Introdução à Epistemologia da Psicologia

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T@íbhoteta jf reullíana

LANÇAMENTOS DA IMAGO EDITORA Dicionário Crítico de Psicanálise, de Charles Rycroft Introdução à Obra de Melanie Klein, de Hanna Segal O Brincar e a Realidade, de D. W. Winnicott Conferências Brasileiras 1- São Paulo 1973, de W. R. Bion Autismo e Psicose Infantil, de Frances Tustin A Possessão da Mente, de William Sargant Sexualidade e Agressividade na Maturação: Novas Direções, de H. Sydney Klein ( org) Narrativa da Análise de Uma Criança, de Mela�ie Klein

INTRODUÇÃO À EPISUMOlOCIA DA PSICOlOCI4 Com a presente lnt1·odução à Epis­ temologia da Psicologia, o autor, pro­ fessor de epistemologia e de filosofia das ciências na PU C do Ri.1J de J a­ neiro, recém-doutorado na França com uma tese sobt·e A Epistemologia das Relações lntm·disciplinares nas Ciências do Homem, faz uma análise histórico-crítica do "fundo de saber", isto é do "solo" ou "horizonte'' epis­ temol gicos sobre o qual se constitui a psicologia, enquanto essa disciplina sempre reivindicou o estatuto de cien­ tificidade. Assim, o que pretende o autor é mostrar as dorninâncias histó­ ricas que levaram a psicologia a ace­ der ao estatuto de saber objetivo. Ao mesmo tempo, porém, faz uma crítica aos critérios de cientificidade adota­ dos por essa disciplina. A psicobgia tentou encontrar numa eficácia d-is­

Ó

cutível a justificação de seu earáter objetivo. Eficácia discutível, porque mal fundada, seu estatuto estando ba­ seado mais num "empirismo comp5sito para fins de ensino". Portanto, trata-se, de fato, de uma epistemologia histórica da psk·olo­ gia: sem referência à crítica episte­ mológica, o discurso psicológico seria uma meditação sobre o vazio; e sem relação à história, a epistemologia seria uma réplica inútil da psicologia. A análise do conceito de psicologia, coloca em questão a existência do psicólogo: se este não sabe quem ele é, não saberá o que está fazendo; E aquilo que o psicólogo procura fazer, é uma ciência. Mas ciência de quê? Ao converter-se em ciência, a psico­ logia se esquece do homem. E ao se tornar humana, corre o risco de não ser aceita corno ciência. Talvez sua "desgraça" consista em ter que es­

tudar um "objeto" que é um "sujeito", e um sujf�ito que fala! O autor mostra que a psicologia científica e experimental do séc.ulo XIX, com suas fabulosas conquistas técnicas, está em vias de nos brindar, como "modelo humano", com um sim­ ples robô mais ou menos aperfeiçoa­ do. Não nega em absoluto o valor e a utilidade social da psicologia. Ten­ ta apenas questioná-la. Ela corre o risco de ser absorvida por aqueles que dela se utilizam e explorant: é utilizada muitas vezes, não mais em

função de suas ex1gencias próprias, mas das necessidades sociais ideolo­ gicamente condicionadas. Talvez seja por isso que, "de muitos trabalhos psicológicos, podemos ter a impres­ são de que misturam, a uma filoso­ fia sem rigor, uma ética sem exi­ gência e uma medicina sem con­ trole" ( Canguilhem). O que as instituições esperam da psicologia, é que ela adapte e integre cada vez mais o indivíduo à socie­ dade: adaptação ao trabalho, esti­ mulante da produção e da venda, da publicidade; adaptação e integração física, psicológica e espiritual do in ­ divíduo ao seu meio, do louco ao hospital, do mutilado em vista da re­ educação, da criança ao programa. etc. E na medida em que planifica o meio humano, corre o risco de se tor­ nar um anexo ou um apêndice das ciências do meio ambiente, um capí­ tulo da ecologia. 01·a, nessa perspec­ tiva ecológica, seu êxito é inegável, pois dispõe de recursos técnicos para readaptar o indivíduo às estruturas tecnológicas, científicas, econômicas e culturais de nossa sociedade. Não se aplicariam aos psicólogos essas palavras de Nietzsche: "Vocês são seres frios, que se sentem tão en­ couraçados contra a paixão e a qui­ mera; bem que gostariam que sua doutrina se tornasse um adorno e um objeto de orgulho! . Vocês se rotulam de realistas e dão a entender que o mundo é verdadeiramente feito tal co­ mo ele lhes aparece"? Talvez não fos­ se exagero dizel·, com Althusser, que certas evidências que servem de fun­ damlmtos a numerosas disciplinas das técnicas humanas de adaptação, nada mais são do que "oomodidades teóri­ cas para seus autores e comodidades práticas pa�·a sua clientela". É por isso que o filósofo tem o direito de colocar à psicologia a seguinte ques ­

tão: diga-me para onde você tende, para que eu saiba o que você é. E Canguilhem diz que o filósofo pode ainda dirigir-se ao psicólogo sob a forma de um conselho de orientação: "quando deixamos a Sorbonne peia rua Saint-Jacques, podemos subir ou descer; se subimos, aproximamo-nos do Panthéon, que é o conservatório de alguns homens ilustres, mas, se descemos, dirigimo-nos certamente para o Quartel de Policia".

JAYME SAL,OM1.0

SUMÁRIO Introdução

I.

CONSTITUIÇÃO DAS CI:f:NCIAS HUMANAS 1. 2. 3.

li.

A Psicologia Introspectiva Reflexologia e Behaviorismo De Comte ao Behaviorismo

BEHAVIORISMO EM QUESTÃO 1. 2. 3.

V.

Especialidade da Psicologia Experimental O Clima Positivista de seu Nascimento O Estatuto Científico

BEHAVIORISMO E INTROSPECÇÃO 1. 2. 3.

IV.

O Problema da Cientificidade Impacto d a Ciência Moderna A Emergência das Ciências Humanas

A Psicologia Fenomenológica A Psicologia Psicanalítica A Objetividade Psicológica

A "PSICOLOGIA DOS PSICóLOGOS" 1. 2.

A "Tecnologid' Psicológica

"Tecnologia" sem o Homem

13 15 20 26

A EMERGÊNCIA DA PSICOLOGIA CIENT1FICA 1. 2. 3.

UI.

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·

37 39 45 54 63 65 68 76 91 96 1 01 114 1 35 1 37 1 52

Conclusão

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Bibliografia Sumária

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INTRODUÇÃO A EPISTF;MOLOGIA DA PSlCOLOGIA Copirraite (c) 1975 de Hilton Japiassu

Editoração Coordenador: PEDRO PAULO DE SENA MADUREIRA Revisão: FRANCISCO DE ASSIS PEREIRA Capa: LEON ALGAMIS

1975

Direitos adquiridos por IMAGO EDITORA LTDA., Av. N. Sra. de Copacabana, 330, 109 andar, tel.: 255-2715, Rio de Janeiro.

Impresso no Brasil Printed in Brazil

Composto e impresso nas oficinas da Empresa Grá11ca O CRUZEIRO Rua do Livramento, 189/203-ZC-14

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FRRI 104.823j01

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CGC 33.529.124

S. A. RJ.

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HILTON JAPIASSÜ

IntrodUção à Epistemologia da Psicologia ..

