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Portuguese Pages 418 Year 1973
CONDILLAC HELVE Tl US DEGERANDO
TEXTOS ESCOLHIDOS
CumPrSt
E D IT O R : V IC T O R C l VITA
Títulos originais: Condillac: Traité des Systèmes — Extrait Raisonné du Traité des sensations — Logique — La Langue des Calculs; Helvétius: De L’Esprit; Degérando: Des Signes et de L’Art de Penser Considérés dans leurs Rapports Mutuels.
1» edição — novembro 1973
C — Copyright desta edição, 1973, Abril S. A. Cultural e Industrial, São Paulo. Direitos exclusivos sobre as traduções deste volume, 1973, Abril S. A. Cultural e Industrial, São Paulo.
Sumário
T R A T A D O DOS SISTEMAS
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RESUM O SELEC IO N A DO DO T R A T A D O D AS SENSA ÇÕ ES LÓGICA
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A L ÍN G U A DOS CÁLCULOS D O ESPÍRITO
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DOS SIGNOS E D A ARTE DE PE N SA R
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ETIENNE BONNOT DE CONDILLAC
TRATADO DOS SISTEMAS
Tradução de Luiz Roberto Monzani
C a p ít u l o I Que se deve distinguir três espécies de sistemas
Um sistema não é outra coisa que a disposição das diferentes partes de uma arte ou de uma ciência numa ordem onde elas se sustentam todas mutuamente, e onde as últimas se explicam pelas primeiras. Aquelas que dão razão às outras chamam-se princípios e o sistema é tão mais perfeito quanto os princípios o são no menor número: é mesmo desejável que se os reduza a um só. Podem-se notar nas obras dos filósofos três espécies de princípios dos quais se formam três espécies de sistemas. Os princípios que eu coloco na primeira classe, como os mais em moda, são as máximas gerais ou abstratas. Exige-se que eles sejam tão evidentes ou tão bem demonstrados que não se os possa colocar em dúvida. Com efeito, se eles fossem incertos não se poderia estar seguro das conseqüências que se extrairiam. • É desses princípios que fala o autor da Arte de Pensar1 quando diz:2 “Todo mundo está de acordo que é importante ter no espírito vários axiomas e princípios que, sendo claros e indubitáveis, possam servir-nos de fundamento para conhecer as coisas mais escondidas. Mas os princípios, que se dão ordinariamente, são de tão pouco uso que se torna inútil sabê-los. Porque o que eles chamam de primeiro princípio do conhecimento — Ê impossível que a mesma coisa seja e não seja — é muito claro e muito certo, mas não vejo como possa servir para nos fornecer qualquer conhecimento. Creio, portanto, que os seguintes possam ser mais úteis”. O autor dá, em seguida, por primeiro princípio: Tudo o que está contido na idéia clara e distinta de uma coisa pode ser afirmado com verdade; por segundo: A existência, pelo menos possível, está contida na idéia de tudo aquilo que concebemos clara e distintamente; por terceiro: O nada não pode ser causa de coisa alguma. Ele os imaginou até onze. Mas. é inútil relatar os outros. Os princípios enumerados acima são suficientes para servir de exemplo.3 A virtude que os filósofos atribuem a essa espécie de princípios é tão grande que seria natural que se trabalhasse para multiplicá-los. Os metafísicos se distinguiram nisso. Descartes, Malebranche, Leibniz e outros, cada um em concorrência, nos deram com profusão, e não devemos acusar senão a nós mesmos se não penetramos nas coisas mais escondidas. 1 Amauld e Nicole na Lógica ou A rte de Pensar. (N . da ed. francesa.) 2 Parte IV, cap. 7. (N . do A .) 3 Alusão à Lógica ou A rte d ê Pensar, parte IV,' cap. 7. (N . da ed. francesa.)
