espaço – para sempre – a construção de novas creches, escolas, postos de saúde, etc.”.

Confirma-se o que o movimento temia. Acabam sendo culpabilizados pela situação de insolvência da administração pública. Mas o panfleto não para aí, pede que a população fiscalize as áreas, pois: “Os cidadãos de Osasco – habitantes regulares e que cumprem os seus deveres e pagam seus tributos – têm o direito e reivindicar melhorias. E, nesse momento tem o dever de defender nossas áreas livres”.

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Ora, isto significa que os ocupantes de terra não são cidadãos. Isto significa dizer que os postos de saúde, escolas, creches, não estão sendo realizados por culpa dos que não pagam impostos, dos cidadãos de categoria inferior. Continua a parecer que já recebe, os que têm direito, um baixo salário que os permite uma condição de vida indigna. Além disso, ao culpabilizar o movimento de ocupação de terra: “Pois estão entravando o desenvolvimento do „Casa para Todos‟”, que, como já dito, é o projeto de „urbanização de favelas` reconhece como cidadãos os que já ocuparam uma área atribui-se-lhes o “status” de cidadão, sua situação de moradia, são considerados “marionetes” nas mãos de políticos eleitoreiros (vide panfleto no anexo).

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Têm, assim, os participantes dos movimentos, no seu cotidiano, além de garantir a sua sobrevivência, que lidar com a insegurança do lugar para morar. Procuram responder ao poder público, explicando, com um outro panfleto, aos moradores da cidade porque ocuparam terra para a moradia, tentando mostrar que quem faz política eleitoreira é o prefeito da cidade. Aprendem na prática que seu movimento é político, mas também, são obrigados a reconhecer que um documento assinado pelo prefeito da cidade tem muito mais força para convencer os demais cidadãos do que um panfleto assinado pelo movimento dos “sem-terra” (Vide panfleto do movimento em anexo). Ainda mais, descobrem que a prefeitura esperava resposta e, assim, no dia seguinte, recolocava nas ruas o panfleto já citado, parecendo que o panfleto do prefeito é resposta ao do movimento e não o contrário. Aos integrantes do movimento o prefeito garante que o panfleto estava dirigido ao pessoal da “Floriza”. Porém, os participantes do “Movimento Terra e Moradia” de Osasco sabem que é dirigido ao público da cidade em geral e que foi uma forma de dizer que não dialoga com movimentos que não estejam vinculados ao seu partido. É bom destacar que os padres da Igreja Católica estiveram reunidos com o prefeito, pressionando-o para atender as reivindicações dos grupos do “Movimento Terra e Moradia”, deixando explicito que apóiam este movimento e que um processo de reintegração de posse indicou a área do Jardim Conceição para ser ocupada, após o despejo. Isto significa uma tomada de posição em relação à ocupação de terras que estabelece explicitamente a forma de apoio colocada no documento da CNBB: “A luta pelo Solo Urbano” (CNBB - doc. já citado). Mas movimento continua sua luta cotidiana, na qual se incluem também reivindicações dirigidas à própria prefeitura. Quando em meados de julho as máquinas foram retiradas da gleba, os moradores de Vila da Conquista, estiveram no Paço Municipal, onde tiveram que forçar a entrada e o atendimento: “ficamos o dia todo lá na prefeitura, os banheiros foram fechados, não deixavam ninguém entrar” (Depoimentos). Ao final da tarde, foram finalmente atendidos, com a promessa de que as máquinas iam voltar logo e que em breve mudariam. Como foram “confundidos” com o grupo 3, a prefeitura solicitou que a sigla CAEMO fizesse novas ligações de água, que foram colocadas em um trecho mais próximo ao segundo grupo na área ou terra 3. E, assim, Vila da Conquista

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não seria bem vindo e a Igreja denunciaria, pois os padres são testemunhas de que o prefeito

permanece sem água. As medidas dúbias do poder público têm tornado os integrantes das áreas muito arredio e com disputas internas91. Enquanto isso, o abastecimento de água do grupo 3, é realizado na mina e nas torneiras recém-ligadas que quer pela localização quer pelo diâmetro do material que foi utilizado, tem tido água praticamente o dia todo. Mas tiveram, também, que impedir que as torneiras fossem colocadas em uma área que ficaria distante 600 metros das casas. Estão ainda fazendo as ligações de luz por conta própria, colocando postes e puxando os fios. Já que o poder público não se define, os proprietários moradores vão resolvendo de forma precária o abastecimento de luz e água, simplificando a vida cotidiana. Se o despejo provocou um baque no movimento como um todo, este tenta rearticular-se repensando suas formas de organização. Em que pese que na gleba do Jardim Conceição morem mais de 500 famílias, mantevese a organização em dois grupos: Vila da Conquista, com 279 famílias e Jardim Conceição 2, com 250 famílias. Embora tenha se tentado fazer um único grupo, os integrantes destas duas ocupações consideram que dadas as especificidades é necessário manter duas Comissões e as sedes de cada área. A união é dada pela participação na coordenação. No inicio de agosto, o prefeito faz uma visita a área e, promete não despejá-los, embora já tenha parecer favorável do juiz para a Liminar de Reintegração de Posse. Promete também incluí-los no Projeto de Urbanização da Gleba. Para acompanhar a elaboração do projeto, forma-se uma comissão de projeto. Embora contentes, consideram que esta vitória foi fruto da luta. Querem garantia de permanência com documentos assinados.

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4.9. É preciso que tudo mude (na aparência) para que tudo permaneça como está (na essência) (Lampeduzza in o Leopardo) A área de mais de 70.000m2 localizada no Jardim Veloso, agora de novo vazia, apresenta um nova aparência. Foi construído um muro, colocada uma placa indicando ser a área de propriedade particular e proibindo a entrada de estranhos. Foi também aberta uma grande “valeta”, separando o muro do passeio (calçada). A finalidade desta valeta é impedir que caminhões derrubem o muro e entrem na área. A lei que define que os proprietário de

91

Vide parte anterior sobre as disputas no Jardim Conceição 1.