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Série Logoteca

Direção de JAYME SALOMÃO ·Membro-Associado da Sociedade Brasileira de Psicanálise do Rio de Janeiro. Membro da Associação Psiquiátrica do Rio de Janeiro. Membro da Sociedade de Psicoterapia Analitica de Grupo do Rio de Janeiro.

lMAGO EDITORA LTDA. Rio de Janeiro

INTRODUÇÃO Falar, hoje em dia, de "ciências humanas" e, conseqüen­ temente, da psicologia, senão enquanto é uma ciência humana, pelo menos enquanto estuda certos fenômenos humanos, já é engajar-se num espaço polêmico. Porque, sob o título de "ciên..: cias hutmanas", podem alinhar-se disciplinas que freqüente­ mente nada têm de comum, quando não se excluem explícita ou implicitamente. Por outro lado, não são poucos os cientistas que ainda contestam a essas disciplinas a "honra" e o estatuto de "ciência". Evidentemente, em nome de uma concepção pre­ estabelecida daquilo que deve ser considerado como propria­ mente científico. Melhor ainda, em nome de uma "crença" DJ\­ quilo que parece já ter sido prefixado aprioristicamente como devendo ser "ciência". Nosso esforço, ao estudar as vias de acesso da psicologia ao estatuto de cientificidade, dentro do quadro geral . das ciências humanas, não é o de conciliar ou de reconciliar. Pelo contrário, trata-se de, na medida do possível, colocar em ordem e justificar. Na verdade, um "discurso" so­ bre as ciências humanas é um discurso em que a teoria se faz estrãtégia. Não resta dúvida que tal discurso implica que se faça, previamente, uma demarcação nítida entre as técnicas (políticas, econômicas, comerciais, ideológicas, etc.) ampla­ mente utilizadas sob o rótulo de ciências empíricas do homem,

e os trabalhos propriamente teóricos que, contrariamente ao que comumente se pensa, ainda hesitam em reconhecer uma vali­ dade epistemológica e, conseqüentemente, científica, ao que se convencionou chamar de "ciências humanas". O mínimo que se pode dizer é que essa expressão se presta a discussões. Se ela se impôs, foi por uma simples questão de oportunidade: recebeu a consagração das instituições universitárias.

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É claro que a _expressão "ciências humanas" não tem uma significação lógica. Designamos, com ela, o conjunto de todas as disciplinas comumente agrupadas sob esse nome: economia, sociologia, psicologia, antropologia, geografia, etnologta, lin­ güística, história, pedagogia, etc. A esta enumeração, poderia ser acrescentada uma definição descritiva, sem atribuir-lhe qual­ quer validade epistemológica. Neste caso, as ciências humanas seriam as disciplinas que têm por objeto de investigação as diversas atividades humanas, enquanto estas implicam relações dos.homens entre si e com as coisas, bem como as obras, as instituições e as relações que daí resultam. Uma definição mais rigorosa suporia toda uma sistematização, o que nos levaria a uma teoria idas ciências humanas, semelhante ou distinta das teorias atualmente elaboradas. Para boa parte dos trabalhos teóricos sobre essas discipli­ nas, a expressão "ciências humanas" significa, não um domínio qualquer (o homem) apresentando-se à investigação científi­ ca, mas algo bastante distinto daquilo que se apresenta sob o rótulo de "ciência". Através daquilo que tais trabalhos podem ensinar sobre o inconsciente, sobre a linguagem ou sobre a his­ tória, podemos facilmente notar que eles subtraem à ciência a extraterritorialidade e a intemporalidade nas quais ela viveu durante séculos. Assim, muito mais do que "o homem", ou mesmo, do que "o Sujeito", é o próprio conceito de "ciência" que está em crise. Na verdade, as ciências humanas elaboram uma crítica da ciência. E elas o fazem, na medida em que não são propriamente empíricas nem tampouco dogmáticas, mas históricas. Se elas não correspondem ao que se convencionou chamar de "ciência", nem por isso podem ser relegadas ao domínio da literatura ou da poesia. Uma ciência se define, antes de tudo, por uma problemática própria e por um campo específico de investigação, sobre os quais se aplica um mé­ todo rigoroso. Mas isto não quer dizer que não passe por cri­ ses ou que não tenha necessidade de passar por reorganizações mais ou menos profundas. Aliás, a reflexão epistemológica nas­ ce sempre a propósito das crises ou impasses desta ou daquela ciência. E essas crises resultam de uma lacuna dos métodos anteriores, que deverão ser ultrapassados graças de novos métodos.

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à· invenção

A epistemologia atual, ao constatar uma pluralidade de discursos científicos, coloca em questão o ideal de "a ciência". Por outro lado, constata a falência do arquétipo matemático como modelo exclusivo. Uma síntese das ciências, do tipo da síntese newtoniana, não somente é hoje impossível, como não deve ser lamentada. O objeto que a expressão "a ciência" de­ signava, não existe mais. O ideal de "a ciência" (no sentido em que se fala de um ideal do ego) parece ter-nos levado a um lu­ gar de verdade que o nome "Deus" servia para des�gnar: não havia ciência e verdade senão nele e para ele. Não é por acaso que, sob diversas capas humanísticas, o irrompimento da ciência moderna foi o sintoma de uma mutação ideológica que, entre seus aspectos essenciais, comportou a crítica da religião. Assim, na anedota do processo de Galileu, podemos constatar que, por detrás da oposição ciência-religião, é preciso ler o momen­ to em que a çiência se desliga deste "Ideal" que a colocava sop a tutela religiosa. Uma vez liberado da exclusão de Deus, colocado fora das referências científicas, o homem, por um dup:o desloca­ mento, vai tentar definir-se: . de um lado, enquanto objeto de ciência (homem se opondo a natureza), do outro, enquanto sujeito da ciência (homem se substituindo a Deus). Daí uma oscilação, constitutiva das ciências humanas; entre uma teoria do sujeito da ciência e uma tentativa de construção do objeto antropológico. O resultado foi o surgimento de alguns proble­ mas de definição: se toda ciência funciona dentro de um se­ tor, cuja definição garante a pertinência de suas proposições, quais as fronteiras das ciências humanas? Três proposições en­ tram em jogo: a) a primeira, considerando o progresso técni­ co como uma afirmação do homem e uma "humanização" da natureza, reduz o objeto das ciências humanas à natureza hu­ manizada: dissolução do natural no homem; b) a segunda, con­ siderando o progresso científico em si mesmo, dissolve o hu­

mano no natural; c) a terceira, enfim, considerando menos o objeto dà ciência do que o fato científico em si mesmo, cons­

tata que ele é um produto da história humana.

Tudo parece indicar que, ainda hoje, é a rivalidade des­ sas três atitudes que melhor define o campo de investigação das ciências humanas. Estas, na verdade, agrupam pesquisas

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bastante heterogêneas: o que é que nos permite incluir num mesmo conjunto disciplinas tão estranhas e distantes quanto a geografia e a lingüística? Ou, então, disciplinas exclusivas uma da outra, como a psicologia e a psicanálise? Em contra­ partida, pode-se constatar, nessas disciplinas, certas "concor­ rências" ou recobrim�ntos indefinidos: há uma geografia das línguas e uma língua da geografia; há uma psicanálise da psi­ cologia e uma psicologia do psicanalista. É por isso que Mi­ chel Foucault diz 'que todas as ciências humanas se entrela­ çam e podem ser estudadas umas pelas outras; suas fronteiras desaparecem; disciplinas intermediárias e mistas multiplicam­ se todo dia, a ponto de o objeto próprio das ciências humanas ter-se praticamente dissolvido (Les mots et les choses). De sorte que poderíamos fazer dessa "confusão", dessa indecisão, o traço característico das ciências humanas em nossos dias.