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Os princípios da segunda espécie são suposições que se imaginam para explicar as coisas às quais não se poderia, de outra maneira, dar a razão. 4 Se as suposições não parecem impossíveis, e se elas fornecem alguma explicação dos fenômenos conhecidos, os filósofos não duvidam que tenham descoberto os verdadeiros motores da natureza. Seria possível, dizem eles, que uma suposição que fosse falsa desse resultados felizes? Daí nasceu a opinião de que a explicação dos fenômenos prova a verdade de uma suposição e que não se deve julgar um sistema pelos seus princípios, mas como ele dá a razão das coisas. Não se duvida que as suposições, num primeiro momento arbitrárias, tornam-se incon testáveis pela habilidade com a qual se as empregou. Os metafísicos foram tão inventivos nessa segunda espécie de princípios quanto na primeira e, graças aos seus cuidados, a metafísica .não encontrou nada mais que possa ser um mistério para ela. Quem diz metafísica diz, na sua linguagem, a ciência das primeiras verdades, dos primeiros princípios das coisas. Mas é necessário convir que esta ciência não se encontra nas suas obras. As noções abstratas são apenas idéias formadas daquilo que há de comum entre várias idéias particulares. Tal é a noção de animal: ela é extraída daquilo que pertence igualmente às idéias de homem, cavalo, macaco, etc. Desta maneira, uma noção abstrata serve, em aparência, para dar razão daquilo que se nota nos objetos particulares. Se, por exemplo, se pergunta por que o cavalo anda, bebe, come, responder-se-á muito filosoficamente dizendo que não é senão porque ele é um animal. Esta resposta, bem analisada, não quer, entretanto, dizer outra coisa senão que o cavalo anda, bebe, come porque, com efeito, ele anda, bebe, come. Mas é raro que os homens não se contentem com uma primeira resposta. Dir-se-ia que sua curiosidade os conduz menos a instruir-se sobre alguma coisa do que a formular questões sobre muitas. O ar seguro de um filósofo se lhes impõe. Eles temeriam parecer muito pouco inteligentes se insistissem sobre o mesmo ponto. É suficiente que o oráculo seja formado de expressões familiares as quais eles teriam vergonha de não entender; ou, se não podem esconder a obscuridade, um único olhar de seu mestre pareceria dissipá-la. Pode-se duvidar quando aquele a quem se entrega toda confiança não duvida ele mesmo? Não há, portanto, motivo para se espantar que os princípios abstratos tenham se multiplicado com tal intensidade e tenham, sempre, sido olhados como a fonte de nossos conhecimentos. As noções abstratas são absolutamente necessárias para pôr ordem nos nossos conhecimentos porque elas indicam a cada idéia a sua classe. Eis qual deve ser seu único uso. Mas, imaginar que elas sejam feitas para conduzir a conhecimentos particulares é uma cegueira muito grande porque elas não se formam senão segundo esses conhecimentos. Quando eu censurar os princípios abstratos não será necessário suspeitar que eu exija que não se deve servir-se mais de nenhuma noção abstrata, isso será ridículo: pretendo somente que não se os deva tomar nunca por princípios próprios para nos conduzir a descobertas. Quanto às suposições, elas são um grande recurso para a ignorância, são muito cômodas; a imaginação as forma com muito prazer, com muito pouca 4 R. Descartes, Princípios da Filosofia, livro III, § 44.
(N . da ed. francesa.)
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dificuldade. É de seu leito que se criou, que se governa o universo. Tudo isto não custa mais que um sonho e um filósofo sonha facilmente. Também não é fácil consultar bem a experiência e recolher os fatos com discernimento. É por isso que é raro que não tomemos por princípios senão fatos bem constatados, ainda que, talvez, os tenhamos em maior número do que pensamos; mas pela falta de hábito de seguir esse procedimento ignoremos a maneira de aplicá-los. Temos, verossimilmente, em nossas mãos a explicação de vários fenômenos e vamos procurá-la bem longe de nós. Por exemplo, a gravidade dos corpos foi durante todo o tempo um fato bem constatado e só em nossos dias é que foi reconhecida como um princípio.5 É sobre os princípios dessa última espécie que estão fundados os verdadeiros sistemas; somente eles mereceriam ter esse nome. Porque não é senão por meio desses princípios que podemos dar a razão das coisas das quais nos é permitido descobrir os motores. Chamarei sistemas abstratos aqueles que versam somente sobre princípios abstratos; e hipóteses aqueles que têm apenas suposições por fundamento. Pela combinação dessas diferentes espécies de princípios poder-se-ão ainda formar diferentes espécies de sistemas; mas, como eles remeter-se-iam sempre, mais ou menos, a um dos três que acabo de indicar, é inútil realizar novas classificações. Fatos bem constatados, eis propriamente os únicos princípios das ciências. Como, então, foi possível imaginar outros? É o que iremos investigar. Os sistemas são mais antigos que os filósofos: a natureza ordena fazê-los e não eram maus os que eram feitos quando os homens obedeciam só a ela. Então, um sistema era e não podia ser somente fruto da observação. Não se propunha ainda dar razão a tudo; tinham-se necessidades e não se procuravam senão os meios de satisfazê-las. Só a observação podia fazer conhecer esses meios e observa-se por que se era forçado. Na ignorância disso que, mais tarde, se nomeou princípio, tinha-se, pelo menos, a vantagem de evitar os erros: porque é necessário um começo de conhecimento para extraviar-se. E parece que, freqüentemente, os filósofos tiveram apenas esse começo. Os homens, portanto, observavam, isto é, notavam os fatos relativos às suas necessidades. Porque se tinham poucas necessidades, havia poucas observações a fazer, e porque as necessidades eram prementes era raro que houvesse engano; os erros, pelo menos, não podiam ser senão passageiros: era-se logo advertido porque as necessidades não eram satisfeitas. A observação se realizava, ainda, só de maneira tateante; não era, portanto, sempre possível assegurar-se de um fato logo que se acreditava percebê-lo. Suspeitava-se, supunha-se e, na falta de coisa melhor, uma suposição passava por uma descoberta que uma nova observação confirmava ou destruía. Deste modo a natureza guiava os homens e era desta maneira que eles se 5 Cada vez que Condillac fala dessa terceira espécie de princípios pensa em Newton. (N . da ed. francesa.)