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terrenos desocupados devam providenciar muro, limpeza do terreno e conservação do passeio público, está agora sendo cumprida. Na essência a terra continua vazia, permitindo que os proprietário apropriem-se da renda gerada pela produção social da cidade. Na essência,o poder público,não atua de modo a facilitar a organização dos movimentos que lutam por terra e moradia, pois, se assim fosse, tentar-se-ia colocar em prática o que estabelece a Constituição em vigor (de 1969) sobre a função social da propriedade. Agora é esperar que o Plano Diretor previsto na nova Constituição, defina se esta área está ou não em descompromisso com função social. Na essência a propriedade foi mantida intacta. Nada mudou. Mas na aparência é um novo lugar. O movimento de ocupação de terra, mesmo quando é despejado, (re)produz um novo espaço.O que antes era uma área inteiramente abandonada, agora é uma propriedade definida, cercada, murada. Mudou a aparência, o que deixa mais evidente a essência. Passa a ser mais visível o confronto da terra vazia com a proibição da entrada, terra sem gente, mas com o título de propriedade muito bem definido. Para os que de algum modo têm notícias obre o ocorrido há também mudanças na compreensão desta produção do espaço. No dia em que proprietário tomou contato com a telefonar, etc. Ao que tudo indicava havia uma certa proximidade de classe,ou pelo menos o interesse dos moradores em estarem mais próximos do poder. No entanto, após o despejo, estes moradores explicitam que foram contrários ao despejo. A questão colocada é que o terreno vazio é lugar de encontro de marginais: “agora vão ser protegidos pelo muro, agente tem muito medo, pois não se sabe o que pode acontecer atrás dos muros, na valeta pode aparecer gente morta”; “antigamente tinha a valeta, mas nós (os moradores do bairro) fomos jogando entulho para ir fechando, porque de vez em quando aparecia um „presunto‟” (Depoimento)

Não era possível, no primeiro momento, colocar-se a favor da ocupação, contra os proprietários das terras, mas com o tempo e após o convívio com os ocupantes, é possível compreender a questão do significado do espaço vazio: “Nos primeiros dias não sabia quem era, mas depois que agente conhece vê que todo mundo é trabalhador” (Depoimento). Esta

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ocupação, utilizou uma casa da vizinhança, de melhor aparência, como um lugar onde poderia

compreensão só possível porque, pelo menos durante um mês, tempo que durou a ocupação, mudou a configuração do bairro. Os movimentos ao produzirem um novo espaço de moradia, mesmo que não consigam fixar-se, produzem um novo espaço, um novo conhecimento sobre a cidade e sua produção. 5. O ENCONTRO DA IDENTIDADE

No percurso da luta para a obtenção de uma moradia constitui-se o “Movimento Terra e Moradia de Osasco” que hoje representa as 3 áreas de ocupação: “Esta Terra é Nossa” com 412 famílias – Jardim Piratininga; “Vila da Conquista” com 297 famílias no Jardim Conceição e Movimento “Jardim Conceição 2” com 250 famílias. Integram também o Movimento, 350 famílias que moram na Favela do Braço Morto, bem como, 32 famílias do grupo quatro. O grupo quatro, começou a reunir-se na época da ocupação do Jardim Veloso, pois como já dito, logo após a ocupação, formou-se um novo grupo de interessados de mais de 400 famílias. No entanto, o despejo provocou um desarticulação deste novo grupo e do apoio ao movimento, permanecendo organizadas apenas as famílias mencionadas. O grupo quatro continua a reunir-se contando com a participação dos integrantes do grupo de apoio. Havia uma proposta de incluir este grupo nas áreas onde foram instaladas as famílias, despejadas, ou seja, no Jardim Conceição 2. Mas, a experiência de Vila da Conquista, mostrou que importante ter todo um processo de constituição de sujeitos coletivos, de reivindicar uma solução do poder público, de esgotar todas as possibilidades, antes de ocupar uma área, para

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evitar que o movimento seja uma “banquinha de imobiliária”, pois o objetivo do movimento não é apenas o de que a população espoliada consiga um lugar para morar, mas também, que estes movimentos, deixem saldos políticos e organizativos. Que compreendam o processo de produção e consumo do espaço urbano. Que a esfera do cotidiano seja compreendida na esfera do político. Os integrantes do grupo de apoio consideraram inoportuno iniciar novos grupos de trabalho para a ocupação coletiva de terra, tendo em vista: a) a derrota sofrida com o despejo das famílias moradoras na área do Jardim Veloso. Além de ser uma derrota política, é também muito difícil ver os companheiros na rua, cansados, sem expectativa de conseguir um lugar 254

decente para morar; b) a necessidade de continuar um trabalho iniciado com estas famílias pois é preciso despender um duplo esforço para reconstruir os barracos, rediscutir a organização do movimento, mostrar as questões importantes, que no processo de luta pela permanência, ficara obscurecidas pelo cansaço; c) as dificuldades dos moradores de Vila da Conquista, onde as famílias que não passaram por todo o processo, acabaram não se integrando no movimento com um todo e a necessidade do grupo de apoio estar rediscutindo as questões da construção das unidades e dos grupos de vizinhança; d) a proximidade das eleições para vereadores e prefeito com o aumento de trabalho dos integrantes do grupo de apoio, pois como já dito, são militantes do Partido dos Trabalhadores. Além disso, um militante morador do Jardim Piratininga é candidato a vereador. Desse modo, os integrantes do “Movimento Terra e Moradia” optaram por continuar a solidificar nas área já ocupadas um trabalho mais efetivo de conscientização política. O “Movimento Terra e Moradia” organizou uma Coordenação Municipal, com representantes, eleitos, das três áreas ocupadas e do grupo de apoio. Ele integra-se a “União dos Movimentos de Moradia” da cidade de São Paulo e com a “Articulação Nacional do Solo Urbano”. participam das deliberações e discutem com outros movimentos as formas de lutas.

De início, pela necessidade socialmente determinadas, de buscar uma moradia digna, os integrantes do movimento organizam-se na busca de um lugar para morar. Constituem-se como grupo – sujeitos coletivos – e, na medida em que o processo de produção do urbano torna-se nítido, não apenas buscam resolver a sua situação de moradia, mas procuram difundir sua luta, os seus conhecimentos, ampliando o número de indivíduos que participam dos movimentos. Encontram, assim, uma identidade. Constituem-se como sujeitos coletivos que buscam a transformação da sociedade.