É levando em conta esta problemática, e dentro desta perspectiva, que iremos analisar a Psicologia, enquanto disci­ plina "humana" com pretensões científicas. Trata-se de um tra­ balho que pode ser incluído no domínio mais vasto da epis­ temologia das ciências humanas. Num setor mais estrito, dize­ mos que se trata da epistemologia da psicologia. Com efeito, aquilo pelo que se interessa a epistemologia da psicologia, aquilo de que ela se ocupa, em conformidade com aquilo a que ela visa, consiste em procurar saber como se formam, como se desenvolvem, como se articulam ou funcionam os conheci­ mentos: a) tais como eles são elaborados pelos "especialistas" (psicólogos), enquanto estes são ao mesmo tempo sujeitos e objetos de conhecimento, inseridos num determinado contex­ to sócio-cultural; b) e na medida em que a psicologia deve dis­ tinguir-se das ciências naturais por um modo próprio de atin­ gir a objetividade científica. Cabe, aqui, uma pergunta: em nome de que, alguém que não é psicólogo, pode interrogar-se sobre a psicologia? Em outras palavras, em nome de que, posso eu interessar-me pela psicologia, não tendo a competência do psicólogo? Evidente­ mente, jamais conseguimos justificar inteiramente o partis pris de um livro. No entanto, aquele que se dedica à filosofia o u esta sua vertente, que é a epistemologia, não pode deixar de fornecer suas razões. Em primeiro lugar, creio que a episa

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temologia está estreitamente ligada à história das ciências. E que ela se confunde em grande parte, no caso da psicologia, com a história dos conceitos e das teorias dessa disciplina. E no dizer de G. Canguilhem (fitudes d'histoire et de philo­ sophie des sciences, 1970 ) , há três razões para se fazer a his­ tória de uma disciplina: a) uma histórica, extrínseca à ciência; b) outra científica, realizada pelos cientistas enquanto são pes­ quisadores; c) a terceira, enfim, propriamente filosófica. Esta se justifica da seguinte forma: "sem referência a uma episte­ mologia, uma teoria do conhecimento seria uma meditação so­ bre o vazio". E ao interrogar-se sobre "o que é a psicologia?", Cangui­ lhem reconhece que se trata de uma questão embaraçosa para a psicologia, pois a "questão de sua essência ou, mais modes­ tamente, de seu conceito, coloca em questão a própria existên­ cia do psicólogo", na medida em que, não sabendo responder exatamente quem ele é, torna-se-lhe extremamente difícil jus­ tificar aquilo que faz. É por isso que vai buscar, numa "eficá­ cia sempre discutível, a justificação de sua importância de es­ pecia1ista". E esta "eficácia" continuará sendo "discutível" en­ quanto o psicólogo, na busca de um estatuto de cientificidade para sua disciplina, não ultrapassar certo "empirismo compó­ sito, literalmente codificado para fins de ensino". A conclusão de CanguiJhem é a de que compete ao filósofo colocar à psi­ cologia a seguinte questão: "diga-me para onde tendes, para que eu saiba o que tu és. Mas o filósofo pode ainda dirigir-se ao psicólogo sob a forma - uma só vez não cria hábito - de um conselho de orientação: quando deixamos a Sorbonne pela rua Saint-Jacques, podemos subir ou descer;. se subimos, apro­ ximamo-nos do Panthéon, que é o Conservatório de alguns ho­ mens iJustres; se descemos, porém, dirigimo-nos seguramente para o Quartel de Polícia". É neste sentido que irão siruar-se nossas interrogações so­ bre a psicologia, sobre seu processo histórico de ascensão ao estatuto de cientificidade. Evidentemente, como já frisei, só posso questionar a psicologia graças a certa incompetência nessa matéria. Contudo, ao questioná-la, através da epistemo­ logia histórica, não o farei na qualidade de especialista que se interroga sobre sua própria prática. Isto pode comportar certo

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risco de desqualificação de nossa interrogação. Mas estou cons­ ciente desse risco. E estou convencido de que preciso corrê-lo, em nome exatamente daquilo que pretendo compreender e ques­ tionar. Em primeiro lugar, tentarei mostrar o processo de cons­ tituição das ciências humanas em geral. Em seguida, mostra­ rei a emergência da psicologia científica. Numa terceira parte, tentarei explicitar as condições de autodeterminação científica por parte da psicologia. O quarto capítulo será dedicado a al­ guns questionamentos ao behaviorismo psicológico. Finalmente, farei alguns questionamentos à psicologia behaviorista ainda vigente, cujas bases teóri éas me parecem bastante frágeis, mas que é chamada, pela cultura atual, a desempenhar um papel relevante e a dar sistematicamente sua contribuição para re­ solver tecnicamente muitos dos conflitos gerados pela acelera­ ção brutal das mutações sociais. Assistimos hoje a uma espé­ cie de "psicologização galopante" de nossa cultura. Sem che­ garmos ao extremo de dizer, como L. Althusser, que a psico­ logia· atual é uma dessas disciplinas que se constituem em téc­ nicas humanas de adaptação, "meras comodidades teóricas para seus autores, e comodidades práticas para sua cliente!a", não podemos deixar de reconhecer que ela nasceu, se desenvolveu e ainda opera sob a influência das transformações científicas, técnicas, econômicas e políticas da sociedade industrial. Fou­ cault diz que ela é "ema prática generalizada da perícia".

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I CONSTITUIÇÃO DAS CIÊNCIAS HUMANAS

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1.

0 PROBLEMA DA CIENTIFICIDADE

Não são poucos os epistemólogos que, ainda hoje, contes­ tam às ciências humanas seu título de ciência. Michel Foucault (Les mots et les choses, capítulo X) , por exemplo, articula essa contestação de modo bastante argumentado. Ele acha in­ teiramente desnecessário considerar as "ciências humanas" como sendo falsas ciências. Elas não são, em absoluto, ciên­ cias. Nada têm a ver com aquilo que pode ser denominado "ciência". A configuração que define a positividade daquilo que hoje chamamos de "ciências humanas", e que as enraíza na episteme moderna (episteme é esse campo onde, num tem­ po preciso, determinam-se os a prioris históricos: as condi­ ções de possibilidade do saber e os princípios de sua ordenação), coloca-as fora do estatuto de cientificidade. Se quisermos sa­ ber a razão pela qual as ciências humanas receberam histori­ camente esse título, basta estarmos atentos a este simples fato: "compete à definição arqueológica de seu enraizamento fazer apelo e acolher a transferência de modelos tomados de emprés­ timo às ciências". Evidentemente, esta posição de Foucault é função da teo­ ria que sua "arqueologia do saber" o conduziu a formular sobre as ciências humanas. Trata-se de uma teoria que pode ser con­ dens8lda em sua descrição do "triedro dos saberes" e na distin­ ção que ela estabelece entre as ciências da Vida (especial­ mente humana), do Trabalho e da Linguagem (essas seriam as únicas ciências verdadeiramente científicas) e as assim chamadas "ciências humanas". Estas, por sua vez, desenvol­ vem-se em estreita relação com as três ciências propriamente