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instruíam, sem notar que iam de conhecimentos em conhecimentos por uma seqüência de fatos bem observados. Quando realizaram as descobertas relativas às suas necessidades é evidente que para realizá-las num outro campo tiveram que seguir a mesma conduta. Uma primeira observação, que teria sido apenas um tateio, teria levantado conjeturas; estas conjeturas teriam indicado outras observações a fazer e estas observações teriam confirmado ou destruído os fatos supostos. Quando tiveram os fatos em grande quantidade para explicar os fenômenos dos quais se investigava a razão, os sistemas estavam acabados, de qualquer maneira, por eles mesmos, porque os fatos se teriam arranjado a si mesmos na ordem em que se explicavam sucessivamente uns aos outros. Então, ter-se-ia visto que em todo sistema há um primeiro fato, um fato que é o começo e que, por esta razão, se teria chamado princípio: porque princípio e começo são duas palavras que significam originariamente a mesma coisa. As suposições não são, propriamente falando, senão conjunturas e se temos necessidade de formá-las é porque estamos condenados a tatear. Desde que as suposições sejam apenas conjunturas, não são fatos constatados: não podem, portanto, ser o princípio ou o começo de um sistema porque todo sistema se reduziria a uma conjuntura. Mas, se elas não são o princípio ou o começo de um sistema, são o princípio ou começo dos meios que temos para descobrir. Ora, porque são o princípio desses meios, acreditou-se que são também o princípio do sistema. Confundiram-se, portanto, duas coisas bem diferentes. À medida que adquirimos conhecimentos somos obrigados a distribuí-los em diferentes classes: não temos outros meios para colocá-los em ordem. As classes menos gerais compreendem os indivíduos e as denominamos espécies com relação às classes mais gerais que denominamos gêneros. As classes que são gêneros, com relação àquelas que lhes são subordinadas, tornam-se elas mesmas espécies com relação a outras classes mais gerais que elas: e é assim que se chega de classe em classe a um gênero que as compreende todas. Quando a distribuição está realizada possuímos um meio bem rápido para nos darmos conta de nossos conhecimentos: é o de começar pelas classes mais gerais. Porque o gênero supremo é propriamente uma expressão abreviada apenas que compreende todas as classes subordinadas e que as abarca de uma vez. Quando digo ser, por exemplo, vejo substância e modificação, corpo e espírito, qualidade e propriedade; numa palavra, vejo todas as divisões e subdi visões compreendidas entre o ser e os indivíduos. É, portanto, por uma classe getal que devo começar quando quero representar rapidamente uma multidão de coisas; e, então, pode-se dizer que» ela é um começo ou um princípio. Eis o que se viu confusamente e se disse: as idéias gerais, as máximas gerais são os princípios das ciências. Eu repito, portanto: só os fatos bem constatados podem ser os verdadeiros princípios das ciências; e se se tomaram por princípio de um sistema suposições ou máximas gerais é porque, sem se dar conta do que se via, se notou que elas são o princípio ou começo de alguma coisa.
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C a p ít u l o II Da inutilidade dos sistemas abstratos
Os filósofos que acreditam nos princípios abstratos nos dizem: considere com atenção as idéias que mais se aproximam da universalidade dos primeiros princípios, forme proposições e você terá verdades menos gerais; considere, em seguida, as idéias que mais se aproximam, pela sua universalidade, das descobertas que acabou de fazer e realize novas proposições, continue desta maneira; não se esqueça de aplicar seus primeiros princípios a cada proposição que descobrir e, então, você descerá gradualmente dos princípios gerais aos conhecimentos mais particulares. Segundo esses filósofos, Deus, criando nossas almas, contenta-se em gravar nelas certos princípios gerais e os conhecimentos que adquirimos em seguida são apenas deduções que fazemos desses princípios inatos. Sabemos que nosso corpo é maior que nossa cabeça porque às idéias de corpo e cabeça aplicamos o princípio: o todo é maior que sua parte. Mas, para que não sejamos surpreendidos ao realizar esta aplicação sem nos apercebermos, adverte-se que ela se realiza por uma operação secreta e que o hábito de termos de reiterar freqüentemente os mesmos juízos nos impede de notar a verdadeira fonte. De acordo com esses filósofos, os princípios abstratos são, portanto, tão certamente a origem de nossos conhecimentos que, se de nós os tomam, não concebem que, entre as verdades mais evidentes, haja alguma ao nosso alcance. Mas eles invertem a ordem de geração das nossas idéias. É tarefa das idéias mais fáceis preparar a inteligência daquelas que o são menos. Ora, cada um pode conhecer, por sua própria experiência, que as idéias são mais fáceis na proporção em que são menos abstratas e que mais se aproximam dos sentidos, e que, ao contrário, elas são mais difíceis nas proporção em que se distanciam dos sentidos e se tornam mais abstratas. A razão dessa experiência é que todos os nossos conhecimentos procedem dos sentidos. Uma idéia abstrata requer explicação por uma idéia menos abstrata e assim sucessivamente até que se chegue a uma idéia particular e sensível. Além disso, o primeiro objetivo de um filósofo deve ser o de determinar exatamente suas idéias. As idéias particulares são determinadas por elas mesmas e somente elas o são: as noções abstratas são, ao contrário, naturalmente vagas, não oferecem nada de fixo a não ser que tenham sido determinadas por outras. Mas seria por noções ainda mais abstratas? Não, sem dúvida, porque estas noções teriam, elas mesmas, ainda mais necessidade de serem determinadas; é necessário, portanto, recorrer às idéias particulares. Com efeito, nada é mais próprio para explicar uma noção que aquela que a engendrou. Conseqüente