5.1. O vídeo: Movimento Terra e Moradia – Osasco

Além da importância que o vídeo possa ter para contar a história desse movimento para outros movimentos, quero ressaltar a forma como tem sido vivenciado nas áreas

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Na procura do lugar o encontro da identidade

Participam de manifestações com estes movimentos.

ocupadas “ver-se no vídeo”. Não apenas contam a sua historia, mas também “mostram” sua participação naquela história. Vêem-se e são vistos pelos companheiros de caminhada. Em geral, a emoção toma conta, dos que viveram a história, embora possam não aparecer no vídeo. Lembram-se em detalhes das assembléias, das reuniões, da polícia, etc. Até perguntam porque aquela parte não apareceu? Gostam de ver todas as fitas gravadas. Uma das músicas do vídeo foi gravada pelo Fernando e seu filho Fabio. Em dia de muita tensão, na espera da resposta do prefeito sobre a possibilidade de desapropriação da área, quando a Liminar de Posse da área do Jardim Veloso já havia sido concedida, alguém diz: “vamos cantar para „espairecer‟ e ao mesmo tempo fazer barulho para o prefeito atender a gente”. A música cantada pelo Fernando é incorporada ao vídeo do movimento; ela mostra um momento difícil – o processo de migração – mas, ao mesmo tempo, representou para o Fernando, para o Fabio, para mim e para os integrantes do movimento como um todo, uma nova experiência de vida:

“O urubu, que foi que disse a tu, que a tua vida lá no sul ia melhorá? O urubu eu tenho dó de ti, homem, é melhor tu não saí daqui do teu lugar. Tem muita gente que vive enganado, vive aperreado, pensando em riqueza. Eu vivo sozinho, mas vivo calado, eu não merecia, a minha fortaleza”. (Ludogério)

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O vídeo tem sido parte integrante de reuniões, de festas. Foi o ponto alto da festa de primeiro aniversário de Vila da Conquista, que significa a permanência. Para retirá-los agora, seria necessário um Processo de Reintegração de Posse. O vídeo mostrava todo o processo de luta para obtenção da moradia. Na véspera da ida do prefeito ao Jardim Conceição 2, em agosto de 1988, o vídeo foi passado várias vezes, para que todos pudessem assistir. Foi considerado pela Comissão e pelo apoio uma forma muito importante de resgatar a própria história vivida, a memória do movimento, pois a visita do prefeito poderia significar a possibilidade de permanência ou a luta por esta permanência. O que se observou na visita do prefeito era que não estavam empolgados com promessas. Comenta um morador da Vila da Conquista: 256

“Nem parece que eles ficaram contentes. Quando o prefeito falou para nós (em agosto de 1987), que a gente podia ficar, foi uma emoção só. Mas o povo daqui de baixo não sei não, parece mais frio”. (Depoimento)

É evidente que os moradores do Jardim Conceição 2 tiveram um processo de luta acirrado. Afinal, ocuparam uma área, lutaram pela permanência, foram despejados e passaram a ocupar esta nova área, já que estava com pedido de Liminar de Reintegração de Posse. Formaram-se como sujeitos coletivos nesse longo processo, no qual o prefeito não atendeu às suas reivindicações. O vídeo, assim, parece ter auxiliado no resgate da própria história. De lembrar quantas promessas não forma cumpridas e como foi a luta para obter uma moradia. Afinal a resistência, sintetizada no cotidiano da música: “Te entrega corisco, eu não me entrego não, só me entrego na morte de parabelo na mão” (Resistência: do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, cantada por Neusa Pinheiro no vídeo). Não só ver-se e ser visto é importante para os movimentos. Em todo o processo a imprensa de modo geral é presença que interessa aos movimentos. Mesmo sabendo que as certa garantia de não-violência. Os proprietários das terras ocupadas, em geral, não querem aparecer como mandantes de ato violentos. Como nem sempre a grande imprensa atende aos apelos dos movimentos, a própria filmagem, que deu origem ao vídeo do movimento, acabou significando esta garantia aos integrantes dos movimentos. Procurei neste capitulo, contar um pouco do desenrolar dos fatos que marcaram a ocupação das terras do movimento Terra e Moradia de Osasco. Há muitas historias vividas para contar, muitas historias de vida, que espero estejam contidas sinteticamente nestas paginas e no vídeo. Historia que mostra a resistência que caracteriza a vida cotidiana dos trabalhadores espoliados, que ganham maior visibilidade em momentos de conflito. É esta resistência cotidiana, é este conflito explicito, na luta pela moradia, que gesta, também um encontro de identidade. Identidade de classe em movimentos de classe. São manifestações de luta de classe.

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noticias nem sempre relatam fielmente os fatos, a presença de jornalistas, da televisão, dá uma

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Arlete Moysés Rodrigues As cidades capitalistas, nas quais se inclui a Metrópole Paulista, tem sido abordada, em geral, como um lugar de todos, ou seja, a produção e o consumo como dirigido aos cidadãos

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em geral. Na cidade, tida como de todos, é necessário pensar na “ordem e na disciplina”, na organização espacial citadina, definindo os compartimentos espaciais aos quais devem ter acesso os cidadãos. A segregação espacial urbana mostra os lugares aos quais os diferentes cidadãos podem ter acesso. Este acesso depende da classe ou parcela de classe a que permanecem. Não mais cidadãos em geral, mas definidos pela classe social a que pertencem. Há nas cidades capitalistas uma multitude de formas e processo de apropriação do espaço urbano, todas elas em conformidade com as normas impostas para o “bem estar comum” dos cidadãos em geral. Normas estas definidas pela propriedade capitalista dos meios de produção e da terra urbana, onde, parece, que cada um tem a justa remuneração pela sua contribuição à sociedade. Assim parece que cada um usufrui da cidade a qual tem direito. Os capitalistas, que parecem produzir sozinhos a cidade, têm o direito a usufruírem de uma cidade que conta com todos os equipamentos e meios de serviços coletivos, da mesma forma que os proprietários de terra e o capital financeiro. Os trabalhadores, que parecem ter nos salários a justa remuneração pelo trabalho, terão direito a usufruir de uma cidade equipada, ou não, dependendo de sua “contribuição” à salariais que permite, para alguns, ter acesso a essa cidade equipada mas, para a maioria, apenas usufruir de arremedos de cidade. Como o salário parece ser a justa remuneração pelo trabalho, o fato da maioria dos trabalhadores ganhar baixos salários (tabela 4) – mesmo que acima do limite estabelecido por lei como remuneração mínima necessária –, significa uma impossibilidade de ter supridas as necessidades básicas, entre as quais a habitação, o que parece ser responsabilidade, em primeiro lugar, do próprio trabalhador, pois este é considerado incapaz de obter pela sua “capacidade” um salário maior. Em segundo lugar, é responsabilidade do Estado, pois ao regulamentar as relações de trabalho, define o necessário para a sobrevivência – mesmo que irreal – do trabalhador. Mas como este salário é insuficiente, o Estado para suprir os baixos salários que ele mesmo definiu, tenta suprir parte das carências alimentares com a distribuição do leite – ticket do leite –; das carências de transporte – passe de ônibus para os trabalhadores de até 2 salários, pois pela lei, 259