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ditas, numa percepção epistemológica bastante düerente, pois está sempre marcada pela intervenção da componente filosó­ fica. Para compreendermos por que as ciências humanas não são ciências, precisamos entender o que Foucau1t quer dizer por "existência" ou "inexistência" do homem. Trata-se apenas' do conceito de homem? Ou da multidão dos homens concretos que encontramos diariamente vivendo, agindo, criando e exis­ tindo? Em sua significação moderna, o "existir" aparece como uma "palavra". É assim que Rousseau, traduzindo o "penso, logo existo" de Descartes, afirma que "o mais útil e menos avançado de todos os conhecimentos humanos" é o conheci­

mento do homem. E a razão é que os livros científicos só nos ensinam a ver os homens tais como eles se fizeram. Ora, tais como eles se fizeram, pela cultura, não "existem" mais, apenas aparecem". Assim, o homem estudado pela ciência não passa de um fenômeno humano, fenômeno este que se tornou presa de uma linguagem. Como poderia o homem voltar a existir no inte­ rior da cultura? Foi de certa desconfiança em relação ao desen­

volvimento da cultura que nasceu o problema da "existência" do homem. Nietzche foi o primeiro filósofo que, ao atacar vio­ lentamente a ciência, a moral e a metafísica de seu tempo, chegou à conclusão de que o homem estava morrendo. E hoje, é Foucault quem afirma: "O homem é uma invenção cuja data recente a arqueologia de nosso pensamento mostra facilmente. E talvez o fim próximo". No entanto, sempre se falou do homem, muito embora Foucault ache que uma coisa é certa: "o homem não é o mais antigo dos problemas nem o mais constante que se colocou ao saber humano". Nem tampouco pode ser o acesso à objetivi­ dade daquilo que, durante muito tempo, esteve entregue ao domínio das crenças e das filosofias. Talvez fosse mais correto dizer que o homem é a onipotência do saber, e que compete à arqueologia determinar suas disposições fundamentais. Este saber do homem está contido no círculo do saber religioso, filosófico, científico e arqueológico. É neste sentido que se pode comprender o êxito de Foucault: Q� homens atuais estão esmagados pela cultura e por seus resultados. Ea _ciência, de que tanto nos orgulhamos hoje em dia, mais parece um acervo

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de conhecimentos acumulados nos livros do que çonhecimen­ to.s. que, de fato, possuímos em nós e que possamos compreen­ der. A lingüística e a etnografia nos ensinam que estamos sub­ metidos a leis que nos escapam. A psicanálise, por sua vez, mostra-nos que somos aquilo que ignoramos ser. Presos entre a superlinguagem da ciência e a sublinguagem da comunicação de massas, não sabemos mais o que significa verdadeiramente falar. Aqueles que pretendem saber utilizam um poder anôni­ mo para conduzir-nos, contra nossa vontade, a um lugar que nos foi como que preestabelecido por um destino inelutável. Tudo indica que é a civilização técnico-científica que elabora, sob medida, as condições "ideais" de nossa existência. O es­ forço do homem reduz-se a uma tentativa de adaptar-se a essas condições. Neste sentido, o termo "humanismo'] passa a sig­ nificar a instauração de um reino de felicidades anunciado e programado pelos tecnocratas. Neste reino, o homem estaria desembaraçado deste enfadonho trabalho de pensar. No dizer de G. Bachelard, esse reino corresponde a um tipo de socie­ dade em que somos livres para fazer tudo, mas onde não há nada para se fazer; em que somos livres para pensar, mas onde não há nada sobre o que pensar. Ela saberá em nosso lugar. Estamos dormindo, em estado de sono antropológico. E este sono antropológico, de que Foucault pretende libertar-:-nos, são o psicologismo e o sociologismo atuais. Entretanto, do ponto de vista em que nos situamos aqui, toma-se bastante prematuro e difícil querermos instaurar uma teoria epistemológica das ciências humanas, concluindo que elas são ou não ciências. Por outro lado, ainda é cedo para discutirmos outras teorias a esse respeito. Talvez seja mais interessante dirigirmo-nos a essas disciplinas que se conside­ ram a si mesmas como ciências, a fim de lhes perguntar, em nome de que, ou de que critérios elas podem afirmar-se como ciências; em que elas se baseiam para se proporem a funciona­ rem como disciplinas científicas; o que elas entetlidem por ciência; como se. aproximam ou se distanciam de um conceito de ciência. E é neste sentido que iremos perguntar à psicologia que nos diga seus critérios de cientificidade,· que nos mostre seu funcionamento e nos revele a maneira como se identifica com a concepção de ciência ou como dela se afasta. _

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A este respeito, podemos começar por coisas simples, mas que têm a vantagem de serem razoavelmente evidentes. Não negligençiaremos, no entanto, as idéias provenientes da recon­ sideração prévia da relação cultural do conjunto das ciências humanas� ou daquilo que as anuncia em determinado momento histórico, com a totalidade mais ou menos comum do saber de nossa época. :e claro que, na época moderna clássica, fo­ ram as matemáticas e a física que forneceram à inteligência os modelos de cientificidade. Também foram elas que, ao mesmo tempo, forneceram o solo epistemológico relativamente ao qual se julgava o caráter mais ou menos científico das diversas prá­ ticas do conhecimento. Por outro lado, podemos facilmente constatar que, pelo menos no início, todos os estudos chamados a se constituírem progressivamente em "ciências humanas", foram estudos que tomaram por objeto, de modo mais ou menos espontâneo ou "ingênuo", determinada ordem de realidades ou de fatos hu­ manos: a percepção das cores ou das intensidades luminosas; ou, ainda, as taxas de mortalidade em determinada popula­ ção. E tentava-se introduzir, de modo mais ou menos eficaz, nessa ordem de realidades, conforme os casos, "algo de cientí­ fico". Ora, neste nível de espontaneidade, os estudos empreen­ didos, concernentes ao ser e aos fatos humanos, preocuparam­ se muito pouco em estabelecer a diferença que encontramos, por exemplo, no "triedro dos saberes"· de Foucault: entre as ciências da Vida, do Trabalho e da Linguagem. (que se encon­ tram dispostas no segundo eixo do triedro) e as disciplinas que seriam as ciências humanas propriamente ditas. Por isso, comecemos nossa análise tentando esclarecer a relação exis­ tente, no pensamento responsável pela elaboração das ciên­ cias humanas, entre a percepção de certo modelo metodológico e a prática característica daquilo que pode ser chamado de ·

ciência, e a prática efetiva do conhecimento considerado . como. "ciência humana", ou, pelo menos; reivindicando esse título.

Trata-se de descobrirmos a fisionomia científica das ciên­ cias humanas e de elucidarmos seu desejo de referência empí­ rica e

positiva.

Em primeiro lugar, falaremos sucintamente.

das ciências humanas em seu conjunto. Em seguida, tentare­ mos mostrar como a psicologia passou de um estado de saber,

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pré-científico a ·um estado de saber propriamente científico, isto é, como ela acedeu a� estatuto de cientificidade que sem­ pre almejou conquistar e que parece defender com certa :vee­ mência. Em outros termos, trata-se de esboçarmos uma epis­ temologia da "observação" nas ciências humanas em geral, para em seguida. aplicarnios tal epistemologia ao caso espe­ cífico da psicologia. No entanto, convém situarmos, antes, os temas gerais da cientificidade das ciências humanas. Posterior­ mente, veremos quais são as categorias de objetividade da psi­ cologia. O primeiro tema consiste na preocupação sempre cons­ tante de uma referência empírica na base de toda a elaboração do conhecimento; o segundo diz respeito ao esforço intelectual para extrair as formas ordenadoras do conhecimento e de cons­ tituição dos objetos do pensamento: esquematismo, formalis­ mo, etc.; o terceiro conceme à busca de modelos explicativos, operatórios e preditivos permitindo ao pensamento não so­ mente a leitura inteligente dos dados, mas também uma mani­ pulação da realidade que ela aborda; o quarto,. enfim, refere­ se ao uso do cálculo e da quantificação. Bem entendido, não analisaremos ess�s quatro temas ou critérios de cientificidade, senão a propósito da psicologia. O que vai nos interessar, no tocante às ciências humanas, é mos­ trar o solo epistemológico ou o fundo de saber sobre o qual elas se constituíram e acederam, por isso mesmo, à era da po­ sitividade. Aliás, não podemos negar que a cultura contempo­ rânea esteja profundamente marcada pelo fato do estabeleci­ mento das ciências humanas num estatuto de cientificidade mais ou menos próprio. Elas · tentam como podem garantir este estatuto e 'vigiar para que ele seja reconhecido e respei­ tado. Algo já foi conquistado nesse domínio. Algo permanece ainda apenas reivindicado; Sua originalidade parece consistir numa ambigüidade: de uni lado, há uma exigência de inteligi­ bilidade, de "transcendência" ou de um a priori inconfessá­ veis; do· outro, situa-se a exigência de positividade, que nem sempre consegue atingir o "ideal" de cientificidade estabeleci­ do pelos. '!controles intersubjetivos"; Neste processo de cons­ tituição das ciências humanas, analisaremos, ein primeiro lugar,

o impacto da emergência da ciência modema sobre a filosofia; em seguida, as repercussões da constituição das ciências hu·

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manas e seus efeitos próprios; enfim, o acesso das ciências humanas à era da . positividade.