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mente, erramos quando queremos que nossos conhecimentos tenham origem em princípios abstratos. 6 Mas, além disso, quais seriam esses princípios? Seriam máximas tão geral mente recebidas que ninguém as ousa contestar? Ê impossível que uma coisa seja e não seja ao mesmo tempo; tudo aquilo que é, é; e outras semelhantes. Procurar-se-á muito tempo por filósofos que tenham daí extraído quaisquer conhecimentos. Na especulação todos eles convêm, na verdade, em que os primeiros princípios são aqueles que são universalmente adotados: seu método tem mesmo alguma coisa de sedutor pela maneira pela qual ele se apresenta inicialmente. Mas é curioso segui-los na prática, ver como se separam bem cedo e com que menosprezo uns rejeitam os princípios dos outros. Parece-me que não se poderia entrar nessa investigação sem se aperceber de que essas espécies de proposições não são suficientes para conduzir a quaisquer conhecimentos. Se os princípios abstratos são proposições gerais, verdadeiros em todos os casos possíveis, eles são menos conhecimentos que uma maneira abreviada de tornar vários conhecimentos particulares, adquiridos antes mesmo que se tenha pensado nos princípios. O todo é maior que sua parte significa: meu corpo é maior que meu braço; meu braço do que minha mão; minha mão do que meu dedo, etc. Numa palavra, este axioma não contém senão proposições particulares dessa espécie e as verdades, as quais se imaginava que ele conduz, foram conhecidas antes que ele o fosse. Esse método seria, portanto, estéril se não tivesse por fundamento senão tais máximas. Temos, também, duas maneiras para lhe conferir uma fecundidade aparente. A primeira consiste em partir de proposições que, sendo verdadeiras em muitos casos, sobretudo por aqueles que muito surpreendem, dão margem à suposição de que o são em todos os casos. Na verdade, se se os apreciava e se tiravam conseqüências exatas apenas, é visível que ele seria como os prin cípios que acabamos de falar. Mas cuidado: ao contrário, supõe-se que sejam verdadeiros em muitos casos onde são falsos. Pode-se, então, aplicá-los a coisas onde elas não são aplicáveis e extrair conseqüências que parecerão muito novas porque elas não estavam aí contidas. Tal é o princípio dos cartesianos: pode-se afirmar de uma coisa tudo aquilo que está contido na idéia clara que temos. Mostrarei que ele não é sempre verdadeiro.7 Essa maneira de conferir uma espécie de fecundidade a um sistema abstrato é a mais hábil: a segunda é mais grosseira, mas não está em menos uso. Ela consiste em imaginar uma coisa que não se concebe, segundo uma outra coisa cujas idéias são mais familiares; e quando, por esse meio, se estabeleceu uma certa quantidade de relações abstratas e de definições frívolas, raciocinava-se sobre uma como se raciocinaria sobre outra. É assim que a 6 Locke soube ver que as máximas abstratas não são a fonte de nossos conhecimentos. Ele forneci razões que não retomo porque sua obra está nas mãos de todo mundo. Veja-se o Ensaio Sobre o Entendimento Humano, livro IV, cap. 7, §§ 9 e 10. Mas, no fim do § 11 do mesmo capítulo, a autoridade das matemáticas se lhe impõe e ele concorda que os princípios abstratos sejam empregados como preliminares para expor-se às verdades conhecidas. Creio ter demonstrado a inutilidade e o abuso de se tomar tal partido. Veja-se a Lógica ou A rte de Pensar. (N . do A.) 7 Cap. 6, art. 2. (N . do A.)
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linguagem usada para os corpos serve a vários filósofos para a explicação do que se passa na alma.8 Basta que eles imaginem algumas relações entre essas duas substâncias. Veremos alguns exemplos. Existem, portanto, três espécies de princípios abstratos em uso. Os primeiros são proposições gerais, verdadeiras em todos os casos. Os segundos são propo sições verdadeiras pelos casos mais notáveis e que, por isso, se é levado a supor que são verdadeiras em todos os casos. Os últimos são relações vagas que se imaginam entre coisas de natureza totalmente diferente. Esta análise é suficiente para que se possa ver que, entre esses princípios, alguns não conduzem a nada e os outros não conduzem senão ao erro. Eis, entretanto, todo o artifício dos sistemas abstratos. Se as reflexões precedentes não forem suficientes para se convencer da inutilidade desses princípios, que se dê a alguém aqueles de uma ciência que ele ignora; poderia ele se aprofundar com tão fracos recursos? Que ele medite estas máximas: o todo é igual a todas as suas partes; a grandezas iguais junte grandezas iguais, os todos serão iguais; junte desiguais, eles serão desiguais; teria ele aí alguma coisa para tornar-se um profundo geômetra? Mas, a fim de tornar isso mais sensível, desejaria que arrancasse de seu gabinete ou da escola um desses filósofos que percebem uma tão grande fecundidade nos princípios gerais e que se ofereça a ele o comando de um exército ou governo de um Estado. Se se fizesse justiça a si mesmo, ele, sem dúvida, recusaria porque não entende nem de guerra nem de política; mas isso seria para ele a menor desculpa do mundo. A arte militar e a política têm seus princípios gerais como todas as outras ciências. Por que, portanto, não poderia ele, se lhe é ensinado, o que não é questão senão de instantes, descobrir todas as conseqüências e tornar-se, depois de algumas horas de meditação, um Condé, um Turenne, um Richelieu, um Colbert? Quem o impediria de escolher entre esses grandes homens? Sente-se quanto essa suposição é ridícula porque não é suficiente, para ter a reputação de bom ministro e de bom general, como para ter a de bom filósofo, perder-se em vãs especulações. Mas pode-se exigir menos de um filósofo para bem raciocinar que de um general ou ministro para bem agir? Ora! Seria necessário que estes últimos tivessem percebido ou, pelo menos, tivessem estudado com cuidado os detalhes das funções subalternas e um filósofo tornar-se-ia, de golpe, um homem sábio, um homem para quem a natureza não tem segredos, somente pelo encanto de duas ou três proposições. Uma outra consideração, mais pertinente ainda, para demonstrar a insu ficiência dos sistemas abstratos é o fato de que, nesse caso, não é possível uma questão ser examinada em todos os seus ângulos. Porque as noções que formam esses princípios, não sendo senão idéias parciais, não se poderia fazer uso delas a não ser que se faça abstração de várias considerações essenciais. É por isso que as matérias um pouco complicadas, tendo mil maneiras pelas quais se as pode tomar, dão margem a grande número de sistemas abstratos. Pergunta-se, por exemplo, qual é a origem do mal. Bayle estabelece sua resposta sobre os princípios da bondade, da santidade e da onipotência de Deus; Malebranche 8 Alusão a Malebranche.