Na procura do lugar o encontro da identidade

sociedade e portanto do seu salário. Ou seja, há uma divisão da classe trabalhadora por faixas

que este Estado mesmo definiu, o trabalhador deveria gastar apenas 6% do salário em transportes; das carências de moradia com a produção de habitação dita de interesse social; ou instituindo taxas mínimas de luz e água para os moradores das chamadas habitações subnormais, pois o preço cobrado por estes serviços, por este mesmo Estado, é considerado superior ao que estes trabalhadores podem pagar. Assim a responsabilidade do Estado parece uma doação aos incapazes de suprir suas “necessidades” básicas. O leite subsidiado é da mais baixa qualidade, as casas para atendimento da população de baixa renda são definidas em pequenos lotes, com qualidade construtiva de baixa durabilidade e resistência. Pois o trabalhador com o seu salário só parece merecer produtos de categoria inferior. Mas mesmo a estas unidades não tem acesso a maioria dos trabalhadores, como demonstram Nabil Bonduki e Maura Véras:

“De 1960 a 1985 formaram-se ou instalaram-se na Região Metropolitana da Grande São Paulo, cerca de 2,44 milhões de famílias, das quais 1,56 milhão apenas no Município de São Paulo: frente a tal magnitude a COHAB-SP, desde a sua criação até maio de 1985, havia entregue apenas 65.850 unidades, ou seja, menos de 3% do que seria necessário. Considerando que cerca de 67% das famílias da Grande São Paulo dispunham de rendimentos mensais até cinco salários mínimos, conclui-se que cerca de 1,61 milhão ficaram sem qualquer alternativa de habitação produzida com trabalho pago... De acordo com critérios do SFH, a COHAB-SP estabelece como requisitos para sua clientela uma série de procedimentos e documentos que poucos conseguem cumprir. Entre estes destaca-se pelo menos dois: renda e estabilidade no emprego. A própria instituição declarava que cerca de 50% das pessoas recebidas em postos de inscrição eram eliminados por apresentarem renda inferior ao exigido e a proporção dos efetivamente atendidos era de 2,6%. Este dado, por si, revela o quanto de direito à habitação inexiste entre nós; a política habitacional criada para atender a população de baixa renda, utiliza-se do critério de renda para eliminar os que necessitam de uma moradia popular.”

Arlete Moysés Rodrigues

(Bonduki, N. e Véras, M. 1986, p. 59)

Estes dados mostram com toda a clareza o discurso que se cria e recria em relação à atuação do Estado, pois mesmos aos lotes diminutos não é possível ter acesso. Mas de alguma maneira é preciso morar. Proliferam as soluções à margem – mas integrante – do uso do solo urbano. Aumentam o número de favelas, de cortiços e ocupações coletivas de terra. A luta pela garantia da terra ocupada, as lutas pela obtenção de água, de luz, de transporte, caracterizam-se por serem movimentos de classe. São manifestações da luta de classes que tentam obter o direito à cidadania.

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Nas ocupações coletivas de terra, o início do processo caracteriza-se pela procura de um lugar para morar. O termo lugar é utilizado pelos movimentos como sinônimo de casa, de terreno para construir uma casa. Mas também deve ser compreendido no sentido de que lugar não é um terreno em si, não é uma gleba não loteada em si, mas é um elemento da totalidade concreta na produção espacial, como diz Marx: é a síntese de múltiplas determinações. Na busca de uma solução para o problema de moradia, inicia-se um processo de compreensão da produção espacial. Esta compreensão é variável de um indivíduo para outro, caracterizando as condições subjetivas da condição de classe. Esta compreensão é resultado da troca de experiências, como também da interferência dos grupos de apoio aos movimentos, que ajudam a pensar a condição de vida dos cidadãos que não conseguem pagar o aluguel ou comprar uma casa/terreno e que, de tão espoliados, não tem condições objetivas de refletir sobre suas condições objetivas e subjetivas de existência. O processo organizativo tem como objetivo encontrar uma forma adequada de moradia. Como o discurso oficial atribui grande importância à casa própria; a forma considerada adequada pelos movimentos para obter uma moradia é a luta pela casa própria. Como o discurso oficial atribui ao Estado suprir as necessidades de moradia da população de dirigem para conseguir seu objetivo. Aí se explicita a contradição entre o que é incentivado teoricamente e o atendimento real. Ao mesmo tempo que se incentiva a aquisição da casa própria, não há produção para quem não pode pagar. Os salários não conseguem suprir as necessidades de alimentação, de saúde, de transportes, nem do aluguel, quanto mais a da compra da moradia. A luta pela casa própria tem deixado mais evidente aos movimentos esta contradição. Tem sido, também, uma forma de resistência, uma forma de vencer um obstáculo imposto pelo capital. Dirigir-se ao Estado e não ser atendido permite aos movimentos compreender que o Estado não está acima das classes como se apregoa. Permite também iniciar um processo de compreensão sobre de onde vem e para onde vai o dinheiro. Analisar a criação do BNH, o uso dos recursos do FGTS, dos impostos em geral, é uma forma de compreender a produção do