2.

IMPACTO DA CIÊNCIA MODERNA

Qual o impacto que a maturação e tomada de conscien­ cia das ciências humanas tiveram sobre a filosofia? Um pri­ meiro exemplo importante da repercussão do advento e emer­ gência das ciências humanas sobre o pensamento filosófico foi "a deposição do sujeito pensante", bem como uma primeira instauração científica do estudo do homem e dos fatos huma­ nos. As coisas, porém, foram mais difíceis do que pode mos­ trar este exemplo. Porque tratou-se, não somente de descrever formalmente a emergência de um acontecimento epistemológi­ co e seu efeito questionador, mas de ressituar determinado número de conteúdos essenciais e de ver concretamente como eles reagiram uns sobre os outros. Fazer isso diretamente, a propósito das ciências humanas, e referindo-se ao estado con­ temporâneo daquilo que ainda podemos chamar de filosofia, é algo muito arriscado, dadas as dificuldades que a inteligência encontra de tomar um recuo relativamente às situações imedia­ tas nas quais ainda se acha imersa. Por isso, tentaremos apenas reconsiderar sucintamente uma situação passada, mas capaz de fornecer certo pano de fundo à análise e ao exame da situação presente. O que real­ mente acontece quando, passando à frente de um sistema mais ou menos estabelecido do saber, especialmente dos ensinamen­ tos recebidos do pensamento filosófico, um conjunto de disci­ plinas do conhecimento, até então sem estatuto científico sa­ tisfatório e poderoso, põe-se a emergir com grande força re­ novadora, apresentando novos conteúdos de saber e provocan­ do importantes mutações na atitude intelectual vigente? Dis­ pomos de um caso em que esta experiência epistemológica rea­ lizou-se com grande êxito. Trata-se da experiência levada a efeito entre 1550 e 1 650, com a criação da "ciência nova" ou "ciência moderna": retomada da matemática, avanço acelera­ do da física, provocando a renovação da astronomia e a con­ quista das primeiras bases da mecânica. E tudo isso sendo

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acompanhado desta idéia clàrificadora da associação científica entre o pensamento teórico e a prática experimental em vista do conhecimento. � por uma volta a esta experiência, e pen­ sando em seu valor de analogia histórica e cultural relativa­ mente à nossa própria situação, que devemos iniciar. Não se pode negar que a .emergência da "_ciência moderna" provocou profundas repercussões sobre o sistema anterior. .. .do saber filosófico. Na verdade, em seu estado nascente, a física científica provocou uma dupla sacudidela epistemológica. A primeira diz respeito aos efeitos da conquista da mecânica cien­ tífica. Quanto a esses efeitos, remetemos o leitor à obra de A. Koyré, sobretudo ao seu Du monde clós à l'univers infini ( 1962). Por sua vez, a segunda sacudidela se refere aos efeitos da "re­ volução copérnica". Não se pode ignorar que o pensamento do Ocidente tenha conhecido um longo período no decorrer do qual as ciências da natureza física e da vida ainda estavam num estado de infân­ cia. Eram objetivamente pouco desenvolvidas. Praticamente, não estavam engajadas nos circuitos da eficácia humana. Este período só terminou nos meados do século XVII. Foi ainda necessário século e meio para que a ciência moderna da natu­ reza começasse a desenvolver um primeiro conjunto de reper­ cussões no seio da massa humana. Um primeiro conjunto de efeitos, primordialmente sobre a filosofia, foi a "revolução co­ pérnica", inaugurada em 1 543 com o De revolutionibus orbium coelestium de N. Copérnico e que, após longa trajetória, tor­ nou-se reconhecida pelos homens cultos, já na época da con­ denação de Galileu ( 1 63 3 ) . Do ponto de vista da representa­ ção do mundo, é antes de tudo o fim do geocentrismo: des­ centração e relativização do lugar terrestre e, ao mesmo tempo, abandono da imagem de um munido fechado em proveito da representação de um espaço cósmico infinito. Não há mais em torno da terra sistema de esferas celestes. O olhar humano pe-­ netra doravante na exten_s_ão do céu, não encontrando mais os limites do universo. Muito mais ainda, é o fim do dualismo da representação do mundo, opondo à natureza terrestre corruptí­ vel, o sistema quase�divino da natureza celeste, materializàção de uma espécie de sobrenatureza visível e gloriosa acima da natureza celeste. _

·

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Em toda parte, no seio do universo visível, é o mesmo es­ paço indiferente, a mesma materialidade, o mesmo estatuto de base da existência. Um intermediário quase-empírico, entre a terra e o Deus "primeiro-motor" do universo, desvanece por completo. Estamos diante do que podemos chamar de a pri­ meira "desconstrução" de toda cosmologia. Ao mesmo tempo, porém, temos diante de nós esta terrível desilusão quanto a tudo aquilo que diz respeito ao antigo saber filosófico. A física deste saber, a filosofia natural, reduz-se a uma física quimé­ rica. A analítica escolástica do devir e de seus princípios, bem como os conceitos aristotélicos de . natureza e de sistema aas causas, passam doravante. a ser desacreditados pelo novo modo de apreender a realidade. Ademais, passam a ser considerados como produtos de uma pura verbalização ingênua e duvidosa de uma experiência sumária das coisas. Também neste domí­ nio, a filosofia natural revela-se menos um saber verdadeiro do que pretendia ser. Ao mesmo tempo, no plano do saber que procura extrair dos livros sagrados as fontes do conhecimento, a autoridade ·da Escritura revela-se invalidada em matéria de ffi>ica. Deve-se aprender a discernir nela os ensinamentos em matéria religiosa ou moral das representações mais ou menos arcaicas do mundo e do� fenômenos naturais. De ambos os lados, instaura.,.se uma crise bastante.. séria e de grande al­ cance. Portanto, as repercussões da "ciência moderna" sobre a filosofia foram de duas ordens: a) o fim da cosmologia esco­ lástica e a impossibilidade de restabelecer uma filosofia da Natureza; b) o nascimento da antropologia das "Luzes" (Ilu­ minismo). a) Ao término dessas duas sacudidelas epistemológicas de que falamos, o resultado mais evidente do advento e da emergência da "ciência moderna" da natureza foi o de pro­ vocar a desintegração daquilo que se acreditava "saber" do mundo físico. Até então, o saber era a cosmologia ensinada nas escolas, cosmologia de origem greco-latina, impregnada de aristotelismo, conseguindo congregar e exprimir uma espécie de familiaridade concreta intelectual, estética, moral e religio­ sa do homem com o universo. A essa cosmologia, que se ex­ punha principalmente na língua usual, remetendo aos especia·