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prefere os princípios da ordem e da sabedoria; Leibniz crê que não é necessário mais que sua razão suficiente para explicar tudo; os teólogos empregam os princípios da liberdade, da providência geral e a queda de Adão; 9 os socinianos negam a presciência divina; os origenistas asseguram que os castigos não serão eternos; Espinosa não admite senão uma cega e fatal necessidade; enfim, os maniqueístas acumularam, todo o tempo, princípios sobre princípios, absurdos sobre absurdos. Não falo dos filósofos pagãos que, raciocinando sobre princípios diferentes, caíram em alguns desses sistemas ou em outros como a metempsicose. Vê-se, por esse exemplo, como é impossível construir sobre princípios abstratos um sistema que abarque todas as partes de uma questão. Entretanto, os filósofos não oscilam. Nesses casos, cada um tem seu sistema favorito ao qual quer que todos os outros cedam. A razão tem muito pouco a ver com a escolha que fazem; ordinariamente, são as paixões que decidem sozinhas. Um espírito naturalmente doce e generoso adotará os princípios que se extraem da bondade de Deus porque não encontra nada maior, mais belo que fazer o bem. Assim, esse deve ser o primeiro caráter da divindade ao qual tudo se deve reenviar. Um outro, em quem a imaginação é grande e as idéias são preponderantes, gostará mais dos princípios que se tomam emprestados da ordem e da sabedoria porque nada lhe causa mais gosto que um encadeamento de causas ao infinito e uma combinação admirável de todas as partes do universo, e a infelicidade de todas as criaturas deve, por isso, ser uma conseqüência necessária. Enfim, o caráter sombrio, melancólico, misantropo, odioso a si e aos outros, gostará das palavras como destino, fatalidade, necessidade, acaso, porque, inquieto, descontente consigo e com tudo que o rodeia, é obrigado a olhar-se como um objeto de desprezo e horror ou a se persuadir de que não há nem bem nem mal, nem ordem nem desordem. Pode ele hesitar? Sabedoria, honra, virtude, probidade: eis sons vãos; destino, fatalidade, acaso, necessidade: eis o seu sistema. Seria muito presumir ou pensar que se possa corrigir todos os homens nesse ponto. Quando a curiosidade se encontra unida a um pouco de imaginação, quer-se, também, levar a vista ao longe, quer-se tudo abarcar, tudo conhecer. Nesse projeto negligenciam-se os detalhes; as coisas ao nosso alcance; voa-se sobre países desconhecidos e constroem-se sistemas. Entretanto, é uma constante que, para se realizar uma visão geral e extensa, que seja fixa e segura, é necessário começar a tornar familiares as verdades particulares. Talvez quem tenha sido encontrado nos primeiros lugares não tenha sido um espírito medíocre senão porque negligenciou esse estudo. Talvez tenha merecido os elogios dados aos grandes homens, se cuidasse com mais atenção de adquirir até os menores 9 Os princípios de que Bayle, Malebranche, Leibniz e os teólogos se servem são verdades: é a vantagem que eles têm sobre os princípios dos socinianos, dos origenistas e dos outros. Mas nenhuma dessas verdades é tão fecunda para nos dar a razão det tudo. Bayle não se engana quando diz que Deus é santo, bom, onipotente; engana-se no fato de que crê esses dados suficientes e quer com eles formar um sistema. Digo o mesmo dos outros. O pequeno número de verdades que nossa razão pode descobrir e aquelas que nos são reveladas fazem parte de um sistema próprio para resolver todos os problemas possíveis; mas elas não são destinadas a nos fazer conhecê-lo e a Igreja não aprova os teólogos que tentam tudo explicar. (N . do A .)