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Na procura do lugar o encontro da identidade

baixa renda – através de financiamento da casa própria –, é ao Estado que os movimentos se

espaço. Permite também analisar quais as áreas das cidades equipadas e não equipadas com os serviços públicos e quem mora em cada um destes lugares. É possível também, neste processo, perceber qual é o lugar onde devem concentrar-se para reivindicar. Passa-se do bairro, da Igreja para a sede do poder local – Prefeitura e Secretaria de Estado. São assim os “Edifícios Públicos” conhecidos. E os movimentos ganham visibilidade quando se dirigem a estes espaços públicos. Como, via de regra, estes espaços públicos são privatizados, são barrados ao público em geral, no processo de organização, os movimentos descobrem formas de pressão para que seus representantes sejam atendidos. Publiciza-se o que de direito deveria ser público, mas que está privatizado. Procurar uma área para ocupar significa compreender a cidade. Ver que – ao lado de amplas áreas vazias, com asfalto, ônibus, luz, água –, há outras áreas distantes em que gastamse horas nos ônibus para chegar em lugares sem água, luz, asfalto, etc. Significa apropriar-se de um conhecimento sobre a produção da cidade. Significa também conhecer os mecanismos jurídicos que regem a propriedade da terra. As ocupações de terra têm maior visibilidade política do que as que ocorrem cotidianamente nas favelas, pois mostram uma organização anterior. A visibilidade é constatável pela grande procura que ocorre logo no dia seguinte a uma ocupação. A visibilidade é constatável pelo seu oposto: nas noticias de rádio e TV, a última palavra é dada ao poder público que sempre “solucionará o caso”, resguardando o direito de propriedade. A visibilidade é constatável pela ênfase dada à desocupação, quando esta ocorre. Uma ocupação conta uma história de um processo organizativo para aqueles que estão

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na mesma situação. As ocupações coletivas de terra permitem, pela sua visibilidade, romper com a visão de “povo” amorfo e facilmente cooptável. A resistência cotidiana individual não adquire a mesma visibilidade da coletiva. Os movimentos de ocupação coletiva de terra não tem sido cooptáveis, pois torná-los aliados do poder constituído é premiar os que se colocam contra as normas institucionais que regem o direito ao uso do solo. O que tem ocorrido é o poder público tentar capturar, como campanha eleitoral, a possibilidade de atender às reivindicações dos movimentos, sem prejuízo de atender aos demais moradores.

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Apropriar-se da cidade no processo de ocupação coletiva de terra, permite que a defesa da propriedade, pelos proprietários de terra e pelo poder público, torne-se mais explicita. Fica mais evidente a contradição entre o que se diz sobre a função social da propriedade e o que efetivamente aparece. Em geral, após um despejo, que conta com grande aparato policial – o poder público defendendo a propriedade privada – os proprietários tomam posse da mesma, cercam a área, passam a cumprir a legislação. Torna-se mais evidente a propriedade vazia, com dono, enquanto há muita gente sem terra. Para a maioria dos participantes dos movimentos de ocupação coletiva de terra muda a dimensão da cidade. Passam a ter uma certa consciência de formas de produzir e consumir as cidades. Verificam que como eles há uma infinidade de outros moradores espoliados. Gesta se uma mudança, cria-se um possível repensar da condição de classe. Cria-se uma identidade nesse processo. Embora a manifestação apareça como fragmentada em um momento de tempo, há todo um processo de gestação desse momento. Questionam-se as formas estabelecidas a partir da noção de justiça social, pois há direitos que estão sendo negados aos trabalhadores. Evidentemente não resolve a situação de moradia digna para os cidadãos em geral. Mesmo, quando isso ocorre, são casas localizadas em arremedos de cidades, onde é preciso continuar a luta, para obter os equipamentos e meios de consumo coletivo. Esta identidade, na procura do lugar para morar tem mostrado que, para adquirir os direitos reais de cidadania, é necessário compreender que a luta na esfera do consumo é parte da luta na esfera da produção. Os movimentos de ocupação de terra têm considerado que, muitas vezes, o que conseguem obter na luta salarial é consumido rapidamente na moradia, vestimenta, alimentação; portanto, torna-se necessário compreender que as lutas da esfera do consumo e da produção inserem-se na luta pelo direito à cidadania. No processo de discussão dos problemas de moradia, que compreendem a inserção do trabalhador na produção e consumo, gesta - se um processo de compreensão da produção do espaço. Cria-se uma identidade de luta que amplia o conhecimento da produção, da distribuição. Identidade de grupo, pois em cada uma das três áreas ocupadas em Osasco,

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Na procura do lugar o encontro da identidade

Mesmo para os grupos participantes das ocupações a casa própria raramente tem sido obtida.

explicitam-se lideranças que, eleitas passam a representar o grupo como um todo. Explicita-se uma luta comum, um pertencer a uma classe que luta pelo direito à moradia. O Movimento “Terra e Moradia” de Osasco deixa evidente que o fato de conseguir obter um lugar para morar não faz esmorecer a luta. Pois, assim que os integrantes da ocupação do Jardim Piratininga, obtiveram sua vitória e puderam permanecer na gleba, foram participar como apoio para a Vila da Conquista. A ocupação do grupo 3 – Jardim Veloso, que despejado, teve que mudar para o Jardim Conceição 2, contou com o apoio dos dois grupos anteriores. É uma demonstração de encontro de identidade na procura do lugar para morar. Caracterizam a constituição de sujeitos coletivos, que não ocorre em um passe de mágica, mas em um longo processo de resistência de vida, de organização, de luta que tive o privilegio de ver acontecer e participar enquanto geógrafa, tentando contribuir para tornar mais evidente as contradições da produção e do consumo do espaço urbano. Sem considerar ser este um único caminho de pesquisa, encontrei nesse processo também a minha identidade. O conhecimento científico, para mim, só tem sentido se colocado à disposição da classe trabalhadora, para contribuir, quem sabe, para que os grilhões sejam rompidos.

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APÊNDICE – Fotos

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c) Movimento: “Esta Terra é Nossa” – março/87. são moradores do Conjunto (INOCOOP) que virão pedidos de retirada.

d) Movimento: “Vila da Conquista” – junho/87. Trabalha-se noite e dia para construir a casa e a cidade.

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e) Acesso à Vila da Conquista – casas vizinhas tão ou mais precárias que os barracos (julho/87).

Na procura do lugar o encontro da identidade

f) J. Conceição – a auto construção predomina em toda a vizinhança (julho/87).

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g)Jardim Veloso: Igreja lugar encontro. Construção tão precária como as moradias (fevereiro/88).

g) Jardim Veloso: moradias auto-construídas; área vizinha à ocupação. (fevereiro/88)

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i) É preciso resistir. Os integrantes do movimento “Terra e Moradia” impedem que o trator derrube os barracos. (30/01/88)

j) A retirada dos ocupantes em 03/03/88 com forte aparato policial.