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listas o recurso às formas matemáticas (astronomia descritiva) , a física científica vai substituir um jogo de representações "cla­ ras e distintas", como dirá o cartesianismo, representações ele­ mentares e quantitativas, e que serão manipuladas matematica­ mente. A regra fundamental de sua constituição consistia pre­ cisamente neste manejo matemático: espaço, figura, movimen­ to, tempo. Passa-se a desconfiar da qualidade antiga, dora­ vante acusada de ser uma "qualidade oculta", simples determi­ nação "subjetiva" do psiquismo. Também os antigos ''princí­ pios" são recusados: a matéria é compreendida de forma: intei­ ramente diversa, e a idéia de "forma substancial" é simples­ mente proscrita. A figuração de conjunto do universo é revo­ lucionada, e dilacera-se o pacto de familiaridade do homem com a natureza. Tudo é suplantado por um novo empirismo intelec­ tualmente mais adulto, praticamente mais eficaz e, pelo menos para começar, mais bárbaro, mais agressivo em relação ao mundo das coisas do que o antigo empirismo. ·

Aquilo que, até o século XVI, chamou-se de "filosofia na­ tural", e que tentou, com maior ou menos êxito, sobreviver atràvés dos manuais de cosmologia, recebe um golpe de morte. A nova "filosofia natural" (emprega-se esta expressão no sé­ culo XVII, e seu uso se prolonga nos meios anglo-saxões até bem recentemente) é pura e simplesmente a ciência física, a mecânica de Galileu, depois, de Descartes e de Newton, com­ pletada pelo estudo experimental e matemático da qtica, do calor, da eletricidade, etc. Toma-se consciência de que o co­ nhecimento científico não é, propriamente falando, filosófico. ·A partir de então, ele não é mais uma filosofia coerente da natureza. Foi todo um tipo de saber filÓsófico que se desinte­ grou e que sucumbiu na cultura ocidental, em conseqüência do advento e da expansão das ciências modernas da natureza. Da filosofia natural, só restaram lembranças históricas e tenta­ tivas parciais, inconsistentes e impotentes para reconstruir uma totalidade. É bem verdade que, no século XX, com as teorias da Relatividade, certo empreendimento intelectual de cosmolo­ gia global reaparece, mas, desta vez, no interior do próprio pensamento científico. b) Para um estudo mais detalhado do nascimento da antropologia das "Luzes", remeto o leitor ao .desenvolvimento

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que faz G. Gusdorf em La science de l'homme au siecle des Lumieres ( 1 974) e em Introduction aux sciences humaines· ( 1 974 ) . Quero ressaltar apenas que, com o advento da ciên­ cia moderna da natureza, tem início uma nova antropologia. Sua constituição é complexa, até mesmo quase contraditória, pois faz a associação de uma visão objetiva do homem como ser deste mundo terrestre, ser de natureza material e física, e de uma visão subjetiva da relação do homem com o conjunto da natureza e consigo mesmo. Do ponto de vista da visão objetiva do homem, é _ a que­ bra da unidade ambígua concreta entre o organismo material do indivíduo humano e seu psiquismo espiritual : "hilemorfis­ mo" do "corpo" humano e da "alma" humana. Enquanto or­ ganismo material, o corpo é reduzido � uma máquina, com a mesma constituição dos sistemas materiais não-vivos e das má­ quinas construídas: máquinas que não exigem, para explicar o funcionamento biológico e vegetativo do corpo, senão aquilo que serve para fornecer uma explicação do comportamento físico-mecânico do universo. Assim, o homem é apenas um fragmento do mecanismo universal. Ele está submetido às ne­ cessidades do determinismo universal, conceitualmente fechado sobre si mesmo e deixando fora desta "fechadura" epistemoló­ gica toda a atualidade de seu fato psíquico-mental: sensibili­ dade, afetividade, consciência. Por sua vez, enquanto unidade personalizada de vida mental, a "alma" aparece pura e sim­ plesmente como uma atualidade não-física, inexplicavelmente associada à máquina corporal, em contato com qual ela se de­ senvolve, de acordo com os funcionamentos materiais dessa máquina. Assim, deixando de lado as questões das implica­ ções mútuas do corporal e do psíquico, a antropologia vai oscilar entre um conhecimento organicista e materialista do ser corporal e biológico do homem, e um saber espiritualista da vida psíquica, intelectual e moral da "alma" humana, ligando os dois de modo mais ou menos bastardo no plano da objeti­ vidade. Contudo, do ponto de vista do sentimento subjetivo que o homem tem de si mesmo e de suas relações com a realidade, vamos encontrar a grande crise espiritual ocorrida no século

XVI: o ser humano não somente passa a conquistar como 24

tam-

bém a tomar uma nova consciência de sua própria liberdade. Surge a consciência libertária moderna. O ser humano se de­ sinveste de muitas passividades que, até então, ainda não ha­ viam sido postas em questão: passividade diante da autoridad_e religiosa e da crença bruta num ensinamento exterior; passi­ vidade diante do dado da natureza; passividade diante das próprias situações humanas, "vividas" (ou "sofridas") como um dos aspectos inevitáveis da força das coisas. Por sua vez, a conquista científica aparece ao mesmo tempo como o pe­ nhor, a justificação e o instrumento dessa consciência libertá­ ria. Ela postula a libertação intelectual em relação à p.utorida­ de exterior em matéria de conhecimento. Ao mesmo tempo, liberta o homem de sua sujeição à natureza, permitindo-lhe colocá-la a seu serviço (dominação da natureza) . Em primeiro lugar, indiretamente, em seguida, de frente, a ciência torna pos­ sível a transformação das situações humanas, fazendo progre­ dir a educação do homem, dos indivíduos e da sociedade, à liberdade do entendimento e à autonomia da razão. Do · ponto de vista daquilo que constitui o objeto próprio da ciência física, é a relação teórica e prática do homem com a Natureza que muda, por assim dizer, de espécie e de regime, pois situa-se na órbita dessa consciência libertária do homem. Processa-se também uma transformação da relação teórica. e ética do homem consigo mesmo. E como conseqüência dessa transformação, houve ulteriormente uma mudança da relação tanto social e política quanto cultural do homem com os outros homens. Uma nova relação começa a surgir e a ganhar o do­ mínio prático. Também a relação do homem com o religioso se altera em profundidade. Um princípio inédito da limitação da autoridade religiosa em matéria de pensamento e de uso da razão começa a impor-se. Como diz simbolicamente Gali­ leu: "a Escritura nos ensina, não como o céu vai em seu curso, mas como o homem vai até ele". f: então que se define esta concepção tornada clássica do Homem, com a antropologia das Luzes, depois, do Progresso, própria sobretudo ao século XVIII: essa antropologia hoje considera4a caduca, sobretudo por aque­ les que falam da morte do homem,

como conseqüência da

morte de Deus.

25

3.

A EMERGÊNCIA DAS CIÊNCIAS HUMANAS

Podemos dizer que a segunda grande repercussão ou im­ pacto epistemológico, sofrido pelo pensamento filosófico, de­ veu-se ao efeito próprio da constituição das ciências humanas. Analisaremos tal efeito a partir do exame sumário de dois temas fundamentais. O primeiro é o fato de que as ciências humanas, ao despontarem como ramo autônomo do saber, fa­ zem o homem ingressar numa nova era que podemos caracte­ rizar como sendo a da perda da ingenuidade em relação a si mesmo, como sujeito, e em relação às suas próprias obras, en­ quanto estas comportam todo um conjunto de investimentos da subjetividade humana e de pressuposições inconscientes dessa subjetividade. Trata-se de uma época de desencantamento, de crítica, de "dúvida" e de "desmistificação". M�s também, em contrapartida, época de reativação de uma série · de domínios humanos relegados ao esquecimento ou deixados na sombra; época em que ressurgem várias questões deixadas em suspen- . so; época de múltiplas iniciativas que permaneciam inibidas ou haviam sido abandonadas. O segundo tema é o da entrada do conhecimento, não somente do . mundo exterior e da natureza física, mas também do próprio homem, na era da positividade, por oposição à era da "representação": o homem "positivo" não é mais o homem da "representação", nem objetiva nem subjetivamente : ele passa a ser visto de modo inteiramente di­ verso.

a)

As ciências humanas e a perda da ingenuidade da cons­ ci€ncia clássica.