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conhecimentos necessários às funções às quais se destina. Uma sábia conduta multiplicaria os talentos e desenvolveria os gênios. Hoje em dia, alguns físicos, os químicos sobretudo, procuram unicamente recolher os fenômenos porque reconheceram que é necessário abarcar os efeitos da natureza e descobrir a dependência mútua, antes de colocar os princípios que os explicam. O exemplo de seus predecessores lhes serviu de lição; querem, pelo menos, evitar os erros que engendra a mania dos sistemas. Seria de desejar que o resto dos filósofos os imitasse! Mas, em geral, não se tem trabalhado senão para aumentar o número dos princípios abstratos. Descartes, Malebranche, Leibniz e muitos outros viram em muitas máximas uma fecundidade que ninguém tinha notado antes. Quem sabe mesmo se, algum dia, os novos filósofos não darão nascimento a novos princípios? Quantos sistemas já não foram feitos? Quantos serão feitos ainda? Se, ao menos, se encontrasse um que fosse recebido uniformemente por todos os seus partidários! Mas qual base comum se pode formar sobre sistemas que sofrem milhares de mudanças, passando por milhares de mãos diferentes; que, joguetes dos caprichos, aparecem e desaparecem da mesma maneira; e que se sustentam tão pouco que, freqüentemente, pode-se usá-los para defender o pró e o contra? Que os homens, ao sair de um profundo sono, vendo-se no meio de um labirinto, coloquem princípios gerais para descobrir as conseqüências — existe coisa mais ridícula? Eis, entretanto, a conduta dos filósofos. Nascemos no meio de um labirinto onde milhares de desvios são traçados para nos conduzir ao erro; se há um caminho que conduza à verdade, ele não se mostra de início; freqüentemente é aquele que parece menos digno de nossa confiança. Deveríamos, portanto, tomar muita precaução. Avancemos lentamente, exami nemos cuidadosamente todos os lugares por onde passamos e o conheçamos tão bem que estejamos em condição de voltar sobre nossos passos. É mais importante encontrarmo-nos onde estávamos no início do que se crer, com ligeireza, fora do labirinto. Os capítulos seguintes darão a prova.
C a p ít u l o III Do abuso dos sistemas abstratos Se eu quisesse reduzir a um sistema uma matéria, a qual teria aprofundado todos os detalhes, teria que notar apenas as relações de suas diferentes partes e perceber aquelas onde estariam numa tão grande ligação que as conhecidas primeiramente seriam suficientes para dar a explicação das outras. Então eu teria princípios cuja aplicação seria tão bem determinada que não seria possível restringi-los nem estendê-los a casos de naturezas diferentes. Mas, quando se quer edificar um sistema sobre uma matéria cujos detalhes são totalmente desconhecidos, como fixar a extensão dos princípios? E, quando os princípios são vagos, como as expressões terão alguma precisão? Se, entretanto, estou
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prevenido de que posso adquirir conhecimentos unicamente por essa via, me entrego inteiramente; se coloco princípios sobre princípios, se extraio conseqüências sobre conseqüências, impondo-os, em seguida, a mim mesmo, admirarei a fecundidade deste método, aplaudir-me-ei de minhas pretensas descobertas e não duvidarei um instante da solidez do meu sistema: os princípios parecer-me-ão naturais, as expressões simples, claras e precisas e as conseqüências perfeitamente extraídas. Assim, o primeiro abuso dos sistemas, aquele que é a fonte de muitos outros, é que acreditamos adquirir verdadeiros conhecimentos quando nossos pensamentos não giram senão sobre palavras que não têm sentido determinado. Mais ainda: prevenidos pela facilidade e pela fecundidade desse método, não pensamos em submeter ao exame os princípios sobre os quais raciocinamos. Ao contrário, bem persuadidos de que são a fonte de todos os nossos conhecimentos, quanto mais os empregamos menos temos escrúpulos. Se se ousasse duvidar, a qual verdade poderíamos pretender? Eis o que consagrou essa máxima singular: não se deve colocar os princípios em questão; máxima de um abuso tão grande que não há erro que não possa engendrar. Esse axioma, irracional como é, uma vez adotado, torna natural o pensar que não se deve mais julgar um sistema senão pela maneira que dá a razão dos fenômenos. Mesmo que esteja fundado sobre idéias as mais claras, sobre fatos os mais seguros, se falha neste aspecto é necessário rejeitá-lo e deve-se adotar um sistema absurdo quando explica tudo. Tal é o excesso de cegueira em que se caiu. Darei, como exemplo, aquilo que Bayle descreveu sobre o maniqueísmo.10 “As idéias”, diz ele,11 “mais seguras12 e mais claras de ordem nos ensinam que um ser que existe por si mesmo, que é necessário, que é eterno, deve ser único, infinito, onipotente e dotado de todas as espécies de perfeições. Assim, consultando essas idéias, não se encontra nada de mais absurdo que a hipótese de dois princípios eternos e independentes um do outro, em que um deles não tem nenhuma bondade e tem o poder de deter os desígnios do outro. Eis o que denomino razões a priori. Elas nos conduzem necessariamente a rejeitar essa hipótese e a não admitir senão um princípio de todas as coisas. Se fosse necessário só isso para a bondade de um sistema, o processo estaria entregue à confusão de Zoroastro e de todos os seus sectários. Mas não há sistema que, para ser bom, não tenha necessidade destas duas coisas: a primeira, que as idéias sejam distintas, e a segunda, que possa explicar os fenômenos.” Essas duas coisas são, com efeito, igualmente essenciais. Se as idéias claras e seguras não são suficientes para explicar os fenômenos, não se saberia formar um sistema; devemos nos limitar a olhá-las como verdades que pertencem a uma ciência da qual não se conhece ainda senão uma pequena parte. Se as idéias são absurdas, nada seria menos razoável que tomá-las por princípios; seria querer explicar as coisas que não se compreendem por outras das quais se conceberia toda a falsidade. Daí seria necessário concluir que, supondo que 10 Cf. Bayle, Dicionário Histórico e Crítico, artigo “Maniqueístas”. (N . da ed. francesa.) n Maniqueístas. (N . do A .) 12 Coloco em grifo as expressões que é necessário ressaltar. (N . do A .)