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k) Só sobrou o terreno cimentado (03/03/88)

l) o muro depois do despejo dos ocupantes, (08/03/88), garantia da propriedade.

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m) É preciso que tudo mude (na aparência) para que tudo fique como está (na essência) (08/03/88). Terra vazia sem gente morando.

n) Muita gente morando sem terra (04/03/88). Jardim Conceição.

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o) As mudanças e os despejos sucessivos acabam com os moveis, sempre muito pobres (04/03/88). Despejo: Jardim Veloso.

p) Vila da Conquista/Jardim Conceição 2 – Quando tem água de dia a fila é grande (agosto/88)

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q) Assembléias, reuniões: o encontro de iguais na luta para obter a moradia.

Na procura do lugar o encontro da identidade

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Na procura do lugar o encontro da identidade

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285

Arlete Moysés Rodrigues

ANEXOS

286

ANEXO I PESQUISA DE CAMPO

Após um levantamento de áreas, visitas, vistorias, contactos com moradores e com lideranças foram pesquisados os moradores das seguintes favelas e áreas vizinhas: FAVELA JAQUELINE – Localizada na Administração Regional do Butantã, Município de São Paulo – acesso: Rodovia Raposo Tavares Km. 14. Em 1980, segundo o IBGE, tinha 266 barracos, ocupando um terreno de propriedade

A vizinhança imediata é constituída de casas de alvenaria, construídas no processo de mutirão e bastante precárias, que por sua vez é vizinha de um “condomínio fechado” de alto padrão construtivo, uma espécie de “Portão de Entrada” na rodovia. Os moradores da favela tem um nível de organização incipiente. Fiz várias entrevistas com moradores, contatos com vizinhança e com as lideranças locais. Foram marcadas várias reuniões com a Diretoria da Associação da Favela do Jardim Jaqueline, mas os diretores não compareceram. A pesquisa foi realizada com os moradores da favela e da vizinhança imediata.

FAVELA DO SAPÉ – Localizada na Administração Regional do Butantã em São Paulo – Rio Pequeno – em 1980, segundo o IBGE, tinha 860 barracos, e em 1987 já contava com mais de 1000 barracos. A área é de propriedade da Prefeitura Municipal de São Paulo. 287

Na procura do lugar o encontro da identidade

particular. Em 1987, segundo os moradores, contavam com mais de 600 barracos.

Nesta favela, no início da década de 80, foi executado um programa de urbanização com verbas do FUNAPS. Com relação ao nível de organização, conta com lideranças integrantes do Movimento de Defesa do Favelado – MDF –, porém, com pouca participação dos moradores nas discussões mais amplas. Os contatos e as entrevistas foram realizadas com lideranças e com os moradores para debater a Iniciativa Popular na Reforma Urbana, bem como discutir o processo de urbanização que já havia sido realizado na área. O projeto de urbanização, realizado em 1980, não é sequer lembrado pelos moradores, o que é compreensível pois o que foi considerado um projeto de urbanização: construção de escadarias nas vielas, arruamento, colocação de luz domiciliar e torneiras coletivas, escoramento – com estacas – do córrego, foi vencido pelo tempo. Já não é mais visível. A vizinhança imediata é constituída de casas de alvenaria, onde apenas parcialmente é ainda visível o processo de autoconstrução que caracterizou a ocupação do bairro.

FAVELA SÃO JORGE POSTO/VILA OPERÁRIA – Localizada na Administração Regional do Butantã em São Paulo – Jardim Arpoador – com 250 barracos em área da Prefeitura Municipal. As unidades, em sua maior parte, estão quase que totalmente construídas em alvenaria. Não se consideram favela, mas uma Vila. Em 1980, foi executado um projeto de urbanização,

Arlete Moysés Rodrigues

com verba da FUNAPS, que contou com um remanejamento de barracos e reconstrução dos mesmos em alvenaria. A área ocupada pela favela, constava do Projeto de Desafetação e Direito e Uso de 1984. A pesquisa foi realizada com os moradores, com as lideranças femininas e com a Diretoria da Associação de Moradores.

MOVIMENTO TERRA E MORADIA DE OSASCO

288

Osasco – Município vizinho da Grande São Paulo e parte integrante da Metrópole, conta com vários movimentos de ocupação de terra. Foi analisado o Movimento Terra e Moradia de Osasco.

GRUPO 1 – “Esta Terra é Nossa” – 412 famílias – Jardim Piratininga. GRUPO 2 – “Vila da Conquista” – 297 famílias – Jardim Conceição GRUPO 3 – “Jardim Conceição 2” – cerca de 250 famílias.

A pesquisa contou com entrevistas, acompanhando de reuniões, participação no grupo de apoio ao movimento. Produção do vídeo – Movimento Terra e Moradia, co-autoria com vert-vídeo: Nelson Akio Fujimoto. Filmagens do Padre Xavier, Nelson Fujimoto e Kozo Fujimoto.

Na procura do lugar o encontro da identidade

ENTREVISTAS com lideranças dos Movimentos:

Diadema – Movimento de Favelas Guarulhos – Movimento de Favelas Campinas – Assembléia do Povo Movimento de Defesa dos Favelados – MDF Movimento Unificado de Favelas, Cortiços e PROMORAR – MUF CORAFASP – Conselho Coordenador de Favelas de São Paulo Movimento dos Loteamentos Clandestinos em São Paulo

PESQUISA EM JORNAIS E REVISTAS

289

Realizada no Centro Pastoral Vergueiro que conta com um arquivo especializado em movimentos sociais urbanos.

TABELA 1 – Vencimento do contrato – verbal ou escrito por valor do Aluguel.

500 a 999 Não tem contrato.......... 3 Vencido......................... 1 Vence: dez/87, jan/88.. Vence fev/88, março/88.. 3 Vence abril em diante..... 1 8 TOTAL........................... (8%)

1.000 a 1.999 9 4 4 2 19 (19%)

2.000 a 3.000 11 7 12 6 3 39 (39%)

3.000 a 4.000 a + de 4.000 5.000 5.000 4 1 8 2 2 3 2 1 7 1 1 2 23 8 3 (3%) (23%) (8%)

TOTAL 28 (28%) 24 (24%) 22(22%) 19 (19%) 7 (7%) 100 (100%)

Fonte: Pesquisa de campo – nov./87.