A filosofia da Idade Moderna clássica, surgida a partir do século XVII, e ensinada até quase nossos dias, pode ser desig­ nada, sem correrm0s o risco de sermos imprecisos, de "filoso­ fia da consciência". A partir do Cogito cartesiano, a consciên­ cia se torna, para a filosofia e para a cultura que lhe é soli­ dária, o próprio fundamento da Razão : ela é tomada por todos enhando o papel de significante (no sentido saussuriano) , a esta porção de vida mental dita "inconsciente" ou "pré-cons­ ciente', desempenhando o papel de significado. Contudo, Po­ Jitzer percebe claramente a possibilidade de uma nova objeti­ vidade científica em psicologia. De certa forma, ela supera este tipo de psewio-objetividade "subjetiva" a que a introspec­ ção tentou dar consistência, bem como a "objetividade" pro­ posta pela psicologia experimentalista, pelo menos a de seu tempo. Politzer ataca não somente os resultados da psicologia, mas as próprias démarches que os engendram. A mistificação não se encontra apenas nas respostas, mas já estão presentes nas questões. E por isso que o behaviorismo, qualquer que tenha sido a importância das tentativas -.de Watson e de seus seguido­ res, representa uma crítica que não desloca os problemas. Para se obter métodos novos, é preciso que se possa dispor de con­ ceitos novos. Donde a importância da crítica à própna psico­ logia behaviorista que, por não dispor de conceitos novos para

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expressar seu objeto, parece ainda estar presa aos velhos mé­ todos. Este será o objeto de nossa conc!usão. Evidentemente, não iremos fazer uma crítica ao behaviorismo psicológico des­ de sua origem até nossos dias, mas apenas nos interrogar sobre a imagem do homem que a psicologia atual, tal ' como ela se apresenta, cria ou persiste em nos propor. Numa palavra, ten­ taremos nos perguntar qual a significação da "psicologia dos psicólogos", não somente enquanto ela cria uma imagem do homem, mas enquanto e!a desempenha ao mesmo tempo .fun­ ções culturais, ideológicas, terapêuticas, de regulação, de adaptação, de se!eção, etc. ·

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v A "PSICOLOGIA DOS PSICóLOGOS"

,

Por "psicologia dos psicólogos", entendemos, não tanto o estatuto ainda incerto do psicólogo ou o estatuto epistemo­ lógico de cientificidade da psicologia, quanto a prática da psi­ cologia em ·nossos dias. Analisaremos esta prática em duas di­ reções distintas mas complementares : 1 ) a "tecnologização" progressiva da psicologia; 2 ) as funções da psicologia enquan­ to prática social. No primeiro item, mostraremos alguns dos efeitos da "tecnologia" psicológica sobre o homem moderno. No segundo, tentaremos mostrar que, apesar de suas funções cultural, terapêutica, adaptativa e reguladora, a psicologia não tem o direito de ignorar o homem em nome de uma preocupa­ ção excessiva de rigor científico. 1.

A

"TECNOLOGIA" PSICOLÓGICA

Desde sua origem, a psicologia experimental ou científica tentou transpor para o domínio dos fatos psíquicos as técnicas de medir e de experimentar já utilizadas com sucesso pela fí­ sica e pela biologia. Houve uma generalização dessas técnicas a objetos para os quais elas não haviam sido feitas. Evidente­ mente, essa transferência das técnicas psicoquímicas ao estudo do homem não se deveu exclusivamente a uma preocupação epistemológica de assegurar, em. psicologia, a mesma forma de inteligibilidade científica utilizada nas ciências naturais. Pelo contrário, essas técnicas foram inventadas, sobretudo, ten­ do em vista responder a uma série de necessidades e de inte­ resses de ordem prática. Foi em resposta às necessidades do rendimento econômico que surgiu, por volta de 1900, a psi­ eotécnica, tendo por objetivo central regular cientificamente o 137

tràbalho humano. Todavia, não é à psicotécnica, nem muito menos à psicologia aplicada, que se refere nosso termo "tec­ nologia". Por tecnologia queremos significar a aplicação da ciência psicológica ao processo social, em resposta à necessi­ dade de se "maximalizar" · a exploração e o controle do traba­ lho humano, bem como de . "racionalizar" sua produtividade. Em outras palavras, a "tecnologia" psicológica é um conjunto de técnicas fornecidas pelo desenvolvimento de estruturas es­ pecializadas na elaboração e na utilização de um saber psico­ lógico científico. Essas estruturas especializadas dizem respei­ to, antes de tudo, aos conhecimentos necessários à descoberta e ao aperfeiçoamento dos procedimentos materiais da indústria, dos procedimentos "espirituais" da adaptação social, da adap­ tação mental, da aprendizagem escolar, etc. Portanto, ésta parte de nosso trabalho visa a uma crítica da "tecnologia" psicológica, tal como ela se apresenta hoje em dia, como a continuadora e a herdeira legítima do antigo beha­ viorismo psicológico, cuja metodologia científica levou a um ol­ vidamento progressivo daquilo que há de humano no homem. Em boa parte, nossa cr.ítica se apoiará nos questionamentos que L. von Bertalanffy faz da psicologia científica atual, pelo menos como ela é praticada nos Estados Unidos da América. Este autor, biólogo de renome, e criador da "teoria geral dos sistemas", interessa-se muito menos pela crítica especializada a teorias concretas da psicologia, do que pela crítica a seus pontos ,de vista fundamentais: os efeitos da ''tecnologia" psico­ lógica sobre o homem, os problemas subjacentes à "natureza humana" e a seus valores modernos que alteram nossa visão do mundo e nossa imagem do homem. Com efeito, em sua obra Robots, men and minds, Berta­ lanffy chama nossa atenção para o seguinte fato : tudo parece indicar que o mundo técnico-científico em que vivemos esteja caminhando e criando, para um futuro não muito distante, "uma sociedade cibernética do ócio, que não saberá o que fazer consigo mesma". Assim, torna-se cada vez mais problemática, em nossos dias, uma ciência do homem e para o homem . . Todas as pessoas cultas . poderão facilmente dar-se conta desta ilusão cientificista, produto da mitológia científica do passado : a de nos proporcionar um "Porto Seguro" social, humano e psico-