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o sistema da unidade do princípio não é suficiente para explicar os fenômenos, isso não é uma razão para admit:;r como verdadeiro o sistema dos maniqueístas: falta-lhe uma condição essencial. Mas Bayle raciocina de uma maneira bem diferente. Desejando concluir que é necessário recorrer às luzes da revelação para arruinar o sistema dos maniqueístas, como se fosse necessária a revelação para destruir uma opinião que ele concorda ser contrária às, idéias mais claras e mais distintas, finge uma disputa entre Melisso e Zoroastro e faz este último falar da seguinte maneira: “Você me ultrapassa na beleza das idéias e nas razões a priori e eu o ultrapasso na explicação dos fenômenos e nas razões a posteriori, e, porque o principal caráter de um bom sistema é o de ser capaz de dar a razão das experiências e só a incapacidade de explicá-las é uma prova de que uma hipótese não é boa, quão bela possa parecer, concorde que eu atinjo o alvo, admitindo dois princípios, e que você não o faz, pois não admite senão um”. Bayle, supondo que o principal caráter de um sistema é o de dar a razão dos fenômenos, adota um prejuízo dos mais geralmente recebidos e que é uma conseqüência do princípio: não se deve colocar os princípios em questão. É fácil dar a Melisso uma resposta mais razoável que o argumento de Zoroastro. “Se as razões a priori dos dois sistemas, eu o faria dizer, fossem igualmente boas, seria necessário dar preferência àquele que explicasse os fenômenos. Mas, se um está fundado em idéias claras e seguras e o outro sobre idéias absurdas, não é necessário levar em conta o último porque parece dar a explicação dos fenômenos; ele não os explica, não pode explicá-los, porque o verdadeiro não poderia ter sua razão no falso. O caráter absurdo dos princípios é, portanto, uma prova de que uma hipótese não é boa. Está, portanto, demonstrado que você não atingiu o objetivo. “Quanto a isso que você diz, que uma suposição é má pela única razão de ser incapaz de explicar os fenômenos, eu distingo: ela é má, se essa incapacidade vem do fundo da suposição mesma, de maneira que por sua própria natureza seja insuficiente para explicar os fenômenos. Mas, se sua incapacidade advém dos limites do nosso espírito e do fato de que não adquirimos ainda suficientes conhecimentos para torná-la capaz de dar a razão de tudo, é falso que seja má. Por exemplo, eu reconheço somente um primeiro princípio porque, como você concorda, é a idéia mais clara e mais segura; mas, incapaz de penetrar as vias desse ser supremo, minhas luzes não me são suficientes para explicar suas obras. Limito-me a recolher as diferentes verdades que vêm ao meu conhecimento e não empreendo ligá-las e formar um sistema que explique todas as contradições que você imagina ver no universo. Que necessidade há, com efeito, para a verdade do sistema que Deus se prescreveu, que eu possa compreendê-lo? Convenha, portanto, que, se com um único princípio eu não posso dar a razão dos fenômenos, você não tem o direito de concluir que, sendo assim, há então dois.” Seria necessário estar muito prevenido para não sentir o quanto esse raciocínio de Melisso seria mais sólido que aquele de Zoroastro. Os físicos contribuíram não pouco para pôr em circulação este princípio que diz: é suficiente para um sistema explicar os fenômenos. Eles tinham
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necessidade, sobretudo, quando queriam explicar por quais vias Deus criou e conserva o universo. Mas, se, para formar um sistema, pode-se colocar todas as espécies de princípios, tomar os mais absurdos como os mais evidentes e realizar uma complicação de causas sem razão, que mérito pode haver em obras dessa espécie? Mereceriam mesmo ser refutadas, se não fossem defendidas por autores cujos nomes se impõem? Entretanto, por mais sensível que seja um tal abuso, é suficiente ser versado na leitura dos filósofos para estar convencido da pouca precaução que eles trazem para evitá-lo. Eis como se conduzem aqueles que querem formar um sistema: e quem não o quer! Prevenidos por uma idéia, freqüentemente sem saber por que, tomam primeiramente todas as palavras que parecem ter com ela alguma relação. Aquele, por exemplo, que quer trabalhar sobre a metafísica capta estas: Ser, substância, essência, natureza, atributo, propriedade, modo, causa, efeito, liberdade, eternidade, etc. Em seguida, sob pretexto de que somos livres para ligar aos termos as idéias que se querem, define-as segundo seu capricho e a única precaução que toma é a de escolher as definições mais cômodas para seu projeto. Ainda que sejam bizarras essas definições, há sempre entre elas relações: ei-lo, portanto, no direito de extrair as conseqüências e raciocinar a perder de vista. Se repassa a cadeia de proposições que forjou por esse meio, teria dificuldade em se persuadir de que as definições das palavras possam conduzir tão longe; além disso, não