Tabela 2 – Valor do Aluguel por número de cômodos

Arlete Moysés Rodrigues

Nº 500 1000 1500 2000 2500 3000 3500 4000 4500 5000 Mais Camadas a a a a a a a a a a de TOTAL 999 1499 1999 2499 2999 3499 3999 4499 4999 5999 6000 21 1 1 3 2 7 4 1 1 1 1 (17,4) 67 2 2 8 4 22 10 12 7 2 (55,4) 26 3 1 5 1 3 5 1 5 4 1 (21,5) 4 1 2 2 5 (4,1) 5 2 - 2 (1,6) 3 14 12 30 17 20 9 7 5 1 3 TOTAL 121 (2,5) (11,6) (9,9) (24,9) (14,0) (16,5) (7,4) (5,8) (4,1) (0,8) (2,5) Fonte: Pesquisa de campo – nov./88. Salário Mínimo em nov. /87 = Cz$ 2.200,00.

290

Tabela 3 – Número de Casas no lote e Número de Cômodos.

CASAS NO LOTE 4 5

Nº de cômodos

1

2

3

1

2

5

5

3

2

9

12

14

3

4

5

4 5

2 2 19 (17,6)

1 23 (21,3)

TOTAL

6

7

8

3

3

-

-

3

10

4

3

4

8

2

2

1

-

-

1 28 (25,9)

-

15 (13,9)

-

-

-

8 (7,4)

8 (7,4) 3 (2,8) 4 (3,7)

TOTAL % 21 (19,4) 59 (54,6) 22 (20,4) 4 (3,7) 2 (1,9) 108

Fonte: Pesquisa de campo – Nov./88.

Tabela 6 – Jardim Conceição 2 – Situação de trabalho de menores de 18 anos SITUAÇAO DE TRABALHO TRABALHA NÃO TRABALHA 43 (97,7) 1 (2,3) 16 (64,0) 9 (36,0) 21 (65,6) 11 (34,4) 80 (79,2) 21 (20,8)

TOTAL 44 25 32 101

Fonte: Cadastro do Movimento – Jardim Conceição 2 – abril/maio, 1988. Obs.: 1) Muito embora o início do trabalho remunerado seja para a maioria na faixa dos 14 anos, muitos não estavam trabalhando na data do cadastro, pois haviam perdido o emprego por terem faltado muito na época da desocupação/despejo. Por outro lado, para as mulheres nessa faixa de idade, a tendência é ficar cuidando da casa/irmãos, enquanto os pais saem para o trabalho. 2) Dos que estavam trabalhando nesta data: 63,6% tinha registro em carteira. 291

Na procura do lugar o encontro da identidade

IDADE (anos) 11 a 13 14 a 16 17 a 18 TOTAL

Tabela 4 – Cadastro : ocupantes do Jardim Veloso – Salário Mensal e proposta de prestação para a compra. SALÁRIO MENSAL Valor Famílias % S/ renda 5 3,0 Até 13 8,0 Cz$5.000,00 De 5.000,00 a 82 50,0 Cz$10.000,00 De 10.000,00 a 43 26,2 Cz$15.000,00 De 15.000,00 a 9 5,5 Cz$20.000,00 + de 12 7,3 Cz$20.000,00 TOTAL 164 100,0

Valor Até Cz$ 1.000,00 De 1.000,00 a Cz$2.000,00 + de Cz$2.000,00

PRESTAÇÃO Famílias 13

% 8,0

20

12,2

57

34,7

74

45,1

TOTAL 164 100,0 Média pagamento mensal – Cz$2.250,00

Fonte: Pesquisa de campo/área ocupada – fevereiro de 1988 – SM Cz$5.280,00. Tabela 5 – Cadastro: Famílias interessadas/moradoras da região – Salário Mensal e proposta de prestação.

Arlete Moysés Rodrigues

SALÁRIO MENSAL Valor Famílias S/ 1 rendimento Até Cz$5.000 De 5.000 a Cz$10.000 De 10.000 a Cz$15.000 + de Cz$15.000 TOTAL

%

Valor

PRESTAÇÃO Famílias

%

0,7

Até Cz$1.000

40

29,0

50

36,2

48

34,8

5

3,7

39

28,2

45

32,6

48

34,8

138

100,0

De 1.000 a Cz$2.000 + de Cz$2.000

Média Pagamento Mensal Cz$2.250,00

Fonte: Pesquisa de campo – Igreja do Jardim Veloso – fevereiro de 1988 – SM Cz$5.280,00.

292

Tabela 7 – Jardim Conceição 2 – Escolaridade por faixa de idade

IDADE (anos) Até 1 De 2 a 4 5 a 7,5 7 a 10 11 a 13 14 a 16 17 a 18 TOTAL

ESCOLARIDADE Creche e Pré-escola 2 2 (0,5)

1º a 4º série 5º a 8º série 12 37 23 3 1 76 (20,5)

1 5 3 9 (2,4)

Colegial

Não Estuda

5 5 (1,4)

43 88 60 28 20 17 23 279 (75,2)

TOTAL 43 (11,6) 88 (23,7) 74 (20,0) 65 (17,5) 44 (11,9) 25 (6,7) 32 (8,6) 371 (100,0)

Fonte: Cadastro do Movimento – Jardim Conceição 2 – abril/maio, 1988. Obs.: 1) Há um grande número de crianças (55,3%) na faixa de até 6,5 anos de idade, o que mostra famílias em expansão. 2) Na faixa de 7 a 13 anos, embora seja significativo o número de crianças que estudam, (56%), há também uma grande parcela que não estava freqüentando a escola.