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lógico, mediante o uso da ciência e de seus produtos tecnoló­ gicos. Diante de tantas frustrações, · as pessoas intelectualmente advertidas não podem deixar de exclamar: que desilusão! a ci­ ência não é o caminho seguro que nos leva ao paraíso! Ao apresentar-se como a manifestação da hybris humªna, a ousa­ dia científico-tecnológica parece ter desafiado não somente as leis divinás ou humanas, mas também a própria natureza do homem. Tudo nos leva a crer que esta "natureza" se nos apre­ senta, hoje em dia, como que "esquizofrenizada" em "animal" e em "algo" que transcende a animalidade. Duas partes dico­ tomizadas de uma única e mesma realidade! Diante disso, quer dizer, dessa "esquizofrenia" do homem moderno, a psicologia não pode mais permanecer nesta atitude de "inocência" científica, de crença na "imortalidade científi­ ca" de seus fatos descentrados da condição real do homem. Talvez a psicologia ainda não se tenha dado conta de que sua desgraça epistemológica reside no fato de tratar de um objeto (um fato) que fala. Por isso, é de grande importância a seguinte pergunta : qual o lugar ocupado pela "psicologia no mundo atual? Não teria ela embarcado nessa grande torrente técnico-científica que sempre mais conquista e domina o mun­ do e o homem, mas também sempre mais esquecendo-se do fenômeno humano? Ao abandonar o estudo da "natureza hu­ mana", para estudar, no homem, apenas seus comportamen­ tos exteriores, até parece que a psicologia a recalcou. O filó­ sofo Martin Heidegger constata que "nenhuma época acumu­ lou, sobre o homem, conhecimentos tão numerosos e tão di­ versos quanto a nossa. Nenhuma época conseguiu apresentar seu saber do homem sob uma forma tão pronta e tão facil­ mente acessível. Mas também, nenhuma época soube menos o que é o homem". E o psiquiatra L. Biswanger reconhece o mesmo fato, ao ce>nstatar que "nós, os homens, quem somos e o que somos? Nenhuma época, e muito menos a nossa, pôde fornecer resposta, e hoje em dia encontramo-nos diante do primeiro balbuciar de uma nova busca desse Nós" (Le rêve et l'existence, tradução francesa, 1954 ) . A o analisar este problema, Bertalanffy chega à conclusão de que as ciências, sobretudo, bem entendido, as ciências hu­ manas, fizeram do homem um verdadeiro autômata. Aliás, 139

também Jacques Monod, tanto em O A caso e a necessidade quanto numa recente entrevista, chega à conclusão de que a ciência, hoje, aliena o homem. A ciência é extremamente difí­ cil, diz ele; ela se desenvolve com uma força explosiVa; e o homem moderno encontra-se cotidianamente em face de técni­ cas oriundas dela que, fundamentalmente, ele não compreen­ de, e que são para ele causa de profunda humilhação. No fun­ do, o homem médio nada sabe do que se passa no reino da ciência. :É por causa dessa humilhação diante do poder. da ciên­ cia, que ele se entrega a todo tipo de compensação pseudo­ científica ou aos diversos tipos de magia, de feitiçarias mais ou menos rotuladas de científicas. Por outro lado, a ciência obje­ tivrz retira o lugar do homem no universo. Ela faz dele um ,estrangeiro, quase um acidente no universo. Até parece que, de fato, o homem é um absurdo. As teorias científicas provam que o homem ocupa apenas um lugar infinitesimal no mundo, e que este lugar nem mesmo é necessário, que ele é por acaso, que o homem poderia muito bem não estar aí. Evidentemente, não podemos responsabilizar a psicologia científica por este estado de coisas. No entanto, Bertalanffy não hesita em responsabilizar, por esta situação, pelo menos em grande parte, aquilo que e!e chama de filosofia "positivista­ mecanicista-comportamentalista", predominante, senão em toda a psicologia, pelo menos em boa parte da psicologia científica atual, tal como ela é praticada, por exemplo, nos Estados Uni­ dos da América. O autor reconhece um fato que não deixa de ser surpreendente: "grande parte da psicologia moderna é um escolasticismo estéril e prosopopéico que, provido das vi­ seiras de conceitos preconcebidos ou supersticiosos, não . vê aqui­ lo que é evidente; é um escolasticismo que encobre a triviali­ dade de seus resultados e idéias com uma linguagem absurda que em nada se assemelha à habitual, nem recorda as teorias científicas normais, e que facilita à sociedade moderna técnicas adequadas para ir confundindo a humanidade". Assim, parece que não há dúvidas de que a psicologia ci­ entífico-comportamentalista coloca-nos, de fato, diante do se­ guinte dilema: tanto a filosofia quanto a psicologia positivistas conseguiram esta insólita façanha, reconhece Bertalanffy, de "serem ao mesmo tempo profundamente frívolas e tediosas, 140

por causa de sua indiferença relativamente às questões huma­ nas. Os famosos batalhões de ratos, que se movem dentro das caixas-problemas de Skinner, têm muito pouco a nos dizer acerca da condição humana, de nossas atribulações e dos pro­ blemas de- nosso tempo". Por isso, a questão fundamental,, para a psicologia, parece ser a seguinte : poderá ela ser ao mesmo tempo humana e científica? Aliás, ao elaborar sua epistemolo­ gia da psicologia, Pierre Gréco também reconhece que o dra­ ma da psicologia atual consiste numa ambigüidade : ao pre­ tender tornar-se ciência, ela praticamente deixa de ser uma dis­ ciplina humana; e ao fazer-se humana, ela deixa de ser cien­ tífica ( em Logique et connaissance scientifique) . Não resisto, aqui, à tentação de citar uma página de Mi­ . chel Bernard (em A Filosofia das ciências sociais, tradução brasileira, Zahar Editores, 1 9 74 ) , sintetizando a obra de D. Deleule, La psychologie, mythe scientifique ( 1969 ) . Para De­ leule, a verdadeira questão é: "De onde vem a necessidade que tem a psicologia de pretender-se científica?" Para responder a tal pergunta e, em primeiro lugar, para justificá-Ia, basta-lhe provar e ilustrar esta proposi­ ção : "Toda ciência é antes de tudo ciência da ideologia que a precedeu", o que equivale a dizer que toda desco­ berta científica implica, paradoxalmente, ao mesmo tempo o uso de temas ou idéias próprio à ideologi� dominante da época, e a ruptura com esses temas e idéias, através da exigência de uma nova linguagem, pelo advento de outro discurso ideologicamente determinado mas que se revela adequado ao objeto considerado . . . Ora, não foi isso o que ocorreu com "a psicologia, que, longe de rom­ per com a ideologia dominante, traz, ao contrário, a esta última, o concurso de seu aparelho técnico e de sua ar­ madura teórica". Melhor ainda, este concurso consiste . . . na utilização de técnicas que extraem sua armadura teó­ rica das técnicas de outras ciências (física, química, fi­ siologia) ; transposiçãq ou empréstimo que deixa suspei­ tar sua determinação ideológica que não somente funda a psicologia, mas confunde-se com ela. Em resumo, a psicologia moderna não passa de uma pseudociência, de 141

um mito, de um "discurso vazio", cujo modelo teórico é sem dúvida o behaviorismo, mas que se exprime mais claramente nos trabalhos psicotécnicos sobre as aptidões e a motivação; ou psicossociológicos sobre a sociometria, o psicodrama, o sociograma, o training grupo, as técni­ cas de entrevista . . . ; ou psicoterapêuticos sobre a rela­ ção não-diretiva de Rogers. Em _suma, a psicologia é uma "ideologia de reserva" que é "reforço sutil da ideo­ logia dominante", na medida em que ela contribui . . . para "uma absorção metódica e estofada do negativo até sua eliminação sistemática" . . . Em outras palavras, a psicologia é solidária de um conservadorismo vigoroso· que, no máximo, tolera um reformismo ingênuo : "Mu­ dar o indivíduo para não mudar a ordem social - :mudar · o indivíduo na esperança de mudar a ordem social : é en­ tre esses dois pólos que se de�enrola o trabalho do psi­ cólogo". Por mais bem intencionado que pareça ser, o psicólogo permanece o servidor e o instrumento de um mito, "atualização presente de certa astúcia da razão". Por isso, estamos em condições de responder à questão colocada no início : a necessidade