poderia suspeitar que meditou para nada. Conclui, portanto, que definições nominais se tornaram definições de coisas e admira a profundidade das descobertas que crê ter feito. Mas ele se parece, como nota Locke em tais casos, com os homens que, sem dinheiro e conhecimento das espécies correntes, contariam grandes somas com fichas, que se chamariam luíses, libras, escudos. Suas somas serão sempre fichas, qualquer que seja o cálculo que façam. Quaisquer raciocínios que faça um filósofo, tal como esse de quem falo, é certo que suas conclusões sempre serão apenas palavras. Eis, portanto, a maioria, ou melhor, todos os sistemas abstratos que não giram senão sobre sons. São, ordinariamente, os mesmos termos em todos os lugares; mas, porque cada um se crê no direito de defini-los à sua maneira, extraímos, em concorrência, conseqüências bem diferentes e parecemos supor que a verdade depende dos caprichos de nossa linguagem. “Por exemplo, suponhamos que o homem seja o objeto do qual se quer demonstrar qualquer coisa por meio desses primeiros princípios, e veremos que, enquanto a demonstração depender desses princípios, ela será verbal apenas e não nos fornecerá nenhuma proposição certa, verdadeira e universal nem nenhum conhecimento de algum ser existente fora de nós. Primeiramente, uma criança formando a idéia de um homem, é provável que sua idéia seja justamente semelhante ao retrato que um pintor fez das aparências visíveis, que juntas constituem a forma exterior de um homem, de maneira que uma tal complicação de idéias unidas no seu entendimento constitui essa particular idéia complexa que ela denomina homem; e, como o branco ou a cor de carne faz parte dessa idéia, a criança pode demonstrar, em virtude deste princípio: é impossível que uma coisa seja e não seja, que um negro não é um homem,
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estando fundada sua certeza sobre a percepção clara e distinta que tem das idéias de branco e negro que não pode confundir. Você não saberia também demonstrar a essa criança, ou a qualquer um que tenha uma tal idéia que designa pelo nome de homem, que um homem tenha uma alma, porque sua idéia de homem não contém uma tal noção e, por conseqüência, é um ponto que não pode ser provado pelo princípio: aquilo que é, é, mas que depende de conse qüências e observações por meio das quais ele deve formar sua idéia complexa, designada pela palavra homem. “Em segundo lugar, uma outra pessoa que, formando a coleção da idéia complexa que ele chama homem, foi mais adiante e juntou à forma exterior o riso e o discurso racional, pode demonstrar que as crianças que acabaram de nascer e os imbecis não são homens, por meio desta máxima; é impossível que uma coisa seja e não seja. Com efeito, aconteceu-me discutir com pessoas muito razoáveis que negaram que as crianças e os imbecis fossem homens. “Em terceiro lugar, talvez um outro não componha sua idéia complexa que denomina homem senão das idéias dos corpos em geral e da potência de falar e raciocinar e exclua inteiramente a forma exterior.13 E uma tal pessoa pode demonstrar que um homem pode não ter mãos e ter quatro pés, porque nenhuma dessas duas coisas está contida em sua idéia de homem; em qualquer corpo ou figura que encontra a faculdade de falar unida à de raciocinar julga que aí existe um homem, porque, tendo um conhecimento evidente de uma tal idéia complexa, é certo que aquilo que é, é.” 14 Usei esse longo exemplo de Locke porque ele mostra sensivelmente o quanto o uso de princípios abstratos é ridículo. Aqui, é fácil convencer-se porque são aplicados a coisas que nos são familiares. Mas, quando se trata de idéias abstratas da metafísica, das expressões pouco determinadas que esta ciência tem, pode-se julgar para onde levam as contradições e os absurdos. O método que censuro é muito acreditado para não ser, por longo tempo ainda, um obstáculo ao progresso da arte de raciocinar. Próprio para demonstrar à nossa vontade toda espécie de opiniões, ele agrada igualmente todas as paixões. Deslumbra a imaginação pela audácia das conseqüências a que conduz, seduz o espírito porque não se reflete quando a imaginação e as paixões se opõem a isso, e, por seqüências necessárias, faz nascer e alimenta a obstinação nos erros mais monstruosos, o amor à disputa, a acidez com a qual é sustentada, o distanciamento da verdade ou a pouca sinceridade com a qual se a investiga. Enfim, se se encontra com um espírito crítico, este começa a perceber as incertezas onde ele conduz. Então, persuadido de que não pode haver melhor método, não adota mais nenhum sistema, cai num outro extremo e assegura que não há conhecimento aos quais possamos almejar. 13 “Posso muito bem conceber um homem sem mãos, sem pés; eu o conceberia mesmo sem cabeça se a experiência não me ensinasse que é por ela que ele pensa. É, portanto, o pensamento que faz o ser do homem e sem o que não se pode concebê-lo.” Pascal, Pensamentos, cap. 23, n