Na procura do lugar o encontro da identidade

Tabela 8: Jardim Conceição 2 – Renda Familiar e Número de pessoas por família 293

SALÁRIOS (Cz$) Até 5.000 De 5.000 a 8.000 De 8.000 a 10.000 De 10.000 a 12.000 De 12.000 a 14.000 De 14.000 a 16.000 De 16.000 a 18.000 De 18.000 a 20.000 Mais de 20.000 Sub-total S/renda ou s/inf. TOTAL

1 2 5

Nº DE PESSOAS NA FAMÍLIA 2 3 4 5 6 7 2 1 4 1 1 2 4 2 4 1 1

8 1 2

12 (7,0) 21 (12,2)

3

2

1

3

3

2

-

-

14 (8,1)

7

4

3

6

7

2

1

2

32 (18,6)

5

2

7

1

3

-

-

-

18 (10,5)

5

1

8

2

1

1

1

-

19 (11,1)

6

1

2

3

-

-

-

-

16 (9,3)

4

1

4

3

2

-

-

-

14 (8,1)

4

3

6

7

5

1

-

-

26 (15,1)

41

18

36

31

30

7

4

5

172 (100,0)

7

5

13

5

6

6

1

2

45

48 23 49 36 36 13 5 7 (22,1) (10,6) (22,6) (16,6) (16,6) (6,0) (2,3) (3,2)

TOTAL

217

Fonte: Cadastro – Jardim Conceição 2.

Arlete Moysés Rodrigues Tabela 9: Jardim Conceição 2 – Renda Familiar por número de pessoas que trabalham

294

SALÁRIO FAMILIAR (CZ$) Até 5.000 De 5.000 a 8.000 De 8.000 a 10.000 De 10.000 a 12.000 De 12.000 a 14.000 De 14.000 a 16.000 De 16.000 a 18.000 De 18.000 a 20.000 + de 20.000 TOTAL

QUANTAS PESSOAS TRABALHAM 1 2 11 22 16 -

TOTAL 11 (6,4) 22 (12,8) 16 (9,3)

30

-

30 (17,4)

16

-

16 (9,3)

16

2

18 (10,5)

15

3

18 (10,5)

11

-

11 (6,4)

25 162 (94,2)

5 10 (5,8)

30 (17,4) 172 (100,0)

Fonte: Cadastro – Jardim Conceição 2 – pesquisa – abril/maio de 1988. (Observações válidas para as tabelas 8 e 9) Obs.: 1) O salário mínimo do mês de abril era de Cz$7.260,00, de maio Cz$8.712,00 e o de 2) 67,5% das famílias ganhavam até dois salários mínimos e a totalidade até 3 salários mínimos. 3) As famílias são, em geral, numerosas, onde trabalha fora na sua grande maioria uma pessoa. Os filhos são em geral pequenos e as mulheres ficam em casa para cuidar deles (vide tabela 8). 4) Há um grande número de pessoas sós, que correspondem, em grande parte, aos que ocupam uma terra sozinho e depois a família muda. (Observações válidas para as tabelas 8 e 9)

Tabela 10: Jardim Conceição 2 – Idade/sexo dos chefes

IDADE (anos) De 18 a 22 anos De 23 a 27 anos

SEXO H 13 37

M 22 31

TOTAL 35 (11,4) 68 (22,1) 295

Na procura do lugar o encontro da identidade

junho Cz$10.368,00.

De 28 a 32 anos De 33 a 37 anos De 38 a 43 anos De 43 a 47 anos Mais de 48 anos TOTAL

44 22 19 6 43 184

21 22 18 7 3 124

65 (21,10) 44 (14,3) 37 (12,0) 13 (4,2) 46 (14,9) 308 (100,0)

Fonte: Cadastro do movimento – Jardim Conceição 2. Obs.: 1) Os chefes de famílias apresentam a seguinte composição: Casal: 45,8% Homem: 9,12% Mulher: 24,4% Pessoa só (homens ou mulheres): 20,6% 2) A faixa de idade da maioria dos chefes de família, situa-se no que se denomina famílias jovens.

Arlete Moysés Rodrigues

Tabela 11: Jardim Conceição 2 – Local de Nascimento dos chefes, por Unidade da Federação. ESTADO Amazonas/Pará Piauí Maranhão Rio Grande do Norte

CHEFES DE FAMÍLIA NA % 2 0,7 45 15,2 1 0,3 9 3,0 296

Paraíba Pernambuco Alagoas Sergipe Ceará Bahia Minas Gerais Espírito Santo Paraná e Rio Grande do Sul Goiás Brasília São Paulo TOTAL S/ informação

5 41 9 4 25 61 25 2

1,7 13,9 3,0 1,4 8,4 20,6 8,4 0,7

15

5,1

2 1 49 296 28

0,7 0,4 16,5 100,0

Cadastro do Movimento – Jardim Conceição 2. Obs.: Não há nenhum caso de migração direta para a área ocupada, no entanto a maioria é proveniente dos Estados do Nordeste.

Na procura do lugar o encontro da identidade

297

Arlete Moysés Rodrigues -

Material distribuído pela Prefeitura de Osasco em 05/03/88 logo após o despejo da área do Jardim Veloso e a “mudança” para o Jardim Conceição. Redistribuído após 10/03/88. 298

Na procura do lugar o encontro da identidade

-

Material distribuído pelo movimento em 10/03/88.

299

Arlete Moysés Rodrigues

-

Carta entregue pelo Clube de Mães Dona Zilda à esta pesquisadora.

300

CARTA ABERTA AOS MORADORES DO JARDIM VELOSO Somos mais ou menos 200 famílias que não suportando o sufoco do aumento do aluguel, que já atingiu o patamar de 540% não estamos mais conseguindo sobreviver. Ou pagamos o aluguel e morremos de fome, ou nos alimentamos e ficamos na rua. Para não morrer de fome, muitos de nós já fomos despejados e outros estão para ser, por não poder pagar o aluguel. Diante deste sofrimento, resolvemos criar coragem e nos unir para conseguir um canto para morar; por isso, estamos dentro dessa terra que há muito tempo está desabitada e portanto inutilizada. Somos trabalhadores que aqui chegamos de surpresa e como seus novos vizinhos estamos nos apresentando. Com muita dificuldade viemos para este chão com nossos filhos, na esperança de poder criá-los com um pouco mais de dignidade. uma vila bem organizada de boa pra se viver. Como vocês sabem, entramos na terra com a cara e a coragem, e, nos primeiros dias, até acontecer a negociação da terra, nossas condições são totalmente precárias; por isso, além de nos apresentarmos; estamos pedindo sua compreensão e apoio. Estamos sem água, luz e até alimentos podem faltar. Agradecemos a sua atenção e esperamos contar com sua solidariedade.

COMISSÃO

DO

MOVIMENTO

DOS SEM TERRA-OSASCO.

-

Carta entregue aos vizinhos da área ocupada.

301

Na procura do lugar o encontro da identidade

Os barracos de madeira são provisórios, pois nossa luta é para construirmos